21primeiro Tenente
21primeiro Tenente
21primeiro Tenente
Mas como o DENTEL não operava por lá, a coisa era uma desmoralização e nós
usávamos o que permitia o “dial” (mostrador) do aparelho. Assim, teoricamente seria uma
confusão, pois estaríamos todos falando ao mesmo tempo na mesma freqüência. E toda a
comunicação era feito por essa rede: companhias para residências e destacamentos;
companhias para o batalhão e componhais entre si. Tudo era feito por telegrafia. Quando
não tinha telegrafista aí era à voz mesmo na linguagem de radio amador e usando o alfabeto
internacional. Bom, para organizar a bagunça éramos autorizado a mudar um pouco mais a
baixo ou mais acima da freqüência autorizada e se operava sem interferência. Às vezes até
se transmitia numa freqüência e recebia em outra por ser o conjunto formado pelos dois
módulos como já disse.
Acontece que na Bolívia a desordem era muito maior. Eles usavam, muito, unidades
de rádio de elevada potencia, muito acima de dez kW de potência de saída e com aparelhos
que usavam o sistema AM-SSB (Amplitude Modulation Single Side Band) ou simplesmente
SSB (a explicação técnica é complicada). Quando eles invadiam nossa freqüência ou perto
dela, simplesmente nos tirava do ar: não se ouvia nada e não se falava nada. Era uma
constante guerra de rádio (guerra eletrônica) com os bolivianos. Tinha uma estação que
operava exatamente na nossa freqüência de Feijó. Ela chamava a cidade de Sucre. Quando
ele fazia sua chamada longa, tentando sintonizar ou chamar para operação, era uma festa.
Eles chamavam quase um minuto de: Sucre, Sucre, Sucre... Outra era Cochabamba: um
minuto de Cochabamba, Cochabamba, Cochabamba... quando eles davam um intervalo a
gente entrava xingando pedido para eles desocuparem a freqüência. Algumas vezes eles
contestavam querendo saber porque éramos tão agressivo nas freqüências e lhes
reportávamos, em particular em telegrafia, que, no Brasil, as freqüências eram estabelecidas
e limitadas por lei e que não podíamos operar fora delas. Alguns entendiam e mudavam a
freqüência; outros entravam estourando tudo.
Eu era o oficial mais isolado. Assim, mesmo tendo uma subordinação em Manoel
Urbano, eu me comunicava com toda a área do Batalhão e, como às vezes queriam
burocratizar as ações, sendo o tempo um algoz (seis meses de trabalho por seis meses de
chuva) volta e meia eu “aloprava” pelo rádio. Em Rio Branco, no dia que retornava de Porto
Velho, pela viagem à São Paulo cancelada, encontrei o Comandante da Companhia, do 7º
BEC, em Tarauacá e ele veio me cumprimentar. Ao ler meu nome no biriba da gandola,
disse: – “Ah! Você que é o Tenente Higino, que está em Feijó... eu sempre o ouço pelo
rádio... a nossa freqüência é próxima.., mas se eu fosse seu comandante eu já tinha te
punido”. E eu respondi: “– puniria se eu não tivesse razão, agora eu, com razão, brigo até o
fim”. E ele riu e respondeu: “– é... o pessoal das sedes é muito devagar; às vezes tem que
se perder a cabeça”.
Num belo dia aparece um senhor de uns quarenta anos bem esfarrapado e que se
dizia seringueiro expulso de um seringal. Dizia que o seringalista morava no igarapé
Jurupari, uns 70 km de Feijó. Ele pedia uma indenização, pois pretendia levar a família pela
estrada até atingir Manuel Urbano, que ficaria a outros 70 Km, mas na direção oposta,
direção de Rio Branco. Fiz minha primeira arbitrariedade: fiz uma carta ao seringalista, que
era conhecido na cidade e disse que se dentro de quinze dias não estivesse em Feijó eu
faria uma representação contra ele na delegacia e pediria para abrir um inquérito por
escravidão. O seringueiro voltou, levando alguma comida, na verdade uns cinco quilos de
sal e latas de óleo. Bom, em dez dias apareceu o seringalista. Contou que o peão era ruim
de serviço e que gastava mais que produzia. Assim já a dez anos devia ao “barracão”, nome
de sede de seringal. Disse que se ele mandou embora o peão, pelo menos pagasse alguma
coisa, pois ele alegava que nem ferramenta recebia e daí sua dívida ser grande. Bom, o dito
cujo concordou. Voltou par a seu seringal e nunca mais se falou na coisa. Quem diria que
mais cedo que eu pensei encontraria o seringalista novamente.
Também apareceu um senhor com uns cinquenta anos. Viera a Feijó fazer alguma
compra. Iria voltar pela estrada até o Km que eu não me lembro mais, mas era perto do
Curupari,onde tinha uma comunidade que morava na faixa de domínio e ali plantava alguma
coisa. Ele veio pedir autorização para morar numas das casas pré-fabricadas que ficara
abandonada no trecho. Fiz uma autorização de próprio punho e deixei com ele, bem como a
ele e a outros que quisessem plantar na faixa de domínio desde que fossem para
subsistência. E sempre seria para isso. Pelos menos plantariam mandioca, milhos e
abóbora. Plantar “uns ligumi” como ele disse. Também tive surpresa, quando fiz a “Operação
Jurupari”, que eu não sabia, mas estava reservada a mim, no ano seguinte.
Aos sábados, tráfego de mensagens bem baixo, eu ficava tentado aprender o código
Morse, treinando no telégrafo. É interessante que se aprende o som como se música fosse.
Assim, em pouco tempo eu aprendi a conhecer o toque dos operadores de diversos lugares.
Quando ouvia o som do “pi-ri-pi-pi”, como é conhecida a telegrafia, sabia se era de Porto
Velho, se de Rio Branco, se de Manoel Urbano. Mas não aprendi a formar frases. Pegava só
algumas letras e as musiquetas de cada operador. Aproveitava para passear pela freqüência
a voz e, várias vezes, eu tropecei na freqüência da VARIG e da VASP quando eles voavam
do Peru para o Brasil. Hoje seria rádio pirata atrapalhando a freqüência dos pilotos. Na
época era uma forma de matar o tédio conversando sobre tempo, local de origem, local de
destino. Tinha um da VARIG que já conhecia minha voz. Infelizmente ele era de vôo
internacional e nunca tivemos oportunidade de nos encontrar.
À noite eram comuns os bate-papos com radioamadores do mundo todo. Pena que
não sabia nem falar espanhol e muito menos inglês.
Como disse, as rádios em onda média e ondas curtas não chegavam até lá. Pelo
DELTA, um dia consegui ouvir a bendita rádio “LR Uno” da Argentina, que ouvia em Alegrete
e também a Rádio Gaucha. Talvez o sinal tenha se propagado pela planície da bacia do
Prata até a Serra da Contamana. Mas logo chegou a Copa do mundo de 74. Consegui ouvir
alguns jogos ouvindo uma rádio peruana que chegava bem forte. Assim tive que adaptar o
ouvido à forma dos peruanos transmitirem jogos e a adivinhar alguma palavra ligada ao
futebol: impedimento é “fuera de juego”; goleiro é “guardametas”; chute é “pelotaço” e por ai
vai.
Recebemos, pelo rádio, uma informação de que vinha, direto de Porto Velho, um
motor completo, de trator D/8, a bordo de um avião da FAB Búfalo. Teríamos que retirar o
motor bom e colocar um motor indisponível, o que tínhamos bastante, no pátio. Removemos
para o local a tal carregadeira de esteira, bem devagar para não se estragar. Um motor
completo pesa em torno de seis toneladas. Aterrissou o distinto, tomou posição e saiu, como
comandante, um major da FAB, que nunca soube o nome do danado. Desceu xingando
“para caramba” porque o motor ficara muito à frente e quase ele não consegue pousar. Eu
lhe disse que quem colocou a carga não fora eu e que ele estava perdendo tempo em me
recriminar. Isso porque ele falava alto para todos os que ali estavam escutar. Conseguimos
retirar motor novo com facilidade. Colocamos o pifado com facilidade também. Aí o major
resolveu dar uma última ajeitada no motor orientando um peão com um carrinho de carga,
ferramenta do próprio búfalo. E deu o azar: escorregou o carrinho e amassou a fuselagem
do avião. O homem foi à lua, e voltou, de raiva. Veio até mim e disse: – “descarregue o
motor que eu não vou levar p... nenhuma”. Pela posição que ele tinha deixado foi um upa!
para retirar o motor de volta. Assim que o motor saiu, ele decolou. Bom, ficamos com os dois
motores. Só me restou fazer um rádio para a sede informando o que tinha acontecido para
que depois o peão não fosse responsabilizado pelo acidente se é que aquilo fora acidente.
Como já estávamos próximo do Macipira e lá, segundo informações de operadores e
do tenente que comigo estava, havia máquinas e viaturas. Assim, montamos uma operação
que coube a chefia ao sargento chefe da mecânica. Claro que para trazer tais máquinas se
precisava muito mais de mecânico que de operadores. A ida e volta foi um sucesso, não
restando lá nada mais de máquinas. Restaram algumas chapas de bueiros que em outra
oportunidade foram todas resgatadas.
Mas um inusitado aconteceu. Um soldado antigo, casado, levara a mulher para Feijó
e viva nos tapiris, perto dos acampamentos. Um belo dia, ele pediu que levasse a mulher
para Rio Branco e de lá para Sena Madureira, porque ela já estava no sétimo ou oitavo mês
de gravidez (estava no momento de “descansar”, na linguagem regional). Como tinha outros
filhos, viera num búfalo uma cunhada para cuidar dos sobrinhos. Não deu outra: quando a
mulher voltou com o neném, a irmã estava grávida do cunhado. Foi um pára para acertar. Eu
disse que não queria saber de nada e que não me meteria em nada. À pedido do Soldado,
falei com o Comandante da Companhia, em MUrbano, e transferimos o soldado para lá.
Assim, a mulher que queria a separação e a cunhada grávida teriam Sena Madureira como
amparo de parentes ou, depois de algum acerto, uma delas ir para MUrbano com ele onde
ficaria destacado. Numa passagem de búfalo, foram os três, mais duas crianças, para Rio
Branco e, depois, para Sena. Passado um tempo, ou numa das minhas passagens por
MUrbano perguntei do dito soldado, na verdade uma enorme perda por ser excelente
eletricista, me disseram que houve acerto entre as irmãs: as duas irmãs resolveram morar
juntas com o soldado e viviam em MUrbano, num tapiri feito nas redondezas. Se elas
tivessem se acertado em Feijó eu não teria perdido o profissional.
Nossos trabalhos corriam bem quanto à produção. Com as poucas máquinas
recuperadas a produção era boa e o terreno favorável. O tenente que me acompanhava
solicitou uma dispensa para ir até Manoel Urbano resolver problemas particulares. Eu ficava
o dia inteiro junto da terraplenagem. Pelo ciclo de máquinas do dia, as escreiperes
descarregavam e voltam por dentro do corte, para atingir a crista do corte, pela outra ponta.
Um dia o chefe de campo me chamou e disse que tinham uns operadores que gostavam de
brincadeiras, sem graça, jogando a máquina na direção de quem passasse pelo local de
manobra. Mas não demorou muito, um operador, que não sei como fora contratado sendo
cego de um olho, mas era antigo e considerado um dos melhores operadores civis. Eu
estava no corte e ele jogou sua escreiper na minha direção. Eu encostei o corpo no talude
do corte, puxei meu revolver e dei três tiros por cima dele. Imediatamente parou a máquina,
assustando, não crendo no que via, e perguntou: –“tenente o senhor poderia me matar!!!” Eu
respondi: – “poderia, mas vai ficar para a próxima vez que você vier com palhaçada comigo.
Na próxima, atiro na cabeça para apodrecer mais devagar”. Ele ficou, uns dias, cabreiro
comigo. Foi reclamar com Chefe de Campo que veio falar comigo. Disse que o caso estava
encerrado e eu não gostava de brincadeira em serviço. Ele que fizesse o trabalho e nada
teria a temer. Ficamos amigos mais tarde. Eu reencontrei-o, anos depois, como funcionário
da Prefeitura de Porto Velho, como Chefe de Campo e trabalhando em asfalto.
Um caso parecido aconteceu com o tenente que substituí. Tinha um auxiliar de
mecânico, que era índio xavante. Era meio folgado para os padrões do batalhão. Cheguei a
trabalhar com ele em outras frentes, depois. Mas o tenente, ainda no ano anterior, numa das
equipes (ouro, prata e bronze), deu uma enorme bronca num operador que fez sua besteira
com a máquina. O tal tenente era responsável pela manutenção do trecho todo, por isso
com ascensão sobre os operadores, mecânicos e lubrificadores. Logo em seguida à bronca,
foi ter com alguns mecânicos e onde estava o tal índio. Aí o índio chamou o tenente de lado,
mas falou alto para que todos ouvissem: – “Tenente, o senhor nunca fale comigo como o
senhor falou com o operador, porque eu te mato e quero ver quem me pega nesta mata.”
Mais tarde, perguntei isso ao tenente que negou, lógico, mas no trecho era tido como
verdade. O tal tenente, segundo a peãozada, tratava o índio como um filho.
Em termos de confusão tem a de um operador que numa segunda feira estava ainda
de porre ou tinha tomado cipó com os índios. Em outro local explicarei melhor essa bebida
de cipó. O Chefe de campo me avisou que já tinha pedido a ele que descesse da máquina e
que fosse para o acampamento. Ele, com rebeldia ou arrependimento, insistia em operar a
máquina. Mandei que parasse o trator e viesse falar comigo. Já tinha havido o precedente
do tiro. Perguntei a ele se estava em condições de trabalhar. Ele respondeu que estava
ainda meio tonto porque bebera na rua até tarde. Disse que deixasse a máquina debaixo de
uma árvore e aí ele resolveu dar uma de durão. – “então tenente, o senhor fica com sua
máquina que eu vou embora”. E aí eu respondei: – “deixa de asneira e vá dormir. Você, para
ir acertar sua conta, terá que chegar a Porto Velho ou de avião ou à pé ou pelo rio. Até Rio
Branco são trezentos quilômetros e até Porto Velho mais quinhentos. Pelo rio você sai no
Tarauacá, no Juruá, Solimões, Amazonas e sobe pelo Madeira, até Porto Velho e são três
meses, se tiver passagem. Você escolha”. Ele resolveu ir dormir e voltar no outro dia cedo
para o trabalho. Quando sóbrio veio pedir desculpa e agradecer a lição. Também repercutiu
bem entre a “peãozada”: – “com o tenente tem que ser sincero: fez bobagem tem que abrir o
jogo que ele assimila”. A regra sempre foi: beber, pode, ficar de porre, não. Mas caso fique,
diga, porque é melhor perder um dia de ponto cortado que ser demitido por justa causa ou
provocar um acidente com morte.
O meu professor de equipamento, o Primeiro Sargento mecânico de equipamento,
fora a Porto Velho para atender problema particular e de lá trouxe um monte de literatura,
manuais diversos e catálogos de ferramentas e de peças. Passou alguns dias me ensinando
como ler e correlacionar os catálogos de peças para os diversos equipamentos. Assim,
aprendi o “como” procurar. Cada dia eu ficava fera, em particular sobre o emprego das
máquinas: carga, rotação de motor, ciclo, consumo por hora, peça de maior mortalidade,
lubrificação e por ai em diante.
Como disse antes, a caminho do acampamento ficava a usina de energia que era
movido a vapor (caldeira ou locomóvel). A energia ia até dez da noite. Quem sustentava a
usina de lenha era um senhor, dono de uma loja pequena, com um caminhãozinho, dirigido
por seu filho ainda menor de idade. Pediu, ainda no tempo do 7º BEC, para retirar lenha ao
longo da estrada. É que, não sendo na estrada não tinha mais onde retirar lenha, pois
dependia de derrubada de mata para lavoura. Teria que retirar toda a lenha na época de
estiagem porque na época de chuva era impossível. Para quem está de longe pode parecer
um paradoxo: em plena floresta tropical se ter dificuldade de lenha! E é assim mesmo.
Árvore tem muita, derrubar é fácil, mas transportar é que é difícil. Isso foi um dos fracassos
da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e teve que importar carvão mineral. Mas em Feijó eu
tinha uma enorme preocupação: a estrada era delegada ao Batalhão, portanto teria
responsabilidade por tudo o que acontecesse nela, pois ainda não fora inaugurada e
entregue ao tráfego. Caso o menino, de menor, dirigindo sofresse um acidente, viria a
primeira pergunta da justiça: quem autorizou alguém trafegar numa estrada em construção e
ainda deixar um menor dirigir?
Em um certo dia, apareceu um senhor alto, moreno, mulato mesmo, dizendo que
empreitara a roçada lateral na BR entre Feijó e o Igarapé Jurupari, uns 75 km dali. Entrou no
trecho, saiu e depois voltou ao acampamento dizendo que iniciaria o roçado na semana
seguinte. Depois de uns três dias, recebi um rádio, direto de Porto Velho, com indicativo da
Seção Técnica, informando desse contrato e dizendo “o quê” poderia ser dado em apoio, se
fosse o caso. Dizia também, o rádio, que eu era responsável por receber o serviço que seria
pago em três parcelas conforme ele fosse atingindo certos pontos. Trabalho inútil, para o
momento, desnecessário pra aquele plano de trabalho.
Bom, o senhor, pai do menor que recolhia lenha, um belo dia apareceu no
acampamento dizendo que subempreitara a roçada da BR de Feijó ao Jurupari. Perguntei se
não era a mesma do Senhor tal e ele me confirmou que sim. O tal empreiteiro, num
domingo, chegou ao bar e começou a pagar latinha de cerveja Skol para mim e para o outro
tenente. Bom, pagou cem latinhas. Bebemos como nunca, para deixar de querer subornar
com latinhas de cerveja.
O coitado do senhor de Feijó fez o trabalho em um mês. O tal empreiteiro não pagou
nada e sumiu de Rio Branco. Nem aparecia em Porto Velho. Aí fiz um QSO (diálogo por
rádio) com o Chefe da Seção Técnica e expliquei que o camarada subempreitara o trabalho
e que já estava todo pronto. Entretanto, ele não tinha pago a primeira parcela ao rapaz de
Feijó, embora já tivesse recebido do Batalhão em Porto Velho. O Chefe da Seção Técnica
pediu que o tal senhor fosse a Porto Velho. Para minha surpresa, voltou de lá tendo recebido
as duas outras parcelas. E passou a ser prioridade para trabalhos terceirizados na área.
Teve um soldado que era refratário, isto é, alistou, e não fez a inspeção de saúde,
perdendo sua “Classe” ou o pessoal de sua idade. Quando tentou regularizar sua situação
com o serviço militar, teve sua incorporação obrigatória, o que é de lei. Tinha uns vinte ou
mais anos. Era como muitos dos que trabalhavam por lá. Segundo o Chefe de Campo, peão
estradeiro que se chamasse João da Silva, Francisco Sousa, Raimundo das quantas, nomes
curtos, é porque era o segundo nome e geralmente fugitivos da polícia de alguma região:
sul, sudeste, nordeste. Tudo bandido. Embora de origem obscura, era soldado e era muito
bom de trabalho. Um leão para trabalhar. Mas, não podia beber o primeiro gole. Num
domingo à tarde, e até perto da hospedaria, tinha uma igreja da Assembléia de Deus. Essa
religião, nuns dias do mês, começa a gritar em ladainhas pedido perdão ou agradecendo
alguma coisa. Começavam seis, sete da noite e ia até nove, dez. O problema é que fica uma
gritaria onde não se sabia se era oração ou histeria coletiva. O tal soldado, de porre, pegou
um facão de um senhor que vendia coco e entrou na igreja gritando também: “bando de
diabo, vamos parar com essa gritaria” – e riscava com o facão o piso de tijolo e cimento. Isso
fazia sair uma chispa de fogo. Bom, foi um corre-corre danado e gente quase se quebrando
ao pular janelas. Ainda bem que a igreja era de madeira e as janelas baixas. Lá foram me
chamar para acalmar o soldado. Como já havia combinado com o delegado, na delegacia
tinha dois xadrezes e eu pedi para, quando necessário, ocupar um. Foi o tal soldado que
inaugurou isso. Depois que acordou, deve ter se arrependido, pela quantidade de mosquito.
No outro dia, seis da matina, fui soltá-lo, pois havia carcereiro mesmo sem preso civil.
Esse mesmo, que havia prometido não beber mais e, se o fizesse, ir rapidamente
para o acampamento aprontou outra. Os que estavam acampados no Igarapé Ciência
vinham no caminhão que voltava às onze horas da noite do domingo para o acampamento.
Mas, um cidadão da cidade, da minha idade, era do tipo não muito ligado ao trabalho.
Gostava de se portar de galã e sua mãe era líder na cidadezinha e tida como boa política.
Ele se dizia vereador suplente, portanto autoridade com imunidade. Mas o rapaz, para
ganhar uns trocos, havia trazido, via avião da FAB, alguns pares de chinelo tipo Havaiana,
para vender. Então montou sua banca de camelô numa calçada próximo ao rio. O soldado
alterado, ao passar pelo local, ouviu do rapaz da cidade alguma graça qualquer. Ele não
teve dúvida, passou o pé na banca e derrubou tudo e foi em frente. O vendedor xingou,
destratou, ofendeu, mas não conseguiu alcançar o soldado. Depois de arrumar tudo de
novo, lá voltou o soldado e novamente passou o pé na banca. E aí o rapaz saiu no tapa. Lá
me chamaram para resolver o problema. Chegando ao local estava o delegado e aí
combinamos: ele tomava conta do civil e eu do militar. Levamos os dois para o xadrez. O
delegado não resistiu à pressão e soltou o civil, depois das dez da noite. Vieram me falar
isso (fuxico anda depressa) e então mandei um sargento soltar o soldado e mandá-lo para o
acampamento. Foi punido: dois finais de semana sem ir à cidade. O tal rapaz, no primeiro
avião da FAB voltou para Rio Branco. Quase trinta anos depois reencontro tal rapaz.
Levado meio de roldão, pela falta de tempo, houve momento de participação da vida
da cidade. Por ser carente de lazer, o velho futebol de domingo era infalível. E havia até um
campeonato na cidade. E, como toda cidade pequena, tem seus pequenos e chatos vícios: o
de brigas entre equipes, entre jogadores que repercutia a semana seguinte toda. Assim,
acho que no dia da cidade, sem muita certeza, com ajuda de alguns comerciantes com
prêmios tipo roupa, caixa de cerveja em lata e conjunto de “toalete”, organizamos uma
corrida de oito quilômetros, saindo do Igarapé Ciência até a frente da Prefeitura. Pelo rádio
desse acampamento, transmitindo em freqüência de rádio comercial, soubemos da partida;
na passagem pelo acampamento perto da cidade ficamos sabendo quem vinha na frente.
Bom, ganhou um menino da cidade e o cabo do aprovisionamento chegou em segundo
lugar. Em outra oportunidade os soldados e civis resolveram participar de um torneio de
futebol da cidade. Eles mesmos fizeram o time, conseguiram um jogo de camisa emprestado
e se inscreveram. Ganharam dois jogos e foram para a final. Qual não foi minha surpresa
quando fui convocado por algumas pessoas, entre elas o padre da paróquia. O padre, num
lance ridiculamente demagógico, disse que estava preocupado porque alguém disse que “o
pessoal do BEC”, se perdesse, iria tirar a roupa das moças da cidade. Por pouco não uso
minha “finesse terenense” porque o espírito guaicuru começou a se manifestar, mas me
contive. Perguntei ao padre se ele estava querendo brincar, eu aceitava a brincadeira. Mas
se ele acreditasse no que falava ou era inocente ou era mal intencionado. Ele ficou vermelho
e seu rosto demonstrava que iria me agredir por palavra. Com certeza ninguém na cidade
teria sido tão mal-educadamente direto e ríspido com ele como eu estava sendo. Gaguejou,
tropeçou nos artigos: é... o... u... ; nos pronomes: eu... vocês...nos advérbios: sim... não...;
nas conjunções: mas... contudo... porém...e falou que aquela informação tinha chegado a
ele, mas que não acreditava nisso. Ao que respondi: então porque iríamos discutir o
impossível. Se alguém concordasse com o padre, nós retiraríamos o time e o padre
entregasse a taça a quem ele desejasse. Nós iríamos dar um jeito de jogar contra os índios
ou até mesmo tentar chegar a Tarauacá. Aí todos se viraram contra o padre. Depois fiquei
sabendo que o time era formado de jovens “Marianos”, da paróquia do padre. A partida
aconteceu e nós perdemos por dois a zero.
O solo era terrível para os trabalhos em rodovias. Na verdade ninguém sabia o que
fazer. Havia um empirismo em todo o nosso trabalho. A compactação, os cuidados com os
refugos, o tratamento com rejeitos de desmatamento e os aterramentos de caixas de
empréstimo era coisa pouco observada. Na verdade, pelo tipo de rodovia a ser feito, e pela
velocidade de construção acho que os rigores técnicos eram muito elásticos.
Para entender com que se tipo de solo se estava trabalhando nada melhor que
submeter tudo a uma análise de um laboratório de solo. Na sede do batalhão existia um bem
equipado, subordinado à seção técnica, mas pouco usado e pouco acreditado.
O 5° BEC, aconselhado por alguém ou obrigado por alguém, resolveu contratar uma
assessoria técnica. O 7º BEC me parece que também passou por tal assessoria, o que não
consegui confirmar no período que o comandei. Desconfio que a contração fora do 2°
Grupamento. Assim, caem de paraquedas: um engenheiro e uma equipe de laboratorista de
solo. Era a assessoria técnica de estudo dos tipos de solo, pela Mendes Junior. Três
engenheiros residentes: Feijó; MUrbano e Sena Madureira.
Em um dia que não sei qual, de um mês que não me lembro desembarcou em Feijó,
via MGG, o tal engenheiro civil, cujo nome não me lembro, e três laboratorista de solo com
todo o material necessário de um laboratório: jogo de peneiras, aparelho de Casa Grande,
estufa elétrica, cilindro molde para Índice Suporte de Califórnia (CBR – Califórnia Bearing
Ratio.), escavadeira manual, enxada, enxadão, prensa hidráulica, cilindro de Próctor e outros
mais. Por curiosidade, eis os tipos de peneiras: Série de peneiras medindo Ø 8” x
2”(profundidade) e uma peneira para cada abertura de: 2”, 1.1/2”, 1”, 3/4”, 3/8”, n°. 4, 10, 16,
30, 40, 50, 100 e 200, fundo e tampa (13 peneiras – informação do google). A mão de obra
não especializada seria executada por funcionários civis. Havia também alguns cabos
estabilizados aprendendo toda a técnica de ensaios e tratamentos de amostras. O MGG deu
umas três viagens. O engenheiro ficou na hospedaria porque eu já não mais ficava lá. Era
um mineiro, como tudo da Mendes Junior, com larga experiência em rodovia. Já havia
andado pela África e Oriente Médio. Trabalhara também no pior trecho da BR 319 – Porto
Velho/ Manaus nas partes de grandes áreas de argila, turfas e igapós. Era bem branco e
tinha umas manias que hoje teria a classificação de TOC (transtorno obsessivo compulsivo).
Tanto que um dia, a vizinha da hospedaria foi reclamar que ele havia dado cascudo em dois
de seus filhos porque os meninos entraram no terreno da hospedaria e fizeram barulho para
ele dormir, num sábado de tarde. Com ele fiz meu doutorado de engenharia rodoviária. Na
verdade, ele me alertava para alguma coisa e eu pedi da sede alguma literatura sobre a
coisa e a estudava. Às vezes, eu pedia emprestado a ele que levou alguns livros básicos.
Aprendi ler os ensaios de laboratório, isto é, saber o que era e para que servia: limite de
liquidez, limite de plasticidade, índice de plasticidade (IP = LL – LP) e CBR; preparação de
amostras, técnica de moldar os corpos de provas. O mais importante foi saber ler o CBR e
as umidades ótimas fundamental para a construção das diversas camadas de um
pavimento: corpo de aterro (leito), reforço do subleito, subase e base. Aprendi que o solo
tem uma estabilidade natural (inclinação) e que, quando isso é alterado, o talude do aterro,
ou do corte, cai. A isso a imprensa chama de “queda de barreiras”.
E por total ignorância e numa escorregada na infantilidade, fiz uma vez um
comentário com ele sobre um fato que eu observara no trecho. Nos locais onde fizemos o
aterro sem bueiro, a montante ficou um açude. Como chovia pouco, eles não transbordaram
por sobre a leito da estrada. Mas, o aterro caia, desmoronava de um lado. Ora, tinha o lado
que estava em contato com água e o outro que não tinha contato com ela. Mas o
derretimento do aterro se dava exatamente do lado seco. O aterro ficava pela metade,
caindo a metade que estava do lado seco, como já dito, o que tem o apelido de “cintura fina”.
Ele me olhou e deu um sorriso maroto, entendendo minha total ignorância do fato e,
cuidadoso para não afrontar minha ignorância, disse: – “Higino, isso é um fenômeno que se
chama percolação”. O nome não me soou tão “marciano” assim, porque eu tinha ouvido algo
parecido na Academia. Fiquei meio envergonhado, mas não perdi a pose e pedi que me
explicasse melhor. E a explicação é fácil: percolar é mais ou menos que coar. Então, a água
do lado molhado, água acumulada no lado mais alto, ia infiltrando, pela gravidade, e
comprimindo as partículas de argila. Mas isso acontece até a metade. Da metade em diante,
ao invés de comprimir tais partículas, a água passa a arrancar as partículas do lado mais
baixo, o lado sem acúmulo de água. Assim se formavam as cinturas finas que já acontecia
com todos os aterros que fizéramos sem bueiros.
Tive oportunidade de encontrar com o Engenheiro que trabalhava em MUrbano. Anos
mais tarde voltamos a nos rever em Porto Velho. Ao encontrá-lo no aeroporto de Rio Branco,
ao ver aquela ruma de peneiras de solo, lhe disse que eram desnecessárias e bastaria levar
a peneira duzentos. Em Porto Velho, ele se lembrou do caso e me disse que se arrependeu
de levar um monte de ferramentas inúteis. Em MUrbano ele me contou que esteve
trabalhando, pela sua empresa, no Iraque numa rodovia que atravessava um determinado
deserto. Quando foi ao governo retirar a Ordem de Serviço, ele ficou confuso com os dados
e achava que tinha algum erro de tradução. A cópia dele era em inglês. É que estava
especificado que, para corpo de aterro, o material terroso não poderia ter mais que dez por
cento de sal. Ele achava que havia erro e talvez fosse 01 ou 0,1 por cento. Ao confirmar com
a autoridade iraquiana, foi informado que era aquilo mesmo: 10% de sal. E ele disse que foi
muito difícil encontrar terra (areia) com menor quantidade de sal que isso. Tudo havia sido
fundo de mar. E a recomendação era porque, tendo mais que dez por cento de sal, isso
causava instabilidade no aterro. É que o sal é solúvel em água. Quando desse uma chuva, o
que acontecia raramente, mas acontecia, era o suficiente para derreter o sal e ficarem
buracos no aterro com se fosse queijo suíço.
O terreno do Acre também foi fundo de mar. Em outro local conto com detalhes essa
formação do solo do Acre, não com rigor de um geólogo, mas o que vi e convivi em termo de
conhecer o solo como estradeiro.
Depois de algum tempo de trabalho do laboratório de solo, o tal engenheiro me fez
uma leitura do que ele já havia visto. O solo tinha baixíssima capacidade de suporte. O CBR
era em torno de seis, sete por cento, mas havia algumas amostras de quatro. CBR consiste
em um método de ensaio para se saber a capacidade de suporte de um solo. É empírico
porque usar alguns critérios puramente mecânicos. Foi inventado por uma engenheiro norte-
americano da Califórnia de nome J. Porter, em 1939. Consiste na determinação da relação
entre a pressão necessária para produzir uma penetração de um pistão num corpo de prova
de solo, e a pressão necessária para produzir a mesma penetração numa mistura padrão de
brita estabilizada granulometricamente. Essa relação é expressa em porcentagem. O limite
de liquidez, do solo, atingia rapidamente com pouca água. Assim, era pouco mais que
manteiga na geladeira. O problema é que a camada de argila era extremamente profunda,
cuja profundidade nunca se chegou a medir, mas fazia com que qualquer coisa atolasse
indefinidamente se a argila fosse ganhando umidade. E não tinha nada para escorar a não
ser tronco de árvore. Era enlouquecedor, para aqueles acostumados com pedras,
pedregulhos e areia, não encontrar nada resistente. Tal argila, nos ensaios apresentava
elevada expansão quando se colocava os corpos de provas n’água. Algumas aumentavam
de quase quarenta por cento do volume inicial. Era uma verdadeira esponja. Em
compensação tinha enorme retração quando seca. Assim, se fazia belos aterros, bem
compactados, (mas fora da umidade ótima porque não tínhamos outros instrumentos de
compactação: grade, trator agrícola, caminhão tanque e compactador adequado) e tudo, no
período de seca, parecia que duraria para a eternidade. Ao se raspar com motoniveladora a
pista ficava espelhada. Era como se estivesse num enorme tijolo. Mas logo começava o
aterro rachar, como acontece com a argila que fica no fundo de poças d’água de chuva e
depois a água evapora. As trincaduras no aterro ficavam com mais de dez centímetros de
largura e quase meio metro de profundidade. Quando vinham as primeiras chuvas, as águas
penetravam nessas rachaduras e começa a umedecer de baixo para cima. Com a tomada
d’água, havia a expansão e todo o aterro se derretia, ficando muitas vezes apenas um filete
de aterro que dificultava passar até à pé.
Acontecia um fenômeno interessante de se observar nos locais de trabalho. Quase
todas as tardes, chovia exatamente onde estavam as máquinas. Eu custei entender a coisa.
É que se criava uma coluna de ar quente que aumentava a evaporação e assim criava o
vapor d’água suficiente para chover somente naquele lugar e atrapalhar algumas horas de
trabalho. Assim, sempre se tinha uma “segunda boca”, ou à frente ou atrás, distante uns
trezentos metros para, rapidamente, se deslocar e assim continuar os trabalhos. Entretanto,
tinha as chuvas-padrão: eram chuvas pesadas que passavam em uma direção molhando
tudo. Passada a chuva, todos voltavam a trabalhar. Alguns minutos depois lá vinha a mesma
nuvem com a mesma chuva passando de volta. Nunca encontrei uma explicação na minha
lógica para tal fenômeno.
Uma chuva grande na floresta é algo que incomoda nas primeiras vezes que se
assiste. É um barulho infernal não só as árvores balançando como também caindo, por
inteira ou apenas alguns galhos. É um barulho como o ribombar de canhões.
Fui chamado a Porto Velho por causa de justiça. Aquele acidente, antes do
aspirantado, em que um motociclista atropelou um Cadete, quando íamos para Resende,
ainda girava na justiça. A carta precatória fora para Alegrete e agora estava em Porto Velho.
Caminhávamos para o meado do mês de outubro. O batalhão já se preparava para
encerrar o ano de trabalho. Talvez trabalhássemos até o final de novembro, mas o planejado
era até final de outubro.
Em Porto Velho fiquei sabendo que, nas primeiras águas, iríamos sair de Feijó. As
máquinas iria de Feijó até MUrbano, algumas, e outras para Porto Velho, para a Companhia
de Equipamento para sofrerem uma manutenção mais rigorosa. Recebi ordem para preparar
isso. O trecho retornaria para o 7º BEC novamente. Como já dito, a logística era um absurdo
e o rendimento era questionável.
Em Porto Velho, ainda, tive oportunidade de arrumar melhor minha vida burocrática.
Como já narrado, para o trecho só ia o pagamento do pró-labore, que nós chamávamos de
PRÓ. Era em dinheiro vivo, mandado por malote. De nada adiantaria mandar cheque ou
depositar o valor em banco. Como retirá-lo no trecho. Em Feijó já tinha uma agencia do
Banco da Amazônia – o BASA, cujo gerente era amigo. A remessa para Campo Grande
ainda continuava pelo BAMERINDUS.
Na sede do batalhão tive oportunidade de passar um domingo no Clube dos Oficiais.
Notei uma coisa interessante que não mais notei quando por lá retornei anos posteriores.
Em Porto Velho, os tenentes eram recebidos como se fossem super-homens. Não era uma
manifestação estudada, formal, maquinal, burocrática pela educação, obrigatória pela
civilidade. Era um acolhimento para alguém muito importante, de forma alegre, camarada,
amiga. E os cumprimentos não eram apenas dos homens, mais antigos, mais modernos,
eram também das esposas, dos filhos. Ouvia-se de outras mesas os comentários dos
amigos: – “fulano, já viu quem está aí? É o tenente tal...”. E o recém chegado se dirigia para
a mesa onde estava o personagem distinguido. Até o Comandante saía do seu lugar e vinha
cumprimentar os jovens tenentes. Era uma manifestação sadia e que me encheu de orgulho
pelo respeito que senti que ali tinham por mim. Realmente me senti valorizado o que me fez
ainda mais dedicado. Eu, a partir daí, sabia que muitos dependiam de meu sucesso, de meu
acerto. O meu sucesso não era só meu, mas de todos da sede. Eu era o gerador de sucesso
ou insucesso. E eles estavam por lá para tentar me facilitar a vida de destacado. Saí da
sede mais confiante que Aquiles da obra de Homero. Diferente do ambiente que encontrei
na chegada onde a filosofia era infernizar a vida na sede para que os militares se sentissem
melhor destacados. O tenente valia pelo que fazia e não pelo posto, pela origem ou pela
filiação. Tentei fazer isso com os tenentes quando fui comandante. Infelizmente as obras
eram inexpressivas e a quantidade de tenente era pouca.
Em um certo dia já de novembro, o engenheiro que me acompanhou em Feijó me
disse que seus trabalhos estava chegando ao fim. Entretanto ele estava preste a receber
uma visita de seu chefe dois escalões acima dele. Viria com oficiais da Seção Técnica do 5º
BEC, via MGG. Recebemos a todos, que foram até ao acampamento do Igarapé Ciências e
de lá retornaram para Rio Branco. O engenheiro me contou um aspecto da personalidade de
seu chefe que tendia para o hilário. Disse que, quando o engenheiro residente apresentava
o trabalho sem nenhuma dificuldade, informando estar tudo bem, sem problemas e que tudo
corria conforme o planejado, ele se irritava com o residente. Segundo a visão dele, o
engenheiro que achava estar tudo bem era porque não estava atento. Em qualquer obra, em
qualquer trabalho sempre terá problemas a serem resolvidos. Se não houvesse problema
não haveria necessidade do engenheiro no local. Então, quando ele chegasse, o negocio
era apresentar dificuldades. Se não as tivesse teria que inventar. Quanto mais problemas
apresentados, mais ele passaria a gostar do residente. O pior é que tive chefe bem parecido.
Aliás, tem um folclore de caserna que diz: “Serviço de Oficial de Dia apresentado como Sem
Alteração é porque o Oficia de Dia não percorreu o aquartelamento”.
Da visita, resultou na paralisação dos ensaios de laboratório de solos. Não havia mais
dinheiro para continuar os ensaios para que houvesse o encontro, no meio do trecho, entre a
equipe que saiu de Feijó e a que saiu de MUrbano. O trabalho resultante das duas pontas já
permitia ter uma projeção de como era no centro e assim e ter uma idéia global do trecho. O
relatório seria mandando, pela empresa, para o 5º BEC e para o 2º GEC. Nunca consegui
me lembrar de pedir para ler tal relatório. Parece que não foi bem aceito pelos técnicos do
Batalhão. Houve qualquer ti ti ti porque os dois engenheiros reclamaram da má formação
técnica dos oficiais e sargentos bem como dos operadores, coisas que eles não tinham nada
que ver, embora tivessem total razão. Reclamaram das péssimas instalações onde viviam o
pessoal. Mas, o que interessava, os resultados dos ensaios, foi muito ilustrativos e
informativos. Permitiu ver que realmente se faziam enormes besteiras, por ignorância. A
partir desse trabalho, o IME (Instituto Militar de Engenharia) foi acionado para estudar o solo
o que permitiu que vários oficiais fizessem mestrado e doutorado sobre Solos do Acre. A
maior autoridade é um oficial da minha turma.
O resultado mais simples e de emprego direto foram os referentes à CBR e umidades
ótimas obtidas no trecho. Permitiu que soubéssemos que o solo onde nós trabalhávamos
era de capacidade de suporte (CBR) de 4, 6, 9 % Esse ensaio está previsto na norma ABNT
9895. Trata-se de se moldar um cilindro padrão, com cinco camadas de solo, cada uma com
um valor de umidade. Depois de apiloado, com um soquete padrão (método de Proctor), o
cilindro metálico, com a amostra, vai para um tanque com água. Ali fica por um tempo.
Atingida a saturação vai para uma prensa onde tem um cilindro de diâmetro padrão de 3 pol²
penetrará à velocidade de 0,05 pol/seg. A resistência é anotada e comparada com uma
amostra padrão de brita graduada em números percentuais. Assim, se o CBR é de 4, isto
que dizer que ele tem a resistência de 4% da amostra padrão de brita graduada. Para alguns
trabalhos, ou camadas, a resistência exigida do solo chega a CBR 90, quer dizer 90% da
amostra padrão. Para Base, para pavimentação flexível, é de 90 a 95 de CBR. Bom, imagine
como fazer asfaltamento, pavimentação, no trecho trabalhado se o maior CBR conseguido
foi de 4 a 6 de CBR? Resistência um pouco acima de manteiga resfriada.
Como já haviam me anunciado em Porto Velho, no meado de novembro foram
parados todos os trabalhos e me avisaram que seria iniciada a retirada, de todos e de tudo,
lá de Feijó. Na medida do possível, eu deveria usar os aviões da FAB que fazia a linha do
Correio Aéreo Nacional. Um belo dia, avisaram-me, de Rio Branco, que estava decolando
um avião Búfalo para levar todo o pessoal. Não me avisaram com antecedência. Tinha a
bagatela de quarenta minutos para juntar todos, para viajar com suas bagagens, com lista
de nomes, pesos de pessoas e bagagens. Foi um Deus nos acuda. Acabei por discutir com
o comandante do avião, um capitão. Incomodou tanto que eu acabei por dizer que mandaria
todos descer e ele seguisse vazio (como fez o major no início do ano). Quando coloquei a
cabeça na porta e anunciei que o comandante da aeronave não tinha condições de esperar
e era para todos descer, aí ele se apavorou e disse que não era bem isso porque a missão
era para retirada do pessoal e aí começou a tentar se justificar, gaguejar e entrar pelo ora
veja...
Grande parte do pessoal já tinha retornado por algum meio: retorno do MGG e CAN.
Particularmente os da equipe de bueiro, da topografia e alguns mecânicos. Como sempre,
os romanos tinham razão: começaram a aparecer os casos de namoradas, de grávidas, de
amantes abandonadas, de casamentos às escondidas. Quando o Búfalo chegou foi mais um
problema a administrar. Como levar meninas, mulheres grávidas, mulher que morava com
peão, mas com filho de outro pai, que esperavam a vinda de peões que já tinham ido, e
prometidos que viriam buscá-las. Dos que se foram, não se sabia onde foram parar:
soldados seriam licenciados; funcionários civis poderiam ser ou já estar demitidos; outros
estabilizados, destacados em outras companhias. Sairiam de Feijó, chegariam em Rio
Branco... e como encontrar o peão? O difícil era convencer tais mulheres. Teve uma que se
ajoelhou para que eu a deixasse ir. Eu conhecia bem o peão que era da topografia e morava
em Porto Velho e cuja casa eu conhecia. Enquanto se pesava bagagens e peões, eu
conversei com o chefe da topografia, que ainda estava comigo, e perguntei se ele sabia do
envolvimento da menina com o peão. Disse que sim e que o peão prometera de vir buscá-la.
Bom, disse a ela que seria um risco, mas só poderia deixá-la embarcar com uma condição:
ela teria que embarcar como mulher de alguém, pois eu não estava autorizado embarcar
mulheres sozinhas. Outro peão da topografia passou a ser casado e levou a menina. Além
de morar em Porto Velho ele sabia da casa do marido da menina. E a menina tinha dinheiro
deixado pelo peão. Foi um final feliz quando, uns seis meses depois, encontrei os dois
fazendo compras no SAS, ela agora grávida. Foi a “Minha Geoconda”, cantada por Vicente
Celestino. Mesmo antes de eu sair da cidade alguns realmente retornaram e nos primeiros
aviões do CAN levaram suas mulheres. Mas, muitas outras ficaram. Parafraseando
Fernando Pessoa, em Mar de Portugal: “... quantas mães choraram / Quantos filhos em vão
rezaram / Quantas moças ficaram por se casar ...”.
Estava eu no acampamento quando chegou um gordinho, bastante folgado,
procurando o tenente. Disse que tinha duas balsas enormes de oitocentas toneladas e uma
ou duas menores de trezentas toneladas, no porto e queria começar o carregamento. Olhei
pra ele e perguntei quem era ele.... Ficou deveras ofendido: – “Como o senhor não sabe
quem eu sou?” Respondi que eu não sabia quem era ele e nem o que ele estava fazendo ali.
Que fosse para a cidade até eu tomar conhecimento do que estava acontecendo de modo a
me preparar para qualquer coisa. Os trabalhos já estavam praticamente parados. Estava
terminando alguns aterros que ficaram abaixo do greide onde foram lançados bueiros.
Assim, como deixaríamos o local, pelo menos ficaria um serviço o mais completo possível.
Bastava a bobagem dos aterros sem bueiros, que se romperiam no inverno, deixados para
trás.
Pedi um QSO com MUrbano para perguntar ao capitão sobre a tal balsa e como seria
feito tal embarque. Havia muitas peças para as quais teriam que fazer caixas, comprar
madeira, pregos e talvez contratar carpinteiros na cidade. Ele também não sabia de nada e
faria um QSO com Porto Velho tanto para a Seção Técnica como para o Fiscal
Administrativo. Havia também os destinos das máquinas. Fiquei sabendo que o senhor,
baixinho e gordo dono das balsas, era o Seu Mustafa. Segundo seu Mustafá, uma balsa iria
para Porto Velho e outra iria para MUrbano. Esclarecidas as dúvidas, dados os destinos,
passamos aos trabalhos.
Para minha surpresa, recebi, via companhia, um rádio informando que estaria em
férias à partir da segunda seguinte. Fiz um QSO com o Chefe da Primeira Seção, que era
um tenente do QAO. Perguntei como eu iria entrar de férias se estava carregando as
máquinas. Quem iria me substituir já que o Tenente que trabalhava comigo já estava em
MUrbano substituindo o capitão, que entrara de férias, embora eu respondesse pela
companhia dada a antiguidade. A missão mais importante da companhia era exatamente
esse carregamento. O Companheiro me respondeu que a ordem partira do Subcomandante
uma vez que eu estava previsto para compor a equipe de instrução do ano seguinte.
Portanto, deveria estar em Porto Velho, pronto, no início de janeiro. Isso já deveria ser
meado de novembro, ou mais. Na época a guarnição de Porto Velho era de primeira
categoria e isso permitia umas férias de 45 dias. Jocosamente, diziam que éramos tenentes
com férias de general uma vez que os generais tinham férias de 45 dias, na época. O
companheiro pediu que eu informasse qual a guarnição militar eu passaria as férias. Por
serem os oficiais de fora de Rondônia, todos seguiam para suas cidades e estados de
origem. E tinha “origens” em todos os Estados. Os mais afoitos seguiam de carro, apesar
dos inúmeros atoleiros já em dezembro e janeiro. Para total surpresa de todos, disse que
podia publicar minhas férias, mas que eu as passaria em Feijó até que todas as balsas
saíssem do porto.
Para começo de conversa, para o embarque, teríamos que registrar tudo e arbitrar um
valor para cada máquina, cada caixa. Nada podia sair do porto sem que antes tudo isso
fosse informado diretamente para o batalhão. Era para seguro. Assim, cada máquina tinha
uma “Guia de Remessa”, num formulário do batalhão, cujo conteúdo era transmitido pelo
rádio (piripipi - telegrafia). Somado os valores, era feito o devido seguro de transporte, por
balsa, tudo por conta e risco do batalhão. Se, antes da apólice, o material estivesse fora do
porto, a seguradora não se responsabilizaria pela carga. Além da frenética atividade de
encaixotar, fazer guia de remessa, identificar o destino, tinha alguns trabalhos preliminares.
Primeiro, fazer a rampa com o trator D/7. Já havia chuvas nas cabeceiras e o rio
Envira dava repiques inesperados. Foi num desses repiques que permitiu seu Mustafa
chegar com suas balsas e seu potente rebocador.
Segundo, era transportar as máquinas sendo muitas delas sem funcionar desde o ano
anterior.
Terceiro, era transportar as máquinas sem estragar as ruas da cidade como
acontecera no início do ano.
Quarto, que tinha nossas balsas: uma chata com gasolina (quarenta mil litros), de
trezentas toneladas, cujo nome era Puraquequara, nome de um rio lá pelos lados de
Roraima, que muitos anos mais tarde, descobri pertencer ao 2º GEC; outra de quilha, um
navio pequeno adaptado, cujo nome não me lembro, mas carregado de óleo diesel
(trezentos mil litros de combustível).
Bom, carregamos as máquinas sem funcionar que iriam direto para Porto Velho. Aí já
aconteceu algo que fugiu á minha perspicácia e contribuiu a inexperiência. O bendito do
Mustafa não estava nem aí para o embarque. Isso era problema nosso. Ele só indicava o
local de balsa onde deveria ficar o material. Bom, o soldado que era o responsável pelo
combustível já tinha seguido no Búfalo. Então ele fez o fechamento dos combustíveis na
balsa e informou ao cabo do almoxarifado. A partir daí retiramos, principalmente gasolina,
em tambores para ser melhor controlado no acampamento e a balsa foi fechada com
cadeado. O abastecimento de máquinas se fazia pelo caminhão transporte de combustível.
Cada abastecimento do caminhão tinha que ir ao cabo, pegar a requisição e com ele ir até a
balsa. Tais consumos faziam parte de um documento semanal dito “Informação para
Apropriação” (rádio de apropriação quando as informações eram poucas). Bom, para o
primeiro embarque, porque o rio estava no repique a balsa do Mustafa ficou bem no talvegue
do rio. Com a balsa de gasolina se faria como que uma ponte, entrando com as máquinas na
balsa menor e dela passando para a balsa maior que era a do Mustafa. A frente da balsa do
Mustafá era muito alta e não se conseguia imbicá-la na margem; se assim fosse, seria
preciso um enorme aterro como rampa e o local não permitia isso.
Mas nunca iríamos nos lembrar que no “porão da frente” da balsa, conhecido como
“boia”, estivesse com a gasolina do nosso estoque. O bendito do soldado encarregado
nunca falou disso. Assim, uns trinta mil litros de gasolina estavam nas bóias. É até proibido
carregar qualquer coisa na bóia, pois em caso de abalroamento a primeira parte que vai é a
boia. Bom, ora, para que uma máquina pesada, e era um D/8, entrasse pela ponta apoiada
no barranco e atingisse a outra ponta da balsa que flutuava, era preciso um contra peso na
ponta que se apoiava no barranco. Caso contrário, quando a máquina atingisse a ponta
flutuante a balsa, simplesmente sairia debaixo da máquina e a depositaria no fundo do rio.
Se isso acontecesse quem pagaria a maquina? Pegamos emprestado do Seu Mustafa um
motobomba para encher de água a bóia da balsa que se apoiaria na margem e assim fazer
o contra peso. Conduzia os trabalhos um cabo capixaba, operador e chefe de campo, já
tordilho pela idade: tinha uns quarenta e cinco anos. No momento, eu até achei que encheu
muito rápido. Em menos de uma hora já tinha enchido. Foram feitas todas as manobras e
assim carregamos toda a primeira balsa grande com máquinas que funcionava. Após a
carga, tinha que retirar a água da bóia senão a balsa ficaria embicada no rio também
afundando. Bom, notamos que demorou pra burro esvaziar a bóia. Isso deu um rolo com
sindicância e tudo. É que junto com a água foram cerca de trinta mil litros de gasolina. A
balsa Puraquequara foi para MUrbano e na Guia de Remessa constava trinta e tantos mil
litros de gasolina. Chegaram cerca de dois ou três mil litros de gasolina e nas bóias alguns
resquícios de água com gasolina. Quase paguei o pato. Mais pra frente eu conto o destino
da sindicância. Que bela confusão no futuro.
Mas, a primeira balsa estava carregada e o rio deu repique violento. Subiu pra
caramba. Seu Mustafa me disse: – “Tenente, se essa balsa ficar nesse rio estreito, com
esses repiques, está perigando ir para a margem, quando encher, e aí encalhar e jogar tudo
no rio quando baixar”. Passei a noite inteira sem dormir. Fui à beira do rio umas três vezes.
Eu já não tinha soldado pra montar uma guarda que de nada valeria, pois o rio subiria ou
baixaria com guarda ou sem ela. De manhã seu Mustafa disse que iria navegar até a foz do
Rio Envira com o Rio Tarauacá onde ficava mais largo e sem risco de ir para a margem.
Perguntei sobre a ordem de não sair da margem sem o Seguro, ao que ele me respondeu: –
“Tenente, deixa comigo; ninguém precisar saber que está no Tarauacá. Aqui corremos
perigo; lá jamais ocorrerá acidente”. O que fazer se não concordar com quem tinha o triplo
de minha idade e o quintuplo em experiência.
Assim que a Segunda balsa foi carregada e transportada até a foz do Envira, deixei o
carregamento do pouco que restava e fui gozar minhas férias em Manaus. Também durou
pouco porque em uma semana o dinheiro acabou e tive que passar o resto das férias em
Porto Velho e sem dinheiro.
Bom, o restante, o rescaldo da mudança de Feijó acabou sobrando para o meu
motorista que se casou por lá. Ele foi o ultimo a sair, resgatado pelo MGG. A sede da
companhia que estivera em MUrbano recuou para Sena Madureira.
Assim foi meu batismo em trabalhos de rodovia. O Acre me foi uma grande escola
não só pela administração do serviço, mas também pelo tipo de solo, pela aprendizagem de
mecânica, pela técnica em terraplenagem e bueiro e principalmente por aprender a ser líder
e aprender a falar e entender a linguagem do peão. Sai de lá com a fama de experiente, o
que não é muito bom, pois depois desse carimbo, todas as “bocas podres” lhe são
destinadas. Havia uma euforia entre os tenentes, fruto do idealismo que nos alimentava e
fazia esquecer os problemas nacionais onde éramos governados por uma revolução que
tinha vergonha de ser revolucionária. Pensávamos em voltar, como capitães, para executar
o asfaltamento daquela rodovia e assim chegar ao Oceano Pacífico. Integrar-se com o Peru
e Bolívia, em particular as suas partes amazônicas, que tanto dificuldade causava aos seus
governos, para manter suas presenças por ali e do sofrimento do povo dependente dos
recursos e todo o alimento vindo do outro lado da cordilheira.
Embarcadas as máquinas e balsas a destino, como dito, fui gozar os restantes das
férias que era ainda bastante. Férias de general: de 45 dias. Chegando a Porto Velho e
ainda restando uns vinte dias, fiquei em hotel na cidade. Resolvi ir a Manaus. Em uma
semana já não tinha mais dinheiro. Havia a zona franca de Manaus, mas não comprei as
“inutilidades domésticas” que a grande a maioria comprava. Não as comprei porque não
tinha onde instalá-las. Voltei a Porto Velho com um monte de dias de férias e sem dinheiro.
Terminadas as férias, me apresentei já entrando no janeiro de 1975. O comandante,
como prática sua, me chamou para uma conversa sobre os trabalhos do ano anterior.
Falamos dos pró e os contras, dentro da minha visão de tenente, o que para mim foi ótimo
porque entendi as razões burocráticas que manietavam a todos. E a impetuosidade de
tenente impede entender que a isso todos se submetem. Na oportunidade, falei-lhe do
abandono em que viviam os cabos e soldados antigos do batalhão. Contei-lhe o caso do
cabo da topografia que, chegando comigo à sede, não sabia onde ficava a CCSv porque
quando saiu para o trecho nada daquilo existia. E nunca mais tinha voltado. Foi quando ele
me adiantou da quantidade de cabos excedentes do batalhão e que iríamos sofrer um
baque, pois era intenção do Comando Militar da Amazônia ir fazendo transferência de
nivelamento até que os efetivos estivessem adequados. É que a necessidade de gente, a
oportunidade de se conseguir a estabilidade em região inóspita ou fronteira e a euforia de
integração da Amazônia proporcionaram tudo isso. Em função dessa conversa, o
comandante resolveu, ainda para o mês de março, mês forte em chuvas, mas com todos já
de volta por férias, reunir todos os cabos antigos e soldados estabilizados para um mês de
ordem unidade na sede. Foi uma reclamação generalizada. Na verdade não se tinha mais
tropa, mas um bando de competentes homens, com variados ofícios em rodovias, mas que
nada mais tinham de militares. O fardamento era um bagaço. Havia mendigo com roupas
mais adequadas que muitos dos nossos militares. O alcoolismo tomava conta de um grande
número. O estado de saúde era precaríssimo. Muitos deles devastados por inúmeras
malárias. Era motivo de orgulho e bravata contar que já tivera quinze, vinte malárias. A
malária era tratada com desprezo já que os médicos, e no mais das vezes enfermeiros,
recomendavam um mês sem bebida alcoólica. A ameba nem era tratada. A hepatite era
comum entre eles. Essa ordem do comandante foi uma forma de retomar as atitudes
militares. Assim, reaprenderam as preparações da educação física, atualizaram os
movimentos de armas. Muitos não conheciam o FAL, fuzil cujo movimento de ordem unidade
tinha mudado em relação ao velho mosquetão. Reaprenderam a montagem e desmontagem
de armas, retomaram as atitudes e posturas militares. Todos foram submetidos a um “check-
up” geral. De tudo, o melhor foi sentirem que havia alguém preocupado com eles. Assim,
minha conversa com o Comandante gerou alguns frutos embora na oportunidade o mês da
reunião dos cabos houvesse trazido transtorno a alguns e a algumas repartições.
A vida na cidade era a mesma de sempre: pacata, com tempo ainda chuvoso e sem
muita alternativa nos finais de semana. Passei alguma noite do carnaval no clube
Ferroviário, novamente. Agora sem os tenentes do ano anterior. Alguns estavam destacados
em outros lugares; muitos haviam sido transferidos (particularmente os da turma anterior);
ou licenciados (os R/2); e, outros, recém chegados particularmente os R/2.
Para o ano de instrução, na divisão de trabalhos, eu ficaria com toda a instrução. Na
instrução, eu era o tenente mais antigo. O comandante da Companhia de Comando
continuaria com o mesmo tenente, o que servimos juntos em Alegrete. É que a companhia
havia ganhado um trecho para conserva, de Porto Velho a Ariquemes e isso sobrecarregava
o tenente. Assim, eu como um Subcomandante assumiria a instrução dos soldados recrutas
que incorporaria por volta de 15 de janeiro. Teria que checar todo o fardamento também.
Nesse entrevero de instrução, notícias de atoleiros, férias de pessoal, transferência de
outros me avisaram que eu passaria a responde pela “fiscalização administrativa”, por férias
do titular da coisa. Aconteceu um fato que à frente aparecerá como pitoresco. Fui ao
Subcomandante avisar de minha total ignorância do que se passava ali na Seção de
Logística. Respondeu que eu ficasse tranqüilo porque os documentos seriam preparados
pelo oficial QAO da seção e por sargentos experientes. Os documentos que requeriam
assinatura do comandante seriam levados ao subcomandante e ele colheria a tal assinatura.
Os documentos que necessitassem minha assinatura o Ten QAO ou sargentos me
procuraria para tal. Bom, numa das vezes passei uma tarde toda assinando um documento
da administração pública conhecido como Empenho (é o documento que o vendedor ou
prestador de serviço fica com ele como garantia do débito do órgão público). Naquele tempo,
assinavam o tal documento: o fiscal administrativo, o comandante e o almoxarife. Hoje só o
Almoxarife e o Comandante. Só me livrei disso quando me designaram para Vilhena.
Nesse início de ano chegaram vários médicos para prestarem seus “Serviço Militar
Inicial.” Receberam o nome popular de médico R/2; hoje é médico temporário. Para melhor
entendimento, vai a explicação. O médico e o dentista podem, pela Lei do Serviço Militar,
solicitar adiamento de seu serviço militar inicial enquanto estiver na faculdade. Depois de
formados então prestam seus serviços como oficial e médico ou dentista. Podia adiar mais
ainda, se matriculado em especialização. Nesse período foi criada uma legislação que os
designava, para os BEC, um oficial médico e dentista para cada companhia destacada e três
médicos especializados, voluntário, se já tivessem prestado seu serviço militar inicial ou
obrigado se ainda em débito, para os hospitais da sede dos batalhões. Cada BEC tinha seu
hospital com várias especialidades. Isso atenderia duas condicionantes: uma, atender as
necessidades das unidades de construção e, duas, também permitia que tais profissionais
entrassem em contato com novas fronteiras populacionais carentes de médicos. A segunda
condicionante foi muito importante. Só no primeiro ano de experiência, pelo menos, o
dentista ficou radicado em Sena Madureira e, em Rio Branco, ficaram o médico e o dentista.
Em Porto Velho ficaram todos os médicos. Pois bem, eles foram designados para o batalhão
e ali receberiam 45 dias de instrução básica e depois nomeados Aspirantes a Oficial Médico.
Hoje é um pouco diferente, mudando anualmente segundo a cabeça do Diretor de Serviço
Militar e do da Região Militar. Em Porto Velho fui designado o Diretor de Instrução de tais
médicos. Na verdade fui instrutor o tempo todo: de ordem unida até a acampamentos.
Durante o ano os encontrei em diferentes trechos.
As últimas notícias sobre a BR 364, no trecho da Residência Especial de Vilhena
(REV), informavam que entrara em colapso. Lá estava um tenente R/2 que, por algum
motivo, não lhe deram a prorrogação de tempo de serviço; ou ele já tinha atingido o tempo
máximo. Não estou muito certo disso. Apenas sei que ele era carioca, casado, com uma filha
e que fora para Manaus onde, por influencia do 2º GEC, lhe arrumaram um emprego na
Petrobrás. Na sede, o subcomandante me chamou. Era o meu antigo professor, e me
designou para ir substituir o tal Tenente. Deixaria a instrução, voltaria a ser estradeiro e nova
experiência, agora como conserva de rodovia que já entrara em colapso, como dito. Na
sede, seção técnica e fiscalização administrativa estavam um tanto chateados com ele,
tenente, porque, nas reuniões de comandante de companhia, ele sempre apresentava seu
trecho como muito bom, tudo realizado, tudo feito. Mas parece que o dito inverno, que é
verão, de 1974 para 1975 foi um dos mais chuvosos.
O tal Tenente já tinha deixado Vilhena. Eu começaria minhas tantas experiências em
não receber do oficial anterior as funções novas para mim.
Missão a Garcia: menos de três dias para se organizar a vida. Saímos de Porto Velho
debaixo de uma enorme chuva. Uma camionete C14, à gasolina, Chevrolet, de Vilhena, que
trouxe o tal tenente e aguardava o futuro chefe com tudo que seria minha mudança. Em
outra picape, da sede, irmã gêmea da outra picape, seguiu um capitão da seção técnica,
meu comandante no ano anterior no Acre, que teoricamente me passaria o trecho. Seguiu
junto uma dentista, recém-contratada pelo SAS, convênio com o então FUNRUARAL.
Semanas depois iria o seu gabinete odontológico particular, que ela instalaria no então
povoado de Vilhena. Rondônia era Território Federal e existiam dois municípios: Porto Velho
e Guajará-Mirim. Ela acabou por ficar definitivamente em Vilhena. Saímos de Porto Velho
bem cedo. Á medida que íamos entrando, fui sendo apresentado, para a BR 364 e seus
pontos de referência, pelo motorista. Mais tarde descobri que tais pontos eram importantes
quando se queria transmitir algumas informações. Assim, passamos pela ponte do Rio
Jamari, um local que quase se torna uma comunidade, de nome São Pedro; depois vinha
Ariquemes, que existia apenas, na beira de um igarapé, um posto de gasolina, com um bar
que servia refeição, todo coberto de palha e pau a pique. Na verdade, a partir desse ponto,
partia uma estrada projetada, estrada de ligação, com nome de BR 421 que foi construída
apenas uns trinta quilômetros e que tinha destino Guajará-Mirim. Era um local rico em
cassiterita, minério de estanho. Logo atrás do restaurante passava o Rio Jamari, campeão
rondoniense de malária. A BR 421 sai da BR 364, atravessa o rio e segue pelo rumo de
projeto. Antes do rio, paralelo à BR 421, tinha uma pista de pouso de mais ou menos uns
1.500 metros. Mais tarde soube que tal pista era de grande movimento, mas por
contrabando de cassiterita. A travessia do rio era feita por uma balsa operada por militares
do batalhão.
Passamos pela Fazenda Nova Vida, hoje município, onde permitiam que nosso
pessoal de conservação fizesse acampamento e por cortesia forneciam carne.
Passamos por Jaru, um assentamento do INCRA iniciado nos fins da década de
sessenta e ocupados no inicio da década de setenta. Antes, fora um posto telegráfico da
linha Rondon. A BR é atravessada pelo Rio Jaru, nome em homenagem aos índios que ali
existiam. No início da década de setenta foi construída a ponte de concreto sobre o rio. Por
muitos anos, foi a capital mundial da malária, segundo os peões do BEC.
Passando Jaru, chegamos a Ouro Preto. Nasceu do Projeto Integrado de Colonização
Outro Preto, ou simplesmente, PIC Ouro Preto. A Colonização oficial de Rondônia teve início
em 1968, quando o Ministério de Agricultura se interessou pela colonização da Amazônia
Legal. Naquele ano, chegaram ao então Território Federal de Rondônia, os técnicos do
Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), com a atribuição de localizar na BR 364 uma
implantação de novos projetos de colonização. O nome Ouro Preto vem de um tipo de solo
roxo escuro, que os técnicos do INCRA denominaram “ouro preto modal”. Na saída para Vila
de Rondônia, uns dois quilômetros de Ouro Preto havia um órgão do Ministério da
Agricultura ligado à plantação de cacau - CEPLAC - Comissão Executiva do Plano da
Lavoura Cacaueira. Na região, cacau é planta nativa da mata, como seu irmão gêmeo o
cupuaçu. Em vários momentos da vida nacional, Rondônia produziu mais cacau que a
Bahia.
Vinte quilômetros depois, chegamos, pelas três ou quatro horas da tarde, à Vila de
Rondônia com certa tranqüilidade. Ali também não tinha mais chefe. O anterior já tinha seu
tempo de guarnição vencido e seguira destino. Nessa manobra retiraram um sargento mais
antigo e problemático de relacionamento e deixaram um outro bem dinâmico que na verdade
era mecânico. Assim, assumi a Residência Especial de Vila de Rondônia, de passagem.
Acertei com o Sargento, que ficara como o mais antigo, que todos os dias falaríamos por
rádio. No ano anterior houve tanta chuva que o Rio Machado, que passa por ali, que
também tem o nome de Rio Ji-Paraná ou com grafia de Gi-Paraná e até Gy-Paraná, alagou
tudo na margem direita, cobrindo a cabeceira da ponte impedido a passagem, mesmo à pé,
por sobre a ponte. A residência fez pinguelas e pontes de circunstâncias de modo a não
isolar as duas partes da vila e do território, separadas pelo rio. Na vila, ele corre de oeste
para leste: quem vem de Porto Velho chega pela margem esquerda.
Na outra manhã, cinco da manhã, começamos a rodar em direção ao destino final.
Ainda faltavam trezentos quilômetros e aí estava o trecho complicado. Passamos pela vila
Presidente Médici. Chegamos a um local chamado de Castanhal. Era uma ladeira
pedregosa onde, na direção de Porto Velho, não se conseguia subir. Era uma ladeira de uns
cento e cinqüenta metros, com pedras aflorando e muita lama que descia. Assim
enfrentamos, e foi meu batismo, o primeiro grande atoleiro com vários caminhões
atravessados e em sistema de ajuda mútua. Nem sinal de nosso pessoal. Isso, disse o
motorista, é sinal que tem atoleiros maiores aí pela frente. Conseguimos passar e chegamos
à então vila de Cacoal. O nome é esquisito, mas parece ter originado de uma plantação de
cacau, feita por um aventureiro e sonhador e que acabou por dar com os burros n’água.
Assim, por corruptela, o povo ao invés de chamar o local de “cacaual”, abreviava para
Cacoal. A vila era um posto de gasolina bem grande, com restaurante, oficinas e outros
meios para atender os caminhoneiros. As casas ficavam mais concentradas na faixa de
domínio, o que deu uma dor de cabeça mais tarde. Na direção de Vilhena, tinha umas duas
ruas à esquerda e casas muito humildes. Parando em Cacoal, tomamos um refrigerante e
alguns quitutes salgados. A qualidade do restaurante não dava para enfrentar a comida.
Depois de uns vinte quilômetros, havia um posto indígena, ao lado de um igarapé de nome
Riozinho. O posto era Posto da FUNAI Riozinho. Á frente havia uns restos de construção
que fora qualquer coisa parecida a uma serraria. Onde os índios se acomodavam era
barracão de palha. O posto em si, com enfermaria, era de tábua.
A próxima referencia era Pimenta Bueno. A denominação dada ao rio, ao lugarejo e,
oportunamente, à estação Telegráfica de “Pimenta Bueno”, pelo Marechal Rondon, fora a
homenagem que o mesmo estaria prestando ao ilustre homem público, Francisco Antônio
Pimenta Bueno, nascido em Cuiabá, em 10 de novembro de 1836 e falecido no Rio de
Janeiro em 07 de dezembro de 1888.
Pimenta Bueno era militar. Há referências que em 1926, o vilarejo contava com a
população de 24 pessoas. Até a década de 1940, o pequeno povoado viveu em função do
posto telegráfico e a economia girava em torno da extração da borracha e garimpo de
diamantes. Após 1966, com a abertura da BR-364, pelo Quinto Batalhão de Engenharia de
Construção (5.º BEC) a vila se expandiu. Logo à direita de quem vem de Porto Velho, passa
o Rio Comemoração. Esse rio, com o Rio Pimenta Bueno formam o Rio Machado, que em
Ji-Paraná passa com nome de Machado e Ji-paraná. Nunca descobri qual é o nome que
vale. Não disse isso antes até que chegasse a Pimenta Bueno o que permitiria melhor
explicação.
Bom, na saída para Vilhena tinha um posto de controle do Batalhão, com casa pré-
fabricada, na faixa de domínio, onde um cabo morava com mulher e filhos. Era um mineiro,
negro, bem falador e com uma muito boa educação formal, redação adequada. Era um
desperdício ele ali. Paramos para saber como estava o trecho. O cabo disse que deveria
estar tenebroso, pois estava passando muito poucos caminhões na direção de Porto Velho.
De Pimenta Bueno saia um ramal do INCRA que ia para o assentamento de Espigão do
Oeste onde centenas e centenas de famílias foram assentadas.
A partir de Pimenta Bueno, o terreno começa a subir. É que Vilhena está no platô da
Serra dos Parecis, mais precisamente na Serra dos Pacaás-novos. O terreno ondulado
obriga a estrada a percorrer as chamadas meias-encostas. O terreno era bastante argiloso.
Uma argila avermelhada, próprio de solo laterítico. Havia ocorrência de pedras, mas de
cascalho, não. Na verdade existia, mas de má qualidade com os pedregulhos frágeis que
facilmente se esboroava com o peso do tráfego e com jazidas muito longe. Os atoleiros não
permitiam desvios: era a ribanceira de um lado e o morro do outro. Assim ficava apenas um
buraco no eixo onde um caminhão entrava e, por solidariedade, era puxado por outro. O que
puxava tinha prioridade para entrar no atoleiro. Havia atoleiro com quinhentos caminhões
de cada lado. Com jeito e com vergonha, porque a responsabilidade de tráfego era nossa,
batalhão, íamos passando. Chegando num local chamado Marco Rondon, cerca de um
quilômetro antes tinha um atoleiro enorme. Ali tinha um pessoal nosso, com uma
carregadeira tracionando: o veículo entrava no buraco e era arrastado para o outro lado.
Nesse ponto havia um descontentamento dos motoristas porque estavam demorando três
dias para serem passados. Mas não tinha outro jeito: havia mais de mil caminhões de cada
lado do atoleiro. Era Marco Rondon porque ali tivera um posto telegráfico da linha Rondon.
Mais tarde, tentei descobrir onde ficava e não o achei. Mas tinha um bar com restaurante e
quartos para pouso. Passamos e seguimos. Mais adiante tinha um local muito bonito. Era o
vale do Rio Ávila (afluente do Rio Barão de Melgaço que é afluente do Machado) com areias
muito branca, cascalho de seixo rolado e água cristalina. Chegamos à Vilhena lá pelas nove
da noite. Toda Vilhena era: a sede da Residência, um posto de gasolina bem grande com
hotelaria, oficina e restaurante e não mais que mil residências. Havia um mercado pequeno
e um cinema de madeira. Hoje estaria localizado na área mais central da cidade. À frente do
posto, e do outro lado da BR, ficava o campo de Pouso da FAB com dois ou três sargentos
do Serviço de Proteção ao Vôo (hoje parece que não é esse nome). Bom, as instalações da
residência e as vilas de Sargentos e cabos e a área cercada era quase do tamanho do
vilarejo.
No outro dia da chegada, após o café na casa de hóspede, fui receber a Residência.
A casa do Chefe da Residência ainda tinha alguma coisa do chefe anterior e por isso
optamos por ficar na Casa de Hóspede. Em outro lugar é melhor explicado o que seja uma
casa de hóspede. O Capitão tentou então dar um panorama sobre o trecho. Na verdade
estava falando grego. Como eu não conhecia o trecho e me confundia com as referencias, a
gama de informação era enorme e impossível de ser absorvida. Busquei o velho processo:
uma coisa por vez, para ser uma vez por coisa. Se não, se começa fazer coisas pela metade
e há que se retornar para refazer ou completar. O pobre do capitão tinha informação
passada por papel. Aquela de “Pé na lama” ele não as tinha.
Como disse, Vilhena fica num platô da Serra dos Parecis, bem plana, com uns
oitocentos metros de altitude, clima muito agradável aonde chegam, com freqüência, as
friagens das frentes frias antárticas. Á noite, sempre tem uma brisa como são as dos mares.
No inverno (inverno estação) são freqüentes as serrações densas. A história de Vilhena
começa por volta de 1910, com a passagem do Tenente Coronel Cândido Mariano da Silva
Rondon, quando fixou nos campos do Planalto dos Parecis um posto telegráfico, na linha
Cuiabá/Santo Antônio do Alto Madeira (Cuiabá-Porto Velho). Isso fez surgir vilas em torno
dos postos. O nome “Vilhena”, dado por Rondon, foi homenagem a Álvaro Coutinho de Melo
Vilhena, natural do Maranhão, engenheiro chefe da Organização da Carta Telegráfica
Pública, que em 1908, por ter sido nomeado, pelo Presidente da República, Diretor Geral
dos Telégrafos. Durante quase 50 anos, foi o Posto Telegráfico a marca da passagem do
homem civilizado por esta região. Em 1959, o Presidente Juscelino Kubitscheck iniciou a
BR-29 (Brasília/Acre), atual BR-364, que integrava a região Norte com as demais Regiões
do País. Tal rodovia chegou até Vilhena. Em 1964, através do IBRA (Instituto Brasileiro de
Reforma Agrária), substituído pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária), começou a distribuição de terras da União aos colonos, ocasião que chegaram as
primeiras cabeças de gado (80 rezes). Após a revolução de 1964, chega o 5º BEC (Quinto
Batalhão de Engenharia e Construção) que realmente abriu a rodovia até Porto Velho, e
deixou, para a conservação da estrada, uma companhia ao comando do Tenente
Todeschini, do quadro auxiliar, que residiu em Vilhena. Em 1975, numa inspeção ao trecho,
antes de chegar à Padronal (hoje pertence ao município de Comodoro – MT), o motorista me
mostrou a árvore que o Presidente Juscelino havia derrubado com um trator, no
desmatamento da BR-29, fato registrado na revista O Cruzeiro, a mais importante da época.
O Deputado Federal por Rondônia, governador do Território de Rondônia e Coronel
Engenheiro Militar, Tenente na 2ª Grande Guerra como oficial de engenharia - Paulo Nunes
Leal escreveu um livro intitulado o “Outro Braço da Cruz”, sobre a construção de tal rodovia.
A primeira coisa foi entender como funcionava “a coisa”. Tudo vinha de Porto Velho:
tanto o material para o SAS como as peças e alimento para a tropa vinha pelo caminhão do
japonês, motorista da residência e funcionário do DNER. Não raro o pessoal acampado, que
era pouco, já ficava com suas etapas. Motoristas de caçamba, operador de motoniveladora,
trator de esteira e motorista de caminhão tanque de combustível voltavam em casa de
quinze em quinze dias. Se o trecho precisasse, essa vinda era recalculada ou dividida:
metade vinha e metade ficava. Todo o aquartelamento era de madeira pré-fabricada. O
terreno era de uma residência do DNER cujo patrimônio imobiliário, máquinas e viaturas e o
pessoal passou à disposição do Batalhão após a instalação dele, em 1966. Apesar da idade
das instalações, eram confortáveis. Ficava a uns duzentos metros do eixo da rodovia
embora a cerca de arame farpado chegasse até o limite da faixa de domínio. Na entrada,
havia um posto de controle de trânsito, operado pela residência. À noite, a BR era
literalmente bloqueada com obstáculos de tambor. Nesse posto, eram assinalados inúmeros
dados: peso, volume, origem, destino das mercadorias; dados do veículo: eixo, marca, ano
de fabricação, proprietário e etc. As informações eram transmitidas para Porto Velho. Um
funcionário do BIRD, em visita de estudo à BR, anos mais tarde, em Ji-paraná, me alertou
para a gama de informação útil que ali existia. Mas um número incomodava o comando do
batalhão: entrava e saia em torno de mil e quinhentos a dois mil caminhões de carga por dia.
Por ali se alimentava Rondônia, Acre e o Amazonas. Havia também inúmeros funcionários
do DNER, particularmente carpinteiros de pontes, quando havia tais pontes no trecho, mas
extremamente experientes quanto a locais de acampamento, jazidas de cascalho, bueiros
problemáticos, moradores cooperativos... todos eram semi-alfabetizados. Havia um
cozinheiro, com uma enorme cicatriz no tórax resultado de uma flechada, num único ataque
de índio a uma instalação do batalhão. O ataque se deu pelos índios cinta-larga. Um
funcionário da FUNAI havia roubado uma moça índia, filha do cacique que era prometida
para um índio. Revoltados, eles atacaram alguma coisa que fosse do governo. Bom, o
funcionário flechado era filho de índio. Segundo os comentários era filho de Rondon com
uma índia. Ele era arredio e de pouca conversa com seus superiores (oficiais e sargentos).
Tentei por diversas vezes conversar com ele, mas era sempre esquivo. Também tinha uma
funcionária – DNER - que não fazia expediente na Residência. Era tida como lavadeira, e
assim ficou, já pelos seus sessenta anos. Também era índia, mas nhabiquara. Lavava a
roupa da enfermaria e da casa de hóspede.
Seguindo na direção de Cuiabá, se chagava na divisa de Mato Grosso, ainda uno, e o
Território de Rondônia. Mais p’ra frente tinha um local sem nenhum marco relevante, mas
com o nome de Padronal. Ficava a uns 50 km da divisa RO/MT. Mais para frente, mais uns
50 km, ficava o limite do 5º BEC com o 9º BEC conhecido por Barracão Queimado. O local
tinha esse nome porque ali existiram instalações do DNER apoiado inclusive com um campo
de pouso de quase dois mil metros. O local era bem característico do cerrado, já sobre o
planalto da serra dos parecis, bem plano e território dos índios nhabiquaras. O tal campo de
pouso, penso fora onde Juscelino aterrissou e por perto derrubou a dita árvore.
Mas já na primeira semana de Vilhena, tive meu primeiro embate com o burocrático.
Pelo malote do correio recebemos vários empenhos (documento necessário para compras e
serviço que garante ao fornecedor a dívida do Estado) de madeiras em tábua. Madeira ao
longo da BR era festa. Eram tábuas de dimensões esdrúxulas. O motorista, o Japonês, foi
até à Serraria e voltou. No empenho estava discriminado: “dez metros de tábuas de
comprimento, com cinco centímetros de espessura e um metro de largura.” Deveria ser de
uma árvore única e enorme. Mas não tinha “uma tábua de dez metros”. Só seria
transportada por carreta, nunca de caminhão. Eu fiquei resmungando e depois xingando:
–“bando de burocratas; porque não especificaram melhor: dez tábuas de um metro ou duas
de cinco metros ou qualquer coisa que fosse coerente. Quem foi o animal que assinou
isso?” Aí, tive que engolir tudo o que disse. No dia em que me botaram para assinar um
monte de papel, por estar “respondendo pela fiscalização administrativa”, assinei tal
empenho. Assinei em cruz sem ler nada. Queimei a língua. Foi uma luta para esclarecer por
telefone: na Fiscalização só fazia o papel do empenho. No Suprimento, chegava o pedido do
material onde fazia a cotação e mandava para a fiscalização empenhar; o pedido era da
carpintaria. Mas na carpintaria não tinha ramal telefônico. Tinha que falar com as oficinas de
veículos, marcar um horário para falar com o cabo responsável pela carpintaria. Foi uma
semana para desenrolar o caso.
Perto de Vilhena, na direção Oeste tinha um Projeto de assentamento do INCRA, hoje
cidade consolidada, de nome Colorado do Oeste. Uma total falta de criatividade para colocar
nome nas coisas. O que tem de “qualquer coisa Oeste” a partir de Mato Grosso é uma
grandeza. Mas Colorado era tido como o local de terra mais fértil do mundo. Era dito que
solo igual somente tinha o solo negro da Ucrânia. A procura de terra por lá era grande e o
acesso era mortal. O que me chamou a atenção era o entusiasmo do povo. Todos lançados
numa única esperança: ser bem sucedido.
Todo o meu trecho ficava cada vez pior. Eu sabia isso apenas por notícias. Fui fazer
minha primeira visita ao trecho, na direção de Barracão Queimado. Estava tudo muito ruim.
O motorista dava sua risadinha irônica e dizia: – “tenente, isto está ótimo. Não tem nenhum
caminhão enroscado”.
Vi nessa região uma coisa estranha. A região era arenosa. Os bueiros ficaram
assoreados e aí se formava um açude com bastante água a montante e se via água escorrer
a jusante e não se via bueiros. A montante formava um grande açude de areia molhada.
Segundo o motorista, se alguém tentasse achar a boca do bueiro ficaria atolado e afundaria
até sumir. Segundo ele, havia história de pessoas, alheias ao batalhão, que tinha sido
sugada pela areia molhada. Claramente estávamos diante de uma “areia movediça”. Eu não
sei se pelo calor ou se de alguma forma entrava ar em alguma parte do bueiro, mas o
estranho é que saiam borbulhas de ar na água tanto de um lado como do outro. Por
percolação o apoio das bocas de bueiros perdia material e as bocas selavam a ponto de
estrangular o bueiro.
Com quinze dias na Residência eu não conseguia saber de nada. Todas as
informações estavam nas mãos dos cabos de trecho. Quando alguns dos destacados
vinham para a sede, por algum motivo falavam “grego”, pois os conceitos de ruim ou bom
para eles não eram o meu. Por estar muito tempo vendo atoleiros, o sarrafo do “BOM”,
deles, estava muito baixo.
Na outra semana resolvi visitar meu trecho, na direção de Porto Velho e chegar até
Vila de Rondônia. Por rádio, troquei idéia com o sargento de lá com a possibilidade de fazer
pedra com explosivo, na pedreira a doze km à frente da Vila. Precisava ver a pedreira e as
condições.
O primeiro grande susto foi um local com o nome de Aterro Grande, mais ou menos
uns trinta quilômetros de Vilhena. Hoje, não mais existe porque a BR, no asfaltamento, foi
desviada do local. Era um local de terreno ondulado e arenoso. Na verdade ele ficava numa
meia encosta e com sinais de várias tentativas de instalação de bueiros. O corpo do aterro
era essencialmente de areia. A região, pelo menos uns cinco km de uma lado e de outro,
não tinha material argiloso. Como na época da implantação o rigor técnico não exigia e
durante os tempos de conservação os recursos sempre foram insuficientes, o aterro arenoso
foi feito, talvez o provisório que virou definitivo. Tinha, à jusante, uma altura de uns vinte
metros; à montante eram uns cinco, apenas. Na verdade era uma enorme ravina, cortada a
uns cinqüenta metros do início e que, por ser terreno arenoso, formou uma enorme
voçoroca. Voçoroca é uma ravina formada onde as variações do nível o lençol freático
carreiam sedimentos com velocidade. É formado naturalmente, nos terrenos arenosos, ou
por desmatamento da camada vegetal. Assim, numa voçoroca há sempre um fio de água
correndo. Cerca de cem metros do Aterro Grande, a voçoroca tinha uns duzentos metros de
largura por uns cinqüenta de profundidade e de dois a três quilômetros de comprimento.
Dependendo da intensidade da chuva, todo o aterro era arrastado. Como o aterro cortava
uma ravina, e existiam restos de bueiros metálicos antigos, qualquer água de chuva retida a
montante, ficava vazando por meses. Fiquei maravilhado pela visão da coisa. A imagem era
bonita. Andei uns duzentos metros e consegui entra pela voçoroca e voltei até próximo de
onde vazava a água. Foi daí que descobri os antigos bueiros. A areia molhada formava uma
área de areia movediça. Segundo o motorista, eu fora o único que entrara ali nos dez anos
em que ele era motorista.
Chegamos ao Rio Ávila. Um rio pequeno correndo num vale recoberto de seixo
rolado. Era uma fartura de cascalhos. Era parada obrigatória para beber água e dar uma
esticada nas pernas. Imaginava o tanto de diamante que deve ter em tal rio
Logo chegamos a Marco Rondon. Havia uma curva com uma subida. Bem na curva
tinha um bar. Mais uns quinhentos metros, tinha um atoleiro. Mas não era um atoleiro
comum. Era um metrô. O local tinha um corte de uns dez metros de profundidade. E ali se
formou o atoleiro. Além da chuva constante, o lençol freático estava muito alto. Minava no
fundo do atoleiro. Os caminhões estavam desorganizados. Então, a primeira coisa era
arrumar a bagunça. Tinha a lei do atoleiro. Era tácita: 1) - Todos em fila na sua mão; Bom,
imagine uma fila com quinhentos caminhões de cada lado; 2) – o caminhão mais perto do
atoleiro entrava no buraco, era engatado o cabo de aço e era tracionado pela máquina; 3) - o
caminhão tinha que estar funcionando para ter freio e funcionando a parte hidráulica; 4) -
tinha que acelerar muito também para ajudar a máquina; 5) - passado um caminhão de um
lado, passava o do outro lado; 6) tinha prioridade nos atoleiros: carro de passeio com
pessoas, ônibus, que passava sem os passageiros, caminhão com alimento perecível e
caminhão tanque de combustível. Os de madeira e carga geral eram últimas prioridades.
Mas os de maior prioridade entravam na fila, lá na traseira e aí vinha e alertava o militar
responsável pelo local (jocosamente chamavam-no de Chefe de atoleiro). Se não fosse
assim, virava uma bagunça e aí às vezes a retenção não era pelo atoleiro em si, mas por
bloqueio da estrada, se passasse. Bom, um atoleiro organizado, pode funcionar sem uma
pessoa responsável pelo trecho. Basta que um entre no buraco e outro o tracione de ré;
passado o buraco, o que tracionou entra no buraco e o próximo a passar do outro lado,
puxá-lo de ré e assim, com ajuda mútua, todos passam.
Cada caminhão tinha que portar equipamento básico: cabo de aço, de meia ou três
quarto de polegada, de preferência com alma sisal; enxadão e pá. Terríveis eram os ônibus:
nunca tinha cabo de aço. Os melhores caminhões em atoleiro eram os caminhões tanques
de combustível por serem de um eixo só e com centro de gravidade baixo. Eram conhecidos
por “tanqueiro” tanto o caminhão como o motorista. Os piores eram as carretas que,
dependendo do estado dos atoleiros, nem entravam. Ficavam em Vilhena e arrumava um
jeito de dividir a carga em caminhões de um eixo só; junto com as carretas estavam os
chamados caminhões trucados (dois eixos traseiros em tandem). Dos carros menores, os
mais valentes eram os fuscas e as brasílias. Os demais tinham a grande dificuldade de não
ter onde colocar um cabo de aço e nem eles o tinha. As picapes eram tranqüilas para
enfrentar qualquer barreiro.
Mas, a coisa estava feia. Já estava faltando comida em alguns atoleiros e carros
particulares com mulheres e crianças retidos em locais que caminhões passavam com
facilidade. Um ônibus entrou no buraco e eu passei de um lado para o outro do buraco
pisando no teto do ônibus. Naquele dia a chuva apertou tanto que o buraco encheu d’água.
Se alguém entrasse, poderia morrer afogado. Consegui atravessar pela crista do morrote,
pelo lado onde tinha uma casa de morador assentado. É que eu tinha a carregadeira para
ser arrastado. O dono do terreno me deixou passar pelo quintal dele. Toda aquela região era
de assentados do INCRA já com cinco ou seis anos. Eles eram muito gratos, ao BEC, e nos
ajudava mais que nós a eles. Bom, minha missão era chegar a Pimenta Bueno e conseguir
em algum lugar uma bomba para esgotar o buraco. Assim fizemos. Reuni o maior número
possível de caminhoneiro e falei que não havia mais nada a fazer a não ser, ir juntar pedra
de mão, para encher o buraco e assim sair do lençol freático. Além de o cascalho estar
molhado, a água minando no fundo do atoleiro deteriorava cascalho em menos de horas, aí
raspava com a carregadeira e assim o buraco ficava mais fundo, entrando num círculo
vicioso. O ideal era que tudo isso fosse feito com uns três dias de sol. Bom, assim ou eu
avisava que a BR estava interrompida ou naturalmente assim já estava. Pois, teve um
imbecil de um Deputado Federal, do território, eram dois e os dois da oposição, especialistas
em discursar sobre ditadura, incompetência e outras abobrinhas mais. O bandido chegou a
Marco Rondon e soube que estava suspensa a travessia no atoleiro até que se recuperasse
o local. O imbecil voltou a Vilhena, alugou um taxi aéreo e voltou a Brasília. Fez um enorme
discurso atacando o governo, o Exército e todos aqueles que ele pudesse atacar, para
demonstrar uma capacidade que ele nunca teve. O infeliz disse que ele não pode trafegar na
BR 364 porque o Tenente Higino tinha proibido trafegar, “numa postura autoritária próprio
dos militares”. Bom, o Ministério dos Transportes acionou o Ministério do Exercito, que
acionou o CMA, que acionou o 2º GEC que queria minha punição pelo meu Comandante de
Batalhão. Mas como eu tenho mais sorte que inteligência, quando fui a Pimenta Bueno,
conseguir a motobomba, telefonei ao subcomandante e adiantei minha decisão. Eu disse
que ou eu interditava ou já estava interditado. O comando sabia, então não era uma atitude
arbitrária minha. E não era a primeira vez que isso fora feito. Assim, escapei de ser punido
por um Deputado Federal. Engraçado que nunca encontrei essa figura. Tempos depois ele
se desdisse: quando era governador e faliu o Estado e precisou do BEC.
Em Pimenta, chegamos já era escuro. Detalhe, não tinha levado dinheiro. Por estar
no meu trecho, eu não tinha direito a diárias ou coisa assim e também ganhava pró-labore.
Portanto, eu teria que pagar do meu bolso ou levar a comida. Assim pernoitamos num hotel,
de madeira, de um posto de gasolina. Era o posto do Japonês que ficava uns dois km do
centro da vila, num lugar alto e bonito. Ficou fiado. Na manhã seguinte chegamos até Vila de
Rondônia como era conhecida Ji-Paraná. Acertados os problemas burocráticos, a ida à
pedreira e um relatório de como estava o trecho, a ida da caçamba, voltei para Vilhena.
Antes, resolvi mostrar o que e como gostaria de fazer o reconhecimento do trecho ao
Sargento de trecho e ele gostou e se propôs a fazê-lo por mim, até Ariquemes e eu faria
pelos lados de Vilhena.
Um dia em Vilhena recebo dois primeiros tenentes sendo um médico e outro dentista.
O médico ficou até capitão e acabou por envolver-se, ou o envolveram, nas coisas
burocráticas do FUNRURAL - respondeu IPM. O dentista só saiu do 5º BEC depois de
tenente-coronel. Foi transferido por que seria mais antigo que o comandante. Chegou à nova
unidade e foi para a reserva por ter tempo de serviço anterior, pois fora sargento. Como não
prestei atenção, acabei por apresentar a todos o médico como dentista e o dentista como
médico. É que o dentista real era mais alto que eu, tinha um metro e noventa de altura e o
médico baixinho, pouco mais de um metro e setenta. O lógico seria o baixinho ser dentista.
As noticias eram de que cada vez mais entre Pimenta Bueno e Marco Rondon a coisa
estava tumultuada. Bom, todo meu pessoal estava localizado nesse trecho. E o que eu tinha
de meios eram apenas quatro equipes: duas com um sargento e as outras com um cabo
com cada uma. Mas os buracos eram muitos, porém pequenos (em comparação com o de
Marco Rondon). O atoleirão fora quase obturado com a operação de enchê-lo com pedras
de mão. Os motoristas já passavam com solidariedades, isto é, um puxando o outro.
Assim que cheguei a Vilhena, recebi o comunicado que deveria estar em Porto velho
no outro dia cedo. É que não tínhamos rede rádio com o trecho e nem telefone por isso não
soube antes.
Interrompo os dramas de atoleiro para informar sobre telefone. Como dito, a BR corria
na direção geral usada por Rondon quando ele implantou a linha telegráfica. Em Vilhena, o
motorista me levou onde restava a ruína da casa de taipa que fora um posto telegráfico de
Rondon. Achei até um telegrafo antigo, como sucata. Havia inúmeras pichações de
indignação, pela desconsideração, desleixo e desrespeito. Quando deslocamos um trator um
trator D/7 para fazer cascalho para o lado da Padronal, limpamos o acesso e fizemos um
acero para livrar o local de fogo. O cerrado era muito típico, com seus “zilhões” de tipos de
capim. Reino, ordem, classe, família, gênero, espécie, tudo de capim, no cerrado tem. Bom,
um filho de Deus, que se adiantou, colocou uma tabuleta de madeira, escrita a mão dando a
direção: “Casa de Rondon a duzentos metros”. A uns dois km, direção a Cuiabá, ficava
umas instalações da EMBRATEL, empresa estatal que cuidava das telecomunicações (hoje
ela está desfigurada, mas já foi poderosíssima; seu presidente mandava mais que o
Presidente da República). O Brasil já tinha telefonia por micro-ondas e, no centro sul, toda a
telefonia era por telefone automático (isso que para um jovem de vinte anos, hoje, é peça de
museu). Bom, os sinais eletromagnéticos, na época, analógicos, viajavam por fio lançados
por Rondon e sua gente. Agora caminhava na atmosfera. Mas era transmitido por
tropodifusão. Este palavrão quer dizer que, a partir do centro sul brasileiro, os sinais de
telefonia se propagavam por reflexão na “troposfera”. Assim, de enormes distâncias
(maiores de 500 km) havia um sistema de antenas côncavas com mais de duzentos metros
quadrados. Pela imagem que ainda tenho delas, deveriam medir uns trinta metros de altura,
desde o chão, por uns cinqüenta de largura, toda aluminizada. Era um painel de placas
menores. Uma antena virada para uma direção recebia o sinal, o amplificava e retransmitia
por outra, junta, mas virada para outra direção da antena seguinte (receptora e
transmissora). Era na verdade uma enorme antena parabólica. Sofria enormes interferências
de mau tempo. Bom, em Campo Grande tinha uma delas na saída pra Cuiabá. Em
Rondônia, vi esta de Vilhena e outra em Porto Velho. Para a manutenção de geradores e
equipamentos, existia uma equipe de funcionários que moravam, com famílias, praticamente
ao pé da antena. O tenente anterior mantinha estreito relacionamento com eles. Por
absoluta falta de tempo, acabei por me afastar deles. Mas desafiava a eles que tomassem
conta da casa de Rondon. Aquilo era terra de ninguém, Vilhena não era município, aquilo
era território, portanto terra devoluta. Assim, era eles conseguir arame e moirão e cercar um
terreno grande, para no futuro ser um museu. Bom, não sei no que deu, mas a cerca foi
feita. Pela antena de tropo, se conseguia falar com qualquer parte do Brasil, mas, na área,
só de antena a antena. Já estava sendo instaladas antenas chamadas “Antena de
Visibilidade Direta. Isto é, a cada cinqüenta a setenta quilômetros as antenas, com trinta a
cinquenta metros de altura, tinha uma parabólica pequena que recebia, amplificava e
transmitia para a próxima torre. Dentro de cada cidade ficava uma antena que permitia
então estabelecer a telefonia para toda a cidade ou vila que tivesse a tal antena. Assim, a
primeira rodovia em que se poderia telefonar, de qualquer vila, era a BR 364, na minha
época. Mas nos atoleiros não tinha telefone e se recebia recados e bilhetes dos motoristas,
em particular de ônibus.
Bom, como disse, cheguei à tarde e com a ordem de no outro dia, às sete horas, estar
em Porto Velho para uma reunião. Não havia mais tempo para falar pelo rádio. Assim, só foi
separar algumas roupas, as fardas de formaturas e partir. Convoquei outro motorista porque
o que andava comigo já era velhão e teria que viajar pela noite inteira, estava cansado pela
viagem que fizemos. Foi um cabo. Saímos por volta de cinco horas da tarde. Consegui falar
com Vila de Rondônia e pedi que deixassem, na casa de hóspede, um lanche e água (não
havia essas garrafas de água mineral. Era “torneral” mesmo). Fui informado que Porto Velho
pedira a presença de picape com o motorista, daquela residência, e que esse já havia
partido durante o dia. Em lá chegando, o vigia ligaria o gerador, a gente tomaria um banho,
abastecimento, lanche e estrada. Banho para tirar o barro do corpo; a roupa era a mesma.
Para registrar: nunca dormi ou fiquei em atoleiro. Também nunca tive preguiça de mandar o
motorista parar e eu fazer um reconhecimento do atoleiro. Entrava na lama até a cintura, se
preciso fosse, para saber como orientar o motorista. Aí eu ficava no meio do atoleiro
sinalizando ao motorista para onde ele deveria jogar o carro. Muitas vezes atravessamos
com a picape de lado. Mais parecia uma lagartixa que uma picape. Algumas vezes quase fui
atropelado. Chegamos por volta das duas da manhã na Vila de Rondônia. Demos sorte
danada: não choveu, não tinha nenhum apressado dentro de atoleiro e o tráfego estava
parado. Os motoristas, de estrada de chão, com atoleiro, não viajam à noite. Com meia hora
retomamos a marcha. Se houvesse algum enrosco, entre Vila de Rondônia e Porto Velho,
eu não chegaria a tempo. Paramos várias vezes para lavar, com água de poça da estrada,
os faróis e os pára-brisas. A estrada estava até boa. A partir de Ariquemes, não tinha
atoleiro, mas tinha muito buraco, panelas que atrapalhavam a velocidade. O motorista
começou a cochilar. Paramos na casa de um morador, invadimos seu quintal, puxamos água
do poço e o jovem tomou um banho de roupa e tudo para despertar. Chegamos a Porto
Velho pelas oito da matina. Deixei a mala no local de hospedagem (hotel) e fui todo
enlameado me apresentar e saber por que de tanta pressa. Eu cheguei, mas teve gente que
não chegou e, aí passaram a reunião para tarde. Voltei ao hotel e tomei meu banho, troquei
de roupa. O café da manhã tinha ido para o espaço. Almocei no quartel. A reunião não tinha
nada de urgência. Relataram o que tinha acontecido comigo e o Deputado; as informações
desencontradas: otimista ou pessimista, segundo o olhar dos usuários sobre a estrada; a
falta de recurso; e recomendações para presença efetiva na rodovia. Havia um aspecto
moral: a responsabilidade nossa era manter o tráfego a qualquer preço. Como não tinha
dinheiro para “pagar o preço” o patrimônio a se danar era o dos homens. Mas, quando da
visita a Vila de Rondônia, combinamos com que uma caçamba deveria ir a Porto Velho
trazer dinamite para que pudéssemos produzir brita ou pedra de mão. Havia a pedreira do
BEC (alguns anos depois descobrimos que não éramos donos de nada) e tinha os
funcionários que sabiam operar e fazer as brocas, tinham o material pra fazer as minas. Só
faltavam os explosivos. Assim, a caçamba foi mandada, dirigida por um cabo, gaucho de
quase dois metros, competente da unha do pé ao fio de cabelo da cabeça. Num dos
intervalos da reunião ele me procurou e disse que estavam alegando que o explosivo estava
“estragado”, cujo nome técnico é “dinamite exsudada”, isto é, depois de velha ela começa a
suar, separando seus componentes e a parte líquida é nitroglicerina; se o líquido da
nitroglicerina cristalizar ela é sensível e pode explodir com qualquer choque. Como levar isso
de caçamba, numa estrada de chão, esburacada e com atoleiro? Num momento da reunião
em que o assunto não me interessava, fui com o cabo ao paiol. Olhei a dinamite e vi que a
exsudação era muito pequena. Era o termo que cunhei, mais tarde, “omissão legal” ou no
bom português popular: tirar o corpo fora ou no chulo: tirar da reta. O cabo também conhecia
explosivo quando trabalhou na tal pedreira. Perguntei se enchesse a caçamba de serragem
da carpintaria e, no meio, se colocasse, espalhadas, as bananas de dinamites se assim ele
tinha coragem de levar os cem quilos que ali tinha. Disse que sim. Perguntei se queria que
eu o acompanhasse. Ele deu aquele riso irônico como dizendo: “Tenente, o senhor tá
tratando com um combatente e não com criança”. Era aquilo que Napoleão disse: “é no
combate que a gente diferencia o homem do menino”. Ele não era menino. Pedi que saísse
de madrugada. Passei a noite sem dormir. O cabo era casado e tinha filhos. Nós
precisávamos do explosivo. Por algumas vezes me levantei para ir ao quartel e impedir o
transporte ou eu ir com ele, ou eu dirigir a caçamba. Foi uma noite agoniosa. Mas o
transporte foi tranqüilo. Disse ele que até Ariquemes foi respeitando a carga. Mas depois,
perdeu o respeito e afundou o pé. Bom, tanto no nosso pedido como no “controle de
estoque” havia em torno de cem quilos e eu solicitei os cem quilos. Na verdade tinha era
muito mais: uns trezentos quilos. E essa dinamite velha era a que tinha exsudado. A
conversa para o fornecimento foi dada tipo no grito, embora tivesse o papel de pedido: “é pra
levar tudo”, então foi tudo.
As pedras produzidas foram abençoadas em muitos atoleiros. Sendo um rei e dois
reinos, acabaram-se as fronteiras, isto é, era um tenente e duas residências e, aí, a que
tinha mais recurso apoiava a de menor. A monarquia demorou pouco.
Mas, a reunião, para mim teve outro desdobramento. Havia chegado um tenente
novo, casado e com uma filha de seis meses. Eu passaria a ele a Residência de Vila de
Rondônia. Bom num dia qualquer que não sei nem o dia do mês e nem o da semana,
seguimos para Vila de Rondônia. O tenente, a mulher e a filha na picape da Residência e eu
na picape da minha residência. Demos um baita azar: choveu a noite inteira e no dia
seguinte também. Levamos um dia de viagem. Chegamos e ele foi direto para a casa
funcional. Ela dispunha de um mínimo: cama, fogão, geladeira. A não ser a cara de
assustada da mulher do companheiro, tudo foi tranqüilo. Pequeno lapso foi numa parada no
Jaru, num posto de gasolina, onde a mulher e ele foram preparar uma mamadeira para a
filha e esqueceram a lata de leite em pó. Havia a séria ameaça de a menina passar sem leite
até o outro dia.
No dia seguinte, fizemos uma passagem de comando durante hasteamento da
bandeira (o que se fazia todos os dias) embora sem ser presidido por ninguém. Antes de
sair, fui conferir a viagem com os explosivos, pois ele saíra uns três ou quatro dias na minha
frente. Já havia pedra produzida bastante e transportada para a região de Pimenta Bueno,
onde tínhamos um posto de controle. Assim, eu fiquei com um trecho menor: de 540 km,
passei a ficar com uns trezentos, pois o limite era no Castanhal, uns vinte km de Cacoal.
Nesse Castanhal morava um senhor de nome Andrezinho. Já existira seu pai André,
que fora seringalista por ali. Eles comparam zilhões de hectare de terra, no Castanhal.
Direção a Vilhena tinha a descida, com pedras de lajedo, que formava um senhor atoleiro.
Havia um posto de gasolina com um restaurante. Um pouco antes do posto, e à direita da
BR, para quem ia para Vilhena, ficava a casa do seu André. Com o trecho mais curto pude
estar com ele algumas vezes porque era o limite do meu trecho.
Contou-me ele um caso cômico, depois de passado, mas embaraçoso na época, que
lhe aconteceu. Para o programa de Integração da Amazônia, o governo fazia qualquer
negócio. Assim, para colonização, além dos trabalhos realizados pelo INCRA, o Banco do
Brasil financiava um programa chamado PRO-TERRA. Isso queria dizer que um cidadão
elegia uma terra amazônica, aprovada pelo INCRA, o Banco do Brasil financiava a compra
com cinco anos para pagar e mais cinco de carência, leia-se dez anos. Depois de ter o título
do INCRA, o cidadão voltava ao Banco do Brasil com um projeto agrário qualquer, no caso
do seu André foi plantio de seringueira. Bom, para qualquer que fosse a cultura, o banco
financiava tudo em parcelas: derrubada, primeira parcela; limpeza, segunda; preparação de
solo, terceira; preparação das mudas, outra; plantio, outra. O financiamento de seringueira
era de quinze anos e carência de cinco, portanto... No caso, antes de colocar a muda pronta
no solo, teria que fazer sombra de modo que a seringueira crescesse até os cinco anos nela.
O dito senhor resolveu plantar café. Plantou café de modo que quando colocasse a muda no
solo este já estivesse com três anos e dois metros de altura, pois o solo era bom para café:
o café produzia a primeira colheita rendosa no quarto ano (é sete no Paraná e São Paulo).
Mas com que dinheiro ele plantou o café? Com a economia de dinheiro das parcelas
anteriores, das seringueiras, que foi judiciosamente aplicada naquele plantio. Mas no sétimo
ano, o Seu André foi pagar o financiamento dos quinze anos. O café foi tão produtivo que ele
podia pagar o financiamento todo da seringueira, que poderia ser de até vinte anos, e
quando colhesse a borracha, esta estava livre de dívida. O produto seria realmente só dele.
Bom, pagou. Depois de um mês veio uma auditoria do Banco com um fiscal do Ministério da
Indústria e Comércio. É que tal Ministério é quem financiava plantio de borracha. Café era
recurso do Ministério da Agricultura. Seu André foi processado civilmente por usar recurso
de um ministério em outro. Olha, segundo ele, por pouco não foi parar na cadeia. Absurdo
total: a financiadora era a mesma: a Pátria amada.
O grande atoleiro de Marco Rondon fora obturado. O carregamento de pedras de
mão, ao longo da estrada e em alguns locais de cascalho, e mais uns dois dias de sol, nem
parecia o mesmo lugar. Entretanto, até Cacoal apareciam inúmeros atoleiros pequenos, mas
que o apoio e a solidariedade faziam o tráfego andar.
Mas eu continuava com dificuldade para identificar os lugares. Quando alguém dizia
que tinha atoleiro em tal lugar perto de do igarapé tal eu não tinha o trecho na mente a
posição do local. Eu precisava de uma forma de fotografar tudo na mente. Resolvi fazer um
reconhecimento detalhado. Fui viajando e reconhecendo. Marcava, pelo odômetro da
picape, os locais onde havia as desagradáveis costelas de vaca, falta de valetas laterais,
locais de bueiro, águas na pista, os locais de atoleiros e registrando os pontos de
referencias: fazenda X; serraria Y; Igarapé Z... Coloquei todas essas informações num papel
milimetrado, em escala, e aí eu assinalaria todos os problemas e serviços necessários.
Consegui um perfil que dava volta em quase toda a parede do meu PC (Posto de Comando).
Num determinado dia, fui avisado que o coronel comandante iria visitar meu trecho.
Como de praxe, eu deveria esperá-lo no Castanhal ( no limite de trecho). Saí de madrugada
e quando passei pelo acampamento de Marco Rondon, levei comigo uma motoniveladora
para não atrasar e ultrapassar os atoleiros. Foi um dia de muita chuva. Ele havia dormido em
vila de Rondônia e saiu pela manhã. Bom, havia aberto um enorme atoleiro entre Pimenta e
Cacoal. O trecho estava tumultuado com carros pequenos. Apesar dos cuidados, passaram
por Vilhena alguns carros de passeio. Eles mentiram para o soldado do posto de controle.
Estavam com criança passando mal com malária, outro com uma mulher em estado
histérico, gritando e se escabelando. Tive que puxá-los até certo ponto e recomendar para
que parassem num local até passar a chuva que, pela experiência, demoraria uns três dias.
O local seria Cacoal. Mas quando cheguei a Cacoal, encontrei o tenente de Vila de
Rondônia que veio com o Comandante e tinha a missão de me avisar que nosso
comandante viera até ali e desistira de prosseguir. Fui até Cacoal na tentativa de encontrá-lo
enroscado em algum atoleiro e voltei. Ajudei o pessoal dos carros a chegar à cidade.
Segundo o tenente de Vila de Rondônia, depois do Castanhal, a rodovia estava
escorregadia, mas passando com certa facilidade. Cheguei de volta a Vilhena já bem tarde
da noite porque resolvera parar e conversar com o meu pessoal que ficava mal acampado.
Os locais eram precários, dependendo de favores de moradores ou chacareiros. Embora se
pudesse acampar na faixa de domínio, isso não era feito porque não se tinha um sistema
móvel de acampamento (tipo a Onça que eu vira no Acre). Passei a pensar numa forma de
criar alguma coisa de madeira, ou de alumínio como eram os Baús dos caminhões. Talvez
os “contêineres de hoje” fossem a solução para dormir e barraca para cozinha. Mas não
consegui criar nada. Fui ver melhor as caçambas, os tratores, as motoniveladoras e
carregadeiras. Tudo estava funcionando, mas já davam sinais de fadiga, numa guerra que
estava no meio ainda.
Fiquei sabendo, pelos funcionários mais antigos, oriundos do DNER, que pelo lado de
Barracão Queimado, onde não havia pessoal assentado, isto é, sem moradores ao longo da
estrada, fora tentado deixar os barracões prontos, faltando apenas a cobertura que era feita
de lona. Mas os índios nãmbiquaras ocupavam e acabavam por usar a madeira como lenha
para fogo. Disseram também que os índios eram muito chatos, pois acampavam junto dos
acampamentos com mulheres e filhos, vinte a trinta pessoas, e começavam a pedir comida,
todos os dias. E, em qualquer descuido, com o depósito de gêneros, eles roubavam. Toda e
qualquer viatura ou máquina que se ligasse o motor eles corriam e subiam em cima. O maior
perigo era a motoniveladora. Dava um trabalho danado para retirá-los, pois eles não
obedeciam a ninguém, particularmente o cacique. A melhor forma de fazê-los sair era tentar
achar uma “isca” de fogo, para eles sagrada, que sempre carregava. Segundo os
funcionários, era como uma raiz ou nó de madeira, bem seca, e ali eles conservam uma
brasa acesa. Assim, quando se deslocavam, levavam a isca de fogo para acender seus
fogos, para cozinhar. Quando a isca era escondida (roubada) eles ficavam desesperados,
numa ladainha, em suas línguas e todos, deixavam o que faziam, para procurar o tal fogo.
Assim que achavam, ou era entregue pelo pessoal do BEC, eles iam embora. E assim,
ficavam alguns meses sem o assédio dos índios. Os coitados viviam bêbados por Vilhena
onde traziam arcos e flechas, bons pra caça, mas de baixo valor como artesanato e com o
dinheiro compravam sal, açúcar e cachaça. Moralmente era prostituídos e caminhando para
a extinção. Infelizmente nem nós e nem a FUNAI tinha poder de polícia para prender os que
vendiam cachaça aos índios.
Mas um belo dia, estava eu atualizando meu esboço em escala dos problemas do
trecho, já havia feito levantamento do Castanhal até Barracão Queimado, quando, lá pelas
oito da noite, chegou uma picape com um capitão da Seção Técnica e o tenente de Vila de
Rondônia. O capitão recebera ordem do comandante, que na semana anterior não
conseguira chegar, para fazer um reconhecimento específico do trecho. A missão era: alugar
um taxi-aéreo em Vilhena e fazer um vôo sobre toda a BR no meu trecho. Já chegaram com
a aeronave alugada. O tenente seria o fotógrafo. Fiquei à frente com o piloto e os outros dois
ficaram na fileira do meio. Levantamos vôo e fomos em direção a Barracão Queimado.
Depois, seguimos em direção a Pimenta Bueno. Tive alguma dificuldade em reconhecer o
local, embora o piloto tenha ajudado. Mas, com meu esboço pude identificar os locais.
Minhas informações já estavam desatualizadas depois de três dias. Foram dados vários
rasantes para se fotografar. Assim chegamos até o castanhal. Terminada a
“aerofotogrametria”, começamos a voltar para Vilhena. Passando Cacoal avistamos uma
chuva na altura de Pimenta Bueno. Em Pimenta, a chuva estava intensa. Furando aquela
chuva, o avião balançou um pouco o que foi suficiente para que todos ficassem em silêncio.
Mas atrás daquela chuva tinha outra com uma barragem completamente escura que parecia
uma parede. O piloto disse que poderia pousar em Pimenta e esperar o temporal passar.
Aceitamos a idéia e ele começou a fazer a curva para retornar. E aí o grande susto: a chuva
que caia, agora na cidade era igual à da frente. Enfim, estávamos completamente cercados
por espessas nuvens escuras. Ficamos da dúvida o que fazer inclusive o piloto. Bom a idéia
foi a de seguir para Vilhena e acreditar que a chuva fosse de pequena extensão, isto é
fosse, de uns duzentos ou trezentos metros. O piloto ia entrar bem alto, balizado pela
estrada e com motor a toda potência. O piloto consegue alterar o passo da hélice. É fácil
entender: a hélice, ao encurtar o passo ficará como se fosse rosca fina e, aí tem mais força e
menos velocidade; se alongar o passo da hélice, ela ficará como se fosse de rosca grossa,
aí tem mais velocidade e menos força. Mas o fato é que todos estavam morrendo de medo.
Seguimos em direção ao paredão de chuva. Quando o avião entrou, nós nos perdemos
todos. Ele subiu, desceu, se jogou para os lados e motor ora urrava, ora parecia que ia
morrer e o piloto, desesperado, puxava e girava o manche para manter a subida. Bom,
segundo outros pilotos, a quem contei o fato, disseram que não passou mais que trinta,
quarenta segundos, mas para nós um mais de horas. Quando a nuvem clareou, logo saímos
da chuva e tinha até sol do outro lado. E nós lambendo a copa das árvores. O piloto disse
que em algum momento ficamos de cabeça pra baixo. O engraçado que momentos antes de
entrar na chuva, o capitão passou a segurar um escapulário que tinha no pescoço. Quando
o avião parou de “corcovear”, o capitão tava com o escapulário na mão e não viu. Eu lhe
mostrei e ele se admirou, pois arrancara o escapulário do pescoço e não viu. Outro lance
engraçado foi o do piloto. Assim que ele dominou o avião, voando muito baixo, ele falou
alguma coisa, bem baixo. Depois que tomamos altura, perguntei-lhe o que tinha dito e aí ele
revelou: –“estava rezando por que eu não queria ter o meu décimo acidente com avião. Faz
uns sessenta dias que voltei a voar depois de passar dez dias perdido na mata e ser
resgatado pelos índios cinta-largas”. Disse eu de brincadeira, mas preocupado: – “Caramba,
só agora você diz que já caiu tantas vezes assim?”. Demos, todos, aquela risadinha
amarela, mas o suficiente para espantar o medo e a aflição e voltar a calma. Hoje seria
aliviar o estresse.
Voltamos a Vilhena e retomei minha rotina: de dois em dois dias ia ao trecho mais
complicado: Marco Rondon até Pimenta Bueno. Nada podia fazer: além de poucas
máquinas e viaturas, a chuva era implacável. Chovia dois, três dias sem parar. O terreno
úmido, o volume de tráfego e a má conservação na seca, por falta de recurso financeiro, se
refletia ali. Eu apenas ia dar apoio moral ao meu pessoal.
No trecho, não fiquei satisfeito com a manutenção de óleo e graxa. O elemento de
lubrificação, arrastado pela carretinha, ficava no acampamento e apenas as caçambas eram
bem lubrificadas, com pressão. As carregadeiras e os tratores eram lubrificados com
bombas manuais. A troca de óleo era feita em tambores levados de caçamba. Na sede da
residência vi uma caçamba parada com problemas de sistema hidráulico e era bem velha.
Já não resistia os trabalhos duros de trecho. Aguardava oportunidade para ser
descarregada. E havia uma carreta de lubrificação sem condições de uso porque tinha que
ser arrastada ou por caçamba ou por CBT e, em Conservação Rodoviária, os
deslocamentos são grandes, normais serem de cem quilômetros. Bom, fui com um cabo
muito criativo e chegamos a conclusão que se poderia retirar o equipamento de lubrificação,
da carretinha; retirar a caçamba do chassis e colocar o elemento de lubrificação sobre o
chassi. Ficamos com um comboio em condições de acompanhar as caçambas e os tratores
e motoniveladoras, todas. Dependendo da situação atendia mais de duas equipes de
conserva. O peso era insignificante para o motor. Assim, faziam-se deslocamentos longos e
rápidos. Adiantamos em dez anos o que hoje parece ser óbvio: comboio de lubrificação, hoje
com multiuso, isto é, com varias funções além do de conduzir lubrificantes e graxas. Assim,
no trecho, a caçamba velha voltou a ser útil.
Minha aprendizagem era grande. Na parte técnica, em matéria de conservação
rodoviária encontrei o único volume, no 5º B EC, de um antigo manual do DNER sobre
conservação. Fui descobrir que em tempos passados, quando ali fora uma companhia e,
mesmo como residência, se praticava a conservação em muito boa condição técnica. Com a
presença no trecho e com as constantes conversas com o pessoal descobri que os atoleiros
eram mutáveis. Isso porque, se um trecho dava muito atoleiro, num ano, nos trabalhos de
conservação seguinte, aquele trecho recebia prioridade e era feito um bom trabalho de
revestimento, limpeza de bueiros e reabertura de valetas. Com os recursos financeiros
escassos, outros trechos, com suporte e plataforma desgastados, não recebiam nenhum
melhoramento. Assim, no próximo período de chuva, os atoleiros estariam presentes, ali nos
locais não trabalhados.
Já disse que, em frente à residência, havia um posto de controle de trânsito. Pelas
informações ali coletadas se tinha uma excelente idéia do entrava e do que saia de
Rondônia e Acre. Um dos fatores que logo identifiquei foi a incapacidade de o governo
absorver a quantidade de famílias que entravam na região, para os mais variados destinos e
um grande número sem destino. Incapacidade, não no sentido pejorativo, mas no sentido do
volume de famílias serem maiores que suas possibilidades físicas e financeiras de
assentamento. Clãs, no sentido estrito, inteiras vendiam tudo no centro sul e seguiam em
“paus de arara”, verdadeiramente pau de arara, sem destino, na esperança de ser
contemplado pelo INCRA com um pedaço de terra. Teve mês que entraram mil famílias. O
governo não tinha condições de assentar tanta gente e nem tinha como acolhê-los
adequadamente. As mesmas terras compradas por duas ou três vezes três geravam
conflitos entre os supostos proprietários. E havia também as safadezas. Muitos proprietários
não eram proprietários coisa nenhuma. Então apareciam os espertos dos
“gangsterbusiness”. Os antigos seringais eram vendidos sem mesmo o comprador ir até o
local. Alguns compravam em sobrevôo de monomotores. Muita gente vendeu o que não
tinha ou vendeu mais de dez vezes o que tinha. Havia muita inocência de quem comprava.
Quando tentava tomar posse do que supunha ser seu, havia vários donos. Nesse clima, o
que tinha a posse, apenas, a lei lhe protegia. Mas havia a posse bandida: um contratado no
centro sul, entrava em terras alheia e fazia uma roça de sobrevivência, plantava cultura do
ano e transplantava bananeiras, coqueiros, e outras culturas perenes para ludibriar as
autoridades. A reação era violenta, de ambos os lados. Expulsão com capangas. Outros,
pequenos aventureiros, bem intencionados, compravam de boa fé, lotes de terras do
proprietário; e este, denunciavam como invasão; antes que as autoridades desse ganho de
causa ao de boas intenções, atacava alegando defender o que era seu. Havia o grande
grileiro, aquele que forjava documentos de grandes áreas, seringais particularmente, e os
pequenos grileiros, que entravam nos lotes, dos proprietários, que foram assentados pelo
INCRA. Por incrível que pareça, o judiciário sempre dava ganho de causa à pessoa errada.
Como sempre o judiciário, por não ter que suar para fazer jus ao seu salário a ele não
interessa o “jus”, às vezes, o legal e sempre, a conveniência. Os agrupamentos de
esquerda, sejam ligados a partido políticos ou a organizações internacionais e religiosas
prestavam enormes desserviços. Ao invés de ajudar, atiçavam a grilagem pequena porque,
para eles, as grandes fazendas representavam o maldito capitalismo. Como dito, teve mês
que entrou para mais de mil famílias. O tráfego chegou, ali por maio, para mais de dois mil
veículos por dia. Pela tabela do manual de conservação, que eu tinha, a partir de 200
veículos/dia, numa direção já era para ser asfaltado. A BR era um poeirão só.
Quanto à entrada dos migrantes tem dois lances que merecem ser registrados.
O primeiro caso. Num belo dia assumi um problema, sem querer, pois naquele dia eu
não deveria ter ido ao posto de controle. Lá acabei por me enrolar e juntar, aos meus sem
números problemas, mais os do senhor Capixaba, pois não guardei seu nome. A história
toda, desse caso, conto em outro lugar.
O segundo caso. Um belo dia, fui ao trecho, não sei por que motivo. Na ida,
passamos em determinado lugar e num corte. Na crista do corte havia um tapirí. De longe,
antes de entrar no corte se via a casa. Depois de um certo tempo, voltamos e ao chegar no
dito corte, vi labaredas e a mulher pedido socorro. Paramos a picape, onde eu trazia mais
dois peões nosso e subimos para ajudar a senhora. Tinha uns quatro ou cinco filhos. O mais
velho, de dez ou doze anos ajudava retirar alguma coisa do tapirí. Tiramos malas, máquina
de costura, cama, berços, sacos de roupa, comidas... É que o fogo pegava só na cobertura
de palha e com o vento lambia tudo e ficava só as estacas e os tarecos no meio. Bom,
salvamos quase tudo. Depois do corre-corre, perguntei a ela como tinha acontecido aquilo e
ela disse que foram os capangas, do “senhor não sei das quantas”, que se dizia dono das
terras. Mas ela estava era na faixa de domínio, o que também não podia. Perguntei há que
horas os capangas estiveram ali e ela disse que acabavam de seguir pela linha do INCRA e
que não deveriam ir longe. E eram três. Deixei um peão com ela para ajeitar melhor as
coisas e fomos pela linha tentar achar os camaradas. Mas não andamos um quilômetro e
encontramos dois dele, num igarapé, deitados, descansando. Desci com o revolver na mão
e mandei que todos se deitassem. Tinham facão, espingarda e um revólver trinta e oito.
Quiseram negar, mas amarrei os dois e os coloquei na picape. No local a senhora os
identificou. Ela iria para casa de um vizinho a uns duzentos metros dali até que o marido,
que fora a Ji-paraná, voltar. Levei os “criminosos” para Vilhena e entreguei-os na delegacia,
ao sargento. Ele disse que ia abrir o inquérito, mas que não tinha como ficar com os presos,
por muito tempo, pois não tinha como alimentá-los. Eu pensei que o “muito tempo” fosse
sessenta ou mais dias, até o final do inquérito. Mas o certo é que, uns três dias depois, eu
olhei para a estrada, e no posto de controle vi os dois capangas. Eles queriam falar comigo.
Mandei que entrassem. Eles disseram que foram solto por falta de comida; que não
voltariam mais para a fazenda porque não queriam fazer mais esse tipo de trabalho; que
venderam as armas e que queriam ir para Cuiabá e estava a ali para ver se eu poderia
ajudá-los. Veja só como era nosso delegado: além de soltar os considerados criminosos,
ainda lhes devolveu as armas. Bom, o soldado do posto de controle conseguiu a carona que
eles desejavam. Seguiram rumo a Cuiabá. Se chegaram, não sei.
Todo o território de Rondônia, estava invadido. Mesmo com uma estrada de chão,
distante mil e quinhentos quilômetros de Cuiabá, era um novo eldorado. Imagine o que não
seria se fosse asfaltada a estrada naquele tempo. Bom, assim como entrava os de boa
vontade, os que realmente queriam um trabalho, os limpo e puros, entrava também os
bandidos, os estelionatários, matadores de aluguel e toda forma de personalidade. As
cidades estavam se formando. Ao longo da BR 364, como já dito, os locais tinham nomes
apenas como referencia. E depois que o batalhão abriu a estrada, cada currutela daquela
estava virando cidade. Era um ambiente de filmes norte-americano de conquista do “velho
oeste”. Na verdade também era a conquista do oeste brasileiro. Mas ao invés de cavalos,
diligências, carroções eram tratores velhos, caminhões de toras (toreiro, como chamávamos)
e os tais “jiricos” (jerico é o correto). Mas verdade jerico é uma gíria que designa jumento. O
jirico era uma adaptação de um chassi de veículo médio onde se ajustava um moto diesel
Agrale ou semelhante, diesel ou os à gasolina com os Montgomery, se “enjambrava” um
sistema de transmissão. Para quem não tinha meios de transporte, das linhas do INCRA até
ao comércio local, era uma glória. Como era de pouca carga e ás vezes levava até um
reboque pequeno (carroça, carreta), por isso o nome “jirico”. Hoje, no nortão de Mato
Grosso, que vive o mesmo momento que viveu Rondônia ao longo da BR, há até corrida de
jirico, com campeonato. Na época de estiagem, com a poeira intensa, era um autêntico
velho oeste.
Sobre bandido da época, tenho até uma teoria: os bandidos e matadores de aluguel
que sempre existiram no Brasil de novas fronteiras econômicas, garimpos, ou qualquer
atividade em que caiba aventureiro, ai eles estavam presentes. Eles saíam do nordeste, do
centro oeste e do sul do Brasil e por algum tempo se hospedaram no oeste do Paraná e
Santa Catarina, lá pelas décadas de, trinta, quarenta e cinqüenta do século que passou.
Desses lugares, foram para o sul de Mato Grosso, onde eu fui menino, hoje Mato Grosso do
Sul. E, como menino, vi morte, mortos e matadores. Tanto que havia um ditado
preconceituoso, embora não tanto: “Justiça de Mato Grosso é 44” – calibre de revólver
Smith. Feita a divisão do Estado de Mato Grosso, eles correram para o norte de Mato
Grosso e para Rondônia; a corrente do nortão do Mato Grosso, hoje se acomoda no Pará; a
que subiu para Rondônia, subdividiu entre o Acre, onde não existe outra riqueza, a não ser
extrativas, e nem existia rodovias; e outra parte estão chegando a Rorãima e outros tantos já
entraram pela Venezuela. Mas, quando estava em Rondônia eles estavam chegando. Tudo
era uma enorme terra de ninguém. O Estado se fazia presente apenas pela presença do
Batalhão. Vilhena tinha uma delegacia de polícia cujo delegado, juiz, padre e parteiro era um
terceiro sargento e dois cabos da PM, com uma viatura que era um potente fusca e que
nunca tinha gasolina. Eu lhe fornecia um tanque de fusca quando ele pedia. Infelizmente,
nesses locais, o Exército deveria ter o poder de polícia para, se não fizer justiça, o papel do
judiciário, pelo menos amparar os mais humildes, como um conciliador como faziam os
antigos juízes de paz que nada mais é que justiça. Este cargo, juiz de paz, eleito, foi
suprimido à pedido dos advogados, da OAB, da associação de magistrados e outros
sindicatos filiado à CUT. Mas uma arbitrariedade justa bem conduzida vale mais que mil leis
na mesa de um magistrado que se esconde no legal.
Aconteceu algo folclórico com as nossas papeladas. A sistemática de pedido de
material, para a sede do batalhão, era a seguinte: uma ficha de pedido (modelo quinbec, isto
é, produzido na gráfica do batalhão) com a abreviatura de FRM (ficha de requisição de
material). Aliás, a primeira a ser citada quando se cobrava algum material da sede: – “qual o
número da FRM? Se não soubesse, podia esquecer, a omissão legal estava consumada. A
FRM era feita em quatro vias: três seguiam para a sede e uma no arquivo do pedinte; na
sede, as três eram protocolada ou na Cia Eqp, se fosse de equipamento, no STA, se fosse
de viatura; e no Suprimento, se fosse materiais outros. Essa rotina era dada pelo Fiscal
Administrativo que recebia todos os pedidos dos destacados. Isso era feito, segundo as
normas gerais de ação (NGA), para que o Fiscal ficasse sabendo do pedido e agilizar os
supridores. Bem, mas a remessa dos pedidos era feita por uma parte, isto é, os pedidos
eram anexos a uma parte (burocracia horrível, mas necessária em tempos de máquinas de
escrever mecânica). O cabo encarregado, do almoxarifado de Vilhena, preencheu quatro
pedidos, que teria então quatro vias cada um, com sua assinatura e a assinatura do chefe da
residência e assinatura desse, também na parte. Pois bem, recebi a parte de volta, do fiscal
administrativo, numa brincadeira divertida e sadia. Ao se fazer a parte, bem no início se
colocava quais os anexos seriam conduzidos pelo documento. Mas o cabo pulou a primeira
letra “D” da palavra PEDIDO. Então escreveu: “Anexo: Um PEIDO EM QUATRO VIAS”. O
MAJOR Fiscal não teve dúvidas: escreveu com caneta vermelha: “Isso é impossível!” Não só
colocou zilhões de “I” como zilhões de pontos de exclamação. Na oportunidade que nós nos
encontramos rimos muito do caso.
Numa viagem de retorno a Vilhena, em Ariquemes, parada obrigatória para água e
esticar as pernas, o dono do bar cedeu de sua criação, um casal de garnisé. Garnisé ou
garnizé é um galináceo de porte muito pequeno, pertencente a diversas raças, cujos
primeiros casais trazidos para o Brasil vieram da ilha Guernsey, na Grã-Bretanha disse o
Google. Assim, em casa se tinha uma coisa a mais para se preocupar. Logo poderia ter a
turma aumentada.
Em Vilhena, depois de me desentender com algumas pessoas locais, com
antecedentes não muito louváveis, para ir ao cinema, que era todo de tábua e cadeiras de
madeira com palhinha, eu me sentava nas fileiras do meio e o motorista com um revólver na
cintura sentava-se no final. Eu, claro, com meu revólver.
Um dos desentendimentos foi com um proprietário de loja de material de construção.
Não sei era apelido ou tratamento pejorativo: chamavam-lhe Turco. Ele simplesmente não
pagava os fretes dos caminhoneiros. Depois que os coitados descarregavam a mercadoria,
seus empregados diziam que ele não estava em casa. Era uma casa enorme, bonita bem no
fundo do terreno. O infeliz batia palmas, o dia inteiro, e ele não atendia. Depois de dois ou
três dias de canseira, ele mandava entrar e oferecia pagar a metade ou um terço do valor.
Se o motorista não aceitasse, ele expulsava atiçando dois enormes cachorros. Eu, como não
confiava em ninguém, no começo achei que fosse desonestidade dos motoristas. Mas, o
radiotelegrafista, que era da cidade, tinha um amigo e funcionário do tal turco e o funcionário
contou a ele tal procedimento. O próximo motorista que veio se queixar, telefonei a ele e
disse que precisava falar com ele no quartel. Ele tentou se esquivar, disse que não tinha
carro. Disse que se preparasse, porque mandava uma viatura minha apanhá-lo. E na picape
foi um sargento e dois cabos na carroceria e armados. Veio com uma cara de coitadinho. Fui
logo na grossura, perguntando se ele queria voltar para casa. Respondeu que sim, ao que
repliquei isso só seria possível depois de resolver os problemas de dívida dele para com o
caminhoneiro. O diabo do caminhoneiro não tinha dinheiro nem para voltar, pois não poderia
comprar combustível. Veio confiando no frete e depois pegar algum frete de madeira de
retorno, cujo frete era barato. O camarada se assustou, pois nem respondi o bom dia. Disse
a ele que era mato-grossense e ameaças de bandido não me faziam medo. Costumava
despachar antes qualquer um que tentasse me ameaçar. Ele disse que não tinha vindo
preparado e que teria que ir até a loja pegar um cheque. Havia uma agencia do BASA, como
em todos os lugares da Amazônia. Dei o telefone a ele e disse que mandasse seus
funcionários mandar o talão de cheque do BASA pelo meu motorista e que ele se
encontrava conversando comigo no BEC, como eles falavam. Preencheu o cheque cujo
valor não lembro e entregou ao motorista. Mandei meu motorista e o caminhoneiro ao banco
trocar o cheque e o motorista tinha uma hora de diferença para sumir. Demoraram um tempo
e depois completei a uma hora conversando com o turco. No final, já estávamos amistosos.
Disse a ele que fazia aquilo constrangido, mas isso não poderia mais se repetir, pois se
acontecesse, íamos ficar inimigos. Devolvi o distinto à sua loja. Bom, a partir daí eu não fui
mais sozinho à corrutela.
O segundo desentendimento foi com um pessoal de Cuiabá e esteve enrolado o meu
telegrafista. Esse pessoal lotava uma “cegonha” (carreta de transporte de carros) de carro
usado e vinha, pela BR, vendendo tais carros Rondônia a dentro. Tudo era facilitado,
negociado, preço muito bom, financiamento próprio... O telegrafista embarcou na proposta.
O pagamento seria feito por pessoas credenciadas da empresa todo final de mês. Não
haveria pagamento em banco. Pelo contrato, se duas parcelas deixasse de ser paga o
contrato estava rompido e o veículo devolvido e as parcelas pagas não seria devolvidas. Em
geral eram dez parcelas. Pois bem, as cinco primeiras parcelas vinham o distinto
“credenciado” receber. A sexta e sétima, eles não vinham receber. Na oitava ou nona já
vinha um outro camarada com a mesma cegonha e com um distinto que se dizia da Polícia
Federal. Eles não conversavam: pediam a chave do carro, embarcava na cegonha e não
dava nenhum documento. Se quisesse reclamar que fosse a Cuiabá. E, se o freguês se
assustasse, eles ainda queriam cobrar o transporte até Cuiabá. O telegrafista, depois do
almoço, veio me procurar, branco de medo, porque os camaradas estiveram em sua casa,
antes dele voltar do serviço e ameaçaram com palavras a mulher dele. Mal soube do caso
em casa, foi direto para o quartel e me contou o caso. Voltou em casa e deixou o recado
com sua mulher para ele ser procurado no quartel, pois tinha o dinheiro para pagar os
atrasados embora não houvesse tal atraso. Lá pelas três da tarde, apareceram os três
pilantras: o da empresa, o dito polícia federal e o motorista. Deixei que eles falassem
bastante, arrotassem leis, contratos e honestidade da empresa e tudo o mais. Eles estavam
entrando, na BR, e iam até Ariquemes. Malandramente, não chegavam a Porto Velho.
Inesperadamente, dei um murro na mesa e perguntei se eles me achavam com cara de
idiota. Disse que eles estavam assaltando em Rondônia e por isso seriam todos presos.
Chamei bem alto o sargento da administração e pedi que fosse buscar o sargento delegado
porque tinha três prisões em flagrante. O sargento, sabendo, foi, mas não foi. Aguardou um
novo chamado. Mandei que eles esperassem na sala ao lado e deixei um cabo, um gaucho
grandão, com uma pistola, parado na frente da porta, olhando para eles. O motorista deles
resolveu abrir o bico e disse que “não tinha nada com isso, era pai de família” e as lorotas de
malandro. O da polícia federal disse que “não precisava daquilo e que ele estava de licença
e fora ali só para ajudar o conhecido e ganhar uns trocos, pois eles carregavam dinheiro”. O
representante da empresa disse que “estava havendo engano e que precisava ir até Cuiabá
se certificar de tudo e que depois voltaria a Vilhena para me esclarecer o mal entendido”.
Como o sargento delegado estava demorando, e nunca viria, eu resolvi soltá-los, mesmo
porque já era cinco da tarde. Disse que eles fossem embora e não voltasse com essa
embromação e roubalheira, em Vilhena. Se soubesse que a empresa estava na área, eu iria
prende-los e manda-los para Porto Velho. Não queria mais ver nenhum deles em Rondônia.
O Motorista quase se ajoelha de agradecido. O da polícia federal deixou até endereço dele
em Cuiabá, para eu passar por lá, e o da empresa pediu milhões de desculpa. Deram azar.
Na pasta deles tinha os carnês do telegrafista. Eles ficavam com o carnê e, ao invés do
devedor ficar com o canhoto, eram eles que ficavam. Mandei que quitassem todo o carnê do
telegrafista, mas que ele pagasse as três prestações atrasadas. Eles foram embora direto.
Saindo da residência, pegaram para a direita e se foram rumo a Cuiabá. O telegrafista ficou
com o carro, mas sem documento, como muitos que existiam por lá. A dita venda era de
carros roubados. Era uma terra de sem-lei mesmo. Eu fazia minhas arbitrariedades, mas
eram justas e moral. Soube depois que em Pimenta Bueno, pelo menos, duas pessoas mais
ficaram com carro sem pagar.
Um dia qualquer, aí já seria mês de maio, foi marcada uma reunião em Porto Velho.
Seria para estabelecer os planos de trabalho para o ano (1975). Recebi uma ordem para
reunir as populações de Pimenta Bueno e Cacoal, que morassem ou tivesse alguma
construção na faixa de domínio. A faixa de domínio é terra da união, não usucapiável,
necessária para manutenção e ou ampliação da rodovia. Fizemos uns panfletos e os
distribuímos, uma semana antes, para os interessados. Por determinação do DNER, tais
locais deveriam estar desimpedidos porque seriam necessários para os trabalhos de
asfaltamento. Como sempre, alguns inocentes e outros inocentes mal intencionados haviam
comprado, de espertos, áreas da faixa de domínio. Em Pimenta, no cinema, o
comparecimento foi grande. Tinha até um padre como defensor dos pobres e dos oprimidos.
Logo de chegada, veio o padre com seu discurso de revolucionário estalinista e tive que usar
minha “finesse” terenense. Dizia o padre que os que ali se estabeleceram, mereceriam
indenizações. Disse ao pessoal que a coisa era real, haveria o asfaltamento e que quem
estivesse na faixa de domínio estava errado. Portanto, até que se iniciasse o asfaltamento,
cujo inicio eu não sabia, mas que, dada a preocupação, eu tinha idéia de ser para alguns
anos seguintes. Daí o aviso com antecedência para que se reordenassem. Em Cacoal, o
povo não acreditou no assunto e só umas dez ou doze pessoas estiveram no local, para
saber da novidade. Como era coisa para o futuro, não deram muita bola pra coisa. Não tinha
padre nos aconselhamentos.
Na reunião do Plano de Trabalho fiquei sabendo da novidade mais recente. Eu seria
transferido de Vilhena para Porto Velho. Seria o comandante da Cia Eqp, na abreviatura
militar ou Companhia de Equipamento de Engenharia, por extenso, que a muito não tinha
um comandante oriundo da AMAN. Havia algum atraso na recuperação das máquinas. Na
verdade eu nada poderia melhorar, pois tudo já havia sido comprado, solicitado, orçado e o
pessoal distribuído. Haveria mais trabalho que capacidade de resolver. Fiquei chateado
porque eu havia feito meu planejamento e tinha, com a seção técnica, estabelecido o que eu
atacaria primeiro com meu pessoal e com o material que dispunha. Todo o meu trecho eu já
conhecia bem e sabia onde atacar, tanto nos locais de atoleiro quanto nos locais que
futuramente iria ter atoleiro. Nos locais de atoleiros, ficaram os enormes buracos, agora já
secos. Nos locais onde já tínhamos começado a patrolagem (regularização do leito é o nome
correto) ficava um poeirão danado. Era nuvem que, se não tivesse vento, obrigava a se
acender farol. Particularmente nos locais onde a vegetação tinha avançado para a estrada,
por falta de roçada lateral, da estrada. Ficava um túnel por onde não se enxergavam além
da lataria da sua própria viatura. Então teria que se fazer um trabalho vigoroso para, pelo
menos uns três anos, ele suportar. Mais experiente, já notava que havia erros de técnica de
patrolagem e de lançamento de revestimento. Não tecerei comentários de como deveria ser
realizado porque ficaria monótono. Mas há muito tempo que se trabalhava errado. Pela
gama de problemas eu não conseguiria atacar tudo, teria que ser seletivo. Os indícios de
problemas futuros estavam perfeitamente identificáveis. Mas eu tinha que passar o trecho
para um tenente da turma de 72 que também vinha com mulher e duas filhas. Como tinha
que aprender tudo, apenas mostrei a ele o que eu fizera e que de nada adiantaria eu correr
estrada juntos. Bom, um certo dia, estava eu novamente de volta a Porto Velho. Há uma
teoria da relação sado-masoquista entre o torturador e o torturado, entre o maltratado e o
maltratador. Eu estava a sentir saudade daquela tortura psicológica, da pressão, do viver
intensamente as dificuldades. E, também, de botar o cérebro a buscar soluções onde tudo
parecia impossível. Eu saí com saudades de Vilhena e do trecho. Nunca mais voltei como
estradeiro. Passei, por ele, de carro e de ônibus. Ao passar pela BR, silencioso, o cérebro
desarquivou as lembranças e senti meu coração palpitar forte como se o tempo
retrocedesse. Cada bueiro reconhecido era uma lembrança. Cada casa antiga, bares, posto
de gasolina era uma satisfação de como se ali estivesse encontrando um amigo, um
conhecido. Nisso, eu me comporto como criança: parece que fora tudo acontecido no dia
anterior.
Ia eu para Porto Velho de mudança. Na verdade nada tinha de mudança: apenas as
roupas do corpo, meu velho caixote e algumas besteiras. Ficou com um sargento o casal de
garnisé. O material mais pesado ficou para ir de caminhão. A ida foi de carona num avião da
FAB – um Douglas. Ele já vinha de Cuiabá. A ida, pela BR seria sofrida. O destino seria
Porto Velho com uma escala em Vila de Rondônia. Estava superlotado. Os assentos eram
aqueles de combate: uma maca com uma tela de nylon. Sentados lado a lado, o avião
decolou. Como chovia, pulava o tempo todo. Logo uma criança vomitou no colo de uma
mocinha, que vomitou em cima de mim (eu fardado). A minha mulher vendo aquilo vomitou
também; como não tinha onde, vomitou em cima de mim. Assim fui até Vila de Rondônia
onde me levantei e fui me recompor, em partes. O mau cheiro foi até Porto Velho. Assim que
saímos de Vila de Rondônia, a chuva ficou mais intensa. Nas emendas da fuselagem,
arrebitadas, passava a água da chuva e respingava em todos. Um senhor abriu um guarda-
chuva e, de pé, livravam alguns dos pingos diretos. Até parece “causo de pescador”.
Inicialmente a opção de morar foi um hotel. Depois de um mês foi o de alugar uma
casa pequena, na Avenida Campos Sales, de madeira, sobre palafita, quase dentro de um
igarapé (o da Baixa da União), perto da Cia Equipamento e do Batalhão.
Tudo era diferente: local de trabalhar, forma de trabalhar, e o pessoal bem
heterogêneo. Agora vou perder um pouco de tempo, mas tentar localizar e definir melhor as
instalações. Bom, já foi dito que, ao chegar a Porto Velho o batalhão assumiu os “restos
mortais” da Estrada de Ferro Madeira Mamoré - EFMM. Em tratado complementar, o Brasil
retiraria a estrada de ferro, mas cumpriria o tratado de Petrópolis com a construção de uma
rodovia que ligaria Guajará-mirim à Porto Velho. Mas, ao ligar Porto Velho à Rio Branco,
ligaria Guayará-Mirim à Cobijas, cidades bolivianas por território brasileiro. Para a Bolívia era
um achado, pois pelo território boliviano, eles têm uma estrada de solo natural e só passam
alguns meses por ano (liga Gayará-Mirim/Riberalta/Cobijas). Segundo me contaram, a
ferrovia funcionou até um ano depois da chegada do batalhão. As instalações da EFMM era
junto ao Rio Madeira. O bairro era o Mocambo. O porto era o Porto do Cai N’água, também
porto popular que recebia os pescadores e ribeirinhos que vinham trazer seus produtos. As
vilas de casas também recebiam o nome de Cai N’água. As locomotivas, pelas fotografias,
chegaram de navio e foram descarregadas ali. Coisa hercúlea – eram feitas estivas de
dormentes e eram lançados trilhos desde dentro do navio até a terra e por eles se desciam
as locomotivas e vagões.
Havia vários pavilhões: três de manutenção de locomotiva; um da administração e
dois enormes que eram galpões armazéns de mercadorias que saía e outro da que chegava.
Entre o primeiro e o segundo havia uma instalação pequena, de uns trinta metros quadrados
que já funcionava um museu de responsabilidade não definida.
Todas estas instalações passaram ao 5º BEC. Havia zilhões de outras construções
ligadas à estrada de ferro. Vilas inteiras. Bom, logo que passava o portão, à direita ficava o
pavilhão das oficinas. Neste, à esquerda da entrada, era a fundição. Foi ali que conheci o
chamado carvão mineral. O que havia era sobra ainda das antigas atividades. Ali, se
fundiam quaisquer peças dos vagões, no início. Da roda até á pequenas arruelas. Havia um
cadinho e um sistema de ventilação para acelerar a fundição. Á direita da entrada ficava o
que nós, 5º BEC, estabelecemos para oficina de motoescreiper e carregadeira de rodas. Na
verdade eram mais dois pavilhões: um emendado no outro, com diferenças na altura do
telhado e na direção geral norte-sul. Logo em seguida eram as seções de tornos. Havia
torno moderno, pequeno adquirido pelo batalhão. Mas havia os enormes tornos, fresas e
plainas de vários tamanhos que foram usadas pela estrada de ferro. Tinha um torno que
cabia um chassi de vagão completo. E todos os operadores dessas ferramentas estavam
por ali. Em se precisando, estavam aptos a empregá-los. À esquerda, já montado pelo BEC,
era o local de montagem de componentes nobres tipo motor, turbinas, bombas injetoras...
Ao lado, uma enorme forja com uns dois metros de diâmetros, com enormes bigornas, e
tenazes onde ficava a ferraria. A forja era alimentada por ar vindo de uma enorme ventoinha
(parecida com um exaustor) e não pelo velho fole medieval. Num segundo andar e quase
sobre os tornos ficava a seção de moldes. Todas as peças tinham um molde de madeira.
Essas madeiras davam o molde numa caixa de areia especial, úmida, e onde se lançava o
aço líquido do cadinho. Depois de resfriada as peças eram usinadas nos diversos
equipamentos. Eu nunca tinha visto uma madeira tão leve como aqueles moldes. Embora
tivesse a densidade de rolha, não era rolha. A madeira tinha veios lenhosos no
comprimento. Uma pena que já estava todos pares desacertados. Algumas vezes tentamos
arrumar. Continuando, tinha a seção de tratores de esteira e mais ao final a seção de
esteiras. Nessa seção, os antigos ferroviários tinham uma velha mágoa. Ali estava um
mecanismo de nenhuma utilidade para o batalhão, mas que fora útil à estrada de ferro,
apenas: era o “giradouro de locomotiva” que tinha o nome de ROTUNDA. A locomotiva
entrava no mecanismo, redondo, que girava sobre roldanas e à braço. O equilíbrio era
perfeito e assim se virava a frente das locomotivas ou até vagão, se preciso fosse. O
pessoal do batalhão havia enterrado o mecanismo e por sobre o cascalho se trabalhava com
as esteiras. Mas eles tinham um saudosismo com aquilo quase doentio. Havia também uma
seção de solda cujo “mestre solador” desfrutava de enorme prestígio na cidade.
Descendente dos construtores, era um negro grande, forte, muito educado, de descendência
do caribe. Era professor de soldagem no SENAI local. E foi meu professor de solda. Não
aprendi a soldar, a executar a mão de obra, mas aprendi a serventia de cada tipo de solda
elétrica, quais as amperagens a utilizar, diâmetros e durezas de eletrodos bem como as
técnicas de soldagem com alumínio, ferro fundido e antimônio. Até a soldagem com oxi-
acetileno, aprendi. Depois do estágio com ele, quase diariamente, até hoje sei dar “pitaco”
nas soldas alheias. Mais para a margem do rio ficava a administração. O interessante aos
curiosos são as organizações administrativas num BEC. Tinha um funcionário civil,
funcionário da estrada de ferro, que exercia a função que é inerente a um primeiro sargento,
na estrutura normal de companhia operacional. Exercia a função de “sargenteante” (gerente
controlador de pessoal), função de elevado prestígio. Olha, nunca um funcionário ou um
militar ficou sem receber, sem tirar férias e sem se apresentar por término de dispensa, por
algum motivo. Ele mesmo, ao telefone, dizia: “civil-ante, às suas ordens!”. Era um excelente
amigo e companheiro de trabalho. Da entrada do portão até ao pavilhão de comando (de
administração), perto da margem, havia uma construção de mais ou menos sessenta metros
quadrados que era a oficina de tratores agrícolas e rolos compactadores. O mestre
mecânico era também funcionário da estrada de ferro. Havia dois enormes pavilhões
também na margem com dois andares. O primeiro foi usado para o almoxarifado de peças
de equipamento. Olha, era uma monstruosidade não só em número de peças, mas também
em valor. Era uma constante dor de cabeça. O segundo, subutilizado, era depósito de
material que algumas vezes teria que ir par Manaus ou era alugado a terceiros (Armazém de
porto).
O Rio Madeira, por uns quatro a cinco quilômetros desce no sentido norte-sul quando
passa por Porto Velho. A um quilômetro da Companhia, a montante, o rio fazia uma curva
muito fechada com muitas pedras. No período de chuvas, ele enchia e alagava a companhia
também. Segundo os moradores, eram nos anos pares. Mas diferente era, quando cheio, a
quantidade de árvores que desciam. Não sei vinham da Bolívia ou eram brasileiras. O rio
Madeira é formado: pela junção do rio Madre de Dios (reforçado pelo Beni) com o rio
Mamoré (reforçado pelo Guaporé). Os dois anteriores correm em território boliviano e vem
das encostas dos Andes. O Mamoré, boliviano, recebe o rio Guaporé que nasce no Planalto
Central Brasileiro. Com o nome Rio Madeira, desde a junção, após percorrer cerca de 400
km, desce até a cota dos rios amazônicos. Nesta diferença de nível encontram-se grandes
obstáculos: saltos, corredeiras e cachoeiras, que impedem a navegação fluvial. O pitoresco,
na Companhia, é que às vezes se olhava para a curva e disparavam duas, três enormes
árvores, como num partidor de carreira de cavalos. E aí elas disputavam a corrida pelo
talvegue do rio. Algumas davam a sensação que iriam entupir o rio.
Como nós chegávamos cedo, víamos também os pescadores retirando seus peixes.
Eram enormes tambaquis de dez, quinze quilos. Hoje, nem para remédio e depois da
hidroelétrica, só em fotografia. Aos sábados, o militar de serviço ficava com a incumbência
de, antes de passar o serviço, ir até a margem, com o ferreiro, escolher um peixe, comprar
tempero verde (feira do Cai N’água), limpar o peixe na margem e, com escama e tudo,
colocar, em fogo leve, no fogo da forja com carvão vegetal. De vez em quando, alguém
passava por lá de dava duas ou três voltas na ventoinha e acelerava o fogo. Ao meio dia,
quando terminava o trabalho, todos caiam de pau no peixe, quase se desmanchando de
cozido. Só participava do ágape, claro, depois de pagar a cota.
Para quem foi criado no meio rural; servido, até então, fora das salas, tendo como
limite apenas o horizonte, levei um tempo para me aclimatar a trabalhar em pavilhões. A
coisa, na companhia estava funcionando, na pratica uma maravilha. Mas os controles era
uma lástima. Tudo estava na cabeça do amigo que me antecederam. Uma coisa funcionava
muito: era o controle de ferramentas e o controle de peças. Mas o controle era muito bom
até sair do almoxarifado. Os diagnósticos das maquinas não existiam. Os operadores,
quando deixavam as maquinas nunca informava os defeitos que ele notou. As inspeções
eram apenas visuais. Não havia uma ficha, um roteiro para as inspeções. Assim, as
máquinas chegavam para recuperação teria que se desmontar completamente e ou os
mecânicos tentavam adivinhar o que as máquinas tinham. Era como se um paciente surdo e
mudo chegasse para consulta. O médico pouco poderia fazer por não conseguir dialogar
com o paciente (anamnése). Não havia uma “Ordem de Serviço” para cada equipamento ou
conjunto a recuperar. Assim, ao apropriar o material aplicado em geral ficava por conta da
memória dos mecânicos. Na verdade havia dois ou três feudos onde o pessoal se sentia
mais importante que os outros. Era espírito de corpo dentro espírito de corpo que havia na
companhia. Toda a companhia tinha elevado espírito de corpo e a convicção que sem ela,
sem os mecânicos, nada no batalhão funcionaria. Alguém que falasse mal da companhia, no
trecho, rapidamente chegava o comentário, apimentado com o gosto e tamanho de tantos
quantos fossem os transmissores do comentário. Devagar, começamos a chegar onde eu
pretendia. Explorava exatamente esse orgulho e o alimentava, mas exigia melhoria, novas
práticas, novos cuidados. As oficinas eram muito sujas. Os mecânicos, todos sebosos
embora o batalhão fornecesse macacões. Eu mesmo saia da oficina todo sujo de graxa.
Havia no batalhão a síndrome de banquete: gastava-se com o banquete, mas queria
economizar no palito. Muito me ajudava o sargento do almoxarifado. Ele tinha tempo de
mecânica e oficina o que eu tinha de idade. Aprendia cada dia mais. Passei a visitar as
oficinas da SITREQ (não sei se era assim a grafia ou com “C”) representante Caterpillar
local, na época. Infelizmente, as oficinas de veículos de representantes eram pior que as
nossas. Ali sim tudo era improvisado, mais que a gente, tipo velho oeste, mesmo. À medida
que eu aprendia, anotava para propor melhoria. Assim, em dois meses eu já entendia bem
do mecanismo que estava funcionando e o ideal de como deveria funcionar. O “que fazer”,
tinha muito. O “como fazer” precisaria de tempo e algum dinheiro.
Tive alguma dificuldade com o pessoal. A regra era a seguinte: no dito inverno, que é
verão, mas chove muito, todos os mecânicos vinham para Porto Velho e para a Cia Eqp.
Alguns, muito poucos, ficavam nas companhias de implantação para as máquinas que
exigiam pequenos reparos e os das companhias e residências de conserva. Geralmente
eram mecânicos contratados pela CLT. Esses não tinham muito amor pela instituição.
Trabalhavam pelo dinheiro. Não “vestiam a camisa”. Com esses, se tinha que ter muita
atenção não só no aspecto honestidade, mas também pela qualidade do trabalho. Ora, uma
peça mal colocada poderia provocar um estrago enorme. Assim, se tentava segurar os
melhores, que apareciam, no ano, mantendo-os empregados, para os trabalhos do ano
futuro.
Outro problema sério era a baixa capacidade técnica do pessoal mesmo os ditos
mestres. Todo o equipamento pesado era da marca Caterpillar. A padronização, para uma
empresa é ótimo. Para o Exército, como adestramento, é péssimo porque, no combate, usa-
se o que tem. Eu sempre defendi a diversificação. O material Caterpillar tinha seus manuais,
na grande maioria, em inglês. Particularmente os de manutenção: torque de aperto,
resistência de parafuso, folgas, calibragens e outros. Ora, o nosso pessoal era pouco mais
que alfabetizado. Acabava por decorar os números, apenas. Havia o mau costume do
trecho. Lá a improvisação, o “gatilho”, era uma necessidade e o mecânico sempre procurava
“dar o seu jeito” com era a linguagem de trecho. Mas numa oficina de recuperação, a coisa
tinha que sair o melhor possível. Se saísse muito bom, menores seriam os trabalhos no
campo. Mas a mentalidade de gatilho sempre aflorava. Havia também as vedetes. Na oficina
de “montagem de conjuntos” encontrei dois mestres intocáveis e grandes “madonas”. Ao
contrário do velho Kid que procurava ensinar, e com isso ele trabalhava menos. Os dois na
da “montagem” eram o contrário: não ensinavam nada. Queriam auxiliares como auxiliares,
mesmo: lavar peças, pegar ferramentas, limpar bancadas, faxinar o ambiente e nada mais.
As leituras das tabelas, dos números, nem pensar. Guardavam os catálogos à sete chaves.
Lembro que de em Feijó tive que pedir um torque de aperto de um parafuso de comando
final para o senhor responsável porque só ele tinha o catálogo. É brincadeira? Como se o
catálogo do batalhão fosse dele.
Bom, tínhamos dois intocáveis: um espanhol, que era o maior entendido de caixa de
marcha, do sistema “Power Shift” (não sei bem se é essa a grafia correta) que nada mais é
que caixa de marcha automática ou sistema de transmissão Power Shift; outro, um japonês
de uns cinquenta anos mais ou menos, especialista em motores e turbina de motores. Era
tão apavonado que o Criador pediu permissão a ele para descansar no sétimo dia. Como
sempre tenho sorte, o espanhol se desentendeu com o japonês e pediu demissão. Disse
que estava cansado do trabalho e ia se mudar para o interior de São Paulo, onde residiam
filhos ou parentes. O japonês se disse envergonhado pelo desentendimento, seis meses
depois de eu assumir, também pediu demissão. Bom, para suprir as deficiências, nada como
terceirizar por seis meses e colocar alguns cabos velhos para aprender. Em menos de um
ano o espanhol e o japonês não eram mais lembrados. No início, alguns oficiais do batalhão,
particularmente os mais antigos da seção técnica, achavam que o batalhão teria um enorme
prejuízo, pois os funcionários eram insubstituíveis e que talvez eu não tivesse tido
sensibilidade para tratá-los bem. Bom, não os tratei como beldades, mas como funcionários
normais. Logo consegui, com a Caterpillar Brasil, São Paulo, um manual de manutenção do
motor, em português, exatamente o que o japonês usava e escondia, que era em inglês,
mas mais atualizado com motores de séries mais novas. Descobrimos que ele estava dando
apertos e folgas em motores mais modernos com medidas de motores mais velhos. Ele ficou
meio cabreiro comigo, ou ressentido porque eu mandei copiar o tal manual e distribuir aos
mestres mecânicos do trecho que abriam motores por lá. Como disse antes, na
representação da Caterpillar de Porto Velho descobri um índio de Aquidauana, engenheiro
mecânico. Consegui também toda a literatura sobre transmissão Power Shift. Assim, a
grande “caixa preta” da Cia Eqp tinha se quebrado.
Mas o maior problema mesmo foi com os antigos funcionários da Estrada de Ferro. A
grande maioria tinha quase trinta anos de serviço. Já estavam de idade e desmotivados.
Tudo o que faziam fora parado. Viviam em fazer faxina em suas antigas seções como se
velasse um cadáver ou zelassem por um túmulo. Eram mal-humorados e respondões.
Dificilmente se conseguia uma cooperação para ajudar em outra atividade. Os que ainda
trabalhavam com muita vontade eram os torneiros. Esses, só não faziam “parar de chover”.
Eram de extrema habilidade e criatividade. Mas outros... só estavam ali para completar o
tempo. Como funcionários públicos federais, as punições eram inócuas. Bom, eu consegui
alguma cooperação particularmente depois que eu pedi que eles me ensinassem o que
faziam. Desde a fundição até a tornearia, passando pela soldagem... no papo aprendi tudo,
na prática... nem tanto. Assim, eu perguntava se alguém estava a fim de me ajudar e,
voluntariamente, ajudavam. É que outros chefes que tiveram, pensando que eles fossem
inúteis, tentaram obrigá-los a fazer trabalhos de mão de obra não especializada. Trabalho de
TB, como os “trabalhadores braçais” eram contratados e assim registrados na Carteira de
Trabalho e assim chamados, jocosamente ou fraternalmente, pelos outros contratados. Para
tal trabalho eles simplesmente diziam que não iam.
Na Cia Eqp, conheci uma figura que era o mestre em eletricidade de viaturas e
equipamento. Em particular geradores, nas máquinas mais velhas e em alternador nas mais
novas. Eu sempre que percorria as oficinas, parava para conversar com ele. Estava sempre
reclamando do pessoal do trecho que não economizava os componentes de equipamentos.
A reclamação era porque, quando se dá uma partida em uma máquina grande, como trator
de esteira, a amperagem é elevada, acima de cem ampères. Assim, cada partida é um
enorme curto circuito na bateria, no motor de partida e, dependendo da inabilidade do
operador, do alternador. Então, é melhor deixar a máquina funcionando, por meia hora, que
desligá-la. Ao danificar a bateria, era preciso usar a bateria de uma segunda máquina, com a
bateria da mesma amperagem, para dar partida na primeira. Esse processo era o de usar
um cabo bem grosso (o melhor era cabo de máquina de solda, pois tinha comprimento e
diâmetro para agüentar a carga) que se ligava no borne positivo de uma e de outra. O
contato “terra” (pólo negativo) era feito por contato dos chassis ou das latarias. O processo é
conhecido, entre mecânicos de qualquer natureza, de “chupeta”. Bom, isso, era um contra
fluxo de energia nos alternadores e queimava uma placa de diodo, placa que fazia a
retificação de energia alternada, do alternador, para corrente contínua, da bateria. Assim,
todos os dias tinham alternadores para serem consertados e ou trocar as placas.
O mestre era um homem inteligente e criativo, mas não tinha os fundamentos teóricos
da eletricidade que só se adquire com o curso técnico numa universidade. Mas ele me
alugava de vez em quando para eu lhe explicar alguma coisa teórica. O sonho dele era fazer
uma máquina moto-contínuo (ou moto-perpétuo), o sonho de todos os homens das hostes
dos eletricistas, contrariando as leis da termodinâmica. Ele achava que um alternador de
máquina, funcionando, alimentaria uma bateria, da mesma máquina, que alimentaria um
motor elétrico, de corrente contínua, que giraria o alternador e, assim, tudo funcionaria sem
parar até que as peças se desgastassem no trabalho. Era difícil fazê-lo entender as diversas
perdas de energia pelo calor, pelo atrito das buchas e rolamentos. Ele chegou a montar o
sistema, mas a experiência terminou quando acabou a carga da bateria, depois de alguns
dias.
Era também responsabilidade desse mestre, a seção de baterias. O batalhão formou
uma equipe de eletricistas especializados em bateria, com estágio em São Paulo. Mas, a
falta de cuidado, no trecho, com as bateria, era realmente algo de alarmar. É que, a ânsia de
fazer o tempo render, ou melhor, de não perder tempo, as limpezas de bornes e reapertos
dos cabos não eram feitos. Como eram motores muito pesados e os conjuntos todos
trabalhando com vinte e quatro voltes, era fácil derreter os bornes e ou fazer a bateria entrar
em curto-circuito interno. Olha, antes, durante e depois dos planos de trabalho a seção de
bateria trabalhava. Resolvi comprar a briga para a gente diminuir tal desmazelo.
Apenas para registrar, no trecho se refazia bornes. Alguns eletricista de campo,
quando na Cia Eqp, pediram aos torneiros que fizessem, de bronze, os moldes dos diversos
tamanhos de bornes. Bom, a bateria tinha carga, mas com a chupeta mal feita, o borne
derretia. Com o “carvão das pilhas de lanterna”, numa tenaz de soldador, e com cabo com
um terminal colocado no outro borne, fazia-se um arco voltaico tão intenso que derretia o
chumbo local. Então era só cortar o borne derretido para aproveitar o que sobrou, colocar o
molde, tapar as frestas com argila, segurar com alicate, colocar os pedaços de chumbo, que
se devia ter de reserva, e com o arco voltaico derreter o chumbo que ficava líquido, se assim
o quisesse, e esperar esfriar ou, como se fazia, derramar água em cima. Mas se não tivesse
o molde de bronze, com uma argila sovada, se tirava o molde de um borne de outra bateria.
Fazia-se a abertura no topo, ajustava a argila ainda molhada no local onde seria fundido o
novo borne; com o carvão da pilha (na verdade uma haste de carbono puro) se fazia o
chumbo tornar liquido e se moldar em borne. O maior mistério da coisa: não aprofundar
muito a haste de carbono porque se ultrapasse o limite inferior do borne, poderia provocar o
curto-circuito da bateria. Apena por alerta, o borne que sempre derrete é o pólo positivo,
mais encorpado, por receber a corrente.
As máquinas que trabalhavam na área da Terceira Companhia, no Acre, agora com a
sede em Sena Madureira estavam dando enormes problemas. Em MUrbano apena uma
residência para cuidar do acampamento. O pessoal mecânico, muitos tinham trabalhado
comigo no ano anterior. Assim, todas aquelas brincadeiras ditas de brincadeiras, mas nelas
ditas verdades, e o que se sentia, agora me atingia. Sai de pedra para vidraça. Agora com
mais bagagem teórica, poderia contribuir para melhorar a qualidade do serviço de campo. O
comando mandou que eu desse uma chegada, por lá, para avaliar a recuperação. Ou a
recuperação fora ruim ou as máquinas estavam pelas tabelas. As que eu tinha recolhido de
Feijó, foram parar todas na área da 1ª Companhia em Humaitá, Amazonas.
Fui para o Acre. Parti com um Cabo, que fora retirado do trecho, para ser chefe de
uma das seções dos intocáveis da Cia Eqp. Partimos bem cedo para dormir em Abunã. Lá
verificaríamos a situação de material de reposição. Havia muito material obsoleto. O valor de
estoque era alto, mas nunca tinha o que se precisava.
A companhia em Abunã ficava próximo da travessia do Rio Madeira, uns oito ou nove
quilômetros, distante. Eu, até então, não tinha observado com detalhes o local e, em
particular, o trabalho ali executado. A travessia era feita de forma precária e com elevado
risco. O tenente que me passou Feijó e que fora comandante da companhia de Abunã havia
comentado do risco, mas achei que fosse “ministérios” do jovem, bom carioca e de
“malandragem exxperta”. A abordagem do rio era pela margem direita. A travessia era feita
em balsa de duzentos e cinquenta a trezentas toneladas com um rebocador. Entravam no
máximo cinco caminhões. Com esse total máximo, ficava por conta do operador do
rebocador, um cabo, as quantidades a serem atravessadas. A prioridade era de carros
pequenos, ônibus e perecíveis. A rampa, de terra natural, era raspada e melhorada com um
trator D/4 ou D/7. No período de seca, o topo da margem natural, o barranco normal, ficava
uns vinte metros até a linha d’água. Então fora feita uma rampa com uma inclinação até forte
com uma largura de trinta metros ou mais. Tudo era de argila, barro. Como havia cascalho
na região, na seca, tudo ficava encascalhado. O rebocador empurrava a balsa contra a
rampa e o pessoal de operações corria com os cabos de aço para ancorar, nos pontos de
ancoragem, a balsa. Ancoragem de trilhos da EFMM. Feito isso, eram colocadas pranchas
de madeira para a concordância do terreno da margem com a rampa da balsa que, embora
fosse mais ou menos móvel, nunca ficava na posição correta. A prancha era necessária.
Embarcados os veículos, se desfazia tudo, o rebocador dava ré e começava a travessia.
Segundo os mais experientes ali o rio tinha a largura de um quilômetro. O ciclo de uma
travessia, descarga, carga e outra travessia demoravam uma hora. Nesse local, e deve ser
até hoje, tem os maiores mosquitos borrachudos que já conheci na vida. Como todo
mosquito da família dos Simulium pertinax, incluído aí o pium, (pertinax faz-me lembrar de
um elogio que recebi como Cadete: citava que eu era “pertinaz” e, quase, pego o apelido de
“o pertinaz”) não se sente o início da picada, mas o final, depois dele decolar. O que se vê é
uma bolinha de sangue e não raro o fio de sangue escorrendo. Em particular se for
borrachudo de Abunã. A coceira depois que ele decola é simplesmente enlouquecedor. E se
coçar com unha suja, inflama e vira uma enorme ferida. Mas chegando do outro lado, na
margem esquerda, a rampa era na margem do Rio Abunã que, afluente do e com o Madeira,
formam a divisa com a Bolívia. Assim, antes de atingir a margem (esquerda do Abunã e uns
cinquenta metros rio adentro, no máximo), se vê uma ponta de terreno boliviano onde está
sempre tremulando uma bandeira da Bolívia. Mas aí o piloto tem que ter bastante perícia,
pois tem várias pedras enormes aflorando. Nunca me responderam por que não as
explodiram na tentativa de nivelar melhor o acesso. Desse ponto de desembarque, a uns
seiscentos metros para baixo, é que ficará uma futura ponte de concreto. Será uma obra
grande e bonita. Assim, para se chegar a Rio Branco ainda faltam mais ou menos 290 km.
Contado assim parece uma viagem turística. Acontece que o rebocador, por ser
velho, mesmo tendo um de reserva e também velho, era um risco. E tudo depende do dia. E
o dia me escolheu para melhorar a adrenalina, como dizem os jovens hoje. No meio do rio,
o rebocador apagou. O rio estava com pouca água e logo abaixo tinha uma curva à direita.
Assim a correnteza levou o conjunto para a margem direita novamente. Ficamos preparados
eu, os operadores de margem, que eram três e alguns motoristas. Eu tinha medo que a
balsa tocasse a margem com força, com velocidade e assim derrubar alguns caminhões no
rio. Mas ela chegou mansinha e o local na margem era limpo. Descemos com os cabos de
aço na mão e ancoramos tudo no braço. O pessoal da margem direita já tinha visto nosso
problema e já acionava o segundo rebocador. Quando ficou tudo calmo perguntei a um dos
balseiros por que eles estavam com medo. E ele respondeu que, se o rio estivesse cheio,
com a correnteza forte, era possível não vir para a margem e a balsa ir parar na Garganta do
Diabo, uma cachoeira que tinha a cinco quilômetros abaixo. Disse que ainda não tinha
acontecido, mas com aqueles rebocadores ruins, poderia acontecer isso a qualquer
momento. O meu momento quase foi aquele. Tivemos sorte que o problema foi antes de
chegar ao meio do rio onde a correnteza é forte mesmo com pouca água. Mas o rebocador
apenas tinha dado “entrada de ar” na bomba injetora. O próprio operador resolveu o
problema. Em meia hora estávamos navegando novamente. Nesse local fiquei conhecendo
uma figura impar que depois trabalhou comigo: o balseiro que virou motorista de caminhão
oficina. Vou contar a história dele em outro local.
Bom, no tempo chuvoso a travessia era um inferno. O rio ia subindo e a margem
deteriorando com a chuva. Quando a água estava pelo meio da rampa, tudo tinha que ser
rebocado pelo trator de esteira. A esteira cavava e, com mais chuva, mais lama se formava
e, assim, os caminhões patinavam e não subiam. Houve caso em que o rio saiu do leito e
ficou praticamente sem margem. Os caminhões eram desembarcados com água pelo meio
das rodas. Tormentoso também era quando o rio começava a baixar. A lama depositada
pelo rio, na rampa, que é lamacento, era de quase dois metros. Assim, para que a balsa
chegasse até a parte firme da rampa (encascalhada) os dois metros de lama tinha que ser
empurrada para rio com o D/7 e com muito cuidado para ao trator não descer junto, o que já
havia acontecido algumas vezes. Os balseiros e operadores de rebocadores moravam em
alojamento junto da margem numas casas pré-fabricadas. Iam para a vila em Abunã só nas
folgas.
Seguimos direto para Sena Madureira. Nessa época o trecho estava assim dividido: O
7º BEC assumiria os trabalhos que deixamos em Feijó. Em 1975 ainda não tinham chegado
por lá. No ano seguinte, eles transferiram a companhia de Tarauacá para Feijó. Montaram o
acampamento perto do açude do lado direito de quem saisse da cidade. O limite entre o 5º e
o 7º não sei bem por onde ficava. O 5º BEC ficou com uma companhia em Rio Branco
fazendo conservação entre o limite AC/RO até quase Sena Madureira e nessa cidade ficou a
3ª Companhia com uma missão típica de “enxugar gelo”. Estava refazendo o trecho entre
Sena Madureira e Murbano porque o estrago do período chuvoso foi intenso. O que já
estava ruim ficou intransitável. Logo de começo das chuvas, o acesso a MUrbano era pelo
Rio Iaco - Rio Purus e assim até MUrbano coisa de três horas de barco normal.
Em Sena – Madureira, encontrei o tenente que ficara comigo em Feijó. O comandante
da Companhia havia dito a boca pequena que não gostaria de trabalhar comigo porque eu
era “pretensioso” e até indisciplinado. Foram tais homens minha inspiração para criar o mote
de que: na humanidade tem dois tipos de homens: os que querem e os que não querem.
Bom, emendando com outro mote que aprendi, a coisa ficou assim: há dois tipos de homens
– os que querem e os que não querem; dos que querem, há os nascidos para serem
segundos e são inteligentes cumpridores de ordens e sentem mais prazer em cumprir
ordens que dá-las. Mas o fato de não querer trabalhar comigo não ia me afetar porque eu
era comandante de companhia e, portanto, no mesmo nível dele. Se o comandante do
batalhão assim quis não seria ele que tiraria meu brilho. No jantar, ele me perguntou sobre o
resultado da sindicância da gasolina. A tal gasolina da balsa em Feijó. Respondi que não e
nem sabia da sua existencia. Na verdade eu não fora ouvido formalmente e que tinha
respondido algum questionamento por rádio. Na verdade o Cabo que ficara no embarque
poderia saber mais que eu, bem como o comandante do rebocador, isto é o dono da
empresa que fez os transportes. O tal comandante de Sena Madureira disse que na balsa
onde deveria ter gasolina não tinha nada e apenas alguns poucos litros de água e gasolina.
Fui ao trecho ver as máquinas. Não pude chegar a nenhuma conclusão. Voltei a Sena e
procurei saber sobre o material apropriado nas máquinas. Cada máquina tinha o valor que
fora gasto e, pela guia de remessa, eu saberia qual máquina e quais peças. A conclusão é
que fora feita meia-sola apenas. Teria que montar uma boa equipe para, parando máquina
por máquina e melhorar a recuperação. Isso se ali fosse a frente de trabalho mais
importante.
Voltei para Rio Branco onde passei um dia inteiro ouvindo o comandante da
companhia que era da minha turma. Nós estávamos mandando para ele o melhor trator D/8
do batalhão, por ordem da Seção Técnica. Mas realmente suas máquinas estavam ruins,
como eram as de Vilhena: conservação rodoviária com máquinas e viaturas velhas.
Voltei a Porto Velho. La chegando fui à Segunda Seção para saber sobre a tal
sindicância da gasolina. A conclusão do sindicante, um capitão da Seção Técnica, era que,
apesar de não ser encontrado indício de crime, não fora possível apurar de quem era a
culpa do sumiço da gasolina. Que sumira a gasolina na boia, isso sumiu. Era de parecer que
a gasolina fosse paga, sendo 50% para mim, tenente, e aí fez um exercício matemático
distribuindo pagamento a meio mundo. Solução salomônica. Mas o parecer do comandante
foi engraçadíssimo: “discordar do sindicante; imputar o prejuízo à fazenda nacional; arquivar
a sindicância; deixa de publicar a solução porque não foi possível apurar um responsável”.
Fui ao capitão e ele me disse: – “você é o tenente mais “peixado” que tem nesse batalhão.
Está mandando mais que o comandante”. É claro que isso era uma brincadeira da parte
dele. Mas, indiretamente, senti que estava prestigiado. Anos depois é que entendi o que
aconteceu com a gasolina, a boia, a água, a balsa, o Seu Mustafa...
O batalhão acabara de receber cinco motoniveladoras da marca Huber Warco. O
pessoal caiu de pau na máquina. Mas a licitação fora feita no 2º GEC e o preço foi
irrecusável. Acabei por ser influenciado, pelos mecânicos, sargentos, operadores, chefes de
campo. Antes de eu chegar, haviam enfiado as maquina em trabalhos de terraplenagens e
de conservação. Começaram a vir reclamações da fragilidade das máquinas ainda em
garantia. Eu teria que ter certeza da qualidade da operação para não perder a garantia. Fui
até a uma equipe de conserva da CCSv, a REPV, para ver o desempenho de uma das
máquinas. Levei todos os manuais e literaturas que tinha. Em Porto Velho ainda não tinha
concessionária e nem representação de tal marca. Na volta, fiz uma parte ao comando onde
eu afirmei, como conclusão, que a máquina era frágil para o tipo de trabalho que se
executava no batalhão. Paguei caro a ousadia.
Assim que voltei do Acre uma boa maçada me esperava. Estava marcado para uns
quinze dias à frente, uma visita de uma equipe da Wuber Warco para que se inteirasse dos
problemas levantados pelo 5º BEC. Fiquei meio apavorado. Pedia, tal pessoal, uma equipe
de operadores e também mecânicos e uma máquina para fazerem demonstrações. Fiquei
no aguardo e no “Seja o que Deus quiser”. Num belo dia chega a Porto Velho um alemão,
que não falava nada em português, um americano naturalizado canadense e um chileno,
naturalizado americano, mas que trabalhava na Alemanha e que tinha desaprendido falar
espanhol. Foram ao Batalhão. O comandante me chamou e me entregou às feras. Ali
mesmo, no catálogo mostrei que as máquinas deles tinham duas vezes mais bico de
lubrificação, de dez e de vinte horas que uma máquina Caterpillar; que o sistema elétrico era
complicado: a partida era com 24 volts, mas o alternador era de 12 e usava uma caixa
reguladora para carregar duas baterias ao mesmo tempo; havia uma fragilidade no
alternador, que com menos de três meses já tinha sido trocados pelo menos cinco dos que
recebemos; e, o pior, era forte a inadaptabilidade do nosso pessoal: os comandos da
máquina eram totalmente hidráulicos; a Caterpillar era hidráulico-mecânico. Assim, o
comando Caterpillar chegava a um limite de força da mão do operador; a partir de uma
resistência do solo o operador recebia golpes na alavanca de comando impedindo que
houvesse sobre carga no motor; a Wuber, o comando era totalmente hidráulico e o operador
não sentia nenhuma resposta na mão que lhe desse entender que ali estava o limite; assim,
a lâmina ia afundando até estrangular a máquina; e havia uma firula sobre a inclinação da
roda que dificultava o corte em rampa na terraplenagem, coisa que eu não conseguiria
provar. Fomos ao campo e pequei operadores treinados pela empresa representante.
Parece que tínhamos combinado: o operador falou da dificuldade de sentir os comandos
hidráulicos o que fazia deixar a pista patrolada como a um tobogã. Bom, chegou-se a
conclusão que, para eles entrarem no nicho teriam que bancar um treinamento mais
aprofundado tanto nas operações como na mecânica. Algumas sugestões ali colocadas
foram aceitas e mais tarde vi que as novas máquinas não repetiam os erros: era
posicionamento de mangueiras na parte dianteira da máquina; havia também uma
manutenção de graxa, a cada oito horas, no círculo de giro da lâmina que era um terror -
juntava muita poeira e, para retirar a graxa, somente com espátula, cuja ferramenta não era
prevista, no manual deles, como de manutenção. Discuti com um dos gringos porque ele
quis me dar uma gozada dizendo que o problema não era a máquina, mas o operador. E eu
respondi a ele, na bucha, olhando nos seus olhos, com meu ar de cachorro Rottweiler, que a
máquina sempre seria problema, pois para uma produção dobrada, produzir em seis meses
a meta de um ano, precisaria de máquina rústica, o que a máquina dele não era. Poderia ser
boa nos trabalhos de asfaltamento e trabalhos em cidade. Na Amazônia, o furo era mais em
baixo. Ele não gostou, reclamou com o subcomandante, quando foi se despedir, mas teve
que engolir minha ruim educação civilizada ou boa educação guaicuru.
Já disse que as peças dos equipamentos Caterpillar tem um número, uma letra e
quatro números. As motoniveladoras não têm pneu socorro (“step” ou “estrepe” como diziam
os peões). Nem lugar para colocar. Mas no batalhão nunca se pensou nisso. Uma
motoniveladora isolada, na conservação, a oitenta, cem km, quando furava um pneu, se
perdia um dia até que se pedisse socorro, pedindo favor a caminhoneiro, ida do socorro, tirar
o pneu, consertá-lo e depois colocá-lo no lugar. Era pesado e requeria dois homens, no
mínimo. Bom, resolvemos pedir aros para fornecer pneus montados como reserva. Assim,
qualquer motoniveladora, por mais isolada que tivesse, teria seu pneu de socorro. Bastaria
posicioná-lo no trecho. Fizemos o pedido (FRM) à Seção de Suprimento, que fez a licitação,
que fez a encomenda à Caterpillar de Rondônia. Passaram quase seis meses e nada. Fui à
Caterpillar e lá me informaram que as peças a fornecer, parte delas, estava vindo como
importação do Canadá. As outras, só para o próximo ano. Achei estranho, mas aguardei.
Uma semana depois chegou a encomenda. Uma peça, das quinze que tínhamos pedido. Foi
um susto: era o comando final de uma escreiper de modelo 631 (as nossas eram 621). Foi
um pára para acertar. Fomos ao pedido e ali estava o erro: na origem. A referência dos aros,
coisa simples, era 3S-xxxx; ao bater, o funcionário trocou o “S” com o “D”. A referência ficou
3D-xxxx. Os malditos quatro últimos números eram iguais. Chamei o diretor da Caterpillar e
falei que queria devolver a peças, pois era inútil para nós e havia mais quatorze para chegar.
Disse que a empresa poderia ter notado o engano porque era inusitado alguém pedir quinze
conjuntos daquele, ao preço que era. E a empresa tinha o controle da nossa população de
máquinas. Até a Caterpillar EUA tinha nossa população controlada, coisa dita pela própria
Caterpillar que andou por Porto Velho. Ele reconheceu o erro da parte deles e suspendeu
tudo, aceitou a devolução, uma vez que não houve pagamento e não haveria devolução de
dinheiro. Mas insisti na compra dos aros, que um dia finalmente chegaram. A Caterpillar
EUA reconheceu o perigo das referências muito parecidas e mudou uma delas. Quase tive
uma parada cardíaca quando vi aquela monstruosidade sendo descarregada. O excesso de
confiança fazia que não mais se escrevesse o nome das peças; só a referencia, para ganhar
tempo. Tanto nós como a empresa usávamos catálogos em micro-fichas – alta tecnologia
para a época.
Quando de volta dessas minhas viagens de visitas, fiquei sabendo da morte, do filho
do comandante, em Porto Alegre, onde ficara estudando. Não me lembro se foi de carro ou
motocicleta. No retorno do comandante, fomos esperá-lo no aeroporto. Fiquei, por
antiguidade, junto do dentista bem alto (o tal que me visitara em Vilhena). O coronel,
baixinho, mesmo sofrido pela perda, não perdeu o humor e perguntou se ficamos junto de
propósito. Quando passou por mim disse que eu parecia com o filho dele. Isso depois veio a
ser um fator de compensação psicológica. Algumas vezes ele repetiu isso anos depois.
Era comum ir ao aeroporto esperar alguém que chegava ou levar alguém que viajava.
Operava na linha da empresa Cruzeiro do Sul um tipo de aeronave modelo Caravelle.
Segundo a Wikipédia, o avião era de fábrica francesa, produzido a partir de 1959, com
motores, a jato, colocados no corpo do avião, entre a asa dianteira e a asa traseira. Mas o
modelo já não se fabricava mais. A fábrica encerrou suas atividades em 1993. A empresa
colou os cinco que lhe restavam para operarem na Amazônia. Numa dessas esperas assisti
um lance engraçado. Havia uma série deles cujo final do registro, aqueles números enormes
nas asas – PP- XXXX, com final 05. Todos os aviões daquela série já tinham caído. Faltava
aquele. Pois bem, vi um senhor chegar e entregar a passagem para check-in. Passado uns
minutos, ele resolveu olhar a aeronave estacionada. Olhou e sapecou a pergunta: – “é o
final 05?” – “É”, respondeu a moça. Ele não teve dúvida: – “devolva minha mala e minha
passagem; nesse eu não embarco”. A moça tentou convencê-lo, mas não houve jeito. Nem
com as juras do gerente. E numa das viagens que fiz para Manaus, fiz numa dessas
aeronaves, como disse, mas sem ser a do final 05. No check-in, um cidadão perguntou
quem era o comandante da aeronave. A moça respondeu que era o Comandante Sebastião.
O home simplesmente guardou a passagem (ainda era daquelas que parecia um carnê de
dez folhas) na maleta. Fiquei sem entender nada e também não perguntei à jovem o porquê
do caso. Embarcamos e assim que começou o taxiamento, o comandante da aeronave se
manifestou da forma padrão: –“Senhores e senhores, quem vos fala é o Comandante
Sebastião...” O senhor que estava do meu lado pipocou na cadeira, quase ia retirando o
cinto de segurança. Pensei que ele entraria em pânico. E assim muitos outros, em variados
lugares. Havia comentários generalizados, parecia uma colméia e não dava para entender
nada. O meu vizinho me olhou e disse: – “se soubesse, não teria embarcado; esse cara é
maluco”. Aguardei para ver, porque eu também sou anti-aéreo. O Comandante falou sobre
tempo de viagem, condições metrológicas e outros dados que não me lembro mais. Nisso já
estávamos na cabeceira da pista. Acelerou tanto que a fuselagem rangia toda. Soltou o
avião que deu um pulo, para frente, como que lançado de uma catapulta ou partindo de um
partidor de cavalo. No meio da pista o avião subiu, mas subiu quase na vertical. O corpo
ficava esmagado no acento. Penso que o angulo de subida era mais de 70º. O vizinho
tascou de lá: – “não lhe disse que esse cara é maluco!!!” Se a subida foi com emoção,
imagine a descida: o coração e todo o “fato,” como diz o nordestino, quase saem pela boca.
Mal falou: – “tripulação preparar para o pouso”..., o avião embicou “no rumo de baixo”, como
diz o acreano, que mal dava para respirar. Para quem gosta de adrenalina, o Comandante
Sebastião era um “avião cheio”.
Na falta de rotina da Cia Eqp, coisa que nós da companhia nunca fazia era educação
física, embora tivesse que fazer o teste físico – TAF.
O batalhão recebera de herança da extinta CER/3 – Comissão de Estrada de
Rodagem Nº3, uma unidade tipo CRO – Comissão Regional de Obras, mas de rodovias, que
era de Jardim e trabalhara no asfaltamento de Aquidauana até Miranda. Hoje, são as
instalações da 4ª Companhia de Engenharia Mecanizada, integrante da 4ª Brigada C Mec de
Dourados. Pois bem, fora extinta a CER/3 e todo o seu acervo fora repartido entre 9º e 5º
BEC. É claro que as melhores máquinas ficaram com o 9º BEC. Bom, ao 5º restou o
trabalho de fazer as descargas. Como era acervo do EB, tínhamos que fazer o ineficiente
Inquérito Técnico, para acompanhar a descarga, que seria homologada pela então diretoria
de material de engenharia – DME. Assim, pegávamos os catálogos das máquinas e íamos
assassinando as partes mais importantes das máquinas de modo que não ficasse nenhuma
possibilidade que alguém sugerir recuperação. A maioria Caterpillar, mas de séries
obsoletas. Mas havia trator de esteira, escreiperes, motoniveladoras, tratares agrícolas, rolos
compactadores, grades de disco... Bom, me especializei em trator de esteira e
motoniveladora. Assim fizemos uns cem inquéritos técnicos teóricos. Mas fizemos uma limpa
no pátio da companhia.
Um belo dia, do meio do ano, eu não sei se agosto já, fui escalado para uma viagem,
ao nordeste, com uma comitiva do 2º GEC. Iriam, na comitiva, oficiais de dois batalhões: 5º
e 6º BEC. Eram os dois comandantes, e dois oficiais de cada Seção Técnica. Não sei por
que fui incluído nela. A comitiva era para uma viagem exploratória. Os dois batalhões
começariam a trabalhar em asfaltamento no ano seguinte, 1976. Os oficiais das Seções
Técnica iriam ver os dimensionamentos de equipes, equipamentos específicos, e
qualificações de pessoal que não tinham em seus batalhões. A mim ficou a responsabilidade
de avaliar os melhores equipamentos específicos, como rolos de pneus, compactadores
vibratórios autopropulsados, que eram a grande novidade, tipos de britadores e seus
motores elétricos e a diesel, motoniveladoras para base e subase, grades, arados,
dispositivo de CTA para umidade da pista. Enfim, tudo o que se relacionasse a novos
equipamentos que fosse novidade para o batalhão. Queimei a língua: as melhores
motoniveladoras para “cortar base e subase” (jargão de trecho) eram as Huber Warco. O
sistema, de comandos hidráulicos, facilitava nivelar as camadas na altura correta dos
piquetes (cortar na cabeça dos piquetes, no jargão) calculados e cravados pela equipe de
topografia. Saímos de Porto Velho passamos por Manaus onde ficamos um dia como
reunião preliminar. Num almoço, em um restaurante em que serviam rodízio de peixe, um
dos capitães da nossa comitiva começou a desfiar seus conhecimentos ictiológicos. O jovem
queria chamar a atenção do comandante e nisso ele era bom. Quando chegava um prato ele
experimentava o peixe e logo tascava: esse é um tucunaré; este agora é surubim; este é
tambaqui; este jatuarana... Chegou a um ponto que eu não agüentei e disse: – “capitão, eu
só sinto gosto de peixe”. Houve uma risada generalizada, pois o pessoal já não aguentava
mais as descrições dos sabores dos peixes e até a culinária adotada. Ainda bem que tudo
ficou na esfera da brincadeira. Em Manaus comprei uns óculos Ray Ban, de lente verde. Era
o da moda. Embarcamos em direção ao nordeste. Escala em Belém e São Luís, destino
Fortaleza. Chegamos pelo início da noite. No hotel, vi que tinha deixado meus óculos,
novinho, no avião. Levamos uma encomenda para a família, de um tenente R/2 de
intendência, que morava no bairro de Aldeota , se não me engano. Não foi difícil chegar até
lá porque tínhamos dois cearenses da cidade, na comitiva. Demos uma enorme mancada.
Resolvemos ir à casa dos parentes do tenente, de táxi, e depois jantar, por perto do hotel,
cuja localização nem desconfio onde fica, hoje. Mas não deve ser longe do centro. Lembro
que ficava longe da praia, pois alguns mais abonados resolveram ir até lá para comer frutos
do mar. Na volta da entrega da encomenda, já era quase dez da noite. Olha... quase que
não conseguimos comer alguma coisa. Tudo já fechado. Conseguimos um “pé sujo”, quase
um km do hotel, por informação de transeuntes e mendigos, onde comemos os fatídicos
pastéis e coxinhas e uma coca-cola. A taxa de travestis e prostitutas, por metro quadrado,
era alta. E agressivos, no oferecimento de seus serviços. Sinal de que a economia, na
época, não andava bem.
Em Fortaleza, pela manhã, tivemos contato com o representante, para o norte e
nordeste, da usina cuja marca me esqueci, mas deve ser Clemente Cifali, do Rio Grande do
Sul. Diz a internet, hoje, que “em 1959, a Clemente Cifali e Filhos fabricou, em Caxias do
Sul (RS), a primeira usina de asfalto brasileira”. Vimos uma usina de asfalto lá instalada,
montada e funcionando para a Prefeitura de Fortaleza. Fui “apresentado” a uma usina de
asfalto. Fiquei maravilhado com o funcionamento. P’ra variar, veio aquela velha sensação de
incompetência. Nada pude registrar, no que estava a meu cargo, a não ser anotar os
tamanhos dos motores, marcas e potência. Há se houvessem as máquinas fotográficas
digitais... Não era importante tal anotação porque, se eles estavam ali eram porque foram,
para ali, dimensionados. Anotei algumas coisas referentes à manutenção, mas coisas que
estavam no manual da máquina. Anotei também alguma coisa sobre material de maiores
desgastes porque, estando em Porto Velho, teria que tê-los para não ter solução de
continuidade.
Depois de o meu comandante resistir a uma forte pressão da empresa para vender
uma usina, para o batalhão, de Fortaleza, no meio da manhã, voamos até Teresina. Parece
que o preço era irrecusável, mas o momento era inoportuno. Dois aviões um monomotor e
outro bi-motor. Como mais moderno, fui com o mono, ao lado do piloto. Se caísse, seria o
“esclarecedor” da patrulha. Voando baixo, pude ver melhor o que era a caatinga, os rios
secos com pontes, rio secos que viravam estradas; muitos jumentos e nada de lavoura ou
coisa de sobrevivências. Depois de quase duas horas de viagem, chegamos ao 2º BEC.
Parece que houve algum desencontro porque a unidade estava literalmente parada. Ou não
tinha obras por perto. Ficamos um dia. A visita foi mais para os oficiais da Seção Técnica.
Fui visitar a companhia de equipamento deles para, por imitação, tentar melhorar a nossa.
Embora com zilhões de vícios, notei que nosso trabalho era mais bem feito embora as
instalações deles fossem bem melhores. Eles, como nós, tinham seus “mecânicos
intocáveis” e “sabe tudo”. Logo os identifiquei, sendo um deles o tenente que os comandava.
Na verdade era a tal “oficinas gerais” e não uma Companhia de Equipamento como nós
tínhamos. Por interesse particular e reciclar o cérebro, fiquei um bom tempo no laboratório
de solo que não estava trabalhando, mas tinha vários equipamentos que eu não conhecia.
Encontrei um colega de turma que havíamos servido em Alegrete. Era o comandante da
Companhia de Comando e Serviço. Pendurando na companhia tinha também um Pelotão de
Operações Especiais (PELOPES). Fui com ele até a Companhia onde, durante a formatura,
ele me apresentou a todos. Engraçado foi que, depois de me apresentar, me passou a
palavra e depois ele continuou a formatura. No momento ele resolveu elogiar a brilhante
atuação do PELOPES que fizera um exercício com outros órgãos da capital e do Estado:
policia civil, militar, secretaria da receita estadual e federal, e outros órgãos ligados á
segurança. Ele deixou para o final o elogio ao comandante do PELOPES. E foi um elogio
apoteótico. Terminada a formatura eu perguntei do tenente comandante do PELOPES, pois
eu não vira outro tenente e que seria mais moderno que ele. Mas simplesmente me disse: -
“o comandante do PELOPES sou eu”. Ele fora comandante de si mesmo e se auto-elogiou.
Esse mesmo tenente impressionado com crendices locais, somada com a loucura de
outro tenente do corpo de bombeiros do Piauí, resolvera matar um monstro que vivia no lago
bem no centro da cidade. De madrugada, o meu colega de turma, como altamente
operacional comandante de PELOPES, e seu fiel escudeiro o bombeiro, navegaram até o
centro do lago e escorvaram a bagatela de um quilo de TNT. Foi uma explosão tão grande
que acordou o governador, quebrou vidros de janelas, assustou o comandante do batalhão...
Ficou tão famosa a caçada que saiu até na revista VEJA. E o monstro resistiu ao TNT e não
morreu.
O comandante do 2º BEC era um coronel “full”(três estrelas gemadas), mas mais
moderno que meu comandante. Aliás, essa foi a tônica da viagem: até no 1º Grupamento de
Engenharia, em João Pessoa ele era mais antigo que o coronel, Chefe de Estado Maior, que
respondia pelo comando do Grupamento. Eu e o coronel do 2º BEC, muito mais tarde, fomos
nos encontrar na Amazônia. Fique com completa má vontade com ele, por um comentário.
Os capitães tinham vários companheiros de turma na unidade. Eles foram para as casas dos
amigos, até que chegasse o horário do jantar. E eu fui escalado como um assistente do
coronel e, portanto, não poderia sair. Até ele perguntou, mas respondi que preferiria ficar e
completar minhas anotações feitas até ali. O comandante do 2º BEC chegou bem cedo e
alugou o coronel meu comandante. Eu estava por perto, passando os rascunhos a limpo
quando ele disse que o seu batalhão estava esfacelado; que estava difícil trabalhar; que o
escalão superior não o ajudava. Chorando miséria para impressionar o outro coronel e se
passar por vítima. Dez anos depois fui entender o porquê da choradeira para aquela pessoa
particularmente. Quando ele falou que não tinha nem capitão para comandar companhia, aí
me queimei: ora, não tinha capitão, mas tinha tenente, primeiros tenentes. Não era só o
batalhão dele. Eu viera de Alegrete e lá só tivera um capitão, já quase na minha saída. No 5º
só tinha capitão na seção técnica e todos bem antigos. Então era só chegar junto, orientar
os jovens, se é que ele era experiente na coisa e soltar as tenentadas para trabalhar. Como
eu era primeiro tenente, e considerado experiente, por onde passei nunca senti falta de
capitães. Pelo contrário. Os companheiros de turma que tiveram alguns capitães como
comandantes disseram que eram todos desmotivados, alguns já tendendo para o
alcoolismo. Era melhor um primeiro tenente vibrador. Aí, com toda a minha “finesse”
terenense, perguntei ao coronel se os trabalhos não eram melhores conduzidos por
primeiros tenentes, pois no 5º BEC, havia falta de capitães, mas os primeiros tenentes eram
muito competentes. Ele tentou se justificar, alegando a falta de experiência administrativa, a
falta de liderança. Na primeira tomada de fôlego dele, o meu comandante contra-atacou,
dizendo que seus oficiais era excelentes, tanto que trazia um primeiro tenente na comitiva.
Com a referência eu inchei como sapo por vaidade. E imagino que o coronel tenha ficado
com um pé atrás comigo. Anos depois eu contei a ele, ele já general, do encontro, mas omiti
o diálogo.
De Teresina, na madruga, fomos para Picos, no sul do Piauí. Fomos de Picape. A
distância era pouca, cerca de 300 km. Pelas estradas pude certificar do vira de avião. A
estrada, embora asfaltadas, cortava uma zona de caatinga terrível. Nunca vi tanta casa de
pau a pique e casa de barrote. Algumas famílias, maltrapilhas e com aspecto grotesco, como
esses moradores de florestas, dos filmes da época da Idade Média: braços, pernas e rostos
encardidos, sujos, crianças nuas e sujas. Não se via plantado um pé de mandioca, uma
cheiro verde ao redor das casas. Chamou a atenção também a quantidade de jumentos nas
estradas. O jumento, como hoje, naquela época, já era um problema, ele que desde a
antiguidade fora uma solução. É que um jumento come tanto quanto um cavalo ou um boi e
sua produção como transportador de carga é baixa. Assim, os proprietários o soltam nas
estradas e ele, em algumas partes do nordeste, estão praticamente selvagens. Já eu na
reserva, soube melhor sobre a conduta dos jumentos. O jumentinho, ainda recém-nascido,
fica quietinho na sombra, a espera da mãe que foi pastar. Por ser ainda muito frágil, não
consegue acompanhar os adultos. Se por qualquer motivo a mãe morre ou se extravia ele
morre de fome, mas não arreda o pé, literalmente, do local. Morre sem dar um passo.
Em Picos ficaríamos uns três ou quatro dias. Chegamos para o almoço. O sol era
uma coisa terrível. Fomos direto para o hotel de trânsito que fica fora do quartel, ao lado da
vila militar.
Neste batalhão havia um fato curioso. Do hotel de trânsito (casa de hóspedes)
olhando para o quartel, havia o corpo da guarda com as instalações bem ao fundo. Então,
antes de entrar no quartel, tinha uns mil metros de um bosque por reflorestamento. Bom, do
lado direito, de quem entra, tinha o nome de um tenente da turma anterior que morrera
prematuramente de um mal qualquer. Do lado esquerdo tinha o nome de um tenente da
minha turma que ali morrera por descuido com explosivo, o Caro Colhega que em Alegrete
desmontara as granadas falhadas. O batalhão fica bem longe da cidade, uns cinco
quilômetros, no mínimo.
Primeiro fomos visitar as instalações. O batalhão fora construído para ser um batalhão
de engenharia de construção. Ficava afastado da cidade, como deveria ser embora acho
que não chegasse aos cem estádios dos romanos. Era um lugar bem alto e de lá se avistava
a cidade que também fica num alto. No intervalo parece que passa um rio. O quartel em si
era como todos o são. Mas o que chamou a atenção foi o pavilhão de administração em
particular o posto de comando do comandante: era de mármore o piso e alguns detalhes da
parede. Houve um certo exagero, uma suntuosidade pouco comum na engenharia. Mas se
comparado com instalações públicas outras, que um século depois vira patrimônio da
humanidade, nada que pudesse ser sacrilégio. Mas, deu muito o que falar na época da
construção, segundo do mais antigos. Na passagem pela seção técnica, recheada de
oficiais, todos capitães com o curso do IME, aconteceu um diálogo inusitado. Um oficial
recém-formado, e recém chegado no batalhão era o responsável por calcular e dimensionar
bueiro. Ele, vendo chegar vários capitães mais antigos e querendo forçar uma humildade
que naturalmente não tinha, mal entramos na sala, onde haveria uma reunião, e ele tascou:
“quem pode me tirar uma dúvida?” Aí, houve aquele suspense... os espíritos ficaram em
alerta pois, pela ênfase, parecia ser a decisão para o início da 3ª Grande Guerra... e ele
tascou de lá: “qual o melhor tipo de bueiro tubular de concreto: com ponta e bolsa ou só com
pontas?” Ganhou uma vaia... – “ora, disse um dos capitães do 5º BEC, isso é lá
preocupação pra engenheiro? Pergunte ao mestre de obras ou para o tenente que
executa”!!! E virou para mim e perguntou: - “Higino qual o melhor?” Como eu também não
sabia muito, pois trabalhara só com tubular metálico, não deixei por menos, disse na maior
convicção: “- o melhor é com ponta e bolsa”.
Encontrei meu companheiro, de turma, o bom baiano, nadador da equipe da AMAN,
que estava destacado, numa Residência, em um lugarejo chamado Acauã, na BR 407.
Passamos o dia em Picos.
Eu fui visitar a Companhia de Equipamento deles. Era tudo que um comandante
dessa companhia gostaria de ter. As instalações foram construídas para isso. O idealizador
fora uns dos oficiais mais experientes nessa lida de manutenção, oficinas, especificação de
equipamentos, almoxarifado, estoque de peças... Ele desenhou a Cia Eq para ele comandar,
pois era capitão e a comandou, segundo alguns, até major. Ele sempre foi minha referência,
por ser lembrado como experiente, nessa lida, tanto por oficiais mais antigos, que ele, e por
subordinados, que serviram com ele. Assim, eu fiquei de frente com o que tinha de melhor
na engenharia de construção. Em termo de oficina era melhor concebida que todas as
representações de máquinas Caterpillar e outras similares. A Cia Eqp era para
equipamentos rodoviários, viaturas e todo e qualquer equipamento que tivesse motor de
combustão interna, bem como as partes elétricas desses equipamentos, incluídos aí os
geradores de energia alternada. Em rápidas palavras, a concepção era a seguinte: qualquer
máquina, viatura ou equipamento que entrasse, para reparos de qualquer monta, entrava
pelo portão principal, e imediatamente, era lavado. O posto de lavagem era na frente dos
pavilhões oficinas. Depois, ainda funcionando ou à reboque, entrava num pavilhão, que tinha
uma ponte rolante. O material era acompanhado de um relatório dos mecânicos do trecho,
como sendo um diagnóstico prévio que seria confirmado ou não na Cia Eqp. Era como numa
cadeia de evacuação, desde o posto médico até ao hospital de referência. Com a máquina
sob a ponte, começava a desmontagem com os destinos especializados: lataria para
lanternagem, motores para seção de motores; material rodante e suspensão para a
respectiva seção; chassis para a seção de chassis. Já havia o conceito de recuperação não
do todo, mas das partes que eram conjuntos. Assim: um motor não era de tal trator, mas um
motor de trator que iria para qualquer trator que mais precisasse; e assim em diante, como
se faz hoje com aeronave; não havia, como vi mais tarde, numa empresa de ônibus, o uso e
troca de peças ou conjuntos por tempo de uso, como na aviação: tal conjunto pode funcionar
até 3 mil horas; vencido o tempo, é retirado, colocado outro, e aquele vai para revisão e ou
reparo. Coisa que seria o ideal. Para a montagem, se faria o contrário da desmontagem feita
na entrada. Então, o controle patrimonial era feito apenas pelos chassis. Existia um
excelente ferramental. Um excelente controle de almoxarifado. E uma rígida Ordem de
Serviço que se desdobrava em tantas outras quantas fosse necessária. O trator de esteira
25 (TE25) recebia uma ordem de serviço; suas partes recebiam outras, mas com referência
da primeira e, assim, chegaria até ao rolete, na usinagem, o alternador na seção elétrica, ou
a bomba injetora na sua oficina. Para apropriar as despesas era só juntar todas as Ordens
de Serviço que começasse com TE25. Como no nordeste se pode trabalhar todos os dias do
ano, e com boa rede de estradas, eles eram mais requintados nos controles dos serviços
mecânicos a serem executados no campo. Ao contrário da nossa idiossincrasia que era
cumprir o PT em seis meses mesmo com o sacrifício da máquina, pois se teria seis meses
para recuperá-la. E isso permitia excesso, abuso, descuido, relaxamento por conta da
produção a qualquer custo.
No outro dia (segundo dia) fomos para o trecho. Fomos visitar os trabalhos numa
companhia relativamente perto do batalhão. O serviço, o lançamento do material, era na BR-
230, a Transamazônica, com quem iria me encontrar quase na volta e não sabia. A sede da
companhia e a usina eram em Santo Antonio de Lisboa e o responsável pela usina era um
companheiro de turma. Passei a me inteirar de tudo o que se referisse a manutenção,
fornecimento de peças, frequência de manutenção, melhor horário. Pedi um manual de
manutenção ao amigo que me atendeu. Pensei que poderia levá-los comigo, mas pelo
caminho ele pediu os manuais de volta, via rádio. Eu queria me inteirar mais da manutenção
preventiva, porque teríamos que formar os lubrificadores para tal. Depois de ver as
sequencias de entrada de pedra, areia, e cimento, pois o material era concreto asfáltico,
fomos ao trecho para ver o lançamento e compactação e a preparação da pista. Lá vi alguns
compactadores bem mais modernos do que nós usávamos. Como já adiantado, eu quebrei a
cara e queimei a línguas ao mesmo tempo: as melhores máquinas para o trabalho de
asfaltamento eram as Huber Warco. Seus comandos hidráulicos permitiam todos os
arremates quer da base e subase como também no lançamento de massa asfáltica quando
havia problemas com a vibrocabadora, máquina que também eu conheci ali. Foi uma
senhora aula de concreto asfáltico que nos foi dado.
Pela manhã fomos para outro lado, e mais distante, embora ainda na BR 230. Fomos
em direção a Oeiras, onde tinha uma residência com trabalhos de outro tipo de
asfaltamento. Chegamos até a divisa com o Maranhão, em Floriano, onde morava com a
família e trabalhava em Oiras, o bom baiano que eu encontrara antes em Pico, mas que
seguiria para Residência de Acauã, na BR 407. O asfalto lá era o Tratamento Superficial
Triplo (TST). Nada mais é que, após a preparação da base (imprimação ou pintura de
ligação, uma camada de asfalto quente, uma camada de brita graduada; outra camada de
asfalto e outra da mesma brita; e última camada de asfalto e última de brita, que pode ser de
graduação menor para fazer o fechamento, como diz o jargão. Além dos britadores e sua
regulagens, vimos os cuidados o lançamento, em particular as técnicas de compactação.
Como era cerca de duzentos km, de Picos, voltamos para o batalhão. Para preencher
o tempo morto, o comandante de Picos havia programado uma visita a uma fabrica de tecido
da cidade. Foi aí que aprendi que um tecido tem linhas na vertical, ou no comprimento, que
se chama “urdidura’ e as horizontais, ou na largura, tem o nome de “trama”. As linhas da
urdidura são mais fortes. Havia enormes teares, já controlados por sensor óticos para
quando se esvaziava um carretel ele ser, automaticamente, expulso e ficar uma luz
piscando, informando que ali faltava um carretel cheio. A fábrica ia desde a compra do
algodão, dos produtores, até o tecido final. Não me lembro se tinham os tecidos coloridos.
Era muito emprego e muita automatização para aquela época.
Pela noite, haveria um jantar padrão. O meu comandante fez uma brincadeira
verdadeira porque, por estar na Amazônia, em todos os lugares de jantar tinha peixe de rio.
Ninguém perguntara a ele se queria peixe, embora ele sempre saía bem da situação, pois
comia muito pouco. Antes do jantar inventaram um jogo de futebol de salão, numa quadra
horrível. Houve empate, mas eles colocaram tenentes para não perder. Só deu um time.
Logo nosso goleiro se machucou, mas teve que aguentar até o final. Eu joguei mal como
nunca. Além de fora de forma física, ainda apanhava da bola, na quadra ruim. Fui um
desastre embora tenha marcado gol.
Penso que isto já fosse sexta feira, pois no sábado, dia de feira em Picos, nos foi
recomendado visitá-la antes de sair para outras visitas. Saímos somente os capitães e eu do
5° BEC porque alguns dos capitães de Boa Vista já conheciam a coisa. E é um lugar para se
visitar dada a particularidade da feira e do povo. Do batalhão até a cidade, como disse antes
fica de cinco a sete quilômetros. Não me lembro bem onde ficava, mas não deve ser muito
longe do centro, às margens de um córrego, que na época estava seco porque do lugar da
feira se via o batalhão num alto. Havia ali ruas asfaltadas onde se dava a feira propriamente.
Na direção do córrego seco tinha uma área de dois hectares mais ou menos onde tinha todo
o tipo de jegue (jumento): tinha os de carga que vieram com seus donos participar da feira e
os jegues para serem vendidos. Junto também tinha outros animais vivos: porcos, galinhas,
patos... Na parte de feira me chamou a atenção o fato de eles colocarem o produto no chão
do asfalto diretamente. O milho era retirado do saco e colocado em um monte no meio da
rua. Dois trabalhos: desensacar para vender e ensacar depois de vendido e para levar de
volta o que não vendeu. Isso valia para feijão, arroz em casca, feijão em vagem (feijão verde
para ser descascado), frutas... somente as hortaliças eram protegidas por bancas de
madeira. Mas um dos capitães de Porto Velho, carioca gozador, quase se dá mal. Quando
vimos aquele mar de jumentos estacionados, resolvemos ir ver de perto. (isso tinha sido
alertado pelo comandante do 3º BEC). Viu um jumento grande, macho e bem tratado O
animal era bem bonito. Gaiato, disse que queria comprar o jumento e perguntou quanto era.
E aí começou a negociação: regateou o preço, o homem baixou um pouco, e assim foi até
que o camarada não baixava mais. Aí ele disse que de momento não poderia levar o
jumento porque queria levá-lo para o Rio de Janeiro, e o dono disse que guardaria o animal
por uns tempos; depois, disse que talvez o jumento tivesse que demorar mais, pois na sua
volta, poderia decidir e levar o jumento para Porto Velho. O homem notou que estava sendo
motivo de brincadeira e que o capitão, que ele não sabia que era, estava só brincando com
ele. Começou a se zangar e foi chegado para o lado do capitão, embora não xingasse, foi
tirar satisfação, pois fizera ele perder tempo numa negociação “sem futuro”, como ele disse.
Bom, o melhor foi abreviar a visita à feira mesmo porque já não havia mais nada para ver.
Voltamos e seguimos para as próximas visitas. Já iríamos embarcar com malas, pois em
Petrolina pegaríamos os aviões para o 4º BEC, Barreiras, na Bahia.
Na mesma manhã seguimos de picape para outra companhia, sediada em Petrolina,
a 1ª Cia E Cnst. A companhia era comandada por capitão que na verdade era quase um
comandante de batalhão. Ele era do tipo supercapitão, oficial de engenharia, que fez o curso
do IME. Por estar na divisa com Pernambuco, ele fazia todas as compras em Pernambuco, o
que o facilitava, por ser o estado com um comercio sortido para as atividades de
asfaltamentos. Assim, tinha autorização e delegação de competência para fazer licitação,
fazer pagamento, contratar serviços, receber serviços, terceirizar obras (termo ainda não
existia na época). Enfim: mandava prender e mandava soltar. Gozava de total e irrestrita
confiança do comandante. Aí foi uma visita tipo escola. Inicialmente, por ser o batalhão
muito visitado, por diferentes pessoas, com diferentes níveis de conhecimentos técnicos da
coisa, eles começaram formais, com poucos dados técnicos e “muita pagação de mistérios”,
traduzindo: estavam mais querendo fazer Publicidade e Propaganda e outras jogadinhas de
“marqueting”. Aguentamos até a segunda oficina. Falei com um dos capitães nosso, que
sem muita cerimônia, disse, mesmo na frente dos coronéis, até o do batalhão anfitrião, que
estávamos lá para aprender. As autopromoções ficariam dispensáveis. O supercapitão
entendeu. Fomos para a ponta do trecho ver problemas, erros e acertos. Fomos para a
terraplenagem e viemos andando vendo todas as fases, todos os cuidados até o
revestimento asfáltico. Estivemos mais demoradamente no laboratório de solos o que
realmente era o coração dos controles. Novamente foi confirmada a qualidade das
motoniveladoras Huber Warco. Vi também a quantidade de caminhões pipas. Traziam água
de um açude no Piauí com mais de cinquenta km de distancia. Muita das compactações e
umedecimentos eram feitos à noite, para evitar muita evaporação. Terminada a
compactação se fazia logo a imprimação, para não perder umidade. O que mais admirei foi o
sistema de “apropriação” deles. Tudo era anotado. Todos estavam imbuídos dessa
necessidade. Qualquer encarregado, de qualquer coisa, sabia quanto era, na semana
passada, o preço unitário de seu serviço. Recordo que um senhor, bem rude, encarregado
de fazer as cercas marginais, estava aborrecido com o capitão. E aproveitou a oportunidade
para pedir esclarecimento. Ele não queria mais o trator de esteira para fazer limpeza onde
passaria acerca, pois isso encareceu os preços de sua cerca e estava fora do preço
calculado. Se continuasse assim, a cerca, que ele fazia, iria dar prejuízo. Fiquei maravilhado.
Mais tarde até pensei se aquilo não fora ensaiado e fora preparado para a publicidade a que
me referi.
Numa das paradas para tomar refresco, porque o sol era medonho, perguntei ao
coronel se a forma de trabalhar que ele adotou com a 1ª Companhia era possível com
qualquer companhia, ele respondeu que seria, desde que o capitão fosse como o
comandante da sua 1ª Companhia. Foi mais que um elogio de corpo presente, foi um
agradecimento e o reconhecimento de um homem com enorme capacidade de trabalho e
inteligência. O “capita” sabia tudo, de qualquer assunto, de todos os detalhes de qualquer
serviço. Em certos momentos ele sabia mais que o encarregado do serviço, intervindo
durante a visita. Fiquei com uma enorme inveja, pois eu não saberia se eu seria assim tão
capaz, não para ter mais ou menos confiança de comandante, mas da enorme capacidade
de serviço. Dele copiei o modelo de comandar, forma de trabalhar e de jeito de liderar. Em
nenhum momento foi recebido com cara ruim pelos militares e funcionários e em momento
nenhum falou com eles que não fosse com mansidão pastoral de uma pessoa onisciente do
que fazia.
No final da tarde, saímos de avião de Petrolina até Barreiras. Na ida para o aeroporto,
pude conversar mais com meu colega de turma a quem chamo de irmão preto, coisa
inventada por ele e que sempre aceitei como verdadeira.
A distância era grande, mais ou menos uns mil quilômetros, entre Barreiras e
Petrolina. Levaria umas três horas de voo, ou mais. O cenário embaixo era desolador.
Quando íamos chegando à cidade, e como eu viajava como copiloto, olhei para baixo e vi o
campo de pouso com um trator agrícola e uma roçadeira, roçando no meio da pista de
pouso. Perguntei ao piloto se seria ali o pouso, ele respondeu que o combinado seria ali,
tanto que tinha viaturas do 4º BEC aí esperando. E então perguntei onde aterrissaríamos,
ele disse lá em cima, no aeroporto. Não entendi muito, mas ele acelerou e aumentou a
altura, fez um longo giro pela direita e vimos então o aeroporto, com muito boa extensão e
com umas edificações de apoio. Como houve desencontro, ficamos aguardando o pessoal
do 4º BEC chegar. Bom, Barreiras fica às margens de um cruzamento de BR: 020, 242 e
135. Chegando pela BR 020, antes de entrar na cidade, à esquerda tem um paredão com
uns setecentos metros de altura resultante de um planalto que ali termina. Barreiras fica
depois do planalto. Por isso que o piloto disse que para ir ao aeroporto, que fica na parte
alta, tinha que subir. Para aterrissar em Barreiras não se desce e sim se sobe.
À noite o fatídico jantar. Lá encontrei dois companheiros de turma. No jantar encontrei
um. O outro estava no trecho. O do jantar sempre foi “figurinha carimbada”, desde o tempo
de cadete. O tal que na “Fuga e Evasão” foi o último a chegar. Aspirante, foi para o Rio. Tem
alguns folclores dele por lá. Um folclore é quando foi responsável pelo Pelotão de Obras, o
procuraram e, aí, telefonaram para casa dele. A mulher atendeu e foi chamá-lo. Ele
realmente estava em casa durante o expediente. Numa reunião social, ela reclamou para um
dos companheiros de turma do marido: - “ele trabalha muito, nesse batalhão. Parece que só
tem ele. O coitado de TEDO nem pode dormir direito porque é três da tarde, telefonam para
ele, para resolver problemas. Trabalha demais”. No 4º BEC soube de outras.
O companheiro destacado estava preparando um trecho de base melhorada com
solo-cimento, misturada na pista, e um asfaltamento com areia-asfalto usinada a quente (em
usina de asfalto). Na noite do jantar, ele e seu pessoal distribuíram sacos de cimento no
trecho. Era muitos sacos de cimento por estacas. Mas, considerando que ali é o limite do
sertão nordestino, a coisa mais improvável de acontecer, aconteceu: na madrugada daquela
noite choveu e muito. Todo o cimento foi às favas, pois tudo teria que ser retirado e novo
material colocado na pista. Começaria do zero. O material de terra teria que estar na
umidade ótima para, feita a mistura fazer a compactação antes de iniciar a pega do cimento.
Com a chuva aumentou a umidade, molhou o cimento e matou o planejamento deles. Mas
mesmo assim, fizeram cinquenta metros, mesmo fora da umidade, apenas como escola.
Depois o material seria descartado.
Foi uma boa aula, pois vimos ali outra possibilidade de se reforçar base e também
fazer pavimento com areia asfalto. Embora não fosse tão nobre era uma possibilidade, pois
a BR 319, Porto Velho-Manaus era assim.
Os capitães da seção técnica encontraram vários companheiros de turma. Todas as
dúvidas foram tiradas, além das que eles, companheiros, criaram. O comandante do
batalhão tinha experiência dos batalhões ferroviários e era uma figura tendendo para o
folclore. As localidades onde havia sede de companhia e de residências, no 4º BEC, ele
rebatizava com nomes de localidades dos trechos onde trabalhou no tronco sul, nos
ferroviários. E ele sabia o novo nome e qual fração do BEC, ali aquartelada. Para quem não
sabia dos nomes novos, levava bronca a toda hora, pois ele assim exigia.
Fomos até Posse, uns 300 km de barreiras, de picape, já em Goiás, para ver
trabalhos com bueiros celulares, me parece, e alguns problemas de terraplenagem com
lençol freático muito alto. Lá comandava um tenente da turma anterior. Não me lembro qual
era o nome de rebatismo de Posse. Sei que bueiros celulares, para nós era novidade. Na
verdade e é um pontilhão pequeno, 1X1 m ou até 3X3 m, feito com concreto armado.
Voltamos já tarde da noite com jantar na Casa de Hóspede. Na manhã seguinte seguiríamos
para João Pessoa. Barreiras – João Pessoa pelos mapas deve dar em torno de 1500 km. De
avião monomotor, umas cinco a seis horas de vôo. Chegamos a João Pessoa, o general
comandante, ou não estava ou não tinha, não me lembro mais. O meu comandante, depois
do comando, foi promovido, em março de 1976, a general teve como primeira comissão o
comando do Primeiro Grupamento. Mas sendo ele mais antigo que o coronel Chefe do
Estado Maior, ficou como dono do campinho e da bola. As reuniões foram muito fechadas.
Aliás, elas não me interessavam uma vez que os oficiais das Seções Técnicas é que
estavam aprendendo as diferentes formas de controle que deveriam ser implantados nos
respectivos batalhões – 5º e 6º BEC. Nem me lembro o que eu fiquei fazendo, mas num
fundo de memória, parece que fiquei passando a limpo e ordenando meu relatório. Houve
ainda uma visita ao quartel de cavalaria – 16º Regimento de Cavalaria Mecanizado – 16º
RCMEC. O projeto de tal quartel é igual ao do de Humaitá, no Amazonas e que o 5º BEC
estava construindo, mas por empreitada. Tais projetos eram de um planejamento de longo
prazo, do então Ministério do Exército, que ficou conhecido como FT-90 (Força Terrestre
1990). Se fosse cumprido, a força teria atingido seus objetivos, naquela prazo, seria uma
força compatível com o crescimento do país. O modelo de aquartelamento recebeu o nome
de Transamazônicos. Todos os quartéis, que ficassem ao longo da rodovia BR 230, seriam
com aquele projeto. Assim eram: Humaitá, como também Itaituba, Altamira e Marabá. Mas
o interessante que o quartel ficava em BAIEAUX, ainda um distrito de João Pessoa era
considerado guarnição especial de primeira categoria. Era como eu em Feijó; era como
nosso pessoal em Humaitá. É que a legislação se referia a um meridiano ou uma paralela
que, quem estivesse enquadrado por ela, faria jus a tal tratamento: receber como se
estivesse em fronteira ou lugar insalubre. O limite era um córrego bem pequeno, hoje visto
com muita dificuldade, apesar de canalizado. Quase morremos de rir, mas era verdade com,
é claro, as manifestações dos oficiais do 6º BEC. Na verdade era uma afronta a todos nós
amazônicos. Mas nesse quartel, o subcomandante era um tenente coronel, que pelo biótipo,
era nordestino. O coronel, do 5° BEC, me pegou como secretário para anotar as
observações que ele tinha e as observações do comandante do regimento, pois o quartel
era recém recebido e o meu comandante cobraria, na construção em Humaitá os erros ali
anotados. Logo, onde ia o coronel eu ia atrás. O tal tenente-coronel foi perguntar logo ao
capitão carioca, gozador, porque aquele primeiro tenente estava fazendo na comitiva se só
tinha capitães antigos. Aí o carioca disse que: - “aquele tenente é guarda-costas do coronel.
Presta a atenção que aonde o coronel vai ele vai atrás. Esse tenente é mato-grossense e o
que tem de tamanho tem de bandido”. O tenente-coronel não tirava o olho de mim. Lá pelas
tantas, pouco antes de sairmos, ele veio até onde eu estava e perguntou se eu era mato-
grossense e de onde, porque ele tinha servido em Bela-Vista. Bom, só fui saber do ocorrido,
no jantar, com muito risos dos capitães e do coronel. E o jantar foi por conta do GEC no já
existente Hotel Tambaú. Engraçado que a área das praias era subúrbio de João Pessoa. As
casas eram bem humildes, com cercas de arame farpado ou de balaustres de madeira.
Na manhã seguinte, pegamos o avião que faria o caminho de volta, com baldeação
em Fortaleza. Em Manaus, ficamos um dia para os relatórios verbais aos oficiais do 2º GEC.
Almoço de despedida do pessoal do 6º BEC que tinham instalações próprias em Manaus.
Para registro para os mais novos, o 2º GEC tinha uma instalação no centro de
Manaus, alugada, onde funcionava o muito vigiado e muito suspeito Serviço de Suprimento
do Grupamento. Na Praça de Manaus, se fazia as aquisições para todos os batalhões
subordinados. Havia um segundo andar que era casa de hóspede com cinco ou seis
apartamentos. Já na ida para o nordeste, encontrei num armário uma farda, na época 3º D,
calça, túnica e sapatos, que, claro, não tinha nome identificando. Mas, por se de primeiro
tenente, de engenharia e com quatro ou cinco medalhas foi fácil identificar o Primeiro da
AMAN, de engenharia, da minha turma que andava lá pelas bandas de São Gabriel da
Cachoeira. Fiz um bilhete e coloquei no bolso da túnica. Nunca falamos sobre o bilhete
embora tenhamos nos encontrado várias vezes. Aliás, nem sobre o bilhete e nem sobre a
caixa de cerveja que perdi por não ter feito o curso de paraquedismo. Mas, eu já como
capitão, o Serviço de Suprimento do Grupamento havia mudado para o local atual, ou seja,
logo depois do corpo da guarda, à esquerda, no QG do GEC.
No outro dia fomos às compras na Zona Franca. Eu além do pouco dinheiro, não tinha
a menor ideia do que comprar. A matutisse ainda era grande. O nosso capitão carioca
resolveu comprar uma televisão, em preto e branco, na época coisa do outro mundo, uma
televisão portátil que ele exibiria no Rio. Em Porto Velho ainda não havia estação de TV.
Comprei um rádio PHILCO, com zilhões de faixas de vários comprimentos e com uma FM.
No Brasil ainda não havia estação de rádios comerciais transmitindo em FM. Comprei outros
óculos Ray Ban, bem escuro, quase preto. No aeroporto, as coisas da zona franca só saia
na cota que agora não me lembro quantos dólares eram. Um dólar era alguns mil cruzeiros.
Era preciso preencher uma Guia onde constava o valor da compra, a nota fiscal e a
descrição do objeto. Não adiantava pedir para botar o valor da nota muito baixo porque eles
desconfiando, comparavam com uma relação de preços. O que passasse da cota era
confiscado, devolvido ou se pagava o imposto, que em geral era cem por cento do valor. Se
devolvido, o freguês ficava com a mercadoria na mão sem poder embarcar. Muitos davam
aos taxistas. Essa guia era carimbada e o freguês teria que guardá-la para, quando fosse
transferido, ir à Receita Federal local para liberar o material para outras partes do Brasil (fora
da zona Franca). Havia também restrições quanto a alguns materiais eletrônicos. E a
televisão era um deles. O capitão, por melhor de conversa que fosse, não convenceu o
senhor, já sessentão. Quando ele soube que era capitão aí é que não cedeu. Como eu trazia
só o rádio e o homem não tinha me notado, disse ao capitão que desistisse, levasse a TV
para o lado de fora e voltasse que eu ia tentar passar, mas de modo a não cair na mesa do
senhor aquele. Claro, refazendo as guias. Não deu outra, fui chamado por uma senhora e
ela nem quis ver nada quando soube que era militar e trabalhava em Porto Velho fazendo
estradas. O capitão ficou desmoralizado por não ter dobrado o fiscal da receita no aeroporto.
Chegamos a Porto Velho depois de quase dez dias de viagem. E, para variar, esqueci meus
óculos Ray Ban, no avião. Usei-o do hotel de trânsito até o avião. Quase tenho um infarto,
por ser tão desligado, desastrado, desatento com minhas coisas.
Mal cheguei à Companhia, havia um pedido para eu ir até Humaitá, principal frente
naquele ano. As máquinas, segundo o pessoal do trecho foram “muito bem pintadas naquele
ano”, coisa do Kid que agora estava por lá. Preparei para ir na quinta-feira à tarde, ver as
máquinas na sexta e discutir, na sede da companhia, no sábado e retornar. Bem, para o
plano de tralho previsto, os gastos com as máquinas estavam compatíveis. É que as
máquinas precisavam de uma reforma (investimento) mais arrojada de modo que sua vida
útil fosse mais robusta. Todas estavam bem cuidadas e bem operadas. Lembro que abri
uma discussão com um sargento, recém chegado, não me lembro o nome, da necessidade
de se lavar o radiador, pelo menos uma vez a cada quinze dias. Ele era mecânico e vinha de
uma unidade de blindados. Faziam apenas assoprar com o ar comprimido do comboio de
lubrificação, o que era insuficiente. Os tratores conseguem a proeza de entupir toda a
colméia do radiador por que ele assopra para fora e assim, com poeira abundante que o
ambiente tem, e alguns vazamentos de óleo, a coisa vira um concreto nas colméias. Ele não
tinha vivencia na coisa, mas era do tipo teimoso. Disse a ele ser mais humilde e se quisesse
aprender alguma coisa, conversasse mais com o chefe de campo, que fora meu professor e
com o mecânico Kid. Eu já tinha uma bagagem muito boa sobre manutenção e operação de
equipamento e parece que o sargento, um tanto preconceituoso, pensava que eu não
manjava de nada. Mais tarde ele comentou isso comigo, mas já mais humilde. Eu só levei
roupa de instrução. À noite, dois tenentes, um R/2 e outro da minha turma, me convidaram
para jantar na cidade. Consegui uma camiseta e uma “calça lee” e, de coturno, fui ao jantar.
Valeu mais pela cerveja que pela comida. No sábado, reunido com o comandante da
companhia, acertamos algumas arestas. Era nada mais que a omissão legal, nome que
cunhei ao longo da vida. A regra era: solicitar material de manutenção (particularmente
peças) para o serviço de Suprimento, que, vendo ser de máquina, remetia, para a Cia Eqp a
solicitação; o material era embalado e deixado no Suprimento para remeter ao solicitante.
Na reunião quebramos a regra: tínhamos rádio direto; então ele me solicitaria as peças e já
mandaria pela tarde, para passar na última balsa do Rio Madeira, ás dezoito horas uma
picape; nós separaríamos a peça e seu motorista e viatura, ao invés de ir para a sede, ficaria
na Cia Eqp. Tínhamos como alojar um ou dois motoristas ou mecânico. Na primeira balsa de
retorno, de manhã, eles seguiriam de volta a Humaitá. Ao meio dia a peça estaria no trecho.
A coisa funcionou às mil maravilhas. O comando do batalhão só soube do acontecido no
final do ano. Como funcionou bem, ninguém se aborreceu. Mas em Humaitá, havia um
acampamento no km 80, que eu nunca mais localizei onde era. Nesse acampamento, a
companhia ficou quinze dias sem trabalhar. É que, quem não estava com malária, estava se
recuperando dela. Mesmo limpando em volta do acampamento, cerca de duzentos metros
de raio, não houve diminuição de casos. Quando mudaram o acampamento para dois km à
frente, nunca mais se teve malária. Vai entender os mistérios amazônicos.
Bom, no meio da semana, fui chamado à sede para falar com o comandante. Essas
chamadas sem motivos, pois eu não devia nenhuma informação e nem sabia de algum
desacerto, eu ficava preocupado: ou de levar uma bronca ou algum pepino a ser digerido. O
comandante foi direto: pediu para montar uma equipe para recolher as máquinas deixadas
em 1973, entre Manoel Urbano e Feijó. Houve uma determinação de algum órgão do
Exército, de Brasília: ou DEC ou DOC. Quando eu ainda estava em Vilhena, o então
comandante da Cia Eqp, com um mecânico, que participou da aventura naquele trecho, fez
um reconhecimento de helicóptero. Pela primeira vez ouvi a palavra tão comum nos curso
que faria no Exército: condicionantes. Eu tinha as seguintes condicionantes: levar o mínimo
de pessoal; levar pessoal suficiente para retirar todo o material; tinha o mês de setembro
para fazer isso, isto é, iniciar e terminar a operação sem correr risco de ser surpreendido
com chuvas. Nessa época ou não existia o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais)
ou não existiam os computadores do INPE que dava previsões com um mês de
antecedência. Na Amazônia o normal era a meteorologia errar sempre. Aliás, era comum, as
rádios comerciais anunciarem previsões meteorológicas para a região sul e para a Amazônia
(desconheciam que a Amazônia é 60% do território brasileiro). Assim, em algum lugar eles
acertavam.
Voltei apavorado. Como planejar algo para um terreno que eu não conhecia, para
corrigir uma situação da qual eu não tinha a menor idéia! Apenas trabalhara em Feijó por
trinta quilômetros e estivera em MUrbano por duas ou três vezes, mas eles trabalhando
perto da sede do distrito. Os locais das máquinas, desde o final do ano de 1973 não passava
ninguém. Primeiramente, por conselho do comandante, me reuni com o tenente
reconvocado que trabalhava comigo e que fizera o reconhecimento com helicóptero. Ele não
fizera um relatório da viagem. Apenas foi anotando o tipo de máquina e o quilômetro. Não se
preocupou com o estado da estrada de modo a me sugerir que tipo de viaturas e máquinas
levar. Passei a consultar os operadores em particular os cabos que estiveram na epopeia.
Eles me passavam muita informação, mas eu não tinha nenhum conhecimento do trecho de
modo a entender onde ficavam um e outro igarapé ou denominações locais, ou
características. Eu tinha uma semana para apresentar, pelo menos, um esboço.
Depois de conversar com várias pessoas, resolvemos montar a operação. Fiz uma
Ordem de Serviço, datilografada na Companhia. Por falta de treino, reconheço que não foi
uma das melhores que fiz. Mas as ideias estavam todas no papel, embora desarrumadas.
Entreguei numa tarde e voltei aliviado. Ficara livre de uma missão espinhosa: planejar
alguma coisa para outro executar, cujo este outro eu não tinha a menor ideia quem seria.
Achei que seria o Tenente que estivera comigo em Feijó e que fora um dos protagonistas da
epopeia. O dia seguinte seria formatura geral, por isso, seria quarta feira, e logo de manhã
alguém me disse que o comandante gostaria de falar comigo. Achei que seria algum detalhe
da operação que acabara de planejar. Ele me recebeu, chamou o subcomandante e disse a
ele: -“estou te chamando aqui porque à noite tomei uma decisão e quero que você coordene
isso: O tenente Higino fez o planejamento da Operação Jurupari (até aquele momento não
tinha nome) e como ele planejou quero que ele execute. Higino, a partir de agora você
estará a disposição disso”. E daí ele pegou meu planejamento e entregou ao
Subcomandante para que saísse um documento para o 2º GEC, pela terceira seção. Como
não existia xerox na época, eu passei a usar minha via que estava na companhia até que
saísse o tal documento do batalhão. O subcomandante me disse que a nossa ligação seria
direta e que eu lhe colocasse a par de tudo e pedisse o que fosse necessário. Voltei para a
companhia para dar a notícia ao pessoal. E aí passei a dar nomes aos bois: motoristas,
operadores, tratores, viaturas... em fim: dar vida à Operação. Mais tarde eu liguei ao
Subcomandante pedindo o respaldo do comando para: levar as melhores máquinas, os
melhores operadores e os melhores mecânicos, onde quer que eles estivessem trabalhando.
Aceita a proposta, ainda pedi que no retorno, todos teriam recompensa de oito dias de folga
e os funcionários civis, uma gratificação extra a critério do comando. Claro, me
recomendaram levar o maior número de militares possíveis. Como na companhia se sabia
de tudo, antes de partir de Porto Velho, saiu um rádio, assinado pelo subcomandante,
determinando que tais máquinas e tais operadores passassem à disposição da equipe da
Operação Jurupari. Aos comandantes de Companhia, se lhes fossem dada liberdade de
escolher, me dariam os piores de tudo – homem e máquina-, pois eles tinham que cumprir
os seus Planos de Trabalho do ano.
Embora tenha feito um relatório sobre a operação, nele não constou nomes do
pessoal e nem a numeração das máquinas retiradas. O relatório, por orientação, se
restringiu a: quantas máquinas, estados delas, locais onde se encontravam e possibilidades
de serem recuperadas, já que eu era o comandante da Companhia de Equipamento,
responsável pela recuperação de vulto em qualquer máquina. Não me lembro bem dos
nomes das pessoas. Seguindo as condicionantes, levei mecânicos de equipamento que
também poderia ser eletricista, lubrificador; motorista de caminhão que também era
mecânico de viatura; motorista que também era cozinheiro. Então, na medida do possível,
compus assim a equipe. Inicialmente se pensou em duplas de operadores e motoristas. Isso
para que, se caísse um doente, o outro substituiria imediatamente e ao pé da obra; E
também, se preciso fosse, como algumas vezes foi, trabalhar virando a noite. Foi descartado
pelo volume de comida para trinta dias. Assim levamos de Porto Velho um D/7, uma picape,
um jipe, um caminhão comercial com todo material de rancho e acampamento (quase que
não cabia a tralha), pois tinha ferramentas, máquina de solda, compressor de ar, grupo
gerador de sete KVA e por aí a fora. Cada especialidade se encarregava de se lembrar de
tudo que precisaria no mato. Não teria oportunidade de corrigir esquecimento. De Rio
Branco (2ª Cia) um D/8, o melhor do batalhão que lá estava – TE 30. Lembro bem porque o
comandante, da minha turma, jurou de pé junto que não cederia a máquina. Depois de um
“aconselhamento forte” do subcomandante, ele se ajeitou e disse que cederia em
consideração à mim. Além do trator, foi um caminhão tanque de combustível e uma
motoniveladora; de Sena Madureira, seria os combustíveis, armazenados em MUrbano,
outra motoniveladora e uma carregadeira de pneu.
De pessoal, que somavam vinte, era: da Cia Epq: eu, o sargento; um cabo mecânico,
o enfermeiro, o motorista do CC e o carreteiro. Em Rio Branco e Sena: os operadores: um
de carregadeira, dois de motoniveladora, um de D/8, o radio operador, o cozinheiro, o
motorista do caminhão tanque de combustível que trabalhara comigo em Feijó e estivera na
epopeia de 73, mais um cabo mecânico e cinco recrutas. Depois o número de recrutas
chegou a dez. De Humaitá, o considerado o melhor operador de D/7 do batalhão. Segundo
o pessoal ele fazia com lâmina de trator o que pouco operador de motoniveladora fazia. De
Abunã escalado um carreteiro e sua carreta.
Seguimos de Porto Velho e nos reunimo-nos com o pessoal e máquinas de Rio
Branco. Pela tarde seguimos para Sena Madureira e lá incorporar restante do pessoal e as
máquinas. Para transportar o D/8 recebemos o reforço de uma carreta que nos
acompanharia até a travessia do Purus. Também solicitei mais uma picape. Arranjaram uma
azul. A partir de Rio Branco, passei a dirigir o jipe, levado até lá, pelo sargento; a picape, do
comandante da Cia Eqp, ficara com os mecânicos. Na chegada a Sena Madureira tivemos o
primeiro grande embate: atravessar o Rio Iaco. A travessia sobre o Rio Iaco, hoje com uma
enorme e linda ponte metálica, era feita por uma balsa de cinquenta toneladas. Era por
navegação retida, isto é a balsa ficava engastada num cabo de aço e ou a corrente de água
ou um motor de popa fazia a travessia. Eram quatro ou cinco carros pequenos ou dois
caminhões cada travessia. No período chuvoso, o rio ficava com cento e cinquenta a
duzentos metros de largura. No período da seca ele ficava com quinze, vinte metros. A balsa
era exprimida com terra das margens e virava ponte. Naquela noite teria uma festa em Sena
Madureira. A quantidade de carro pequeno passando para a festa era muita. Assim, a tarde
foi pouco proveitosa. Passamos tudo para o lado de Sena, ficando apenas o D/8, modelo K,
que deveria pesar em torno de trinta e cinco a trinta e oito toneladas. Para ficar com menos
peso, retiramos a lâmina. Fizemos uma barreira dos dois lados da travessia e pedimos duas
horas para que passássemos o trator. Iríamos espremer mais a balsa escavando as
margens com o D/7 na sua margem (esquerda) e o D/8 na margem direita. Bom, assim foi
feito. Tudo muito rápido. Mas para nossa surpresa, quando o trator começou entrar na balsa
ela começou a afundar dando a impressão de tocar o fundo e assim se desmontar toda.
Como o leito ficou mais estreito isso acelerou a corrente e, em menos de meia hora, já havia
comido parte do aterro feito para espremer a balsa. Colocamos um cabo de aço engastado
no D/7 para tentar sustentar o D/8 já na iminência de cair no rio. O Operador era o
funcionário de Humaitá. Ele já estava com medo em cima da máquina. Tirou a roupa e ficou
de sunga. Qualquer movimento em falso era para ele se atirar n’água. De fora, pedi a ele
que desse uma torção no trator para a esquerda na tentativa de invadir, numa acelerada
forte, o barranco do outro lado. Quase saiu, mas ficou em situação pior. A margem foi
comida pela correnteza e agora havia um barranco, mais alto que a esteira e, ela, não
conseguiria subir. Do lado a jusante, a outra esteira começou a ficar flutuando, mais da
metade fora da balsa porque o trator escorregara traseira para a direita. Alguém achou uma
prancha de madeira de uns dez centímetros de grossura. Tentamos colocá-la sob a esteira e
sobre o barranco. Se subisse sobre a prancha, venceria o barranco que atrapalhava. O
tratorista acelerou bem o trator e novamente engatou a 2ª marcha para ele dar um pulo e
tentar vencer o barranco, mas com um lado da esteira. O outro ficaria inerte, (freado). O D/7
foi acelerado ao máximo e puxando de ré, que tem mais força. E num grito que dei, como se
fosse um partidor de cavalos, soltaram as embreagens. As máquinas rangeram e tremeram
de tanto fazer força. Num momento achei que tudo estaria perdido, mas o D/8 ganhou o
barranco e subiu tão veloz que quase acontece outro tipo de acidente: quase atropelou o
D/7. Foi uma gritaria não só nossa, mas também por uma imensa plateia que torcia ou para
nós ou para que liberássemos logo a balsa. Se a lembrança não me trai, era um “Festival de
Mandim” comum na época, quando começa a piracema de tal peixe. Tivemos que voltar com
o D/7 para a primeira margem para refazer a rampa. Passamos todos os carros que
esperavam e fizemos a travessia do trator novamente. Fomos dormir quase uma da manhã
tanto para se acomodar, tentar jantar alguma coisa na cidade, pois a companhia já tinha
encerrado seus trabalhos. E também a excitação, dos riscos corridos, fazia a todos perder o
sono. Para começo de trabalho a emoção foi além do esperado. No outro dia completamos a
travessia com a travessia da lâmina, agora com o D/7, apoiado pela carregadeira.
Fechando o efetivo previsto com o existente de máquinas e homens, seguimos para a
próxima empreitada: a travessia do Rio Purus em Balsa. Antes passamos por um rio
folclórico na historia do 5º BEC: Rio Caeté. A “estória” me foi passada, nessa missão, pelos
cabos e funcionários antigos como verdadeira. Vi o Rio Caeté, duas ou três vezes, bem
vazio embora uma vez com balsa e com navegação retida e as outras com a balsa servindo
de ponte, como fora o caso nessa operação. Ele é afluente do Iaco, que é do Purus, tudo
bem perto um do outro se considerar distancias amazônicas. Na época de chuvas fica com
trezentos metros de largura, por isso a balsa; na seca fica com cinco metros, por isso a
balsa virava ponte. A diferença do nível d’água de um período para o outro é de doze a
quinze metros, como presenciamos ao passar ali naquele momento. Resolveram fazer ali
uma ponte de madeira. Foi contratada uma firma para fazer tal ponte. Fizeram ela na altura
máxima que a técnica recomendava. Foi feita rapidamente em seis meses de estio. Antes de
“encabeçar a ponte” (aterro, das cabeceiras, da ponte), passou um seringueiro e disse:
“aponte vai cair; eu já vi passar água no galho daquela árvore” (a árvore ainda estava lá
quando passamos e ficava no barranco da margem esquerda e a jusante quando na seca).
Bom, não foi encabeçada, mas nas chuvas, o rio levou a ponte; refizeram a dita, no ano
seguinte, mas agora com o dobro da altura, contrariando a técnica. Passou o seringueiro,
olhou e vaticinou: “a ponte vai cair; não chegou na altura do galho”. Vieram as chuvas... e
levou a ponte, agora deixando muito pouca madeira. Disseram que chegaram estaiar a
ponte com cabos de aço, de uma polegada, mas mesmo assim ficaram os cabos e algumas
peças de madeira. Não chegaram “no gaio da árve”, como recomendou o seringueiro, não
tiveram ponte. Daí o uso de balsa no local.
A travessia do Purus era semelhante à do Rio Iaco. A balsa era de setenta e cinco
toneladas e assim optamos por fazer a travessia com a carreta carregada com o trator D/8, o
mais pesado, mas ainda sem a lâmina. A viagem da travessia foi somente a carreta, coisa
que já estavam acostumados a fazer por lá. Sem saber muito que fazer ou saber onde
acampar, decidi tocar, com um dos tratores rodando, ir acampar num lugar conhecido como
Km 80. Nunca soube por que oitenta, já que nem era oitenta da margem do Rio e nem
oitenta a partir de Sena Madureira. Talvez do Rio Caeté. Isso ficava a uns vinte quilômetros
à frente da entrada para a vila de Murbano (oito a dez quilômetros do Purus, pela BR, e
conhecida como “Manga de Murbano” que tinha uns dez quilômetros até a vila). Ali
acantonamos. Todos de posse de seus mosquiteiros, arma imprescindível ao cair da noite e
ao amanhecer. A cozinha se adequou rapidamente e tivemos um arroz com charque que foi
apelidado de “Carreteiro”. Ainda havia restos de acampamento anterior que melhorado ficou
até confortável. A chegada até lá foi fácil, apenas com os trabalhos da motoniveladora, com
uma ou duas intervenções do D/7 nos locais de bueiros onde os aterros foram cortados.
No outro dia, começamos a entrar aplicando o que tínhamos planejado na sede: trator
D/7 à frente, cobrindo as valetas maiores que impedissem as Motoniveladoras trabalharem e
seguia à diante. As motoniveladoras em seguida raspando, fazendo valetas laterais nos
lugares necessários. Embora fosse período de secas, a chuva era sempre uma ameaça e
era presente sempre. Sempre que possível, eu seguia à frente com o jipe como
“esclarecedor”. Não me lembro mais sobre a sequência das máquinas encontradas que
foram desde picape toyota bandeirante até escreiper, passando por rolo compactador. A
primeira máquina foi um D/8 sem uma das esteiras. Com certeza fora canibalizado. Com o
D/8 e a carregadeira, o trator que estava sem lâmina foi fácil carregar na carreta e deixá-lo
na margem do Rio Purus em MUrbano, em condições de serem embarcados para Porto
Velho.
O mosquito pium estava terrível. Todos já estavam sem a devida “imunidade” e a
coceira era irritante, o sinal das picadas era muito e algumas picadas ficavam com sangue
escorrendo. A partir desse dia, foi dada a ordem para não mais se fazer a barba e tentar
levantar a gola da gandola para que o cabelo a sobrepusesse e, assim, ter menos local para
o mosquito. Era a anti-figura de uma tropa militar. Hoje eu diria que era uma tropa adaptada
ao meio onde iria operar (ambiente operacional).
Numa determinada altura, encontramos um senhor que fez questão que fôssemos até
a casa dele. Ficava a uns cinquenta metros da estrada. Ele derrubara a mata, a machado, e
mesmo com várias tentativas de fogo, havia muito tronco grande. Juntamos os meios e ele
cedeu duas ou três galinhas e nós demos o restante. A senhora dele faz o almoço no
acampamento onde ele e seus três filhos e a mulher também almoçaram. Na sua casa vi
uma máquina de costura com pé. Perguntei a ele como teria a máquina chegada até lá. Ele
disse ter comprado a máquina em Sena Madureira; de barco chegara a MUrbano; de lá com
uma canoa remou por um igarapé, que não guardei o nome, e depois andou dois dias na
mata com a máquina nas costas até a sua casa. Essas coisas que me fizeram duvidar de
“dificuldades”. Nada resiste a persistência de um homem determinado. A dificuldade
insuperável é a armadura dos fracos.
Mas o que me chamou a atenção foi a violência das águas. À medida que
entrávamos, encontrávamos bueiros arrancados, de diferentes diâmetros, e como que
jogados trinta, quarenta metros fora do eixo. Se quisessem fazer aquilo com um bueiro
montado e com todo aquele comprimento, não se conseguiria. Literalmente jogados sobre
uma vegetação mais secundária longe do que fora um dia uma cava. Havia bueiro de um
metro, montado por encaixe, que literalmente ficara em pé ao lado de uma enorme árvore.
Pena que não se tinha máquinas fotográficas como as digitais de hoje.
O pessoal, que estivera no fatídico ano de 1973, quando as máquinas ficaram pelo
trecho, e que estava, ali, na Operação comigo, me contou, o seguinte: com a chuva apenas,
as águas dos bueiros tinha uma direção de corrente; mas depois que os rios maiores iam se
avolumando, os igarapés iam sendo represados, pelos maiores ainda, culminando com o
Purus que invertia as correntes como se maré alta fosse. Tudo isso vale para o Juruá,
também. Daí serem vistos os bueiros arrancados em diferentes lados da estrada. Como já
dito em outro lugar, a partir de Manoel Urbano e para tentar chegar a Feijó, foram feitos os
tais ”grade” rolado: os bueiros eram lançados e sobre eles colocados a mínima camada de
solo como “aterro de envolvimento” e para a concordância com o terreno, sem completar a
terraplenagem. Quando a água aumentava, com facilidade ela contornava o bueiro. Então
ficava aquela enorme vala com a água escorrendo de um lado e de outro do bueiro. Com o
auxilio da carregadeira, sempre que possível, recolocávamos o bueiro no local e refazíamos
o aterro de envolvimento apenas para facilitar nossa missão. Quando o bueiro estava muito
estragado, colocávamos troncos, de árvores, ocos de modo a atuar como bueiro. Se não
houvesse outro material para canalizar a água, e ela fosse contínua, fazíamos feixes de
varas e colocávamos na vala, perpendicular ao eixo, e recobríamos com terra. A água
passaria entre as varas à guisa de bueiro.
A primeira escreiper que encontramos estava com falta das duas rodas traseiras.
Como fora abandonada, havia outras peças que lhe foram retiradas. Portanto, não havia
como fazê-la funcionar. Esta máquina, para quem não a conhece, tem uma enorme caixa
que é a caçamba onde transporta o material terroso. E o cavalo que é a parte com motor,
que traciona a caçamba, e também faz funcionar todo o sistema hidráulico que nessa
máquina é importantíssimo. A máquina tem uma figura esquisita: duas rodas traseiras, a
caçamba e um pescoço articulado com o cavalo com outras duas rodas. A direção é dada
por dois potentes cilindros hidráulicos. Pelo pescoço e por outros cilindros é que se faz a
força para carregar, para levantar a caçamba depois de cheia e para descarregar na
espessura especificada o material de terra. Sem funcionar o sistema hidráulico, o cavalo fica
incontrolável no pescoço. Isto é, fica impossível empurrar a máquina. Só é possível puxá-la.
Tentamos usar o processo feito com o D/8: levantar tudo nas lâminas do D/8, do D/7 e na
concha da carregadeira. Não havia como suspender tudo de modo a carreta entrar embaixo.
O cavalo sempre entrava em “L”. Tentamos fazer com os tratores uma rampa e tentar guiar
o cavalo com um trator de cada lado e a carregadeira empurrando na traseira. A coisa quase
funciona, mas as lâminas não tinham altura suficiente. Perdemos um dia e não conseguimos
carregá-la. Decidi parar e ir a MUrbano, na manhã seguinte, trazer mais ferramentas e
desatrelar o cavalo da caçamba e transportar os dois, em viagens distintas. Um dos recrutas
que me acompanhava no jipe disse: –“Tenente, se não se pode elevar a escreiper, pela
rampa, porque não enterramos a carreta?” Heureca!!! – o danado acabava de resolver todos
os nossos problemas, dali para frente. E adotei a sua ideia em todas as oportunidades que
tive de fazer carregamento em carreta: ao invés de rampa para cima, fazia-se rampa para
baixo. Depois foi covardia: colocamos a escreiper alinhada no centro da estrada; com a
carregadeira (modelo 966) escavou-se um buraco, paralelo à máquina, até a altura da
carreta. Por coincidência, a largura da concha da carregadeira era a largura da carreta
sobrando um palmo de cada lado. A carreta entrou de ré ficando na altura do terreno; o
carregamento se resumia em empurrar a carga ou com a carregadeira ou com um dos
tratores de esteira. A ideia do soldado foi a salvação.
Tinha local que demorávamos dois dias para transpor um igarapé. Além do buraco, da
brecha, o difícil era achar uma solução para que se atravessasse e ainda o processo de
escoamento d’água continuasse, pois, o retorno da carreta carregada e o nosso retorno
deveriam estar garantidos. Não bastaria apenas aterrar o igarapé, pois ele arrobaria o aterro
e nós ficaríamos isolados. Em alguns lugares, fizemos pinguelas e nesses casos se fazia o
aterramento do igarapés de modo que o aterro facilitasse a colocação das madeiras da
pinguela. Em outro local explico melhor o que seja pinguela e como se faz uma.
Mudamos o acampamento para junto de um Igarapé que eu não mais me lembro o
nome. Perto havia uma casa de moradores, restante de seringueiros que apostavam, na
abertura da rodovia. Sobreviviam ali de alguma forma na esperança de que um dia a estrada
lhe fosse a redenção. Isso me faz doer na alma até hoje. Como tínhamos um gerador
Honda, num sábado com muita chuva, o que nos impediria de trabalhar até segunda ou
terça, o operador de Humaitá pediu para fazer um baile, pois o dono da casa que tinha
várias filhas, tinha autorizado. Eu perguntei ao senhor e ele disse que sim. Fizeram o baile e
tudo correu bem. Fui rapidinho apenas para cumprimentar o dono da casa e voltei para o
acampamento a uns trezentos metros do local.
Depois de uns três dias, apareceu nessa casa, uma senhora que dizia ter setenta e
cinco anos. Ela disse que nunca tinha visto um automóvel. Seus pais, cearenses, diziam a
ela que existia automóvel, uma coisa que andava muito rápido. Quando o pessoal trabalhava
na estrada ela ficou de vir para ver, mas passou o tempo e o pessoal foi embora. Mas da
locação (local do seringal – barracão do seringalista) onde morava, eles ouviram de novo o
barulho das maquinas. Então ela veio com sua neta e andou por cerca de dois dias pela
mata para chegar até ali. Já no final da tarde ela chegou ao acampamento. Como eu ficara
naquele dia com a picape azul, coloquei-a na cabine e na porta sua neta, uma menina de
uns doze anos, de modo que se a senhora se assustasse, não tentasse abrir a porta e pular
com o carro em movimento. Assim, andamos uns dois quilômetros em direção a MUrbano e
voltamos. Deixei-a na casa do morador onde houvera o baile. Ela agradeceu muito e disse
que poderia morrer agora, pois vira e andara de automóvel. Que enorme contraste neste
Brasil. Não duvido que por lá ainda exista gente como ela: um animal selvagem que fala,
depois de trinta e cinco anos já passados. Pois não se pode considerá-la gente, na acepção
nossa de gente urbana e dita civilizada. Não por ela, mas pelas circunstancia de onde ela
nasceu e no tempo em que ela nasceu. Mas, pelo menos fiz minha parte: ela andou de
automóvel e fui eu quem proporcionou isso.
Levamos conosco um rádio SSB que funcionava com bateria de 12 volts: rádio P530
- SSB. Logo que entramos, como tudo, estava na carroceria do caminhão comercial (CC) o
equipamento rádio e a bateria. Num dos inúmeros buracos, no balançar a carga, uma lata de
margarina de dezoito quilos fez curto na bateria. Não só derreteu o borne como furou a lata
de margarina. Se não fosse a esperteza do motorista teríamos perdido a margarina. Ele,
pelo retrovisor viu a fumaceira saindo debaixo da lona e parou. Bom, cortou um tarugo de
árvore e fechou o buraco da lata de margarina. Mas a bateria ficou inútil para o rádio. Numa
viagem a Murbano trouxeram uma pilha grande de lanterna. Com seu carvão, conseguiram
recuperar o borne, com molde de argila. O tal equipamento, dependendo do local, da
posição da antena, se podia falar com Murbano. Na maioria dos locais isso não era possível.
Num dia tal que não me lembro do qual, a propagação estava boa e falávamos 5/5
(linguagem de radiocomunicação internacional – rádio amador inclusive – quer dizer que a
potencia com “sinal” de valor cinco e a “clareza” da fonia, cinco, valores máximo para tais
fatores). O operador em Murbano trabalhara comigo em Feijó. Ele, quando acionava o
“combinado” (microfone ligado por fio ao rádio onde tem uma tecla que se aperta ao falar),
para falar conosco, eu ouvia as fonias no Radio Delta, da rede do 5º BEC. Perguntei se ele
queria tentar uma ousadia. Poderia fazer uma ponte com Porto Velho. Claro teria que ser
bem devagar, pois ele, ao me ouvir falando no SSB, teria que usar (apertar) o combinado do
Delta perto do alto falante do SSB para captar a voz; ao eu dar o cambio ele inverteria:
usaria o combinado do SSB no alto falante do Delta; o diálogo da fonia teria que ser com
palavras curtas. Ele chamou Porto Velho, e entrou o Sargento responsável pela estação
rádio. Fizemos um bom treino. Aí o sargento se entusiasmou e acionou o S/4 para um QSO
(fonia). O Major ficou num entusiasmo tão grande que parecia que eu falava da lua. Fiz um
relato detalhado até o momento, pois de cada máquina recolhida fazia uma mensagem via
radio para Murbano e era transmitido de MUrbano para Porto Velho. A minha ligação com
Murbano era apenas como socorro ou dar posição no terreno. Mas foi surpreendente a
emoção do major.
Nas idas e vindas da frente para o acampamento, e vice-versa, num igarapé, estava
eu e o sargento no jipe quando vimos duas meninas: uma de uns sete anos e outra de dose
a catorze anos (adolescente). As duas estavam pescando perto de um bueiro. Quando nos
viram, saíram correndo mato a dentro. Parei o jipe e corremos atrás delas. Elas, assustadas,
foram direto para um tapiri a uns duzentos metros mata a dentro. Chegaram no tapiri e
ficaram acuadas de medo. A maior, já com seios de moça, mas com um vestido de tecido
tão ralo que se via todo o corpo da menina. Perguntei por que ela correra e respondeu que
tinha vergonha da roupa, mas que não tinha outra para vestir. Sentou-se no chão para que
sua nudez, pela transparência da roupa, fosse amenizada. A outra menina, embora mais
nova, era mais fluente e mais corajosa. Passou a conversar normalmente. Perguntamos se
tinha família: pai e mãe. As duas meninas não eram irmãs, apenas amigas e a mais nova
morava em MUrbano e esperava seus pais vir buscá-la a qualquer momento. A outra
morava ali mesmo, mas não tinha mãe; apenas pai e dois irmãos. Perguntamos por eles e
ela nos mostrou outro tapiri mais ao fundo onde eles estavam. Fomos lá, com elas. Os três:
pai e dois filhos jaziam no piso de paxiuba, todos duro de infecção nas pernas por cortes,
lechimânia e outras ziquiziras mais. Todos com febre alta. As meninas foram pescar para
garantir a comida delas. Eles, há dois dias não podiam se levantar e há dois dias não
comiam. Voltamos ao acampamento e trouxemos o enfermeiro com injeção de benzetacil e
foi aplicada uma ampola em cada um. Trouxemos arroz e feijão para eles. O sargento foi a
Murbano, achou os pais da menina menor e por lá, numa lojinha, comprou roupa para a
adolescente, desde calcinha até sutiã. Dividimos a despesa no acampamento com os
demais militares. Assim deixamos a todos e seguimos no nosso trabalho. As meninas foram
para MUrbano, incluída a adolescente; seus irmãos e pai, já melhor com uma benzetacil,
tomaram a segunda e a terceira dose. Melhoraram tanto que foram cortar seringa, a única
atividade que lhes restavam a fazer para tentar sobreviver. Até hoje penso que se não
tivéssemos perseguido as meninas, elas teriam morrido de fome e os irmãos e pai morrido a
míngua de infecção.
Passado mais uns dias, quando ia mais á frente como esclarecedor, vi sair da mata
uma mulher com uma criança nos braços que tinha mais ou menos uns dois anos. Era uma
mulher nova, de uns vinte e cinco anos. Parei o jipe e perguntei para onde ela ia. Disse que
chegaria até o acampamento do Sardinha para levar o filho para tomar medicamento.
Esclarecendo melhor, do nosso acampamento até Murbano tinha uma fazenda que estava
fazendo um grande desmatamento para pecuária. Tudo feito empiricamente, pois ninguém
tinha a menor ideia se ali iria nascer esses capins de pastagem do centro sul do Brasil. A
EMBRAPA engatinhava ainda. Era um tiro no escuro. Nesse local tinha um campo de pouso
conhecido por Sardinha. Voltando à mulher, revelou ela que já andava a três dias para sair
ali. Tinha às costas um paneiro (em outro lugar descreverei o que seja) com roupa, comida o
que lhe daria um peso de uns cinco quilos ás costa e um facão amarrado ao paneiro. Tinha
aspecto cansado, olhos fundos, mas muito altaneiro e resoluto. Cabelos bem pretos,
desalinhados, longos e protegidos por um pano á guisa de lenço. Teria um metro e setenta
mais ou menos. Calçava “sapato de seringa” (em outro local descreverei isso). A criança era
extremamente amarela, quase desfalecida, já largada nos braços da mãe. Os olhos saltados
quase fora da órbita. Uma imagem horrível a da criança. Ela disse que trouxera há uns vinte
dias o menino para o enfermeiro medicar. Este disse a ela que retornasse para ele aplicar
mais injeção. Pelo tamanho da cabeça do menino ele tinha, a meu ver, hidrocefalia.
Imediatamente mandei que ela subisse e retornei até ao Sardinha. De onde eu estava ficava
uns seis a dez quilômetros. As distancias em estrada ruim ficam de avaliação prejudicada.
No local, conversei com o enfermeiro e ele disse que tinha dado bezetacil na criança, mas
que ele não sabia que doença o menino tinha. Olhei para a mãe e ela, no seu sexto sentido,
entendeu que a criança não viveria. Seus olhos merejaram. Pedi que ela sentasse e dei um
tempo para ela se recompor. O marido ficara com as outras crianças. Tinha quatro filhos e
aquele era o quinto. Disse a ela que a criança não sobreviveria. Se ela quisesse eu a
mandaria, mesmo assim, para Sena Madureira. Como não se sabia quando a criança ficaria
boa ou faleceria, eu tinha medo de deixá-la tão longe (de Murbano a Sena são uns oitenta
quilômetros; mais o trecho que já tínhamos entrado mais uns trinta). Minha missão
terminaria em menos de um mês e não teria como trazê-la de volta. Se chegasse o período
de chuvas, nem até MUrbano a 3ª Cia poderia trazê-la. Ela, resignada, apertou a criança nos
braços, como com medo de perdê-la; as lágrimas rolaram de seus olhos. Um choro
silencioso. Disse que voltaria para casa e que se fosse da vontade de Deus a criança
sobreviveria; se não fosse, faleceria e ela a enterraria com outras, da sua colocação. Ela
disse que com injeção anterior o menino ficou bem melhor. Ela acreditava que, se tomasse
mais algumas, a criança melhoraria. Então esperei o enfermeiro aplicar a injeção. A criança
apenas gemeu e quis espernear um pouco. Eu sabia que bezetacil dói muito, mas muito, e a
criança já não mais tinha força para reagir, para chorar. Coloquei-a no jipe para deixá-la no
mesmo local que a encontrei. Ao passar pelo meu acampamento, com meu enfermeiro já
com malaria numa rede, pedi a ele os antibiótico forte ele trouxera. Disse ele lá o que tinha e
eram umas dez caixas. Entreguei a ela e disse que, passado oito dias, desse um
comprimido por dia, e era essa a prescrição da bula. Depois daquilo é que voltasse para o
enfermeiro. Colocamos vários sacos de biscoito Mirabel, duas ou três latas de conserva em
seu “paneiro” e seguimos para o local de onde ela saíra da mata. Estava mais aliviada, pelo
apoio que recebera. Durante o deslocamento ela disse que se o menino melhorasse, com a
segunda injeção, ela voltaria até à enfermaria do Sardinha. Segundo ela, a três horas dali
ela chegaria na casa de alguém conhecido. No local que ela pediu, ela desceu. Agradeceu e
entrou na floresta. Só não chorei porque tinha comigo um soldado. O jovem também ficou
emocionado. Uma impotência completa. Uma vontade de largar tudo e sumir por tanta
incapacidade de fazer algo mais realista, mais eficaz. Eu não poderia deixá-la em Sena...
tinha mais filhos. Passei muitos anos com um enorme peso da alma. Ainda na operação,
sempre que passava pelo local ficava olhando para ver se não apareceria novamente.
O efeito da água, do período de chuvas, era devastador. Pena que na época não levei
máquina fotográfica. Em alguns lugares além de levar o bueiro inteiro, derrubava enormes
árvores que se atravessava na estrada. Somente um trator pesado conseguiria empurrá-las
para fora do eixo.
Passamos pelo último igarapé afluente do Purus e chegamos ao primeiro do Juruá.
Entre os dois, uns oito a dez quilômetros, não tinha um local para beber água. Era um
deserto em plena floresta. Coisa fantástica aquele divisor de águas. O primeiro do Juruá se
chama “Igarapé Curupari”. Na região encontramos uma ONÇA, os ditos alojamentos sobre
chassis e que poderia ser arrastado por motoniveladora. O levamos para o acampamento e
estava em bom estado com algumas telas rasgadas. Eu preferi a rede.
Nesse mesmo lugar reencontrei o senhor que pedira para morar na casa pré-
fabricada e ainda ali estava. Bem ruinzinha. Ele me mostrou a autorização antiga. Eu renovei
a autorização, mas agora informando que um dia alguém do 7º BEC o encontraria. Vi que
tinha realmente alguns “ligumis” plantados e cinco filhos com uma mulher de uns vinte e
cinco a trinta anos. Ele era bem mais velho que ela. Perguntei a ela se não tinha receio de
ter filhos com um senhor tão mais velho e ela disse que não, pois “tudo era vontade de
Deus”. Idiotice minha: como alguém, naqueles cafundós, poderia pensar em melhorar a vida,
ter controle de natalidade, pensar em futuro. Arrependi de fazer uma pergunta idiota. Notei
que ele não era bem quisto pelos demais moradores, pois ele passou a usar meu nome e
assim ele distribuía os terrenos aos demais. Também não o desautorizei de nada: fora o
único que foi até Feijó, a 70 km, pedir alguma coisa.
Á frente do Curupari, encontramos outra escreiper em situação interessante para
folclore. Até parece história de pescador a situação. A máquina estava com dois pneus: um
retirado e furado e outro inteiro e ainda com ar, bem inflado que não fora colocado e o
comando final sobre um toco. Segundo um dos cabos mecânicos, aquele pneu não fora
trocado devido à quantidade de abelhas pretas (arapuá, na terrinha) que havia na região.
Elas atacavam tão violentamente, não para ferroar, mas para sugar suor, que tornava a
presença humana impossível. Achei um pouco de exagero, mas nos preparamos para
transportar a máquina uma vez que agora estava fácil: alinhá-la na estrada; cavar com a
carregadeira e empurrar tudo para cima da carreta com um trator de lâmina. Bom, em cinco
minutos que estávamos ali, tentando retirar os pneus, começaram a chegar abelhas pretas.
Em quinze minutos, a situação estava impossível de ficar no local. Tentamos fazer fogo e
usar galhos verdes para fazer fumaça, mas não adiantou. A solução foi retirar as camisetas
e ficar de gandola e fazer turbante ficando com os olhos apenas para fora olhando pela gola.
Como já dito, cada abelha esmagada deixava grudento o local do corpo por causa das ceras
que elas transportam consigo. Se por acaso entrasse no cabelo, aí sim que o incomodo era
grande. Para cada abelha esmagada chegava milhares de outras. Naquele local ficou uma
nuvem preta. Foi um trabalho rápido. Acabei por queimar a língua quando disse que não
colocaram o pneu por relaxo quando me relataram o fato de que o pneu ficou sem ser
colocado por causa das abelhas. Elas simplesmente expulsaram os mecânicos. Se
tivéssemos que ficar lá para colocar o pneu no lugar, com toda a certeza não suportaríamos
os ataques dessas abelhas.
Teve um dia que recebemos a visita de dois tenentes da 3ª Cia. Vieram a Murbano e
viram a quantidade de máquinas que já tínhamos recolhida. Resolveram ir até nosso
acampamento porque a estrada estava boa, para as condições de nosso trabalho. Estivera
lá e almoçaram galhardamente um bife com japona de jabá (bife à milanesa). Foi uma
agradável surpresa. O tenente que servira comigo em Feijó viera orientado pelo seu
comandante de companhia para pedir pessoalmente para canibalizar algumas peças que
precisasse em Sena Madureira e trecho de MUrbano. Aceitei, porque era eu ainda o
comandante da Cia Eqp. Pedi que retirasse a peça servível, mas colocasse a inservível no
local. Caso contrário me atrapalharia, no relatório final, dar uma estimativa de recuperação
de todas as máquinas.
Um certo dia, chegamos ao Rio Jurupari. Só tínhamos notícia de uma máquina à sua
frente, mas não sabíamos a que distancia. Depois de fazer a pinguela e ali foi fácil porque
tinha muita madeira do que fora uma ponte. O Jurupari também se comportava como o
Caeté. Fizeram e refizeram ponte de madeira várias vezes. O rio estava na vazante máxima.
Podia ser transposto em um salto. Mesmo assim, até que os tratores melhorassem os
acessos levamos dois dias. Havia um baixadão de uns dois quilômetros onde as águas
haviam arrombado vários bueiros pequenos. Naqueles dias encontramos um trator que não
fazia parte da relação que tínhamos. No controle da Cia Eqp, historicamente tal D/8 estaria
naquele trecho. Mas na relação ele não constava. Graça a um dos seringueiros que
andavam por ali, usando até uma casa pré-fabricada de madeira do BEC, disse que tinha
um trator totalmente coberto de mato. Aí ele nos levou ao local. Realmente era impossível
descobrir o D/8 ali. Havia crescido um cipoal sobre ele que nem com raios-X seria detectado
ali. A mata se recompõe muito rapidamente.
Poucos dias antes, o sargento e o enfermeiro passaram a reclamar de intensa dor de
cabeça. Numa das idas a Murbano eles passaram pelo acampamento do desmatamento do
Sardinha e o enfermeiro deles aplicou soro com aralen. Pelo sintoma estavam com malaria.
No Jurupari tivemos um fato até engraçado. O motorista do caminhão tanque de
combustível (CTC), que fora meu motorista em Feijó, tinha se arranjado com uma jovem de
lá. Na época deu muito o que falar pois ele já tinha mais de trinta anos e ela era filha de
pessoa de bem da cidade, mas com uns dezessete ano. Pois bem, nessa missão, o tal
motorista morava com a menina em Sena Madureira. Ele me pediu para levar a mulher. Eu
disse que era meio esquisito, pois só tinha homem e tinha o problema de alimentação, local
para dormir. Ele disse que faria sua comida em separado e eles dormiriam no caminhão.
Bom, contrariado, aceitei. Mas ela levou junto um pintinho de galinha bem novinho. O pinto
com ela perto não piava, mas com ela longe ele piava o dia todo sem parar. Quando ele ia a
MUrbano abastecer o CTC ela ia junto e sempre trazia uma novidade, para comer. Ao
chegarmos ao Jurupari, vimos muita gente com malária, ele a deixou em Murbano e ela
chegou a Sena, até que retornássemos. Ainda bem, porque o marido dela pegou malaria.
Mas, chegando a Sena, no retorno, ela estava na sede da companhia para receber o marido
e levou o pinto. Com quase quarenta dias o pinto já estava um galo quase. Disse a ela que
se não tivesse retornado o filhote dela, como ela chamava o pinto, teria virado caldo no
acampamento.
Uns duzentos metros do Jurupari, morava uma família que tinha parentes em Feijó.
Tinham três filhos: duas meninas e um menino. O senhor, que vivia de extração de seringa,
disse que subindo o rio havia um barracão de seringal. Disse que no dia anterior, matara
uma caça e trouxera na canoa. Deixou sua botina na canoa e levou a caça para sua casa,
Quando voltou para pegar a botina a canoa tinha sido arrastada da margem para o rio e só
tinha uma botina. Ele julgava que a outra botina fora comida por uma sucuri. Ficou como
estória de pescador. Como havíamos aterrado o rio para fazer a pinguela, o rio represaria
por dois ou três dias antes de estourar. O dono da casa informou que, com a cheia, ficaria
perto ir até ao barracão do seringal. Estávamos no máximo duas horas de remo. Isso foi
informação do seringueiro. Os cabos pediram para comprar umas duas ou três garrafas de
pinga, no Barracão, pois segundo o seringueiro, ainda, tinha um bom estoque por lá. Seria
aniversário de um deles. Como tal coisa chegava até ali, não sei, talvez no forte das chuvas
e por canoas. Trocamos, com a senhora, algumas latas de conserva, porque a comida já
estava pouca, por um frango sevado que eles chamavam de frango-capão embora eu não
saiba se de fato o bicho fora castrado. Tal prática, castrar galo, é extremamente cruel, mas
o pessoal do interior faz isso. Os cabos pediram que eu escorvasse um petardo de cem
gramas de TNT para eles soltar no rio e assim matar alguns peixes. A coisa é criminosa,
mas acabei cedendo. Treinei um dos cabos para soltar o petardo, com quinze minutos de
retardo. Recomendei que escolhessem o local e depois saíssem do rio e lançassem o
petardo n’água. Depois do estouro é que voltassem para a água. No meio da tarde
resolveram subir junto com o senhor, como guia. Voltamos para o acampamento original, os
não pescadores. Eles foram chegar quase nove da noite. Eu já estava apavorado com medo
que ter acontecido algum acidente com o petardo. Estava deveras arrependido de ter cedido
aos argumentos. Mas chegaram para meu alívio e disseram que mataram muito peixe por
isso a demora. Deixaram bastante peixe ao senhor. Levaram um enorme peixe de figura pré-
histórica. Chamaram-no de “cuiú-cuiú”. Na internet dizem pesar entre nove, dez quilos. Esse
tinha uns quinze a vinte quilos. Não tem couro, são placas como jaboti, mas não tão duras
assim; tem uma linha de placas com uns ganchos que percorre todo o comprimento nos dois
lados. A cabeça é quase a metade do peixe; a boca é arredondada como boca de papa-
terra. È um bicho muito feio. Tem carne como de peixe de couro. O sabor é excelente. Bom,
foram dormir tarde da noite preparando os peixes. No outro dia achamos melhor mudar para
a beira do Jurupari. Havia uns restos de acampamento bem melhor do que o que tínhamos.
Aliás, tinha até uma casa pré-fabricada em ruína que depois de uma melhorada e coberta
com lona deu para abrigar a quase todos. No jantar comemoramos o aniversário do cabo
com uma peixada e com a pinga. À noite choveu. Perderíamos uns dois dias ainda no
mesmo lugar antes de mudar.
No outro dia recebemos a visita do seringalista que vendera a pinga. Ironia do
destino: era o mesmo senhor que eu mandara a carta para ele se apresentar em Feijó, no
ano anterior, sob a ameaça de inquérito. Comentamos a coisa e rimos da situação. Ele
ainda pegou parte do aniversário.
Nesse acampamento, novamente me pediram para fazer outro baile e eu autorizei a
levar o gerador Honda, mas lembrando que viessem cedo porque, no outro dia, iríamos fazer
mudança e tentar seguir em reconhecimento na direção do próximo igarapé. O bendito do
operador de Humaitá disse que dormiria até mais tarde porque estava cansado. Aí eu
aloprei: Balancei a rede dele e disse que ele não pertencia mais a minha equipe e que
voltasse à pé para MUrbano. Como ele seguiria para Porto Velho e Humaitá era problema
dele. Ele desarmou a rede, colocou suas coisas num saco e ganhou a estrada. Sei que
deram carona a ele, na primeira viatura que foi a Murbano. A todo o momento,
encontrávamos pedaços de peças, conjuntos, rodas e coisa que, completando a carga de
um caminhão, ele ia a MUrbano descarregar. O Caminhão era o do aparato de rancho. E até
o CTC ao buscar óleo diesel levava coisas.
No outro lado do rio, nuns tapiris, estava uma enorme família. Havia umas dez ou
doze pessoas entre pai mães, filhas, netos, genros. Todos com malária. Foram expulsos de
um seringal e não tinham como sair dali. Comiam peixe e alguma caça quando podia. A
vizinha, a do frango e do igarapé anterior, fornecia o sal para o único tempero da comida.
Em troca de lavagem de roupa, nós fornecendo o sabão, comprado em MURbano, demos
algumas comidas. Nós já nos preparávamos para voltar. Pela relação, faltava apenas um
trator de esteira que estava entre o Jurupari e o Macipira, no pior trecho da estrada. Mas
nossa comida estava racionada. Havia bastante biscoito MIRABEL, da empresa AILIRAM,
que lendo invertido é MARILIA. É que ninguém mais aguentava comer biscoito. Ele sobrara
porque se consumia pouco. Disse que os levaria, mas na ocasião de nossa retirada.
Algumas meninas seguiram para MUrbano porque alguém queria meninas para trabalhar
como empregada. Também fiquei preocupado com um menino, de uns cinco anos, que fazia
trinta dias que estava com febre e já dava sinais de que entraria em coma a qualquer
momento. Além da malária a má alimentação. Numa ida da picape, mandamos ele com a
mãe a MUrbano e mandei um radio para a Companhia de Sena Madureira dizendo do caso
do menino. Eles vieram até MUrbano pegar o menino e interná-lo no hospital de Sena
Madureira. Por radio a Murbano, o médico da companhia informou, uns dois dias depois,
que o menino era um caso raro na medicina. Ao pesquisarem a lâmina em microscópico,
constataram estar ele com mais que quatro cruzes de malária (porque só podem atribuir
quatro) de cada tipo: 4 de malária vivax e 4 de malária falciparum. Teoricamente, ele deveria
estar morto. Todos seus glóbulos vermelhos estavam tomados. A anemia era quase uma
leucemia. E estava no ciclo vicioso: quanto mais malaria, mais anemia e menos resistência;
menos resistência, mais malária. O tenente bioquímico da companhia guardou a lâmina para
apresentar em congresso. O menino não morreu. Voltou para os pais que já estavam em
Murbano quando da nossa retirada. A seleção natural o fez super-homem.
Na ocasião quando foi represado o Jurupari, à jusante, ficaram aqueles poços de
água e muito peixe pequeno. Eu já estava querendo romper o entulho para a água voltar a
correr. Para os moradores foi uma festa. Mas notei uma coisa deslocar de um ponto a outro,
num poço raso. Como tinha pouca água, peguei uma vara e fui reconhecer o que se
deslocava. Era outro bicho pré-histórico. Consegui retirá-lo da água. Chamei um operador
que estava perto de mim e perguntei o que era aquilo. Ele me respondeu que se tratava de
uma “tartaruga” com o nome de “matá-matá”. E que era comestível, embora aquele fosse
pequeno para isso. Bom, deu para ver que era um quelônio com casco parecido com o de
tracajá, cágado, mas seu pescoço e cabeça eram mais pré-históricos que o cuiu-cuiu. A
cabeça enorme triangular e boca grande; o pescoço muito comprido, maior que o corpo. Era
tão grande que ele, para resguardá-lo o enrolava, para o lado esquerdo, ficando a ponta da
cabeça perto da cauda. Em algumas placas do casco tinha uns ganchos como no cuiu-cuiu.
Olha, o bicho era bem feio. Pelo aspecto dele vivo, só com muita fome para comê-lo.
Uns cinco quilômetros a frente do Jurupari havia uma baixada longa conhecida como
baixada do Maracju. Ela terminava no igarapé Maracaju. Logo em seguida começava uma
sequencia de cerrotes, com cota de mais ou menos trinta a cinquenta metros, conhecidos
pelos peões como “Ladeira dos Macacos”. O inusitado era ter morrotes dessa altura naquilo
que a geografia escolar chama de planície. Na baixada vi um rastro enorme como se alguém
tivesse arrastado um tronco de madeira atravessando a estrada. No jipe estava um recruta.
Fiquei admirando o rastro achando que alguém, humano, tivesse por ali arrastando uma
caça morta ou alguma madeira ou até um saco de estopa pesado. Logo à nossa frente vinha
um seringueiro. Perguntamos a ele do que seria tal rastro. Ele responde que era de sucuri,
pois naquela baixada havia muito. O soldado resolveu entrar na mata seguindo o rastro.
Logo ele voltou dizendo que a sucuri estava sobre uns galhos de árvore e no centro de um
igapó (no dicionário é “terra alagada”, mas o pessoal chamava igapó qualquer tipo de açude
natural, água represada naturalmente ou lagoa formada por água de chuva). Nessa missão
me foi autorizado levar um rifle, que fora adotado pelo Exercito há algum tempo. Era curto,
leve e muito preciso. Tinha o “calibre .30” (ponto trinta). Chamávamos de “carabina .30”.
Peguei a carabina e fui até lá. Era difícil ver a cabeça do animal. O corpo era enorme parecia
que ele tinha comido alguma caça grande tipo capivara ou algo semelhante. Mas era muita
sucuri para pouco tronco. Procurei ver a cabeça para atirar e para tal comecei a andar
contornando o igapó. Aí o soldado me chamou à razão: “– Tenente, o senhor vai matar o
bicho e o que é que vamos fazer com ele? Jogar fora? Desengatilhei a carabina e voltei sem
graça como cachorro que é chamado a atenção: olhar desconfiado e rabo entre as pernas.
Isso que não havia essa guerra psicológica sobre ecologia.
Em dias anteriores, eu estava com a carabina quando sentou numa árvore muito alta
um bando de papagaio. Escorei no jipe e fiz uma primeira pontaria. Ao lado estavam várias
pessoas preparando uma motoniveladora abandonada para ser carregada na carreta. Aí
vieram os desafios: “ se matar eu asso no dedo”... “dez a zero para o papagaio”... “esse vai
morrer é de velho”... Bom, refiz a pontaria, atirei e o bicho caiu. Fui até o local e o bicho
estava morto e felizmente caiu até o chão e não ficou enroscado em cipó ou galho em local
de difícil retirada do animal. O tiro pegou exatamente no bico. Aí fui à forra: ––“quem disse
que assava no dedo? Isso foi motivo para alguns anos de brincadeira. Ali mesmo,
recordando meu tempo de menino caçador de pomba e rolinha, depenei o papagaio e com a
faca retirei as vísceras. No igarapé próximo, lavei a carne e deixei no jipe. À noitinha,
quando retornamos, perguntei ao cozinheiro de como poderia cozinhar o papagaio para
comer. Ele disse que salgaria, para não azedar e que colocaria para cozinhar junto com o
feijão, obra que ele fazia logo após o jantar porque cozinhar feijão em panela comum
demora de oito a dez horas. Se colocava madeira grossa para segurar o fogo (tição) e assim
fervia a noite inteira. Bom, no outro dia, no almoço, quem disse que consegui comer o
papagaio!!! A carne estava dura como pneu; alguns tentaram corta carne do peito, mas não
conseguiram. O cozinheiro disse que durante a tarde iria assar o bicho em espeto e, aí sim,
poderia comer. No jantar é que o papagaio ficou duro. Engraçado que alguma parte da pele
conseguimos cortar, mas a carne da coxa e do peito a faca nem assinalou. O cozinheiro não
se deu por vencido: e disse: “– Tenente, vou picar ele e fritar como frango a passarinho,
para o almoço. Pode deixar comigo.” No almoço do segundo dia, lá estava o papagaio como
“frango a passarinho”. Os mais espirituosos diziam que era “papagaio à passarinho”; outros,
que sendo pássaro então era “pássaro à passarinho”. O fato é que ninguém conseguiu
comer a carne. Se colocava na boca, mascava, mascava, mas nada de triturar para engolir.
O papagaio foi para o lixo, invicto: ninguém comeu sua carne, a não ser eu e outros que
engolimos algum pedaço, como sapo.
Chegamos ao igarapé Maracaju. Como ali, em 1973, já era a parte onde todos
estavam fugindo do tempo de chuva, todos querendo chegar a Feijó de qualquer maneira,
então não havia terraplenagem e nem assentamento de bueiro. Todos os igarapés, até
Feijó, ficaram ou em pau ocado (à guisa de bueiro) ou em pinguela. No Maracaju era de pau
ocado e, com a enchente, não restava nem sobra da madeira. Mesmo naquele momento,
época do estio, ele tinha uns dez metro de largura e água forte. Chegamos de jipe e com o
apoio da carregadeira. Há uns cinco quilometro (um dia de trabalho) vinha o D/7. Estava no
jipe comigo dois soldados recrutas. Eram os últimos dois apresentados a uns dois dias
antes. Os demais tinham funções próprias. Estes dois passaram ser a mão de obra
totalmente não especializada. Os levei porque havia previsão de “boca pobre” como diziam
os peões. Engraçado que em meus alfarrábios tenho até o hoje a “parte de apresentação”
deles. Talvez a coloque como um anexo desse texto. Pela avaliação do cabo operador da
carregadeira, ali mereceria uma pinguela porque, se desse uma chuva fora de hora
ficaríamos em situação difícil. Apenas aterrar, durariam uns três a quatro dias e nós não
sabíamos quantos dias teríamos para frente. Apenas sabíamos que já nos faltava uma
semana para sair cumprindo o prazo do planejamento. Partimos para encontrar troncos que
desse para fazer uma pinguela. A carregadeira é uma maquina versátil e assim poderíamos
adiantar alguma coisa de modo que se usasse menos tempo do D/7 que era a máquina mais
apropriada para isso: aterrar e depois colocar as madeiras. Depois de procurar por mais de
uma hora, a uns quinhentos metros para trás, achamos um tronco que daria pra se fazer um
lado da pinguela. Não achamos a segunda madeira. Com muita habilidade, o cabo
conseguiu trazer o tronco suspenso na concha da carregadeira e colocar no lugar certo. No
jipe tínhamos machado, serra manual. Na época motosserra era só objeto de desejo. Mas e
e o segundo tronco? Não encontramos nada por perto. Olhei para o tronco já lançado e eis
que ..... Heureca!!! a vinte metros, ao lado, tinha uma enorme árvore cujo nome popular
nunca soube. Tinha mais de metro de diâmetro. Olhei para todos e disse: “– quem sabe
cortar de machado?”... ninguém respondeu. Fui ao jipe, pegar o machado e lembrei de meu
avô, exímio machadeiro. Comecei a cortar a árvore. Inicie bem o corte, pois ele mal
começado se trabalha muito mais. A parte que fica no solo tem que ter corte na horizontal; a
parte que cai vai formando uma cintura de pilão; esse pilão tem que ficar tanto mais alto
quanto maior for o diâmetro e aí não tem regra... é a experiência. O corte tem que ter uma
abertura tal que facilite dar um talho chanfrado. Se assim não for, em pouco tempo o corte
se aperta e a machadada não rende. Cortei por uns quinze minutos. Chamei o cabo. O
coitado mal sabia pegar na ferramenta. Nunca a tinha usado. Fora menino urbano no
Espírito Santo. Depois foram os recrutas. Um deles até que sabia e ajudou muito. Bom, no
frigir dos ovos, o corte rendia quando chegava a minha vez. E também não podia sair do
local para que eles não estragassem o corte. As lições de meu avô, as lenhas rachadas para
fogão e algumas árvores destocadas para limpar quintal me foram de grande valia. Minha
experiência da origem rural sempre me socorria e suplantava as experiências da vida
urbana. Bom em mais ou menos duas horas a árvore estava no chão e com os galhos fora.
O cabo, mais uma vez com sua habilidade colocou o tronco no local; ajustamos a largura
porque teria que passar o jipe também. Fixados os troncos, coberta as pontas, a pinguela
estava pronta. Assim, para o almoço tudo estava terminado. Faltaria uns troncos menores
para melhorar a passagem do jipe e do caminhão. A carregadeira já ficara do outro lado.
Mas enquanto o cabo cobria as pontas dos troncos, um dos soldados viu um ninho de
Japiim (conhecido também como Japiim-xexéu, Japim, Japuíra, João-conguinho e Xexéu -
Cacicus cela) à jusante do igarapé, nas fraldas do desmatamento, limite da faixa de domínio.
Contrariando a normalidade, o ninho estava numa árvore fina, baixa e tinha apenas um
ninho. O normal são esses pássaros fazerem vários ninhos, que são uma bolsa tecida de
capim, folha de palmeiras e gravetos, em árvores frondosas. Há colônias de dezenas de
ninhos. Penso ser uma ave apenas amazônica. Tem lendas próprias contadas por diversas
tribos. É uma ave amarelo e preto, combinação bonita e faz um barulho infernal quando em
bando. Seringueiros pegam os filhotes para criá-los em cativeiro porque ele imita outros
pássaros. E um dos soldados ficou inquieto querendo ver se tinha filhotes no ninho. Há uma
característica dessa ave: ela faz o ninho em parceria com marimbondo (vespa) de variadas
espécies e ou formiga que produzem imensas urticárias. Onde tem ninho de japiim terá casa
de marimbondo, se não várias delas, e um ou mais tipo de “formigas de fogo” como dizem o
pessoal do Acre. Das formigas de fogo, a pior delas é a “tachi”. Na internet tem o nome com
“X” e com “CH”. Adoto o escrito com “ch”. Ainda na internet, há uma enorme confusão entre
a formiga, da qual não há informação, e a planta, que sempre abriga tal formiga que é o
tachizeiro. Confundem o tachizeiro, planta, com o nome tachi (formiga). A planta tem uma
enorme variedade – tachi-preto; tachi-branco... Mas todas elas são da família das
Sclerolobium - com o nome científico de CAESALPINIACEAE. É uma árvore pequena, baixa,
em terrenos úmidos ou beira de rios, retorcida e oca. Ali se alojam variados tipos de
formigas. A tachi é minúscula, quase invisível a olho nu. Não sei se ela tem ferrão ou trás em
seu corpo alguma substancia tóxica. O certo é que ela se desprega dos galhos e folhas ou
sobe pelos braços e pernas aos milhares. De início dá uma espécie de calor e logo em
seguida a ardência de queimadura e a vermelhidão como se fosse escaldado com água
quente. Não há animal que aguente. A corrida é desesperadora à procura d’água. Daí existir
uma associação de boa vizinhança entre o japiim e a tachi. Voltando no caso do soldado, ele
insistiu tanto que aceitei que ele fosse verificar se havia filhote. Já com pena, caso houvesse
o filhote, pois o bicho poderia morrer no retorno. Ele retirou a gandola e o coturno e subiu na
árvore. Como ela era fina, começou a envergar. Se ele continuasse subindo logo estaria
com os pés no chão com a árvore envergada. Mas num momento ele deu um grito: – “meu
Deus do céu, meu corpo está pegando fogo!!!” O cabo mais experiente gritou: – “se jogue
n’água que é tachi.” O pobre veio numa velocidade e se atirou no igarapé. O cabo disse
ainda para tirar toda a roupa e ficar nu. Assim ele fez. Seu pescoço estava tão vermelho que
parecia queimadura de segundo grau. Conclusão; não viu se tinha filhote, ficou com o
pescoço inchado que mal pode dormir, teve febre e ainda voltou ao acampamento de cueca
porque sua roupa ficou impregnada de formiga que só depois de sapecá-la no fogo do fogão
é que se livraria da formiga. A lição foi muito bem aprendida. Ele, na pele e eu na
experiência dele.
As minhas noites passaram a ser de febres fortes. O meu corpo moído, pensei que
fosse do esforço, da dormida ruim, da alimentação já à base da bolacha Mirabel. Já vinha
sentindo dor de cabeça, alguma febre há semanas e coriza, mas não dei importância.
Achava ser um resfriado se aproximando. No Jurupari tinha muito mosquito anofelino. Por
mais cuidado que eu tivesse, ao entrar sob mosquiteiro e usar bem a fumaça de cigarro,
sempre encontrava, pela manhã, muito mosquito gordo de sangue. O anofelino quando está
cheio, ao voar parece um avião Concorde, como já dito. Em outro lugar descrevi sobre
mosquitos. Já tínhamos, além do sargento, do soldado enfermeiro, muitos outros estavam a
reclamar de dor no corpo, dor de cabeça, perda do sabor, moleza... Era um indicativo de que
todos já estavam contaminados. Não diria ter sido só no Jurupari, mas com certeza o local
contribuiu muito. Com o Jipe, chegamos ao Macipira. Pela nossa relação aquele era o limite
de existir máquina. Em compensação, pela mesma relação, faltava um rolo pé de carneiro.
Assim, já poderíamos voltar. Felizmente não havia máquina grande porque, quando eu
estava em Feijó, viemos até o Macipira e as resgatamos todas. Mas o impedimento maior
seria, com máquina grande, passar os serros da “Ladeira dos Macacos”. Uma tentativa de ir
com a carreta até ao igarapé Macipira nos demos mal. Como já dito algumas vezes, ali não
fora feito nada de terraplenagem. Era o trecho completamente virgem. Nem as marcações
de topografia foram refeitas. Assim, os cerrotes eram muito íngreme, rampa muito acentuada
no linguajar de estradeiro. Tanto que, ao subir com uma carreta, o cavalo mecânico fez a
curva vertical, mas a prancha ficou presa pelo centro por tocar o terreno. Foi um “pára pra
acertar” a saída dessa situação. Felizmente o operador da carregadeira se adiantou, e
chegou ao Macipira, antes, ajudou a destrancar a carreta. Desistimos de seguir com a
carreta no primeiro cerro, de uma série de cinco ou seis seguidos. Caso se encontrasse o
rolo compactador, seria arrastado ou pela carregadeira ou pelo D/7. Para a “peãozada” que
fugiram do inverno por ali, esse trecho era o monstro devorador de operadores e motoristas.
Foi o trecho de maior adrenalina, na linguagem de hoje. Não vira nada porque nada havia
ficado, é o que sabíamos. Resolvemos voltar e dar por cumprida a missão. O pessoal já
estava ficando prostrados pela malaria, incluído eu. Voltamos ao Jurupari e no outro dia nos
preparamos para levantar acampamento. Teríamos que cumprir a promessa de retirar até
MUrbano a família que estava a míngua no Jurupari. Ocupando boleias, carrocerias e
outros lugares, tocamos devagar para chegar a Murbano. Todos já estavam contaminados.
Paramos para pernoitar num dos lugares que fora nosso acampamento. O cozinheiro já não
tinha mais disposição de cozinhar. Alguém fez café e comemos biscoito Mirabel. Todos
estavam arriados. Neste acampamento pegamos o carroção que era chamado de “Onça”.
Acomodamos os que estavam em pior situação. À noite deu uma chuva pesada. No outro
dia tocamos para frente. Mas ao chegar ao um igarapé de nome Macapá, aí todos, arriamos.
Foi a segunda noite com chuva. Conseguimos colocar o rádio para funcionar e mandei uma
mensagem a MUrbano dizendo que não havia como chegar naquele dia, pois todos estavam
com malária. Eu comecei a vomitar verde. A cada duas ou três horas me chegava o frio e a
febre. Era uma tremedeira danada. Mandamos o que ainda restava da família do Jurupari,
para Murbano no caminhão de carroceria depois de descarregá-lo do material de cozinha e
outras coisas mais. Na volta do caminhão, soubemos que vinha uma equipe de médico,
enfermeiro e bioquímico de Sena Madureira para nos socorrer e que era para ficarmos no
mesmo lugar. A princípio não entendi porque daquilo... depois, com a chegada do pessoal
eles me explicaram: nós poderíamos levar um grande surto de malaria para MUrbano. O
surto deveria ficar restrito ao acampamento. Isto queria dizer que tomaríamos as doses de
ataque ali mesmo, e ali ficaríamos por três dias, no mínimo. Pelo rádio, ficamos sabendo
que o pessoal saiu de MUrbano por volta das três da tarde de picape e um jipe. Pela
distancia eles deveria levar cerca de uma hora, duas no máximo. Já era dez da noite e eles
não chegavam. Deixamos o rádio ligado direto com Murbano até que eles chegassem.
Como não chegavam, um dos cabos que estava com menos indisposição se candidatou ir
ao encontro do pessoal com o D/7. Os encontrou, vindo à pé, com soro, aralen, vitaminas e
todo os acessórios nas costas. Bom eles saíram de picape e atolaram; encontraram, de uma
fazenda, um trator agrícola que na verdade foi tomado na marra e que também ficou atolado.
Se não fosse o D/7, eles andariam uns cinco a dez Km no barro. Chegaram já três da
manhã. E começaram a tirar sangue e fazer leitura das lâminas no microscópio. Com nosso
grupo gerador Honda (aquele dos bailes), foi possível isso. À medida que se ia lendo as
lâminas, o enfermeiro ia preparando o soro com todos os medicamentos e aplicando no
afetado. Quem tinha rede, deitava na rede; quem estava no carroção, ficava no carroção.
Havia ainda algumas pessoas da família do Jurupari que foram também medicados.
Passamos três dias nessa situação: soro, novalgina para a febre, vitaminas e medicamentos
hepáticos para desintoxicar o fígado. A comida era pouca. Depois de dois dias de sol foram
em comboio resgatar a picape. A ideia era, com ela trazer de MUrbano alguma coisa de
comida mais nutritiva, pois só ficamos com arroz, sal e biscoito Mirabel. Até o açúcar do café
estava no fim. Ela foi comboiada pelo D/7 e pela Carreta. De lá trouxeram carne verde coisa
que há muito não cominamos, mais charque, sal, óleo e outras coisas mais. O cardápio ficou
rico. Quando se estava negativado, pelas lâminas, era liberado para ir embora. Marquei
ponto de reunião em Sena Madureira. Fiquei com o jipe. Em resumo, dos vinte e cinco, que
chegaram ao Jurupari, todos estavam com malária menos um cabo que até hoje não se
sabe como ele não foi contaminado. Detalhe, ele nunca usava mosquiteiro. Mas depois de
uns quinze dias ele arriou, em Sena Madureira. Foi removido para o hospital de Porto Velho.
Então, todos os vinte e cinco foram vitimados. E todos com quatro cruzes. Mas depois de
tomar o soro de cada dia, nada havia para fazer. Pedi ao tenente bioquímico que me
ensinasse a fazer a leitura da lâmina. Embora em outro local esteja descrito o critério do
estabelecimento de cruzes, repito aqui. Retirada a amostra com um estilete, espalha-se o
sangue pela lâmina de vidro; o conjunto vai para uma solução azul (não sei o nome do
produto) durante certo tempo. Depois é deixada para secar ao ar livre; seca, vai para o
microscópio; é pingada uma solução de modo que a lente do microscópio toque essa gota; o
que se vê são elementos meio azulados em uma bola iluminada; essa bola iluminada tem o
nome de “campo do microscópio”; e assim vai se passeando pela lâmina, de campo em
campo; onde houver uma hemácia (elementos azulado) com sua borda tomada, por um
elemento escuro, como se fosse uma linha envolvente, aí está uma hemácia contaminada
pelo trofozoito; basta uma hemácia, com mínima parte escura, num campo, já se tem uma
cruz. Ao passear pela lâmina, o registro será do campo com maior número de hemácias
contaminadas, por parte ou por toda a borda. Quando é encontrada quatro hemácias
contaminadas então se tem quatro cruzes; quando ultrapassa de quatro, registra-se apenas
quatro porque o freguês está mais para defunto que para sambista. Bom, no meu caso, e eu
vi a minha lâmina: estavam todos os campos e todas as hemácias contaminadas. O tenente
bioquímico pediu para tirar mais sangue e fez umas dez lâminas. Iria mandar para sua
faculdade em Manaus.
Fui um dos últimos a deixar o acampamento. Sai junto com o pessoal de saúde. Não
passei por Murbano. Fui direto para Sena Madureira. Foi uma pena. Meu pessoal foi se
extraviando. Até hoje me arrependo, muito, de não tê-los reunidos e feito um almoço bom,
mesmo que fosse com os mesmos recursos que tínhamos e quem sabe, até com uma pinga
com limão.
Mas eu estava me arrastando de fraqueza. Apenas informei em Sena Madureira que
os participantes teriam oito dias de dispensa como recompensa. De qualquer maneira
estariam dispensados por oito dias: era o tempo de convalescença de malária acima de
duas cruzes. Cheguei a Rio Branco para o almoço.
Mas antes tem uma coisa engraçada. Quando estávamos retornando do Jurupari, um dos
cabos mandou para outro cabo que morava em MUrbano, uma MIRATINGA. O motorista,
embora já idoso, num instante de descuido, não encontrando o cabo em casa, resolveu
deixar com a mulher do cabo recebedor a miratinga embrulhada em um papel qualquer.
Querendo ser fidalgo, disse: – “trouxe um presente pra senhora do cabo fulano”. A mulher
curiosa desembrulhou, não entendeu nada e guardou o presente. Quando o marido chegou,
ela mostrou o presente e disse: “foi o cabo fulano que me mandou de presente”. O cabo
recebedor, ficou ofendido e quase tivemos um desentendimento com vias de fato. Agora
explico o que seja a miratinga e porque da ofensa sentida pelo cabo que recebeu o
presente. Miratinga é uma árvore, que segundo o sitio do IBMA é: Nome Científico: Maquira
sclerophylla; FAMÍLIA: Moraceae; tem variados nomes e parece estar presente em toda a
Amazônia: Cauchorana, Miratinga, Muiratinga, Muiratinga-da-terra-firme, Muiratinga-folha-
lisa, Rapé-de-índio, Rapé-dos-índios. Acontece que a tal árvore tem seu tronco redondo e
liso. A cada distância nascem galhos secundários, como são as castanholas, tão comuns
nas cidades e que fazem uma sujeira danada quando soltam suas folhas. Tem o nome de
“sete-copas”, em algum lugar. Pois bem, a miratinga se parece com tal árvore. Quando um
galho seca, ele se solta do tronco principal. Mas o terminal, a união do galho secundário com
o tronco é igual a cabeça de um pênis. Se o galho menor tiver um comprimento tal, nem é
preciso algum trabalho de artesão ou grande imaginação para ver e entender. Quando um
cabo mandou para a mulher do outro um presente assim tão acintoso, só poderia dar em
briga. Mas depois de esclarecido, ficou tudo em família: o presente era para o cabo e não
para a mulher.
Em Rio Branco. entreguei o trator, o pessoal (com o fatídico oito dias de recompensa)
e algum material que levamos emprestado. Formei o comboio e nos preparamos para viajar
no dia seguinte, saindo cedo. A idéia era almoçar em Abunã, pelo menos eu que agora
estava na picape. O jipe voltara para o sargento.
Para encerrar minhas aprendizagens no Acre, vou tecer algum comentário sobre uma
fruta que, entre os peões, cabos e soldados, era muito frequente. É a CAXINGUBA. Diziam
que quem comesse da fruta ficava “gay”, nome hoje; nome da época: xibungo, baitola, viado.
Até conheci a madeira e a fruta. Era uma árvore que na terrinha eu conhecia como “figueira
do mato” e o fruto – figo do mato. Mas o “causo” correto é que quando tal frutinha caia de
madura, é muito apreciada por veado, o animal, que recebe outros adjetivos como –
catingueiro, mateiro, cervo e suas: família, gênero, espécie... Mas em Xapuri, onde diz ter
muita caxanguba, a fama é grande. Diziam que a “transviadônica” começava em Pelotas,
passava por Campinas e terminava em Xapuri. Assim, quando algum peão ficava muito
nervoso, outros logo gritavam: “cachanguba nele que amansa”. Percorrendo a internet
consegui o seguinte: Nome Comum – Figueira-purgante; Nome Científico – Ficus insípida;
Família – Moraceae; Outros Nomes Comuns: Apuí-açu, Caxinguba, Coajinguba, Coajinguva,
Cuaxinguba, Figueira, Figueira-do-brejo.
Não sei qual o dia da semana que chegamos a Porto Velho. Do jeito que cheguei, fui
à casa do comandante: cabelo grande, sujo, de camiseta e de barba por fazer. Nunca ficara
com barba tão grande como oficial. Aliás, nunca na vida. De começo, o coronel ficou
assustado. Talvez mais pelo meu amarelão que pela barba comprida e a roupa em
frangalho. Ele mandou que eu entrasse, o que fiz, mas fiquei em pé. Apenas disse que
cumprira a missão e que tinha dado os dias de recompensa a todos. Ele também sabia
sobre o surto de malária que tivemos. Disse a ele que todos foram acometidos, mas que o
que mais padeceu foi eu, por ficar dois dias em vômitos. Mais três ou quatro assim também
ficaram. Despedimos-nos e fui para casa. Após o banho e fazer a barba fui cortar o cabelo.
No outro dia cheguei cedo. Tinha que fazer o relatório enquanto era cedo para não
perder detalhes. Fiz o relatório muito diferente do que eu imaginava. Pensei em descrever
uma saga diária, mais para conto que para um documento militar. Fui logo desestimulado
pela seção técnica. Apena relatei quais máquinas foram retiradas, por tipo e modelo e o
estado geral delas. Assim, meu relatório fico restrito a uma folha que não era diferente da
relação que a seção técnica tinha com dados colhidos dos rádios vindos de MUrbano. Um
pouco de desapontamento porque não pude repassar aos demais as dificuldades passadas
e as lições aprendidas. Essas ficariam comigo até agora que tento ainda repassá-las a um
curioso que as queiram ler. Fui desestimulado a não fazer minha “parte de combate”.
Mas, ninguém prestou a atenção e nem eu mesmo de que eu vinha de quatros cruzes
de malária. Passei também a responder pela companhia de Comando e Serviço, com um
baita problemão: o cano da adutora havia se rompido e o batalhão e a vila militar estava sem
água. A tubulação era de ferro fundido marca BABARÁ. O trabalho estava adiantado, graça
a iniciativa do subtenente responsável pelos Serviços Gerais. Mas, a cada comprimido de
primaquina, e teria que tomar um por semana, durante noventa dias, o fígado chiava
barbaridade. Eu já era magro e fumava pra caramba, e sem se alimentar a contento, pelos
efeitos colaterais do tratamento, aí sim que fiquei magro. Mas consegui enfrentar todas as
missões extras, além o da Cia Eqp Eng. Como toda sede, as rotinas engolem a todos. Todas
as vezes que olhava para minha companhia de equipamento e me lembrava da que eu vi em
Picos, 3º BEC, tinha vontade de chorar. O pessoal era bom, esforçado, dedicado, mas de
baixa escolaridade. Não sei como eles conseguiam fazer levantamento de peças em
catálogo em inglês. Um belo dia, senti um arrepio no corpo, uma dor de cabeça, uma
quebradeira geral como se um trator de esteira tivesse passado sobre o corpo. Falei com o
sargento que fora comigo para o Jurupari. Não deu outra, foi logo diagnosticando: – “é a
malaria que está voltando, tenente” – ele disse. Eu não acreditei porque nem tinha
completado o tratamento da malaria do Jurupari. Feita a Lâmina, não deu outra: duas
cruzes. Segundo os médicos não era malaria nova, era a “recidiva” da primeira porque eu
não fiz o tratamento correto. Não segui o esquema prescrito para a época. E não me lembro
se interrompi ou não tal tratamento.
Eu estava num período muito entusiasmado e tentava reorganizar a companhia.
Estava remodelando as caixas de ferramentas dos mecânicos, melhorando o ferramental
das oficinas, melhorando os locais das oficinas, obrigando que as máquinas viessem com
um pré-diagnóstico das frentes, obrigando a abertura de ordem de serviço geral e particular,
e já tinha conseguido um lavador de máquina onde se lavava as máquinas ainda sobre as
carretas.
Um dia fui à margem do Rio Madeira. Vi uns três carregadores, transferindo de um
caminhão para uma balsa uns saquinhos de no máximo palmo e meio de comprimento por
um palmo de largura. Eram enormes homens negros que pegavam um saquinho de cada
vez e fazendo cara feia. Eu achei aquilo o fim da picada. Bando de preguiçosos, pensei. Fui
até lá. Perguntei se eu poderia carregar um saco daqueles. Autorizado parti com gana pra o
saquinho. Agarrei o danado e quem disse que eu o levantei. Perguntei o que diabo tinha ali e
me respondeu o camarada mais forte: “é cassiterita, tenente”. Nunca pensei que tal mineral
pesasse tanto. Rondônia era, na época, uns dos maiores produtores desse mineral no
mundo. É a partir dele que se faz o “Estanho”. No Território havia inúmeras empresas
mineradoras e milhares de garimpeiros clandestinos. Viviam se agredindo. Os garimpeiros
só queriam o “filé”. E deixavam o terreno parecendo a superfície da lua de tanto buraco. Isso
dificultaria e encareceria a exploração mecânica como faziam as mineradoras. Mas fui saber
e testar: uma lata de leite condensado de cassiterita pura pesa um quilo. Ela vinha em forma
de areia, o mais comum e em forma de grãos o que mais pareciam chumbos de espingarda.
Queimei a língua por achar que os carregadores fossem molóides, como se diz na terrinha.
Ah! Cada saquinho pesava de quarenta a cinquenta quilos de cassiterita.
Como já dito em outro lugar, fui escalado para montar um carro-oficina. Foi nesse
período de Cia Eqp. O Exército tinha alguns caminhões, herdados dos norte-americanos,
cuja carroceria tinha torno de precisão capaz de fazer pequenas peças, e que podia ser
também fresar, plainar... Era uma bancada de multiuso. Além disso, tinha solda elétrica,
solda a oxi-acetileno e muitas ferramentas manuais. Havia qualquer tipo de chave para
qualquer tipo de porca e ou parafuso em uso em uma viatura ou armamento. Ainda hoje se
encontra a carroceria uma vez que o caminhão se deteriorou. Pois bem, o batalhão comprou
um caminhão Mercedes-Benz baú e pediu que nós o montássemos como um carro-oficina
tal qual o herdado pelo Exército. Bom, com um sargento torneiro, ou melhor, mecânico que
fora torneiro, mais os funcionários da Madeira-Mamoré, chegamos a um tipo de torno capaz
de nos atender no trecho. Para isso necessitaria de um grupo gerador de cinqüenta KVA que
também seria adapatado no caminhão. Também com os funcionários da Madeira-Mamoré
conseguimos especificar uma máquina de solda que usasse o grupo gerador e não mais as
máquinas de solda Bambozzi, com motor a diesel, e tracionada por algum veículo, ou
máquina. A solda a oxiacetileno também foi fácil. Eu já queria usar era botija de gás de
cozinha, mas a temperatura que atingia não era suficiente para atender as necessidades do
campo. Mas, para muitos serviços, ao invés de usar ou carbureto ou acetileno comprado no
comercio, é possível usar o gás de cozinha. É proibido porque se a moda pega, o preço do
gás vai subir barbaridade. Passei a estudar catálogos de ferramentas. Não queria
simplesmente comprar os pacotes que a Caterpillar oferecia. Havia a necessidade de
ferramentas para caminhões e equipamentos pequenos. Juntei a maioria dos catálogos de
máquinas, motores e equipamentos e consegui montar jogos de ferramentas. Com catálogos
de ferramentas: da caterpillar, gedore nacional, gedore importada, belzer, belzer/itma e
outros, que eu pedia emprestado nas assistências técnicas de caminhões e máquinas,
passei umas duas semanas estudando tudo. Quando tinha dúvida ia para os mecânicos
antigos. Ao mesmo tempo o sargento e os funcionários torneiros passaram a fazer um
levantamento de tarugos de ferro, alumínio, bronze, aço em diferentes diâmetros. Bom, foi
tanta ferramenta que quase não coube no caminhão. Tivemos que fazer mais gavetas além
das que havíamos pedido na montagem do chassi. O pior foram os tarugos. Eles não
cabiam no caminhão pelo comprimento. Mas num teste de operacionalidade, colocamos
tudo no caminhão. Ele simplesmente não saiu do lugar. A carga era maior que a capacidade
do caminhão. Foi um fiasco. Mas não perdemos a fleuma. Descarregamos os tarugos e
deixamos todos no almoxarifado. Quando o caminhão, que se destinava a 1ª Companhia –
Humaitá – precisasse de tarugos mais grossos, então nós mandávamos. Era proibido usar
os tarugos nos tornos das oficinas. Depois resolvi armazená-los em Humaitá, mas com
descarga na apropriação na medida em que fosse usado e não como se fazia com outros
materiais de consumo. É que o volume de dinheiro era muito alto. O caminhão prestou
serviços por muito longos anos.
Mas um dia fui chamado à sede. O coronel queria falar comigo. Disse ele que no
próximo ano, Humaitá seria a principal frente do Batalhão e como tal gostaria que eu fosse o
Comandante – 1ª Companhia. Para o Plano de Trabalho desse ano seguinte, 1976, estariam
comigo um tenente da minha turma e outro R/2 que trabalharam em 1975 em Humaitá e
eram considerados, os mais experientes do batalhão. Eu não tinha escolha: ele escalava e
pronto. Para tal, me colocaram de férias em outubro ainda. Na época, todos os que gozavam
férias, fora da sede, recebiam mais quinze dias como compensação do deslocamento.
Dinheiro pouco, fomos a Campo Grande. De avião até Cuiabá e dali até Campo
Grande, de ônibus. A volta também. Ficava bem mais barato. Tomamos banho num hotel
bem chumbrega, antes de pegar o avião de volta. A água tinha um cheiro de peixe danado.
Em Campo Grande, minha irmã e pressão da família foi feito um teste de gravidez,
desses kits comprados em farmácia. Pelo Kit, a mistura da urina com os reagentes, se
fixasse vermelho seria menina. E assim foi – menina. Em Campo Grande, meus pais
continuavam a morar no conjunto Afonso Pena. Ficamos quinze dias, no máximo, com
direito de ir a Terenos e visitar alguns parentes, ou todos. Volta a Porto Velho seguimos para
Manaus. As férias em Manaus foram até divertidas. Compramos muita coisa para o futuro
neném, que já sabíamos, seria menina. Mas havia a bendita cota. Eu estava nervoso.
Gastamos todo o dinheiro e ficamos lisos, num sábado, e não tinha como retirar dinheiro em
cheque que na época só era feito em banco. Por sorte, havia uma amiga de infância da
mulher, encontrada por acaso, enorme coincidência, numa loja de sua propriedade. Ela, sem
me conhecer, trocou um cheque não sei em que valor. Foi um alívio. Tínhamos comprado
um aparelho de som três em um. Antes, engrenamos com o piloto de rebocador que ia a
Porto Velho: ele instalaria o aparelho de som e, se fosse cercado pela receita federal, diria
que o aparelho era dele. Como ele sabia onde ficava a Companhia de Equipamento, alias
era o porto que ele usava em Porto Velho, eu pegaria o aparelho com ele dali a uns dois ou
três meses depois. Era um risco danado. Quando compramos o aparelho estava indo
entregá-lo ao piloto do rebocador, encontramos o comandante da Companhia de Humaitá, o
capitão que fora comigo para o nordeste, que tinha comprado um monte de coisas para ele e
para outros. Ele fora a Manaus fazer um curso e assim comprou coisa pra chuchu. Ele
estava saindo para Humaitá com uma Kombi cheia de bagulhos (na verdade contrabando),
pois a receita federal não fiscalizava a estrada ainda. Não deu outro: entreguei a ele o
aparelho de som. Quando chegamos a Porto velho o meu material já me esperava. O
coitado saiu num sábado e voltou num domingo, viajando dia e noite. Assim aliviamos a
carga: tudo que compramos, mandamos pela Kombi: carrinho, esterilizador de mamadeira,
fraldas descartável, que era novidade no mundo, circulador de ar e muita coisa miúda:
chupetas, mamadeiras, sapatos, fraldas comuns, cobertor... foi uma enorme sorte. È que,
sabendo que a neném seria uma menina e com tanta coisa da Zona Franca, foi de
descontrolar qualquer um. E foi o que aconteceu, por isso, a enorme ajuda na troca do
cheque.
Encontramos o médico do batalhão (um cearense que me visitara em Vilhena e que
depois pagou caro uma suposta corrupção) discutindo com a mulher dele sobre um
ventilador. Ele queria um de relógio (timer) de modo que depois de regulado ele desligava
sozinho. Entre um com relógio e outro sem, a diferença de preço era grande. Ela, aborrecida
disse: – “o ventilador não só para fazer vento? então leve o sem relógio!”... Rimos muito.
Eu tinha tempo para ir embora, pedir transferência. Mas pela veemência do
comandante, pensei que ele ficaria o terceiro ano de comando, como eu ficaria no meu
terceiro ano de batalhão. Uma coisa me intrigou: ele disse: “isso é o que penso..., mas o ano
que vem pode ser diferente”... E foi...
O comandante fora transferido e veio outro comandante. O meu colega de turma
aceitou ir para a AMAN ser instrutor. Seria um grande maluco se não aceitasse. Fora
convidado e autorizado a me convidar, mas não aceitei nem que a Academia me mandasse
o convite formal. Eu nunca tive perfil de instrutor. Como sempre tive honestidade de
propósito, jamais eu aceitaria. Nunca fui mercenário em nada: nem de material e nem de
consciência. E muito menos seria para ser instrutor na Academia, embora reconhecesse que
isso impulsionava carreiras, conceitos, contagem de pontos... Nunca fui um ambicioso a
ponto de sacrificar minhas convicções. O Tenente R/2, achou que tudo estava de bom
tamanho e pediu baixa para, aproveitando economias feitas, fazer uma faculdade, no que
estava absolutamente certo. Quando voltei das férias, tudo havia mudado menos a minha
palavra dada. E fui sozinho para Humaitá. Sem o comandante do batalhão, sem o tenente
da minha turma e sem o R/2. Diz minhas alterações que fui para Humaitá a 06 de dezembro
de 1975. As chuvas eram intensas e eu não tinha como entrar para o trecho, para fazer um
reconhecimento. Na verdade fiquei vegetando. As Máquinas foram todas recolhidas para a
Cia Eqp, via Rio Madeira. A Companhia de Equipamento voltou ao comando do tenente
reconvocado. Inicialmente, a casa do comandante da companhia (o que trouxeram os
bagulhos de Manaus) ainda estava com a mudança dele. Já houvera um titi antes que eu
chegasse. É que, no ano anterior, 1975, de Murbano seguira o Ten R/2, intendente, para ser
o aprovisionador de Humaitá. Já trabalhara meio ano por ali. Ao sair o comandante, ele
trouxe a mulher e uma filha pequena para Humaitá. Entrou na casa do antigo comandante,
sem autorização e houve um comentário do sumiço de uma jóia da mulher do capitão. Com
a minha designação, para lá, o tal Tenente se mudou para uma casa pré-fabricada, de
madeira, o que deveria ter feito desde o começo. A solução foi colocar tudo do capitão em
dois quartos até que a mudança fosse transportada para Campo Grande, para onde fora
transferido. Havia um dentista casado e que morava na casa de hóspede. No mais, a vila era
de sargentos, cabos e soldados.
A 1ª Companhia ficava no km 12, a partir de Humaitá, das BR simultâneas 230 e 319
na direção de Manaus. A BR 319 tem como destino Manaus e a BR 230, a Transamazônica,
que segue para Lábrea, às margens do Rio Purus. O acampamento tinha mais ou menos a
mesma formatação das demais companhias. Na 1ª Cia, uma cerca de arame farpado
separava o terreno da Companhia do dada faixa de domínio das BR. A entrada era por uma
porteira de arame farpado (tive vontade de fazer um portão de madeira e um alojamento
para guarda (sentinela), como era em Vilhena. Entrando, se dirigia para o Posto de
Comando (PC). Logo na entrada, à esquerda, havia umas instalações de tratamento d’água.
Assim que a companhia ali se instalou, a água era do igarapé e tratada com equipamento de
combate. Posteriormente, se fez uma ETA (Estação de Tratamento d’água). Finalmente,
construíram um poço artesiano com mais de cem metros de profundidade. A água era limpa,
mas tinha um cheiro forte de ferrugem. Duas horas depois de exposta, ela criava uma nata
de ferrugem e amarelava toda a água. Então, era preciso fazer a filtragem da água, depois
de deixar por dia em decantação das borras de ferrugem; e também para “enferrujar”
(oxidar) água até à saturação. As caixas tinham que ser lavadas com frequência, pois ficava
quase a metade de borra de ferrugem. O engraçado que as crianças eram muito rosadas e
coradas. Segundo a brincadeira do dentista, era pela dosagem de ferro que elas tomavam
na água e daí não ter anemia. Tinha o filho de um soldado, tão corado, tão sadio que alguns
“gozadores” diziam que o menino “nem parecia filho de soldado e sim de família rica”. A
esquerda do PC ficava o rancho e depósitos de gênero e também as instalações do SAS. Ao
lado direito ficava a enfermaria; passava pela enfermaria uma rua (que emendava com a rua
da entrada) e pela esquerda, ficava o almoxarifado do suprimento, subtenência, caixa d’água
coletiva e uma precária instalação de oficina, posto de abastecimento, posto de lavagem e
borracharia. Pela direita dessa rua tinha a três casas de alvenaria, de três quartos, cozinha,
sala, dependência de empregada e portas e janelas teladas. Todas as casas de alvenaria
eram para oficiais e tinha o mesmo projeto. Uma estava ocupada pelo Dentista (que, na
virada do ano, se mudou para a cidade de Humaitá, pois fora licenciado e contratado, pelo
INPS); outra era Casa de Hóspedes e a outra do Comandante da Companhia que eu ocupei
embora ainda tivesse a mobília do capitão. Para os padrões da época eram muito boas.
Mais à frente se estendia as casas de madeira pré-fabricadas que serviam de moradia aos
Sargentos, cabos e soldados. Entre as três casas de alvenaria havia rua. A energia, durante
o dia e até dez da noite, era de gerador. Assim, rapidamente, era a formatação da nossa vila
militar.
Seguindo pelas BR, ao atravessar o igarapé, pela esquerda havia uma verdadeira
favela de funcionários civis. Como não tinham direito a moradia, para familiares, eles faziam
tapiris, barracos com restos de madeira (tiradas dos restos das construções do 54º BIS – o
que falarei mais a frente), placas de sinalização, plásticos e lonas de caminhão. Era uma
vergonha aquilo. E havia crianças em idade escolar. Algumas vezes tentei argumentar para
que fosse melhorado aquilo, pelo menos que se fizesse tapiris melhores, mas fui voto
vencido: o comando dizia que tudo era temporário e não podia investir em vilas, para quem
não tinha direito. A “Vila dos Civis,” como era conhecida era uma verdadeira favela, embora
se conseguisse levar até lá luz, e apenas luz para iluminar, não energia para
eletrodomésticos, e uma mangueira com água.
Por falar em moradias, em Humaitá havia algumas casas pré-fabricadas por terminar.
Algumas faltavam as divisórias e outras, portas e janelas. Como se previa a vinda de mais
militares, resolvemos complementar tais casas e para tal as solicitamos para o Batalhão.
Mas havia uma dela com uma madeira bonita no assoalho. Era um amarelo diferente,
parecendo que fora pintado. Logo um cabo velho disse: – “Tenente, esse piso é de ‘loro-
bosta’; isso molhado é insuportável”. Como estava chegando, nem conhecia a madeira e
nem os resultados, porque ainda não chovia tanto assim. Mas tal madeira existe. Madeira
com nome LORO tem demais. Alguns com nome estrangeiro. O Freijó, com nome científico
de Cordia goeldiana, tem outros nomes como: Freijó, Freijó-branco, Freijó-preto, Frei-jorge,
e também de Louro, Louro-amarelo, Louro-freijó, Louro-preto. Mas tem o que encontrei no
piso da casa: Louro-pichurim, como nome comum; Nectandra cuspidata, como nome
científico e como outros nomes comuns - Canela, Canela-bosta, Canelão, Louro-bosta,
Louro-preto, Louro-tamanco, Noz-moscada-do-pará, Puxuri segundo
(http://www.ibama.gov.br/lpf/madeira/caracteristicas.php?ID=563&caracteristica=294).
Bom, Logo que o primeiro morador ocupou foi também quando começou a chover
intensamente. O piso molhava, pois era sob palafita de meio metro de altura. Com o calor do
sol, o casal não conseguiu ficar na casa. Era um mau cheiro insuportável. Fui verificar e
quando entrei na casa parecia que eu estava dentro de uma fossa de privada. Que coisa
horrível. Solução: trocar o piso rapidamente. Nunca pensei que uma madeira molhada, ao
tomar sol, pudesse ter tamanho mau cheiro.
No ponto de separação 230/319, tem algo interessante para geografia: o próximo
igarapé, pela BR 319, é da bacia do Rio Madeira; o próximo, pela 230, já é da bacia do
Purus. Não distam dez quilômetros um do outro. A BR 230, por projeto, vai até Lábrea e dali
segue para Benjamin Constant (Tabatinga); a BR 319, vai com esse nome até a certa altura,
depois coincide com a BR 174 (que nasce em Cáceres) e assim vão até Manaus, ficando a
BR 319 em Manaus e a outra segue para a divisa com a Venezuela.
Abro um parêntese. Faço agora um esclarecimento sobre a Transamazônica, coisa
que bem pouca gente sabe. Não fiz antes, pois eu queria falar sobre ela, mais detidamente,
ao chegar o momento de relatar quando nela trabalhei. A Rodovia Transamazônica não é
apenas a BR 230. A Transamazônica é um conjunto de rodovias que praticamente une dois
pontos extremos do Brasil, aqueles mesmos aprendidos nos primeiros anos escolares:
Ponta do Seixas á Serra da Contamana. Foi traçada saindo da Paraíba (Cabedelo – BR 230)
e Pernambuco (Recife – BR 232/316) que se unem em Picos (PI). Depois, como 230, passa
pelo Maranhão, Tocantins, Pará, Amazonas e Acre, chegaria até Boqueirão da Esperança,
na fronteira do Brasil com o Peru. A intenção era ligar todo o País e chegar aos portos do
Oceano Pacífico, num percurso de 8.100 quilômetros. A BR 230 é complementada, a partir
de Lábrea, pela BR 317, cujo destino é Assis Brasil, no Acre; em Rio Branco a
Transamazônica incorpora a BR 364 até Boqueirão da Esperança, ainda Acre, na divisa com
o Peru (Puncalpa/Lima ou Ilo). Fecho o parêntese.
Bom, pela BR 319, se vai do Rio Madeira (balsa) em Porto Velho até encontrar a BR
230, já no município de Humaitá, depois de percorrer duzentos e alguma coisa quilômetros
mais ou menos. Para a direita se chega à sede da cidade de Humaitá, a sete ou oito km;
para esquerda se vai para Manaus e Lábrea e a dois Km se passa pelo quartel do 54º BIS;
mais dois km, chegava-se ao acantonamento da 1ª Companhia de Engenharia, do 5º BEC.
A BR 319 estava, na época, recentemente completada com asfaltamento, de Porto
Velho a Manaus. Quando fui pela primeira vez, ainda existia algum trabalho preliminar entre
Porto Velho e Humaitá. Mas de Humaitá até Manaus tudo estava terminado. Muitos
moradores, de Porto Velho, saiam pela tarde, dormiam Humaitá, fazia uma madrugada e ia
comprar eletrônicos, “bagulho – na gíria de quartel”, em Manaus antes que se colocasse, no
Careiro, vila à margem do Solimões, algum posto de Receita Federal, para controlar os
produtos vendidos pela “Zona Franca”. Tive oportunidade de fazer amizade com o
engenheiro residente do então DNER e alguns da Mendes Junior, a empresa que fez os
últimos trabalhos. Um dos engenheiros que foram os assessores nosso no Acre, havia me
contado que trabalhara na BR 319. Segundo ele, depois dali, fora trabalhar em Angola e
Moçambique, pela empresa. O terreno, à medida que chega junto à calha do Amazonas era
uma argila tão ruim, que ultrapassava as que tínhamos no Acre. No acre o material tinha um
minério dominante. Na BR 319, não. Tudo era argila com material orgânico. Havia
profundidade de trinta, quarenta metros. Ora, seria impossível retirar tal material, reaterrar
para fazer o corpo de aterro. Assim, teriam que criar soluções para tal terreno. Parece que
foi lá a solução de se fazer aterro sobre estacas de areia. A camada final do corpo de aterro
e a base eram feitas com solo-cimento, numa percentagem elevada. Tanto que, quando
havia volume de chuva grande e rompia bueiros, a parte de solo-cimento mantinha a estrada
suspensa como se fosse uma ponte, mas apenas segura pela rigidez dada pelo cimento. Vi
algumas situações muito engraçadas até. Na base pronta, havia trincaduras da base assim
como trincam as caçadas de cimento. Havia até a idéia de se colocar, de vinte em vinte
metros uma junta de dilatação, talvez de material asfáltico. Não sei se realmente tal solução
foi adotada. Até Manaus havia a bagatela de quinze balsas.
A BR 230 era de “implantação pioneira”. Sabíamos que tinha uma cidade à frente e
mais nada. Passava-se pelos lugares “onde nunca pisara pé de branco” como diziam alguns
peões. A responsabilidade do batalhão começava a partir da separação BR230/319, a mais
ou menos vinte km do encontro, perto da cidade. Entre Humaitá e Lábrea, mais ou menos
duzentos e vinte km, o trecho tinha vários rios com travessia por balsas. Tomando como
referência o “desentroncamento” das BR 230/319, logo no início tem um rio até estreito, com
navegação retida, o Ipixuna, a 20 km da referencia; depois, a uns 70 km, o Rio Açuã, rio
que tinha mais de cinquenta metros de largura; Antes, a uns 20 a 30 km, tinha um igarapé
grande, quase rio, de nome Puinanã, afluente do Açuã, que se caracterizava por uma longa
baixada, de uns 5 km, batizada pelos peões de baixada do Puinanã, cuja baixada tem um
fato pitoresco. A seguir o Mucuí, a uns vinte km do Açuã, com mais de cem metros de
largura e balsa motorizada; a seguir, vinha o Marí, ou Umarí, a uns 40 km à frente do
Mucuim; e quase chegando a Lábrea, a 7 ou 10 km do Marí; o rio Paciá (igarapés metido a
besta) já ficava a 30 e poucos km do centro da cidade de Lábrea.
Quando lá cheguei, a terraplenagem estava a uns cinco quilômetros à frente do Rio
Mucuim cuja margem tinha uma colônia de pescadores; mais duzentos metros, o nosso
acampamento. O desmatamento estava a 10 ou 12 km do rio Mari.
Entre os cabos antigos e funcionários civis havia um folclore com o “bom baiano”,
Turma de 79, que fora tenente destacado nesta companhia. Fora ele que atravessara o
Mucuim com Desmatamento. À boca pequena, contavam que ele derrubou um D/8 n’água,
na margem. Com um segundo, tentou resgatar o primeiro e derrubou o segundo. Por pouco
não ficou também o terceiro. Muitos anos mais tarde, já Tenente-Coronel perguntei isso à
ele, mas desmentiu. Ele soube, pelos pescadores, que os demais rios em frente eram
pequenos e com um trator seria fácil chegar a Lábrea. Diziam que ele e um operador,
também audacioso, e pela direção da topografia, já feita até Lábrea, o tenente disse ter
chegado a Lábrea pelo eixo da topografia, que seria o da estrada. Em Humaitá, no colégio
que estudavam os meninos da Companhia, “pessoal do km12” como eram conhecidos, se
se perguntasse “quem descobriu Lábrea?” A resposta em uníssono era: “foi o Tenente Tal...”
para mim, aqui, o “bom baiano”. O bom baiano era o tenente que fora na academia como
segundo tenente “pagar mistérios” para a “cadetada” e que aguçou minha vontade de ir para
Amazônia.
Humaitá era uma região peculiar. Digo era, porque sua janela paisagística foi
completamente arrasada. Hoje, o arroz, a soja e o milho, para grandeza e desenvolvimento
da região devastaram os campos gerais de Humaitá. Vendo o mapa do Brasil, Humaitá está
às margens do Rio Madeira, mas ainda sob influência vegetal da grande Chapada dos
Parecis, mas que, a partir de Ji-paraná até Porto Velho, sua parte mais elevada forma a
Serra dos Pacaás Novos, que entra em cunha como divisor de águas entre o rio Ji-Paraná
ou Machado e o Guarporé. Quando o Machado deságua no Madeira há presenças dos
últimos afloramentos rochosos. Humaitá, hoje, como propaganda se diz “Portal da
Amazônia” o que é uma verdade porque, a partir daí, se está no início da planície da grande
calha do Amazonas-Solimões. Mas, na paisagem vegetal, parece haver uma disputa entre a
vegetação de mata alta, de selva, e o de cerrado (cerradão) vinda da chapada dos Parecis.
E por isso, julgo eu, aparecerem os campos de Humaitá como uma resistência da
vegetação, que antes, fora toda cerrado. Ou pode ser, também, uma invasão do cerrado
sobre a floresta. A cidade foi fundada por volta de 1890, segundo os sites informativos.
Humaitá é em homenagem à batalha de Humaitá, durante a Guerra do Paraguai. Como já
dito, era uma região de matas em transição. O fato é que existiam vastos campos naturais,
conhecidos por Campos de Humaitá, em livros e documentos históricos. Ali foram tentados
criação de gado. A cidade é bastante antiga, pelos edifícios de arquitetura portuguesa que
ainda restavam. Bom, por essas tentativas de criação de gado e posterior abandono das
fazendas e dos gados, quando lá cheguei, ainda havia gados selvagens que viviam soltos
em terras sem dono. Um dos primeiros sustos que levei, quando assumi a companhia, foi a
proposta do tenente intendente que, depois de tanto insistir, foi com uma equipe de cabos e
soldados, caçarem alguns bois. Para isso levou um fuzil e foram de caçamba. Só que depois
que saíram, a chuva caiu pra valer e eles voltaram á pé, sem boi e deixando a caçamba
atolada. No outro dia voltaram com uma motoniveladora para trazer a caçamba uma vez que
não mais autorizei a caçada, e deixaram a motoniveladora também atolada. Fiquei mais
chateado porque, três dias depois eu receberia uma visita da Seção Técnica para me
orientar quanto aos trabalhos do ano seguinte (1976). Se continuasse a chover, nem a
caçamba e nem a motoniveladora sairiam do atoleiro. Semanas depois, num dia de muito
sol, fui com o motorista e de caçamba 4x4, até o local onde havia o gado. Eles eram muito
ariscos pelas constantes caçadas de muito tempo. O local era muito plano, como o eram
todos os campos gerais, e formavam verdadeiras lagoas ou igapós de quilômetros de
comprimento. Eram lagoas grandes e rasas. Ali se encontravam todos os tipos de bichos: de
onça a rã que alguns soldados caçavam pra comer. Quando se ia para a cidade, à noite,
tinha que se ter cuidado porque, entre os animais sem dono havia uma manada de búfalos
que se deitavam no asfalto da estrada. Os búfalos eram como animais de estimação da
cidade e ninguém os abatiam.
Os meses de dezembro e janeiro foram cruéis. Nada para fazer. Os oficiais que foram
transferidos, saindo, já tinham seguidos. Os transferidos, chegando, ainda não chegados. Da
minha turma só restava eu. Era eu de comandante, o intendente e o dentista que estava em
férias. Em janeiro foi feita a passagem de Comando do Batalhão. Não me lembro do motivo,
mas eu não compareci ou não me chamaram. Não me fez falta. O Natal e o Primeiro do Ano
passamos no acampamento mesmo (acantonamento, no jargão). O expediente era uma
rotina louca. Até campeonato de ping-pong fizemos. Além dos oficiais e sargentos ociosos,
havia alguns adolescentes, filhos de sargentos e cabos, também sem terem nada o que
fazer. A única coisa que ainda funcionava era alguma atividade, já quase encerando, da
Construção do 54º BIS. Como dito, o projeto era dos Transamazônicos. O 5º BEC fora o
responsável pela construção, mas terceirizando, e a construção já fazia uns quatro anos nas
empreitadas. Na frente do BIS, mas do outro lado da BR, havia uma instalação de depósito e
almoxarifado. Um cabo era o encarregado, que ficou um perito em construção. No auge da
construção, havia mais gente no depósito. Assim que cheguei, a Seção Técnica, por
estarem os trabalhos no final, resolveu recolher todo o material que restou o que deu várias
viagens de caminhões. Bom, como sempre, tudo tem um folclore. O fato é que, depois de
uma chuva qualquer o lugar, onde seria o pátio de formatura, ficava com água literalmente
na canela. Todos se perguntavam: “porque escolheram este lugar se havia milhares de km²
de terreno”? É que, uma autoridade, ao visitar a Companhia do BEC, que não era ainda a 1ª
Companhia, achou o lugar bonito: plano, cerrado ralo que se via, em profundidade,
quilômetros de distância (Campos de Humaitá). Como já se falava na construção do BIS, ele
simplesmente determinou que ali fosse o lugar do quartel. E era exatamente dentro de uma
lagoa, como já se disse de suas existências em vários lugares em Humaitá. Mas, na minha
gestão, ainda faltava terminar o posto de combustível. Terminada a casa das bombas e feita
a cava dos tanques, estes foram colocados e aterrados. Bom, o combustível, óleo diesel e
gasolina seriam fornecidos pela 12ª RM, de Manaus, pelo seu sistema de cotas. E, em
algum dia, de algum mês, tais combustíveis seriam entregues pela PETROBRÁS, via Porto
Velho que era o mais viável. Deu uma chuvona e a cava encheu d’água e expulsou os
tanques ( lei de Arquimedes), quebrou os encanamentos... foi uma festa. Informei à Seção
Técnica que solicitou que a empresa refizesse o trabalho. Lá foi a nossa retoroescavadeira,
o cabo e... recolocaram os tanques. E o combustível nada... outra chuva e... passando pela
BR, de manhã, estavam os tanques a nos abanar, navegando ao sabor do vento no buraco
cheio d’água. Ai a empresa não quis mais refazer o trabalho... Sobrou para minha
companhia. E foi fácil resolver: falei com o Comandante do BIS, que era um major, e
colocamos cinco mil litros de óleo diesel e três de gasolina, o que ele provavelmente
receberia, nos tanques. Quando ele recebesse o dele, descarregaria nos tanques da 1ª Cia.
Antes disso, fui encarregado de receber o pavilhão de Administração. Logo vi piso solto,
reboco empenado, azulejo fora de prumo, porta que não cabia no portal... Disse ao
empreiteiro que eu não estava em condições de receber a obra porque eu não tinha
parâmetros para as obras na Amazônia. Se aquilo estava bom era porque o “sarrafo” do
bom estava muito baixo para meu gosto. O empreiteiro disse que eu estava muito rígido.
Assim, fiz um QCO (fala pelo rádio) com a Seção Técnica. Veio então um capitão que foi
muito mais rígido do que eu. O empreiteiro se danou... Imagino o início da construção, pois
não havia a BR 319 asfaltada e tudo ia via Rio Madeira e de Balsa: brita de Porto Velho;
cimento de Manaus; ferro de São Paulo até Porto Velho... Quando o primeiro comandante
assumiu, fez lá sua relação de alterações que deu umas vinte páginas... Levou para mim.
Disse a ele que era melhor encaminhar à Região Militar. Ele insistia que tinha que ser para o
5º BEC. Recebi a papelada e mandei via malote, ao meu comandante. Ele simplesmente
queria uma nova construção. Sai fora e deixei-o com o Fiscal Administrativo do 5º BEC que
era major. Engraçado que a construção era para batalhão a três companhias, mas só ia
incorporar uma.... Então, duas instalações de companhias de fuzileiro ficariam vazias. O
pobre do major resolveu aterrar o pátio com carrinho de mão. Não queria atravessar o pátio,
com água pela canela... Segundo ele, a China seria o maior país do mundo porque eles não
abandonavam as milenares ferramentas que tinha e todos trabalhavam junto, tipo mutirão.
Era infante, mas não muito convicto...
Diz minhas alterações que eu fora a Porto Velho, para a passagem de comando em
28 de janeiro de 1976. Eu não me lembro e acho que não fui. Tem a apresentação da volta –
31 de janeiro. É que, alguém da Primeira Seção, não esperando a boa vontade dos oficiais
em se apresentarem em livro próprio, em atividades coletivas da unidade, eles colocavam o
nome de todo mundo – errar para mais.
Na companhia havia uma enfermeira contratada pelo convênio entre a DOC e o INPS,
nos mesmos moldes do FUNRURAL. A experiência do FUNRURAL permitiu que se
evoluísse para o convênio com o INPS. Um esclarecimento rápido: até 1995, eram três
autarquias distintas: o INAMPS - Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência
Social; o INPS - Instituto Nacional de Previdência Social e o IAPAS - Instituto de
Administração Financeira da Previdência e Assistência Social. O INAMPS prestava os
serviços de assistência médica; o INPS cuidava concessão, revisão e manutenção dos
benefícios de aposentadoria e o IAPAS cuidava da arrecadação das contribuições dos
segurados. A partir do governo Collor de Melo, a coisa foi mudando de nome e função e hoje
tudo somado e depurado virou INSS. Voltando, havia então uma enfermeira que era casada
ou separada, em fim, que estava sozinha e morava na enfermaria, pois ela fora contratada
em Porto Velho. A mulher do Subtenente vivia de “pinimba” com a enfermeira. Tinha, a
mulher do Subtenente, uns quarenta e cinco a cinquenta anos. Um dia, passou mal e o
médico da companhia mandou que se tirasse pressão da mulher. A enfermeira foi à forra:
colocou no braço dela o medidor de pressão (esfigmomanômetro) e começou a bombar o ar,
para fazer o garrote e com o estetoscópio medir as batidas. Mas a enfermeira foi bombando,
bombando; o ponteiro já passava dos vinte e cinco quando a mulher começou a gritar de
dor. O médico correu lá e viu o trote da enfermeira, mas não falou nada, já que sabia da
pinimba. A mulher doente, aí que se derreteu mais. Quando o médico disse que ia deixá-la
em repouso na enfermaria e a enfermeira iria monitorá-la à noite, ela deu um pinote e ficou
boa, “rapidão”. O médico, morrendo de rir, veio me contar fato. Logo em seguida, veio o
Subtenente, embora sabendo da forra, fez a reclamação em nome da mulher, mas eu disse
que nada podia fazer porque era um problema médico do qual eu nada sabia. Tive que
ajeitar a transferência da enfermeira para Porto Velho e trocar por um militar.
O médico eu já encontrei em Humaitá. Era temporário de 1975 e conseguira um
engajamento (Estágio de Serviço, no jargão). Estava apaixonado por uma moça, que era
apaixonada pelo R/2 de Eng, que fora licenciado. O médico reencontrei em Rio Branco
quando comandava. A jovem era da família que tinha um supermercado na cidade o qual
fornecia carne para a companhia – Supermercado Xíxaro (ou Chícharo). Pelo efetivo que
informávamos diariamente para a sede, tínhamos uma cota de carne por dia, incluído os do
trecho. O Supermercado emitia uma Nota Fiscal no valor do consumido que era pago pela
sede do batalhão.
No início de fevereiro, começamos a nos preparar para o Plano de Trabalho. Montei
uma equipe com um jipe e três cabos mais interessados em se divertir e caçar, que cumprir
uma “perigosa” missão militar. Sem as balsas posicionadas, havia risco nas travessias.
Conseguiram chegar ao Rio Mucuim, e ir até ao acampamento. Todos os rios que tinham
balsas, elas estavam ancoradas na margem. As que tinham cabo-guia, o cabo ficava
ancorado porque as águas não chegariam a eles e nem atrapalharia a passagem de canoas,
subindo ou descendo o rio. Começamos a receber soldados e alguns funcionários
contratados, mas sem ter onde alojá-los. Havia a necessidade de se ter o acampamento o
mais cedo possível. Do reconhecimento ficou se sabendo que o acampamento do Mucuim
estava bem e que as pontes de madeira, que existiam estavam todas bem. Nenhum bueiro
arrombado.
O plano de trabalho, no geral seria desmatamento, uns 30 km (até o Paciá ou pouco
mais); terraplenagem uns 40km (até o rio Mari); bueiro na parte do desmatamento e havia
uma missão de revestimento primário cuja quilometragem não sei mais. Mas era muito e
sem grandes jazidas de cascalho. Para logística, tínhamos um problema sério: era com
carne. Nos anos anteriores, a companhia tentou levar o gado vivo, tocado por terra (não sei
como passavam pelas balsas). Fazia curral no Mucuim. Desistiram do método porque
apareceram tantas onças que, num dado dia, o gado assustou e fugiram várias reses.
Tentaram montar guarda com cachorro. Mas a cada esturro de onça era uma correria dos
cachorros em direção ao acampamento. Até o vigia do gado apareceu fugido abandonando
o curral. Resolveram não mais levar gado. Para organizar a coisa tinha o tenente intendente
e dois sargentos também de intendência. Antes mesmo de começar o forte dos trabalhos,
tivemos um problema de controle de carne, mais precisamente de charque ou jabá. O nosso
intendente (que mandou uma lembrança à família em Fortaleza) entraria de férias e voltaria
para o início do PTrab. Teria que passar o estoque a um sargento. Era sargento de
engenharia e do Alegrete, mas muito meticuloso. Na hora da passagem havia uma falta de
mais de trezentos quilos de jabá. Durante o ano anterior, o tenente se descontrolou. Ele
alegava que alguma quantidade havia se estragado. Quando comunicado o fato ao
aprovisionamento do batalhão, o veterinário do batalhão respondeu tecnicamente a coisa.
Informava que havia um pedido de vinte quilos apenas, para descarte de charque, por
motivo de estar “sarcinado” (de sárcina - designação comum às bactérias anaeróbias).
Como todo ignorante ri do que não sabe, quase morro de rir pelo “charque sarcinado”.
Mandei o tenente à sede para tentar consertar a situação uma vez que a carne não fora
desviada, mas consumida no trecho, claro, sem controle. Quando ele foi a Porto Velho, aí
sim que foram notadas outras faltas de material. Com isso ele já voltou da sede com seu
pedido de licenciamento. Como havia decorrido mais da metade de sua renovação, a
legislação permitia tal coisa. Mas, a menos de dois meses, havia comprado um carro velho
em Humaitá, à prestação. Bem, ele tomou ciência das demais faltas de material, já
informada à sede, cujas faltas seria descontados de seus salários. Com isso ele ficaria
praticamente sem nenhuma economia. Saiu até escondido de Humaitá. Vendeu o carro em
Porto Velho e foi para o aeroporto escondido porque o dono do carro fora atrás dele para: ou
receber o dinheiro ou o carro de volta. Foi uma enorme confusão e até punição ao tenente.
Essa coisa me deu algum aborrecimento. Quase tive que justificar coisas do ano anterior.
Além das faltas de alimentos que já estavam sendo necessário, pois a cada dia
aumentava o efetivo, fui chamado à sede para falar com o Comandante do Batalhão. Tentou
ele me culpar também, no caso das faltas do jabá, por ser eu o comandante de companhia.
Assim sendo, teria eu que saber das faltas do material do rancho, do ano anterior. Respondi
a ele que o tenente fora posto lá para controlar material de aprovisionamento, a partir da
sede da companhia até o final do trecho. Ele era um oficial e me disse que tudo estava sob
controle e que, na falta de carne bovina, fresca, teríamos jabá para um mês, para um efetivo
de cem a cento e vinte homens. Portanto, só cabia, a mim, confiar no tenente uma vez que
ele tinha mais experiência que eu sobre alimentação, na área. Além do mais, o consumo
descontrolado não foi no meu comando. Disse ainda que eu não me sentia culpado de nada,
pelo contrário, fora prejudicado por alguém que não fora eu que o escolhera para trabalhar
comigo. Aliás, já chegando março eu não tinha oficial de arma para me ajudar a preparar a
companhia. Este tenente me disse que havia uma falta de jabá, mas que, como no início dos
trabalhos, haveria muita gente trabalhando isolada, o jabá seria descarregado aos poucos e
cobriria a falta. Ele não disse o quanto faltava e eu imaginei que fosse vinte ou trinta quilos.
A cara irônica do comandante me faz pedir transferência... Na época tendo tempo de
guarnição completo, podia pedir transferência a qualquer momento. Depois mudou: só
transferência no meio do ano e final do ano. Agora é só no final de ano. Bom, havia um outro
sargento, também gaucho, mas mais antigo que o que havia recebido o material de rancho.
Queria ficar na sede da companhia. Eu queria continuar com o sargento de engenharia.
Assim, obriguei-o criar um tapiri, com parede de pau a pique, para um aprovisionamento no
trecho. Chamei de “P Dist Avc” (traduzindo: posto de distribuição avançado). E era mais ou
menos isso que eu queria, pois todo o material de rancho ficaria na ponta do trecho. O
material de rancho passaria, pela sede, o tempo mínimo para registro e controle. Ficaria na
companhia apenas o necessário para o efetivo dali. A armazenagem seria no acampamento
do Mucuim. E caberia a ele fazer a papelada toda de controle: solicitação de alimentação por
tipo e controle do efetivo a alimentar. Teria que informar via rádio todos os dias o efetivo a
alimentar por equipe. Assim, ele não era ligado à equipe de terraplenagem, mas sim ao
comandante da companhia. Usava os meios da equipe, entretanto. Foi contrariado, mas foi.
Para coerência, o outro sargento de intendência ficou no rancho da sede da companhia, mas
no almoxarifado.
Mas o chefe do PDist, depois que ficou destacado, passou a fazer curas e receitar
ervas para os pescadores. Na passagem da balsa, a jusante, na margem esquerda do rio,
ficava uma vila de pescadores com cerca de vinte a trinta famílias porque ora uns subiam ou
desciam o rio, ora outros vinham ou iam para uma cidadezinha na foz com o Purus -
Canutama. Mas nosso chefe da distribuição fez até cirurgia espiritual.
Na sede, durante a paradeira das chuvas aconteceram algumas coisas hilárias. O
Subtenente tinha um cabo auxiliar, bem esperto. Já tinha uns trinta e cinco anos ou até mais.
Anos antes, tivera uma paralisia facial e assim, tinha uma boca torta, para um lado. Segundo
ele, se nos próximos dois anos a boca não voltasse para o lugar, ele passaria a fumar
cachimbo do lado torto para, com o vício, endireitar a boca. Mas o cabo fora á cidade e
encontrou uma moça, de uns vinte e cinco anos querendo trabalhar em casa de família. O
cabo não teve dúvida, colocou-a em seu possante fusca amarelo e a levou para o km 12,
nosso acampamento. Devido a distância, era difícil encontrar alguém querendo trabalhar no
km 12, pois teria que dormir no serviço. A ida e volta era um problema sério. A mulher dele,
que reclamava pela falta de uma secretária, porque ela trabalhava na cidade, aceitou, mas
ficou com aquela cara de “não gostei”. E passou a reclamar e depois maltratar com palavras
a moça. O barro, nas instalações da companhia, era tanto que, todos nós, entrávamos pela
área de serviço. Ali retirava o coturno e entrava, em casa, descalço, pois o coturno teria uns
cinco quilos de barro. No final da tarde, o cabo estava sentado na cadeira, para retirar o
coturno, a empregada se abaixou ao lado e disse a ele que iria embora porque a mulher dele
não gostava dela e a tinha ofendido com palavras. No exato momento, a mulher do cabo vai
à área de serviço e vê os dois conversando baixo. Aí ela cresceu e fez um escândalo para
que toda a vila soubesse: “não disse que aí tem coisa... eles se conheciam de antes e por
isso que ele a contratou... ele nunca se interessou por nada em casa, como resolveu logo
contratar uma empregada...” Bom, o cabo, no outro dia, constrangido perante todos, contava
a coisa e dizia: “eu fiquei quieto... não adiantaria explicar... como explicar...” Realmente tem
coisa que não adianta explicar: ou se “alopra” para que a “alopração” seja maior que a
calúnia, ou se cala para não alimentar mentes doentes.
Esse mesmo cabo disse que estava com um problema nas vistas e que precisava ir a
Porto Velho fazer uma consulta e também resolver algumas pendências particulares.
Perguntei a ele o que sentia, disse que às vezes ele via coisas pequenas, mas que na
realidade eram grandes; logo em seguida, via coisas grandes, mas na realidade eram
pequenas. Houve uma necessidade qualquer, a ser resolvida em Porto Velho, do tipo
documentos atrasados. O cabo que tinha a consulta e outros problemas particulares a
resolver se ofereceu para ir com seu potente fusca, o que daria a ele mais flexibilidade em
Porto Velho. Como ia parcialmente a trabalho, resolvi dar o combustível de ida. Saiu depois
do almoço. Dormiria em Porto Velho e teria todo o dia seguinte para resolver as pendências
dele e da companhia. Qual não foi a surpresa, ao abrir a rede rádio, no dia seguinte, e ter
informação que o cabo estava baixado ao hospital do BEC por acidente de carro, na BR 319,
já chegando na balsa de Porto Velho. Ficou, uns dois dias, baixado e depois retornou a
Humaitá. Perguntei a ele como tinha acontecido o acidente, respondeu que – "viu um vulto à
sua frente que parecia uma caixa de papelão ou um saco de cimento; mas ele achou que
seu olho o estava enganando: parecia grande, mas poderia ser pequeno e, aí, ele arriscou
no pequeno; entretanto era grande; ele atropelou um saco de cimento que caíra de algum
caminhão". Acabou com a frente do fusca que deixou em Porto Velho para refazer a lataria.
Antes de iniciar o PTrab, ainda no meado de fevereiro, foi designado um capitão
recém chegado do IME para comandar a companhia. A filosofia no batalhão era que, mesmo
os oficiais com curso do IME, deveriam todos os oficiais recém-chegados ficar destacado. O
comandante recém-chegado manteve a filosofia. O comando anterior fizera isso com outro
capitão egresso do IME e que começou em MUrbano e terminou no Km 8, da BR 364, onde
havia uma granja do Exército e também paiol. E antes tiveram outros, como o meu
comandante quando eu estava em Feijó. Até hoje eu penso que o Comandante quis me tirar
do comando porque eu comecei a pedir várias coisas de melhoria. Foram uma cajadada e
dois coelhos: como judiaram, para não usar uma palavra chula, o capitão da 3ª Cia, e outros
também na mesma companhia, se sentiram na obrigação de fazer o mesmo com o da 1ª e,
indiretamente, com isso, me dar o troco. Assim o comando ganhou um tenente para o
trecho.
No mês de março, dia 11, recebi meu maior prêmio: nasceu minha primeira filha. Se
ainda tiver tempo na vida escreverei a minha “biosofia”, vivida desde o meu nascimento até
a vivida em paralelo com a vida militar. Ou até coloque nas experiências para que ela saiba
tudo contado por mim.
No começinho de março apareceu um senhor que não tinha uma mão. Era
empreiteiro de pontes e serviços grosseiros de qualquer natureza. Na linguagem do interior,
em particular do nordeste e do norte, era um “GATO”. Aliciador de trabalhadores analfabetos
ou corridos da polícia que se sujeitavam a qualquer tipo de serviço, a qualquer condição de
serviço e a qualquer salário pelo serviço. Enfim, todos aventureiros. Ele se apresentou como
um empreiteiro do batalhão. Soube naquele momento, porque ninguém teve a consideração
de avisar, que ele iria entrar no trecho e iria até o rio Marí onde deveria descarregar uma
balsa de bueiro na margem direita (lado de Humaitá). Confirmei com a Seção Técnica e tudo
era verdade. Na 4ª Seção apareceu um major que se dizia “expert” em planejamento. Nas
poucas reuniões que tivemos, ele arrotou isso o tempo todo. Havia trabalhado em Triagem,
no Rio de Janeiro, no Parque de Engenharia. Em estocagem se dizia PhD. Arrotava Ficha-
Estoque, microfichas e dizia que o que considerávamos de material de maior mortalidade
era lorota, pois não tinha respaldo da estatística. Disse a ele que a falta de estatística não
era do trecho, portanto, caberia à sede apurar as peças de maior consumo e mantê-las o
mais próximo do local de trabalho. Ele não gostou da minha intervenção. Senti que ele iria a
forra na primeira oportunidade.
O empreiteiro entraria à pé. Tinha a solicitação de que nós o deixássemos o mais
dentro do trecho possível, o que daria ir até o Ipixuna. Passados três dias, lá está de volta o
empreiteiro, dada como cumprida a missão de descarga dos bueiros. Quando as águas
estivessem mais baixas, ele faria reparos em ponte, em particular a do Igarapé Preto
(conheci cinco riachos com nome de Igarapé Preto na Amazônia). Ele queria que nós
déssemos o aval dessa missão, como cumprida. Disse ao capitão que era impossível, pois o
Marí estava a quase duzentos km de Humaitá e seria impossível ele ter chegado lá. Chamei
dois dos cabos que entraram no início de fevereiro e eles também acharam muito difícil ter
acontecido isso. O capitão ficou numa banana danada. O homem se foi à Porto Velho e de
lá o major Fiscal, pelo rádio, queria que se mandasse um rádio (documento via rádio) para
atestar o cumprimento da missão. O capitão resolveu abrir o jogo e disse que eu e alguns
cabos que fizeram o reconhecimento até o Mucuim, dizíamos ser impossível tal coisa. O
major se irritou e disse que se o empreiteiro estava dizendo sim, isso era a verdade e que
nós éramos irresponsáveis, por desmentir uma pessoa de bem. Disse ao capitão que
atestasse, mas com restrições porque no momento era impossível chegar até lá no Mari. O
empreiteiro se deu mal. Três dias depois, apareceu um senhor da mesma empresa de
navegação que fizera o transporte de Feijó, sem ser o mesmo elemento, para nos avisar
para entrar com operadores e mecânicos, pois ele estava com várias balsas e um rebocador
potente, na foz do Mucuim com o Purus, em Canutama. Levaria uns cinco dias para subir,
pois o rio estava com muita água e estava descendo muita madeira. Perguntei a ele se seria
sua empresa que levaria uma balsa carregada de bueiro para o rio Mari. Ele disse que a
balsa com bueiro viera de Porto Velho e estava também em Canutama. Na volta a Porto
Velho, ele iria acertar com o comando do batalhão, pois haveria a necessidade de se ter um
balseiro para cuidar da balsa. O rio era pequeno e com grande variação de nível. Numa
dessas, a carga poderia ir para o fundo do rio. Senti que teríamos mais um pepino: como
colocar um balseiro lá. Nossos balseiros eram na conta das nossas balsas. Insisti que ele
confirmasse, para ficar bem registrado perante ao capitão, que a balsa que o empreiteiro
descarregara, na versão do major, nem tinha saído de Canutama. Assim, a
irresponsabilidade não era minha e nem dos cabos. Pedi ao dito senhor que fosse direto ao
comandante e informasse isso: balsa de bueiro ainda em Canutama e só depois informasse
ao major e ou ao capitão da sessão técnica. Dois dias depois, o major chamou o capitão
pelo rádio e pediu desculpa ao capitão, pois ele confiara demais no empreiteiro. Não falou
nada sobre mim e nem sobre os cabos. Numa de minhas idas a Porto Velho ele tentou se
explicar. Usei minha “finesse” terenense e lhe disse: – “major, bem se vê que o senhor é
inexperiente em trabalhos de BEC. Quando o senhor me chamou de irresponsável, pelo
rádio, muitas estações - de Vilhena até MUrbano - estavam abertas e funcionários, soldados
e outros, escutando. Agora o senhor quer dar explicações aqui, só entre nós dois? Para a
rede rádio ainda eu sou o irresponsável junto com os cabos que, esses sim, chegaram até o
Mucuim”. Veio com uma filosofia de banheiro de rodoviária, de que errar é humano, mas que
não houve a intenção, blá, blá,blá...
Antes de contar a solução do balseiro do Mari, houve dois casos engraçados com um
mesmo balseiro. Era o balseiro do Ipixuna, rio a uns vinte a vinte e cinco km de Humaitá, na
BR 230. Assim que eu cheguei à companhia ele veio apanhar sua etapa de rancho. Eu não
sabia disso. Ele caminhara vários quilômetros até o encontro e de lá pediu carona, coisa rara
devido ao quase nenhum tráfego. Mas ele ficava lá sem família porque ali nada tinha o que
fazer e tinha muito pium. O seu apelido era Cara-seca. Nunca soube de seu nome. Seu
rosto, orelhas, nuca, braços, mãos não tinha pele, tinha um cascão de tanta picada de pium.
Ao se pegar em seu braço, parecia couro de surucucu-pico-de-jaca. Parecia que ele tinha
brotoeja, sarda, ou coisa assim. Mas era impressionante a figura do senhor. Sua imagem
parecia deformada não sei se pelo inchaço das picadas ou se pelas picadas. Como já dito
em outro local, a picada do pium deixa uma pinta sanguinolenta, como o borrachudo, por
serem da mesma família. Tinha pinta de pium até dentro do ouvido. Já com uns quarenta e
tantos anos, parecia um ET. Bem magrinho, baixo, de fala forte, bem humorado, quase
cômico, sempre fora balseiro em Humaitá. Perguntei se ele não queria ficar um tempo na
companhia o que rejeitou pronta e bruscamente. Mas era muito conhecido na companhia e
querido por todos. Sua família ficava na bendita “Vila dos Civis”. Ele, por não me conhecer
estava cheio de “rodeios”, até que o cabo apropriador abriu o jogo e disse a ele: “fale logo
com o tenente que ele não tem frescura”..., no que ele criou coragem e disse: “Tenente, um
bicho comeu meu galo. Até agora não sei como, mas ele tirou o galo da gaiola e comeu.
Ficou só a galinha”. Perguntei por que ter galo e galinha num lugar daquele no que
respondeu que ele só tinha coragem de ficar em lugar onde pudesse ouvir cantiga de galo.
Se ele passasse três dias sem ouvir cantiga de galo ele ficava com medo e abandonava o
lugar. Eu fiquei olhando quase pagando pra ver, mas não quis nem acreditar e nem duvidar
do balseiro. Segundo os mais antigos na companhia, essa sempre fora a mania dele: ter um
galo nos locais onde ficava como balseiro, não se importando onde. E o local onde ele ficava
até que era bom, pois tinha uma casa pré-fabricada modelo “quinbeque”. Prometi e,
negociando na Vila dos Civis, conseguimos um galo, novo e grande, para ele.
Fugindo um pouco da cronologia, um dia eu saí cinco da manhã para o trecho. Havia
avisado a esse balseiro que no outro dia eu madrugaria. Cheguei ao local da balsa, a casa
do Cara-seca estava aberta. A balsa do outro lado do Rio. Chamamos pelo balseiro, ele não
respondia. Eu já estava me aprontando para passar a nado e trazer a balsa de volta, pois
era de navegação retida. Quando me preparava, o motorista viu o balseiro a uns mil metros
do outro lado do rio onde a estrada fazia uma ligeira curva para a direita. Ele veio bem
devagar com uma espingarda na mão. Quando chegou, atravessou com a balsa também
devagar. Eu fui logo com a bronca: – “meu camarada, levantei cedo para ganhar tempo e
você me fez atrasar tudo. Que aconteceu? O galo fugiu?” Ele bem calmo disse: – “tenente
desculpe, mas eu levei um susto que estou mole até agora; sabia que o senhor vinha cedo
daí levantei e vi um veado passando lá na curva; peguei minha espingarda e corri até lá; saí
negaceando quando entrei no mato, uns cinquenta metros, o veado veio em disparada para
cima de mim que nem tempo de atirar tive, pois parecia um raio; logo atrás do veado vinha
uma enorme onça pintada perseguindo o veado; quando ela me viu, estancou nas quatro
patas, a uns dez metros de mim. Eu gelei, pois, se me mexesse, ela me atacava; e ela
também com cara de assustada, pois parece que ela achou estranho: antes era um veado e
agora é um humano? Aí ela deu um salto para trás e sumiu. Eram três assustado: o veado
assustado com a onça; a onça assustada comigo e eu assustado com a onça”. Até ele
contar seu causo, já tínhamos atravessado o rio. O motorista que antes estava bravo com o
balseiro, insinuando que o balseiro deveria ser punido, quase desmaia de rir, tanto pelo
acontecido, como pelo jeito que o Cara-seca contava a coisa. Ficou o atraso por conta do
causo do Cara-seca.
Mas, num dia tal, fui procurado para fazer um QCO com a Seção Técnica – “vai partir
de Porto Velho um avião com um balseiro e você (Ten Higino) embarca no avião e vá até
Lábrea; o prefeito está avisado de tudo; ele dará alimentação e local para o balseiro ficar; irá
para o Mari alguns dias da semana; não precisará ficar direto”. Aí já não dava mais tempo de
nada: decisão tomada em planejamento malfeito. Como o balseiro iria cuidar de uma balsa
de bueiro, indo uma ou duas vezes por semana até ao rio Mari se até ao Paciá era uns vinte
e cinco a trinta km e mais uns seis ou sete até o Mari. Portanto, um dia de viagem e de
marcha forçada. A coisa bem começada dá galho, imagine a má “bolada”. E não deu outra.
Cheguei, na pista de pouso, com minha rede e meu mosquiteiro e uma muda de roupa, pois
na Amazônia, se puder, não improvise; o improviso leva a fato consumado desagradável.
Era um bimotor, asa baixa (talvez cesna), já com jeitão de mais horas de vôos na Amazônia
que albatroz no mar. Estava, do lado de fora, o piloto e o balseiro. O piloto teria que
emagrecer uns cem quilos para se tornar obeso. O balseiro, cujo nome esqueci, era moreno,
compleição forte, quase um metro e oitenta de altura, uns quarenta anos e biótipo de
maranhense. Perguntei ao balseiro se ele levava dinheiro, respondeu que não; perguntei se
levava material de pousada, respondeu que não; perguntei se ficaria o tempo todo ou se
teria troca, respondeu que nada sabia; perguntei o que ele levava, disse que levava três
mudas de roupa apenas, porque disseram que ele iria cuidar uma balsa em Lábrea e que a
prefeitura iria resolveria tudo. Fiquei desconfiado. Mas não havia mais tempo para nada.
Perguntei ao piloto qual era a missão dele disse que o vôo estava á minha disposição e que
as horas de voo seria cobrada em Porto Velho, segundo o que eu tivesse usado, mais a ida
e volta a Humaitá. Senti que o freguês iria tentar fazer o máximo de horas de vôo. Pedi a ele
a carta de vôo e a orientei. Pedi que fôssemos baixo, mesmo com desconforto, mas por
cima da BR de modo que ela ficasse na minha direita. Resolvemos embarcar. O balseiro
entrou nos bancos do centro e eu ia como copiloto, na frente. A entrada do piloto foi algo
hilariante: ele ficou de quatro pés sobre a asa da aeronave e foi engatinhando até a porta;
ficou de joelhos e abriu a porta; passar pela porta foi algo para Mister M, o mágico
mascarado; levou um bom tempo para se aprumar no acento. Eu, do outro lado, destravei a
porta e entrei. Ajustei o cinto e pus minha sacola com rede e a carta aérea no painel. Lá
fomos nós. O tempo estava ótimo. Fomos por sobre a BR e, à medida entrávamos, eu ia
identificando os rios, com a aprovação do piloto. Passamos sobre o acampamento do
Mucuim e, a partir daí, pedi que voasse mais baixo ainda. Eu queria ver a densidade da
mata, pois iríamos começar o desmatamento até o Mari. Então, numa linguagem
operacional, era o desmatamento que faria a “junção” com o balseiro. Segundo o piloto tudo
era muito perto, de avião. Eu então deveria ficar atento para ver a balsa no Mari. Se ela não
estivesse ainda lá, talvez não chegasse mais, pois os rios haviam baixado, em muito, as
águas. Na primeira passada não foi possível; na segunda o piloto a viu e nos mostrou;
demos mais um rasante e aí até o balseiro a viu. Logo chegamos à pista de pouso de
Lábrea. A BR sairia bem na cabeceira sul (mais ou menos sul). Não havia nenhuma viatura
nos esperando. Alguém que fora de jipe até à pista de pouso, querendo contratar o taxi
aéreo, e não podendo, nos deu carona até a cidade e á prefeitura. Como eu esperava: o
prefeito não sabia de nada. Num dia, que ele não mais sabia, alguém, um capitão, o havia
telefonado perguntando da distância até o rio Mari, da facilidade de até lá se dirigir, mas
quanto a apoio a balseiro, ninguém havia falado nada. E agora... voltar com o balseiro? Se
fosse hoje se resolveria com telefone celular. Na época, Lábrea só tinha telefone na cidade.
Não tinha interurbano. Pedi ao Prefeito o apoio em comida e algum material de cozinha,
para o balseiro acampar junto da balsa, por um mês; levá-lo-ia até onde desse, de caminhão
e marcasse com ele uma data, para voltar. Nesse intervalo de tempo, eu tentaria outra
solução em Porto Velho. O balseiro quase não quis ficar. Disse a ele que eu resolveria a
coisa... acabou aceitando. Bom, deixei minha rede e meu mosquiteiro com ele, coisas que
nunca mais vi. O Prefeito me deu uma informação sensacional: entre o rio Paciá e o campo
de pouso já tinha uma estrada rural e o desmatamento fora feito pela marcação da nossa
topografia, esta que tinha chegado a Lábrea em anos anteriores; entre o Paciá e o rio Mari,
mais ou menos oito km, já estava desmatado por fazendeiros, também respeitando a
topografia. No Paciá tinha uma balsa da prefeitura e assim os fazendeiros podiam atravessar
e ir por caminho de serviço até o Mari. Portanto, entre o Mari e o campo de pouso estava
tudo desmatado. Na volta pedi novamente ao piloto que voasse bem baixinho. Ele decolou
em direção ao Rio Purus, fez a volta e, a partir do campo de pouso saiu lambendo as copas
das árvores. Fomos até o Mari e voltamos agora bem alto para se ter uma imagem mais
abrangente. Depois dessas passadas, tiramos o rumo direto para Humaitá.
Dessa rápida viagem algumas coisas merecem registro. Quando aterrissamos em
Lábrea, o local de estacionamento era na cabeceira mais ou menos norte. Bem, mais para
leste, havia uma cidade de casas de madeira e cobertas de palha. Tinha várias quadras com
casas uma ao lado da outra. Deveria morar para mais de duzentas famílias. O aspecto era
de muita pobreza. Tudo seria normal se ali não fosse o “bairro dos leprosos”. Reuniram ali
todos os Hansenianos que viviam com filhos, mulheres... Quando chegou o avião vieram
como em enxame, todos pedindo um “adjutório” como falam na região. A coisa era bruta:
uns faltavam dedos; outros, orelhas; outros, nariz. Aproximavam-se constrangidos, sem
orgulho, sem dignidade. Se não tivesse o espírito preparado para combate, não sei se
suportaria. O quadro, ali, faria Dante Alighieri refazer sua obra “O Inferno”. Aguentei no osso
do peito como diziam os peões, não por medo ou repulsa, mas a constatação da miséria
humana. Dantesco foi ter que aceitar um copo de café oferecido por quem só tinha dois
dedos na mão direita, num copo “cristal da Cica”. E galhardamente tomei todo o café.
Infelizmente, mais tarde convivi com isso, mas já com total controle da medicina. Não há
mais como ter alguém com lepra naquele estado de deformação que vi. Outro
acontecimento era que, entre o Mari e o Paciá não haveria desmatamento: tudo já fora feito
pelos fazendeiros. Até do outro lado do Mari (lado de Humaitá, já havia o raleamento da
mata. E do Mucuim até o Mari, a mata embora alta era rala. Então o desmatamento estava
mais fácil do pensávamos o que era uma grande preocupação naquele ano.
Chegando a Humaitá, escrevi tudo sobre a situação do balseiro e o reconhecimento
aéreo do que seria o desmatamento. Sobre o balseiro a “sede” assumiu a situação com a
ligação com o prefeito. Haveria um pagamento das despesas, por saque de diárias corridas
ao balseiro, e a possibilidade de remeter algum dinheiro a ele, pelo banco. O salário ficaria
com a família em Porto Velho e ele, sabia Deus, quando retornaria. Quanto ao
desmatamento, a Seção Técnica, que tratou com o prefeito sobre o balseiro, confirmou o
meu relatório sobre não ser desnecessário o desmatamento a partir do Paciá (mais ou
menos uns 25 km até o campo de pouso). Com isso economizaria um dinheiro grande. Mas
uma semana depois eis que aparece na Companhia? O bendito empreiteiro de descarga da
balsa, querendo tirar satisfação comigo, pois o meu relatório o fizera perder um contrato
para derrubada das árvores grande, com moto serra e assim “agilitar” (como dizia o
comandante do batalhão) o desmatamento. O f. d. p. faltava uma mão, perdida, segundo ele,
ao operar um bate-estaca, numa ponte de madeira. Só não lhe enchi de “porrada” porque
era menor que eu, mais velho e faltava uma mão. Expulsei-o da companhia como nunca
faria com cachorro louco. Há um mês, mentira, o que permitiu ao major me chamar de
irresponsável e agora vinha tirar satisfações porque impedi a ele ganhar sem nada fazer?
Quase perdi a cabeça. Só não fui ás vias de fato porque tinha vários soldados por perto.
Mas eles escutaram o xingo. Usei todo meu repertório de palavrões em português e
guarani...
Como já dito em outro lugar, começamos um ano difícil com o comando muito voltado
para as aparências.
Antes da chegada do Capitão, chegara por lá um tenente R/2, vindo de Itajubá,
preocupado em fazer turismo: excelente fotógrafo. Estivera em Rio Branco na Conservação
de Rodovia. Quando esteve no Mucuim, quase que não fica.
Com a chegada do Capitão, dividimos os trabalhos, proposto por ele: do portão para
fora tudo era comigo, isto é, o trecho era meu com todas as causas e consequências; do
portão para dentro era com ele, isto é, a parte administrativa burocrática, pois a
administrativa do trecho era comigo.
Assim que as chuvas pararam e os rios baixaram, na experiência dos pescadores do
Mucuim, começamos o desmatamento. Em tempos de vacas gordas, chefe de equipe de
desmatamento era tenente. Em geral, eram sargentos tais chefes. Mas no momento não
tinha ninguém. Começaríamos com três tratores sendo operadores: um cabo, um soldado e
um civil. O motorista do caminhão tanque (CTC) era um civil apelidado de Bode. Bom,
estava na previsão, da Primeira Seção do Batalhão, ser o chefe um sargento e o chefe da
mecânica um cabo. Este cabo chefe da mecânica tinha. Era um porto-alegrense com quase
dois metros de altura. Morava na vila. Era o mesmo que transportara os explosivos para Ji-
paraná, no ano anterior. No início, pedi a ele que, por falta de gente, para ir tocando o
desmatamento. Acertamos quinze dias no mato e cinco na sede da companhia. Depois de
dois meses chegou um sargento. Perguntei ao cabo se ele gostaria de continuar como
chefe, pois agora já teria um sargento, respondeu que ficaria como chefe uma vez que tudo
já estava engrenado. Ele fazia todos os pedidos de peças, para a sede e de alimento e
combustível, para o Mucuim e tudo estava funcionando muito bem. E o quebra-galho (cabo
como chefe) ficou até o final que foi a chegada a Lábrea (segundo descobrimento de Lábrea;
o primeiro foi com o bom baiano).
Vou sair da cronologia para contar alguns fatos engraçado da equipe de
desmatamento. Um belo dia, recebi um radio do cabo, dizendo que eles estava sendo
atacados por morcegos, á noite. Mesmo com fogueira no meio do acampamento, os
morcegos atacavam. Chamei-o pelo rádio e perguntei se eles não tinham mosquiteiro, pelo
que respondeu inocentemente que não... um absurdo. Dei-lhe uma bronca. Tanto os cabos
quanto eu, não tínhamos nos tocado nisso. E na região tinha malária. No ano seguinte, no
tal km oitenta, a companhia parou, pois quem não estava entrando, estava saindo de
malária. Disse que todos seriam elogiados em boletim, por doação de sangue aos
morcegos. Mandei que viesse o caminhão de combustível até Humaitá. Comprei, na conta
de cada um, no SAS, um mosquiteiro de modo que todos fossem protegidos dos mosquitos,
que lá existia, bem como dos morcegos. Eles não queriam gastar com mosquiteiro. Quando
souberam ficaram uma arara comigo, mas tudo ficou na brincadeira.
Outro fato fora com um pedido de peças. Todos os rádios, pedindo peças, passavam
por mim. Depois de avaliar eu autorizava a remessa e dependendo do caso pedia mais
esclarecimento de modo que se antecipasse mal maior. Foi quando notei um pedido
esquisito. A referência era estranha e eu nunca tinha visto coisa igual. Os rádios de pedido
de peças tinham um modelo padrão, no 5º BEC: sol rem pç ref 3x-5555 vg aplic TE-30;
quant três. O número alí era enorme e tinha uma barra com o número mil, invertido. Fui até
ao almoxarifado e perguntei ao cabo encarregado sobre a tal referência. O radio era mais ou
menos assim: Sol rem pç ref 999.999.999/0001-99 vg aplic geral ptvg quant três pt O cabo
velho me olhou e começou a rir. É que o bendito capitão soube, pelo Ten R/2, que era
abstêmio, que havia entrado cachaça no acampamento. Assim, determinou que todas as
viaturas fossem revistadas, na saída da companhia e na balsa do Mucuim. Mas a cachaça
entrava através da vila dos pescadores. Assim, a revista era apenas uma chateação. Eu
sabia, mas não ia fazer nada. Sempre haveria a cachaça, o que não poderia é deixar
aparecer bêbado. O cabo do almoxarifado rindo, disse: – “Tenente, para o senhor a gente
abre. O desmatamento está pedindo cachaça. Esta referência é o CGC da Cocal”. Cocal é
uma cachaça muito conhecida na Amazônia, fabricada em Manaus ou Belém. Aí eu disse,
mas como vamos mandar? O capitão mandou que se revistassem todas as viaturas!!! No
que ele me disse: – “Tenente, o Bode está vindo aí; a gente compra três litros e entrega a
ele. Na caixa de fusível do caminhão Mercedes cabem quatro garrafas ou três litros. Eles
pode revirar o caminhão, mas nunca vão achar, pois precisa-se de, no mínimo, uma chave
de fenda para abrir a caixa de fusível”... Assim, continuou chegando o rádio com referencia
esquisita. Eu via e despachava: “ao Almox- atender, com urgência”.
Mas os trabalhos da terraplenagem estavam difícil. Mesmo com as águas baixando,
havia um igapó com uns dois quilômetros de largura, com profundidade entre um metro e um
metro e meio, onde o eixo da estrada passava pelo meio dele. Não havia como pular o lugar
e começar mais á frente de modo que, quando secasse, se retomar a implantação no local.
Assim, começamos a fazer um trabalho lento e demorado e caro: fazer aterro com “ponta de
aterro”. As escreiperes descarregavam numa camada bem grossa, a maior que pudesse, e
um trator D/7 ia empurrando o material para dentro do igapó. E assim fomos formando o
aterro”. Quando estávamos no meio do igapó, foi feita a medição pela topografia da Seção
Técnica. Não deu outra: foi uma bronca das grandes. A estrada estava com o triplo da
largura que deveria ter e com o triplo de material para aqueles primeiros km. Na verdade
estava um campo de pouso. É que, sendo ponta de aterro, à medida que as escreiperes
entravam para descarregar, o material ia sendo expurgado, para a lateral e assim, a estaca
que definia a largura foi ultrapassada e muitas, soterrada. Na verdade houve um descuido
no intento de trabalhar rápido, para vencer logo o local. Mesmo atacando com vontade, só
poderia trabalhar durante o dia. À noite, o risco de acidente com escreiperes era grande. O
atraso foi generalizado.
Soube que havia chegado um Tenente na sede oriundo de AMAN. Fiz um QCO com
um capitão da Sec Tec solicitei que a Sec Tec intervisse para ele ir para Humaitá. Eu abriria
mão do ten R/2. O batalhão tinha uma enorme falta de tenente. O R/2 era muito inexperiente
e se sentia num safári. Preocupado em tirar fotografias, slides e filmagem oito milímetros.
Fotografava desde borboletas até máquina tombando. Em dois meses não conseguira ir até
ao desmatamento, coisa que eu já fizera por umas três vezes. Vivia reclamando por falta de
apoio. Ele tinha a pose de Patton, mas agia como Montgomery: queria uma mesa só para
ele, um alojamento só para ele, cama com colchão macio; geladeira, ventilador e vivia com
sua roupa impecavelmente limpa e passada, coturno brilhando... Várias vezes, perguntei a
ele quando é que ele iria sujar o coturno indo até a equipe de bueiro, de terraplenagem...
Mas ou se fazia de bobo ou era muito inocente que não entendia a indireta. Foi numa
dessas ocasiões que o motorista, ex-balseiro, colocou um tambor de lubrificante na
carroceria de um caminhão, no muque. O tenente aguardava uma carregadeira para
embarcar o tambor, tendo uma máquina parada no trecho, pela falta do óleo. Estando
sozinho, eu não podia dispensar ninguém, mesmo os que me atrapalhavam. Quando ele
soube que iria outro tenente, mais antigo que ele, para a equipe do Mucuim, ficou ressentido
ou com medo, pois eu tinha vontade de fazer um acampamento mais à frente. Sempre
defendi equipes independentes de modo a treinar o tenente a ser comandante. Todos
acampados, no mesmo lugar, as decisões cabem ao mais antigo sempre, o que não é
errado, mas tolhe a iniciativa dos mais modernos. Como dizia Patton (George) – “ não diga
“como fazer”, mas “o que fazer” e terás agradáveis surpresas”. E quando disse que ele iria
de volta para Rio Branco aí que ele ficou ressentido. Falou em até pedir licenciamento.
A aquisição do tenente foi uma ótima aquisição. Vinha de Porto União, sua cidade e
do 5º BE Cmb. Fora sargento de engenharia antes de ir para a Academia. Quando ele se
apresentou à companhia, perguntei a ele, cara a cara, se ele chegara para aprender, para
trabalhar ou só queria cumprir o tempo mínimo, fazer turismo e tirar fotografias. Ele levou um
susto: respondeu que estava ali para aprender tudo. Já lhe tinham dito, na sede, para colar
em mim e arrancar tudo que eu sabia. Como eu já planejava pedir transferência depois que
a coisa estivesse mais engrenada (pelo menos passar pelo igapó) eu comecei a dar todos
os meus manuais, literaturas e pedia a ele ir lendo o que mais interessava. Ensinei a ele ler
catálogos de máquinas e a entender os diferentes tipos de óleos e lubrificantes bem como
as diversas marcas. Isso é era um transtorno na Amazônia porque a PETROBRAS não
produzia todas as graxas e lubrificantes que se precisava. Então tinha SHELL, TEXACO,
PETROBRÁS, IPIRANGA as existentes... O tenente a cada dia demonstrou ter o mesmo
espírito que eu.
Para quebrar a rotina da narração quase técnica, narro alguns casos até engraçado.
Numa das idas minhas até ao desmatamento, chegamos ao local depois de parar em
todos os acampamentos, lá pelas duas da tarde. Como eu e o motorista não tínhamos
almoçado, perguntei ao cozinheiro se tinha algo para comer. Ele respondeu que tinha arroz
e feijão, sobra que seria o jantar, mas carne, que era jabá, tinha acabado. E sem cerimônia
me disse: “se o senhor esperar um pouquinho, tenho macaco, morto agora cedo, que será a
carne da janta”. Olhei para onde ele olhava. Tinham dois macacos pregos, sem couro,
pendurados pelo pescoço com cipó, parecendo cadáveres em miniaturas, enforcados e
escalpelados, rodando de um lado para outro conforme o vento. Fiquei numa “banana”.
Comer o bicho seria um ato de bravura, sem medalhas; não comer, o cozinheiro diria que o
tenente era um frouxo, que não foi macho para comer a carne do macaco. O bandido fez de
propósito, para me testar. Eu, na maior galhardia perguntei de que forma ele faria o macaco
o mais rápido possível, ele respondeu que seria frito. Enquanto fomos até onde estavam as
máquinas, de caminhão tanque (4X4), ele temperou e fritou o bicho. Quando voltei, já quase
quatro da tarde, comemos o bicho, que despedaçado, não tinha a aparência esquisita de
antes. A fome era tanta que nem pensei mais em macaco. Passei no teste do cozinheiro.
Outro lance engraçado foi a do motorista da carne. Como o Mucuim estava longe, 110
a 120 km, e travessia de três balsas até chegar lá, a carne era trazida do Supermercado dos
Xíxaro e colocada num frízer. No outro dia a carne estava bem fria, mas não congelada. Um
soldado motorista cujo nome não me lembro, era encarregado que colocar a carne num jipe
e seguir para o acampamento. Ele tinha até às nove horas da manhã para chegar até lá. O
operador de rádio (que trabalhara em Murbano como soldado) informava que ele tinha
chegado. Caso não chegasse, outra viatura, picape, levaria jabá e carne, destinada à sede,
de modo a chegar ao acampamento lá pelas onze ou meio dia... o almoço atrasaria, mas
não faltaria carne. Num determinado dia, deu nove horas ... e a carne não chegou... deu
nove e meia... e nada... já havia sido acionada a picape quando o radioperador anunciou a
chegada da carne no outro lado do rio. Quando o motorista voltou (ele almoçava no Mucuim
e voltava para Humaitá chegando pelas duas da tarde; era também estafeta) levou logo uma
bronca do aprovisionador, do subtenente... e aí a bronca foi subindo conforme ele ia
encontrando os mais antigos. A mim, ele contou a causa: “tenente, eu ia bem como vou
todos os dias... mas hoje, na baixada do Puinanã, quando o dia estava bem claro, tinha três
onças dormindo na estrada. Eu, com o jipe aberto e cheio de carne, parei uns mil metros e
fiquei esperando elas acordarem, espreguiçarem e entrarem na mata. Sei lá o que esse
bichos tentariam ao sentir o cheiro da carne! Esse foi o motivo do atraso.” Fazer o quê numa
situação dessas.
Numa das minhas inúmeras idas ao trecho, pois ia quase todos os dias, saindo às
quatro da manhã e voltando pela nove, dez da noite (e ainda lavava fraldas da neném já que
a mulher fizera uma cesariana), na volta furou um pneu. A picape era dessas Chevrolet C-14
e seu macaco era uma haste de uns sessenta centímetros com dentes e uma catraca que
acionada, levantava a picape para se trocar o pneu furado. O macaco daquela e de outras
picapes há muito já não prestava mais. E não deu outra: não conseguimos levantar a picape,
Foi preciso usar o velho “processo expedito”: fazer um monte de terra, funcionar a picape e
fazer o pneu furado subir o monte de terra; calçar com madeiras o carro e depois retirar a
terra; assim pneu furado ficaria suspenso. Terrível era fazer o pneu bom tocar o chão
novamente. No outro dia, antes de sair, disse ao motorista: – “vê se arranja outro macaco
com o Subdesenvolvido” (o Subtenente era grande, 1,80m, mais para gordo que para
magro, se dizia que era um Sub... desenvolvido). Na saída o motorista disse: – “tem agora
um macaco hidráulico novinho em folha... nunca foi usado.” E lá fomos nós. Na volta... e
sempre na volta (cansado, com sede e querendo chegar), furou o pneu. Descemos e
colocamos o macaco. O soldado colocou a alavanca e toc... toc... toc e nada do macaco
subir. Mudou de posição balançou... nada do macaco subir. Perguntei a ele se o macaco
tinha óleo hidráulico. Retirou a borrachinha à guisa de tampa e... não tinha uma gota de óleo
sequer. Era tão novo que nunca fora colocado óleo. Pelo processo expedito, novamente
iríamos levar uma hora ou mais... Quando ele pegou a enxada, para fazer o montinho de
terra e areia tive uma luz... Perguntei a ele: – “você está com vontade de urinar? Se está se
prepara, pois eu estou e vou urinar no macaco e a urina vai servir de óleo... só não sei se
vou completar o tanque dele... e aí você trate de completar”. E assim fizemos. Ele colocou o
macaco no lugar e, mal começou a acionar a alavanca, o pistão subiu... trocamos o pneu
com tranquilidade. Chegando à Companhia disse ao motorista: – “pra deixar de ser bisonho,
vai desmontar, lavar e colocar óleo no macaco.” A notícia chegou a Porto Velho. Vários
oficiais vieram me perguntar sobre o macaco movido à urina.
O tenente que ficou conosco, oriundo de AMAN, assim que chegou ao acampamento,
fez uma revolução. Além de dinâmico e interessado, sabia cativar a todos. Logo ganhou a
confiança dos pões e dos pescadores. Era um líder nato. Na primeira semana, passou a dar
aulas de alfabetização, coisa que ele tinha curso, aos pescadores. Inicialmente fora no
acampamento porque tinha luz de gerador. Pedi a ele que fizesse a ligação de energia para
a casa de algum dos pescadores. Para isso compramos algumas peças de fio e lâmpadas. É
que tinha mulheres, novas, médias e velhas. Isso, no acampamento, logo, logo daria galho.
Aprendemos com os pescadores algumas coisas interessantes para nossa educação e
conhecimento regional. Eles aprenderam com os índios que diziam existir por lá, mas nós
nunca os encontramos “in natura”. Alguns que dormiam na vila dos pescadores eram
civilizados. Pois bem, os índios daquela região não pegavam malária e quando isso
acontecia sabiam tratá-la. Era com uma planta, um arbusto, com folhas alongadas, grandes,
bem nervuradas e firmes como folha de laranjeira. Sua raiz era bem desenvolvida, pivotada
e comprida. Foi fácil aprender reconhecê-la na mata, em lugares longe de água. A planta
tem o nome de “saracura mirá” ou “muirá”. É conhecida, pelos botânicos, como Cerveja de
Índio. Na internet, alguns a consideram cipó. A que eu vi e usei era arbusto como a
guaxuma, o fedegoso... Para usá-la como remédio, contra a malária, se retira a raiz, deixa
secar; depois raspa com faca, cerca de uma colher de chá e coloca a raspa num copo com
água; depois, com o restante da raiz, agita-se a mistura, raspa e água, com o restante da
raiz. A água fica com uma cor amarela, como cerveja e um amargor também parecido com o
da cerveja. Quando formar alguma espuma na superfície, está pronta para ser bebida.
Muitos peões passaram a tomá-la religiosamente função dos acontecimentos dos anos
anteriores com malaria. Na região do Mucuim tinha em abundância tal planta.
Para a terraplanagem, há a necessidade de se fazer a limpeza, isto é, retirar a
camada de material orgânico (solo adubado ao natural) para depois se cavar e transportar o
solo puro. Pois bem, naquela região o trator desenterrava uma bola, de massa branca, do
tamanho de uma bola de basquete. Segundo os pescadores, e depois a peãozada
aproveitava todas, aquilo era uma massa feita de raiz (tubérculo), de alguma planta que eu
não aprendi a identificar. Fazia-se também de mandioca. De que forma a indiada a fazia,
eles não sabiam; talvez fosse mastigada. O fato é que os índios faziam essas bolas de
massa e as deixam anos, enterradas. Um dia, ao por ali passar, retirava a bola, assava e
comia. Também não sei como eles marcavam o lugar. A que eu comi e tinha um gosto de
massa de mandioca, de beiju, de tapioca, com um ligeiro gosto de terra, lógico, pelo tempo
enterrado. Com toda a certeza, era de mandioca; o sabor era agradável, o suficiente para
matar a fome. Os pescadores chamavam de “Pão de Índio”. Os operadores de trator ficavam
bem atentos observando as lâminas para não esmagar o pão.
Mas peripécia é que não faltava. Com o tenente, a do Mucuim, estava resolvida. Eu ia
lá apenas para dar uma olhada. Como comitiva (ia para comer no acampamento e voltar). A
Seção Técnica passou a cobrar os trabalhos de revestimento numa área que não tinha
cascalho. Já no ano anterior, fora oferecido aos seringueiros, que eram poucos, e
pescadores um prêmio para quem informasse sobre cascalheiras. E apareceu um. O distinto
dormiu na Companhia e no outro dia saímos de madrugada. Não me lembro onde morava o
distinto, mas era num dos rios com balsa. Ainda na Companhia, perguntei a ele quantas
horas gastaríamos, para entrar e sair, pelo que respondeu duas para entrar e duas para sair.
Assim, não levei nem água e nem comida, pois chegando ao local de partida, as seis, perto
das dez ou onze horas estaríamos de volta. Que ingenuidade a minha... paguei caro a
burrice. Tocamos para o trecho e já perto do Açuã, ele mandou parar a picape, para
entrarmos na mata. Iríamos caminhar na direção sul. Pedimos ao motorista que fosse para a
Companhia e, a partir das dez horas, voltasse para o mesmo lugar, para nos pegar. Era um
lugar com mata alta e muito limpa por baixo. Havia muitos macacos: de bugio até sagui. Mas
era a grande mentira: a planície amazônica. Foi um sobe e desce danado. Chegamos ao
local indicado perto das duas da tarde e eu morto de cansado. Cavamos uns vinte quilos de
amostra, dez para cada um, e voltamos. Se não fosse o seringueiro um bom mateiro,
teríamos que dormir na mata. Eu já estava entregue. Quando saímos na estrada, o meu
grande medo era não estar mais o motorista e a picape. Assim, morreríamos na praia, com
sede e fome. Mas o pobre do motorista estava lá e angustiado. De vez em quando ele
gritava, para obter alguma resposta. Quando consegui ouvir, pela primeira vez, dei três tiros
de revólver para cima o que ele ouviu e nos aguardou. Saímos da mata quase dez da noite.
O motorista disse que, se passasse das dez da noite, voltaria para a Companhia para
preparar uma equipe de resgate. Nunca fiquei tão exausto como dessa vez. No outro dia,
não tive forças para trabalhar. E ainda tinha a neném durante a noite. Que cascalho caro.
Mas foi a salvação da lavoura, embora com uma distância média de transporte (DMT)
elevada. Depois contratei o seringueiro por um mês, para ele ajudar na locação do lugar indo
com a equipe de topografia que fez uma picada até o local, para se fazer o desmatamento e
criar um caminho de serviço. Assim foi feito e o cascalho era muito bom. O seringueiro
ganhou sua recompensa, mas o quanto foi não me lembro mais, pois o dinheiro era cruzeiro
e tudo começava com milhões de cruzeiro...
O batalhão, diziam, tinha comprado cerca de sessenta caçambas e disseram que
eram todas para a nossa companhia. Um disparate, pois só tínhamos uma cascalheira. No
final, elas foram dívidas entre as companhias e residências de conserva. Assim, montei
quatro equipes de conserva a cinco caçambas, quatro carregadeiras, todas Cat: duas, 966;
uma, 950 e uma, 930, quatro motoniveladoras, quatro caminhões pipas, quatro
compactadores. Como era uma cascalheira só, ela fora desmatada e limpa com um D/8 e se
fazia o cascalho com um D/7. Quando necessário o D/7 virava a noite. Como não tinha
tenente e nem sargento para chefia, o jeito foi inventar. E isso que, na nossa companhia,
estava a principal frente de trabalho do Batalhão. Havia algo errado: alguém estava
querendo ou testar o capitão e me sobrecarregava ou queriam me testar e sobrecarregava o
capitão.. O inventar, foi da seguinte maneira: peguei um cabo que tinha experiência de
conservação; ele ficou como gerente da execução do serviço; assim, o tratorista D/7, os
operadores de MN, operadores de compactadores, equipe de lubrificação e de mecânicos,
motoristas de apoio em geral, ficaram subordinados a ele para execução de suas atividades.
As necessidades logísticas deles era comigo; havia quatro equipes de caçamba onde o
motorista, mais antigo de batalhão, era o chefe das cinco caçambas. Assim, o cabo, pelo
projeto da Sec Tec, sabia qual o trecho atacar, locado pela equipe de topografia. Assim ele
dizia aos chefes de caçamba onde eles deveriam descarregar o cascalho. Engrenava o
transporte e ia fiscalizar a execução que passamos a fazer sob rígida técnica. Nos
momentos que alguma carregadeira parava por problemas mecânicos, tinha confusão. É
que os motoristas alegavam preferência dos operadores de carregadeira por uma
determinada equipe. E as equipes ganhavam por produção. Havia um sistema de
penalidades quando os motoristas eram flagrados correndo muito ou fazendo ultrapassagem
desnecessária. Havia postos de “radares ao vivo” – soldados recrutas anotando as carradas
(apontadores) em determinado ponto e eram obrigados a anotar, também, os infratores.
Eu passei a ser o chefe de acampamento e ia até lá todos os dias. Levantava as
necessidades do acampamento: anotados pelo cozinheiro, pelo lubrificador, pelos
mecânicos, pelo soldador, pelos chefes de caçambas e pelo cabo chefe da execução. Fazia
ainda, com o rádio operador, a apropriação: anotava horas trabalhadas, carradas, material
consumido, combustível consumido e levava para a companhia. Na companhia tinha um
cabo, catarina com sotaque de “shoenvili”, que era uma fera em apropriação. Quando tinha
alguma inconsistência, ele me avisava e no outro dia eu corrigia.
Quando falei em rígida técnica, é que no batalhão o revestimento primário sempre
fora mal feito. Tecerei algumas considerações técnicas um tanto quanto maçante, mas
necessária se algum tenente ler isso. O que me foi permitido ver na viagem que fiz ao
nordeste, nos trabalhos de base e subase, fiz uma nota de serviço para a companhia tanto
para a colocação do material na pista como para a compactação. A colocação do material na
pista era feita com a regularização do leito; umedecimento da pista sem a preocupação com
umidade ótima; número de carradas por estacas (dados retirados da caderneta da
topografia); espalhamento na altura do piquete pelas motoniveladoras; camadas de vinte
centímetros. Não havia uma norma do DNER sobre isso. Na conserva de outros trechos, o
cascalho era jogado na pista sobre uma camada de pó. Nunca iria haver a união do aterro
com o cascalho. A compactação era feita logo após o espalhamento, ou durante o
espalhamento de modo a aproveitar ao máximo a umidade natural. E fizemos uma pista de
teste para saber o número de passadas, pois não tínhamos laboratório de solo e nem era o
caso. Depois de feita compactação a motoniveladora fazia as valetas laterais com saídas
d’água, no máximo a cada cinquenta metros, mesmo que para isso se usasse trator de
esteira (D/4). Aliás, no meu tempo de tenente, o D/4 era uma máquina inútil, por que
ninguém sabia usá-la.
Bom, o cabo era na prática o chefe da Equipe de revestimento. Era ele que ficava no
acampamento aguentando chatices de peões de toda origem. Foi daí que eu criei um mote
de que, em BEC se dava missão a cabo que, se fosse em outras armas, seria para capitão
com ESAO. Não sei como foi depois que sai, mas comigo lá, funcionou muito bem, embora
eu tivesse uma sobrecarga enorme, pois era responsável, por tudo, fora das cercas do
quartel, isto é, de Humaitá até o desmatamento.
Mas, num dia tal, vinha com o cabo de revestimento, no seu jipe, quando a uns trinta
metros atravessou um filhote de onça muito novo, pois era do tamanho de um gato
doméstico. O cabo acelerou e, parando o jipe, saiu correndo atrás do animal. Eu saí atrás
dele, com o revolver na mão, chamando o maluco (que até pqdt era) de volta. Felizmente
não aconteceu o que pensava: o cabo encontrar a mãe da oncinha. Dei uma bronca no
jovem. Foi um risco desnecessário. Contei a ele o caso do Cara-seca.
Falando em maluco, foi no forte do Plano de Trabalho que o cabo, chefe do carro-
oficina, descompensou psicologicamente. Era um ser extremamente inseguro e nervoso.
Passou quase uma semana perdido na mata. Voltou pra Porto Velho e foi reformado por
esquizofrenia ou algo assim. E, por esse motivo, o motorista que fora balseiro teve que
assumir o carro, como já exposto em outra parte.
Maluquice também era de um jovem operador que era filho ou neto de índio. Era
rondoniense não sei de onde. Excelente tratorista. Exímio pescador, mas com flecha. Um dia
me disse que se eu viesse no outro dia, ele iria pescar à noite para que eu almoçasse um
peixe pescado por ele. Aí me perguntou qual peixe eu gostaria de comer. Disse que
qualquer um peixe. Ao se pescar, nunca se sabe que peixe se vai pegar. Aí ele deu um
sorriso de mofa e disse: – “Tenente eu pesco com flecha. Mato o peixe que eu quero”.
Perguntei como ele fazia e daí me explicou: – “eu pego uma canoa pequena, dos
pescadores, lá pelas quatro da tarde; subo o rio uns três quilômetros remando; depois faço
uma “poita” com um tronco pequeno e desço de bubuia” (traduzindo, de um tronco ele fazia
uma âncora, que mal tocava o fundo do rio e, assim, a canoa descia com a força da
correnteza, mas com pouca velocidade, pelo arrasto da ancora ou poita); “e na descida eu
fico de pé na proa com o arco e a flecha, mas com a flecha amarrada numa linha grossa;
quando vejo o peixe à frente e é dos que quero eu atiro a flecha, fisgo e com a linha o trago
para a canoa”. No outro dia, lá estava um enorme tambaqui “caçado” pelo operador (não
pescado). Da mesma proeza, fora a caçada que fizera, de quase dois dias em que matou
um veado. Pediu para caçar, pois queria matar um veado. Havia conseguido uma
espingarda com os pescadores. E assim, quando eu voltava para Humaitá, num sábado à
tarde, pediu uma carona. Antes, combinou com o tenente do acampamento para que ele
fosse resgatado na tarde do domingo num determinado lugar que já combinara com um
motorista. Depois de rodar uns vinte quilômetros, ele pediu para parar. Ajeitou facão, faca, m
cantil d’água e sua rede como paneiro e, antes de entrar na mata, cortou um galho enorme
de árvore e colocou quase em meia pista. Era a sinalização para o motorista do outro dia.
Segundo ele, a mata era tal que ali teria veado, com toda certeza. Bom, na segunda feira
soube que ele fora resgatado com um enorme veado morto, no local combinado. Ele matara
o bicho pela manhã e retirou as vísceras para não estragar a carne. Amarrou as patas e
assim, como mochila transportou o bicho por mais de quatro horas de caminhada na mata,
segundo ele. O almoço fora carne de veado para todos.
Nessas confusões todas, teve um caso danado de ruim. Um motorista de caminhão
tanque de d’água (CTA), fora até o Mucuim pegar alguma coisa, para a equipe de
revestimento. Eu ficara na ponta de serviço do trecho do revestimento e meu motorista fora
ao acampamento pegar algo. Como demorava, resolvi pegar carona com o tal motorista do
CTA. Quando passávamos uma ponte de madeira, não me lembro se do Rio Preto, ele disse
que iria parar, pois estava passando mal. E começou a desfalecer, antes de parar. Eu
segurei o volante e o puxei para o lado do carona e assumi a direção do caminhão. Assim,
toquei para o acampamento na velocidade que minha coragem permitia. Chegando lá, ele
estava completamente desmaiado. Mandei que o colocasse na picape e o motorista saiu a
toda velocidade para Humaitá. Fiquei no acampamento. Ao chegar na sede da companhia, o
médico disse que ele já estava morto e que pelo diagnóstico fora de enfarto. Bom, o levamos
para porto Velho, onde moravam seus familiares onde a sede do batalhão assumiu o
problema.
O capitão nunca havia servido em BEC. Um dia chega um rádio, logo pela manhã de
que a balsa de óleo diesel que ficava no Mucuim, estava encalhada, o rio baixou
rapidamente a água e o balseiro comeu mosca. A balsa era o mesmo casco de navio que
ficara comigo em Feijó, com óleo diesel, claro. O capitão ficara desesperado. Eu seguira
cedo para o revestimento. Assim que voltei à companhia, ele queria que eu voltasse até ao
Mucuim. Eu disse que eu teria que ir até lá, mas durante o dia. Sair àquela hora chegaria à
noite sem nada poder fazer. Era certo que assim de longe não se podia ter uma solução e
nem avaliar o perigo. Se estivesse encalhada mesmo haveria o risco de tombar, pois ela
tinha quilha. Ele ficara desesperado. Eu falei com o acampamento e pedi que o balseiro
viesse falar comigo, pelo rádio antes de encerar a rede. O acampamento estava vazio, então
o radio-perador pediu para ficar em QAP (ficar com radio ligado, mas sem operar) e fora até
a balsa. Chegando lá, com sua experiência e junto com o balseiro, a quem fora chamar,
soltaram as amarras da balsa. Com a força da correnteza a balsa desencalhou sozinha.
Então o operador voltou e me chamou dizendo que a balsa fora desencalhada, mas que
teria que ter mais cabo de aço, pois estava muito próximo da margem (deixar a balsa mais
no talvegue com mais profundidade. O capitão, durante o dia, já tinha se ligado com Porto
Velho e solicitado um rebocador para desencalhar a balsa. Isso custaria um preço enorme.
Assim, teve que sair desmanchando todas as ligações que fizera logo cedo.
O nosso sargenteante era um mulato, carioca, muito inteligente, mas todo enrolado
com dinheiro. Assim, a ele se dava qualquer função que não envolvesse dinheiro. Nunca
soube o porquê, mas sua mulher tinha um grave defeito nas pernas. Não chegava ser
paraplégica, mas tinha enorme dificuldade de andar. O nosso capitão, querendo ser
altruísta, resolveu tratar desigualmente pessoas desiguais, segundo ele. Assim, quando a
mulher do sargento pretendia ir a cidade, ele determinava que uma picape do rancho fosse
levá-la e trazê-la do supermercado. Isso funcionou até o dia em que a picape do rancho teve
que ir ao trecho. Ela não teve dúvida: mandou chamar o motorista do capitão e determinou
que a levasse para a cidade. O motorista respondeu que não fora avisado pelo capitão e que
iria falar com ele e assim fez. O capitão ficou uma fera. Acabou o privilégio que era até
merecido, mais pelo desempenho e eficiência do sargento que por ela.
Mas, numa ida minha a Porto Velho, por uma semana, por motivo de saúde da
família, fui me apresentar ao comandante e dar informações sobre a companhia, agora sob
o comando do capitão. Íamos muito bem quando eu, mais uma vez, pedi se não poderia ser
comprado um ônibus (verba do SAS, ou da estrada) ou alugar um, para o transporte de
pessoas que iam e vinham da cidade. Tudo era feito num caminhãozinho Mercedes Bens
608: transportava funcionários que morava na cidade (e não na Vila dos Civis), empregadas
de moradores da vila, senhoras para fazer compras rápidas, crianças para ir e voltar de
escola... Nos sábados era para se fazer o supermercado: o caminhão ia as oito e voltava as
dez. Em algumas oportunidades tinha que dar duas viagens. Ele ficou quieto, foi
avermelhando e quase me fuzilando com o olhar. Ficou em pé e me disse que eu era muito
insistente, pois ele já dissera que não ia comprar nada. Problemas de Humaitá deveriam ser
resolvidos pelo comandante da companhia. Saí de lá, passei na Primeira Seção e pedi o
formulário para pedir transferência. O comandante soube quando o Chefe de Seção fora
despachar com ele. Os capitães da Seção Técnica ficaram malucos. Foram me procurar no
hospital, para saber do motivo. Como eles eram bem quisto, pelo comandante, tudo que eu
dissesse chegaria ao comandante, mas não como eu disse. Assim aleguei que estava
cansado e usaria um direito meu. Para alguns, eu disse que foram alguns detalhes que me
aborreceram e que não era cansaço, era desconforto. Se não tivesse tempo de guarnição
até suportaria, mas não já precisava mais daquilo. A falta do ônibus fora a gota d’água...
Num belo dia de julho, saiu minha transferência. Aguentei até a chegada dos recursos
de ajuda de custo. Até lá, passei tudo ao Tenente que recebemos que mais tarde seria meu
compadre. Tinha um restante de férias e aproveitei para ir mais uma vez a Manaus. Agora
fomos de táxi. Contratamos um táxi em Humaitá. A nenê era pequena, uns três ou quatro
meses. O calor era infernal. Assim, nas paradas de balsas que foram muitas e não me
lembro mais quantas, nós banhávamos ela com água mineral. Passamos uns três dias
fazendo algumas comprar muito mais para a menina. Na volta, o motorista contava com a
existência de gasolina em determinado lugar, que na ida tinha combustível, mas na volta já
não tinha mais. Ficaríamos no meio do caminho sem onde dormir, comer e tudo mais.
Apareceu uma alma, vinda de Humaitá e que voltaria dia depois. Ele nos cedeu um corote
de vinte litros o que permitiu que chegássemos a Humaitá só com o cheiro da gasolina.
Como não haveria tempo de eu esperar para devolver o combustível ao cidadão, comprei a
gasolina na cidade e pedi que deixassem o corote bem na entrada da companhia para, se
ele passasse de volta ver o corote dele. Claro, eu lhe tinha explicado detalhadamente onde
ficava a companhia e que lá me procurasse. Se não desse certo, ele procuraria o motorista
do taxi. Espero que ele tenha resgatado seu combustível, pois eu tinha prazos. Foi um susto
danado.
Num dia que nãos ei chegou um caminhão da “Transportadora Confiança” para levar
basicamente coisas pessoais, pois nosso mesmo era pouca coisa e tudo seria comprado
novo no destino – Itajubá. Aproveitei as sobras de “conduite” do 54º BIS, que ainda existia, e
fiz um balaço para a minha filha quando ela começasse a andar. Era leve e poderia ser
armado até na sala. Por premonição, fora feito com dois lugares. Em Itajubá foi muito útil.
Acompanhou-nos até a Alegrete, após a ESAO.
Qual não foi a surpresa: o motorista do caminhão era um gaucho que fora meu
soldado em Alegrete. Havia pegado uma mudança para Porto Velho e ali chegando fora
comunicado para pegar outra em Humaitá. Foi uma agradável surpresa.
Fui a Porto Velho para minha despedida. Na verdade havia tempo demais. As férias
eram os trinta dias e mais os quinze para quem viajasse para fora da área amazônica. Então
aí perdi quinze dias, ou melhor, deixei de usar. Uma picape da companhia me foi levar até a
sede. Quando nos aproximamos da balsa do Madeira, a um quilômetro vimos uma fumaça
que envolvia os carros parados. Quando chegamos ao local a fumaça era nuvem de pium. E
aí foi um drama: se ficássemos dentro da picape, até o retorno da balsa, que estava na outra
margem, o calor seria sufocante e insuportável; se saísse com a neném, o pium a atacaria.
Pelo calor estava apenas de fralda. Com uma toalha passei a abaná-la desesperadamente.
A sorte que, além de ser carro pequeno, que já tinha uma prioridade para travessia, ainda
era picape do BEC cuja prioridade era maior ainda. Que sufoco!!!
Nem me lembro se o comandante participou da despedida e da formatura. Ainda
tenho a plaquinha, padrão da época - “Não Vivi Em Vão”. E um chapéu azul, lembrança das
mulheres. Do elogio de despedida, eu não sei de quem foi a redação, embora por praxe,
saía como se do comandante fosse. Foi muito contundente e não esperava que o
comandante o aprovasse nos termos que saiu. A mim foi muito lisonjeiro. Mas, o
comandante foi o meu maior exemplo de como eu não deveria ser como comandante. Tem
uma referência a isso em outro lugar.
Assim, parti para Itajubá, 4º Batalhão de Engenharia de Combate – 4º BE Cmb,
unidade que eu não conhecia, numa cidade que eu não conhecia. Tinha que chegar logo,
pois não havia PNR (Próprio Nacional Residencial) para todos. Daí, tempo de chegada
(tempo de guarnição) ser importante e o foi no futuro. Fui com a intenção de estudar para o
concurso do IME, por influência dos capitães da Seção Técnica.
Num belo dia, que minhas alterações assinalam ser 10 de setembro, cheguei a
Itajubá, ainda em trânsito, que iria até dia 24. Quando cheguei era absoluto candidato a
PNR, mas chegou outro oficial da turma de 72; aí me apresentei um dia antes do término do
trânsito confirmando minha chegada como mais antigo de guarnição.
A viagem de Porto Velho ao Rio de avião. Depois do Rio até Itajubá de ônibus. Na
viagem de ônibus, o trecho da travessia da serra da Mantiqueira foi uma festa. O ônibus
fazia as curvas, tanto na subida como na descida na maior velocidade que o motorista podia.
Assim, se era jogado de um lado para outro. Muitas pessoas enjoavam. Mas no meio da
descida, a neném resolve chorar e de fome porque estava em seu horário. Tínhamos
pegado água quente na rodoviária do Rio. Teoricamente, era só colocar o leite em pó,
solúvel, na mamadeira, colocar água, esfriar até a temperatura ideal e dar á criança. Mas o
difícil foi colocar a água quente na mamadeira: foi queimada para todo lado porque a água
ainda era muito quente. Resolveu-se inverter: esfriar a água para depois colocar o leite em
pó. Bom, quando resolvida a parada, quase tinha chegado a Itajubá. Da rodoviária de
Itajubá, precaríssima, para um hotel mais precário ainda. As baratas, mesmo de dia, faziam
a festa. A bagagem era enorme. Mudança com criança nova. Coloquei minha farda e fui ao
quartel, me apresentar por estar na guarnição. Para minha surpresa, no quartel tinha uns
apartamentos onde moravam os oficiais solteiros e que também servia de casa de hóspede.
Sem esperar completar a diária do hotel, rapidamente ocupei um apartamento. Assim,
passou-se à busca de uma casa ou apartamento para se alugar e que coubesse no bolso de
um 1º tenente. Por indicação de alguém apareceu uma casa de fundos, mas com tamanho
suficiente para uma família com um filho. Ficava na Rua, pesquisada hoje pelo Google,
Pereira Cabral, meia quadra do Club Itajubense, tradicionalíssimo na cidade. Na frente
desse clube ficava uma praça grande e bonita, a Praça Teodomiro Santiago. Da praça,
olhando para o Clube Itajubense, se vê ele localizado entre as ruas: lateral direita, a rua
Américo de Oliveira; fundos com rua Cesário Alvim e a lateral esquerda com a rua Francisco
Pereira. Portanto, à direita era a rua da casa alugada, que se continuasse, passaria em
frente ao Clube Itajubense; ainda olhando para o Clube, em frente era o rumo geral do BE.
Assim, a rua da direita, com várias casas de comércio, demandava para o BE; a da
esquerda ia para o centro da cidade com várias residências de arquitetura antigas, mas
muito bonitas. Espero que tenham resistido á fúria da especulação imobiliária.
Era necessário então comprar muita coisa: cama, geladeira, fogão, guarda roupa,
mesa de cozinha, mesa de sala, sofá televisão... Havia uma loja de móveis e que se
conseguiu negociar com o dono da loja. O pagamento seria a perder de vista. Na época os
financiamentos eram da própria loja. Não havia agentes financeiros. Mas dos utensílios, o
que mais deu trabalho foi a máquina de lavar. Como nunca se tinha usado uma, foi um “pára
pra acertar”, até entender que a mangueira de descarga deveria ficar em posição elevada e,
se possível, dentro do tanque, pois se não, toda a água que entrava, ia para o ralo. A caixa
d’água do senhorio secou e não se conseguia fazer funcionar a máquina. Um vexame.
Levamos quase uma semana quando se descobriu como a coisa funcionava. Assim que
foram entregues os móveis a casa foi ocupada.
No sitio da Prefeitura de Itajubá - http://www.itajuba.mg.gov.br/historia.php, (acesso
em 4 de abril de 2010) se pode copiar os seguinte dados:
“Na corrida à exploração de pedras preciosas em Minas Gerais foram descobertas as
minas de Nossa Senhora da Soledade do Itagybá, local onde se construiu a cidade de
Delfim Moreira, na qual teve início a história da atual cidade de Itajubá; o nome Itagybá, que
na língua indígena significa: ‘Rio das pedras que do alto cai’, cascata, foi dado em alusão à
cachoeira junto às minas de Miguel Garcia Velho, sugerido por seus companheiros de
expedição. O município fica numa altitude média de 842 metros; ocupa uma área de 290,45
Km ² de extensão, com população de 90.812 habitantes, de acordo com o IBGE de 2006; o
município é privilegiado em relação à localização, não só por estar inserido numa rede
urbana formada por prósperas cidades de porte médio, cujo acesso é feito pela BR459, mas
também devido à sua posição em relação as grandes capitais da região sudeste: Belo
Horizonte (445Km), São Paulo (261Km), Rio de Janeiro (318Km)”. Fica no conhecido Sul de
Minas fronteira com Rio e São Paulo.
Fugindo da cronologia, mas aproveitando o mote pela localização, a cidade estava
parada no tempo apesar da localização privilegiada. Em lá chegando com uma filha de
pouco mais de seis meses de idade, procurou-se um posto de saúde para atualizar a
vacinação. Pensava-se que poderia estar faltando alguma vacina uma vez que se vinha,
“com elevado estereótipo”, da Amazônia. No Amazonas, Rondônia e Acre funcionavam
alguns órgãos de saúde muito bons. Nesses estados a população era atendida pelo Serviço
Especial de Saúde Pública (SESP). Era tipo SUS, hoje, mas com médicos muito bem pagos
e com muita especialização. Órgãos como Campanha de Erradicação da Malária (CEM),
que depois mudaram o nome, e não a eficiência, para Superintendência das Campanhas
(SUCAM). Também os medicamentos eram distribuídos gratuitamente pela CEME – Central
de Medicamentos, depois extinta por ser fonte de corrupção, ao invés de punir o corrupto.
Qual não foi a surpresa de que nos postos de saúde de Itajubá não se fazia vacina infantil.
Ficaram maravilhados com a caderneta de vacina da menina e pediram para tirar uma cópia.
Fomos obrigados a procurar um pediatra para orientar quanto ao quadro de vacina. Foi uma
enorme decepção com a cidade. A região amazônica estava fazendo a coisa com muita
seriedade e com vanguarda.
Itajubá é cortada, literalmente ao meio, pelo rio Sapucaí. No mesmo sítio da Prefeitura
se copia que: “Sapucaí quer dizer rio das sapucaias, isto é, rio que canta, rio que grita. O
nome foi dado pelos índios em alusão às lecitidáceas (espécie de árvore que produz uma
cuia – cumbuca) que, quando fustigadas pelos ventos, frequentes no vale, produziam silvos
semelhantes a gemidos”. O rio Sapucaí é um rio nervoso. Rapidamente ele desce a serra,
sobe a água e faz um estrago. O BE tem, ao longo de sua história, vários embates com o rio,
com enormes perdas de material. Particularmente de pontes. Os maledicentes falam que,
numa delas, sumiram, além de pontões (botes, para os não de engenharia), dois “chapéus
de cavalete” da ponte B/4 (para os não de engenharia, um trambolho de treliças de ferro que
pesa cento e cinquenta quilos) e pelo menos dez vigotas (perfil de ferro de quatro metros de
comprimento e setenta quilos de peso). Em enchentes mais antigas, no tempo em que os
pontões eram transportados, por carroções e parelhas de muares, as águas do Sapucaí
levaram a bigorna da ferraria da unidade.
Numa definição menos técnica e mais rasteira, Itajubá fica numa área cercada de
serras muito altas por todos os lados. Ela se alonga pelo vale do rio, que abre sua passagem
em lugares ora mais largo, ora mais estreito. Nesse vale passa rodovia e ferrovia.
No quartel, fui designado para a Segunda Seção. Eu nuca tinha trabalhado nisso. A
Segunda Seção, na época “seção de informações” foi atualizada para, hoje, “seção de
inteligência”. Até hoje nunca consegui entender o porquê da mudança. Informação vem do
latim informátìó,ónis “ação de formar, de fazer, fabricação; esboço, desenho, plano; ideia,
concepção; formação, forma”, portanto se forma conhecimento; Inteligência – do latim
intelligentìa,ae “entendimento, conhecimento, informação”, portanto o conhecimento
formado. Talvez para dar um ar de modernidade e imitar a língua inglesa: intelligence:
“inteligência; conhecimento; informações”. Tal seção faz parte da estrutura militar de guerra.
As Informações sempre existiram na humanidade. A segunda seção, em Itajubá, era muita
ativa. Era subordinada, para fins de Segurança Interna à Artilharia Divisionária (AD) de
Pouso Alegre. A cidade era uma cidade essencialmente universitária com o melhor curso de
engenharia elétrica do país – A EFEI – Escola Federal de Eletricidade de Itajubá. Era a única
faculdade federal do Brasil, na época. A área de segurança do BE continha quarenta e dois
municípios. Minas tinha uma característica; era o estado com o maior número de município,
na época: 720 ao todo. No sul de Minas tinha um município, até muito perto de Itajubá, de
nome Piranguinho: tinha duas ruas, uma estação ferroviária e uma igreja e, na frente dela,
uma praça. Havia município no alto da Serra da Mantiqueira, como Marmelópolis, lugar que
fornecia e fornecesse até hoje marmelos para as marmeladas. Para chegar até lá tinha que
levar agasalho de frio. No meio da viagem apareciam nuvens geladas, nuvem de cerração
ou nuvens de chuvas. Na cidade, sempre era frio, para os costumes de calor mais baixo.
Outras só se tinha acessos de carro, se fosse por Volta Redonda ou Resende. Por Minas só
de burro. Nos quase dois anos que ali servi, fiquei mais temo com roupa à paisana que
fardado.
O quartel era um projeto Calógeras, já deformado, por reformas necessárias, mas
inadequadas com o perfil da arquitetura. Lá fora instalado lá pelo início do século passado.
O pátio de aprestamento virou quadras desportivas, jardins e outras coisas mais. Como lá
chove muito no inverno, havia uma passarela que ligava todos os pavilhões. Após os
pavilhões rancho e garagem, já fora do muro, ficava a Casa de Hóspedes e cassino dos
oficiais. Penso que ali fora antes o tal Armazém Reembolsável. Atravessando a rua, ficava a
Enfermaria ou Formação Sanitária Regimental (nunca entendi tal nome). No mesmo lado da
enfermaria ficava a Vila Militar. A rua que passava por ali passava bem em frente à Fabrica
de Armas de Itajubá. Continuando a rua, mais uns quinhentos metros à frente, se
atravessava o rio Sapucaí, por uma ponte de pedra e se atingia a BR.459/383. A Fábrica de
Armas, as instalações do BE, as histórias do BE são grandes e pouco conhecidas. Exemplo:
para funcionar a fábrica de armas, o Exército construiu uma hidroelétrica, acho que já é o
Rio Sapucaí, que acabou por ficar noutro município: Wenceslau Brás. Na minha época, virou
Campo de Instrução. Ali fora também granja onde se criavam gados, porcos, aves que eram
vendidos aos militares pelo Armazém Reembolsável. Pois bem, o quartel era bem antigo,
como a cidade. Um comentário na cidade, feito com orgulho, pelos habitantes era de, no BE,
ter sido Aspirante a Oficial o folclórico milico-político Juarez Távora, um dos Tenentes do EB
que passou para História do Brasil com o Tenentismo. Para mim, palhaçada de tenente
subordinado a comandante omisso e sem valores militares. Deveria ser folclore e não
história. Com leitura atenta se deduz ser, na verdade, uma Aspirantada: ingenuidade de
aspirantes.
O comandante havia chegado naquele ano. Era carioca e tinha casa ou apartamento
por lá. Sua mulher vinha esporadicamente a Itajubá. Tinha uma filha de uns vinte anos e um
filho de cinco. Ele ia praticamente todos os finais de semana para o Rio, de ônibus. Como
ele havia vários sargentos que preferiram morar no Rio porque não havia vila militar para
sargentos em Itajubá. O comandante era bem baixinho, judeu de usar Kipá, brincalhão,
bonachão e muito inteligente. Bem acima da média dos comandantes que tive. E um dos
pioneiros em informática no EB.
Ele contou uma história interessante para se entender a evolução do EB em
informática. O Exército pagou a ele (e a outros) um curso de seis meses nos EEUU, de
informática: linguagem COBOL e FORTRAN, cartões perfurados, leitoras de cartão e todas
as parafernálias da época. Os computadores tinham menos memória que uma calculadora
de quatro operações. Bom, ainda major, retornou do curso, e foi designado para a Diretoria
de Movimentação de Pessoal. Havia a ideia de se fazer um sistema de controle
informatizado do pessoal. Mas isso teria custo e deveria estar no orçamento do
Departamento Geral de Pessoal. O então major fora falar com o General chefe do
departamento. Chegou lá, começou a derramar sua verve sobre informática; Disse ele ao
general (contado por ele): – “olha, o senhor caso queira saber o nome de todos os capitães,
com nome JOSÉ; depois, refinando mais: todos os josés, mas de infantaria; e ainda mais:
todos os josés, de infantaria e com curso de educação física.... o senhor terá essa
informação na hora.” O general olhou para ele, com ar de mofa, e responde: “porque eu vou
gastar dinheiro por uma coisa que um cabo no arquivo leva cinco minutos?” Ele saiu de lá,
foi ao seu chefe e resolveram esperar o general sair Departamento. Enquanto isso,
desenvolveram o sistema de “carteira de identidade informatizada” que foi copiado pelo
Ministério da Justiça.
No BE ainda tinha um NPOR - Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva – onde
se formavam oficiais de engenharia, temporários. Algumas vezes fiquei respondendo pela
chefia do NPOR, particularmente nas férias do seu titular, um tenente, e depois capitão, de
minha turma.
Também no Batalhão tinha um curso de aperfeiçoamento de sargentos. - o CAS –
para sargentos de engenharia. Vinham sargentos de engenharia de todo o Brasil fazer tal
curso. Isso consumia um capitão para o CAS, um capitão para o NPOR, dois tenentes para
o NPOR e dois para o CAS. É certo que, para o NPOR, eram nomeados por dois anos para
tal finalidade.
Como eu assumira a Segunda Seção e era de todo aconselhável que eu visitasse
todas as sedes de prefeitura, o comandante escolheu algumas para ir também. Claro,
escolheu as principais; São Lourenço, Caxambu, Cambuquira... Fomos a Passa Quatro
(esse nome porque se passava quatro vezes um riacho (não sei se vale o mesmo critério
para Passa Vinte, também em Minas). A convite do Prefeito, fomos visitar uma fábrica de
goiabada, na época da CICA. Quando estávamos no alto de um enorme tacho, com a massa
fumegando, o gerente da fábrica estava todo entusiasmado pela visita, o comandante faz
uma pergunta e depois a complementa de forma infeliz. Perguntou: “essa massa é só de
goiaba?” O gerente respondeu: – “não senhor: tem uma mistura goiaba com abóbora, com
cinquenta por cento de cada.” O comandante lascou em seguida: – “entendi... uma abobora
e uma goiaba... uma abóbora e uma goiaba...” e, gesticulando, com os dois braços ao
mostrar o tamanho da abóbora e, com os dedos da mão, como se fizesse o OK dos
americanos, o tamanho da goiaba. A partir daquele momento o gerente se fechou e
respondeu tudo monossilabicamente.
Mas nossa área, olhando o mapa de Minas Gerais, começava na paralela que passa
em Paraisópolis, quase a sudoeste de Itajubá, pelo sul; ia até São Vicente de Minas, na
direção de Andrelândia, Bom Jardim de Minas (onde houve enormes canteiros de trabalho
da tal Ferrovia dos 1000 dias, loucura de Mário Andreazza), pelo norte; o limite com o estado
do Rio a leste. Por oeste era mais ou menos a BR 381. Como já dito, muito dos municípios
só tinha acesso pelo Estado do Rio: Resende, Porto Real, Barra Mansa...
À medida que ia conhecendo a área e os maiores municípios eu me obrigava a ler
tudo sobre o local e se constava alguma coisa de pessoas do local. Na parte norte, acima de
São Lourenço, fora local de descanso de terroristas no final da década de sessenta, inicio da
de setenta. Teve uma cidade (Baependi, salvo engano) na qual houve um inquérito, que
tínhamos cópia. Ao ler todo o inquérito, notei que ele era malicioso e o oficial que o fez fora
induzido a erro, cujo motivo não é o caso agora. Mas era de um prefeito que, tido como
dinâmico, foi considerado, pelo juiz da comarca, como agitador. Na verdade o juiz fora á
forra. Os familiares, do juiz acomodavam mal o lixo de sua casa. O Prefeito lhe avisou disso
diversas vezes, pois a coleta era feita com carroça e burro. Como sempre o lixo estava mal
acondicionado, o prefeito suspendeu a coleta do lixo do juiz. E, numa oportunidade, fez um
discurso sobre isso citando nominalmente o juiz. Não teve dúvida: o juiz o denunciou como
agitador, e o enquadrou em crime previsto num dos atos institucionais, que não me lembro.
Função do enquadramento, mesmo antes do julgamento, a Câmara de Vereadores cassou o
prefeito. No batalhão, e em toda a cadeia de informações constava que o distinto era
agitador, comunista, que fora cassado, enquadrado no Ato Institucional X... Mostrei isso ao
comandante, que num despacho com o general de Pouso Alegre (4ª Artilharia Divisionária –
AD/4) lhe mostrou o inquérito. O general, como nós, sentiu o exagero, mas... revolução é
revolução... Fui autorizado a tentar a desfazer o nó. Bom, quando visitei tal cidade, procurei
o tal senhor, que era comerciante e fazendeiro local e que há muito tinha deixado a política.
O juiz já havia falecido, por idade. Ele ficou surpreso, pois já tentara “limpar o nome”
algumas vezes, mas não conseguira. E agora nós íamos lhe procurar para corrigir tal
situação. Da mesma maneira que fui orientado, eu passei-lhe a orientação. Da minha seção,
dei-lhe cópia do inquérito que ele nem sabia como conseguir cópia. Penso que ele tenha se
explicado, pois recebemos ordem de refazer o registro dele.
Devagar eu ia entrando na rotina das atividades de informações. Como já passara o
meio do ano, eu só poderia me matricular no concurso do IME no ano seguinte: 1977.
Logo tivemos um problema no quartel. O comandante anterior, cujo perfil será visto
mais adiante, havia insistido com seus oficiais para incorporar um jovem, de família
conhecida na cidade, mas que era viciado em maconha. Os tenentes ficaram com o pé
atrás. Não deu outra: na metade do ano, antes um pouco de eu chegar, a polícia havia
alertado que o tal estava envolvido em tráfego de maconha, mas que ainda não poderia
fazer flagrante. Quando eu cheguei, a coisa estourou: o jovem fora pego fumando maconha,
no quartel, estando de serviço, pelo sargento de ronda. Recolhido ao xadrez e feito uma
sindicância, ele confessou tudo, até seu envolvimento na cidade. No BE havia oito soldados
envolvidos e que foram aliciados por ele. Solução da sindicância: expulsão do maconheiro e
oito dias de prisão para os que foram aliciados.
A cidade como universitária, tinha seus problemas com a subversão. Assim, todos os
guerrilheiros ainda existentes, procuravam ou Itajubá ou alguma cidade da serra. Um dia
descobrimos que, na gráfica da EFEI, estava sendo impresso um jornal e uma revista,
clandestinamente, à noite, por uma ala comunista ligada ao troktismo. O jornal havia
aparecido em Belo Horizonte. Em Pouso Alegre, perante o general, e com orientação da 4ª
DE, de Belo Horizonte, foi decidido que nós, da cidade não fizéssemos a entrada para
apreender o material. Depois a coisa evoluiu para deixá-los levar o material, mas serem
acompanhado. Foi a melhor coisa, pois nos livramos de uma tarefa para a qual não
tínhamos treinamento a contento. E com isso pegaram um monte de gente, que acabaram
por denunciar os que trabalhavam em Itajubá.
O que havia de denúncia por vingança era um festa. Mas, mesmo assim nós íamos se
inteirar dos acontecidos. Por fazer parte do sistema de informações, havia uma intensa troca
de informações com delegados e comandantes de PM até valor companhia. Tínhamos
telefones e endereços de todos. Assim, quando tinha pepino em um determinado lugar, eu
me ligava com a autoridade e pedia que levantasse tudo sobre determinada pessoa. Se
fosse autoridade: prefeito, vereadores ou juízes, eu, na cara de pau ia visitar o Padre da
cidade. Dizia que era militar católico e que fora à cidade a serviço e que gostaria de visitar a
igreja. Assim, eu puxava conversa e acabava por perguntar sobre as autoridades em geral.
A maioria dos padres, até os ditos de esquerda, cooperava bem, pois ou falavam bem ou
mal com veemência.
Outra função que eu tinha era a de controlar trânsito e estoque de armas, munição e
explosivos. No jargão era SFIDT - Serviço de Fiscalização, da Importação, Depósito e
Tráfego de Produtos Controlados. Era regulado por um decreto; para nós um regulamento -
R105. Assim conheci um grande número de diferentes tipos de mineração. Conheci o local
onde se extraia a areia para fabricar os vidros da marca Santa Marina. Também
descobrimos que todas as casas de armas de Itajubá vendiam de tudo, em particular
munição, a quem quisesse. As guias de tráfego e os mapas de entrada e saída de armas e
munições eram diferentes do que encontrávamos nas lojas da cidade. Isso teve uma enorme
repercussão e várias casas de armas foram regularizar suas situações. Foi um trabalho
grande em particular com as pedreiras, pois os explosivos não eram bem tratados e
guardados. Ainda bem que os nossos guerrilheiros eram muito incompetentes. Havia
explosivo mal guardado em todas as pedreiras que visitei, mesmo as que, no ano anterior,
haviam sido fiscalizadas. Encontramos muito, mas muito, fogos de artifícios descontrolados,
mal armazenados e vendidos a qualquer pessoa, mesmo crianças. Aí fomos ajudados pela
polícia militar. Encontramos foguetes até debaixo de cama de lojista.
Mas quem é rei, sempre guarda a majestade. O mesmo oficial que em Alegrete tivera
problema com uma arma da AMAN, a pistola Luger, em Itajubá viera a ter com motocicleta,
vindo ele agora de Cruzeiro do Sul. O companheiro, em Cruzeiro do Sul, gozava do incentivo
da SUFRAMA. Daí ele ter comprado uma motocicleta e lá ficado com ela por dois anos.
Assim, pôde liberá-la junto à receita federal. E a usava em Itajubá. Bom, também era de
direito trazer madeira nobre em pranchas num volume “tal” de m³. O amigo não teve dúvida:
comprou uma segunda motocicleta, desmontou-a toda, e com as pranchas de mogno, fez
como que caixas e dentro colocou as peças. As pranchas ele deixou em Niterói e, parece, lá
remontou a moto. Em Itajubá passou a tentar regularizar a moto e emplacá-la. Assim induziu
uma moça gerente de uma loja grande, na cidade, a ajudá-lo na farsa: ele vendia a moto à
moça, recomprava e ela lhe dava um recibo. Com tal recibo e um “favor” qualquer no
DETRAN local, ele emplacaria a moto. Mas alguém denunciou. A receita federal acionou a
policia civil que com um “mandado de busca” fora aprender a moto. Ele soube pouco antes e
escondeu a moto no batalhão. A apreensão caiu no vazio. Mas isso também veio pelos
canais de informação. O comandante, por imposição do comando da DE, abriu um inquérito
policial militar. E ele foi condenado. Mas enquanto corria caso, ele se meteu com o pessoal
do LYONS, embora como tenente, nossos salários mal davam para comer e vestir. Quis se
igualar aos oficiais da Fábrica de Armas. Alguns capitães e majores da Fabrica de Itajubá,
além do salário, eram todos professores da EFEI e ainda tinham bicos em várias indústrias
por ali perto. Aliás, o EB era o maior bico. Ele começou a dar jantares em casa. Bom,
pensando que a moto seria regularizada, resolveu fazer uma rifa, pois ele estava com duas.
Sabe quem ganhou a rifa? A filha dele, com dois anos de idade. Aí os próprios
companheiros de LYONS deram parte dele ao comandante do Batalhão. Juntando as duas
coisas: pegou uma prisão grande, pela rifa. Além do IPM. Vendeu, inclusive para recrutas,
de sua companhia. Esse tipo de gente sempre procura facilidades. No mesmo dia que
chegou a Itajubá, já havia encontrado um posto de gasolina que vendia mais barato e vendia
a crédito para só pagar no fim do mês.
Mas a minha seção era muito pequena. Havia quatro salas 3X3 m, seguidas, logo na
entrada, à direita do pavilhão de comando. A primeira era uma estação rádio específica de
segunda seção. Falava até com o CIE, se assim fosse necessário; depois a sala do chefe da
segunda seção; depois a sala dos sargentos auxiliares que eram três dos quais um era
apenas para o SFIDT. Mas todos se, necessário viajavam e ou ia para trabalhos de campo,
até o radio-operador, de comunicações e o mais antigo (1º sargento). Dois eram moradores
do Rio; Assim, em Itajubá, eram solteiros e viravam a noite se necessário. E a quarta sala
que era arquivo e onde todo o material, de maior sigilo, era guardado. Os sargentos eram
todos de boa escolaridade; bons datilógrafos; muito boa redação; já haviam trabalhado em
informações. Eu aprendi muito com eles. Na sala de arquivos e na minha sala tinha uns
arquivos de aço enorme: dois metros de altura por um e meio de largura e, pelo menos, uns
sessenta centímetro de profundidade. Retirando as prateleiras cabia um homem dentro.
Em um desses cofres havia documentos bem antigos. Alguns eram antes de 1920.
Cheguei a encontrar um balancete de 1918, todo escrito a caneta tinteiro e com sinais de
mata-borrão. Era uma relíquia. Ficava admirado com os traços das letras: bem arredondas,
as letras redondas; ou bem afiladas as letras alongadas. Uma dessas preciosidades que
encontrei foi a que designava a uma determinada seção escalar uma carroça para aguardar
o Aspirante Juarez Távora com sua bagagem, na estação de trem. Há na cidade quem
contava que fora um trote, pois o veículo que esperava oficiais, na estação, era um tipo
charrete, mais adequado ao posto. Sobre o mesmo aspirante tinha outro documento de
caráter sigiloso – confidencial. Era um relatório, escrito, de sindicância verbal, mandada
proceder pelo comandante. Quem fora encarregado foi um 1º tenente veterinário. Depois de
fazer diversas considerações sobre uma determinada família e sobre uma determinada
moça, ele colocava, em sua conclusão, o seu parecer: “Portanto, sou de parecer que a
Senhorita... tem condições morais (negritei), tanto pelo seu comportamento como também
pelo de sua família de ser NAMORADA (em versalete) do Aspirante a Oficial de Engenharia
Juarez Távora”. Hoje o nome de tal moça adorna uma das ruas de Itajubá. Ah!!! se fosse nos
dias de hoje... Pena que não tirei cópia disso.... Na época xérox era coisa de primeiro
mundo.
Também, no que tange o folclore do 4º BE, é o acontecido com menino na idade
escolar. O BE tinha um ônibus escolar que levava os meninos da vila dos oficiais e dos
sargentos para a escola. Na volta, alguns sargentos, que moravam na cidade, vinham no
mesmo ônibus. Havia um menino, que era um dos últimos a descer e quando chegava em
sua escola já havia vários sargentos. Em algumas situações, tal menino acabava por
atropelar alguns sargentos, tanto pela pressa, por ser último, como por ser estabanado. E
algumas vezes um determinado sargento deu-lhe cascudos por ser desastrado e depois
avisava ao pai, também sargento: “dei um cascudo no fulano por que...”. Um outro sargento
que viajava também, disse ao que dava os cascudos: “fulano, deixa de implicar com o
menino. Daqui a alguns anos ele vem aspirante a oficial para o BE e quero ver sua cara”. O
algoz tempo passa rápido. Chega ao BE um aspirante que passou morar na casa da família
no centro da cidade. Em um dia, lá está o Aspirante pegando o ônibus para o quartel; no
mesmo ônibus o sargento dos cascudos e também o sargento do alerta. Aí o do alerta disse,
para que todos ouvissem, inclusive o Aspirante: “agora fulano, dê cascudos no filho de
sicrano...” Uma risada geral... uma cara sem graça de um... um sorriso fraternal de outro. O
menino do cascudo ficou adulto muito depressa... Dizem que o Aspirante, solenemente,
agradeceu pelos cascudos... nunca os tomou como ofensivo... faziam parte de sua formação
de homem. Gesto sublime do Aspira... alma de nobre... personificação da humildade... pena
que nunca soube seu nome... talvez fora até de minha geração.
Em Itajubá, havia um grande número de oficiais e sargentos que faziam faculdade á
noite. Era grande a facilidade. Alguns sargentos faziam faculdade com oficiais. Bom, com
nível elevado dos sargentos e com a forma de tratamento que oficiais de engenharia dão
aos seus sargentos, eles eram de completa confiança de todos.
Mas sempre tem um espírito de porco. Na quarta seção, havia uma carteira de
controle patrimônio e, por ser um sargento antigo e experiente, foi-lhe confiado o trabalho de
aquisição de armas diretamente das fábricas. O regulamento de controle de armas e
munição permitia que oficiais e sargentos comprassem armas particulares diretamente da
fábrica e esta parcelava em várias vezes. Assim, a fábrica emitia uma nota fiscal, com o
CGC da unidade; ao receber a arma e ou munição, era entregue ao comprador que recolhia
as parcelas, na quarta seção, e esta as remetia à fábrica. Vê-se que o nome da unidade
ficava vinculado a aquisição. Era avalista da fábrica. Bom, de tanto em tanto tempo, que fora
de um ano, depois de dois, depois de três e que voltou a um, se poderia vender a adquirida
e comprar outra. Eu particularmente achava aquilo uma indecência: era um tráfego de armas
enorme. Havia companheiro que fazia daquilo um comércio. Quem não queria comprar
arma, emprestava o nome e CPF para outro comprar em seu nome; depois o outro vendia, a
arma no tempo mínimo; mas o tempo mínimo era sempre burlado e a arma vendida à
paisano. Assim, era um mercado negro. Ainda bem que moralizaram isso. Mas, o nosso
confiável sargento meteu os pés pelas mãos. Recebia as parcelas e não repassava à fabrica
TAURUS, de quem já há mais de ano se comprava armas. Ele pediu, ao estafeta, que todas
as correspondências, da TAURUS, lhe fossem entregue, pois não precisaria protocolar.
Assim, ele escondia todos os ofícios de cobrança que chegava. Pagava uma parcela e
escondia outra. Um belo dia, o estafeta se foi em férias e entrou outro estafeta e as
correspondências foram parar na mão do Capitão S/1. Quando ele viu aquilo, foi direto
despachar com o comandante. Foi aberto um IPM. Até hoje não entendi, mas depois do IPM
foi aberto um Conselho de Disciplina contra o Sargento. Como eu era de informações e
passei a colher todas as informações desde o começo, coube a mim a presidência do
conselho. Por maior esforço e boa vontade, não foi possível ele se justificar sobre o desvio
de dinheiro. Em muitos argumentos ele mesmo se condenou. Assim, foi excluído e a mulher
passou a ganhar a pensão, como se ele morto fosse.
Diz minhas folhas de alterações que no mês de fevereiro de 1977, fui contemplado
com uma PNR (Próprio Nacional Residencial). Não me lembro o rolo que fiz com a casa
alugada. O certo é que não cumpri um ano de aluguel. O aluguel nem teve contrato, mas
trato. O trato era com a mulher proprietária. O marido parece que tinha a profissão de
marido. Segundo alguns, era também agiota. O PNR ficava bem no centro da cidade. Havia
praticamente uma vila militar ali: duas casas mais a do comandante na esquina. Ficava na
Rua Bráulio Carneiro e o local, um morrote, se chamava Morro Chic. No início do morrote
ficava uma praça, com um supermercado. Segundo o Google, a praça é a Praça Pereira dos
Santos e o supermercado era o Supermercado Mauad. Segundo a Relações Públicas do
Clube Itajubense, consultada por e-mail, o Mauad não mais existe e hoje ali é uma clinica
radiológica. Foi ali que a Tatiana, com pouco mais de um ano, perdeu seu boneco, o
DENGO. Dessa praça saiam as duas ruas com as melhores lojas de comércio: Avenida Cel
Carneiro Junior e Rua Major Belo Lisboa. Na Major Lisboa é que compramos os móveis.
Virando o ano, o 1977 foi muito movimentado. Foram pródigos de atividades. Logo em
fevereiro, fiz minha inscrição para o concurso do IME Instituto Militar de Engenharia, o real
motivo por ter escolhido Itajubá. Logo no início do ano fui designado como Presidente de
uma Comissão de Seleção. Também fiz minha inspeção de saúde para a promoção a
capitão. No segundo semestre, fui promovido e recebi minha segunda filha. Já no final do
ano fui premiado com uma visita do Presidente da República em Itajubá, passando a
responsável pela segurança da área.
Lá por fevereiro chegaram os Aspirantes da turma de 1976. Todos mineiros. Entre
eles, um fora o primeiro de AMAN, além de penta-atleta. Era uma fera. Logo após a
apresentação fez a viagem com os “guardas marinhas” a convite da Marinha. Coisa dos
Navais: convidavam os primeiros colocados da AMAN e da FAB. Na semana da
apresentação combinamos um trote. Tinha os bonzinhos, tinha os revoltados, tinha os falsos
e tinha os corretos. Num almoço, convidei o Aspirante primeiro de turma para sentar em
minha mesa. Já combinado, quando acabou de sentar, outro capitão, da turma de setenta,
mandou que ele se levantasse; eu disse que sentasse... e assim a coisa foi crescendo até
que viramos a mesa, com prato e tudo, sobre os aspirante. O coitado ficou tão constrangido
que telefonou para a Academia, ao tenente instrutor, da minha turma, perguntando se ainda
poderia mudar a classificação de quartel, pois o ambiente era ruim e ele se arrependera de
ter escolhido tal quartel. O tenente, sabendo que eu estava lá, me telefonou, para saber o
que acontecia embora já desconfiasse. E era a desconfiança dele: trote nos aspirantes.
Depois o Asp Of virou meu amigo e fizemos ECEME junto.
Assim que se acomodaram as coisas, e dentro do calendário, eu me inscrevi para o
concurso para o IME. Havia uma orientação de estudo, por parte da Escola, o que seria o
sistema precursor do ensino á distancia. Mas, a mim, o primeiro ano seria apenas para
formar a base. Para estar competitivo no concurso, deveria fazer um curso intensivo no
“Curso Baiense”, no Rio, especializado em aprovar gente para o IME. Quando comecei abrir
as apostilas, senti que seria uma luta cruel. Parecia que cada matéria e cada exercício
estavam escritos em hieróglifo. As noites seriam curtas para acompanhar o calendário.
Quando falei a respeito do concurso ao meu comandante, ele foi categórico e enfático: “caia
fora disso se você quer ser comandante e ser combatente; esse quadro que criaram é uma
bagunça e ninguém sabe no que isso vai dar; agora, se você vai fazer do Exército um bico,
aí é com você.” É que haviam acabado de criar o QEM (Quadro de Engenheiros Militares) e
tudo estava confuso. Como já disse, meu comandante era judeu de usar Kipá. Tinha um
raciocínio rápido para o presente e uma visão arguta para o futuro. Ele simplesmente teve
uma premonição: até hoje não sabe como aproveitar melhor os oficiais com o curso do IME.
O Quadro, dos ditos Engenheiros Militares, não está na organização militar de guerra.
Ele é um corpo estranho, pois nem tem espaço para a pesquisa, de interesse das forças
armadas, e nem tem lugar num TO (Teatro de Operações). No máximo, os de Fortificações
e Construções calcularão alguma coisa de fortificações, do sistema de barreiras, sendo as
fortificações recurso defensivo ultrapassado, no TO.
Usando um analecto popular: “quiseram fazer um beija-flor, mas saiu um morcego:
voa, mas não é beija-flor.” Os pensadores quiseram criar, no Exército, algo grandioso, de
grande repercussão como centro de pesquisa do país. Importante, no longo prazo da época,
e ainda necessário hoje.
Na verdade, O Exército queria criar algo como o Corpo de Engenheiros das forças
armadas dos norte americanos. Como há, também, a mais de um século, na Marinha do
Brasil, embora pouca gente saiba. Além da capacidade de pesquisar, ser um elemento
normatizador, tanto para a força como para qualquer setor privado na área de engenharia
nacional. Da mesma maneira que se vê, por exemplo, em óleo lubrificante: especificação
SAE (Society of Automotive Engineers - EUA)... se vê especificação MIL (militar).
Segundo uma propaganda, de um site de propaganda de camisetas
(http://www.zazzle.com.br/corpo_de_engenheiros_do_exercito_dos_estados_unido_):
“O Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos (USACE) é uma agência
federal e um comando principal do exército composto de uns 34.600 civis e 650 militares e
mulheres...” Portanto, o QEM foi concebido para ser grandioso.
Continuando com um pouco mais de história. Fixo-me em aspectos da Arma de
Engenharia, apenas. Desde não sei quando, todos os oficiais de engenharia podiam fazer o
curso do IME. Era um curso de especialização, para o qual se fazia, apenas, um
requerimento. Saindo Aspirante e ao se defrontar com variados problemas técnicos reais, o
oficial de engenharia sentia que ainda havia um vácuo na sua formação. Daí, a motivação,
para os vocacionados, em fazer o curso do IME. Assim, fazia o curso como 1º Tenente;
como capitão, a ESAO; como capitão antigo ou major, o Estado Maior. Por pressão de
algum interesse particular, julgo eu, quem tinha o curso do IME não precisava fazer a
ECEME. Pois conseguiram que os três anos, do IME, equivalessem ao da ECEME. Era o
máximo do absurdo uma vez que a nação paga para ser combatente e não engenheiro civil,
a usar a farda como tráfego de influência. Era misturar alhos com bugalhos. Vi comandante,
nesta situação; muito mais civil que militar. Tinha medo do S/3. Ele dizia não entender nada
de instrução e não queria entender. Virara um paisano fardado. Assim o S/3 comandava o
batalhão, nesse quesito. Depois ganharam mais espaço e conseguiram eliminar a ESAO.
Outro absurdo: como se habilitaria o capitão a comandar companhia e unidade valor
batalhão! Ou a ESAO era desnecessária ou o curso do IME era excepcional que dispensava
aquela. Bom, o IME era a grande “isca” para a escolha da arma. A Engenharia era de efetivo
pequeno, mas para onde os melhores classificados se dirigiam, porque tinha seu futuro, o
pós-reserva, garantido. E havia os abusos dos poucos “vocacionados”, dos mercenários
legais: no Exército, a atividade de combatente e os assuntos militares eram bicos; assunto
quase degradante para intelectualidade do oficial do IME. Eles passaram a ter vergonha de
ser guerreiro. “Isso era para infante burro”, como ouvi algumas vezes dos elevados QI,
formados pelo IME, ao longo dos meus trinta anos de oficial. Bom, a aritmética da carreira
dos de engenharia ficava assim: 3 anos de Preparatória + 4 (3) de AMAN + 3 de IME + 1 de
ESAO + 2 (3) de ECEME = 13 anos como aluno. Para os das armas combatente igual a 10
anos ( menos os 3 de IME). Passagem para reserva aos trinta, então ficava para a força a
diferença. Os três anos de diferença gerava reclamação, inveja e indiferença das demais
armas.
A coisa tentou evoluir, tanto por resposta ao esnobismo inexplicável, do pessoal de
engenharia, quanto pelos ciúmes, de oficiais de outras armas que se consideravam tão
inteligentes e dedicados como os de engenharia e queriam o mesmo “direito” (sempre o
direitos, nunca os deveres). A escolha de armas, que fizeram antes, quando atingiram o
terceiro ano da AMAN... foram, para os "reclamões", talvez um momento de lazer. Na
realidade, esta vertente de reclamadores, oficiais de outras armas, era a sinalização de
precoce frustração com a arma escolhida. O curso do IME assinalava futura fuga ou um local
de esconderijo por frustrações.
Bom, a matrícula, por requerimento, veio até a turma de 1967; até então, o ingresso
no IME era automático, para os Oficiais de Engenharia, Comunicações e Material Bélico.
Apenas os de Engenharia faziam o Curso de Fortificações e Construções. Até essa turma,
portanto, era Oficial da Arma de Engenharia, com um curso de especialização. E, assim
continuava na Arma. Na evolução, ficou estabelecida a entrada, mediante concurso, para
todos os cursos do IME e para oficiais de todas as armas: assim, começou a mistura de
tipos de diferentes formações militares com falta de afinidade técnica: cavalariano em
fortificações, artilheiro em eletrônica, intendente em cartografia... As escolhas de armas, na
AMAN, não tiveram nenhum proveito para a instituição militar e nenhum significado para o
militar.
Continuando a evolução, em 1975 foi regulamentada a lei que criou o QEM. A partir
daí, os Oficiais com curso do IME, sejam oriundos de qual arma fosse, passaram, da Arma
ou Quadro de origem, para o QEM. Houve algumas turmas de transição: poderia optar ou
por ficar na Arma de origem ou ficar no QEM. Na engenharia, houve duas ou três turmas
que não ficou ninguém na arma. Duas, ficou apenas um oficial em cada, que traiu a turma:
disseram que optaria pelo QEM, mas ficou na Arma. Nas oportunidades de promoção, ele
era absoluto dono do campinho até na promoção por escolha.
Mais tarde, vim sentir o mal que tal quadro fez para Arma de Engenharia. Até hoje
nada se ajustou. A Arma perdeu a essência técnica. O QEM perdeu o espírito militar. Não
que os oficiais oriundos da AMAN, os poucos que agora por lá aportam, queiram isso, mas
pela falha na formação do Quadro. Atualmente o quadro é uma salada de frutas tanto pela
graduação técnica, quanto pela formação militar, se é que se pode admitir ter ali formação
militar para oficiais de carreira.
Nesta última mudança, sem opção de ficar na Arma, a Engenharia perdeu seus
Oficiais mais especializados, em particular os vocacionados, de Fortificações e Construções:
Arma de Engenharia + curso do IME). A Arma não se recuperou, até hoje, desse prejuízo. É
prejuízo na essência, como componente do esforço de guerra. Sendo cansativamente
repetitivo, a Nação os paga para estar em combate, longe do imediatismo de vê-los
empregados apenas em obras de cooperação. Da minha geração: Aspirante de 70/71/72, os
melhores oficiais, os mais vocacionados, ainda tinham esperança de revogação do QEM. E
assim fizeram o curso do IME na convicção de que seriam mais úteis, á força, como oficiais
de engenharia com o curso. Infelizmente foi irreversível.
Criei um aforismo assim: “Todas as vezes que se desarmoniza o óbvio, terá que se
voltar às origens para a retomada da evolução até se retomar o óbvio novamente”. E foi isso
que aconteceu com a Arma de Engenharia. Desarmonizaram o óbvio.
Antes de me engajar na descrição da Arma, apresento um “princípio”: “A engenharia
é um ente militar”. Isto é, a engenharia é tão antiga quanto os exércitos. Engenharia –
engenho – gen – tem sua sequência etimológica que não é o caso de aprofundar. Dela,
nasceram as diferentes adjetivações: engenharia civil, engenharia elétrica; engenharia
mecânica; engenharia agronômica... E, ultimamente criaram, ao bel prazer das esquerdas,
inúmeras outras engenharias – 35 no total. O “homo” deixou de ser predado para ser
predador quando fez seu primeiro engenho – uma madeira como arma. Assim, as criações
de diferentes engenhos, até os de arremessos, artilharia, portanto, foram por engenheiros.
Daí ser a Arma de Engenharia, semanticamente e etimologicamente perfeita. Sempre existiu
Engenharia e sempre foi militar. Engenharia militar é pleonasmo. Os que se especializam em
atividades civis, mesmo úteis ao sistema militar, nada trás de novo ao “princípio”. Assim, a
rigor, o IME e congêneres, nada mais são que formadores, em profundidade e extensão, de
conhecimentos civis, para algumas atividades militares, como medicina, contabilidade,
informática... A Engenharia, como ente militar, está presente em todos os centros de
pesquisa. Basta ver que, nas nações mais ricas, todas as ciências criadas enveredam
primeiro na busca do interesse militar; se, durante o trajeto, a ciência interessar ao meio civil,
então para lá é levada. E até as essencialmente militares, quando obsoletas, se adaptam
para atividades civis. Basta que se vejam as viagens em torno da terra com os foguetes
antigos. Portanto, Engenharia é uma atividade milenar de um ente militar. É um instrumento
capaz de mudar, influenciar, interferir num combate. Daí, por justiça ser uma Arma.
Retomando, o óbvio foi quebrado. O curso de engenharia, na AMAN tinha um
currículo que era complementado no IME. Assim, a parte de estradas, na AMAN, se
estudava tudo que fosse de terra, da exploração ao aterro, pois de terra são a maioria das
estradas encontradas em combate; já no IME se estudava a parte de diferentes tipos de
pavimentos: do aterro até o revestimento da pavimentação; na AMAN se via tudo sobre
materiais de construção encontrados como meios de fortuna: areia, cascalho, tipos de solos,
laboratório de solos, aglomerantes, aglomerados e por aí a fora; no IME se aprofundava os
cálculos para diferentes tipos de peças de concretos: lajes, pilares vigas... na AMAN, em
estrutura, se aprendia os diferentes tipos de esforços e os cálculos de resistência dos
materiais para estruturas simples: vigas bi-apoiadas, pilares, sapatas; no IME havia a
continuação desses estudos até as grandes e complexas estruturas. Portanto, havia uma
“continuidade” no ensino. Quem concebeu tal sistema, nunca descobri quem foi, embora
tenha tentado, foi genial. Percebe-se que tudo era sequencial, lógico, óbvio até demais.
Mas, sem desmerecer a inteligência, como é que o IME poderia manter a sequencia
de currículo, de carga horária, em fortificações, quando o aprovado em concurso fosse um
cavalariano? Antes, havia uma complementação, em três anos, do curso de engenharia da
AMAN, no IME. E com o concurso para o IME, como fazer isso? O “isso” forçou o IME exigir
o concurso, não mais a 1º tenente, e sim, de 2º tenentes para que eles fizessem “cinco
anos” no IME e assim ministrar a carga horária que seria na AMAN, para o da Arma de
Engenharia.
Sendo até cansativo, mas pela clareza: o curso de cinco anos exigido, pelo Ministério
da Educação, para engenheiros civis, o equivalente no IME a Fortificações e Construções,
era: dois de arma, na AMAN e mais três no IME. Mesmo quando a AMAN era de três anos,
havia dois anos de armas, de especialização. Então, como o 2º tenente não havia tempo de
consolidar o aprendizado de sua Arma de origem; como ficava cinco anos no IME e de lá
sairia Engenheiro Militar, tal “militar” era mais engenheiro civil que guerreiro militar. Bom, o
IME teve que fazer vários malabarismos para não se tornar inútil. O QEM ficou uma salada
de frutas, como disse, batida em liquidificador: sabe-se os componentes no início do
processo, mas não se consegue senti-los no final.
Bom, o IME teve que fazer vários malabarismos para não se tornar inútil. O QEM ficou
uma salada de frutas, como disse, batida em liquidificador: sabe-se as origens dos
componentes, mas não se consegue senti-las no todo.
Em determinado momento, passou-se usar o sistema empregado pelo quadro de
saúde: concurso para o engenheiro civil já formado, nas universidades civis; dava-lhe um
leve ensinamento militar. O profissional, mais civil que militar, ficava mais barato para o país.
Logo em seguida a Escola de Administração passou a dar essa tintura militar nos jovens já
formados para diferentes especialidades. O IME o fez com engenheiros civis. Para rebater
os mais apressados, o IME sempre fez concurso para civis e lá dava-lhe a tintura militar no
Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva - NPOR. Dali, muito poucos optavam para
seguir a vida militar. Em dez anos de BEC, dos meus trinta e três de oficial, nunca servi com
algum deles. E ainda há o NPOR, até hoje.
E a perda técnica para a ARMA de Engenharia? Como o IME tinha que fazer tudo, do
início, a parte técnica da Arma de Engenharia, na AMAN, pouco interessava mais. Assim
passaram a cortar as cargas horárias das partes técnica e reverter para outras matérias de
necessidade duvidosa. Talvez achassem que o QEM supriria a ARMA com os
conhecimentos técnicos. E a ARMA ficou algo insípido, incolor e inodoro. Nem é combatente
como infante (o que não precisa ser) e nem é técnica como o infante precisa que seja. Fiz a
comparação da carga horária do meu currículo – Asp Of 1971, com a de um Asp Of de 1991:
a diferença é gritante quanto à perda de conhecimentos técnicos. O pior veio depois. Mesmo
com essa mistura de formação e origem, dos oficiais do QEM, eles logo assumiram a chefia
das Seções Técnica nos BEC. Até mulheres. Eram eles que elaboravam os Planos de
Trabalhos, das Obras de Cooperação, e estes nada mais são que a Ordem de Operações
Técnica, para os capitães de engenharia, aperfeiçoados, cumprirem. Mas como pode isso se
o QEM não tem a menor ideia do emprego da Arma! Nem de Pelotão, pois isso é dado na
AMAN. Mas até hoje planejam o emprego de Batalhão. Quase fui preso pelo comandante de
Grupamento quando coloquei a Seção Técnica subordinada à 3ª Seção (ele era dos oficiais
de engenharia com curso do IME que fizera ESAO e ECEME). Recebi ordem, por telefone,
para reverter a mudança imediatamente. O pobre do capitão que se apresentou, antes
infante, agora do QEM, no 7º BEC, chamava motoniveladora de: aquela máquina magra... a
escreiper de aquela máquina grande... Se for apenas para acompanhar obras de
cooperação, então é melhor contratar, pela CLT, os engenheiros civis, que são muitos pelo
Brasil, nos locais das obras.
Para arrematar, o prejuízo na essência, como componente do esforço de guerra,
ficará claro quando um General de Brigada, perguntar ao capitão comandante de sua
Companhia de Engenharia (ou o comandante de regimento/batalhão, ao tenente de
Engenharia, em Apoio Direto) se determinada ponte, seja de madeira, seja de concreto,
suporta os seus carros de combate. Restará ao capitão (ou ao tenente) chorar ou rezar, pois
não tem nenhum conhecimento técnico para responder sim ou não. Será um burral
constrangimento. Espero que o Diretor de Formação e Aperfeiçoamento não invente um
PROVÃO (atual ENADE - Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) para a
engenharia... será outro constrangimento.
Bom, tudo isso para dizer que eu desisti de fazer o concurso para o IME. Foi um
enorme alívio porque eu estava com a autoconfiança tendendo a zero, para enfrentar tal
maratona. Em seguida, passei um rádio pedindo o desligamento do curso de preparação.
Em junho ou julho houve o estágio para presidente de Comissão de Seleção. Para a
4ª Região Militar, a nossa comissão era a Comissão de Seleção Nº 5 – CS- 5. Eu não tinha a
menor ideia de como isso funcionava. Passei algumas noites lendo a legislação e os
documentos que seriam preenchidos. Quando da reunião em Juiz de Fora, pude aprender
muito mais. O estágio fora dado por um major, do QEMA, e já com dois anos na seção do
serviço militar. Ainda estava em fase de validação o processo de seleção por computador.
Fiquei alojado na Companhia de Comando e Serviço da 4ª RM. Outros oficiais ficaram
em Hotel de Trânsito e outras unidades. Como eu não conhecia nada, optei por ficar o mais
próximo do Quartel General. Fui com uma viatura do quartel, pois enquanto eu ficava no
estágio, o motorista e um sargento que conhecia bem a cidade foram ao Batalhão Logístico,
aos, então, Serviços Regionais para levantar suprimentos destinados ao Batalhão que
pudesse ser levado de picape. Mas no alojamento, na verdade um apartamento com três
camas, estava alojado um Tenente- Coronel de Infantaria e que há muito tempo, segundo
ele, estava à disposição do SNI (Serviço Nacional de Informações). Engrenamos o papo por
eu lhe dizer que era o S/2 do 4º BE Cmb (oficial de Informações, hoje inteligência). Na
verdade, contou toda a vida dele, quase como um desabafo. As eternas viagens inopinadas,
as campanas intermináveis, o ter hora para sair de casa e sem hora para chegar, acabaram
com seu casamento. Não só ele, mas muitos oficiais pagaram caro fazer parte do sistema de
informações e combate ao terrorismo. Alguns se separaram consensualmente para proteger,
a mulher e os filhos, dos terroristas. E ele estava sempre na relação dos terroristas como a
próxima vítima. Fiquei um tanto quanto penalizado do militar. O alojamento não era digno de
um oficial superior e ele tinha que se sujeitar aquilo porque tinha risco de morrer se fosse
dormir em casa ou apartamento. No segundo dia, já mais confiante em mim, ele contou algo
que, na época, a mim, fora um enorme exercício de futurologia. Era Presidente do Brasil
Ernesto Geisel (15 de março de 1974 a 15 de março de 1979). O General Figueiredo era
chefe do SNI. Ele disse que tudo estava sendo arrumado para o General Figueiredo ser o
próximo presidente. Falou que haveria uma queima geral de promoções de modo que, na
passagem da presidência do General Geisel, o General Figueiredo fosse o general de
exército mais antigo. Na época ainda era general de Divisão. Disse das patifarias dos
políticos, mas que o presidente era obrigado a aceitar senão não governaria. Chegando a
Itajubá, falei disso com meu comandante. Ele disse que isso era possível, mas era muito
cedo. É que o General Figueiredo era considerado um dos oficiais do Exército mais
inteligente de todos os tempos. Na verdade meu comandante ficou no muro: sabia da
possibilidade, mas não era o que ele queria, se dependesse dele escolher. Acompanhando a
vida nacional, fui testemunha de que o coronel de Juiz de Fora estava certo: tudo aconteceu
como ele disse.
Mas acho melhor explicar o que seja a tal Comissão de Seleção. É uma equipe para
selecionar jovens, para servir como soldado – serviço militar inicial. Nessa época tal seleção
estava sendo informatizada. Quando jovem é alistado, seu alistamento gera uma Ficha de
Seleção. Essa ficha sai dos centros de informática para a região militar e de lá para as
comissões de seleções. Tais comissões são muitas, função de unidades militares e suas
áreas de responsabilidade de segurança. Bom, cada unidade informa suas necessidades em
soldado, por especialização. Exemplo: necessidade de motorista; de cozinheiro, de
mecânico e de combatente. Isso é informado antes da seleção. Durante a seleção o
conscrito faz uma bateria de teste onde, pelas respostas, é traçado um perfil o mais próximo
da necessidade do quartel. Mesmo que nunca tenha sido mecânico, suas respostas o
indicarão para tal. Isso acontece porque o banco de dados tem um perfil previamente
lançado para cada especialidade militar. Durante as entrevistas ainda mais se busca
informações que possa refinar o perfil do conscrito de modo que, ao ser comparado com o
banco de dados, possa eleger quem está com parâmetro da necessidade da unidade.
Portanto, os dados da ficha de seleção são lançados no banco de dados do computador e
isso então vai cruzar com as necessidades do quartel. E assim é feita a designação pela
máquina. Isso evita os desagradáveis pedido de dispensa. Ultimamente tem mais gente
querendo entrar do que gente não querendo entrar, para servir. Os aptos ficarão no aguardo
da designação. Haverá sempre mais apto que as necessidades. Assim, os aptos poderão
ser “designados” ou ser “excesso de contingente”. A designação é feita por quartel, da
seguinte maneira: necessidade do quartel mais vinte por cento. Os do excesso de
contingente recebem seu Certificado de Dispensa de Incorporação (CDI), na sua Junta do
Serviço Militar. Os designados, para um quartel, têm uma data para lá se apresentar. Se não
fizer isso, cometerá o crime de INSUBMISSÃO (insubmisso).
Também, para os não militares, vou informar o que seja isso e como funcionam.
O modelo do serviço militar do Brasil vem desde as Capitanias Hereditárias. Assim, a
responsabilidade de recrutar os jovens é do Prefeito. Para isso, em cada Prefeitura tem uma
seção que se chama JUNTA DO SERVIÇO MILITAR onde tem um funcionário civil da
Prefeitura que faz o Alistamento Militar. O prefeito é investido de autoridade (capitão), por
um órgão do serviço militar do Exército. Bom, várias Juntas do Serviço Militar formam uma
Delegacia do Serviço Militar dirigido por um tenente em geral numa cidade importante de
uma região. Tal Tenente fica junto de uma junta e também recebe apoio integral da
Prefeitura. Várias Delegacias do Serviço Militar forma uma Comissão de Serviço Militar
(CSM), órgão que investe o Prefeito como autoridade alistadora dos jovens, um escalão
comando de coronel. Todas as CSM é subordinada administrativamente à uma Região
Militar (Seção do Serviço Militar) e tecnicamente à uma Diretoria do Serviço Militar. O
Prefeito alista e o Exército, pelas CS, seleciona os mais saudáveis.
A CS, como Seleção, ia até o final do ano. Havia uma parte fixa, feita em Itajubá. Para
isso se usava as instalações da Fábrica de Armas de Itajubá. A equipe era boa em particular
a experiência do oficial mobilizador que era advogado e muito inteligente. Ele mesmo
organizava todas as subseções e rotinas necessárias. Da sua seção tinha mais um cabo e
um 1º sargento extremamente competente. Já com quinze dias funcionando a CS em
Itajubá, aconteceu um caso interessante para se observar. Havia um travesti que ficava
parado em um ponto de ônibus perto. Ficou assim uns três dias. No começo se achou que
ele estava ali para admirar os jovens que vinham passar pela seleção. Trajando roupas
femininas, mas de forma berrante e identificadora, quando alguns jovens se dirigiam ao
ponto de ônibus, ele saía como se fosse tomar um destino qualquer. Esvaziado o ponto, ele
retornava. Tive um momento de lucidez e pedi ao tenente mobilizador, para ir até lá falar
com o travesti, pois seu proceder estava muito estranho. Quando menos espero, lá vem ele
com o travesti. Disse que o jovem estava querendo também passar pela seleção, mas tinha
vergonha. Ficaria ali até chegar o último dia e assim solicitar atendimento. Bom, resolvemos
fazê-lo passar pela seleção, mas já em condições de colocá-lo no excesso de contingente.
Mas fizemo-lo passar por toda a sequencia de rotina, inclusive no médico, como todo
mundo. Apenas que foi sozinho. Eu disse a ele: “– vá com naturalidade, sem escândalo e
sem medo. Faça a tua parte”. Foi um tratamento comum e sem dificuldade. Depois que já
havia acabado a CS, chega ao batalhão uma senhora de uns quarenta a cinquenta anos de
idade e queria falar comigo. Sabia meu nome porque eu assinava os certificados. Estava
vestida com roupa simples, o que denunciava morar na periferia da cidade. Depois de
recebê-la em minha sala, ela disse que fora ali agradecer pela maneira educada que seu
filho fora tratado na seleção. Na hora não liguei nada com nada. Disse que era assim que
deveria ser e assim era há muitos anos. Aí ela revelou que seu filho era o travesti e que já
há dois anos ele tentava regularizar sua situação, mas tinha vergonha. E ele não a deixava
acompanhá-lo. Realmente ele era de classe anterior. Fiquei surpreso com a disposição de
aquela mãe ir agradecer pelo tratamento que seu filho teve. Para ela, com toda a certeza ele
era um anjo. E no dia da Seleção complementar, semanas antes da incorporação, um
conscrito, ainda à paisana, me procurou. Ele fora escolhido para servir. Era amigo do travesti
e era homossexual também. Ele disse que o amigo dele recomendou que me procurasse e
falasse com sinceridade sobre seu homossexualismo, pois seria melhor ser dispensado do
que cometer alguma besteira ao se esconder e ser descoberto mais tarde. Imediatamente
fui ao comandante de companhia tratar do caso, isto é, achar alguém para o lugar do jovem.
Foi fácil porque havia voluntário para servir. Logo depois fui ao comandante. Ele não queria
acreditar. Mas, para não trazer problema ao jovem, perguntei a ele se os pais sabiam de sua
situação e ele respondeu que sim. Pedi que sua mãe viesse falar conosco. Ela confirmou e
disse que queria que o filho servisse como os outros dois irmãos e que seria uma
oportunidade para o menino se recuperar. Falei que o caso era irreversível e o melhor era
ele ser dispensado. E assim foi feito. No final do ano anterior apareceu, um recruta que foi
preso pela polícia quando fazia ponto em determinado lugar frequentado por estudantes. Um
soldado vestido de mulher com tudo que tinha direito: vestido, sapato de salto, brinco,
maquiagem, bolsa... foi um vexame. Foi desincorporado. Assim, na trilha do travesti, ficamos
peritos em jovens poucos convictos com a masculinidade.
No dia 25 de agosto de 1977, receberia minha primeira medalha militar. Medalha
Militar de Bronze, pelos “bons serviços prestados” de dez anos: 1967 a 1977. Com que
orgulho... Com o filme da vida em repetição, (em replay, como na moda) aquele momento
era o primeiro reconhecimento de um combate bem “combatido”. Embora todos a recebam,
a minha medalha tinha um gosto de vitória mais agudo. Até hoje a tenho.
Por setembro chegou o Aspirante em viagem com a Marinha. Resolveram dar mais
trote nele. Coisa do S/3. Pediu ao Aspirante que fizesse “uma palestra sobre sua viagem
ilustrada com fotos ou quaisquer meios visuais”, como dizia o memorando do S/3. Deu azar:
o Aspirante comprara em algum lugar um potente projetor de SLID, alta tecnologia na época,
e os slides com uma máquina fotográfica ultramoderna. Eu ainda tenente, de oficial de Dia,
talvez o meu último serviço de Oficial de Dia, quando fazia minha ronda, duas da
madrugada, vi uma luz acesa num dos apartamentos. Qual não foi minha surpresa, o
aspirante ainda estava separando os slid para depois colocá-los em ordem cronológica. Deu
uma palestra que ultrapassou as expectativas, pois mesmo terminado o tempo proposto,
ficamos ainda mais de hora fazendo perguntas e matando curiosidades. O outro trote foi
quase réplica: no final do expediente, foi pedida, a ele, uma palestra sobre robótica. Para
auxiliá-lo, o S/3 lhe entregou um livro de umas quinhentas páginas. No outro dia ele deu
outro banho. O Aspirante merecia ser primeiro de turma. Era daqueles que lia uma matéria,
logo em seguida ele dizia: “veja na página tal, logo depois do segundo parágrafo...” Tinha
uma memória fotográfica.
Na chegada do mês de setembro fui promovido a Capitão, a contar de 31 de agosto
de 1977. Encerrava assim um dos postos mais produtivos da minha carreira – 1º Tenente.
Eu, até hoje, acho que é o posto mais instigante da carreira. Eu era um camarada
extremadamente autoconfiante. Tinha a insegurança, como qualquer um, do novo ou do
inusitado, mas nunca medo e nunca se escondia. Até torcia para que as coisas nem
acontecesse, para eu me livrar de alguma responsabilidade. Mas se ela acontecia, eu a
enfrentava com determinação. Se nada mais me restasse, depois de Primeiro Tenente, eu já
morreria feliz, pois fiz neste posto o suficiente para me sentir útil e me fazer orgulhoso, pelo
resto da vida. Engraçado, eu custei me acostumar com o novo posto. Capitão Higino soava
tão distante e tão diferente que parecia não ser eu a pessoa chamada. Levei um tempão
para me acostumar.
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