Asileira II - Texto 6 - Realismo. Naturalismo. Parnaseanismo - Parte 1

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© Afrânio d~s Santos Coutinho, 1996

1" H 2" EDIÇÕhS, 1955-1968 (SUL Aia1h.RICA)


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Conteúdo; V. I. Pre~imj.nares e generaiidades - v. il: pt, 11:Estilos de época :
era ~arrOca/er~neocl~sslc.a- v. 111: pt. 11: Estilos de época: era romântica _ nation is its literature, and since the latter is
v. I~. pt. 11:Estilos de epoca : era realista/era de transição _ v. V: pt. 11:Estilos
de época : era modernista - v. VI: pt. 111:Relações e perspectivas nothing but its language as this is written
ISBN 85-260-0554-5 (obra completa)
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1. Literatura brasileira 2. Literatura brasileira - História l. Couti~hO, Afrânio. hope to grasp the spirit of a nation in the
1911- 11. Coutinho, Eduardo de Faria.
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1. Brasil: História literária 869.9
2. Literatura brasileira: História 869.9 LEO SPITZER

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Nº DE CATÁLOGO: 2044 I tempo e no espaço."
MACHADO DE ASSIS
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.tra .a espiritualização excessiva, como em certas expressões do erotismo
barroco ou na ficção naturalista do século XIX.
O século XIX é um campo onde se cruzam e entrecruzam, avançam e
REALISMO. NATURALISMO.
PARNASIANISMO recuam, atuam e reagem umas sobre as outras, ora se prolongando ora
opondo-se, diversas correntes estéticas e literárias. E, embora constitua
Movimentos literários do século XIX. Cri- um bloco homogêneo o grupo aqui estudado, o período é também atraves-
tério de periodizaçào literária. Realismo e sado pelo filete romântico-simbolista. Se há, portanto, época que se recusa
Naturalismo. Sistema de idéias da época: a uma periodização precisa e a mostrar nitidez de fronteiras entre os mo-
o materialismo, o cientificisrno, o determi- vimentos, é o século XIX. Estes misturam-se, as figuras literárias nem
nismo. Estética e poética do Realismo e sempre apresentam uma fisionomia nítida quanto a colorido estético, o
do Naturalismo: definição e caracteres. O .mais das vezes vestem roupagens diferentes no curso de sua evolução lite-
Parnasianismo .. Histórico da situação no rária, quando não usam, no mesmo instante, os caracteres de escolas di-
Brasil. As academias. Introdução das no-
vas correntes no Brasil.
I versas ou opostas. Esse fenômeno que é geral, no Brasil torna-se mais
corriqueiro, dadas as circunstâncias naturais de sua vida na época, e em
! virtude do atraso com que sempre repercutem entre nós os movimentos
1. Três grandes movimento~ literários, I espirituais, e ainda porque as transformações aqui não se realizam organi-
de prosa e poesia floresceram durante a segunda metade do século XIX, I camente, de dentro para fora, como resultado da própria evolução da
I
penetrando pelo século XX: o Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo. ! consciência nacional, mas como reflexo de idéias-forças de origem estran-
Ao adotar o critério literário de divisão periódica pelos movimentos e geira.
estilos, procura escapar a presente obra ao escolho da divisão meramente De fato, o século XIX é uma grande encruzilhada de correntes literá-
cronológica, geralmente arbitrária, ou, ao menos, sem sentido estético- rias. O Romantismo não terminou e já se fazem notar os traços do Realis-
literário. Os marcos cronológicos, quando aqui se impõem, são meros pon- mo; e mesmo certas de suas vivências, reforçadas, constituíram caracterís-
tos de referência, assinalando a marcha das idéias e das tendências. Acima ticas realistas e naturalistas. Por outro lado, o Simbolismo o prolongará no
de tudo, o que releva fixar são os caracteres específicos dos movimentos, esforço por levar a literatura cada vez mais dentro da intimidade humana,
seu estilo, suas idéias diretoras, suas concepções filosóficas, estéticas e nesse longo processo de interiorização que caracteriza a evolução literária
poéticas, seus programas seus representantes mais típicos, suas obras. ao se aproximar de nossos dias. A velha oscilação pendular entre Classi-
Sem descurar o conteúdo espiritual, o denominador comum de definição cismo e Romantismo, entre objetividade e subjetividade, mais do que nun-
deve ser literário, isto é, o estilo que predominou.iemprestando forma lite- ca, e talvez jamais com tanta freqüência, teve lugar nessa époc~.
rária a um autor ou escola. Os.elementos históricos, sociais e biográficos, Realismo-Naturalismo-Parnasianismo, componentes de uma mesma famí-
a não ser naquilo e naqueles que possam contribuir para explicar o desen- lia de espírito, reagiram contra o Romantismo, sem embargo de receberem
volvimento mental de um autor, são relegados para plano secundário, dele muitos de seus elementos. Por sua vez, estoutro filho do Romantis-
como simples acidentes ocasionais, em relação à obra, cuja análise, inter- mo, o Simbolismo, em nome do indivíduo contra a sociedade, opôs-se
pretação e julgamento importam acima de tudo. Como método, o ideal a àquele grupo. A oscilação e o entrecruzamento dessas correntes fizeram-
que se visa é aliar a história à crítica, aquela subordinada ao ponto de vista se perceber no Brasil de modo marcante na obra de muitos escritores que
da segunda, que é a finalidade suprema do estudo do fenômeno literário. iniciaram sua formação ou mesmo sua carreira literária no Romantismo e
Devem-se encarar o Realismo e o Naturalismo como movimentos es- que vieram a transformar-se em representantes do Realismo ou Naturalis-
pecíficos do século XIX. Porquanto, antes de se concretizarem numa mo, muitos sem perder a marca original. Não só na prosa, senão também
época histórica, eles eram categorias estéticas ou temperamentos artísti- na poesia essa mistura se observa: muitos parnasianos mostram-se fiéis a
cos, tendências gerais da alma humana em diversos tempos, como Classi- .formas românticas ou avançam pelo Simbolismo.
cismo e Romantismo, surgindo o Realismo sempre que se dá a união do O grupo de correntes aqui estudadas ocupa uma época cultural da
espírito à vida, pela objetiva pintura da realidade. Dessa forma, há Re- maior relevância no Brasil, a segunda metade do século XIX. Por circuns-
alismo na Bíblia e em Homero, na tragédia e comédia clássicas, em Chau- tâncias históricas, nacionais e internacionais, coincidindo com o advento
cer, Rabelais e Cervantes, antes de aparecer em Balzac, Stendhal e Dos- da civilização burguesa, democrática, industrial e mecânica, e com a nova
toievski. Do mesmo modo, o Naturalismo existe sempre que se reage con- penetração da ciência no mundo das idéias e da prática por meio da biolo-

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gia, os valores que a representam produziram um impacto tão grande no nas ciências sociais. Para a geração que entrava na maioridade intelectual
espírito ocidental, que o dominaram quase por completo, mormente no em 1870, o positivismo de Augusto Comte, que vinha dos anos de 30 a 40,
Brasil, onde recalcaram de todo para um plano secundário a tendência oferecia singular atração, smtônico que era com o espírito da época. Repe-
oposta, a ponto de quase não se notar a presença contemporânea do Sim- lindo qualquer explicação última, qualquer finalismo teológico ou metafísi-
bolismo, cuja importância só muito mais tarde foi notada e registrada. co, e concentrado sobre o fatalismo científico, exaltou a ciência social ou
O sistema de idéias e normas que caracterizou aquela época exerceu sociologia como a rainha das ciências, dando-lhe como método e princí-
tal influência no Brasil dos fins do século XIX e começos do XX, que a pios os mesmos que caracterizavam as ciências físicas. Os estudos socio-
sua marca até hoje ainda se faz notar em muitos espíritos. Daí a importân- lógicos, dirigidos pelo positivismo, orientaram-se para a coleta de fatos,
cia da época e a necessidade de uma redefinição geral, indispensável à de- sintetizando-os e formulando leis e tendências para explicar a conduta e
vida compreensão de sua expressão literária. evolução da sociedade humana. Spencer viu a sociedade como um orga-
De modo geral, 1870 marca no mundo uma revolução nas idéias e na nismo em evolução, e a luta pela existência como um constante antago-
vida, que levou os homens para o interesse e a devoção pelas coisas mate- nismo entre as forças sociais. Os historiadores esposaram os pontos de
riais. Uma geração apossou-se da direção do mundo, possuída daquela fé vista da sociologia.. e interpretaram a história como a resultante de movi-
especial nas coisas materiais. É a ' geração do materialismo", como a de- mentos sociais, de evolução de forças e instituições sociais, e procuraram
nominou, em um livro esplêndido, o historiador americano Carlton Hayes. salientar a influência do fenômeno econômico e buscar a origem das so-
A revolução ocorreu primeiro no espírito e no pensamento dos homens e ciedades atuais nos troncos primitivos.
daí passou à sua vida, ao seu mundo e aos seus valores. Intelectualmente A partir do momento em que se constituiu a ciência social, que Comte
a elite apaixonou-se do darwinismo e da. idéia da evolução, herança do batizou de sociologia e Spencer emancipou, ela recebeu o impacto de ou-
Romantismo e, de filosofia, o darwinismo tomou-se quase uma religião; o tras ciências, por um fenômeno muito comum que é a aplicação dos méto-
liberalismo cresceu e deu os seus frutos, nos planos político e econômico; dos e princípios de uma a outra. As ciências sociais aliaram-se às ciências
o mundo e o pensamento mecanizaram-se, a religião tradicional recebeu naturais, fisicas e biológicas: economia, sociologia, estatística, biologia,
um. feroz assalto do livre-pensamento. Essa era do materialismo psicologia, ciências naturais, geografia, antropologia e etnografia. Inter-
(1870-1900) foi uma continuação do iluminismo e do enciclopedismo do sé- relacionaram-se no estudo dos fatos humanos e sociais, consoante os pos-
culo XVIII e da Revolução, acreditou no "progresso" indefinido e ascen- tulados do positivismo de Comte. E geraram o evolucionismo de Spencer,
sional e no desenvolvimento constante da civilização mecânica e indus- o ambientalismo de Taine, o materialismo psicológico de Wundt e Lom-
trial. Acreditou no impulso humanitário, conciliando a educação da massa broso.1);
e o socialismo com o culto do poder político e da glória militar e nacional. Assim, o acontecimento mais importante da história da cultura no sé-
culo XIX foi a convergência da biologia e da sociologia, que derramou por
As massas emergiram ao plano histórico, de posse dos progressos mate-
riais e políticos. A ciência, o espírito de observação e de rigor forneciam toda parte, na observação e interpretação da vida, a atitude evolucionista.
os padrões do pensamento e do estilo de vida, porquanto se julgava que A revolução biológica efetuada por Darwin, que destarte reforçou a ten-
todos os fenômenos eram explicáveis em termos de matéria e energia, e dência historicizante do espírito romântico, colocou a biologia num posto
eram governados por leis matemáticas e mecânicas. O vasto processo de de direção do pensamento, mudando as concepções e os métodos científi-
"mecanização do trabalho e do pensamento" (Hayes) refletiu-se tanto na cos, no sentido naturalista: o homem foi integrado no ambiente natural
vida material como nas diversas ciências - fisicas, naturais, biológicas, com origem e história natural. Ao receber o impulso da biologia, graças a
sociais. A biologia, com a teoria determinista, e sua promessa de melhoria Comte e Spencer, as ciências sociais tomaram-lhe conceitos e analogias.
de saúde e raça, conquistou uma voga dominadora. Problemas de heredi- As leis científicas passaram a ser deduzidas do princípio fundamental da
tariedade, de embriologia, de estrutura celular, de bacteriologia, seduzi- evolução. Concebeu-se o mundo como um processo de crescimento e evo-
ram os espíritos. O darwinismo, a evolução e a doutrina da seleção natural lução. A idéia de evolução espalhou-se largamente como a maior e a mais
imprimiram direção às pesquisas não somente da biologia, mas também da sedutora das crenças românticas. É o novo ideal científico, a noção revo-
psicologia e das ciências sociais. Outro dado importante foi a ascensão da lucionária do século, cuja presença é constante na sua vida intelectual e ..~«
psicologia científica com seus métodos de laboratório, mais um elo da ca- nas crenças dos homens. A sociedade foi encarada, sob o influxo da biolo-
deia de união da biologia com a física, para mostrar a base fisica do pen- gia, como um organismo composto de células em funcionamento harmô-
samento, da conduta e da afínidade do homem com os animais (Hayes). nico e obedecendo às leis biológicas de crescimento e morte. Ao interesse
Foram enormes e profundas as repercussões desse clima espiritual pela história do passado, pela tradição, característico do romantismo,

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acrescentaram-se a atitude biológica e o método evolucionista, a idéia de alismo do Naturalismo o aparato cientificista deste último, sua união à bio-
mudança e desenvolvimento contínuo, de evolução e progresso, Do senso logia e ao determinismo da herança e do ambiente. .
romântico da importância do tempo, do passado e das origens, transitou-se i O conhecimento da estética e .da poética realista-naturalista resulta-
naturalmente para a noção de crescimento e desenvolvimento, de evolu- rá da fixação de seus caracteres. Como definir os dois temperamentos ou
ção e progresso. Em suma, pela metade do século, a biologia e a sociolo- estilos artísticos? Em primeiro lugar, vejamos a definição dos termos.
gia coligaram-se na idéia de evolução, em conseqüência do trabalho de A palavra realista deriva de real, oriunda do adjetivo do baixo latim
Darwin, Comte e Spencer, e o darwinismo biológico e social sintonizado realis, reale , por sua vez derivado de res, coisa ou fato. Real+ismo (sufixo
com teorias mecanicistas em fisica e química teve seu ponto alto em Ha- denotativo de partido, seita, crença, gênero, escola, profissão, vício, esta-
eckel, cuja popularidade foi enorme. Os princípios mecanicistas de expli- do, condição; moléstia, porção) é palavra que indica a preferência pelos
cação penetraram nas ciências do homem e da sociedade, reduzindo os 11 fatos e a tendência a encarar as coisas tais como na realidade são. Em lite-
processos de vida a fórmulas químicas. 1
í ratura, Realismo opõe-se habitualmente a idealismo (e a Romantismo), em
I.

Outro resultado dessa convergência da biologia e das ciências sociais virtude da sua opção pela realidade tal como é e não como deve ser. As-
foi o relevo dado a estoutra idéia essencial do darwinismo, a de que "as sim, em crítica literária, como refere M. C. Beardsley, no Dictionary of
circunstâncias externas determinam rigidamente a natureza dos seres vi- World Literature, de J. T. Shipley , o termo designa as obras literárias mo-
:os, inclusive o homem, e de que nem a vontade, nem a razão podem agir deladas em estreita imitação da vida real. e que retiram seus assuntos do
mdependentemente de seu condicionamento passado" (Hayes).É a noção mundo do real, encarado de maneira objetiva, fotográfica, documental,
da onipotência do ambiente, ou milieu de Comte e Taine. O homem é sem participação do subjetivismo do artista. A palavra entrou na literatura
parte integrante da ordem natural, e seu corpo tanto quanto seu espírito se pela mão de Champfleury quando editou em 1857 um volume de ensaios
desenvolvem e atuam debaixo de seu condicionamento total e inevitável. que "lfilltnublicando desde 1843, e nos quais expunha a doutrina realista.
O ambientalismo, contribuição da antropogeografia aos estudos sociais no Pela mesma época, circulava uma revista de arte do critico Duranty, cha-
século XIX, contaminou a mente dos historiadores da civilização e da cul- mada Le Realisme. Mas foi a publicação de Madame Bovary (1857) de
tura, em seguida aos trabalhos de Lamarck, Buffon, Cúvier, e à obra de Flaubert que assegurou o triunfo do Realismo em França, mais tarde con-
geógrafos como Ritter, Kohl, Peschel, Reclus, Ratzel. Foi por meio de firmado, em pintura, pelo uso que fez Courbet do termo no prefácio ao
Buckle e de Taine que a noção se popularizou e se tornou um lugar- catálogo de sua exposição (1885).
~om~m .da críti~a hi~tóric~ e da crítica de artes e letras. Nesse ponto, a Já a literatura ocidental vinha, como mostrou Auerbach, evoluindo no
influência de Taine , inclusive ou sobretudo no Brasil, é avassaladora, sentido da incorporação gradativa da realidade. Em todo o caso, só no sé-
. . Esse foi, pois, o zeitgeist , o espírito da época, a concepção geral da culo XIX é que, em rebeldia contra o idealismo romântico, relacionado
vida que a dominou e lhe deu fisionomia espiritual típica: culto da ciência com a classe alta, o Realismo logrou impor a pintura verdadeira da vida
e do progresso,evolucionismo, liberalismo, iluminismo, determinismo, dos humildes e obscuros, os homens e mulheres comuns que estão habi-
positivismo, contra-espiritualismo, naturalismo. Esse é o complexo espiri- tualmente em torno de nós, vivendo uma vida compósita, feita de muitos
tual que caracterizou a "geração do materialismo". opostos, bem e mal, beleza e feiúra, rudeza e requinte, sem receio do tri-
vial e do monótono.
A infusão dessa concepção na literatura fez-se pelo Naturalismo ou,
Embora opostos em muitos sentidos, como já se acentuou, o Re-
por outras palavras, o Naturalismo foi o movimento que deu forma literá-
alismo e o Romantismo propendem para o mesmo alvo, continuam-se em
ria àquelas teorias. No romance, Zola transformou as suas personagens
vez de se oporem. Rousseau tentara mostrar que a natureza era boa, e que
em títeres, sem livre-arbítrio, a que um ambiente e uma força hereditária
o homem era naturalmente bom. Conseqüentemente, nenhum obstáculo
inelutavelmente imprimiam caráter; ações, destino. Na crítica, Taine re-
deveria ser oposto ao livre exercício de suas virtudes elementares. Todas
duziu a interpretação das obras de arte à compreensão do meio, da raça,
do momento em que se produziram. as peias e órgãos de restrição deveriam ser abolidos como males inuma-
nos: sociedade, leis, religião, estado, instituições, razão, eis toda sorte de
Esse cientificismo comunicou feitio próprio ao Naturalismo. Todavia, entraves à livre manifestação da bondade natural e dos impulsos natural-
Realismo, Parnasianismo e Naturalismo; como revoltas contra o subjeti- mente bons.
vismo romântico, participam do mesmo espírito de precisão e objetividade Caract ere s do Realismo, É impossível uma definição completa do Re-
científica, de exatidão na descrição, de apelo à minúcia, de culto do fato, alismo, que é antes um temperamento, uma tendência, um estado de espí-
de rigor e economia de linguagem, de amor à forma, e só distingue o Re- rito, do que um tipo ou gênero literário acabado. Ele existe sempre que o

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homem prefere deliberadamente encarar os fatos, deixar que a verdade
dite a forma, e subordinar os sonhos ao real. Todavia, pode-se descrever
,! ser reunidos e harmonizados,- para dar a impressão da própria realidade
i Recolhidos os fatos, há que dar-lhes certo arranjo de acordo com um pro-
as suas qualidades dominantes, as suas características principais, e o fa-
remos de acordo com o trabalho de A. Hibbard, Writers of the Western
Worid (Boston, 1942).
I, pósito artístico, a fim de criar uma unidade especial.
7) - A narrativa realista move-se lentamente. Pela própria natureza
1) - O Realismo procura apresentar a verdade. Esse tratamento
I da técnica, que é minuciosa, e pelo maior interesse na caracterização do
que na ação, o realista dá a impressão de lentidão, de vaivens, de marcha
verdadeiro do inaterial, essa verossimilhança no arranjo dos fatos selecio- quieta e gradativa pelos meandros dos conflitos, dos êxitos e fracassos.
nados, unificados, apontando numa direção, é essencial, e se traduz tam-
8) - O Realismo apóia-se sobretudo nas impressões sensíveis, esco-
bém no uso de emoção, que deve fugir ao sentimentalismo ou artificialida-
lhe a linguagem mais próxima da realidade, da simplicidade, da natura-
de. Essa qualidade ainda aparece no modo de apresentar as partes: o re-
lidade ..
alismo não se submete a uma visão demasiado ordenada da vida, o que lhe
3. Quanto ao Naturalismo, é um Realismo a que se acrescentam cer-
parece artificial, pois a vida tem um ritmo irregular.
tos elementos que o distinguem e tomam inconfundível sua fisionomia em
2) - O Realismo procura essa verdade por meio do retrato fiel de
relação a ele. Não é apenas um exagero ou uma simples forma reforçada
personagens. Às personagens do Realismo são antes indivíduos concretos,
do Realismo, pois que o termo inclui escritores que não se confundem com
conhecidos, do que tipos genéricos. Os incidentes do enredo decorrem do
os realistas. É o Realismo fortalecido por uma teoria peculiar, de cunho
caráter das personagens, e os motivos humanos dominam a ação. São se-
científico, uma visão materialista do homem, da vida e da sociedade.
res humanos completos, vivos, cujos motivos, razões de ação, emoções, o
Realismo retrata e interpreta. Daí a relação com a psicologia, o Realismo A palavra Naturalismo é formada de natural+ismo, e significa, em fi-
tendo tido a sorte de coincidir com o desenvolvimento da ciência da alma losofia, a' doutrina para a qual na realidade nada tem um significado super-
humana. Por isso, realizou-se em duas direções: para o corpo e a vida ex- natural, e, portanto, as leis científicas, e não as concepções teológicas da
terior, e para o espírito e a vida interior. natureza, é que possuem explicações válidas; em literatura, é a teoria de
3) - O Realismo encara a vida objetivamente. Não há intromissão que a arte deve conformar-se com a natureza, utilizando-se dos métodos
do autor, que deixa as personagens e os circunstantes atuarem uns sobre científicos de observação e experimentação no tratamento dos fatos e das
os outros, na busca da solução. O autor não confunde seus sentimentos e personagens.
pontos de vista com as emoções e motivos das personagens. O termo entrou na crítica literária por volta de 1850, na França, mas
4) - O Realismo fornece uma interpretação da vida. Retratando ob- somente nos arredores de 1880 é que assumiu posição definitiva, quando
jetivamente a vida, o Realismo, todavia, dá-lhe sentido, interpreta-a. A Émile Zola e seu grupo o adotaram, nas Soirées de Médan, daí, por sua
acumulação de fatos, pelo método da documentação, não é tudo na atitude influência, irradiando-se para o mundo. O desenvolvimento da ciência,
realista: a seleção e a síntese operam buscando um sentido para o encade- com sua fórmula biológica da evolução e da ligação do homem à "nature-
amento dos fatos. Daí a preferência pela narração em vez da descrição. za", as reformas políticas, as tendências realistas na literatura com Bal-
5) - O Realismo retrata -a vida contemporânea. Sua preocupação é zac; Stendhal, Flaubert, as teorias de Taine sobre o ambientalismo na in-
com homens e mulheres, emoções e temperamentos; sucessos e fracassos terpretação das origens da arte, tudo conduzia a colocar o Naturalismo na
da vida do momento. Esse senso do contemporâneo é essencial ao tempe- ordem do dia, com a sua visão científica, social, do homem em relação
ramento realista, do mesmo modo que o romântico se volta para o passado com o meio e com a herança. Entusiasmado com a leitura da obra de

I
ou para o futuro. Ele encara o presente, nas minas, nos cortiços, nas cida- Claude Bernard, Introduction à I' étude de ia médicine expérimentale
des, nas fábricas, na política, nos negócios, nas relações conjugais, etc. (1865), Zola elaborou uma aplicação das suas teorias à literatura e, no seu
Qualquer motivo de conflito do homem com seu.ambiente ou circunstantes livro Le roman expérimental (1880), levantou um paralelo das idéias do
é assunto para o realista. _ mestre com a sua teoria do romance naturalista, asseverando que o mé-
6) - O Realismo' retira a maior soma de efeitos do uso de detalhes todo do cientista deveria tornar-se o do escritor. "O romance experimen-
específicos. Até agora, vimos as qualidades realistas quanto aos assuntos e
conteúdo. O Realismo tem também uma técnica e um método específico.
Assim é que a precisão e a fidelidade na observação e na pintura são es-
senciais características realistas. Usam-se detalhes aparentemente insigni-
ficantes na pintura de personagens e ambientes. E esses detalhes devem
I
i
tal (... ) substitui o estudo do homem abstrato e metafisico pelo do homem
natural, sujeito a leis físico-químicas e determinado pela influência do
meio." Assim ficou estabelecido, como teoria dominante da literatura na-
turalista, o determinismo, para o qual "as deliberações morais são deter-
minadas ou são o resultado direto das condições psicológicas e outras" de

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II
,
11

...
~
,
natureza física. O homem nada é senão uma máquina guiada pela ação de Do. ponto de vista da estrutura, a ficção realista se distingue pelo pre-
leis físicas e químicas, pela hereditariedade e pelo meio físico e social.
Como os realistas, porém, os naturalístas procuraram a verdade, des-
denharam do sentimentalismo, preocuparam-se com a época contemporâ-
II domínio da personagem sobre o enredo, da caracterização sobre a ação,
do retrato de indivíduos e da crônica de suas vidas sobre os incidentes,
estes aliás decorrentes das próprias motivações humanas.
nea e construíram seus livros sobre o fundamento dos fatos precisamente
observados efielmente recolhidos, ao mesmo tempo que os seus enredos e
I
i
O Realismo empresta particular atenção aos aspectos técnicos, estru-
turais e formais, de narrativa e composição. No particular da forma, o re-
narrativas se moviam com lentidão. Aumentaram o interesse pela socie- I alista reitera.o ideal clássico- da pureza, da medida e da contenção, che-
dade e sobretudo pelas suas camadas mais baixas, e puseram mais ênfase
na liberdade de expressão. .
l
·l
gando mesmo à exaltação da beleza da expressão, como écriture artiste ,
em Flauberte alguns representantes da segunda geração realista francesa,
O crítico M. C. Bearsdley registra três sentidos para o termo: 1) é re- a contraparte do ideal parnasiano da arte pela arte.
ferente a obras que exibem acentuado interesse e amor pela natureza e be- . O Naturalismo acentua as qualidades do Realismo, acrescentando
leza natural; 2) é relativo a obras que se pautam por uma estreita fideli- uma concepção da vida que a vê como o intercurso de forças mecânicas
dade à natureza, e neste sentido é equivalente de Realismo; 3) refere-se (e sobre os indivíduos, resultando os atos, o caráter e o destino destes da
este é o sentido mais geral) a obras que, de modo implícito ou explícito, atuação da hereditariedade e do ambiente. O espírito de objetividade e im-
.exprimem um conceito naturalista da vida, em oposição ao, conceito hu- parcialidade científicas faz com que o naturalista introduza na literatura
manista e religioso, e, em conseqüência, acentuam o aspecto fisiológico do todos os assuntos e atividades do homem, inclusive os aspectos bestiais e
homem, seu parentesco com os animais, a transitoriedade e a futilidade, repulsivos da vida, dando preferência às camadas mais baixas da socieda-
bem como a origem irracional e egoística de seus ideais, e. o retratam de de. Pelo método documental, pelo uso da linguagem simples, direta, natu-
maneira irônica, lúgubre e nos seus aspectos sórdidos e vis. ral, coloquial, mesmo vulgar, e dos dialetos das ciências e profissões, o
Há, pois, diferenças fundamentais entre os dois, como mostra ainda Naturalismo procura representar toda a natureza, a vida que está próxima
Hibbard: 1) A visão da vida no Naturalismo é mais determinista, mais me- da natureza, o homem natural.
canicista: o homem é um animal, presa de forças fatais e superiores sem 4. Quanto ao Parnasianismo, foi o movimento correspondente em po-
efeito e impulsionado pela fisiologia em igualdade de proporções que pelo esia ao Realismo-Naturalismo.
espírito ou pela razão; 2) O naturalista observa o homem por meio do mé- Surgiu na França para designar os poetas que se reuniram na publica-
todo científico, impessoal e objetivamente, como um "caso" a ser anali- ção das antologias de poesia chamadas Le Parnasse Contemporain, lança-
sado; 3) O naturalista denota inclinação reformadora: a sua preocupação das em três fases, em 1866, em 1871 e em 1876. Os poetas mais famosos da
com os aspectos da inferioridade visam à melhoria, das condições sociais escola foram: Gautier, Baudelaire, Leconte de Lisle e Banville. O nomede
que a geraram; 4) O naturalista, com sua preocupação científica, declara- Parnasse (em português Parnaso, Parnasiano, Parnasianismo) vem de Par-
se de interesses amplos e universais, nada é desprovido de importância e nassus, monte da Fócida, na Grécia, onde, segundo a lenda, residiam os
significado como assunto, nada que esteja na natureza é indigno da litera- poetas. Por extensão é uma espécie de morada simbólica dos poetas, e de-
tura. Essa universalidade e fidelidade ao fato, a todos os fatos, conduz o signa também o conjunto de poetas de uma nação. Inspirado na estética da
Naturalismo a certo amoralismo, certa indiferença. Não importa a opinião' "arte pela arte" de Gautier, reflete o Parnasianismo o mesmo movimento
sobre os atos, mas os atos em si mesmos. pendular que fez seguir uma corrente objetivista e classicizante ao subjeti-
Em conclusão, o Realismo é a tendência literária que procura repre- vismo romântico. Também ele se subordinou ao ideal científico da objeti-
sentar, acima de tudo, a verdade, isto é, a vida tal como é, utilizando-se, vidade e mesmo ao positivismo filosófico. Patrocina a pintura de inciden-
para isso, da técnica da documentação e da observação contrariamente à tes históricos e fenômenos naturais, em versos impassíveis e perfeitos,
invenção romântica. Interessado na análise de caracteres, encara o homem com forma rigorosa e clássica, com motivos também clássicos. A poesia é
e o mundo objetivamente, para interpretar a vida. Utilizando-se das im- descritiva, com exatidão e economia de imagens e metáforas. 'Esse re-
pressões sensíveis, procura retratar a realidade graças ao uso de detalhes alismo classicizante em poesia teve grande fortuna, especialmente no Bra-
específicos, o que faz que a narrativa seja longa e lenta e dê a impressão sil, certamente pela facilidade que os fazedores de verso encontraram na
nítida de fidelidade aos fatos. A estética realista procura atingir a beleza sua poética, mais de técnica do que de inspiração, mais formal do que es-
sob os disfarces do comum e do familiar, no ambiente local e na cena con- sencial. O Parnasianismo no Brasil penetrou muito além dos seus limites
temporânea. cronológicos, paralelamente ao Simbolismo e mesmo ao Modernismo, so-

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r
punha em contato com os grandes centros europeus de produção cultural,
bretudo constituindo uma subescola de poesia, muito generalizada nas plasmando ao mesmo tempo a consciência de nossa unidade e de nossa
províncias das letras. autonomia intelectuais.
5. Deve-se à influência francesa a penetração das idéias "modernas" Expressões dessa ebulição foram a "Academia Francesa" do Ceará e
do século XIX no Brasil. Foi larga e profunda a influência francesa. Os ideais a "E~cola do ~ecife". ~ p~meira viveu de 1872 a 1875, fundada por jo-
do século, os princípios libertinos e sediciosos, a "mania francesa", sacu- vens intelectuais da provmcia nortista, Rocha Lima, Capistrano de Abreu,
didos pela Revolução, pelo lluminismo, pelo movimento crítico da Enci- Tomás Pompeu, Araripe Júnior, Xilderico de Faria, Lopes Filho etc. O
clopédia, traduzidos em doutrinas de libertação filosófica, de racionalis- Cear~ é ~értil em academias, associações, grêmios, de grande fu~ção na
mo, de materialismo, de emancipação política e social, no sentido naciona- sua VIda intelectual. A "Academia" fora o desdobramento de outra asso-
lista, abolicionista e republicano, desde cedo no século varriam o país de ciação, de 1870, a "Fênix Estudantil", e a ela seguir-se-âo outras, o "Ga-
norte a sul. Os canais de circulação das idéias naquela época funcionavam binete de Leitura" (1875), com o mesmo grupo acrescido de Paula Nei
eficazmente por toda parte, entre eles a maçonaria, instrumento poderoso Domingos Olímpio, Rodolfo Teófilo, Guilherme Studart, Clóvis Beviláqua:
e tenaz de propagação e agitação de doutrinas. Era ela que concorria para e, mais .tarde ainda, a "Padaria Espiritual" (1892). Estes os pontos altos
favorecer a circulação clandestina de livros proibidos, "sediciosos",
a despeito da vigilância dos órgãos de censura, tinham curso pelo Brasil
que,
i do movimento de fermentação intelectual do Ceará, movimento de cunho
filosófico e literário." ,
inteiro, constituindo até ricas e famosas bibliotecas, como a do Padre
Agostinho Gomes, na Bahia, e a do Cônego Luís Vieira da Silva, em Ma-
riana, como mostrou Eduardo Frieiro, em O diabo na livraria do Cônego,
a respeito do segundo.
I A "Escola do Recife", como a designou Sílvio Romero, desenvolveu-se
n~ capital nordestina em torno da Faculdade de Direito, tendo como prin-
cipais propugnadores Tobias Barreto e Sílvio Romero, e atuando por toda
a segunda metade do século, como um vigoroso centro de agitação intelec-
De modo que, no que respeita às idéias, foi a influência francesa que tual, nas três fases da divisão consagrada de Sílvio: a literária e
poética da
marcou a vida do país, aqui e ali pontilhada de certos matizes ingleses, em década de 60, a crítico-filosófica de 1870-1877-78, e a jurídica de 1878 em
consonância, aliás, com a tonalidade geral francesa. diante."
Três grandes questões de caráter político-social-religioso agitaram o Outros focos intelectuais eram constituídos por São Paulo, Rio de Ja-
país na segunda metade do século: a questão servil, a questão religiosa e a neiro, Bahia."
questão militar. Em todas sente-se a influência daquelas idéias, que consti- Em todos predominava a atmosfera de pensamento "moderno" a
tuíam o espírito do tempo, daquela agitação intelectual que apaixonava os mesma que agitava toda a América Espanhola, e Portugal, onde suscitou o
homens de pensamento. Testemunham a marcha das idéias de laicizaçào, movimento de reação de Antero de Quental, Eça de Queirós, Ramalho Or-
de materialismo, de racionalismo, de anticlericalismo, de naturalismo, que tigâo, Teófilo Braga, em 1865, a famosa polêmica coimbrã do Bom Senso e
constituiriam o patrimônio intelectual da "geração do materialismo" e da Bom Gosto."
Como sublinha José Veríssimo, a época assiste a um florescimento
época que se abriu pelos idos de 70.
invulgar dos estudos e da preocupação com a educação. De modo que
No plano propriamente intelectual - aliás não se pode separa~_ este
tudo favoreceu aquela vasta revisão de valores e postulados que iria colo-
dos outros, o político, o religioso, o social, que todos se entrelaçavam - a
car na primeira plana o pensamento "moderno": as doutrinas positivistas,
agitação tomava forma em todas as províncias. No inicio da década de 70,
ortodoxa e heterodoxa de Littré, o biologismo de Darwin, o evolucionismo
o Brasil inteiro se sentia arrastado pela onda das idéias que sacudiam a
de Spencer, o determinismo de Taine, a concepção histórica de Buckle , o
época. Diversos focos de fixação tinham, porém, papel de maior relevo: as
momsmo de Kant, Schopenhauer e Haeckel.
academias. É bem de avaliar-se a ação social e intelectual que desempe-
Há que pôr em relevo neste ponto uma influência das mais profundas
nharam no Império provinciano as escolas jurídicas instituídas em 1827 em
e vastas que atuaram na mentalidade literária brasileira do tempo: a do es-
São Paulo e Olinda (esta última transferida para Recife em 1854), papel
critor português José Maria Eça de Queirós (1845-1900). A batalha do Re-
idêntico ao que exercia a Faculdade de Medicina da Bahia, fundada em
alismo contra o Romantismo travava-se em Portugal desde 1865 com a
1808 e transformada em 1815. Aqueles centros de cultura, num terreno
Questão Coimbrã, continuada em 1871 com as conferências do 'Cassino
sem vida intelectual, subordinado aos centros da Metrópole, "se não fo-
Lisbo~ense. Num Brasil dominado pelo sentimentalismo, pelo estilo ora
ram suficientes para operarem transformações profundas na mentalidade
a~amblcado, ora campanudo do Romantismo, e com uma vida literária
colonial" ,2 exerceram o papel de pólos de atração e de ebulição intelec-
ainda sem os necessários travameritos, foi enorme a repercussão que teve
tual, por intermédio dos quais a mocidade inteligente e inquieta do país se
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e um dos fatores da transformação, por aquele tempo, aqui operada. Em pírito inglês e a mentalidade vitoriana. Ora a forma realista, ora a natura-
1875, publicava Eça de Queirós O crime do Padre Amara, e pouco depois lista, tiveram curso na Rússia, na Alemanha, na Itália, na Espanha, em
O primo Basílio (1878). Era a realização da estética realista-naturalista na Portugal e nos Estados Unidos.
ficção, e através deles e da ligação constante que manteve com o Brasil No nosso século, fora e também dentro do Brasil, o Realismo consti-
pela imprensa e pelas relações com o mundo literário, a figura fascinante tui a principal tendência da literatura, e o uso das técnicas realistas é uma
de Eça situou-se como um dos numes tutelares da vida intelectual brasilei- convenção generalizada, seja nas feições mais puras e moderadas, seja em
ra. Sua influência na literatura se fez sentir em toda parte nas obras surgi- formas combinadas com os elementos técnicos e temáticos do Simbolis-
das então, e muito tempo depois ainda se pôde verificar, na temática, na mo, do Impressionismo, do Expressionismo, seja sob as manifestações do
maneira, no estilo, na ironia. Neonaturalismo ou Neo-realismo populista, socialista e existencialista.
Dentro dessa atmosfera, a literatura evoluiu no Brasil do Romantismo 6. Na segunda metade do século XIX, os elementos sociais, econômicos
para o Realismo-Naturalismo. Por volta de 1880, a transformação estava e políticos que constituíam o arcabouço da civilização brasileira, a própria
efetuada e começaram então a aparecer os primeiros frutos. É de 1881 O estrutura da sociedade, sofriam franca e radical transformação. De uma
mulato de Aluísio Azevedo. Daí avante, é na linha ora do Realismo, ora sociedade agrária, latifundiária, escravocrata, aristocrática, passava-se
do Naturalismo, que se exprime a ficção, conto ou romance. Às vezes, em para uma civilização burguesa e urbana, fase preparatória da industrializa-
escritores como Machado de Assis, que nunca se deixou levar para os ção, mas já formadora de um marginalismo populacional, senão de um pe-
exagerados tons naturalistas, e que reagiu mesmo contra a tórmulade Eça queno proletariado urbano. Paralela a essa revolução econômico-social,
no estudo crítico que lhe dedicou, encontraram, todavia, guarida muitos processava-se, como mostraram os trabalhos de Gilberto Freire, idêntica
pontos de vista doutrinários e certas colocações estéticas do Naturalismo. transformação no campo da psicologia e antropologia sociais: a conquista
De modo geral, porém, o Naturalismo, como escola, não durou mais que a de cartas de branquidade pela população mestiça e a sua ascensão à parti-
década de 80. O que se encontra mais comumente na ficção da época são cipação ativa e larga na vida social, política e intelectual.
as suas impregnações aqui e ali. Época intensamente política, a oratória,política, parlamentar e sagra-
Não fossem este ou aquele livro realizados de Aluízio Azevedo, da, era então a forma de atividade intelectual de mais destaque e populari-
Adolfo Caminha, Domingos.Olímpio, um ou outro conto, regional ou não, dade. Quanto, porém, à mentalidade literária propriamente, enquanto a
e páginas esparsas por toda parte, poderia asseverar-se que o Naturalismo poesia foi o gênero predileto dos românticos, a prosa de ficção constituiu o
foi um movimento gorado no Brasil. Ao contrário, tendo-se ensaiado antes meio de realização literária por excelência, o que obriga a fazer convergir
dele por intermédio do costumbrismo e do picaresco de matriz espanhola, para o romance e o conto a investigação acerca do conteúdo e métodos do
que aqui se aclimaram através dos romances de folhetim, e que se refleti- espírito realista. .
ram tão evidentemente na obra de Martins Pena e Manuel Antônio de AI- Em conformidade com a estética geral do Realismo, osficcionistas
meida, de Lima Barreto e Cardoso de Oliveira, e na do próprio Machado realistas brasileiros dão maior interesse à pintura de personagens, à carac-
de Assis, influência essa em nossa ficção que ainda está por ser devida- terização e à descrição de sua vida, do que à organização da trama. Dentro
mente pesquisada; tendo aparecido sob a forma de transição, entremeado desse princípio geral, no entanto, seguem diversas modalidades de pa-
nos romances de Taunay ou de Franklin Távora, ou mesmo, sob color de drões. O padrão biográfico, em que uma personagem, masculina ou femi-
um Realismo pequeno ou miúdo, na linguagem coloquial e na observação nina, avulta sobre as demais e sobre o quadro de vida que a envolve, tudo
da vida corriqueira e dos costumes de Macedo,? o Realismo, mitigado, servindo para dar relevo aos' traços essenciais do protagonista ou para
mais equilibrado, sem compromissos exagerados com a ciência e a biolo- mostrá-lo em situações trágicas ou cômicas; os padrões de história familiar
gia determinista, produziu desde o começo da década de 80 - as Memó- e de grupo social privado (residências coletivas, pequenos aglomerados,
rias póstumas de Brás Cubas são de 1881 - as mais elevadas e indepen- grupos de parentesco e amizade); o padrão regional, reunindo os indiví-
dentes expressões da nossa ficção, prolongando-se muito além da fase es- duos das ocupações ou castas sociais de uma região; o padrão ambiental,
tritamente naturalista, e imprimindo um vigor novo à literatura no Brasil. acentuando as relações entre um quadro geográfico e a população que o
Fenômeno idêntico ocorreu na França, onde o Naturalismo dos Zola e habita; o padrão psicológico, que analisa os elementos combinados para
Goncourt não sufocou a linhagem mais antiga dos realistas Balzac, Stend- ", produzir e resolver uma situação subjetiva.
hal e Flaubert, que foi, afinal, a que prevaleceu como a mais plena mani- Pode-se afirmar que duas direções marcaram a evolução do Realismo
festação da ficção francesa. Na Inglaterra, não encontrou clima o Natura- no Brasil: a corrente social, atraída pelos problemas sociais, pelos temas
lismo estrito, tendo predominado o Realismo, mais consentâneo com o es- urbanos, contemporâneos, pelos materiais comuns da vida cotidiana, e se-

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gundo a qual o Realismo às vezes descamba para o Naturalismo, quando Não havendo rigorosa cronologia que respeitar, pois obras naturalis-
assume posição filosófica e se submete à luz de uma "teoria"; e o movi- tas ou realistas surgiram concomitantemente, o estudo da matéria incluirá
mento regionalista, que põe em relevo a cor local, o papel da Terra, que é o grupo dos romancistas naturalistas típicos: Aluísio Azevedo, Inglês de
a verdadeira personagem dessa literatura. Também no regionalismo, o Re- Sousa, Júlio Ribeiro e Adolfo Caminha. Em posição singular estão Ma-
alismo com freqüência se encontra com o Naturalismo. Em contato com chado de Assis e Raul Pompéia, os quais, não obstante revelarem aqui e
as durezas e a melancolia da vida rural brasileira, surgiram o pessimismo, ali impregnações naturalistas, são realistas independentes no caso de
o desencanto, a desesperança, que levaram facilmente à aceitação do de- Pompéia posta em realce essa independência pelos entretons impressionis-
terminismo geográfico e da inutilidade de uma luta inglória contra fo~ç~s tas que marcam peculiarmente a sua obra. Vêm, em seguida, Lima Barreto
inelutáveis e irredutíveis, portanto conduzindo à negação do livre-arbítrio. e Coelho Neto, que participam do espírito naturalista.
Criou-se a convicção de um laço determinista entre a terra e a conduta Pode-se mesmo afirmar que raros foram os escritores do final do sé-
humana, entre ela e o próprio destino humano, que foi uma formulação culo XIX e começos do XX que não se deixaram contaminar das idéias
brasileira da abordagem realista-naturalista ao problema das relações entre diretoras do Naturalismo. Mesmo a obra de Machado de Assis dele está
o homem e o ambiente. A literatura regional brasileira é uma verdadeira impregnada, pois, cioso de sua independência e reagindo contra os seus
saga da terra e da sua vitória sobre o homem. exageros, não ficou imune à sua influência e soube tirar dele o que podia
O Realismo brasileiro teve ainda outro papel no que diz respeito ao servir ao seu molho, para empregar a sua própria expressão.
processo de nacionalização da língua. A· evolução que vinha de longe, e O Realismo-Naturalismo no Brasil encontrou excelente campo de re-
que o Romantismo acentuara, o Realismo consolidou. Incorporando à lite- alização na matéria regional. No contato com a técnica e argúcia do espí-
ratura áreas de expressividade regionais, profissionais, populares, e a não rito realista-naturalista, logrou algumas criações que ocupam lugar defini-
ser em Machado de Assis que criou um estilo, e ao contrário dos mestres tivo em nossa história literária. Daí a necessidade de se estudarem com
franceses da escrita artística, mais inclinado a reproduzir a experiência minúcias as diversas variedades regionais da ficção e as contribuições que
real na sua frescura imediata, sem fetichismo classicizante e mesmo com deu a seiva local ao conjunto de nossa literatura. Desde os primeiros li-
relativa indiferença formal, o Realismo concorreu para o desenvolvimento vros, por exemplo, do regionalismo nordestino, a influência da estética re-
de um estilo em fala nativa. Dando incremento ao' processo de indepen- alista e naturalista é patente. Assim o é em Os retirantes de José do Patro-
dência da expressão, prosseguiu, pela mão de seus epígonos, a nacionali- cínio, nos livros de Rodolfo Teófilo e no Luzia-Homem de Domingos
zação da literatura. Coincidindo com o início do trabalho de valorização, Olímpio, este considerado o último dos romances naturalistas típicos, den-
análise e interpretação da realidade brasileira, graças aos estudos antropo- tro do regionalismo.
lógicos, etnográficos, folclóricos, sociológicos, históricos e lingüísticos, o Entre os gêneros literários, o cento é um instrumento de maior utili-
Realismo olhou para o mundo brasileiro, ensinou o escritor brasileiro a dade nas mãos dos nossos escritores realistas e naturalistas, muitos ten-
tratar esteticamente do material autóctone, não mais com o sentimenta- do-se ensaiadó nessa forma, ou mesmo havendo-se nela realizado, elevan-
lismo romântico, e com ele a literatura finca pé definitivamente no sole 'do-a às mais puras e perfeitas criações, seja na linha psicológica, seja na
pátrio, conquista que o Modernismo (1922) veio ratificar de vez. . da análise de costumes. Posto que historicamente se tenha libertado, o gê-
. 7. Ao termo deste capítulo de história das idéias e de história da literatu- nero muito deve aos princípios do Realismo, ainda em nossos dias, quando
ra, é-nos lícito olhar para trás. Se a configuração do período não nos apare- tenta incorporar ou absorver outras técnicas e experiências, impressionis-
ce com precisos contornos e se ele não se nos mostra fechado, corno um tas ou expressionistas.
compartimento estanque, todavia, conhecidas as suas diversas coordena-
Por outro lado, o teatro brasileiro, originário da colonização, mais ou
das, impõe-se a constatação da unidade do estilo que o domina: um estilo
menos estacionário durante a fase colonial, ressurge no dealbar da época
uniforme, marcado por um sistema de pensamento, que dirige, aliás, todas
realista-naturalista, atravessando-a, a despeito de não receber do com-
as manifestações da cultura, por um corpo específico de valores e de
plexo doutrinário e estético que a caracteriza um influxo marcante nela se
idéias, por uma forma própria de arte. Sobretudo foi a fase em que um
integra por vários pontos de articulação. '
temperamento literário - o Realismo - encontrou em estado de plenitude
um gênero literário flexível e plástico - o romance, e se lhe adaptou como Por último, a forma poética do Realismo-Naturalismo, denominada
o que melhor correspondia aos seus propósitos estéticos. aqui Parnasianismo, pelo modelo francês, é por demais importante entre
nós, pela massa de cultores e pelo alto valor de alguns deles, para não me-
recer um cuidado especial.
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Haverá ainda que incluir o estudo das figuras de Rui Barbosa, Eucli-
des da Cunha e Joaquim Nabuco bem representativos do espírito realista e
parnasiano.
No que respeita à crítica, é grande a importância da era positivista e
materialista no Brasil. Sílvio Romero, José Veríssimo, Araripe Júnior, Ca-
pistrano de Abreu, e outros críticos menores, como Valentim Magalhães,
Artur Orlando, Rocha Lima, constroem toda uma crítica, bem representa-
tiva da época e que teve influência duradoura na literatura. Merece, pois,
atenção especial o estudo da crítica e idéias literárias que ilustraram e in-
formaram o período.

NOTAS

I Cf. Ogden fel Goldenweiser. The social sciences and their interrelations. Boston, 1927;
The history and prospects of social sciences ed. H. E. Bames, New York, 1925.
2 Cf. Fr-de Azevedo. A cultura brasileira, p. 212.
3 Cf. Barreira. História da literatura cearense . Fortaleza, 1948.
4 Cf. S. Romero, História da literatura brasileira. 5.a ed. Rio de Janeiro, 1954, 5 v.; H.
Lima. Tobias Barreto, São Paulo, 1939; C. Beviláqua, História da Faculdade de Direito
de Recife. Rio de Janeiro, 1927,2 v.; J. Veríssirno. História da literatura brasileira. Rio
de Janeiro, 1916.
5 Cf. J. Veríssimo, História da literatura brasileira. Rio de Janeiro, 1916; S. Vampré. Me-
mórias para a histôrià da Academia de São Paulo. São Paulo, 1924, v; G. Muniz. A Me-
dicina na Bahia, Salvador, 1922 [e] Memória histórica da Faculdade de Medicina da Ba-
hia, Bahia, 1940. _
6 Cf, J. Veríssimo, op. cit., p. 343; F. de Figueiredo. História da literatura realista. Lisboa,
1914; Forjaz de Sampaio, A. M, P. História da literatura portuguesa ilustrada, Porto, 4:0
v., p. 185.
7 Cf. J. M. Macedo. A moreninha, Prefácio.de Antônio Cándido. São Paulo, Liv. Martins,
1952 (Biblioteca de Literatura Brasileira n.? 7).

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