Da Política Dos Estados À Política Das Empresas - Milton Santos

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Da Política dos Estados À Política Das Empresas

Milton Santos (1)


GLOBALIZAÇÃO E POLÍTICA
Palestra proferida em 14 de outubro de 1997, na Escola do Legislativo, dentro do
curso de Formação
Política - Ano II -
O tema não fui eu quem inventou, foi inventado por esta Casa. Aceitei o desafio;
porém, vou falar sobre a questão que me foi sugerida, "GLOBALIZAÇÃO E
POLÍTICA", vista a partir do território, do espaço geográfico. Ando dizendo
ultimamente que, assim como Florestan Fernandes interpretou o Brasil a partir
da sociedade, Celso Furtado o fez a partir da economia, e Darci Ribeiro,
recentemente, em alguns de seus livros, decidiu interpretar o Brasil a partir
do povo brasileiro, é possível o mundo e o Brasil a partir do espaço geográfico. É
o que vou tentar fazer aqui, fixando-me nesse aspecto particular que me foi
solicitado, globalização e política. Inicialmente farei um regresso, mas muito em
breve, ao começo da história humana, quando o homem, em sociedade, busca,
relacionando-se com a natureza, construir a história. Nesse começo dos tempos,
as relações existentes entre território, política, economia, cultura e
linguagem eram relações transparentes, porque não havia intermediação.
Nas pequenas aldeias, em qualquer que fosse o continente, nas sociedades que
depois os antropólogos europeus orgulhosamente chamaram de primitivas, a
relação entre setores da sociedade se dava diretamente. Não havia
intermediação. Nesse momento, conhecíamos algo que se poderia considerar
como uma territorialidade absoluta, ou seja, os moradores pertenciam àquilo
que lhes pertenciam, o território. O território lhes pertenciam e eles
pertenciam ao território, o que criava uma certa identidade entre as pessoas e o
seu espaço geográfico, dava em função da produção, uma noção particular de
limite, e acarretava, paralelamente, uma compartimentação do espaço, o que
produzia por conseqüência uma idéia de domínio, de poder. A produção do
poder e da política do território era, também, a política da linguagem, tudo
isso em conjunto indissociável. Criava-se, paralelamente, a idéia de
comunidade.

Essa comunidade aparecia em um contexto limitado, no espaço. O século XVIII


produziu ainda os enciclopedistas, a Revolução Americana e a Revolução
Francesa, que são respostas políticas às idéias filosóficas, que sempre
precederam à produção das idéias políticas que sempre precederam à produção
de novos regimes políticos. As idéias filosóficas sempre foram o grande motor da
História. Se não houvesse esse caminhar conjunto dessas idéias e da técnica à
serviço da produção - por conseguinte do capitalismo - teríamos tido uma eclosão
muito maior do utilitarismo, da noção de lucro e da idéia de concorrência. Ao
contrário, o que se deu foi a possibilidade de enriquecer o indivíduo a partir
desses princípios morais, dessa idéia de futuro oferecida pelas filosofias, e
esse fortalecimento do indivíduo se dava dentro da sociedade. Não poderia
ser de outra forma. Por outro lado, a sociedade se fortalecia em função do
fortalecimento dos indivíduos. A mesma ética - porque a filosofia política é uma
ética ou busca ser uma ética glorificava o indivíduo responsável e glorificava a
coletividade responsável. Ambos eram responsáveis. Indivíduo e coletividade
criavam juntos um enriquecimento recíproco, num momento que iria apontar, de
um
lado, para a busca da democracia, que foi interrompida no fim da Segunda Guerra
Mundial, e, ao
mesmo tempo, para a produção da cidadania plena, que foi se enriquecendo ao
longo desses séculos.
Ela não é resultado de um movimento único, uma presença feita brutalmente num
só momento. A
cidadania plena acaba por ser o grande guardião contra o capital pleno.
Certamente a cidadania
nunca chegou a ser plena. Mas chegou a ser quase plena nesses 30 anos
gloriosos depois do fim da
Segunda Guerra Mundial. E esta quase plenitude era paralela à quase plenitude
da democracia.
Não queria antecipar minhas conclusões, mas vou dizer que o fim dos 30 anos de
crescimento geral
do mundo leva à morte do cidadão pleno e da democracia plena. Podemos agora
nos referir ao
fenômeno que aparece como paralelo a essa tendência, com uma redução da
cidadania e uma
diminuição da democracia, que é a globalização. A globalização é essa marca,
esse momento de
ruptura de um processo que vinha se fazendo, lentamente, nos quatro séculos
precedentes, e que
marca a morte de um sonho verdadeiro de globalização. A humanidade sempre
sonhou com ela. O
progresso técnico aparecia como uma condição para realizar essa sonhada
globalização e, finalmente,
quando esse progresso técnico alcança o nível superior, a globalização se realiza,
não a serviço da
humanidade, mas contra. Essa globalização às vezes é confundida com a idéia de
internacionalização,
mas- não são a mesma coisa.
Desde a noção de sistema-mundo, criada pelo historiador (que trabalhou no
Brasil) Fernand Braudel,
dizia-se que o sistema mundo se formava por pontes no planeta, com os países
fazendo comércio
entre eles, intercambiando. Reduzia-se o esforço necessário a cada um dos
países, na realidade, a
algumas cidades, porque a economia-mundo era feita a partir de certas cidades,
aumentando-se a
riqueza de seus habitantes. Isso, para Braudel, se dá mesmo antes da
implantação do mercantilismo,
que amplia os horizontes do capitalismo a partir de Portugal e Espanha, do
capitalismo mercantílindustrial
e do capitalismo-industrial, do capitalismo grande-industrial e da evolução da
mundialização. Então foram etapas para a globalização que iríamos conhecer no
fim do século, mas
etapas que se davam paralelamente à construção e ao aperfeiçoamento do
Estado Nacional, do
Estado de Direito e do Estado Social. Novamente temos as idéias de filosofia
política ligadas à uma
ética que compreendia a necessidade da solidariedade, com o indivíduo vivendo e
fazendo crescer a
idéia de sociedade, a sociedade que se agigantava, pelo fato de obrigar o respeito
ao indivíduo, do
nascimento à morte, e essa é uma idéia que se concretiza no século XX, os
Estados responsáveis
pelas suas nações, até que, ao chegar o período propriamente tecnológico da
história humana, esse
sonho se desfaz. As sim, promessas da técnica deixaram de ser cumpridas. Se
nos referimos ao
sonho da globalização e à sua realidade, podemos pelo menos sugerir três
maneiras de encarar a
questão. A primeira maneira seria considerar a globalização como uma fábula, a
segunda, como uma
perversidade; e a terceira, como uma possibilidade. Uma possibilidade ainda não
alcançada, mas
possível de ser, com a produção de uma sociedade humana verdadeira. A
globalização como fábula e
como perversidade dançam paralelamente. O que temos hoje? A globalização
aumenta o número de
pobres. Oitocentos milhões de novos pobres depois dos anos 60. A globalização
que cria uma fome
generalizada, porque a fome era ocasional e hoje é permanente, globalizada, nos
mundos rico e
pobre. São todos mundos de fome. A globalização que acarreta o fenômeno dos
sem-teto, que se
tornaram uma praga no mundo inteiro. A globalização que restaura doenças que
haviam desaparecido
- no Brasil vemos a proliferação de enfermidades que a civilização havia eliminado
- mas, sobretudo,
a globalização que mata a noção de solidariedade, que devolve o homem à
condição primitiva do cada
um por si, como se voltássemos a ser animais da selva; a globalização que reduz
as noções de
moralidade pública e particular a um quase nada, como já estamos cansados de
ver.
Essa globalização tem de ser encarada a partir de dois processos paralelos para
que possamos
entendê-la. Aliás, todas as épocas históricas podem ou devem ser olhadas a partir
desses dois
processos. De um lado, a produção de uma materialidade, ou seja, as condições
materiais que nos
cercam em cada momento histórico e que são a base da produção econômica,
dos transportes e das
comunicações. De outro as relações, entre países, classes sociais e pessoas que
não são
obrigatoriamente dependentes das condições materiais, mas, junto com estas,
definem as épocas. O
que aconteceu a partir da metade do século XX?
Uma expansão extraordinária das técnicas, acopladas às ciências, e, mais tarde, o
que se chamou de
convergência das técnicas. Quer dizer, todas as técnicas são susceptíveis de
funcionar
conjuntamente. Esse milagre se dá a partir do momento em que se criam as
técnicas da informação.
São as técnicas da informação, essa terceira onda, na qual estamos vivendo, que
vão permitir que
todas as técnicas trabalhem juntas, formando sobre o planeta um tecido de
técnicas que é, repito, a
base da produção das coisas, da produção das relações e também da produção
da política. O
problema é que, no começo do desenvolvimento técnico, a técnica era autônoma
em relação à
ciência, e esta, autônoma em relação à técnica, de tal maneira que quem produzia
as grandes
inovações eram gerentes, proprietários, que não iam obrigatoriamente à escola, e
a produção
acadêmica não era forçosamente utilizada para fazer avançar a produção.
Depois se estabeleceu a relação entre a técnica e a ciência, o que vai redundar
numa dependência da
ciência em relação à técnica. A partir daí é que aparecem as críticas à ciência.
A partir daí se começa a dizer que a ciência não conduz à verdade. A partir daí
começamos a ver a
ciência trabalhando não em benefício da humanidade, mas, geralmente, em
benefício de um pequeno
número de homens e de empresas.
Pois bem, a globalização tem como uma das bases esse casamento entre ciência
e técnica, essa
tecno-ciência, que depende da técnica, que depende do mercado. Por
conseguinte, trata-se de uma
técnica e de uma ciência seletivas.
A ciência freqüentemente produz aquilo que interessa ao mercado, não à
humanidade, de tal maneira
que o progresso técnico e científico não é sempre um progresso moral.
E o que poderemos ver se fizermos uma análise mais detalhada do que se passa
na própria
universidade: a cada dia encontramo-la mais aplicada a servir ao mercado,
enquanto os reitores se
vangloriam de entregar os seus estabelecimentos ao mercado, considerando essa
a solução mais
correta, sem levar em conta questões éticas.
Essa globalização vai se dividir em dois impérios centrais. Um, o do dinheiro e o
outro, o da
informação. A união entre indústria e capital financeiro encontrou um ápice nos
últimos 30 anos
quando as indústrias tomaram-se, de alguma maneira, autônomas em relação aos
Bancos. As
recentes reformas bancárias levam em conta essa autonomia das grandes
empresas em relação ao
capital financeiro, de tal maneira que elas tomaram-se capazes de reinvestir,
forçando os Estados e
as instituições internacionais a criarem, a partir delas. Bancos. O dinheiro começa,
então, a se impor
como algo autônomo face ao resto da sociedade e, mesmo, da economia. Essa
movimentação,
autônoma do dinheiro em estado puro - porque não é dinheiro produtivo e sim o
dinheiro em sua
forma dinheiro - até poucos anos antes era considerada inacreditável.
Por outro lado, há a autonomia da informação, que se torna arrogante e, ao
mesmo tempo, o
elemento central da produção, como da geopolítica, isto é, das relações entre
países. Mas também há
a conformação dos espíritos. Essa informação é centralizada nas mãos de um
número extremamente
limitado de firmas. Hoje, no mundo, o que a gente lê, tanto em livros como em
jornais, é produzido a
partir de menos de meia dúzia de empresas que, na realidade, não transmitem as
novidades, apenas
as rescrevem de maneira bem específica, A notícia, cada vez menos, é o espelho
de um fato. Apesar
de as condições técnicas da informação serem capazes de permitir que toda a
humanidade saiba o
que o mundo é, na realidade, acabamos por não sabê-lo porque temos essa
intermediação. Essa
intermediação se repete também na indústria de livros. A indústria editorial
também está concentrada
nas mãos de um pequeno número de empresas, que são as mesmas empresas
da informação.
Sem dúvida, a imprensa é uma indústria frágil. O que ela pode fazer diante da
força das agências de
notícias? É evidente que ela tem de pagar por essa subordinação às leis do
mercado. E desse modo
que se cria o que poderíamos chamar de imperativo da fluidez no planeta. Este se
torna fluido, quer
dizer, a circulação toma-se mais rápida, os pontos interligados são mais
numerosos, os preços das
viagens e do porte das mensagens baixam. Quando o planeta se toma fluido,
todos os contextos se
intrometem, produzindo essa superposição de contextos, que é o contexto global,
no qual as
fronteiras se tomam porosas para o dinheiro e para a informação. Além disso, o
território deixa de ter
aqueles limites rígidos de que falamos no início, levando ao enfraquecimento e à
mudança de
natureza dos Estados Nacionais.
Esse discurso que ouvimos todos os dias, de cada vez haver menos Estado, está
ligado, de um lado,
ao fato de que há porosidade e, de outro lado, ao fato de que os que comandam a
globalização
necessitam de um Estado flexível aos seus interesses para oferecer condições a
uma produção
devorante. As privatizações são a mostra de que o capital tomou-se extremamente
guloso, quer tudo,
por isso exige privatizações. Além disso, são feitas exigências para que ele se
instale - que em grande
parte são feitas à geografia, porque é preciso adaptá-la às necessidades das
novas empresas, e quem
mora em Minas Gerais sabe disso.
O Estado de Minas Gerais foi compelido a investir somas extraordinárias,
preparando o território tanto
para a instalação de empresas como para a construção de rodovias consideradas
indispensáveis para
escoar a sua produção. De tal forma o Estado acaba por ter menos recursos para
tudo o que é social.
Assim o Estado atual, o Estado da globalização, caracteriza-se não por uma
fragilidade, mas, ao
contrário, pela fortaleza no que toca ao serviço de uma economia não humana,
enquanto se esquece
do social.
Ele pede aos velhos que financiem a sua velhice, tranqüilamente. É o caso do
Brasil. É uma vergonha
a forma como se está reformando a Previdência Social, que significa: os senhores
trabalhem e, ao
envelhecer de agora em diante, virem-se sozinhos. Esse é o recado que está
sendo dado ao País.
A educação não é mais responsabilidade da sociedade. Que paguem as
universidades, que paguem as
escolas. A saúde, conquista secular, como vimos, não é mais um dever da
sociedade para com o
indivíduo. A sua saúde é seu negócio. Isso resulta do fato de que a política agora
é feita no mercado.
O Estado se retira da política. Ele expulsa os políticos da política. Ele entrega ao
mercado a tarefa de
fazer política. Só que esse mercado global não existe como ator, ele existe como
uma ideologia, como
símbolo. Os atores são as empresas globais. Elas não têm preocupações éticas,
nem finalísticas. Suas
preocupações são individualistas por natureza.
No mundo da competitividade, como fazer de outra forma? Ou se é cada vez mais
individualista, ou
se desaparece. Então, a lógica da própria empresa global sugere que a empresa
funcione sem
nenhum altruísmo. Se o Estado não pode ser solidário, e a empresa não pode ser
altruísta, a
chamada sociedade não tem quem a valha. E daí dizer-se que a idéia de nação é
superada porque
temos diante de nós o mundo; só que o mundo não cuida de cada um dos nossos
lugares. O mercado
global tampouco pode agir de maneira mais geral. Ele passa procuração às
instituições
supranacionais. Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial. Banco das
Regulações Internacionais
de Berna, que se incumbem de realizar as políticas que a empresa não pode
realizar. A política, por
definição, é sempre ampla. A política supõe uma visão de conjunto. Quem não
tem visão de conjunto
não chega a ser político. A política apenas se realiza quando existe a
consideração de todos e de tudo.
Não há política apenas para os pobres, por exemplo, como não há política apenas
para os ricos. Pode
haver formas de proteção aos ricos e aos pobres. Mas a política tem de cuidar do
conjunto de
realidades, do conjunto de relações.
Nas condições atuais, o que estamos assistindo é a política feita pelas empresas,
sobretudo pelas
grandes empresas. Quando uma grande empresa se instala, por exemplo, numa
cidade média, num
Estado como Goiás - e se estivesse em Goiás, eu diria Minas - o que acontece? A
grande empresa se
instala e chega com suas normas. E todas elas são extremamente rígidas. Essas
normas rígidas da
empresa são duplicadas porque as técnicas também são normas. Cada técnica
propõe uma maneira
particular de comportamento. Cada técnica envolve normas, regulamentações e,
por conseguinte,
traz para os lugares novos tipos de norma, incluindo às normas políticas da
empresa que são suas
formas de relacionamento com outras empresas, alterando, destarte, as condições
de relacionamento
dentro de cada comunidade. Como ela é reconhecida como salvadora do lugar
(este é o discurso
atual, e veremos daqui a pouco que não o é) há uma docilidade oficial e às vezes
pública em relação
aos comportamentos desta empresa.
Tudo isso sem contar que a sua presença muda o esquema de emprego, muda as
relações
econômicas, sociais, culturais e morais dentro de cada lugar, e também o
orçamento público. Ele é
alterado com a presença da empresa, que traz uma subversão à grande empresa,
exigindo do poder
público estadual e municipal que reequilibre as rubricas orçamentarias para, em
primeiro lugar, servir
à empresa. Então, 10 ou 20 grandes empresas que se instalam no Estado
constituem um processo de
desequilíbrio que fica vinculado também à possibilidade do gasto social, porque as
técnicas são
solidárias. Quando se impõe uma técnica, cria-se a obrigação de trazer outras,
sem as quais aquela
não funciona bem. E como as empresas do Século XX, vagabundas que são não
no sentido moral,
mas vagabundas por não poderem ficar permanentes em lugar nenhum, no
sentido de serem
turistas, trabalham com a arma da chantagem frente ao Governo, (chantagem que
exercem para se
instalarem) deste modo, o chamado poder público passa a ser subordinado,
compelido, arrastado. Na
medida em que aceitamos esse nexo das grandes empresas, estamos instalando
a semente da
ingovernabilidade; este é um fenômeno que, no Brasil, atinge uma dimensão ainda
não medida.
A translação do poder do Estado para as empresas tem conseqüências
extraordinárias, já que se
espera do Estado e dos municípios que façam um mínimo de política, voltando-se
para o bem-estar
comum. Da empresa, não: a empresa vangloria-se de dar um salário àquele que
trabalha, mas ela
não tem preocupações gerais. Suas preocupações são obrigatoriamente
particularistas, o que tem a
ver com a própria natureza do fenômeno empresarial, sobretudo no mundo da
competitividade.
Na medida em que aquele instituto encarregado de cuidar do geral é enfraquecido,
estamos
instalando, no território, uma fragmentação; estamos instalando, no território, um
abandono da
noção de solidariedade; estamos, pelo menos a médio prazo, produzindo as pré-
condições da
desordem. Aliás, no Brasil, essa desordem já está instalada e é visível através do
comportamento dos
territórios.
Poderia estender-me um pouco mais sobre a questão da empresa. No mundo, a
competitividade
tomou se grande lei; todavia, antes, creio que seria bom verificar
como, a partir da expropriação da política pelas empresas elas retiram a política
das mãos de quem
pode fazê-la, que é o Estado, os políticos. Nós substituímos a idéia de democracia
pura pela idéia de
democracia de mercado. É o que acontece no Brasil: não temos democracia. O
Brasil não é
propriamente um país democrático; aqui existe uma democracia de mercado, a tal
ponto que não são
as necessidades do Homem, com "h" maiúsculo, que presidem o trabalho do
aparelho do Estado, mas
a preocupação com as empresas.
A visita do Presidente Clinton mostra isso. Ele veio conversar de empresas, e
nosso Presidente
conversa de empresas também. É evidente que esse encontro representará
grandes negócios. Aliás,
essa tem sido a prática atual da relação entre presidentes. Dane-se a política, pois
ela deixa de ser
necessária, já que é o mercado que comanda na democracia de mercado. A
política vai se refugiar no
meio dos pobres. Estes é que fazem política hoje, e entre eles mesmos. A classe
média não o faz e os
ricos também não, porque vivem a partir de regras extremamente precisas, sem
as quais não podem
participar. É o pobre que faz política hoje, e é a nossa sorte, aliás.
Isso leva também à mutilação das cidadanias, como é o caso da Europa. O Brasil
não serve de
exemplo, pois aqui nunca houve cidadania. Isso enfraquece a solidariedade e é
uma espécie de volta
ao mundo da natureza - o mais forte é quem manda.
A competitividade que leva a tudo isso é um imperativo ou é uma ideologia? O que
é que prova que a
competitividade é realmente necessária? A competitividade
leva a criar essa briga entre as grandes empresas para que uma se torne maior e
mate a outra, e
para que, amanhã, duas ou três se associem para matar duas ou três que se
associaram do outro
lado. Pergunto: para quê? Qual o objetivo dessa batalha?
Aparentemente, o objetivo é conquistar mais espaço para o grande capital, mas
será que é esse o
ideal da humanidade? Será que a competitividade representa a melhoria de
condição de vida para os
povos? Não existe prova disso.
Ao contrário, há estudos que buscam mostrar que a competitividade não traz
consigo nem bem-estar,
nem crescimento redistributivo.
A idéia de Estados competitivos, quando quem compete são só as empresas,
parece-me também do
domínio da pura ideologia. As formas ideológicas arrastam os comportamentos
econômicos e, o que é
muito grave, os comportamentos sociais e individuais.
O egoísmo atual, a forma como consideramos o vizinho, gravam-se a partir dessa
competitividade no
nível das grandes empresas. Nossa lealdade com o que é social diminui e
reduzem-se, por
conseguinte, a governabilidade e a solidariedade.
A idéia de competitividade está ligada a outro mito de nossa era, que é o da
velocidade. A partir da
ciência acoplada à técnica, admite-se que a velocidade é uma necessidade. Ora,
quantas empresas
são realmente velozes no mundo hoje? Respondam-me. Quantos homens são
realmente velozes no
mundo hoje? Somos quase 6 bilhões de pessoas, mas não haverá mais de uma
dezena de milhares
de homens verdadeiramente velozes. A concorrência é admissível, mas a
competição é imoral.
Quantos são imorais a ponto de serem competitivos, ou competitivos a ponto de
serem imorais?
Poucos. A quase totalidade da humanidade pode viver à parte da noção de
competitividade e à parte
da noção de velocidade. Ademais, a velocidade é apontada como filha da técnica
e da ciência, mas ela
é um fenômeno político. A velocidade não é fenômeno técnico, mas determinada
pelas relações
sociais, dentro de uma sociedade, dentro de um País e dentro do mundo. Por que
não admitir um
mundo menos veloz e menos competitivo?
Teríamos que sair do domínio do ideológico, porque a necessidade da velocidade
e da competitividade
é ideológica.
Teríamos que abandonar a lei ideológica, porque ela se presta a justificar a forma
atual de
globalização. A competitividade e a velocidade reduzem a possibilidade da
política. A velocidade
sempre foi criadora de mais desigualdade. Olhem a história da humanidade. A
velocidade é condição
de desigualdade. Tomamo-nos muito mais desiguais quando chegou o automóvel,
e ainda muito mais
com o avião. Glorificamos a velocidade, porque ela realiza o velho sonho da
humanidade de se tomar
volátil. Se nos detivermos a pensar sobre a questão, vamos ver que ela faz parte
do domínio da
ideologia.
A competitividade é um fator de desordem orçamentaria, econômica, social,
territorial e política. É na
relação com o território que verificamos exatamente como a competitividade é um
fator de
desagregação e de ingovernabilidade. Gosto de trazer nessas ocasiões uma idéia
de um grande
geógrafo, chamado Jan Gottmann. Com isso, vou terminar minha conversa. Ele
dizia que o território
pode ser abrigo e pode ser recurso. No começo da história, o território era os dois,
para todos... Ele
era abrigo e era recurso. As pessoas tiravam dele a sua sobrevivência e eram
também protegidas por
ele. A história da humanidade é a história da dissociação dessas duas condições,
que agora chegou ao
ápice com a produção das chamadas redes.
As redes são formadas de pontos bem tratados, bem equipados no território,
facilitando a vida das
grandes empresas globais. Essas grandes empresas instalam-se nesses pontos.
Isso pode ser visto
facilmente, bastando olhar para o mapa de qualquer país, de qualquer continente.
Elas tratam o
território apenas como recurso, mas são muito pouco numerosas. No caso do
Brasil, esse percentual
é ínfimo. A maioria esmagadora, a quase totalidade das empresas têm o território
como abrigo.
Quanto às pessoas, o percentual é parecido. Todavia, o território como abrigo,
como aquele que
abriga a solidariedade, não é cuidado pelo poder público, pelo poder do Estado,
de tal forma que essa
disjunção é causa de desordem. Ela vai conduzir a algo novo que já está se
delineando. Esse algo
novo se manifesta porque há uma disputa das instituições segundo níveis de
governo: os Estados e
municípios, os Estados e a Federação. Os municípios da Federação não podem
se entender nas
condições atuais. Há uma disputa entre as empresas, porque território e mercado
são sinônimos.
Então, as empresas brigam entre si pelo mercado. Se brigam pelo mercado, estão
brigando pelo
território. Há uma disputa, entre o Estado e as empresas, pelo território. As
empresas, pela sua ação,
mudam o território. O Estado, em certos casos, tenta tomar óbvia essa evolução.
Às vezes, consegue
fazê-lo, e outras vezes, não.
Imagino que essa ingovernabilidade do território a que estamos assistindo
perdurará, caso não
aceitemos lutar pela cidadania, caso nos recusemos a combater pela cidadania,
apenas para não nos
chatearmos. Um grande jurista americano escreveu que o homem deste fim de
século prefere a
incolumidade à liberdade. Quer dizer, esse homem quer ficar tranqüilo, protegido
em sua casa, por
seu exército privado. Ele não quer reduzir a pobreza, não quer lutar para ampliar o
emprego... Tanto
é assim que, no Brasil, até hoje, pelo que eu saiba, ninguém propôs nada quanto a
empregos. Isso
não é de responsabilidade apenas do Governo, mas de todo o resto da população.
E essa preocupação
não existe a não ser esporadicamente.
Então, temos de repensar essa idéia do fim do trabalho, essa idéia de que o
trabalho vai acabar,
porque entramos na era da informação. Acho que há toda uma preparação
ideológica que acaba por
amortecer os ímpetos cidadãos, e, com isso, vai tudo junto... Quer dizer,
amortece-se o ímpeto
cidadão, o Estado decide se retirar do social e as empresas passam a governar o
território. E, ao
invés de discutirmos sobre isso, ficamos discutindo o déficit público, a balança e
não sei mais o quê.
Ora, o que vai mudar, para a maior parte da população brasileira, se eu aumentar
o déficit público ou
se a balança deixar de ser como é?
Cad. Esc. Legisl. Belo Horizonte, 3(6): 9-23, jan/jun.1998

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