O Jardim de Rama
O Jardim de Rama
O Jardim de Rama
com
O DIÁRIO DE NICOLE
1
29 DE DEZEMBRO DE 2200
Há duas noites, às 10:44h, hora de Greenwich na Terra, Simone Tiasso
Wakefield ajudou o universo. Foi uma experiência inacreditável. Pensei que já
sentira antes emoções fortes, porém nada em minha vida — nem a morte de
minha mãe, nem a medalha de ouro nas Olimpíadas de Los Angeles, nem minhas
36 horas com o príncipe Henry, e nem mesmo o nascimento de Geneviève sob o
olhar alerta de meu pai no hospital de Tours — foi tão intenso quanto minha
alegria e alívio quando finalmente ouvi o primeiro choro de Simone.
Michael previra que o bebê chegaria no Dia de Natal. Com seu costumeiro
jeito amoroso, ele nos dissera que Deus ia “dar-nos um sinal”, ao fazer com que
nossa filha espacial nascesse no dia universalmente aceito como o do nascimento
de Jesus. Richard riu-se da idéia, como acontece sempre com meu marido cada
vez que o fervor religioso de Michael fica fora de controle. Mas depois que senti as
primeiras contrações fortes na Véspera de Natal, até mesmo Richard começou a
crer.
Tive um sono inquieto na noite antes do Natal. E logo antes de acordar
tive um sonho profundo e vivido. Eu estava caminhando junto ao nosso lago em
Beauvois, brincando com meu pato favorito, Dunois, e seus companheiros
selvagens, quando ouvi uma voz que me chamava. Não conseguia identificar a
voz, mas sabia sem dúvida que era uma voz de mulher. Ela me disse que meu
parto seria extremamente difícil e que eu precisaria de todas as minhas forças
para dar à luz minha segunda filha.
No próprio Dia de Natal, depois de trocarmos os singelos presentes que
cada um de nós havia encomendado secretamente aos ramaianos, comecei a
treinar Michael e Richard para toda uma gama de possíveis emergências. Creio
que Simone teria efetivamente nascido no Dia de Natal se no plano consciente
minha mente não estivesse tão cônscia de que nenhum dos dois homens estava
sequer remotamente preparado para ajudar-me em caso de algum problema
sério. É provável que minha força de vontade, e mais nada, tenha adiado o
nascimento do bebê por aqueles dois últimos dias.
Uma das contingências discutidas no Natal foi a de o bebê estar com
apresentação de nádegas. Há cerca de dois meses, quando ao bebê ainda por
nascer restava alguma liberdade de movimentos dentro de meu útero, eu estava
bastante certa de ele estar de cabeça para baixo. Porém, pareceu-me que ela
havia invertido a posição na última semana antes de baixar para sua posição préparto.
Eu estava apenas parcialmente correta. Ela havia conseguido entrar com a
cabeça na frente no canal de parto; no entanto, estava com o rosto para cima,
voltado para a minha barriga, e depois da primeira série forte de contrações, o
alto da cabecinha dela viu-se incomodamente encalhado de encontro à minha
pélvis.
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negro como azeviche. Seus olhos são de um marrom forte, mas com sua cabeça
ainda afunilada e deformada pelo parto difícil, não é fácil dizer que Simone seja
bonita. Mas é claro que Michael tem razão. Ela é deslumbrante. Meus olhos
podem perceber, com facilidade, a beleza que está por trás daquela criatura frágil
e avermelhada que respira com velocidade tão frenética. Bem-vinda ao mundo,
Simone Wakefield.
2
6 DE JANEIRO DE 2201
Já há dois dias que estou deprimida. E cansada, muito cansada. Mesmo
sabendo que estou sofrendo de um caso típico de síndrome pós-parto, não tenho
sido capaz de me livrar de meus sentimentos depressivos.
A manhã de hoje foi a pior. Acordei antes de Richard e fiquei quieta no
meu lado da esteira. Olhei para Simone, que dormia tranqüilamente em seu berço
ramaiano encostado na parede. Apesar do amor que sinto por ela, não posso
elaborar qualquer pensamento positivo quanto a seu futuro. A aura de êxtase que
envolvera seu nascimento e durara 72 horas desaparecera completamente. Um
fluxo sem fim de observações sem esperança e de questões sem resposta ficava
percorrendo minha mente. Que espécie de vida será que vai ter minha pequena
Simone? Como poderemos nós, seus pais, de algum modo garantir sua felicidade?
Minha filhinha querida, você vive com seus pais e seu bom amigo Michael
O’Toole em uma toca subterrânea a bordo de uma espaçonave gigantesca de
origem extraterrestre. Os três adultos em sua vida são todos astronautas do
planeta Terra, parte da tripulação da expedição Newton, enviada para investigar
um pequeno mundo cilíndrico chamado Rama há quase um ano. Sua mãe, seu
pai e o general O’Toole eram os únicos humanos que permaneciam a bordo dessa
nave alienígena quando Rama alterou abruptamente sua trajetória para evitar ser
aniquilada por uma falange nuclear lançada por uma Terra paranóica.
Acima de nossa toca fica uma ilha de misteriosos arranha-céus, a que
chamamos Nova York. Ela é circundada por um mar gelado que dá a volta a toda
esta imensa espaçonave e a divide em duas. Neste momento, segundo os cálculos
de seu pai, penetramos ligeiramente na órbita de Júpiter (muito embora a vasta
bola de gás em si esteja lá longe, no outro lado do Sol), seguindo uma trajetória
hiperbólica que eventualmente irá abandonar inteiramente o sistema solar. Não
sabemos para onde estamos indo. Não sabemos quem construiu esta espaçonave
ou por que eles a haviam construído. Sabemos que há outros passageiros a
bordo, mas não temos idéia de onde terão vindo e, além do mais, temos razões
para desconfiar que ao menos alguns deles sejam hostis.
Nestes últimos dois dias, é esse esquema que meus pensamentos não têm
parado de remoer. E todas as vezes chego à mesma conclusão deprimente: é
impossível que nós, supostamente adultos maduros, trouxéssemos um ser tão
desamparado e inocente para um ambiente que conhecemos tão pouco e sobre o
qual não temos o menor controle.
Hoje de manhã, tão logo tomei consciência de que estávamos no meu 37º
aniversário, comecei a chorar. A princípio as lágrimas foram suaves e silenciosas,
porém à medida que lembranças de todos os meus aniversários anteriores foram
inundando minha mente, soluços profundos foram substituindo as lágrimas
suaves. Estava sentindo uma tristeza profunda e dolorosa, não só por Simone
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como também por mim mesma. E quando me lembrei do magnífico planeta azul
de nossa origem e não consegui incluí-lo no futuro de Simone, fiquei fazendo-me
sempre a mesma pergunta. Por que haveria eu de parir uma criança no meio
desta porcaria?
Lá estava a palavra de novo. Era uma das favoritas de Richard. Em seu
vocabulário, “porcaria” tinha usos virtualmente ilimitados. Qualquer coisa que
estivesse caótica e/ou fora de controle, seja um problema técnico ou uma crise
doméstica (tal como uma esposa aos prantos tomada por uma violenta crise de
depressão pós-parto), é chamada de porcaria.
Os homens não foram de grande ajuda hoje de manhã. Suas tentativas de
me fazer sentir melhor só ampliavam minha tristeza. Uma pergunta. Por que é
que quase todo homem, quando defrontado com uma mulher infeliz, supõe
imediatamente que essa infelicidade é de algum modo relacionada com ele? Para
falar a verdade, não estou sendo justa. Michael já teve três filhos, ao longo dos
anos, e tem certo conhecimento sobre os sentimentos que estou tendo. O que fez,
principalmente, foi perguntar se havia alguma coisa que pudesse fazer para me
ajudar. Mas Richard ficou arrasado com minhas lágrimas. Assustou-se quando
acordou e me encontrou em prantos. A princípio pensou que eu estivesse
sentindo alguma horrenda dor física. E não ficou mais do que ligeiramente
consolado ao saber que eu estava simplesmente deprimida.
Depois de estabelecer que ele não era culpado por meu estado de ânimo,
Richard ficou ouvindo em silêncio enquanto eu expressava minha preocupação
quanto ao futuro de Simone. Confesso que eu estava um tanto perturbada, mas
ele não parecia compreender nada do que eu dizia. Ele ficava repetindo a mesma
frase — que o futuro de Simone não era de modo algum mais incerto do que o
nosso — acreditando que, não havendo base lógica para eu ficar tão agitada,
minha depressão deveria desaparecer instantaneamente. Afinal, depois de mais
de uma hora de problemas de comunicação, Richard concluiu corretamente que
ele não estava me ajudando em nada e resolveu me deixar sozinha.
(Seis horas mais tarde.) Estou me sentindo melhor agora. Ainda faltam
três horas para o meu aniversário acabar. Tivemos uma festinha de noite. Eu
acabo de amamentar Simone e ela está novamente deitada ao meu lado —
Michael nos deixou há uns quinze minutos e foi para seu quarto, do outro lado
da sala. Richard adormeceu cinco minutos depois de pousar a cabeça sobre o
travesseiro. Tinha gasto o dia inteiro trabalhando no meu pedido de umas fraldas
mais aprimoradas.
Richard tem muito prazer em supervisionar e catalogar nossas interações
com os ramaianos, ou sei lá com quem seja que opera os computadores que nós
ativamos com o teclado em nosso quarto. Jamais vimos alguém ou alguma coisa
no túnel escuro que fica exatamente atrás da tela negra. De modo que não temos
certeza de que haja criaturas por lá reagindo a nossos pedidos e ordenando suas
fábricas a manufaturar este ou aquele objeto para nós, mas por conveniência nós
nos referimos a nossos anfitriões e benfeitores como ramaianos.
Nosso processo de comunicação com eles é a um tempo complicado e
direto. É complicado porque falamos com eles usando figuras na tela negra e
fórmulas quantitativas precisas na linguagem da matemática, da física e da
química. É direto porque as frases que nós efetivamente imputamos usando o
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teclado são de sintaxe espantosamente simples. Nossas frases mais usadas são
“Gostaríamos de” ou “Nós queremos” (é claro que não tínhamos a menor
possibilidade de saber a tradução exata de nossas necessidades, e apenas
supúnhamos estar sendo polidos — havia a possibilidade de que as instruções
que estávamos ativando tivessem forma de ordens grosseiras começando por
“Dêem aqui”), seguidas de uma descrição detalhada daquilo que gostaríamos que
nos fosse fornecido.
A parte mais difícil é a química. Objetos simples de uso quotidiano como
sabão, papel e vidro são muito complexos do ponto de vista químico, e
extremamente difíceis de especificar com exatidão em termos de seu número e
espécie de compostos químicos. Às vezes, como Richard descobriu logo no início
de seu trabalho com o teclado e a tela negra, temos também de esboçar o
processo de manufatura, inclusive os regimes termais, pois de outro modo o que
recebemos pode não ter a menor semelhança com o que foi requisitado. O
processo de requisição implicou altíssimo número de tentativas e erros. A
princípio o intercâmbio foi muito ineficiente e frustrante. Nós três ficávamos
desejando que nos lembrássemos melhor de nossa química de faculdade. Na
verdade, nossa incapacidade para alcançar progresso satisfatório no sentido de
nos equiparmos com os objetos essenciais do quotidiano foi uma das forças
catalisadoras no sentido da Grande Excursão, como Richard gosta de chamá-la,
que ocorreu há quatro meses.
Aquela altura a temperatura ambiente, tanto na superfície de Nova York
quanto no resto de Rama, já estava a cinco graus abaixo do ponto de
congelamento, e Richard já confirmara que o Mar Cilíndrico voltara a ficar
inteiramente congelado. Eu estava começando a ficar seriamente preocupada por
sentir que não íamos estar devidamente preparados para o nascimento do bebê.
Nós levávamos tempo demais para realizar toda e qualquer tarefa. Conseguir e
instalar uma privada operacional, por exemplo, acabou sendo um esforço de um
mês, e o resultado era pouco satisfatório. Na maioria das vezes nosso problema
básico era o de que fornecíamos especificações insuficientes a nossos anfitriões.
No entanto, por vezes a dificuldade eram os próprios ramaianos. Muitas vezes
eles nos informaram, usando nossa linguagem mútua de símbolos matemáticos e
químicos, que eles não podiam concluir a manufatura de algum item específico
dentro do tempo previsto.
Seja como for, Richard anunciou certa manhã que ele ia deixar nossa toca
e tentar alcançar a nave militar de nossa expedição Newton, que continuava
atracada. Seu objetivo proclamado era a recuperação dos componentes-chave de
dados científicos arquivados nos computadores da nave (o que nos ajudaria
muito em nossos pedidos aos ramaianos), mas ele reconhecia também que estava
terrivelmente faminto de comida decente. Nós vínhamos conseguindo manter-nos
saudáveis e vivos com a gororoba química que nos era fornecida pelos ramaianos.
No entanto, a maior parte da comida era ou totalmente sem sabor ou horrível.
Justiça lhes seja feita, nossos anfitriões vinham correspondendo corretamente
às nossas demandas. Embora nós soubéssemos grosso modo descrever os
ingredientes químicos essenciais de que nossos corpos necessitavam, nenhum de
nós jamais estudara em detalhe o complexo processo bioquímico que tem lugar
quando provamos alguma coisa. Freqüentemente a papa era difícil, quando não
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que todas as imagens de minha mãe ainda se delineiam de modo tão incisivo em
minha mente. Embora ela tenha morrido há 27 anos, quando eu tinha apenas
dez, legou-me uma cornucópia de lembranças maravilhosas. Meu último
aniversário com ela foi absolutamente extraordinário: nós três fomos a Paris de
trem. Papai usava seu novo terno italiano e estava lindo. Mamãe optara por usar
um de seus vestidos nativos brilhantes e multicoloridos. Com o cabelo arrumado
em camadas, ela parecia a princesa Senoufo que fora antes de se casar com
papai.
Jantamos em um restaurante sofisticado perto do Champs-Elysées, e depois
caminhamos até um teatro onde vimos uma trupe negra executar um
conjunto de danças nativas da África Ocidental. Depois do espetáculo tivemos
permissão de ir aos camarins, onde mamãe me apresentou a uma das
dançarinas, uma mulher alta e linda de excepcional negror. Era uma prima
distante de mamãe, da Costa do Marfim.
Eu fiquei ouvindo a conversa das duas na língua tribal Senoufo, relembrando
uns pedacinhos dos tempos de minha preparação para o Poro três anos
antes, deslumbrando-me mais uma vez com o modo como o rosto de minha mãe
sempre se tornava mais expressivo quando ela se via entre seu povo. Mas, por
mais fascinada que me sentisse por toda aquela noitada, eu só tinha dez anos e
teria preferido uma festa de aniversário normal, com minhas colegas de colégio.
Mamãe percebeu meu desapontamento quando viajávamos no trem de volta para
nossa casa no subúrbio de Chilly-Mazarin. “Não fique triste, Nicole”, disse ela,
“no ano que vem você pode ter uma festa. Seu pai e eu quisemos aproveitar esta
oportunidade para lembrá-la um pouco mais da outra metade de sua herança
cultural. Você é cidadã francesa e viveu toda a sua vida na França, mas parte de
você é Senoufo pura, com raízes nos hábitos tribais da África Ocidental.”
Hoje cedo, ao relembrar as danses ivoiriennes executadas pela prima de
mamãe e suas companheiras, imaginei por um momento, com o olhar da mente,
entrar em um teatro lindo com minha filha Simone, de dez anos, a meu lado —
mas a fantasia logo terminou. Não há teatros para além da órbita de Júpiter. Na
verdade, todo o conceito de um teatro provavelmente jamais terá qualquer
significação para minha filha. E isso me deixa perplexa.
Algumas de minhas lágrimas desta manhã caíram porque Simone jamais
conhecerá seus avós, e vice-versa. Eles serão personagens mitológicos na trama
de sua vida, e ela os conhecerá apenas por fotos e vídeos. Jamais terá a alegria de
ouvir a espantosa voz de minha mãe. Nem jamais verá o suave e terno amor nos
olhos de meu pai.
Depois que mamãe morreu, meu pai tomou o maior cuidado para fazer
com que cada um de meus aniversários fosse muito especial. No décimo segundo,
logo depois que nos mudamos para a villa em Beauvois, papai e eu caminhamos
juntos sob a neve que caía pelos tratadíssimos jardins do Château de Villandry.
Naquele dia ele prometeu-me que estaria sempre a meu lado quando eu
precisasse dele. Apertei mais a mão dele quando caminhamos ao longo das sebes.
Naquele dia eu também chorei, confessando a ele (e a mim também) o medo que
tinha que ele também me abandonasse. Ele aconchegou-me contra o peito e
beijou-me a testa. Jamais quebrou sua promessa.
Ainda no ano passado, no que agora parece ter sido em uma outra vida,
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previsto por meu brilhante marido no almanaque que ele distribuiu para Michael
e para mim há quatro meses —, a terceira exibição começará dentro de dois dias
terrenos. Todos nós esperamos que alguma coisa inusitada ocorra pouco depois
dessa terceira demonstração. A não ser que a segurança de Simone seja posta em
questão, eu estarei observando.
30 DE MAIO DE 2201
Nosso monumental lar cilíndrico está agora passando por uma rápida
aceleração, iniciada há mais de quatro horas. Richard está tão excitado que mal
se contém. Está convencido de que por debaixo do elevado Hemicilindro Meridional
há um sistema de propulsão que opera em princípios físicos muito além
das mais delirantes imaginações de cientistas e engenheiros humanos. Ele fica
olhando para os dados do sensor externo na tela negra, com seu amado
computador portátil na mão, e faz anotações ocasionais baseadas no que vê no
monitor. De tempos em tempos ele resmunga para si mesmo ou para nós sobre o
que julga que a manobra está fazendo à nossa trajetória.
Eu estava inconsciente no fundo do buraco quando Rama realizou a correção
de meio-curso para alcançar a órbita de impacto terrestre, de modo que não
sabia o quanto o chão sacudira durante aquela primeira manobra. Diz Richard
que as vibrações de então foram triviais comparadas com o que estamos
experimentando agora. No momento, até andar de um lugar para outro está
difícil. O chão pula para cima e para baixo com muita freqüência, como se uma
britadeira estivesse operando ali por perto. Temos ficado com Simone em nossos
braços desde que a aceleração começou. Não podemos pousá-la no chão ou no
berço, porque a vibração a assusta. Sou a única que se move com Simone, e
assim mesmo tomando o maior cuidado. Perder o equilíbrio e cair é uma
preocupação constante — tanto Michael quanto Richard já caíram por duas vezes
— e Simone poderia se machucar gravemente se eu caísse de mau jeito.
Nossa precária mobília está saltando por toda a sala. Uma das cadeiras de
fato pulou para fora, para o corredor, e depois partiu em direção da escada não
faz meia hora. A princípio repúnhamos a mobília em sua posição correta a cada
dez minutos, mais ou menos, mas agora não prestamos mais atenção — a não
ser quando ela se encaminha pela porta para o vestíbulo.
De modo geral tem sido uma época inacreditável, a começar do terceiro e
último espetáculo de luzes para o sul. Richard saiu primeiro, sozinho, naquela
noite, logo antes do escurecer. Voltou correndo muito excitado uns poucos
minutos mais tarde e agarrou Michael. Quando voltaram os dois, Michael parecia
ter visto um fantasma. “Octoaranhas”, bradou Richard. “Dúzias delas estão
reunidas ao longo da orla marítima, dois quilômetros para leste.”
“Agora, você não sabe realmente quantas são”, disse Michael. “Só as vimos
por dez segundos no máximo antes de as luzes se apagarem.”
“Observei-as por mais tempo quando fui sozinho”, continuou Richard.
“Pude vê-las com muita clareza através dos binóculos. A princípio era só um
punhado, mas de repente começaram a chegar aos montes. Eu estava a ponto de
começar a contá-las quando elas se organizaram em algum tipo de disposição.
Uma octo gigante, com cabeça listrada de vermelho e azul, pareceu estar sozinha
na frente da formação.”
“Eu não vi nenhum gigante azul e vermelho, nem qualquer espécie de
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Richard inclinou-se para mim e sussurrou que “devia ser Macduff batendo no
portão” e que nossa “má ação” seria em breve descoberta. Eu estava tensa demais
para rir. Quando estávamos ainda a vários metros da grade, vimos uma grande
sombra que se movia, projetada na parede à nossa frente. Paramos para estudála.
Tanto Richard quanto eu compreendemos imediatamente que a tampa exterior
da toca estava aberta — era dia agora na superfície de Rama — e que a criatura
ou bioma ramaiano responsável pelas batidas é que estava criando a bizarra
sombra na parede.
Instintivamente, eu agarrei a mão de Richard. “Mas que coisa neste
mundo será essa?”, indaguei-me em voz alta.
“Deve ser uma coisa nova”, respondeu Richard muito baixinho.
Disse-lhe que a sombra parecia uma bomba de petróleo antiquada, que
ficava subindo e descendo no meio de um campo petrolífero. Ele deu um sorriso
nervoso e concordou.
Depois de esperar o que devem ter sido uns cinco minutos, sem ver ou
ouvir qualquer mudança na batida rítmica conferida pelo visitante, Richard disseme
que ia subir até a grade, de onde poderia ver algo mais definido do que uma
sombra. É claro que isso significava que fosse o que fosse que estivesse do lado
de fora batendo também poderia vê-lo, supondo-se que tivesse olhos ou seu
equivalente aproximado. Por alguma razão, lembrei-me do dr. Takagishi naquele
momento, e uma onda de medo me invadiu. Beijei Richard e recomendei-lhe que
não fizesse imprudências.
Ao alcançar o patamar final, bem em cima de onde eu esperava, seu corpo
ficou parcialmente na luz e bloqueou a sombra que se movia. As batidas pararam
repentinamente. “É mesmo um bioma”, gritou Richard. “Parece um louva-a-deus
com uma mão extra no meio da cara.”
Seus olhos arregalaram-se de repente. “E agora ele está abrindo a grade”,
acrescentou, pulando imediatamente para fora do patamar.
Um segundo mais tarde, ele estava a meu lado. Agarrou minha mão e
corremos vários andares escada abaixo juntos. Só paramos ao chegarmos ao
nosso nível normal de moradia, vários patamares abaixo.
Podíamos ouvir o som de movimento acima de nós. “Havia um outro
louva-a-deus e pelo menos um bulldozer biótico atrás do da frente”, disse
Richard, sem fôlego. “Tão logo me viram, começaram a abrir a grade... Aparentemente
só estavam batendo para alertar-nos quanto à sua presença.”
“Mas o que querem?”, indaguei, mas minha pergunta era retórica. O ruído
acima de nós continuou a aumentar. “Parece um exército”, comentei.
Em poucos segundos, pudemos ouvi-los descendo as escadas. “Temos de
ficar preparados para fugir correndo”, disse Richard já frenético. “Você pega
Simone que eu vou acordar Michael.”
Fomos depressa pelo corredor na direção da área de estar. Michael já fora
despertado pela barulhada e até mesmo Simone começava a mexer-se. Juntamonos
bem agarrados em nossa sala principal, e esperamos os invasores
alienígenas. Richard havia preparado no teclado um pedido que, com o manejo de
mais dois comandos, faria a tela preta levantar-se exatamente quando nossos
benfeitores invisíveis estavam a ponto de suprir-nos com algum produto novo. “Se
formos atacados”, disse Richard, “vamos nos arriscar pelos túneis atrás da tela.”
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na porta de nossa sala principal e me deu um susto terrível. Ele apontou para o
corredor com seus dedos esquisitos, deixando claro que devíamos seguir com
certa pressa.
Simone ainda estava dormindo e não ficou nada contente quando eu a
acordei. Estava também com fome, mas o louva-a-deus não permitiu que eu
parasse para amamentá-la, de modo que Simone estava tendo acessos de choro
quando fomos tangidos através da toca para o tanque.
Um segundo louva-a-deus estava à nossa espera no caminho que ladeia o
tanque, segurando capacetes transparentes em suas estranhas mãos. Ele devia
ser também o inspetor, pois não permitiu que descêssemos para nossas redes
antes de verificar e ter a certeza de que os capacetes estavam corretamente
colocados em nossas cabeças. O composto plástico ou vítreo que forma o
capacete é notável; pode-se ver perfeitamente através dele. E as bases dos
capacetes também são extraordinárias. São feitas de um composto grudento,
meio borrachoso, que se adere muito firmemente à pele, criando um selo
impermeável.
Fazia apenas trinta segundos que estávamos deitados em nossas redes
quando um jato poderoso apertou para baixo os componentes trançados com tal
força que afundamos até a metade do tanque vazio. Um momento depois, fios
mínimos (que pareciam crescer do material das redes) envolveram os torsos de
nossos corpos, deixando-nos livres apenas pernas, braços e pescoço. Dei uma
olhada para Simone, para ver se estava chorando, mas tinha um vasto sorriso no
rosto.
O tanque já começara a ser enchido com um líquido verde claro. Em
menos de um minuto estávamos envolvidos pelo fluido. Sua densidade era muito
próxima da nossa, pois ficamos meio flutuando na superfície até a tampa do
tanque fechar-se e o líquido enchê-lo completamente. Embora eu julgasse pouco
provável que estivéssemos correndo qualquer perigo real, fiquei assustada
quando a tampa do tanque fechou-se por sobre nossas cabeças. Todos nós,
afinal, somos ao menos um pouquinho claustrofóbicos.
Durante todo esse tempo a aceleração continuara. Por sorte, o interior do
tanque não ficava inteiramente escuro. Havia pequenas luzinhas distribuídas
pela tampa. Eu podia ver Simone a meu lado, seu corpinho pulando como uma
bóia, e podia até ver Richard a distância.
Ficamos dentro do tanque por um pouquinho menos de duas horas.
Richard estava excitadíssimo quando tudo acabou. Disse a Michael que por certo
havíamos feito um “teste” para que vissem se poderíamos suportar forças
“excessivas”.
“Eles não estão satisfeitos com as insignificantes velocidades que vínhamos
experimentando até então”, informou-nos ele com entusiasmo. “Os
ramaianos querem aumentar mesmo sua velocidade. Para fazê-lo, a espaçonave
precisa ficar sujeita, por longos períodos, a forças-G de alto nível. Este tanque foi
desenhado para fornecer-nos amortecedores suficientes para que nossa
construção biológica possa assimilar ambientes inusitados.”
Richard passou o dia inteiro fazendo cálculos, e há poucas horas mostrounos
sua reconstituição preliminar do “evento de aceleração” de ontem. “Olhem só
isso!”, gritou, mal conseguindo conter-se. “Fizemos uma mudança de velocidade
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neblina para garantir-me que meu pai não ia casar-se com Helena, a duquesa
inglesa com quem ele fora passar umas férias na Turquia.
Em outra noite a abertura de cores foi seguida por um bizarro espetáculo
teatral em algum ponto do Japão. Havia apenas dois personagens na peça
alucinatória, ambos os quais usavam máscaras brilhantes e expressivas. O
homem estava vestido com terno e gravata ocidentais, declamava poesia e tinha
olhos magníficos, claros e abertos, que podiam ser vistos através de sua máscara
amistosa. O outro homem parecia um guerreiro samurai do século XVII. Sua
máscara era uma carranca perene, que começou a ameaçar tanto a mim quanto a
seu colega mais moderno. Gritei no final dessa alucinação, porque os dois
homens se encontraram no centro do palco e mesclaram-se em um único
personagem.
Algumas de minhas mais fortes imagens alucinatórias não duravam mais
que alguns segundos. Na segunda ou terceira noite, o Príncipe Henry, nu, ereto
de desejo, seu corpo de um roxo vibrante, apareceu por dois ou três segundos no
meio de uma outra visão na qual eu cavalgava uma octoaranha gigantesca e
verde.
Durante o sono de ontem não apareceram cores durante horas. Depois,
quando tomei consciência de estar incrivelmente faminta, um melão gigante, corde-
rosa, apareceu na escuridão. Quando tentei comer o melão, em minha visão,
ele criou pernas e saiu correndo, desaparecendo em meio a cores indefinidas.
Será que alguma dessas coisas tem algum significado? Poderei aprender
alguma coisa a respeito de mim ou de minha vida por meio desses fluxos
aparentemente aleatórios de minha mente sem rumo?
O debate acerca da significação dos sonhos já segue acalorado há quase
três séculos, e ainda não está resolvido. Estas minhas alucinações, parece-me,
são ainda mais afastadas da realidade do que os sonhos normais. Em certo
sentido, eles são primos distantes das duas viagens psicodélicas que fiz na minha
juventude, e qualquer tentativa de as interpretar logicamente seria absurdo. No
entanto, de algum modo ainda creio que algumas verdades fundamentais estão
contidas nesses desatinos loucos e aparentemente desconexos de minha mente.
Talvez porque não aceite que o cérebro humano jamais opere de forma puramente
aleatória.
22 DE JULHO DE 2201
Ontem o chão finalmente parou de sacudir. Richard o predissera. Quando
não voltamos para o tanque, há dois dias, na hora costumeira, Richard
conjecturou corretamente que a manobra estaria quase completada.
De modo que assim entramos em uma outra fase de nossa incrível odisséia.
Meu marido informou-nos que estamos agora viajando a uma velocidade
igual a metade da velocidade da luz. Isso significa que cobrimos a distância
Terra-Lua a aproximadamente cada dois segundos. Estamos indo, mais ou
menos, na direção da estrela Sirius, a mais brilhante estrela verdadeira do céu
noturno de nosso planeta natal. Se não houver mais manobras, estaremos na
vizinhança de Sirius em mais uns doze anos.
É um alívio que nossa vida possa agora voltar a alguma espécie de equilíbrio
local. Simone parece ter ultrapassado os longos períodos no tanque sem
quaisquer dificuldades aparentes, mas não acredito que uma experiência como
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essa possa deixar um bebê inteiramente ileso. É importante para ela que nós
agora restabeleçamos nossa rotina diária.
Nos momentos em que estou só, penso muitas vezes naquelas vividas
alucinações durante os primeiros dez dias no tanque. Devo admitir que fiquei
encantada ao resistir finalmente a várias “zonas de crepúsculo” de total privação
sensorial sem desenhos loucos e coloridos ou imagens desconexas inundarem
minha mente. Aquela altura eu já começava a me preocupar com minha sanidade
e, falando a verdade, eu já ultrapassara de muito o “avassalador”. Embora as
alucinações parassem de repente, minhas lembranças da força de tais visões
ainda me deixavam assustada cada vez que as pequenas luzes da tampa do
tanque se apagavam, durante as últimas semanas.
Tive apenas mais uma visão depois daqueles primeiros dez dias — que
pode efetivamente ter sido apenas um sonho extremamente vivido durante um
período normal de sono. A despeito do fato de esta imagem em particular não ser
tão nítida quanto as anteriores, eu a retenho mesmo assim em detalhe em função
de sua semelhança com um dos segmentos alucinatórios ocorridos enquanto
estava no fundo do buraco no ano passado.
Em meu sonho ou visão final estava eu sentada com meu pai ouvindo um
concerto ao ar livre em local indeterminado. Um cavalheiro oriental idoso, com
longa barba branca, estava sozinho no palco, tocando alguma espécie de
instrumento de cordas. Ao contrário de minha visão no fundo do buraco, no
entanto, meu pai e eu não nos transformamos em passarinhos e voamos para
Chinon, na França. Ao invés disso, o corpo de meu pai desapareceu
completamente, ficando apenas os olhos. Em poucos segundos, cinco outros
pares de olhos formaram um hexágono no ar, acima de mim. Reconheci
imediatamente os olhos de Omeh, e os de minha mãe, porém os outros três pares
eram desconhecidos. Os olhos nos vértices do hexágono olhavam todos fixamente
para mim, sem piscar, como se estivessem tentando comunicar-me alguma coisa.
Logo antes de a música parar, ouvi um único som distinto. Várias vozes emitiram
simultaneamente a palavra “Perigo”.
Qual a origem de minhas alucinações, e por que fui eu a única dos três a
experimentá-las? Richard e Michael também foram sujeitados à privação
sensorial, e ambos confessaram que alguns desenhos bizarros flutuaram “em
frente a seus rostos”, porém suas imagens jamais foram coerentes. Se, como
conjecturamos, os ramaianos de início injetaram-nos com um ou dois elementos
químicos, usando os fios finíssimos que se enrolavam em nossos corpos, para
ajudar-nos a dormir naquele ambiente desconhecido, por que seria eu a única a
reagir com visões tão delirantes?
Tanto Richard quanto Michael acreditam que a resposta é simples, que eu
sou um “indivíduo drogável de imaginação hiperativa”. No que lhes concerne, com
isso fica tudo explicado. Sem querer entrar mais no assunto, eles são corteses
quando levanto questões ligadas às minhas “viagens”, porém não se mostram
interessados. Eu poderia esperar esse tipo de reação de Richard, mas certamente
não de Michael.
Na verdade, nem mesmo nosso previsível general O’Toole tem se mostrado
inteiramente ele mesmo desde que começaram nossas sessões no tanque. Fica
claro que ele tem se preocupado com outros assuntos. Mas ainda hoje pela
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manhã consegui ter ao menos um vislumbre do que lhe anda indo pela mente.
“Sem que o admitisse conscientemente”, disse Michael afinal, lentamente,
depois que eu o importunei com um interrogatório amistoso por vários minutos,
“eu sempre redefini e relimitei Deus a cada novo avanço da ciência. Eu havia
conseguido integrar um conceito dos ramaianos em meu catolicismo, mas ao
fazê-lo eu apenas expandira minha definição limitada d’Ele. Agora, quando me
encontro a bordo de uma espaçonave robô viajando a velocidades relativistas,
vejo que preciso liberar Deus completamente. Só então pode Ele ser o ente
supremo de todas as partículas e processos do universo.”
O desafio de minha vida no futuro próximo fica no outro extremo. Richard
e Michael estão fixados em idéias profundas, Richard no campo da ciência e da
engenharia, Michael no mundo da alma. Embora me dêem o maior prazer as
idéias estimulantes produzidas por cada um dos dois em sua busca particular da
verdade, alguém tem de prestar atenção às tarefas quotidianas da vida. Nós três
temos a responsabilidade, afinal, de preparar nossa única integrante da nova
geração para sua vida adulta.
Está parecendo que a tarefa de ser, entre pai e mãe, a dominante, sempre
recairá sobre mim.
É uma responsabilidade que abraço com alegria. Quando Simone me
sorri, radiosa, quando descansa em meio a uma mamada, não me preocupo com
minhas alucinações, não me importa realmente se Deus existe ou não, e não
sinto que tenha maior importância os ramaianos haverem desenvolvido um
método para utilizar a água como combustível nuclear. Nesses instantes, a única
coisa que realmente importa é ser eu a mãe de Simone.
31 DE JULHO DE 2201
A primavera positivamente chegou em Rama. O degelo começou tão logo a
manobra se completou. Aquela altura, a temperatura na superfície atingira uns
frígidos vinte e 25° abaixo de zero, e já começávamos a nos preocupar com o
quanto a temperatura exterior poderia ainda baixar antes que o sistema de
regulagem das condições termais de nossa toca chegasse a seu limite. A
temperatura vem subindo uniformemente quase um grau por dia desde então e,
se continuar assim, atravessaremos a linha de congelamento em duas semanas.
Estamos agora fora do sistema solar, no vácuo quase perfeito que ocupa
os imensos vazios entre estrelas vizinhas. Nosso sol ainda é o objeto dominante
no céu, porém nenhum dos planetas é sequer visível. Duas ou três vezes por
semana Richard procura nos dados telescópicos por algum sinal dos cometas na
Nuvem Oort, porém até aqui não viu nada.
De onde vem o calor que esquenta o interior de nosso veículo? Nosso
mestre em engenharia, o bonitão cosmonauta Richard Wakefield, deu uma
resposta rápida quando Michael lhe fez essa pergunta ontem. “O mesmo sistema
nuclear que estava municiando a vasta mudança de velocidade provavelmente
está agora gerando o calor. Rama deve ter dois regimes operacionais diferentes.
Quando chega perto de uma fonte de calor, como uma estrela, são desligados
todos os seus sistemas primários, inclusive o controle térmico e de propulsão.”
Tanto Michael quanto eu congratulamo-nos com Richard por tal explicação
eminentemente plausível. “Porém”, questionei, “ainda há muitas outras
perguntas. Por que, por exemplo, teriam de ser dois sistemas diversos de
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permitir acesso fácil a todas as nossas informações) para poder dar muita
atenção a Katie.
Minha terceira filha pesou um pouquinho menos de quatro quilos ao
nascer e media 54 centímetros. Simone, sem dúvida, nasceu pesando menos,
mas não tínhamos uma balança suficientemente exata naquele tempo. Katie tem
a pele bem clara, na realidade quase branca, e seu cabelo é muito mais claro do
que os cachos escuros de sua irmã. Seus olhos são de um azul surpreendente.
Sei que não é pouco usual bebês terem olhos azuis, e que muitas vezes eles
escurecem bastante durante o primeiro ano de vida. Porém jamais esperei que
uma filha minha tivesse olhos azuis sequer por um momento.
18 DE MAIO DE 2203
É difícil acreditar que Katie já esteja com mais de dois meses. Ela é uma
criança muito exigente! A esta altura eu já deveria ter conseguido treiná-la para
não puxar meus mamilos, mas não consigo quebrar o hábito. Ela fica
especialmente difícil quando alguma outra pessoa está presente enquanto eu a
amamento. Se eu viro a cabeça para falar com Michael ou Richard, ou
especialmente se tento responder uma das perguntas de Simone, então Katie
puxa o mamilo com toda a força.
Richard anda muito instável ultimamente. Às vezes, é aquele homem
brilhante e espirituoso que conhecemos, a fazer Michael e eu rirmos com suas
brincadeiras eruditas, mas seu humor é capaz de se alterar em um momento.
Uma única observação aparentemente inócua feita por qualquer um de nós é
capaz de afundá-lo em depressão, ou até mesmo provocar raiva.
Desconfio que o verdadeiro problema de Richard hoje em dia seja o tédio.
Já terminou seu projeto de banco de dados, e ainda não começou nenhuma outra
grande atividade. O fabuloso computador que ele construiu no ano passado
contém sub-rotinas que tornam nossa interface com a tela negra quase rotineira.
Ele poderia ampliar a variedade de seus dias tomando parte mais ativa no
desenvolvimento e na educação de Simone, mas acho que ele simplesmente não
dá para isso. Ele não parece ficar fascinado, como Michael e eu ficamos, com as
complexas estruturas de crescimento que estão emergindo em Simone.
Quando estava grávida de Katie, fiquei muito preocupada com a aparente
falta de interesse de Richard por crianças. Resolvi atacar o problema de frente,
pedindo-lhe que me ajudasse a criar um minilaboratório que nos permitisse
analisar parte do genoma de Katie a partir de uma amostra de meu fluido
amniótico. O projeto envolvia química complexa, um nível de interação com os
ramaianos mais profundo do que qualquer outro que houvéssemos tentado até
então, e a criação e calibração de alguns instrumentos médicos sofisticados.
Richard adorou a tarefa. Eu também, pois ela lembrou-me meus dias de
escola de medicina. Trabalhávamos juntos por doze, às vezes quatorze horas por
dia (deixando Michael encarregado de tomar conta de Simone — os dois se dão
realmente muito bem) até que terminássemos. Em certas ocasiões conversávamos
a respeito de nosso trabalho até tarde da noite, até mesmo enquanto estávamos
fazendo amor.
Quando chegou o dia, no entanto, em que completamos a análise do
genoma de nosso bebê por vir, para espanto meu, Richard estava muito mais
excitado com o fato de o equipamento e a análise corresponderem a todas as
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por dia sozinha, não só revendo meu amado francês como também estudando italiano
e japonês.
Uma tarde, no mês passado, Richard projetou na tela negra um produto
de telescópio externo ramaiano que incluía nosso sol e outros milhares de
estrelas na visão do campo. O sol era o mais brilhante dos objetos, mas apenas
um pouquinho. Richard lembrou a mim e a Michael que já estávamos a mais de
doze mil bilhões de quilômetros de nosso planeta natal oceânico, em sua órbita
fechada em torno daquela estrela insignificante.
Mais tarde, na mesma noite, vimos Eleonor, a rainha, um dos cerca de
trinta filmes originalmente a bordo da Newton para entreter a tripulação de
cosmonautas.
O filme era vagamente baseado nos bem-sucedidos romances de meu
pai sobre Eleonor de Aquitânia e fora filmado em muitas locações que eu visitara
com meu pai quando era adolescente. As cenas finais do filme, mostrando os
anos que precederam a morte de Eleonor, tinham lugar na Abadia de Fontevrault.
Lembro-me de, aos quatorze anos, ficar de pé na abadia, ao lado de meu pai, em
frente à efígie esculpida de Eleonor, minhas mãos trêmulas de emoção ao apertar
as dele. “Você foi uma grande mulher” , dissera eu certa vez ao espírito da rainha
que dominara a história do século XII na França e na Inglaterra, “e estabeleceu
um exemplo para eu seguir. Não a desapontarei.”
Naquela noite, depois de Richard adormecer e enquanto Katie estava
temporariamente quieta, voltei a pensar naquele dia e fui tomada da mais
profunda tristeza, com uma sensação de perda que não chegava a poder
expressar. A justaposição do sol que se afastava com a imagem de mim mesma
aos quatorze anos, a fazer promessas ousadas a uma rainha que morrera mil
anos antes, lembrou-me de tudo o que eu conhecera antes de Rama agora estava
acabado. Minhas duas novas filhas jamais veriam qualquer dos lugares que
significavam tanto para mim e para Geneviève. Jamais conhecerão o cheiro de
grama recém-cortada na primavera, a radiosa beleza das flores, o canto dos
pássaros, ou a glória de uma lua cheia nascendo do oceano. Elas não conhecerão
o planeta Terra totalmente, ou qualquer de seus habitantes, a não ser esse
bandinho esquisito que elas chamarão sua família, uma pobre amostragem da
vida que transborda em um planeta abençoado.
Naquela noite chorei em silêncio por vários minutos, sabendo, mesmo
enquanto chorava, que quando chegasse a manhã eu estaria novamente ostentando
meu rosto otimista. Afinal, poderia ser ainda pior. Nós temos o
essencial: comida, água, abrigo, roupas, boa saúde, companheirismo e, é claro,
amor. O amor é o ingrediente de maior importância para a felicidade da vida
humana, tanto na Terra quanto em Rama. Se Simone e Katie só aprenderem o
amor em relação ao mundo que deixamos para trás, isso será o bastante.
7
1º DE ABRIL DE 2204
Hoje foi um dia inusitado sob todos os aspectos. Primeiro, logo que todos
acordaram, anunciei que iríamos dedicar o dia à memória de Eleonor de
Aquitânia, que morrera, se os historiadores estiverem corretos e se nós andarmos
seguindo corretamente o calendário, exatamente há mil anos. Para prazer meu,
toda a família apoiou a idéia e tanto Richard quanto Michael imediatamente
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trás para engolir. Aparentemente, o ponche foi aceitável, pois o líquido esgotou-se
em menos de um minuto. Quando acabou, deu dois passos para trás, abriu as
asas ao máximo, e deu uma volta completa.
“Agora nós devíamos dizer ‘De nada’“, disse eu, estendendo minha mão
para Richard. Nós, por nossa vez, também demos uma volta completa, como
havíamos feito ao dizer adeus e obrigado quatro anos antes, e nos curvamos
ligeiramente na direção da ave depois que acabamos.
Tanto Richard quanto eu pensamos que a criatura sorriu, mas logo admitimos
que poderíamos tê-lo imaginado. A ave de veludo cinzento abriu as asas,
decolou e ficou pairando no ar sobre as nossas cabeças.
“Aonde acha que ela vai?”, perguntei eu.
“Ela está morrendo”, respondeu ele suavemente. “Ela vai dar uma última
olhada no mundo que conheceu.
6 DE JANEIRO DE 2205
Hoje é meu aniversário. Estou com 41 anos. Ontem à noite tive um de
meus sonhos vividos. Eu era muito velha. Meu cabelo estava inteiramente
grisalho e meu rosto muito enrugado. Eu estava morando em um castelo — em
algum ponto do Loire, não muito longe de Beauvois — com duas filhas já
crescidas (nenhuma das quais se parecia, no sonho, com Simone e Katie ou
Geneviève) e três netos. Os meninos eram todos adolescentes, fisicamente
saudáveis, mas havia algo de errado com cada um deles. Eram todos burros,
talvez até retardados. Lembro-me que, no sonho, eu tentava explicar a eles como
a molécula da hemoglobina carrega oxigênio do sistema pulmonar para os
tecidos. Nenhum deles conseguia compreender o que eu dizia.
Despertei do sonho deprimida. Estávamos no meio da noite e todo o resto
da minha família estava dormindo. Como faço muitas vezes, caminhei pelo
corredor até o quarto das crianças para ver se elas estavam cobertas por seus
cobertores leves. Simone quase não se move à noite, mas Katie, como sempre, já
havia jogado fora o cobertor de tanto sacudir as pernas. Tornei a cobrir Katie e
depois sentei-me em uma das cadeiras.
O que me estaria incomodando? Fiquei imaginando. Por que será que
ando tendo tantos sonhos sobre filhos e netos? Um dia, na semana passada, fiz
uma referência de brincadeira à possibilidade de termos um terceiro filho e
Richard, que anda atravessando outra de suas fases de depressão, quase morreu
de susto. Acho que ele lamenta ter deixado que eu o convencesse a termos Katie.
Mudei de assunto imediatamente, sem querer provocar outro de seus discursos
niilistas.
Será que eu mesma quereria um novo bebê a esta altura? Será que ele
faria algum sentido, na situação na qual nos encontramos? Deixando de lado, no
momento, quaisquer razões pessoais que eu pudesse ter para dar à luz uma
terceira criança, existe sempre um forte argumento biológico em favor da
continuidade da procriação. Nossa melhor probabilidade de destino leva a crer
que jamais venhamos a ter contatos com outros membros da espécie humana. Se
nós somos os últimos de nossa linhagem, seria bom que prestássemos a devida
atenção aos princípios fundamentais da evolução: um máximo de variação
genética produz a mais alta probabilidade de sobrevivência em meio ambiente
incerto.
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idéia era pouco prática. Um método sem falhas de inseminação artificial (que eu
teria de supervisionar, mesmo sendo a paciente) teria de ser elaborado. Será que
poderíamos fazê-lo, em nossas circunstâncias atuais, e garantir tanto a saúde
quanto o sexo do embrião? Até mesmo hospitais na Terra, com toda espécie de
recursos à sua disposição, nem sempre têm sucesso. A outra alternativa seria
fazer sexo com Michael. Embora a idéia não me parecesse desagradável, as
ramificações sociológicas pareceram-me de tal magnitude que abandonei
completamente a idéia.
(Seis horas mais tarde.) Os homens surpreenderam-se esta noite com um
jantar especial. Michael está ficando um ótimo cozinheiro, a comida, de acordo
com o anunciado, teria gosto de Beef Wellington, embora parecesse mais creme
de espinafre. Richard e Michael também serviram um líquido vermelho rotulado
de vinho. Não era horrível, de modo que eu o bebi, descobrindo para grande
surpresa minha que ele continha algum álcool, deixando-me até perceber um
ruído de espumante.
Todos nós estávamos ligeiramente empilecados depois do jantar. As meninas,
particularmente Simone, ficaram atônitas com nosso comportamento.
Durante nossa sobremesa de torta de coco, Michael disse-me que 41 era “um
número muito especial”. Passou então a explicar-me que ele era o maior número
primo que dava início a uma longa seqüência quadrática de outros primos.
Quando perguntei-lhe o que era uma seqüência quadrática, ele riu e disse que
não sabia. Mas ele escreveu, na realidade, a seqüência de quarenta elementos de
que estava falando: 41, 43, 47, 53, 61, 71, 83, 97, 113... terminando em 1601.
Garantiu-me que cada um daqueles quarenta números era primo. “E portanto”,
acrescentou, dando uma piscadela, “quarenta e um deve ser um número mágico.”
Enquanto eu ria, nosso gênio residente, Richard, olhou para os números e
a seguir, não mais de um minuto depois de brincar com seu computador,
explicou a Michael e a mim por que a seqüência era chamada “quadrática”. “As
segundas diferenças são constantes”, disse ele, mostrando-nos o que queria dizer
com um exemplo. “Portanto, toda a seqüência pode ser gerada por uma simples
expressão quadrática. Tome-se f(N)=N2-N+41”, continuou, “onde N é qualquer
integral de 0 a 40. Essa função gerará a seqüência inteira.”
“Melhor ainda”, riu-se ele, “tomem f(N)=N2-81N+1681, onde N é uma
integral que vai de 1 a 80. Essa fórmula quadrática começa no fim da sua fileira
de números, f(1)=1601, e vai passando pela seqüência em ordem crescente. Ela se
inverte em f(40)=f(41)=41, e então gera todo o seu quadro numérico do novo, em
ordem crescente.”
Richard sorriu. Michael e eu ficamos olhando para ele com o maior respeito.
13 DE MARÇO DE 2205
Katie teve hoje seu segundo aniversário e todos estavam de muito bom
humor, particularmente Richard. Ele gosta muito da caçulinha, e ela o manipula
escandalosamente. Porque era seu aniversário, ele a levou até a tampa da toca
das octoaranhas, e eles sacudiram as grades juntos. Tanto Michael quanto eu
expressamos nossa desaprovação, mas Richard riu-se e piscou para Katie.
Na hora do jantar, Simone tocou uma pequena peça que Michael estava
lhe ensinando, ao piano, e Richard serviu um vinho bastante notável, um
Chardonnay ramaiano, como o chamava, com nosso salmão poché. Em Rama,
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salmão poché é muito parecido com ovos mexidos na Terra, o que fica um pouco
confuso, mas nós continuamos fiéis à nossa convenção de rotular todos os
nossos alimentos segundo seu conteúdo nutritivo.
Estou me sentido muito, muito feliz, embora admita estar um pouco
nervosa quanto à conversa que estou para ter com Richard. Ele anda muito
bemhumorado
no momento, principalmente porque está trabalhando não em um mas
em dois projetos de monta. Não só ele está fazendo uns preparados líquidos cujo
gosto e teor alcoólico rivalizam-se com os dos bons vinhos do planeta Terra, como
também está criando um novo conjunto de robôs de vinte centímetros baseados
em personagens das peças do vencedor do Prêmio Nobel no século XX, Samuel
Beckett. Michael e eu vimos insistindo para que Richard reviva sua trupe
shakespeariana há alguns anos, mas as lembranças de seus amigos perdidos
sempre o impediu de fazê-lo. Mas um novo dramaturgo — isso é outra questão.
Ele já acabou os quatro personagens de Fim de partida. Esta noite as crianças
riram-se alegremente quando os velhos “Nagg” e “Nell” apareceram de dentro de
suas latas de lixo gritando “Meu papá. Tragam o meu papá.”
Pretendo positivamente apresentar a Richard minha idéia de ter um filho
com Michael como pai. Estou certa de que ele verá a lógica e o mérito científico da
sugestão, embora dificilmente eu espere que ele fique muito entusiasmado sobre
o assunto. É claro que ainda não mencionei de todo a minha idéia a Michael. Ele
sabe que eu ando com algo de sério na cabeça, porque perguntei-lhe se poderia
tomar conta das meninas esta tarde enquanto Richard e eu subíamos à superfície
para um piquenique e uma conversa.
Meu nervosismo em torno dessa questão provavelmente não tem razão de
ser. Mas sem dúvida ele se baseia em um conceito de comportamento correto que
simplesmente não se aplica à nossa situação atual. Richard tem se sentido bem
nestes últimos tempos. Seu espírito anda afiadíssimo. É possível que ele atire
algumas farpas bem cortantes na minha direção durante nossa discussão, mas
aposto que no fim ele ficará a favor da idéia.
8
7 DE MAIO DE 2205
Esta tem sido a primavera de nosso descontentamento. Senhor, que tolos
somos nós, os mortais. Richard, Richard, volte por favor.
Por onde começar? E como começar? Será que ouso comer um pêssego?
Em um minuto há visões e revisões que um minuto... No quarto ao lado, Michael
e Simone vão de cá para lá conversando sobre Miguel Ângelo.
Meu pai sempre me disse que todo mundo comete erros. Por que o meu
teve de ser tão colossal? A idéia fazia sentido. Meu cérebro esquerdo me dizia que
era lógico. Mas lá no fundo do ser humano a razão nem sempre triunfa. As
emoções não são racionais. O ciúme não é resultado de um programa de
computador.
Não faltaram avisos. Naquela primeira tarde, sentados junto ao Mar Cilíndrico
fazendo nosso “piquenique”, os olhos de Richard já me diziam que havia
algum problema. Hum, hum, Nicole; é melhor recuar, disse eu a mim mesma.
Porém, mais tarde, ele me pareceu tão razoável. “É claro”, disse Richard
naquela mesma tarde, “que o que você está sugerindo é a coisa geneticamente
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correta a ser feita. Eu irei com você falar com Michael. Vamos acabar com isso o
mais rápido possível, esperando que um encontro seja suficiente.”
Senti-me entusiasmada naquele momento. Jamais me ocorrera que
Michael pudesse recusar. “Seria um pecado”, disse ele naquela mesma noite,
depois que as meninas já tinham ido dormir, segundos depois de compreender o
que estávamos propondo.
Richard passou à ofensiva, argumentando que todo o conceito de pecado
era um anacronismo até mesmo na Terra e que ele, Michael, estava sendo apenas
tolo. “Você realmente quer que eu faça isso?”, Michael perguntou diretamente a
Richard, no final da conversa.
“Não”, respondeu Richard após uma pequena hesitação; “mas é claramente
o melhor para as meninas.” Eu devia ter prestado mais atenção naquele
“não”.
Jamais me ocorreu que meu plano pudesse não funcionar. Eu controlei
com o maior cuidado meu ciclo de ovulação. Quando a noite escolhida finalmente
chegou, informei a Richard e ele saiu da toca pisando forte, para uma de suas
longas caminhadas por Rama. Michael estava nervoso e lutando contra seus
sentimentos de culpa, mas nem em meu pior cenário do Julgamento Final eu
imaginara que ele poderia ser incapaz de ter uma relação sexual comigo.
Quando tiramos nossas roupas (no escuro, para que Michael não se sentisse
desconfortável) e nos deitamos lado a lado na esteira, descobri que seu
corpo estava rígido e tenso. Eu lhe beijei a testa e as faces. Depois tentei relaxá-lo
massageando-lhe as costas e o pescoço. Ao fim de cerca de trinta minutos de
toques (mas nada que se pudesse considerar como jogos sexuais preliminares)
aconcheguei-me sugestivamente contra seu corpo. Ficou óbvio que tínhamos um
problema. Seu pênis continuava totalmente flácido.
Eu não sabia o que fazer. Meu primeiro pensamento, que é claro que era
totalmente irracional, foi o de que Michael não me achava atraente. Fiquei me
sentindo péssima, como se alguém tivesse me esbofeteado. Todos os meus
sentimentos reprimidos de inferioridade afloraram e eu fiquei surpreendentemente
zangada. Por sorte eu não disse nada (nenhum de nós dois
falou durante todo o tempo) e Michael não podia ver meu rosto no escuro. Mas
minha linguagem corporal deve ter sinalizado meu desapontamento.
“Eu sinto muito”, disse ele baixinho.
“Tudo bem”, respondi eu, tentando parecer despreocupada. .
Apoiei-me em um cotovelo e acariciei sua testa com a outra mão. Fui
ampliando minha massagem leve, deixando meus dedos correrem delicadamente
por seu rosto, pescoço e ombros. Michael estava inteiramente passivo. Ficou
deitado de costas sem se mover e com os olhos fechados durante a maior parte do
tempo. Embora esteja certa de que ele estava gostando da massagem, ele não
disse uma só palavra e nem emitiu qualquer som prazeroso. A essa altura eu já
estava ficando muito ansiosa, e me vi querendo que Michael me acariciasse, me
dissesse que tudo estava bem comigo.
Afinal, deslizei meu corpo para cima do dele. Deixei meus seios penderem
delicadamente sobre seu torso enquanto minha mão direita brincava com o
cabelo em seu peito. Debrucei-me para beijá-lo nos lábios, planejando excitá-lo
em outras áreas com a mão esquerda, mas ele se afastou rapidamente e sentouse.
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“O ciúme é uma coisa terrível. Dizer que ele ‘debocha da carne que o
alimenta’ é muito pouco. O ciúme nos consome inteiramente, é totalmente
irracional e enfraquece de modo absoluto. As pessoas mais maravilhosas do
mundo não passam de animais ferozes quando apanhadas nas garras do ciúme.
“Nicole, querida, eu não lhe contei toda a verdade a respeito do final de
meu casamento com Sarah. Eu suspeitei durante meses que ela estava se
encontrando com outros homens nas noites que passava em Londres. Havia toda
uma série de sinais reveladores — seu interesse desigual no sexo, roupas novas
que não eram nunca usadas comigo, fascinação repentina por posições novas e
práticas sexuais diferentes, telefonemas sem ninguém no outro lado da linha —
mas eu a amava tão loucamente, e tinha tamanha certeza de que nosso
casamento estaria terminado se eu a confrontasse com esses fatos, que não fiz
nada até ficar enlouquecido de ciúmes.
“Para falar a verdade, quando me deitava em minha cama em Cambridge e
imaginava Sarah tendo relações sexuais com algum outro homem, meu ciúme
adquiria tal força que eu não podia adormecer antes de imaginar Sarah morta.
Quando a sra. Sinclair me telefonou naquela noite e eu soube que não podia mais
fingir que Sarah fosse fiel, fui a Londres com o objetivo expresso de matar tanto
minha esposa quanto seu amante.
“Por sorte eu não tinha arma de fogo e minha raiva ao vê-los juntos fez-me
esquecer da faca que colocara no bolso de meu sobretudo. Mas eu positivamente
a teria matado se a briga não tivesse acordado os vizinhos e eu não tivesse sido
fisicamente impedido.
“Você deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com você. Mas
compreenda, meu amor, que todos nós evoluímos para modelos de
comportamento definitivos na vida. Meu modelo de ciúme insano já estava
presente quando eu a conheci. Durante as duas oportunidades em que você foi
tentar uma relação íntima com Michael, não consegui evitar que as lembranças
de Sarah voltassem. Eu sei que você não é Sarah, e que você não está me traindo,
mas mesmo assim minhas emoções estão voltando àquele modelo lunático. Por
motivos estranhos, porque a idéia de você me trair é tão impossível de ser
concebida, sinto-me pior, mais assustado, quando você está com Michael do que
quando Sarah estava com Hugh Sinclair ou qualquer de seus outros amigos
atores.
“Espero que tudo isto faça sentido. Vou-me embora porque não posso
controlar meu ciúme, mesmo sabendo que ele é irracional. Não quero ficar igual a
meu pai, bebendo a minha infelicidade e arruinando a vida de todos à minha
volta. Eu sinto que você há que conseguir essa concepção, de uma maneira ou de
outra, e prefiro poupar-lhe meu comportamento durante o processo.
“Creio que voltarei em breve, a não ser que encontre perigos imprevisíveis
em minhas explorações, mas não sei exatamente quando. Preciso um período de
cura, para que possa voltar a ser um contribuinte firme para o bem de nossa
família. Diga às meninas que eu fui fazer uma viagem. Seja particularmente
bondosa para com Katie — ela é a que vai sentir mais a minha falta.
“Eu te amo, Nicole. Sei que será difícil para você compreender por que eu
estou partindo, mas por favor tente.
Richard”
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13 DE MAIO DE 2205
Hoje passei cinco horas na superfície, em Nova York, procurando por
Richard. Fui até os grandes buracos, às duas áreas das treliças, e às três praças.
Percorri todo o perímetro da ilha ao longo do parapeito, sacudi a grade da toca
das octoaranhas e desci um pouquinho para a terra das aves. Por toda parte
chamei seu nome. Lembro-me de que Richard me achou há cinco anos por causa
de um sinal de navegação que ele colocara em seu robô shakespeariano Príncipe
Hal. Bem que eu podia usar um sinal daqueles hoje.
Não havia sinal de Richard em parte alguma. Creio que ele deixou a ilha.
Richard é excelente nadador — podia facilmente atingir o Hemicilindro Norte —
mas o que fazer com as estranhas criaturas que habitavam o Mar Cilíndrico?
Será que elas o deixariam passar?
Volte, Richard. Eu sinto a sua falta. Eu te amo.
Ficou claro que ele vinha pensando em ir embora havia vários dias. Ele
pusera em dia e organizara nosso catálogo de interações com os ramaianos de
forma a tornar a tarefa fácil para Michael e para mim. Levou a maior de nossas
mochilas e levou consigo seu melhor amigo, OB, mas deixou para trás os robôs
de Beckett.
Nossas refeições familiares têm sido momentos atrozes desde que Richard
se foi. Katie está quase sempre zangada. Quer saber quando seu papai volta e por
que está demorando tanto. Michael e Simone suportam sua tristeza em silêncio.
A ligação entre eles fica cada vez mais profunda — parecem consolar-se um ao
outro muito bem. Quanto a mim, tenho tentado dar mais atenção a Katie, mas
não consigo substituir seu bem-amado papai.
As noites são terríveis. Eu revejo sem cessar todos os meus momentos
com Richard nos últimos dois meses, e revivo todos os meus erros. Sua carta de
despedida foi muito reveladora. Jamais me ocorrera que suas dificuldades
anteriores com Sarah pudessem causar o menor impacto em seu casamento
comigo, mas reconheço agora o que ele disse a respeito de modelos.
Há modelos em minha vida emocional, também. A morte de minha mãe
quando eu tinha apenas dez anos ensinou-me o terror do abandono. O medo da
perda de uma ligação forte tornou as relações íntimas e a confiança difíceis para
mim. Depois de minha mãe, já perdi Geneviève, meu pai, e agora, ao menos
temporariamente, Richard. Cada vez que o modelo é revivido, todas as quimeras
do passado são reativadas. Quando chorei até dormir, há duas noites,
compreendi que estava sentindo falta não só de Richard mas também de minha
mãe, de Geneviève, e de meu maravilhoso pai. Senti cada uma dessas perdas de
novo, de modo que posso compreender como eu estar com Michael pode detonar
as dolorosas lembranças de Sarah em Richard.
O processo de aprendizado não pára nunca. Aqui estou eu, com 41 anos,
a descobrir uma nova faceta da verdade a respeito das relações humanas. É óbvio
que eu feri Richard profundamente. Não importa que não haja base lógica para a
preocupação de Richard com a possibilidade de minha afeição por ele mudar caso
eu venha a dormir com Michael. A lógica não é aplicável, no caso. A percepção e a
sensibilidade é que contam.
Eu esquecera o quanto a solidão pode ser devastadora. Richard e eu já
estamos juntos há cinco anos. Ele pode não ter todos os atributos de um Príncipe
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Michael também.
Michael e eu, cada um por seu lado, havíamos ambos aceitado plena
responsabilidade pela partida de Richard. Lidei com minha culpa o melhor que
pude, reconhecendo que teria de superá-la inteiramente para poder ser qualquer
tipo de mãe válida para as minhas filhas. Michael, por sua vez, reagiu ao ato de
Richard e à sua própria culpa afundando-se em devoção religiosa. Ele continua a
ler sua Bíblia pelo menos duas vezes ao dia, reza antes e depois de cada refeição,
e volta e meia opta por não tomar parte nas atividades familiares a fim de se
“comunicar” com Deus. A palavra “expiação” tem hoje lugar muito proeminente
no vocabulário de Michael.
Ele arrastou Simone consigo na onda desse renascimento de seu zelo
cristão. Meus tímidos protestos foram ignorados, e ela ama a história de Jesus,
muito embora não possa ter mais do que vaguíssima noção da razão de ser
daquilo. Os milagres, em particular, fascinam Simone. Como a maioria das
crianças, ela não tem qualquer dificuldade em eliminar sua capacidade para
descrer, e sua mente jamais indaga “como” quando Jesus caminha sobre as
águas ou transforma água em vinho.
Meus comentários nem sempre são justos, e provavelmente sinto ciúmes
da amizade que existe entre Michael e Simone. Como mãe dela, deveria sentir-me
feliz por eles serem tão compatíveis. Eles ao menos têm um ao outro, enquanto
Katie e eu continuamos incapazes de estabelecer qualquer ligação mais profunda.
Parte do problema nasce do fato de tanto Katie quanto eu sermos muito
teimosas. Embora só tenha dois anos e meio, ela já quer controlar sua própria
vida. Vejam o caso de uma coisa bem simples, por exemplo, como as atividades
planejadas para o dia. Eu venho criando horários para todos da família desde
nossos primeiros dias em Rama; nunca ninguém jamais reclamou seriamente
comigo, sequer Richard. Michael e Simone sempre aceitam o que quer que eu
recomende — desde que haja bastante tempo livre.
Mas Katie é outra história. Se prevejo um passeio na superfície, em Nova
York, antes da aula de alfabetização, ela quer inverter a ordem. Se planejo frango
para o jantar, ela quer carne de porco ou de vaca. Começamos praticamente
todos os dias com uma discussão a respeito das atividades do dia. Quando não
gosta de minhas decisões, Katie fica emburrada, ou faz bico, ou chora pedindo
seu “Papai?”, e dói vê-la chamar por Richard.
Michael diz que eu deveria ceder aos seus desejos, insistindo em que se
trata apenas de uma fase do crescimento. Mas quando lembro que nem
Geneviève e nem Simone foram assim como Katie, ele sorri e dá de ombros.
Michael e eu nem sempre concordamos a respeito de técnicas parentais.
Já tivemos várias discussões interessantes a respeito de vida familiar em nossas
circunstâncias bizarras, e ao fim de uma destas fiquei um tanto aborrecida com a
afirmação de Michael de que eu era “rígida demais” com as meninas, de modo
que levantei a questão religiosa. Perguntei a Michael por que seria tão importante
que Simone aprendesse tantas minúcias da vida de Jesus.
“Alguém tem de continuar a tradição”, disse ele vagamente.
“Então você acredita que haverá uma tradição a ser levada avante, que
não vamos ficar eternamente à deriva no espaço e morrer, um a um, na mais
aterradora solidão?”
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“Eu acredito que Deus tenha um plano para todo ser humano”, retrucou
ele.
“E qual é o plano d’Ele para nós?”
“Não sabemos. Exatamente como aqueles bilhões de pessoas que continuam
na Terra ignoram qual sejam Seus planos para elas. O processo da vida é
uma busca do Seu plano.”
Eu sacudi a cabeça e Michael continuou: “Sabe, Nicole, devia ser bem
mais fácil para nós. Temos muito menos distrações. Não há desculpa para que
não fiquemos perto de Deus. É por isso que minhas antigas preocupações com
história da arte e alimentação são tão difíceis de perdoar. Em Rama, os seres
humanos devem fazer um esforço maior para preencher seu tempo com algo que
não orações e devoções.”
Confesso que a certeza dele me apoquenta às vezes. Em nossas circunstâncias
atuais, a vida de Jesus não parece ser mais relevante do que a de Atila, o
Huno, ou qualquer outro ser humano que tenha existido naquele planeta distante
há dois anos-luz. Nós não fazemos mais parte da raça humana; somos ou
condenados ou iniciadores do que virá a ser em essência uma nova espécie. Terá
Jesus morrido por nossos pecados, também, nós que jamais tornaremos a ver a
Terra?”
Se Michael não fosse católico e programado desde o nascimento para ser
favorável à procriação, eu jamais o teria persuadido a conceber uma criança. Ele
tinha cem razões para afirmar que era errado o que eu queria fazer; mas no fim,
talvez porque eu andava perturbando suas devoções noturnas diárias com meus
persistentes apelos, ele finalmente consentiu. Avisou-me que “provavelmente
jamais daria certo” e que não “assumiria qualquer responsabilidade por minha
frustração”.
Levamos três meses para produzir um embrião. Durante os dois primeiros
ciclos de ovulação não consegui excitá-lo. Tentei riso, massagem, música, comida
— tudo o que encontrei em todos os artigos sobre impotência. Sua culpa e sua
tensão eram sempre mais fortes que meu ardor. Foi a fantasia que finalmente
forneceu a solução. Quando certa noite sugeri a Michael que ele imaginasse ser
eu sua esposa Kathleen durante todo o processo, ele finalmente foi capaz de
sustentar adequadamente uma ereção. A mente é realmente uma invenção
maravilhosa.
Mesmo com fantasia, no entanto, fazer amor com Michael não foi tarefa
fácil. Em primeiro lugar, e isto provavelmente é maldade minha dizer, só as suas
preparações são o bastante para tirar a vontade de qualquer mulher. Logo antes
de tirar a roupa, Michael sempre oferece uma oração a Deus. Para o que será que
ele reza? Seria fascinante saber a resposta.
O primeiro marido de Eleonor de Aquitânia, Luís VII da França, fora
criado como monge até tornar-se rei da França graças a um acidente histórico.
No romance de meu pai sobre Eleonor há um longo monólogo no qual ela se
queixa de fazer amor “cercada de solenidade, piedade e o tecido áspero dos
Cirtercianos”. Ela ansiava por alegria e riso no quarto, por conversa safada e
paixão desabrida. É fácil compreender por que ela se divorciou de Luís e casou-se
com Henry Plantageneta.
De modo que agora estou grávida do filho homem (espero) que há de trazer
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variedade genética à nossa prole. Foi uma luta tremenda e muito provavelmente
não valeu a pena. Por causa de meu desejo de ter um filho de Michael, Richard se
foi e Michael, ao menos temporariamente, não é mais aquele amigo íntimo e
grande companheiro que foi durante nossos primeiros anos em Rama. Paguei o
preço de meu sucesso. Agora tenho de ter esperança de que esta espaçonave
tenha na realidade algum destino.
1º DE MARÇO DE 2206
Repeti o teste genoma parcial hoje de manhã para verificar meus
primeiros resultados. Não há dúvida. Nosso futuro bebê tem positivamente a
síndrome de Whittingham, felizmente não há outros defeitos identificáveis, mas
Whittingham já é bastante.
Mostrei os dados a Michael quando tivemos alguns momentos a sós depois
do desjejum. A princípio, ele não compreendeu o que eu estava lhe dizendo,
mas quando usei a palavra “retardado” ele reagiu imediatamente. Pude ver que
ele estava imaginando uma criança totalmente incapaz de cuidar de si mesma, e
suas preocupações só diminuíram um pouco quando expliquei que a síndrome
não é nada além de uma deficiência de aprendizado, uma simples falha de
funcionamento do processo eletroquímico do cérebro.
Quando fiz o primeiro teste parcial de genoma na semana passada, suspeitei
da presença do Whittingham, mas como havia uma possível ambigüidade
nos resultados, não disse nada a Michael. Antes de colher uma segunda amostra
amniótica, eu queria rever o que se conhecia a respeito da síndrome. Minha
enciclopédia médica resumida infelizmente não continha informações que me
satisfizessem.
Hoje de tarde, enquanto Katie dormia, Michael e eu perguntamos a Simone
se ela poderia ler um livro na sala de estar das crianças durante cerca de
uma hora. Nosso anjo concordou tranqüilamente. Michael estava bem mais calmo
do que estivera pela manhã. Reconheceu que ficara arrasado pelas primeiras
notícias sobre Benjy (Michael quer que a criança se chame Benjamin Ryan
O’Toole, como seu avô). Ao que parece, uma leitura do livro de Jó desempenhara
importante papel como auxílio à reconquista de seu equilíbrio.
Expliquei a Michael que o desenvolvimento mental de Benjy seria lento e
doloroso. Ele sentiu-se reconfortado, no entanto, quando informei-o de que
muitas vítimas do Whittingham eventualmente atingiam uma equivalência de
doze anos de idade após vinte anos de escolaridade. Garanti a Michael que não
haveria sinais físicos de deficiência, como acontece na síndrome de Down, e que
já que Whittingham é um traço recessivamente bloqueado, havia muito poucas
probabilidades de qualquer possível prole sua ser afetada antes de pelo menos a
terceira geração.
“Há maneira de sabermos qual de nós tem a síndrome em seus genes?”,
indagou Michael no final de nossa conversa.
“Não. É uma desordem muito difícil de isolar porque, ao que parece, se
origina de vários genes defeituosos diferentes. O diagnóstico só é claro quando a
síndrome é ativada. Nem mesmo na Terra tem tido sucesso a tentativa de se
identificar transmissores.”
Comecei a contar-lhe que desde que a moléstia foi identificada pela primeira
vez em 2068, praticamente não ocorreram casos na África ou na Ásia. Tem
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sido basicamente uma doença caucasiana, com o índice mais alto de incidência
ocorrendo na Irlanda. Resolvera que muito em breve Michael iria descobrir essas
informações de qualquer modo (estão todas no principal artigo da enciclopédia
médica, que ele está lendo), e não queria que ele se sentisse ainda pior do que já
se sente agora. “Não há cura?”, perguntou ele a seguir.
“Não para nós. Apareceram indicações na última década de que algumas
medidas genéticas poderiam ter eficácia, se usadas durante o segundo trimestre
de gravidez. No entanto, o procedimento é complicado, até mesmo na Terra, e
pode resultar em perda total do feto.”
Seria o momento perfeito para que Michael mencionasse a palavra
“aborto”, mas ele não o fez. Suas convicções são tão firmes, tão inapeláveis que
estou certa de que ele sequer jamais admitiu a possibilidade. Para ele, o aborto é
um erro absoluto, em Rama como na Terra. Dei por mim imaginando se haveria
condições nas quais Michael consideraria a possibilidade de um aborto. E se o
bebê, além de ter a síndrome, também fosse cego? Ou se tivesse problemas
congênitos múltiplos que determinassem uma morte precoce?
Se Richard estivesse aqui, nós teríamos uma discussão lógica a respeito
das vantagens e desvantagens de um aborto. Ele teria criado um de seus famosos
quadros Ben Franklin, com os prós e os contras listados separadamente nos dois
lados da tela negra. Eu acrescentaria uma longa lista de razões emocionais (que
Richard não teria incluído em sua lista original) para não fazer um aborto, e no
final quase que certamente nós todos concordaríamos em trazer Benjy para
Rama. Seria uma decisão racional e comunitária.
Eu quero ter este bebê. Mas também quero que Michael reafirme seu
compromisso como pai de Benjy. Uma discussão sobre a possibilidade de aborto
teria provocado uma renovação desse compromisso. A aceitação cega das regras
de Deus ou da Igreja ou de qualquer dogma estruturado pode por vezes tornar
fácil para o indivíduo sustentar seu apoio pessoal a determinada decisão
específica. Espero que Michael não seja esse tipo de pessoa.
10
30 DE AGOSTO DE 2206
Benjy chegou adiantado. Apesar de todas as garantias de que ele teria aspecto
perfeitamente normal, Michael pareceu aliviado quando o menino nasceu
há três dias sem anomalias físicas. Foi outro parto fácil. Simone foi de
surpreendente ajuda tanto durante o trabalho de parto quanto na hora do parto
em si. Para uma menina de seis anos ela é muito madura.
Benjy também tem olhos azuis, embora não tão claros quanto os de Katie,
e não creio que permaneçam azuis. Sua pele é marrom claro, só um pouquinho
mais escura do que a de Katie, e mais clara do que a minha ou a de Simone. Ele
pesou três quilos e meio ao nascer, e media cinqüenta e dois centímetros.
Nosso mundo permanece inalterado. Não falamos muito a respeito dele,
mas todos nós, exceto Katie, já perdemos as esperanças de que Richard volte um
dia. Estamos a ponto de começar um novo inverno ramaiano, com as noites mais
longas do que os dias. De tempos em tempos, Michael ou eu subimos à superfície
para procurar algum sinal de Richard, mas é um ritual mecânico. Não esperamos
realmente encontrar nada, e a situação já está assim há dezesseis meses.
Michael e eu agora nos revezamos computando nossa trajetória com o
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maior do que sua altura. Em resposta, Katie foi até a escada de corda feita com o
material das treliças, pendurada ao lado do quarto das crianças, e mostrou-nos
que sabia subir nela. Michael sorriu. “Algumas coisas ela herdou da mãe”, disse
ele.
“Por favor, mamãe”, disse Katie com sua vozinha precoce; “tudo o mais é
tão chato. Quero olhar eu mesma para a sentinela do tanque, só de uns poucos
metros.”
Embora com certas reservas interiores, caminhei com Katie até a toca das
aves, dizendo-lhe que esperasse na superfície até que eu pusesse a escada de
corda no lugar. Na primeira plataforma, defronte da sentinela do tanque, parei
por um momento e olhei para o outro lado do abismo, para aquela máquina de
movimento perpétuo a proteger a entrada do túnel horizontal. Será que você está
sempre aí?, indaguei-me. Ou será que em algum momento tem de ser substituída
ou consertada, nesse tempo todo?
“Está pronta, mamãe?”, ouvi minha filha chamar, lá de cima. Antes que
pudesse subir para encontrar com ela, Katie já estava descendo a escada. Passeilhe
um pito quando a alcancei no segundo patamar, porém ela me ignorou,
terrivelmente excitada. “Viu só, mamãe? Eu desci sozinha.”
Dei-lhe meus parabéns, embora ainda estivesse assustada com a visão de
Katie escorregando da plataforma, batendo em uma das paredes e despencando
para o fundo do abismo. Continuamos a descer a escada, eu sempre ajudando-a
por baixo, até chegarmos à primeira plataforma e a um par de túneis horizontais.
Do outro lado do abismo a sentinela do tanque continuava seu movimento
repetitivo. Katie estava em êxtase.
“O que fica por trás daquela coisa do tanque? Quem o fez? O que é que ele
está fazendo ali? Você pulou de um lado para o outro do buraco de verdade?...”
Em resposta a uma de suas perguntas, virei-me e dei vários passos para
dentro do túnel atrás de nós, seguindo o facho de minha lanterna e supondo que
Katie estivesse atrás de mim. Alguns momentos mais tarde, quando descobri que
ela continuava no limiar do abismo, fiquei paralisada de medo. Eu a vi tirar um
pequeno objeto do bolso de seu vestido e jogá-lo, do outro lado do abismo, no
sentido da sentinela do tanque.
Gritei, mas era tarde demais. O objeto atingiu a frente do tanque. Imediatamente
houve um estampido como tiros de revólver, e dois projéteis metálicos
penetraram a parede da toca, a não mais de um metro acima da cabeça dela.
“Obaaaa!”, gritou Katie, enquanto eu a puxava para longe do abismo. Eu
estava furiosa e minha filha começou a chorar. O barulho na toca estava
ensurdecedor.
Ela parou de chorar de repente alguns segundos mais tarde. “Você ouviu?”,
perguntou-me.
“O quê?”, disse eu, com o coração ainda batendo violentamente. “Bem
para lá”, disse ela. Apontou para a escuridão do corredor vertical, atrás da
sentinela. Apontei a lanterna para o vazio, mas não pudemos ver nada.
Ficamos as duas absolutamente imóveis, de mãos dadas. Havia um som
que vinha do túnel atrás da sentinela. Mas estava no extremo limite de minha
audição, e não pude identificá-lo.
“É uma ave”, disse Katie com convicção. “Estou ouvindo suas asas batendo.
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ramaiano.
Tanto a tampa quanto a grade de nossa toca estavam abertas quando
cheguei. Embora tivesse bastante certeza de as ter fechado antes de partir, não
conseguia lembrar-me de minhas ações exatas na hora da saída. Acabei por dizer
a mim mesma que talvez eu estivesse excitada demais naquele momento e tivesse
esquecido de fechar tudo. Tinha acabado de começar a descer quando ouvi
Michael chamando “Nicole” atrás de mim.
Virei-me. Michael estava se aproximando, vindo do caminho do leste.
Estava andando depressa, o que não é comum nele, e carregava o pequeno
Patrick em seus braços. “Aí está você”, disse ele arfando, quando caminhei até
ele, “estava começando a me preocupar...”
Ele parou de repente, olhou para mim um momento, depois espiou em
volta. “Mas onde está Katie?”, disse ele preocupado.
“O que está dizendo, onde está Katie?” retruquei, com a expressão no
rosto de Michael me alarmando.
“Ela não está com você?”, perguntou ele.
Quando abanei a cabeça e disse que não a tinha visto, Michael repentinamente
caiu em prantos. Eu avancei correndo e consolei o pequeno Patrick, que se
assustara com os soluços de Michael e começara a chorar também.
“Ah, Nicole, eu sinto tanto, tanto. Patrick esteve muito inquieto à noite e
eu o levei para o meu quarto. Hoje Benjy teve dor de barriga e Simone e eu
tivemos de cuidar dele por umas duas horas. Caímos todos no sono enquanto
Katie estava sozinha no quarto das crianças. Há cerca de duas horas, quando
acordamos, ela tinha desaparecido.”
Eu jamais vira Michael tão desesperado. Tentei consolá-lo, dizendo que
provavelmente Katie estava brincando pela vizinhança (e quando a acharmos,
pensei eu, passarei um pito que ela nunca mais há de esquecer), mas Michael
argumentou comigo.
“Não, não; ela não está em nenhum lugar por aqui. Patrick e eu já procuramos
por mais de uma hora.”
Michael, Patrick e eu descemos para ver se estava tudo bem com Simone e
Benjy. Simone informou-nos de que Katie ficara desapontadíssima ao saber que
eu fora procurar Richard sozinha. “Ela esperava”, acrescentou Simone
serenamente, “que você a levasse junto.”
“Por que não me disse isso ontem à noite?”, perguntei eu à minha filha de
oito anos.
“Não me pareceu importante. E jamais imaginei que Katie fosse tentar
encontrar papai por si mesma.”
Tanto Michael quanto eu estávamos exaustos, mas um de nós dois tinha
de ir procurar Katie. Eu era a escolha certa. Lavei o rosto, pedi aos ramaianos
desjejum para todos, e contei uma versão abreviada de minha descida à toca das
aves. Simone e Michael examinaram lentamente com as mãos o enegrecido OB, e
percebi que ambos estavam imaginando o que teria acontecido a Richard.
“Katie disse que papai tinha ido procurar as octoaranhas”, comentou
Simone pouco antes de eu sair. “Ela disse que o mundo delas era mais excitante.”
Foi apavorada que me arrastei caminhando até a praça perto da toca das
octoaranhas. Enquanto andava, as luzes se apagaram e era noite novamente em
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espantosa estrutura quadrada de lente, com dez centímetros de lado, que era
uma combinação gelatinosa de linhas de uma grade com um material preto e
branco em fluxo. Enquanto a octoaranha nos olhava fixamente, a lente pululava
de atividade.
Havia outros órgãos embutidos no corpo, entre as duas reentrâncias,
tanto acima quanto abaixo da lente, porém não tive tempo para estudá-los. A
octoaranha veio em nossa direção na sala, e, a despeito das garantias de Katie,
meu temor retornou com toda força. O som de escova era feito por uma espécie
de cílios agregados à parte inferior dos tentáculos quando se moviam pelo chão. O
guincho de alta freqüência emanava de um pequeno orifício na parte inferior
direita da cabeça. Por vários segundos o medo paralisou meus processos mentais.
A medida que a criatura se aproximava, minha reação natural de fuga assumiu o
controle. Infelizmente, nas circunstâncias ela não adiantou nada, pois não havia
para onde correr.
A octoaranha não parou enquanto não chegou a uma distância de uns
meros cinco metros. Eu encostara Katie contra a parede e fiquei de pé entre ela e
a octoaranha. Levantei uma das mãos e novamente houve imensa atividade na
misteriosa lente. Repentinamente, tive uma idéia. Enfiei a mão dentro de meu
traje de vôo e tirei meu computador. Com dedos trêmulos (a octoaranha levantara
dois tentáculos para ficarem na frente da lente — em retrospecto me pergunto se
ela pensou que eu ia tirar uma arma) chamei a imagem de Richard no monitor,
que então mostrei à octoaranha.
Como não fiz nenhum outro movimento, a criatura retornou devagar ao
chão seus dois tentáculos. Ela fixou o monitor durante quase um minuto e
depois, para grande espanto meu, uma onda de cor roxo vivo correu em toda a
volta de sua cabeça, a partir do limiar da reentrância. Esse roxo foi seguido
alguns segundos mais tarde por um desenho como um arco-íris em vermelho,
azul e verde, cada faixa de uma largura diferente, que também saiu da mesma
reentrância e, depois de dar a volta à cabeça, desapareceu na reentrância
paralela depois de quase 360°.
Tanto Katie quanto eu ficamos olhando aparvalhadas. A octoaranha levantou
um de seus tentáculos, apontou para o monitor e repetiu a onda roxa
larga. Alguns momentos depois, como antes, sobreveio o desenho de arco-íris.
“Ela está falando conosco, mamãe”, disse Katie baixinho. “Acho que você
tem razão; mas não tenho idéia do que ela possa estar dizendo.”
Depois de esperar o que me pareceu uma eternidade, a octoaranha começou
a se mover de costas para a porta, com seu tentáculo esticado chamandonos
para que a seguíssemos. Não apareceram mais faixas de cor. Katie e eu nos
demos as mãos e a seguimos, cautelosamente. Ela começou a olhar em volta e
notou as fotos nas paredes pela primeira vez. “Olhe só, mamãe, eles têm retratos
da nossa família.”
Fiz sinal para que se calasse e pedi-lhe que por favor prestasse atenção à
octoaranha. Esta recuara até o túnel e se dirigia agora para o corredor vertical
com os espinhos e as passagens subterrâneas. Era a oportunidade que eu
procurava. Peguei Katie no colo, mandei que se agarrasse a mim com força e corri
pelo túnel afora na máxima velocidade. Meus pés mal tocaram o chão até eu
chegar ao alto da rampa e me ver de volta a Nova York.
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importância, porque “afinal, Deus também nos observa o tempo todo”, tivemos
nossa primeira discussão entre irmãs por motivos religiosos. Katie respondeu
com um “merda”, palavra um tanto desagradável para ser usada por uma menina
de seis anos. A expressão que usou lembrou-me de passar a ter mais cuidado
com minha própria linguagem.
Um dia, no mês passado, levei Richard até a toca das aves, a fim de ver se
refrescaria sua memória. Ele ficou muito assustado tão logo entramos no túnel
que sai do corredor vertical. “Escuro”, ouvi-o resmungar, “eu não posso ver no
escuro, mas eles podem.” Recusou-se a continuar caminhando depois que
passamos pela cisterna de água, de modo que eu o trouxe de volta para nossa
toca.
Richard sabe que Benjy e Patrick são filhos de Michael, e provavelmente
suspeita que Michael e eu vivêssemos como marido e mulher por parte do tempo
em que ele esteve ausente, mas jamais comenta o assunto. Tanto Michael quanto
eu estamos preparados para pedir perdão a Richard e para ressaltar que não
fôramos amantes (a não ser pela concepção de Benjy) antes de ele estar
desaparecido por dois anos. No momento, no entanto, Richard não parece ter
muito interesse no assunto.
Richard e eu temos compartilhado de nossa esteira conjugal desde o dia
em que ele despertou do coma. Temos nos tocado bastante e sido muito
amistosos, mas até há duas semanas não tinha havido sexo. De fato eu começava
a pensar que sexo seria mais uma das coisas apagadas de sua memória, a tal
ponto ele ficara sem reação mesmo a beijos provocantes.
Chegou uma noite, no entanto, em que o velho Richard de repente estava
na cama comigo. É o tipo de coisa que tem acontecido em outras áreas também
— de repente seu antigo espírito, sua energia e inteligência aparecem por um
breve período de tempo em sua plenitude. De qualquer modo, o velho Richard foi
ardente, divertido e imaginativo. Para mim foi o paraíso, pois lembrei-me de níveis
de prazer que enterrara já fazia muito tempo.
Seu interesse sexual continuou por três noites consecutivas, depois foi
embora de modo tão abrupto quanto sua aparição. A princípio, fiquei desapontada
(isso não é bem a natureza humana? A maior parte do tempo queremos
que tudo seja melhor; e quando é o melhor possível, queremos que dure para
sempre), mas agora aceitei que essa faceta de sua personalidade também tem de
passar por um processo de cura.
Na noite passada, Richard computou nossa trajetória pela primeira vez
depois que voltou. Michael e eu ficamos encantados. “Continuamos no mesmo
curso”, anunciou ele com orgulho. “Estamos agora a menos de três anos-luz de
Sirius.”
6 DE JANEIRO DE 2210
Quarenta e seis anos. Meu cabelo agora está quase todo grisalho na frente
e nos lados. Lá na Terra eu estaria debatendo a possibilidade de começar a pintálo.
Aqui em Rama não tem importância.
Estou velha demais para engravidar. É o que deveria dizer à menininha
que está crescendo dentro de meu útero. Fiquei espantada quando percebi que
estava na verdade grávida de novo. O início da menopausa já se anunciava com
suas estranhas ondas de calor e momentos de tontura, com menstruação
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parece exatamente com ele. E eu não tinha realmente qualquer intenção de negar
a genética. Era apenas tão importante para mim conseguir vencer sozinha, o
bastante para provar ao menos para mim mesma que eu era soberba como
mulher e mãe, mesmo que não servisse para ser rainha.
Eu era preta demais para ser a rainha Nicole da Inglaterra, ou até mesmo
Joana d’Arc em uma festa escolar na França. Pergunto-me quantos anos se
passarão até que a cor da pele não seja mais questão crucial para os seres
humanos da Terra. Quinhentos? Mil? O que foi mesmo que disse o americano
William Faulkner — alguma coisa sobre Sambo só ser livre no dia em que todos e
cada um de seus vizinhos acordarem um dia e disserem, tanto para si quanto
para seus amigos, que Sambo é livre. Eu penso que ele está certo. Já verificamos
que preconceito racial não é erradicado por legislação. Ou sequer por educação. A
viagem de cada indivíduo pela vida tem de ter uma epifania, um momento de
verdadeira conscientização, no qual ele (ou ela) compreende, de uma vez por
todas, que Sambo e todo outro indivíduo no mundo que seja de qualquer modo
diferente dele (ou dela) precisa ser livre para que possamos sobreviver.
Quando fiquei no fundo daquele buraco há dez anos, certa de que ia
morrer, perguntei-me que momentos específicos de minha vida eu viveria de novo
se tivesse oportunidade. Aquelas horas com Henrique saltaram-me na mente,
apesar do fato de ele depois ter partido o meu coração. Ainda hoje eu alçaria vôo
novamente com o meu príncipe. Ter experimentado a felicidade total, mesmo que
apenas por alguns minutos ou horas, é ter vivido. Não importa, em face da morte,
que o companheiro de seu grande momento tenha depois traído ou desapontado.
O que é importante é aquela sensação de alegria momentânea tão grande que
você imagina de haver transcendido a Terra.
Embaraçou-se um pouco, naquele buraco, que as lembranças de Henrique
estivessem no mesmo nível que as de meu pai, minha mãe, minha filha. Mas
compreendi desde então que não sou assim tão única ao prezar minhas
lembranças daquelas horas com ele. Cada pessoa tem momentos ou
acontecimentos especiais que são unicamente seus e zelosamente guardados no
coração.
Minha única grande amiga na universidade, Gabrielle Moreau, passou
uma noite com Geneviève e comigo em Beauvois no ano anterior à expedição
Newton. Fazia sete anos que não nos víamos e passamos a maior parte da noite
conversando, principalmente a respeito dos maiores acontecimentos emocionais
de nossas vidas. Gabrielle era muito feliz. Tinha um marido bonitão, sensível e
bem-sucedido, três filhos bonitos e saudáveis, e um belo casarão antigo perto de
Chinon. Mas o momento “mais maravilhoso” de Gabrielle, confiou-me ela com um
sorriso de menina, ocorrera antes que conhecesse seu marido. Ela tinha tido uma
grande paixonite por um famoso astro cinematográfico que certo dia, por acaso,
estava em uma locação em Tours. Gabrielle de algum modo conseguiu encontrarse
com ele em seu quarto de hotel e conversar sozinha com ele durante quase
uma hora. Ela o beijou uma única vez nos lábios e foi embora. E essa era sua
lembrança mais preciosa.
Ah, meu príncipe, completaram-se ontem dez anos desde que o vi pela
última vez. Você está feliz? É um bom rei? Alguma vez pensa na campeã olímpica
preta que se deu a você, seu primeiro amor, com total abandono?
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Você me fez uma pergunta indireta, naquele dia na cancha de esqui, sobre
o pai de minha filha. Neguei-lhe a resposta, sem compreender que minha negação
significava que ainda não o havia perdoado inteiramente. Se me perguntasse
hoje, meu príncipe, eu lhe teria respondido com alegria. Sim, Henricus Rex, rei da
Inglaterra, você é o pai de Geneviève des Jardins. Procure-a, conheça-a, ame os
filhos dela. Eu não posso. Estou a mais de 50 mil bilhões de quilômetros de
distância.
13
30 DE JUNHO DE 2213
Todos estavam excitados demais para poder dormir, a não ser Benjy, que
Deus o abençoe, que simplesmente não compreendia o que lhe estávamos
contando. Simone já explicou a ele muitas vezes que nós moramos dentro de uma
gigantesca espaçonave cilíndrica — até mesmo mostrou a ele na tela negra vários
aspectos de Rama tomados pelos sensores externos — mas o conceito continua a
escapar a ele.
Quando o apito soou ontem, Richard, Michael e eu ficamos nos olhando
por vários segundos. Já fazia tanto tempo desde que o ouvíramos. E então
começamos todos a falar ao mesmo tempo. As crianças, inclusive a pequena Ellie,
faziam mil perguntas e sentiam que nós estávamos excitados. Nós sete subimos
imediatamente para a superfície, Richard e Katie correram para o mar sem
esperar o resto da família. Simone caminhou com Benjy, Michael com Patrik. Eu
carreguei Ellie porque suas perninhas não conseguiam se mexer com suficiente
rapidez.
Katie estourava de entusiasmo ao correr de volta para nos saudar. “Venham,
venham”, disse ela, agarrando Simone pela mão. “Vocês têm de ver. É
espantoso. Às cores são fantásticas.”
E eram mesmo. Arco-íris de luz pipocavam de um chifre para outro,
enchendo a noite ramaiana com uma exibição impressionante. Benjy ficou
olhando para o sul com a boca aberta. Depois de vários segundos, ele sorriu e se
virou para Simone. “É lin-do!”, disse ele lentamente, muito prosa de usar a
palavra.
“É sim, Benjy”, respondeu Simone. “Muito lindo.”
“Mui-to lin-do”, repetiu Benjy, virando-se de novo para as luzes. Nenhum
de nós disse muita coisa enquanto a exibição durou. Mas depois que voltamos
para a toca conversamos horas a fio. É claro que alguém tinha de explicar tudo
para as crianças. Simone era a única já nascida ao tempo da última manobra, e
ainda era um bebê. Richard foi o explicador-mor. O apito e a exibição de luzes
encheram-no de energia — ele ficou mais próximo do Richard antigo naquela
noite do que em qualquer outro momento desde a sua volta — e foi tão divertido
quanto informativo ao contar tudo o que sabíamos a respeito de apitos,
espetáculos de luzes e manobras ramaianas.
“Você acha que as octoaranhas vão voltar para Nova York?”, indagou
Katie, cheia de esperanças.
“Não sei”, disse Richard. “Mas é positivamente uma possibilidade.”
Katie passou os quinze minutos seguintes contando a todo mundo, pela
enésima vez, nosso encontro com a octoaranha há quatro anos. Como sempre, ela
enfeitou e exagerou alguns detalhes, principalmente na parte de seu solo na
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companhia.
8 DE SETEMBRO DE 2213
Não há maneira de descrever satisfatoriamente os estonteantes acontecimentos
dos últimos cinco dias. A língua não tem adjetivos suficientemente
superlativos para captar o que vimos e experimentamos. Michael chegou a
comentar que o céu poderá parecer pálido se comparado às maravilhas que
testemunhamos.
Neste instante, nossa família está a bordo de uma pequena nave de transporte
sem piloto, nada maior do que um ônibus urbano na Terra, que nos está
levando a grande velocidade da estação intermediária para um destino ignorado.
A estação intermediária com forma de charuto ainda está visível, porém mal e
mal, através da janela abobadada na parte traseira da nave. À nossa esquerda,
nosso lar por treze anos, a espaçonave cilíndrica Rama, tomou direção
ligeiramente diferente da nossa. Ela partiu da estação intermediária umas poucas
horas depois de nós, iluminada como uma árvore de Natal pelo lado de fora, e no
presente momento estamos a uns duzentos quilômetros dela.
Há quatro dias e onze horas nossa espaçonave Rama parou em relação à
estação intermediária. Éramos o terceiro veículo de uma fila espantosa. Na nossa
frente estava uma espécie de estrela-do-mar giratória, com mais ou menos um
décimo do tamanho de Rama, e também uma vastíssima roda, com um módulo
central e raios, que entrou na estação algumas horas antes de nós chegarmos.
A estação em si, afinal, era oca. Quando a roda imensa atingiu o centro da
estação intermediária, guindastes e outros elementos móveis avançaram para
recebê-la e colocá-la em seu lugar. Um conjunto de três veículos especiais de
formas inusitadas (um parecia um balão, outro um dirigível e o terceiro um
batisfério da Terra) penetrou na roda a partir da estação. Embora não
pudéssemos ver o que estava acontecendo dentro da roda, vimos os veículos
especiais saírem, um de cada vez, em intervalos irregulares, nos dois dias
seguintes. Cada veículo foi recebido por uma nave de transporte, como a em que
estávamos viajando agora, porém maior. Essas naves estavam estacionadas no
escuro na parte direita da estação, e avançavam para a posição correta meia hora
antes do encontro.
Tão logo as naves de transporte ficavam carregadas, sempre decolavam no
sentido oposto ao de nossa fila. Cerca de uma hora depois do último veículo sair
da roda e da última nave de transporte partir, as várias peças de equipamento
mecânico que foram ligadas à roda retraíram-se e a grande espaçonave circular
manobrou suavemente para sair da estação intermediária.
A estrela-do-mar à nossa frente já entrara na estação e estava sendo atendida
por um outro conjunto de guindastes e outros engates, quando um apito
alto convocou-nos para a superfície de Rama. O apito foi seguido por um
espetáculo de luzes na Concavidade Sul. Entretanto, essa exibição foi
completamente diferente das que víramos antes. O Grande Chifre foi o astro do
novo show. Anéis circulares de cor formaram-se perto de sua ponta e depois
navegaram lentamente para o norte, concentrando-se no eixo giratório de Rama.
Os anéis eram imensos. Richard calculou que tivessem pelo menos um
quilômetro de diâmetro, com quarenta metros de espessura.
A escura noite ramaiana foi iluminada por até oito desses anéis a um só
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Nós achamos que os aviões chatos estavam carregando as octos, não foi, papai?”
Richard concordou com um movimento de cabeça.
Eu respirei fundo. “Tudo bem, então. Agasalhem-se, todos. E vamos.
Carreguem as sacolas primeiro. Richard, Michael e eu faremos depois uma
segunda viagem para buscar o computador.”
Uma hora depois estávamos todos num veículo. Tínhamos subido as
escadas de nossa toca pela última vez. Richard apertou um botão vermelho que
piscava e nosso helicóptero ramaiano (chamo-o assim porque foi direto para
cima, não porque tivesse uma pá rotativa) levantou do chão.
Nos primeiros cinco minutos, a rota do nosso vôo foi lenta e vertical. Uma
vez que nos aproximamos do eixo giratório de Rama, onde não havia gravidade e
muito pouca atmosfera, o veículo adejou no mesmo lugar por dois ou três
minutos enquanto modificava sua estrutura externa.
A derradeira visão de Rama foi espantosa. A muitos quilômetros abaixo, a
ilha em que morávamos não passava de uma pequena mancha marromacinzentada
no meio do mar congelado que circundava o cilindro gigante. Pude
ver os chifres da abóbada sul mais claramente do que nunca, aquelas longas e
surpreendentes estruturas, apoiadas sobre possantes contrafortes, maiores do
que pequenas cidades na Terra, todas apontadas direto para o norte.
Senti-me estranhamente comovida, enquanto nossa nave começou a
mover-se novamente. Afinal, Rama tinha sido nosso lar por treze anos, onde eu
dera à luz cinco crianças. Lá eu também amadureci, lembro-me de ter pensado, e
é possível que finalmente me tenha tornado a pessoa que sempre quis ser.
Havia muito pouco tempo para remoer o passado. Logo que a alteração na
configuração externa terminou, nosso veículo projetou-se para fora do eixo
giratório, rumo ao norte, em questão de poucos minutos. Tínhamos deixado
Rama. Sabia que jamais voltaríamos. Enxuguei as lágrimas enquanto nosso trem
partia da estação.
DENTRO DO NODO
1
Nicole dançava. Seu parceiro na valsa era Henry. Eram jovens, estavam
muito apaixonados e a música encantadora enchia o salão de baile enquanto uns
vinte pares moviam-se ritmadamente pelo salão. Nicole estava estonteante em seu
longo vestido de baile branco. Os olhos de Henry estavam presos nos dela. Ele a
segurava com firmeza pela cintura, porém ela sentia-se completamente livre.
Seu pai era uma das pessoas de pé em torno da pista de dança. Estava
encostado sobre a coluna maciça que subia uns vinte pés até o teto abobadado.
Ele acenava e sorria enquanto Nicole dançava pelos braços de seu príncipe.
A valsa parecia durar para sempre. Quando finalmente acabou, Henry
tomou suas mãos e disse a Nicole que tinha algo muito importante para
perguntar. Naquele exato momento, o pai de Nicole tocou suas costas. “Temos de
ir. É muito tarde”, sussurrou ele.
Nicole fez uma reverência para o príncipe, mas Henry relutava em soltar
suas mãos. “Amanhã”, disse ele. “Conversaremos amanhã.” Ele soprou-lhe um
beijo enquanto ela deixava o salão.
Quando Nicole saiu era quase de manhã. O sedã de seu pai estava esperando.
Momentos depois, enquanto corriam estrada abaixo junto ao Loire, ela
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vestia uma blusa e jeans. Nicole agora era mais jovem, uns quatorze anos, e seu
pai dirigia mais rápido que o normal. “Não queremos nos atrasar”, disse ele. “A
representação começa às oito horas.”
Diante deles agigantava-se Chateau d’Ussé. Com suas muitas torres e
cúspides, o castelo tinha servido de inspiração à história original de “A Bela
Adormecida”. Ficava a apenas uns poucos quilômetros rio abaixo de Beauvois e
sempre tinha sido uns dos lugares favoritos de seu pai.
Era a noite da representação anual em que a história de “A Bela Adormecida”
era apresentada ao vivo diante de uma platéia. Pierre e Nicole iam todos os
anos. A cada vez, Nicole torcia desesperadamente para que Aurora escapasse da
roca mortal que a deixaria em coma. E a cada ano ela chorava lágrimas
adolescentes quando o beijo do belo príncipe acordava a bela de seu sono mortal.
A representação tinha terminado, o público já tinha ido embora. Nicole
estava subindo pelos degraus circulares que levavam à torre onde supostamente
a verdadeira Bela Adormecida tinha adormecido. A adolescente corria pelos
degraus, rindo, deixando seu pai bem para trás.
O quarto de Aurora ficava do outro lado da janela comprida. Nicole
prendeu a respiração e olhou o suntuoso mobiliário. A cama tinha um dossel, os
toucadores eram ricamente decorados. Tudo no quarto era enfeitado de branco.
Era magnífico. Num relance, Nicole voltou seus olhos para a moça que dormia e
teve um sobressalto. Era ela, Nicole, deitada na cama num vestido branco!
Seu coração bateu furiosamente quando ela ouviu a porta se abrir e passos
vindo em direção ao seu quarto. Seus olhos permaneceram fechados enquanto
o primeiro aroma de um hálito de menta atingiu seu nariz. É ele, disse
ela, excitada, para si mesma. Ele a beijou, gentilmente, nos lábios. Nicole sentiuse
como se voasse na mais macia das nuvens. Havia música em todo o seu redor.
Ela abriu os olhos e viu o rosto sorridente de Henry a apenas alguns centímetros.
Ela estendeu seus braços para ele, que novamente a beijou, dessa vez com
paixão, como um homem beija uma mulher.
Nicole retribuiu, sem restrições, deixando seu beijo dizer que ela lhe
pertencia. Mas ele se esquivou. Seu príncipe particular tinha o cenho franzido.
Ele apontou para o rosto dela, afastou-se vagarosamente e deixou o quarto.
Mal começara a chorar quando um som distante intrometeu-se no seu
sonho. Uma porta se abriu, luz entrou pelo quarto. Nicole piscou, depois fechou
os olhos novamente para protegê-los da luz. O intrincado conjunto de fios
ultrafinos e semelhantes a plásticos preso a seu corpo reenrolou-se
automaticamente nos recipientes a cada lado da esteira de lona na qual estivera
dormindo.
Nicole despertou bem devagar. O sonho tinha sido extremamente vivido. A
sensação de infelicidade não passou tão rápido quanto o sonho. Ela tentou
espantar seu desespero conscientizando-se de que nada do que havia sonhado
era real.
“Você vai ficar deitada aí para sempre?” Sua filha Katie, que estivera
dormindo do seu lado esquerdo, já estava de pé e reclinada sobre ela.
Nicole sorriu. “Não”, disse ela, “mas admito que estou um pouco mais que
ligeiramente grogue. Estava no meio de um sonho... Por quanto tempo nós
dormimos dessa vez?”
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“Um dia a menos do que cinco semanas”, respondeu Simone, que estava
do outro lado. Sua filha mais velha estava sentada, penteando distraidamente
seu cabelo que se embaraçara durante o teste.
Nicole espiou para o relógio, verificou que Simone estava certa e sentouse.
Bocejou. “E então, como se sentem?”, disse ela para as duas meninas.
“Cheia de energia”, respondeu sorrindo Katie, de onze anos. “Quero correr,
pular, brigar com Patrick... Espero que este tenha sido nosso último sono longo.”
“A Águia disse que seria”, respondeu Nicole. “Eles esperam ter informação
suficiente agora.” Sorriu. “A Águia diz que as mulheres são mais difíceis de
entender — por causa das violentas variações mensais em nossos hormônios.”
Nicole levantou, espreguiçou-se e deu um beijo em Katie. Então relaxou e
abraçou Simone. Apesar de não ter ainda quatorze anos, Simone era quase tão
alta quanto Nicole. Era uma jovem notável, com o rosto de um marrom escuro,
olhos meigos e sensíveis. Simone sempre parecia calma e serena em contraste
marcante com a inquieta e impaciente Katie.
“Por que Ellie não veio conosco para o teste?”, perguntou Katie ligeiramente
queixosa. “Ela também é menina, mas parece que nunca tem de fazer
nada.”
Nicole passou o braço pelo ombro de Katie enquanto as três iam para a
porta e para a luz. “Ela só tem quatro anos, Katie, e de acordo com a Águia, Ellie
é muito pequena para dar-lhes qualquer informação fundamental de que eles
ainda necessitem.”
No pequeno hall iluminado, adjacente ao quarto em que haviam dormido
por cinco semanas, vestiram seus uniformes moldados no corpo, puseram seus
capacetes transparentes e as sapatilhas que prendiam seus pés ao chão. Nicole
verificou cuidadosamente as roupas das duas meninas antes de ativar a porta
externa do compartimento. Não precisava se ter preocupado, pois esta não abriria
se alguma delas não estivesse devidamente preparada para mudanças
ambientais.
Se Nicole e suas filhas já não tivessem visto o grande salão do lado de fora
de seu compartimento várias vezes, teriam parado perplexas para observá-lo, por
vários minutos. Abria-se diante delas um salão longo, com cem metros ou mais
de comprimento e cinqüenta de largura. O teto acima delas, coalhado de filas de
luzes, tinha uns cinco metros de altura. O cômodo parecia um misto de sala de
cirurgia de um hospital com uma fábrica terráquea de semicondutores. Nem
paredes e nem cubículos dividiam-no em repartições, porém suas dimensões
retangulares eram distribuídas com grande clareza entre tarefas diferentes. O
salão era pleno de atividade — os robôs ou analisavam dados de um conjunto de
testes ou então já preparavam algum outro. Em torno dos limites do salão havia
compartimentos como aquele em que Nicole, Simone e Katie dormiram por cinco
semanas, nos quais eram realizadas “experiências”.
Katie caminhou até o compartimento mais próximo à sua esquerda. Era
um pouco recuado, no canto, e ficava suspenso por dois eixos, um na parede e
outro no teto. Uma tela semelhante a um monitor, construída ao lado da porta
metálica, mostrava uma vasta coleção do que se presumia serem dados, numa
bizarra escrita de linha cuneiforme.
“Nós não ficamos nesta, da última vez?”, perguntou Katie, apontando para
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o compartimento. “Não foi nesse lugar que dormimos naquela espuma branca
esquisita e sentimos toda a pressão?”
Sua indagação foi transmitida para dentro dos capacetes de sua mãe e
irmã. Nicole e Simone acenaram com a cabeça, depois juntaram-se a Katie e
ficaram olhando para aquela tela ininteligível.
“Seu pai pensa que eles estão tentando um modo de nos fazer dormir
durante todo o regime de aceleração, mesmo que dure vários meses”, retrucou
Nicole. “A Águia nem confirma e nem nega sua conjectura.”
Embora as três mulheres tivessem sido submetidas, juntas, a quatro testes
separados naquele laboratório, nenhuma delas jamais vira qualquer forma de
vida ou inteligência, a não ser pela cerca de meia dúzia de alienígenas mecânicos
que, ao que parecia, eram os encarregados de tudo. Os humanos chamavam
aqueles seres de “robôs de blocos” porque, a não ser por seus “pés” cilíndricos
que os permitia rolar por todo o chão, as criaturas eram todas feitas de pedaços
sólidos e retangulares parecidos com aqueles blocos com que as crianças brincam
na Terra.
“Por que é que você acha que nunca vimos um dos Outros?”, perguntou
Katie. “Quero dizer, aqui. Nós os vemos por um ou dois segundos no Tubo, e é só.
Nós sabemos que eles estão ali — não somos os únicos a sermos testados.”
“O salão é programado com o maior cuidado”, respondeu a mãe, “e é óbvio
que ninguém quer que nós vejamos os outros, a não ser de passagem.”
“Mas por quê?”, insistiu Katie.
“Desculpe”, interrompeu-a Simone. “Mas acho que o Bloco Maior está
vindo nos visitar.”
O maior dos robôs de bloco geralmente ficava na área de controle quadrada
no centro do salão, monitorando todas as experiências realizadas. No
momento, ele avançava na direção das três por uma das passagens que tornavam
o salão todo quadriculado.
Katie caminhou até um outro compartimento, a cerca de vinte metros de
distância. Pelo monitor ativo que ficava do lado de fora, podia saber que uma
experiência estava sendo realizada. De repente, ela bateu com bastante força no
metal com sua mão enluvada. “Katie!”, gritou Nicole.
“Pare com isso.” O som partiu do Bloco Maior quase ao mesmo tempo. Ele
agora estava a uns cinqüenta metros e aproximava-se rapidamente.
“Não deve fazer isso”, disse o robô em perfeito inglês.
“E o que é que você vai fazer por causa disso?”, disse Katie em tom
desafiador, quando o Bloco Maior, ignorando Nicole e Simone totalmente, tomou
a direção da menininha. Nicole cruzou correndo, no intuito de proteger a filha.
“Agora têm de sair”, disse o Bloco Maior, pairando ameaçador a apenas
um par de metros de Nicole e Katie. “O seu teste acabou. A saída é ali, onde
aquelas luzes estão piscando.”
Nicole puxou com firmeza o braço de Katie e a menina, com relutância,
acompanhou a mãe na direção da saída. “Mas o que teriam feito eles”, insistia
Katie, teimosa, “se nós resolvêssemos ficar aqui até acabar uma outra experiência?
Quem sabe? Talvez uma de nossas octoaranhas esteja ali dentro neste
momento. Por que será que nunca temos permissão de nos encontrar com
ninguém mais?”
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elas e as humanas não tiveram mais do que um segundo para olhar para os
ocupantes do veículo que se dirigia para o Módulo de Engenharia.
2
A festa do reencontro foi um sucesso. Benjy abraçou sua amada Simone
no momento em que ela entrou no apartamento, e em menos de um minuto Katie
já estava embolada com Patrick no chão.
“Viu”, disse ela, “ainda consigo ganhar de você.”
“Mas só um pouquinho”, reagiu Patrick. “Eu estou ficando mais forte, e é
melhor você se cuidar.”
Nicole abraçou tanto Richard quanto Michael antes que a pequena Ellie
corresse e pulasse em seus braços. Já era noite, duas horas após o jantar,
segundo o relógio de 24 horas adotado pela família, e Ellie já estava quase pronta
para sé deitar quando a mãe e as irmãs chegaram. A menina puxou a mãe com
muito orgulho pelo corredor até seu quarto, para mostrar que agora já sabia ler
“gato”, “cão” e “menino”.
Os adultos deixaram Patrick ficar acordado até cair de exausto, quando
Michael o carregou para sua cama e Nicole o foi cobrir. “Que bom que você
voltou, mamãe; estava com muitas saudades” foram suas últimas palavras
sonolentas.
“Eu também senti; mas acho que não vamos mais ficar longe assim tanto
tempo”, respondeu Nicole.
“Espero que não; eu gosto quando você está aqui.”
Lá pela uma hora já estavam todos dormindo, menos Nicole, que não
estava cansada. Afinal, acabara de passar cinco semanas dormindo. Depois de
ficar deitada ao lado de Richard, inquieta, por meia hora, resolveu fazer um
passeio.
Embora o apartamento deles propriamente dito não tivesse janelas, o
pequeno átrio logo fora do hall de entrada tinha uma janela que oferecia uma
deslumbrante vista dos dois outros vértices do Nodo. Nicole caminhou para o
átrio, vestiu seu traje espacial e parou junto à porta exterior, que não se abriu.
Sorrindo para si mesma, pensou: Katie talvez esteja certa. Talvez sejamos apenas
prisioneiros aqui. Ficara claro desde o início de sua estada ali que a porta exterior
era trancada intermitentemente. A Águia explicara que era “necessário”, a fim de
impedir que eles vissem coisas “que não poderiam compreender” o computador de
Richard. O veículo tornou a partir imediatamente, assustando até mesmo os
adultos com a rapidez de seu desaparecimento. Menos de um minuto mais tarde
eles ouviram a primeira voz sem corpo.
“Bem-vindos”, dissera esta em tom destituído de modulações. “Vocês
chegaram ao Módulo de Habitação. Sigam diretamente em frente e parem ao
atingir a parede cinzenta.”
“De onde vem essa voz?”, perguntou Katie, cuja voz expressava o medo
que todos estavam sentindo.
“De todo lugar”, respondeu Richard. “Ela está em cima, em volta, e até
embaixo de nós”; e todos ficaram examinando as paredes e o teto.
“Mas como é que ela sabe inglês?”, indagou Simone. “Há mais gente por
aqui?”
Richard deu um riso nervoso. “É pouco provável”, respondeu. “É possível
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que este lugar tenha estado em contato com Rama, de algum modo, e tenha um
algoritmo central de línguas. Fico imaginando...”
“Por favor, avancem”, interrompeu a voz. “Estão em um complexo de
transporte. O veículo que os transportará a seu setor do módulo está aguardando
em um nível mais abaixo.”
Levaram alguns minutos até chegar à parede cinzenta. As crianças jamais
haviam estado em imponderabilidade não confinada antes. Katie e Patrick
pularam da plataforma e deram cambalhotas e parafusos no ar. Benjy, vendo a
farra, tentou copiar suas travessuras, mas infelizmente não conseguiu descobrir
como usar o teto e as paredes para voltar à plataforma. Já estava completamente
desorientado quando Simone o resgatou.
Quando toda a família e sua bagagem ficaram devidamente posicionadas
em frente à parede, uma larga porta abriu-se e eles entraram em um cômodo
pequeno. Trajes especiais bem justos, capacetes e sapatilhas estavam cuidadosamente
arrumados sobre um banco. “O centro de transporte e a maioria das
áreas comuns aqui no Nodo”, disse a voz em perfeito monocórdio, “não têm
atmosfera adequada à sua espécie. Terão de usar essas roupas, a não ser que
estejam dentro de seu apartamento.”
Quando já estavam todos vestidos, abriu-se uma porta do outro lado da
sala e eles entraram no salão principal do centro de transporte do Módulo de
Habitação. A estação era idêntica à que mais tarde conheceriam no Módulo de
Engenharia. Nicole e sua família desceram dois andares, segundo instruções da
voz, depois seguiram pela plataforma periférica circular até onde seu “ônibus” os
aguardava. O veículo fechado era confortável e bem iluminado, mas não puderam
olhar para fora durante a hora e meia em que ele atravessou um labirinto de
passagens. Finalmente, o ônibus parou e sua parte superior abriu-se.
“Tomem o saguão à sua esquerda”, uma outra voz, do mesmo tipo,
instruiu-os tão logo os oito pisaram no chão metálico. “O saguão divide-se em
dois corredores depois de mais ou menos quatrocentos metros. Tomem o caminho
à sua direita e parem em frente à terceira marca quadrada à sua esquerda. É a
porta de seu apartamento.”
Patrick saiu correndo por um dos saguões. “Saguão errado”, anunciou a
voz, sem qualquer inflexão. “Volte à plataforma e vire para o primeiro saguão à
sua esquerda.”
Não havia nada para ver na caminhada da plataforma até seu novo apartamento.
Nos meses seguintes eles percorreriam o mesmo caminho muitas vezes,
indo para a sala de exercícios ou, vez por outra, para teste no Módulo de
Engenharia, mas continuariam a não ver nada senão paredes, tetos e as marcas
quadradas que viriam a identificar como portas. O lugar era obviamente todo
monitorado. Nicole e Richard tiveram a certeza, desde o início, de que alguns,
talvez muitos, dos apartamentos em sua área eram ocupados por alguém ou
alguma coisa, porém jamais viram qualquer dos Outros nos corredores.
Depois de encontrar e atravessar a porta especificada como sendo de seu
apartamento, Nicole e sua família tiraram as roupas especiais no átrio e guardaram-
nas em armários concebidos para esse determinado fim. As crianças
sucediam-se para olhar pela janela para os outros dois módulos esféricos enquanto
esperavam a abertura da porta interior. Alguns minutos mais tarde viram
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quê? Por que será que alguém trouxe todos esses seres para este mundo artificial?
Nicole não tinha respostas para tais indagações infinitas. Como sempre,
elas lhe deram uma poderosa consciência de sua própria insignificância. Seu
impulso imediato foi o de voltar para dentro e abraçar um de seus filhos. Riu-se
de si mesma. Ambas as imagens são indicadores verdadeiros de nossa posição no
cosmos, pensou. Somos ao mesmo tempo desesperadamente importantes para
nossos filhos e absolutamente nada no esquema maior das coisas. É necessário
uma grande sabedoria para perceber que não há qualquer incoerência entre esses
dois pontos de vista.
3
O desjejum foi uma festa. Eles pediram quase um banquete aos
cozinheiros excepcionais que preparavam sua comida. Os criadores de seu
apartamento tiveram a consideração de equipá-lo com fornos variados e um
refrigerador completo, no caso de quererem preparar suas próprias refeições a
partir de matérias-primas. No entanto, os cozinheiros alienígenas (ou robôs) eram
tão bons e treinados tão rapidamente que Nicole e sua família quase nunca
preparavam
suas refeições — só apertavam o botão branco e faziam seu pedido.
“Quero panquecas hoje”, anunciou Katie na cozinha.
“Eu também”, disse Patrick, seu eterno companheiro.
“Que espécie?”, entoou a voz. “Temos quatro tipos diferentes em nossa
memória. Temos trigo sarraceno, leite desnatado...”
“Leite desnatado”, interrompeu Katie. “Três ao todo.” Mas olhando o
irmãozinho, acrescentou: “É melhor trazer quatro.”
“Com manteiga e xarope de bordo”, gritou Patrick.
“Quatro panquecas com manteiga e xarope de bordo”, disse a voz. “É só
isso?
“Um suco de maçã e um de laranja também”, disse Katie, depois de
negociações com Patrick.
“Seis minutos e dezoito segundos”, disse a voz.
Quando a refeição ficou pronta, a família se reuniu em torno da mesa
redonda da cozinha. As crianças menores contaram a Nicole o que tinham feito
durante sua ausência. Patrick sentia particular orgulho de seu novo recorde para
a corrida de cinqüenta metros na sala de exercícios. Benjy contou até dez com
grande esforço, e todos aplaudiram. Tinham acabado o desjejum e estavam
tirando os pratos da mesa quando a campainha da porta tocou.
Os adultos entreolharam-se e Richard, dirigindo-se ao console do controle,
ligou o monitor do vídeo. A Águia estava de pé do lado de fora.
“Espero que não seja outro teste”, disse Patrick com espontaneidade.
“Não... não, duvido”, retrucou Nicole, dirigindo-se à entrada. “É mais
provável que esteja aqui para nos dar os resultados dos últimos que fizemos.”
Nicole respirou fundo antes de abrir a porta. Não importava quantas vezes
encontrasse a Águia, seu nível de adrenalina sempre aumentava em presença
dela. Por que seria? Seria seu avassalador conhecimento que a assustava? Ou o
poder que tinha sobre eles? Ou a simples perplexidade de sua existência?
A Águia cumprimentou-a com o que ela começava a identificar como um
sorriso. “Posso entrar?” disse ela em tom agradável. “Gostaria de falar com a
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vestimenta especial.”
A Águia começou a falar tão logo eles se sentaram na grande sala de
conferências do outro lado do hall. “Desde nosso primeiro encontro que vocês
vêm me fazendo repetidas perguntas sobre o que estariam fazendo aqui, e não
lhes tenho dado respostas diretas. Agora que terminou seu último teste de sono
— com grande sucesso, posso acrescentar — fui autorizada a informá-los a
respeito da próxima fase da sua missão.”
“Tive igualmente permissão para dizer-lhes alguma coisa a meu respeito.
Como todos vocês já suspeitavam, eu não sou uma criatura viva — ao menos não
do modo pelo qual vocês o definem.” A Águia riu-se. “Fui criada pela inteligência
que governa o Nodo como interface com vocês em questões delicadas. Nossas
primeiras observações sobre seu comportamento indicavam relutância da parte
de vocês para interagir com vozes sem corpo. Já fora decidido criar-me, ou
alguma coisa semelhante, como emissário junto à sua família quando você, sr.
Wakefield, quase provocou gravíssimo caos neste setor por tentar fazer uma visita
não programada e não aprovada pelo Módulo de Administração. Meu
aparecimento naquele momento foi concebido para evitar novos comportamentos
inconvenientes.”
“Nós agora entramos”, continuou a Águia após hesitação apenas momentânea,
“no período mais importante de sua estada aqui. A nave espacial que
vocês chamam de Rama está no Hangar passando por uma grande reforma no
equipamento e no desenho de engenharia. Vocês humanos tomarão parte, agora,
no processo do novo desenho, pois alguns de vocês irão retornar, com Rama, ao
sistema solar de que se originam.”
Richard e Nicole tentaram interrompê-lo. “Deixem-me acabar, primeiro”,
disse a Águia. “Preparamos meus comentários muito cuidadosamente de modo a
cobrir por antecipação suas indagações.”
O homem-pássaro alienígena fixou cada um dos três humanos em torno
da mesa antes de continuar, em ritmo um pouco mais lento. “Notem que eu não
disse que irão voltar para a Terra. Se o plano enunciado tiver sucesso, aqueles de
vocês que voltarão irão interagir com outros seres humanos de seu sistema solar,
porém não em seu planeta natal. Só se houver necessidade de algum desvio do
plano básico é que vocês efetivamente voltarão à Terra.
“Notem que só alguns de vocês irão voltar sra. Wakefield”, disse a Águia
olhando diretamente para Nicole, “você positivamente irá viajar novamente em
Rama. Essa é uma das exigências que incluímos na missão. Deixaremos que você
e o resto de sua família decidam quem a acompanhará na viagem. Pode ir sozinha
se preferir, deixando os outros aqui no Nodo, ou poderá levar alguns dos outros.
No entanto, não poderão ir todos em Rama. Ao menos um par reprodutor tem de
permanecer aqui no Nodo — para garantir certos dados para nossa enciclopédia,
no caso pouco provável de a volta da missão não ser bem-sucedida.
“O objetivo primordial do Nodo é catalogar formas de vida nesta parte da
galáxia. Formas de vida que viajem no espaço têm a mais alta prioridade, e
nossas especificações exigem que coletemos vastas quantidades de dados sobre
cada uma e todas as espécies que viajam no espaço que encontramos. A fim de
cumprir tal tarefa nós elaboramos, ao longo de centenas de milhares de anos
pelas suas medidas de tempo, um método de coleta de tais dados que minimiza a
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está falando?”
Simone respirou fundo. “Quero ficar no Nodo com o tio Michael. Eu serei
mulher dele e nós seremos o “par reprodutor” da Águia. Ninguém mais precisa
ficar, porém Michael e eu ficaríamos muito contentes se Benjy ficar conosco,
também...”
“O quê?” gritou Richard, estupefato. “Seu tio Michael tem setenta e dois
anos! Você ainda nem fez catorze. É um desatino, é ridículo...” Repentinamente,
ele ficou em silêncio.
Aquela adolescente tão madura que era sua filha sorriu. “Desatino maior
do que o da Águia?” replicou ela. “Mais ridículo do que o fato de nós termos
viajado oito anos-luz da Terra para encontrarmos um gigantesco triângulo
inteligente que agora resolveu mandar alguns de nós de volta na direção oposta?”
Nicole encarou Simone com respeito e admiração. Não disse nada, mas
esticou os braços e deu um grande abraço na filha, com os olhos rasos de
lágrimas.
“Está tudo bem, mamãe”, disse Simone depois que o abraço acabou. “Logo
que vocês se refizerem do choque inicial, vão compreender que o que eu estou
sugerindo é de longe a melhor solução. Se você e Papai fizerem a viagem de volta
juntos — como creio que devem — então ou Katie ou Ellie ou eu teremos de ficar
aqui para um acasalamento com Patrick, ou Benjy, ou tio Michael. A única
combinação que é geneticamente sólida seria entre Katie ou eu e o tio Michael.
Eu já examinei todas as possibilidades. Michael e eu somos muito unidos. Temos
a mesma religião. Se ficarmos aqui e nos casarmos, então cada uma das outras
crianças fica livre para escolher. Podem ficar aqui conosco ou voltar ao sistema
solar com você e papai.”
Simone pousou a mão no braço do pai. “Papai, eu sei que sob muitos
aspectos isto tudo será mais difícil para você do que para mamãe. Eu ainda não
mencionei minha idéia ao tio Michael. Ele por certo não a sugeriu. Se você e
mamãe não me derem seu apoio, então o plano não pode funcionar. Já vai ser
suficientemente difícil para Michael aceitar esse casamento, mesmo que vocês
não façam objeções.”
Richard sacudiu a cabeça. “Você é espantosa, Simone.” Ele a abraçou e
beijou. “Por favor, deixe-nos pensar um pouco sobre o assunto. Prometa não dizer
uma palavra mais sobre isso enquanto sua mãe e eu não tivermos a oportunidade
de conversar.”
“Prometo”, disse Simone. “Muito obrigada a vocês dois. Eu amo vocês”,
acrescentou ela junto à porta do quarto.
Ela se virou e caminhou pelo hall iluminado. Seus longos cabelos negros
quase lhe alcançavam a cintura. Você se tornou uma mulher, pensou Nicole,
observando
o gracioso andar de Simone. E não apenas fisicamente. Você tem uma
maturidade muito além de sua idade. Nicole ficou imaginando Simone e Michael
como marido e mulher e ficou surpresa por a idéia não parecer merecer objeções.
Pensando bem, disse Nicole para si mesma, ao lhe ocorrer que depois dos
protestos iniciais Michael O’Toole ficaria muito feliz, a sua idéia talvez seja a
menos insatisfatória de todas as possíveis escolhas em uma situação difícil.r
Simone não se desviou de sua intenção nem mesmo quando Michael fez
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violentas objeções ao que ele resolveu chamar o “martírio a que ela se propunha”.
Ela explicou a ele, pacientemente, que seu casamento com ele era o único
possível já que ele e Katie eram, na avaliação de todos, personalidades
incompatíveis, e, fosse como fosse, Katie ainda era uma menina, um ano ou
dezoito meses distante da maturidade sexual. Será que ele preferiria que ela se
casasse com um de seus meio-irmãos, praticando incesto? Ele respondeu que
não.
Michael concordou quando viu que não havia outras escolhas viáveis, e
que nem Richard e nem Nicole levantaram maiores objeções ao casamento.
Richard, é claro, formulou sua aprovação com a frase “nestas circunstâncias
nada usuais”, porém Michael percebeu que o pai de Simone havia ao menos em
parte aceito a idéia de sua filha de treze anos casar-se com um homem velho o
bastante para ser seu avô.
Em uma semana tudo estava decidido, com a conivência das crianças,
com Katie, Patrick e Ellie indo fazer a viagem de retorno em Rama com Richard e
Nicole. Patrick estava relutante em deixar seu pai, porém Michael O’Toole com
muita elegância concordou que seu filho de seis anos provavelmente teria uma
vida “mais interessante e gratificante” se ficasse com o resto da família. Restava
apenas Benjy. O adorável menino, com oito anos cronológicos mas mentalmente
com idade equivalente a três anos, foi informado de que ele seria muito bemvindo
tanto em Rama quanto no Nodo. Ele mal compreendia o que estava para
acontecer com sua família, e por certo não estava preparado para fazer opção tão
momentosa. A decisão o assustava e confundia; começou a mostrar-se aflito e
caiu em profunda depressão. Como resultado, a família adiou as discussões
sobre o futuro de Benjy para momento não definido, no futuro.
“Nós estaremos ausentes por um dia e meio, talvez dois”, disse a Águia a
Michael e às crianças. “Rama está sendo recondicionada em uma instalação a
cerca de dez mil quilômetros daqui.”
“Mas eu também quero ir”, disse a petulante Katie. “Eu também tenho
algumas boas idéias para o módulo da Terra.”
“Nós a envolveremos em fases mais adiantadas do processo”, garantiu
Richard a Katie. “Teremos um centro de desenho bem aqui junto a nós, na sala
de conferências.”
Eventualmente Richard e Nicole completaram suas despedidas e juntaram-
se à Águia no saguão. Vestiram seus trajes especiais e cruzaram para a área
comunitária do setor. Nicole podia ver que Richard estava excita”do. “Você adora
aventuras, não é, querido?”, disse ela.
Ele fez que sim. “Creio que foi Goethe quem disse que tudo o que o ser
humano deseja pode ser dividido em quatro componentes — amor, aventura,
poder e fama. Nossas personalidades são formadas por quanto de cada
componente nós buscamos. Para mim, a aventura sempre foi o numero uno.”
Nicole estava contemplativa quando eles entraram em um carro que os
aguardava, junto à Águia. A capota fechou-se sobre eles e novamente não
puderam ver nada durante a viagem até o centro de transporte. A aventura
também é muito importante para mim, pensou Nicole, e quando era menina a
fama era meu objetivo principal. Sorriu para si mesma. Mas agora é
definitivamente o amor... Nós seríamos muito cacetes se não mudássemos nunca.
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Pouco mais de um quarto delas têm sistemas planetários à sua volta. Se apenas
uma em cada milhão de estrelas com planetas fosse o lar de uma espécie de
viajantes espaciais, já haveria 25 mil espécies só em nossa galáxia.”
A Águia virou-se e olhou para Richard e Nicole. “O número estimado de
viajantes espaciais em nossa galáxia, bem como a densidade de viajantes em
cada zona específica, é informação de Terceiro Nível. Mas posso dizer-lhes uma
coisa. Há zonas de Densidade de Vida na galáxia onde a média do número de
viajantes espaciais é mais alta do que um por cada mil estrelas.”
Richard assobiou. “São dados avassaladores”, disse ele a Nicole, muito
excitado. “Significam que o milagre evolucionário local que nos produziu é um
paradigma comum no universo. Somos únicos, sem dúvida, pois em nenhum
outro lugar o processo que nos produziu poderá ter sido duplicado com exatidão.
Mas a característica verdadeiramente específica de nossa espécie, ou seja, a
nossa capacidade para moldar nosso mundo e compreender tanto a ele quanto o
lugar a que pertencemos no esquema geral das coisas, é uma capacidade que
deve ser atributo de milhares de criaturas! Pois sem tal habilidade elas não
poderiam ter-se transformado em viajantes espaciais.”
Nicole estava assombrada. Relembrou momento semelhante, anos antes,
quando estivera com Richard na sala das fotografias na toca das octoaranhas em
Rama, quando lutara por apreender a imensidão do universo em termos de
conteúdo total de informação. Pois agora compreendia novamente que todo o
conjunto de conhecimento dominado pela humanidade, tudo o que qualquer
membro da espécie humana jamais aprendera ou vivenciara, não era mais do que
mero grão de areia em uma grande praia que representasse tudo o que jamais
fora sabido por todas as criaturas sensíveis do universo.
5
Seu veículo parou a várias centenas de quilômetros do Hangar. A unidade
tinha forma estranha, completamente plana embaixo mas com lados e cobertura
arredondados. As três fábricas no Hangar — uma em cada extremidade e outra
no meio — pareciam pelo lado de fora cúpulas geodésicas. Erguiam-se sessenta
ou setenta quilômetros acima da base da estrutura. Entre essas fábricas a
cobertura era muito mais baixa, só uns oito ou dez quilômetros acima da base
plana, de modo que a aparência geral do alto do Hangar era como o que se
poderia esperar do dorso de um camelo de três corcovas, se uma tal criatura
houvesse existido.
A Águia, Nicole e Richard pararam para observar um veículo do tipo
estrela-do-mar que, segundo a Águia, já fora recondicionado e estava agora
pronto para sua próxima viagem. A estrela-do-mar saíra da corcova esquerda e o
veículo, pequeno em comparação com o Hangar ou Rama mas mesmo assim com
dez quilômetros do centro até a ponta de cada raio, começara a girar tão logo
ficara livre do Hangar. Enquanto o metrô ficava “estacionado” a uns quinze
quilômetros de distância, a estrela-do-mar aumentou sua média de rotações para
dez revoluções por minuto. Tão logo o nível de giros se estabilizou, a estrela-domar
partiu célere para a esquerda dos observadores.
“O que deixa apenas Rama, desse conjunto”, disse a Águia. “A roda
gigantesca que era a primeira de sua fila na Estação Intermediária partiu há
quatro meses. Só necessitava reparos mínimos.”
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“Fica mais fácil fazer o trabalho inicial com essa disposição”, explicou a
Águia. “Uma vez fechado o cilindro, fica mais difícil entrar e sair com todo o
equipamento.”
Pelos telescópios, Richard e Nicole podiam ver que duas áreas diferentes
da Planície Central pululavam de atividade. Não dava nem para começar a contar
o número de robôs indo de um lado para o outro do chão da fábrica ali abaixo
deles. Nem lhes era possível determinar exatamente o que estava sendo feito, em
muitos casos. Era engenharia em escala jamais sequer sonhada por seres
humanos.
“Trouxe-os aqui primeiro para que tivessem uma visão geral”, disse a
Águia. “Mais tarde, desceremos para a fábrica e vocês poderão ver mais detalhes.”
Richard e Nicole olharam para ele, atônitos. Rindo-se, o homem-águia
continuou. “Se observarem com cuidado, verão que duas vastas regiões da
Planície Central, uma perto do Mar Cilíndrico e outra cobrindo uma área que
quase atinge a ponta das escadas, foram completamente esvaziadas. É onde se
trabalha na reconstrução. Entre essas duas áreas, Rama tem exatamente o
mesmo aspecto que tinha quando vocês a deixaram. Temos uma diretiva geral de
engenharia aqui — só alteramos as regiões que serão usadas na missão
seguinte.”
Richard animou-se. “Está dizendo que essa espaçonave é usada repetidamente?
E que para cada missão só são feitas as alterações necessárias?”
A Águia concordou.
“Então aquele conglomerado de arranha-céus que chamamos de Nova
York poderia ter sido construído para uma missão muito anterior e simplesmente
deixado ali porque nenhuma alteração foi exigida?”
A Águia não disse nada em resposta à indagação retórica de Richard, e
apontou para a área ao norte da Planície Central. “Aquele é que será seu hábitat,
ali. Acabamos de terminar a infra-estrutura, o que vocês chamariam de
‘instalações básicas’, inclusive água, energia, esgoto e controle ambiental da
camada superior. Há bastante margem para flexibilidade de desenho no resto do
processo. É por isso que os trouxemos aqui.”
“O que é aquele edifício coberto com uma abóbada ao sul da área que foi
esvaziada?”, perguntou Richard, ainda aparvalhado com a idéia de que Nova York
poderia ter sido uma espécie de sobra, de resto de alguma missão mais antiga de
Rama.
“Aquele é o centro de controle”, respondeu a Águia. “O equipamento que
administra seu hábitat será colocado ali. Normalmente o centro de controle é
oculto abaixo da área em que se vive, na carapaça de Rama, mas em seu caso os
desenhistas resolveram colocá-lo na Planície.”
“O que é aquela grande região do lado de lá?”, disse Nicole, apontando
para a área vazia logo ao norte de onde o Mar Cilíndrico estaria localizado se
Rama houvesse sido completamente remontada.
“Não tenho permissão para dizer-lhe para o que serve”, respondeu a
Águia. “Na verdade, estou surpreso de sequer ter tido permissão para mostrarlhes
que existe. Na verdade, nossos viajantes de retorno ignoram totalmente o
que seu veículo contém fora de seu próprio habitat. O plano oficial, é claro,
determina que cada espécie fique dentro de seu próprio módulo.”
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canos, enquanto os outros elementos químicos são retidos para outros usos
possíveis. A unidade será selada e impregnável. Usa tecnologia muito além de seu
nível de desenvolvimento.”
A Águia levou-os ao topo de uma escada, por onde entraram no habitat
propriamente dito, e os conduziu por um tour detalhadíssimo. Em cada setor a
Águia mostrava-lhes as características principais daquela área em particular e
depois, sem interrupção, pedia a um robô que os transportasse até o próximo
setor adjacente.
“O que, exatamente, você quer que nós façamos aqui?”, indagou Nicole, ao
fim de várias horas, quando a Águia se preparava para levá-los a mais outra
parte de seu futuro lar.
“Nada de específico”, respondeu. “Esta será sua única visita a Rama.
Queríamos que sentissem um pouco o tamanho da área em que vão viver, no
caso de considerarem isso conveniente para o processo do desenho. Temos uma
maquete em escala de um vinte avos por cento no Módulo de Habitação — todo o
resto de nosso trabalho será realizado lá.” E, olhando para Nicole e Richard,
continuou: “Podemos partir quando quiserem.”
Nicole sentou-se em uma caixa metálica cinzenta e olhou à sua volta. Só o
número e a variedade de robôs eram o suficiente para deixá-la tonta. Sentira-se
assombrada desde o momento em que entraram no balcão sobre a fábrica e agora
sentia-se completamente anestesiada. Estendeu uma mão para Richard.
“Sei que deveria estudar o que estou vendo, querido, mas nada mais faz
sentido. Estou completamente saturada.”
“Eu também”, confessou Richard. “Jamais pensaria que fosse possível
haver alguma coisa mais espantosa e assombrosa do que Rama, porém não há
dúvida de que esta fábrica o é.”
“Já tentou imaginar, desde que chegamos aqui”, disse Nicole, “o que deve
ser a fábrica que construiu isto aqui? Melhor ainda, imagine como seria a linha
de montagem para construir o Nodo.”
Richard riu-se. “Podemos continuar essa linha de comentários até uma
regressão infinita. Se o Nodo for realmente uma fábrica, como parece ser,
pertence por certo a um nível de máquina muito mais alto do que o de Rama.
Rama foi provavelmente desenhada aqui. E é controlada, tenho o palpite, pelo
Nodo. Mas o que criou e controla o Nodo? Teria sido uma criatura como nós,
resultante de uma evolução biológica? E será que ainda existe, em qualquer
sentido que nós possamos compreender, ou terá se transformado em alguma
outra espécie de entidade, contentando-se em deixar sua influência ser sentida
pela existência dessas espantosas máquinas que criou?”
Richard sentou-se ao lado da mulher. “É demais até para mim. Acho que
eu também me saturei... Vamos voltar para as crianças.”
Nicole inclinou-se e tocou-o. “Você é um homem muito esperto, Richard
Wakefield. E fique sabendo que essa é uma das razões pelas quais o amo.”
Um grande robô parecendo uma empilhadeira veio pesadamente até perto
deles, carregando umas chapas de metal enroladas. Richard ainda uma vez
sacudiu a cabeça deslumbrado. “Obrigado, querida”, disse ele após uma pausa.
“E você sabe que eu também a amo.”
Levantaram-se juntos e fizeram um sinal à Águia, para avisar que estavam
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explicado que era essencial que o habitat tivesse algum nome específico, a Águia
indagou do significado e importância de “Novo Éden”.
“Toda a família discutiu o nome do habitat quase que um dia inteiro”,
explicou Richard, “e houve muitas sugestões boas, principalmente derivadas da
história e literatura de nossa espécie. Utopia era um bom nome. Arcádia, Elíseo,
Paraíso, Concórdia e Beauvois foram seriamente considerados. Mas no fim
julgamos que Novo Éden seria a melhor escolha.”
“Compreenda”, acrescentou Nicole, “que o Éden mitológico foi um
princípio, o início do que poderíamos chamar nossa cultura ocidental moderna.
Tratava-se de um paraíso verde luxuriante, supostamente concebido
especialmente para seres humanos por um Deus todo-poderoso que também
criara tudo o mais no universo. Aquele primeiro Éden era rico em formas de vida,
mas privado de tecnologia.
“O Novo Éden também é um começo, porém, sob todos os outros aspectos,
será o oposto do jardim antigo. O Novo Éden é um milagre tecnológico sem
qualquer forma de vida, ao menos no início, a não ser uns poucos seres
humanos.”
Uma vez que a disposição geral da colônia ficou pronta, restavam ainda
centenas de detalhes a serem resolvidos. Katie e Patrick receberam a tarefa de
desenhar parques vicinais para cada uma das quatro aldeias. Mesmo que
nenhum dos dois jamais houvesse visto uma folha de grama verdadeira, uma flor
de verdade ou uma árvore alta, tinham visto muitos filmes e muitíssimas
fotografias. Acabaram com quatro desenhos diferentes para os cinco acres de
terreno aberto, jardins comunitários e passeios tranqüilos em cada aldeia.
“Mas onde arranjaremos a grama? E as flores?”, perguntou Katie à Águia.
“Serão trazidas pela gente da Terra”, respondeu a Águia. “E como eles
saberão o que trazer?” “Nós lhes diremos.”
Foi Katie também quem reparou que o desenho do Novo Éden omitira um
elemento chave, que desempenhava papel preponderante nas histórias que sua
mãe lhe contava antes de dormir, quando ela era pequena. “Eu nunca vi um zôo;
poderíamos ter um no Novo Éden?”
A Águia alterou o plano geral durante a sessão seguinte de desenho, a fim
de incluir um pequeno zôo perto da Floresta de Sherwood.
Richard trabalhou com a Águia na maioria dos detalhes tecnológicos para
o Novo Éden. A área de especialidade de Nicole era a da ambientação para a vida
cotidiana. A Águia sugerira inicialmente uma espécie de casa com um conjunto
padronizado de mobiliário para todas as residências na colônia. Nicole deu uma
gargalhada. “Você por certo ainda não aprendeu muita coisa a respeito de nós
como espécie”, disse ela. “Os seres humanos precisam de variedade. De outro
modo, ficam entediados. Se fizermos todas as casas iguais, essas pessoas irão
começar a mudá-las imediatamente.”
Por ter apenas tempo limitado (os pedidos de informação da Águia estavam
mantendo Richard e Nicole no trabalho de dez a doze horas por dia — mas
por sorte Michael e Simone ficavam muito contentes em tomar conta das
crianças), Nicole optou por oito planos básicos para residências e quatro arranjos
modulares de mobília. Ao todo, então, haveria 32 configurações diferentes de
ambientes de vida. Variando o desenho externo das edificações em cada uma das
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quatro aldeias (detalhes esses que Nicole encontrara com Richard, após algumas
contribuições importantes do historiador da arte Michael O’Toole), Nicole
finalmente alcançou seu objetivo de criar um desenho geral para a vida cotidiana
que não era nem uniforme e nem estéril.
Richard e a Águia concordaram quanto aos sistemas de transporte e comunicação
no Novo Éden, tanto internos quanto exteriores, em poucas horas.
Tiveram mais dificuldades com o controle geral do meio ambiente e o desenho dos
biomas. A concepção original da Águia, na qual era baseada a infra-estrutura de
suporte do Novo Éden, pressupunha doze horas de luz e doze de escuridão todos
os dias. Períodos de sol, nuvens e chuva seriam regulares e previsíveis. Não
haveria praticamente nenhuma variação de temperatura como função de tempo e
espaço.
Quando Richard pediu mudanças sazonais na duração do dia e maior
variedade em todos os parâmetros climáticos, a Águia salientou que concordar
com tais “variações significativas” no vastíssimo volume de ar do hábitat
implicaria o uso de “recursos críticos de computação” muito maiores do que os
originalmente alocados durante o desenho da infra-estrutura. A Águia indicou
também que os principais algoritmos de controle teriam de ser reestruturados e
retestados, com resultante adiamento da data da partida. Nicole apoiou Richard
na questão do tempo e das estações, explicando à Águia que um comportamento
humano verdadeiro “que aparentemente você e a Inteligência Nodal desejam
observar” dependia definitivamente desses fatores.
Um acordo de meio termo foi alcançado. A duração do dia e da noite ao
longo do ano duplicaria a de um local a 30° de latitude na Terra. O clima no Novo
Éden teria condições de evoluir naturalmente dentro de limites específicos, com o
controlador principal agindo apenas quando as condições atingissem os limites
da “caixa do desenho”. Assim, temperatura, vento e precipitação poderiam flutuar
dentro de certos limites de tolerância. A Águia permaneceu inabalável, no
entanto, a respeito de dois itens. Não poderia haver nem raios e nem gelo. Se
alguma dessas duas condições (ambas as quais introduziriam “novas
complexidades” em seu modelo de computação) se tornasse iminente, mesmo que
todos os outros parâmetros ainda continuassem dentro dos desenhos da caixa, o
sistema de controle assumiria o comando automaticamente para regularizar o
tempo.
Fora intenção inicial da Águia manter o mesmo tipo de biomas usados nas
duas primeiras naves Rama. Tanto Richard quanto Nicole salientaram, no
entanto, que os biomas ramaianos, em particular os que se assemelhavam a
centopéias, louva-a-deuses, caranguejos e aranhas, não eram absolutamente
apropriados.
“Os cosmonautas que pisaram nas duas naves Rama”, explicou Nicole,
“não seriam considerados seres humanos médios. Longe disso, na verdade.
Éramos treinados especialmente para enfrentar máquinas sofisticadas — e até
alguns de nós ficamos assustados com alguns de seus biomas. Os humanos mais
comuns que provavelmente irão formar a massa dos habitantes do Novo Éden
não se sentirão nada à vontade com essas engenhocas mecânicas esquisitas a
correr por todo o seu mundo.”
Após várias horas de discussão a Águia concordou em redesenhar o pessoal
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bioma de manutenção. Por exemplo, o lixo seria coletado por robôs que se
pareceriam com um típico caminhão de lixo na Terra — só que não haveria
motoristas. Trabalhos de construção, quando necessários, seriam realizados por
robôs cujas formas eram as mesmas de veículos desempenhando funções
semelhantes na Terra. Desse modo as máquinas estranhas seriam familiares em
aparência para os colonos, atenuando seus medos xenofóbicos.
“E quanto à realização de atividades cotidianas, de rotina?”, perguntou o
homem-pássaro ao fim de uma longa reunião. “Tínhamos pensado em usar
biomas humanos, que reagem à voz, distribuídos em grande número, para
libertar seus colonos das tarefas mais baixas e cansativas. Gastamos tempo
considerável aperfeiçoando seu desenho, desde que vocês chegaram.”
Richard gostou da idéia de auxiliares robôs, mas Nicole ficou meio desconfiada
com a idéia. “É imperativo”, disse ela, “que esses biomas humanos
sejam perfeitamente identificáveis. Não deve haver qualquer possibilidade de que
ninguém, nem mesmo uma criança, possa confundi-lo com um ser humano
verdadeiro.”
Richard riu-se. “Você andou lendo ficção científica demais”, disse ele.
“Mas é uma preocupação concreta”, protestou Nicole. “Posso bem imaginar
a qualidade dos biomas humanos feitos aqui no Nodo. Não estamos falando
daquelas imitações inexpressivas que vimos dentro de Rama. As pessoas ficariam
aterrorizadas se não pudessem perceber a diferença entre um ser humano e uma
máquina.”
“Então limitaremos o número de variedades”, retrucou Richard. “E eles
serão facilmente classificados por sua função primordial. Isso satisfaz sua
preocupação...? Seria uma pena não nos beneficiarmos das vantagens desta
incrível tecnologia.”
“Podia funcionar”, disse Nicole, “desde que uma simples sessão de instruções
pudesse familiarizar com facilidade todo mundo com os vários tipos de
biomas. Temos de garantir de modo absoluto que não haja problemas de
confusão de identificação”.
Após várias semanas de esforços internos, a maioria das decisões críticas
sobre o desenho já haviam sido tomadas e a carga de trabalho de Richard e
Nicole diminuiu. Eles puderam retomar uma vida mais ou menos normal com as
crianças e Michael. Certa noite, a Águia apareceu e informou a família de que o
Novo Éden estava em seu período final de testes, basicamente no sentido de
verificação da capacidade dos novos algoritmos para monitorar e controlar o meio
ambiente em toda a vasta gama de condições possíveis.
“E por falar nisso”, concluiu a Águia, “inserimos esquemas de troca de
gases, ou ETGs, em todos os locais — florestas de Sherwood, parques, margens
do lago e encosta da montanha — nos quais as plantas que eventualmente virão
da Terra irão crescer. Os ETGs funcionam como as plantas, absorvendo dióxido
de carbono e produzindo oxigênio, sendo também quantitativamente
equivalentes. Eles impedem o crescimento de dióxido de carbono atmosférico, que
a longo prazo solaparia a eficiência dos algoritmos de clima. A operação dos ETGs
exige alguma energia, de modo que reduzimos ligeiramente o número de watts
previstos para consumo humano durante os primeiros tempos da colônia. No
entanto, uma vez que as plantas já estejam florescentes, os ETGs podem ser
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que Nicole confirmasse sua declaração. Quando ela acenou que sim, lágrimas
rolaram dos olhos dele e seu rosto contorceu-se. “E Ben-jy?”, disse ele. “O que vai
a-conte-cer com Ben-jy?”
Nicole puxou a cabeça dele para o ombro dela e chorou junto com o filho.
Todo o corpo dele foi sacudido por seus soluços. Nicole ficou furiosa consigo
mesma por haver adiado a questão por tanto tempo. Ele sempre soube, pensou
ela. Desde aquela primeira conversa. Está esperando esse tempo todo. Está
pensando que ninguém o quer.
“Você pode escolher, meu querido”, Nicole conseguiu dizer depois de
controlar suas emoções. “Nós íamos adorar ter você conosco. E seu pai e Simone
iam ficar encantados se você ficasse aqui com eles.”
Benjy encarou a mãe como se não acreditasse nela. Nicole repetiu o que
dissera, muito lentamente. “Você está me di-zendo a ver-dade?” perguntou ele.
Nicole concordou com ênfase.
Benjy sorriu e depois olhou para o outro lado, ficando em silêncio por
algum tempo. “Não vai ter nin-guém pa-ra eu brin-car aqui”, disse ele finalmente,
ainda olhando para a parede. “E Simone vai ter de fi-car com pa-pai.”
Nicole ficou espantada ante a concisão com a qual Benjy expressara suas
considerações. Ele pareceu estar esperando. “Então venha conosco”, disse Nicole
suavemente. “Seu tio Richard e Katie e Patrick e Ellie e eu, nós todos te amamos
muito e gostaríamos de levar você conosco.”
Benjy virou-se para olhar para sua mãe. Novamente lágrimas rolaram por
suas faces. “Eu vou com vo-cê, mamãe”, disse ele, encostando a cabeça no ombro
dela.
Ele já tinha escolhido, pensou Nicole, apertando Benjy contra seu corpo.
“Ele é mais inteligente do que nós pensamos. E só veio aqui a fim de ter a certeza
de que o queríamos conosco”.
7
“... e Adorado Senhor, permita que eu preze adequadamente esta maravilhosa
jovem com quem estou a ponto de casar-me. Permita que compartilhemos
de Teu dom do amor e que cresçamos juntos em nosso conhecimento
de Ti... Peço tudo isso em nome de Teu filho, que Tu mandaste à Terra para
mostrar Teu amor e redimir-nos de nossos pecados. Amém.”
Michael Ryan O’Toole, aos 72 anos de idade, separou as mãos e abriu os
olhos. Estava sentado à escrivaninha de seu quarto. Olhou o relógio. Só mais
duas horas, pensou ele, até eu me casar com Simone. Michael olhou de relance
para a pintura de Jesus e o pequeno busto de São Miguel de Siena em frente
dele, na escrivaninha. E depois, mais tarde, hoje à noite, após a refeição que será
tanto festa de boda quanto comemoração do aniversário de Nicole, terei esse anjo
em meus braços. Não lhe foi possível impedir que lhe assomasse o pensamento
seguinte. Amado Senhor, por favor não me deixes desapontá-la.
O’Toole estendeu o braço para a escrivaninha e pegou uma pequena
Bíblia. Era o único livro propriamente dito que possuía. Todo o resto de seu
material de leitura tinha a forma de pequenos cubos de dados que inseria em seu
computador portátil. Sua Bíblia era muito especial, lembrança de uma vida que
vivera outrora em um planeta distante.
Durante sua infância e adolescência, aquela Bíblia fora com ele a toda
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parte. Ao virar o livrinho em suas mãos, foi invadido por lembranças. A primeira
coisa gravada em sua memória vinha de quando ainda era bem pequeno, com
seis ou sete anos. Seu pai entrara em seu quarto, em casa. Michael estava
disputando uma partida de beisebol em seu computador individual e ficou um
tanto embaraçado — sempre se sentia pouco à vontade quando seu pai seriíssimo
o encontrava brincando.
“Michael”, dissera o pai, “quero lhe dar um presente. Uma Bíblia só para
você. É um livro de verdade, que você lê virando as páginas. Pusemos o seu nome
na capa.”
O pai ofereceu-lhe o livro e o pequeno Michael aceitou-o com um suave
“obrigado”. A capa era de couro e agradável ao toque. “Dentro desse volume”,
continuara o pai, “estão alguns dos melhores ensinamentos que a humanidade
jamais poderá aprender. Leia-o com cuidado. Leia-o muitas vezes. E governe sua
vida pela sabedoria que ele contém.”
Naquela noite coloquei a Bíblia debaixo de meu travesseiro, lembrou-se
Michael. Onde ficou por toda a minha infância. Até mesmo o fim do ginásio.
Rememorou os estratagemas quando seu time de beisebol no ginásio fora a
Springfield para o campeonato estadual. Michael levara sua Bíblia, mas não
queria que seus companheiros de time a vissem. Uma Bíblia não era “jóia” para
um atleta ginasiano, e o jovem Michael O’Toole não tinha ainda auto-estima
suficiente que superasse o medo do riso de seus pares. De modo que desenhou
um compartimento especial para sua Bíblia em um lado de sua sacola de artigos
de toalete, envolta em uma capa protetora. No hotel, Michael esperou até seu
companheiro de quarto ir tomar banho e então tirou-a de seu esconderijo e
colocou-a debaixo de seu travesseiro.
Levei-a até em minha lua-de-mel. Kathleen era tão compreensiva. Como
sempre foi a respeito de tudo. Uma rápida lembrança do sol quente e da areia
branca do lado de fora de sua suíte nas ilhas Caymam foi seguida imediatamente
por uma forte sensação de perda. Como vai você, Kathleen?, disse Michael em voz
alta. Para onde a vida a levou? Viu-a claramente com os olhos da mente, em seu
condomínio de casas tradicionais de pedra marrom na Avenida Commonwealth,
em Boston. Nosso neto Matthew a esta altura já deve ser um adolescente, pensou
ele. Haverá outros? Quantos, ao todo?
A dor no coração agravou-se quando imaginou sua família — Kathleen,
sua filha Colleen, seu filho Stephen, além de todos os netos — reunidos em torno
da grande mesa para uma festa de Natal sem ele. Em sua imagem mental nevava
um pouco do lado de fora, na avenida. Suponho que caiba a Stephen, agora,
oferecer a prece familiar, pensou ele. Sempre foi o mais religioso dos filhos.
O’Toole sacudiu a cabeça, voltou ao presente, e abriu a Bíblia em sua
primeira página. Uma bela letra de calígrafo ali escrevera “Datas Importantes” no
alto da página. Os lançamentos eram poucos, oito no total, uma crônica dos
principais eventos de sua vida.
13-07-67 Casamento com Kathleen Murphy em Boston, Massachusetts
30-01-69 Nascimento de filho, Thomas Murphy O’Toole, em Boston
13-04-70 Nascimento de filha, Colleen Gavin O’Toole, em Boston
27-12-71 Nascimento de filho, Stephen Molloy O’Toole, em Boston
14-02-92 Morte de Thomas Murphy O’Toole, em Pasadena, Califórnia.
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Simone com seu vestido. Não era um vestido de noiva no sentido clássico, mas
era branco e amplo, com pequenas alças sobre os ombros. Por certo não tinha
nada a ver com os trajes informais que toda a família estava acostumada a usar
todos os dias.
Nicole colocou cuidadosamente os pentes nos longos cabelos negros da
filha e estudou Simone no espelho. “Você está linda”, disse Nicole.
Olhou para o relógio e viu que ainda tinham dez minutos. E Simone
estava inteiramente pronta a não ser pelos sapatos. Ótimo. Agora podemos
conversar, pensou Nicole. “Querida”, começou ela, com a voz surpreendentemente
presa na garganta.
“O que é, mamãe?” disse Simone com tranqüilidade. Estava sentada na
cama, ao lado da mãe, calçando cuidadosamente seus sapatos pretos.
“Quando tivemos aquela nossa conversa na semana passada sobre sexo”,
recomeçou Nicole, “vários tópicos ficaram sem ser discutidos.” Simone levantou
os olhos para a mãe; sua atenção era tão total que Nicole momentaneamente
esqueceu o que estava dizendo. “Você leu aqueles livros que eu lhe dei?”, acabou
murmurando.
A testa franzida de Simone expressava sua perplexidade. “Mas é claro, nós
falamos ontem sobre eles.”
Nicole tomou as mãos da filha. “Michael é um homem maravilhoso;
bondoso, tem sempre consideração, é amoroso — porém, é mais velho. E quando
os homens são mais velhos...”
“Não estou entendendo muito bem, mamãe”, interrompeu delicadamente
Simone. “Pensei que estava querendo me dizer alguma coisa sobre sexo.”
“O que estou tentando dizer”, disse Nicole depois de respirar fundo, “é que
você talvez tenha de ser muito paciente e terna com Michael na cama. Pode ser
que nem tudo funcione logo de saída.”
Simone olhou para a mãe por algum tempo. “Já desconfiava disso”, disse
ela tranqüilamente, “tanto pelo seu nervosismo sobre o assunto quanto por uma
ansiedade não expressada que venho notando no rosto de Michael. Não se
preocupe, mamãe, não tenho expectativas que não sejam razoáveis. Em primeiro
lugar, não estamos nos casando em função de algum desejo de gratificação
sexual. E já que eu não tenho nenhuma espécie de experiência, a não ser ficar de
mãos dadas algumas vezes nesta última semana, qualquer prazer que eu venha a
sentir será novo e portanto maravilhoso.”
Nicole sorriu ante sua filha de treze anos tão espantosamente madura.
“Você é uma jóia”, disse ela, com os olhos rasos de lágrimas.
“Obrigada”, respondeu Simone, abraçando a mãe. “Lembre-se”, acrescentou,
“que meu casamento com Michael é abençoado por Deus. Quaisquer
problemas que encontremos, pediremos a Deus que nos ajude. Nós ficaremos
muito bem.”
Uma dor cortou violentamente o coração de Nicole. Mais uma semana,
disse uma voz lá dentro dela, e você jamais tomará a ver essa menina tão amada.
E continuou abraçada a Simone até Richard bater na porta e dizer-lhe que todos
os outros já estavam prontos para a cerimônia.
8
“Bom dia”, disse Simone com um sorriso suave. O resto da família estava
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“A-deus”, disse Benjy, abanando a mão para a mãe até mesmo depois de a
porta estar fechada.
Era um documento longo. Nicole calculou que ela levaria ao menos dez, e
provavelmente quinze minutos para lê-lo todo em voz alta.
“Já terminou de estudar?”, indagou novamente a Águia. “Gostaríamos de
começar a gravar logo que possível.”
“Explique-me novamente o que vai acontecer com este vídeo depois que eu
o gravar”, pediu Nicole.
“Nós o transmitiremos na direção da Terra vários anos antes de vocês
chegarem ao sistema solar. Isso dará a seus irmãos humanos bastante tempo
para reagir a ele.”
“Como saberão se eles efetivamente o receberão?”
“Pedimos um sinal simples de volta, confirmando a recepção.”
“E se vocês não receberem esse sinal de retorno?”
“É para isso que servem os planos para contingências.”
Nicole tinha sérias dúvidas a respeito da leitura da mensagem. Perguntou
se poderia ter algum tempo para discutir o documento com Richard e Michael.
“O que é que a preocupa?”, perguntou a Águia.
“Tudo”, respondeu Nicole. “Não parece certo. Sinto-me como se estivesse
sendo usada para levar avante os seus objetivos — e como não sei quais sejam
tais objetivos, exatamente, tenho medo de estar traindo a espécie humana.”
A Águia trouxe um copo de água para Nicole e sentou-se a seu lado
naquele estranho estúdio. “Olhemos a situação de maneira lógica. Já lhe
dissemos muito claramente que nosso objetivo primordial é a captação de
informações detalhadas sobre espécies que realizam viagens espaciais na galáxia.
Certo?”
Nicole concordou.
“Construímos também, dentro de Rama, um habitat para dois mil terráqueos
e estamos enviando você e sua família para reunir esses humanos para
uma viagem de observação. Tudo o que você está fazendo, nesse vídeo, é informar
à Terra que estamos a caminho e que os dois mil membros de sua espécie,
acompanhados pelos artefatos de suporte de sua cultura, devem encontrar-nos
na órbita de Marte. O que pode haver de errado nisso?”
“O texto deste documento”, protestou Nicole, apontando para a tela do
computador portátil que a Águia lhe dera, “é extremamente vago. Jamais indica,
por exemplo, qual será o eventual destino de todos esses humanos — só que eles
serão ‘cuidados’ e ‘observados’ durante alguma espécie de viagem. Não há
qualquer menção de por que esses humanos estarão sendo estudados, e nada a
respeito do Nodo e sua inteligência controladora. Além do mais, o tom é
extremamente ameaçador. O que digo aos habitantes da Terra que vão receber
esta transmissão é que se um contingente humano não comparecer ao encontro
com Rama na órbita de Marte, então a espaçonave se aproximará da Terra e
‘adquirirá seus espécimes de forma menos organizada’. Essa é claramente uma
afirmação hostil.”
“Você poderá editar os comentários, se quiser, desde que a intenção não
seja alterada”, respondeu a Águia. “Mas devo dizer-lhe que temos larga
experiência com esse tipo de comunicação. Com espécies semelhantes à sua
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“Há mais de um ano que vocês vêm me observando”, disse Nicole, sorrindo.
“Em alguma ocasião revelei-me totalmente irrazoável?”
“Aonde estamos indo?”, perguntou Nicole.
“Um pequeno tour”, respondeu a Águia. “Talvez seja o melhor meio de
encarar suas incertezas.”
O estranho veículo era pequeno e esférico, grande o bastante só para
Nicole e a Águia. Todo o hemisfério da frente era transparente. Atrás da janela, do
lado onde estava sentado o homem-pássaro alienígena, havia um pequeno painel
de controle. Durante o vôo a Águia tocava ocasionalmente no painel, porém
durante a maior parte do tempo a nave parecia estar operando por si mesma.
Poucos segundos depois de os dois se sentarem, a esfera saiu disparada
por um corredor que, depois de várias portas duplas, desembocava em negror
total. Nicole perdeu o fôlego. Sentiu-se como se estivesse boiando no espaço.
“Cada um dos três módulos esféricos do Nodo”, disse a Águia, enquanto
Nicole lutava para ver ao menos alguma coisa, “tem um centro oco. Acabamos de
entrar na passagem que nos leva ao Módulo de Habitação.”
Depois de quase um minuto, algumas luzes apareceram na frente de sua
pequena nave, e logo o veículo saiu da passagem negra e entrou no imenso
âmago oco. A esfera deu uma cambalhota e girou, desorientando Nicole enquanto
se dirigia para a escuridão, para longe das muitas luzes que deviam estar no
corpo principal do Módulo de Habitação.
“Nós observamos tudo o que ocorre com todas as espécies nossas hóspedes,
sejam temporárias, sejam permanentes. Como já desconfiavam, temos
centenas de equipamentos para monitorar o interior de seu apartamento. Mas
todas as suas paredes são também transparentes por um lado — desta região
central podemos observar suas atividades a partir de uma perspectiva muito mais
ampla.”
Nicole já estava acostumada com as maravilhas do Nodo, porém a nova
visão à sua volta ainda assim era arrasadora. Dúzias, talvez centenas de pequenas
luzinhas tremulantes moviam-se na vasta escuridão do âmago da esfera.
Pareciam um grupo de pirilampos espalhados em uma noite escura de verão.
Algumas das luzes pairavam junto às paredes, outras moviam-se lentamente pelo
vácuo. Algumas estavam tão longe que pareciam estar paradas.
“Temos um grande centro de manutenção aqui também”, disse a Águia
apontando para um denso agrupamento de luzes bem à sua frente, mas distante.
“Todo e qualquer elemento do módulo pode ser alcançado daqui com rapidez, no
caso de problemas de engenharia ou de qualquer outra natureza.”
“O que está acontecendo ali?”, indagou Nicole, batendo na janela. Algumas
centenas de milhas para a direita, um grupo de veículos estava estacionado bem
perto de uma parte grande e iluminada do Módulo de Habitação.
“É uma sessão de observação especial, na qual estão sendo usados nossos
mais avançados sensores de monitoração remota. Aqueles apartamentos em
particular abrigam uma espécie pouco usual, com características jamais
registradas antes neste setor da galáxia. Muitos de seus indivíduos estão
morrendo e não compreendemos por quê. Estamos tentando descobrir como
salvá-los.”
“Então, nem sempre as coisas são como vocês as planejam?”
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desenvolveu-se. Nosso planeta oceânico tem três espécies inteligentes, porém nós
somos a única a viajar pelo espaço. Começamos nossa exploração espacial um
pouquinho mais de dois mil anos atrás.”
Nicole já se sentia agora embaraçada pelo próprio silêncio. “Olá... olá”,
disse ela, muito hesitante. “É um prazer encontrá-lo... A nossa espécie só
começou a viajar pelo espaço há trezentos anos. Somos o único organismo
altamente inteligente em nosso planeta, que tem dois terços cobertos pela água.
Nosso calor e luz vêm de uma estrela amarela solitária e estável. Nossa evolução
começou na água, há três ou quatro bilhões de anos, porém agora vivemos na
terra...”
Nicole parou. A outra criatura, com as duas pontas ainda enroladas uma
na outra, tinha trazido o resto do corpo para junto da janela, de modo que os
detalhes de sua estrutura física podiam ser vistos em maior detalhe. Nicole
compreendeu. Ficou de pé junto à janela e virou-se lentamente. Depois esticou as
mãos para a frente, mexendo os dedos. Mais bolhas apareceram.
“Você tem uma manifestação alternativa?”, traduziu a Águia alguns segundos
mais tarde.
“Não compreendo”, retrucou Nicole. O anfitrião nodal na outra esfera
comunicou a mensagem usando movimentos do corpo e bolhas.
“Nós temos duas manifestações”, explicou o alienígena. “Minha prole terá
apêndices, não muito diferentes dos seus, e vai morar principalmente em leitos
oceânicos, construindo nossas casas, fábricas e espaçonaves. Eles, por sua vez,
produzirão uma outra geração parecida comigo.”
“Não, não”, respondeu Nicole eventualmente. “Nós só temos uma única
manifestação. Nossos filhos sempre se parecem com os pais.”
A conversa durou mais de cinco minutos. Os dois viajantes espaciais
falaram principalmente sobre biologia. O alienígena ficou particularmente
impressionado pelo vasto leque de temperaturas nas quais os humanos podiam
funcionar com sucesso, e disse a Nicole que os integrantes de sua espécie não
podiam sobreviver se a temperatura ambiente ou o líquido à sua volta
extrapolasse uma faixa bastante estreita.
Nicole ficou fascinada pela descrição que a criatura fez de seu planeta
aquoso, cuja superfície é quase totalmente coberta por imensas placas de
organismos fotossintéticos. As enguias de capa, ou fossem aquelas coisas o que
fossem, viviam nos baixios logo abaixo dessas centenas de organismos, e usavam
fotossintetizadores para praticamente tudo — comida, materiais para construção,
e até mesmo como auxílio para reprodução.
Afinal, a Águia disse a Nicole que era hora de partir. Ela abanou a mão
para o alienígena, que continuava grudado na janela. Ele respondeu com uma
explosão final de bolhas e desenrolou as duas extremidades. Segundos mais
tarde, a distância entre as duas cápsulas já era de centenas de metros.
Estava escuro novamente dentro da esfera que se movia. A Águia estava
em silêncio. Nicole estava eufórica. Sua mente continuava disparada, ainda
formulando ativamente perguntas para a criatura alienígena com a qual tivera
aquele breve encontro. Vocês têm famílias?, pensou. E se têm, como vivem juntas
criaturas dissimilares? Vocês podem se comunicar com os habitantes das
profundezas que não são seus filhos?
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que haverá dilatação extra de tempo antes que cheguemos ao encontro marcado
na órbita de Marte.”
Nicole jamais compreendera realmente a relatividade — que permanecia
inteiramente incoerente em termos de sua intuição — e por certo não queria
despender qualquer energia para se preocupar com ela no último dia que tinha
antes de se separar de Simone e Michael. Sabia que a separação final ia ser
dificílima para todos eles, e ela queria concentrar todas as suas forças para
aqueles últimos momentos de grande emoção.
“A Águia disse que viria buscar-nos às onze horas”, disse Nicole a Richard,
enquanto se vestiam. “Estava querendo que todos nós nos sentássemos juntos na
sala de estar, depois do desjejum. Quero encorajar as crianças a expressar seus
sentimentos.”
Foi um desjejum leve, até alegre; mas quando os oito membros da família
reuniram-se na sala de estar, tendo em mente terem menos de duas horas antes
que a Águia chegasse para levar embora a todos menos Simone e Michael, a
conversa ficou tensa e forçada.
Os recém-casados sentaram-se juntos no sofá de dois lugares, de frente
para Richard, Nicole e as outras quatro crianças. Katie, como sempre, totalmente
frenética, pulava de um assunto para outro, porém mantendo-se cuidadosamente
afastada de qualquer discussão sobre a separação iminente. Katie estava no meio
de um longo monólogo a respeito de um sonho completamente louco que tivera
fazia duas noites, quando sua história foi interrompida pelo som de duas vozes
vindas da entrada da suíte principal.
“Raios, Sir John”, disse a primeira variação da voz de Richard, “esta é a
nossa última oportunidade. Eu vou lá fora para dizer adeus, quer o senhor
venha, quer não venha.”
“Essas despedidas, meu príncipe, estraçalham-me a própria alma. Ainda
não bebi o bastante para atenuar a dor. O senhor mesmo disse que a mocinha
tinha a própria aparência de um anjo. Como poderia eu...”
“Bem, tudo em ordem, eu vou sozinho”, disse o Príncipe Hal. Todos os
olhos da família concentraram-se no robozinho príncipe quando este veio pelo
hall e entrou na sala de estar. Falstaff entrou cambaleando atrás dele, parando a
cada quatro ou cinco passos para beber mais um gole da garrafinha que
carregava.
Hal caminhou até ficar em frente a Simone. “Queridíssima senhora”, disse
ele pondo um joelho no chão, “não encontro palavras para expressar
adequadamente o quanto sentirei a falta de seu rosto sorridente. Em todo o meu
reino não há um só membro do sexo frágil que a iguale em beleza...”
“Pelas chagas de Cristo”, interrompeu Falstaff, atirando-se de joelhos ao
lado do príncipe. “Quiçá Sir John tenha errado. Por que haverei eu de partir com
esse grupo de saltimbancos” (sacudiu o braço no sentido de Richard, Nicole e as
outras crianças) “quando poderia ficar aqui, na presença de graça tão magnífica,
só tendo esse velho aí para concorrer comigo? Lembro-me de Doll Tearsheet...”
Enquanto a dupla de robôs de vinte centímetros divertia a família, Benjy
levantou-se de sua cadeira e aproximou-se de Michael e Simone. “Si-mo-ne”,
disse ele, lutando para reter as lágrimas, “vou sen-tir muita fal-ta de vo-cê. Eu te
amo.” Parando um momento, Benjy olhou primeiro para Simone e depois para
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são apenas aproximadas. Como a Águia lhes explicou antes de partirem do Nodo,
pudemos retardar um pouco as enzimas-chaves de envelhecimento em cada um
de vocês — porém nem todos na mesma escala. Quando dizemos que o sr. Patrick
O’Toole tem agora dezesseis ou dezessete anos, estamos nos referindo apenas ao
relógio pessoal, interno, biológico, dele. A idade citada é uma espécie de média
entre crescimento, amadurecimento e processos subsistêmicos de
envelhecimento.”
Nicole e Richard pararam junto a cada um dos outros leitos, olhando as
crianças pelas janelinhas durante vários minutos. Nicole sacudiu repetidamente
a cabeça expressando sua perplexidade. “Para onde foram os meus filhotes?”,
disse ela ao ver que até mesmo a pequena Ellie se tinha transformado em uma
adolescente durante a longa viagem.
“Nós sabíamos que isso ia acontecer”, comentou Richard sem emoção, o
que não ajudava em nada a Nicole mãe a enfrentar o sentimento de perda que
estava vivenciando.
“Saber é uma coisa”, disse Nicole; “mas ver e vivenciar o fato é completamente
outra. Este não é um caso típico de mãe que repentinamente se dá conta
de que seus meninos e meninas já cresceram. O que aconteceu a nossos filhos é
verdadeiramente arrasador. Seu desenvolvimento mental e social foi interrompido
pelo equivalente a dez ou doze anos. Nós agora temos crianças pequenas
andando por aí em corpos adultos. Como poderemos prepará-los para encontrar
outros humanos em seis meses?”
Nicole estava atônita. Teria uma parte dela se recusado a acreditar na
Águia quando esta descrevera o que iria acontecer à sua família? Talvez. Tratavase
de mais um evento inacreditável até mesmo em uma vida que havia muito
tempo já abandonara qualquer compreensão. Porém, como mãe deles, tenho muito
o que fazer, e quase não tenho tempo. Por que não planejamos tudo isso antes de
deixar o Nodo?
Enquanto Nicole lutava com sua forte reação emocional à visão de seus
filhos repentinamente já crescidos, Richard conversava com as duas Tiassos, que
respondiam todas as perguntas dele com facilidade. Ele estava profundamente
impressionado com a capacidade física e mental dos dois robôs. “Todos vocês têm
uma riqueza assim tão grande de informações guardada em suas memórias?”,
perguntou ele às duas no meio da conversa.
“Só nós, Tiassos, temos dados históricos detalhados de saúde sobre a sua
família”, respondeu 009. “Todos os biomas humanos têm acesso a um grande
leque de fatos básicos. No entanto, certa porção desse conhecimento será
removida aos primeiros contatos com outros humanos. Nesse instante, os
recursos de memória de biomas de todo tipo serão parcialmente eliminados.
Qualquer acontecimento ou parte de dados pertencentes à Águia, ao Nodo ou
quaisquer situações ocorridas antes de vocês despertarem desaparecerão de
nossos bancos de dados depois do encontro com os outros humanos. Apenas as
suas informações pessoais de saúde serão disponíveis para esses períodos
anteriores de tempo — e tais dados estarão localizados nos Tiassos.”
Nicole já vinha pensando sobre o Nodo antes destes últimos comentários.
“Vocês ainda estão em contato com a Águia?”, indagou de repente.
“Não”, respondeu a o 17 desta vez. “É bastante seguro supor que a Águia,
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melhor.”
“Seja como for”, respondeu Katie, apontando para sua irmã, que estava
estudando muito no canto da sala de estar, “eu certamente não me pareço com
Ellie. O corpo dela é realmente atraente — os seios dela são ainda maiores e mais
redondos do que os seus.”
Nicole riu com naturalidade. “Ellie tem realmente um corpo imponente.
Mas o seu é tão bom quanto o dela — só que diferente.” Nicole voltou à sua
leitura, julgando que a conversa havia terminado.
“Não encontrei muitas mulheres com meu tipo de corpo nestas revistas”,
insistiu Katie, após um breve silêncio. Estava mostrando seu computador
portátil, porém Nicole não estava mais prestando atenção. “Sabe, mamãe, acho
que a Águia cometeu algum engano nos controles do meu leito, e eu devo ter
recebido alguns hormônios que eram destinados a Patrick ou Benjy.”
“Katie, querida”, respondeu Nicole, finalmente compreendendo que a filha
estava obcecada com seu corpo; “é virtualmente certo que você se tornou a
pessoa que seus genes foram programados para ser quando foi concebida. Você é
uma moça linda e inteligente, e ficaria mais feliz se gastasse seu tempo pensando
em seus muitos atributos excelentes, ao invés de descobrir alguma imperfeição
em você mesma e querer ser alguma outra pessoa.”
Desde o momento do despertar que muitas das conversas de mãe e filha
tinham seguido mais ou menos o mesmo rumo. Para Katie, parecia que sua mãe
não tentava compreendê-la e estava sempre com uma lição ou um epigrama já
prontos. “Há muito mais riquezas na vida do que apenas sentir-se bem”, era um
refrão recorrente que soava nos ouvidos de Katie. Por outro lado, os elogios que a
mãe fazia a Ellie sempre lhe pareciam exagerados. “Ellie é tão boa aluna, apesar
de ter começado muito tarde”, “Ellie sempre ajuda, mesmo quando ninguém
pede”, ou “Por que você não pode ter um pouquinho mais de paciência com
Benjy, como Ellie tem?”
Primeiro era Simone, e agora Ellie, dizia Katie a si mesma certa noite,
quando estava deitada, nua, em sua cama, depois que ela e a irmã haviam
brigado e a mãe só repreendera a ela. Eu nunca tive chance com a mamãe. Somos
diferentes demais. O melhor é nem tentar.
Seus dedos passavam por todo o seu corpo, estimulando seu desejo, e
Katie suspirou por antecipação. Ao menos há certas coisas para as quais eu não
preciso de mamãe, concluiu.
“Richard”, disse Nicole uma noite na cama, quando estavam a apenas seis
semanas de distância de Marte.
“Mrnmmmm”, respondeu ele lentamente, quase dormindo.
“Estou preocupada com Katie. Estou muito satisfeita com o progresso feito
pelas outras crianças, até mesmo Benjy, que Deus o abençoe. Mas preocupo-me
de verdade com Katie.”
“Exatamente o que é que a está incomodando?”, disse Richard,
soerguendo o corpo e apoiando-se em um cotovelo.
“Principalmente suas atitudes. Katie é incrivelmente auto-referente. E
também é de pavio curto e sem paciência com as outras crianças, até mesmo com
Patrick, que positivamente a adora. Ela discute comigo o tempo todo, muitas
vezes em uma espécie de disputa tola. E creio que ela passa tempo demais
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sozinha no quarto.”
“Ela só está entediada”, respondeu Richard. “Lembre-se, Nicole, que
fisicamente ela é uma moça de vinte e poucos anos. Era hora de ela sair com
rapazes, afirmar sua independência. Não há ninguém aqui, na verdade, que
esteja à altura dela... E você tem de admitir que às vezes nós a tratamos como se
tivesse uns doze anos.”
Nicole não disse nada. Richard inclinou-se e tocou-lhe o braço. “Nós
sempre soubemos que Katie era a mais tensa de todas as crianças. Infelizmente,
ela parece muito comigo.”
“Mas você pelo menos canaliza sua energia para projetos que valham a
pena. Katie é tão prontamente destrutiva quanto construtiva... Falando sério,
Richard, eu gostaria que você tivesse uma conversa com ela. De outro modo,
temo que tenhamos problemas sérios quando encontrarmos os outros humanos.”
“E o que quer que eu diga a ela?”, respondeu Richard após um breve
silêncio. “Que a vida não é feita de um momento excitante após outro?... E por
que razão deveria eu pedir-lhe que não se retirasse para seu mundo de fantasia
em seu próprio quarto? É provável que ele seja mais interessante do que este.
Infelizmente, não há nada de muito excitante para uma mulher jovem como Katie
em parte alguma do Novo Éden, neste momento.”
“Esperava que você fosse um pouco mais compreensivo”, respondeu Nicole
um tanto amuada. “Preciso de sua ajuda, Richard... e Katie reage melhor a você.”
Novamente Richard ficou em silêncio. “Está bem”, acabou dizendo, em
tom frustrado, e tornando a deitar-se. “Levarei Katie para esquiar na água
amanhã — ela adora — e pedirei que ela ao menos tenha um pouco mais de
consideração com os outros membros da família.”
“Muito bom. Ótimo”, disse Richard, quando acabou de ler todo o material
no caderno eletrônico de Patrick. Desligando a força, ele olhou para o filho, que
estava sentado defronte do pai, um pouco nervoso. “Você aprendeu álgebra muito
depressa, e positivamente tem um dom para a matemática. Quando chegarem os
outros humanos no Novo Éden, você estará quase pronto para cursos
universitários — pelo menos em matemática e ciência.”
“Mas mamãe diz que ainda estou muito atrasado com o meu inglês”,
respondeu Patrick. “Ela diz que minhas redações parecem de criança.”
Nicole ouviu a conversa e aproximou-se, vindo da cozinha. “Patrick,
querido, Garcia 041 diz que você não leva suas redações a sério. Sei que você não
pode aprender tudo do dia para a noite, mas não quero que fique embaraçado
quando encontrarmos os outros humanos.”
“Mas eu gosto mais de matemática e ciência”, protestou Patrick. “Nosso
robô Einstein disse que poderia ensinar-me cálculo em três ou quatro semanas —
se eu não tivesse de estudar tantas outras matérias.”
A porta da frente abriu-se de repente e Katie e Ellie entraram brincando.
O rosto de Katie estava brilhando e vivo. “Desculpem o atraso, mas tivemos um
dia ótimo.” Voltou-se para Patrick e acrescentou: “Eu guiei o barco sozinha, e
atravessei todo o lago Shakespeare. Deixamos Garcia na margem.”
Ellie não estava tão entusiasmada quanto a irmã. Na verdade, parecia um
pouquinho emburrada. “Você está bem, querida?” perguntou Nicole baixinho à
caçula, enquanto Katie regalava o resto da família com suas histórias da
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aventura no lago.
Ellie acenou com a cabeça, mas não disse nada.
“O excitante, mesmo”, vibrava Katie, “foi cruzar nossas próprias ondas em
alta velocidade. Bam-bam-bam, íamos batendo de uma onda para outra. Às
vezes, parecia que estávamos voando.”
“Aqueles barcos não são brinquedos”, comentou Nicole alguns momentos
mais tarde, ao chamar todos para que viessem jantar. Benjy, que estivera na
cozinha pegando uns pedacinhos de salada com as mãos, foi o último a se sentar.
“O que é que você faria se o barco virasse?”, perguntou Nicole depois de
estarem todos sentados.
“As Garcias iriam nos salvar”, respondeu Katie, sem dar muita importância
ao assunto . “Havia três nos olhando da praia... Afinal, é para isso que elas
servem... Além do que, estamos usando salva-vidas, e de qualquer modo eu sei
nadar.”
“Mas sua irmã não sabe”, retrucou imediatamente Nicole, em tom crítico.
“E você sabe que ela teria ficado apavorada se tivesse sido atirada na água.”
Katie tentou argumentar, mas Richard interferiu e mudou de assunto,
antes que a discussão pegasse fogo. Na verdade, toda a família andava um pouco
nervosa. Rama havia entrado na órbita de Marte fazia um mês, mas ainda não
havia qualquer sinal do contingente humano que supostamente eles deveriam
encontrar. Nicole sempre supusera que seu encontro com os outros terráqueos
teria lugar logo após sua inserção na órbita de Marte.
Depois do jantar, toda a família foi para o pequeno observatório de
Richard no quintal da casa, para olhar para Marte. O observatório tinha acesso a
todos os sensores externos de Rama (porém a nenhum dos internos fora do
perímetro do Novo Éden — a Águia fora muito firme quanto a esse ponto durante
suas discussões sobre o desenho da nave) e podia portanto apresentar vistas
telescópicas esplêndidas de cada parte do dia do Planeta Vermelho.
Benjy gostava particularmente dessas sessões de observação com Richard.
Sentia muito orgulho de poder apontar os vulcões da região de Tharsis, o grande
desfiladeiro chamado Valles Marineris, e a área Chryse, onde a primeira nave
Viking pousara havia mais de duzentos anos. Uma tempestade de pó estava-se
formando ao sul da Estação Mutch, centro da grande colônia marciana
abandonada nos dias incertos que se seguiram ao Grande Caos. Richard
especulou que o pó poderia espalhar-se por todo o planeta, já que estava na
estação certa para esse tipo de tempestade global.
“O que acontecerá se os outros terráqueos não aparecerem?”, indagou
Katie durante um momento de pausa nas observações de Marte. “E por favor,
mamãe, dê uma resposta clara, desta vez; nós não somos mais crianças.”
Nicole ignorou o tom desafiador do comentário de Katie. “Se me lembro
corretamente, o plano básico reza que devemos esperar aqui na órbita de Marte
por seis meses”, respondeu. “Se não houver encontro dentro desse período, Rama
irá na direção da Terra.” Fez uma pausa de vários segundos. “Nem seu pai nem
eu sabemos qual será o procedimento a partir desse ponto. A Águia nos disse que
se forem postos em marcha quaisquer dos planos de emergência, eles nos dirão,
no momento certo, tudo o que precisamos saber.”
A sala ficou quieta por quase um minuto, enquanto imagens de Marte em
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foi ao Hotel Dusit Thani em Chiang Mai para sua entrevista na AEI. Ficou
espantada de ver Kenji sentado atrás de uma escrivaninha com o emblema oficial
da AEI na camisa. A princípio Nai ficou perturbada. “Juro que não havia visto
seus documentos antes de sábado”, disse Kenji à guisa de desculpas. “Se
soubesse que estava entre as candidatas, eu teria tomado uma outra excursão.”
A entrevista correu muito bem. Kenji foi extremamente elogioso, tanto a
respeito da excepcional folha acadêmica de Nai quanto a seu trabalho voluntário
nos orfanatos de Lamphun e Chiang Mai. Nai reconheceu honestamente que não
sentira sempre algum “desejo incontrolável” de viajar no espaço, mas já que tinha
em princípio uma “natureza aventureira” e o posto na AEI lhe permitiria também
atender a todas as suas obrigações familiares, havia se candidatado à posição em
Marte.
Já no final da entrevista, quando houve uma pausa no conversa, Nai
perguntou agradavelmente: “É tudo?”, levantando-se de sua cadeira.
“Só mais uma coisa”, disse Kenji Watanabe, repentinamente desajeitado.
“Isto é, se você for boa na interpretação dos sonhos.”
Nai sorriu e tornou a sentar-se. “Vamos lá”, disse.
Kenji respirou fundo. “Sábado à noite eu sonhei que estava na floresta, em
algum ponto perto do sopé de Doi Suthep — sabia onde estava porque podia ver o
chedi dourado no alto de minha tela de sonhos. Corria pelo meio das árvores,
tentando encontrar o caminho, quando deparei com uma sucuri imensa deitada
em um ramo, ao lado de minha cabeça.
‘“Aonde está indo?’, perguntou-me a sucuri.
“ ‘Estou procurando minha namorada’, respondi.
‘“Ela está no alto da montanha’, disse a sucuri.
“Eu me safei da floresta, fiquei ao sol e olhei para o cume de Doi Suthep.
Minha namorada de infância Keiko Murosawa estava lá, de pé, acenando para
mim. Eu me virei e olhei para trás, para a sucuri.
“‘Olhe de novo’, disse ela.
“Quando olhei para o alto da montanha uma segunda vez, o rosto da
mulher tinha mudado. Não era mais Keiko — era você quem estava acenando
para mim do cume de Doi Suthep.”
Kenji ficou em silêncio por vários segundos. “Eu jamais tivera um sonho
tão inesperado e vivido. Pensei talvez...”
Nai sentiu arrepios no braço enquanto Kenji contava sua história. Ela
sabia o final — que ela, Nai Buatong, seria a mulher acenando do alto da
montanha — mesmo antes de ele terminar. Nai inclinou-se para a frente, ainda
sentada. “Sr. Watanabe”, disse ela lentamente, “espero que o que vou dizer não o
ofenda...”
Nai ficou quieta por vários segundos. “Temos um famoso ditado tai”, disse
ela finalmente, como os olhos evitando encontrar os dele, “que afirma que quando
uma cobra fala com você em um sonho, você encontrou o homem ou a mulher
com quem irá se casar.”
Seis semanas mais tarde ela recebeu o aviso, lembrou-se Nai, que
continuava sentada no pátio ao lado do templo da rainha Chamatevi, em
Lamphun. O pacote com o material de AEI chegou três dias mais tarde, junto com
as flores de Kenji.
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você mesmo e de sua linda mulher em Marte. Todos nós sentimos muito orgulho
de você.”
Kenji jamais conhecera Yukiko muito bem. Afinal, ele era quase doze anos
mais velho do que ela. Yuki só tinha quatro anos quando o sr. Watanabe foi
indicado para a posição de presidente da divisão americana da Robótica
Internacional. A família atravessara o Pacífico para ir morar em um subúrbio de
San Francisco. Kenji não prestava muita atenção à irmãzinha naquele tempo. Na
Califórnia, ele estivera muito mais interessado em sua nova vida, particularmente
quando começou a freqüentar a universidade na UCLA.
O casal Watanabe e Yukiko voltaram ao Japão em 2232, deixando Kenji
em seu segundo ano de História na universidade. Ele tivera muito pouco contato
com Yukiko desde então. Durante suas visitas anuais à família em Kioto, ele
sempre fazia planos de passar algumas horas só com Yukiko, mas afinal isso
nunca acontecia. Ou ela estava por demais envolvida com a própria vida, ou seus
pais programavam um número excessivo de eventos sociais, ou então o próprio
Kenji não tinha tempo.
Kenji ficou vagamente entristecido, parado junto à porta, vendo Yukiko se
afastar. Vou deixar este planeta, pensou ele, e no entanto nunca tive tempo para
conhecer minha própria irmã.
A sra. Watanabe falava monotonamente atrás dele, expressando seus
sentimentos de que sua vida fora um fracasso porque nenhum de seus filhos lhe
tinha o menor respeito e ainda se mudavam para outro lugar. Agora seu único
filho, que se casara com uma moça da Tailândia só para embaraçá-los, ia se
mandar para morar em Marte e ela não o veria por cinco anos. Quanto à sua filha
do meio casada com um banqueiro, essa pelo menos lhe havia dado duas netas,
que eram tão desinteressantes e entediantes quanto seus pais...
“Como está Fumiko?”, disse Kenji, interrompendo a mãe. “Será que terei a
oportunidade de vê-la e minhas sobrinhas antes de partir?”
“Eles virão de Kobe amanhã de noite, para jantar, embora eu não tenha
idéia do que hei de dar-lhes para comer... Você sabia que Tatsuo e Fumiko não
estão sequer ensinando as duas meninas a comer com os pauzinhos? Já pensou?
Uma criança japonesa não saber comer com os pauzinhos? Nada é sagrado?
Abrimos mão de nossa identidade para ficarmos ricos. Eu estava dizendo a seu
pai...”
Kenji desculpou-se e afastou-se do queixoso monólogo da mãe, indo
refugiar-se no escritório do pai. Fotografias emolduradas enchiam as paredes da
sala, o documentário da vida pessoal e profissional de um homem bem-sucedido.
Duas das fotos traziam lembranças especiais para Kenji. Em uma delas, ele e o
pai seguravam um grande troféu outorgado pelo clube de campo aos vencedores
do torneio pai-filho de golfe. Na outra, um radiante sr. Watanabe estava
entregando uma grande medalha ao filho, quando Kenji tirou o primeiro lugar no
aproveitamento acadêmico do ginásio.
O que Kenji esquecera até ver a foto de novo era que Toshio Nakamura,
filho do maior amigo e sócio comercial de seu pai, fora o segundo em ambos os
casos. Em ambas as fotos, o jovem Nakamura, quase uma cabeça mais alto do
que Kenji, trazia o rosto sombreado por um franzido intenso e zangado na testa.
Isso foi muito antes dos problemas dele, refletiu Kenji, relembrando a
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alguma espécie de crustáceo com um molho leve, porém Kenji seria incapaz de
identificar seja o molusco, seja o molho. Não comera mais de meia dúzia dessas
refeições kaiseki nos dezessete anos desde que deixara Kioto.
“Campai”, disse Kenji, batendo com sua caneca no copinho de saque do
pai. “Obrigado, meu pai. Sinto-me honrado em estar jantando aqui com o
senhor.”
Kicho era o mais famoso restaurante da região Kansai, talvez até de todo o
Japão. Era também assustadoramente caro, já que preservava integralmente as
tradições de serviço individualizado, salas de jantar privadas e pratos especiais de
cada estação, feitos exclusivamente de ingredientes da mais alta qualidade. Cada
prato era um deleite para os olhos, tanto quanto para o paladar. Quando o sr.
Watanabe informou ao filho que iriam jantar sozinhos, apenas eles dois, Kenji
jamais imaginara que seria no Kicho.
Estavam conversando sobre a expedição a Marte. “Quantos dos outros
colonizadores são japoneses?”, indagou o pai.
“Muitos. Quase trezentos, se me lembro bem. Havia várias candidaturas
de alto nível do Japão. Só a América tem um contingente maior.”
“Você conhece alguns dos outros japoneses pessoalmente?
“Dois ou três. Yasuko Horikawa esteve algum tempo na minha turma no
curso secundário em Kioto. O senhor se lembra dela. Muitíssimo inteligente.
Dentuça, óculos grossos. Ela é, ou deveria dizer era, química da Dai-Nippon.”
O sr. Watanabe sorriu. “Creio que me lembro dela”, disse. “Não esteve lá
em casa na noite em que Keiko tocou piano?”
“Acho que sim”, respondeu Kenji muito à vontade. Riu-se. “Mas tenho
dificuldade em me lembrar de qualquer coisa além de Keiko, naquela noite.”
O sr. Watanabe esvaziou seu copo de saque. A garçonete mais moça,
discretamente ajoelhada em um canto do tatame da salinha, aproximou-se da
mesa para tornar a enchê-lo. “Kenji, estou preocupado com os criminosos”, disse
o sr. Watanabe depois que a moça se afastou.
“Do que é que está falando, meu pai?”
“Li uma longa reportagem em uma revista dizendo que a AEI recrutara
várias centenas de condenados para serem parte da Colônia Lowell. O artigo
enfatizava o fato de todos os criminosos terem tido fichas perfeitas durante seus
períodos de detenção, além de qualificações de alto nível. Mas que necessidade
havia de se levar todos esses condenados?”
Kenji tomou um gole de sua cerveja. “Na verdade, meu pai, houve alguma
dificuldade no processo de recrutamento. Primeiro, tivemos uma previsão pouco
realista sobre quantas pessoas iriam candidatar-se, e por isso criamos critérios
de seleção muito difíceis. Em segundo lugar, o período mínimo de cinco anos foi
um erro. Principalmente para os jovens, a decisão de fazer o que quer que seja
por período tão longo parece um compromisso arrasador. O mais importante,
porém, é que a imprensa solapou seriamente todo o processo da criação de
quadros. Na época em que estávamos buscando candidaturas, houve miríades de
artigos em revistas e ‘especiais’ de televisão sobre o desaparecimento das colônias
marcianas há centenas de anos. As pessoas ficaram com medo de que a história
se repetisse, e que elas também pudessem vir a ser abandonadas
permanentemente em Marte.”
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Kenji fez uma ligeira pausa, porém o sr. Watanabe não pronunciou qualquer
comentário. “Além do quê, como o senhor bem sabe, o projeto tem tido uma
série de crises financeiras. Foi durante um desses apertos orçamentários no ano
passado que começamos a pensar em condenados de alta capacidade como um
modo de resolver alguns de nossos problemas de pessoal e de orçamento. Embora
devessem receber salários apenas modestos, vários outros incentivos levavam os
sentenciados a se candidatarem. A escolha significava a concessão de perdão
completo, e portanto liberdade quando voltassem à Terra ao fim de cinco anos.
Além do mais, os ex-prisioneiros teriam plena cidadania na Colônia Lowell, como
todo mundo, sem ter mais de tolerar a onerosa monitoração de todas as suas
atividades...”
Kenji parou quando dois pequenos pedaços de peixe grelhado, delicados,
bonitos e arranjados em um ninho de folhas variadas, foram postos na mesa. O
sr. Watanabe pegou um dos pedaços com seus pauzinhos e deu uma dentadinha.
“Oishii desu’“ comentou ele, sem olhar para o filho.
Kenji estendeu a mão para pegar seu pedaço de peixe. Aparentemente, a
conversa sobre os condenados estava terminada. Kenji olhou por cima de seu pai,
onde podia ver o belo jardim pelo qual era famoso o restaurante. Um fiozinho de
água descia por degraus polidos e corria ao lado de meia dúzia de árvores anãs. O
assento defronte à janela era sempre o lugar de honra em uma refeição
tradicional japonesa. O sr. Watanabe insistira em que Kenji tivesse a vista para o
jardim neste último jantar.
“Não puderam atrair colonos chineses?”, perguntou o pai, depois que
haviam terminado o peixe.
Kenji sacudiu a cabeça. “Só uns poucos, de Cingapura e da Malásia. Tanto
o governo da China quanto do Brasil proibiram seus cidadãos de se candidatar.
A decisão brasileira já era esperada — seu império sul-americano está
virtualmente em guerra com o CDG — mas esperávamos que os chineses
amolecessem sua posição. Acho que cem anos de isolamento não morrem com
facilidade.”
“Não se pode realmente culpá-los”, retrucou o sr. Watanabe. “Sua nação
passou por horríveis sofrimentos durante o Grande Caos. Todo o capital
estrangeiro sumiu da noite para o dia e sua economia entrou imediatamente em
colapso.”
“Conseguimos recrutar alguns africanos negros, talvez uns cem ao todo, e
um punhado de árabes. Mas a maior parte dos colonizadores vem de países que
contribuem significativamente para a AEI, o que era mais ou menos de se
esperar.”
Kenji ficou repentinamente embaraçado. Toda a conversa, desde que os
dois chegaram ao restaurante, versava exclusivamente sobre ele e suas atividades.
Durante os pratos que se seguiram, Kenji fez perguntas ao pai a respeito
de seu trabalho na Robótica Internacional. O sr. Watanabe, que a essa altura era
o principal executivo operacional da corporação, sempre se iluminava de orgulho
quando falava de “sua” companhia. Tratava-se da maior manufatura de robôs
para fábricas e escritórios do mundo inteiro. As vendas anuais da RI, como
sempre era chamada, colocava-a entre os cinqüenta principais fabricantes do
mundo.
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“Faço 62 anos no ano que vem”, disse o sr. Watanabe, que vários copos de
saque haviam tornado mais comunicativo, “e pensava poder me aposentar. Mas
Nakamura diz que seria um erro. Diz que a companhia ainda precisa de mim...”
Antes que servissem as frutas, Kenji e seu pai estavam novamente discutindo
a projetada expedição a Marte. Kenji explicou que Nai e a maioria dos
outros colonizadores asiáticos que viajariam na Pinta ou na Nina já se encontravam
no centro de treinamento japonês no sul de Kiushu. Ele iria juntar-se
a sua mulher tão logo deixasse Kioto, e após mais dez dias de treinamento, eles e
os outros passageiros da Pinta seriam transportados para uma estação espacial
OTB (Orbita Terrena Baixa), onde teriam uma semana de treino de
imponderabilidade. A última etapa de sua viagem junto à Terra seria um passeio
a bordo de um rebocador espacial, de OTB até a estação espacial geossincrônica
em GTB-4, onde no momento a Pinta estava sendo montada enquanto era
submetida aos últimos testes e também sendo equipada para a longa viagem até
Marte.
A garçonete mais moça trouxe-lhes dois copos de conhaque. “Aquela sua
mulher é realmente uma criatura magnífica”, disse o sr. Watanabe, tomando um
golezinho do licor. “Sempre julguei que as mulheres tai fossem as mais bonitas do
mundo.”
“Ela também é bonita por dentro”, acrescentou logo Kenji, sentindo falta
repentinamente de sua nova esposa. “E também é muito inteligente.”
“Seu inglês é excelente”, comentou o pai, “mas sua mãe diz que o japonês
dela é horrível.”
Kenji encrespou-se. “Nai tentou falar japonês — que, aliás, ela jamais
estudou — porque mamãe se recusou a falar em inglês. Foi tudo feito
deliberadamente para fazer Nai sentir-se pouco à vontade...”
Kenji controlou-se. Seus comentários em defesa de Nai não eram adequados
à ocasião.
“Gomen nasai”, disse ele ao pai.
O sr. Watanabe tomou um bom gole de seu conhaque. “Bem, Kenji, esta
será a última vez que ficamos juntos sozinhos por pelo menos cinco anos.
Apreciei muitíssimo nosso jantar e nossa conversa.” Fez uma pausa. “Há, porém,
mais um item que gostaria de discutir com você.”
Kenji mudou de posição (não estava mais acostumado a ficar sentado no
chão de pernas cruzadas por períodos de quatro horas) e esticou bem o corpo,
tentando ficar com a mente clara. O tom usado pelo pai já lhe dizia que aquele
“mais um item” era sério.
“Meu interesse nos criminosos em sua Colônia Lowell não vem apenas de
mera curiosidade”, começou o sr. Watanabe, mas parou um pouco para organizar
seus pensamentos antes de continuar. “Nakamura-san veio ao meu escritório no
final da semana passada, no fim do expediente, e disse-me que a segunda
candidatura de seu filho para a Colônia Lowell também fora recusada.
Perguntou-me se eu podia pedir a você para dar uma olhada no assunto.”
O assunto atingiu Kenji como um raio. Jamais fora informado de que seu
rival de infância tivesse se candidatado à Colônia Lowell, e agora lá estava seu
pai...
“Não estive envolvido no processo de seleção de candidaturas de condenados”,
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“Não há nada no vídeo que indique quando ele foi feito”, argumentou o sr.
Srinivasan. “E se compararem fotos de Madame des Jardins tiradas durante a
missão com as fotos da mulher que recebemos na transmissão, elas são
decididamente diferentes. Seu rosto está mais velho, talvez uma diferença de uns
dez anos. Se quem fala no vídeo é um embuste, então é surpreendentemente
competente.”
O sr. Srinivasan concordou, no entanto, que o plano eventualmente
desenvolvido pela AEI era o correto, mesmo que o vídeo estivesse realmente
apresentando uma verdade. De maneira que deixou de ser importante convencer
a todos de que o seu ponto de vista estava correto. O que era absolutamente
necessário, concordaram todos os superagentes, é que o número menor possível
de pessoas tivesse conhecimento da existência do vídeo.
Os quarenta anos passados desde o início do século XXIII haviam testemunhado
mudanças marcantes no planeta Terra. Em seguida ao Grande Caos,
o Conselho dos Governos (CDG) emergira como uma organização monolítica
controlando (ou pelo menos manipulando) a política do planeta. Só a China, que
recuara para o isolamento após sua experiência devastadora durante o Grande
Caos, ficaria fora da esfera de influência do CDG. Mas depois de 2200
apareceram sinais de que o poder indiscutível do CDG estava começado de sofrer
certa erosão.
Primeiro foram as eleições da Coréia em 2209, quando o povo daquela
nação, desgostoso com sucessivos regimes de políticos corruptos que haviam
enriquecido à custa do povo, efetivamente votou para se federar com os chineses.
De todos os principais países do mundo, só a China tinha uma espécie de
governo significativamente diversa do capitalismo regulado que praticavam as
nações ricas e as confederações na América do Norte, Ásia e Europa. O governo
chinês era uma espécie de democracia socialista baseada nos princípios
humanistas esposados pelo canonizado católico italiano do século XXII, S. Miguel
de Siena.
O CDG, e na realidade o mundo inteiro, ficaram abobalhados ante os
estarrecedores resultados na Coréia. Quando a Ali atingiu capacidade para
fomentar uma guerra civil (2211-2212), o novo governo coreano e seus aliados
chineses já haviam conquistado os corações e as mentes do povo. A rebelião foi
facilmente sufocada e a Coréia tornou-se parte permanente da federação chinesa.
Os chineses reconheciam abertamente não ter intenção de exportar sua
forma de governo por meio de ações militares, mas o resto do mundo não
acreditava em sua palavra. Os orçamentos militares e de inteligência do CDG
dobraram entre 2210 e 2220, enquanto a tensão voltava à cena mundial.
Nesse meio tempo, em 2218, trezentos e cinqüenta milhões de brasileiros
elegeram um carismático general, João Pereira, para chefiar a nação. O general
Pereira acreditava que a América do Sul era maltratada e desvalorizada pelo CDG
(e não estava enganado) e exigia mudanças na carta do CDG que corrigissem tais
problemas. Quando o CDG recusou, Pereira galvanizou o regionalismo sulamericano
ao denunciar unilateralmente a carta do CDG. O Brasil separara-se,
efetivamente, do Conselho dos Governos e durante a década que se seguiu a
maioria das nações sul-americanas, encorajadas pela maciça força militar do
Brasil, que se opusera com sucesso às forças de paz do CDG, seguiu o seu
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alguém especial?”
“Não”, respondeu Kenji, sem poder conter o riso. “Como já disse, sou só o
principal historiador da colônia.”
Kenji estava a ponto de dizer a Max que vivera nos Estados Unidos por
seis anos — o que explicaria a boa qualidade de seu inglês — quando a porta da
sala se abriu e um cavalheiro respeitável, de meia-idade, vestido com um terno
cinzento e usando gravata escura, entrou. “Perdão”, disse a Max, que novamente
colocara na boca seu cigarro apagado, “será que eu me confundi e acabei na sala
dos fumantes?”
“Não, papai”, respondeu Max. “Esta é a sala de observação. É bonita
demais para ser área de fumante. Provavelmente, só se pode fumar em uma
salinha pequena, sem janelas, ao lado de algum banheiro. Meu entrevistador da
AEI me disse...”
O senhor de meia-idade estava olhando para Max como se fosse um
biólogo e Max alguma espécie rara mas desagradável. “Meu nome, meu jovem”,
interrompeu ele, “não é papai. É Pyotr. Para ser exato, Pyotr Mishkin.”
“Muito prazer, Peter”, disse Max, estendendo a mão. “Eu sou Max. Esse
casal são os Wabanyabes. São japoneses.”
“Kenji Watanabe”, corrigiu Kenji. “E esta é minha mulher Nai, que é
cidadã tailandesa.”
“Sr. Max”, disse Pyotr Mishkin formalmente, “meu primeiro nome é Pyotr,
não Peter. Já basta que eu tenha de falar inglês por cinco anos. Sem dúvida,
posso pedir que meu nome, pelo menos, retenha seu som russo original.”
“OK, Pee-yot-ur”, disse Max, sorrindo novamente. “O que é que você faz,
afinal? Deixe-me adivinhar... você é o agente funerário da colônia.”
Por uma fração de segundo, Kenji temeu que o sr. Mishkin fosse explodir
de raiva. Ao invés disso no entanto, um mínimo sorriso apareceu em seu rosto.
“Parece, sr. Max”, disse ele lentamente, “que o senhor tem certos dons para
comediante. E compreendo que isso possa mesmo até ser uma virtude em uma
longa e tediosa viagem espacial.” Parou por um momento. “Para sua informação,
não sou agente funerário. Estudei Direito. Até dois anos atrás, quando me
aposentei por vontade própria a fim de buscar ‘uma nova aventura’, era membro
do Supremo Tribunal Soviético.”
“Santa merda”, exclamou Max Puckett. “Estou me lembrando Eu li a seu
respeito no Time... Puxa, juiz Mishkin, desculpe. Eu não tinha reconhecido...”
“Não seja por isso”, interrompeu o juiz Mishkin, com um sorriso divertido
se abrindo em seu rosto. “Foi fascinante ser desconhecido por um momento e ser
tomado por agente funerário. É provável que o ar de um juiz já há muito
integrado em sua atividade fique bem próximo da expressão severa do empregado
de uma funerária. Por falar nisso, sr...”
“Puckett, senhor.”
“Por falar nisso, sr. Puckett”, continuou o juiz, “gostaria de juntar-se a
mim no bar para um drinque? Uma vodca ia ter um gosto particularmente
delicioso neste momento.”
“Uma tequila também”, respondeu Max, dirigindo-se para a porta com o
juiz Mishkin. “E por acaso o senhor sabe o que acontece quando se dá tequila aos
porcos?... É, eu achava que não... Bem, eu e meu irmão Clyde...”
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breve chamada para a Tailândia, Nai deu parabéns à irmã por ter conquistado
uma bolsa para a universidade.
Pyotr Mishkin não telefonou para ninguém. A mulher do velho russo
morrera e ele não tinha filhos. “Tenho lembranças maravilhosas”, disse ele a Max,
“mas não há mais nada de pessoal na Terra, para mim.”
No primeiro dia do blackout de comunicações programado, um anúncio foi
inserido em todos os canais em operação, dizendo que um programa importante,
que teria de ser visto por todos, seria apresentado às duas horas daquela tarde.
Kenji e Nai convidaram Max e o juiz Mishkin para assistirem o programa com eles
em seu pequeno apartamento.
“Só imagino que porcaria de sermão vai ser desta vez”, disse Max, sempre
contrário a tudo que pudesse desperdiçar seu tempo.
Quando o vídeo começou, o presidente do CDG e o diretor da AEI foram
mostrados sentados juntos em frente a uma vasta mesa de trabalho. O presidente
do CDG sublinhou a importância da mensagem que todos estavam a ponto de
receber de Werner Koch, diretor da AEI.
“Passageiros da Pinta”, começou o dr. Koch, “há quatro anos nossos
satélites do sistema de rastreamento decodificaram um sinal coerente, aparentemente
originário do mais longínquo espaço na direção geral da estrela
Epsilon Eridani. Depois de processado, verificou-se que o sinal continha um vídeo
espantoso, que vocês verão na íntegra dentro de mais ou menos cinco minutos.
“Como irão ouvir, o vídeo anuncia a volta ao nosso sistema de uma
espaçonave Rama. Em 2130 e 2200, cilindros gigantescos, com cerca de
cinqüenta quilômetros de comprimento e vinte de largura, criados por uma
inteligência desconhecida alienígena para objetivos que continuamos a não
vislumbrar, visitaram nossa família de planetas em órbita em torno do sol.
A segunda intrusa, normalmente chamada de Rama II, fez uma correção
de velocidade enquanto dentro da órbita de Vênus que a colocava em rota de
impacto com a Terra. Uma esquadra de mísseis nucleares foi despachada para
encontrar o cilindro alienígena e destruí-lo antes que Rama chegasse
suficientemente perto de nosso planeta para lhe causar danos.
“O vídeo que se segue afirma que outra dessas espaçonaves Rama veio
agora para nossa proximidade, com o objetivo único de adquirir uma amostragem
representativa de cerca de dois mil seres humanos para ‘observação’. Por bizarra
que tal afirmativa possa parecer, é importante notar que nosso radar
efetivamente confirma que um veículo da classe Rama entrou na órbita da Marte
há menos de um mês.
“Infelizmente, temos de levar a sério essa mensagem que nos chega das
profundezas do espaço. Portanto, vocês, colonizadores a bordo da Pinta, foram
destacados para se encontrarem com o novo objeto na órbita de Marte.
Compreendemos que esta notícia será um grande choque para a maioria de
vocês, porém não nos foram dadas quaisquer opções viáveis. Se, como
suspeitamos, algum gênio tresloucado planejou e organizou isso como um grande
engodo, após um breve desvio de rota vocês continuarão para sua colonização de
Marte, tal como fora concebida inicialmente. Se, no entanto, o vídeo que estão a
ponto de ver estiver efetivamente dizendo a verdade, então vocês e seus
companheiros a bordo da Nina e da Santa Maria virão a ser contingente de seres
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aqui não há homens para nos chatear. Estes são terríveis, piores do que os caras
na aldeia de detenção em Bourges. Esses caras aí acho que não pensam em nada
a não ser sexo o dia inteiro.”
“É fácil saber por quê”, respondeu Kimberly, rindo novamente. “É a
primeira vez em não sei quantos anos que não são observados dia e noite sem
parar. Quando os homens de Toshio sabotaram todos os monitores ocultos, de
repente todo mundo ficou livre.” Lançou um olhar a Eponine. “Mas a coisa tem
um lado mau, também. Houve mais dois estupros hoje, um bem na área de
recreação para os dois sexos.”
Kimberly acabou seu cigarro e acendeu outro imediatamente. “Você precisa
de alguém que a proteja, e eu sei que Walter ia adorar o emprego. Por causa
de Toshio, os presos na maioria já desistiram de cismar comigo. Minha maior
preocupação agora são os guardas da AEI — eles pensam que são merda
importante. Só aquele italiano lindo e parrudo, Marcello não sei das quantas, é
que me interessa. Ontem ele me disse que me faria ‘gemer de prazer’ se fosse me
juntar a ele no quarto. Fiquei tentadíssima, até ver um dos capangas do Toshio
nos olhando.”
Eponine também acendeu outro cigarro. Sabia que era ridículo fumar um
depois do outro, mas os passageiros da Santa Maria só tinham três “paradas” de
meia hora por dia, e era proibido fumar nas superpopulosas áreas de estar.
Enquanto Kimberly foi momentaneamente distraída por uma pergunta feita por
uma mulher fortona de cerca de quarenta anos, Eponine rememorou os primeiros
dias desde que deixara a Terra. Em nosso terceiro dia fora, lembrou ela,
Nakamura mandou um mediador me procurar. Eu devo ter sido sua primeira
escolha.
O imenso japonês, lutador de sumô antes de se tornar cobrador de uma
famosa cadeia de jogo, curvara-se formalmente ao aproximar-se dela na sala m/f.
“Srta. Eponine”, dissera ele em inglês, com muito sotaque, “o meu amigo
Nakamura-san pediu-me que lhe dissesse que a acha muito bonita. Ele lhe
oferece proteção total em troca de sua amizade e um ocasional momento de
prazer”.
A oferta tinha seus atrativos, rememorou Eponine, e não difere muito do
que a maioria das mulheres de aspecto razoável na Santa Maria acabou por
aceitar. Eu já sabia que Nakamura era muito poderoso. Mas não gostei da frieza. E
cometi o erro de pensar que poderia permanecer livre.
“Está pronta?” repetiu Kimberly, e Eponine acordou repentinamente de
seu devaneio. Apagando o cigarro, dirigiu-se com a amiga para o vestiário.
Enquanto se despiam e se preparavam para o chuveiro, pelo menos uma dúzia de
olhos banqueteavam-se com seus magníficos corpos.
“Não te chateia”, perguntou Eponine quando estavam já lado a lado no
chuveiro, “que essas sapatonas fiquem te devorando com os olhos?”
“Neca”, respondeu Kimberly. “De certo modo, eu curto. Não deixa de ser
elogioso. Não há muitas mulheres por aqui com o nosso aspecto. Até me excita
ver a fome com que elas me olham.”
Eponine lavou a espuma de sabão de seus seios rijos e fartos, e inclinouse
para Kimberly. “Então já fez sexo com outra mulher?”
“É claro”, respondeu Kimberly com seu riso grave. “Você, não?” Sem
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que estava acabando com a sua vida.” Walter parou por um momento e virou os
olhos. “Mas aquela sua amiga, a Kimberly, ela e o namorado liquidaram três
pessoas que nem sequer conheciam, só pelo dinheiro e as drogas.”
“Ela estava doidona na hora.”
“Não importa. Todos nós somos responsáveis por nosso comportamento.
Se eu me encho de uma merda que me torna abominável, o erro é meu. Mas não
posso tirar o corpo fora de minhas responsabilidades.”
“A ficha dela no centro de detenção foi perfeita. Todos os médicos que
trabalharam com ela disseram que é uma excelente enfermeira.”
Walter parou de tocar seu teclado e olhou para Eponine por vários segundos.
“Não vamos falar mais de Kimberly. O tempo que temos para ficarmos
juntos já é tão pouco... Você pensou na minha proposta?”
Eponine suspirou. “Pensei, Walter. E embora eu goste de você e ache fazer
amor com você ótimo, o arranjo que você sugeriu parece demais com um
compromisso... Além do mais, acho que a idéia só agrada a seu ego. A não ser
que meu palpite esteja errado, você prefere Malcolm...”
“Malcolm não tem nada a ver conosco”, interrompeu Walter. “Há anos que
é meu grande amigo, desde os meus primeiros tempos no centro de detenção da
Geórgia. Nós tocamos música juntos. Compartilhamos sexo quando estamos
ambos muito solitários. Somos irmãos de alma...”
“Eu sei, eu sei... Malcolm não é a questão principal; é antes o princípio da
coisa que me incomoda. Eu gosto de você, Walter, você sabe disso. Mas...” A voz
dela foi sumindo, enquanto Eponine enfrentava sua luta interior.
“Estamos a três semanas da Terra”, disse Walter, “e temos mais seis antes
de atingirmos Marte. Eu sou o homem maior da Santa Maria. Se eu disser que
você é a minha pequena, ninguém a incomodará durante essas seis semanas.”
Eponine relembrou a cena desagradável que acontecera naquela manhã,
quando dois condenados alemães conversaram sobre o quanto era fácil estuprar
alguém do alojamento dos condenados. Eles sabiam que ela podia ouvi-los e não
fizeram o menor esforço para abaixar a voz.
Finalmente, ela se aconchegou dentro dos imensos braços de Walter.
“Está bem”, disse. “Mas não espere muita coisa... Eu sou uma mulher assim meio
difícil.”
“Acho que Walter talvez tenha um problema cardíaco”, sussurrou
Eponine. Era tarde da noite e as duas outras companheiras de quarto estavam
dormindo. Kimberly, no beliche embaixo do de Eponine, continuava chumbada
com o kokomo que fumara havia duas horas. Não conseguiria dormir ainda por
várias horas.
“Os regulamentos desta nave são uma porra de uma estupidez. Cruzes,
até o Complexo de Detenção de Pueblo tinha menos regulamentos. Por que raios
não podemos ficar nas áreas comuns depois da meia-noite? Que mal estamos
fazendo?”
“Volta e meia, ele tem umas dores no peito, e quando fazemos sexo com
muito vigor, muitas vezes ele se queixa depois de falta de ar... Será que você
podia dar uma espiada nele?”
“E que tal aquele Marcello? Hein? Mas que cretino mais estúpido! Dizendo
que posso ficar acordada a noite inteira se quiser ir ao quarto dele. Na hora em
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que estou sentada com Toshio. O que é que ele acha que está fazendo? Ora, nem
os guardas têm direito de brincar com o rei Jap... O que foi que você disse,
Eponine?”
Eponine levantou o torso, apoiou-se em um cotovelo e inclinou-se para
fora de seu beliche. “Walter Brackeen, Kim; estou falando de Walter Brackeen.
Será que você pode dar um tempo e ouvir o que eu estou dizendo?”
“Tudo bem, tudo bem. O que é que há com Walter? O que é que ele quer?
Todo mundo quer alguma coisa do rei Jap. Acho que isso me faz rainha, de
algum modo...”
“Acho que Walter tem um coração meio pifado”, disse a exasperada
Eponine em voz mais alta. “E gostaria que você desse uma olhada nele.”
“Sh...” respondeu Kimberly. “Eles vêm nos pegar, como fizeram com
aquela louca sueca... Merda, Ep, eu não sou médica. Eu reconheço quando a
batida de um coração está irregular, mas é só... Você devia levar Walter àquele
médico também preso, que é um cardiologista de verdade, como é o nome dele,
aquele superquieto que fica sozinho sempre que não está examinando alguém...”
“Dr. Robert Turner”, cortou Eponine.
“Isso mesmo... muito profissional, isolado, distante, só sabe falar
mediquês, é difícil acreditar que ele estourou os miolos de dois homens, com uma
escopeta, em um tribunal... não faz sentido.” “E como é que você sabe disso?”
“Marcello me contou. Eu estava curiosa, nós estávamos rindo, ele estava
me provocando, dizendo coisas como “aquele japonês te faz gemer?” e “e aquele
quietinho, será que ele te faz gemer?...”
“Cruzes, Kim”, disse Eponine, agora alarmada: “Você tem ido para a cama
com o Marcello também?”
A outra riu. “Só duas vezes. Ele é melhor de papo que de foda. E que ego!
O rei Jap pelo menos aprecia o que recebe.”
“E Nakamura sabe?”
“Está pensando que eu sou louca? Eu não quero morrer. Mas pode ser
que ele desconfie... Não vou fazer mais. Mas se o tal do dr. Turner só sussurrasse
um pouquinho no meu ouvido, eu me lambusava toda de creme...”
Kimberly continuou a resmungar sem sentido. Eponine pensou uns momentos
no dr. Robert Turner. Ele a examinara pouco depois do lançamento,
quando ela aparecera com umas marcas peculiares. Ele sequer notou meu corpo,
lembrou-se ela. Foi um exame completamente profissional.
Eponine esqueceu de Kimberly e concentrou-se na imagem do belo doutor.
Surpreendeu-se ao perceber que estava sentindo uma pequena fagulha de
interesse romântico. Havia qualquer coisa de positivamente misteriosa a respeito
do médico, pois não havia nada em seus modos ou personalidade que tivessem a
mínima relação com um assassinato duplo. Deve haver uma história interessante
ali, pensou.
*
Eponine estava sonhando. Era o mesmo pesadelo que já tivera centenas
de vezes desde o assassinato. O professor Moreau estava caído no chão com os
olhos fechados, em seu estúdio, e o sangue corria de seu peito. Eponine
caminhava até a pia, limpava a grande faca de cozinha, e a colocava de volta no
lugar. Quando passava por cima do cadáver, aqueles olhos odiados se abriam e
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ela via neles sua delirante insanidade. Ele estendia os braços para ela...
“Enfermeira Henderson. Enfermeira Henderson.” A batida na porta foi
ficando mais alta. Eponine acordou de seu sonho e esfregou os olhos. Kimberly e
uma das outras companheiras de quarto chegaram à porta quase ao mesmo
tempo.
O amigo de Walter, Malcolm Peabody, um homem branco, pequenino,
amaneirado, de cerca de quarenta anos, estava na porta, desesperado. “O dr.
Turner pediu uma enfermeira. Venha depressa. Walter teve um ataque de
coração.”
Quando Kimberly começou a se vestir, Eponine deslizou para fora da
cama. “Como está ele, Malcolm?”, perguntou, enfiando um robe. “Está morto?”
Malcolm ficou momentaneamente confuso. “Ah, oi, Eponine”, disse ele
humildemente, “eu me esquecera que você e a enfermeira Henderson... Quando
eu saí ele ainda estava respirando mas...”
Tomando cuidado para manter sempre um pé no chão, Eponine correu
pela porta afora, pelo corredor, para a área comum central, depois pelo
alojamento dos homens. Vários alarmes soaram à medida que os monitores iam
lhe seguindo os passos. Quando chegou na entrada da ala de Walter, Eponine
parou um momento para tomar fôlego.
Um bando de gente estava parada no corredor, do lado de fora do quarto
de Walter. Sua porta estava escancarada e o terço inferior de seu corpo jazia para
o lado de fora, já no hall. Eponine abriu à força seu caminho até o quarto.
O dr. Robert Turner estava ajoelhado ao lado de seu paciente, segurando
os eletrodos junto ao peito de Walter. O corpo do homenzarrão sacudia com cada
choque, depois saía um pouco do chão até o médico empurrá-lo de novo para a
superfície.
O dr. Turner olhou para cima quando Eponine chegou. “Você é a enfermeira?”,
perguntou ele, bruscamente.
Por uma fração de segundo, Eponine ficou sem fala. E embaraçada. Ali
estava o seu namorado morrendo, e a única coisa que ela conseguia pensar era
no azul dos olhos quase perfeitos do dr. Turner. “Não”, conseguiu dizer
finalmente, perturbada. “Sou a namorada... A enfermeira Kimberly é minha
companheira de quarto... Ela deve estar chegando.”
Kimberly e dois guardas AEI como escolta chegaram naquele momento. “O
coração dele parou completamente há quarenta e cinco segundos”, disse o médico
a Kimberly. “É tarde demais para removê-lo para a enfermaria. Vou abri-lo e
tentar usar o estimulador Komori. Trouxe suas luvas?”
Quando Kimberly colocou as luvas, o dr. Turner mandou toda aquela
gente se afastar do paciente. Eponine não se mexeu. Quando os guardas a
agarraram pelos braços, o dr. Turner resmungou alguma coisa e eles a soltaram.
O dr. Turner entregou a Kimberly seus instrumentos cirúrgicos e, trabalhando
com incrível velocidade e habilidade, fez uma incisão profunda no peito de
Walter. Abrindo as dobras da pele, expôs o coração. “Já executou esse tipo de
procedimento, enfermeira Henderson?”
“Não”, respondeu Kimberly.
“O estimulador Komori é um engenho eletroquímico que se adapta ao
coração, forçando-o a bater e a continuar a bombear o sangue. Se a patologia for
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Abraão Lincoln?”
“É claro que não”, respondeu a figura de Lincoln com perfeita objetividade.
“Tanto Benita quanto eu somos biomas humanos. Vocês vão encontrar cinco
categorias de biomas humanos no Novo Éden, cada tipo desenhado com
capacidades específicas a fim de libertar os humanos de tarefas tediosas e
repetitivas. Minhas áreas especiais são tarefas secretariais e legais, contabilidade,
controle de despesas inclusive domésticas, administração no lar e no escritório, e
outras tarefas de organização.”
Max ficou idiotizado. Ignorando as ordens do comandante para que “se
afastassem”, avançou até ficar a poucos centímetros de Lincoln. “É uma porra de
um robô”, resmungou para si mesmo. Esquecido de qualquer possível perigo,
Max esticou a mão e tocou o rosto de Lincoln, primeiro a pele junto ao nariz,
depois a longa barba negra. E disse alto: “Absolutamente inacreditável.”
“Fomos fabricados com atenção muito cuidadosa a detalhes”, disse
Lincoln. “Nossa pele é quimicamente semelhante à sua e nossos olhos funcionam
pelos mesmos princípios óticos básicos dos seus, porém não somos criaturas
dinâmicas, constantemente renovadas, como vocês. Nossos subsistemas têm de
ser mantidos e até mesmo por vezes substituídos por técnicos.”
A atitude ousada de Max tinha esvaziado toda tensão. A essa altura, toda
a equipe, inclusive o comandante MacMillan, estava cutucando e examinando os
robôs. Ao longo de todo o exame, tanto Lincoln quanto Garcia responderam
perguntas a respeito de seu desenho e implementação. A certa altura, Kenji se
deu conta de que Max Puckett tinha se afastado do resto do grupo e estava
sentado sozinho encostado em uma das paredes do túnel.
Kenji caminhou até o seu amigo. “O que foi, Max?”
Max sacudiu a cabeça. “Que espécie de gênio poderia produzir uma coisa
como esses dois? Assusta de verdade.” Ficou silencioso por alguns segundos.
“Talvez eu seja esquisito, mas esses dois biomas me assustam muito mais do que
esse cilindro monstruoso.”
O Lincoln e a Garcia caminharam com o grupo no sentido do que parecia
ser o final do túnel. Em poucos segundos, uma porta abriu-se na parede e os
biomas fizeram gestos sugerindo que os humanos entrassem. Questionados por
MacMillan, explicaram que os humanos estavam a ponto de entrar em um
“engenho de transporte” que os levaria até as redondezas de seu habitat terreno.
MacMillan comunicou o que disseram os biomas a Dmitri Ulanov na Pinta
e disse a seu vice russo que “saísse a jato” se não tivesse notícias deles em 48
horas.
A viagem no metrô foi estonteante. Max Puckett lembrou da montanharussa
gigante da Feira Estadual em Dallas, no Texas. O veículo com forma de
bala disparou por uma linha helicoidal de trilhos toda fechada, que caía desde a
extremidade côncava norte de Rama até a Planície Central embaixo. Do lado de
fora do veículo, todo envolvido por um pesado plástico transparente de espécie
desconhecida, Kenji e os outros passageiros entreviam a vasta teia de escadas e
escadarias que cortava o mesmo território que o seu veículo. Mas não viram as
incomparáveis vistas relatadas pelos exploradores anteriores de Rama — sua
vista para o sul ficava bloqueada por uma parede altíssima de cinzento metálico.
A viagem durou menos de cinco minutos e depositou-os dentro da vasta
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estado frenética desde a chegada da Pinta”, explicou; “mal dorme à noite. Quer
conhecer e conversar com todos”.
O bioma Lincoln, que já acabara de arrumar a cozinha, estava discretamente
de pé na porta, atrás da cadeira de Benji. “Gostariam de beber alguma
coisa?”, perguntou Nicole a Kenji e Nai, fazendo um gesto na direção do bioma.
“Não temos nada tão delicioso quanto o suco de frutas frescas que trouxeram da
Terra, mas Linc sabe fabricar umas bebidas sintéticas muito interessantes.”
“Eu estou ótimo”, disse Kenji sacudindo a cabeça. “Mas acabo de me dar
conta que passamos a noite toda falando de sua incrível odisséia. Na certa vocês
têm perguntas a fazer. Afinal, passaram-se quarenta e cinco anos na Terra desde
o lançamento de Newton.”
Quarenta e cinco anos, pensou Nicole repentinamente. Será possível? Será
que Geneviève está com quase sessenta anos?
Nicole lembrou-se com clareza da última vez em que vira seu pai e sua
filha na Terra. Pierre e Geneviève a haviam acompanhado até o aeroporto em
Paris. Sua filha ficara fortemente abraçada a ela até a última chamada para o
embarque e depois a olhara com imenso amor e orgulho. Os olhos da menina
estavam marejados de lágrimas, porém Geneviève não conseguira dizer nada. E
nesses quarenta e cinco anos meu pai morreu, Geneviève está no fim da meiaidade,
talvez já seja avó. Enquanto eu tenho perambulado pelo espaço. Num país
de maravilhas.
As lembranças foram fortes demais para Nicole, que respirou fundo para
retomar seu equilíbrio. Continuava tudo em silêncio na sala dos Wakefield
quando ela voltou ao presente.
“Está tudo bem?”, perguntou Kenji, com delicadeza. Nicole acenou e
avistou os olhos suaves e abertos de seu novo amigo. Por um instante imaginou
que estivesse conversando com seu colega astronauta da Newton, Shigeru
Takagishi. Este homem está louco de curiosidade, como Shig sempre esteve. Posso
confiar nele. E ele conversou com Geneviève há poucos anos.
“Boa parte da história geral da Terra nos foi explicada, ao menos uns
pedacinhos, durante nossas conversas com outros passageiros da Pinta”, disse
Nicole após um longo silêncio. “Mas não sabemos nada sobre as nossas famílias a
não ser o que você nos contou rapidamente naquela primeira noite. Tanto
Richard quanto eu gostaríamos de saber se se lembrou de mais algum detalhe
que lhe tenha escapado em nossa primeira conversa.”
“Na verdade”, disse Kenji, “eu reli meus arquivos hoje à tarde onde estão
as anotações que fiz durante as pesquisas preliminares para meu livro sobre a
Newton. A coisa mais importante que esqueci de mencionar em nossa primeira
conversa é o quanto Geneviève se parece com o pai, ao menos da boca para baixo.
O rosto do rei Henry era memorável, como estou certo de que se lembrará. E
quando adulta, o de Geneviève alongou-se e começou a semelhar-se ao dele de
forma muito marcante... Veja aqui, consegui encontrar umas fotos dos três dias
que passei em Beauvois, no meu banco de dados”.
Ver as fotos sufocou Nicole. Lágrimas acorreram-lhe imediatamente aos
olhos e correram-lhe pelas faces. As mãos tremeram quando pegou as duas fotos
de Geneviève com seu marido, Louis Gaston. Ah, Geneviève, como tenho sentido
falta de você. Como gostaria de apertá-la em meus braços ao menos por um
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momento.
Richard inclinou-se sobre seu ombro para olhar as fotos. Ao fazê-lo, acariciou
suavemente Nicole. “Ela realmente se parece um pouco com o príncipe”,
comentou ele delicadamente, “porém, parece muito mais com a mãe.”
“Geneviève, além do mais, foi extremamente cordial”, acrescentou Kenji, “o
que me surpreendeu, depois de tudo o que sofreu durante a barulhada feita pela
mídia em 2238. Respondeu minhas perguntas com grande paciência. Tive planos
de fazê-la um dos pontos centrais de meu livro sobre a Newton, até meu editor
dissuadir-me de todo o projeto.”
“Quantos dos cosmonautas da Newton ainda estão vivos?”, perguntou
Richard, mantendo a conversa viva enquanto Nicole continuava em silêncio a
olhar para as duas fotografias.
“Só Sabatini, Tabori e Yamanaka”, respondeu Kenji. “O dr. David Brow
teve um derrame arrasador, e morreu seis meses mais tarde, em circunstâncias
um tanto inusitadas. Creio que foi em 2208. O almirante Heilman morreu de
câncer em 2214 mais ou menos. Irina Turgenyev sofreu um colapso mental total,
vítima da síndrome ‘Volta à Terra’, identificada em alguns dos cosmonautas do
século XXI, e acabou se suicidando em 2211.”
Nicole ainda lutava com suas emoções. “Até três noites atrás”, disse ela
aos Watanabes quando a sala tomou a ficar em silêncio, “eu jamais contara a
Richard ou às crianças que Henry era o pai de Geneviève. Enquanto morei na
Terra, só meu pai soube da verdade. Henry pode ter desconfiado, mas não tinha
certeza. Mas quando você me contou a respeito de Geneviève, compreendi que eu
é que deveria contar à minha família. Eu...”
A voz de Nicole sumiu e mais lágrimas apareceram em seus olhos. Ela
limpou o rosto com os lenços que Nai lhe entregou. “Sinto muito”, disse ela.
“Nunca me comporto assim. Foi só o choque de ver as fotografias e relembrar
tanta coisa...”
“Todo o tempo em que vivemos em Rama II e depois no Nodo” disse
Richard, “Nicole foi um modelo de estabilidade. Era um rochedo. Não importava o
que encontrávamos, por bizarro que fosse, ela continuava inabalável. As crianças
e Michael O’Toole e eu todos dependíamos dela. É muito raro vê-la...”
“Chega”, disse Nicole, depois de limpar o rosto e guardar as fotos. “Vamos
mudar de assunto. Falemos dos cosmonautas da Newton, particularmente da
francesa Sabatini. Ela conseguiu o que queria? Fama e riqueza inimagináveis?”
“Ou pelo menos perto disso”, disse Kenji. “Eu não era nascido durante seu
período de maior glória no início do século, mas ainda agora ela é muito famosa.
Foi uma das pessoas entrevistadas recentemente pela televisão sobre a
importância da recolonização de Marte.”
Nicole inclinou-se para a frente. “Eu não lhe disse durante o jantar, mas
estou certa de que Francesca e Brown drogaram Borzov, a fim de provocar os
sintomas de apendicite. E deixou-me de propósito no fundo daquele buraco em
Nova York. A mulher era totalmente desprovida de escrúpulos.”
Kenji ficou em silêncio por vários segundos. “Nos idos de 2208, logo antes
do dr. Brow morrer, ele teve períodos ocasionais de lucidez, durante seu estado
geralmente inconstante. Em um desses períodos, ele deu uma entrevista
fantástica ao repórter de uma revista, na qual confessava responsabilidade
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funicular que levava quem queria nadar para a linda baía azul ao fundo do
penhasco íngreme.
La signora atrasou-se meia hora e em pouco tempo estava já impaciente
para concluir a entrevista. Por duas vezes, Francesca informou Kenji que só
concordara em falar com ele porque seu editor lhe dissera que ele era um “jovem
escritor notável”. “Para falar com franqueza”, disse ela em seu excelente inglês, “a
esta altura acho toda conversa sobre a missão Newton extremamente cacete”.
Seu interesse na conversa cresceu bastante quando Kenji lhe falou dos
“novos dados,” os arquivos do computador pessoal de Nicole que haviam sido
telemetrados para a Terra, no “modo do gotejamento” durante as últimas
semanas da missão. Francesca ficou silenciosa, até reflexiva, enquanto Kenji
comparava as notas internas que Nicole fizera com a “confissão” feita pelo dr.
Brown ao repórter da revista em 2208.
“Eu o subestimei”, disse Francesca com um sorriso quando Kenji lhe
perguntou se não julgava uma “notável coincidência” que o diário de Nicole na
Newton e a confissão do dr. Brown tivessem tantos pontos de concordância. Ela
jamais respondeu suas perguntas diretamente. Em lugar disso, ela se levantou,
insistiu em que Kenji ficasse até mais tarde e disse que conversaria com ele à
noite.
Ao crepúsculo, chegou uma nota para Kenji, em seu quarto no palácio de
Francesca, dizendo-lhe que o jantar seria às oito e meia e que ele deveria usar
paletó e gravata. Um robô chegou na hora marcada e conduziu-o a uma sala de
jantar magnífica com as paredes cobertas por murais e tapeçarias, lustres
fulgurantes no teto altíssimo, e todos os arremates de madeira delicadamente
talhados. A mesa estava posta para dez e Francesca já estava na sala, de pé junto
a um robô de serviço a um canto do imenso salão.
“Kon ban wa, Watanabe-san”, disse Francesca em japonês, ao oferecer-lhe
uma taça de champagne. “As áreas de estar estão sendo redecoradas, de modo
que sinto muito, mas teremos que tomar nossos coquetéis aqui mesmo. Fica tudo
muito gaúche, como diriam os franceses, mas não há outro jeito.”
Francesca estava esplendorosa. Seus cabelos louros estavam empilhados
no alto da cabeça, seguros por um imenso pente. Uma gargantilha de brilhantes
cercava seu pescoço e um vasto solitário de safira pendia de um rico colar de
diamantes. Seu vestido sem alças era branco, com dobras e pregas que
acentuavam as curvas de seu corpo que ainda parecia jovem. Kenji não conseguia
acreditar que ela tivesse setenta anos.
Ela o tomou pela mão, depois de explicar que improvisara rapidamente
aquele jantar “em honra dele” e levou-o para ver as tapeçarias na parede do
fundo. “Você conhece Aubusson?”, indagou. Quando ele sacudiu a cabeça,
Francesca lançou-se em uma discussão a respeito da história das tapeçarias
européias.
Meia hora mais tarde, Francesca tomou seu lugar na cabeceira da mesa.
Um professor de música de Nápoles com a mulher (supostamente uma atriz), dois
jogadores de futebol profissional, bonitões e morenos, o curador das ruínas de
Pompéia (de uns cinqüenta e poucos anos), uma poetisa italiana de meia-idade e
duas moças de vinte e poucos anos, ambas deslumbrantes, ocuparam os outros
lugares. Após consultas com Francesca, uma das moças sentou-se defronte a
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“Confesso que é muito difícil aceitar que esta estação espacial tenha sido
construída por alienígenas só para eles nos observarem... e seria mais fácil
acreditar na história da AEI se tivéssemos fotos do tal Nodo. Mas por que
haveriam eles de mentir para nós?”
“Já mentiram antes. Ninguém jamais falou deste lugar a não ser um dia
antes de nossa chegada... Chelsea acredita que somos parte de uma experiência
em colonização espacial da AEI. Diz que vamos ficar aqui um pouco, e depois
seremos transferidos para a superfície de Marte, para que os dois tipos de colônia
possam ser comparados.”
O sr. Murillo riu-se. “Já vi que Chelsea não mudou nada desde que
deixamos a Nina.” E continuou, mais sério: “Sabe, Juanita e eu também tivemos
nossas dúvidas, especialmente depois que a primeira semana se passou sem que
víssemos qualquer sinal dos alienígenas. Passamos dois dias andando por aí,
conversando com outras pessoas — em essência, realizamos nossa própria
investigação. E finalmente concluímos que a história da AEI tem de ser
verdadeira. Em primeiro lugar, é estapafúrdia demais para ser mentira; em
segundo, aquela Wakefield foi muito convincente. Na reunião aberta ela
respondeu perguntas durante quase duas horas e nem Juanita e nem eu
conseguimos detectar uma só incoerência.”
“É difícil imaginar que alguém possa dormir por doze anos”, disse Travis,
sacudindo a cabeça.
“É claro. Para nós também. Mas nós fomos inspecionar o sonário onde a
família Wakefield supostamente dormiu. Tudo era exatamente como Nicole
descrevera na reunião. O edifício em si, aliás, é imenso. Há beliches suficientes
para abrigar todo mundo na colônia, se necessário... Não faria muito sentido a
AEI construir uma instalação daquele porte só para consubstanciar uma
mentira.”
“Talvez você tenha razão.”
“De qualquer modo, nós resolvemos levar tudo da melhor maneira. Ao
menos por agora. E ninguém pode se queixar das condições de vida. Todas as
moradias são de primeira ordem. Juanita e eu temos até nosso próprio robô
Lincoln para dar uma mãozinha em casa e na loja.”
Ellie estava seguindo a discussão com grande atenção. Lembrava-se do
que a mãe lhe havia dito na véspera, à noite, quando lhe perguntara se ela e
Benjy poderiam ir dar um passeio pela aldeia. “Acho que sim, querida”, disse
Nicole, “mas se alguém reconhecer você como uma Wakefield e começar a fazer
muitas perguntas, não diga nada. Seja cortês, depois volte para casa o mais
depressa possível. O sr. MacMillan não nos quer conversando com quem não for
da equipe da AEI por enquanto.”
Enquanto Ellie estava admirando as estuetas de porcelana e ouvindo
atentamente a conversa entre o sr. Murillo e o homem chamado Travis, Benjy
saiu caminhando sozinho. Quando Ellie se deu conta de que ele não estava a seu
lado, começou a entrar em pânico.
“O que é que você está olhando, menino?”, Ellie ouviu uma voz ríspida de
homem, do outro lado da loja.
“O ca-belo de-la é muito bo-nito”, respondeu Benjy. Ele estava atravancando
a passagem, impedindo que o casal avançasse. Ele sorriu e estendeu a
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mão na direção da bela cabeleira loura da mulher. “Eu posso pegar nele?”,
perguntou.
“Está maluco?... Claro que não... E agora sai do...”
“Jason, eu acho que ele é retardado”, disse a mulher, baixo, segurando a
mão do marido antes que ele empurrasse Benjy.
Nesse momento, Ellie chegou perto do irmão. Compreendendo que o
homem estava zangado, não sabia o que fazer. Empurrou ligeiramente o ombro
de Benjy. “Olha, Ellie”, exclamou ele, atrapalhando as palavras em sua excitação,
“o-lha que bo-nito ca-be-lo a-ma-re-lo.”
“Esse bobalhão é seu amigo?”, indagou o homem alto.
“Benjy é meu irmão”, respondeu Ellie, com dificuldade.
“Pois então tire-o daqui. Ele está chateando a minha mulher”.
“Senhor”, disse Ellie, tomando coragem, “meu irmão não pretende fazer
qualquer mal. Ele jamais tinha visto cabelos louros de perto antes”.
O rosto do homem franziu-se de raiva e perplexidade. “O quêêêê? disse
ele, olhando para a mulher. “O que é que há com esses dois? Um é idiota e a
outra...”
“Vocês não são os meninos Wakefield?”, interrompeu uma agradável voz
feminina atrás de Ellie.
A atônita Ellie virou-se. A sra Murillo colocou-se entre os adolescentes e o
casal. Ela e o marido tinham se aproximado tão logo ouviram as vozes se
elevarem, “Sim, senhora”, disse Ellie, baixinho. “Somos, sim.”
“Quer dizer que esses são dois dos guris que vieram do espaço?”, perguntou
o homem chamado Jason.
Ellie conseguiu puxar Benjy rapidamente para a porta da loja. “Desculpem”,
disse Ellie, antes de sair com Benjy. “Não queríamos criar dificuldades.”
“Tarados!”, Ellie ouviu alguém dizer quando a porta se fechou atrás deles.
Fora outro dia exaustivo. Nicole estava mais do que cansada. Ficou
defronte do espelho, acabando de lavar o rosto. “Ellie e Benjy tiveram alguma
espécie de experiência desagradável na aldeia”, disse Richard do quarto. “Mas
não quiseram me falar muito a respeito.”
Nicole passara treze longas horas naquele dia ajudando a processar os
passageiros da Nina. Não importava o quanto ela e Kenji Watanabe e os outros
trabalhassem”, parecia que ninguém jamais ficava satisfeito e sempre havia mais
tarefas a serem executadas. Muitos dos novos colonos tinham sido abertamente
petulantes quando Nicole tentou explicar-lhes os procedimentos estabelecidos
pela AEI para distribuição de comida, casas e áreas de trabalho.
Havia vários dias que ela não dormia o suficiente. Nicole olhou para suas
grandes olheiras. Mas nós temos de acabar esse grupo antes que a Santa Maria
chegue, disse para si mesma; eles vão ser muito piores.
Nicole enxugou o rosto com a toalha e cruzou para o quarto de dormir,
onde Richard estava sentado, de pijama. “Como foi o seu dia?”, perguntou ela.
“Nada mau... Até que bastante interessante... Aos poucos, mas com certeza,
os engenheiros humanos começam a se sentir melhor lidando com os
Einsteins.” Fez uma pausa. “Você ouviu o que eu disse sobre Ellie e Benjy?”
Nicole acenou com a cabeça. O tom da voz de Richard transmitiu-lhe a
verdadeira mensagem. Apesar de seu cansaço, ela saiu do quarto e atravessou o
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hall.
Ellie já estava dormindo, porém Benjy ainda estava acordado no quarto
que dividia com Patrick. Nicole sentou-se ao lado de Benjy e tomou-lhe a mão.
“O-lá, Ma-mãe”, disse o menino.
“O tio Richard disse que você e Ellie foram à aldeia hoje à tarde”, disse
Nicole a seu filho mais velho.
Uma expressão de dor marcou o rosto do menino por momentos, depois
desapareceu. “Fo-mos, ma-mãe.”
“Ellie disse-me que vocês foram reconhecidos e que um dos colonos novos
xingou vocês”, disse Patrick do outro lado do quarto.
“Foi mesmo, querido?”, perguntou Nicole a Benjy, sempre segurando e
acariciando sua mão.
O menino fez um sinal afirmativo, quase imperceptível, com a cabeça e
ficou em silêncio olhando para a mãe. “O que é um bo-ba-lhão, Mamãe?”, disse
ele repentinamente, com os olhos rasos de lágrimas.
Nicole abraçou Benjy. “Alguém chamou você de bobalhão hoje?” perguntou
ela suavemente.
Benjy concordou. “A palavra não tem um significado específico”, respondeu
Nicole. “Qualquer um que seja diferente ou talvez inconveniente, poderia
ser chamado de bobalhão.” Tornou a acarinhar Benjy. “As pessoas usam palavras
como essa quando não pensam. Quem o chamou de bobalhão provavelmente
estava confuso, ou perturbado por outros acontecimentos em sua vida, e só
agrediu você porque não o compreendeu... Você fez alguma coisa que o
incomodasse?”
“Não, ma-mãe, só disse que gos-ta-va do ca-be-lo ama-re-lo da mulher.”
Ao fim de alguns minutos, Nicole já tinha captado a essência do que
acontecera na loja de porcelana. Depois que achou que Benjy já estava tranqüilo,
Nicole cruzou o quarto para dar um beijo de boa noite em Patrick. “E você? Teve
um bom dia, hoje?”
“A maior parte”, disse Patrick. “Só me aconteceu um desastre — no
parque.” Tentou sorrir. “Uns meninos dos novos estavam jogando basquete e me
convidaram para jogar com eles... e eu fui absolutamente horrível. Alguns deles
riram de mim.”
Nicole deu um abraço longo e terno em Patrick. Patrick é forte, disse Nicole
para si mesma depois de sair e dirigir-se a seu próprio quarto. Porém, até ele
precisa de apoio. Respirou fundo. Será que estou agindo certo?, perguntou-se ela
pela enésima vez desde que se envolvera mais profundamente com todos os
aspectos do planejamento da colônia. Sinto-me tão responsável por tudo aqui.
Quero que o Novo Éden comece da maneira certa... Mas meus filhos ainda precisam
mais do meu tempo... Será que algum dia vou conseguir equilibrar tudo?
Richard ainda estava acordado quando Nicole se aninhou junto a ele, e ela
contou ao marido o relato de Benjy. “Lamento não ter podido ajudá-lo”, disse
Richard. “Há certas coisas que só a mãe...”
Nicole estava tão exausta que já começou a adormecer antes de Richard
concluir a frase. Ele a segurou no braço com firmeza. “Nicole, há um assunto que
precisamos discutir. Infelizmente, não pode esperar — nós talvez não tenhamos
nenhum tempo só para nós dois de manhã.”
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Ela se virou e olhou para Richard, intrigada. “É sobre Katie”, disse ele.
“Eu realmente preciso de sua ajuda... Vai haver outra noite de dança para os
jovens se conhecerem amanhã — lembra-se de que na semana passada dissemos
a Katie que ela poderia ir, mas só se Patrick fosse com ela e voltasse a uma hora
razoável...? Pois bem, hoje à noite a vi por acaso defronte do espelho usando um
vestido novo, curto e muito revelador. Quando perguntei sobre o vestido e disse
que não era adequado só para uma dancinha aqui na vizinhança, ela teve um
ataque de fúria. Ficou dizendo que eu a estava ‘espionando’ e me informou que
eu era um caso perdido, ‘de uma ignorância sem esperanças’ a respeito de moda.”
“E o que você disse?”
“Eu a repreendi. Ela me lançou um olhar furioso, mas não disse nada. E
alguns minutos mais tarde saiu de casa sem dizer uma palavra. As outras
crianças e eu jantamos sem ela... Katie só voltou uma meia hora antes de você,
cheirando a fumo e cerveja. Quando tentei falar com ela, só disse ‘Não me amole’
e foi para o quarto, batendo a porta.”
É o que eu sempre temi, pensou Nicole, deitada ao lado de Richard em
silêncio. Os sinais sempre estiveram ali, desde pequena. Katie é brilhante, mas
também é egoísta e impetuosa...
“Estive a ponto de dizer a Katie que ela não poderia ir à festa amanhã à
noite”, estava dizendo Richard, “quando me dei conta de que segundo qualquer
definição normal ela é uma adulta. Afinal, o cartão de registro dela na
administração central diz que ela tem 24 anos. Não podemos tratá-la como
criança.”
Mas emocionalmente ela tem uns catorze anos, pensou Nicole,
estremecendo quando Richard começou a enumerar todos os problemas
aparecidos em relação a Katie desde a chegada dos outros humanos a Rama.
Nada importa para ela senão aventura e excitação.
Nicole lembrou-se do dia que passara com Katie no hospital, na semana
anterior à chegada dos passageiros da Nina. Katie ficara fascinada por todo o
sofisticado equipamento médico, e verdadeiramente interessada em seu
funcionamento; no entanto, quando Nicole sugeriu que ela pudesse querer
trabalhar no hospital até a abertura da universidade, a jovem rira. “Está
brincando?” dissera a filha. “Não consigo imaginar nada mais chato. Ainda mais
quando haverá centenas de pessoas para se conhecer.”
Não há muito que Richard ou eu possamos fazer, refletiu Nicole, com um
suspiro. Podemos sofrer por Katie, e oferecer-lhe nosso amor, porém ela já resolveu
que todo o nosso conhecimento e toda a nossa experiência são irrelevantes.
O quarto ficou em silêncio. Nicole esticou-se para beijar Richard. “Falarei
com Katie amanhã sobre o vestido, mas duvido que adiante muito.” Patrick
estava sentado, sozinho, em uma cadeira de armar junto à parede do ginásio.
Tomou mais um gole de seu refrigerante e olhou o relógio, enquanto a música
lenta acabava e a dúzia de pares que ainda dançavam finalmente parou. Katie e
Olaf Larsen, um sueco alto cujo pai era da equipe do comandante MacMillan,
trocaram um rápido beijo antes de caminharem, de braços dados, na direção de
Patrick.
“Olaf e eu vamos lá fora para fumar um cigarro e tomar mais um
uisquinho”, disse Katie quando chegou perto do irmão. “Por que não vem
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conosco?”
“Nós já estamos atrasados, Katie”, respondeu Patrick. “Dissemos que
estaríamos em casa à meia-noite e meia.”
O sueco deu um tapinha nas costas de Patrick. “Vamos lá, rapaz, relaxa.
Sua irmã e eu estamos nos divertindo.”
Olaf já estava bêbado. Seu rosto estava afogueado com a bebida e a dança.
Apontou para o outro lado da sala. “Está vendo aquela moça de cabelo vermelho,
vestido branco, e uns peitões enormes? O nome dela é Beth e é superquente. Está
esperando a noite inteira que você a tire para dançar. Quer quer eu o apresente?”
Patrick sacudiu a cabeça. “Olha, Katie, eu quero ir embora. Fiquei aí
sentado, pacientemente...”
“Mais meia hora, irmãozinho”, interrompeu Katie. “Eu vou lá fora um
instante e volto para umas duas danças. Depois nós vamos, OK?”
Ela beijou Patrick no rosto e dirigiu-se à porta com Olaf. O sistema de som
do ginásio começou a tocar uma música rápida. Patrick ficou olhando fascinado
para os jovens casais que se moviam segundo o forte ritmo. “Você não dança?”,
perguntou-lhe um rapaz que passeava em volta da pista de dança.
“Não”, disse Patrick. “Nunca tentei.”
O rapaz lançou um olhar estranho para Patrick, depois parou e sorriu. “É
claro, você é um dos Wakefields... Olá, meu nome é Brian Walsh. Sou de
Wisconsin, no meio dos Estados Unidos. Meus pais é que estão aqui para
organizar a universidade.”
Patrick não havia trocado mais de duas palavras com ninguém a não ser
Katie desde que chegaram na festa havia várias horas. Apertou a mão de Brian
alegremente e os dois conversaram amistosamente durante alguns minutos.
Brian, que estava no meio de seus estudos de graduação em engenharia de
computadores quando a família foi escolhida para a Colônia Lowell, tinha 20 anos
e era filho único. Estava, também, curiosíssimo a respeito das experiências de
seu companheiro.
“Diga-me”, disse ele a Patrick, quando começaram a sentir-se mais à
vontade um com o outro, “esse tal lugar chamado o Nodo existe mesmo? Ou é
parte de alguma história de enganação inventada pela AEI?”
“Não”, disse Patrick, esquecendo-se de que não devia discutir esse tipo de
coisa. “O Nodo está lá, mesmo. Meu pai acha que é uma estação de
processamento extraterrestre.”
Brian deu uma boa risada. “Então, em algum ponto lá perto de Sirius há
um triângulo gigantesco construído por uma espécie desconhecida? E seu
objetivo é ajudá-los a estudar outras criaturas que viajam no espaço? Puxa! É a
história mais fantástica que já ouvi. Na verdade, quase tudo que sua mãe nos
contou naquela sessão aberta era inacreditável. Mas confesso que tanto a
existência desta estação espacial quanto o nível tecnológico dos robôs tornam
tudo mais plausível.”
“Tudo o que minha mãe disse é verdade”, disse Patrick. “E algumas das
histórias mais extraordinárias foram deixadas de fora, de propósito. Por exemplo,
minha mãe conversou uma vez com uma enguia de capa que falava por meio de
borbulhas. E também...” Patrick parou, lembrando-se das advertências de Nicole.
Brian estava fascinado. “Uma enguia de capa? E como é que ela sabia o
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era viciado em trabalho, “tão maníaco quanto aquelas enfermeiras robô pretas”.
Eponine lembrou-se também do espantoso azul de seus olhos.
“Está bem. Encontro com você na estação do trem daqui a dez minutos.”
Eponine não vinha saindo muito à noite. Desde que ficara com o emprego
de professora, tinha passado a maior parte de suas noites fazendo planos de
aula. Em um sábado à noite, ela saíra com Kimberly, Toshio Nakamura e várias
outras pessoas para ir a um restaurante japonês que acabara de ser inaugurado.
Mas a comida era estranha, o grupo quase todo oriental, e vários dos homens,
depois de beber demais, tinham começado umas cantadinhas patéticas. Kimberly
a repreendera por ser “exigente e metida”, mas Eponine recusara todos os
convites subseqüentes da colega de casa para atividades sociais.
Eponine chegou à estação antes de Malcolm. Enquanto esperava, espantou-
se ao ver o quão completamente a aldeia fora transformada pela presença dos
humanos. Vejamos, pensou ela, a Pinta chegou aqui há três meses, a Nina cinco
semanas depois. Já havia lojas por toda a parte, tanto perto da estação quanto na
própria aldeia. As armas e bagagens da existência humana. Se ficarmos aqui um
ano ou dois, não será mais possível distinguir a colônia da Terra.
Malcolm mostrou-se muito nervoso e falante durante a breve viagem de
trem. “Eu sei que é meu coração, Eponine. Venho tendo dores, fortes, aqui, desde
a morte de Walter. A princípio, pensei que fosse só cuca.”
“Não se preocupe”, respondeu Eponine, reconfortando o amigo. “Aposto
que não é nada sério.”
Eponine estava tendo dificuldade em manter os olhos abertos. Já passava
das três da manhã. Malcolm dormia no banco ao lado dela. O que estava fazendo
o médico? Ele disse que não ia demorar.
Pouco depois de sua chegada, o dr. Turner examinara Malcolm com um
estetoscópio computadorizado e então, dizendo que “precisaria de testes mais
completos”, o levara para uma ala separada do hospital. Malcolm voltara à sala
de espera uma hora mais tarde. Eponine só vira o médico por um momento,
quando fez Malcolm entrar em seu consultório para começar o exame.
“Você é amiga de Peabody?”, disse uma voz. Eponine devia ter cochilado.
Quando sua visão entrou em foco, os belos olhos azuis estavam a olhá-la a uma
distância de não mais de um metro. O médico parecia cansado e perturbado.
“Sou”, disse Eponine baixinho, tentando não perturbar o homem que
dormia encostado em seu ombro.
“Ele vai morrer daqui a muito pouco tempo”, disse o dr. Turner; “possivelmente
dentro das próximas duas semanas.”
Eponine sentiu uma onda de sangue subir em seu corpo. Será que estou
ouvindo bem?, pensou. Será que Malcolm vai morrer dentro de duas semanas?
Eponine ficou estarrecida.
“Ele vai precisar de muito apoio”, estava dizendo o médico. Calou-se por
um momento, encarando Eponine. Tentava se lembrar onde a tinha visto antes.
“Você poderá ajudá-lo?”, perguntou dr. Turner.
“Eu... assim espero”, respondeu Eponine.
Malcolm começou a se agitar. “Nós precisamos acordá-lo agora”, disse o
médico.
Não havia qualquer emoção que se pudesse detectar nos olhos do dr.
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Turner. Ele passara seu diagnóstico, não sua afirmação, sem qualquer traço de
sentimento. Kim tem razão, pensou Eponine. Ele é tão autômato quanto os robôs
Tiasso.
Por sugestão do médico, Eponine acompanhou Malcolm ao longo de um
corredor até uma sala cheia de instrumentos médicos. “Alguém inteligente”, disse
o dr. Turner a Malcolm, “escolheu o equipamento que trouxeram da Terra.
Embora nossa equipe seja limitada, nosso equipamento para diagnóstico é de
primeira”.
Os três caminharam até o um cubo transparente de mais ou menos um
metro de lado. “Este engenho espantoso”, disse o dr. Turner, “chama-se projetor
de órgãos. É capaz de apresentar uma reconstrução, de alta fidelidade, de quase
todos os principais órgãos do corpo humano. O que estamos vendo agora,
olhando lá para dentro, Mr. Peabody, é uma representação gráfica, de
computador, do seu coração, exatamente tal como aparecia há noventa minutos,
quando injetei o material de contraste em suas veias”.
O dr. Turner apontou para a sala ao lado, onde aparentemente Malcolm
fora submetido a seus exames. “Enquanto ficou sentado àquela mesa, foi feito um
milhão de varreduras por segundo por aquela máquina com a lente grande. Pela
localização do material de contraste e aqueles bilhões de varreduras
instantâneas, uma imagem muito precisa, tridimensional de seu coração foi
construída. É isso que o senhor está vendo dentro do cubo.”
O dr. Turner parou por um instante, depois olhou fixamente para
Malcolm. “Não estou querendo tornar as coisas mais difíceis para o senhor”, disse
ele baixo, “mas queria explicar por que pude saber o que há de errado com o
senhor. Para que saiba que não houve erro.”
Os olhos de Malcolm estavam insanos de pavor. O médico tomou-o pela
mão e conduziu-o até uma posição específica ao lado do cubo. “Olhe bem ali, na
parte de trás do coração, perto do alto. Está vendo aquele esgarçamento estranho
e estiramento nos tecidos? Aqueles são os músculos de seu coração, que
passaram por deterioração irreparável.”
Malcolm ficou olhando para o interior do cubo pelo que pareceu uma
eternidade, depois baixou a cabeça. “Eu vou morrer, doutor?”, indagou ele
humildemente.
Robert Turner tomou a outra mão do paciente. “Vai; vai, sim, Malcolm. Na
Terra, talvez pudéssemos ter a esperança de um transplante de coração, aqui no
entanto, isso fica fora de cogitação, já que não temos nem o equipamento e nem o
doador... Se quiser, posso abri-lo para ver seu coração de perto. Mas é
pouquíssimo provável que visse qualquer coisa que alterasse o diagnóstico.”
Malcolm sacudiu a cabeça. Lágrimas começaram a rolar por sua face.
Eponine pôs os braços em torno do homenzinho e ela também começou a chorar.
“Lamento ter demorado tanto para completar o diagnóstico”, disse o dr. Turner,
“mas em casos desta seriedade tenho de ter certeza absoluta”.
Alguns momentos mais tarde, Malcolm e Eponine dirigiram-se para a
porta. Malcolm virou-se. “O que é que eu faço agora?”, perguntou ele ao médico.
“Tudo o que lhe der prazer”, respondeu o dr. Turner.
Depois que saíram, o dr. Turner voltou a seu escritório, onde cópias rigor,,
rosas dos gráficos e fichas de Malcolm Peabody estavam espalhados sobre sua
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Eponine concordou. “Tenho pena dessa gente”, disse Ellie, em tom suficientemente
alto para que todos pudessem ouvir. “É lamentável que sejam tão
ignorantes.”
Ellie conduziu Eponine para a grande mesa e apresentou-a a todos: “Olha
aqui, pessoal; para quem não sabe, esta é minha professora e amiga Eponine. Ela
não tem sobrenome, de modo que não adianta perguntar como é.”
Eponine e Nicole já se haviam encontrado várias vezes antes, e ficaram
trocando amenidades, enquanto um Lincoln oferecia umas tiras de vegetais e
uma soda a Eponine. Nai Watanabe trouxe arrastados seus filhos gêmeos, Kepler
e Galileo, que haviam completado dois anos na semana anterior, para conhecer a
recém-chegada. Um grupo grande de Positano ficou olhando quando Eponine
pegou Kepler no colo e este disse, apontando para o rosto de Eponine:
“Bonitinha.”
“Deve ser muito difícil”, disse Nicole em francês, com a cabeça indicando o
grupo que olhava ofensivamente para Eponine.
“Oui”, respondeu ela. Difícil? refletiu. Esse é o cúmulo da delicadeza para
descrever a situação. Que tal absolutamente impossível? Não basta eu ter alguma
doença horrível que muito provavelmente vai me matar. Não, ainda tenho de usar
uma braçadeira para que os outros me evitem, se assim o preferirem.
Max Puckett levantou os olhos do tabuleiro de xadrez e viu Eponine. “Olá,
olá; você deve ser a professora a respeito de quem tenho ouvido falar tanto.”
“Esse é Max”, disse Ellie conduzindo Eponine até ele. “É muito namorador,
mas inofensivo. E aquele mais velho que fica nos ignorando é o juiz Pyotr
Mishkin... Pronunciei certo, juiz?”
“Muito certo, minha jovem”, respondeu o juiz Mishkin, com os olhos
presos ao tabuleiro de xadrez. “Raios, Puckett, o que é que você está querendo
fazer com esse cavalo? Como sempre, sua jogada é estúpida ou brilhante, e eu
não consigo decidir se é uma ou outra.”
O juiz acabou levantando os olhos do tabuleiro e, quando viu a braçadeira
de Eponine, levantou-se imediatamente. “Desculpe, senhorita, sinto muito,
mesmo. Já é forçada a suportar o suficiente sem ter de aturar desconsiderações
de um velho esquisitão e egoísta.”
Um ou dois minutos antes de os fogos de artifício começarem, um grande
iate foi visto aproximando-se da área do piquenique, vindo da parte oeste do lago.
Luzes coloridas e moças bonitas podiam ser vistas no deque. O nome Nakamura
aparecia em grandes letras em um lado do barco. Ao alto, acima do deque
principal, Eponine viu Kimberly Henderson com Toshio Nakamura, que estava ao
leme.
O grupo a bordo acenou para quem estava na margem. Patrick correu,
excitado, até a mesa. “Olhe só, mamãe, lá está Katie no barco.”
Nicole pôs os óculos para ver melhor. Era realmente sua filha que, de
biquíni, acenava a bordo do iate. “Era só, o que faltava”, disse Nicole para si
mesma, quando os primeiros fogos explodiram acima deles, enchendo o céu de
cor e luz.
“Há três anos”, começou Kenji Watanabe em seu discurso, “uma equipe
exploratória da Pinta pisou pela primeira vez neste mundo novo. Nenhum de nós
sabia o que esperar. Todos nós nos perguntávamos, particularmente durante
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aqueles dois meses nos quais passávamos oito horas por dia no sonário, se
alguma coisa semelhante a uma vida normal seria possível aqui no Novo Éden.
“Nossos temores iniciais jamais se concretizaram. Nossos anfitriões alienígenas,
sejam eles quem forem, nem por uma só vez interferiram em nossas
vidas. Pode ser verdade que, como Nicole Wakefleld e outros já sugeriram, que
eles estejam continuamente, a nos observar, mas não sentimos suas presenças
de forma alguma. Fora de nossa colônia a espaçonave Rama corre para a estrela
que chamamos Tau Ceti em velocidade inacreditável. Aqui dentro, nossas
atividades cotidianas mal são influenciadas pelas notáveis condições exteriores de
nossa existência.
“Antes dos dias no sonário, enquanto ainda éramos viajantes dentro do
sistema planetário que gira em torno de nossa estrela natal, o Sol, muitos de nós
pensamos que nosso ‘período de observação’ seria breve. Acreditávamos que após
alguns meses seríamos devolvidos à Terra, ou até mesmo ao nosso destino em
Marte, ou que esta terceira espaçonave Rama desapareceria no espaço distante,
como acontecera às outras duas. Aqui onde me encontro, hoje, neste momento,
nossos navegadores me informam que continuamos a nos mover para longe do
nosso sol, como vimos fazendo há dois anos e meio, a aproximadamente à
velocidade da luz. Se, na verdade, será nossa boa sorte voltar um dia a nosso
sistema solar primitivo, esse dia estará pelo menos a vários anos de distância no
futuro.
“Tais fatores ditaram o tema principal deste meu último discurso do Dia
do Assentamento. O tema é simples: meus companheiros coloniais, nós temos de
assumir plena responsabilidade por nosso próprio destino. Não podemos esperar
que os avassaladores poderes que criaram nosso pequeno mundo nos salvem de
nossos erros. Temos de administrar o Novo Éden como se nós e nossos filhos
fôssemos ficar aqui para sempre. Cabe a nós zelar pela qualidade de vida aqui,
tanto agora como nas gerações futuras.
“No momento, nossa colônia enfrenta uma série de desafios. Reparem que
os chamo de ‘desafios’ e não de problemas. Se trabalharmos juntos, poderemos
enfrentar a tais desafios. Se pesarmos cuidadosamente as conseqüências a longo
prazo de nossas ações, tomaremos as decisões acertadas. Mas se formos
incapazes de compreender conceitos como ‘gratificação protelada’ ou ‘para o bem
de todos’, então o futuro do Novo Éden está soturno.
“Permitam que tome um exemplo para ilustrar o que digo. Richard
Wakefield explicou, tanto na televisão quanto em diversas ocasiões públicas, que
o esquema principal que controla nosso clima baseia-se em certos pressupostos
para as condições atmosféricas de nosso habitat. Mais especificamente, nosso
algoritmo de controle do tempo supõe que tanto os níveis de dióxido de carbono
quanto a concentração de partículas de fumaça sejam menores do que uma dada
magnitude. Sem compreender exatamente como funciona a matemática da
questão, podem perceber que as computações que governam os imputs externos
de nosso habitat não ficarão corretos se os pressupostos básicos não forem
exatos.
“Não é minha intenção fazer uma conferência científica a respeito de um
assunto muito complexo. O que desejo falar realmente é sobre política. Já que a
maioria de nossos cientistas acredita que o tempo estranho dos últimos quatro
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“... O dr. Turner já afirmou repetidamente que esta doença, como a maior
parte das retroviroses, só pode ser transmitida por sangue e sêmen...”
A multidão estava ficando agitada. Nicole esperou que Kenji estivesse
atentando para o fato e resumisse seus comentários. Ele tinha a intenção de falar
também a respeito da sabedoria (ou falta dela) em se falar de expandir a
exploração de Rama para fora do Novo Éden, mas sentiu que perdera contato
com o público.
O governador Watanabe parou por um momento e depois emitiu um
assovio de arrebentar os tímpanos no microfone. Com isso, os ouvintes se
aquietaram momentaneamente.
“Tenho mais alguns comentários a fazer que não devem ofender a ninguém...”
“Como sabem, minha mulher Nai e eu temos filhos gêmeos, que nos fazem
sentir abençoados. Neste Dia do Assentamento peço a cada um de vocês que
pensem a respeito de seus filhos e imaginem um outro Dia do Assentamento,
daqui a cem anos ou até mesmo mil. Imaginem-se cara a cara com aqueles que
geraram, seus filhos e os filhos de seus filhos. E ao falarem com eles, e segurá-los
em seus braços, será que poderão dizer-lhes que fizeram tudo o que foi
razoavelmente possível para deixar para eles um mundo do qual teriam boas
probabilidades de encontrar felicidade?” com mulheres à vontade. Tudo o que
fazia tinha sucesso. Planejando com muita esperteza seus investimentos,
Nakamura já estava em posição, pouco depois da eleição de Kenji Watanabe para
governador, de pleitear a compra de um quinto da Floresta de Sherwood do
governo. Sua oferta permitiu ao Senado evitar um aumento de impostos que de
outro modo seria indispensável para o financiamento das primeiras pesquisas
sobre o RV-41.
Parte da floresta que germinava foi devastada e substituída pelo palácio
pessoal de Nakamura, além de um novo e fulgurante hotel/cassino, uma área de
entretenimento, um complexo de restaurantes e vários clubes. A fim de conciliar
seu monopólio, Nakamura, por meio de um lobby vitorioso, conseguiu que fosse
votada legislação restringindo o jogo à área em torno de Hakone. Seus capangas
passaram então a convencer todo e qualquer empresário de que ninguém gostaria
realmente de entrar em concorrência com o “rei Jap”, em matéria de jogatina.
Quando seu poder ficou imune aos ataques, Nakamura permitiu que seus
sócios se expandissem nos ramos da prostituição e das drogas, nenhum dos
quais era proibido no Novo Éden. Mas para o fim do mandato de Watanabe,
quando as políticas do governo começavam a entrar em crescente conflito com
sua agenda pessoal, Nakamura resolveu que deveria controlar o governo também,
embora não quisesse se ver arcando com o tédio do cargo. Precisava de um testade-
ferro manipulável, e recrutou Ian MacMillan, o infeliz ex-comandante da Pinta
que fora o perdedor na primeira eleição para governador, vencida por Kenji
Watanabe. Nakamura ofereceu a MacMillan o posto de governador em troca de
sua fidelidade a ele.
Não havia nada sequer remotamente semelhante a Vegas em qualquer
outra parte da colônia. A arquitetura básica desenhada pelos Wakefields e a
Águia fora austera, extremamente funcional, com fachadas simples e geométricas.
Vegas era exagerada, espalhafatosa, incoerente — uma mixórdia de
estilos arquitetônicos. Mas era interessante, e o jovem Patrick O’Toole ficou
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Impossível não pensar em Katie ao olhar para Vegas, refletiu Nicole, com
uma abafada dor no coração acompanhando a lembrança da filha. Não podia
deixar de se perguntar se Katie ainda estaria acordada naquela brilhante vida de
fantasia do outro lado da colônia. Que desperdício monumental, pensou Nicole,
sacudindo a cabeça.
Richard e ela discutiam muitas vezes o caso de Katie. Só havia dois assuntos
em torno dos quais eles brigavam — Katie e política no Novo Éden. E nem
era inteiramente correto dizer que brigavam no caso da política. Richard
considerava que basicamente todos os políticos com exceção de Nicole e talvez de
Watanabe, eram basicamente destituídos de princípios. Seu método de discussão
era o de fazer grandes afirmações genéricas a respeito dos insípidos
acontecimentos no Senado, ou até mesmo no próprio tribunal de Nicole, e depois
se recusar a sequer tornar a falar sobre o assunto.
Katie era uma outra questão. Richard sempre argumentava que Nicole era
dura demais em relação a Katie. Ele também me culpa, refletiu Nicole, enquanto
olhava as luzes distantes, por não passar tempo suficiente com ela. Alega que ao
me atirar na política da colônia eu deixei as crianças com uma mãe de tempo
parcial no que seria o mais crucial período de suas vidas.
Katie raramente aparecia em casa, agora. Ela ainda tinha um quarto na
casa dos Wakefields, mas passava a maior parte de suas noites em um dos
apartamentos enfeitados que Nakamura construíra dentro do complexo de Vegas.
“Como é que você paga o aluguel?”, perguntara Nicole à filha certa noite,
pouco antes de costumeira cena desagradável.
“Como é que você acha, mamãe?”, respondeu Katie, agressiva. “Eu trabalho.
Eu tenho muito tempo; só estou fazendo três disciplinas na universidade.”
“Que tipo de trabalho você faz?”
“Sou anfitriã, divirto os outros... você sabe, faço qualquer coisa que seja
preciso”, respondeu Katie, bem vaga.
Nicole afastou o olhar de Vegas. Naturalmente, é perfeitamente
compreensível que Katie esteja confusa. Ela não teve adolescência. Mas, mesmo
assim, ela não parece estar apresentando qualquer melhora... Nicole começou a
andar rapidamente montanha acima, tentando se livrar de uma tristeza
crescente.
Entre os quinhentos e os mil metros de altitude, a montanha estava coberta
com grossas árvores que já alcançavam cinco metros de altura. Aqui o
caminho para o topo corria entre a montanha e a parede externa da colônia, em
um trecho muito escuro que se estendia por mais ou menos um quilômetro. Só
havia uma quebra nesse negror, perto do final, um belvedere voltado para o
norte.
Nicole já alcançara o ponto mais alto em sua subida. Parando no belvedere,
ela olhou para San Miguel, na distância. Está ali a prova de que nós
fracassamos do Novo Éden, pensou ela, sacudindo a cabeça. Apesar dos pesares,
há pobreza e desespero no Paraíso.
Ela antevira o aparecimento do problema, chegara mesmo a fazer uma
previsão bastante precisa no final de seu mandato de um ano como governadora
provisória. Por ironia, o processo que produzira San Miguel, onde o nível de vida
era apenas a metade do que existia nas outras três aldeias do Novo Éden,
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Eponine fosse “dispensada” da escola, ele e sua equipe de algum modo cederam à
histeria da colônia tornando a disciplina de Eponine optativa. Conseqüentemente,
ela tivera muito menos alunos do que nos dois anos anteriores.
Ellie Wakefield era uma das alunas prediletas de Eponine. A despeito das
grandes lacunas de conhecimento da jovem devidas aos anos em que ela passara
dormindo na viagem de volta ao sistema solar, vindo do Nodo, sua inteligência
natural e sua fome de saber tornavam-na uma alegria na sala de aula. Eponine
com freqüência pedia a Ellie que executasse tarefas especiais. Na manhã em que
foi iniciado o estudo da poesia de Benita Garcia que, aliás, foi a mesma em que
Richard Wakefield discutira com a filha suas preocupações quanto às atividades
de controle do tempo na colônia, foi pedido a Ellie que decorasse um dos poemas
do primeiro livro de Benita Garcia, Sonhos de uma moça mexicana, escrito
quando a autora ainda era adolescente. Antes que a moça começasse a declamar,
no entanto, Eponine tentou incendiar a imaginação de seus jovens alunos com
uma pequena palestra sobre a vida de Benita.
“A verdadeira Benita Garcia foi uma das mulheres mais espantosas que já
viveram”, disse Eponine, apontando com a cabeça para a inexpressiva bioma
Garcia, de pé a um canto, que a ajudava com as tarefas rotineiras da aula.
“Poeta, cosmonauta, líder política, mística — sua vida é a um só tempo um
reflexo de seu tempo e uma inspiração para todos nós.”
“Seu pai foi grande latifundiário no estado mexicano de Yucatán, longe do
coração artístico e político do país. Benita foi filha única, de mãe maia e um pai
muito mais velho do que a esposa. Passou a maior parte de sua infância na
fazenda da família que beirava as maravilhosas ruínas Puuc Maias em Uxmal.
Em menina, Benita muitas vezes brincou entre as pirâmides e edifícios daquele
centro cerimonial de mil anos.
“Foi estudante bem-dotada desde o início, mas foram sua imaginação e
seu entusiasmo que a distinguiram verdadeiramente do resto de sua classe.
Benita escreveu seu primeiro poema aos nove anos, e aos quinze, quando estava
em um colégio interno católico em Merida, capital de Yucatán, dois de seus
poemas já haviam sido publicados no prestigioso Diário de México.
“Após terminar o curso secundário, Benita surpreendeu professores e
família anunciando que desejava ser cosmonauta. Em 2129 foi a primeira
mexicana jamais admitida na Academia Espacial do Colorado. Ao graduar-se
quatro anos mais tarde, os grandes cortes nos programas espaciais já haviam
começado. Depois da crise de 2134, o mundo afundou na depressão conhecida
como o Grande Caos e virtualmente toda exploração espacial parou. Benita foi
afastada pela AEI em 2137, e pensou que sua carreira espacial estivesse
terminada.
“Em 2144, um dos últimos veículos de transporte interplanetário, o James
Martin, voltou capengando de Marte até a Terra, lotado principalmente com
mulheres e crianças das colônias marcianas. A espaçonave mal conseguiu entrar
em órbita terrestre e parecia que todos os passageiros morreriam. Benita Garcia e
três de seus amigos do corpo de cosmonautas improvisaram um veículo de
salvamento e conseguiram resgatar 24 dos viajantes na missão espacial mais
espetacular de todos os tempos...”
O pensamento de Ellie desligou-se da narrativa de Eponine para flutuar
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como Mariko havia tratado a ela e a Ellie como se fossem, insetos, certa noite
depois de ensaios. Os homens são tão estúpidos, algumas vezes.
“Eponine”, perguntou Ellie, “você se importa se os meus pais vierem ao
ensaio geral? Beckett é um dos dramaturgos favoritos de meu pai e ...”
“Seria ótimo”, respondeu Eponine. “Seus pais são bem-vindos a qualquer
momento. Além do mais, quero agradecer a eles...”
“Srta. Eponine”, uma jovem voz de homem gritou do outro lado da sala.
Era Derek Brewer, um dos alunos de Eponine que nutria uma paixonite escolar
por ela. Derek correu alguns passos, depois gritou novamente. “Já ouviu a
novidade?”
Eponine sacudiu a cabeça. Derek estava obviamente excitadíssimo. “O juiz
Mishkin julgou o uso das braçadeiras inconstitucional!”
Eponine levou alguns segundos para absorver a informação. A essa altura,
Derek já estava a seu lado, encantado por ser ele a lhe dar a notícia. “Você... tem
certeza?”, perguntou Eponine.
“Acabamos de ouvir no rádio do escritório.”
Eponine estendeu a mão para o braço, odiando sua braçadeira vermelha.
Olhou para Derek e Ellie e com um movimento rápido arrancou a tira do braço e
jogou-a para longe. Ao observar o arco que esta percorreu até cair no chão, seus
olhos encheram-se de lágrimas.
“Obrigada, Derek”, disse ela.
Em poucos instantes, Eponine sentiu quatro jovens braços que a envolviam
e abraçavam.
“Parabéns”, disse Ellie suavemente.
4
O quiosque de hambúrgueres na Cidade Central era totalmente operado
por biomas. Dois Lincolns administravam o restaurante sempre muito freqüentado
e quatro Garcias tomavam nota dos pedidos dos fregueses. A preparação
da comida era feita por uma dupla de Einsteins, e o local era mantido
imaculadamente limpo por uma única Tiasso. O quiosque gerava um lucro
enorme para seu proprietário, porque não havia custos depois da conversão
inicial do prédio e da matéria-prima.
Ellie sempre comia ali na quinta-feira à noite, quando trabalhava no hospital
como voluntária. No dia em que se soube do que veio a ser conhecido como
a Proclamação Mishkin, Ellie encontrou-se no quiosque com sua professora
Eponine, agora sem braçadeira.
“Não sei por que nunca a encontro no hospital”, disse Eponine, mordendo
uma batata frita. “O que é que você faz lá, afinal?”
“Principalmente tomo conta das crianças doentes”, respondeu Ellie. “Há
quatro ou cinco com doenças graves, temos até um menininho com RV-41, e eles
gostam muito de ter visitas humanas. As biomas Tiasso são muito eficientes em
fazer o hospital funcionar e em executar todos os procedimentos, mas não são lá
muito carinhosas.”
“Se não se importa que eu pergunte”, disse Eponine depois de mastigar e
engolir um pedaço de hambúrguer, “por que faz isso? Você é jovem, bonita,
saudável. Deve haver umas mil coisas que você preferisse fazer.”
“Para falar a verdade, não”, respondeu Ellie. “Minha mãe tem um senso
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praguejei — cheguei até a pular em cima dela... mas alguém bateu na minha
cabeça... e lá estava eu no meio do cassino, no chão, com o Toshio curvado em
cima de mim... ‘Se você algum dia tornar a fazer um coisa dessas’, ele sibilou, ‘vai
ser enterrada ao lado de Marcello Danni’.”
Kimberly enterrou o rosto nas mãos e começou a soluçar. “Ah, Ep”, disse
um pouco depois, “estou tão desesperada. Não tenho para onde ir. O que é que
eu posso fazer?”
Antes que Eponine pudesse dizer alguma coisa, Kimberly começou a falar
novamente. “Eu sei, eu sei, eu sei; eu podia tornar a trabalhar no hospital. Eles
ainda precisam de enfermeira de verdade — por falar nisso, onde está o seu
Lincoln?”
Eponine sorriu e apontou para o armário. “Muito bem”, riu-se Kimberly.
“Mantenha o robô no escuro. Só deixe ele sair para lavar o banheiro, lavar a louça
e cozinhar. Depois é direto para o armário...” Ela riu. “Os pintos deles não
funcionam, sabe. Quero dizer, ter eles têm, anatomicamente é tudo perfeito, mas
duro não fica. Uma noite quando eu estava doidona e sozinha peguei um para
trepar comigo, mas na hora que eu disse ‘entra’ ele nem sabia do que eu estava
falando... parecia até uns caras que eu conheci.”
Kimberly andava agitada pela sala. “Eu não sei bem por que eu vim aqui”,
disse ela, acendendo outro cigarro. “Pensei em você e em mim, quero dizer, houve
um tempo em que nós fomos amigas...” A voz dela foi sumindo. “Agora estou
baixando, começando a me sentir deprimida. É horrível, terrível. Não posso
suportar. Não sei o que esperava, mas você tem sua própria vida... É melhor eu ir
embora.”
Kimberly atravessou a sala e foi dar em Eponine um abraço meio inexpressivo.
“Vê se se cuida, OK?”, disse Kimberly. “Não se preocupe comigo. Vai dar
tudo certo.”
Foi só depois que a porta se fechou e Kimberly já tinha ido embora que
Eponine se deu conta de que não dissera uma única palavra enquanto sua examiga
estivera na sala. E Eponine teve a certeza de que jamais tornaria a vê-la.
5
A sessão do Senado era aberta e qualquer habitante da colônia poderia assisti-
la. A galeria só tinha trezentos lugares, que estavam lotados. Outras cem
pessoas permaneciam de pé junto à parede ou sentadas nas passagens. No
plenário, os 24 integrantes do legislativo do Novo Éden agora davam atenção a
seu presidente, o governador Kenji Watanabe.
“Nossas discussões sobre o orçamento continuam hoje”, disse Kenji, após
bater seu martelo várias vezes para silenciar os presentes, “com uma fala do
diretor do Hospital do Novo Éden, dr. Robert Turner. Ele fará um resumo do que
foi realizado com as verbas da saúde no ano passado e apresentará suas
necessidades para o ano que vem.”
O dr. Turner caminhou até o pódio e fez um gesto para as duas Tiassos
que estavam sentadas a seu lado. As biomas rapidamente armaram um projetor e
montaram uma tela em cubo para o material visual que apoiaria a fala do dr.
Turner.
“Demos grandes passos no ano passado”, começou o dr. Turner, “tanto na
construção de um meio ambiente médico sólido para o Novo Éden quanto na
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que todos os AQT19 daquele laboratório no Senegal não foram convencido. Estou
convencido de que de algum modo esse retro-vírus em particular sobreviveu,
passou por pequenas mutações no século seguinte — possivelmente vivendo em
hospedeiros símios — e eventualmente fez seu caminho até seres humanos.
Sendo esse o caso, nós seríamos os criadores originais da moléstia que nos está
matando.”
Na galeria estourou uma gritaria. O governador Watanabe novamente
bateu seu martelo para aquietar a platéia, desejando intimamente que o dr.
Turner guardasse suas conjecturas para si mesmo. Nessa altura, o diretor do
hospital começou sua discussão de todos os projetos que precisariam de verba no
ano seguinte. O dr. Turner pedia que sua verba fosse o dobro do que tivera no
ano anterior, o que provocou um gemido audível no plenário.
Os vários oradores que se seguiram imediatamente ao dr. Turner não
passaram na realidade de enfeite. Todo mundo sabia que a única fala importante
do dia além daquela seria a de Ian MacMillan, candidato a governador da
oposição nas eleições que se realizariam daqui a três meses. Todos sabiam,
também, que o atual governador, Kenji Watanabe e o candidato de seu partido,
Dmitri Ulanov, eram a favor de significativo aumento no orçamento médico,
mesmo que novos impostos fossem necessários para financiá-lo. Constava que
MacMillan era contra qualquer aumento nas verbas do dr. Turner.
Ian MacMillan fora fragorosamente derrotado por Kenji Watanabe na
primeira eleição geral realizada na colônia. Desde então, MacMillan mudara sua
residência de Beauvois para Hakone, fora eleito para o Senado pelo distrito de
Vegas e aceitara uma lucrativa posição no crescente império comercial de Toshio
Nakamura. Era um casamento perfeito. Nakamura precisava de alguém
“aceitável” para dirigir a colônia para ele, e MacMillan, que era um homem
ambicioso sem quaisquer valores ou princípios definidos, queria ser governador.
“E muito fácil”, começou Ian MacMillan a ler seu discurso, “ouvir o dr.
Turner e depois abrirmos nossos corações e bolsas, aprovando verbas para todos
os seus pedidos. Isso é que está errado nesses debates sobre orçamento. Cada
chefe de departamento é capaz de apresentar fortes argumentos em favor de suas
propostas. Mas ouvindo o que se diz sobre cada item em separado acabamos
ficando cegos ao quadro geral. Não estou querendo dizer que o programa do dr.
Turner não seja em tudo meritório, no entanto, penso que um debate sobre
prioridades justifica-se neste momento.”
O estilo oratório de MacMillan melhorara bastante desde que ele se mudara
para Hakone e era óbvio que ele fora cuidadosamente ensaiado. No entanto,
ele não era um orador nato e muitas vezes os gestos que preparara pareciam
quase cômicos. Seu principal argumento era o de que os portadores de RV-41
compunham menos de cinco por cento da população do Novo Éden e que os
custos do que se fazia para ajudá-los eram inacreditavelmente caros.
“Por que deveria o resto da população da colônia ser forçada a passar
privações em benefício de um grupo tão pequeno?”, disse ele. “Além do que, há
outras questões, mais prementes, exigindo maiores verbas, questões que afetam
cada um dos habitantes da colônia e provavelmente terão impacto sobre nossa
própria sobrevivência.”
Quando Ian MacMillan apresentou sua versão da história dos
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dá grande valor. Esse homem, esse incrível médico que trabalha o dia inteiro e às
vezes a noite inteira para nos manter com boa saúde, obviamente também encara
a vida humana como um tesouro.
“Quando falou, o dr. Turner não lhes disse por que nós deveríamos financiar
seus programas, só o que era a moléstia e como a deveríamos combater.
Ele supunha que todos nós já deveríamos saber por quê. Depois de ouvir o sr.
MacMillan, comecei a ter minhas dúvidas.
“Nós temos de continuar a estudar essa horrível moléstia, até ela ficar
circunscrita e controlada, porque a vida humana é um produto muito precioso.
Cada pessoa é, individualmente, um milagre único, uma espantosa combinação
de elementos químicos complexos com talentos, sonhos e experiências
particulares. Nada pode ser mais importante para a colônia de modo geral do que
uma atividade que tenha por objetivo a preservação da vida humana.
“Compreendi pelo que o dr. Turner nos disse hoje aqui que seu programa
é caro. Se for necessário aumentar os impostos para pagar por ele, então cada
um de nós talvez tenha de passar sem algum item especial que estava desejando.
É um preço bastante baixo para se pagar pelo tesouro da companhia de um outro
ser humano.
“Minha família e meus amigos me dizem às vezes que eu sou
desesperadamente ingênua. Pode ser que seja verdade. Mas talvez a minha
inocência me permita ver as coisas com mais clareza do que os outros. Neste
caso, creio que só há uma pergunta a fazer: se você ou algum membro de sua
família recebesse um diagnóstico de RV-41 positivo, você então apoiaria o plano
do dr. Turner? Muito obrigada.”
Houve um estranho silêncio quando Ellie desceu do pódio, depois vieram
aplausos ensurdecedores. Lágrimas corriam nas faces de Nicole e Epo-nine. No
plenário, o dr. Turner estendeu as mãos para Ellie.
6
Quando Nicole abriu os olhos, Richard estava sentado a seu lado, na beira
da cama, segurando uma xícara de café. “Você disse que queria ser acordada às
sete”, disse ele.
Ela sentou-se e pegou a xícara. “Obrigada, querido. Mas por que não
deixou o Linc...”
“Resolvi trazer o café eu mesmo... Há notícias da Planície Central de novo.
Eu queria conversar com você sobre o assunto, mesmo sabendo que você não
gosta de ser obrigada a pensar sério logo que acorda.”
Nicole tomou um longo gole de café e sorriu para o marido. “Quais são as
novidades?”, perguntou.
“Houve mais dois incidentes com pernudinhos ontem à noite, o que
completa quase uma dúzia esta semana. Nossas forças de defesa, ao que consta,
destruíram três pernudinhos que estavam ‘perturbando’ a equipe de engenharia.”
“Os pernudinhos deram indícios de querer lutar?”
“Não, nenhum. Ao primeiro ruído de tiros, eles saíram correndo para o
buraco que dá no outro habitat... A maior parte escapou, como acontecera
anteontem.”
“E você continua convencido de que eles sejam observadores à distância,
como os biomas aranha de Rama I e II?”
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Richard fez que sim. “E você pode imaginar o que os outros estarão pensando
de nós... atiramos em criaturas desarmadas sem provocação... reagimos de
forma hostil ao que certamente é uma tentativa de estabelecer contato...”
“Eu também não gosto disso”, disse Nicole suavemente. “Mas o que
poderemos fazer? O Senado autorizou explicitamente as equipes exploratórias a
se defenderem.”
Richard estava a ponto de responder quando notou que Benjy estava
parado na porta. O rapazinho sorria. “Posso entrar, Mamãe?”, perguntou.
“É claro, querido”, respondeu Nicole abrindo os braços. “Venha me dar um
grande abraço de aniversário.”
“Feliz aniversário, Benjy”, disse Richard quando o menino, maior do que a
maioria dos homens, foi abraçar a mãe na cama.
“Obrigado, tio Richard.”
“Nós ainda vamos fazer um piquenique na Floresta de Sherwood hoje?”,
perguntou Benjy vagarosamente.
“Claro que sim”, respondeu sua mãe. “E de noite vamos ter uma festona.”
“Vivaaa!”, disse Benjy.
Era sábado. Tanto Patrick quanto Ellie estavam dormindo até tarde porque
não tinham aula. Linc serviu o desjejum de Richard, Nicole e Benjy,
enquanto os adultos olhavam o noticiário da manhã na televisão. Apareceu um
pequeno filme da mais recente “confrontação com pernudinhos” perto do segundo
habitat, além de comentários feitos por ambos os candidatos ao governo.
“Como venho dizendo há semanas”, salientou Ian MacMillan ao repórter
da televisão, “temos de expandir de forma dramática os preparativos de defesa. Já
começamos finalmente a elevar o patamar das armas disponíveis para nossas
forças, mas temos de agir com mais ousadia nesse terreno.”
Uma entrevista com o diretor do serviço meteorológico concluiu as notícias
matinais. A mulher explicou que o tempo excepcionalmente seco e ventoso que
vinham tendo recentemente era causado por um “erro de modelo” em suas
simulações de computador. “Durante toda a semana temos tentado em vão
produzir chuva. Agora, é claro, já que estamos no fim de semana, programamos
muito sol... Mas prometemos chuva para a semana que vem.”
“Eles não têm a menor idéia do que estão fazendo”, resmungou Richard,
desligando a televisão. “Estão supersaturando o sistema de comandos e gerando
o caos.”
“O que é o ‘caos’, tio Richard?”, perguntou Benjy.
Richard hesitou por um instante. “Acho que a definição mais fácil é a
ausência da ordem. Porém, na matemática a palavra tem um sentido mais
preciso. Ela é usada para descrever respostas desmedidas a pequenas perturbações”,
riu Richard. “Desculpe, Benjy. Às vezes, eu gosto de falar na língua do
pê científica.”
Benjy sorriu. “Eu gosto quando você fala comigo como se eu fosse normal”,
disse ele. “E às ve-zes eu com-pre-en-do um pou-qui-nho.”
Nicole pareceu preocupada enquanto Linc tirava a mesa do café. Quando
Benjy saiu da sala para escovar os dentes, ela se inclinou na direção do marido.
“Você falou com Katie?”, perguntou. “Ela não atendeu ao telefone, nem ontem de
tarde e nem ontem à noite.”
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tempo no palácio”, disse. “Vá até o cassino e pergunte por Sherry. Ela vai saber
por onde anda a sua irmã.”
“Eu sei, eu sei, Mr. Kobayashi, eu compreendo. Wakarimasu”, estava
dizendo Nicole ao senhor japonês em seu escritório. “Posso bem imaginar o que
deve estar sentindo. Pode ter a certeza de que a justiça será feita.”
Ela acompanhou o homem até a sala de espera, onde ele se juntou à sua
mulher. Os olhos de sra. Kobayashi estavam inchados de tanto chorar. Sua filha
de dezesseis anos estava no hospital do Novo Éden, passando por um exame
médico completo. Tinha sido fortemente espancada, porém sua condição não era
crítica.
Nicole telefonou ao dr. Turner depois de conversar com os Kobayashis.
“Há esperma fresco na vagina da moça”, disse o médico, “e escoriações em
praticamente cada centímetro quadrado de seu corpo. Além do que, ela está
emocionalmente arrasada — o estupro parece ser uma forte possibilidade.”
Nicole suspirou. Mariko Kobayashi havia dado o nome de Pedro Mar-tinez,
o rapaz que estrelara com Ellie na peça da faculdade, como sendo o estuprador.
Seria possível? Nicole rodou a cadeira até o outro lado de sua sala, para alcançar
o banco de dados da colônia por seu computador.
Martinez, Pedro Escobar... nascido a 26 de maio de 2228 em Manágua,
Nicarágua... mãe solteira, Maria Escobar, empregada doméstica, freqüentemente
desempregada... pai provavelmente Ramon Martinez, portuário preto do Haiti...
seis meio-irmãos e irmãs, todos mais moços... condenado por venda de kokomo,
2241, 2242... estupro, 2243... oito meses na Casa de Correção de Manágua...
prisioneiro modelo... Transferido para a Casa do Acordo na Cidade do México,
2244... IE 1.86, CS 52.
Nicole leu duas vezes as breves informações do computador antes de fazer
Pedro entrar em seu escritório. Ele sentou-se segundo sugestão de Nicole, e ficou
olhando para o chão. Um bioma Lincoln permaneceu de pé a um canto durante
toda a entrevista, gravando cuidadosamente a conversa.
“Pedro”, disse Nicole suavemente. Não houve resposta. Ele sequer levantou
os olhos. “Pedro Martinez”, repetiu ela, agora com mais força, “você
compreende que está sendo acusado de haver estuprado Mariko Kobayashi
ontem à noite?... Estou certa de não precisar explicar a você a seriedade dessa
acusação... Você tem agora a oportunidade de responder à acusação feita por
ela”.
Pedro continuou sem dizer nada. “No Novo Éden”, continuou Nicole,
finalmente, “temos um sistema judiciário que pode ser diferente do que você
conheceu na Nicarágua. Aqui os casos criminais não resultam em indiciamento
imediato, a não ser que um juiz, após examinar os fatos, acredite que haja razão
suficiente para tal indiciamento. É por isso que eu estou falando com você”.
Após um longo silêncio, o rapaz, sem levantar os olhos, resmungou alguma
coisa inaudível.
“O que foi?”, perguntou Nicole.
“Ela está mentindo”, disse Pedro, bem mais alto. “Eu não sei por que, mas
Mariko está mentindo.”
“Você gostaria de me contar a sua versão do que aconteceu?”
“E que diferença iria fazer? Ninguém vai acreditar em mim, de qualquer
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modo.”
“Pedro, escute... Se, com base na investigação inicial, meu tribunal concluir
quê não há razões suficientes para prosseguir com a acusação, seu caso
será dispensado... É claro que a seriedade da acusação exige uma investigação
muito completa, o que significa que você terá de fazer uma declaração completa e
de responder algumas perguntas bastante duras.”
Pedro Martinez levantou a cabeça e encarou Nicole com olhos tristes.
“Juíza Wakefield”, disse ele com tranqüilidade, “Mariko e eu fizemos sexo ontem à
noite, mas foi idéia dela... ela achou que seria divertido ir para a floresta...” O
rapaz calou-se e tornou a ficar olhando para o chão.
“Você já tinha tido relações sexuais com Mariko em outras ocasiões?”,
perguntou Nicole depois de alguns momentos.
“Só uma vez — há mais ou menos dez dias”, respondeu Pedro. “Pedro,
quando vocês fizeram amor ontem à noite... foi tudo muito físico?”
Lágrimas rolaram dos olhos de Pedro, por suas faces. “Eu não bati nela”,
disse ele apaixonadamente. “Eu jamais a machucaria...”
Enquanto o rapaz falava, ouviu-se um estranho som a distância, como o
estalar de um grande chicote, apenas em tom bem mais grave.
“O que foi isso?”, perguntou-se Nicole, em voz alta.
“Soou como um trovão”, comentou Pedro.
O trovão também foi ouvido na aldeia de Hakone, onde Patrick estava sentando
em uma suíte luxuosa do palácio de Nakamura, conversando com sua irmã
Katie, esta envergando um caro conjunto de seda azul.
Patrick ignorou o ruído inexplicado, pois estava com muita raiva. “Você
está dizendo que não vai nem tentar ir à festa de Benjy hoje à noite? E o que é
que eu devo dizer a mamãe?”
“Diga o que bem quiser”, disse Katie, pegando um cigarro e colocando-o
entre os lábios. “Diga que não me encontrou.” Acendendo o cigarro com um
isqueiro de ouro, ela soprou a fumaça na direção do irmão. Ele tentou afastá-la
sacudindo a mão.
“O que é isso, irmãozinho”, disse Katie rindo. “Pode deixar que não mata.”
“Pelo menos não imediatamente”, respondeu ele.
“Olhe, Patrick”, disse Katie levantando-se e começando a andar pela suíte,
“Benjy é um idiota, um retardado. Nós jamais fomos muito unidos. Ele nem
sequer vai notar que eu não estou lá, a não ser que alguém fale no assunto.”
“Está enganada, Katie. Ele é mais inteligente do que você pensa. Está
sempre perguntando por você.”
“Merda, irmãozinho”, respondeu Katie, “você só está dizendo isso para me
fazer sentir culpada... Olhe, eu não vou. Quero dizer, eu até poderia pensar no
assunto se fosse só você, Benjy e Ellie — muito embora ela tenha virado um pé no
saco desde seu discurso ‘maravilhoso’. Mas você sabe como é comigo e com a
mamãe. Ela não larga nunca do meu pé”.
“Ela se preocupa com você, Katie.”
Katie deu um riso nervoso e acabou o cigarro com uma última tragada.
“Claro que sim, Patrick... A única coisa com que ela se preocupa é que eu não
deixe a família embaraçada.”
Patrick levantou-se para sair. “Você não tem de ir agora”, disse Katie. “Por
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que não fica um pouco? Eu visto uma roupa e nós descemos até o cassino...
Lembra-se de como nós costumávamos nos divertir juntos?”
Katie dirigiu-se para o quarto. “Você está tomando alguma droga?”, perguntou
Patrick repentinamente.
Ela parou e virou-se para o irmão. “Quem quer saber?”, perguntou Katie
desafiadora. “Você ou Madame Cosmonauta Doutora Governadora Juíza Nicole
des Jardins Wakefield?”
“Eu quero saber”, disse Patrick tranqüilamente.
Katie atravessou a sala e pousou as mãos nas faces de Patrick. “Eu sou
sua irmã e te amo”, disse ela. “Nada mais tem importância.”
Nuvens escuras se haviam juntado em torno das amenas colinas da
Floresta de Sherwood. O vento estava varrendo as árvores, soprando para trás os
cabelos de Ellie. Um relâmpago foi imediatamente seguido por um trovão.
Benjy assustou-se e Ellie apertou-o junto a si. “De acordo com o mapa,
nós estamos a apenas um quilômetro da borda da floresta.”
“E isso é muito longe?”, perguntou Benjy.
“Se andarmos depressa”, gritou Ellie para ser ouvida apesar do vento,
“então podemos chegar lá em apenas dez minutos”. Pegando a mão de Benjy, ela
o foi puxando a seu lado pelo caminho.
Um momento mais tarde, um raio rachou uma árvore atrás deles e um
grande galho caiu atravessado no caminho. O galho bateu nas costas de Benjy,
derrubando-o. A maior parte de seu corpo caiu na trilha, mas a cabeça aterrissou
nas plantas e na hera verde que ficavam na base das árvores da floresta. O
barulho do trovão quase o ensurdeceu.
Ele ficou no chão da floresta por vários segundos, tentando compreender o
que lhe acontecera, mas finalmente levantou-se. “Ellie”, disse ele à forma
prostrada de sua irmã, do outro lado da trilha, com os olhos fechados.
“Ellie!” gritou Benjy, meio andando, meio se arrastando para o lado em
que ela estava. Ele a agarrou pelos ombros e sacudiu-a levemente. Os olhos dela
não se abriram, mas o inchaço em sua testa, para cima e para o lado de seu olho
direito já estava do tamanho de uma laranja.
“O que é que eu vou fazer?”, disse Benjy em voz alta. Ele sentiu cheiro de
fogo e olhou imediatamente para as copas das árvores. Viu as chamas saltando
de um ramo para outro, batidas pelo vento. Veio um outro relâmpago, mais
trovões. Na frente dele, mais adiante, na direção em que estavam indo, Benjy viu
que um grande incêndio estava se espalhando por ambos os lados do caminho, e
ficou olhando em pânico.
Ele segurou a irmã em seus braços e deu-lhe uns tapinhas no rosto.
“Ellie”, disse ele, “por favor acorde”. Ela não se mexeu e o fogo se espalhava
rapidamente em torno deles. Em breve aquela área da floresta estaria
transformada em um inferno.
Benjy estava aterrorizado. Ele tentou levantar Ellie, mas tropeçou e caiu.
“Não, não, não”, gritou ele, ficando novamente de pé e curvando-se para erguer
Ellie para seus ombros. A fumaça estava ficando grossa. Benjy começou a moverse
lentamente, descendo pelo caminho, com Ellie nas costas.
Estava exausto quando atingiu o prado. Com delicadeza, deixou Ellie em
uma das mesas de pedra e sentou-se em um banco. O fogo estava ficando fora de
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controle no lado norte do prado. E agora o que é que eu faço?, pensou. Seus
olhos caíram no mapa no bolso da camisa de Ellie. Isso pode me ajudar. Ele
agarrou o mapa e olhou-o. A princípio não conseguiu compreender nada e
começou a entrar novamente em pânico.
Calma, Benjy, ouviu ele, no tranqüilizador tom usado por sua mãe. É um
pouco difícil, mas você consegue. Os mapas são muito importantes. Eles nos dizem
aonde ir... E a primeira coisa a se fazer é sempre botar o mapa de um jeito que se
possa ler o que está escrito. Viu? Isso mesmo. Quase sempre a parte que fica para
cima se chama norte. Ótimo. Este é um mapa da Floresta de Sherwood...
Benjy virou o mapa nas mãos até as letras ficarem de cabeça para cima.
Os raios e os trovões continuavam. Uma mudança repentina do vento enfiou
fumaça em seus pulmões e ele tossiu. Depois tentou ler as palavras escritas no
mapa.
Novamente pareceu-lhe ouvir a voz de sua mãe. Senão reconhecer uma
palavra da primeira vez pegue cada letra por seu som e pronuncie, bem devagar.
E depois deixe os sons irem se juntando até formar uma palavra que você
conheça.
Benjy olhou para Ellie, deitada na mesa. “Acorda, por favor acorda, Ellie”,
disse ele. “Eu preciso de sua ajuda”. Mas ela não se mexeu.
Ele se debruçou sobre o mapa e tentou concentrar-se. Com esforço e
resolução, Benjy foi dizendo o som das letras até se convencer de que a mancha
verde no mapa era o prado onde estava sentado. As linhas brancas são os
caminhos, disse ele para si mesmo. Há três linhas brancas que vão dar na mancha
verde.
Benjy levantou os olhos do mapa, contou os três caminhos que levavam
para fora do prado, e sentiu uma onda de autoconfiança. Momentos mais tarde,
no entanto, uma lufada de vento carregou umas brasas pelo prado e incendiou as
árvores do lado sul. Benjy moveu-se com rapidez. Eu tenho de ir, disse ele, e
novamente carregou Ellie nas costas.
Ele agora compreendia que o incêndio principal estava na parte norte do
mapa, para o lado da aldeia de Hakone. Benjy ficou olhando de novo para o papel
em suas mãos. Então eu tenho de ficar nas linhas brancas na parte de baixo, pensou
ele.
O rapaz foi andando pesadamente pelo caminho abaixo e uma outra
árvore explodiu bem acima de sua cabeça, ao longe. Sua irmã continuava deitada
em seu ombro e na mão direita ele empunhava o mapa. Benjy parava para olhar
o mapa a cada dez passos, verificando a cada vez se ainda continuava na direção
correta. Quando finalmente alcançou um entroncamento principal de caminhos,
Benjy pousou Ellie delicadamente no chão e com o dedo seguiu as linhas brancas
no mapa. Ao fim de um minuto, ele deu um grande sorriso, tornou a carregar a
irmã e seguiu pelo caminho que levava à aldeia de Positano. Houve mais um
relâmpago, um trovão reboou, e uma chuva torrencial começou a cair sobre a
Floresta de Sherwood.
7
Várias horas mais tarde, Benjy dormia pacificamente em sua cama, em
casa. Enquanto isso, do outro lado da colônia, o hospital do Novo Éden era um
hospício. Humanos e biomas corriam de um lado para outro, macas com corpos
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está me pedindo. Há cinco anos que não faço um transplante. E nunca fiz um
sem o apoio da melhor equipe cardiológica e o melhor equipamento da Terra.
Todo o trabalho cirúrgico, por exemplo, sempre foi executado por robôs.”
“Compreendo tudo isso, dr. Turner. Porém, não é realmente relevante.
Sem a operação, eu morro com certeza. É quase certo que não apareça um outro
doador dentro de um futuro próximo. Além do que, Ellie me disse que o senhor
tem andado revendo todos os procedimentos de transplante cardíaco como parte
de seu trabalho de elaboração dos pedidos orçamentários para novos
equipamentos...”
O dr. Turner lançou um olhar enigmático a Ellie. “Minha mãe me contou o
quanto seus estudos preliminares foram detalhados, dr. Turner. Espero que não
fique aborrecido por eu ter dito alguma coisa a Amadou.”
“Eu terei prazer em ajudá-lo em tudo o que for possível”, acrescentou
Nicole. “Embora eu jamais tenha feito qualquer cirurgia cardíaca pessoalmente,
fiz uma residência completa em um instituto de cardiologia.”
O dr. Turner olhou em volta da sala, primeiro para Ellie, depois para
Amadou e Nicole. “Bem, acho que fica resolvido, então. Parece que ninguém me
deu muita escolha.”
“Vai operar?”, exclamou Ellie, transbordando de entusiasmo juvenil.
“Vou tentar”, respondeu o médico. Ele foi até Amadou Diaba e estendeulhe
ambas as mãos. “Você sabe, não sabe, que há muito poucas probabilidades
de você despertar?”
“Sei, sim, dr. Turner. Porém, pouquíssimas probabilidades são sempre
melhor do que nenhuma... Eu fico muito agradecido.”
O dr. Turner voltou-se para Nicole. “Nós nos encontraremos na minha sala
para uma revisão de procedimentos dentro de quinze minutos... E por falar nisso,
dra. Wakefield, por favor peça a uma Tiasso que nos traga um bule de café
fresco.”
A preparação para o transplante reviveu lembranças que o dr. Turner
enterrara no mais profundo de sua mente. Uma ou duas vezes, ele chegou mesmo
a imaginar durante vários segundos que estava de volta ao Centro Médico de
Dallas. Lembrou-se principalmente do quanto fora feliz naqueles dias distantes
em um outro mundo. Ele amava seu trabalho; tinha amado sua família. Sua vida
tinha sido quase perfeita.
Os doutores Turner e Wakefield escreveram cuidadosamente a seqüência
exata dos acontecimentos que seguiriam antes de iniciar o procedimento. Depois,
durante a operação em si, eles pararam para verificar um com o outro quando
cada etapa principal era completada. Nada de inesperado ocorreu em qualquer
momento durante o procedimento. Quando o dr. Turner retirou o antigo coração
de Amadou, ele o virou para que Nicole e Ellie (que insistira em ficar para o caso
de haver alguma coisa na qual pudesse ajudar) pudessem ver até que ponto os
músculos já estavam atrofiados. O coração do homem estava um desastre. Era
provável que morresse em menos de um mês.
Uma bomba automática manteve o sangue do paciente circulando enquanto
o novo coração era “engatado” em todas as principais artérias e veias. Era
a parte mais difícil e perigosa da operação. Em toda a experiência do dr. Turner,
aquele segmento jamais fora executado por mãos humanas.
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alguns móveis de lugar naquela tarde, o que seria a explicação perfeita para a
presença de suas impressões digitais pela casa afora...”
O dr. Turner fez uma pausa, pensando, com a dor estampada em seu
semblante. Ellie apertou-lhe ligeiramente a mão e ele continuou.
“Quando chegou o momento do julgamento, a promotoria argumentou que
Tyson trouxera compras para nossa casa naquela tarde e descobrira, ao
conversar com Linda, que eu estaria operando até muito mais tarde naquela
noite. Já que minha mulher era uma pessoa simpática e confiante, não seria
implausível que conversasse um pouco com o rapaz das entregas e até mesmo
mencionado que eu só chegaria mais tarde... Seja como for, o promotor
argumentou que Tyson voltara depois do trabalho no supermercado, subira o
muro de pedra construído pelo clube de campo para o condomínio, e atravessara
o campo de golfe. Ele então teria entrado na casa no intuito de roubar as jóias de
Linda e esperado que toda a família estivesse dormindo. Aparentemente, minha
mulher o teria enfrentado e Tyson, entrando em pânico, matara primeiro Linda e
depois as crianças, para ter a certeza de que não haveria testemunhas.
“A despeito do fato de ninguém ter visto Tyson voltar para nossa vizinhança,
julguei o caso apresentado pela promotoria como extremamente
persuasivo, acreditando que o homem seria facilmente condenado. Afinal, ele não
tinha qualquer álibi para o período de tempo durante o qual ocorreram os
assassinatos. A lama encontrada nos sapatos de Tyson era exatamente igual à do
riacho que ele teria de atravessar para chegar aos fundos da casa. Ele não
aparecera para trabalhar nos dois dias que se seguiram aos crimes. E mais,
quando foi preso Tyson estava carregando uma grande quantia em dinheiro que
ele disse ter “ganho em um joguinho de pôquer”.
“Durante o período da defesa, no julgamento, comecei a nutrir sérias
dúvidas quanto ao sistema judiciário americano. O advogado dele transformou o
caso em uma questão racial, retratando Carl Tyson como um pobre e infeliz rapaz
preto que estava sendo embrulhado por provas circunstanciais. Seu advogado
argumentou enfaticamente que tudo o que Tyson havia feito naquele dia de
outubro fora entregar compras na minha casa. Uma outra pessoa, disse o
advogado, algum maníaco desconhecido, subira o muro de Greenbriar, roubara
as jóias e depois assassinara Linda e as crianças.
“Nos últimos dois dias do julgamento fiquei convencido, mais pela observação
da linguagem corporal dos jurados do que por qualquer outra coisa, de
que Tyson seria absolvido. Fiquei enlouquecido de indignação moral. Não havia a
menor dúvida em minha mente de que o rapaz cometera os crimes. Pensar que
ele saísse livre dali era intolerável.
“Todos os dias durante o julgamento — que durou cerca de seis semanas
— eu compareci ao tribunal carregando minha maleta médica. A princípio os
seguranças verificavam a maleta cada vez que eu chegava, porém depois, e
especialmente porque a maioria se solidarizava com minha angústia, eles
simplesmente me deixavam entrar.
“No fim de semana antes do julgamento ser concluído, eu voei até a
Califórnia, ostensivamente a fim de comparecer a um seminário médico, mas na
verdade a fim de comprar uma espingarda de caça no mercado negro que
coubesse dentro de minha maleta de médico. Como esperava, no dia do veredicto
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pendurada na parede, ao lado das de suas irmãs e seus irmãos. Então, você será
minha terceira filha a casar-se. Parece impossível. Às vezes, a vida anda depressa
demais.
Uma montagem de imagens de Ellie passou como um relâmpago pela
mente de Nicole. Tornou a vê-la como um bebezinho tímido deitada a seu lado na
Sala Branca na Rama II, o rostinho atônito de menininha quando eles se
aproximaram do Nodo a bordo do transporte, suas novas feições de adolescente
quando despertou do longo sono, e finalmente a maturidade da decisão e
coragem que apareceram quando falou diante dos cidadãos do Novo Éden em
defesa do programa do dr. Turner. Foi uma viagem maravilhosa pelo passado.
Nicole recolocou a foto de Ellie na parede e começou a despir-se. Acabara
de pendurar o vestido no armário quando ouviu um som estranho, algo como um
choro, nos limites extremos de sua audição. O que era aquilo? perguntou-se.
Nicole ficou sentada, imóvel, por vários minutos, porém não ouviu quaisquer
outros ruídos. Quando se levantou, no entanto, repentinamente teve a estranha
sensação de que tanto Geneviève quanto Simone estavam no quarto com ela.
Nicole olhou em torno, porém continuava sozinha.
O que está acontecendo comigo? Será que tenho trabalhado demais? Será
que a mistura do Caso Martinez com o casamento me empurraram para além dos
limites? Ou será este mais um de meus episódios psíquicos?
Nicole tentou acalmar-se respirando lenta e profundamente. Não conseguiu,
no entanto, livrar-se da sensação de que Geneviève e Simone estivessem
efetivamente no quarto com ela. A presença das duas era tão forte que Nicole teve
de fazer enorme esforço para não falar com elas.
Lembrava-se com muita clareza das discussões que tivera com Simone
antes de seu casamento com Michael O’Toole. Talvez seja por isso que estão aqui.
Vieram lembrar-me que tenho andado tão ocupada que não tive minha conversa de
casamento com Ellie. Nicole deu uma pequena gargalhada, mas continuou a
sentir um arrepio em seus braços.
Desculpem-me, minhas queridas, disse ela tanto à foto de Ellie quanto aos
espíritos de Geneviève e Simone ali no quarto. Prometo que amanhã...
Desta vez o guincho foi inconfundível. Nicole ficou paralisada em seu
quarto com a adrenalina correndo pelo seu corpo. Em poucos segundos, saiu
correndo, atravessando a casa na direção do escritório onde Richard estava
trabalhando.
“Richard”, disse, mesmo antes de alcançar a porta do escritório, “você
ouviu...?”
Nicole parou no meio da frase. O escritório estava um caos. Richard estava
no chão, cercado por um par de monitores e uma pilha confusa de equipamentos
eletrônicos. O robozinho do Príncipe Hal estava em uma das mãos, e o precioso
computador portátil que Richard guardara da missão Newton estava na outra.
Três biomas — duas Garcias e um Einstein parcialmente desmontado —
curvavam-se sobre ele.
“Ora, olá, querida”, disse Richard, muito à vontade. “O que está fazendo
aqui? Pensei que a esta hora estaria dormindo.”
“Richard, tenho a certeza de que ouvi o guincho de uma daquelas aves.
Não faz mais de um minuto. Foi muito perto.” Nicole hesitou, tentando decidir se
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“Isso me lembra de uma conversa que tive certa vez com Michael O’Toole.
Ele estava frustrado porque eu não aceitava, por fé, o testemunho ocular dos
apóstolos. E depois ele me disse que Deus deveria saber que haveria uma espécie
de Tomés duvidadores, e programado freqüentes visitas de Cristo após a
ressurreição.”
“Mas a situação é completamente outra”, argumentou Nicole.
“Será?”, retrucou Richard. “O que os primeiros cristãos relataram a respeito
de Cristo não pode ter sido mais difícil de aceitar do que nossas descrições
do Nodo ou de nossa longa jornada que dilatava o tempo com suas velocidades
relativistas... É muito mais reconfortante para os coloniais acreditar que esta
espaçonave foi criada como uma experiência da AEI. Muito poucos entendem o
suficiente de ciência para compreender que Rama está muitíssimo além de
nossas potencialidades tecnológicas.”
Nicole ficou em silêncio por um momento. “Então não há nada que possamos
fazer para convencê-los...”
Ela foi interrompida pelo zunido triplo indicando que o telefonema que
chegava era urgente. Nicole tropeçou pelo chão para ir atendê-lo, e o rosto
preocupado de Max Puckett apareceu no monitor.
“Estamos com uma situação perigosa aqui do lado de fora do conjunto de
detenção”, disse ele. “Há uma turba furiosa, talvez umas setenta ou oitenta
pessoas, principalmente de Hakone. Querem chegar até Martinez. Já liquidaram
duas biomas Garcia e atacaram três outras. O juiz Mishkin está tentando
argumentar com eles, mas o clima é péssimo. Aparentemente, Mariko Kobayashi
se suicidou há cerca de duas horas. Toda a família dela está aqui, inclusive o
pai...”
Nicole tinha vestido um training em menos de um minuto. Richard tentou
em vão argumentar com ela. “A decisão foi minha”, disse ela, enquanto montava
na bicicleta. “Sou eu quem deve arcar com as conseqüências.”
Ela manobrou a bicicleta para fora de casa, chegou à ciclovia principal e
começou a pedalar furiosamente. Mantendo alta velocidade, ela poderia chegar ao
centro administrativo em quatro ou cinco minutos. Menos da metade do tempo
que levaria se fosse de trem àquela hora da noite. Kenji errou, pensou ela.
Deveríamos ter feito uma entrevista coletiva hoje de manhã. E eu poderia ter
explicado a decisão.
Quase cem coloniais se encontravam reunidos na praça principal da
Cidade Central. Estavam caminhando por perto do complexo de detenção do Novo
Éden, onde Pedro Martinez se encontrava desde o momento em que fora indiciado
pelo estupro de Mariko Kobayashi. O juiz Mishkin estava parado no alto da
escadaria da frente do centro, e falava à turba zangada por meio de um megafone.
Vinte biomas, principalmente Garcias com um par de Lincolns e Tiassos agregado
ao grupo, estavam de braços dados na frente do juiz Mishkin e evitavam que a
turba subisse as escadas à frente do juiz.
“Escutem aqui”, estava dizendo o russo grisalho, “se Pedro Martinez for
culpado, então ele será condenado. Porém, nossa constituição lhe garante um
julgamento justo...”
“Cala a boca, velho”, gritou alguém na multidão. “Nós queremos Martinez”,
gritou uma outra voz.
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Max deu tiros de festim acima das cabeças de todos e riu-se às gargalhadas
quando a multidão começou a sair correndo da praça. Nicole não
conseguia dormir. A mesma cena passava e repassava em sua lembrança. Ficava
a ver-se no meio da multidão estapeando o rapaz ruivo. O que me mostra que não
sou melhor do que ele, pensou.
“Você ainda está acordada, não está?”, disse Richard.
“Hum-hum.”
“Está tudo bem?”
Houve um breve silêncio. “Não, Richard”, respondeu Nicole. “Nada bem...
Sinto-me muito perturbada por haver batido no rapaz.”
“Ora, o que é isso. Pare de se torturar... Ele mereceu... Ele a insultou da
pior maneira possível... Gente assim não merece nada a não ser o uso da força”.
Richard estendeu a mão e começou a massagear as costas de Nicole. “Meu
Deus”, disse ele. “Nunca a vi tão tensa... você está que é um nó só, de alto a
baixo.”
“Estou preocupada”, disse Nicole. “Tenho uma sensação terrível de que
todo o tecido de nossa vida aqui no Novo Éden está a ponto de esgarçar-se todo...
E que tudo o que fiz ou ainda faço é absolutamente inútil.”
“Você fez o melhor que pôde, querida... confesso que sempre fiquei
espantado de ver o quanto você tenta.” Richard continuou a massagear as costas
dela suavemente. “Mas você tem de se lembrar que está tratando com seres
humanos... Você pode transportá-los para um novo mundo e dar-lhes um
paraíso, mas mesmo assim eles virão equipados com seus temores e
inseguranças e predileções culturais. Um novo mundo só poderia ser realmente
novo se todos os seres humanos envolvidos começassem com mentes totalmente
vazias, como computadores novos sem softwares e sem sistemas de operação, só
com pilhas de potencial inexplorado.”
Nicole conseguiu dar um sorriso. “Meu querido, você não é muito otimista.”
“E por que haveria de ser? Nada que vi até hoje aqui no Novo Éden ou na
Terra me sugere que a humanidade seja capaz de alcançar harmonia em suas
relações consigo mesma, menos ainda com qualquer outra criatura viva.
Ocasionalmente, aparece um indivíduo, ou até mesmo um grupo, capaz de
transcender as deficiências genéticas e ambientais da espécie... Porém, tais
pessoas são milagres, pois certamente não são a norma.”
“Não concordo com você”, disse Nicole suavemente. “Sua visão é muito
desesperada. Creio que a maioria das pessoas deseja ardentemente atingir essa
harmonia. Só não sabemos como fazê-lo. É por isso que precisamos de mais
educação. E mais bons exemplos.”
“Até mesmo aquele rapaz ruivo? Você acredita que a educação será capaz
de destruir sua intolerância?”
“Tenho de acreditar, querido. De outro modo... temo que eu simplesmente
desista de tudo.”
Richard emitiu um som entre uma tosse e um riso. “O que foi?”,
perguntou Nicole.
“Estava apenas imaginando”, disse Richard, “se Sísifo algum dia teve a
ilusão de acreditar que talvez na vez seguinte aquela pedra não tornasse a rolar
colina abaixo.”
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O lado virado para ele retratava as belezas do Japão, cada painel dedicado
a uma das quatro estações. O quadro do inverno retratava uma estação de esqui
nos alpes japoneses recobertos por metros de neve; a primavera mostrava
cerejeiras em flor ao longo do Rio Kama em Kioto. O verão era um dia de
cristalina clareza com o cume nevado do Monte Fuji a dominar uma paisagem
verde. O outono apresentava um delírio de cores nas árvores que cercam o altar e
o mausoléu da família Tokugawa em Nikko.
Toda essa espantosa beleza, refletiu Kenji, sentindo-se repentinamente
tomado de saudades de seu país natal. Ele tentou recriar o mundo que deixou para
trás. Mas por quê? Por que gastaria tanto de seu dinheiro sórdido em arte tão
magnífica? Ele é um homem estranho e incoerente.
Os quatro painéis no reverso do biombo falavam de um outro Japão. A
riqueza de cores mostrava a batalha do Castelo Osaka, no início do século XVII,
depois da qual Ieysu Tokugawa ficou praticamente sem oposição como xogum do
Japão. O biombo estava coberto de figuras humanas — guerreiros samurais na
batalha, homens e mulheres da corte espalhados pelo terreno do castelo, até
mesmo o próprio Senhor Tokugawa, maior do que os outros e parecendo
contentíssimo com sua vitória. Kenji divertiu-se ao notar que o xogum esculpido
ostentava semelhança mais do que casual com Nakamura.
Kenji estava a ponto de tornar a sentar-se na almofada quando o biombo
se abriu e seu adversário entrou. “Omashido sama deshita” disse Nakamura, fazendo
ligeiro cumprimento em sua direção.
Kenji curvou-se por sua vez, um tanto canhestramente porque não conseguia
tirar os olhos de seu compatriota. Toshio Nakamura estava vestido em
traje samurai completo, inclusive sabre e punhal! Tudo isso é parte de alguma
manobra psicológica, disse Kenji a si mesmo. Foi concebido para confundir-me ou
assustar-me.
“Ano, hajememashoka”, disse Nakamura, sentando-se na almofada
defronte à de Kenji. “Kocha ga, oishii desu, ne?”
“Totemo oishii desu”, respondeu Kenji, tomando mais um gole. O chá era
realmente excelente. Mas ele não é meu xogum, pensou Kenji. Tenho de alterar
esta atmosfera antes de iniciar qualquer conversa séria.
“Nakamura-san, nós somos ambos homens ocupados”, disse o governador
Watanabe em inglês. “É importante para mim que dispensemos as formalidades e
entremos direto no essencial. Seu representante disse-me pelo telefone, hoje pela
manhã, que você está ‘perturbado’ quanto aos acontecimentos das últimas vinte e
quatro horas e tem algumas ‘sugestões positivas’ que poderiam reduzir a tensão
no Novo Éden. É por isso que vim aqui conversar com você.”
O rosto de Nakamura não demonstrava nada; no entanto, um ligeiro
sibilar enquanto falava expressava seu desprazer com a objetividade de Kenji.
“Está esquecido de suas maneiras japonesas, Watanabe-san. É gravemente
impolido começar uma discussão de negócios antes de haver cumprimentado seu
anfitrião pelo que o cerca e indagado sobre sua boa disposição. Esse tipo de
impropriedade sempre leva a discordâncias desagradáveis, que podem ser
evitadas...”
“Sinto muito”, disse Kenji com ligeiro traço de impaciência, “mas não
preciso de lições, logo suas, sobre minhas maneiras. E além disso nós não
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depois da noite em que ela foi supostamente estuprada? E que tanto Mariko
quanto Pedro Martinez repetiram insistentemente que estiveram juntos e
sozinhos durante toda a noite?... Até mesmo quando Nicole sugeriu a Mariko, na
semana passada, que havia provas de uma outra relação sexual a jovem ficou
firme em sua versão.”
Nakamura perdeu momentaneamente sua segurança. Encarou Kenji sem
expressão alguma. “Não pudemos identificar quem foi o outro participante”,
continuou Kenji. “As amostras de sêmen desapareceram misteriosamente do
laboratório do hospital antes que a análise integral de DNA fosse completada. Só
o que temos são os registros do exame original.”
“Tais registros poderiam estar errados”, disse Nakamura, recobrando sua
autoconfiança.
“É muito pouco provável. Mas de qualquer modo, podemos assim compreender
o dilema da Juíza Wakefield. Todo mundo na colônia já decidiu que
Pedro é culpado. Ela não quis que um júri o condenasse erradamente.”
Houve um longo silêncio. O governador preparou-se para partir.
“Você me surpreende, Watanabe”, disse Nakamura finalmente, “pois não
compreendeu de todo a razão deste nosso encontro. O fato daquele porcaria
daquele Martinez ter ou não estuprado Mariko Kobayashi não tem realmente a
menor importância... Eu prometi ao pai dela que o rapaz nicaragüense seria
punido. E é isso o que conta”.
Kenji Watanabe olhou com repugnância para seu colega de infância. “Vou
sair agora”, disse ele, “antes que me zangue realmente.”
“Você não terá outra oportunidade”, disse Nakamura, novamente com
hostilidade nos olhos. “Esta foi minha primeira e última oferta.”
Kenji sacudiu a cabeça, abriu ele mesmo o biombo de papel e saiu para o
corredor.
Nicole estava caminhando por uma praia linda e ensolarada. A cerca de
cinqüenta metros à sua frente, Ellie estava parada ao lado do dr. Turner. Estava
usando seu vestido de noiva, porém o noivo estava usando um calção de banho.
O bisavô de Nicole, Omeh, estava realizando a cerimônia vestido com sua linda
túnica tribal verde.
Omeh colocou as mãos de Ellie nas do dr. Turner e começou um cântico
Senoufo. Levantou os olhos para o céu. Uma ave extraterrestre sobrevoava o
quadro, gritando no ritmo do cântico de bodas. Quando Nicole olhou para a ave, o
céu escureceu. Nuvens de tempestade invadiram o quadro, substituindo o céu
plácido.
O oceano começou a encapelar-se e o vento a soprar. O cabelo de Nicole,
agora totalmente grisalho, estendeu-se para trás. O grupo das bodas ficou
totalmente desorganizado. Todos correram para buscar abrigo e fugir da
tempestade que se aproximava. Nicole não conseguia mover-se. Seus olhos
estavam fixos em um grande objeto sendo batido pelas ondas.
O objeto era uma grande sacola verde, parecida com os sacos plásticos
usados para lixo de jardim no século XXI. A sacola estava cheia e vinha em
direção à praia. Nicole queria tentar agarrá-la mas tinha medo do mar bravio. Ela
apontou para a sacola e gritou por socorro.
No canto esquerdo superior da tela de seu sonho viu uma grande canoa.
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Quando esta se aproximou, Nicole se deu conta que seus oito ocupantes eram
extraterrestres alaranjados, menores que os humanos. Pareciam ser feitos de
massa de pão. Tinham olhos e rostos, mas eram glabros. Os alienígenas
conduziram sua canoa até a sacola verde e pegaram-na.
Os extraterrestres alaranjados depositaram a sacola na praia e Nicole não
se aproximou enquanto eles não tornaram a entrar em sua canoa e voltaram para
o oceano. Ela acenou para eles como despedida e caminhou até a sacola, cujo
zíper abriu cuidadosamente. Quando havia puxado aproximadamente metade,
viu o rosto morto de Kenji Watanabe.
Nicole teve um arrepio, gritou e sentou-se na cama. Estendeu a mão para
Richard, porém a cama estava vazia. O relógio digital na mesa mostrava que eram
2:48 da manhã. Nicole tentou ralentar a respiração e libertar sua mente daquele
sonho horrível.
A vivida imagem de Kenji Watanabe morto demorou-se em sua memória.
Andando até o banheiro, Nicole lembrou-se de seus sonhos premonitórios sobre a
morte de sua mãe, nos tempos em que tinha dez anos. E se Kenji Watanabe
realmente fosse morrer? pensou ela, sentindo uma primeira onda de pânico.
Forçou-se a pensar sobre outra coisa. Onde estaria Richard àquela hora da noite?
ficou imaginando. Enfiando um robe, Nicole saiu do quarto.
Caminhou silenciosamente, passou pelos quartos das crianças e foi para a
parte da frente da casa. Benjy roncava, como de hábito. A luz estava acesa no
escritório, mas Richard não estava lá. Dois dos novos biomas e o Príncipe Hal
também tinham sumido. Um dos monitores na mesa de trabalho de Richard
ainda tinha a tela ocupada.
Nicole sorriu e lembrou-se do acordo que tinha entre eles. Apertou as
teclas Nicole no teclado e o quadro mudou. “Minha queridíssima Nicole”, leu ela
na mensagem que apareceu, “se acordar antes de eu voltar, não se preocupe.
Planejo estar de volta de madrugada, o mais tardar amanhã às oito da manhã.
Venho fazendo um trabalho com os biomas da série 300 — você se lembra,
aqueles que não foram inteiramente programados em firmware e portanto podem
ser designados para tarefas especiais — e tenho motivos para pensar que alguém
anda espionando meu trabalho. Portanto, acelerei a conclusão de meu projeto em
curso e saí do Novo Éden para um teste final. Eu te amo. Richard.”
Estava escuro e frio na Planície Central. Richard tentou ser paciente. Ele
mandara seu Einstein aprimorado (Richard referia-se a ele como o Super-A1) e
Garcia 325 até o local de exploração do segundo habitat, na frente. Eles tinham
explicado ao vigia noturno, um bioma Garcia standard, que a programação
publicada de experiências fora mudada e que uma investigação especial estava a
ponto de ser realizada. Com Richard ainda invisível, Al havia então retirado todo
o equipamento da abertura que dava para o outro habitat e o colocado no chão. O
processo consumira uma preciosa hora. Agora que o Super-A1 finalmente
terminara, ele fez um sinal para que Richard se aproximasse. O Garcia 325 com
grande habilidade levou o vigia bioma para uma outra área para além da sonda a
fim de que ele não pudesse ver Richard.
Sem perder tempo, Richard tirou o Príncipe Hal do bolso e o colocou na
abertura. “Vá depressa”, disse ele, montando seu pequeno monitor no chão da
passagem. A abertura para o outro habitat fora gradativamente alargada ao longo
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grito das aves por Hal. Ela ressoou na passagem e Richard deu um pulo para
trás. Está danado de bom, disse Richard depois de se recompor, pelo menos se a
minha memória for precisa.
O vigia noturno bioma em pouco chegou onde estava Richard e, seguindo
suas instruções programadas, pediu-lhe seus papéis pessoais e uma explicação
do que estivera fazendo. Super-Al e Garcia 325 tentaram confundir o vigia, porém
quando este viu que não conseguia obter a cooperação de Richard, insistiu em
que teria de fazer um relatório de emergência. No monitor Richard viu toda a tela
metálica abrir para um lado e seis pernudinhos pularem em torno do Príncipe
Hal, enquanto o robô continuava a guinchar.
A Garcia vigia noturno começou a transmitir seu sinal de emergência.
Richard tomou consciência de que só teria alguns minutos antes de ser forçado a
sair dali. “Venha embora, raios, venha embora” disse ele, observando o monitor
entre rápidas olhadelas para a Planície Central atrás dele. Ainda não aparecera
qualquer luz vinda do lado de sua cidade.
A princípio, Richard pensou que tivesse imaginado. Mas depois tornou a
ouvir o rufar de grandes asas. Um dos pernudinhos estava obscurecendo
parcialmente sua visão, mas momentos mais tarde viu uma garra familiar
tentando alcançar o Príncipe Hal. O grito da ave que se seguiu confirmava o que
vira. A imagem no monitor ficou confusa.
“Se tiver possibilidade”, gritou Richard no rádio, “tente voltar para a
passagem. Eu volto para buscá-lo mais tarde.”
Virando-se, ele guardou o monitor em sua sacola. “Vamos”, disse ele a
seus dois colaboradores biomas, e os três começaram a correr na direção do Novo
Éden.
Richard estava triunfante ao correr para casa. Meu palpite estava certo,
disse ele, exultante, para si mesmo. Isso muda tudo... mas agora eu tenho de ir
casar uma filha.
10
O casamento estava previsto para as sete da noite no auditório da Escola
Secundária Central. A recepção, para um grupo muito maior, fora planejada para
o ginásio, edifício que não ficava a mais de vinte metros do outro. Durante todo o
dia, Nicole lutou com os probleminhas de última hora, salvando as preparações
de um desastre possível atrás de outro.
Não teve tempo de refletir sobre a significação da nova descoberta de
Richard. Ele chegara em casa excitadíssimo, querendo discutir a questão das
aves, e até a de quem poderia estar espionando sua pesquisa, porém Nicole
estava simplesmente incapaz de se concentrar em nada que não fosse o casamento.
Ambos concordaram em não dizer nada a respeito das aves antes de
terem a oportunidade para uma longa discussão do assunto.
Nicole saíra de manhã para uma caminhada no parque com Ellie. Haviam
falado sobre casamento, amor e sexo por mais de uma hora, porém Ellie estava
tão excitada com o casamento que não conseguira concentrar-se no que estava
sendo dito. Quase no fim de sua caminhada, Nicole parará sob uma árvore para
resumir sua mensagem.
“Lembre-se ao menos de uma coisa, Ellie”, disse Nicole segurando nas
suas ambas as mãos da filha. “O sexo é um componente importante do
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casamento, mas não o mais importante, Por causa de sua falta de experiência, é
provável que o sexo não seja maravilhoso para você logo de saída. No entanto, se
você e Robert se amam e têm confiança um no outro, e ambos desejarem
verdadeiramente dar e receber prazer, vão verificar que a compatibilidade física
aumenta de ano para ano.”
Duas horas antes da cerimônia, Nicole, Nai e Ellie chegaram juntas à
escola. Eponine já estava lá, esperando por elas. “Está nervosa?”, disse a
professora com um sorriso. Ellie concordou com a cabeça. “Estou apavorada”,
acrescentou Eponine, “e não passo de dama de honra!”
Ellie pedira à mãe que fosse sua dama de honra principal, sendo as outras
Nai Watanabe, Eponine e sua irmã Katie. O dr. Edward Stafford, que
compartilhava da paixão de Robert Turner por história médica, era o padrinho.
Já que não tinha colaboradores íntimos a não ser os biomas do hospital,
Robert escolhera suas testemunhas no círculo familiar e de amizades dos
Wakefields. Eram Kenji Watanabe, Patrick e Benjy.
“Mamãe, eu estou enjoada”, disse Ellie logo que todos se reuniram no
vestiário. “Vai ser tão constrangedor se eu vomitar de vestido de noiva. Será que
devo tentar comer alguma coisa?” Nicole já havia previsto tal situação e entregou
a Ellie uma banana e um iogurte, garantindo a filha que era perfeitamente
normal ficar de estômago embrulhado antes de um acontecimento tão
importante.
A preocupação de Nicole quanto ao dia foi crescendo à medida que o
tempo passava e Katie não aparecia. Com tudo organizado no vestiário da noiva,
ela resolveu cruzar o hall e ir falar com Patrick. Os homens já estavam prontos
antes mesmo de Nicole ir bater à sua porta.
“Como está a mãe da noiva?”, indagou o juiz Mishkin quando ela entrou.
O notável juiz iria realizar a cerimônia do casamento.
“Um pouquinho assustada”, respondeu Nicole com um sorriso pálido.
Encontrou Patrick no fundo da sala, ajeitando as roupas de Benjy.
“Que tal pareço?”, perguntou Benjy à mãe, quando ela se aproximou.
“Muito bonitão”, respondeu Nicole ao filho sorridente. “Você já falou com
Katie hoje?”, perguntou ela a Patrick.
“Não”, disse ele. “Mas reconfirmei o horário com ela, segundo o que você
me pediu, ainda ontem à noite... Ela ainda não veio?”
Nicole sacudiu a cabeça. Já eram 18:15h, faltando apenas 45 minutos
para o início da cerimônia, segundo o programado. Ela saiu para o hall a fim de
telefonar, mas o cheiro de cigarro informou-a de que Katie finalmente chegara.
“Imagine só, irmãzinha”, dizia Katie, falando muito alto, enquanto Nicole
voltava para o vestiário da noiva, “hoje de noite você vai fazer sexo pela primeira
vez. Uuuuuuiiiii! Aposto que só pensar nisso leva esse seu corpo lindo à loucura!”
“Katie”, disse Eponine, “não me parece muito apropriado...”
Nicole entrou no quarto e Eponine calou-se. “Ora, mamãe”, disse Katie,
“como você está bonita. Eu tinha esquecido de que havia uma mulher escondida
por trás daquela toga de juíza”.
Katie soltou fumaça no ar e bebeu mais champanhe da garrafa sobre uma
cômoda a seu lado. “Então aqui estamos nós”, disse ela fazendo um gesto
espetacular, “para casar minha irmãzinha caçula...”
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“Pare com isso, Katie, você já bebeu demais.” A voz de Nicole estava fria e
dura. Ela pegou a garrafa de champanhe e o maço de cigarros de Katie. “Acabe de
se vestir e pare com essas palhaçadas... Eu devolvo tudo depois da cerimônia.”
“OK, juíza... como quiser”, disse Katie soprando argolas de fumaça e rindo
para as outras presentes. E então, ao abaixar-se para bater a cinza do cigarro,
Katie perdeu o equilíbrio. Ela caiu dolorosamente contra a cômoda e derrubou
vários vidros abertos de cosméticos antes de se estatelar no chão. Eponine e Ellie
correram para ajudá-la.
“Você está bem?”, perguntou Ellie.
“Cuidado com seu vestido, Ellie”, disse Nicole, olhando para Katie no
chão, com ar desaprovador. Nicole pegou uns lenços de papel e começou a limpar
o que fora derramado.
“Isso, Ellie”, disse Katie com sarcasmo alguns segundos mais tarde, ao
ficar novamente de pé. “Cuidado com o vestido. Você tem de ficar toda bem
limpinha para casar com seu assassino duplo.”
Ninguém respirou na sala. Nicole ficou lívida. Aproximou-se de Katie,
postou-se bem defronte dela. “Peça desculpas à sua irmã”, ordenou.
“Não peço”, retrucou Katie desafiadora poucos instantes antes da mão
aberta de Nicole atingir-lhe o rosto. As lágrimas explodiram nos olhos de Katie.
“Ah, hah”, disse ela, esfregando o rosto, “é a estapeadora mais famosa do Novo
Éden. Apenas dois dias depois de recorrer à violência na Praça da Cidade Central,
bate na própria filha em um replay de seu mais famoso gesto...”
“Mamãe, não... por favor”, interrompeu Ellie, temendo que Nicole tornasse
a bater em Katie de novo.
Nicole virou-se e olhou para a noiva aflita. “Desculpe”, sussurrou.
“Isso mesmo”, disse Katie, zangada. “Diga a ela que sente muito. Foi em
mim que a senhora bateu, Juíza. Lembre-se de mim, sua filha mais velha,
solteira. Aquela que você chamou de ‘nojenta’ faz três semanas... Você me disse
que meus amigos são ‘sórdidos e imorais’... são essas as palavras exatas?... mas
no entanto a sua preciosa Ellie, paradigma de virtudes, você vai entregar a um
assassino duplo... e ainda leva de quebra uma outra assassina como dama de
honra...”
Todas as mulheres compreenderam ao mesmo tempo que Katie não estava
apenas bêbada e briguenta. Estava profundamente perturbada, e seu olhar
tresloucado condenava a todas enquanto continuava em sua diatribe
interminável.
Ela está se afogando, disse Nicole de si para si, e implorando ajuda
desesperadamente. Eu não só ignorei seus clamores como ainda a empurrei para
mais fundo na água.
“Katie”, disse Nicole, falando baixo, “eu sinto muito. Agi como uma tola e
sem pensar”. Ela se encaminhou para a filha, de braços abertos.
“Não”, respondeu Katie, afastando os braços da mãe. “Não, não, não... não
quero a sua piedade.” Ela se afastou para a porta. “Na verdade, não quero estar
presente nessa porcaria desse casamento... eu não me enquadro aqui... Boa
sorte, irmãzinha. Um dia desses conte-me se o seu médico bonitão é bom de
cama.”
Katie virou-se e saiu tropeçando pela porta. Tanto Ellie quanto Nicole
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gente de Nakamura. E, além disso, Richard tinha a certeza de que ele e Nicole
também tinham sido alvos pretendidos. Estava convencido de que os
acontecimentos do dia resultariam em um Novo Éden completamente diferente,
sob o controle de Nakamura, com Ian MacMillan como seu títere no governo.
“Não dirá pelo menos adeus a Patrick e Benjy?”, perguntou Nicole. “Melhor
não”, respondeu Richard. “Não porque não os ame, mas porque talvez com isso
mudasse de idéia.” “Você vai usar a saída de emergência?”
Richard concordou. “Não me deixariam sair pelo caminho normal.”
Enquanto ele verificava seu equipamento de mergulho, Nicole entrou no
escritório. “Acabam de dizer no noticiário que tem gente espatifando seus biomas
por toda a colônia. Um dos coloniais entrevistado disse que toda essa chacina foi
planejada por alienígenas.”
“Bonito. A propaganda deles já começou.”
Ele empacotou o máximo de comida e água que lhe pareceu poder carregar
sem problemas. Quando ficou pronto, estreitou Nicole em seus braços por
mais de um minuto. Havia lágrimas nos olhos de ambos quando se separaram.
“Você sabe para onde vai?”, perguntou Nicole suavemente.
“Mais ou menos”, respondeu Richard, junto à porta dos fundos. “É claro
que não vou dizer-lhe para onde, a fim de que não fique comprometida...”
“Eu compreendo”, disse ela. Ambos ouviram um certo ruído na frente da
casa e Richard saiu correndo pelo quintal dos fundos.
O trem do Lago Shakespeare não estava correndo. O Garcia que operava
um trem anterior na mesma linha fora liquidado por um grupo de coloniais
furiosos, e todo o sistema fora fechado. Richard começou a caminhar no sentido
do lado leste do Lago Shakespeare.
Caminhando pesadamente sob o peso de seu equipamento de mergulho e
sua mochila, teve a sensação de que estava sendo seguido. Duas vezes pareceulhe
ver alguém com o canto do olho, mas quando parou e olhou em tomo, não viu
nada. Finalmente, atingiu o lago. Já passava da meia-noite. Lançou um último
olhar na direção das luzes da colônia e começou a vestir o equipamento de
mergulho. O sangue de Richard gelou quando um Garcia saiu das folhagens
enquanto ele se despia.
Esperou ser morto. Ao fim de vários e longos segundos, o Garcia falou.
“Você é Richard Wakefield?”, perguntou.
Richard não se moveu e nem disse nada. “Se for”, acabou dizendo o
bioma, “trago uma mensagem de sua mulher. Ela diz que o ama e deseja que
Deus o acompanhe”.
Richard respirou lentamente. “Diga-lhe que eu também a amo”, disse ele.
O JULGAMENTO
1
Na parte mais profunda do Lago Shakespeare havia uma entrada para um
longo canal submarino que corria por baixo da aldeia de Beauvois e da parede do
habitat. Quando estava sendo desenhado o Novo Éden, Richard, que tinha
considerável experiência prática em engenharia de convergência, sublinhara a
importância de uma saída de emergência da colônia.
“Mas para o que haveria de precisar dela?”, perguntara a Águia.
“Não sei”, disse Richard. “Mas circunstâncias imprevisíveis muitas vezes
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posição diferente para se arrastar que lhe fosse geometricamente mais favorável,
ouviu um suave ruído de passos que se aproximavam, vindo do habitat das aves.
Momentos depois, sentiu-se coberto por tais passos. Richard passou cinco
segundos de terror absoluto antes de sua mente informá-lo de que a sensação de
cócegas que sentia em toda a sua pele era causada por pernudinhos. Lembrou-se
de os ver na televisão — pequeninas criaturas esféricas de mais ou menos dois
centímetros de diâmetro ligadas as seis pernas radialmente simétricas dotadas de
várias juntas, de quase dez centímetros de comprimento quando esticadas.
Uma delas tinha parado, e montado diretamente em seu rosto, com as
pernas cobrindo seu nariz e boca. Tentou empurrá-la para outra parte, mas
bateu novamente com a cabeça. Richard começou a se mexer todo a fim de
sacudir os pernudinhos. Com eles ainda a cobri-lo por todo o lado, arrastou-se
pelos metros finais até a saída.
Ele atingiu o anel exterior das aves no momento em que ouviu uma voz
humana atrás dele. “Olá, há alguém aí?” dizia ela. “Seja você quem for, por favor
identifique-se. Estamos aqui para ajudá-lo.” Uma luz forte iluminou a passagem.
Richard descobriu então que tinha um novo problema. Sua saída ficava a
um metro acima do piso do anel. Eu devia ter me arrastado para trás, puxando
minha bagagem e minhas roupas. Teria sido muito mais fácil.
Era tarde demais para esse tipo de descoberta. Com a mochila e as roupas
no chão abaixo dele, e uma segunda voz humana a fazer perguntas, agora vinda
de trás, Richard continuou a se arrastar até metade de seu corpo ficar para fora
da passagem. Ao sentir-se cair, Richard estendeu as mãos para trás da cabeça,
empurrou o queixo na direção do peito e tentou se transformar em uma bola. E
então ele caiu e rolou no anel da terra das aves. Quando caiu, os pernudinhos
pularam fora e desapareceram na escuridão.
As luzes que os humanos estavam projetando pela passagem refletiam-se
na parede interior do anel. Depois de primeiro verificar que não sofrerá maiores
ferimentos, e que sua cabeça já não sangrava muito, Richard pegou seus
pertences e capengou até uns duzentos metros para a esquerda, parando
exatamente debaixo da vigia onde o Príncipe Hal fora capturado pela ave.
Apesar de sua fadiga, Richard não perdeu tempo para começar sua
escalada. Tão logo acabou de cuidar de seus ferimentos, começou a escalada.
Tinha a certeza de que uma câmara portátil em breve seria empurrada até o anel
a fim de procurar por ele.
Felizmente, havia uma pequena plataforma na frente da vigia que era
suficientemente grande para acomodar Richard. Ali ficou sentado enquanto
cortava a tela metálica. Esperava que os pernudinhos aparecessem a qualquer
momento, mas permaneceu sozinho. Não era possível a Richard ver ou ouvir o
que quer que fosse no interior do habitat. Embora por duas vezes tentasse
contactar o Príncipe Hal pelo rádio, não obteve qualquer resposta a seu chamado.
Richard ficou olhando para a completa escuridão do habitat das aves. O
que haverá aqui?, imaginava. A atmosfera do interior, raciocinou, devia ser a
mesma do anel, porque o ar podia circular livremente de um lado para o outro.
Richard estava a ponto de tirar do bolso sua lanterna, quando ouviu sons abaixo
e atrás dele. Segundos mais tarde, viu um jato de luz vindo em sua direção lá no
piso do anel.
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Ele se enfurnou como pôde para o interior do habitat, a fim de evitar a luz,
e ouviu cuidadosamente os sons que chegavam até ele. É a câmera portátil,
pensou ele. Mas seu alcance é limitado, pois não pode operar sem o cabo que a
conduz.
Richard ficou muito quieto. E o que faço agora? perguntou-se ele, quando
ficou claro que a luz presa à câmera continuava a varrer a área embaixo da vigia.
Eles devem ter visto alguma coisa. Se eu acender minha lanterna e houver um
mínimo de reflexo, saberão que estou aqui.
Ele deixou cair um pequeno objeto no piso do habitat para ter a certeza de
que seu nível era o mesmo do anel. Não ouviu nada. Tentou um objeto
ligeiramente maior, mas mesmo assim continuou a não haver qualquer som do
mesmo batendo no chão.
Suas batidas cardíacas aceleraram-se muito quando constatou que o piso
do interior do habitat seria muito abaixo do piso do anel. Lembrou-se da
estrutura básica de Rama, com sua grossa casca externa, e compreendeu que o
fundo do habitat poderia ficar várias centenas de metros abaixo do ponto em que
estava sentado. Richard esticou-se para a frente e novamente espiou para o vazio.
A câmera manobrável repentinamente parou de se mover e sua luz ficou
focalizada em um ponto específico no anel. Richard concluiu que alguma coisa
devia ter caído de sua mochila enquanto ele corria capengando da passagem até a
área embaixo da vigia. Sabia que outras luzes e câmeras chegariam em breve.
Richard pôde imaginar-se preso e levado de volta para o Novo Éden. Ele não sabia
que lei específica da colônia ele poderia ter quebrado, mas sabia que cometera
várias violações. Um profundo ressentimento percorreu-o quando contemplou a
possibilidade de passar meses ou anos detido. Em nenhuma circunstância hei de
permitir que isso aconteça.
Ele alcançou o muro interno do habitat para verificar se havia falhas
suficientemente grandes onde pudesse apoiar os pés e as mãos. Contente por não
ser uma decida impossível, revirou a mochila atrás da corda de alpinismo e fixou
uma ponta no eixo que sustentava a porta da tela. Caso eu escorregue, pensou
ele.
Havia uma segunda luz no anel atrás dele. Richard deslizou para dentro
do habitat com a corda firmemente amarrada na cintura. Ele não se pendurou na
corda, mas usou-a como apoio ocasional enquanto tateava atrás dos apoios na
escuridão. A descida não era tecnicamente difícil, havia pequenas saliências onde
Richard podia apoiar os pés.
E lá foi ele, descendo sem parar. Quando calculou já ter descido uns
sessenta ou setenta metros, Richard resolveu parar e tirar a lanterna da mochila.
A luz que brilhou na parede não lhe trouxe qualquer consolo; continuava a não
conseguir ver o fundo. O que pôde ver, talvez uns cinqüenta metros mais abaixo,
era muito difuso, assim como uma nuvem, ou talvez neblina. Essa é grande,
pensou sarcasticamente Richard, essa é realmente grande.
Mais outros trinta metros e ele chegou ao fim de sua corda de escalada.
Richard já podia sentir a umidade da neblina. Àquela altura, ele estava
extraordinariamente
cansado. Já que não estava disposto a abandonar a segurança
da corda, ele voltou atrás por vários metros, enrolou a corda à sua volta várias
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mesmo assim era luz. Tão logo Richard se sentiu novamente firme, ele começou a
observar o mundo que agora se desvelava à sua frente.
A fonte de iluminação era uma grande bola envolta em uma coberta que
pendia do teto do habitat. Richard calculou que a bola estivesse a uns quatro
quilômetros de distância dele e cerca de um quilômetro acima do alto da
estrutura mais proeminente que podia ver, um grande cilindro no centro
geométrico do habitat. Uma cobertura opaca envolvia três quartos superiores da
bola brilhante, de modo que a maior parte de sua luz estava voltada para baixo.
O princípio básico do desenho do interior do habitat era a simetria radial.
No centro ficava ereto o cilindro marrom, parecendo que fosse feito de terra e
provavelmente medindo 1.500 metros de altura. Richard, naturalmente, só podia
ver um dos lados da estrutura, porém pela curvatura calculou que seu diâmetro
ficasse entre dois e três quilômetros.
Não havia janelas ou portas no exterior do cilindro. Nenhuma luz escapava
de seu interior. A única alteração do lado externo da estrutura era um
conjunto de linhas curvas e bem separadas, cada uma das quais começava no
alto e corria em torno de todo o cilindro antes de atingir a base exatamente
embaixo de seu ponto de origem. A base do cilindro ficava mais ou menos à
mesma altura que a vigia pela qual Richard havia entrado.
Circundando o cilindro havia um conjunto de pequenas estruturas brancas
dentro de dois círculos separados por uns trezentos metros. Os dois
quadrantes norte (Richard entrara no habitat das aves através da vigia norte)
desses círculos eram idênticos, cada quadrante tinha cinqüenta ou sessenta
construções distribuídas segundo plano igual. Richard deduziu da simetria que
os outros dois quadrantes estariam em conformidade com o mesmo desenho.
Um fino canal circular, com talvez sessenta ou setenta metros de largura,
cercava as estruturas. Tanto o canal quanto as edificações brancas estavam
localizados em um platô, cuja altitude era a mesma que a da base do cilindro
marrom. Do lado de fora do canal, no entanto, uma grande área do que pareciam
ser coisas que crescem preferencialmente de cor verde, ocupava a maior parte do
resto do habitat. O chão na região verde inclinava-se uniformemente desde o
canal até a margem de um fosso de quatrocentos metros de largura, que ficava
logo dentro da parede interior. Os quatro quadrantes idênticos na região verde
eram ainda subdivididos em quatro setores cada, que Richard, baseando suas
designações em análogos terrestres, chamou de floresta , bosques, pradaria e
deserto.
Por uns dez minutos, Richard ficou olhando aquele vasto panorama,
muito quieto. Como o nível de iluminação caía em proporção direta com a
distância do cilindro, não conseguia ver as regiões próximas mais claramente do
que as distantes. No entanto, os detalhes mesmo assim eram impressionantes.
Quanto mais ele olhava, mais coisas novas percebia. Havia pequenos lagos e rios
na região verde, pequeninas ilhas ocasionais no fosso e o que pareciam estradas
entre as construções brancas. É claro, viu-se ele pensando, por que haveria de
esperar algo diferente? Nós reproduzimos uma pequena Terra no Novo Éden. Isto
deve representar, de algum modo, o planeta natal das aves.
Seu último pensamento lembrou-o de que tanto Nicole quanto ele estavam
convencidos de que as aves não eram mais (se é que algum dia haviam sido) uma
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ouvido.
E agora, se estou certo, vou ter companhia lá embaixo. A umidade tornou a
descida duas vezes mais difícil. Uma vez ele escorregou e quase caiu, mas conseguiu
recuperar-se. Richard deu uma parada em um lugar no qual os apoios para
mãos e pés estavam particularmente firmes. Calculou que estivesse uns
cinqüenta metros acima do fosso. Vou esperar até ouvir alguma coisa. Com a
neblina, eles terão de chegar mais perto.
Em breve, ele tornou a ouvir as asas. Desta vez, o som sugeria um par de
aves. Richard ficou parado ali por mais de uma hora, até a neblina começar a
ficar mais fina. Por várias vezes ele ouviu o rufar das asas de seus observadores.
Planejou esperar até ficar claro de novo para descer até a água. Mas
quando a neblina desapareceu e a luz continuou a não voltar, Richard começou a
ficar preocupado com o tempo. Começou a descer pela parede no escuro. A mais
ou menos dez metros acima do fosso, ele ouviu seus observadores voando para
mais longe. Dois minutos depois, o interior do habitat das aves ficou novamente
iluminado.
Richard não perdeu tempo. Seu plano era simples. Baseado no ruído de
barcos que ouvira no escuro, supôs que haveria alguma coisa acontecendo no
fosso que era crítica para as aves ou para quem quer que fosse que morava no
cilindro marrom. Se não, raciocinou, por que razão haveriam eles de levar avante
sua atividade sabendo que ele os poderia ouvir? Se eles houvessem adiado tudo
por pelo menos algumas horas, ele quase que certamente já se teria retirado do
habitat.
Era intenção de Richard entrar no fosso. Se as aves se sentirem de algum
modo ameaçadas, farão alguma coisa. Se não, começarei imediatamente minha
subida de volta para o Novo Éden.
Logo antes de entrar com cuidado na água, Richard tirou os sapatos, com
alguma dificuldade, e os colocou em sua mochila à prova d’água. Ao menos não
estariam molhados se ele tivesse de subir de novo. Segundos mais tarde, tão logo
seu pé tocou a água, um par de aves voou na direção dele vindas de onde haviam
estado se escondendo na região verde exatamente oposta, do outro lado do fosso.
Elas estavam frenéticas. Matraqueavam e guinchavam e agiam como se
fossem estraçalhar Richard com suas garras. Ele estava tão deslumbrado por seu
plano ter funcionado que virtualmente ignorou toda aquela exibição. As aves
pairaram acima dele e tentaram empurrá-lo de volta para a parede. Ele ficou
andando na água e estudando detalhadamente as duas.
Elas eram ligeiramente diferentes das que ele e Nicole haviam encontrado
em Rama II. Estas tinham a mesma cobertura aveludada em todo o corpo, porém
o veludo aqui era roxo. Um único anel circundava-lhes os pescoços, e era negro.
Elas também eram menores (talvez sejam mais jovens, pensou Richard) do que as
primeiras aves, e muito mais frenéticas. Uma das criaturas efetivamente tocou a
face de Richard com sua garra quando ele não se dirigiu rapidamente para a
parede.
Richard acabou subindo na parede, apenas o suficiente para sair da água,
porém isso não apaziguou as aves. Quase que imediatamente os dois pássaros
começaram a executar — cada um por sua vez — vôos de desenho cada vez mais
estreito, indicando a Richard que queriam que ele subisse. Quando ele não se
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no habitat o lembrara de um passeio de balão que fizera certa vez pelo sul da
França. Ele voara nas garras das aves até o topo do cilindro marrom, diretamente
embaixo da brilhante bola parcialmente coberta. Lá foram recebidos por meia
dúzia de outras aves, uma delas carregando o computador de Richard que
continuava a repetir seu sinal gráfico. Depois, ele foi levado por um corredor
vertical para o interior do cilindro.
Nas primeiras quinze horas, mais ou menos, Richard fora levado de um
grupo de aves para outro. Ele pensara que seus anfitriões estavam apenas
apresentando-o a todos os cidadãos da avelândia. Pressupondo que não houvesse
muitas aves que comparecessem a mais de uma sessão de matraqueamento e
guinchos, Richard calculou que existiam aproximadamente setecentas aves.
Depois de sua parada pelas salas de conferência do reino aviano, Richard
fora levado a um quarto pequeno onde uma ave de três círculos e duas companheiras,
também criaturas enormes com três círculos vermelhos no pescoço,
observaram-no noite e dia durante uma semana. Durante esse tempo, Richard
teve acesso a seu computador e a todos os itens dentro de sua mochila. Ao final
da observação, no entanto, elas lhe haviam tirado todos os seus pertences e o
levado para sua prisão.
Isso deve ter sido há três meses, uma semana mais ou menos, disse
Richard a si mesmo, enquanto começava sua caminhada que, duas vezes por dia,
constituía seu exercício regular básico. O corredor fora de seu quarto tinha
aproximadamente duzentos metros de comprimento. Normalmente ele dava oito
voltas completas, indo e vindo da porta no fim do corredor até a parede de pedra
fora de seu quarto.
E durante todo esse tempo não houve uma única visita dos líderes. De
modo que o período de observação deve ter sido meu julgamento... Ou pelo menos
seu equivalente em termos de aves... E será que me consideraram culpado de
alguma coisa? Será por isso que fiquei preso nesta celinha miserável?
Os sapatos de Richard estavam se acabando e suas roupas estavam em
trapos. Já que a temperatura era confortável (conjecturou que a temperatura de
26°C devia ser constante em todo o habitat), não se preocupava com a possibilidade
de frio. Mas por várias razões não esperava com entusiasmo ficar
permanentemente nu depois de suas roupas finalmente se desintegrarem. Sorriu,
lembrando-se de seu pudor durante o período de observação. Fazer cocô com três
aves gigantescas te observando a cada momento certamente não era tarefa das
mais fáceis.
Ele estava cansado de comer melão maná em todas as suas refeições. O
líquido que ficava dentro era refrescante e a carne úmida de sabor agradável. Mas
Richard ansiava por algo diferente para comer. Até aquela coisa sintética da Sala
Branca seria uma mudança bem-vinda, persuadiu-se ele, por várias vezes.
Em sua solidão, o maior desafio para Richard era o da preservação de sua
acuidade mental. Começara a resolver problemas matemáticos de cabeça. Mais
recentemente, preocupado com a possibilidade de que a agudeza de sua memória
já houvesse decaído em certa medida em função da idade, começara a passar o
tempo reconstruindo eventos e até mesmo os principais segmentos cronológicos
de sua vida.
De particular interesse para ele durante esses exercícios de memória eram
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vários segundos Richard teve a sensação de que o coração lhe tinha saído pela
boca. Paradas exatamente defronte dele, e claramente a observá-lo com todos os
seus olhos, estavam duas criaturas muito mais estranhas do que qualquer coisa
que ele já houvesse imaginado.
Richard não conseguia se mover. O que via era de tal modo inacreditável
que ele ficou paralisado enquanto sua mente lutava com os bizarros dados que
recebia por meio de seus sentidos. Cada um dos seres diante dele tinha quatro
olhos em sua “cabeça”. Além dos ovais, grandes e leitosos, a cada lado de uma
linha de simetria invisível, que dividia em dois a cabeça, cada criatura tinha dois
olhos adicionais ligados a duas hastes que se elevavam uns dez ou doze
centímetros acima da testa. Atrás das grandes cabeças, seus corpos tinham mais
dois segmentos, com um par de apêndices para cada segmento, o que lhes dava
um total de seis pernas. Os alienígenas estavam eretos, de pé nas patas traseiras,
com os quatro apêndices frontais cuidadosamente recolhidos de encontro a seus
ventres de cor creme.
Quando elas avançaram na direção dele no elevador, Richard recuou,
assustado; as duas criaturas viraram-se uma para a outra e comunicaram-se
entre si por meio de um ruído de alta freqüência que vinha de um pequeno
orifício circular abaixo dos olhos ovais. Richard piscou, sentiu-se tonto, e caiu
sobre um joelho para se reequilibrar, com o coração ainda batendo furiosamente.
Os alienígenas também mudaram de posição, pousando no chão suas
pernas do meio. Em tal posição, eles pareciam formigas gigantes com as patas
dianteiras recolhidas e a cabeça alta. Durante o tempo todo, as esferas pretas na
ponta das hastes dos olhos continuaram a girar, varrendo os 360°, enquanto os
materiais leitosos nos ovais marrons escuros se moviam de um lado para outro.
Por vários minutos as criaturas ficaram mais ou menos paradas, como
que encorajando Richard a examiná-las. Lutando contra o medo, ele tentou
estudá-las de forma objetiva, científica. As criaturas eram mais ou menos do
tamanho de cães de porte médio, mas por certo pesariam muito menos. Seus
corpos eram magros e muito firmes. Os segmentos das extremidades eram
maiores do que o do meio, e as três divisões corporais ostentavam uma carapaça
brilhante feita de alguma espécie de material duro.
Richard os classificaria como insetos muito grandes, se não fosse por seus
extraordinários apêndices, que eram grossos, talvez até dotados de músculos e
cobertos por um “cabelo” curto, muito denso e preto com listras brancas que fazia
com que as criaturas parecessem estar usando meias-calças. Suas mãos, se fosse
esse seu rótulo adequado, eram livres dessa camada de cabelo e tinham quatro
dedos cada, inclusive um polegar com movimento de oposição no par dianteiro.
Richard conseguira tomar coragem suficiente para olhar novamente para
aquelas cabeças inacreditáveis quando se ouviu um ruído agudo, como o de uma
sirene, atrás dos dois alienígenas, que se viraram. Richard levantou-se e viu uma
terceira criatura aproximando-se com passos rápidos. Seus movimentos eram
fascinantes. Corria como um gato de seis pernas, esticando-se paralelamente ao
chão e dando impulso com um par diferente de pernas a cada passada.
Os três puseram-se a conversar rapidamente e o recém-chegado, levantando
a cabeça e as patas da frente, indicou com clareza a Richard que ele
deveria deixar o elevador. Ele saiu e caminhou atrás do trio até entrar em um
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grande salão.
Este era, também, um depósito de melões manás, porém essa era sua
única semelhança com o setor das aves no cilindro. Alta tecnologia e equipamento
automatizado estavam em evidência por toda parte. No teto, a dez metros
acima deles, uma coletora automática movia-se em um sistema de trilhos. Pegava
um a um os melões e os empilhava em vagões de carga presos a sulcos no fundo
do salão. Enquanto Richard e seus anfitriões observavam, um dos carros de
carga correu pelo sulco e parou junto do elevador.
As criaturas saíram pulando por um dos caminhos que atravessavam o
grande espaço e Richard apressou-se em segui-las. Elas o esperaram junto à
porta, depois partiram correndo para a esquerda, olhando para trás a fim de
verificar se ainda podiam vê-lo. Richard correu atrás delas por quase dois
minutos, até chegarem a um grande átrio aberto, de muitos metros de altura,
com um engenho para transporte no centro.
O engenho era uma espécie de primo distante de uma escada rolante. Na
realidade havia dois deles, um subindo e um descendo, em espirais em torno de
dois grandes eixos no centro do átrio. Eram rampas e moviam-se muito
rapidamente e em ângulos muito inclinados. A cada cinco metros mais ou menos
elas atingiam outro nível, ou andar, e o passageiro então andava mais ou menos
um metro até a espiral em torno de outro eixo. O que fazia as vezes de corrimão
era uma barra a apenas uns trinta centímetros de altura. Os alienígenas
viajavam em posição horizontal, com as seis patas na rampa movediça. Richard,
que a princípio ficara de pé, rapidamente ficou de gatinhas a fim de não cair da
rampa.
Durante o trajeto, cerca de uma dúzia de alienígenas, na metade descendente
da rampa, passou por Richard e ficaram estarrecidos ao olhá-lo com suas
caras espantosas. Mas como será que comem?, pensou Richard, notando que o
buraco circular que usavam para se comunicar certamente não seria suficientemente
grande para a passagem de alimentos. Não havia outros orifícios em
suas cabeças, e alguns botões e rugas cujos objetivos eram desconhecidos.
Eles estavam levando Richard para o oitavo ou nono nível. As três criaturas
esperaram até que ele atingisse a plataforma desejada. Richard seguiu-as até
um edifício hexagonal com marcas vermelho vivo na frente. Engraçado, pensou
Richard, olhando para os estranhos rabiscos. Eu já vi essas escritas antes... É
claro, no mapa ou documento que as aves estavam lendo.
Richard foi colocado em um cômodo bem iluminado e decorado com gosto,
todo com desenhos geométricos em preto e branco. Em torno dele havia objetos
de toda forma e tamanho, porém Richard não tinha a menor noção do que seria
qualquer um deles. Os alienígenas recorreram a uma linguagem de sinais para
indicar a Richard que era ali que ele ficaria. Depois foram embora. Um exausto
sr. Wakefield estudou a mobília, tentando descobrir qual daquelas coisas poderia
ser a cama, depois deitou-se no chão para dormir.
Myrmigatos. É assim que os vou chamar. Richard acordara depois de
dormir durante quatro horas, e não podia parar de pensar naquelas criaturas
alienígenas. Queria dar-lhes um bom nome. Depois de desistir de gat-ormiga e de
gatosseto, lembrou-se de que quem estuda formigas é chamado de myrmecólogo.
Escolheu myrmigato porque em sua mente o i soava melhor do que o e no meio
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da palavra.
O quarto de Richard era bem iluminado. De fato, em todos os pontos que
vira do habitat dos myrmigatos havia boa iluminação, em contraste com os
corredores escuros, sugerindo catacumbas, das partes superiores do cilindro
marrom. Não vi mais nenhuma ave desde minha viagem de elevador. De modo que
parece que estas duas espécies não vivem juntas. Ao menos, não completamente.
Mas ambas usam melões manás... Qual exatamente será a ligação entre elas?
Um par de myrmigatos entrou pulando pela porta, colocou cuidadosamente
um melão cortado e uma caneca de água em frente a ele, depois desapareceu.
Richard estava faminto e sedento. Vários segundos depois de ele
terminar seu desjejum, o par de criaturas voltou. Usando as mãos de suas
pernas dianteiras, os myrmigatos sugeriram que ele se levantasse. Richard ficou
olhando para eles. Serão estas as mesmas criaturas que vi ontem? Será este o
mesmo par que me trouxe melão e água? Tentou lembrar-se de todos os
myrmigatos que vira, inclusive os com que cruzara na rampa. Não conseguiu
lembrar-se de uma única característica que distinguisse ou identificasse qualquer
indivíduo. Será que todos são iguais? Mas, nesse caso, como poderão saber qual é
qual?
Os myrmigatos levaram-no para o corredor e saíram disparados para o
lado direito. Isso é ótimo, disse Richard a si mesmo, começando a correr depois
de passar alguns segundos apreciando a beleza do andar dos outros. Eles devem
pensar que os humanos sejam todos atletas. Um dos myrmigatos parou uns
quarenta metros à frente dele. Não se virou, mas Richard sabia que o estava
observando, porque ambas as hastes de olhos estavam dobradas para trás, na
direção dele. “Já vou”, gritou Richard. “Mas não posso correr tanto assim.”
Não levou muito tempo até Richard perceber que o par de alienígenas
estava levando-o para um tour pelo habitat dos myrmigatos. O tour fora planejado
com grande lógica. A primeira parada, muito rápida, foi em um depósito
de melão maná. Richard viu dois carros de carga cheio de melões deslizar por
sulcos para um elevador semelhante (ou igual) ao que ele usara para descer, na
véspera.
Depois de outra corrida de cinco minutos, Richard entrou em setor radicalmente
diferente do antro dos myrmigatos. Enquanto que as paredes na outra
seção eram em sua maioria metálicas, em branco e cinzento a não ser pelo seu
quarto, aqui tanto as salas quanto os corredores eram profusamente decorados,
seja com cores, seja com desenhos geométricos, ou com ambos. Um vasto salão
do tamanho de um teatro tinha em seu piso três piscinas. Cerca de cem
myrmigatos estavam nessa sala, metade aparentemente nadando nas piscinas (só
com as hastes de olhos e a metade superior de suas carapaças fora da água) e a
outra metade ou sentada nas divisórias que separavam as piscinas ou
perambulando por um estranho edifício na outra extremidade da sala.
Mas estariam realmente nadando? Um exame mais detalhado fez Richard
notar que as criaturas não se mexiam na água — elas simplesmente submergiam
em um ponto dado e ficavam debaixo da água por vários minutos. O líquido em
duas das piscinas era bastante grosso, mais ou menos com a consistência de
uma sopa cremosa na Terra, enquanto que a terceira, clara, quase que
certamente continha água. Richard ficou seguindo um único myrmigato em seu
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percurso de uma das piscinas cremosas para a de água, depois novamente para a
outra cremosa. E por que razão será que me trouxeram aqui?
Na mesma hora, um myrmigato bateu de leve no ombro de Richard. Ele
apontou para Richard, depois para as piscinas, depois para a boca de Richard,
que não conseguiu ter a menor idéia do que lhe estava sendo dito. A seguir, o
myrmigato guia desceu a inclinação no sentido das piscinas e afundou-se em
uma delas, de líquido mais grosso. Quando voltou, ficou de pé no par de pernas
traseiras e apontou para os sulcos entre os segmentos de seu baixo-ventre macio,
de cor creme.
Obviamente, era importante para os myrmigatos que Richard compreendesse
o que acontecia nas piscinas. Na parada seguinte, ele observou uma
combinação de myrmigatos e algumas máquinas de alta tecnologia a moer um
material fibroso para depois misturá-lo com água e outros líquidos a fim de criar
uma pasta fina parecida com o que havia dentro das piscinas. Finalmente, um
dos alienígenas pôs o dedo dentro da pasta e depois tocou com o material os
lábios de Richard. Eles devem estar me dizendo que as piscinas são para alimentação.
Quer dizer então que eles não comem melões manás, afinal? Ou pelo
menos que têm uma dieta mais variada? Isto é tudo muito fascinante.
Em breve, eles partiram para mais uma corrida até outro recanto distante
do antro. Lá Richard viu trinta ou quarenta criaturas menores, obviamente
myrmigatos juvenis, engajados em atividades supervisionadas por adultos. Em
aparência física, os pequenos assemelhavam-se a seus maiores, a não ser por
uma diferença significativa — não tinham carapaça. Richard concluiu que a
camada dura que os recobria não era elaborada pela criatura enquanto seu
crescimento não estivesse completo. Embora Richard imaginasse que aquilo que
via acontecer com os jovens fosse o equivalente aproximado de um colégio, ou
talvez de uma escola maternal, é claro que não tinha meios de sabê-lo com
certeza. Mas a certa altura ficou certo de ouvir os jovens repetirem em uníssono
uma seqüência de sons emitidos por um myrmigato adulto.
A seguir, viajou na rampa automática com seu par de guias turísticos.
Mais ou menos no vigésimo nível, as criaturas deixaram o corredor principal e o
átrio aberto, seguindo por um corredor que terminava em uma vasta fábrica cheia
de myrmigatos e máquinas engajados em um impressionante conjunto de tarefas.
Seus guias pareciam sempre estar com pressa, de modo a tornar difícil para
Richard estudar qualquer processo em particular. A fábrica era semelhante à sua
equivalente na Terra. Havia toda espécie de barulhos, cheiros de elementos
químicos e metais, com os tons agudos da comunicação dos myrmigatos
perpassando todo o espaço. Em um ponto Richard viu um par de myrmigatos
consertando uma máquina para colheita, semelhante à que vira em operação no
depósito de melões manás no dia anterior.
Em um canto da fábrica havia uma área especial, separada do resto.
Embora seus guias não o conduzissem naquela direção, a curiosidade de Richard
foi provocada. Ninguém o parou quando atravessou a porta da área especial.
Dentro do grande cubículo um operador myrmigato presidia um processo
automatizado de manufatura.
Peças longas e finas de metal leve ou de plástico entravam na sala por
uma esteira transportadora em determinado ponto. Pequenas esferas de uns dois
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5
Novamente Richard perdeu a noção do tempo. Em algum momento durante
os últimos dias (ou seriam semanas?) em que vivera dentro daquela teia
alienígena, ele havia mudado de posição. Durante os primeiros cochilos, a rede
havia também removido suas roupas e agora Richard estava deitado de costas,
sustentado por um segmento extremamente denso naquela teia fina que envolvia
seu corpo.
Sua mente não indagava mais, conscientemente, como ele estaria conseguindo
sobreviver. De algum modo, sempre que sentia fome ou sede, suas
necessidades eram rapidamente satisfeitas. Seus desejos sempre desapareciam
em poucos minutos. A respiração era fácil, muito embora ele estivesse totalmente
cercado pela teia viva.
Richard passava muitas de suas horas conscientes estudando a criatura à
sua volta. Olhando com cuidado, ele podia ver que aqueles elementos minúsculos
estavam sempre em movimento. O desenho da teia à sua volta se alterava muito
constantemente, mas definitivamente ia mudando. Richard fez uma gráfico
mental das trajetórias dos gânglios que conseguia ver. A certa altura, três
gânglios diferentes migraram para a vizinhança dele e formaram um triângulo em
frente à sua cabeça.
A teia desenvolveu um ciclo reconhecível de interação com Richard. Ela
mantinha seus milhares de filamentos presos a ele de quinze a vinte horas de
cada vez, depois o soltava inteiramente por várias horas. Richard dormia sem
sonhar sempre que não estava preso à teia. Se acaso acordava livre, ficava
enervado e apático. Porém cada vez que os fios começavam a se enrolar nele
novamente, sentia uma nova onda de energia.
Seus sonhos eram ativos e vividos se ele adormecia ligado à teia. Richard
jamais fora de muito sonhar antes, e muitas vezes rira das preocupações de
Nicole com seus sonhos. Mas à medida que suas imagens em sonho se tornavam
mais complexas, e em alguns casos mais bizarras, Richard começou a apreciar as
razões pelas quais Nicole prestaria tanta atenção a elas. Certa noite, ele sonhou
que era novamente adolescente e estava no teatro vendo uma montagem de Como
quiserem em Stratford-on-Avon, sua cidade natal. A moça loura e linda que
estava interpretando Rosalind desceu do palco e estava sussurrando em seu
ouvido.
“Você é Richard Wakefield?” perguntou ela, no sonho.
“Sou”, respondeu ele.
A atriz começou a beijar Richard, primeiro lentamente, depois mais apaixonadamente,
com uma língua viva que saltitava fazendo cócegas pelo interior de
sua boca. Ele sentiu uma onda avassaladora de desejo e então despertou
abruptamente, estranhamente embaraçado tanto por sua nudez quanto por sua
ereção. E agora o que era tudo isso?, ficou imaginando Richard, ecoando uma
frase que muitas vezes ouvira de Nicole.
Em algum estágio de seu cativeiro suas lembranças de Nicole ficaram
muito mais nítidas, mais claramente delineadas. Richard descobriu, para surpresa
sua, que na ausência de outros estímulos ele era capaz, se se concentrasse,
de recordar conversas inteiras com Nicole, inclusive detalhes, como o tipo de
expressão facial que ela usara para pontuar suas frases. No prolongado período
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Richard reconhecesse que o que estava crescendo dentro do séssil era um melão
maná. Ficou aparvalhado. Richard não pudera imaginar que o myrmigato
desaparecido pudesse ter deixado atrás de si ovos que demorassem tanto para
germinar. E eles deviam ter sido apenas umas poucas células. Embriõezinhos
microscópicos de algum modo criados aqui...
Seus pensamentos foram interrompidos por sua compreensão de que
esses melões manás estavam se desenvolvendo em uma região do séssil a quase
vinte metros de ponto no qual o myrmigato fora encasulado. Será então que esta
criatura de teia transportou os ovos de um lugar para o outro? E depois ainda os
guardou durante semanas?
A mente lógica de Richard começou a rejeitar a hipótese de o myrmigato
desaparecido ter posto qualquer ovo. Lenta, porém firmemente, ele desenvolveu
uma nova explicação alternativa para o que observara, que sugeria uma biologia
mais complexa do que qualquer que encontrara na Terra. Imaginemos, pensou,
que os melões manás, os myrmigatos e esta teia séssil sejam todos o que nós
chamaríamos a mesma espécie?
Estarrecido ante as ramificações desse pensamento simples, Richard passou
dois longos períodos em que esteve desperto revendo tudo o que testemunhara
dentro do segundo habitat. Olhando para os quatro melões manás
crescendo defronte dele do outro lado daquele vazio, Richard concebeu um ciclo
de metamorfose no qual os melões manás geravam os myrmigatos, que por sua
vez morriam e forneciam matéria nova para a teia séssil, que então punha ovos
de melão maná que começavam de novo todo o processo. Não havia nada que
tivesse observado que não fosse coerente com tal explicação. Porém, o cérebro de
Richard estava explodindo com milhares de perguntas, não só sobre como esse
intrincado grupo de metamorfoses tinha lugar, mas também por que essa espécie
havia se desenvolvido de modo a se tornar um ser de tal modo complexo, para
início de conversa.
A maior parte do estudo acadêmico de Richard fora em campos do que ele
se habituara a chamar de “ciências duras”. Matemática e física foram os
elementos primordiais de sua educação. Ao lutar para compreender o possível
ciclo de vida da criatura na qual ele vinha vivendo havia várias semanas, Richard
ficou espantado com a própria ignorância. Queria ter aprendido mais biologia.
Pois como hei de poder ajudá-los? perguntou-se. Não tenho a menor idéia sequer
de por onde começar.
Muito mais tarde, Richard se indagaria se àquela altura de sua estada
dentro do séssil a criatura já tivesse aprendido não só a ler sua memória como
também a interpretar seus pensamentos. Seus visitantes chegaram poucos dias
depois. Novamente, formou-se uma trilha no séssil entre a posição de Richard e a
entrada original. Quatro myrmigatos idênticos entraram pela trilha e por gestos
sugeriram que Richard os seguisse. Estavam carregando suas roupas. Quando
Richard fez um esforço para se mover, seu anfitrião alienígena não tentou retê-lo.
Suas pernas estavam um tanto fracas, mas depois de vestir-se Richard conseguiu
seguir os myrmigatos de volta ao corredor nas profundezas do cilindro marrom.
O vasto salão tinha sido obviamente modificado fazia pouco tempo. O vasto
mural de suas paredes ainda não estava terminado. De fato, ao mesmo tempo
em que o professor myrmigato de Richard lhe apontava itens específicos nas
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“Dois círculos, com certeza”, disse um deles. “Talvez até três... Isso já me
soma vinte círculos só esta semana.”
“Mas, cara, isto não é concurso. Essa não devia nem contar. O raio da ave
nem sabia que você estava perto.”
“Problema dela. Vou contar os anéis do pescoço do mesmo modo. Ah, ali
está ela. Ora, merda, só tem dois.”
Os homens estavam a apenas uns quinze metros de Richard. Ele ficou
absolutamente imóvel, sem ousar se mexer, por mais de cinco minutos. Os
soldados, nesse meio tempo, ficaram nas redondezas do cadáver da ave, fumando
e falando da guerra.
Richard começou a sentir uma dor em seu pé direito. Ele mudou ligeiramente
a distribuição de seu peso, pensando em aliviar o músculo que estava
sendo forçado, porém a dor aumentou ainda mais. Finalmente, ele olhou para
baixo e viu, horrorizado, que uma das criaturas do tipo roedor que ele vira no
manual do salão já roera o que restava de seu sapato e estava começando a
mastigar seu pé, Richard tentou sacudir a perna com força, porém em silêncio.
Não obteve sucesso. Embora o roedor houvesse largado seu pé, os soldados
ouviram o barulho e começaram a andar em sua direção.
Richard não podia correr. Mesmo que houvesse um caminho de fuga, o
peso extra que carregava o tornaria presa fácil para os soldados. Em menos de
um minuto um deles gritou: “Aqui, Bruce, acho que há alguma coisa nessa
moita.”
O homem apontou sua arma na direção de Richard, que disse: “Não
atirem. Eu sou humano.”
O segundo soldado juntou-se a seu camarada. “Que porra é que você está
fazendo aqui sozinho?”
“Estou fazendo uma caminhada”, respondeu Richard.
“Está maluco?” disse o primeiro soldado. “Venha cá para fora; deixe-nos
dar uma olhadela em você.”
Richard saiu lentamente da moita. Mesmo àquela luz mortiça, devia ser
uma visão espantosa, com seus cabelos e barba longos e sua mochila.
“Jesus Cristo... Mas, quem raios é você?... Onde fica o seu destacamento?”
“Isso não é nenhuma droga de soldado”, disse o outro homem, ainda
fixando Richard. “Esse é lélé... Deve ter fugido da instalação de Avalon e
caminhado até aqui por engano... Escuta aqui, bunda mole, não está vendo que
isto aqui é território perigoso? Podem te matar...”
“Olha só os bolsos dele”, interrompeu o primeiro soldado. “Está carregando
quatro daqueles raios de melões, enormes...”
De repente, eles foram atacados pelo céu. Devia haver pelo menos uma
dúzia de aves, tomadas de fúria e ao gritos enquanto atacavam. Os dois soldados
humanos foram derrubados. Richard começou a correr. Uma das aves pousou no
rosto do primeiro soldado e começou a despedaçá-lo com suas garras. Outros
soldados, nas vizinhanças, ouvindo a barulhada, abriram fogo e vieram correndo
ajudar os patrulheiros.
Richard não sabia como haveria de encontrar o submarino. Correu morro
abaixo o mais rápido que seus pés e sua carga o permitiram. O tiroteio tinha
aumentado. Ouviu gritos de dor dos soldados e guinchos de morte das aves.
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de volta para os meninos. Nai sorriu para sua amiga. “Que prazer vê-la. Eu sem
dúvida posso mostrar um rosto alegre hoje!”
“O que houve, Nai?”, indagou Eponine. “A vida em Avalon está deixando
você deprimida? Pelo menos, é domingo. Você não está trabalhando naquela
fábrica de armas e os meninos não têm de ficar lá no centro.”
As duas mulheres entraram. “E, sem dúvida, suas condições de vida não
podem ser a causa de seu desespero.” Eponine fez um gesto largo, abrangendo a
sala. “Afinal, vocês três têm um cômodo grande, metade de um aparelho sanitário
e um banheiro que compartilha com cinco outras famílias. O que mais poderiam
desejar?”
Nai riu e abraçou Eponine. “Você me ajuda muito”, disse ela.
“Mamãe, mamãe”, disse Kepler, da porta, um momento mais tarde.
“Venha depressa. “Ele está de volta... e está falando com Galileu.”
Nai e Eponine voltaram-se para a porta. Um homem com o rosto gravemente
desfigurado estava ajoelhado na terra ao lado de Galileu. O menino estava
obviamente amedrontado. O homem segurava uma folha de papel em sua mão
enluvada. Nele uma grande rosto humano com cabelos longos e barba farta fora
cuidadosamente desenhado.
“Você conhece esse rosto, não conhece?” dizia o homem, com insistência.
“É Mr. Richard Wakefield, não é?”
Nai e Eponine aproximaram-se cautelosamente do homem. “Nós lhe
dissemos da última vez”, disse Nai com firmeza, “para não importunar novamente
os meninos. Agora volte para a enfermaria ou nós chamamos a polícia.”
Os olhos do homem estavam enlouquecidos. “Eu o vi de novo ontem à
noite”, disse ele. “Parecia Jesus, mas era Richard Wakefield, sem dúvida. Eu ia
atirar nele e elas me atacaram. Cinco delas. Arrancaram pedaços de meu rosto...”
O homem começou a chorar.
Um enfermeiro veio correndo pela rua e agarrou o homem. “Eu o vi”,
gritou o louco enquanto era levado. “Eu sei que vi. Por favor, acreditem em mim.”
Galileu estava chorando e Nai abaixou-se para consolá-lo. “Mamãe”, disse
o menino, “acha que aquele homem viu Mr. Wakefield, de verdade?”
“Não sei”, respondeu ela, olhando para Eponine. “Mas alguns de nós
gostariam de acreditar que sim.”
Os meninos tinham finalmente adormecido em suas camas em um canto.
Nai e Eponine estavam sentadas, lado a lado, nas duas cadeiras. “Há boatos de
que ela está muito doente”, disse Eponine baixinho. “Eles mal a alimentam.
Fazem-na sofrer de todos os modos possíveis.”
“Nicole jamais há de desistir”, disse Nai com orgulho. “Eu gostaria de ter a
força e a coragem dela.”
“Nem Ellie e nem Robert puderam vê-la nos últimos seis meses... Nicole
sequer sabe que tem uma neta.”
“Ellie me disse na semana passada que ela entrou com outra petição a
Nakamura para visitar sua mãe”, disse Nai. “Fico preocupada com Ellie. Ela
continua a trabalhar com incrível intensidade.”
Eponine sorriu. “Ellie é tão maravilhosa, mesmo que seja
inacreditavelmente ingênua. Insiste em que se obedecer todas as leis da colônia,
Nakamura a deixará em paz.”
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Ela abriu a porta para os amigos. Ellie estava com seu uniforme de enfermeira,
carregando a pequena Nicole nas costas, em uma armação improvisada. O
bebê adormecido estava habilidosamente envolto em algodão, a fim de ficar
protegido do frio.
“Podemos entrar?”
“É claro”, respondeu Eponine. “Desculpem, eu não ouvi vocês logo...”
“É um horário ridículo para uma visita”, disse Ellie. “Mas com todo o
nosso trabalho no hospital, se não viéssemos agora de manhã jamais conseguiríamos
aparecer.”
“Como está se sentindo?”, perguntou o dr. Turner um momento depois,
segurando um varredor defronte de Eponine e os dados já começavam a aparecer
no monitor do computador portátil.
“Um pouquinho cansada”, disse Eponine. “Mas pode ser só psicológico.
Desde que me disse há dois meses que meu coração estava começando a mostrar
alguns sinais de degradação, imagino-me tendo um ataque cardíaco ao menos
uma vez por dia.”
Durante o exame, Ellie operava o teclado ligado ao monitor, a fim de se
assegurar que as informações mais importantes do check-up ficassem registradas
no computador. Eponine esticou o pescoço para ver a tela. “Como está
funcionando o sistema, doutor?”
“Tivemos várias falhas nas varreduras”, respondeu ele. “Ed Stafford diz
que é de se esperar por causa dos testes insuficientes... Ainda não temos um bom
esquema de gerenciamento de dados, mas de modo geral estamos bastante
satisfeitos.”
“Tem sido uma salvação, Eponine”, disse Ellie sem levantar os olhos do
teclado. “Com nosso orçamento limitado, mais todos os feridos da guerra, não
teríamos modo de manter nossos arquivos RV-41 em dia sem este tipo de
automação.”
“Só queria que tivéssemos podido utilizar mais dos conhecimentos de
Nicole no desenho original”, disse Robert Turner. “Eu não sabia que ela era tão
especializada em sistemas de monitoração.” O médico viu alguma coisa inusitada
no gráfico que apareceu na tela. “Imprima uma cópia disso, está bem, querida?
Quero mostrá-la a Ed.”
“Tiveram notícias de sua mãe?”, perguntou Eponine a Ellie, quando o
exame já estava quase terminado.
“Vimos Katie há duas noites”, respondeu Ellie muito lentamente. “Foi uma
noite muito difícil. Ela tinha um outro ‘acordo’ de Nakamura e MacMillan que
queria discutir...” A voz dela foi sumindo. “De qualquer modo, definitivamente o
julgamento terá lugar antes do Dia do Assentamento.”
“Ela viu Nicole?”
“Não. Que eu saiba, ninguém a viu. Sua comida é levada por um Garcia e
seu check-up mensal é feito por uma Tiasso.”
A pequena Nicole mexeu-se e choramingou nas costas da mãe. Eponine
estendeu a mão e tocou o pedacinho da bochecha da menina que estava exposto
ao ar. “Elas são inacreditavelmente macias”, disse. E nesse momento a menina
abriu os olhos e começou a chorar.
“Está na hora de amamentá-la, Robert?” perguntou Ellie.
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O dr. Turner olhou para o relógio. “Tudo bem”, disse ele, “já quase
acabamos aqui... Já que tanto Wilma Margolin e Bill Tucker ficam no prédio ao
lado, por que não vou eu mesmo vê-los, e depois volto aqui?”
“Você consegue fazer tudo sem mim?”
“Com dificuldade. Particularmente no caso do pobre Tucker.”
“Bill Tucker está morrendo muito lentamente”, disse Ellie a Eponine, como
explicação. “Ele vive sozinho e tem muita dor. Mas depois que o governo botou a
eutanásia fora da lei, não podemos fazer nada.”
“Não há qualquer indicação de nova atrofia em seus dados”, disse o dr.
Turner a Eponine alguns momentos depois. “Creio que devemos ficar
agradecidos.”
Ela não o ouviu. Em sua mente, Eponine estava imaginando sua própria
lenta e dolorosa morte. Eu não deixarei que aconteça assim, disse ela a si mesma.
Jamais. Tão logo eu não seja mais útil... Max há de me trazer uma arma.
“Desculpe, Robert”, disse ela. “Devo estar muito mais sonolenta do que
pensava. O que foi que disse?”
“Que você não piorou.” Robert deu um beijo no rosto de Eponine e dirigiuse
s porta. “Voltarei dentro de uns vinte minutos”, disse ele a Ellie.
“Robert parece muito cansado”, disse Eponine, depois que ele saiu.
“E está”, respondeu Ellie. “Continua a trabalhar o tempo todo... E se
preocupa quando não está trabalhando.” Ellie estava sentada no chão de terra,
encostada na parede da cabana. Nicole estava em seus braços, mamando e
emitindo barulhinhos de alegria ao mesmo tempo.
“Parece ser muito divertido”, disse Eponine.
“Nada que eu já tenha experimentado é nem de longe parecido. O prazer é
indescritível.”
Isso não é para mim, disse a voz interior de Eponine. Nem agora e nem
nunca. Por uma fração de segundo, Eponine relembrou uma noite de paixão na
qual quase não dissera ‘não’ a Max Puckett. Uma profunda sensação de
amargura invadiu-a, mas ela lutou para combatê-la.
“Dei um ótimo passeio com Benjy ontem”, disse ela mudando de assunto.
“Tenho a certeza de que ele me contará tudo hoje”, disse Ellie. “Ele adora
esses passeios dominicais com você. É só o que lhe resta, a não ser por minhas
visitas ocasionais... E você sabe o quanto eu fico grata.”
“Esqueça. Eu gosto de Benjy. Eu também preciso que precisem de mim, se
é que me compreende... Benjy na verdade adaptou-se surpreendentemente bem.
Ele não se queixa tanto quanto os 41s, e sem dúvida muito menos do que as
pessoas designadas para aqui a fim de trabalhar na fábrica de armas.”
“Ele esconde a sua dor”, respondeu Ellie. “Benjy é bem mais inteligente do
que qualquer um possa pensar... Ele realmente não gosta da enfermaria, mas
sabe que é incapaz de cuidar dele mesmo. E não quer ser um peso para
ninguém...”
De repente, lágrimas apareceram nos olhos de Ellie e seu corpo foi perpassado
por um tremor. A pequena Nicole parou de mamar e olhou para sua
mãe. “Você está bem?” perguntou Eponine.
Ellie sacudiu a cabeça afirmativamente e enxugou os olhos com os pequenos
retalhos de algodão que segurava junto ao seio para evitar que qualquer
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do mais, todo o apoio para o trabalho com RV-41 seria retirado, deixando essa
pobre gente em posição pior do que já está. O hospital ficaria com menos pessoal
ainda... Muita gente sofreria com o nosso idealismo. Como médico, julgo tais
possíveis conseqüências inaceitáveis.”
Ellie enveredou com a bicicleta para um pequeno parque a mais ou menos
quinhentos metros das primeiras edificações da Cidade Central. “Por que estamos
parando?” perguntou Robert. “Estão nos esperando no hospital.”
“Quero tirar cinco minutos para ver as árvores, cheirar as flores, e abraçar
Nicole.”
Depois que Ellie desmontou, Robert ajudou-a a tirar a menina das costas.
Ellie então sentou-se na relva com Nicole no colo. Nenhum dos dois adultos disse
coisa alguma enquanto observavam Nicole examinar três folhas de grama que
arrancara com sua mão rechonchudinha.
Finalmente, Ellie abriu um cobertor e deitou nele, delicadamente, a filha.
Depois se aproximou do marido e passou-lhe os braços em torno do pescoço. “Eu
te amo, Robert, muito e muito”, disse ela. “Mas devo admitir que às vezes não
concordo totalmente com você.”
9
A luz vinda da solitária janela da cela formava um desenho no reboco da
parede oposta à cama de Nicole. As barras da janela criavam a imagem de um
quadrado com um plano para jogo-da-velha, uma matriz quase perfeita de trêspor-
três. A luz na cela avisava Nicole de que estava na hora de ela se levantar. Ela
cruzou o quarto desde o catre de madeira onde dormia, e lavou o rosto na pia.
Depois, respirou fundo e tentou reunir suas forças para enfrentar o dia.
Nicole estava razoavelmente certa de que sua mais recente prisão, na qual
estava havia já uns cinco meses, ficava em algum ponto do Novo Éden na área de
plantio entre Hakone e San Miguel. Tivera os olhos tapados ao ser transferida a
última vez. Nicole concluíra rapidamente, no entanto, que estava em área rural.
Ocasionalmente um forte odor de animais entrava na cela pela janela de quarenta
centímetros quadrados bem junto ao teto e, além do mais, ela não conseguia ver
nenhuma espécie de iluminação entrando pela janela quando era noite no Novo
Éden.
Estes últimos meses foram os piores, pensou Nicole, ao ficar nas pontas
dos pés para empurrar algumas gramas de arroz de sabor artificial pela janela.
Nada de conversa, nada de leitura, nada de exercício. Duas refeições por dia de
arroz e água. O pequeno esquilo vermelho que a visitava todo dia de manhã
apareceu do lado de fora. Nicole podia ouvi-lo. Ela recuou para o fundo da cela a
fim de poder vê-lo comer o arroz.
“Você é minha única companhia, meu belo amigo”, disse ela em voz alta.
O esquilo parou de comer e ficou ouvindo, sempre alerta ante a possibilidade de
algum perigo. “E nunca entendeu uma só palavra do que eu digo.”
O esquilo não se demorou. Assim que acabou de comer sua ração de
arroz, foi-se embora, deixando Nicole sozinha. Por vários minutos, ela ficou
olhando para a janela, para onde estivera o esquilo, imaginando o que teria
acontecido com sua família.
Até seis meses antes, quando seu julgamento por sedição fora “indefinidamente
adiado”, na última hora, Nicole podia ter uma visita por semana,
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corredor na direção de sua cela. Nicole correu para a porta, esperando. “Katie”,
gritou ela, quando viu a filha aparecer na última curva do corredor.
“Olá, Mamãe”, disse Katie abrindo a porta com a chave e entrando na cela.
As duas mulheres abraçaram-se por vários segundos. Nicole tentou reter as
lágrimas que jorravam de seus olhos.
Elas sentaram-se na cama de Nicole, única peça de mobiliário do cômodo,
e conversaram amigavelmente por vários minutos a respeito da família. Katie
informou a Nicole que ela tinha uma netinha nova (“Nicole des Jardins Turner”,
disse ela, “você deveria estar orgulhosa”) e depois puxou umas vinte fotografias.
As fotos incluíam instantâneos do bebê com seus pais, Ellie e Benjy em um
parque em algum lugar, Patrick de uniforme, e até mesmo algumas de Katie de
vestido de noite. Nicole estudou-as uma a uma, os olhos se enchendo de lágrimas
a todo momento. “Ah, Katie”, exclamou várias vezes.
Quando acabou, Nicole agradeceu profusamente a filha por ter trazido as
fotos. “Pode ficar com elas, Mamãe”, disse Katie, pondo-se de pé e caminhando
até a janela. Abrindo a bolsa, ela tirou cigarros e isqueiro.
“Querida”, disse Nicole, hesitante, “será que poderia não fumar aqui? A
ventilação é péssima. O cheiro iria durar várias semanas.”
Katie encarou a mãe por alguns momentos, depois guardou os cigarros e o
isqueiro na bolsa. Nesse momento, um par de Garcias apareceu carregando uma
mesa e duas cadeiras.
“O que é isso?” perguntou Nicole.
Katie sorriu. “Nós vamos almoçar juntas. Mandei preparar algo de especial
para esta ocasião — frango com molho de cogumelos em vinho”.
A comida, que cheirava deliciosamente, logo depois foi trazida à cela por
uma terceira Garcia e colocada na mesa coberta ao lado da louça e da prata de
ótima qualidade. Havia até uma garrafa de vinho e dois copos de cristal.
Foi difícil para Nicole lembrar-se de suas boas maneiras. O frango estava
tão delicioso, os cogumelos tão macios, que ela comeu a refeição inteira sem falar.
De vez em quando, ao tomar um gole de vinho, Nicole murmurava “mmmm”, ou
“fantástico”, porém basicamente não disse nada enquanto seu prato não foi
completamente limpo.
Katie, que se habituara a comer muito pouco, mordiscou a comida e olhou
para a mãe. Quando Nicole acabou, Katie chamou uma Garcia para remover os
pratos e trazer café. Fazia quase dois anos desde que Nicole bebera uma boa
xícara de café.
“Então, Katie”, disse Nicole com um sorriso caloroso, depois de agradecer
pelo almoço, “e você? O que anda fazendo?”
Katie deu uma gargalhada grosseira. “A merda de sempre. Agora sou
“Diretora de Entretenimento” de todo o conjunto Vegas... Programo os números a
serem apresentados... As coisas vão indo muito bem apesar...” Katie interrompeuse
a tempo, lembrando-se de que sua mãe não sabia que houvesse uma guerra
no segundo habitat.
“Encontrou um homem que aprecie os seus atributos?” perguntou Nicole,
com tato.
“Ninguém que fique.” Katie ficou meio constrangida com a própria resposta
e repentinamente ficou agitada. “Escute aqui, Mamãe”, disse ela
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inclinando-se sobre a mesa. “Não vim aqui para discutir minha vida amorosa...
Tenho uma proposta para você, ou melhor, a família tem uma proposta para
você, que todos nós apoiamos.”
Nicole encarou a filha com expressão de perplexidade. Pela primeira vez,
notou que Katie envelhecera muito nos dois anos desde que a vira pela última
vez, “Não compreendo”, disse Nicole. “Que espécie de proposta?”
“Bem, como talvez você já saiba, o governo vem preparando o caso contra
você já faz tempo. Agora já estão prontos para o julgamento. A acusação é
sedição, que implica obrigatoriamente pena de morte. O promotor nos disse que
as provas contra você são avassaladoras, e que com certeza será condenada. No
entanto, em virtude de seus serviços passados à colônia, se você se declarar
culpada da acusação menor de ‘sedição involuntária’, ele esquecerá...”
“Mas eu não sou culpada de nada”, disse Nicole com firmeza. “Eu sei,
Mamãe”, replicou Katie, com um traço de impaciência. “Porém nós — Ellie,
Patrick e eu — concordamos em que é muito provável que você seja condenada. O
promotor prometeu que se você simplesmente se declarar culpada da acusação
menor, você será imediatamente transferida para um ambiente mais agradável
com permissão para ter visitas da família, inclusive sua netinha nova... Ele
chegou mesmo a sugerir que talvez pudesse interceder para que Benjy fosse
morar com Ellie e Robert...”
Nicole ficara muito perturbada. “E todos vocês acham que eu deveria
aceitar essa barganha e me reconhecer culpada, muito embora tenha
inabalavelmente proclamado minha inocência desde que fui presa?”
Katie acenou com a cabeça. “Não queremos que você morra. Especialmente
sem que haja motivo”.
“Não haja motivo”, os olhos de Nicole de repente soltaram faíscas. “Você
acha que eu estaria morrendo sem motivo?” Ela se afastou da mesa, levantou-se
e começou a caminhar pela cela. “Eu estaria morrendo pela justiça”, disse Nicole,
mais para si mesma do que para Katie, “ao menos assim o penso, e não há uma
única alma neste mundo que me compreenda.”
“Mas, Mamãe”, exclamou Katie, “do que é que ia adiantar? Seus filhos é
sua neta ficariam para sempre privados de sua companhia, Benjy iria ficar para
sempre naquela instituição nojenta...”
“E então aparece essa barganha”, interrompeu-a Nicole, elevando a voz,
“uma versão mais insidiosa do pacto de Fausto com o diabo... Abandone seus
princípios, Nicole, e reconheça sua culpa, muito embora você jamais tenha
transgredido. E não venda sua alma por alguma mera recompensa terrena. Não,
isso seria muito fácil de rejeitar... Pedem-lhe que faça esse acordo porque sua
família pode beneficiar-se dele... Será que algum apelo mais tentador poderá
jamais ser feito a uma mãe?”
Os olhos de Nicole estavam em fogo. Katie pegou a bolsa, tirou um cigarro
e o acendeu com mão trêmula. “E quem é que me vem aqui com tal proposta?”
continuou Nicole. Agora já estava gritando. “Quem me traz comida deliciosa e
vinho e retratos de minha família para me amolecer para o golpe de faca autoinfligido
que sem dúvida me há de matar com muito mais dor do que a cadeira
elétrica? Ora, a minha filha, o amado fruto do meu ventre.”
Nicole de repente avançou e agarrou Katie. “Não banque o Judas para
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eles, Katie”, disse Nicole sacudindo a filha assustada. “Você é muito melhor do
que isso. Com o tempo, se eles me condenarem e executarem com essas
acusações falsas, você há de apreciar o que estou fazendo.”
Katie livrou-se das mãos da mãe e cambaleou para trás. Tirou uma baforada
do cigarro. “Isso é só bafo, Mamãe”, disse ela um momento depois. “Bafo de
merda, do princípio ao fim... Você está apenas sendo mais direita e santa do que
os outros, como de hábito... Olhe, eu vim aqui para ajudá-la, para oferecer-lhe
uma possibilidade de continuar viva. Será que nem por uma vez você será capaz
de ouvir o que os outros dizem, na droga da sua vida?”
Nicole fixou Katie por vários segundos. Sua voz estava mais suave quando
tornou a falar. “Eu estive ouvindo você, Katie, e não gostei do que ouvi. E estive
também a observá-la... Não creio nem por um momento que você tenha vindo
aqui hoje para me ajudar. Isso seria totalmente incoerente com tudo o que tenho
visto do seu caráter nestes últimos anos. Tem de haver algum ganho para você
nisso tudo...
“E tampouco acredito que de forma alguma você represente Ellie e Patrick.
Se assim fosse, eles teriam vindo com você. Devo confessar que por algum tempo,
antes fiquei confusa e sentindo que talvez estivesse causando dor excessiva a
meus filhos... Mas nestes últimos minutos percebi com muita clareza o que
estava acontecendo por aqui... Katie, minha querida Katie...”
“Não me toque de novo”, gritou Katie, quando Nicole se aproximou dela.
Os olhos de Katie estavam rasos de lágrimas. “E poupe-me sua piedade de ser
superior...”
A cela ficou momentaneamente em silêncio. Katie terminou seu cigarro e
tentou se recompor. “Olhe”, disse ela finalmente, “não me importo merda
nenhuma com o que você sinta por mim, isso não é importante, mas por que,
Mamãe, por que não pode pensar em Patrick e Ellie e até mesmo na pequena
Nicole? Será que ser santa é tão importante para você que eles tenham de sofrer
por isso?”
“Com o tempo”, respondeu Nicole, “você há de compreender.”
“Com o tempo”, disse Katie com raiva, “você estará morta. Muito em
breve... Será que você compreende que no momento em que eu sair daqui e disser
a Nakamura que você não topou o trato, a data do seu julgamento será marcada?
E que você não tem a menor chance, não tem a menor porra de chance
nenhuma?”
“Você não pode me assustar”, Katie.
“Não posso assustá-la, não posso tocá-la, não posso sequer apelar para
seu critério de julgamento. Como todos os santos bons, você só escuta suas
próprias vozes.”
Katie respirou fundo. “Então, acho que isto é o fim... Adeus, mamãe.” A
despeito de si mesma, Katie sentiu novamente lágrimas nos olhos. Nicole chorava
abertamente. “Adeus, Katie”, disse ela. “Eu te amo.”
10
“A defesa pode, agora, apresentar seus argumentos finais.”
Nicole levantou-se de sua cadeira e caminhou em torno da mesa. Estava
surpreendida de se sentir tão cansada. Os dois anos na prisão haviam positivamente
diminuído sua lendária resistência.
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abertamente que sou casada com Richard Wakefield. Porém, sua culpa ou
ausência dela, na verdade, também não tem a menor importância para este
julgamento. Só provas que supostamente me tornem culpada de sedição são
relevantes aqui para o seu veredicto.
“A promotoria sugeriu que meus atos sediciosos originaram-se com meu
envolvimento com o vídeo que eventualmente resultou na criação desta colônia.
Reconheço que eu realmente ajudei na preparação do vídeo transmitido de Rama
para a Terra, porém nego categoricamente que tenha “conspirado desde o início
com os alienígenas” ou tenha conspirado com os extraterrestres que construíram
esta espaçonave contra meus irmãos humanos.
“Participei da feitura do vídeo, como indiquei ontem quando permiti que o
promotor me interrogasse, porque senti que não tinha alternativa. Minha família
e eu estávamos nas mãos de uma inteligência e de um poder muito além de
qualquer coisa que qualquer de nós pudéssemos jamais imaginar. Sentíamos
grande preocupação com a possibilidade de a recusa em concordar com seus
pedidos de ajuda com o vídeo pudesse resultar em represálias contra nós.”
Nicole voltou à mesa da defesa rapidamente e bebeu um pouco de água.
Depois virou-se e tornou a encarar o júri. “Isso deixa apenas duas fontes
possíveis para qualquer evidência que me condenem por sedição — o testemunho
de minha filha Katie e aquela estranha gravação de áudio, uma coleção sem pé
nem cabeça de comentários feitos por mim a outros membros de minha família
depois de presa, que os senhores ouviram ontem pela manhã.
“Os senhores sabem muito bem como gravações desse tipo podem ser
distorcidas e manipuladas. Os dois principais técnicos de áudio admitiram aqui,
no banco das testemunhas, que haviam ouvido centenas de horas de conversas
entre meus filhos e eu antes de conseguir produzir trinta minutos de “provas
comprometedoras”, sendo que em momento algum mais do que dezoito segundos
consecutivos foram tomados de uma mesma conversa. Dizer que meus
comentários ali gravados foram apresentados fora de contexto é o mínimo que se
pode dizer sobre eles.
“Em relação ao testemunho de minha filha Katie Wakefield só posso dizer,
com profunda tristeza, que ela mentiu repetidamente em suas afirmações
originais. Eu jamais tive conhecimento dessas supostas atividades ilegais de meu
marido, e certamente jamais o ajudei nas mesmas.
“Hão de lembrar-se de que, ao ser interrogada por mim, Katie ficou confusa
quanto aos fatos e acabou repudiando seu testemunho inicial, antes de
desmaiar no banco das testemunhas. O juiz os havia advertido de que minha
filha em tempos recentes vinha tendo saúde mental precária, e que deveriam
ignorar comentários feitos por ela sob pressão emocional durante meu interrogatório.
Eu lhes imploro que se lembrem de cada palavra dita por Katie, não
só quando o promotor a interrogava, mas também durante o tempo no qual eu
estava tentando obter dela datas e locais específicos para as ações sediciosas que
ela me havia atribuído.”
Nicole aproximou-se do júri uma última vez, estabelecendo cuidadosamente
contato com cada um deles. “Em última análise, os senhores têm de julgar
onde está a verdade deste caso. Eu os encaro de coração pesado, sem acreditar
mesmo agora na série de acontecimentos que me levaram a ser acusada desses
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crimes gravíssimos. Eu servi bem à colônia e à espécie humana. Não sou culpada
das acusações que me são feitas. Todo e qualquer poder ou inteligência que
exista neste espantoso universo há de reconhecer tal fato, a despeito do resultado
deste julgamento.”
A luz lá fora estava diminuindo rapidamente. Contemplativa, Nicole encostou-
se na parede de sua cela, imaginando se aquela seria sua última noite de
vida. Teve um tremor involuntário. Desde o anúncio do veredicto, Nicole ia dormir
todas as noites esperando morrer no dia seguinte.
A Garcia trouxe-lhe o jantar logo depois que escureceu. A comida tinha
sido muito melhor nos últimos dias. Enquanto comia seu peixe grelhado, Nicole
refletiu sobre os cinco anos desde que ela e sua família receberam a primeira
equipe exploratória da Pinta. O que fora que dera errado aqui? indagou-se Nicole.
Quais foram nossos erros fundamentais?
Ela podia ouvir a voz de Richard em sua cabeça. Sempre cínico e sem
confiança no comportamento humano, ele sugerira no final do primeiro ano que o
Novo Éden fosse bom demais para a humanidade. “Eventualmente, nós o
arruinaremos, como fizemos com a Terra”, disse ele. “Nossa bagagem genética —
tudo aquilo, sabe, territorialismo e agressão e comportamento de réptil — é forte
demais para que a educação e o esclarecimento possam derrotar. Veja só os
heróis de O’Toole, ambos, Jesus e aquele jovem italiano, S. Miguel de Siena.
Foram destruídos porque sugeriram que os humanos deveriam tentar ser mais do
que chimpanzés espertos.”
Mas aqui, no Novo Éden, pensou Nicole, havia tantas oportunidades para
um mundo melhor. As necessidades básicas da vida eram fornecidas pela colônia.
Vivíamos cercados por uma prova incontestável de que existia no universo uma
inteligência muito mais adiantada do que a nossa. Isso deveria ter produzido um
ambiente no qual...
Ela terminou seu peixe e puxou para si o pequeno pudim de chocolate.
Nicole sorriu, lembrando-se o quanto Richard gostava de chocolate. Tenho sentido
tanta falta dele. Em especial de sua conversa e percuciência.
Nicole surpreendeu-se ao ouvir passos vindos na direção da cela. Um
profundo arrepio de medo cruzou-lhe o corpo. Seus visitantes eram dois jovens,
cada um carregando uma lanterna. Usavam o uniforme da polícia especial de
Nakamura.
Os homens entraram na cela com modos muito profissionais. Não se
apresentaram. O mais velho, provavelmente aí por uns 35 anos, rapidamente
puxou de um documento legal e começou a lê-lo. “Nicole de Jardins Wakefield”,
disse ele, “você foi condenada pelo crime de sedição e será executada amanhã às
8:00h. Seu desjejum será servido às 6:30h, dez minutos depois da primeira luz
do dia, e nós viremos buscá-la para a execução às 7:30h. Você será amarrada à
cadeira elétrica às 7:58h, e a corrente será aplicada exatamente dois minutos
mais tarde... Tem alguma pergunta?”
O coração de Nicole estava batendo com tal velocidade que ela mal conseguia
respirar. Lutou para se acalmar. “Tem alguma pergunta?”, repetiu o
policial.
“Qual é o seu nome, rapaz?” perguntou Nicole, mas sua voz vacilou.
“Franz”, respondeu o rapaz com uma hesitação de perplexidade.
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transplante de coração.”
“O que está fazendo aqui, Amadou? E como entrou?”
“Vim trazer-lhe uma coisa. Subornei todos os que foram necessários. Eu
tinha de vê-la.”
Muito embora o homem estivesse só a cinco metros dela, Nicole só percebia
muito vagamente sua silhueta no escuro. E seus olhos cansados também se
confundiam. Em dado momento, quando tentou muito focalizar os olhos, por um
instante pensou que o visitante fosse seu bisavô Omeh. Um calafrio cortante
percorreu seu corpo.
“Está bem, Amadou” disse Nicole, afinal. “O que foi que você trouxe para
mim?”
“Preciso explicar primeiro”, disse ele. “E mesmo aí pode ser que não faça
muito sentido... Eu mesmo não compreendi direito. Eu só sei que tive que trazer,
esta noite, para a senhora.”
Ele fez uma pequena pausa. Quando Nicole não disse nada, Amadou
começou logo a contar sua história. “No dia seguinte ao da minha seleção para a
Colônia Lowell, quando eu ainda estava em Lagos, recebi um recado estranho de
minha avó Senoufo, dizendo que era urgente que eu a fosse ver. Fui na primeira
Oportunidade, duas semanas mais tarde, depois de haver recebido outro recado
de minha avó dizendo que minha visita era “questão de vida ou morte.”
“Quando cheguei à aldeia dela na Costa do Marfim, já era noite. Minha
avó acordou e vestiu-se imediatamente. Acompanhados pelo pajé da aldeia,
fizemos uma longa caminhada pela savana naquela mesma noite. Eu estava
exausto quando chegamos ao nosso destino, uma pequena aldeia chamada
Nidougou.”
“Nidougou?” interrompeu Nicole.
“Isso mesmo”, respondeu Amadou. “Seja como for, havia lá um homem
estranho e encarquilhado que deve ter sido alguma espécie de superxamã. Minha
avó e nosso pajé ficaram em Nidougou enquanto esse homem e eu fizemos uma
escalada exaustiva até uma montanha estéril ao lado de um pequeno lago.
Chegamos logo antes do nascer do sol. ‘Olhe’, disse-me o velho quando os
primeiros raios do sol atingiram o lago, ‘olhe dentro do Lago de Sabedoria. O que
vê?’
“Disse-lhe que via trinta ou quarenta objetos semelhantes a melões
repousando no fundo de um lado do lago. ‘Ótimo’, disse ele sorrindo,’você sem
dúvida é o certo’.
‘O certo o quê?’ perguntei-lhe.
“Ele não respondeu. Caminhamos em volta do lago, mais perto de onde os
melões estavam submersos — não podíamos vê-los mais porque o sol já estava
mais alto no céu — e o superxamã tirou de algum lugar um vidrinho pequeno.
Mergulhou-o na água, tampou-o e depois me deu. Também me deu uma pedrinha
que parecia e tinha a forma daqueles objetos semelhantes a melões que estavam
no fundo do lago.
‘São os presentes mais importantes que receberá em sua vida,’ disse-me
ele.
‘Por quê?’, perguntei.
“Alguns segundos mais tarde seus olhos ficaram completamente brancos e
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ele caiu em um transe, entoando algo em Senoufo ritmado. Ele dançou por vários
minutos e de repente pulou no lago para nadar.
‘Espere aí’, gritei eu. ‘O que devo fazer com seus presentes?’
‘Leve-os sempre com você a todo lugar’, disse ele. ‘Quando chegar a hora,
você vai saber’.”
Nicole pensou que o bater de seu coração tinha ficado tão alto que até
Amadou o ouviria. Estendendo o braço através das grades da cela, ela tocou-lhe o
ombro. “E ontem à noite”, disse ela, “uma voz em um sonho, que talvez nem
sequer tenha sido um sonho, disse-lhe que me trouxesse o vidrinho e a pedra
esta noite.”
“Exatamente”, disse Amadou. “Como é que a senhora soube?”
Nicole não respondeu. Não conseguia falar. Todo o seu corpo tremia.
Momentos mais tarde, quando Nicole sentiu os dois objetos em sua mão, seus
joelhos estavam tão fracos que pensou que fosse cair. Agradeceu duas vezes a
Amadou e insistiu para que ele se fosse antes que o descobrissem.
Ela cruzou lentamente a cela até a cama. Será possível? E como foi
possível? Tudo isto de algum modo já era sabido desde o princípio? Melões manás
na Terra? O sistema de Nicole estava sobrecarregado. Eu perdi o controle, pensou,
e nem sequer ainda bebi do vidrinho.
Só segurar o vidro e a pedra relembrou Nicole vivamente da incrível visão
que tivera no fundo do buraco em Rama II. Nicole abriu o vidro, respirou fundo
duas vezes e engoliu precipitadamente o conteúdo.
A princípio, pensou que nada estivesse acontecendo. O negror à sua volta
não mudou. Mas, de repente, uma grande bola alaranjada formou-se no meio da
cela. Ela explodiu e espalhou cor por toda a escuridão. Seguiu-se uma bola
vermelha, depois uma púrpura. Quando Nicole recuou ante o brilho da explosão
púrpura, ouviu um riso alto do lado de fora de sua janela. Olhou naquela direção.
A cela havia desaparecido. Nicole estava fora, em um campo.
Estava escuro, porém ela podia ver as silhuetas dos objetos. Bem distante,
Nicole tornou a ouvir o mesmo riso. Amadou, chamou ela em sua mente. Nicole
correu pelo campo em velocidade ofuscante. Ia apanhar o homem. Quando
chegou perto, seu rosto mudou. Não era Amadou, era Omeh.
Ele tornou a rir e Nicole parou. Ronata, chamou ele. Seu rosto estava
crescendo. Maior, maior, estava do tamanho de um carro, depois do tamanho de
uma casa. Seu riso era ensurdecedor. O rosto de Omeh era um imenso balão que
subia cada vez mais para dentro da noite. Ele riu mais uma vez e seu rosto de
balão explodiu, jorrando água como um chuveiro sobre Nicole.
Ela estava encharcada, submersa, nadando debaixo da água. Quando
emergiu, Nicole estava no lago do oásis na Costa do Ouro, onde, aos sete anos,
ela enfrentara a leoa durante o Poro. A mesma leoa estava caminhando em volta
do lago. Nicole era de novo uma menina. E estava muito assustada.
Eu quero minha mãe, pensou Nicole. Descansando, deitado, seja o sono
abençoado, cantarolou. Nicole começou a sair da água. A leoa não a perturbou.
Ela lançou um olhar para o animal e o rosto da leoa passou a ser o de sua mãe.
Nicole correu e abraçou a mãe. Em lugar disso, Nicole virou a própria leoa,
passeando na margem da lagoa no oásis no meio da savana africana.
Havia agora seis crianças nadando na lagoa. Enquanto a leoa Nicole continuava
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