Figuracao de Personagens e Mundos Possiv

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 155

Figuração

de personagens e
mundos possíveis
Carlos Reis
Luciana Morais da Silva
(Orgs.)
insólitos
Carlos Reis
Luciana Morais da Silva
(Orgs.)

Figuração de
personagens e
mundos possíveis
insólitos

2018
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitor
Ruy Garcia Marques
Vice-Reitora
Maria Georgina Muniz Washington

Dialogarts
Coordenadores
Darcilia Simões
Flavio García

Conselho Editorial

Estudos de Língua Estudos de Literatura


Darcilia Simões (UERJ, Brasil) Flavio García (UERJ, Brasil)
Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP, Brasil) Karin Volobuef (Unesp, Brasil)
Maria do Socorro Aragão (UFPB/UFCE, Brasil) Marisa Martins Gama-Khalil (UFU, Brasil)

Conselho Consultivo

Estudos de Língua Estudos de Literatura


Alexandre do A. Ribeiro (UERJ, Brasil) Ana Cristina dos Santos (UERJ, Brasil)
Claudio Artur O. Rei (UNESA, Brasil) Ana Mafalda Leite (ULisboa, Portugal)
Lucia Santaella (PUC-SP, Brasil) Dale Knickerbocker (ECU, Estados Unidos)
Luís Gonçalves (PU, Estados Unidos) David Roas (UAB, Espanha)
Maria João Marçalo (UÉvora, Portugal) Jane Fraga Tutikian (UFRGS, Brasil)
Maria Suzett B. Santade (FIMI/FMPFM, Brasil) Júlio França (UERJ, Brasil)
Massimo Leone (UNITO, Itália) Magali Moura (UERJ, Brasil)
Paulo Osório (UBI, Portugal) Maria Cristina Batalha (UERJ, Brasil)
Roberval Teixeira e Silva (UMAC, China) Maria João Simões (UC, Portugal)
Sílvio Ribeiro da Silva (UFG, Brasil) Pampa Olga Arán (UNC, Argentina)
Tania Maria Nunes de Lima Câmara (UERJ, Brasil) Rosalba Campra (Roma 1, Itália)
Tania Shepherd (UERJ, Brasil) Susana Reisz (PUC, Peru)

Dialogarts
Rua São Francisco Xavier, 524, sala 11017 - Bloco A (anexo)
Maracanã - Rio de Janeiro - CEP 20.569-900
http://www.dialogarts.uerj.br/
Copyright© 2018 Carlos Reis; Luciana Morais da Silva (Orgs.)

Capa
Raphael Ribeiro Fernandes

Fotografia Original de capa


Luciana Morais da Silva

Diagramação
Raphael Ribeiro Fernandes

Revisão
NuTraT – Núcleo de Tratamento Técnico de Texto
Supervisão de Nathan Sousa de Sena
Elen Pereira de Lima
Ingrid Andrade Albuquerque
Karine da Silva Costa André
Thaiane Baptista Nascimento

Produção
UDT LABSEM – Unidade de Desenvolvimento Tecnológico
Laboratório Multidisciplinar de Semiótica
FI C H A C A T A L O G R Á F I C A

R375 REIS, Carlos; SILVA, Luciana Morais da (Orgs.).


S586 Figuração de personagens e mundos possíveis
insólitos.
Rio de Janeiro: Dialogarts, 2018.
Bibliografia
ISBN 978-85-8199-101-6
1. Insólito Ficcional. 2. Espaço. 3. Tempo. 4.
Personagens. I. Carlos Reis; Luciana Morais da Silva.
II. UERJ. III. SePEL. IV. Título.

Índice para Catálogo Sistemático


800 – Literatura.
801 – Teoria Literária. Análise Literária.
801.95 – Crítica Literária. Crítica dos Gêneros Literários.
APRESENTAÇÃO
7
Carlos Reis (UC) e Luciana Morais da Silva (UERJ/UC)
O FANTÁSTICO EM “BROSOGÓ, MILITÃO E O DIABO”, DE
PATATIVA DO ASSARÉ 9
Alexandre Vidal de Sousa (UFC)
COMISSÃO DAS LÁGRIMAS: O SILÊNCIO DE ANGOLA
23
Ana Paula Silva (UFU)
AS PROTAGONISTAS EM TRÂNSITO EM RIO CIGANO E
HISTÓRIAS QUE SÓ EXISTEM QUANDO LEMBRADAS: A
PERSONAGEM NO CINEMA DE FLUXO E SUAS IMBRICAÇÕES 33
COM O ESPAÇO INSÓLITO
Fabrício Basílio Pacheco da Silva (UFF)
FIGURAÇÕES DO INSÓLITO: A NARRATIVA FANTÁSTICA EM “O
EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA”, DE MURILO RUBIÃO 46
Fernanda Maria Diniz da Silva (UFC)
A CONSTRUÇÃO DO MUNDO INSÓLITO NA OBRA O ANO DE
1993, DE JOSÉ SARAMAGO 57
Fernângela Diniz da Silva (UFC); José Leite Jr. (UFP)
REFIGURAÇÃO E SOBREVIDA DA PERSONAGEM ESTEVES, DE
“TABACARIA”, EM A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS 72
Giseli Seeger (UFSM); Raquel Oliveira (UFSM)
PODE O INSÓLITO FALAR? FABULAÇÕES ESPECULATIVAS
SOBRE SOLARIS, DE STANISLAW LEM 80
Guilherme Preger (UERJ)
PERSONAGENS E OBJETOS: UMA LEITURA DE A ESTRANHA
MÁQUINA EXTRAVIADA, DE JOSÉ J. VEIGA E SANGUE DA AVÓ,
93
MANCHANDO A ALCATIFA, DE MIA COUTO
João Olinto Trindade Junior (UERJ)
PROCESSOS DE FIGURAÇÃO DE PERSONAGENS EM MURILO
RUBIÃO 109
Luciana Morais da Silva (UERJ/UC)
A CIDADE EPIFÂNICA COMO PERSONAGEM TRANSFORMADOR
DE UM MUNDO QUE SE REVELA INSÓLITO 118
Paula Vera-Bustamante (USP)
A PERSONAGEM E O ESPAÇO NO REALISMO MÁGICO
140
Sayuri Grigório Matsuoka (UFC)
Carlos Reis
Luciana Morais da Silva
(Orgs.)

Configuração dos processos de ficcionalidade. Cabe à


personagem a primazia da armação desses mundos que ela habita,
transitando em tempo e espaço e sofrendo ou exercendo as ações
narradas. Assim, como produção ou como produto a relação entre
cada personagem com o universo narrativo determina o conjunto de
tipos de modelo de mundo que competem para configuração do
mundo possível ficcional que se sobreleva como cenário. A
constituição de mundos possíveis narrativos envolve um conjunto de
estratégias presentes nos modelos de construção de mundos,
designando modos e sentidos próprios na forma com que o
ficcionista engendra sua produção ficcional. Os mundos possíveis
ficcionais são construídos por um conjunto de propriedades que os
definem e são formulados em dado tempo e espaço. Nesse sentido,
os mundos possíveis do insólito são mundos em que o insólito se
manifesta, pondo em causa os modelos semionarrativos real-
naturalistas, ou seja, aqueles que se sustentam na apreensão do
mundo real tal como é pensado pelo senso comum em dado recorte
social, histórico e cultural. Os mundos do insólito são formados por
um distanciamento de maior ou menor alcance, relativamente ao
mundo quotidiano e à realidade de referência. Assim, a figuração das
personagens na constituição dos mundos possíveis da ficção do
insólito é de extrema importância; entendendo-se a categoria
personagem como signo podemos percebê-la, a nível diegético, como
um índice de evidência do insólito, tendo em atenção a noção
derivada dos estímulos revelados através delas em narrativas
marcadas pela manifestação do insólito. Nos casos em que se observa

7
a figuração de personagens como processo, submetido à construção
do discurso, verifica-se que os mundos possíveis ficcionais em que o
insólito irrompe estariam marcados pela presença de traços
constitutivos de personagens desestruturadas e desestruturadoras,
que geram uma crescente incongruência nesses mundos textuais. A
caracterização dessa categoria narrativa, como eixo central de
configuração dos mundos possíveis ficcionais, constitui-se por meio
de um conjunto de traços formulados no discurso literário para
produzir seres verossímeis, mas profundamente denunciadores da
realidade ou “vivência” insólita que os circunda. O objetivo do
simpósio é refletir acerca dos processos de construção das
personagens nos modelos de consecução dos mundos possíveis
ficcionais, com vistas a discutir como se organizam os mundos
narrativos do insólito a partir da figuração da personagem. Pretende-
se, para tanto, perceber ao longo dos debates os modelos de mundos
possíveis do insólito, com especial atenção para a composição da
categoria personagem no âmbito do discurso empregado em sua
construção. A estrutura do simpósio possibilita pelo menos duas
aberturas distintas e complementares: pensar-se a realização dos
mundos possíveis ficcionais a partir da figuração de personagens com
matriz insólita e/ou refletir acerca da construção de mundos possíveis
ficcionais de cariz insólito com base na referencialidade de suas
personagens.

8
Alexandre Vidal de Sousa (UFC)

O objetivo deste estudo é analisar a presença do fantástico no


cordel Brosogó, Militão e o Diabo, do poeta cearense Patativa do
Assaré. O cordel, estruturado em sessenta e três estrofes de seis
versos, narra a história de Brosogó, miçangueiro nordestino, honesto
e religioso que se endividou com Militão, fazendeiro trapaceiro que
passou a lhe cobrar um valor exorbitante por meia dúzia de ovos.
Patativa do Assaré, nascido Antônio Gonçalves da Silva, em 5
de março de 1909, no sítio denominado Serra de Santana no Ceará,
foi o segundo de um total de cinco filhos do agricultor Pedro
Gonçalves da Silva e de Maria Pereira da Silva. O poeta frequentou
uma escola apenas aos doze anos onde permaneceu por um curto
período. Apesar do pouco contato com a escola, tinha um grande
interesse pela leitura. Durante toda a sua vida exerceu o trabalho na
agricultura.
Ainda muito jovem teve uma importante ligação com a poesia,
período em que foram produzidos os seus primeiros versos. O
contato com a leitura se dava no tempo livre do trabalho árduo, bem
como a audição de versos feita a partir da leitura de outras pessoas.
Aos dezesseis anos, depois de ter comprado uma viola
começou a cantar de improviso. Aos 20 anos, foi ao Pará a convite de
um parente onde fez várias apresentações com outros artistas locais.
Voltando para a sua terra continuou com a mesma vida simples de
agricultor.

9
Patativa do Assaré casou-se com sua parenta, Belinha, com
quem teve vários filhos. Faleceu no dia 8 de julho de 2002, aos 93
anos, deixando diversas obras que abordam a cultura sertaneja.
O cordel “Brosogó, Militão e o diabo” foi publicado também na
Antologia Poética (2001) e no livro Cordéis e outros poemas (2006),
ambos organizado por Gilmar de Carvalho. Na narrativa, a
religiosidade e as relações entre sagrado versus profano e bem versus
mal se fazem presentes constantemente. Ao longo do cordel de
Patativa do Assaré, o mundo insólito é construído a partir da figura do
diabo que ajuda Brosogó em um momento de aflição. O texto
apresenta ainda uma reflexão sobre a exploração e a honestidade no
espaço sertanejo.
Como fundamentação teórica para o desenvolvimento deste
trabalho, faremos uso das contribuições de estudos como A
quotidianidade do demônio na cultura popular, de Eduardo Diatahy B.
de Menezes (1985), O diabo no imaginário cristão, de Carlos Roberto
F. Nogueira (2000) e A literatura fantástica: caminhos teóricos, de
Ana Luiza Silva Camarani (2014).

O cordel Brosogó, Militão e o diabo conta a história de Chico


Brosogó, homem pobre do sertão, um miçangueiro (vendedor
ambulante) que é enganado por Militão, rico fazendeiro. O poema
inicia com a abordagem da temática da gratidão, muito cara aos
sertanejos, que é sinônimo de virtude e valor.
Em uma de suas viagens, Brosogó foi vender sua mercadoria na
casa do fazendeiro Militão. As personagens são apresentadas no
poema com suas principais características morais. Dessa forma, a
personagem Brosogó é construída como homem de valor, apesar da
pobreza e da ingenuidade, ao passo que Militão é apresentado como
rico trapaceiro e malvado. Patativa usa essa tensão entre dois

10
universos em choque, focalizando as dualidades do bem e do mal, do
pobre e do rico.
A narrativa continua na casa do fazendeiro que não compra
nada e acaba vendendo meia dúzia de ovos para Brosogó se
alimentar. Quando Brosogó foi pagar a despesa percebeu que não
tinha dinheiro trocado e Militão permitiu que ele lhe pagasse depois.
No decorrer do poema, o narrador vai deixando claro a intenção de
Militão em enganar o pobre miçangueiro.
O poema segue descrevendo a vida de Brosogó e da sua boa
sorte. Ele prosperava e realizava festejo religioso todos os anos em
comemoração ao seu matrimônio. A fé religiosa é apresentada a
partir da descrição dos diversos santos aos quais o vendedor acendia
velas em oferenda.
As oferendas são tantas que falta santo para homenagear.
Dessa forma, Brosogó resolve oferecer velas ao diabo. O próprio
diabo é construído no poema como capaz de receber homenagem,
pois nunca lhe fizera mal:
Disse consigo: o Diabo
merece vela também
se ele nunca me tentou
para ofender a ninguém
com certeza me respeita
está me fazendo o bem
(2001, p.263)
Assim Brosogó queima três velas e oferece ao diabo. Segundo
Carlos Roberto F. Nogueira:
Para o fiel da religião, os adoradores do
Demônio representam a total inversão dos
valores: praticam toda a sorte de costumes
imorais, aberrações, em suma, enfrentando os
mandamentos de Jesus, praticam os atos mais

11
imundos e contrários a toda a decência. (2002,
p.50)
No entanto, a representação do gesto do protagonista reflete
no cordel um contraponto, tendo em vista que a construção do
caráter da personagem é feita a partir da valorização da justiça, do
amor e da fraternidade, que são virtudes importantes para formação
dos sujeitos de moral elevada. Além disso, o que está em jogo, mais
do que a religiosidade, é a questão do caráter dos sujeitos, pois o
próprio diabo torna-se mais confiável do que o rico fazendeiro
desprovido de valores morais. Observa-se então que o poeta
apresenta uma crítica de forma irônica contra os homens de má fé.
O poema segue com a lembrança de Brosogó em relação à
dívida que ele tinha com Militão, pois um homem de virtude deve ser
um homem de palavra e por isso Brosogó resolve viajar para quitar o
débito com o fazendeiro:
Certo dia ele fazendo
severa reflexão
um exame rigoroso
sobre a sua obrigação
lhe veio na mente os ovos
que devia ao Militão
(2001, p.264)
Ao chegar à propriedade de Militão, Brosogó o trata com
cortesia e diz que foi até lá para pagar a dívida. Militão resolve
mostrar quem ele realmente é para Brosogó e o engana afirmando
que os ovos que o miçangueiro havia comido dariam bastante lucro,
pois deles nasceriam diversos pintos. A dívida calculada pelo
trapaceiro foi tão alta que obrigaria Brosogó a vender tudo o que
possuía e assim mesmo não quitaria a despesa e ainda o obrigava a
viver como escravo do fazendeiro.
O Militão muito sério

12
falou para Brosogó:
para pagar esta dívida
você vai ficar no pó,
mesmo que tenha recurso
fica pobre como Jó
Me preste bem atenção
e ouça bem as razões minhas:
aqueles ovos no choco
iam tirar seis pintinhas
mais tarde as mesmas seriam
meia dúzias de galinhas
(2001, p.264-265)
Depois que Militão expôs o que tinha que receber do
vendedor, sugeriu que ele procurasse um advogado para lhe
defender. Militão deu um prazo de quinze dias para que Brosogó se
apresentasse passando tudo o que possuía para ele.
No caminho para casa, Brosogó encontra um cavaleiro a quem
conta o seu problema, afirmando o prazo que tinha para se
apresentar a Militão e quitar a sua dívida. O cavaleiro oferece ajuda e
afirma que na data prevista estaria presente para defender o
vendedor.
Quando ia pensando assim
avistou um cavaleiro
bem montado e bem trajado
na sombra de um juazeiro
o qual com modos fraternos
perguntou ao miçangueiro:
Que grande tristeza é esta?
Que você tem Brosogó?
O seu semblante apresenta
aflição, pesar e dó,
eu estou ao seu dispor,
você não sofrerá só
(2001, p.268-269)

13
Na data prevista, Brosogó se apresenta na fazenda de Militão
de forma confiante, pois também tinha um advogado para lhe
representar na questão. O tempo vai passando, mas, apesar da
demora, o cavaleiro advogado aparece montado em um cavalo e logo
começa a narrar uma história sobre seu pai que só plantava feijão
cozido em seu roçado. O advogado do fazendeiro de pronto se
manifesta em desfavor do advogado que havia contado uma mentira,
pois feijão cozido não serviria para a plantação.
Estavam pilheriando
quando se ouviu um tropel
era um senhor elegante
montado no seu corcel
exibindo em um dos dedos
o anel de bacharel
Chegando disse aos ouvintes:
Fui no trato interrompido
para cozinhar feijão
porque muito tem chovido
e o meu pai em seu roçado
só planta feijão cozido
Antes que o desconhecido
com razão se desculpasse
gritou o outro advogado:
Não desonre a nossa classe
com essa grande mentira!
Feijão cozido não nasce
(2001, p.270-271)
O cavaleiro defensor responde para o advogado do fazendeiro
que a mentira contada por ele era para justificar a sua defesa, pois,
da mesma forma que o feijão cozido não mais nasceria, o ovo que
Brosogó havia comido cozido também não produziria nada. É assim
que o poema continua ressaltando a supremacia da verdade contra a
mentira.

14
Respondeu o cavaleiro:
esta mentira compus
para fazer a defesa
é ela um foco de luz
porque o ovo cozinhado
sabemos que não produz
(2001, p.271)
Por fim, foi paga a dívida referente apenas aos ovos
consumidos. O cavaleiro, que na verdade era o diabo disfarçado de
advogado, agradece a Brosogó pelas velas que ele havia lhe oferecido
um dia e some de forma repentina.
Brosogó agradecendo
o favor que recebia
respondeu o cavaleiro:
eu era quem lhe devia
o valor daquelas velas
que me ofereceu um dia
Eu sou o diabo a que todos
chamam de monstro ruim
e só você neste mundo
teve a bondade sem fim
de um dia queimar três velas
oferecidas a mim
Quando disse estas palavras
no mesmo instante saiu
adiante deu um pipoco
e pelo espaço sumiu
porém pipoco baixinho
que o Brosogó não ouviu
(2001, p.272)
O poema se encerra com a construção de uma moral, por meio
da qual o leitor é levado a refletir sobre os sujeitos que agem de má
fé, assim como a personagem Militão, que vive a enganar os homens
de boa fé com mentiras e trapaças.

15
Sertanejo, este folheto
eu quero lhe oferecer,
leia o mesmo com cuidado
e saiba compreender,
encerra muita mentira
mas tem muito o que aprender
Bom leitor, tenha cuidado,
vivem ainda entre nós
milhares de Militões
com o instinto feroz
com trapaças e mentiras
perseguindo os Brosogós
(2001, p.272-273)
Como é possível observar, o elemento fantástico se faz
presente na obra de Patativa do Assaré. Vale ressaltar que o cordel
“Brosogó, Militão e o diabo” já foi abordado nessa perspectiva ao ser
inserido por Pedro Salgueiro na coletânea Cravo roxo do diabo: o
conto fantástico no Ceará, em 2011.
O livro Introdução à Literatura Fantástica, de Todorov, aborda
as principais características desse gênero literário que trabalha
principalmente com a questão do sobrenatural. Todorov traça
algumas diferenças na construção de uma literatura insólita
dividindo-a em três principais gêneros que são o estranho, o
fantástico e o maravilhoso:
A comparação não é gratuita: o maravilhoso
corresponde a um fenômeno desconhecido,
jamais visto, por vir: logo, a um futuro; no
estranho, em compensação, o inexplicável é
reduzido a fatos conhecidos, a uma experiência
prévia, e daí ao passado. Quanto ao fantástico
mesmo, a hesitação que o caracteriza não pode,
evidentemente, situar-se senão no presente.
(1992, p.49)

16
Dentre as principais características que determinam cada
gênero está a sua relação com a hesitação. A hesitação pode se dá a
partir da personagem principal, que pode ou não ser o narrador,
como também pode está relacionada ao leitor da narrativa. Assim,
Todorov apresenta as principais estruturas que formam esse gênero
como também o faz através do que não representaria o fantástico.
Levando em consideração a importância do tempo, bem como
da narrativa, o fantástico, nessa perspectiva, se formaria a partir da
construção de um mundo real no qual em um determinado momento
o elemento sobrenatural surgiria, causando uma hesitação que
determinaria o curso da narrativa.
A poesia, para Todorov, é um gênero que não permitiria o
fantástico, pois falta nela duas condições importantes para existência
do gênero, pois “todo fantástico está ligado à ficção e ao sentido
literal” (1992, p.84), condições essas que a poesia não teria. Sobre
essa questão, Todorov afirma:
Vê-se agora por que a leitura poética constitui
um obstáculo para o fantástico. Se, lendo um
texto, recusamos qualquer representação e
consideramos cada frase como pura combinação
semântica, o fantástico não poderá aparecer;
este exige, recordarmos uma reação aos
acontecimentos tais quais se produzem no
mundo evocado. Por esta razão, o fantástico
não pode subsistir a não ser na ficção; a poesia
não pode ser fantástica (ainda que haja
antologias de “poesia fantástica”). Resumindo, o
fantástico implica ficção. (1992, p.68)
Por outro lado, Ana Maria Silva Camarani, no livro A Literatura
Fantástica: caminhos teóricos, ao abordar os estudos de Michel
Viegnes sobre o fantástico na poesia, apresenta algumas
características importantes no aumento das possibilidades de

17
construção do gênero fantástico, ampliando algumas estruturas
trabalhadas por Todorov.
Viegnes (2006) insiste no fato de que o discurso
poético não é isento de referencialidade,
contrariamente a certos dogmas estruturalistas.
A referência nunca é pura ilusão: o texto poético
se refere ao exterior do texto, mas de modo
diferente e em outro nível. Não é a pura
presença das coisas que ele busca reproduzir, é
o texto do mundo, compreendido como seu
sentido íntimo e sua capacidade de revelar.
(2014, p.145)
Desse modo, é possível verificar que, embora se trate de um
texto poético, o elemento fantástico se faz presente. Vale lembrar
que uma das principais características da poesia de cordel é
apresentar em sua estrutura uma narrativa. Trata-se, pois, de um
poema narrativo. No cordel estudado, podemos observar a narrativa
seguindo uma sequência lógica linear com começo, meio e fim.
No cordel de Patativa, o narrador da história, ao longo do
poema, vai apresentando as duas personagens de forma bastante
clara não deixando dúvidas ao leitor sobre as questões morais de
cada uma. No texto, o mundo construído representa um mundo real
com personagens que vivem em um tempo que segue uma ordem
lógica.
Os elementos sobrenaturais aparecem na narrativa,
primeiramente como elementos de um mundo superior, ou seja, só
fazem parte do mundo real pela fé que os une. Dessa forma, o poema
apresenta diversos santos que fazem parte de um imaginário cristão
bem definido.
O elemento de construção do real é reforçado pela descrição
desses santos bem como do próprio diabo e dos ritos praticados
principalmente por ações como as oferendas realizadas, como, por

18
exemplo, o ato de acender velas, que representa o pacto realizado
entre o adorado e o adorador.
Na narrativa, o elemento sobrenatural surge uma segunda vez
por meio do cavaleiro que procura ajudar Brosogó a resolver um
problema, porém ainda não há um momento de hesitação, pois ainda
não é revelada a sua identidade. Nogueira inclusive reforça tal ideia
ao explicar que “o maligno confunde-se em formas humanas e
animais porque é um ser sobrenatural” (2002, p.69).
A figura do cavaleiro e principalmente de um cavaleiro
advogado reforça a ideia de mundo real dentro da narrativa. A
terceira e última aparição do sobrenatural é construída ainda como
elemento representativo de um mundo real. O cavaleiro surge a
partir do trote do seu cavalo, ou seja, vem devagar como algo que
não surpreende nem as personagens e nem o leitor.
Resolvido o problema pela própria astúcia e inteligência
racional e não pelo poder divino, o diabo se revela então a Brosogó e
agradece pelo pacto estabelecido ao acender as velas em sua
intenção. Depois disso some repentinamente.
A revelação do diabo bem como a sua saída do plano real são
os elementos mais importantes para a configuração do mundo
fantástico na obra analisada. É o momento em que a barreira entre o
real e o sobrenatural se rompe. Sobre esse aspecto, Diatahy explica
que:
existe uma homologia entre o plano do
simbólico (as relações com o sobrenatural) e o
plano do real (as relações sociais concretas). É
nisso que reside a significação mais concreta
dessa vertente da literatura de cordel. Em
outras palavras, a ordem sobrenatural
quotidianizada pelo imaginário popular opera,
na verdade, uma subversão da desordem e da
injustiça social; e os conflitos reais são
mitologicamente transpostos para o plano da

19
luta entre Deus e o Diabo provindo daí a
identificação dos oprimidos com este último [...]
símbolo metafórico da liberdade e da rebeldia.
(1985, p.65)
Como se verifica ao longo da narrativa, a presença do diabo no
mundo real traz a própria hesitação cara a Todorov, principalmente
em relação ao leitor. Essa hesitação aumenta com a forma em que o
sobrenatural deixa o mundo real. Sendo assim, embora se trate de
um texto poético, é possível nele observar a presença do fantástico
na construção da narrativa.

O cordel “Brosogó, Militão e o diabo”, de Patativa do Assaré,


inserido na coletânea Cravo roxo do diabo: o conto fantástico no
Ceará, de Pedro Salgueiro em 2011, faz parte de um conjunto de
obras que apresentam o gênero fantástico. Apesar de estudiosos
como Todorov excluírem do gênero fantástico as obras de poesia, o
trabalho realizado procurou buscar subsídios teóricos que
justificassem a presença do fantástico no poema de Patativa do
Assaré.
O estudo de textos como o de Ana Luiza Silva Camarani traz
uma visão de pesquisadores como Michel Viegnes sobre o fantástico
e a poesia. Assim as possibilidades de análise sobre as obras poéticas
ganham um suporte teórico que nos permite avaliar essas obras com
mais profundidade.
A narrativa construída por Patativa do Assaré no cordel
estudado apresenta a inserção de elementos fantásticos, mais
precisamente da inserção do diabo em presença física no mundo
natural. O diabo na narrativa estudada apresenta um contraponto à
própria ideia que se construiu ao longo da história. O estudo da obra
O Diabo no imaginário cristão (2002), de Carlos Roberto F. Nogueira,

20
apresenta a historicidade das representações sobre o diabo
ressaltando, por exemplo, características inversas ao que fora
apresentado no cordel de Patativa.
Esse contraponto sobre a representação do diabo no poema de
Patativa apresenta uma crítica irônica sobre questões como a moral e
a honestidade. O diabo, figura associada à mentira, e apresentado no
cordel analisado como alguém de confiança, demonstra a
importância desses valores para o universo mental dos sertanejos,
bem como representa uma crítica às desigualdades sociais e morais
dos sujeitos.
A questão moral é o principal objetivo do poema. Ela aparece
desde os primeiros versos até os versos finais, o que é comum em
outros cordéis de Patativa. A construção poética apresenta a narrativa
como uma forma de ensinar a algumas pessoas, principalmente os
mais pobres e ingênuos, a não serem enganados pelos mais ricos e
desonestos.

ASSARÉ, Patativa do (2001). “Brosogó, Militão e o diabo”. In: CARVALHO,


Gilmar de (Org.). Antologia poética. Fortaleza: Demócrito Rocha.
______. (2003). Inspiração Nordestina: Cantos de Patativa. São Paulo: Hedra.
CAMARANI, Ana Luiza Silva (2014). A literatura fantástica: caminhos
teóricos. São Paulo: Cultura Acadêmica.
CARVALHO, Gilmar de. (Org.) (2006). Cordéis e Outros Poemas de Patativa do
Assaré. Fortaleza: UFC.
MENEZES, Eduardo Diatahy B. de (1985). “A quotidianidade do demônio na
cultura popular”. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro: Campus.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. (2002). O Diabo no imaginário cristão. 2.ed.
Bauru: EDUSC.

21
SALGUEIRO, Pedro (Org.) (2011). Cravo roxo do diabo: o conto fantástico no
Ceará. Fortaleza: Expressão Gráfica.
TODOROV, Tzvetan (1992). Introdução à literatura fantástica. São Paulo:
Editora Perspectiva.

22
Ana Paula Silva (UFU)
Em Comissão das Lágrimas, romance do português António
Lobo Antunes, publicado em 2011, tem-se uma narrativa dos traumas
da violência vivida em Luanda, capital de Angola, país africano que
fora colonizado por Portugal, no período que sucede a
independência. Nesse contexto de pós-colonização, a despeito de o
país tornar-se independente de Portugal, houve em Angola
perseguições políticas, medo, terror. A violência não se encerrou com
o fim da Guerra Colonial, mas permaneceu, com a disputa pelo poder
na ex-colônia.
No romance, o espaço de Luanda, em Angola, África, nesse
tempo da pós-colonização, é caracterizado, então, pela violência. E a
Comissão das Lágrimas, mote da narrativa, é a marca dessa violência.
Essa comissão teria sido instalada em Angola com o objetivo de
perseguir possíveis opositores ao partido que estava no poder, o
MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola. Segundo a
historiadora portuguesa, Dalila Mateus, devido às torturas que
receberam os presos, sem nenhum julgamento, a comissão ficou
conhecida como Comissão das Lágrimas (2012).
Há, no entanto, controvérsias a respeito da existência dessa
comissão. Pepetela, escritor africano citado como integrante da
Comissão das Lágrimas, nega sua existência: “Contam-se muitas
histórias e escreve-se muita coisa falsa sobre, para já não houve
nenhuma Comissão das Lágrimas que eu saiba.” (2012). Enquanto
fora da literatura apontam-se controvérsias sobre os fatos, e cada
autor procura dar uma explicação coerente, o romance apresenta não
a realidade dos fatos, mas cumpre a função ética de abrir a porta
para que os relatos, as angústias, as culpas e sentimentos numa

23
tessitura de vozes narrativas desordenadas e caóticas, transfigurando
a fragmentação própria da memória traumática.
Ressalta-se, nesse sentido, que se pretende estudar o romance
Comissão das lágrimas considerando-o de caráter testemunhal, o que
difere de considerá-lo estritamente como testemunho dos
acontecimentos ocorridos no período pós-guerra em Angola. Trata-se
aqui de um romance em que se encontra uma narrativa ficcional de
experiências-limite do ser humano, ou como melhor se adequa à
abordagem teórica utilizada neste trabalho, uma visão de
experiências-limite do ser-humano elaboradas pelo viés da estética e
da ética.
Este artigo tem por objetivo estudar os recursos de que
António Lobo Antunes se vale na narrativa dessa memória de
violência. Para estudar esses recursos abordaremos as teorizações de
Márcio Seligman-Silva e Beatriz Sarlo sobre memória do trauma e
testemunho e as considerações teórico-críticas de Ana Paula Arnaut e
Raquel Trentin sobre a obra antuaniana.
O gênero testemunho ganha repercussão depois de traumas
coletivos como a Shoá. O testemunho torna-se imperativo para
aqueles que passam por situações-limite e por isso traumáticas. Essas
experiências os aniquilaram enquanto sujeitos, pois a dignidade fora
perdida quando desconsideradas as necessidades básicas de vida de
um ser humano. Desse modo, testemunhar tal violência é uma
tentativa de superar o trauma, recuperar sua dignidade. Segundo
Seligman-Silva (2008), a narrativa da memória do trauma tem o
sentido de renascer, uma vez que proporciona a recuperação de uma
identidade outrora perdida. No entanto, o trauma impede os
sobreviventes de relatar os fatos vividos, uma vez que lembrar as
atrocidades seria doloroso demais.
Além disso, o relato das experiências vividas pelo sobrevivente
é, para o ouvinte, difícil assimilar. Daí a importância da elaboração
estética empreendida por aquele que se dispõe a testemunhar

24
experiências traumáticas. Assim, é por meio dessa elaboração que o
real se torna, por nós, assimilável, ainda que num mundo fictício, a
partir do qual se extrapola seus sentidos, dada a plurissignificação do
texto literário.
Seligman-Silva esclarece essa relação entre o real e a
potencialidade do testemunho, mostrando a impossibilidade de um
discurso puramente sério no que diz respeito à construção da
memória, uma vez que ela não implica a restituição do real passado
no presente. Segundo o autor:
Aprendemos ao longo do século XX que todo
produto da cultura pode ser lido no seu teor
testemunhal. Não se trata da velha concepção
realista e naturalista que via na cultura um
reflexo da realidade, mas antes de um
aprendizado – psicanalítico – da leitura de
traços do real no universo cultural. Já o discurso
dito sério é tragado e abalado na sua arrogância
quando posto diante da impossibilidade de se
estabelecer uma fronteira segura entre ele, a
imaginação e o discurso dito literário.
(SELIGMAN-SILVA, 2008, p.71)
O romance de caráter testemunhal, então, precisa de uma
linguagem para traduzir o indizível, pois trata-se de experiências até
então não assimiladas. Para Trentin:
Nesses testemunhos do chocante, a meu ver,
abre-se espaço para um imaginário insólito que
responde à tentativa de representar o
irrepresentável. Se o fantástico desestabiliza os
códigos que temos traçado para compreender e
representar o real ou desestabiliza esses limites
que nos dão segurança, questiona a validade
dos sistemas de percepção da realidade
comumente admitidos [...]. (2017, p.2)

25
Em Comissão das Lágrimas, uma mulher de quarenta e tantos
anos, não sendo citada sua idade exata, está internada numa clínica,
onde recebe remédios como tratamento psiquiátrico. É Cristina, que
viveu em Angola com os pais até os cinco anos de idade, quando vai
com eles para Lisboa. Ela ouve vozes que a atormentam desde a
infância, na África. Para os médicos e a família, são sintomas de
loucura. Segundo Cristina, são vozes ouvidas das folhas, além de
objetos:
Nada a não ser de tempos a tempos um arrepio
nas árvores e cada folha uma boca numa
linguagem sem relação com as outras, ao
princípio faziam cerimônia, hesitavam, pediam
desculpas, e a seguir palavras que se destinavam
a ela e de que se negava a entender o sentido,
há quantos anos me atormentam vocês, não
tenho satisfações a dar-vos, larguem-me, isto
em criança, em África, e depois em Lisboa, a
mãe chegava-se ao armário da cozinha onde
guardava os remédios
– São as vozes Cristina? (ANTUNES, 2011, p.11)
Também para o leitor o que as vozes dizem não constituem um
enredo totalizado. Ao leitor é dado o desafio de construir um
significado ao longo da narrativa, sem buscar respostas às perguntas,
nem uma verdade sobre os fatos narrados, mas tecendo as histórias,
as quais se proliferam ao longo do romance, tantas quantas sugerem
cada voz narrativa, não só aquelas ouvidas por Cristina como as
outras que são inseridas ao longo da história, como a do suposto pai
e a da mãe.
As vozes a que se refere Cristina vêm das folhas, as quais
impingem à personagem as memórias de Angola: “Nossa filha saiu de
Angola aos 5 anos, o que pode ela saber? Sabe o que as vozes e as
bocas das folhas lhe impingem [...]” (ANTUNES, 2011, p.116).

26
As folhas falam de ressentimentos, opiniões e avisos: “todas as
folhas falam e cada boca ressentimentos, opiniões, avisos”
(ANTUNES, 2011, p.36). Ligadas ao pai, que teria participado da
Comissão das Lágrimas, estão às avencas: “as avencas culpando-me”
(2011, p.117). Elas não o deixam, perseguem-no todo o tempo, mas
ele não as ouve, como Cristina ouve as folhas. As avencas, presentes
o tempo todo, como corporificação da culpa pelos presos torturados
na cadeia de São Paulo, não o deixam. Em outra página, a afirmação
de que Angola acabou, restando apenas o que encontramos na
narrativa:
Angola acabou, umas avencas quando muito,
um gramofone e sobramos nós, lembrando o
côncavo, deixado no granito, da pata de um
animal improvável, a minha mãe com seu
joelho, o meu pai com o seu xadrez e eu com as
vozes que me ditam isso em discursos
precipitados que a mão não acompanha e me
impedem de escutar o que se passa à volta, os
cargueiros do Tejo e as rodas dentadas dos
pombos no telhado, sem mencionar os passos
dos vizinhos que começam sem que eu espere e
se prolongam pela janela fora, se o meu pai me
consentisse abri-la provavelmente via-os sobre
as copas, designando-me com o queixo, porque
tanta atenção se não fiz parte da Comissão das
Lágrimas ou disparei sobre quem fugia de
Luanda, preocupem-se com o meu pai e a minha
mãe, com os dois ao mesmo tempo, tanto faz
mas não me liguem [...]. (ANTUNES, 2011, p.96)
Cristina afirma nessa citação o que resta de Angola: sua mãe
com o joelho debilitado e seu pai que passa os dias jogando xadrez.
Não há mais os angolanos, não há mais a memória deles, tampouco
do país. Há sim o trauma, que impede o pai de abrir as janelas. No

27
entanto, a despeito de não haver mais a memória do país, nem de
Angola e de todo o processo de descolonização estar no limbo do
esquecimento, existem as vozes. Com seus discursos precipitados,
elas escolhem Cristina para satisfazer sua ânsia de falar, testemunhar.
Não é a personagem Cristina quem fala, ela ouve essas vozes e outras
vozes dispersas e escreve um livro a partir do que elas dizem.
Desse modo, é constituída, por meio das vozes ouvidas por
Cristina, bem como de outras vozes, uma narrativa que traz à tona
traumas, como violência, perseguição política, preconceitos e
torturas, de Angola. As vozes são ouvidas apenas por essa mulher,
uma paciente esquizofrênica, tratada com medicamentos. São vozes
que vêm de folhas e objetos. Cristina também responde às vozes, por
não entender do que se trata o que dizem. São situações insólitas, e
por meio do insólito é que se rompeu o silêncio de Angola. Já em
1979, em seu segundo romance, Os cus de Judas, António Lobo
Antunes chama-nos a atenção para o silêncio de África:
Se a revolução acabou, percebe, e em certo
sentido acabou de fato, é porque os mortos de
África, de boca cheia de terra, não podem
protestar, e hora a hora a direita os vai matando
de novo, e nós, os sobreviventes, continuamos
tão duvidosos de estar vivos que temos receio
de, através da impossibilidade de um
movimento qualquer, nos apercebemos de que
não existe carne nos nossos gestos nem som nas
palavras que dizemos, nos apercebemos de que
estamos mortos como eles [...]. (ANTUNES,
2007, p.59)
Nesse segundo romance, um médico português que atuara na
Guerra Colonial narra suas memórias em África. Observa-se, nessa
citação, o trauma em que vivem os sobreviventes, não só os
africanos, mas os próprios portugueses, como o narrador, pois eles,

28
como os que morreram na guerra, também não têm voz, ou suas
palavras não têm som. Se em Os cus de Judas as palavras não têm
som, em Comissão das Lágrimas, as vozes da memória de Angola são
até mesmo instâncias narrativas, porém apenas a personagem
Cristina as ouve, para todos os outros, as vozes, assim como as
palavras naquele romance, não são ouvidas. Impera ainda o silêncio.
No romance de 2011, Cristina ouve as vozes e torna-se
mediadora delas, escrevendo o livro com o que elas ditam não por
acaso. Uma vez que se trata de uma experiência traumática, o
testemunho só é possível quando se consegue um estado de
suspensão da realidade que permita converter a experiência
traumática em vivência, ou, nas palavras de Beatriz Sarlo, “passar do
real para o relato” (2007, p.24). A personagem Cristina está num
estado de suspensão. Isso lhe é possibilitado pela loucura. Se a
violência é considerada irreal, porque absurda, é apenas num mundo
em suspensão que se torna possível testemunhá-la, pois “esta
‘irrealidade’ da cena encriptada desconstrói o próprio teor de
realidade do restante do mundo” (SELIGMAN-SILVA, 2008, p.69).
Assim, a loucura ou a escuridão da noite são recursos que viabilizam
os testemunhos a Cristina. O testemunho só é possível quando a
personagem se afasta da noção de realidade. Tanto que, quando
toma os remédios receitados pelo médico, as vozes, se não cessam
de todo, diminuem bastante: “aqui na Clínica silêncio, com as
injeções as coisas desinteressam-se de mim, uma frase, às vezes, mas
sem ameaças nem zangas, o nome apenas/ – Cristina” (ANTUNES,
2011, p.12).
Como vozes de/em sofrimento, elas não têm como se
constituir em relato. Por isso elas confiam suas palavras à mediação
de Cristina e esperam que ela abra o caminho simbólico para o relato,
ou seja, para o testemunho. É Cristina que tenta construir esse
passado: “e eu, baralhada com tantos dados, a procurar ordená-los”
(2011, p.318). Essa ordenação é a possibilidade de dar voz às vítimas

29
da violência, por isso ela escreve um livro: “se as vozes não voltam
não se escreve este livro e o que é este livro senão as pessoas
tentando abrir a porta [...]” (2011, p.52). É o compromisso ético de
denúncia na narrativa de caráter testemunhal, que só se tornou
possível no plano estético, dado que, nas palavras de António Lobo
Antunes em Os cus de Judas
porque os mortos de África, de boca cheia de
terra, não podem protestar, e hora a hora a
direita os vai matando de novo, e nós, os
sobreviventes, continuamos tão duvidosos de
estar vivos que temos receio de, através da
impossibilidade de um movimento qualquer,
nos apercebemos de que não existe carne nos
nossos gestos nem som nas palavras que
dizemos, nos apercebemos de que estamos
mortos como eles [...]. (ANTUNES, 2007, p.59)
E que recursos têm Cristina para ordenar esses dados? Cristina
narra não o que ela mesma se lembra de Angola, mas identifica-se
com as vozes e com os pais, como parte do grupo com o qual
compartilha a memória coletiva. Ouve as vozes, obedece-as e escreve
de acordo com o que elas ordenam. Apesar de se identificar com os
traumatizados, ela não assume o trauma, por isso foi escolhida como
porta-voz dos testemunhos. Nem as vozes, nem o pai ou a mãe são
capazes de narrar, apenas trazem ao livro fragmentos de memória.
Por isso, é a Cristina que cabe a escrita do livro. O estado de
suspensão da realidade lhe garante a capacidade de ouvir e relatar
em livro os testemunhos.
Ao projeto estético, portanto, associa-se o projeto ético. A
violência na pós-colonização em Angola é denunciada por meio da
personagem Cristina. Mais do que a denúncia, é imperativo dar voz
aos que sofreram. No romance, é feito o pedido: “ensinem-me o que
dizer para sair ao mesmo tempo de África e de Lisboa” (ANTUNES,

30
2011, p.176). Não há lugar que abrigue os retornados das colônias,
visto que eles não conseguem se livrar dos traumas. Lisboa, antes
espaço utópico – onde reencontrariam o aconchego da pátria, para a
mãe de Cristina, ou um refúgio para o pai – não reconhece os
retornados, os quais ficam à margem.
Ana Paula Arnaut atribui à personagem Cristina a função de
centralizar o processo de recuperação dos acontecimentos passados.
A pesquisadora reforça a escolha do verbo, refutando outros como
controlar ou liderar, porque atribui às vozes o controle da
rememoração, bem como da escrita do livro. Ainda segundo ela,
essas vozes seriam “metaficcionalmente manipuladas por uma
entidade extradiegética” (ARNAUT, 2013, p.239).
Nesse sentido, as vozes, esse recurso insólito se presta ao
romance não como meio de garantir a coerência aos relatos de
experiências traumáticas muitas vezes incompreensíveis ao longo da
narrativa, nem de tornar essas memórias ordenadas, completas,
como se preenchendo as lacunas. Ao contrário, o insólito em
Comissão das Lágrimas parece-nos um recurso estético para
transfigurar o aspecto incompreensível e incoerente da violência
entre seres humanos.
Segundo Arnaut, António Lobo Antunes busca “uma nova arte
romanesca, silenciosa e perfeita, ou perfeita porque silenciosa.”
(2013, p.239). A recordação que sobressai de Angola, para Cristina, é
o silêncio. Também as vozes que a procuram não são ouvidas por
outros. Parece mesmo haver silêncio, enquanto visualizamos os
fragmentos de memória que passam diante de nossos olhos. É como
se Cristina contemplasse o olhar daqueles que, com os olhos voltados
para o passado, rememoram a violência que sofreram em Angola.

31
ANTUNES, António Lobo (2007). Os cus de Judas. 2.ed. Rio de Janeiro:
Objetiva.
______. (2011). Comissão das lágrimas. Alfragide: Dom Quixote
ARNAUT, Ana Paula (2013). “Comissão das lágrimas de António Lobo
Antunes: quando o passado não é um país estrangeiro”. In: MELLO, Ana
Maria Lisboa de (Org.). Escritas do eu: Introspecção, memória, ficção. Rio de
Janeiro: 7Letras.
HALBWACHS, Maurice (2006). A memória coletiva. São Paulo: Centauro.
MATEUS, Dalila Cabrita (2012). Purga em Angola. Entrevista concedida a
João Carlos. Lisboa. Disponível em http://www.dw.com/pt/ainda-hoje-
tenho-pesadelos-com-este-horror-27-de-maio-de-1977-em-angola-
1%C2%AA-parte-da-entrevista-com-dalila-mateus/a-15924059 Acesso em
10.Jan.2016.
PEPETELA (2012). Purga em Angola. Entrevista concedida a João Carlos.
Lisboa. Disponível em http://www.dw.com/pt/não-houve-nenhuma-
comissão-das-lágrimas-em-angola-diz-pepetela/a-15949744 Acesso em
10.Jan.2016.
SARLO, Beatriz (2007). Tempo passado: cultura da memória e guinada
subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG.
SELIGMAN-SILVA, Márcio (2008). “Narrar o trauma: a questão dos
testemunhos de catástrofes históricas”. Psicologia. Clínica, 20(1), 65-82. Rio
de Janeiro: Departamento de Psicologia PUC-Rio
TRENTIN, Raquel (2017). “A face insólita da guerra”. In: GAMA-KHALIL,
Marisa Martins; SANTOS, Jamille (Orgs.). Nos labirintos do medo: teorias e
problematizações sobre o medo na literatura. Uberlândia: UFU/GPEA

32
Fabrício Basílio Pacheco da Silva (UFF)
O artigo em questão tem como objetivo analisar a protagonista
feminina no cinema fantástico brasileiro contemporâneo. Para isso,
partimos de dois longas-metragens nacionais, nos quais o
sobrenatural surge a partir da imposição de um espaço insólito.
Em Rio Cigano (2013), de Julia Zakia, acompanhamos a rotina
da criança cigana Reka. O início do filme, dedicado a errância dos
ciganos, é regado a músicas típicas e interações sobrenaturais com
lendas da natureza. Porém, logo os ciganos adentrarem uma estranha
fazenda, na qual se deparam com uma Condessa (assim denominada
nos créditos do filme) com poderes sobrenaturais. Os ciganos se
põem em fuga e acabam deixando Reka para trás, que descoberta
pela Condessa tem parte de seu tempo de vida roubado e, assim, já
adulta é trancafiada como serviçal no casarão, no qual a Condessa
usa de artimanhas fantásticas para conter o envelhecimento de seus
habitantes. Décadas se passam, Kaia, amiga de infância de Reka,
parte por uma jornada insólita até encontrar e libertar a amiga.
Histórias que só existem quando lembradas (2012) apresenta a
rotina do vilarejo de Jotoumba, perdido no interior do Brasil e
habitado apenas por um pequeno grupo de idosos. De início somos
apresentados e reapresentados às atividades da vila: o fazer do pão e
do café, a igreja; a limpeza da fachada do cemitério e o lampião que
ilumina os casarões antigos e escuros. Essa rotina é contestada com a
chegada da jovem fotógrafa Rita, que ao ir morar na casa da idosa

33
Madalena, passa a tecer no espectador a sensação de que todos do
vilarejo estejam mortos.
Inicialmente o artigo pretende estabelecer em que bases
ambos os filmes se inserem no cinema brasileiro contemporâneo e
para isso os associamos a um modo de produção independente
designado, ainda que de forma não homogênea, como “novíssimo”
cinema brasileiro e também a uma abordagem estética
cinematográfica denominada como Cinema de Fluxo.
Para tal fim, nos dedicamos a compreender, a partir do trânsito
das protagonistas, como os filmes se vinculam ao fantástico a partir
da erupção de um espaço insólito. Nesse ponto, no interessam os
estudos de Irlemar Chiampi (2008) sobre o realismo maravilhoso e as
ponderações de Marisa Gama- Kalil (2012) sobre a noção de espaço
insólito.
Em seguida, fechamos o artigo buscando refletir sobre o modo
distinto como as protagonistas dos filmes se relacionam com o
espaço insólito. Elencando como em Rio Cigano o sobrenatural
negativo aprisiona Reka em um casarão. Enquanto que, em Histórias
que só existem quando lembradas, o sobrenatural é negociado com
Rita a partir de uma ideia de condescendência com o espaço e com
os moradores locais.

Ambos os filmes podem ser vinculados a um modo de


produção no cinema independente brasileiro denominado como
“novíssimo”1 cinema brasileiro, um movimento que começa a tomar

1
Apoiado em Maria Carolina Vasconcelos Oliveira (2014), utilizaremos o termo
“novíssimo” entre aspas, já que não se trata de uma definição consensual entre os
autores do meio. Cezar Migliorin (2011), por exemplo, vai pensar esse movimento a
partir de um “cinema pós-industrial”, enquanto Marcelo Ikeda (2012) vai denominar
os filmes por meio da expressão “cinema de garagem”.

34
projeção no final da década passada e que se pauta por filmes de
baixo orçamento, realizados por jovens diretores, mas de grande
circulação em festivais nacionais e internacionais. Como nos aponta
Maria Carolina Vasconcelos Oliveira (2014) esse modo de produção
não surge por acaso, mas em oposição ao modelo imposto pelo
cinema da Retomada2, em um momento em que se consolidavam os
orçamentos cada vez mais altos nas produções cinematográficas.
Apontando que tanto o modelo independente quanto o
modelo da Retomada operam dentro de uma lógica capitalista, Cezar
Migliorin (2011) ressalta a singularidade e a diversidade da produção
desses coletivos, numa lógica de produção que denomina como de
um cinema pós-industrial. Ressaltando um modelo capaz de
sobreviver mesmo sem a ajuda do Estado, já que “o que ela produz e
consome ganha valor na circulação e acesso abundante em um
ambiente em que os meios técnicos, criativos e de acesso estão
disponíveis”3 (MIGLIORIN, 2011).
É essencial estabelecer que o “novíssimo” cinema brasileiro
não é pensado a partir de sua unidade estética ou temática, mas é
possível diferenciá-los, como aponta Oliveira, a partir de suas
dimensões sociais, que se configuram essencialmente pelos tipos de

2
A Retomada se configura no cinema brasileiro a partir dos 90. Com o fechamento
da EMBRAFILME no final dos anos 80, ou seja sem a ajuda de políticas estatais de
incentivo, o cinema nacional entre em um período de parca produção, que foi
retomada a partir de meados da década de 90 com um nova política de apoio ao
cinema empreendida pelo Estado. Ver: LAPERA, Pedro Vinícius Asterilo. Brasis
imaginados: a experiência do cinema brasileiro contemporâneo (1990-2007).
Dissertação de Mestrado pelo PPGCOM/UFF, 2007.
3
O que é potencializado pelo modo de produção coletiva e menos hierarquizada:
“Uma das maneiras de isolar a produção contemporânea é associar o pós-industrial
com o amador, sobretudo pela força que os coletivos vêm assumindo e, também,
pelas frequentes falas de cineastas e produtores que fazem questão de frisar os laços
afetivos que atravessam as obras e equipes. Pós-industrial não é nem amador nem
um passo para a industrialização; é o cinema brasileiro contemporâneo que
incorpora um tipo de trabalho diferente daquele da indústria”. (MIGLIORIM, 2011)

35
inserção no campo e pelas práticas e representações mobilizadas
pelos jovens realizadores:
esses novos realizadores têm em comum sua
faixa etária (eles têm hoje, em sua maioria,
entre 30 e 40 anos), uma inserção no campo do
cinema que se dá num mesmo momento
histórico (o que configura dificuldades e
possibilidades específicas de atuação), o fato de
estarem sediados principalmente em capitais (e,
notadamente, em capitais que não se
restringem a São Paulo e Rio de Janeiro, pólos
mais tradicionais da produção cinematográfica),
a passagem pela universidade, e, por fim, o fato
de compartilharem as novas possibilidades de
produção e circulação de conteúdos
audiovisuais trazidas pelos avanços tecnológicos
(principalmente pelas novas ferramentas de
gravação e edição e pela disseminação da
internet). Por conta dessas características,
definimos o "novíssimo" cinema como uma
geração, não no sentido estético, mas no
sentido sociológico do termo. (2014, p.14)
O que esteticamente reverbera numa pluralidade de formas de
lidar com a matéria audiovisual e, não sem razão, esses cineastas são,
via de regra, reconhecidos por seus traços autorais. Nesse meio plural
podemos apontar os filmes de Julia Zakia e Júlia Murat, como
assimiladores (ainda que em diferentes gradações) da estética do
Cinema de fluxo. Como nos aponta Luiz Carlos Oliveira Jr., o cinema
de fluxo não se articula como um movimento cinematográfico, mas
sim como uma espécie de “comportamento do olhar” (OLIVEIRA,
2013), que começa a tomar forma no final da década de 90 em filmes
como: Sombra, de Philippe Grandrieux; Gerry (2002), de Gus Van
Sant; Eternamente Sua (2002), Apichatpong Weerasethakul etc.

36
Filmes pautados pela presença de longos planos-sequências, que
pontuam uma mise en scène de acontecimentos diminutos.
Nesses filmes e em todos outros que se associam ao cinema de
fluxo observa-se uma desconfiança diante do real, o que se dá por
meio da ressignificação do plano, que contrariamente ao cinema
clássico narrativo – no qual sua duração é regida por uma relação de
causa e efeito − é pautado pela criação de uma atmosfera de
sensações, capaz de acomodar uma narrativa rarefeita, na qual a
noção de tempo e espaço é ressignificada a partir da dilatação do
plano, que não opera necessariamente como um articulador de
significados narrativos. Como revela Oliveira Jr: “O plano muda de
estatuto, já não é mais ‘a parte de um todo’, ou ‘a menor unidade de
significação no cinema’, mas antes um recorte ‘aleatório’ do fluxo
irrefreável das aparências que constituem o real (ou sua ilusão)”
(2013, p.151).
É interessante notar como a ideia de realismo pretendida pelo
cinema de fluxo vai colocar o real sob suspeita, e não sem razão a
palavra ambiguidade é vista no discurso de Oliveira Jr. que vai
ponderar a necessidade de se “respeitar a ambiguidade do real,
explorar o acidental e o assignificante, não impor ao mundo um
sentido” (2013, p.136). Na mesma linha, Emiliano Cunha aponta
como nesse cinema “os planos captam sugestões, idiossincrasias: a
ambiguidade do real e o devir como mistério” (2014, p.45). E Erly
Vieira Jr., indica a adoção de “um certo tom de ambiguidade visual e
textual” (2013, p.490).
Diante disso, a ideia de narração é triturada e pulverizada para
que o cotidiano surja num ritmo natural, no qual ações e diálogos
não motivam necessariamente o encadeamento de uma trama.
Chega-se em um cinema de atmosfera, no qual os traços psicológicos
das personagens dão lugar ao silêncio, o clímax é comutado pela falta
de objetivos claros e os processos racionais são trocados pela guia
das sensações. Trata-se da criação de um ambiente sinestésico por

37
excelência, no qual se busca apreender a atmosfera do real na sua
forma crua, livre de maiores intervenções. E como sugere Oliveira Jr.
longe de fornecer hipóteses precisas e racionais de significado:
O meio essencialmente psicológico do cinema
narrativo é trocado por uma zona sub ou quiçá
supralógica. O filme até oferece possiblidades
de significação e permite interpretações
nuançadas de seu conteúdo, mas sua eficácia
maior consiste em agitar a consciência do
espectador com infinitas hipóteses não
conclusivas. (2013, p.167)

A ligação temática com os filmes com o insólito surge por meio


do realismo maravilhoso e narrativamente em Histórias que só
existem quando lembradas borbulham referências a Pedro Páramo,
de Juan Rulfo, por meio de uma vila habitada unicamente por idosos
e que parece ter parado no tempo, enquanto que em Rio Cigano
surgem referências em demasia à Cem Anos de Solidão, de Gabriel
García Márquez, como a gigantesca pedra de gelo que atravessa a
estrada em uma carroça.
Irlemar Chiampi, ao definir o realismo maravilhoso a partir da
literatura latino-americana no século XX, reafirma a necessidade da
ambiguidade na narrativa fantástica, ao mesmo tempo em que revela
a fragilidade desse preceito. Segundo a autora:
Ao contrário da poética da incerteza, calculada
para obter o estranhamento do leitor, o
realismo maravilhoso desaloja qualquer efeito
emotivo de calafrio, medo ou terror sobre o
evento insólito. No seu lugar, coloca o
encantamento como um efeito discursivo

38
pertinente à interpretação não-antitética dos
componentes diegéticos. (CHIAMPI, 2008, p.59)
Para Chiampi, no real maravilhoso o desconhecido (irracional)
deixa de oscilar entre duas projeções possíveis (racional ou
sobrenatural), como ocorre no fantástico, para se incorporar ao
cotidiano. Assim, segundo a autora o real maravilhoso “tem
causalidade no próprio âmbito da diégese e não apela, portanto, à
atividade de deciframento do leitor” (2008, p.61). Dessa forma, o
sistema de casualidade do realismo maravilhoso “é ditado pela
descontinuidade entre causa e efeito” (2008, p.61). Como afirma
Chiampi: “no realismo maravilhoso o tético e o não tético combinam-
se harmonicamente, sem antagonizar as duas lógicas” (2008, p.61).
Ou seja, o efeito de medo oriundo da narrativa fantástica é
trocado no realismo maravilhoso pelo maravilhamento diante das
situações apresentadas.
O real ambíguo proposto pelo cinema de fluxo somado ao
sobrenatural e iguala real e sobrenatural inserem nossas
protagonistas em trânsito em um entre-lugar. Já que, em ambos os
filmes o surgir de um espaço insólito se contrapõe a duas
protagonistas que se somam a outras, do cinema brasileiro
contemporâneo, diagnosticadas por rumarem sem um objetivo claro,
como ocorre, por exemplo, em: A Fuga da Mulher Gorila (2009) e
Estrada para Ythaca (2010). Rio Cigano e Histórias que só existem
quando lembradas apresentam a opção por locações afastadas,
campestres e que contam com um parco número de habitantes.
Nesse meio, Reka e Rita surgem como protagonistas indecifráveis,
sem motivações claras e propensas a terem seus corpos guiados pelo
espaço sobrenatural.
Para pensar os filmes como emanações de espaços insólitos,
nos baseamos no artigo “As teorias do fantástico e a sua relação com
as construções do espaço ficcional”, de Marisa Gama-Khalil (2012).
Tecendo uma revisão teórica em torno dos estudos do espaço na

39
literatura insólita, Gama-Khalil aponta para insuficiência das teorias
da literatura tradicional “para uma análise que dê conta da hibridez,
dispersão e pluralidade do espaço insólito” (2012, p.35). Nesse
entrave a autora traz à tona os estudos de Michel Foucault sobre os
espaços heterotópicos e os pensamentos de Gilles Deleuze e Félix
Guattari acerca das definições de espaço liso e estriado.
Como revela Foucault, as heterotopias se definem por: “uma
espécie de descrição sistemática que teria por objeto, em uma dada
sociedade, o estudo, a análise, a descrição, a ‘leitura’, como se gosta
de dizer hoje em dia, desses espaços diferentes, desses outros
lugares, uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real
do espaço em que vivemos” (2009, p.416). São para Foucault
“espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles
sejam efetivamente localizáveis” (2009, p.415).
Somamos ao preceito de Foucault os pensamentos de Gilles
Deleuze e Félix Guattari acerca das definições de espaço liso e
estriado. Para os autores o espaço liso se compõe como nômade e
direcional, “estabelecendo-se como uma superfície que pode
alastrar-se em variadas e alteradas direções” (Apud GAMA-KHALIL,
2012, p.36). Assim, os elementos que formam esse espaço liso são
inseparáveis entre si, mas ao mesmo tempo heterogêneos, o que
aproxima essa definição às heterotopias. Em contraposição, o espaço
estriado parte das sedimentações, por isso se configura como
organizado, linear. É nesse espaço que se dá a organização geográfica
entre linha e plano, logo é o espaço da normatização da vida e da
distribuição de lugares e funções para os sujeitos nele inseridos.
Ou seja, a noção de espaço liso como as heterotopias tratam
de um lugar que se opõe a noção de território promulgada por uma
“cidade letrada” (RAMA, 2015), como ocorre em Rio Cigano e
Histórias que só existem quando lembradas, nos deparamos com
espaços campestres, pouco povoados e de difícil delimitação espaço-
temporal. São lugares fora do mapa identificados no curso do tempo

40
apenas por objetivos tecnológicos e guardam na improbidade da
natureza a chave para um sobrenatural que fissura o real.
Nesse âmbito, Rio Cigano é todo construído em montagem
paralela, de um lado temos o grupo de ciganos em sua eterna
errância pelo interior do Brasil, do outro o estático de um casarão
antigo e vazio, no qual habita uma Condessa com poderes
sobrenaturais, que lhe permitem driblar o seu envelhecimento. Essa
repartição espaço-temporal não se propõe ao acaso e surge com
intuito de estabelecer dois tipos de insólito no filme: um de valor
positivo e um de valor negativo.
O sobrenatural de valor positivo está associado à ligação dos
ciganos com o natural e mais estritamente com as lobas. Aqui surge
uma profecia, na qual após a chuva se uma pessoa beber água
deixada pela pegada de uma loba será capaz de ver e enxergar
melhor, enquanto que uma loba ao beber a água da chuva represada
em um pote se transforma em humana. A primeira parte da profecia
se realiza rapidamente, Reka e sua amiga Kaia bebem da água
deixada na pata da loba e são instantaneamente capazes de ouvir e
enxergar melhor que um humano. Ou seja, o sobrenatural de valor
positivo possui o valor da troca de qualidades, de uma metamorfose
que não danifica nem o animal nem o humano, mas potencializa
algumas de suas qualidades.
Por outro lado, temos o espaço do casarão que, demarcado por
uma trilha sonora de suspense, se constitui como um espaço de
terror, que se impõe como obstáculo. Deixada nos arredores do
casarão Reka tem sua juventude sugada pela Condessa e agora adulta
e indefesa é incorporada a lógica do casarão. A montagem paralela
nos mostra que décadas se passaram. O protagonismo aqui muda de
figura, Reka se torna uma personagem sem objetivos, sua passividade
e seu laconismo reforçam outras duas personagens como agentes do
filme.

41
De um lado a Condessa que faz de tudo para não envelhecer
(desde beber sangue até congelar a casa). A personagem produz um
sobrenatural de valor negativo pautado pelo parasitismo, da
usurpação da integridade das outras personagens, o que a demarca
como uma vilã estereotipada como a rainha de Branca de Neve, que
tem perpétuo medo de não ser a mais bela. Do outro Kaia que, já
adulta, viaja sem rumo em busca da amiga de infância. Zakia exprime
esteticamente a viagem de Kaia na busca de um espaço insólito a
partir de experimentações estéticas, variações na escala dos planos e
na granulação da imagem, o que potencializa o caminho de Kaia
como uma jornada por/para espaços insólitos.
Em Histórias que só existem quando lembradas não existe a
demarcação de um monstro e nem uma contraposição evidente entre
o sobrenatural de valor negativo e positivo como em Rio Cigano.
Como a lamparina incapaz de iluminar o quadro por completo, o
sobrenatural no filme surge a partir do subtexto, de uma segunda
camada, presente em pistas deixadas por diálogos inconclusos e pelas
marcas temporais e físicas deixadas com certa opacidade pela direção
de arte.
A partir da relação com Pedro Páramo − no qual a personagem
Juan Preciado viaja até a vila fantasma de Comala em busca do pai – é
possível ler o filme pelo viés do fantástico: “A cidade (fantasma) seria
um espaço onde seus ex-habitantes optaram por seguir ‘vivendo’
após já terem desfalecido. Rita, por esta perspectiva, também seria
uma alma recente vagando em busca de seu (novo) lugar de
pertencimento” (CUNHA, 2014, p.126).
São diversas as pistas que reforçam essa ideia: o segredo do
cemitério fechado mantido pelas trocas de olhares entre as
personagens; as frases jogadas ao vento, “aqui a gente esquece de
morrer” (HISTÓRIAS, 2011) ou “então morre, você pode vir quando
quiser”; (2011) as datas de falecimento dos habitantes preenchidas
na igreja apenas até o ano de 1976 e as fotografias, que, de forma

42
induzida ou não, imprimem na tela habitantes transparentes, quase
que fundidos as paredes com rachadura, como se ambos fossem
inseparáveis.
A Jotoumba de Julia Murat é construída a partir de dias
espalhados, de uma rotina perpétua: a preparação do pão; a
discussão na hora do café; a igreja e a limpeza da fachada do
cemitério; o almoço em conjunto; o jogo de bocha antes do anoitecer
e a carta escrita à luz de velas. E essa rotina que Rita ao mesmo
tempo quebra e reforça sua presença nos espaços já antes revelados,
atenta aos detalhes, em enquadramentos fechados até então
escassos no filme. Rita traz novos pontos de vista para as mesmas
ações, que agora possuem uma personagem externa capaz de
questioná-la ou alterá-la.
Dessa premissa o filme se põe como confronto: memória e
tradição em oposição ao presente e a modernidade. Além de sua
paixão pela fotografia, pouco saberemos sobre o passado de Rita,
que chega a cidade seguindo o trilho de trem abandonado. Porém,
sua presença estabelece diferentes níveis de apreensões temporais.
Primeiro, são seus objetos, máquina fotográfica digital, aparelho de
MP3 e fone de ouvido, que fornecem ao espectador um lastro de
comprovação do contemporâneo no filme. Segundo, é a presença de
Rita, com suas perguntas e fotografias, que mobiliza nos
protagonistas idosos a necessidade relembrar seus passados, de
expor pela voz uma história de vida pautada pelo falecimento dos
familiares. Rita entra na casa de Madalena sem consentimento, é
acima de tudo uma invasora, mas no final a idosa deixa para a jovem
o ensinamento do pão, que é cobrado logo após o enterro de
Madalena.
Em ambos os filmes o trânsito das protagonistas é barrado pela
incidência de um espaço insólito. Porém, ao contrário de Rio Cigano,
no qual o espaço se coloca como prisão, em Jotoumba, ficar ou não é

43
uma opção de Rita, que o silêncio deixado ao final do filme nunca
será capaz de responder.

CHIAMPI, Irlemar (2008). O Realismo Maravilhoso. São Paulo: Perspectiva.


CUNHA, Emiliano Fischer (2014). Cinema de Fluxo no Brasil: filmes que
pensam o sensível. Dissertação de Mestrado – Instituto de Comunicação
Social, PUCRS. Rio Grande do Sul
DELEUZE, GILLES; GUATTARI, Félix (1997). “1440 – O Liso e o Estriado”. In:
______.; ______. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora
34. p.157-189.
FOUCAULT, Michel (2009). “Outros Espaços”. In: MOTTA, Manoel Barros da.
(Org.). Estética: Literatura e pintura, música e cinema: Michel Foucalt. 2.ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária. p.411-422.
GAMA-KHALIL, Marisa Martins (2012). “As teorias do fantástico e a sua
relação com a construção do espaço ficcional”. In: GARCÍA, Flavio; BATALHA,
Maria Cristina. Vertentes teóricas e ficcionais do Insólito. Rio de Janeiro:
Editora Caetés. p.30-38.
HISTÓRIAS que só existem quando lembradas (2011). Direção: Júlia Murat.
Produção: Júlia Murat, Lúcia Murat, Julia Solomonoff, Juliette Lepoutre,
Marie-Pierre Macia, Felicitas Raffo e Christian Boudier. Universal Pictures,
(98min).
MIGLIORIN, Cezar (2011). “Por um cinema pós-industrial. Notas para um
debate”. Revista Cinética: cinema e crítica. Disponível em
http://www.revistacinetica.com.br/cinemaposindustrial.htm Acesso em
03.Mar.2017
OLIVEIRA, Maria Carolina (2014). “Novíssimo” cinema brasileiro: práticas,
representações e circuitos de independência. Tese de Doutorado – Instituto
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. São Paulo.

44
OLIVEIRA JR., Luiz Carlos (2013). A mise en scène no cinema. Campinas:
Papirus Editora.
RAMA, Angel (2015). A cidade das letras. São Paulo: Boitempo.
RIO Cigano (2013). Direção: Julia Zakia. Produção: Patrick Leblanc.
Superfilmes; Gato do Parque, (81min).
VIEIRA JÚNIOR, Erly Milton (2013). “Paisagens sonoras e realismo sensório
no cinema mundial contemporâneo”. Contemporânea Revista de
Comunicação e Cultura. 11(03), 489-503.

45
Fernanda Maria Diniz da Silva (UFC)

Murilo Eugênio Rubião nasceu em Minas Gerais, no ano de


1916 e faleceu em 1991. O ficcionista e jornalista é considerado um
dos precursores do realismo fantástico na literatura brasileira. “O ex-
mágico da taberna Minhota” (1947), primeiro conto publicado por
Murilo Rubião, é obra de grande importância para a literatura
fantástica.
A história apresenta um mágico que está desiludido com o
mundo e consigo mesmo. Espantosamente ele consegue facilmente
tirar animais de seus bolsos e reconstituir as próprias mãos depois de
cortá-las. Todos os seus feitos causam espanto ao leitor e às demais
personagens, mas em nada lhe surpreende. Na verdade, o
protagonista se sente mesmo é entediado com sua profissão. Tenta
se suicidar várias vezes, mas em nenhuma tentativa obtém êxito.
Depois de algum tempo, passa a trabalhar como funcionário
público, o que para ele significa morrer lentamente. Por fim, ele não
morre, mas perde todos os seus poderes diante da burocracia do
serviço público.
É importante ressaltar que na representação do protagonista
são verificados aspectos ideológicos e sociais que desencadeiam, a
partir da vertente do insólito, uma reflexão sobre o homem e a
sociedade contemporânea. Para o desenvolvimento deste artigo,
faremos uso das contribuições de estudiosos como Todorov (2008),
Calvino (2004) e Sartre (1997).

46
Um recurso bastante comum na obra de Murilo Rubião é a
utilização de epígrafes. Isso não significa que os contos tenham
conteúdo cristão, tendo em vista que são usadas para sugerir, de
maneira simbólica, a temática trabalhada no texto.
“O ex-mágico da taberna Minhota” tem como epígrafe a
seguinte passagem retirada da Bíblia: “Inclina, Senhor, o teu ouvido, e
ouve-me, porque eu sou desvalido e pobre” (Salmos, LXXXV, 1). O
trecho destacado relaciona-se bem à apresentação da personagem,
cuja vida é repleta de angústia e infortúnio, conforme se nota no
trecho a seguir: “Hoje sou funcionário público e este não é o meu
desconsolo maior” (RUBIÃO, 2004, p.7) e mais adiante: “Fui atirado à
vida sem pais, infância ou juventude” (2004, p.7).
No quarto parágrafo do conto, o insólito se revela: “Um dia dei
com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da taberna
Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi
ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me
perguntou como podia ter feito aquilo” (RUBIÃO, 2004, p.7). Como se
nota, a personagem tira do seu bolso o dono do restaurante de forma
inexplicável. Ao longo da narrativa, a personagem retira de seu bolso
animais e os mais inusitados objetos repetidas vezes. Como se
observa, o autor, já no início da narrativa, introduz o sobrenatural no
cotidiano, quebrando com a lógica do real e proporcionando o
surgimento de um mundo de seres com poderes especiais dentro do
mundo do leitor. De acordo com Filipe Furtado:
Tal como o gênero maravilhoso, o fantástico
propõe ao destinatário da enunciação um
universo em que algumas categorias do real
foram abolidas ou alteradas, passando a
funcionar de uma forma insólita, aberrante,
inimaginável. Tal como o maravilhoso, o

47
fantástico não permite que uma explicação
racional venha repor a lógica nesse mundo
aparentemente outro e reinstale, por completo,
o leitor no real. (1989, p.44)
É interessante observar que o leitor, assim como as demais
personagens da narrativa, se surpreende com as ações do
protagonista. No entanto, a personagem principal não se espanta
com nada e continua apática diante da situação. Como todos
acreditavam que ele fazia truques mágicos, o homem logo acaba por
exercer a função de mágico profissionalmente e alcança sucesso: “Os
aplausos estrugiam de todos os lados, sob o meu olhar distante”
(RUBIÃO, 2004, p.10). No entanto, não é ele que controla as mágicas,
mas elas que o controla. Tal fato é o que fortalece a presença do
insólito na obra.
Sendo assim, a personagem não tem nenhum domínio sobre
suas ações, o que lhe causa grande desespero: “Nada fazia. Olhava
para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não
poderia vir de parte alguma” (RUBIÃO, 2004, p.13). Vale ressaltar que
essa passagem se liga diretamente à epígrafe bíblica devido à
conotação de apelo por socorro em meio a uma situação
embaraçosa. É assim que o fantástico se constrói na narrativa de
Rubião, pois, embora partam de um mundo real, os fatos da narrativa
não podem ser explicados pelas leis naturais.
Sobre o fantástico, Todorov explica:
Somos assim transportados ao âmago do
fantástico. Num mundo que é exatamente o
nosso, aquele que conhecemos, sem diabos,
sílfides, nem vampiros, produz-se um
acontecimento que não pode ser pelas leis
deste mesmo mundo familiar. Aquele que o
percebe deve optar por uma das duas soluções
possíveis: ou se trata de uma ilusão dos
sentidos, de um produto da imaginação, e nesse

48
caso as leis do mundo continuam a ser o que
são, ou então o acontecimento realmente, é
parte integrante da realidade, mas nesse caso a
realidade é regida por leis que desconhecidas
por nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser
imaginário, ou então existe realmente,
exatamente como os outros seres vivos, com a
ressalva de que raramente o encontramos. O
fantástico ocorre nessa incerteza: ao escolher
uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico
para se entrar em um gênero vizinho: o
estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a
hesitação experimentada por um ser que só
conhece as leis naturais, face a um
acontecimento aparentemente sobrenatural.
(1992, p.31)
É, pois, no âmbito da vacilação que se insere o leitor de Rubião
que a todo instante se surpreende com os feitos exagerados da
personagem. Aliás, conforme Todorov, o exagero é também um
recurso que eleva ao sobrenatural (1992, p.86).
Envolto a uma conjuntura completamente desesperadora, a
personagem chega à conclusão que somente a morte resolveria o seu
problema. Então tira dos bolsos uma dúzia de leões e espera ser por
eles devorado. Não obstante, o que acontece é justamente o
contrário. O homem, tomado pela ira ocasionada pelo fato dos leões
não os terem atacado, acaba por devorá-los. Verifica-se aqui o
processo de metamorfose. O protagonista passa por um processo de
zoomofização, adquirindo um comportamento irracional, animalesco.
Os leões, por sua vez, sofrem o processo de personificação,
adquirindo sentimentos humanos semelhantes ao da personagem
principal: “− Esse mundo é tremendamente tedioso – concluíram”
(RUBIÃO, 2004, p.21). Depois o homem tenta se matar mais uma vez
se jogando do alto de uma serra, mas surpreendentemente é

49
amparado por um paraquedas. Posteriormente, arrisca novamente
dar cabo a sua vida com um tiro no ouvido, mas a arma se transforma
em lápis e o máximo que consegue é rolar até o chão e soluçar.
Então, já bastante desolado por não conseguir morrer, lembra
que certa vez “ouvira de um homem triste que ser funcionário
público era suicidar-se aos poucos” (RUBIÃO, 2004, p.23). A partir daí
consegue se empregar na Secretaria do Estado onde tem seus
poderes cessados, o que lhe deixa muito decepcionado. Assim, com
humor e ironia o autor consegue tecer sua crítica acerca do serviço
público. Segundo Khedé “A maioria dos teóricos do humor sabe que
todo humorista é no fundo um moralista. Porque a crítica e a sátira
social incidem sobre situações – quer do ponto de vista moral, ético,
religioso ou social – com o intuito de modificá-las” (1986, p.48).
Na literatura, é comum a crítica à burocracia do serviço público
e aos seus funcionários. É o que vê, por exemplo, no romance Vida e
Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de Lima Barreto. Na obra, Augusto
Machado descreve o Barão de Inhangá da seguinte forma:
Homem inteligente, mas vadio, nunca
entendera daquilo nem de coisa alguma. Entrara
como chefe de Seção e durante as horas de
expediente o seu máximo trabalho era abrir e
fechar a gaveta da sua secretária. Foi feito
diretor e, logo que se repimpou no cargo, tratou
de arranjar outra atividade. Em falta de
qualquer mais útil aos interesses da pátria, o
barão fazia a toda hora e a todo o instante a
ponta no lápis. Era um gasto de lápis que nunca
mais se acabava; mas o Brasil é rico e aprecia o
serviço de seus filhos. (1961, p.45)
Além da vertente crítica tão presente na literatura de Rubião,
vale salientar que por trás do processo de construção das figurações
do insólito na obra, observa-se a presença de uma forte reflexão de

50
caráter existencialista. Logo no começo da narrativa, a personagem se
mostra angustiada por nunca ter tido infância nem juventude. Além
disso, vive completamente desajustado enquanto ser. É o que pode
ser constatado na passagem: “O que poderia responder, nessa
situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação para
sua presença no mundo?” (RUBIÃO, 2004, p.7). Esse sentimento de
desconcerto em relação ao mundo e à vida é reforçado
principalmente pela presença de poderes descontrolados e depois
pela falta deles.
O existencialismo de Sartre propõe que o homem não é um
“ser em-si”, somente as coisas são em-si. O homem é um “ser para-
si”, pois tem consciência de si mesmo. Ademais, o homem é um ser
da liberdade, da escolha. Contudo, sabe-se que o homem moderno
comumente parece não escolher de fato a vida que quer ter. É o que
acontece com o protagonista, pois a ausência de autoridade sobre
seus poderes o deixava extremamente atormentado.
Ainda segundo o filósofo francês, “É na angústia que o homem
toma consciência de sua liberdade […] na angústia que a liberdade
está em seu ser colocando-se a si mesmo em questão” (1997, p.72).
Desse modo, podemos verificar que a personagem de Murilo
Rubião vivia uma profunda angústia por não ter a liberdade que
gostaria de ter para escolher o seu próprio caminho. Tal angústia o
arrastou para diversas tentativas de suicídio, embora sem sucesso:
“Eu que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-
me da existência” (RUBIÃO, 2004, p.22).
Sobre o fenômeno suicídio, Sartre explica que “Se nada me
impede de salvar a minha vida, nada me impedirá de precipitar-me
para o abismo” (1997, p.76). Mais adiante o estudioso ressalta que “o
suicídio fará cessar a angústia” (1997, p.76).
Dessa maneira, o suicídio representa uma situação em que o
indivíduo imerso em determinado contexto existencial não encontra
razão para ser. No conto, a dificuldade de interagir com o outro e o

51
seu isolamento social também fortaleceram o sentimento de angústia
do homem, conforme é visto no trecho seguinte:
Por que me emocionar, se não me causavam
pena aqueles rostos inocentes, destinados a
passar pelos sofrimentos que acompanham o
amadurecimento do homem? Muito menos me
ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei
e não tive: um nascimento e um passado
(RUBIÃO, 2004, p.10)
Observemos que o insólito também se faz presente no
momento em que a personagem se percebe como alguém sem
passado, sem memória. Ao longo da narrativa, não é feita nenhuma
referência à família ou amigos do passado. É como se ele sempre
tivesse vivido isolado. Segundo Maurice Halbwachs, o sujeito é um
instrumento das memórias do grupo, mesmo quando lembra
individualmente. Segundo o estudioso francês
Nossas lembranças permanecem coletivas e nos
são lembradas por outros, ainda que se trate de
eventos em que somente nós estivemos
envolvidos e objetos que somente nós vimos.
Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é
preciso que outros estejam presentes,
materialmente distintos de nós, porque sempre
levamos conosco certa quantidade de pessoas
que não se confundem. (2006, p.30)
Desse modo, o indivíduo totalmente isolado não seria capaz de
construir qualquer forma de experiência, não sendo inclusive capaz
de manter qualquer tipo de registro do passado. Contudo, jamais
estamos sós, uma vez que sempre estaremos de alguma maneira,
inseridos em um mundo repleto de símbolos que são construídos
socialmente. No caso do ex-mágico é apresentada uma situação
improvável de existir, pois ele não tem lembranças do passado e nem

52
parece ter estabelecido nenhum tipo de relações sociais na infância
ou mesmo na juventude.
Assim, diante dessa total inadequação aos padrões de um
mundo que lhe parecia adverso, o homem só enxerga a morte como
uma forma de escapar de si mesmo.
Vale salientar que como a personagem não consegue lograr
sucesso em suas tentativas de suicídio opta por se tornar funcionário
público como maneira de alcançar a morte ainda que lentamente.
Esse fato provoca uma discussão bastante interessante sobre a
representação social do funcionário público que não raramente é
caracterizado como aquele que não trabalha e se aproveita de bens
públicos e privilégios.
Veneu, ao estudar as representações do funcionário público,
salienta:
O estereótipo do funcionário público parece
possuir, na cultura brasileira, um papel de
“paradigma negativo” de algo que está
constantemente por ser superado em função de
um ideal de “modernidade”, mas que, de uma
maneira ou de outra, sempre permanece. (1989,
p.16 – grifo do original)
Ao final da narrativa, surge a primeira manifestação de
afetividade por parte do protagonista ao expressar o seu amor por
uma colega de trabalho: “O amor que me veio por uma funcionária,
vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me um pouco das minhas
inquietações” (RUBIÃO, 2004, p.26). Antes desse sentimento ser
despertado, o que predominava no protagonista era uma extrema
dificuldade de se aproximar do outro, inclusive no exercício de sua
função, o atendimento ao público era para ele uma difícil tarefa:
“Quando era mágico, pouco lidava com os homens – o palco me
distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato com meus

53
semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me
causavam” (2004, p.24).
Destarte, o conto de Murilo Rubião abre espaço para a
discussão de uma série de fatores da modernidade, tais como o
suicídio, o tédio diante da vida, a ausência de memórias, o
funcionalismo público, dentre outros aspectos. Sobre essa
possibilidade proporcionada pelo conto, Calvino salienta:
O conto fantástico é uma das produções mais
características da narrativa do século XIX e
também uma das mais significativas para nós, já
que nos diz muitas coisas sobre a interioridade
do indivíduo e a simbologia coletiva. À nossa
sensibilidade de hoje, o elemento sobrenatural
que ocupa o centro desses enredos aparece
sempre carregado de sentido, como a irrupção
do inconsciente, do reprimido, do esquecido, do
que se distanciou de nossa atenção racional. Aí
estão a modernidade do fantástico e a razão da
volta do seu prestígio em nossa época. Sentimos
que o fantástico diz coisas que se referem
diretamente a nós, embora estejamos menos
dispostos do que os leitores do século passado a
nos deixarmos surpreender por aparições e
fantasmagorias, ou melhor, estamos prontos a
apreciá-las de outro modo, como elementos da
cor da época. (2004, p.9)
Desse modo, o aspecto sobrenatural conduz o leitor a uma
reflexão amadurecida sobre questões sociais e existenciais que
permeiam a vida moderna.

Na obra de Murilo Rubião, o elemento fantástico não se limita


apenas a uma experiência empolgante de leitura, pois exerce uma

54
função fortemente crítica acerca da sociedade contemporânea. A
abordagem sobre o serviço público aponta, por exemplo, para uma
crítica ao sistema que faz com que o emprego de funcionário público
seja capaz de abolir toda a capacidade de criação provocada pela
burocracia das atividades e até mesmo pela ociosidade. Assim,
Murilo Rubião, com seus contos, insere o insólito na rotina de
pessoas comuns, modificando a lógica do real ao introduzir um
mundo de seres encantados no mundo do leitor.
Outrossim, a obra conduz o leitor à reflexão de caráter
existencialista sobre a essência humana e a importância das relações
sociais para o processo de construção de identidade. Em geral, as
personagens da narrativa muriliana apresentam uma visão pessimista
do mundo e encaram a vida como uma experiência infortuna. Não há
final feliz nos contos de Rubião. Suas personagens são solitárias e
caracterizam-se por eternas buscas existenciais.
Desse modo, o escritor mineiro será sempre atual, pois
trabalha criteriosamente os grandes dramas do ser humano.

BARRETO, Afonso Henriques de Lima (1961). Vida e Morte de M. J. Gonzaga


de Sá. São Paulo: Editora Brasiliense.
CALVINO, Ítalo (2004). Contos fantásticos do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras.
FURTADO, Filipe (1980). A construção do fantástico na narrativa. Lisboa:
Livros Horizonte.
HALBWACHS, Maurice (2006). A memória coletiva. São Paulo: Editora
Centauro.
KHÉDE, Sônia S. (Org.) (1983). Literatura infanto-juvenil: um gênero
polêmico. Petrópolis: Editora Vozes.
RUBIÃO, Murilo (2004). O ex-mágico da taberna Minhota. São Paulo: DCL.

55
SARTRE, Jean-Paul (1997). O ser e o nada. Petrópolis: Editora Vozes.
TODOROV, Tzvetan (1992). Introdução à literatura fantástica. São Paulo:
Editora Perspectiva.
VENEU, Marcos Guedes (1989). “Representações do funcionário público”.
Revista de Administração Pública, 24(1), 5-16. Rio de Janeiro: FGV.

56
Fernângela Diniz da Silva (UFC)
José Leite Jr. (UFP)

“À mais grave ocupação de todas que é a de pensar ninguém dá


atenção” (SARAMAGO, 2007, p.52)

O escritor português e prêmio Nobel José Saramago


manifestou sua arte, principalmente, na elaboração de romances,
peças teatrais e poesia. A respeito do gênero lírico produziu a trilogia
Os poemas possíveis (1966), Provavelmente alegria (1970) e O ano de
1993 (1975). É perceptível que, ainda hoje, sua obra poética ainda
não recebeu a devida apreciação por parte dos estudiosos. De fato,
os romances saramaguianos ganharam destaque entre os
pesquisadores e a crítica, a exemplo de O evangelho segundo Jesus
Cristo (1991), Memorial do convento (1982) e Ensaio sobre a cegueira
(1995) que direcionam para as inúmeras possibilidades temáticas e
estéticas passíveis de serem contempladas na riqueza literária que
Saramago compôs.
Todavia, a poesia do escritor, expressa de forma mais evidente
nos três livros citados, cumpre uma função importante na bibliografia
de José Saramago. Percebemos isso na nota da segunda edição de Os
poemas possíveis, na qual o romancista explana sobre seu livro de
poesias: “nele teriam começado a definir-se nexos, temas e
obsessões que viriam a ser a coluna vertebral, estruturalmente
invariável, de um corpo literário em mudança” (1991, p.5). Essa
premissa pode ser aplicada nas outras produções poéticas do autor,
uma vez que é notável o prelúdio de estilo e de conteúdo, iniciados

57
na lírica, que posteriormente se desenvolveriam de formas
particulares.
Considerando a importância da lírica saramaguiana,
destacaremos o livro O ano de 1993, publicado em 1975, que se
encontra no limiar entre prosa e poesia, pois o escritor português
recorre a uma imaginação profética, aos moldes de narrativa de
ficção científica que, por meio de alegorias e metáforas, constrói um
mundo governado por forças ocultas. Os ocupantes dessa “cidade
doente” (SARAMAGO, 2007, p.7) submetem seus habitantes a
diversas formas de controle e tortura. Para isso fabricam animais
mecânicos, além da criação de outros recursos que corroboram para
a composição de uma atmosfera ditatorial.
Dividida em trinta capítulos, a estrutura da obra se configura
em estrofes breves, além de apresentar uma ruptura com a tradição
no que concerne à pontuação, já que a marca gráfica não se faz
presente no texto. Tais aspectos direcionam para o estilo
saramaguiano que seria trabalhado, sobretudo, em seus romances. A
construção do mundo de O ano de 1993 é composta por elementos
fantásticos, sendo frequente a presença de descrições que
contribuem para o efeito do insólito na narrativa. A elaboração dos
ambientes e das situações aponta para uma atmosfera a qual
podemos inferir uma influência da estética surrealista, uma vez que
há um grande apelo à plástica visual, bem como questão ideológica
intrínseca em muitas ocasiões e a experimentação estrutural.
A vanguarda surrealista idealizada pelo teórico e poeta francês
André Breton, procurava, sobretudo, a liberdade artística.
Apresentando interesse sobre o inconsciente e apoiando-se nos
estudos de Freud, os artistas reagiam contra o racionalismo e os
valores da burguesia da época. Essa estética foi teorizada em três
manifestos: Manifesto do Surrealismo (1924), O Segundo Manifesto
do Surrealismo (1930) e um terceiro que se chama Prolegômenos a

58
um Terceiro Manifesto a um Surrealismo ou não (1942). Breton (1924)
define o movimento produzindo o seguinte verbete:
SURREALISMO, n.m. Automatismo psíquico pelo
qual se propõe exprimir seja verbalmente, seja
por escrito, seja de qualquer outra maneira, o
funcionamento real do pensamento. Ditado do
pensamento, na ausência de todo controle
exercido pela razão, fora de toda preocupação
estética ou moral.
ENCICL. Filos. O Surrealismo assenta na crença
da realidade superior de certas formas de
associação, negligenciadas até aqui, no sonho
todo-poderoso, no jogo desinteressado do
pensamento. Tende a arruinar definitivamente
todos os outros mecanismos psíquicos e a
substituir-se a eles na solução dos principais
problemas da vida. (Apud TELES, 1997, p.191-
192)
A vanguarda surrealista difundiu seus preceitos em alguns
países, a exemplo de Portugal, no qual houve o movimento do Grupo
Surrealista de Lisboa, em 1947 que instigado pelas ideias de Breton e
opondo-se à ditadura que se figurava na época defendia sua postura
artística. Dessarte, ainda estão impressas em muitas manifestações
na contemporaneidade os traços surrealistas. Breton afirmava em seu
Manifesto Surrealista: “O medo, a atração pelo insólito, as
oportunidades, o gosto pelo luxo são recursos aos quais não se fará
nunca um apelo em vão.” (Apud TELES, 2005, p.184).
Baseando-se na produção O ano de 1993, procuraremos
analisar e exemplificar como se dá a composição do mundo insólito
elaborado por José Saramago. Para isso, nosso embasamento teórico
ficará por conta das leituras de textos elaborados por Flavio García,
Filipe Furtado, André Breton e Greimas. Tomaremos também como

59
apoio as contribuições da teoria semiótica com os conceitos de
figuratividade, isotopia e veridicção.

O ano de 1993, de José Saramago, é construído por meio de


elementos insólitos, com traços correspondentes ao maravilhoso
surrealista e ao sobrenatural que reforçam o caráter alegórico da
obra. Segundo Kothe, a alegoria é uma “representação concreta de
uma ideia abstrata. Exposição de um pensamento sob forma figurada
em que se representa algo para indicar outra coisa. Subjacente ao seu
nível manifesto, comporta um outro conteúdo” (1986, p.90).
Considerando o contexto de produção de Saramago, percebe-
se que o livro foi escrito um ano após a Revolução dos Cravos de
1974, em Portugal, responsável por derrubar a ditadura liderada por
Antônio de Oliveira Salazar. Esse aspecto, exterior ao texto, indica
uma possível influência da História na ficção do autor português, uma
vez que é perceptível o caráter crítico da poética. Logo no primeiro
capítulo, podemos inferir uma alusão relacionada à música que nos
remete a esse episódio histórico de Portugal: “E depois nada mais se
ouve que uma aérea e delicada música de cravo” (SARAMAGO, 2007,
p.12). A alegoria, bem como as imagens construídas em um contexto
hiperbólico, faz ressaltar a realidade e perceber a manipulação que
um sistema pode provocar nos cidadãos de sua sociedade:
Viegnes (2006) insiste no fato de que o discurso
poético não é isento de referencialidade,
contrariamente a certos dogmas estruturalistas.
A referência nunca é pura ilusão: o texto poético
se refere ao exterior do texto, mas de modo
diferente e em outro nível. Não é a pura
presença das coisas que ele busca reproduzir, é
o texto do mundo, compreendido como seu

60
sentido íntimo e sua capacidade de revelar.
(CAMARANI, 2014, p.145)
Nesse estudo teremos como base a explicação de García acerca
do insólito na qual discorre sobre a construção no ambiente ficcional:
A leitura literária do insólito não é imune a essa
relação sistêmica e orgânica, em que interagem
e interferem diferentes e diversos recursos
narrativos, da ordem do discurso ficcional,
produzindo, no leitor, a sensação de estar
travando contato com o sobrenatural,
extraordinário, irreal, surreal, absurdo,
estranho, inusitado, incomum, inusual, inaudito,
inesperado, fantástico, maravilhoso, [...]
decepcionante, horripilante, aterrorizante, que
provoca medo. O efeito verificável pelo leitor-
modelo, no ato de leitura, tendo aceitado as
regras do jogo e acessado as possíveis
significações do texto, ao preencher, com seu
inventário pessoal, os vazios de sentido entre o
significante e o significado, passando do plano
do signo linguístico, em que se dá o primeiro
contato com a narrativa, para o do signo
semiológico. (2009, p.2)
O insólito, em O ano de 1993, dialoga com a atmosfera
proposta pelo surrealismo. Podemos perceber essa questão logo nos
primeiros versos do primeiro capitulo “As pessoas estão sentadas
numa paisagem de Dalí com as sombras muito recortadas por causa
de um sol que diremos parado” (SARAMAGO, 2007, p.7). O ambiente
descrito não é especificado, nem tampouco é nomeado, o que
provoca um efeito de universalidade ao expormos o conteúdo a uma
reflexão minuciosa.
O narrador compara o ambiente ficcional a um quadro do
pintor espanhol surrealista Salvador Dalí. A arte desse pintor catalão

61
destacava-se, principalmente, pelas imagens referentes à atmosfera
onírica, mas também pela abordagem do excêntrico, apresentando
uma perspectiva particular da realidade.
As personagens retratadas em O ano de 1993 não são
compostas com uma identidade individual, também não são
nomeadas e nem caracterizadas. Contudo, o narrador sempre
descreve os sentimentos que permeiam aquele coletivo de pessoas
que buscam a liberdade: “Ninguém saberia dizer mas o tempo era de
tristeza a pior por ser a aresta agudíssima e cruel que junta as faces
da vida e da morte que haviam de encontrar-se” (2007, p.87). O que
se sobressai na narrativa é o senso de coletividade, transparecendo o
comportamento desses habitantes perante um governo autoritário.
Se considerarmos a possibilidade do fantástico estar presente
em O ano de 1993, perceberemos que essa estética será
característica frequente no ambiente construído por Saramago.
Furtado discorre como se dá a elaboração do espaço, afirmando que
o “Espaço fantástico também foge em geral à luz e à cor, preferindo
descrições que subtendam iluminação vaga ou escuridão, meias
tintas ou tonalidades sombrias, e rejeitando simultaneamente a
claridade mais intensa e a definição de formas das grandes aéreas
abertas” (1980, p.124).
Existe, pois, a recorrência de um apelo à visualidade sombria,
algo que se aproxima de pesadelo, como podemos verificar em tais
exemplos: “quando a penumbra miserável fizesse apetecer uma lenta
dissolução no espaço” (SARAMAGO, 2007, p.61) ou “Mas foi de noite
na negrura aflita da caverna lá onde só olho vermelho das brasas
tinha pena dos homens” (2007, p.62), além de lexias4 que remetem a
sombras, opacidade, escuridão também são recorrentes na obra.

4
Segundo Greimas e Courtés (2008, p.284) R. Barthes introduziu o termo lexia para
denominar “unidades de leitura”, de dimensões variáveis, que constituem,
intuitivamente, um todo: trata-se aí de um conceito pré-operatório que cria uma
segmentação provisória do texto com vistas à sua análise.

62
Todavia, recorrendo à teoria semiótica, verificamos na
narrativa uma recorrência dessas isotopias que corroboram para o
efeito de insólito uma vez que ele é reforçado, sobretudo, pelas lexias
que remetem à opressão e ao contexto de sítio, o que torna visível
aos leitores o espaço do enredo. São essas isotopias que
proporcionam ao texto uma unidade e orientam o leitor a crer na
realidade reinventada.
Segundo Barros, isotopia “é a reiteração de quaisquer unidades
semânticas (repetição de temas ou recorrência de figuras) no
discurso, o que assegura sua linha sintagmática e sua coerência
semântica” (2008, p.87). Há, ainda, as isotopias figurativas que se
caracterizam pela redundância de “traços figurativos, pela associação
de figuras apresentadas e correlacionadas a um tema, o que contribui
ao discurso uma imagem organizada da realidade” (2008, p.87).
A perspectiva temática escolhida por Saramago em sua
narrativa aparece carregada de figuras. Tal figuratividade compõe a
representação do real ou, indo mais além, contribui para criação de
outro mundo numa esfera diferente, no nosso caso a literatura
ficcional, encontrada em O ano de 1993. A partir da análise do texto,
podemos reunir isotopias tanto no campo figurativo como no campo
temático que reforçam o sentido insólito que compõe uma sociedade
sitiada. Para intensificar essa atmosfera, as figuras nos fornecem
imagens desse mundo, enfatizadas através da descrição pela
caracterização de paisagens e situações que direcionam a ideia do
insólito.
Segundo Greimas e Courtés, a figuratização dentro de um
discurso começa a acontecer “no momento em que o objeto sintático
(O) receber um investimento semântico que permitirá ao
enunciatário reconhecê-lo como uma figura” (2008, p.211). Os
sentidos elaborados através de imagens na literatura representará
um mundo interpretado, comportando assim a iconicidade, que, por

63
sua vez, oferecerá a ilusão referencial nos permitindo acreditar nessa
representação a partir das imagens formadas.
Aliás, são as escolhas semânticas feitas por Saramago que
constroem o efeito de insólito no ambiente de O ano de 1993. Roland
Barthes afirmou que: “As palavras não são mais concebidas
ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como
projeções, explosões, vibrações [...] a escritura se encontra em toda
parte onde as palavras têm sabor [...]. É esse gosto das palavras que
faz o saber profundo, fecundo” (1987, p.21).
Será, portanto, a palavra o instrumento pelo qual
enxergaremos esse mundo profético irreal saramaguiano, já que o
recurso da linguagem criará uma visão ilusória de realidade,
apresentando um efeito verídico durante a leitura, por mais que haja
descrições incomuns e surreais. Barthes reforça ainda, através de
uma abordagem conotativa, que a linguagem compõe uma tela
fictícia com a função de esconder um viés ideológico, ou seja, uma
verdade mais profunda.
É necessário problematizar que o Surrealismo privilegiava,
sobretudo, o conceito de maravilhoso em detrimento do fantástico,
uma vez que Breton expõe “o maravilhoso é sempre belo, não
importa qual maravilhoso seja belo, nada há mesmo senão o
maravilhoso que seja belo” (Apud TELES, 2005, p.183), contudo,
como a pesquisadora Rebouças explicou “o belo não é o bonitinho,
mas o surpreendente, o grotesco, o bizarro, o fantástico, o
inesperado” (1986, p.68), o que se relaciona ao efeito que vislumbra
o surpreendente comum nas obras dos surrealistas.
De acordo com o teórico e poeta francês “O que há de
admirável no fantástico é que não existe mais o fantástico: só há o
real” (Breton, Apud TELES, 2005, p.183). Uma vez que o surrealismo
tem uma concepção de realidade distinta da comum, Breton (1924)
acredita “na resolução futura destes dois estados, aparentemente tão
contraditórios, tais sejam o sonho e a realidade, em uma espécie de

64
realidade absoluta, de super-realidade, se assim se pode chamar”
(Apud TELES, 2005, p.183). O diálogo com estética surrealista na obra
é possível, como bem aponta Costa:
Sem dúvida, a proliferação imagética somada à
mecânica da analogia e da justaposição na
produção do texto, todos factores atinente à
estética surrealista, significa uma liberação de
José Saramago em direção a uma maior
valorização do imaginário na sua escrita que, a
partir da publicação de O Ano de 1993 manterá
uma porta aberta, e de alta rentabilidade
literária, para o maravilhoso (1997, p.223)
Percebendo as diferenças discursivas que existe entre o
maravilhoso e o fantástico, e entendendo o senso particular que os
surrealistas defendem como sendo o maravilhoso, é possível verificar
além do insólito surrealista, o insólito imbuído no caráter fantástico
dos episódios narrados na ficção saramaguiana, todavia há uma serie
de questões a serem trabalhadas no que concerne às classificações.
Há, entre os teóricos, um questionamento no que tange ao
gênero fantástico. Todorov, por exemplo, defende que o fantástico é
uma postura leitora que “não deve ser nem poética, nem alegórica”
(1992, p.38), isso porque “Se o que lemos descreve um
acontecimento sobrenatural, e que exige, no entanto que as palavras
sejam tomadas não no sentido literal, mas em um outro sentido que
não remeta a nada de sobrenatural, não há mais lugar para o
fantástico” (1992, p.71).
Ora, havíamos apontado anteriormente o caráter alegórico e
poético da obra portuguesa, contudo a literatura saramaguiana nos
permite tanto uma análise que direciona a uma metáfora, como
ficcional. Podemos ler tanto traços que nos permitem considerar sua
narrativa uma alegoria, como há a possibilidade de interpretá-la
como um enredo profético, beirando ao apocalíptico, semelhante à

65
literatura produzida por George Orwell. Importante ressaltar que O
ano de 1993, encontra-se na fronteira entre prosa e poesia,
considerando que segue uma sequência coerente dentro do texto
com seus trinta capítulos.
A definição de Furtado poderia se enquadrar bem no enredo
estudado. Comparando o maravilhoso ao fantástico, o pesquisador
expõe aspectos que podem ser verificados na obra de Saramago:
O fantástico propõe ao destinatário da
enunciação um universo em que algumas
categorias do real foram abolidas ou alteradas,
passando a funcionar de uma forma insólita,
aberrante, inimaginável. Tal como o
maravilhoso, o fantástico não permite que uma
explicação racional venha repor a lógica nesse
mundo aparentemente “outros” e reinstale, por
completo, o leitor no real. (1980, p.44)
É possível verificar o insólito na produção de José Saramago na
caracterização do cotidiano dos habitantes da cidade sitiada: “Foram
tirados das suas casas por uma ordem que ninguém ouviu”
(SARAMAGO, 2007, p.11), bem como nas reações dos que sofrem
com autoritarismo dos ocupantes:
E também diz que em outro dos
compartimentos um homem aguarda que lhe
cresçam as unhas o suficiente/ Para espetando-
os nos olhos chegar com elas ao côncavo do
outro lado do crânio até por ventura fazer calar
o gemido invisível e abrir novos olhos para um
mundo atrás deste. (SARAMAGO, 2007, p.14)
Além disso, o efeito de insólito encontra-se na inversão da
ordem natural da vida: “Então saem lobos a caçar os homens e
sempre apanham alguns/ O qual entra enfim na cidade deixando por
onde passa um regueiro de sangue” (SARAMAGO, 2007, p.22).

66
Observam-se pessoas sendo animalizadas, o que denota uma
regressão na racionalidade: “Certos homens embora não adaptados
morfologicamente passaram a viver debaixo do chão/ Utilizaram a
técnica da toupeira a céu fechado por sofrerem de limitações físicas
semelhantes” (2007, p.22). Simbolicamente isso pode representar a
violência dos governantes que subjugam a tortura física e psicológica.
Outrossim, na medida que os humanos são mostrados em um
processo de regressão, a exemplo de uma das personagens que perde
a capacidade da linguagem, os bichos adquirem o ódio dos
ocupantes, agindo de forma nociva, assim como os humanos que
possuem o poder. Animais domésticos, antes amigáveis,
transformam-se em torturadores: “Muitas velhinhas inocentes foram
arranhadas por gatos castrados de estimação em memória do
atentado sofrido/ E numerosas crianças ficaram infelizmente cegas
pelos bicos agudos das aves que se atiravam dos ramos e das alturas
como pedras” (2007, p.50).
No entanto, traços do estilo fantástico estão presentes
explicitamente na função dos ocupantes da cidade que mantém
relações com uma figura possuidora de poderes sobrenaturais:
O comandante das tropas de ocupação tem um
feiticeiro no seu estado-maior/ Mas o sentido da
honra militar embora condescendente noutros
casos sempre o impediu de utilizar esses
poderes sobrenaturais para ganhar batalhas/ O
feiticeiro apenas intervém quando ao
comandante das tropas de ocupação apraz usar
o chicote/ Nessas ocasiões saem ambos para os
arredores da cidade e postos num ponto alto e
convoca o mágico os poderes ocultos e por eles
reduz a cidade ao tamanho de um corpo
humano. (SARAMAGO, 2007, p.30)

67
As pessoas moradoras desse espaço sitiado sofrem com a
violência, contudo nem mesmo elas sabem de onde surge tamanha
hostilidade. Isso é demostrado ao reduzir a cidade a um corpo
humano para, assim, açoitá-lo a mando da autoridade. Trata-se de
mais uma construção que remete estranhamento no leitor, porém
dentro da narrativa aparenta uma frequência.
Um ponto que também merece reflexão é o de que, apesar das
personagens não terem uma personalidade individual especificada,
elas reagem a esse governo haja vista a maneira deplorável a qual são
tratadas. Tal fato aponta o efeito insólito construído por Saramago.
Situações que figuratizam estupro como uma das ações dos
ocupantes também é apresentada: “Será visto que estando mortos os
homens perseguidos os perseguidores hão-de violá-las conforme
mandam as imemoriais regras da guerra” (SARAMAGO, 2007, p.34).
Partindo disso, decorre a descrição insólita da resposta das
mulheres que foram submetidas a tal sistema opressor “Com um
estalo seco e definitivo os dentes que o odeio fizera nascer nas vulvas
frenéticas/ Cortam cerce os pénis do exército perseguidor que as
vaginas cospem para fora com o mesmo desprezo com que os
homens perseguidos haviam sido degolados” (2007, p.35). Essa
composição cênica assemelha-se à estética surrealista, relacionada ao
estranhamento e ao terror.
Ainda no que concerne à presença do insólito em O ano de
1993, o episódio que mostra o controle do governo por meio da
contagem é mais um exemplo disso: “A primeira contagem é feita
pelos ratos a segunda pelas cobras a terceira pelas aranhas/ Os
habitantes preferem as cobras e os ratos ainda que seja arrepiante o
contacto frio e escamoso das cobras e o arranhar fino das unhas dos
ratos” (2007, p.39).
O efeito insólito também é percebido em uma das cenas que
contextualizam a fuga dos habitantes da cidade. Nela acontece um
fato surpreendente em favor daqueles que lutam pela liberdade, pois

68
em um dado momento uma árvore acolhe um casal que tentava se
proteger da barbárie:
Então abraçados o homem e a mulher sem uma
palavra suplicaram/ E a árvore a que se
apoiavam transidos abriu-se por uma qualquer
razão que não veio a saber-se nunca e recebeu-
os dentro de si juntando a seiva e o sangue [...] E
a mulher e o homem abraçados dentro da
árvore souberam que os seus irmãos uma vez
mais sofriam o assalto dos ocupantes e das
feras. (SARAMAGO, 2007, p.82)
Através dessa exemplificação, é possível verificar um episódio
em que a natureza age de forma fantástica ao refugiar o casal em seu
âmago. Tal fato dialoga para o final da narrativa, uma vez que aponta
para uma resistência contra esse regime opressor, o que resultará no
prelúdio do resgate que acontecerá da liberdade ao fim da produção
O ano de 1993.

José Saramago na narrativa poética O ano de 1993, escrita em


1975, vislumbra uma profecia apocalíptica, elaborando um enredo
que beira o pessimismo, mas que direciona à esperança ao almejar
um estado livre como bem aponta o final da obra. O autor português
constrói um mundo que cotidianamente submete sua população à
tirania dos ocupantes que sitiaram a cidade não nomeada. Esse dado
nos impulsiona a acreditar que poderia ser qualquer estado, visto que
toda sociedade pode tornar-se um alvo em potencial daqueles que
abusam do poder e que buscam alienar e manipular para alcançar o
domínio total.
Compondo personagens que são caracterizadas, sobretudo, em
seu coletivo, mas que representam uma organização proposta para

69
resistir a tal sistema, compondo ambientes que apresentam uma
atmosfera sombria, o autor elabora um caminho onde o leitor é
levado a imergir naquela construção, isso por intermédio de
elementos insólitos. Greimas e Courtés fortifica essa ideia
A persuasão e a interpretação, o fazer-crer e o
crer-verdadeiro não são, assim, senão
procedimentos sintáticos, capazes de dar conta
de uma ‘busca interior da verdade’, de uma
“reflexão dialética”, chamada ou não à
manifestação sob forma de discursos com
vocação científica, filosófica ou poética. (2008,
p.152)
A presença de isotopias que reforçam o ambiente insólito,
dominado por forças sobrenaturais, figura, assim, um sistema
governamental hostil, dominado pelo autoritarismo. Todos esses
aspectos avivam um senso crítico acerca da História, isso porque é
notório o engajamento de José Saramago e seu interesse em debater
a política.
De fato, muito mais que ficção, as imagens proferidas na
poética do autor português são imbuídas de ideologia, não deixando,
porém a engenhosidade poética de lado. Por isso, podemos afirmar
que o autor português José Saramago elabora, por meio das palavras,
um mundo poético, carregado de críticas sociais que tornam a obra
universal. É desse modo que Saramago parte da observação do real
para criar um imaginário rico e plural de interpretações.

BARROS, Diana Luz Pessoa de (2008). Teoria Semiótica do texto. São Paulo:
Ática.
BARTHES, Roland (1987). Aula. São Paulo: Cultrix.

70
BRETON, André. (1973). “Manifesto do surrealismo”. In: TELES, Gilberto
Mendonça (Org.). Vanguarda europeia e modernismo brasileiro:
apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 2.ed.
Petrópolis: Editora Vozes.
CAMARANI, Ana Luiza (2014). A literatura fantástica: caminhos teóricos. São
Paulo: Cultura Acadêmica.
COSTA, Horácio (1991). José Saramago: o período formativo. Lisboa:
Caminho.
FURTADO, Filipe (1980). A construção do fantástico na narrativa. Lisboa:
Horizonte.
GARCÍA, Flavio (2009). “A construção do insólito ficcional e sua leitura
literária: procedimentos instrucionais da narrativa”. In: KANTHACK, Gessilene
Silveira; SACRAMENTO, Sandra Maria Pereira do (Orgs.). Anais do I CONLIRE.
Congresso Nacional Linguagens e Representações. Ilhéus: UESC. Disponível
em
http://www.uesc.br/eventos/iconlireanais/index.php?item=conteudo_anais.
php. Acesso em 18.Jan.2017.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph (2008). Dicionário de semiótica.
São Paulo: Editora Contexto.
KOTHE, Flávio Rene (1996). Alegoria. São Paulo: Editora Ática.
REBOUÇAS, Marilda de Vasconcelos (1986). Surrealismo. São Paulo: Editora
Ática.
SARAMAGO, José (1982). Os Poemas Possíveis. Lisboa: Editora Caminho.
______. O ano de 1993 (2007). São Paulo: Companhia das Letras.
TODOROV, Tzvetan (1992). Introdução à literatura fantástica. São Paulo:
Editora Perspectiva.

71
Giseli Seeger (UFSM)
Raquel Oliveira(UFSM)
O romance A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe,
surpreende por apresentar na narrativa a personagem Esteves,
dizendo-se aquela do poema “Tabacaria”, do heterônimo pessoano
Álvaro de Campos. O protagonista do romance, António Jorge da Silva
– o Senhor Silva, de oitenta e quatro anos – relata como, após a
morte de sua esposa, reaprende a cultivar o afeto. No Lar Feliz Idade,
em que é deixado pela filha, compartilha com os companheiros a
debilidade da vida e a reiterada evocação de uma existência
submetida ao regime salazarista. Pouco depois de sua chegada ao lar,
Senhor Silva se dá conta de que divide seus dias com um “mito da
poesia portuguesa” (MÃE, 2011, p.52).
Esteves, representado em “Tabacaria” como destituído de
metafísica, no romance, completa cem anos, e sua refiguração
permitiria acessar a verdadeira versão de sua existência – versão que,
segundo ele próprio, teria sido obliterada pelos versos de Campos. O
que pretendo demonstrar é que Esteves jamais se desprende
inteiramente do poema, mas, que, ao figurar em A máquina de fazer
espanhóis, parece ter se libertado da obra que lhe deu origem.
Ao nos depararmos com a personagem da narrativa de Hugo
Mãe, descobrimos que Esteves de algum modo saltara do poema
para integrar o universo espaço-temporal da casa de repouso,
contudo, assim como o protagonista, não aceitamos a circunstância
sem estranhá-la. Se Senhor Silva, como as demais personagens, toma
a si mesmo como irrefutavelmente real, do ponto de vista do
universo do romance, logo é aturdido pela presença deste “ser de

72
papel” (BARTHES, 2013, p.50) em um universo em que, logicamente,
não lhe caberia existir.
Aproximando-se de ocorrências desta natureza, o professor
Carlos Reis defende que a personagem, “aparentemente, um ser
imanente a um texto ficcional e como que nele ‘aprisionado’, tende a
romper com aquele seu estatuto, projetando-se para uma dimensão
de transcendência que ultrapassa as chamadas fronteiras da ficção”
(2016, p.126). O crítico esclarece que algumas personagens
prevalecem sobre as ficções, manifestam vida além delas graças à
metalepse, figura proposta por Genette (1976) que aponta à
transgressão das fronteiras entre níveis narrativos distintos. O recurso
chamaria atenção ao processo ficcional por deixar visíveis os próprios
movimentos da narrativa enquanto um processo necessariamente
sujeito ao ato de leitura. No romance de Hugo Mãe, a autonomização
da personagem ressalta a dependência da obra em relação à leitura
na medida em que é através do reconhecimento – tanto por parte
das personagens do romance, leitores do consagrado poema, quanto
por nossa parte, de leitores de ambas as obras – que se podem
identificar e interpretar os traços de Esteves.
Ao mesmo tempo, a autonomização permitida pela metalepse
provocaria estranhamento pela impressão de sobrevivência da
personagem à própria literatura, impressão esta que fundamenta a
noção que o professor Carlos Reis denomina “sobrevida”. Ao
subverter o esperado e cotidiano, a presença de Esteves faria com
que Senhor Silva experimentasse a consciência de ter havido uma
transposição de planos, imediatamente encarada como insólita: “era
como dar pele a um poema e trazê-lo à luz do dia, a tocar-me no
quotidiano afinal mágico que nos é dado levar” (MÃE, 2011, p.51). A
impressão do insólito seria criada pelo trânsito que teria
experimentado Esteves, uma personagem literária, para um universo
tomado, pelas personagens do romance, como extraliterário.

73
Por outro lado, nosso conhecimento de leitores empíricos
confirma que, no trânsito de uma obra a outra, a personagem
adquire a capacidade de transcender seu locus original. Se em um
primeiro momento assumimos a simples transposição de Esteves de
um universo ficcional a outro, conforme a trama do romance se vai
desenvolvendo, tendemos a admitir que a personagem é outra, e já
não aquela de “Tabacaria”.
Do poema de Álvaro de Campos, pode-se dizer, em linhas
gerais, que seus versos recriam o impasse do sujeito poético diante
da percepção da superfície banal que encobre o mistério de todas as
coisas e a percepção subjetiva, que o faz enveredar por meditações
sobre a essência de tudo o que os sentidos permitem acessar.
Consciente da duplicidade do real por efeito de uma irreparável
lucidez, o eu poético permanece entre a incoercível objetividade do
mundo e a reflexão filosófica, que lhe revelam o malogro da própria
existência: “Estou hoje dividido entre a lealdade que devo/ À
tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,/ E à
sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro” (PESSOA,
1999, p.363). Ora, a metafísica que vai dando origem aos versos é
frequentemente contrastada com o real exterior, que subitamente
invade o universo do sujeito lírico e se torna também objeto imediato
de reflexão. Em determinado momento do poema, essa realidade
intrusa assume feições humanas: “Mas um homem entrou na
Tabacaria (para comprar tabaco?), E a realidade plausível cai de
repente em cima de mim. [...] Ah, conheço-o: é o Esteves sem
metafísica” (1999, p.366). Assim, a realidade banal de Esteves
repentinamente parece agitar-se frente ao sujeito poético para
mostrar-lhe o caráter insuperável daquela realidade objetiva da qual
se mantém estrangeiro. Com efeito, a designação da personagem
como destituída de metafísica contrasta diretamente com a
constituição deste sujeito poético excessivamente meditativo:
Esteves metaforiza o raso dos gestos e a ausência de sonho – a

74
realidade vil que se põe diante do poeta fadado à especulação
metafísica.
Contudo, em A máquina de fazer espanhóis, Esteves renega a
caracterização que no poema lhe é imposta, e a metafísica é
justamente o principal traço que o caracteriza. No romance, a
personagem ganha voz e oferece outra interpretação acerca de sua
existência. Tal interpretação faz crer que Esteves teria sua
caracterização expandida, e que esta versão, e não a dos versos, seria
a autêntica versão de seu caráter.
Evidentemente, a expansão experimentada pela personagem
refigurada é correlata à natureza dos gêneros entre os quais transita.
Conforme o professor Carlos Reis (2014), o conceito de figuração,
enquanto designativo de um processo de individualização de
personagens em universos específicos, teria como exigência certo
índice de narratividade, que pode ser verificado, principalmente, em
contextos narrativos e dramáticos, mas não necessariamente
ausenta-se dos contextos de enunciação poética.
Em seu estudo acerca da personagem de ficção, Antonio
Candido reitera que, ao concentrar as ações da personagem, a poesia
lírica tende a estar a serviço da vivência de um “estado”, enquanto a
narrativa transforma, por sua vez, o estado em “processo”, definindo-
se a personagem na duração de estados sucessivos (1976, p.20). Essa
concepção comum seria ratificada pela constatação de que a ação de
Esteves no poema está limitada a uma breve sequência de eventos –
entrada na Tabacaria, (suposta) compra de cigarros, saída da
tabacaria, (suposto) armazenamento do troco na algibeira,
visualização do poeta e cumprimento) –, enquanto, no romance, está
condicionada a alguns episódios cuja extensão obedece a relações
lógicas e causais ligadas às vivências do protagonista. São essas
relações que reconfiguram o caráter de Esteves e que, reconstruindo-
o progressivamente, tornam-no outra personagem.

75
Indagado sobre a legitimidade da informação de ter sido a
personagem de “Tabacaria”, Esteves responde afirmativamente, mas,
de imediato, objeta: “eu tenho muita metafísica, isto de os poetas nos
roubarem a alma não é coisa decente, porque aquilo da poesia leva
muita mentira” (MÃE, 2011, p.51). Assim como Senhor Silva,
descobrimos que, em 1928, Esteves, aos vinte anos, em troca da
promessa de prosperidade, despedira-se de sua miserável família do
norte do país e fora trabalhar na capital com o tio, dono de lojas de
mercearia. Se, como aparentava, entrava na tabacaria sem pensar
demasiado, era tão somente “para que o futuro lhe parecesse
possível” (2011, p.69) e, por isso, de acordo com a sua perspectiva na
narrativa de Hugo Mãe, o poeta ter-lhe-ia conferido um retrato
enganoso.
Vista do universo do romance, a pessoa real Esteves, no
instante em que fora objeto do olhar de caça do poeta compositor,
teria sido reduzida a uma figura banal, e tal redução implicaria, na
sua existência empírica, em um efeito contraditório e irreversível.
Como se houvera sofrido aquela consequência típica do fazer
personagem, sua imagem fora estabelecida e racionalmente dirigida
pelo poeta, que, ao convertê-lo – ele, pessoa – em personagem,
operara a sua figuração.
Naturalmente, sujeito ao aspecto residual que lhe impõe a
figuração no contexto da enunciação poética, Esteves teria sido
representado em “Tabacaria” como o que Antonio Candido designa
um ser “íntegro e facilmente delimitável” (1976, p.45), marcado por
aquele único traço que o caracteriza: a destituição de metafísica.
Figurado uma vez, Esteves embate-se até o fim de seus dias com os
efeitos da objetificação ficcional, dado que, por Fernando Pessoa ter-
lhe dirigido o olhar, por tê-lo querido em um verso seu, nunca mais
pudera sonhar “com ser vago e feliz” (MÃE, 2011, p.97).
Considerando que o poeta teria visto Esteves de fora, recria-o
também assim no interior de sua obra, e o seu traço distintivo é

76
então fixado, nos termos de Candido, “de uma vez para sempre”
(1976, p.46): a cada invocação sua como o faz, a seu modo, o
universo do romance de Valter Hugo Mãe, a destituição de metafísica
é a primeira característica a ser retomada.
Genette deixa entrever essa relação quando faz referência à
transtextualidade, ou à transcendência do texto, para nomear “tudo
o que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros textos”
(2010, p.12). No que diz respeito à refiguração de Esteves, a relação
entre A máquina de fazer espanhóis e “Tabacaria” é assente em um
processo de derivação, na qual o texto primeiro, ou, mais
estritamente, a caracterização primeira de Esteves pelo poeta-
observador, é contestada pelo texto segundo, no qual o traço
fundamental que lhe foi conferido é então recuperado por via da
subversão.
Desse modo, se a figura parece demonstrar, no romance, a
profundidade que, no poema, teria sido indolentemente suplantada
pelo poeta repleto de metafísica, tal recuperação buscaria aproximar-
se, nos termos de Candido, da “impressão de um ser ilimitado,
contraditório, infinito em sua riqueza” (1976, p.44), representação
esta supostamente mais coerente com a realidade de seu caráter de
pessoa, ou seja, que não personagem.
Com efeito, uma vez que em “Tabacaria”, o sentido de Esteves
estaria subordinado à representação de um sujeito lírico submetido a
uma exacerbada lucidez, em relação ao qual a figuração de um outro
destituído de metafísica teria a função de marcar uma oposição, em A
máquina de fazer espanhóis, o sentido de Esteves, ainda que não
independente do primeiro, é diverso. Ao fazer figurar este ser
duplamente carregado de ficcionalidade, a narrativa põe em causa o
modelo convencional segundo o qual a personagem permanece
restrita a um único universo textual; e fazendo-o, desestrutura, em
alguma medida, o mundo representado no romance.

77
Tal desestruturação ocorre na medida em que Esteves cheio de
metafísica, reiteradamente referido pelo narrador como a
personificação da própria ficção no universo real do romance, integra
uma narrativa assente em memórias e ressonâncias do período
ditatorial português. Esteves acaba, pois por denunciar, pela sua
aparente incongruência em relação ao mundo do romance, o insólito
das próprias vivências do protagonista António Silva.
A indicar a presença da fantasia em um mundo de conflitos
inexoráveis, povoado por referências mais próximas do real da
experiência humana – como a revisitação de uma consciência pessoal
e coletiva – a refiguração de Esteves possibilitaria entrever, no pano
de fundo do romance, o levantamento de questões críticas
primordiais, referentes, sobretudo, à pertinência da literatura. Nesse
sentido, essa espécie de Alice vinda do país da fantasia para habitar o
Lar Feliz Idade convive com complicações humanas reais, mas
demonstra sem perder o estatuto fantástico que a envolve, uma
aguda humanidade. Ora, Esteves, como “poesia problematizada”
(MÃE, 2011, p.143) sinaliza à presença do sublime no real e, ao
mesmo tempo, à realidade sempre encarnada pela poesia.

BARTHES, Roland (2013). “Introdução à análise estrutural da narrativa”. In:


BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. Tradução: Maria Zélia
Barbosa Pinto. Petrópolis: Editora Vozes.
CANDIDO, Antonio; GOMES, Paulo Emílio Salles; PRADO, Décio de Almeida;
ROSENFELD, Anatol (2009). A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva.
GENETTE, Gerárd (1976). Discurso da narrativa. Lisboa: Vega.
______. (2010). Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Tradução: Cibele
Braga; Erika Viviane Costa Vieira; Luciene Guimarães; Maria Antônia Ramos
Coutinho; Mariana Mendes Arruda; Miriam Vieira. Belo Horizonte: Editora
Viva Voz.

78
MÃE, Valter Hugo (2011). A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac
Naify.
PESSOA, Fernando (1999). “Tabacaria”. In: GALHOZ, Maria Aliete
(Organização, introdução e notas). Fernando Pessoa Obra Poética. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar.
REIS, Carlos (2014). “Pessoas de livro: figuração e sobrevida da
personagem”. Revista de Estudos Literários: Personagem e Figuração, (nº.4).
p.43-68. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de
Coimbra.
______. (2015). Pessoas de livro: estudos sobre a personagem. 2.ed.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

79
Guilherme Preger (UERJ)
Este trabalho é mais um estudo introdutório para a pesquisa de
doutorado Fábulas da Ciência. Pretendo investigar a presença da
narrativa no discurso científico. A pesquisa segue duas vertentes:
primeiramente, investiga no discurso da própria ciência dura o uso de
procedimentos narrativos para articular suas construções discursivas.
Paralelamente, busca aproximações com outros discursos, em
particular, com a narrativa literária que se convencionou denominar
de ficção científica. No entanto, gostaria de propor outro termo para
esse gênero que julgo mais apropriado para esta pesquisa. O termo é
fabulação especulativa (speculative fabulation), proposto pelo crítico
literário americano Robert Scholes em seu livro Structural Fabulation:
An Essay on Fiction of the Future (1975), infelizmente não traduzido
para a língua portuguesa. Com esse termo, o crítico quis denominar
um gênero narrativo que enfatiza a função cognitiva em detrimento
da função sublimatória, esta predominante no romance moderno.
Fabulação especulativa tem como paradigma o imaginário racional e
experimental moderno que começou com a revolução científica de
Copérnico e de Galileu e se opõe à fabulação dogmática que tem
como paradigma o imaginário religioso. Uma obra pioneira desse
gênero é Utopia de Thomas Morus (1516). A fabulação especulativa
tem história relacionada a uma consciência crescente do universo
como um “sistema de sistemas” (SCHOLES, 1975) e incorpora
descobertas e hipóteses da investigação científica moderna como
ponto de partida.
Fabulação especulativa compõe assim um gênero limítrofe ou
mesmo híbrido ao discurso científico em sentido estrito. Um dos
principais temas de fabulação especulativa, como indica a obra de

80
Thomas Morus, é a descrição de mundos possíveis. Embora esse
tema tenha sido uma constante na literatura sob a forma de mundos
fantásticos, imaginários ou alternativos, isto é, mundos ficcionais, no
pensamento racionalista moderno a ideia de mundos possíveis foi
introduzida pelo filósofo e matemático Gottfried Leibniz em sua obra
Ensaios sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem
do mal (1710). Leibniz advogava a tese de que “vivemos no melhor
dos mundos possíveis” e, portanto, os mundos são apenas possíveis,
mas não coexistentes. No entanto, o tema dos mundos possíveis
como premissa filosófica questiona o “marco do mundo único”, como
denominou o teórico literário Lubomir Dolezel (1999), marco que
ancora num único mundo legítimo a realidade. O mundo real seria o
referente fixo para as representações miméticas universalistas. A
semântica mimética parte do pressuposto de que uma entidade
ficcional está associada a um único protótipo real, sendo este o
mundo real legítimo. Contra essa ideia, Dolezel propõe uma ontologia
dos mundos ficcionais como mundos autônomos e igualmente
legítimos e que seriam modos de mundos possíveis. Esta seria uma
ontologia heterocósmica, cosmologias coerentes que funcionam
como marcos de mundos alternativos. Nessa heterocósmica, há
também “desenhos alternativos do universo” (DOLEZEL, 1999, p.32)
na ciência natural, bem como mundos ficcionais como artefatos
artísticos ou textuais.
O polonês Stanislaw Lem (1921-2006) é um dos mais
importantes autores de ficção científica do século XX, tendo escrito a
maior parte de sua obra no interior do regime do socialismo
realmente existente, na Polônia. Um dos maiores interesses desse
autor para esta pesquisa é que em seus romances a discussão de
temas científicos contemporâneos é o motivo principal da trama,
sendo essa discussão apresentada sob a forma de controvérsias que
possuem mais importância na narrativa do que as peripécias que
movem as personagens. Lem estudou medicina, seguindo a carreira

81
por insistência de seu pai, que era laringologista, porém seu desejo
era estudar para engenharia ou ciência. Tentou entrar para a escola
politécnica, mas não conseguiu devido à sua origem burguesa.
Passou a ler e estudar ciência e escrever histórias em suas horas
vagas e trabalhou com pesquisa durante um breve período.
Renomado escritor de ficção científica, Stanislaw Lem, na verdade,
escreveu fabulações especulativas, tendo suas histórias quase sempre
cientistas como narradores discutindo hipóteses a respeito de
importantes questões da física, da ciência, da cosmologia, da
cibernética ou da teoria da informação. Um dos temas mais cruciais
de sua prosa é a projeção do imaginário humano na constituição dos
paradigmas científicos e os limites da perspectiva antropocêntrica
sobre a visão de mundo das ciências, em especial da cosmologia.
Esses temas são centrais em sua obra mais conhecida: Solaris,
romance de 1961.
Solaris se tornou sua obra mais conhecida devido às três
adaptações cinematográficas: a de 1968, na adaptação do russo Boris
Nirenburg, na verdade uma adaptação para televisão; o clássico de
1972, do russo Andrei Tarkovski, ganhador do prêmio Palma de Ouro
em Cannes; e a adaptação americana mais recente (2002) do diretor
Steven Soderbergh. Apesar de termos conhecimento das duas
últimas referências, não é nosso objetivo realizar neste trabalho
aproximações entre essas adaptações cinematográficas e o romance
original.
Solaris é uma complexa fábula sobre um mundo possível
extraterrestre narrado pelo ponto de vista de um cientista, o
psicólogo Kris Kelvin. O título designa tanto um planeta ocupado
inteiramente por um oceano semovente como a estação orbital
humana dedicada a estudá-lo. Durante mais de um século os
cientistas humanos se dedicaram a entender sem sucesso o estranho
comportamento do Oceano que se movimenta de maneira
misteriosa, contrariamente à lei natural da gravidade, como se tivesse

82
algum tipo de inteligência. Desenvolveu-se a solarística, espécie de
compêndio de controvérsias a respeito da natureza do Oceano: se
tem vida, se possui algum tipo de inteligência ou consciência e se é
possível se comunicar com ele. No entanto, a solarística não levou a
nenhuma definição conclusiva. No início da história, a estação se
encontra praticamente desabitada contendo apenas três cientistas,
mas que subitamente se comportam de maneira estranha. Kelvin,
protagonista e narrador, é enviado à estação para investigar o que
estaria acontecendo com os pesquisadores. Quando chega lá, no
entanto, um deles (Gibarian) acabara de se suicidar. A estação se
encontra quase abandonada.
Logo Kelvin descobre que, além dos dois cientistas restantes,
há também misteriosas aparições na estação. Essas aparições são
denominadas visitantes. A primeira que lhe aparece é uma mulher
negra de seios desnudos e descalça. Essa aparição acompanhava o
cientista suicida e vagava solitária pela estação após sua morte. Outro
cientista, Sartorius, que está trancado em seu quarto, também parece
esconder um visitante, uma criança. É absolutamente insólita a
presença desses visitantes na estação. Primeiramente, o psicólogo
pensa que está diante de uma alucinação ou do uso de um
psicotrópico. Depois pensa se poderia estar sonhando. Finalmente,
pensa estar louco. Para tirar a dúvida, resolve fazer um teste que
consiste em calcular com ajuda de uma calculadora a órbita de um
satélite e realizar o mesmo cálculo através de um computador. Se o
cálculo automático e o cálculo manual coincidissem, isso seria a prova
de que não estaria louco ou sonhando, o que de fato acontece.
Cansado, então, adormece. E ao acordar:
Quando tornei a abrir os olhos, tive a impressão
de haver cochilado alguns minutos. O quarto
estava todo banhado por uma penumbra
vermelha. Fazia menos calor. Eu estava me
sentindo bem, deitado, com as cobertas

83
afastadas, inteiramente nu. A cortina só cobria
metade da janela e lá, defronte de mim, ao lado
da vidraça, iluminada pelo sol vermelho, havia
alguém sentado. Reconheci Rheya. Usava um
vestido de praia, branco, cujo tecido estava
esticado ao longo dos seios. Tinha as pernas
cruzadas e pés descalços. Imóvel, com os braços
abertos bronzeados até os cotovelos, olhava-me
por entre os cílios escuros. Rheya, com seus
cabelos pretos penteados para trás. Encarei-a
durante muito tempo, calmamente. Meu
primeiro pensamento foi reconfortante: eu
estava sonhando e consciente disso. Fechei os
olhos e tratei de varrer aquele sonho. Quando
tornei a abri-los, Rheya estava sentada ao meu
lado. Tinha os lábios entreabertos, como de
costume, num gesto de assoviar. Mas seu olhar
era sério. Lembrei-me da véspera quando fizera
aquelas especulações a respeito dos sonhos.
Rheya não havia mudado desde o dia em que a
vira pela última vez. Tinha, naquela época,
dezenove anos. Hoje teria vinte e nove anos.
Mas, evidentemente, os mortos não mudam,
ficam eternamente jovens. Ela fixava-me com o
olhar espantado de sempre. Tive vontade de
atirar uma coisa sobre ela. No entanto, apesar
de se tratar de um sonho, não tive coragem –
mesmo em sonho – de maltratar uma morta.
(LEM, 2003, p.74)
Rheya5 é, na verdade, sua ex-mulher, que havia se suicidado
logo após a separação do casal. A princípio, Kelvin acredita estar

5
No original de Lem, assim como no filme de Tarkovski, a personagem se chama
Harriet. Infelizmente a versão brasileira foi traduzida da versão americana que
alterou o nome da personagem, bem como do cientista Snaut, na versão em
português chamado de Snow.

84
sonhando, chega a se ferir com uma agulha, mas sente dor real e vê o
sangue escorrer. Aterrorizado, sua primeira reação com relação à
aparição é tentar se livrar dela. Induz Rheya a entrar sozinha numa
pequena espaçonave da estação e a projeta no espaço para vagar
sem volta. Mas em breve ela retorna, como se nada tivesse
acontecido.
É assim que Kelvin descobre que os visitantes são quase
indestrutíveis. Ao se ferirem, suas feridas rapidamente se cicatrizam e
regeneram. O psicólogo, ao analisar uma amostra de sangue de sua
visitante, observa que sua estrutura corporal não passa de uma
camuflagem para uma estrutura mais profunda, feita de partículas de
neutrinos estabilizadas por um campo magnético, invisível ao
microscópio. Justamente, o neutrino é uma partícula ínfima, capaz de
atravessar a matéria, denominada por essa capacidade de partícula-
fantasma.
Os visitantes são projeções materiais do inconsciente dos
cientistas e são perceptíveis aos outros. No dizer de um dos
cientistas, os visitantes: “Não são indivíduos autônomos, nem cópias
de determinados indivíduos. São projeções materializadas do
conteúdo de nosso cérebro, sobre o tema de um indivíduo dado”
(LEM, 2003, p.136). Eles passaram a aparecer na estação logo após
uma experiência em que os pesquisadores projetaram poderosos
raios-x na superfície do Oceano para observar se acontecia alguma
reação. Nenhuma reação foi observada, mas os visitantes apareceram
alguns dias depois. Assim, os cientistas da estação Solaris percebem
então que estão sendo objeto de alguma experiência realizada pelo
Oceano vivo do planeta Solaris.
Em geral, os visitantes são pessoas ligadas a traumas psíquicos
passados dos cientistas humanos. No caso de Kelvin, ele se sente
culpado pela morte de sua ex-mulher, que se matou logo após uma
briga do casal. Os misteriosos seres sofrem de um desligamento de
consciência, sendo incapazes de se recordar de seu passado e da

85
razão pela qual estão na estação. Rheya, por sua vez, não apenas não
sabe por que ou como veio à estação, como não sabe que é uma
versão de uma pessoa que se suicidou. Ela reconhece Kelvin como
seu marido, conversa com ele, toma banho e se arruma, se alimenta,
lê livros. Ela age como uma pessoa quase autônoma.
No entanto, logo ficará claro que Rheya só se recorda daquilo
que ela e Kelvin viveram juntos. Ela sente um afeto verdadeiro por ele
e o ama, mas também ficará evidente que esse amor é só o reflexo do
amor que Kelvin sente por sua ex-mulher. Ela procura lhe trazer um
conforto, mas este é apenas o desejo de Kelvin de ser consolado pelo
sentimento de culpa por sua morte. Assim, tudo que Rheya sente é
apenas uma projeção especular daquilo que Kelvin sente pela ex-
mulher. Ela é, portanto, apenas uma projeção da mente do psicólogo.
O que há de insólito nela é justamente estar materializada num corpo
que se movimenta com certa autonomia e é percebido pelos outros
cientistas.
Antes de prosseguir, é importante definir melhor o conceito de
insólito, em se tratando de uma fabulação de um mundo possível
extraterreno. O insólito a que nos referimos não é nem o sinal de
inverossimilhança ou de falta de veracidade. O insólito produz uma
estranheza que é o resultado do deslocamento do sentimento do real
de um mundo. Pode-se entender, a princípio, o insólito como a marca
do tangenciamento de um mundo possível a outro mundo possível.
Se é aceito o marco heterocósmico da coexistência de mundos
diversos, o insólito pode ser o signo da intersecção entre mundos que
seriam parcial ou totalmente incomensuráveis um com o outro.
Solaris é justamente a fábula do encontro entre mundos radicalmente
diferentes.
Uma das questões fundamentais dessa fábula é se é possível
estabelecer contato entre os humanos e o Oceano vivo. Essa é a
investigação mais importante da solarística, a ciência de Solaris, que
permanecia sem resposta. Kelvin, passando em revista páginas de um

86
compêndio científico, descreve as diversas formações do Oceano que
guardavam semelhanças com formações terráqueas: mimóides,
simetríades, assimetríades, longus, etc. Algumas dessas formações
guardavam semelhanças com formações humanas conhecidas, tais
como cidades antigas. Um dos astronautas, em sobrevoo sobre o
planeta, relatava ter visto a figura gigantesca de uma criança. Outras
formações eram mais abstratas e assemelhavam-se a montanhas e
cavernas. Essas formações apareciam e desapareciam da superfície
do Oceano. Os solaristas não eram capazes, no entanto, de chegar a
nenhuma conclusão sobre o significado dessas formas. Também não
eram capazes de dizer se eram formas de comunicação do Oceano
com os astronautas ou se eram apenas formas expressivas aleatórias:
“Tiveram de confessar, dentro de muito pouco tempo, que esse
famoso contato estava longe de acontecer, que tudo se limitava a
uma reprodução de formas e que estavam marcando passo num beco
sem saída” (LEM, 2003, p.154).
Os visitantes, no entanto, tinham uma conexão próxima com o
psiquismo dos pesquisadores. A hipótese de que os visitantes sejam
uma forma de contato entre o Oceano e os humanos nunca é
realmente verificada na história, isto é, no relato de Kelvin. Pois, se o
Oceano possui um sistema psíquico, consciente ou inconsciente, esse
seria tão insondável quanto de outro ser qualquer. Para abordar essa
questão, podemos utilizar a Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos
(autopoiesis) de Niklas Luhmann. Trata-se de uma teoria bastante
complexa, mas da qual utilizaremos apenas um conceito básico para
pensar a forma de comunicação entre sistemas psíquicos. Diz
Luhmann que os sistemas psíquicos são incomensuráveis uns aos
outros, porém os sistemas sociais têm como elementos únicos as
comunicações produzidas por operações desses sistemas psíquicos.

87
Uma comunicação corresponde a uma unidade de três seleções:
mensagem, informação e compreensão6.
Poder-se-ia, então, imaginar cada visitante como uma
comunicação entre os sistemas psíquicos do Oceano e dos cientistas
humanos. Nessa perspectiva, os visitantes não seriam seres
autônomos e sim mensagens pertencentes a um sistema social
formado pela complexa estação-planeta Solaris. Este complexo
formaria um “acoplamento” entre os sistemas psíquicos humanos e o
do Oceano vivo e cada visitante seria uma “interpenetração”
comunicativa entre esses sistemas. Dessa interpenetração de
sistemas resultariam “irritações” de um sistema no outro7. Nos
termos de Luhmann, o insólito do visitante pode ser entendido como
a característica perturbadora do contato entre mundos possíveis. Isso
explicaria porque cada visitante não é apenas uma alucinação
fantasiosa, mas possui uma materialidade discernível pelos demais
membros da estação. Em conclusão, cada visitante, na sua
materialidade corporal, é o elemento constituinte de uma
sociabilidade possível entre Oceano e humanos sob uma forma
comunicativa.
No entanto, esta é apenas uma hipótese, ou uma especulação
sem possibilidade de resposta, pois o narrador Kelvin só é capaz de
compreendê-la interagindo com Rheya, aceitando-a tal como é,
prologando a vivência dessa experiência de contato. Nos termos de
Luhmann, a compreensão de uma comunicação se dá através de
outra comunicação, como capacidade de prosseguir na sua

6
No original, Mitteilung, Information e Verstehen. O primeiro termo foi traduzido em
língua portuguesa de diversas formas: partilha, ato de comunicar, enunciação ou
mensagem. Para clareza e simplicidade desse ensaio, escolhemos o último termo
(SILVA, p.48). Notas do autor.
7
Os termos “acoplamento”, “irritação”, e “interpenetração” são termos da teoria
social de Luhmann e indicam a relação de acoplamento entre sistemas psíquico e
social ou entre subsistemas de um mesmo sistema.

88
autopoiese, isto é, na autorreprodução do sistema social, fazendo
assim com que os visitantes continuem aparecendo. Mas a questão
crucial do romance se torna então: querem de fato persistir os
visitantes? Terão eles vontade própria?
Para responder a essa pergunta devemos recorrer à outra ideia
do insólito ainda mais potente. Esta ideia está ligada à raiz
etimológica do termo. Este é derivado de insolitus, palavra latina que
é a negação de solitus, particípio passado de soleo, primeira pessoa
do verbo solere. Este termo quer dizer em latim estar acostumado.
Insólito é, dessa forma, o termo para o não costumeiro. Porém, o
mais interessante é prosseguir na aventura etimológica. O termo
latino solere provém da locução swé+dʰeh do Proto-Indo-Europeu
(PIE). O primeiro termo dessa locução é o que resultou no pronome
reflexivo se de nossa língua ou no termo self da língua inglesa. O
segundo termo resultou no verbo set em língua inglesa, no sentido de
pôr ou de colocar. Em síntese: insólito é aquele que não pode se pôr,
aquele que não tem seu self posto, o que não tem consistência
própria.
Não é essa ideia a que melhor descreve o estatuto ontológico
dos visitantes e, em particular, de Rheya? Meras projeções
fantasmagóricas da consciência de outrem, encarnações de
partículas-fantasma, os visitantes não possuem consistência própria
apesar da materialidade de seus corpos. O drama principal do
romance de Stanislaw Lem é a busca desesperada de compreensão
de Rheya de sua verdadeira natureza, sua procura por
autoconsciência e subjetividade. Lentamente, a personagem
compreende que ela não é realmente a ex-mulher suicida de Kelvin.
Com estranhamento crescente em relação à sua natureza, Rheya
pressiona Kelvin para que lhe diga a verdade sobre sua situação: “–
Compreendi, compreendi muito bem. Você disse que eu não era eu.
Você quer que eu vá embora. Irei, juro por Deus! Irei, mas não posso.

89
Não sei por quê. Tentei ir. Não posso. Sou tão covarde!” (LEM, 2003,
p.142).
Rheya não pode ir embora, pois não existe para além de Kelvin.
Não pode se afastar dele, pois não passa de um apêndice de sua
mente. Desesperada, ela tenta o suicídio sorvendo oxigênio líquido
em dose letal. No entanto, a tentativa é frustrada e ela se reanima
como se nada tivesse acontecido. Ela admite ter ouvido uma fita com
o relato de um dos cientistas sobre seu visitante, e então
compreende que ela e a ex-mulher de Kelvin são seres diferentes.
Kelvin admite que ela é diferente por ser imortal. E admite também
que a existência de Rheya tem a ver com a presença do Oceano:
− Sim, falo do contato com o oceano. Acho que
o problema é, na realidade, muito simples. Um
contato significa a troca de certos
conhecimentos, de certas noções, ou, pelo
menos, de certos resultados, de certas situações
de fato. Mas, se não houver troca possível? Se o
elefante não é um micróbio gigante, o oceano
não é um cérebro gigante. Evidentemente,
podem ser feitas tentativas de parte a parte. E a
consequência de uma dessas tentativas é que
você está aqui, agora, comigo. E estou me
esforçando para explicar que a amo. Sua
presença aqui apaga os doze anos de vida que
consagrei ao estudo de Solaris e quero
conservá-la ao meu lado. Você foi enviada para
me torturar ou para encantar minha existência?
Ou será que você não passa de um instrumento
que ignora sua função e do qual servem para me
examinar como através de um microscópio?
Servem-se de você para me testemunhar
amizade, para me atacar a traição ou para
zombar de mim? Talvez para tudo isso junto ou

90
talvez – e é o mais provável – para outra coisa.
(LEM, 2003, p.194)
Instrumento de tortura ou objeto de encantamento, Rheya não
é, no entanto, uma pessoa ou um sujeito. Elemento de um jogo, de
uma experiência, ou de um diálogo entre o Oceano e os cientistas, ela
não passa, como dissemos, de uma mensagem comunicativa entre
dois mundos que, paradoxalmente, não possuem uma troca possível.
Perdida entre mundos incomensuráveis, ela é o paradoxo possível de
um contato impossível. Entre os mundos de humanos e do Oceano,
ela não está em nenhum deles. Ela não tem exatamente seu próprio
mundo. Sua memória e seu desejo são o desejo e a memória de
Kelvin. Assim, sua subjetividade só pode se manifestar negativamente
como um desejo de aniquilação de si. Em sua última fala, um bilhete
de despedida, a última palavra é justamente seu nome por escrito.
A fabulação especulativa de Solaris, como de outras obras de
Stanislaw Lem, coloca o discurso científico às voltas com suas
próprias limitações. No embate das controvérsias que compõem a
solarística, nenhuma hipótese pode ser realmente comprovada. Um
dos cientistas (Sartorius) diz a certa altura:
Não queremos conquistar o cosmo, queremos
apenas levar a Terra às fronteiras dele. […]
Consideramo-nos os Cavalheiros do Santo
Contato. É outra mentira. Só nos interessa o
homem. Não precisamos de outros mundos.
Precisamos de espelhos. Não sabemos o que
fazer dos outros mundos. (LEM, 2003, p.98)
O verbo especular tem o mesmo radical de espelho. No limite
da ciência está a projeção da imagem do ser humano na alteridade
mais radical de um mundo totalmente distinto e que se organiza
numa lógica completamente alheia à lógica humana. Ou seja, a busca
do Mesmo no Outro. Nessa perspectiva, o insólito dos visitantes é
uma mancha nesse espelho. Mancha homóloga à “anomalia” de um

91
paradigma, como aquilo que se recusa a ser incorporado à trama
racionalista e totalizadora da descrição científica8. No final do
romance, discute-se se o Oceano seria a infância de um deus
imperfeito. Ao estudioso Kelvin, que passou parte de sua vida
estudando o planeta e o Oceano, só resta admitir: “Mas nenhuma
descrição poderia retratar a experiência como a vivi” (LEM, 2003). E
então é preciso trocar a ciência pela fé e substituir sua busca de
entendimento pela espera de um tempo de milagres.

DOLEZEL, Lubomir (1999). Heterocósmica. Madrid: Arco/Libro.


KUHN, Thomas (1970). The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The
University of Chicago.
LEM, Stanislaw (2003). Solaris. Tradução: José Sanz. Rio de Janeiro: Relume
Dumará.
SCHOLES, Robert (1975). Structural fabulation: an essay on fiction of the
future. South Bend: University of Notre Dame Press.
SILVA, Artur Stamford da (2016). 10 lições sobre Luhmann. Petrópolis:
Editora Vozes.

8
Anomalia é um conceito de Thomas Kuhn em sua obra sobre os paradigmas
científicos (1970).

92
João Olinto Trindade Junior (UERJ)
Em seu texto paradigmático, “A personagem de ficção”,
Antonio Candido aponta a importância de um ser fictício para uma
obra, através do qual ela transmite “a impressão da mais lídima
verdade existencial” (1976, p.55). Desde já aponta como a realização
da obra literária se dá por primar o princípio da verossimilhança,
convencendo o leitor pela complexidade de suas personagens
devidamente estruturadas. Se é através do narrador que conhecemos
determinado acontecimento, é pela personagem que percebemos
determinada realidade, através dela que temos contato com o reflexo
daquele mundo.
Mas qual é a relevância da personagem enquanto categoria
narrativa? Se ela existe em um mundo de mentiras, não é correto
dizer que sua importância se iguala a do Espaço, outra igualmente
importante categoria? Devemos atentarmos ao que diz Carlos Reis
sobre a importância da personagem para a produção de sentidos
ficcionais:
Tende-se [...] a entender a personagem como
signo, o que corresponde a acentuar a sua
condição de unidade suscetível de delimitação
no plano sintagmático e de integração numa
rede de relações paradigmáticas: a personagem
é localizável e identificável pelo nome próprio,
pela caracterização, pelos discursos que
enuncia, etc., o que permite associá-la a
sentidos temático-ideológicos confirmados em
função de conexões com outras personagens da

93
mesma narrativa e até em função de ligações
intertextuais com personagens de outras
narrativas. (2008, p.361)
O pesquisador português não desmerece as demais categorias,
mas aponta como
uma longa tradição cultural vincula as ações
relatadas sobretudo a uma concepção
antropomórfica da personagem, como fulcro de
concentração de elementos semânticos
(temáticos, sociais, ideológicos, etc.)
dominantes no relato, por sua vez, a integração
narrativa da personagem solicita quase sempre
a sua inserção em espaços que com ela
interagem: porque a condicionam, porque por
ela são transformados, porque completam a sua
caracterização, como quer que seja, porque
colaboram na sua configuração como entidade
carregada das virtualidades dinâmicas que o
envolvimento da ação concretiza. (2008, p.352)
Dessa maneira, a personagem age diretamente em relação com
as demais categorias narrativas. Seu modo de ser/agir estaria
vinculado – em ambos os sentidos – pelos espaços que ocupa e nele
interfere. É a personagem, nesse ponto, elemento de tamanha
importância para a ficção, para os mundos ficcionais representados. É
através dela que o escritor, em seu processo de composição ficcional,
ao traduzir o meio em que vive, interpreta e adapta os
acontecimentos de sua sociedade com base nas personagens que
nela transitam. É por meio da personagem – esse ser da ficção – que
o autor espelha a graça da obra ficcional, a ponto desta conquistar a
imortalidade (BRAIT, 2000, p.9).
Nas obras literárias contemporâneas, as caracterizações da
personagem se definem pela complexidade com que são criadas,
complexidade essa já abordada desde Aristóteles sobre as ações em

94
que as personagens estavam envolvidas, tendo como referencial um
mundo empírico (1998, p.78). Por agirem de acordo como o mundo
empírico em que estão envolvidos, essas personagens,
ocasionalmente, são desfragmentadas, permitindo que o leitor,
assim, perceba “la fragilidad del orden conocido para permitir que lo
cotidiano deje de ser indiferente o banal” (ARÁN, 1999, p.52). É nessa
perspectiva que abordamos como tais personagens – fragmentadas –
são um reflexo de uma realidade fragmentada.
Como já aponta Homi Bhabha sobre o “laborioso ato de falar
da própria coletividade” (1995, p.9), Mia Couto, um dos mais
importantes escritores de língua portuguesa da atualidade, ao
resgatar elementos do passado em sua narrativa, em seu processo de
“narrar a nação”, faz uso freqüente do ato/fato/evento insólito ao
longo de sua construção, reinterpretando o mito na atualidade, por
vezes para promover uma leitura de uma modernidade enlatada.
Outro escritor, o brasileiro José Pereira Veiga, conhecido como José. J.
Veiga, faz o mesmo ao contar a história do Brasil que há no interior
de cada vila, sob a ótica da gente do seu interior.
Na pós modernidade, as relações existentes entre história e
ficção são revistas sobre outra ótica. Assim como essas duas
manifestações da contação de algo variam ao longo do tempo, na
contemporaneidade o dito é revisto e o revisto é reinterpretado.
Dessa forma, somos apresentados não a uma história, fato concreto e
realidade assumida por convenções consagradas, mas possibilidades
de acontecimentos oriundas de diversas vozes. O modelo positivista
da razão entra em choque frente à questão, não da verdade, mas do
possível, do passado não linear mas formado por várias histórias,
várias contações da mesma história que ora formam um todo, ora
permitem uma visão diferente a cada relato. Essa nova maneira de se
ver o passado, preocupada tanto com a versão oficial quanto com as
variantes, se adequa ao narrador Benjaminiano que ao contar um
acontecimento, o contato é ouvido, interpretado, recontado e

95
ressignificado em um eterno ciclo na contação/narração. O passado
passa a ser compreendido como um momento não morto tampouco
resgatado apenas pela conveniência de determinadas perguntas, mas
trazido à tona pela ressignificação imposta pelas diferentes vozes que
o professam.
Dessa maneira, como expõe Linda Hutcheon, a metaficção
historiográfica problematiza a possibilidade do conhecimento
histórico (1991, p.142), permitindo um melhor aprofundamento em
outras questões relacionadas a fatos ocorridos e resgatados,
utilizando a licença do poderia para exemplificar versões de um
mesmo fato. É, através dessa(s) leitura(s), que observamos como os
escritores José. J. Veiga e Mia Couto utilizam o insólito como
denúncia da dissolução/subversão dos preceitos de uma sociedade,
suas noções mais fundamentais, suas tradições. A história,
ficcionalizada, faz emergir no seio da narrativa as vozes anuladas do
espaço conhecido como história oficial. São memórias que,
“silenciadas, adquirem corpo e voz. Não num movimento linear que
poderia ter sido promovido por um narrador autoritário que quer
‘falar pelo outro’. Antes, inscrevem-se tais memórias do corpo e da
voz do dominado” (FONSECA; CURY, 2008, p.41). E, para transmitir
esse resgate das mudanças sociais via universo ficcional, os escritores
aqui apresentados criam personagens decisivos para esse processo
de transmissão de acontecimentos. Essa transmissão via personagem
ficcional só é possível “através de um jogo de linguagem que torne
tangível a sua presença e sensíveis os seus movimentos” (BRAIT,
2000, p.53).
Percebe-se, nas sociedades industrializadas, uma nova visão
sobre os intérpretes da tradição oral, pois a tradição perde seu
caráter sagrado e, por isso, seus intérpretes também, seu fazer já não
é mais visto como algo que contribua para o meio social. A visão
crítica da sociedade como forma de desencantamento produzido pela
perda do sagrado, a hegemonia do pensamento científico, o

96
predomínio da racionalidade exacerbada e, sobretudo, a exploração
social. O Fantástico, por sua vez, age como uma colocação em
períodos de crise pelos quais passam as utopias políticas e sociais
(ÁRAN, 1999, p.44). Em suma, ele é, por excelência, um discurso
contra-hegemônico. É através dele que o escritor coloca em prática
sua habilidade linguística, de maneira que possamos enxergar “a
sensibilidade de um escritor, a sua capacidade de enxergar o mundo e
pinçar nos seus movimentos a complexidade dos seres que o habitam
realizam-se na articulação verbal” (BRAIT, 2000, p.67).
Na obra de ambos os escritores, o processo de resistência a
novos valores que se propõem a derrubar os antigos gera um
processo de resistência entre uma tradição que deveria se
modernizar, e uma modernidade que renega a tradição. Em
sociedades onde mito e realidade formam um todo coerente e
denunciador (TUTIKIAN, 2006, p.59), a introdução do insólito age
como acontecimento natural e cotidiano, denunciativo da violência
social que assola a vida tanto dos habitantes do interior goiano
quanto do mosaico Moçambicano. Nas palavras de José J. Veiga,
Fui vítima de uma invenção minha. Na época em
que resolvi levar a coisa a sério, pensei: para ser
escritor, preciso fazer alguma coisa mais ou
menos diferente do que se faz. Então me veio a
idéia de fazer isso que chamam fantástico. Mas
depois dos Cavalinhos vi que não era fantástico.
Era uma maneira de ver a realidade talvez mais
a fundo. São camadas da realidade que não
estão à mostra. Então continuei por aí. (Apud
CAMPEDELLI, 1982, p.100)
Mia Couto, em várias entrevistas, alerta que África tem pleno
direito à modernidade (Apud FONSECA; CURY, 2008, p.14-15), mas
uma que respeite as mestiçagens que ela própria iniciou, gerando,
assim, territórios híbridos que são, basicamente, modernas cidades

97
europeias em terras africanas que, ao longo do seu processo de
construção, precisaram se reinventar de acordo com o espaço que
ocupam.
É importante observarmos como, em ambos os autores, existe
uma relação entre o insólito e a transgressão contra elementos
constituintes de um grupo/espaço/realidade sociocultural, ou seja, a
“violência sociocultural, resultante do puro e livre arbítrio de um
poder” (SODRÉ, 2002, p.12). Nesse sentido, tanto os Moçambicanos
quanto os Goianos em seus espaços identitários – e, por assim dizer,
suas crenças – são subvertidos pelas novas ordens dominantes.
Exemplos dessa representação estão nos contos “A estranha máquina
extraviada”, de José. J. Veiga e “Sangue da Avó Manchando a
Alcatifa”, de Mia Couto. No primeiro, temos a instalação de uma
estranha máquina no centro de uma cidade do interior goiano, a qual
ninguém faz idéia de sua utilidade. No segundo conto, observamos a
chegada de avó Carolina, protagonista trazida do interior onde
“mantinha magras sobrevivências [...] em terra mais frequentada por
balas que por chuva [...] Trazida por razões de guerra” (COUTO, 2003,
p.25). Tão logo é trazida, choca-se com a mudança de ambientes, a
diferença entre o campo e a cidade e, principalmente, os luxos da
família em contraste com a pobreza da cidade, incoerentes com sua
idéia do que deveria ter se tornado a sociedade. Ao questionar
aquela situação, não tardam a encaminhá-la para a frente da
Televisão, a maior de suas rivais. Em ambos os contos, de maneira
inexplicável, as máquinas não tardam a encantar as pessoas que as
rodeiam, alterando seu ritmo de vida. Em ambas situações, ocorre
um processo de construção do texto em que os autores demonstram
suas estratégias para dar vida a esses seres de ficção (BRAIT, 2000,
p.10).
A Televisão e a estranha Máquina, em ambos os casos,
encarnam o papel de personagens decisivos para a representação de
uma estranha realidade. Embora pareçam personagens incomuns

98
para uma narrativa – pois não se movimentam, não agem e,
principalmente, não falam por si próprios – especialmente no caso da
televisão, que apenas retransmite as mensagens –, Carlos Reis e Ana
Cristina Lopes, em seu Dicionário de Narratologia, assumem por
caracterização da personagem
todo o processo de pendor descritivo tendo
como objetivo a atribuição de características
distintivas aos elementos que integram uma
história, designadamente os seus elementos
humanos ou entidades de propensão
antropomórfica; nesse sentido, pode dizer-se
que é a caracterização das personagens que faz
delas unidades discretas identificáveis no
universo diegético em que se movimentam e
relacionáveis entre si e com outros
componentes diegéticos. (2002, p.51)
Seu poder – e, no caso da Máquina do conto Veiguiano, sua
origem – é envolto em mistérios. Segundo Brait,
Se quisermos saber alguma coisa a respeito de
personagens, teremos de encarar frente a frente
a construção do texto, a maneira que o autor
encontrou para dar forma às suas criaturas, e aí
pinçar a independência, a autonomia e a “vida”
desses seres de ficção. (2000, p.11)
Samira Youssef Campedelli aponta como o sertão se evidencia
na obra veiguiana frente ao seu choque com as estranhas
companhias e seus métodos industrializados de trabalho; para as
máquinas complicadas que de repente emergem, vindas do mundo
civilizado, as hierarquias complexas que, certamente, o povo do
interior enxerga como fantásticas (1982, p.100). Por sua vez, o
choque de Avó Carolina – oriunda do interior moçambicano, assim
como grande parte da população que, até a véspera da

99
independência do país, vivia no meio rural – diante de um centro de
poder dominado por outros costumes e valores, gera um
estranhamento na anciã diante dos novos deuses que conduzem a
vida não apenas de sua família, mas dos moradores da capital,
Maputo. O culto ao consumo toma o lugar da contadora de histórias
tradicional.
Essa transição de valores vai de encontro ao que Maurice Lévy,
ao refletir sobre as narrativas de H.P. Lovecraft, apontara:
O fantástico para Lovecraft [...] é também, no
plano moral, inversão dos valores, destruição de
tudo o que na sociedade tem uma função
integrante ou confere segurança. Neste
desmoronamento universal, nada do que
poderia permitir ao homem situar-se consegue
ser poupado: nem mesmo o sagrado, que deve
tornar-se sacrílego. (Apud FURTADO, 1980, p.22-
23)
O insólito, como fio condutor dos eventos ocorridos nos dois
contos, denuncia não apenas a desconstrução dos valores sociais
vigentes, como, também, o surgimento de novos símbolos que
tomam o lugar desses valores, influenciando insolitamente a vida das
personagens envolvidas nas tramas. A máquina do conto de José. J.
Veiga, a exemplo, é o centro das atenções em todas as datas cívicas e
demais festividades (CAMPEBELLI, 1982, p.51).
Na obra veiguiana, “é comum a figura do padre se sobressair
em cidades do interior, onde representantes do clero geralmente
funcionam como conselheiros, pessoas de saber, a quem se recorre
em casos de dificuldades” (1982, p.32). Em “A Máquina extraviada”, o
Vigário tem sua autoridade – melhor dizer, valor, sentido de existir –
temporal/espiritual questionada frente a suas relações com a
máquina. Além de ser questionado por não prestar as devidas
homenagens/cultos a ela, é malvisto pela população por suas

100
atitudes. Citando, “em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e
ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um
direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas
ninguém se impressionou” (1982, p.61).
Aqui, o desrespeito à figura do Padre – símbolo do sagrado –
contribui para demonstrar como uma modernidade enlatada
desvirtua símbolos tradicionais de uma sociedade. Esses símbolos, ao
longo do jogo de representação na modernidade – e nas narrativas
aqui discutidas –, passam pelo seu foco de transição. Transições essas
que passam pelo conceito do desrespeito. Segundo Bhabha,
De que modo chegam a ser formuladas
estratégia de representação ou aquisição de
poder no interior das pretensões concorrentes
de comunidades em que, apesar de histórias
comuns de privação e discriminação, o
intercambio de valores, significados e
prioridades pode nem sempre ser colaborativo e
dialógico, podendo ser profundamente
antagônico, conflituoso e até incomensurável?
(1998, p.20)
Já em “Sangue da Avó Manchando a Alcatifa”, em uma inversão
dos valores autóctones, a velha encontra sua adversária por
excelência, a Televisão. Inimiga moderna que se propõe a tomar seu
lugar não apenas como contadora de histórias, mas também
mantenedora das novas tradições, essa vil adversária, tal como os
antigos griots, reúne, brilhando como uma fogueira, os membros da
família/comunidade, os quais, com os olhos bem abertos, sequer
piscam. Em um período na pós-modernidade onde o velho vai sendo,
gradualmente, descaracterizado de sua importância – sendo o
mesmo um elemento tradicional de uma cultura autóctone com a
dupla função de transmissão do saber e manutenção da sociedade,
ligação com a ancestralidade, elo entre o ontem e o hoje, os

101
ancestrais e os mais novos –, Mia Couto denúncia a descaracterização
desse ancião, esquecido e desprestigiado. Os autores reinventam
ficcionalmente as realidades que habitam, transportando-as aos seus
leitores através das personagens que criam – a televisão e a máquina
–, transmitindo, assim, a ilusão da existência de outros espaços.
Não passa despercebida a comparação da Televisão com uma
fogueira moderna:
Estavam todos em redor da fogueira. O velho
contava a história, sem levantar os olhos das
labaredas. Os outros escutavam, em silêncio,
entreolhando-se de vez em quando com
expressão amargurada. O velho falava sem uma
pausa, num tom monótono. (Altuna, Apud
PADILHA, 2007, p.97)
Mais noite, ela despertava e luscofuscava seus
pequenos olhos pela sala. Filhos e netos se
fechavam numa roda, assistindo vídeo. Quase
lhe vinha um sentimento doce, a memória da
fogueira arredondando os corações. E lhe subia
uma vontade de contar estórias. Mas ninguém
lhe escutava. (COUTO, 2003, p.26)
Não é incomum que os atributos da personagem se encontrem
refletidos sobre o espaço (REIS; LOPES, 2002, p.52-53): A vida dos
moradores da cidade, bem como da família da avó, passa a ser um
reflexo da existência da Televisão e da Máquina.
Através de um jogo ficcional, ambos os escritores demonstram
como valores socioculturais – incluindo suas crenças – são
subvertidos em prol de novos deuses, que delimitam seus rumos,
controlando tanto a vida quanto a morte. Em cidades do interior –
não apenas de Goiás – a associação entre festas comunitárias com o
sacro e o profano tem uma relação muito mais importante, assim
como a imagem do velho como transmissor de conhecimentos em

102
África. Entretanto, é a máquina do conto veiguiano que assume
contornos de autoridade espiritual e a avó da narrativa miacoutiana
que tem seu lugar usurpado pela televisão. Essa transição do status
de sagrado se dá pelo fato de que, “na tradição africana, a fala, que
tira do sagrado o seu poder criador e operativo, encontra-se em
relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia no
homem e no mundo que o cerca” (HAMPATÉ BA, 1982, p.186).
Por outro lado, se no conto veiguiano um acidente ocorrido
com um dos moradores ao escalar a máquina só é importante na
medida em que não a danificou, em Mia Couto o culto do consumo –
e seu avatar, a televisão – afasta os olhos das pessoas para as mazelas
que afligem aquela sociedade. A invasão tecnológica ocorre através
desses objetos que carregam um poder sobrenatural capaz de intervir
na vida das pessoas.
Filipe Furtado, abordando a origem do acontecimento insólito
com base em objetos “sacros”, aponta como, nas narrativas em que
elas são o fio condutor,
são frequentes as alusões à índole maléfica da
manifestação metaempirica nelas encenada [...]
assim, quando a fenomenologia insólita
representada na narrativa inclui figuras
monstruosas, estas são invariavelmente
definidas por uma extrema malignidade.
(FURTADO, 1980, p.23)
Essas “personagens-objeto”, apresentam ao leitor a
manipulação de sociedades tradicionais na modernidade, onde seus
elementos constituintes são, por definição, fantásticos. É através
delas que os escritores retomam “a personagem como categoria
narrativa translinguistica” (REIS, 2006, p.17) que motivam a
construção de universos ficcionais, onde ocupam lugar de destaque,
de maneira que sua caracterização, por vezes, realça “fatores de
conflito ou de harmonização” (REIS; LOPES, 2002, p.53).

103
Mircea Eliade propõe o termo hierofania para o ato da
manifestação do sagrado. Para ele, “a história das religiões – desde as
mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número
considerável de hierofanias [...], por exemplo, a manifestação do
sagrado num objeto qualquer, urna pedra ou uma árvore” (1992,
p.13). Assim, tanto a Máquina quanto a Televisão tornam-se
elementos modificadores e participativos da realidade, ela própria
insólita. Nesse caso, é uma máquina surgida do dia para a noite e
uma televisão no meio da sala que instauram o insólito e
desarmonizam a sociedade. Ambas, enquanto personagens,
emergem nas narrativas como aquilo que não é comum, mas se
tornam, apesar de insólito, repetidamente presente, desvelando,
assim, seu caráter sobrenatural, extraordinário.
É relevante observarmos a importância dessas duas figuras
para o desenvolvimento dos contos. Segundo Carlos Reis, figura
significa “personagem ou personalidade de importância, assim
mesmo, aparentemente oscilando entre ficção (personagem) e real
(personalidade)” (2006, p.19). Poderíamos, assim, ler na figura uma
espécie de “designação fundacional da personagem como figura da
ficção” (2006, p.20).
Por sinal, o maior medo dos moradores do conto veiguiano era
que, justamente, desembarcasse “um moço de fora, desses
despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por
dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela. [...] Se
isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais
máquina” (CAMPEDELLI, 1982, p.61). Em ambos os casos, pelo papel
que ocupam nas narrativas, a Máquina e a televisão atuam como
“uma subversão da personagem narrativa [...] convencional,
remetendo para efeitos sociopolíticos transliterários e transficcionais
que induzem, a partir da ficção, novas formas de experienciar o real e
novos modos de ser social” (REIS, 2006, p.18).

104
Todorov não tarda a apontar como “o fantástico se define
como uma percepção particular de acontecimentos estranhos” (1992,
p.49). Assim, José. J. Veiga e Mia Couto, ao irromperem esses
personagens-objeto no seio da diegese, ampliam a percepção de um
fato que compõe determinado universo, de maneira que a
manifestação do insólito clareia a noção de dado evento, revelando a
subversão da realidade, apresentada como única possibilidade de
resposta a um mundo comprometido, de modo que o sobrenatural se
torna uma variante de percepção do homem e do mundo que ele
habita, constrói e modifica.
Se no conto “A Máquina extraviada” o padre reserva-se à suas
censuras veladas, em “Sangue da Avó Manchando a Alcatifa”, Avó
Carolina, agindo como figura de autoridade que lhe é por direito no
universo cultural africano, ela ataca a figura que, na trama, o narrador
melhor caracteriza como representação daquela modernidade
imposta:
Nessa noite, a televisão transmitia uma
reportagem sobre a guerra. Mostravam-se os
bandidos armados, suas medonhas acções. De
súbito, sem que ninguém pudesse evitar a velha
atirou a sua pesada bengala de encontro ao
aparelho de televisão. O écran se estilhaçou, os
vidros tintilaram na alcatifa. Os bandos se
desligaram, ficou um fumo rectangular. (COUTO,
2003, p.27)
Agindo para eliminar o que, em sua concepção, era o
responsável pela situação no país – a televisão como representação
da entrada do mercado ocidental sem o devido respeito pela cultura
local – não tarda a acusar o genro de que os bandidos circulavam em
sua própria casa, em uma denúncia do escritor de que os culpados
pelo desenrolar da sociedade moçambicana são as próprias pessoas
que a compõem. É uma ocorrência comum, também, na obra de José

105
J. Veiga: os moradores de uma determinada cidade, embora
procurem resistir, acabam compactuando com o novo que altera o
status quo. Os moradores da cidade não tardam a mudar totalmente
sua vida em proveito da estranha Máquina. Outro exemplo está no
romance A Hora dos Ruminantes: sistematicamente, as personagens
vão se rendendo aos homens da tapera, fazendo suas vontades
(VEIGA, 1974).
É justamente a mantenedora da antiga ordem social que
percebe e age, recolhendo os cacos do objeto destruído, fazendo com
que sangue pingue no tapete, permanecendo a dúvida – apesar do
título do conto – sobre o sangue ser proveniente de uma ou de outra
figura sagrada, a avó ou a televisão. O teórico português Filipe
Furtado afirma que só o fantástico confere sempre uma extrema
duplicidade à ocorrência insólita, de que, em sua essência, reside na
capacidade de expressar o sobrenatural de forma convincente. Se,
por um lado, no conto veiguiano as personagens temem que seu
“novo deus” perca sua magia, no conto miacoutiano o “antigo
sagrado” inerente àquela realidade é resgatado/impossibilitado de
ser substituído quando, na impossibilidade de lavar do chão as gotas
de sangue da avó que caíram no tapete após a destruição da TV, a
família tenta uma última opção:
No entanto, ainda hoje uma mancha vermelha
persiste na alcatifa. Tentaram lavar:
desconseguiram. Tentaram tirar os tapetes:
impossível. A mancha colara-se ao soalho com
tal sofreguidão que só mesmo arrancando o
chão. Chamaram o parecer do feiticeiro. O
homem consultou o lugar, recolheu sombras.
Enfim, se pronunciou. Disse que aquele sangue
não terminava, crescia com os tempos,
transitando de gota para rio, de rio para oceano.
Aquela mancha não podia, afinal, resultar de
pessoa única. Era sangue da terra, soberano e

106
irrevogável como a própria vida. (COUTO, 2003,
p.28)
Cada autor, a sua maneira, “lê” ao meio social do qual se faz
herdeiro, amplia-o ou rompe com a mesmo, no plano da diegese, de
acordo com suas opções estéticas. Ao mesmo tempo, uma leitura
comparada entre José J. Veiga quanto de Mia Couto ampliam e
possibilitam inúmeras releituras entre esses escritores, tornando
possível a percepção de novos vieses. Em suma, “a cada passo a
tradição pode ser virada do avesso e lida de trás para frente”
(CARVALHAL, 2007, p.63). Em diálogo com o pensamento de Carlos
Reis, ao utilizar procedimentos de construção da personagem no
universo da ficção, esses escritores colocam-nas em relação direta ou
indireta com o mundo real e com os sentidos transliterários.

ARAN, Pampa O. (1999). El fantástico literário: aportes teóricos. Madri:


Tauros Ediciones.
ARISTÓTELES (1998). Poética. São Paulo: Ediouro.
BHABHA, Homi K. (1995). Nação e narração. Tradução: Glória Maria de
Mello Carvalho. Belo Horizonte: Puc/MG.
______. (1998). O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG.
BRAIT, Beth (2000). A personagem. 7.ed. São Paulo: Ática.
CAMPEDELLI, Samira Youssef (1982). José J. Veiga: Literatura Comentada.
São Paulo: Editora Abril.
CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES,
Paulo Emílio Salles (1976). A Personagem de Ficção. São Paulo: Editora
Perspectiva.
CARVALHAL, Tânia Franco (2003). Literatura Comparada. São Paulo: Ática.
COUTO, Mia (1998). Cronicando. Lisboa: Caminho.

107
ELIADE, Mircea (1992). O Sagrado e o Profano: a essência das religiões.
Tradução: Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes.
FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda Ferreira (2008). Mia
Couto: espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica.
FURTADO, Filipe (1980). A construção do fantástico na narrativa. Lisboa:
Horizonte.
HAMPATÉ BA, Amadou (1982). “A tradição viva”. In: Ki-Zerbo, J. (Org.).
História Geral da África I: Metodologia e pré-história da África. São Paulo:
Ática; Paris: UNESCO.
HUTCHEON, Linda (1991). Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro:
Imago.
PADILHA, Laura Cavalcante (2007). Entre voz e letra: o lugar da
ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: EdUFF.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. (2002). Dicionário de narratologia. 7.ed.
Coimbra: Almedina.
REIS, Carlos (Coord) (2006). Figuras da Ficção: introdução aos estudos
literários. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa.
______. (2008). O conhecimento da literatura: introdução aos estudos
literários. 2.ed. Coimbra: Almedina.
SODRÉ, Muniz (2002). “Introdução”. In: ______. Sociedade, mídia e violência.
Porto Alegre: Edipucrs. p.12.
TODOROV, Tzvetan (1992). Introdução à literatura fantástica. 2.ed. São
Paulo: Perspectiva.
TUTIKIAN, Jane (2006). Velhas identidades novas: o pós-colonialismo e a
emergência das nações de língua portuguesa. Porto Alegre: Sagra Luzzatto.
VEIGA, José J. (1974). A Hora dos Ruminantes. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
______. (1997). A Máquina Extraviada. São Paulo: Bertrand Brasil.

108
Luciana Morais da Silva (UERJ/UC)
Quando ele recebeu seu primeiro exemplar de O ex-mágico, ele disse que
foi dormir com ele debaixo de seu travesseiro. Todas as suas personagens
fantásticas reuniam-se, de certa forma, onde tinham nascido: dos sonhos
de um contista que escreveu antes de seu tempo. (TAKAHASHI, Jiro)

Conhecido como um escritor fora de seu tempo, Murilo


Rubião, por meio de uma consciência de seu fazer literário, foi capaz
de matizar sua apreensão da realidade e a perspicaz compreensão de
um mundo a ser inventado. Nessas construções, o autor colocou no
papel personagens fantásticas, fruto de seus sonhos, conforme
lembra Takahashi sobre episódio após o lançamento de O ex-mágico.
O mundo onírico criado por Rubião permite uma plena
compreensão dos processos de constituição de suas personagens,
mas dominado, contudo, pela incompreensão que a cerca nos
mundos em que vive. A angústia, como traço reiterado em algumas
de suas narrativas, cresce, como em “O convidado” (p.57-71), para
um estado quase letárgico. José Alferes, personagem principal do
referido conto, como algumas outras personagens rubianas, é
seduzido pelo desejo por uma mulher e também pela inclusão social,
porém todo o processo de encantamento constrói-se pelo
esvaziamento da ausência e da espera.
Assim, os procedimentos em torno da estruturação da
personagem formulam-se pela breve caracterização física e/ou
psíquica do ser, consolidando-se, exatamente, pelo percurso desse
ente ficcional no decorrer da narrativa. A estratégia, em geral, usada
por Rubião alude ao lugar comum, do ser humano em um recorte do
quotidiano, para, posteriormente, dar-lhe novas roupagens e

109
percepções, até mesmo aterrorizadoras. Caso, por exemplo, da
contemplação de si realizada por Alferes diante do espelho: “a figura
refletida no espelho desagradava-lhe pelo aspecto sombrio”
(RUBIÃO, 1974, p.62). O fato de a personagem estranhar seu próprio
reflexo aponta para uma incapacidade de se auto identificar para
outro eu, isto é, um outro de si. Traço bastante significativo para a
reflexão acerca dos processos de figuração das personagens.
As estratégias empregadas na composição de mundos possíveis
ficcionais vinculam-se a diversas manifestações em narrativas
literárias que têm por pano de fundo construtos culturais,
reconstituídos no texto (ECO, 2011, p.112). Assim, pode-se
depreender que a ficção demarcaria passagens dos possíveis para o
real, e do real para os possíveis (CAUQUELIN, 2011, p.73), em inter-
relações de transmigrações de mundos.
Tais passagens de um mundo a outro em idas e vindas seriam
realizadas por modelos de mundos possíveis ficcionais construídos
semanticamente para parecerem pertencentes ao mundo real – de
referência, do senso-comum –, por meio de relações de apropriação
e integração – construtos acessíveis a partir do conhecimento de
mundo emissor/receptor –, permitindo certa identificação entre
mundos (RYAN, 1991, p.557-558; MARGOLIN, 1991, p.518-519). As
delimitações desses mundos possíveis estariam, portanto, ligadas à
logicidade de sua constituição, dentro dos limites da não-contradição,
uma vez que tudo poderia ser possível na composição dos mundos
possíveis ficcionais, desde que não haja contradições de formulação
(RYAN, 2012; MARGOLIN, 1991, p.518-519).
As discussões em torno da figuração das personagens, ou seja,
o fazer personagem, são componentes dos mecanismos presentes na
construção de mundos possíveis ficcionais. Mundos estes, gerados
pelas impressões e escolhas de cada autor, que são, de certa forma,
parte de seu olhar sobre os mundos que o cerca – atuação do
remetente na construção dos possíveis ficcionais, integrando marcas

110
da realidade dos seres de carne e osso no âmbito ficcional, conforme
Ryan (1991, p.561).
O autor, desse modo, apreenderia sentidos nos mundos à sua
volta e os imprimiria na estrutura de suas obras, e o leitor perceberia,
em seus atos de leitura (ISER, 1996), os traços que apontariam para
os modos singulares presentes na configuração narrativa de cada
autor, em particular. Há casos em que é imperiosa uma especial
atenção para as derivações relativas às rupturas na armação dos
mundos possíveis do insólito ficcional, ou, como sugere Lubomír
Dolezel, “mundos impossíveis” (1998, p.233).
As derivas pelos processos de construção narrativa, exploradas
no presente estudo, têm como marco principal a apreensão e o
enfoque de traços da figuração de personagens nas “arquiteturas”
(CAMPRA, 2008, p.19-20) dos “novos discursos fantásticos” (PRADA
OROPEZA, 2006), em que o insólito se manifesta. As leituras e as
considerações aqui propostas, acerca das percepções empreendidas,
ancoram-se na escolha de narrativas pertencentes a três diferentes
escritores, de três diferentes países e, ainda, de três diferentes
continentes, que têm, como marco de intersecção, a comunhão
histórica, que une e segrega, ao mesmo tempo.
Dessa forma, os mundos narrativos, nos novos discursos
fantásticos, poderiam ser descritos como mundos textuais acessíveis,
principalmente por seus modelos de composição e eixos narrativos,
conectados aos mundos dos seres de carne e osso, mas delimitados
pela imprevisibilidade do tempo, do espaço e da ação que envolve as
personagens.
No mundo possível ficcional as personagens permitem que se
observe a variedade de sentidos presentes em simples ações
quotidianas. Com isso, percebe-se que, conforme Carlos Reis, “a
personagem constitui o agente de acções variavelmente complexas”
(2001, p.361), sendo ela a categoria fundamental da narrativa (REIS,
2001, p.360). Nesse sentido, a personagem, como observa Ruth

111
Miguel, seria uma fonte inesgotável e ao mesmo tempo insondável,
visto que a sua capacidade de retenção do real é tão grande que tudo
nela é permitido e esperado” (2011).
Os “seres de papel” (BARTHES, 1971) serão analisados a partir
de suas constituições na ficção em que o insólito se manifesta,
principalmente ao ocasionar uma relação de choque entre os níveis
narrativos. Como parte da análise se observou a configuração do
conflito presente na história, denunciado pela relação
interdependente entre traços que enunciam a ruptura presentes na
própria narrativa.
Percebendo-se as estratégias que constituem os mundos
possíveis pode-se enunciar como a categoria do insólito transforma
um ambiente familiar, tornando-o aleatório e consequentemente em
conflito com a lógica. De acordo com Bella Josef o fantástico se
constitui na lógica do ilógico, manifestando em um cenário
aparentemente corriqueiro, ancorado no senso-comum vigente,
acontecimentos inesperados, extraordinários, por fim, insólito. A
escrita de Murilo Rubião constrói-se pelas vias do insólito. Trata-se de
um contista com uma prosa consciente de seu lugar de fala, visto que
captura em sua literatura as máculas perpetuadas em seus mundos.
Os mundos possíveis ficcionais construídos sob o signo de
personagens na contística de Murilo Rubião obedecem a uma rigidez
própria do conto, que, por ser breve, forja-se pela captura de uma
ação única (IMBERT, 2015, p.37). E são assim os mundos possíveis
rubianos, marcados pela ação vivida por uma personagem em todo
seu trajeto pela vida, figurando como paciente ou agente de um
sistema de incongruências instauradas na narrativa. Benedito Nunes,
tratando de O convidado, afirma: “parece-nos ser o contraste entre a
particular coerência do discurso narrativo, minucioso e
imperturbável, e a particular incoerência da matéria narrada” (1975).
O discurso construído de modo particular pelo escritor, que
provoca uma crescente angústia, derivada da empatia – no sentido

112
de auto-reconhecimento no outro, uma projeção de si: aquilo poderia
vir a acontecer na vida de qualquer pessoa – do leitor para com as
personagens, promove um encontro entre a lógica narrativa e o
ilógico de filas sem fim ou mulheres eternamente grávidas. As
narrativas são cuidadosamente provocativas, testando, em certa
medida, as próprias referências da leitura realizada, principalmente
ao perpetuar a contínua incapacidade de transpor o incomum.
Os mundos possíveis ficcionais, engendrados por Rubião,
estabelecem a conexão com um traço quotidiano e a partir dele
instauram o caos. Segundo Jorge Schwartz, em “O fantástico em
Murilo Rubião”, estaria desengajada de qualquer movimento literário
no Brasil, surgindo de maneira insólita, como a própria temática de
seus contos. Como destaca, este é o caso do autor que “ficou
relegado na história das letras brasileiras. Sua primeira obra data de
1947 [O ex-mágico]. Pioneiro da narrativa fantástica na literatura
brasileira” (2016, p.3). A produção literária do escritor demonstra
uma opção pelo fantástico, uma opção pela condução metafórica e
profundamente irônica, impressa nos mundos e submundos de suas
personagens.
Contradições são traços constantes em “O convidado”
(RUBIÃO, 1974, p.57-71), conto que levou vinte e seis anos para ficar
pronto. Nele, a personagem José Alferes, bem como a configuração
dos mundos possíveis à sua volta, parece ser elaborada para fazer
acreditar que o convidado chegaria, contudo, o desfecho vazio e a
espera deixam também o leitor perdido.
Na narrativa, a personagem ao receber o envelope, estranha
ter sido chamado para alguma festividade, já que estava “hospedado
[no hotel] havia quatro meses” (RUBIÃO, 1974, p.59) e “seu círculo de
relações não excedia o corpo de funcionários do hotel” (RUBIÃO,
1974, p.59). Contudo, o espanto inicial cederia espaço para a
animação diante da possibilidade de ter sido “Débora, a estenógrafa,

113
pensionista de um dos apartamentos no mesmo andar” (RUBIÃO,
1974, p.59), quem poderia tê-lo chamado.
O conto rubiano permite uma completa imersão na vida de
Alferes após ter recebido o convite, ao leitor é dado o direito de
integrar-se o pensamento da personagem. Com isso, os processos
físicos, psicológicos, sociais, vão sendo desnudados e reunidos aos
alicerces desse mundo possível ficcional, aparentemente banal, a que
se articula a personagem.
A narrativa elabora-se por meio de um desdobramento de
ações não convencionais, que, em geral, trazem um tom de dúvida
nas reflexões da própria personagem. Alferes não sabia explicar, mas
escolhera exatamente o taxista sugerido, ainda que a desconfiança o
tivesse assustado, “entre vários táxis no estacionamento” (RUBIÃO,
1974, p.63) escolheu “exatamente o de Faetonte” (RUBIÃO, 1974,
p.63). Com isso, percebe-se como a tessitura dos novos discursos
fantásticos vão gestando gradativamente a noção da incongruência,
da dúvida.
Alferes “não ficava muito tempo sozinho” (RUBIÃO, 1974,
p.66), os que estavam na festa não o tratavam “a distância ou com
hostilidade. Pelo contrário, procuravam cercá-lo de atenções”
(RUBIÃO, 1974, p.66). No entanto, Alferes “ouvia-os enfadado, desde
que nunca fora a hipódromos, fazendas e jamais montara sequer um
burro” (1974, p.66). Ele tentava falar do homem que daria sentido à
recepção, mas nada sabiam do convidado, apenas “que sem ele a
festa não seria iniciada” (1974, p.66).
A personagem afasta-se e começa a demonstrar sinais de
irritação por gestos delicados e pelas lisonjas, com novas solicitações
para aderir ao grupo, estar, portanto, efetivamente integrado aos
participantes da recepção. Pareciam querer retirá-lo do isolamento,
porém Alferes os rejeita.
Constrói-se na narrativa um mundo de incoerências em torno
de Alferes que, por sua vez, deixa-se levar pelas circunstâncias, sendo

114
capaz de seguir alguém em quem não confia. A personagem, nesse
sentido, gera dúvida, perpetuando, mesmo no último suspiro
narrativo, certa inconstância e, por consequência, completa incerteza
acerca de tudo a sua volta.
A aventura de “O convidado” (RUBIÃO, 1974, p.57-71) percorre
uma diversidade de caminhos, tensionando desde a angústia de um
primeiro encontro aguardado até a descoberta de um convidado
inexistente. Não se sabe ao certo se o que Rubião colocara no papel
de fato resolve o problema do convidado, entretanto, em seus
mundos possíveis ficcionais, o convidado não aparece.
Em suas narrativas, como se pode perceber, os mundos e
submundos de personagens são peças chaves para a percepção das
contradições presentes nos mundos possíveis, uma vez que os
participantes desses mundos textuais, em geral, produzem, por meio
de mecanismos textuais, processos psicológicos de identificação com
o leitor. Como destaca Jannidis (2013) e, de modo mais sintético
Anderson Imbert (2015, p.26), as personagens são seres fictícios, mas
que despertam sensações e sentimentos reais.
Em Rubião, o grande enigma de suas personagens, de seu
perpétuo aprisionamento em mundos de apatia, seria suas próprias
buscas, pois é tão caro para elas seguir em frente, continuar vivendo,
que seus dias são computados em incontáveis retornos. Suas
personagens são tecidas pelo amargor da vida. Em seus percursos,
iluminados pelo escritor, desejam, amam, mas, o determinismo de
suas vidas, estaria fixado na sexualidade e na impossibilidade de
seguir em frente. Dessa maneira, nem mesmo a entrega total gera-
lhes satisfação. Os caminhos das personagens rubianas engendram-se
por ausências, por dúvidas, por pânico, enfim, são várias as
progressões determinadas pelo texto para figurar essas personagens
marcadas pelo absurdo quotidiano.

115
ANDERSON IMBERT, Enrique (2015). Teoría e técnica del cuento. 5.ed.
Barcelona: Ariel.
BARTHES, Roland (1971). “Introdução à Análise Estrutural”. In: BARTHES,
Roland et al. Análise estrutural da narrativa. Rio de Janeiro: Vozes. p.19-60.
CAMPRA, Rosalba (2008). Territorios de la ficción. Lo fantástico. Colección
Iluminaciones. Sevilla: Renacimiento.
CAUQUELIN, Anne (2011). No ângulo dos mundos possíveis. Coleção todas as
artes. São Paulo: Martins Fontes.
DOLEZEL, Lubomír (1999). Heterocósmica: ficción y mundos posibles.
Madrid: ARCO/LIBROS.
ECO, Umberto (2011). Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos
textos narrativos. 2.ed. São Paulo: Perspectiva.
ISER, Wolfgang (1996). O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Vol.2.
São Paulo: Ed. 34.
JANNIDIS, Fotis (2013). “Character”. In: Hühn, Peter; Pier, John; Schmid, Wolf
and Schönert, Jörg. The living handbook of narratology. Berlin: Walter de
Gruyter. Disponível em http://wikis.sub.uni-
hamburg.de/lhn/index.php/Character Acesso em 08.Mai.2015.
JOZEF, Bella (2006). A máscara e o enigma: A modernidade: da
representação à transgressão. Rio de Janeiro: F. Alves.
MARGOLIN, Uri (1991). “Reference, Coreference, Referring, and the Dual
Structure of Literary Narrative”. In: Poetics Today, 12(3), p.517-542.
MIGUEL, Rute (2010). “Personagem”, In: E-Dicionário de Termos Literários.
CEIA, Carlos de (Coord.), Disponível em http://edtl.fcsh.unl.pt/business-
directory/6302/personagem/ Acesso em 07.Jul.2016

116
NUNES, Benedito (1975). “Crítica – O convidado”. Revista Colóquio, (nº.28).
In: http://www.murilorubiao.com.br/criticas.aspx?id=6 Acesso em
25.Jun.2016
PRADA OROPEZA, Renato (2006). “El discurso fantástico contemporáneo:
tensión semántica y efecto estético”. Semiosis II(3),p.54-76.
REIS, Carlos (2001). O conhecimento da Literatura. Introdução aos Estudos
Literários. 2.ed. Coimbra: Almedina.
RUBIÃO, Murilo (1974). “O convidado”. In: O convidado. São Paulo: Quíron.
p.57-71.
RYAN, Marie-Laure (1991). “Possible Worlds and Acessibility Relations: A
Semantic Tipology of Fiction”. In: Poetics Today, 12(3), p.553-576.
______. (2012). “Possible Worlds”, In: HÜHN, Peter; PIER, John; SCHMID,
WOLF and SCHÖNERT, Jörg. The living handbook of narratology. Berlin:
Walter de Gruyter. Disponível em http://wikis.sub.uni-
hamburg.de/lhn/index.php/Possible_Worlds Acesso em 10.Jul.2015
SCHWARTZ, Jorge (2016). “O fantástico em Murilo Rubião”, In: Minas Gerais.
Suplemento Literário. Murilo Rubião: o centenário do mágico. Disponível em
http://www.bibliotecapublica.mg.gov.br/index.php/pt-br/suplemento-
litelario/edicoes-suplemento-literarios/edicoes-especiais-1/95--95/file
Acesso em 15.Ago.2016.
TAKAHASHI, Jiro (2016). “O mágico das palavras”, In: Minas Gerais.
Suplemento Literário. Murilo Rubião: o centenário do mágico. Disponível em
http://www.bibliotecapublica.mg.gov.br/index.php/pt-br/suplemento-
litelario/edicoes-suplemento-literarios/edicoes-especiais-1/95--95/file
Acesso em 15.Fev.2017.

117
Paula Vera-Bustamante (USP)

Analisar e compreender a criação literária da cidade, assim


como conhecer suas origens, são os eixos de minha pesquisa A
Cidade Fictiva. Esta pesquisa surgiu da necessidade de elaborar uma
teoria capaz de responder ao fenômeno da construção da cidade na
literatura. A cidade fictiva é um referente emprestado da realidade
concreta. É uma ficcionalização, uma possibilidade da cidade real, e
em alguns casos até mesmo um mundo possível fantástico, como as
cidades narradas por Marco Polo a Kublai Khan em As Cidades
Invisíveis. Mas também pode vir a ser uma cidade real concreta, como
a labiríntica Creta. Até fins do século XIX, acreditava-se que Creta era
apenas uma cidade lendária narrada por Homero na Ilíada. No
entanto, escavações de Kolakairinos e Evans demonstraram que
efetivamente existiu a Creta do mito, a qual, das ruínas, emergia para
contar sua própria história (VERA-BUSTAMANTE, 2007, p.54-55).
A cidade fictiva tem como pedra angular duas teorias: a dos
mundos possíveis e a da tríade o real, o fictivo e o imaginário,
desenvolvida por Wolfgang Iser, para quem o fictivo nasce do
processo da estética (aisthátikos) literária como o ato intencional que
cruza a fronteira entre o real e o imaginário; é o elemento mental que
dá forma e substância discursiva ao plano imaginário, que é um modo
difuso e sem objetos de referência (ISER, 1991, p.15-21). O fictivo
recolhe da realidade histórica seus referentes para construir, no plano
imaginário, novas realidades.
Eis por que se trata de uma cidade fictiva e não ficcional, pois o
adjetivo ficcional designa apenas uma característica do ato de fingir

118
(do latim fingere, ficção), enquanto o fictivo é a ação que transforma
a condição difusa do imaginário em uma construção mental
articulada (Gestalt), permitindo a criação de mundos. Ele é o nexo
que possibilita a criação surgida da comunicação real-imaginária.
Existe uma comunicação real-concreta
(histórica) e uma comunicação real-imaginária
(estética). A linguagem literária é uma dobra da
linguagem real, mas, ao contrário desta, é capaz
de gerar novas realidades. A linguagem real-
concreta se limita à comunicação fáctica, sem
ser capaz de criar novos mundos nem novas
realidades. (AGUILERA, 1995 ‒ tradução da
autora)
Por ter a linguagem literária a capacidade de gerar novas
realidades (autopoiesis) é que a cidade fictiva está relacionada com a
teoria dos mundos possíveis, que estuda e interpreta a construção
dessas novas realidades nascidas das referencialidades.
Um dos primeiros filósofos a entender a existência como
mundo possível foi o alemão Gottfried W. Leibniz, que na Teodiceia
(“Justificação de Deus”), de 1710, explica sua teoria de que o
universo, como realidade efetiva, é um dos diferentes mundos
possíveis que foi atualizado por Deus; o melhor dos mundos
possíveis.
A noção dos mundos possíveis está [...] na
reflexão cotidiana dos homens, para os quais
existe um mundo real objetivo e há mundos
alternativos a ele, alguns dos quais poderiam,
em determinadas ocasiões, chegar a ser
igualmente reais, enquanto outros se
manteriam na situação de existência mental.
(ALBALADEJO, 1998, p.74-75 ‒ tradução da
autora)

119
O mundo literário é entendido como uma seção de vida na
qual se movem e se desenvolvem personagens (sujeitos) com seus
desejos, temores e expectativas. Os mundos são mundos possíveis
quando as realidades de personagens e suas histórias admitem
realização em seus diferentes planos de ação. Estes sujeitos actantes
vão criando – pelas mãos do autor – um mundo alternativo ou
possível.
Neste artigo se abordará um dos três mundos possíveis
analisados em A Cidade Fictiva. Trata-se da Cidade Epifânica, um
mundo possível surgido da análise dos contos “Amor”, de Clarice
Lispector, e “La Elegida”, da chilena Lilian Elphick, no qual a figura
feminina tem estreito vínculo com a cidade, uma cidade-personagem
reveladora de experiências inesperadas e insólitas.

Segundo Lewis Mumford, a figura feminina sempre esteve


ligada à formação de aldeias e cidades, como geradora e protetora da
vida, provocando a grande mudança dos incipientes agrupamentos
humanos no período neolítico, ao se encarregar da família, da
agricultura e da domesticação dos animais (1998, p.18-19). Essa base
da comunidade, sustentada na criação do lar materno e materializada
na casa, como lugar de proteção e desenvolvimento da família (o
domus), motivou o crescimento contínuo das aldeias, que se
transformariam paulatinamente em cidades. Tal proteção dada pela
mãe se refletia na estrutura da aldeia: na casa, no estábulo, no
celeiro, no poço, no paiol. Estas estruturas passaram para a cidade
atualizadas nas muralhas ou nos fossos (para proteger o “ninho”) e
nos espaços internos, do átrio até o claustro. “A casa e a aldeia, e com
o tempo a própria cidade, são obras da mulher” (MUMFORD, 1998,
p.19).

120
Casa e cidade eram parte de uma organização cultural
harmonizada no matriarcado, mas com o advento do patriarcado ‒ no
fim do neolítico e começo da idade dos metais ‒, com o surgimento
da figura dominadora masculina (o rei) e o fim da economia
comunitária, a casa e a cidade se distanciaram, transformando-se em
mundos adversos. A mãe continuou dando proteção e nutrição à
família, mas relegada ao domus, perdendo a autonomia dos
primórdios da aldeia – quando era respaldada pelo sistema religioso,
que a considerava símbolo das deusas Cibele (Grande Mãe) e
Deméter (Mãe das Colheitas).
Com o patriarcado, o domus começou a rivalizar com a via.
Tanto o domus quanto a via criaram seu próprio panteão de deuses,
provocando instabilidade no plano religioso e no plano social. Cada
casa passou a ser um mundo próprio, transformando a cidade circular
materna – que gravitava ao redor de um centro sagrado, dando
equidade aos lares – em uma superposição e subordinação das
famílias, formando uma cidade-colmeia em um sistema hierarquizado
e excludente. A casa virou reduto de uma família, alheia à cidade,
passando a ser o espaço da limitação. E a cidade deixou de ser o
espaço de encontro dos habitantes e se tornou um lugar inóspito,
deixando de lado o bem comum para buscar o bem individual.
O distanciamento entre a casa e a cidade aumentou com o
decorrer do tempo, em detrimento das moradias. No século XIX, com
o progresso da Revolução Industrial, a cidade ficou indiferente às
necessidades elementares de higiene e de construção de moradias
apropriadas. Tornou-se uma cidade comercial, caracterizada por ser o
espaço da violência e da luta pela sobrevivência. A casa, por sua vez,
tornou-se um refúgio precário, pois no pequeno espaço das
residências (fosse em um prédio ou um cortiço) a aglomeração dos
moradores fazia do cotidiano algo insuportável. A cidade começou
então a selecionar os habitantes que morariam em condições

121
benéficas, deixando de preocupar-se definitivamente com o bem
comum dos primórdios.

Apesar da agressividade com que a cidade moderna se


revestiu, pensadores como Walter Benjamin descobriram que sob
suas camadas existia uma cidade oculta, que clamava por ser
revelada. Benjamin compreendeu então que a verdadeira cidade é
uma revelação de outra, diferente daquela que os olhos enxergam
(1995, p.88-89). Nessa cidade oculta, os encontros inesperados
ocorrem ao cruzar o umbral da casa, ao cruzar o limite entre o
conhecido e aquilo que há por conhecer.
A palavra castelhana umbral provém de dois conceitos latinos,
lumen (luz) e limen (limite), indicando o limiar de um lar, mas
também o fogo que aquecia e iluminava o domus.
Esse rito de atravessar o umbral, apontado por Benjamin, é
uma experiência de conhecimento que mostrará as diferenças
ineludíveis entre a rua (via) e a casa (domus). Um dos dois, no
processo de revelação ou epifania, vai se transformar num lugar
inóspito. Foi o que aconteceu na experiência de Benjamin, que via
nas ruas o mundo que o apavorava quando criança, pois sabia que ali
reinava a desgraça. Mas, assim que teve a coragem de cruzar o
umbral do refúgio materno (domus), sentiu o chamado da via, caindo
na tentação de perder-se na cidade e descobrir seus segredos: “A
cidade tornou-se em minhas mãos um livro, no qual eu lançava ainda
rapidamente alguns olhares, antes que ele me desaparecesse dos
olhos” (1995, p.56). Ele sabia que o tempo era efêmero nos
devaneios pela cidade. E a casa, que antes era para Benjamin o lugar
da segurança e dos encontros com a imaginação, transformou-se no
lugar da castração, do qual precisava fugir: “Quanto mais lento seguia
o trem, tanto mais depressa se desfazia a esperança de escapar, atrás

122
dos muros de fogo, da casa paterna já próxima” (1995, p.83). Casa e
rua constituem, na visão de Benjamin, dois mundos opostos, cada um
com uma revelação própria, um estado de existência, que conduz a
uma experiência única.

Esse fenômeno de cruzar o umbral entre um mundo conhecido


(domus) e um mundo por conhecer (via) é retratado por Clarice
Lispector (1920-1977) no conto “Amor”. Ana, dona de casa de classe
média, vivencia a saída do refúgio para descobrir as revelações
insólitas da cidade epifânica, nessa Rio fictiva criada por Clarice. O
narrador onisciente e heterodiegético apresenta a vida de Ana in
medias res, sentada no bonde de volta a casa, depois de fazer as
compras para a ceia familiar que terá de preparar: “Um pouco
cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana
subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a
andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro
de meia satisfação” (1990, p.29).
A casa, para Bachelard, é o espaço feliz por excelência, a
topofilia, que defende das adversidades os que nela moram (1996,
p.19). Mas, para Ana, essa topofilia era uma ilusão que corria o risco
de se desmanchar a certa hora da tarde, quando ela percebia que sua
presença já não era imprescindível. “Quando a casa estava vazia sem
precisar mais dela. [...] [Quando] as árvores que plantara riam dela.
Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se” (LISPECTOR,
1990, p.31).
É em uma dessas horas-limite que o narrador flagra a saída de
Ana, que busca se aferrar a sua cotidianidade fazendo compras para o
jantar. Mas, no caminho de regresso ao mundo estável, sentada no
bonde, seu olhar é guiado pela cidade epifânica para cruzar com o
insólito e produzir a experiência reveladora: Ana vê um homem cego

123
de pé na rua mascando chiclete, que lhe mostra ‒ qual espelho
mágico ‒ que suas frágeis raízes tinham se rompido nessa efêmera
contemplação.
O bonde vacilava nos trilhos, [...] um vento mais
úmido soprava anunciando, mais que o fim da
tarde, o fim da hora instável. Ana respirou
profundamente e uma grande aceitação deu a
seu rosto um ar de mulher. [...] Foi então que
olhou para o homem parado no ponto. [...] Era
um cego. [...] Alguma coisa intranquila está
sucedendo. Então ela viu: o cego mascava
chicles... Um homem cego mascava chicles.
(1990, p.31-32)
A epifania deixa Ana em conflito com a mudança, seu máximo
medo, pois lhe mostra a desordem rebelde que ainda tinha em seu
interior e que ela anestesiava no dia-a-dia com as tarefas domésticas.
Mas na viagem de bonde para casa, Ana, com “ar de mulher”,
observa aquele desconhecido parado no ponto. Sua surpresa é maior
ao descobrir que é cego e, mesmo assim, masca chiclete, “sem
sofrimento” ‒ descreve o narrador ‒, com uma despreocupação que
ela mesma não tem.
Ana ainda teve tempo de pensar por um
segundo que os irmãos viriam jantar – o coração
batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o
cego profundamente, como se olha o que não
nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem
sofrimento, com os olhos abertos. O movimento
da mastigação fazia-o parecer sorrir – como se
ele a estivesse insultando, Ana olhava-o. E quem
a visse teria a impressão de uma mulher com
ódio. Mas continuava a olhá-lo. (1990, p.32)
Nessa visão, Ana sofre uma ruptura, um sinal de que sua vida
não é mais a mesma, o que causa uma alteração em resposta à

124
epifania emocional que o cego lhe provocou. Ela, que sempre tinha
sido “precavida” em suas emoções, deixando os excessos de alegria
ou de tristeza no passado, na juventude, não pôde evitar que o
homem descortinasse a vida para que a enxergasse nua e a
absorvesse intensamente.
O cego é a manifestação do amor inesperado, que tem a
insolência de enfrentá-la, e Ana, nesse espanto, é surpreendida pela
partida do bonde, reagindo com um grito e deixando cair sua sacola ‒
símbolo de sua segurança que é reduzida a fragmentos de cascas de
ovos espalhados no chão do trole.
O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e,
entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do
condutor, o bonde deu a nova arrancada de
partida. [...] O cego mascando goma ficara atrás
para sempre. Mas o mal estava feito. A rede de
tricô era áspera entre os dedos, não íntima
como quando a tricotara. A rede perdera
sentido. (1990, p.33)
A queda da rede de tricô é a queda da falsa estabilidade que
havia logrado como dona de casa. “Por caminhos tortos viera a cair
num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o
tivesse inventado” (LISPECTOR, 1990, p.30). Antes, quando era
solteira e jovem, a espontaneidade e os sonhos a inundavam, mas
lembrar dos tempos da mocidade era “como uma doença de vida”.
Tinha escolhido um mundo sem exaltações e sem felicidades, tudo
sob o devido controle para atender seus “calmos deveres” (1990,
p.30). Mas o cego veio para lhe mostrar que o mundo em que vivia
era de uma fragilidade absoluta.
O que Ana acreditava ser real e estável era parte de um desejo:
o de sentir a firmeza das coisas. Só que a cidade se encarrega de
mostrar que “a vida [é] periclitante” (1990, p.37) e o amor, também.
O Amor, como uma manifestação das sutilezas do insólito, está ao

125
dobrar a esquina, esperando por ela. Eis o perigo. Ana o encontra e
se perde num amor piedoso.
Ainda abalada pelo insólito, ela passa do ponto e desce numa
rua desconhecida. “Parecia ter saltado no meio da noite” (1990,
p.34). Perdida, perambulando pela rua, é atingida pela segunda
revelação da cidade epifânica: o Jardim Botânico. Ana atravessa um
novo umbral, o da imobilidade, da morte, mas também o da própria
intimidade.
Para Bachelard, o jardim é entendido como o espaço de
repouso e paz da alma (ataraxia), onde se está em plenitude com a
natureza (1996, p.191-192), mas para Ana, esse espaço profundo e
íntimo estava se transformando numa armadilha, que ameaçava
engoli-la, anulando toda possível calma.
Ela contempla o entorno e aceita que a vida está atada à
morte, pois “o mundo rico apodrecia” (LISPECTOR, 1990, p.36). O
jardim lhe revela que a decomposição é inevitável, por isso Ana tem
medo da morte, do inferno, mas mesmo assim o jardim é atraente −
como o homem cego, que a conduziu até esse éden sagrado, onde
poderia perder-se com ele. “A moral do Jardim era outra. Agora que o
cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo
faiscante, sombrio” (1990, p.36). É a epifania de um mundo de vida
borbulhante, onde finalmente Ana viu a verdade da vida e da morte.
Para Nádia Gotlib, esse contato com o jardim se transforma em
uma experiência mística (enquanto revelação), gnóstica (enquanto
conhecimento), filosófica (enquanto existencial) e estética (enquanto
percepção criadora do mundo) (2000, p.53).
De repente, porém, a lembrança dos filhos e o sentimento de
culpa vêm à tona e Ana sente a necessidade de agarrar-se de novo a
suas frágeis e curtas raízes. Mas, ao chegar em casa, percebe que as
raízes às quais se aferrara se desvaneceram e até o filho que a recebe
com todo seu amor lhe parece um estanho. Ana, em sua confusão,
não sabe o que é mais forte: os laços sanguíneos estáveis e

126
tradicionalmente duradouros; os laços inascíveis e fugazes, como o
homem cego que se convertera em “seu amado”; ou a vida-morte
das espessas plantas que a convidavam a sentir essas raízes tão
esquivas. Mas ama o cego, embora saiba que pertencer “à parte forte
do mundo” (1990, p.38-39), à classe média tradicional, significa não
conseguir fugir das regras e não alcançar a felicidade, porque o cego,
de outra camada social, não corresponderá seu amor: “Humilhada,
sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. [...] Sentia-se banida
porque nenhum pobre beberia água em suas mãos ardentes” (1990,
p.39). A contemplação do cego a fez descobrir a piedade pelo outro e
a vida em estado bruto.
As descobertas de Ana continuam na cozinha do domus.
Enquanto prepara mecanicamente o jantar, ela percebe que a lei da
vida-morte (lei de Thánatos) revelada no Jardim Botânico se repetia
no chão da cozinha. Para Ana, antes essa lei estava longe dela, mas
depois de seu contato com o espaço primordial da Criação, sente que
esta tece os fios a seu redor.
O pequeno horror da poeira ligando em fios a
parte inferior do fogão, onde descobriu a
pequena aranha. Carregando a jarra para mudar
a água − havia o horror da flor se entregando
lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo
trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da
lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O
pequeno assassinato da formiga. O corpo
mínimo tremia. (LISPECTOR, 1990, p.39)
Já na ceia em família, Ana, entregando-se a seu papel de dona
de casa exemplar, vive uma cálida harmonia familiar. “Cansados do
dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-
se de tudo, com o coração bom e humano” (LISPECTOR, 1990, p.40).
Mas uma rara cumplicidade surge em seu interior. Quando todos vão
embora e seus filhos se deitam, só resta o marido preparando um

127
café na cozinha. Ana, por instantes, entrega-se como uma fugitiva
amante à recordação do cego. Até que um forte ruído a tira de seus
devaneios e a traz à realidade. “Se fora um estouro do fogão, o fogo
já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e
deparando com seu marido diante do café derramado” (1990, p.41).
O medo da perda se apodera de Ana, que sente que a vida
escorregará por seus dedos. O marido, ao perceber sua perturbação,
faz um gesto inusual, segurando sua mão, “levando-a consigo sem
olhar para trás, afastando-a do perigo de viver” (1990, p.41). Ao
entrar no quarto e retomar o ritual de sempre, Ana apaga a piedade e
o amor pelo cego, esse desconhecido que a transformara,
fugazmente, em uma mulher consciente de seu mundo. “E, se
atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do
espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de
se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do
dia” (1990, p.41).
A ordem fraturada é restabelecida quando Ana se olha no
espelho e volta às falsas raízes. Afinal, a cidade epifânica continuava a
ser perigosa, pois o amor surgido dela podia atacá-la de novo, em
qualquer rua, em qualquer ponto de ônibus. Por isso, ao deitar-se,
Ana escolhe ficar resguardada nos limites da casa, pois assim não
voltará a cruzar o umbral da fragilidade; assim não se reencontrará
com sua outra, aquela jovem sonhadora e feliz, revelada por essa Rio
fictiva. Tinha decidido aferrar-se à estabilidade nos braços do marido
para restaurar suas raízes e afastar o perigo de viver.

Para André Breton, a cidade é o único espaço de experiência


legítimo (BENJAMIN, 1995, p.197), é a vivência, o conhecimento e,
especialmente, a epifania do acaso. Isso também pensava Walter
Benjamin ao refletir sobre Paris: que em cada uma de suas ruas podia

128
haver uma revelação, fosse numa saída para a “conquista de livros”,
no devaneio pelas ruas ou no aroma dos cafés (1995, p.231). A cidade
não só era considerada uma revelação, mas também um livro, pois
cada nome de rua, cada praça, cada bulevar é para ser lido e
decifrado (1995, p.196). Esta é a tarefa do flâneur: decifrar a cidade e
perder-se nela para descobri-la em seus mínimos detalhes, e
interpretar seus enigmas para evitar o esquecimento.
O flâneur, um dos paradigmas benjaminianos, é aquele que
possui um forte “interesse pelo espetáculo da cidade. [...] [Está]
impregnado pelo tédio perante a vida e pelo gestus da espera. [...]
Possui, por definição, uma extraordinária mobilidade, percorrendo a
metrópole em busca de sensações sempre novas” (BOLLE, 1994,
p.366-367). Tal como a protagonista do conto “La Elegida” (“A
Escolhida”), de Lilian Elphick (1959), a flâneuse que vaga pelas ruas
de uma Santiago ainda sob ditadura militar para contemplar a cidade
molhada por uma rara chuva e esperar que algo extraordinário
aconteça.
Em Santiago não chove nunca, mas hoje
acontece o contrário: [...] A casa [está] escura,
um pouco fria, saio. Caminho por certas ruas
que não têm saída direta, dão voltas e voltas,
terminam em pracinhas e depois continuam.
Gosto de me perder e caminhar sem rumo
debaixo desta chuva. (ELPHICK, 2002, p.101‒
tradução da autora)
A flâneuse sem nome, surpreendida nessa noite pela
inesperada chuva, sai de casa, entregue ao andar sem rumo,
deixando-se conduzir pela cidade até uma esquina, onde se
manifesta o insólito: uma jovem se balança na calçada com as mãos
nos bolsos. Sem deixar de observar esse comportamento estranho, a
flâneuse finge comprar algo numa banca de verduras. Percebe que a
jovem continua o ir e vir, com o olhar fixo no chão. A flâneuse

129
caminha decidida até ela, sem saber o que dizer. Ambas estão
ensopadas e nenhuma mostra grande preocupação com isso. Duas
mulheres solitárias e silenciosas, numa segunda-feira chuvosa que
parece irreal: “Assim como [eu] [...], [ela] não espera nada deste dia
imaginário” (ELPHICK, 2002, p.102). Mas se olham, sorriem e
quebram o silêncio da noite opaca.
A cidade epifânica permite nessa noite que as formalidades
fiquem de lado para dar espaço à verdade. Assim, a protagonista –
narradora da diegese – fica sabendo que a jovem tinha procurado
emprego durante horas, sem sucesso. A tristeza da jovem faz surgir
uma compaixão no ar. A narradora reflete na linguagem o estado de
espírito daquela mulher: “O desânimo [surgia] feroz de seus olhos
cinza” (2002, p.102). Observa-a, interpreta sua forma de perceber a
realidade e descobre a fatalidade com que enxerga a vida, sem
possibilidade de salvação, exceto para os eleitos: “– O mundo vai
acabar − me diz serenamente −, mas ficarão alguns, os escolhidos”
(2002, p.102).
Apenas os escolhidos habitarão a terra depois da destruição do
mundo – essa é a mensagem que fica pairando no ar. A narradora-
personagem percebe que a mulher não se sente escolhida pela sorte,
sua crônica falta de emprego e sua decepção parecem bloqueá-la
para descobrir novos horizontes. A flâneuse se sente à vontade com
ela; identifica-se, de certa forma, com sua teoria dos escolhidos, pois
ela também não se sente uma escolhida.
Entram em um café e conversam por horas. A chuva continua
caindo, incessante. Nenhuma quer ficar sozinha nessa fria noite. Elas
dilatam as despedidas, embora a protagonista não espere nada mais
da jovem. Surpreendentemente, a moça propõe andar até o centro
da cidade para compartilhar o tempo. É o momento do flanar, a arte
de caminhar pelas ruas, olhando as vitrines das lojas como se fosse o
grande espetáculo da noite, mas na verdade é uma caminhada triste,
desesperançada, uma flânerie (BOLLE, 1994, p.377) em que o olhar

130
permanece fixo, taciturno, apenas para desejar internar-se na
essência dos objetos contemplados, fazer parte deles e descobrir o
sentido das coisas da vida e de suas próprias existências.
Caminhamos lentamente por ruas que conheço
demais, algumas vezes ela se detém para olhar
as vitrines. No entanto, ela não olha, seus olhos
se perdem em um caminho reto, interminável,
atravessam os manequins, como se quisessem ir
além de tudo. (ELPHICK, 1998, p.102)
A flâneuse, que já conhecia de cor as ruas dessa Santiago
fictiva, propõe, depois de uma hora de peregrinatio, ir até um hotel,
mudando com essa sugestão o cenário do encontro inesperado; de
um lugar público, as ruas da cidade, para um lugar privado, um
quarto de hotel. Surge novamente o confronto entre o exterior e o
interior, mas, ao mesmo tempo, o dilema de escolher entre o espaço
neutro (hotel) e o espaço filial (domus). A narradora não entende o
porquê do convite; questiona-se por não convidá-la para sua casa,
mas conclui que o espaço neutro é o lugar ideal para se libertar. Já a
casa é o lugar mnemônico da aflição onde mora sua solidão
cotidiana.
Não entendo meu próprio convite, por que não
para a minha casa, lá estaríamos a sós, sem
interrupções, além disso faz tempo que não
recebo visitas inesperadas. Mas por que este
querer estar a sós? Sei que ela sente o mesmo,
por isso aceita de novo, sem me olhar, embora
eu adivinhe seu sorriso de pecados secretos.
(2002, p.103)
Esquecendo as regras sociais, elas se entregam ao prazer, sem
que ninguém as condene, pois as paredes do quarto de aluguel,
mudas testemunhas, estão livres de todo julgamento. “Ela se deixa
levar como em um baile antigo. Abraça-me e joga seu corpo para trás

131
com uma pressa que tento em vão conter, até que grita estremecida
por seus sonhos desenfreados. A escolhida grita morrendo sobre
mim” (ELPHICK, 2002, p.103-104).
No entanto, ao raiar o dia, “a escolhida” acorda arrependida do
amor fugaz. É nesse momento que a flâneuse, contrastando com o
clima de intimidade que pareciam ter criado, dirige-se a ela com um
desiludido usted − que em castelhano é uma forma distante de
tratamento, equivalente neste caso a “senhora” em português −, em
sinal de recriminação. “A senhora não quis abrir seus olhos, e quando
fez isso foi como acordar de um sonho ruim, algo novo, talvez
incômodo” (2002, p.104). A narradora se enche de nostalgia e
decepção ao lembrar que na verdade a escolhida “dormiu sonhando
com um homem jovem” (2002, p.105). O ansiado amor, nesse
despertar, transforma-se em uma miragem produzida pela cidade,
pois a jovem “dos olhos cinza” só desejava fugir desse “encontro
casual entre duas mulheres” (1998, p.104).
Voltarei a vê-la? A senhora se esconde diante do
espelho para não responder. Seu reflexo não
pode responder. Eu não olho para a senhora,
olho para uma mulher de bochechas coradas
que alisa o cabelo e o arruma e que empalidece
cada vez mais, que olha fixamente o contorno
de uma mulher que empalidece diante de um
espelho. (ELPHICK, 2002, p.104)
O olhar insistente no espelho fere a protagonista, que
acreditou por alguns instantes ter encontrado, naquela estranha, uma
alma em busca de um igual. Essa contemplação mostra o conflito da
escolhida, que sabe que errou nessa “noite de desespero”. Daí a
insistência em contemplar-se, para restabelecer a ordem interna e
apagar todo vestígio de homossexualismo, pois ela fora outra mulher
nessa noite hierofânica. “Ela me olha e em mim não resta mais nada,
a não ser perguntas. [...] Pega sua bolsa, seu lenço florido, desorienta-

132
se, busca em vão a porta e, pela última vez, olha para a mulher do
espelho. Pela última vez ela lhe sorri, vira-se em minha direção e
sorri” (2002, p.105). A jovem busca no vidro a afirmação de sua
identidade, enquanto a narradora busca a mulher que amou.
A escolhida, antes de sair, diz seu nome, Miriam, e se olha pela
última vez no espelho, querendo assim deixar aprisionada, no cristal,
a outra mulher que chegou a ser, e vai embora como se o amor
inesperado não tivesse acontecido. Já a narradora fica vazia como o
quarto do hotel, vendo de longe o espelho que reteve a imagem de
sua escolhida; não a da mulher que a rejeitara, e sim a da mulher que
fora sua amante. Mas um calafrio a invade, ao descobrir que não
consegue se ver nele, pois Miriam, que buscava a essência das coisas,
buscou também a essência da amante proibida e a levou consigo.
Essa é a única vez que a flâneuse vê Miriam. Daí em diante, sua
imagem aparecerá só no jogo das recordações, que começará na
esquina de uma rua de Santiago e terminará no pequeno hotel.
Desde então, a narradora busca em vão pelas ruas da cidade
epifânica a escolhida, num devaneio que se revela como a busca, na
verdade, do próprio reflexo. “Voltei àquele lugar, já voltei tantas vezes
para olhar o pequeno letreiro que só diz Hotel Andes, a velha porta
sempre fechada, como se ninguém entrasse ou saísse” (2002, p.105).
Bachelard explica que o devaneio (le rêverie) é uma fuga do
real, é “um fenômeno espiritual” que recupera o ser atribulado da
mágoa e da solidão, devolvendo-lhe um estado de paz que parecia
perdido (2006, p.5-11).
Só através do mundo dos devaneios a flâneuse diminui a
crueza da realidade; refugia-se neles para mitigar sua solidão. Nesses
“sonhos acordados”, ela é amada por Miriam. Mas, com o raiar do
dia, permite-se esquecê-la, pois foi de manhã que o amor foi negado,
e é de manhã que os “sonhos diurnos” criados à noite são
destroçados pelos arrulhos dos pássaros apaixonados, que insinuam
que para eles, sim, é permitido o amor. “Até as pombas que se

133
aninham no sótão me despertarem, até seus arrulhos me
despedaçarem. Ratos com asas. Aí, então, eu a esqueço. Miriam”
(ELPHICK, 2002, p.105).
A cidade epifânica, fiel companheira dos excluídos e
esquecidos, abre suas ruas para os encontros clandestinos de seus
habitantes, qual celestina confabulando para o amor. No entanto,
tudo o que resta para a narradora é o vazio das ruas, a nostalgia do
encontro, seus devaneios e a lembrança do espelho, que já não
consegue refletir sua figura, e sim a ilusão chamada Miriam.
Lilian Elphick, que escreveu o conto no fim da ditadura, entre
1987 e 1988, antecipa na epígrafe de “La Elegida” a impossibilidade
da protagonista de criar um laço duradouro com o outro: “Un coup
de vent sur tes yeux et je ne te verrais plus” (2002, p.101). Esse verso
de André Breton prenuncia a intenção da protagonista de
demonstrar, embora minimamente, seus sentimentos para Miriam,
mas ao revelá-los acaba afastando qualquer possibilidade de vínculo
com ela. Afinal, basta “um sopro de vento” para acabar com a ilusão
de ser correspondida. Pois, enquanto a flanêuse desfrutava do
encontro fortuito com Miriam, esta se imaginava nos braços de um
homem jovem; cada uma vivendo sua própria ilusão naquela
segunda-feira chuvosa, atípica e imaginária.

A cidade não é apenas uma fonte inesgotável de vivências e


desejos, como definia Benjamin. É, principalmente, um ente
transformador, um ser actante dentro da diegese que produz
alterações nas vidas das protagonistas dos contos “Amor”, de
Lispector, e “La Elegida”, de Elphick.
No instante em que se manifesta o fato ou elemento incomum
que produzirá tal transformação, a cidade se assumirá como epifania,

134
vale dizer, como revelação de uma experiência cognitiva, refletida na
percepção que têm de si mesmas as protagonistas Ana e a flâneuse,
e, portanto, uma mudança ôntica que vivem ambas as personagens.
Epifania provém do grego epiphaneia (epi, por cima, e phania,
aparição ou manifestação reveladora), significa “percepção da
natureza ou significado essencial de uma coisa” (HOUAISS, 2001). Em
literatura, é definida no romance de James Joyce, Stephen Hero,
como “uma ‘manifestação espiritual súbita’, em que um objeto se
desvenda ao sujeito” (GOTLIB, 2000, p.51).
Quando se produz essa relação da cidade com a epifania, é
estabelecido um vínculo com o fenômeno do insólito, entendido
como a quebra do que é considerado comum e normal em uma
determinada sociedade (VERSIANE, 2008, p.7-10).
O insólito como ruptura do que é comum pode ser relacionado
também com o que Eliade chamava de hierofania (revelação
sagrada), que causa uma rotura do mundo contínuo e homogêneo
(2001, p.17). Tanto em “Amor” quanto em “La Elegida”, essa
hierofania se manifesta na revelação sagrada do amor e da liberdade
que experimentam suas protagonistas.
Embora o termo insólito venha do latim in-solitus, cuja raiz, sol,
pertence ao verbo solere (por degeneração em português soer ou
costumar), ele tem como peculiaridade a relação com o fenômeno
diário do nascer do sol, daí a noção de solere. No entanto, o insólito
também se vincula com uma noção mais profunda, na concepção
grega, que Aristóteles desenvolveu na Poética. Aristóteles via duas
formas de construir metáforas na poesia, uma por meio de kyrion
[comum] e outra – a mais importante – através de asynithisto
[insólito]; fazendo a distinção, como explica Stylianos Karagiannis,
entre o vulgar e o comum e o nobre e o estranho (2005, p.37).
A excelência da elocução consiste em que seja
clara sem ser pobre. A que consta de vocábulos
usuais é muito clara, mas pobre. [...] No

135
entanto, é nobre [a metáfora] que se afasta do
vulgar, a que usa vozes peregrinas; e
compreendo por voz peregrina a palavra
estranha [...] e tudo o que se afasta do usual.
(Poética, 1974, p.18-23 ‒ tradução da autora)
Embora falar do insólito na literatura remeta à teoria do
fantástico de Todorov, que o aborda em relação ao estranho,
maravilhoso ou sobrenatural, é a concepção aristotélica que nos
interessa para compreender o processo da cidade epifânica como
personagem transformador de um mundo que na diegese se revela
insólito. Daí a importância de Asynithisto⁄insólito como manifestação
da estranheza metafórica, entendida como a nobreza incomum que
Aristóteles buscava na criação poética.
É essa nobreza incomum, estranha, que se revela na vida de
Ana e da flâneuse, que descobrem na cidade o amor, como máximo
bem e virtude da alma, mas ao mesmo tempo descobrem a grande
armadilha, a ilusão que surge para encantar as pessoas solitárias. As
duas mulheres são objeto e sujeito de revelação e, ao mesmo tempo,
de frustração por não poderem concretizar seus desejos.
Em uma ironia do destino, a cidade abre os olhos de Ana e a
põe diante de um cego para libertá-la da tradição de ser “abafada
pelas tarefas domésticas” (GOTLIB, 2000, p.54). A cidade também
chama a flâneuse solitária e entrega-lhe, em uma esquina de
Santiago, uma companheira para que compartilhe seus sonhos de
amar e ser amada. Mas o impedimento do vínculo entre mulheres,
numa sociedade conservadora como a chilena na época da ditadura,
apaga toda possibilidade de união.
Embora tanto em “Amor” como em “La Elegida” as
protagonistas sejam as escolhidas pela cidade para vivenciar a
epifania, elas se diferenciam em suas carências afetivas. Ana anula o
passado de vida borbulhante da juventude em favor de uma pacata
existência de dona de casa, por medo de se integrar plenamente à

136
vida. Já a flâneuse, sem família, sem ninguém para compartilhar o
amor, está submersa na solidão mais profunda; ela tem de fugir de
sua casa para aplacar o isolamento, precisa mergulhar na cidade para
sentir que tem companhia. Enquanto Ana vive para os filhos, o
marido e os deveres de casa, a protagonista de “La Elegida” vive para
as ruas de Santiago. A cidade premia sua coragem ao permitir, em um
vértice da urbe, o encontro com Miriam. No caso de Ana, a cidade
produz uma ruptura em sua rotina para ensinar-lhe que existe um
mundo por descobrir não só em relação ao desconhecido, mas
principalmente em relação a si mesma, sua autognose.
Ana e a flâneuse se irmanam na experiência cognitiva de
encontro com o outro, que pertence ao mundo da via, por isso o
contato pode ser feito apenas no espaço epifânico − reservado para
os encontros clandestinos criados pela cidade − e de modo efêmero,
pois a magia só existe enquanto elas permanecem ali. Esse é o
conflito para Ana e a flâneuse, porque cedo ou tarde voltarão a seus
mundos e a eles não poderão levar a vivência da hierofania, apenas
sua lembrança. O consolo é saber que o amor sempre estará à espera
na rua, na cidade, onde diferentes caminhos as aguardam com a
possibilidade de dar uma guinada em suas vidas e conduzi-las, graças
à luz que ilumina a cidade, até o reencontro consigo mesmas. Mas
Ana sempre voltará para casa depois de ter ouvido o chamado das
ruas. Já a flâneuse, evitando retornar ao domus solitário, ficará
andando sem rumo pelos labirintos da cidade.

AGUILERA, Francisco (1995). Curso de Teoría de la Interpretación. Santiago:


Facultad de Filosofía y Humanidades da Universidad de Chile.
ALBALADEJO, Tomás (1998). Teoría de los Mundos Posibles y
Macroestructura Narrativa. Murcia: Universidad de Alicante.

137
ARISTÓTELES (1974). Poética. In: YEBRA, Valentín García (Ed.). Edição
Trilíngue. Madrid: Gredos.
BACHELARD, Gaston (1996). A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes.
______. (2006). A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes.
BENJAMIN, Walter (1995). Rua de Mão Única – Obras escolhidas. (Vol.II). São
Paulo: Brasiliense.
BOLLE, Willi (1994). Fisiognomia da Metrópole Moderna. São Paulo: Edusp.
CASTELLS, Manuel (1978). La Cuestión Urbana. México: Siglo XXI Editores.
COULANGES, Fustel de (2003). A Cidade Antiga. Rio de Janeiro: Ediouro.
ELIADE, Mircea (2001). O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes.
ELPHICK, Lilian. (2002). El Otro Afuera. Santiago: Editorial Cuarto Propio.
GOTLIB, Nádia Battella (2000). Teoria do Conto. 10.ed. São Paulo: Ática.
HOUAISS, Antônio (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva.
ISER, Wolfgang (1991). Das Fiktive und das Imaginäre. Frankfurt a. M:
Suhrkamp.
KARAGIANNIS, Stylianos (2005). La Evasión de Dédalo. Tese de Doutorado –
Facultad de Filosofía y Letras, UGR. Granada.
LISPECTOR, Clarice (1990). Laços de Família. Rio de Janeiro: Francisco Alves
Editora.
MUMFORD, Lewis (1998). A Cidade Na História. Suas origens,
transformações e perspectivas. 4.ed. Tradução: Neil R. da Silva. São Paulo:
Martins Fontes.
VERA-BUSTAMANTE, Paula (2007). A Cidade Fictiva: Visões e Mundos da
Cidade em Contos Contemporâneos Brasileiros, Chilenos e Portugueses. Tese
de Doutorado – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. São
Paulo.

138
VERSIANE, Daniela Beccaccia (2008). “Construção de Realidades e Percepção
do insólito”. In: GARCÍA, Flavio; MICHELLI, Regina; PINTO, Marcello de
Oliveira (Orgs.). Poéticas do Insólito. Conferências e Palestras do III Painel
“Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”: o insólito na literatura e
no cinema. Rio de Janeiro: Dialogarts.

139
Sayuri Grigório Matsuoka (UFC)
No primeiro episódio da série Narcos, que relata, misturando
fatos verídicos e ficção, a trajetória do traficante Pablo Escobar, o
narrador, um policial norte-americano, comenta: “Realismo Mágico é
definido como o que acontece quando uma situação realista
altamente detalhada é invadida por alguma coisa estranha demais
para se acreditar. Existe um motivo para o Realismo Mágico ter
nascido na Colômbia [...]”. Ele refere-se às inacreditáveis situações
envolvendo o traficante. Essa narrativa mostra como o realismo
mágico combina, de modo natural e convincente, absurdo e
realidade. Muito dessa naturalidade deve-se ao uso de elementos
familiares, contextualizados em situações estranhas, mas
perfeitamente possíveis de acontecer. É algo que sempre esteve
presente, mas, de algum modo, incógnito, escondido. A magicalidade
do realismo mágico está justamente no modo como ele explicita esse
evento (WILSON, 1995, p.226). Se quisermos entender a origem do
movimento, veremos que, em resposta ao cansaço das narrativas
literárias que se apoiavam, desde os meados do século XIX, em
estratégias de simulação de uma realidade pragmática e
rigorosamente racionalizada, surge, pela terceira década dos
novecentos, um tipo de ficção que se desvencilha dessa orientação e
busca, nas experiências conhecidas em crenças, religiões e folclores,
inspiração para transpor os limites da imaginação. O gênero que
surge nesse contexto assimila ainda aspectos das culturas indígenas e
africanas, bem como conceitos do surrealismo, encontrando, muitas
vezes, nas manifestações simbólicas do inconsciente, motivos para
fundamentar seus enredos.
A América Latina foi mesmo o lugar onde o realismo mágico
achou um meio favorável ao seu surgimento e fortalecimento,
verifica-se isso principalmente com a aglutinação de obras de

140
escritores como Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, Gabriel García
Márquez, Carlos Fuentes e tantos outros. Nesse sentido, a influência
do ambiente, como assinala o narrador de Narcos, interfere
diretamente na constituição da aura mágica da narrativa, tornando-o
um elemento condutor das impressões, também mágicas, que essas
paisagens suscitarão no leitor. Há nessa visão uma naturalização do
maravilhoso, conforme afirmou Carpentier ao diferenciar o real
maravilhoso europeu do real maravilhoso americano, sobretudo o
caribenho. Para Carpentier (1994), aquele descreve uma realidade
mágica relacionada aos mitos, às superstições da população destes
lugares e ainda à topografia das Américas. Essa noção difere da
concepção de realismo mágico pensada por Franz Roh (1995), por
designar o maravilhoso em suas manifestações essenciais, sobretudo
a partir da imaginação e das peculiaridades culturais das suas
populações, e não como um gênero de expressão com características
pré-estabelecidas.
Pensando no encontro fortuito entre objetivação e
subjetivação, entre mundo real e mundo mágico, Franz Roh propôs,
em Realismo mágico – pós expressionismo, de 1925, o termo
realismo mágico para explicar o procedimento artístico que sintetiza
essas duas formas, principalmente porque é através da observação
desse movimento dialético entre objeto e sujeito que a realidade
pode ser contemplada por ângulos diferentes. Assim, o realismo
mágico surge de uma tensão incessante entre a submissão ao mundo
presente e a vontade construtiva frente a ele (ROH, 1995, p.52). O
resultado dessa postura, na arte, é que a finalidade material do
mundo é substituída por outras magnitudes que permitem a
colaboração contínua entre essas duas esferas da percepção humana.
A concepção mágica da realidade, por assim dizer, resulta desse
confronto de realidades ou da percepção inequívoca de suas
existências concomitantes.

141
Passado esse momento inicial, o realismo mágico transpõe os
limites da localização latino-americana e é percebido na literatura de
quase todos os países, inspirando estudos e classificações que
observam as características próprias de cada uma dessas
manifestações. E é então que o termo mágico passa a ser entendido
como uma forma de modalização do termo realidade, evidenciando a
pluralidade e a interpenetração de mundos e assinalando a
possibilidade do evento mágico − na ficção e no mundo real −
segundo as perspectivas da personagem e do leitor. Esse elemento
mágico, na maioria das vezes, difunde-se no ambiente estruturado na
narrativa e, incorporado à caracterização da personagem, converte-se
no fator da recepção que permite ao leitor constituir os preceitos
básicos do insólito. O espaço, nesse sentido, alia-se à personagem, e
a simbiose entre os dois constrói a perspectiva do realismo mágico.
Considerando essas questões, este trabalho observa as relações entre
personagem e espaço em narrativas do realismo mágico, relevando a
importância da ambientação para a figuração, no campo perceptivo
da personagem, de uma determinação intuitiva da realidade.

Talvez esteja justamente na percepção subjetiva do espaço o


principal meio de acesso à empatia do leitor com a personagem no
relato mágico. Observe-se então que esse tipo de história dispõe de
artifícios que produzem um efeito específico no público, de modo
que o espaço, a personagem e o modo como eles se entrelaçam
modulam a recepção do leitor, direcionando-a ao estranhamento.
É o que ocorre, por exemplo, em “A casa tomada”, conto de
Julio Cortázar publicado em 1946, em que o espaço da narrativa
restringe-se a uma antiga casa, expandindo-se raramente para outros
lugares. O isolamento do narrador autodiegético, juntamente com
sua irmã, reforça a necessidade de manutenção dessa casa como

142
último reduto de resistência da família, o que estabelece, desse
modo, um intenso vínculo afetivo entre a edificação e as
personagens. O episódio mágico é percebido quando o narrador ouve
um som que o assusta a ponto de fazê-lo jogar-se no chão e correr
para fechar uma porta de mogno que divide a casa em dois
ambientes. É quando há a partição definitiva do espaço e a revelação
de que a casa está sendo tomada. Essa restrição não é apenas física, é
também psicológica, principalmente porque a diminuição dos
ambientes assume um caráter simbólico para exteriorizar a sensação
de aprisionamento dos moradores, sentimento que é vivenciado pelo
leitor.
Umberto Eco (1979) insistiu na incompletude dos textos e na
necessidade de colaboração do leitor para a constituição de seus
sentidos. São, com efeito, suas experiências, seus conhecimentos
culturais, religiosos e seus traços psicológicos que ajudarão o
cumprimento dos objetivos previstos nos enredos. Essa perspectiva
pela compreensão semiótica e o auxílio que a conexão entre os
signos dá ao processo de significação dos enunciados, como Eco deixa
claro em Semiótica e filosofia da linguagem, marcam a importância
da semiose para a elaboração cognitiva realizada no ato da leitura
(1991, p.56). Principalmente, porque é por meio desse
encadeamento sígnico que a figuração se realiza. Note-se que o efeito
de tensão e a identificação do leitor com a personagem, no caso da
narrativa de Cortázar, exemplifica essa integração.
O processamento cognitivo das informações textuais reúne
experiências de fontes diferentes, a reconstituição mental que dá
sentido aos dados semióticos recorre principalmente à memória,
onde imagens e emoções dão forma à imaginação necessária à
composição dos quadros figurados. Segundo Ralf Schneider (2001), a
dinâmica da recepção é o que condiciona os sentidos do texto na
medida em que é a interação dessas estruturas de conhecimento do
leitor e seus processos cognitivos que garantem a apreensão do texto

143
literário. A construção de categorias ficcionais como tempo, espaço e
personagem depende então da colaboração mútua entre texto e
leitor. Nessa perspectiva, é na leitura, entendida como um processo
dinâmico, que as experiências, sociais e literárias, do leitor, são
requisitadas para a contextualização dessas noções no âmbito do
conteúdo ficcional. A personagem, nessa visão, é um modelo mental
cuja construção resulta de um ato interpretativo em que o leitor
combina informações mentais e textuais para sua elaboração final.
Nesse processo de recepção, as emoções desempenham um papel
determinante, pois é da sua caracterização que surge a empatia entre
leitor e personagem necessária à realização do propósito do gênero
literário.
Um dos artifícios mais utilizados no sentido de facilitar essa
empatia é a narrativa autodiegética. Os argumentos apresentados
pelo narrador de “Me alugo para sonhar”, de Gabriel García Márquez,
por exemplo, parecem prever o ceticismo do leitor diante do caso
inusitado da mulher que tem o dom de sonhar com o futuro das
pessoas que conhece. Como não tem nenhuma outra habilidade, a
personagem desenvolve um método interpretativo desses sonhos
para advertir e preparar, em troca de dinheiro, as pessoas para os
eventos que as esperam, garantindo assim o seu sustento. O narrador
conhece Frau Frida em Viena, torna-se seu amigo, mas especula até
que ponto suas adivinhações podem sugestionar as pessoas,
tornando-as alvos fáceis de um charlatanismo. Entretanto, como bom
latino, não ousa descartar a possibilidade do evento mágico:
As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida
na taberna eram então como festas em nosso
regime de penúrias. Numa daquelas noites, na
euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido
com uma convicção que não permitia nenhuma
perda de tempo.

144
− Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei
com você − disse ela. − Você tem que ir embora
já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos.
Sua convicção era tão real que naquela mesma
noite ela me embarcou no último trem para
Roma.
Eu fiquei tão sugestionado que desde então me
considerei sobrevivente de um desastre que
nunca conheci. (MÁRQUEZ, 1992, p.96)
Certo ou errado sobre a idoneidade da sonhadora, o narrador
relata os acontecimentos de modo a incutir no leitor a dúvida que ele
mesmo carrega, pois, apesar de tentar explicar racionalmente a
habilidade de Frau Frida, não se nega a mostrar os fatos estranhos
que presenciou. Todos os eventos da narrativa, relacionados ao dom,
são presenciados pela personagem narradora que, a despeito do seu
ceticismo, obedece ao conselho da amiga, confirmando uma máxima
que elucida o caso: “no creo en brujas [...]”. Com essa atitude, o
narrador antecipa e refuta uma dúvida que muito provavelmente
surgiria no leitor a respeito dessa capacidade em prever o futuro por
meio de sonhos.

No realismo mágico, a configuração espacial, seja ela


delimitada pela cultura, pela religião ou pela literatura, possibilita a
semiose do evento insólito a partir de sua influência nas
personagens, ou seja, é pela forma como o ambiente as afeta
emocionalmente que o leitor percebe a tensão, o medo ou o
suspense que o relato propõe. A personagem atua então como o
signo que apresenta os elementos psicológicos e sócio-culturais a
serem decodificados. Tomemos como exemplos os relatos que
escapam às estratégias de referenciação que obedecem aos modelos

145
racionalistas, cuja perspectiva subjetiva abala as ideias tradicionais de
tempo e de espaço, instaurando uma ideia de consciência nas
personagens que aceita a concepção de mundos alternativos. É
seguindo esse preceito que Gabriel García Márquez toma o cuidado
de atribuir a Frau Frida, por exemplo, uma origem latina e não
austríaca, assinalando assim uma força supersticiosa própria dos
habitantes de países da América, onde a cultura local pressupõe uma
imaginação sobrenatural distinta da que se verifica em países
europeus.
Diferente do narrador, posto sob suspeita por sua feição
eminentemente argumentativa, a personagem se assemelha
imediatamente ao humano pela sua caracterização física e por suas
definições ontológicas. Os esquemas que permitem a figuração dos
aspectos sociais e psicológicos do seu comportamento na diegese a
aproximam do leitor na mesma medida em que revelam sua
dimensão discursiva. Nesse sentido, há muitas formas de analisar a
construção de uma personagem de ficção. Se ela é vista como
pessoa, o foco recai em seus traços de personalidade; se é
considerada como um signo, são as estruturas textuais de sua
representação que sobressaem na observação como resultado de
uma construção mental, em que os aspectos psicológicos serão
avaliados em conjunto com os aspectos textuais (ROSENFELD, 2011,
p.6). A questão ontológica surge, nesse sentido, para identificar os
valores humanos atribuídos a ela. Essas competências, entretanto,
correspondem muito mais a traços lógico-epistêmicos, do que a
juízos de valores morais. A análise do herói, enquanto categoria da
narrativa, está subordinada a “procedimentos de estruturação que
determinam a sua funcionalidade e peso específico na economia do
relato” (REIS, 1988, p.308). Assim, a perspectiva sígnica da
personagem é o que sobressai na análise: ela instaura-se na narrativa
a partir de coordenadas bem definidas que permitirão sua
identificação, caracterização, física e psicológica, sua atuação

146
ideológica pelos discursos que enuncia e por sua localização espacial
(REIS, 1988, p.308).
Tende-se […] a entender a personagem como
signo, o que corresponde a acentuar a sua
condição de unidade susceptível de delimitação
no plano sintagmático e de integração numa
rede de relações paradigmáticas: a personagem
é localizável e identificável pelo nome próprio,
pela caracterização, pelos discursos que
enuncia, etc., o que permite associá-la a
sentidos temático-ideológicos confirmados em
função de conexões com outras personagens da
mesma narrativa e até em função de ligações
intertextuais com personagens de outras
narrativas. (REIS, 2001, p.361)
É na tentativa de revelar essa imbricação entre aspecto textual
e aspecto humano que as personagens se constituem no campo
perceptivo do leitor. Por essa razão é necessário observar como se
processam as materializações textuais e artísticas das crenças, dos
medos e das expectativas nas obras literárias, bem como verificar a
construção de sentido operada na recepção de tais informações. A
personagem é responsável por transmitir essas mensagens. Da
empatia, ou da rejeição, do leitor com ela é que tensão, suspense,
medo e todos outros efeitos do texto do realismo mágico se
validarão. Sua aproximação do elemento localista, seja ele
determinado pela cultura, pela religião ou pela literatura, possibilita a
semiose a partir da interpretação das ações, dos sentimentos, das
crenças como signos que conectam essas instâncias à instância
textual. A influência do ambiente destaca-se aí como aspecto
definitivo na atuação da personagem e na sua predisposição para
aceitar o elemento mágico. Quando o narrador do conto de Carlos
Fuentes, “A boa companhia”, precisa voltar ao México, seu país natal,
uma série de transformações se dá em seu caráter. Alejandro de La

147
Guardia tem um sorriso moderno que mostra o seu distanciamento
do que a tradição europeia chama de crendices do Novo Mundo.
Entretanto, apesar de ter assimilado os modos parisienses, Alex é
conhecido entre os amigos como “o primo das Américas”, “o meteco
aceito com um sorriso complacente” (FUENTES, 2007, p.82). Talvez
por isso, após a morte da mãe, única parente sua na França, país
onde vivia, tenha resolvido voltar à terra da família.
No México, estavam as tias e uma provável fortuna à sua
espera, o que, segundo comentários do narrador, foi a principal
motivação para a viagem da personagem. Alex então escreve às tias
e, já nesse primeiro contato, o elemento mágico começa a se
desenhar na narrativa. É através da sua dúvida diante da resposta à
carta que mandara às senhoras que o leitor percebe isso: por que as
duas não assinaram uma só carta. Por que responderam por cartas
separadas, embora idênticas. Imediatamente, a advertência da mãe
de Alex, sobre o caráter das irmãs, começa a indicar um mistério que
tomará corpo conforme a personagem submerge na nova realidade.
Essa transposição da personagem da Europa para a América
Latina, o que ao longo da trama enfatiza-se, sobretudo pela
atmosfera de presságios e mistérios que as tias criam em torno do
sobrinho, assinala a diferença entre a perspectiva cultural europeia e
a latina percebida por Roh. No que diz respeito ao espaço, ela é vista
principalmente pelo sentimento de Alex em relação à França e ao
México. A Cidade do México configura-se assim um elemento
indispensável não somente para a ambientação do insólito, mas para
a própria caracterização de Alex, e a influência de sua atmosfera na
psicologia da personagem é o centro da tensão mágica da narrativa. A
unidade de efeito é elaborada por meio de uma bipolarização do seu
comportamento, provocada principalmente pela mudança de
ambiente, que vai do ceticismo à imaginação fantasista, conforme os
eventos insólitos, relacionados ao imaginário local.

148
Essa face do caráter de Alex é ainda reforçada por um
temperamento que oscila entre o romantismo e a praticidade da
investigação dos fatos, tal como atestam as duas citações de leitura
feitas por ele: Musset e Simenon. No primeiro caso, há a alusão ao
romantismo em que se percebe a negação da perspectiva iluminista
como filosofia de vida. A razão, aqui, não pode prevalecer
indiscriminadamente sobre a imaginação e a emoção. E é justamente
pela citação do escritor romântico que a narrativa deixa transparecer
ao leitor a porção latina de Alex reprimida pela educação racionalista
e metódica que ele recebera na França. No segundo caso, a
referência ao romance de investigação de Simenon, La vérite sur Bébé
Donge, mostra os resquícios dessa formação, sobretudo pela
preocupação em buscar e encontrar a verdade, mediante uma
averiguação factual e pragmática, tal como se dá no romance policial.
Assim, Alex é a personagem que reluta em aceitar inteiramente a
natureza de sua compleição latina, impregnada de mistérios, pois
sempre busca uma explicação razoável para os acontecimentos
insólitos que o cercam.
Como uma sessão psicanalítica, o retorno à casa da mãe e o
contato com as memórias de seus antepassados despertam-lhe aos
poucos aspectos de sua identidade que revelam a inclinação ao
pensamento mágico − não foi preciso muito tempo de convivência
com as tias para que sua mente cartesiana começasse a fraquejar.
Alex inicia um processo de autoconhecimento em que a desconfiança
do tratamento que as duas senhoras dispensam a ele é o estopim
para o sentimento de pânico que os mistérios da casa só agravam. O
leitor acompanha essa guinada e, juntamente com as dúvidas de
Alex, abandona suas certezas sobre a natureza dos acontecimentos.
A referência ao ambiente, às construções, aos móveis, à
atmosfera, à iluminação, também age como um mediador entre
realidade e ficção, conferindo ao relato um aspecto de verdade. A
familiarização com tais indicações é um dos princípios para que o

149
processo de construção da diegese se complete. No realismo mágico,
essa técnica se vale de elementos conhecidos, pertencentes a um
universo compartilhado socioculturalmente entre texto e leitor, sejam
eles tidos como naturais ou como sobrenaturais.
É o que acontece no conto “O outro”, de Jorge Luis Borges
quando as noções de tempo e de espaço são subvertidas para
possibilitar o encontro do narrador consigo mesmo. As primeiras
indicações espaço-temporais situam o episódio em 1969, na cidade
de Boston, nos Estados Unidos. O relato, entretanto, é de 1972, e
especifica detalhadamente o lugar onde o encontro se deu: “Eu
estava recostado em um banco, defronte ao rio Charles. A uns
quinhentos metros a minha direita havia um alto edifício cujo nome
nunca soube. A água cinzenta carregava grandes pedaços de gelo”
(BORGES, 2009, p.7).
A principal estratégia de naturalização do episódio mágico é a
utilização do narrador autodiegético identificado à pessoa do
escritor: Borges é a personagem central da narrativa e usa como
argumento, em prol da veracidade do acontecimento, dados da sua
própria vida. No relato borgeano, a informação biográfica funciona
como elemento mediador para a interpretação textual. Ao dar as
referências de datas e de locais específicos – o narrador fornece
índices ao leitor que o guiarão por acontecimentos relacionados à
vida do escritor no que diz respeito à sua formação intelectual e a
fatos que influenciaram sobremaneira a sua obra.
Observado esse sentido peirceano do signo-índice que remete
o leitor a algo que possa resgatar um significado, dois momentos na
história de Borges, recuperados na leitura do conto, remeterão à
confirmação da referência à sua biografia para sinalizar o texto da
Cabala, principalmente no que se refere aos princípios relacionados à
apreciação do tempo e ao encontro da velhice com a juventude, o
que sugere o cumprimento de um ciclo: a estadia em Genebra,
quando Borges contava vinte e poucos anos, e a admissão como

150
professor em Cambridge, já em idade avançada. A ficcionalização
desses espaços é o que possibilita o entendimento dessas duas
dimensões de uma personagem: ao situá-las em um banco que está
tanto em 1969, em Cambridge, quanto em 1918, em Genebra, o
narrador apresenta uma possibilidade, ainda que insólita, para o
encontro:
Esse emprego alternado de cenários permite
reequilibrar a construção fantástica sempre que
se torne necessário corrigir o caráter demasiado
insólito ou demasiado quotidiano que
acontecimentos ou personagens podem
assumir, conferindo credibilidade à ação e
mantendo sempre o grau conveniente de
indecisão nas eventuais leituras a que o texto
seja submetido. (FURTADO, 1980, p.125-126)
As representações simbólicas do espaço, tal como se vê no
conto, valorizam ainda sua perspectiva estética e dão-lhe um sentido
atual. O tempo aparece nessa concepção como um elemento
intrínseco à categoria de espaço, pois é ele que permite a união com
o verdadeiro mundo no qual os eventos ocorrem; na medida em que
o tempo é a mesma condição do fluxo desta mudança (FRANK, 1991,
p.650). Se o tempo, entendido em uma concepção usual, é percebido
apenas linearmente, no realismo mágico, essa limitação é ignorada,
mas não apenas no sentido metafórico atribuído ao texto literário. No
conto de Borges, as datas e os números, de um modo geral, justificam
a reversibilidade do tempo por meio de informações matemáticas e
cabalísticas, na medida em que esses conhecimentos podem revelar a
essência das coisas e do universo.
É nesse sentido que a percepção do espaço aqui se faz de
modo cada vez mais subjetivo. Principalmente, porque há nessa
figuração espacial a atualização de reflexões acerca do ser e, através
das referências a elas, pode-se perceber o impacto desses fenômenos

151
na vida e no pensamento das pessoas. Essa representação do espaço
pelo subjetivismo manifesta-se notadamente em situações de
deslocamentos, quando a marcação dos lugares se dá sem
coordenadas definitivas. Pensar a inserção de uma personagem em
determinados contextos espaciais é também pensar sobre a noção de
identidade imbricada nesse reconhecimento.

A análise dos contos aqui mencionados tentou mostrar a


simbiose entre personagem e espaço e a importância dessa relação
para a recepção do texto do realismo mágico. Buscou-se observar o
espaço como sustentáculo da construção da personagem, e a leitura
mágica que resulta desse entrelaçamento ao revelar os lugares,
muitas vezes, como exteriorização dos conflitos existenciais figurados
nas narrativas. É como se os ambientes materializassem os medos, as
angústias e os infortúnios desses heróis, figurativizando paisagens
que revelam a dimensão mítica de suas experiências e
proporcionando ideias, vagas ou amplas, de lugares que envolvem o
leitor e o transportam para o mundo ficcional.
Quando a experiência que antecede a leitura, ou o horizonte
de expectativa desse leitor, não é suficiente para completar a
ambientação, o propósito do texto do realismo mágico deve se
realizar por outras vias. A narrativa deve liberar então elementos que
minimizem essa falha, deixando que os lugares surjam inicialmente
como uma ideia rudimentar de localização. E é justamente nessa
lacuna que a experiência da personagem complementa a experiência
do leitor. Nesse sentido, responder à pergunta: quais elementos dessa
ambientação simulam as sensações de medo, ansiedade, tensão,
suspense ou o estranhamento das narrativas? foi a motivação central
do trabalho, sobretudo porque a localização é um dos elementos

152
mais dinâmicos da narrativa e que muito contribui para a conquista
do leitor.
Assim, o espaço se configura na narrativa literária de modo a
reforçar a composição das personagens ou ainda a sustentar ao seu
estofo ontológico, ou seja, a sua perspectiva humana. A tradição
racionalista mostra que a consciência se modela segundo critérios de
seguridade: optamos por racionalizar o que nos deixa confortáveis e
seguros para ignorar o que nos ameaça. Na tentativa de elucidar, no
âmbito literário, esses medos, o realismo mágico amplia a concepção
de realismo. Há, segundo essa perspectiva, uma preocupação
importante em mostrar as idiossincrasias do homem que reconhece a
influência do desconhecido na sua vida. Isso é dito em narrativas que
problematizam as incongruências do método racionalista de
categorização do pensamento frente a experiências inexplicáveis. O
resultado disso é a percepção de uma realidade que aceita a
coexistência de mundos. A visão dessa possibilidade é a tônica da
literatura do realismo mágico de um modo geral.

BORGES, Jorge Luís (2009). O Livro de Areia. São Paulo: Companhia das
Letras.
CARPENTIER, Alejo (1994). El reino de este mundo/The Kingdom of this
world. La Editorial UPR.
CORTÁZAR, Julio (1946). “A casa tomada”. In: ______. Bestiário. Bogotá:
Editorial Hispanoamérica.
ECO, Umberto (1991). Semiótica e filosofia da linguagem. Tradução: Maria
Rosaria Fabris e José Luiz Fiorin. São Paulo: Ática.
ECO, Umberto (1979). Lector in fabula: La cooperación interpretativa en el
texto narrativo. Barcelona: Editorial Lumen.

153
FRANK, Joseph (1991). “Spatial Form in modern literature: an essay in three
parts”. The Sewanee Review, 53(4), 433-456. Baltimore, Maryland/ EUA: The
Johns Hopkins University Press.
FUENTES, Carlos (2007). Inquieta Companhia. Rio de Janeiro: Rocco.
FURTADO, Filipe (1980). A construção do fantástico na narrativa. Lisboa:
Horizonte.
MÁRQUEZ, Gabriel García (1995). Doze contos peregrinos. 6.ed. Rio de
Janeiro: Record.
______. (2004). Me alugo para sonhar. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Lopes (1988). Dicionário de teoria da
narrativa. São Paulo: Ática.
_____. (2001). O conhecimento da literatura: introdução aos Estudos
Literários. 2.ed. Coimbra: Almedina.
ROH, Franz (1995). Magic realism: post-expressionism. Durham: Duke
University Press.
ROSENFELD, Anatol (2011). Literatura e personagem. In: CANDIDO, Antonio;
______. ; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo Emílio Salles. A
personagem de ficção. 12.ed. São Paulo: Editora Perspectiva.
SCHNEIDER, Ralf (2001). “Toward a cognitive theory of literary character:
The dynamics of mental-model construction”. Style, 35(4), 607-639. Penn
State University Press
WILSON, Randon (1995). “The metamorphosis of fictional space: magical
realism”. In ZAMORA, Lois Parkinson; FARIS, Wendy B. (Orgs.). Magical
realism: theory, history, community. Durham & London. p.226-263.

154

Você também pode gostar