Vol. II - ABBAGNANO, Nicola.-Historia-da-Filosofia

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Empresa Gráfica Feirense, L.

da

Vila da Feira Tiragem 3 000 exemplares

História da Filosofia
Segundo volume
Nicola A bbagnano

DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME II

TRADUÇÃO DE: ANTÓNIO BORGES COELHO

CAPA DE: J., C.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES ,@@0sé Falcão, 57 - Porto

EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 1969

TÍTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Cop3right by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. -


R. Augusto Gil, 2 c@E. - Lisboa

XIII

A ESCOLA PERIPATÉTICA

§ 86. TEOFRASTO

Assim como a velha Academia continua a última fase do ensinamento platónico, também A
escola peripatética apresenta as características do último período da actividade de
Aristóteles, dedicado principalmente à organização do trabalho científico e a investigações
particulares.

à morte de Aristóteles, sucedeu ao mestre na direcção da escola Teofrasto de Eresso, em


Lesbos que a dirigiu até à sua morte, ocorrida entre 288 e 286 a.C. A sua actividade
científica orientou-se sobretudo para o campo da Botânica. Conservaram-se duas obras:
História das Plantas e As Causas das Plantas, que fizeram dele o mestre daquela disciplina
durante toda a Antiguidade e até ao final da Idade Média. Foi também autor das Opiniões
Físicas, uma espécie de história das doutrinas físicas de Tales a Platão e a Xenócrates, da
qual nos restam alguns fragmentos. Também se conservou um escrito moral, Os
caracteres.

Teofrasto formulou numerosas críticas a pontos concretos da doutrina aristotélica, mas


manteve-se fiel aos ensinamentos fundamentais do mestre. Contra a doutrina do intelecto
activo objectou que são incompatíveis com a função daquele intelecto o esquecimento e o
erro. Contra o universal finalismo das coisas, professado por Aristóteles, notou que, na
natureza, muitas coisas não obedecem à tendência para o fim e, se esta tendência é própria
dos animais, não se revela nos seres inanimados que são os mais numerosos na natureza.
Em compensação defende a doutrina aristotélica da, eternidade do mundo contra as
objecções que lhe vinham sendo feitas.

Na obra Os caracteres, que provavelmente não nos chegou na sua forma original mas
numa redacção retocada, descreve com uma certa- argúcia trinta tipos de caracteres
morais (o importuno, o vaidoso, o descontente, o fanfarrão, etc.) Pode dizer-se que
Teofrasto aplicou à vida moral, nesta obra, o mesmo método descritivo empregado por ele
no estudo da Botânica.

§ 87. OUTROS DISCíPULOS DE ARISTóTELES

Ao lado de Teofrasto, o mais importante dos discípulo imediatos de Aristóteles é Eudemo


de Rodes, autor de numerosos escritos de história da ciência. Eudemo é designado como "o
mais fiel"> dos discípulos de Aristóteles. Foi o editor da obra moral de Aristóteles que é
designada precisamente pelo seu nome (Ética Eudemia) e que alguns consideram como
obra sua.

Aristóxeno, de Tarento retomou a doutrina pitagórica da alma como harmonia, sustentada


por Símias no Fédon platónico. As suas simpatias pelo pitagorismo manifestam-se também
no interesse que

sentiu pela música, à qual dedicou uma obra intitulada Harmatúa, de que nos restam
fragmentos. Foi também autor de biografias de filósofos, em particular de Pitágoras e de
Platão.

Dicearco de Messina afirmou, em oposição a Aristóteles e a Teofrasto, ia superioridade da


vida prática sobre a vida teórica. Na sua obra, Vida da Grécia, de que nos restam poucos
fragmentos, delineou uma história da civilização grega. , No Tripolítico sustentou que a
melhor constituição é uma mescla de monarquia, aristocracia e democracia como a que se
havia desenvolvido em Esparta.

§ 88. ESTRATÃO

A Teofrasto sucedeu na direcção da escola Estratão de Lâmpsaco, que a exerceu durante


dezoito anos. O sentido da sua investigação é indicado pelo apodo de "o físico".
De facto procurou conciliar Aristóteles e Demócrito. De Demócrito tomou a doutrina dos
átomos e do espaço vazio; mas, diferentemente de Demócrito e conformemente a
Aristóteles, considerou que o espaço vazio não se estende até ao infinito, pira lá dos confins
do mundo, mas apenas no interior deste entire os átomos. Alé m disso, segundo Estratão,
os corpúsculos são dotados de certas qualidades, especialmente de calor e de frio.

Na sua doutrina sobre a ordem e a constituição do mundo, Estratão aproximava-se muito


mais de Demócrito do que de Aristóteles. Não se servia da divindade para explicar o
nascimento do mundo e recorria à necessidade da natureza ou pelo menos identificava
com ela a acção de Deus. Estratão afirmou energicamente a unidade da alma. Por causa
desta unidade não é possível uma separação nítida entre sensação e pensamento. " Sem o
pensa-

mento -dizia ele - não há sensação." Mas, por outro lado, tanto o pensamento como a
sensação não são mais que movimento e deste modo voltam a entrar no mecanismo geral
da natureza.

Depois de Estratão, a escola peripatética continuou o seu trabalho através de numerosos


representantes dos quais nos restam escassas notícias e fragmentos. Mas estes dedicaram-
se todos a investigações naturalistas particulares e assim não trouxeram contributos
relevantes à ulterior elaboração da filosofia aristotélica.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 86. Para os escritos da ~Ia aristotélica em geral cfr. a colectânea Die Schule des
Aristoteles, Texte und Kommentar, editada por Wehrli em BasEcia-

Fontes para a vida, os escritos e a doutrina de Teofrasto: DióGENEs LAÉRCIO, V, 36 ss.;


REGENBOGEN, Theophrastos von Eresos, Stuttgart, 1940.

Os escritos que nos ficaram, isto é, as duas obras de botânica, os Caracteres e os


fragmentos foram editados por Schneid-er, Leipzig, 1918-21; outra edição, Wimmer,
Leipzig, 1854. Sobre Teofrasto: ZELLER 11,
2, p. 806 ss.; GomPERz, III, cap. 39-42.

§ 87. Os fragmentos de Eudemo, in MULLACH, Fragmenta phil. graec., III, p. 222 ss.. Os
fragm-entos da Harmonia de Aristóxeno foram editados por Marquard, Berlim, 1868 e por
Macran, Oxford, 1903. Os fragmentos de Dicearco, por Fuhr, Darmstadt, 1841. Sobre estes
três discípulos de Aristételes: ZELLER, U, p. 869 ss..

§ 88. Sobre a vida, os escritos e a doutrina de Estratão: DIóGENEs LAÉRCIO, V, 58 ss.


Sobre Estratã<): ZELLER, 11, 2, p. 897; GomPERz, UT, cap. 43.

]o

XIIII

O ESTOICISMO

§ 89. CARACTERíSTICAS DA FILOSOFIA PóS-ARISTOTÉLICA

A conquista macEdónia e a consequente mudança da vida política e social do povo grego


encontra expressão no carácter fundamental da filosofia pós-aristotélica. É costume
exprimir tal característica dizendo que este período da filosofia é assinalado pela
prevalência do problema moral.

A investigação filosófica no período que vai de Sócrates a Aristóteles dirigira-se para


realização da vida teorética, entendida como unidade da ciência e da virtude, isto é, do
pensamento e da vida. Mas destes dois termos, que já Sócrates unificava completamente, o
primeiro prevalecia nitidamente sobre o segundo. 'Para Sócrates a virtude é e deve ser
ciência e não há virtude fora da ciência. Platão conclui no Filebo os aprofundamentos
sucessivos da sua investigação dizendo que a vida humana perfeita é uma vida mista de
ciência e de prazer, na qual a ciência prevalece. Aristóteles considera

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a vida teorética como a mais alta manifestação da vida do homem e ele mesmo encara e
defende com a sua obra os interesses desta actividade, levando a sua investigação a todos
os ramos do cognoscível. Só a partir dos Cínicos o equilíbrio harmónico entre ciência e
virtude se rompe pela primeira vez: eles puseram o acento no peso da virtude em
detrimento da ciência e tornaram-se partidários de um ideal moral propagandístico e
popularucho, chegando a ser gravemente infiéis aos ensinamentos do seu mestre.

Mas a rotura definitiva da harmonia da vida teorética a favor do segundo dos seus termos,
a virtude, encontra-se na filosofia pós-aristotélica. A fórmula socrática-a virtude é ciência-é
substituída pela fórmula a ciência é virtude. O objectivo imediato e urgente é a busca de
urna orientação moral, à qual deve estar subordinada, como ao seu fim, a orientação
teorética. O pensamento deve servir a vida, não a vida o pensamento. Na nova fórmula, os
termos que na antiga encontravam a

sua unidade são opostos um ao outro, de modo que se sente a necessidade de escolher
entre eles o termo que mais importa e subordinar-lhe o outro. A filosofia é ainda e sempre
procura; mas procura de uma orientação moral, de uma conduta de vida que não tem já o
seu centro e a sua unidade na ciência, mas subordina a si a ciência como o meio ao fim.

§ 90. A ESCOLA ESTOICA

Das três grandes escolas pós-aristotélicas, a estoica foi de longe, do ponto de vista
histórico, a mais importante. A influência do estoicismo tornou-se decisiva no último
período da filosofia grega, quando as correntes neoplatónicas fizeram suas muitas das suas
doutrinas fundamentais, e na Patns-

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tica, na Escolástica Árabe e Latina, no Renascimento. Esta influência só é comparável à de


Aristóteles e exerceu-se muitas vezes sobre a doutrina aristotélica, sugerindo-lhe
desenvolvimentos e modificações que foram nela incorporadas e se tornaram assim suas
partes integrantes. No próprio seio da filosofia moderna e contemporânea, a acção do
estoicismo continua, quer de maneira indirecta quer sob a forma de doutrinas que o senso
comum, a sabedoria popular e a tradição filosófica aceitaram e aceitam sem se
preocuparem com pô-las em discussão. Aqui podemos apenas indicar algumas destas
doutrinas, às quais se terá ocasião de fazer referência mais vezes no decurso desta História.
A primeira delas é a da necessidade da ordem cósmica, com as noções que lhe estão
inclusas de destino e de providência. Esta doutrina serviu de fundamento a todas as
elaborações teológicas que se efectuaram ia partir do neoplatonismo e é válida como
critério interpretativo do próprio aristotelismo. A definição da lógica como dialéctica, a
teoria do significado, da proposição e do raciocínio imediato dominaram o
desenvolvimento da lógica nos últimos séculos da Idade Média, constituindo uma segunda
parte acrescentada à lógica de derivação aristotélica. Os estoicos contribuíram mesmo, a
partir dos aristotélicos antigos, para integrar ou interpretar as teorias lógicas aristotélicas.
As doutrinas do ciclo cósmico ou do eterno retorno e de Deus como alma do mundo
constituíram e constituem ainda um constante ponto de referência das concepções
cosmológicas e teológicas. A análise das emoções e a sua condenação, o conceito da
autosuficiência e da liberdade do sábio ficaram e permanecem entre as mais típicas
formulações da ética tradicional. Pela noção de dever por eles elaborada se renova
rigorosamente a ética kantiana. A noção de valor, também por eles encontrada, revelou-se

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fecundíssima nas discussões éticas. A identificação de liberdade o necessidade, o


cosmopolitismo, a teoria do direito natural são doutrinas de que é quase inútil sublinhar a
importância e a vitalidade.

O fundador da escola foi Zenão de Gtium, em Chipre, de quem se conhece com


verosimilhança o ano do nascimento, 336-35 a.C., e o ano da morte, 264-63. Chegado a
Atenas com os seus vinte e dois anos, entusiasmou-se, através da leitura dos escritos
socráticos (os Memoráveis de Xenofonte e a Apologia de Platão), pela figura de Sócrates e
julgou ter encontrado um Sócrates redivivo no cínico Cratete, de quem se fez discípulo.
Seguidamente foi também discípulo de Estilpon e de Teodoro Crono. Por volta do ano 300
a.C., fundou a sua escola no Pórtico Pintado (Stoà poikíle), pelo que os seus discípulos se
chamaram Estoicos. Morreu de morte voluntária como bastantes outros mestres que lhe
sucederam. Dos seus numerosos escritos (República, Sobre a Vida segundo a Natureza,
Sobre a Natureza do Homem, Sobre as Paixões, etc.) restam-nos apenas fragmentos. Os
seus primeiros discípulos foram Ariston de Quios, Erilo de Cartago, Perseu de Citium e
Cleanto de Assos, na Tróade, que lhe sucedeu na direcção da escola. Cleanto, nascido em
304-03, e morto em 223-22 de morte voluntária, foi um homem de poucas necessidades e
de vontade férrea, mas pouco dotado para a especulação; parece que o seu contributo para
a elaboração do pensamento estoico foi mínimo.

A Cleanto sucedeu Crisipo de Soli ou do Tarso na Cilícia, nascido em 281-78, falecido em


208-05, que é o segundo fundador do Estoicismo, tanto que se dizia: "Se não tivesse
existido Crisipo não existiria a "Stoa". Foi de uma prodigiosa fecundidade literária.
Escrevia todos os dias quinhentas linhas e compôs ao todo 705 livros. Foi também um
dialéctico e um estilista de primeira ordem.

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Seguiram-se a Crisipo dois discípulos seus, primeiro Zenão de Tarso, depois Diógenes de
SeMucia, dito o Babilónico. Diógenes foi a Roma, em 156-55, numa embaixada de que
faziam parte o académico Carnéades e o peripatético Critolau. A embaixada suscitou
muito interesse na juventude de Roma, mas teve a desaprovação de Catão, o qual temia
que o interesse filosófico desviasse a juventude romana da vida militar. A Diógenes seguiu-
se Antipatro de Tarso.

A produção literária de todos estes filósofos, que deve ter sido imensa, perdeu-se e dela só
nos restam fragmentos. Estes nem sempre são referidos a um autor singular, mas amiúde
aos Estoicos em geral, de modo que se torna muito difícil distinguir, na massa das notícias
que nos chegaram, a parte que corresponde a cada um dos representantes do Estoicismo.
Por isso se deve expor a doutrina estoica no seu conjunto, mencionando, quando possível,
as diferenças ou as divergências entre os vários autores.

§ 91. CARACTERÍSTICAs DA FILOSOFIA ESTOICA

O fundador do Estoicismo, Zenão, teve como mestre e como modelo de vida o cínico
Cratete. Isto explica a orientação geral do Estoicismo, o qual se apresenta como a
continuação e o complemento da doutrina cínica. Como os Cínicos, os Estoicos procuram
não já a ciência, mas a felicidade por meio da virtude. Mas, diferentemente dos Cínicos,
consideram que, para alcançar a felicidade e a virtude, é necessária a ciência. Não faltou
entre os Estoicos quem, corno Ariston, estivesse ligado estreitamente ao Cinismo e
declarasse inútil a Lógica e superior às possibilidades humanas a FÍsica, aban-

15

donando-se a um desprezo total pela ciência. Mas contra ele, Erilo colocava o sumo bem e
o fim último da vida no conhecer, volvendo assim a Aristóteles. O próprio fundador da
escola, Zenão, considerava indispensável a ciência para a conduta da vida, e embora não
lho reconhecesse um valor autónomo, incluía-a entre as condições fundamentais da
virtude. A própria ciência parecia-lhe virtude e as divisões da virtude eram para ele
divisões da ciência. Tal foi indubitavelmente a doutrina que prevaleceu no Estoicismo. "A
filosofia -diz Séneca- é exercício de virtude (studium virtutis), mas por meio da própria
virtude, já que não pode haver virtude sem exercício, nem exercício de virtude sem
virtude" (Ep., 89).

O conceito da filosofia vinha assim a coincidir com o da virtude. O seu fim é alcançar
sageza que é a "ciência das coisas humanas e divinas"; mas a única arte para alcançar a
sabedoria é precisamente o exercício da virtude. Ora as virtudes mais gerais são três: a
natural, a moral e a racional; também a Filosofia se divide, pois, em três partes: a Física, a
Ética e a Lógica. Diferente foi a importância atribuída sucessivamente a cada uma destas
três partes; e distinta foi a ordem em que as ensinaram os vários mestres da Stoà. Zenão e
Crisipo começavam pela lógica, passavam à Física e terminavam com a Ética.

§ 92. A LÓGICA estoica

Com o termo Lógica, adoptado pela primeira vez por Zenão, os Estoicos expressavam a
doutrina que tem por objecto os logoi ou discursos. Como ciência dos discursos contínuos,
a lógica é Retórica; como ciência dos discursos divididos por perguntas e respostas, a
lógica é dialéctica. Mais precisamente, a

16

Página da obra "Vida e doutrina dos filósofos,,5, de

Diógenes Laércio (Códice do século V)

4,,

dialéctica é definida como "a ciência daquilo que é verdadeiro e daquilo que é falso e
daquilo que não. é nem verdadeiro nem falso." (Diog. L., VII,
42; Séneca, EP., 89). Com a expressão "aquilo que não é nem verdadeiro nem falso", os
Estoicos entendiam provavelmente os sofismas ou os paradoxos, sobre cuja verdade ou
falsidade não se pode decidir e cujo tratamento ocupa muito os Estoicos que, neste ponto,
seguem as pisadas dos Megáricos. Por sua vez, a dialéctica divide-se em duas partes
segundo trata das palavras ou das coisas que as palavras significam: a que trata das
palavras é a Gramática, a que trata das coisas significadas é a Lógica em sentido próprio, a
qual, portanto, tem por objecto as representações, as preposições, os raciocínios e os
sofismas (Diog. L., VII, 43-44).

O primeiro problema da lógica estoica é o do critério da verdade. É este o problema mais


urgente para toda a filosofia pós-aristotélica que considera o pensamento apenas como
guia para a conduta: e ora, se o pensamento não possui por si mesmo um critério de
verdade e procede com incerteza e às cegas, não pode servir de guia para a acção. Ora, para
todos os Estoicos, o critério da verdade é a representação catalética ou conceptual
(phantasia kataleptiké). São possíveis duas interpretações do significado desta expressão e
ambas se encontram nas exposições antigas do Estoicismo. Em primeiro lugar, a phantasia
kataleptiké pode consistir na acção do intelecto que prende e penetra o objecto. Em
segundo lugar, pode ser a representação que é impressa no intelecto pelo objecto, isto é, a
acção do objecto sobre o intelecto. Ambos os significados se encontram nas exposições
antigas do Estoicismo. Sexto Empírico (Adv. math., VII, 248) diz-nos que, segundo os
Estoicos, a representação catalética é aquela que vem de um objecto real e está impressa

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e marcada por isso em conformidade com ele próprio, de modo que não poderia nascer de
um objecto diferente. Por outro lado, Zenão (segundo um testemunho de Cioero, Acad., 11,
144) colocava o significado da representação catalética na sua capacidade de prender ou
compreender o objecto. Ele comparava a mão aberta e os dedos estendidos à representação
pura e simples; a mão contraída no acto de agarrar, ao assentimento; o punho fechado à
compreensão catalética. Finalmente, as duas mãos apertadas uma sobre a outra, com
grande força, eram o símbolo da ciência, a qual dá a verdadeira e completa posse do
objecto.

A representação catalética está, pois, relacionada com o assentimento da parte do sujeito


cognoscente, assentimento que os Estoicos consideravam voluntário e livre. Se o receber
uma representação determinada, por exemplo, ver uma cor branca, sentir o doce, não está
em poder daquele que a recebe porque depende do objecto de que deriva a sensação, o
assentir a tal representação é, pelo contrário, sempre um acto livre. O assentimento
constitui o juízo, o qual se define precisamente ou como assentimento ou como
dissentimento ou como suspensão (epoché), isto é, renúncia provisória para assentir à
representação recebida ou a dissentir da mesma. Segundo testemunho de Sexto Empírico
(Adv. math., VII, 253), os Estoicos posteriores puseram o critério da verdade, não na
simples representação catalética, mas na -representação catalética "que não tenha nada
contra si", porque pode dar-se o caso de haver representações cataléticas que não sejam
dignas de fé pelas circunstâncias em que são recebidas. Só quando não tem nada contra si,
a representação se impõe com força às representações divergentes e constrange o sujeito
cognoscente ao assentimento. Disto resulta claramente que a representação catalética é
aquela que é dotada de uma

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evidência não contraditada, tal que solicito com toda a força o assentimento, o qual, no
entanto, permanece livre. Consequentemente, definiam a ciência como "uma
representação catalética ou um hábito imutável para acolher tais representações,
acompanhadas pelo raciocínio" (Diog. L., VII, 47); e consideravam que não há ciência sem
dialéctica, cabendo à dialéctica dirigir o raciocínio.

Pelo que respeita ao problema da origem do conhecimento, o Estoicismo é empirismo.


Todo o conhecimento humano deriva da experiência e a experiência é passividade porque
depende da acção que as coisas externas exercem sobre a alma considerada como uma
tabuinha (tabula rasa) e na qual se vêm registar as representações. As representações são
marcas ou sinais impressos na alma, segundo Ocanto; segundo Crisipo, são modificações
da alma. Em qualquer caso, são recebidas passivamente e produzidas ou pelos objectos
externos ou pelos estados internos da alma (como a virtude e a perversidade). Por isso
nenhuma diferença existe entre a experiência externa e a experiência interna. Toda a
representação, depois do seu desaparecimento, determina a recordação, um conjunto de
muitas recordações da mesma espécie constitui a experiência (Aezio, Plac., IV, II). Da
experiência nasce, por um procedimento natural, a noção

comum ou antecipação; a antecipação é a noção natural do universal (D@og. L., VII, 54).

Todavia, segundo eles, os conceitos não têm nenhuma realidade objectiva: o real é sempre
individual e o universal subsiste apenas nas antecipações ou nos conceitos. O Estoicismo é,
pois, um nominalismo, segundo a expressão que foi usada na Escolástica para designar a
doutrina que nega a realidade do universal. Os conceitos mais gerais, aqueles que
Aristóteles designara com categorias, são reduzidos pelos Estoicos a quatro: 1.* o sujeito

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ou substância; 2.* a qualidade; 3.* o modo de ser,


4.O o modo relativo (Plotino, Enn., VI, 1. 202). Estas quatro categorias estão entre si numa
relação tal que a seguinte encerra a precedente e a determina. Efectivamente, nada pode
ter um carácter relativo se não tem um modo seu de ser; não .pode ter um modo de ser se
não possui uma qualidade fundamental que o diferencie dos outros; e só pode possuir esta
qualidade se subsiste por si, se é substância.

O conceito mais elevado e mais extenso ou, como diziam, o género supremo, é o conceito
de ser, porquanto tudo, em certo modo, é, e não existe, portanto, um conceito mais extenso
do que este.
O conceito mais determinado é, pelo contrário, o de espécie que não tem outra espécie
abaixo de si, isto é, o do indivíduo, por exemplo de Sócrates (Diog. L., VII, 61). Outros
Estoicos, pretendendo encontrar um conceito ainda mais extenso que o de ser, recorreram
ao de alguma coisa (aliquid) que pode compreender também as coisas incorpóreas
(Séneca, Ep., 58).

A parte da lógica estoica que teve a maior influência no desenvolvimento da lógica


medieval e moderna é a que concerne à proposição e ao raciocínio. Como fundamento
desta parte da sua doutrina, os Estoicos elaboraram a doutrina do ,significado (lektón) que
se manteve de fundamental importância na lógica e na teoria da linguagem. "São três
-diziam eles- os elementos que se ligam: o significado, aquilo que significa e aquilo que é.
Aquilo que significa é a voz, por exemplo, "Dione". O significado é a coisa indicada pela voz
e que nó s tomamos pensando na coisa correspondente. Aquilo que é é o sujeito externo,
por exemplo, o próprio "Dione" (Sexto Emp:, Adv. math., VIII, 12). Destes três elementos
conhecidos, dois ,são,,c,or,p<>reos, a voz e aquilo que é; um é incor-

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pórco, o significado. O significado é, noutros termos, qualquer informação ou
representação ou conceito que nos vem à mente quando percebemos uma palavra e que
nos permite referir a palavra a uma coisa determinada. Assim, por exemplo, se com a voz
<@homem" entendemos um "animal racional", podemos indicar com esta voz todos os
animais racionais, isto é, todos os homens. O conceito "animal racional" é o significado que
consente a referência da palavra ao objecto existente. Ele é o caminho entre a palavra (ou,
em geral, a expressão verbal) e a coisa real ou corpórea: e assim orienta, na -referência ao
objecto, as expressões linguísticas que, de outro modo, permaneceriam puros sons,
incapazes de qualquer conexão com as coisas. A referência à coisa constitui, portanto,
parte integrante do significado ou, pelo menos, é um aspecto que lhe está intimamente
ligado, porque a informação em que consiste o significado não tem outra função senão a de
tornar possível
* a de orientar tal referência. Na lógica medieval
* moderna, aquilo que os Estoicos chamavam significado foi frequentemente designado
com outros nomes como conotação, intenção, compreensão, interpretante, sentido,
enquanto a referência à coisa foi chamada suposição, denotação, extensão, significado.
Mas esta diversidade de terminologia. não mudou o conceito de significado nos três
elementos fundamentais em que os Estoicos o tinham analisado.

Segundo os Estoicos, um significado está completo se pode ser expresso numa frase, por
exemplo, "Sócrates escreve". A palavra "escreve" não tem, em contrapartida, significado
completo porque deixa sem resposta a pergunta "quem?". Um significado
completo é, portanto, só a proposição, a qual é definida também, com Aristóteles, como
aquilo que pode ser verdadeiro ou falso.

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O raciocínio consiste numa conexão entro as proposições simples do tipo seguinte: "se é
noite. há trevas; mas é noite, portanto existem trovas." Este tipo de raciocínio não tem,
como se vê, nada a ver com o silogismo aristotélico porque lhe faltam as suas
características fundamentais: é imediato <não tem termo médio) e não é necessário. A
falta destas características permite aos Estoicos distinguir pela sua verdade, a concludência
de um raciocínio. o raciocínio acima exposto só é verdadeiro se é noite mas é falso se é dia.
Inversamente, é concludente em qualquer caso porque a relação das premissas com a
conclusão é correcta. Os tipos fundamentais de raciocínios concludentes são chamados
pelos Estoicos anapodíticos ou raciocínios não demonstrativos. Sã o evidentes por si
próprios e são os seguintes: 1.* Se é dia há luz, mas é dia; portanto, há luz. 2.* Se é dia, há
luz; mas não há luz; portanto não é dia. 3.* Se não é dia, é noite; mas é dia; portanto não é
noite. 4.* Ou é dia ou é noite; mas é dia; portanto não é noite.
5.* Ou é dia ou é noite; mas não é noite; portanto. é dia (1p. Pirr, 11, 157-58; Diog. L., VII,
80). Estes esquemas de raciocínio são sempre válidos mas sempre verdadeiros. dado que
só são verdadeiros quando a premissa é verdadeira, isto é, quando corresponde à situação
de facto. Sobre eles se modelam os raciocínios demonstrativos que são não só concludentes
mas manifestam também alguma coisa que antes era "obscura", isto é, qualquer coisa que
não é imediatamente manifesta à representação catalética, a qual é sempre limitada ao
aqui e agora. Eis um exemplo: "Se esta mulher tem leite no seio, pariu; mas esta mulher
tem leite no seio; portanto pariu> Neste sentido o raciocínio demonstrativo é designado
pelos Estoicos como um sinal indicativo porquanto consente trazer à luz qualquer coisa
que antes estava, obscuro. Sinais remwwa-

22

tivcw sã% pelo contrário, aqueles que, mal se apresentam, tornam evidente a recordação
da coisa que foi primeiramente observada em ligação com ela o agora não é manifesta
como é, por exemplo, o fumo a respeito do fogo (Sexto E., Adv. math., VIII,
148 ss.). Evidentemente, os Estoicos confiaram ao raciocínio demonstrativo a construção
da sua doutrina; por exemplo, a demonstração da existência da alma ou da alma do mundo
(que é Deus), feita a partir dos movimentos ou dos factos que são imediatamente dados
pela representação catalética, constitui um sinal indicativo no sentido agora referido.

Como se vê, a dialéctica estoica tem em comum com a dialéctica platónica o carácter
hipotético das suas Iiwemissas, mas distingue-se desta dialéctica porque a conjunção das
premissas entre si e a sua conexão com a conclusão exprime situações de facto ou estados
de coisas imediatamente presentes. Aliás, o carácter hipotético do processo dialéctico não
é, para os Estoicos como não era para Aristóteles, um defeito da própria dialéctica pelo
qual esta seria inferior à ciência. Para eles, a ciência não é, precisamente, outra coisa senão
dialéctica (Diog. L., VII, 47). O conceito estoico da lógica como dialéctico difundiu-se,
através das obras de Boécio, na Escolástica Latina e foi o fundamento da chamada lógica
terninística, característica do último período da Escolástica.

§ 93. A FíSICA ESTOICA

O conceito fundamental da Física estoica é o de uma ordem imutável, racional, perfeita e


necessária que governa e sustenta infalivelmente todas as coisas e as faz ser e conservar-se
tais como são. Esta ordem é identificada pelos Estoicos com o

23

próprio Deus: assim a sua doutrina é um rigoroso panteísmo.

Os Estoicos substituem as quatro causas aristotélicas (matéria, forma, causa eficiente e


causa final) por dois princípios: o princípio activo (poioún) e o princípio passivo (páschon)
que são ambos materiais e inseparáveis um do outro. O princípio passivo é a substância
privada de qualidade, isto é, a matéria; o princípio activo é a razão, isto é, Deus que agindo
sobre a matéria produz os seres singulares. A matéria é inerte, e se bem que pronta para
tudo, ficaria ociosa se ninguém a movesse. A razão divina forma a matéria, dirige-a para
onde quer e produz as suas determinações. A substância de que nascem todas as coisas é a
matéria, o princípio passivo; a força pela qual todas as coisas são feitas é a causa ou Deus, o
princípio activo (Diog. L., VII, 134). Contudo, a distinção entre princípio activo e princípio
passivo não coincide, segundo os Estoicos, com a distinção entre o incorpóreo e o
corpóreo. Ambos os princípios, seja a causa, seja a matéria são corpo o nada mais que
corpo, dado que só o corpo existe. Um rígido materialismo é defendido pelos Estoicos na
base da definição de ser dada por Platão no Sofista (§ 56): existe aquilo que age ou
suporta uma acção. Dado que só o corpo pode agir ou sofrer uma acção, só o corpo existe
(Diog. L., VII, 56; Plut., Comm. Not., 30, 2, 1073; Stob., Ecl., 1, 636). A alma é, pois, corpo
como princípio de acção (Diog. L., VII, 156). É corpo a voz que também opera e age sobre a
alma (Aezio, Plac., IV, 20,2). É corpo, enfim, o bem como são corpos as emoções e os
vícios. Diz Séneca a este respeito: "0 bem opera porque é útil e aquilo que opera é um
corpo.
O bem estimula a alma numa certa maneira: modela-a e tem-na sob o freio, acções estas
que são próprias de um corpo. Os bens do corpo são corpos;

24

portanto, também os da alma, pois também ela é corpo" (Ep., 106). Os Estoicos só
admitiam quatro coisas incorpóreas: o significado, o vazio, o lugar e o tempo (Sexto E.,
Adv. math., X, 218).

Como se vê, nem Deus existe entre as coisas incorpóreas. O próprio Deus, como razão
cósmica e causa de tudo, é corpo: mais precisamente é fogo. Mas não o fogo de que o
homem se serve, que destrói todas as coisas: é antes um sopro cálido (pneuma) e vital que
tudo conserva, alimenta, faz crescer e também sustém. Mas este sopro ou espírito vital,
este fogo animador é também ele corpo. Chama-se razão seminal (logos spermatikós) do
mundo porque contém em si as razões seminais segundo as quais todas as coisas se geram.
Como todas as partes de um ser vivo nascem da semente, assim toda a parte do universo
nasce de uma mesma semente racional, ou razão seminal. Estas razões seminais são
frequentemente misturadas umas com as outras, mas, ao desenvolverem-se, separam-se e
dão origem a seres diferentes, e assim todas as coisas nascem da unidade e se incluem na
unidade. Contudo, a distinção entre as diferentes coisas é perfeita; não existem no mundo
duas coisas semelhantes, nem mesmo duas folhas de erva.

O mundo foi gerado quando a matéria originária se diferenciou e se transformou nos


vários elementos. Ao condensar-se e tornar-se pesada, converteu-se em terra; ao enrarecer,
converteu-se em ar e logo em humidade e água; ao fazer-se mais subtil, deu origem ao
fogo. Destes quatro elementos compõem-se todas as coisas: duas delas, o ar e o fogo são
activas; as outras duas, terra e água, são passivas. A esfera do fogo está acima da das
estrelas fixas. O mundo é finito e tem a forma de esfera. Em torno dele há o vazio, mas
dentro não há vazio porque é tudo unido e compacto (Diog. L., VII, 137 ss.).

25

A vida do mundo tem um ciclo próprio. Quando, depois de um longo período de tempo
(grande anno), os astros tornam ao mesmo signo e â mesma posição em que se
encontravam no princípio, acontece uma conflagração (ekpúrasis) o a destruição de todos
os seres; e de novo se forma a mesma ordem cósmica e de novo tomam a verificar-se os
acontecimentos ocorridos no ciclo precedente sem nenhuma modificação. Existe de novo
Sócrates, de novo Platão e de novo cada um dos homens com os mesmos amigos e
concidadãos, as mesmas cirenças, as mesmas esperanças, as mesmas ilusões (Nemésio, De
nat. hom., 38, 277).

Tal é de facto o destino (eimarmène), a lei necessária que rege as coisas. O destino é a
ordem do mundo e a concatenação necessária que tal ordem põe entre todos os seres e,
portanto, entre o passado e o porvir do mundo. Todo o facto se segue a um outro e está
necessariamente determinado por ele como pela sua causa; e a todo o facto se segue um
outro que ele determina como causa. Esta cadeia não se pode quebrar porque com ela seria
quebrada a ordem racional do mundo. Se esta ordem, do ponto de vista das coisas que
encadeia, é destino, do ponto de vista de Deus, que é o seu autor e garante infalível. é
providência que rege e conduz todas as coisas ao seu fim perfeito. Portanto, destino,
providência e razão identificam-se entre si, segundo os Estoicos, e identificam-se com
Deus, considerado como a natureza intrínseca, presente e operante em todas as coisas
(Alexandre Afr., De fato, 22, p. 191). Segundo este ponto de vista, os Estoicos justificavam a
adivinhação, definida como a arte de prover o futuro mediante a interpretação da ordem
necessária das coisas. Mas só o filósofo pode sei adivinho do futuro porque só elo conhece
a ordem n~ia do mundo (Cícero, De divin., 11, 63, 130).

26

Identificando Deus com o cosmos, isto é, com a ordem necessária do mundo, a doutrina
estoica é um rigoroso panteísmo. É. ao mesmo tempo, uma justificação do politeísmo
tradicional: os deuses da tradição seriam outros tantos aspectos da acção ordenadora
divina. A divindade toma o nome de Júpiter fDià) enquanto tudo existe poT obra (diá) sua,
de Zeus enquanto causa de viver (zên), de Atena enquanto governa sobre o éter, de Hera
enquanto governa sobre o ar, de Efaístos enquanto fogo-artífice e assim por diante (Diog.
L., VII, 147).

E se o mundo, na sua ordem necessária, se identifica com a própria razão divina, só pode
ser perfeito. Os Estoicos não negavam a existência do mal no mundo, consideravam apenas
que ele era necessário para a existência do bem. Os bens são contrários aos males, dizia
Crisipo, no seu livro Sobre a Providência. É pois necessário que uns sejam sustentados
pelos outros porque sem um contrário não existiria tão-pouco o outro contrário. Não
haveria justiça se não houvesse a injustiça, pois que ela não é mais que a libertação da
injustiça. Não haveria moderação -se não houvesse a intemperança, nem a prudência se
não houvesse a imprudência e assim por diante. Não haveria verdade sem a mentira
(Gellio, Noct. att., VII, 1). "Deus harmonizou no mundo todos os bens com todos os males
de maneira que nasça dai a razão eterna de tudo", cantava Cleanto no Hino a Júpiter.

§ 94. A PSICOLOGIA ESTOICA

Disse-se já que, segundo os Estoicos, a alma entra no rol das coisas corpóreas com base no
princípio de que é corpo aquilo que age e que a alma age, Crisipo servia-se da própria
definição platónica da morte como "separação da alma do

27

corpo" para tirar dela a confirmação da corporeidade da alma. "0 incorpóreo não poderia
separar-se do corpo nem unir-se com ele; mas a alma une-se ao corpo e não se separa dele,
portanto a alma é corpo" (Nemésio, De nat. nom., 2, 81). A Alma humana é uma parte da
Alma do mundo, isto é, de Deus; como Deus é fogo ou sopro vivificante; e sobrevive à
morte no seio da Alma do Mundo (Diog. L., VII, 156).

As partes da alma são quatro: 1.* o princípio directivo ou hegemónico que é a razão; 2.* os
cinco sentidos; 3.O o sémen ou o princípio espermático;
4.<' a linguagem (Diog. L., VII, 157; Sexto E., Adv. math., IX, 102). O princípio hegemónico
gera e controla as outras partes da alma que se prolonga nelas "como os tentáculos de um
polvo". Assim, além de produzir as representações e o assentimento, ele determina
também os sentidos e o instinto. Segundo alguns testemunhos, os Estoicos teriam posto o
princípio hegemónico na cabeça, comparada àquilo que o sol é no cosmos (Aezio, Plac., IV,
21); mas, segundo outros, tê-la-iam colocado no coração ou no sopro em torno do coração
(1b., IV, 5, 6).

Os Estoicos partilham o conceito, já defendido por Platão e Aristóteles, de que a liberdade


consiste no ser "causa de si" ou dos próprios actos ou movimentos. Eles conheciam
também o termo autopraghia, que se pode traduzir por autodeterminação, para indicar a
liberdade e diziam que só o sage é livre porque só ele se determina por si (Diog. L., VII,
121). Todavia, a liberdade do sage não consiste noutra coisa senão no seu conformar-se
com a ordem do mundo, isto é, com o destino (Diog. L., VII, 88; Stobeo, Flor., VI, 19;
Cicer., De fato, 17). Assim, com os Estoicos, apresenta-se pela primeira vez a doutrina que
identifica a liberdade com a necessidade, transferindo a própria liberdade da parte para o
todo, isto é, do homem

28
para o princípio que opera e age no homem. Não faltou, porém, entre os mestres do Stoa
quem quisesse reconhecer a iniciativa do sage uma certa margem de liberdade no
confronto com a própria ordem cósmica. Crisipo distinguia entre as causas perfeitas e
fundamentais e as concomitantes ou próximas. As primeiras agem com necessidade
absoluta; as segundas podem sofrer a nossa influência; e mesmo quando não a sofrem está
no nosso poder secundá-las ou não. Assim como quem dá um impulso a um cilindro lhe
imprime o começo do movimento mas não a capacidade de rodar, assim os objectos
externos imprimem dentro de nós a representação mas não determinam o assentimento
que permanece em nosso poder. Nestes limites, a vontade e a índole de cada um podem
influir, em conformidade com a ordem do todo, na escolha e na execução das acções
(Cícer., De fato,
41-43; Aulo G., Noet. att., VII, 2).

§ 95. A ÉTICA ESTOICA

Deus confiou a realização e a conservação da ordem perfeita do cosmos no mundo animal a


duas forças igualmente infalíveis: o instinto e a razão.
O instinto (hormé) guia infalivelmente o animal na conservação, na alimentação, na
reprodução e em geral a tomar cuidado consigo para os fins da sua sobrevivência (Diog. L.,
VII, 85). A razão é, por outro lado, a força infalível que garante o acordo do homem
consigo próprio e com a natureza em geral.

A Ética dos Estoicos é, substancialmente, uma teoria do uso prático da razão, isto é, do uso
da razão com o Em de estabelecer o acordo entre a natureza o o homem. Zenão afirmava
que o fim do homem é o acordo consigo próprio, isto é, o

29

viver "segundo uma razão única e harmónica". "Ao acordo consigo próprio, Cleanto
acrescentou o acordo com a natureza e por isso define o fim do homem como "a vida
conforme a natureza". E Crisipo exprimo a mesma coisa dizendo: "viver conforme
com a experiência dos acontecimentos naturais" (Stobeo, Ecl., 11, 76, 3). Mas parece que já
Zenão tinha adoptado a fórmula do "viver segundo a natureza" (Diog. L., VII, 87). E
indubitavelmente esta é a máxima fundamental da doutrina estoica.

Por natureza, Cleanto entendia a natureza universal, Crisipo não só a natureza universal
mas também a humana que é parte da natureza universal. Para todos os Estoicos, a
natureza é a ordem racional, perfeita e necessária que é o destino ou o próprio Deus. Por
isso Cleanto orava assim: "Conduz-me, 6 Zeus, e tu, Destino, aonde por vós sou destinado e
vos servirei sem hesitação: porque ainda que eu não quisesse, vos deveria seguir
igualmente como estulto" (Stobeo, Flor., VI, 19). Ora a acção que se apresenta conforme
com a ordem racional é o dever (kathêkon): a ética estoica é, pois, fundamentalmente uma
ética do dever e a noção do dever, como conformidade ou conveniência da acção humana
com a ordem racional, torna-se, pela primeira vez, nos Estoicos, a noção fundamental da
Ética. Efectivamente, nem a Ética platónica nem a Ética aristotélica fazem referência à
ordem racional do todo, assumindo como seu fundamento, para a primeira, a noção de
justiça, para a segunda, a de felicidade. A noção de dever não surgia no seu âmbito e nelas
dominava a noção de virtude como caminho para realizar a justiça ou felicidade. "Os
Estoicos chamam dever -diz Diógenes Laércio- (VII, 107-09) àquilo cuja escolha pode ser
racionalmente justificada... Das acções realizadas pelo instinto algumas são próprias do

30
dever. outras nem próprias do dever nem contrárias ao dever. Próprias do dever são
aquelas que a razão aconselha efectuar, como honrar os pais, os irmãos, a pátria e viver em
harmonia com os amigos. Contra o dever são aquelas que a razão aconselha a não fazer...
Nem próprias do dever nem contrárias ao dever são aquelas que a razão nem aconselha
nem condena, como levantar uma palha, pegar numa pena, etc.". Como nos refere Cícero,
(De offi, 111, 14), os Estoicos distinguiam o dever recto, que é perfeito e absoluto e não
pode encontrar-se em mais ninguém a não ser no sage, e os deveres "intermédios" que são
comuns a todos e muitas vezes só são realizados com a ajuda da boa índole e de uma certa
instrução. Esta prevalência da noção do dever levou os Estoicos a uma doutrina típica da
sua Ética: a justificação do suced-io. Efectivamente, quando as condições contrárias ao
cumprimento do dever prevalecem sobre as favoráveis, o sage tem o dever de abandonar a
vida mesmo se está no cume da felicidade (Cicer., De fin., 111, 60). Sabemos que muitos
mestres do Stoa seguiram este preceito que é, na realidade, a consequência da sua noção
do dever.

Todavia, o dever não é o bem. O bem começa a existir quando a escolha aconselhada
pelo dever vem repetida e consolidada, mantendo sempre a sua conformidade com a
natureza, até tornar-se no homem urna disposição uniforme e constante, isto é, uma
virtude (Cicer., De fin., 111, 20, Tusc., IV, 34). A virtude é, efectivamente, o único bem. Mas
só é própria do sage, isto é, daquele que é capaz do dever recto e se identifica com a própria
sageza porque esta não é possível sem o conhecimento da ordem cósmica à qual o sage se
adequa. A virtude pode ter nomes diferentes segundo os domínios a que é referida (a
sageza incide sobre os objectivos do homem, a temperança sobre os impulsos, a for-

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taleza sobre os obstáculos, a justiça sobre a distribuição dos bens (Stobeo, Ecl., 11, 7, 60).
Mas, na realidade, existe uma só virtude e só a possui integralmente aquele que sabe
entender e compreender e cumprir o dever, isto é, só o sage (Diog. L., VII, 126).

Entre a virtude e o vício não há, portanto, meio termo. Como um pedaço de madeira ou é
direito

ou curvo sem possibilidade intermédia, assim o homem é justo ou é injusto e não pode ser
justo ou injusto só parcialmente. De facto, aquele que tem a recta razão, isto é, o sage, faz
tudo bem e virtuosamente, enquanto quem é privado da recta razão, o estulto, faz tudo mal
e de maneira viciosa. E pois que o contrário da razão é a loucura, o homem que não é sage
é louco. Pode-se certamente progredir para a sabedoria. Mas como quem está submerso
pela água, ainda que esteja pouco abaixo da superfície, não pode respirar como se estivesse
nas águas profundas, assim aquele que avançou para a virtude, mas não é virtuoso, não
está menos na miséria do que aquele que está mais longe dela (Cicer., De fin., 111, 48).

A virtude é o único bem em sentido absoluto porque ela constitui a realização no homem
da ordem racional do mundo. Este princípio levou os Estoicos a formular uma outra
doutrina típica da sua Ética: a das coisas indiferentes (adiaphorá). Se a virtude é o único
bem, só devem considerar-se bens propriamente a sabedoria, a justiça, etc., e males os seus
contrários; enquanto não são bens nem males as coisas que não constituem virtude, como
a vida, a saúde, o prazer, a beleza, a riqueza, a glória, etc., e todos os seus contrários. Estas
coisas são, portanto, indiferentes. Mas, no domínio destas mesmas coisas indiferentes,
algumas são dignas de ser preferidas ou escolhidas como, precisamente, a vida, a saúde, a
beleza, a riqueza. etc.;

32
outras não, como os seus contrários. Existem, pois, além dos bens (a virtude), outras coisas
que não são bens mas que, todavia, são também dignos de ser escolhidos. E para indicar o
conjunto dos bens e de tais coisas os Estoicos utilizaram a palavra valor (axia). Valor é,
portanto, "todo o contributo para uma vida conforme com a razão" (Diog. L., VII, 105) ou
em geral "aquilo que é digno de escolha" (Cicer., De fin., 111, 6, 20). Com esta noção de
valor fazia o seu ingresso na Ética um conceito que devia revelar-se de grande importância
na história desta disciplina.

Faz parte integrante da Ética estoica a negação total do, valor da emoção (pathos).
Efectivamente, ela não tem qualquer função na economia geral do cosmos que
providenciou de modo perfeito na conservação e no bem dos seres vivos, dando aos
animais o instinto e ao homem a razão. Pelo contrário, as emoções não são provocadas por
forças ou situações naturais: são opiniões ou juízos ditados pela ligeireza, por isso
fenómenos de estultícia e de ignorância que constituem em "julgar saber o que se não
sabe" (Cicer., Tuse., IV, 26). Os Estoicos distinguiam quatro emoções fundamentais às
quais reduziam todas as outras: duas originadas pelos bens presuntivos: o desejo dos
bens futuros e a alegria dos bens presentes; duas originadas pelos males presuntivos: o
temor dos males futuros e a aflição dos males presentes. A três destas emoções, e
precisamente ao desejo, à alegria e ao temor faziam corresponder três estados normais
próprios do sage, isto é, respectivamente a vontade, a alegria e a prudência que são estados
de calma e de equilíbrio racional. Nenhum estado normal corresponde, pelo contrário, no
sapiente àquilo que é aflição para o estulto: efectivamente, para ele não existem males de
que deva doer-se, dado que conhece a perfeição do universo. As emoções são, portanto,

33

verdadeiras e típicas doenças que afectam o estulto mas de que o sage está imune. A
condição do sage, é, pois, a indiferença a toda a emoção, a apatia.

A ordem racional do mundo, do mesmo modo que dirige a vida de todo o homem singular,
dirige o da comunidade humana. Aquilo que se chama justiça é a acção, nesta comunidade,
da própria razão divina. A lei que se inspira na razão divina é a lei natural da comunidade
humana: uma lei superior à reconhecida pelos diferentes povos da terra, perfeita, portanto
não susceptível de correcções ou melhoramentos. Cícero, numa página famosa, exprimia
assim o conceito desta lei: "Por certo, existe uma verdadeira lei, a da recta razão conforme
com a natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida
ao dever e com a sua proibição dissuade do engano... Não será diferente em Roma ou em
Atenas ou hoje ou amanhã, mas como única, eterna, imutável lei governará todos os povos
e em todos os tempos" "Lactâncio, Div. inst., VI, 8, 6-9; Cicer., De rep., 111, 33). Estes
conceitos constituem e constituirão a base da teoria do direito natural que, por muitos
séculos, foi um fundamento de toda a doutrina do direito.

Se a lei que governa a humanidade é única, una é ia comunidade humana. "0 homem que
se conforma com a lei é cidadão do mundo (cosmopolita) e dirige as suas acções segundo o
querer da natureza conforme o qual todo o mundo se governa" (Filon, De mundi opif., 3).
Por isso, o sage não pertence a esta ou àquela naçã o mas à cidade universal na qual todos
os homens são concidadãos. Nesta cidade não existem livres e escravos mas todos são
livres. Para os Estoicos a única escravidão natural é a do estulto enquanto não se
determina em conformidade com aquela Icí que é

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a sua própria natureza e do mundo. A escravatura imposta pelo homem sobre o homem,
para os Estoicos, nã o passa de malvadez (Diog. L., VII, 121),

NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 89. Sobre a filosofia pôs-aristotélica: MELLI, La filosofia greca da Epicuro ai


Neoplatonici, Flo~ rença, 1922; SCHMFKEL, For8chungen zur Philosophie des
Heltení8mus, Berlim, 1938.

§ 90. Sobre a vida, os escritos e a doutrina dos antigos Estoicos as fontes principais são: 1.1
DIóGENES LAÉRciO, VII; 2., SEXTO EMPIRICO, Ipotiposi Pirronianas e Contra os
-matemáticos (estas obras são em boa parte tecidas com a -exposição e a crítica das
doutrinas estoicas); 3.' CICERO, cujas obras filosóficas são Inspiradas inteiramente pelo
Estoicismo, que atingiu através dos escritos dos Eclécticos, principalmente de Possidónio,
e Panézio; 4., diversos artigos de SUIDAS no Léxico; 5., FILODEMO, os restos do escrito
Sobre os Estoicos.

Os fragmentos deduzidos destas fontes e de outras menores ou mais ocasionais foram


recolhidos por VON ARNIM, Stoicorum Veterum Fragmenta: vol. 1, "Zenão e os discípulos
de Zenão", Leipzig, 1905; vol. II, " Os fragmentos lógicos e físicos de Crisipo", Leipzig,
1903; vol. 111, "Os fragmentos morais de Crisipo e os fragmentos dos sucessores de
Crisipo", Leipzig,
1903; vol. lV, "Indíce", compilado por AMER, Leipzig, 1924.

§ 91. Sobre a doutrina estoica em geral: BARTI1, Díe Stoa, Stutgard, 1908; 4.1 ed. 1922;
BRÉMER, Chrí- &ippe, Paris, 1910; 2.1 ed. 1951; POFILENZ, Die Stoa, Gottingen, 1948; 2.,
ed. 1954; J. BRUN, Le stoicisme, Paris, 1958.

§ 92. Sobre a lógica estóioa: B. MATrS, StoiC Logic, BerkeIey (Cal.), 1953; W KNEALE. e
M. KNEALE, The Development of Logic, Oxford, 1962, cap. 3.

§ 93. Sobre a física: J. MOREAu, LIâme du monde de Platon aux Stoiciens, Paris, 1939; S.
SAMBURSKI, The Physies of lhe Stoics, Londres, 1959,

§ Sobre -a ética: RIETH, Grundbegriffe der stoischen Ethik, B@rlim, 1934; KIRK, The
Moral Philosophy of lhe Stoics, New Brunswick, 1951.

35

XIV

O EPICURISMO

§ 96. EPICURO

Epicuro, filho de Neocles, nasceu em Janeiro ou Fevereiro de 341 a.C. em Samos, onde
passou a sua juventude. Começou a ocupar-se de filosofia aos 14 anos. Em Samos escutou
as lições do platónico Panfilo e depois do democritiano Nausífone. Provàvelmente foi este
último que o iniciou na doutrina de Demócrito, do qual, por algum tempo, se considerou
discípulo. Só mais tarde afirmou a completa independência da sua doutrina da do seu
inspirador, a quem julgou então poder designar com o arremedo de Lerocrito (tagarela)
(Diog. L., X, 8).
Aos 18 anos, Epicuro dirigiu-se a Atenas. Não está demonstrado que tenha frequentado as
lições de Aristóteles e de Xenócrates que era naquele tempo o chefe da Academia. Começou
a sua actividade de mestre aos 32 anos, primeiro em Mitilene e em Lâmpsaco, e alguns
anos depois em Atenas (307-06 a.C.), onde permaneceu até à sua morte (271-70).

37

A escola tinha a sua sede no jardim (kepos) de Epicuro pelo que os seus sequazes foram
chamados "filósofos do jardim". A autoridade de Epicuro sobre os seus discípulos era
muito grande. Como as outras escolas, o Epicurismo constituía uma associação de carácter
religioso, mas a divindade a que era dedicada esta associação era o próprio fundador da
escola. "As grandes almas epicuristas -diz Séneca (Ep., 6) - não as formou a doutrina mas a
assídua companhia de Epicuro". Tanto durante a sua vida como depois da sua morte, lhe
tributaram os discípulos e os amigos honras quase divinas e procuraram modelar a sua
conduta pelo seu exemplo. "Comporta-te sempre como se Epicuro te visse"-era o preceito
fundamental da escola (Séneca, Ep., 25).

Epicuro foi autor de numerosos escritos, cerca de 300. Restam-nos apenas três cartas
conservadas por Diógenes Laércio (livro X): a primeira, a Heródoto, é uma breve exposição
de física; a segunda, a Meneceu, é de conteúdo ético; e a terceira, a Pitocles, de atribuição
duvidosa, trata de questões metereológicas. Diógenes Laércio conservou-nos também as
Máximas capitais e o Testamento. Num manuscrito vaticano foi encontrada uma colecção
de Sentenças e nos papiros de Herculano fragmentos da obra Sobre a Natureza.

§ 97. A ESCOLA EPICURISTA

O mais notável dos discípulos imediatos de Epicuro foi Metrodoro de Lâmpsaco cujos
escritos foram na sua maior parte de conteúdo polémico. Mas contaram-se
numerosíssimos discípulos e amigos de Epicuro e entre eles não faltaram as mulheres
como Temistia e a hetaira Leontina que escreveu contra Teofrasto. Com efeito, as mulheres

38

podiam também participar na escola, já que ela se fundava na solidariedade e na amizade


dos seus membros o as amizades epicuristas foram famosas em todo o mundo antigo pela
sua nobreza.

Todavia, nenhum discípulo trouxe uma contribuição original para a doutrina do mestre.
Epicuro exigia dos seus sequazes a rigorosa observância dos seus ensinamentos; e a esta
observância se manteve fiel a escola durante todo o tempo da sua duração (que foi
longuíssima, até ao século IV d.C.). Por isso, entre os seus numerosos discípulos, só
recordaremos aqueles por cuja mediação nos chegaram ulteriores notícias acerca da
doutrina epicurista. De Filodemo, que viveu no tempo de Cícero, revelaram-nos os papiros
de Herculano alguns fragmentos que tratam de numerosos problemas sob o ponto de vista
epicurista e nos apresentam as polémicas que se desenvolviam, naquele -tempo, no
próprio interior da escola epicurista e entre ela e as outras escolas.

Tito Lucrécio Caro deixou-nos no seu De rerum natura não só uma obra de grande valor
poético mas também uma exposição fiel do Epicurismo. Pouco se sabe da vida de Lucrécio.
Nasceu provavelmente em 96 a.C. e morreu em 55 -a.C.. A notícia de que estava louco,
transmitida pelos escritores cristãos, e que havia escrito o seu poema nos intervalos da
loucura, ode ser uma invenção devida à
p exigência polémica de desacreditar o máximo representante latino do ateísmo epicurista;
em todo o caso, é pouco verosímil pela causa aduzida da loucura do poeta: um filtro
amoroso. Os seis livros da obra de Lucrécio (que está incompleta) dividem-se em três
partes, dedicadas, respectivamente, à metafísica, à antropologia e à cosmologia, cada uma
das quais compreende dois livros. No primeiro e segundo livro trata-se dos princípios de
toda a realidade, da matéria, do espaço e da constituição dos

39

corpos sensíveis. No terceiro e quarto livro, trata-se do homem. No quinto e sexto, do


universo e dos fenómenos físicos mais -importantes. A obra foi editada por Cícero, que
teve que reordená-la um pouco, depois da morte de Lucrécio. O poeta latino vê em Epicuro
aquele que libertou os homens do temor do sobrenatural e da morte. Lucrécio considerava
tão grande esta tarefa que não hesitou em exaltar Epicuro como uma divindade e em
reconhecê-lo como o fundador da verdadeira ciência.

Ao século 11 d.C. pertence Diógenes de Enoanda (Ásia Menor) de quem se encontrou em


1884 um escrito esculpido em blocos de pedra. Estas inscrições revelam uma doutrina
perfeitamente conforme com a original de Epicuro; a única novidade é a defesa do
Epicurismo contra outras correntes filosóficas e, especialmente, contra os diálogos
platónicos de Aristóteles.

§ 98. CARACTERÍSTICAS DO EPICURISMO

Epicuro vê na filosofia o caminho para alcançar a felicidade, entendida como libertação das
paixões. O valor da filosofia é, pois, puramente instrumental: o seu fim é a felicidade.
Mediante a filosofia o homem liberta-se de todo o desejo inquieto e molesto; liberta-se
também das opiniões irracionais e vãs e das perturbações que delas procedem. A
investigação científica destinada a investigar as causas do mundo natural não tem um fim
diferente. "Se não estivéssemos perturbados pelo pensamento das coisas celestes e da
morte e por não conhecermos os limites das dores e dos desejos, não teríamos necessidade
da ciência da natureza" (Máximas capitais, 11). O valor da filosofia está, pois, inteiramente
em dar ao homem um "quádruplo remédio": 1.o Libertar os homens do temor

40

EPICURO

dos deuses, demonstrando que pela sua natureza feliz, não se ocupam das obras humanas.
2.' Libertar os homens do temor da morte, demonstrando que ela não é nada para o
homem: "quando nós existimos, não existe a morte; quando a morte existe, não existimos
nós" (Ep. a Men., 125).
3.' Demonstrar a acessibilidade do limite do prazer, isto é, o alcançar fácil do próprio
prazer; 4.' Demonstrar a distância do limite do mal, isto é, a brevidade e a provisoriedade
da dor.

Deste modo a doutrina epicurista manifestava claramente a tendência de toda a filosofia


pós-aristotélica para subordinar a investigação especulativa a um fim prático, reconhecido
como válido independentemente da pró pria investigação, de modo que vinha a ser negado
a tal investigação o valor supremo que lhe atribuem os filósofos do período clássico: o de
ela própria determinar o fim do homem e de ser, já como investigação, parte integrante
deste fim.
Epicuro distingue três partes da filosofia: a canónica, a física e a ética. Mas a canónica era
concebida em relação tão estreita com a física que se pode dizer que, para o Epicurismo, as
partes da filosofia são apenas duas: a física e a ética. Em todo o domínio do conhecimento
o fim que é necessário ter presente é a evidência (enàrgheia): "a base fundamental de tudo
é a evidência", dizia Epicuro.

§ 99. A CANóNICA DE EPICURO

Epicuro chamou canónica à lógica ou teoria do conhecimento enquanto a considerou


essencialmente a oferecer o critério de verdade e, portanto, um canon, isto é, uma regra
que oriente o homem para a felicidade. O critério da verdade é constituído pelas sensações,
pelas antecipações e pelas emoções.

41

A sensação é produzida no homem pelo fluxo dos átomos que se separam da superfície das
coisas (segundo a teoria de Demócrito, § 22). Este fluxo produz imagens (éidola) que são
em tudo semelhantes às coisas que as produzem. Destas imagens derivam as sensações;
das sensações derivam as representações fantásticas que resultara da combinação de duas
imagens diferentes (por exemplo, a representação do centauro deriva da união da
imagem do homem e do cavalo). Das sensações repetidas e conservadas na memória
derivam também as representações genéricas (ou conceitos) que Epicuro, (como os
Estoicos) chamou antecipações. Com efeito, os conceitos servem para antecipar as
sensações futuras. Por exemplo, se se diz "este é um homem" é necessário ter já o conceito
de homem, adquirido por virtude das sensações precedentes.

Ora a sensação é sempre verdadeira. Efectivamente, não pode ser refutada por uma
sensação homogénea, que a confirma, nem por uma sensação diferente que, proveniente
de um outro objecto, não pode contradizê-la. A sensação é, pois, o critério fundamental da
verdade. Finalmente, o terceiro critério de verdade é a emoção, isto é, o prazer ou a dor,
que constitui a norma para a conduta prática da vida e está, portanto, fora do campo da
lógica.

O erro, que não pode subsistir nas sensações e nos conceitos, pode subsistir, em
contravertida, na opinião, a qual é verdadeira se é confirmada pelos testemunhos dos
sentidos ou pelo menos não contraditada por tal testemunho; é falsa no caso contrário.
Atendo-se aos fenómenos, tal como se nos manifestam mercê das sensações, pode-se, com
o raciocínio, estender o conhecimento até às coisas que para a própria sensação são
desconhecidas; mas a regra fundamental do raciocínio é, neste caso, o mais rigoroso
acordo com os fenómenos percebidos.

42

No escrito de Filodemo, Sobre os sinais, que expõe a doutrina do epicurista Zenão, mestre
de Filodemo, é desenvolvida e defendida contra os ataques dos Estoicos a teoria do
raciocínio indutivo. Os Estoicos afirmavam: não basta verificar que os homens que existem
à nossa volta são mortais para afirmar que em todos os casos os homens são mortais; seria
necessário estabelecer que os homens são mortais, precisamente enquanto homens, para
dar àquela inferência a sua necessidade. Mas os Epicuristas respondiam que, dado que
nada se opõe à sua conclusão, uma inferência do género na analogia, deve ser considerada
válida. Dado que todos os homens que caem na alçada da nossa experiência são
semelhantes também no que respeita à mortalidade, é necessário considerar que são
semelhantes, também neste aspecto, aqueles que estão fora da nossa experiência (De
signis, XVI, 16-29). Por outras palavras, os Epicuristas admitiam que a indução era um
processo por analogia (entendendo-se por analogia a identidade de duas ou mais relações),
no sentido de que uma vez verificado que, na nossa experiência, uma certa qualidade (no
exemplo, "mortal") é acompanhada constantemente por outra qualidade (aquela que os
homens constituem), pode inferir-se que, também onde não alcança a experiência, esta
relação se mantém constante, isto é, que as outras qualidades dos homens são sempre
acompanhadas pela de mortal (lb., XX, 32 e ss.). Deste modo, eles pressupunham não já a
necessária semelhança dos homens, segundo a crítica dos Estoicos, mas a semelhança, isto
é, a uniformidade, das relações entre qualidade ou factos, uniformidade que mais tarde
será chamada (por Stuart Mill) "uniformidade das leis da natureza", enquanto distinta da
"uniformidade por natureza". Os Epicuristas partiam também de um sentido amplo de
experiência e afirmavam

43

recolher "não só os sinais que nos aparecem ou que nós próprios experimentamos mas
também as coisas que aparecem na experiência de outrem e que por ela podem ser
tomadas" (1b., 32, 14). E também nisto se afastavam dos Estoicos que reduziam a
experiência ao aqui e agora percebido e instituíam, como se viu, a força inteira do
raciocínio sobre este aqui e agora.

Acerca da linguagem Epicuro formulava, pela primeira vez, uma doutrina que foi retomada
nos tempos modernos: a linguagem é um produto natural porque é a expressão sonora das
emoções que unem os homens em determinadas condições (Diog. L., X, 75-76). É a tese
que foi defendida no século XVIII por Rousseau.

§ 100. A FíSICA DE EPICURO

A física de Epicuro tem COMO objectivo excluir da explicação do mundo toda a causa
sobrenatural e libertar assim os homens do temor de estar à mercê de forças desconhecidas
e de misteriosas intervenções. Para alcançar este objectivo a física deve ser: 1.o
materialística, isto é, excluir a presença no mundo de qualquer " alma" ou princípio
espiritual; 2.O mecanística, isto é, servir-se na sua explicação unicamente do movimento
dos corpos excluindo qualquer finalismo. Dado que a física de Demócrito correspondia a
estas duas condições, Epicuro adoptou-a e fê-la sua com escassas e insignificantes
modificações.

Como os Estoicos, Epicuro afirma que tudo aquilo que existe é corpo porque só o corpo
pode agir ou sofrer uma acção. De incorpóreo, admite apenas o vazio, mas o vazio não age
nem sofre alguma coisa, apenas permite aos corpos moverem-se através de si próprio (Ep.
ad Her., 67). Tudo aquilo

44

que age ou sofre é corpo e todo o nascimento ou morte é mais que a agregação ou a
desagregação dos corpos. Por isso Epicuro admite com Demócrito que nada vem do nada e
que cada corpo é composto de corpúsculos indivisíveis (átomos) que se movem no vazio.

No vazio infinito, os átomos movem-se eternamente chocando-se, combinando-se entro


s@i. As suas formas são diversas; mas o seu número, embora indeterminável, não é
infinito. O seu movimento não obedece a nenhum desígnio providencial, a qualquer ordem
finalística, Os Epicuristas excluem explicitamente a providência estoica e a crítica a tal
providência constitui um dos temas preferidos da sua polémica. Contra a acção da
divindade no mundo, argumentam tomando como ponto de partida a existência do mal. "A
divindade ou quer suprimir os males e não pode ou pode e não quer ou não quer nem pode
ou quer e pode. Se quer e não pode é -impotente; e a divindade não o pode ser. Se pode e
não quer, é invejosa, e a divindade não o pode ser. Se não quer e não pode, é invejosa e
impotente, portanto não é divindade. Se quer e pode (que é a única coisa que lhe é
conforme) donde vem a existência dos males e porque não os elimina? (fr. 374, Usener).
Eliminada do mundo a acção da divindade, não ficam para explicar a ordem senão as leis
que regulam o movimento dos átomos. A estas leis nada escapa, segundo os Epicuristas;
elas constituem a necessidade que preside a todos os acontecimentos do mundo natural.

Um mundo é, segundo Epicuro, "um pedaço de céu que compreende astros, terras e todos
os fenómenos, recortado no infinito". Os mundos são infinitos; eles estão sujeitos ao
nascimento e à morte. Todos se formam devido ao movimento dos átomos no vazio
infinito. Mas Epicuro, ao considerar que os átomos caem no vazio em linha recta e com

45

a mesma velocidade, para explicar o choque, devido ao qual se agregam e se dispõem nos
vários mundos, admite um desvio casual dos átomos da sua trajectória rectilínea. Este
desvio dos átomos é o único acontecimento natural não sujeito à necessidade. Ele, como
diz Lucrécio, "despedaça as leis do fado". Epicuro admite, contudo, a existência das
divindades neste mundo, donde foi eliminado todo o sinal de potência divina. E admite-as
devido ao seu próprio empirismo, porque os homens têm a -imagem da divindade e esta
imagem, como outra qualquer, não pode ter sido produzida em si senão pelos fluxos dos
átomos emanados da própria divindade. Os deuses têm a forma humana, que é a

mais perfeita e, portanto, a única digna de ser racional. Eles mantêm uns com os outros
uma amizade análoga à humana; e habitam os espaços entre mundo e mundo
(ilitermundi). Mas não se preocupam nem com o mundo nem com os homens. Todo o
cuidado deste género seria contrário à sua perfeita beatitude, dado que lhes imporia uma
obrigação e eles não têm obrigações, antes vivem livres e felizes. Por isso, o motivo pelo
qual o sage os honra não é o temor, mas a admiração da sua excelência.

A alma é, segundo Epicuro, composta por partículas corpóreas que estão difundidas em
todo o corpo como um sopro cálido. Tais partículas são mais subtis e Tedondas que as
demais o por isso mais móvois. As faculdades da alma, como se viu, são fundamentalmente
três: a sensação em sentido próprio; a imaginação (mens, segundo Lucrécio) que produz as
representações fantásticas; a

razão (logos) que é a faculdade do juízo e da opinião. A estas faculdades teoréticas junta-se
a

emoção, prazer ou dor, que é a norma da conduta prática. A parte irracional da alma, que é
o princípio da vida, está difundida por todo o corpo.

46

Com a morte, os átomos da alma separam-se e cessa qualquer possibilidade de sensação: a


morte é "privação de sensações". Por isso é estulto temê-la: "0 mais terrível dos males, a
morte, não é nada para nós porque quando existimos nós não existe a morte, quando existe
a morte não existimos nós" (Ep. ad Men., 125).

§ 101. A ÉTICA DE EPICURO


A ética epicurista é, em geral, uma derivação da cirenaica (§ 39). A felicidade consiste no
prazer: "o prazer é o princípio o o fim da vida feliz", diz Epicuro (Diog. L., X 149). Com
efeito, o prazer é o critério da eleição e da aversão: tende-se para o prazer, foge-se da dor.
Ele é também o critério com que avaliamos todos os bens. Mas há duas espécies de
prazeres: o prazer estável que consiste na privação da dor e o prazer em movimento que
consiste no gozo e na alegria. A felicidade consiste apenas no prazer estável ou negativo,
"no não sofrer e no não agitar-se" e é, portanto, definida como ataraxia (ausência de
perturbação) e aporia (ausência de dor). O significado destes dois termos oscila entre a
libertação temporal da dor da necessidade e a ausência absoluta de dor. Em polémica com
os Cirenaicos que afirmavam a positividade do prazer, Epicuro afirma explicitamente que
"o cume do prazer é a simples e pura destruição da dor."

Este carácter negativo do prazer impõe a escolha e a limitação das necessidades. Epicuro
distingue as necessidades naturais e as inúteis; das necessidades naturais, umas são
necessárias, outras não. Daquelas que são naturais e necessárias, umas são necessárias à
felicidade, outras à saúde do corpo, outras à própria vida. Só os desejos naturais e

47

necessários devem satisfazer-se; os demais devem abandonar-se e rechaçar-se. O


epicurismo que, portanto, não o abandono ao prazer, mas o cálculo e a medida dos
prazeres. Tem de se renunciar aos prazeres de que deriva uma dor maior e suportar até
largamente as dores de que deriva um prazer maior. "A cada desejo é conveniente
perguntar: que sucederá se for satisfeito? Que acontecerá se não for satisfeito? Só o cálculo
cuidadoso dos prazeres pode conseguir que o homem se baste a si próprio e não se
converta em escravo das necessidades e da preocupação pelo amanhã. Mas este cálculo só
se pode ficar a dever à sageza (frónesis). A sageza é mais preciosa do que a filosofia, porque
por ela nascem todas as outras virtudes e sem ela a vida não tem doçura, nem beleza, nem
justiça" (Ep. ad Men., 132). A virtude, e especialmente a sageza que é a primeira e a
fundamental, aparecem assim a Epicuro como condição necessária da felicidade. À sageza
se deve o cálculo, a escolha e a limitação das necessidades e, portanto, o alcançar da
ataraxia e da aponia.

Num passo famoso do escrito Sobre o fim, Epicuro afirma explicitamente o carácter
sensível de todos os prazeres. "Em minha opinião -diz elenão sei conceber que coisa é o
bem se prescindo dos prazeres do gosto, dos prazeres do amor, dos prazeres do ouvido, dos
que derivam das belas imagens percebidas pelos olhos e, em geral, todos os prazeres que os
homens têm pelos sentidos. Não é verdade que só o gozo da mente é um bem; dado que
também a mente se alegra com a esperança dos prazeres sensíveis em cujo disfrute a
natureza humana pode livrar-se da dor". (Cícer., Tusc., fil,
18, fr. 69, Usener. Confrontar com 67, 68 e 70, Usener). É claro aqui que o bem se restringe
ao âmbito do prazer sensível ao qual pertence também o prazer que a música dá ("os
prazeres dos sons")

48

e a contemplação da beleza ("prazeres das belas imagens"); e que o prazer espiritual se


reduz à esperança do próprio prazer sensível. Pode ser que o carácter polémico do
fragmento (dirigido provavelmente contra o protréptico de Aristóteles, o qual
platonicamente exaltava a superioridade do prazer espiritual, § 69), tenha levado Epicuro a
acentuar a sua tese da sensibilidade do prazer. Mas é claro que esta tese deriva
necessariamente da sua doutrina fundamental que faz da sensação o cânon fundamental
da vida do homem. Que o verdadeiro bem não seja o prazer violento, mas o estável da
aponia e da ataraxia não é coisa que contradiga a tese da sensibilidade do prazer porque a
aponia é "o não sofrer no corpo" e a ataraxia é "o não ser perturbado na alma" pela
preocupação da necessidade corpórea.

Mas, por isto, a doutrina de Epicuro não se pode confundir com um vulgar hedonismo.
Opor-se-ia a tal hedonismo o culto da amizade que foi característico da doutrina e da
conduta prática dos Epicuristas. "De todas as coisas que a sageza nos oferece para a
felicidade da vida, a maior é de longe a aquisição da amizade" (Max. cap., 27). A amizade
nasceu do útil, mas ela é um bem por si mesma. O amigo não é aquele que procura sempre
o útil, nem quem nunca o une à amizade, dado que o primeiro considera a amizade como
um tráfico de vantagens, o segundo destrói a confiada esperança de ajuda que constitui
grande parto da amizade (Sentenças Vaticanas, 39, 34, Bignone).

Opor-se-ia também ao referido hedonismo a exaltação da sageza. Seria certamente melhor,


segundo Epicuro, que a fortuna tornasse próspera em todos os casos a sageza; mas é
sempre preferível a sageza desafortunada à insensatez afortunada (Ep. ad Men., 135).
Ainda que a justiça seja somente uma convenção que os homens estabeleceram entre si

49

para a utilidade comum, isto é, para que se evite


* fazer-se recIprocamente dano, é muito difícil que
* sage se deixe arrastar a cometer uma injustiça ainda que esteja seguro de que o seu acto
permanecerá desconhecido e que, por isso, não lhe trará dano. "Quem alcançou o fim do
homem, ainda que ninguém esteja presente, será igualmente honesto" (fr. 533, Usener).

A atitude do epicurista para com os homens em geral é definida pela máxima: "É não só
mais belo, mas também mais agradável fazer o bem do que recebê-lo" (fr. 544). Nesta
máxima o prazer surge de facto como fundamento e a justificação da solidariedade entre
todos os homens. E, na verdade, Diógenes Laércio testemunha-nos o amor de Epicuro
pelos seus pais, a sua fidelidade aos amigos, o seu sentido de solidariedade humana (X, 9).

Quanto à vida política, Epicuro reconhecia as vantagens que ela traz aos homens,
obrigando-os a acatar as leis que os impedem de se prejudicarem mutuamente. Mas
aconselhava ao sage que permanecesse alheio à vida política. O seu preceito é: "vive
escondido" (fr. 551). A ambição política só pode ser fonte de perturbaçã o e, portanto,
obstáculo para o alcançar da ataraxia.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 96. As notícias antigas sobre a vida, os escritos e a doutrina de Epicuro e dos epicuristas
foram recolhidas pela primeira vez por H. USENER, Epicurea, Leipzig, 1887. - BIGNONE,
Epicuro, obras, fragmentos, testemunhos sobre a vida, traduzidos com introdução e
comentários, Bari, 1920; DIANO, Epicuri Ethica, Florença, 1946; ARRIGITEM, Epicuro.
Opere, Introdu- ção, texto critico, tradução e notas, Turim, 1960. Oo últimos volumes
recolhem também oe fragmentos encontrados nos papiros de HercuLano. -Sobre a
formaçAo da doutrina epicurista: BIGNONF,, LIAr~tele

50

perduto e Ia form_azione filosofica di Epicuro, 2 vols., Florença, 1936; DIANO, Note


epicuree, in ".4=ali Scuola normale superiore di Pisa", 1943; Questione epicuree, in.
"Giornale critico filosofia italiana", 1949.

§ 97. Sobre os discípulos de Epicuro: ZELLER, M, 1, p. 378 ss.; LuCRÉCio, De rerum


natura, ed. Giussani, Turim, 1896-98. Os Fragmentos de Filodemo encontram-se nas
citadas compilaçóes: o De signis, ed. GOMPERZ, Le-,ipzig, 1865; ed. e tradução inglesa DE
LAcy, Filadélfia, 1941; Diógenes de Enoanda, fragmentos editados por WILLIAM, Leipzig,
1907.

§ 99. Sobre Epicuro em geral: BAILEY, The Greek Atomists and Epicurus, Oxford, 1928; N.
W. DE WITT, Epicurus and his Philosophy, Minneapolis, 1954.

§ 100. C. DIANO, La psicologia di Epicuro, in "Giornale critico filosofia Italiana", 1939; V.


E. ALFIERI, Studi di filosofia greca, Bari, 1950.

§ 101. GuyAu, La morale d'Epicure, Paris, 1886; MONDOLFO, Problemi del pensiero
antico, Bolonha, 1936.

x_V

O CEPTICISMO

§ 102. CARACTERISTICAS DO CEPTICISMO

A palavra cepticismo deriva de sképsi*s, que significa indagação. Em conformidade com a


orientação geral da filosofia pós-aristotélica, o Cepticismo tem como objecto o alcançar da
felicidade como ataraxia. Mas enquanto o Epicurismo e o Estoicismo punham a condição
da mesma numa doutrina determinada, o Cepticismo coloca tal condição na crítica e na
negação de toda a doutrina determinada, numa indagação que ponha em evidência a
inconsistência de qualquer posição teorético-prática, as considere a todas igualmente
falazes e se abstenha de aceitar alguma. A tranquilidade do espírito em que consiste a
felicidade, consegue-se, segundo os cépticos, não já aceitando uma doutrina, mas
refutando qualquer doutrina. A indaga- ção (sképsis) é o meio de alcançar esta refutação e,
por conseguinte, a ataraxia.

Daqui resulta a mudança radical e também a decadência profunda que o conceito de


investiga-

53

ção sofre por obra do cepticismo. Se se confronta o conceito céptico de indagação, como
instrumento da ataraxia, com o conceito socrático e platónico da procura, a mudança é
evidente. Para Sócrates e Platão, a primeira exigência da procura é a de encontrar o
próprio fundamento e a própria justificação, a de organizar-se a articular-se internamente,
a de aprofundar-se a si própria para reconhecer as condições e os princípios que a tornam
possível. A indagação céptica não procura justificação em si própria. A ela basta-lhe levar o
homem à refutação de toda a doutrina determinada e, portanto, à ataraxia. Por isso se
nutre quase exclusivamente da polémica contra as outras escolas e se aplica a refutar os
diferentes pontos de vista, sem nunca dirigir o olhar para si própria, para o fundamento e o
valor do seu procedimento.

Indubitavelmente, ainda assim, a indagação céptica desempenhou uma tarefa histórica


notável, afastando as escolas filosóficas contemporâneas da sua estagnação dogmática e
estimulando-as incessantemente à indagação dos fundamentos dos seus postulados.
O cepticismo não é uma escola mas a orientação seguida na Grécia por três escolas
diferentes: La a escola de Pirro de Elis, no tempo de Alexandre Magno; 2.a a média e nova
Academia; Ia os Cépticos posteriores, a começar por Enesidemo, os quais defendem um
retorno ao pirronismo.

§ 103. PIRRO

Pirro, natural de Elis, pôde ainda conhecer talvez na sua cidade, a dialéctica da escola eleo-
megárica (§ 33) que, em muitos aspectos, é um antecedente do Cepticismo. Participou na
campanha de Alexandre Magno no Oriente juntamente com o

54

democritiano Anaxarco. Fundou na pátria uma escola que depois da sua morte teve pouca
duração. Viveu na pobreza e morreu muito velho cerca de
270 a.C.. Não deixou escritos. Conhecemos as suas doutrinas através da exposição de
Diógenes Laércio (IX, 61, 108) e pelos fragmentos de Sílloi (ou versos burlescos) com os
quais o seu discípulo Tímon de Fliunte (329-230 a.C. aproximadamente) expôs e defendeu
a sua doutrina.

Os Sofistas tinham oposto a natureza à convencionalidade das leis e tinham distinguido o


que é bem por natureza daquilo que é bem por convenção. Pirro renova esta distinção, mas
apenas para negar que existam coisas verdadeiras ou falsas, belas ou feias, boas ou más,
per natura. Tudo aquilo que é julgado tal é julgado tal " por convenção ou por costume",
não por verdade e por natureza. Já que para o conhecimento humano as coisas não são
verdadeiramente apreensíveis e a única atitude legítima por parte do homem é a suspensão
de qualquer juízo (epoché) sobre a sua natureza: o não afirmar de qualquer coisa que é
verdadeira ou falsa, justa ou injusta e assim sucessivamente.

Esta suspensão leva a admitir que todas as coisas são indiferentes para o homem e evita
que se conceda qualquer preferência a uma mais do que a outra. Assim a suspensão do
juízo é já por si mesma ataraxia, ausência de qualquer perturbação ou paixão. Para ser
coerente, Pirro, que não tinha fé nos sentidos, andava em redor sem olhar e sem se
esquivar de nada, afrontando os carros se os encontrava, precipícios, cães, etc. (Diog. L.,
IX, 62).

Timón de Fliunte rebatia a doutrina do mestre, considerando que, para ser feliz, o homem
devia conhecer três coisas: La qual é a natureza das coisas; 2 a que posição é necessário
tomar frente a elas; Ia que consequências resultarão dessa atitude. Mas as coisas mostram-
se todas igualmente indife-

55

rentes, incertas e indiscerníveis. Por isso a única atitude possível é a de não se pronunciar a
respeito de nenhuma delas (afasia) e a de permanecer completamente indiferente frente a
elas (ataraxia).

§ 104. A MÉDIA ACADEMIA

A escola de Pirro esgotou-se muito depressa; mas a orientação céptica foi retomada pelos
filósofos da Academia que encontravam o fundamento dela no próprio interior da doutrina
platónica. Com efeito, Platão sustentara constantemente que não pode haver ciência do
mundo sensível (§ 59). Esta concerne ao mundo do ser, não ao mundo dos sentidos, a
respeito do qual só se podem alcançar opiniões prováveis. Mas a especulação em torno
do mundo do ser já não interessava os filósofos deste período, os quais pediam à filosofia
que se convertesse em instrumento dos fins práticos da vida. E assim, da doutrina
platónica, conservava actualidade apenas a sua parte negativa, precisamente aquela que
negava validade de ciência ao conhecimento do mundo sensível e reduzia tal conhecimento
a mera opinião provável.

Aquele que iniciou este novo rumo da Academia foi Arquesilau de Pitane (315/14-241/40)
que sucedeu a Cratete na direcção da escola. Arquesilau não escreveu nada, de modo que
conhecemos as suas doutrinas só indirectamente.

Segundo um testemunho de Cícero (De orat., 111,


18, 67), ele não manifestou nenhuma opinião própria, mas limitou-se a discutir as opiniões
que os outros exprimiam. Quis imitar a Sócrates, mas para ir mais longe do que o próprio
Sócrates. Se Sócrates afirmava que o homem nada pode saber a não ser precisamente que
não sabe nada, Arquesilau negava que também isto se pudesse afirmar

56

com segurança. Por Sexto Empírico sabemos que as suas críticas principais foram dirigidas
ao seu contemporâneo Zenão de Citium, o fundador da Stoa. Arquesilau negava que
existisse uma representação catalética porque negava que existisse uma representação que
não possa tornar-se falsa. Por isso a função do sage não é a de dar o assentimento a uma
representação qualquer, mas abster-se de qualquer assentimento. Quanto à acção, ela não
tem necessidade da representação catalética. Arquesilau sustentava que a regra daquilo
que se deve escolher ou evitar é o bom senso ou a equidade (eulogia) que é a base da sageza
(Sexto E., Adv. math., VII, 153 ss.).

Seguiram-se a Arquesilau como chefes da escola outros mestres (Lacides, Telecles,


Evandro, Hegesino) dos quais não se sabe nada, excepto que seguiram a orientação de
Arquesilau. Ao último sucedeu Carnéades.

§ 105. A NOVA ACADEMIA

Carnéades de Cirena (214/12-129/28) é considerado o fundador da terceira ou nova


Academia e foi homem notável por sua eloquência e doutrina. Em 156155 foi em
embaixada a Roma juntamente com o estoico Diógenes e com o peripatético Critolau.
Também ele não deixou escritos e as suas doutrinas foram recolhidas pelos discípulos.

A doutrina de Carnéades define-se sobretudo em oposição à do estoico Crisipo. "Se Crisipo


não tivesse existido, também eu não existiria", dizia Carnéades (Diog. L., IV, 62).
Carnéades considera que o saber é impossível e que nenhuma afirmação é
verdadeiramente indubitável. Durante a sua permanência em Roma, pronunciou um dia
um discurso belíssimo em louvor da justiça, demonstrando que ela é a base de toda a vida
civil. Mas, ao outro

57

dia, pronunciou um novo discurso, ainda mais convincente do que o primeiro,


demonstrando que a justiça é diferente segundo os tempos e os povos e que está muitas
vezes em contradição com a sageza. E demonstrava este contraste com o próprio exemplo
do povo romano que se havia apoderado de todo o mundo, arrancando aos outros a sua
posse. "Se os romanos quisessem ser justos -disse ele- deveriam restituir aos outros as suas
possessões e voltar para casa na miséria, mas em tal caso seriam estultos; e assim sageza e
justiça não caminham de acordo" (Lactâncio, Ist. div., 5,
14). Carnéades criticou no mesmo espírito todas as doutrinas fundamentais dos Estoicos e
principalmente a do destino e da providência, sustentando que as desmentia no seu
pressuposto, que é a necessidade, pela existência do acaso e da liberdade humana (Cicer.,
De fato, 31-34). Ele utilizou, além disso, as antinomias megáricas, por exemplo a do
mentiroso, para demonstrar a impossibifidade de decidir com a dialéctica aquilo que é
verdadeiro ou falso. Finalmente considerou falacioso o critério estoico da representação
catalética, negando que os sentidos ou a razão pudessem valer como critérios de verdade.

Quanto à conduta da vida e à conquista da felicidade, admitia, contudo, um critério. Tal


critério, porém, não é objectivo, isto é, não consiste na relação da representação com o seu
objecto, com base na qual a própria representação poderia ser verdadeira ou falsa, mas
subjectivo, isto é, inerente à relação da representação com quem a possui. É portanto um
critério, não de verdade, mas de credibilidade. Se não se pode dizer qual seja a
representação verdadeira, isto é, correspondente ao objecto, pode-se dizer qual é a
representação que aparece como verdadeira ao sujeito. A esta representação, chama
Carnéades plausível ou persuasiva

58

(pitanon). Se uma representação persuasiva não é contraditada por outras representações


do mesmo género, ela tem um grau maior de probabilidade: assim os médicos, por
exemplo, diagnosticam uma doença por vários sintomas concordantes. Finalmente, a
representação provável, não contraditada, examinada em todas as suas partes, é o terceiro
e mais alto grau de probabilidade (Sexto E., adv. math., VII, 162 ss.).

A Carnéades sucedeu na direcção da escola um seu parente com o mesmo nome, e a este
outras figuras menores, depois dos quais foi seu chefe Fjlón de Larissa, o fundador da
quarta Academia.

§ 106. OS úLTIMOS CÉPTICOS

Abandonada pela Academia, a orientação céptica foi retomada por outros pensadores que
quiseram ater-se directamente ao fundador do cepticismo, Pirro. Estes pensadores que
floresceram do último século a.C. ao 11 século d.C. não quiseram formar uma escola mas
apenas uma orientação (agoghé). Os principais foram Enesidemo, Agripa e Sexto
Empírico.

Enesidemo de Cnossos ensinou em Alexandria. Escreveu oito livros de Discursos


pirrónicos que se perderam. Pelas repetidas afirmações de Cícero, que considera extinto o
pirronismo no seu tempo, deduz-se que Enesidemo devia ter iniciado a sua actividade
depois da morte de Cícero (43 a.C.) Segundo Sexto Empírico, o cepticismo era considerado
por Enesidemo como um caminho para a filosofia de Heraclito: "0 facto de que os
contrários parecem pertencer a uma mesma coisa, leva a admitir que eles são
verdadeiramente a mesma coisa" (Pirr. hyp., 1, 210). Esta afirmação não significa

59

que Enesidemo tenha passado do cepticismo para o heraclitismo, mas apenas que, como já
Platão no Teeteto, via no heraclitismo, que identifica os opostos, o fundamento de toda a
concepção céptica que considera os opostos igualmente verdadeiros ou igualmente falsos.
Segundo Sexto Empírico, Enesidemo admitia dez modos (tropi) para chegar à suspensão
do juízo.
O primeiro é a diferença entre os animais, pela qual não podemos julgar entre as nossas
representações e as dos animais, porque derivam de diferentes constituições corpóreas. O
segundo é a diferença entre os homens; o terceiro o da diferença entre as sensações; o
quarto, o das circunstâncias, isto é, das diferentes disposições humanas. O quinto é o das
posições, dos intervalos e dos lugares. O sexto, o das misturas. O sétimo, o da quantidade e
composições dos objectos. O oitavo, o da relação das coisas entre si e com o sujeito que as
julga. O nono, o da continuidade ou raridade dos encontros entre o sujeito que julga e os
objectos. O décimo, o da educação, dos costumes, das leis, das crenças, e das opiniões
dogmáticas. Cada um destes modos estabelece uma diversidade nos conhecimentos
humanos

ou uma equivalência dos conhecimentos diversos, que se obtém segundo a diversidade dos
mesmos modos. Se as sensações são diferentes (3.' modo) para os diferentes homens (2.'
modo) ou em diversas circunstâncias (4.O modo), como -se pode distinguir entre a
verdadeira e a falsa? Se os objectos surgem como diferentes segundo se apresentam
misturados ou simples (6.O modo) ou em número maior ou menor (7.O modo) ou segundo
se apresentam isolados ou em relação (8.' modo) ou raramente ou frequentemente ao
homem (9.' modo), como se faz para decidir qual é a verdadeira realidade do objecto? Não
resta, pois, outra possibilidade senão

60

suspender qualquer juízo. Leva a esta mesma conclusão a consideração da diversidade


entre as crenças e as opiniões humanas, diversidade que torna impossível decidir-se por
uma ou outra delas.

A Agripa (de quem não se sabe nada), atribui Sexto Empírico outros cinco modos para
alcançar a suspensão do juízo, modos de carácter dialéctico, úteis sobretudo para refutar as
opiniões dos dogmáticos: 1.' o modo da discordância, que consiste em mostrar um dissídio
insanável entre as opiniões dos filósofos e, por conseguinte, a impossibilidade de escolher
entre elas, 2.' o modo que consiste em reconhecer que toda a prova parte de princípios que,
por ;sua vez, exigem prova e assim até ao infinito; 3.O o modo da relação, pelo qual nós
conhecemos o objecto relativamente a nós, e não qual é em si próprio; 4.' o modo da
hipótese, pelo qual se vê que toda a demonstração se funda em princípios que não se
demonstram, mas se admitem por convenção; 5.O o círculo vicioso (dialelo), pelo qual se
assume como demonstrado precisamente aquilo que se deve demonstrar: o que demonstra
a impossibilidade da demonstração.

Outros Cépticos, sempre segundo Sexto Empírico (Pirr. hyp., 1, 178), reduziam todos estes
modos a dois modos fundamentais de suspensão, isto é, demonstrando que não se pode
compreender nada nem por si nem na base de outro. Que nada se

possa compreender por si, resulta do desacordo existente entre as opiniões dos
homens, desacordo insanável, não havendo nenhum critério que, por sua vez, não seja
objecto de desacordo. Que nada se possa compreender na base de outro, resulta do facto de
que, neste caso, seria necessário ir até ao infinito ou fechar-se num círculo, dado que toda a

coisa, para ser compreendida, requererá uma outra e assim sucessivamente.

61
§ 107. SEXTO EMPIRICO

A fonte de todas as notícias sobre o Cepticismo antigo é a obra de Sexto que, como médico,
teve o sobrenome de Empírico e desenvolveu a sua actividade entre 180 e 214 d.C.
Possuímos dele três escritos. Os Elementos (Ipotipposi) pirronianos, em três livros, são uni
compêndio de filosofia céptica. Os outros dois surgem, tradicionalmente, sob o título
impróprio de Contra os matemáticos. Ora o màtema é o ensino em significado objectivo, a
ciência enquanto objecto do ensino; matemáticos são pois os cultores da ciência, isto é, da
gramática, da retórica e das ciências do quadrívio (como foram chamadas na Idade Média)
que Platão na República considerava como propedêuticas da dialéctica: geometria,
aritmética, astronomia e música. Contra esta ciências são dirigidos os livros I-IV da obra.
Os livros V11-XI são dirigidos contra os filósofos dogmáticos. Estes escritos de Sexto são
importantes não só porque representam a súmula de todo o Cepticismo antigo, como
também porque são fontes preciosas para o conhecimento das próprias doutrinas que
combatiam. Os pontos mais famosos das refutações de Sexto, além da doutrina dos tropos,
são os seguintes:

Crítica da dedução e da indução.-A dedução é sempre um círculo vicioso (dialelo). Quando


se diz: "Todo o homem é animal, Sócrates é homem, portanto Sócrates é animal", não se
poderia admitir a premissa "todo o homem é animal" se não se considerasse já como
demonstrada a conclusão, que Sócrates, como homem, é animal. Por isso, quando se tem a
pretensão de demonstrar a conclusão, derivando-a de um princípio universal, na realidade
já se a pressupõe demonstrada. Por outro lado, a indução não tem maior validade. Com
efeito, se ela se funda apenas no exame de alguns casos, não é

62

segura, podendo desmenti-la em qualquer altura. os casos não examinados, e se se


pretende que se funda em todos os casos particulares, o seu objectivo é impossível porque
tais casos são infinitos (Pirr. hyp.,
11, 193, 204).

Crítica do conceito de causa.-Diz-se que a causa produz o efeito, portanto ela deveria
preceder o efeito e existir antes dele. Mas se existe antes de produzir o efeito, é causa antes
de ser causa. Por outro lado, é evidente, a causa não pode seguir o efeito nem ser
contemporânea dele porque o efeito só pode nascer da coisa que existe antes (Pirr. hYp.,
111).

Crítica da teologia estoica. -Sexto insistiu longamente nas contradições implícitas no


conceito estoico da divindade. Segundo os Estoicos, tudo aquilo que existe é corpóreo;
portanto, também Deus. Mas um corpo ou é composto e está sujeito a decomposição,
portanto mortal; ou é simples e então é água ou ar ou terra ou fogo. Por conseguinte, Deus
deveria ser ou mortal ou um elemento inanimado, o que é absurdo (Adv. math., IX, 180).
Por outro lado, se Deus vivesse sentiria, e se sentisse, receberia prazer e dor; mas dor
significa perturbação e se Deus é capaz de perturbação é mortal. Outras dificuldades
derivam de atribuir a Deus todas as perfeições. Se Deus tem todas as virtudes, também tem
a coragem; mas a coragem é a ciência das coisas temíveis e não temíveis, portanto é
qualquer coisa de temível para Deus, o que é absurdo (lb., lX, 152 ss.). Sexto Empírico
servia-se de todos estes argumentos para reforçar a posição céptica da suspensão do juízo.

Na vida prática o céptico deve, segundo Sexto, seguir os fenómenos. Por isso são quatro os
seus guias fundamentais: as indicações que a natureza lhe dá através dos sentidos, as
necessidades do corpo, a tradição das leis e dos costumes e as regras das

63

artes. Com estas regras, os últimos, Cépticos procuraram diferenciar-se do critério,


sugerido pela média Academia, da acção motivada ou racional. Segundo Sexto, a diferença
fundamental entre o Cepticismo pirrónico o o dos Académicos é este: que enquanto os
Académicos só admitiam saber que não é possível saber nada, os pirrónicos evitavam
também esta asserção e limitavam-se à procura (Pirr. hyp., 1, 3). Sexto Empírico quis,
noutros termos, realizar o ideal de uma investigação que seja apenas investigação, sem
ponto de partida nem ponto de chegada.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 102. Sobre o desenvolvimento do cepticismo antigo: BROCHARD, Les sceptiques grees,


Paris, 1887; GOEDECKEMEYER, Die Geschichte der griechischen 8keptizismus, Leipzig,
1905; DAL PRA, Lo scetticismo greco, Milão, 1950.

§ 103. Sobre Pirro: noticias antigas sobre a vida e a doutrina, in DIóGENES LAÉRCIO, ]
EX, 61-108; sobre Timon: ID., IX, 1099-116; DIELS, POêt, philOS. fragm.,
182 ss.; ZELLER, 111, 1, p. 494 ss.-ROBIN, Pyrrhon et le Scepticisme grec, Paris, 1944. §
104. Sobre a vida, os escritos -e a doutrina de Arquesil-au e da Média Academia:
DIóGENEs LAÉRCIO, IV, 28-45 (Arquesilau), 59-61 (Lacides).

Para a doutrina, as fontes mais importantes são CICERO, Opp. filos., e STOBEO, Eclogae,
lI, 39, 20 ss..

Sobre a Média Academia: ZELLER, IlT, 1, 507 ss.; CREDARO, Lo scetticismo degli
Accademici, 2 vols., Milão, 1889-93. Sobre a lõgica: PRANTL, 1, 496 ss.

§ 105. Sobre Carnéades: DióGENES LAÉRCIO, IV,


62-66; ZELLER, M, 1, 516 ss..

§ 106. Sobre Enesidemo: DiOGENEs LAÉRCIO, IX,


109-116; ZELLER, 111, 2, 1 ss.. Sobre Agripa: DiõGENES LAÉRCIO, ]IX, 88 ss.; ZELLER,
111, 2, p. 47 ss..

§ 107. As obras de Sexto Empírico foram editadas por Bekker, Berlim, 1892. Os Elementos
Pirrõ-

64

nicos e Contra os dogmáticos foram editados criticamente por Mutschmann, Leipzig, 1912-
14. Os Elementos foram traduzidos para italiano por BISSOLATI, Ipotiposi pirroniani,
Flor(-nça, 1917, e por TESCARI, Schizzi pirroniani, Bari, 1926. Sobre Sexto, ver ZELLER,
III,
2. p. 49 ss.. Sobre a lógica do Cepticismo: PRANT4 ob. cit., p. 497 ss..

65

XVI

O ECLECTISMO
§ 108. CARACTERíSTICAS DO ECLECTISMO

As três grandes escolas filosóficas pós-aristotélicas. - Estoicismo, Epicurismo e


Cepticismo , ainda que em desacordo nos seus pressupostos teóricos, mostram um acordo
fundamental nas suas conclusões práticas. Sustentam as três que o fim do homem é a
felicidade e que a felicidade consiste na ausência de perturbação e na eliminação das
paixões; colocam as três o ideal do sage na indiferença relativamente aos motivos
propriamente humanos da vida. Esta concordância no terreno prático devia limar
necessariamente o antagonismo das respectivas posições teóricas e aconselhar,
óbviamente, a encontrar um terreno de encontro sobre o qual as três orientações pudessem
conciliar-se e fundir-se. O eclectismo (de ek-légo, escolher) representa precisamente esta
tendência.

As condições históricas favorecem o eclectismo. Depois da conquista da Macedónia pelos


romanos (186 a.C.), a Grécia tornara-se de facto uma pro-

67

víncia do Império Romano. Roma começou a acolher e a cultivar a filosofia grega que se
torna um elemento indispensável da cultura romana. E, por sua parte, a filosofia grega vai-
se adaptando gradualmente à mentalidade romana. Mas esta era pouco apta para dar
relevo a divergências teoréticas das quais não surgisse uma diferença na conduta prática;
de modo que o intento de escolher, nas doutrinas das várias escolas, os elementos que se
prestassem para serem conciliados e fundidos num corpo único encontrou o mais válido
apoio na mentalidade romana. Mas, dado que a escolha destes elementos supunha um
critério, chegou-se a admitir como critério o acordo comum dos homens (consensus
gentium) sobre cortas verdades fundamentais, admitidas como subsistentes no homem
independentemente e antes de qualquer investigação.

A orientação ecléctica apareceu pela primeira vez na escola estoica, dominou por largo
tempo na Academia e foi acolhida também pela escola peripatética. Só os Epicuristas se
mantiveram estranhos ao Eclectismo, permanecendo fiéis à doutrina do mestre.

§ 109. O ESTOICISMO ECLÉCTICO

O encaminhar da escola estoica para o Eclectismo que começou com Bocto de Sídon
(falecido em 119 a.C.), torna-se decisivo com Panézio de Rodes que viveu entre 185 e 109
a.C.. Viveu em Roma por algum tempo juntamente com o historiador Políbio; foi amigo de
muitos nobres romanos, entre os quais Cipião o Africano e Lélio-, mestre de muitos outros;
e teve certamente grande influência no desenvolvimento do interesse filosófico em Roma.
Dos seus escritos restam-nos os títulos. Um deles, Sobre o Dever, foi o modelo do De
officiis de Cícero. Panézio foi um grande admira-

68

dor de Aristóteles o inspirou-se em muitos pontos na sua doutrina. Com efeito, afirmou,
com Aristóteles e contra a doutrina clássica do Estoicismo, a eternidade do mundo.
Distinguiu na alma três partes: vegetativa, sensitiva e racional, seguindo também nisto
Aristóteles e separando nitidamente a parte racional das outras.

O mais famoso discípulo de Panézio foi Posidónio de Apameia, na Síria, que nasceu cerca
de
135 a.C. e morreu com 84 anos como chefe da escola que fundara em Rodes, escola na qual
tinha tido como auditores Cícero, e Pompeu. Das 23 obras que lhe são atribuídas apenas
temos fragmentos. Posidónio recolheu na sua doutrina muitos elementos platónicos: a
imortalidade da alma racional e

a sua pré-existência; a atribuição das emoções, que para o Estoicismo apenas tinham
importância negativa como enfermidades da alma, à alma concupiscível, compreendida
como uma potência inerente ao organismo corpóreo.

§ 110. O PLATONISMO ECLéCTICO

A orientação céptica, que prevalecera na Academia com Carnéades e os seus sucessores


imediatos, modificou-se no sentido do Eclectismo com Ffion de Larissa que foi a Roma
durante a guerra de Mitrídates (88 a.C.) e aqui teve, entre os seus ouvintes, Cícero. Ffion
abandona já o princípio da suspensão do assentimento que é fundamental para os
Cépticos. O homem não pode alcançar a certeza incondicionada da ciência, mas pode
conseguir formular a clareza (enàrgheia), a evidência de uma convicção satisfatória: pode,
portanto, formular uma

teoria ética completa, combatendo as falsas doutrinas morais e ensinando as justas.

69

Mas a própria certeza incondicionada que Filon excluía foi admitida pelo seu sucessor,
Antíoco de Ascalona, com o qual a Academia abandona definitivamente o cepticismo para
inclinar-se para o eclectismo. Antíoco (morto em 68 a.C.) foi também mestre de Cícero que
ouviu as suas lições no Inverno de 79-78 e entrou em polémica literária com Ffion. Sem
uma certeza absoluta não é possível, segundo Antíoco, nem sequer estabelecer graus de
probabilidade, dado que a probabilidade se pode julgar somente pelo fundamento da
verdade e não se pode admitir aquela se não se está na posse desta. Como critério da
verdade ele colocava o acordo entre todos os verdadeiros filósofos e procurou demonstrar
esse acordo entre as doutrinas académicas, peripatéticas e estoicas, só o conseguindo à
custa de graves deformações.

Ao eclectismo de Antíoco liga-se o de Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) que deve a sua
importância, não à originalidade do pensamento, mas à sua capacidade de expor de forma
clara e brilhante as doutrinas dos filósofos gregos contemporâneos ou precedentes. O
próprio Cícero reconhece a sua dependência das fontes gregas dizendo das suas obras
filosóficas numa carta Ad Attico (XII, 52, 3): "custam-me pouca fadiga, porque de meu
incluo só as palavras que, não me faltam". Dos principais escritos de Cícero, o De republica
e o De legibus têm como fontes Panézio e Antíoco; o Hortênsio que se perdeu inspirava-se
no Protréptico de Aristóteles; os Academia, em Antíoco; o De finibus no mesmo Antíoco e,
quanto ao epicurismo, em Zenão e Filodemo. As Tusculanae dependem dos escritos do
académico Crantore, de Panézio, de Antíoco, do estoico Crisipo, de Posidónio. O De natura
deorum, de várias fontes estoicas e epicuristas. O De oficies, de Panézio; os outros esciftos
menores, de fontes análogas.

70

Como Antíoco, Cícero admite como critério da verdade o consenso comum dos filósofos e
explica tal consenso com a presença em todos os homens de noções inatas, semelhantes às
antecipações do Estoicismo. Na física, rejeita a concepção mecânica dos Epicuristas. Que o
mundo possa formar-se, devido a forças cegas, parece-lhe tão impossível como, por
exemplo, obter os Annales de Énnio atirando ao chão desordenadamente um grande
número de letras alfabéticas. Mas quanto a resolver de modo positivo os problemas da
física, Ocero considera isso impossível e assim adopta, neste ponto, uma posição céptica.
Na ética, -afirma o valor da virtude por si própria, mas oscila entre a doutrina estoica e a
académico-peripatética. Afirma a existência de Deus e a liberdade e a imortalidade da
alma, mas evita afrontar os problemas metafísicos inerentes a tais afirmações.

Semelhante à posição de Cícero é a do grande erudito seu amigo, Marco Terêncio Varrão
(116-27 a.C.). Varrão manteve-se fiel à ética de Antíoco. Em contrapartida, aceitava de
Panézio a distinção da teologia em mítica, física e política. A teologia mítica é constituída
pelas representações que os poetas dão da divindade. A teologia física é a que é própria das
teorias dos filósofos em torno do inundo e de Deus. A teologia política é a que encontra a
sua expressão nas disposições legislativas que se referem ao culto. Por sua parte, Varrão
aceitava o conceito estoico da divindade como alma do mundo.

§ 111. O ARISTOTELISMO ECLÉCTICO

A orientação ecléctica nunca se radicou profundamente na escola peripatética. Andrónico


de Rodes, que de 70 a.C. em diante e durante 10 ou 11 anos foi o chefe da escola
peripatética de Atenas, é

71

sobretudo famoso por ter cuidado da edição dos escritos acroamáticos de Aristóteles e por
ter iniciado os comentários às obras do mestre a que se dedicaram em seguida todos os
peripatéticos. O seu principal interesse aparece ligado à lógica.

Entre os eclécticos peripatéticos são de enumerar o grande astrónomo Claudio Ptolemeu,


no qual exerceram influência alguns elementos da investigação platónica e estoica e a
doutrina pitagórica dos números, e o médico Galeno (129-199 a.C.) que foi a maior
autoridade em medicina até à Idade Moderna. Ao lado das quatro causas aristotélicas:
matéria, forma, causa eficiente e causa final, Galeno admitiu uma quinta, a causa
instrumental, isto é, o instrumento ou o meio mediante o qual as outras quatro operam e
que Aristóteles considerara idêntica à causa eficiente. Galeno foi talvez o primeiro também
a -introduzir na lógica aristotélica o tratamento dos silogismos hipotéticos, modelados
sobre os anapodíticos dos Estoicos: as afirmações de Alexandre de Atrodísia que atribuíam
aos primeiros aristotélicos (Teofrasto o Eudemo) esta inovação não encontram
confirmação. Por silogismo hipotético entende ele o silogismo que tem como premissa
uma proposição condicional ou disjuntiva, como nos esquemas seguintes: "Se S é, é P; mas
S é, portanto é P.); "S é ou P ou Q; mas não é Q; portanto é P". Na sua Introdução à
Dialéctica, Galeno afirmava que enquanto o silogismo categórico (,isto é , aristotélico) se
requer nos raciocínios dos matemáticos, o hipotético requer-se para discutir problemas
como estes: "Existe o fado?", "Existem os deuses?", "Existe a providência?" que são
problemas da física estoica. De agora em diante o tratamento do silogismo hipotético
começou a fazer parte do corpo da lógica aristotélica e transmitiu-se como tal, através de
Boécio, à lógica medieval.

72

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CICERO

O último peripatético de alguma importância foi Alexandre de Afrodísia (ensinou em


Atenas entre
198 e 211), o famoso comentador de Aristóteles, o exegeta por excelência. O seu comentário
só nos chegou em parte. Alexandre propunha-se por ele aclarar e defender a doutrina de
Aristóteles contra as afirmações opostas das outras escolas e especialmente dos Estoicos. O
ponto do seu comentário que iria ter na Idade Média e no Renascimento maior
importância é o que se refere ao problema do intelecto activo. Alexandre distingue três
intelectos: 1.o intelecto físico ou material, que é o intelecto potencial; ele é semelhante ao
homem que é capaz de aprender uma arte mas não está ainda na sua posse; 2.' o intelecto
adquirido, que é a capacidade de pensar, semelhante ao artista que consegue a posse da
sua arte; 3.O o intelecto activo que opera a passagem do primeiro para o segundo intelecto.
Este não pertence à alma humana, mas age sobre ela de fora. Ele é a própria causa
primeira, isto é, Deus. Esta doutrina iria oferecer o ponto de partida para as numerosas
interpretações do intelecto activo que se sucederam na Escolástica Árabe e Latina e no
Renascimento.

§ 112. A ESCOLA CíNICA

Na primeira metade do século 111 a.C., Bión de Boristene iniciou aquele género literário
que foi depois a característica da escola cínica, a diatribe. As diatribes eram prédicas
morais contra as opiniões e os costumes dominantes; prédicas enriquecidas com
múltiplos artifícios retóricos destinados a aumentar a sua eficácia.

Menipo de Gadara, pelos meados do século 111 a.C., nas suas sátiras escritas em prosa mas
intercaladas de versos, representou cenas burlescas

73

nas quais tomou como alvo os Epicuristas e os Cépticos. Baseado no seu exemplo, Vairrão
escreveu as Sátiras menipeias. Cerca dos meados do século 111, a escola cínica perdeu a sua
autonomia e acabou por fundir-se com a estoica. No começo da nossa era ela renasce do
próprio Estoicismo; e renasce com o mesmo carácter de discurso petulante e sarcástico que
o mais das vezes não tem nenhuma base filosófica e nenhuma justificação moral.
Difundem-se neste período 51 Cartas atribuídas a Diógenes e a Crates. Séneca louva muito
* seu contemporâneo Demétrio, que parece ter sido
* renovador do Cinismo.

Dión, chamado Crisóstomo, que viveu nos tempos do imperador Trajano, surge corno um
propagandista popular das doutrinas tradicionais dos Cínicos.

A escola cínica, que se reduziu a uma simples pregação moral sem fundamento filosófico,
não sofreu a influência dos sucessivos desenvolvimentos da especulação e sobreviveu até
ao século V d.C.
§ 113. SÉNECA

O Estoicismo do período romano, ainda que obedecendo à orientação ecléctica, geral da


época, orientação para a qual as divergências teóricas passam para segundo plano frente ao
acordo fundamental das conclusões práticas, a que se subordina completamente a
investigação filosófica, mostra já de modo evidente um carácter que a fase ulterior da
especulação deveria acentuar: a prevalência do interesse religioso. Esta prevalência funda-
se no

acento que nos estoicos romanos recebe o tema da interioridade espiritual. A concepção
estoica do sage, que é auto-suficiente e alcança por si a verdade, é o pressuposto do valor
que o Estoicismo começa a reconhecer àquilo que hoje chamamos

74

introspecção ou consciência. Para chegar a Deus e conformar-se com a sua lei, o sage
estoico não tem necessidade de olhar para fora de si; deve apenas olhar para si próprio. Os
estoicos romanos fazem deste retomo do homem a si próprio um dos seus temas
preferidos, tema que devia depois tornar-se central e dominante no Neoplatonismo. Não se
trata, contudo, de um tema que ofereça ponto de partida para novas formulações
conceptuais. Dos numerosos estoicos da época imperial de que sabemos o nome e algumas
notícias, nenhum apresenta qualquer originalidade de pensamento. Só quatro deles,
Séneca, Musónio, Epicteto e Marco Aurélio nos aparecem dotados de personalidade
filosófica própria.

Lúcio Anneo Séneca, de Córdova, em Espanha, nascido nos primeiros anos da era cristã,
foi mestre e, por longo tempo, conselheiro de Nero, por ordem do qual morreu em 65 d.C..
Dos seus escritos ficaram-nos sete livros de Qestioni naturali e numerosos tratados de
carácter religioso e moral (Diálogos, Sobre a Providência, Sobre a Constância do Sage,
Sobre a ira, Sobre a Consolação a Márcia, Da Vida Feliz, Da Brevidade da Vida, Sobre a
Consolação a Políbio, Sobre a Consolação à Mãe Elvia, Dos Benefícios, Sobre a Clemência).
Foi além disso autor de vinte livros de Cartas a Lucilio que cão uma fonte de notícias sobre
o Estoicismo e o Epicurismo.

Séneca insiste no carácter prático da filosofia: "a filosofia -escreve- ensina a fazer, não a
dizem (F-p., 20, 2). O sage é para ele o "educador do género humano" (Ep., 89, 13). Por
isso descura a lógica e só se ocupa da física de um ponto de vista moral e religioso. Com
efeito, a ignorância dos fenómenos físicos é a causa fundamental dos temores do homem e
a física elimina tais temores. Além da grandeza do mundo e da divindade ensina-nos

75

a reconhecer a nossa pequenez. Também, em certo sentido, a física é superior à própria


ética porque enquanto esta trata do homem, aquela trata da divindade que se revela nos
céus e em geral no mundo. (Quest. nat., 1, Pról.). Contudo, nem a física nem a metafísica
de Séneca contêm algo de original relativamente às doutrinas comuns do Estoicismo. Pe-lo
que respeita ao conceito da alma, pelo contrário, ele inspira-se na doutrina platónica.
Depois de distinguir uma parte racional e uma parte irracional da alma, distingue nesta
última duas partes: uma irascível, ambiciosa, que consiste nas paixões; a outra humilde,
lânguida, dedicada ao prazer, divisão que corresponde à platónica das partes racional,
irascível e apetitiva da mesma alma. Inspira-se também em Platão ao considerar a relação
da alma com o corpo: o corpo é prisão e tumba da alma. O dia da morte é para a alma
verdadeiramente o dia do nascimento eterno (Ep.,
102, 26). Séneca está muito longe do rigorismo estoico que colocava um abismo entre o
sage que segue a razão e o estulto que a não segue. Está convencido que existe sempre uma
oposição entre aquilo que o homem deve ser e aquilo que é na realidade; e que a oscilação
entre o bem e o mal é própria de todos os homens; por isso é levado a considerar com
maior indulgência as imperfeições e as quedas do homem. A sua máxima moral
fundamental é o parentesco universal entre os homens: "Tudo aquilo que vês, que contém
o divino e o humano, tudo é uno: somos todos membros de um grande corpo. A natureza
gerou-nos como parentes dando-nos uma mesma origem e um mesmo fim. Ela inspirou-
nos o amor recíproco e fez-nos sociáveis" (Ep., 95, 51). Séneca afirma e a interioridade de
Deus no homem: "Não devemos erguer as mãos ao céu nem pedir ao guarda do templo que
nos permita aproximar-nos das orelhas

76

da estátua de Deus, como se assim pudéssemos mais facilmente ser ouvidos: a divindade
está próximo de ti, está contigo, está dentro de ti" (Ep., 41).

A doutrina de Séneca é assim um estoicismo ecléctico de fundo religioso. Alguns aspectos


desta doutrina, como o conceito da divindade, da fraternidade e do amor entre os homens
e da vida depois da morte estão tão próximas do cristianismo que fizeram nascer a lenda
das relações de Séneca com S. Paulo, lenda que levou até a falsificar uma correspondência
(que não conservamos) entre ele e o apóstolo. Tais relações entre Séneca e S. Paulo
certamente nunca existiram. Mas não há dúvida que a sua doutrina, especulativamente
pouco notável, está impregnada por uma inspiração religiosa que lhe dá um carácter
original.

§ 114. MUSóNIO. EPICTETO

Musónio Rufo de Volsínio na Etrúria, foi expulso por Nero em 65 d.C. Regressou
seguidamente a Roma e esteve em relações pessoais com o imperador Tito. Dos seus
discursos conservou-nos numerosos fragmentos o Florilégio de Stobeo. Musónio acentua
ainda mais que Séneca o carácter prático e moralizante da filosofia. O filósofo é o educador
e o médico dos homens; deve curá-los das paixões que são as suas doenças. Para este fim,
não há necessidade de muita ciência, mas apenas de muita virtude. Musónio inclina-se, por
esta desvalorização da actividade teorética, para o cinismo e isto retira-lhe toda a
importância especulativa.

Foi seu discípulo Epicteto de Hierápolis, na

Frígia. Nasceu cerca do ano 50 d.C., era escravo de Epafrodito, liberto de Nero. Libertado,
viveu em Roma até 92-93 d.C. quando o édito de Domi-
77

ciano baniu de Roma todos os filósofos. Fundou então em Nicópolis no Epiro uma escola à
qual pertenceu entre outros Flávio Arriano que recolheu as suas lições. Dos oito livros de
Diatribes ou Dissertações em que Arriano recolheu tais lições, restam quatro. Além disto,
ficou-nos um Manual que é uma espécie de breve catecismo moral.

A intenção de Epicteto é a de voltar à doutrina original do Estoicismo e especialmente a


Crisipo. Mas a sua doutrina conserva o mesmo carácter da de Séneca, o predomínio da
irreligiosidade. Deus é o pai dos homens (Diss., 1, 3, 1). Ele está dentro de nós e da nossa
alma; por isso o homem nunca está só (/h., 1, 14, 13). A vida é um dom de Deus e é um
dever obedecer ao preceito divino. Estas e semelhantes expressões que, ainda que na
letra não se afastem muito das expressões análogas dos outros estoicos, acentuam a
dependência do homem em relação a Deus, e fizeram nascer, também para Epicteto, a
opinião de que ora cristão. Durante a época bizantina, parafraseou-se e comentou-se o
Manual para uso cristão. Na realidade, a diferença entre o moralismo religioso de Epicteto
e Séneca e o Cristianismo, está no facto de que, para o primeiro, o homem só pode alcançar
a virtude através do exercício da razão e da procura inteiramente autónoma, enquanto para
o Cristianismo o caminho do bem é outorgado ao homem pelo próprio Deus.

Segundo Epicteto, a virtude é liberdade; mas o homem só pode ser livre desvinculando a
sua própria posição interior de toda a dependência das coisas externas. Tudo aquilo que
não está em seu poder, o corpo, os bens, a reputação e, em geral, todas as coisas que não
são actos do seu espírito não devem ter o poder de comovê-lo e dominá-lo. As coisas sobro
que deve fundar a sua liberdade são aquelas que estão em seu poder, isto é, os

78

actos espirituais: a opinião, o sentimento, o desejo, * aversão. Sobre estes ele pode agir,
modificando-os * dominando-os de modo a tornar-se livre. Epicteto resume a ética estoica
na frase Suporta e abstém-te (Gellio, Noct. att., XVII, 199, 6). É necessário abstermo-nos
de hostilizar aquilo que não está no nosso poder evitar, enquanto que é necessário opormo-
nos às coisas que estão no nosso poder, isto é, às opiniões, sentimentos e desejos contra a
natureza ou irracionais.

Arriano de Nicomédia, na Bitínia, foi cognominado o "segundo Xenofonte" na medida em


que nos conservou as doutrinas de Epicteto. Também ele, como Xenofonte, foi militar e
homem de acção. Recolheu de Epicteto as Dissertações e os Colóquios que se perderam; e é
também o autor daquele resumo das Dissertações que é o Manual.

§ 115. MARCO AURÉLIO

Com Marco Aurélio o estoicismo sobe ao trono imperial de Roma. Nascido em 121 d.C., de
nobre família, Marco Aurélio foi adoptado pelo imperador Antonino e sucedeu-lhe em 161.
Morreu em
180 durante uma campanha militar. Deixou um escrito composto de aforismos diversos,
intitulado Colóquios consigo próprio ou Recordações, em 12 livros. Como Séneca, afasta-se
aqui e ali da doutrina tradicional dos Estoicos; destaca-se principalmente no que respeita
ao conceito da alma, no qual renega o materialismo estoico. Considera que o homem é
composto de três princípios: o corpo, a alma material que é o princípio motor do corpo, e a
inteligência. Como todos os elementos do organismo humano são partes dos
correspondentes elementos do universo, assim o intelecto humano é parte do mundo. O
génio que Zeus deu a cada

79

um como guia não é mais que a -inteligência e esta é um "pedaço" do próprio Zeus (V, 27).
Das funções psíquicas, as percepções pertencem ao corpo, os impulsos à alma, os
pensamentos ao intelecto.

Como Séneca e Epicteto, Marco Aurélio considera que a condição da filosofia é o retiro da
alma em si própria, a introspecção ou a meditação interior (IV, 3). Diz: "Olha para dentro
de ti: dentro de ti está a fonte do bem, sempre capaz de brotar, se souberes sempre escavar
em ti próprio" (VII, 59). Por isso, faz suas as teses estoicas da ordem divina do mundo e da
providência que o governa, mas afirma também, por sua conta, o parentesco dos homens
com Deus. O génio individual como parte do intelecto universal e portanto de Zeus é o
fundamento desta convicção religiosa. Pelo seu parentesco comum, os homens devem
amar-se uns aos outros. "É próprio do homem amar também aquele que o fere. Deves ter
presente que todos os homens são teus parentes, que eles pecam somente por ignorância e
involuntariamente, que a morte nos ameaça a todos e, especialmente, que ninguém. te
pode causar dano porque ninguém pode atacar a tua razão" (VII, 22). O homem é parte do
fluxo incessante das coisas. "A realidade é como um rio que corre perenemente, as forças
mudam, as causas transformam-se mutuamente e nada permanece imóvel" (IX, 28). Qual
é o destino da alma neste fluxo? Marco Aurélio pinta com cores resplandescentes a
condição da alma que, com a morte, se liberta do corpo, admitindo também a antiga crença
do corpo como prisão e tumba da alma. Mas, para ele, o problema de saber se esta
libertação será o inicio de uma nova vida ou o fim de toda a sensibilidade passa para
segundo plano. Pode acontecer que a alma, ao reabsorver-se no todo, se transmute noutros
seres
80

(como esta página é manuscrita, não se encontra aqui transcrita)


Página do livro "De Finibus", de Cícero (Códi(,,é,,
Palatino Latino 1513 da Bliblioteca Vaticana)

(IV, 21). Nisto Marco Aurélio é mais fiel que o platonizante Séneca à doutrina original do
Estoicismo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 109. Os dados antigos sobre o Estoicísmo Ecléctico estão recolhidos in ZELLER, 111, 1, p.
57 ss. Os fragmentos de Panézio foram recolhidas por FoWLER (juntamente com os de
Ecatón), Bonn, 1885. Funda- mental sobre a média Stoa a obra de SCHMEKEL, Die
Philosophie der mittleren Stoa in ihrem geschichtliche Zusammenhange, Berlim, 1892.

§ 110. Os dados antigos sobre Filon e Antíoco, ín ZELLER, EI, 1, p. 609 ss. As obras de
Cícero tiveram numerosas edições críticas: ver a da Biblioteca Teubneriana de Leipzig.

Sobre Terêncio Varrão: ZELLER, 111, 1, p. 692 ss. As obras filosóficas de Varrão perderam-
se e -apenas restam alguns fragmentos. A distinção das três teologias foi-nos conservada
por S. AGOSTINHo, De civitate Dei, VI, 5.

§ 111. Os fragmentos de Andrónico foram recolhidos por LITTIG na sua obra Andrónico de
Rodes, II e 111 partes, 1894-95. Os fragmentos de Cláudio Ptolomeu, in MULLER, Pragm.
hist. graec., III, p. 348 ss. As obras completas de Galeno foram editadas ao cuidado de
Xuhn no Corpus medicorum graecorum, Leipzig, 1821-33. A Introdução à Lógica, só
descoberta pelos meados do século passado, foi considerada apõcrifa por PrantI, mas agora
a sua autenticidade é geralmente admitida, Foi editada com o título Institutio Logica por
Kalbfleisch, Leipzig, 1896. De Alexandre de Afrodísia foram publicadas as obras na
"Collezione dei Commentari greci" de ARISTõTELEs, a cargo da Academia de Berlim.

Sobre estes peripatéticos: ZELLER, M, 1, 641 ss. Sobre a lógica: PRANTL, 1, 528 ss.

§ 112. Sobre a vida, os escritos e a doutrina de Blon e de Menipo: DIõGENEs LAÉRcio, IV,
46 ss (Bion), VI, 99 ss. (Menipo). Os fragmentos de Bion, in MULLACH, Fragmenta phil.
graec. 11, 423 ss.

Os dados antigos sobre os cínicos posteríores, in ZELLER, 111, 1, 791 ss.


81

§ 113. Os dados antigos sobra Séneza foram recolhidos ín ZELLER, HI, 1, p. 719 ss. Das
obras de Séneca ver as edições Teubnerianas de Leipzig. Sobre Séneca: MARCHESI,
Seneca, Messina, 1920; MARTIjA, Les moralistes sous Z'Empire romain, Paris, 1896.

§ 114. Os dadosantigos sobre Mus6nio, in ZELLER, nI, 1, p. 755 ss. Os fragmento.<,,


recolhidos por HENsE, Leipzig, 1905 (BibL Teubneriana). Sobre Epicteto e Arriano os
dados antigo-s in ZELIER, 111, 1, p. 765 ss. As Dissertações (a cargo de SCHENKL), O
Manual e os fragmentos, editados em Leipzig, 1916.
O Manual, trad. italiana de GIACOmo LEoPARDI. Sobre Epicteto: BONHOrFER, Die
Ethik der Epikt49@G Sttutgard, 1874.

§ 115. Os <lados antigos sobre Márcio Aurélio estão recolhidos in ZELLER, 111, 1, p. 781 ss.
As Recordações (In semetipsum, livros XII) foram editados criticamente por SchenkI,
Leipzig, 1913 (Bibl. Teubneriana). Trad. italiana: ORNATO, MORICCA, MAZZANTINI.

Sobre Marco Aurélio: RENAN, M. A. et Ia fin du monde antique, Paris, 1882.

82

XVIII

PRECURSORES DO NEOPLATONISMO

§ 116. CARACTERISTICAS DA FILOSOFIA NA ÉPOCA ALEXANDRINA

A subordinação da investigação filosófica a um fim prático, posto o reconhecido como


válido independentemente da própria investigação, devia levar a desvalorizar o significado
e a função da filosofia como indagação racional. A primeira época e a época clássica da
filosofia grega tinham reconhecido à investigação o mais alto valor: na investigação que
tende a justificar-se, a aprofundar-se em si própria, a reconhecer o seu ponto de partida e o
seu fim último, tinha colocado o valor da personalidade humana e o único caminho para o
homem se formar como homem. Mas subordinada a investigação a um fim dado de
antemão, o valor deste fim não pode considerar-se assegurado pela própria investigação.
Este valor deve vir no fim de contas por uma revelação transcendente ou por uma
sabedoria originária, numa palavra por uma tradição religiosa,

83

à qual a indagação filosófica tem de subordinar-se.


O valor reconhecido à tradição neste período coincide com a orientação religiosa da
investigação filosófica. A investigação filosófica na Grécia antiga nasceu como vontade de
libertação das tradições, dos costumes e das opiniões estabelecidas; e Sócrates é o próprio
símbolo de uma tal investigação, da qual Platão tentou dar o fundamento teorético: o
homem não necessitou de receber a verdade da tradição porque esta verdade está confiada
à sua razão. Com o prevalecimento do interesse religioso, a tradição retoma os seus
direitos: a verdade é fruto de uma revelação originária e a sua única garantia é a tradição.
Daqui deriva a tendência da época alexandrina para fabricar escritos que deveriam
testemunhar a antiguidade de cortas crenças e conferir-lhes a garantia da tradição. O
florescimento de escritos de falsa atribuição, próprio deste período, é, pois, uma
consequência natural da atitude religiosa que a filosofia vem assumindo.
O acentuar do carácter religioso da filosofia nos

Estoicos do período romano é o início de uma orientação que se torna cada vez mais
dominante no período seguinte e que encontra a sua primeira expressão num eclectismo
que procura recolher e cerzir os elementos religiosos implícitos na história do pensamento
grego, da religião dos mistérios ao pitagorismo e ao platonismo; depois, nas filosofias que
se enlaçam expressamente com as religiões orientais e procuram conduzir de novo a elas o
próprio pensamento grego (filosofia greco-judaica). Em suma, a expressão mais alta desta
orientação será o Neoplatonismo.

§ 117. OS NEOPITAGóRICOS

A revivescência da filosofia pitagórica manifesta-se no século 1 a.C. com o aparecimento


dos

84

escritos pitagóricos de falsa atribuição (Ditos Áureos, Símbolos, Cartas, atribuídas a


Pitágoras; Sobre a Natureza do Todo, atribuído ao lucano Ocello), dos quais nos restam
alguns fragmentos. Todos são caracterizados pelo reconhecimento de uma separação total
entre Deus e o mundo, reconhecimento que traz consigo a necessidade de suportar
divindades inferiores que fazem de intermediários entre Deus e o mundo. A este mesmo
tipo de escritos pertencem os que nos chegaram sob o nome de Hermes Trismegisto, que
apareceram durante o século 1 d.C. Estes escritos tendem a relacionar a filosofia grega com
a religião egípcia: Hermes é reconhecido como o próprio deus egípcio Theut ou Thot. É
comum nos escritos de Hermes a hostilidade contra o cristianismo e a defesa do
paganismo e das religiões orientais.

Como renovador da filosofia pitagórica, Cícero assinala P. Nigídio Fígulo, falecido em 45


a.C. Pelo final do século I d.C., Apolónio de Tiana escreveu uma vida de Pitágoras na qual
desenhou de modo novelesco a figura do fundador do pitagorismo. Apolónio viajou por
todo o Império Romano como mago, profeta e operador de milagres. Filostrato escreveu
uma Vida de Apolórdo no princípio do século 111 d.C. Num escrito, Sobre os Sacrifícios, de
Apolónio, surge a distinção entre o primeiro deus e as outras divindades que havia de
dominar a especulação teológica deste período.

Parece que foram compostas, por volta de


140 d.C., as duas obras que nos chegaram de Nicómaco de Gerasa, na Arábia:
Introdução à Aritmética e Manual de Música. Na primeira obra sustenta-se a pré-
existência dos números no espírito do criador anteriormente à criação do mundo. Os
números são os modelos em conformidade com os quais todas as coisas foram ordenadas.
Os princípios da criação são o uno, que é identificado com a razão

85

ou divindade, e a dualidade que se identifica com a matéria, segundo a doutrina dos


antigos académicos.

Numénio de Apameia, na Síria, viveu na segunda metade do século 1 d.C. e a sua doutrina é
uma mistura de elementos pitagóricos e platónicos. Segundo Numétrio, a filosofia dos
gregos deriva da sabedoria oriental; Platão é um "Moisés ateicizante". Escreveu: Dos
Mistérios segundo Platão, Sobre o Bem e Da Separação dos Académicos de Platão, obras
das quais temos fragmentos. Notável é a divisão das três divindades. Ele distingue o
demiurgo, da primeira divindade, como um segundo deus. O primeiro deus é puro
intelecto, princípio da realidade e rei do universo. O segundo deus é o demiurgo, que opera
sobre a matéria, forma o mundo e é o princípio do devir. O mundo, produzido pelo
demiurgo, é o terceiro deus. Fundem-se nesta concepção os conceitos platónicos do bem
como princípio supremo e do demiurgo com o conceito aristotélico de Deus como puro
intelecto. No homem, Numénio distingue duas almas, uma racional o outra irracional, e
declara que o ingresso da alma num corpo é sempre um mal, dado que a irrealidade
incorpórea, e o devir corpóreo estão entre si como a boa e a má alma do mundo.

A doutrina de Numénio apresenta características que se deviam tornar comuns na


especulação deste período: o sincretismo greco-oriental, a conciliação entre Pitágoras e
Platão, a crença em divindades katermédias entre Deus e o mundo, a oposição entre
espírito e matéria como oposição entro bem e mal,

§ 118. O PLATONISMO MÉDIO

A mesma mistura de doutrinas dispares encontra-se nos sequazes da escola de Platão a


partir

86

do século 1 d.C. como continuação daquela orientação ecléctica que começara com Antíoco
de Asca. lona. Neste período, dos numerosos representantes da escola o mais notável é
Plutarco, de Queroncia, nascido em 46 e morto em 120 d.C. que desenvolveu a sua
actividade científica em Atenas aonde foi no ano 66 d.C. Ficaram-nos dele numerosíssimas
obras de comentário a Platão, de polémica contra os Estoicos e os Epicuristas, de física, de
psicologia, de ética, de religião e de pedagogia. Ele é também autor das famosas Vidas
Paralelas de gregos e romanos.

Plutarco considera impossível fazer derivar todo o mundo de uma única causa. Se Deus
fosse a única causa do mundo, não deveria existir o mal; tem pois de se admitir, ao lado de
Deus, um outro princípio que seja a causa do mal no mundo como Deus é a causa do bem.
Este princípio não é a matéria, mas uma força indeterminada e indeterminável que é
subjugada por Deus no acto de criação, mas se mantém de modo permanente no mundo
como causa de toda a imperfeição e de todo o mal. Deus como puro bem é assim situado
absolutamente acima do mundo; e a sua relação com o mundo é estabelecida pelas
divindades intermédias ou demónios com cuja acção Plutarco explica e justifica as crenças
da religião popular dos gregos e das outras nações.

Plutarco aceita a divisão platónica da alma em intelectiva ou racional, irascível e apetitiva


(Sobre as virtudes morais, 3). Noutros lados, combina a divisão platónica com a
aristotélica, admitindo assim cinco partes da alma. De todas as maneiras, mantém a
superioridade do intelecto sobre as outras partes. Na ética, segue preferentemente
Aristóteles. Há coisas que não têm relação necessária connosco como o céu, a terra, o mar,
os astros; há outras que têm como o bem, o mal, o

87

prazer, a dor. As primeiras são objecto da razão (logos) científica ou teorética, as segundas,
da razão volitiva ou prática. A virtude própria da razão especulativa é a sabedoria (sofia); a
própria da razão prática é a sageza (frónesis). A razão prática tem como fim moderar os
impulsos da parte irracional da alma e encontrar o justo meio entre o excesso e o defeito.
Determinam-se assim as virtudes morais ou éticas, que Plutarco opõe à apatia cínico-
estoica, como a harmonia e o justo meio das paixões frente à abolição completa delas, que
não é possível nem desejável.

A obra de Plutarco teve uma importância muito superior ao seu significado especulativo.
Através dela se difundiram e foram conhecidas em todos os países as doutrinas
fundamentais da filosofia grega, mais que através das obras originais. Contudo, nada na
sua filosofia existe que tenha a potência e o rigor da especulação clássica.

§ 119. A FILOSOFIA GRECO-JUDAICA

Se, por uma parte, a filosofia grega estende a mão neste período à sabedoria oriental, por
outra a sabedoria oriental estende a mão à filosofia grega, solidarizando-se com ela na
mesma tentativa de fundir juntamente os resultados da especulação grega e da tradição
religiosa do Oriente.

Na Palestina, no século 1 da era cristã, a seita dos Essénios, de que nos falam Ffion, Josefo
e Plínio, mostra uma profunda afinidade com o Neopitagorismo de tal modo que faz supor
que ela se tenha desenvolvido sob a influência dos mistérios órfico-pitagóricos. Esta seita
era constituída por várias comunidades submetidas a uma disciplina severa e a um certo
número de regras ascéticas. Do ponto de vista doutrinal, interpretavam alegó-

88

MARCO AURÉLIO

ricamente o Velho Testamento, segundo uma tradição que faziam remontar a Moisés.
Acreditavam na pré-existência da alma e na vida depois da morte, admitiam as divindades
intermédias ou demónios e a possibilidade de profetizar o futuro. Quase todas essas
crenças se encontram no Neopitagorismo e o Platonismo médio.

Aos Essénios se costuma frequentemente atribuir as doutrinas expostas nos documentos


recentemente encontrados nas proximidades do Mar Morto e que se designam
precisamente como os "manuscritos do Mar Morto". Com efeito, estas doutrinas não se
diferenciam das dos Essénios que se conhecem pelas fontes tradicionais; e de qualquer
modo os documentos que os contêm são uma outra prova de difusão da filosofia greco-
judaica com carácter religioso na época que precede imediatamente o advento do
cristianismo.

Afim aos Essénios foi a seita judaico-egípcia dos Terapêuticos que se desenvolveu no
Egipto.

Terreno muito favorável para a fusão dos elementos doutrinais gregos o orientais foi
Alexandria. Alguns fragmentos de Aristóbulo (cerca de 150 a.C.) procuram demonstrar que
já Pitágoras e Platão tinham conhecido os escritos do antigo Testamento.

No livro da Sabedoria do Antigo Testamento, provavelmente composto no século 1 a.C., há


claras reminiscências do Platonismo e do Pitagorismo, -ia afirmação da pré-existência e da
imortalidade da alma, do impedimento que o corpo constitui paTa ela e na concepção de
uma matéria pré-existente e do Logos como mediador da criação divina.

§ 120. FILON DE ALEXANDRIA


Nascido em Alexandria entro o ano 30 e o ano
20 a.C., Fílon o judeu foi a Roma no ano 40 d.C. como embaixador dos judeus
alexandrinos ao

89

imperador Calígula. Temos dele grande número de escritos de argumentos diversos, de que
os principais sã o os que constituem um comentário alegórico ao Velho Testamento.

Por um lado, Ffion está cheio de veneração pelas Sagradas Escrituras e, em primeiro lugar,
por Moisés que ele considera inspirado directamente por Deus; por outro lado, é
admirador dos filósofos eh ade expressa por eles gregos e considera que a
verd é a mesma que está contida nos livros sagrados. A esta convicção chega
-interpretando alegoricamente as doutrinas do Velho Testamento e adaptando a elas os
conceitos da filosofia grega. O resultado é uma forma de Platonismo muito próxima da que
se desenvolvera em Alexandria e que costumava reportar-se a Platão e a Pitágoras. Os
pontos fundamentais da filosofia de Fílon são três : a transcendência absoluta de Deus
relativamente a tudo o que o homem conhece; a doutrina do Logos como intermediário
entre Deus e o homem, o fim do homem determinado como a união com Deus. Na sua
perfeição absoluta, Deus é tal que é impossível compreender a sua natureza. Também o
homem inspirado pode ver quem ele é, não que coisa é. Deus é superior ao bem e à
unidade e não pode ter outro nome senão Ser (como indica a própria palavra hebraica
Jeová-Aquele que é). A Deus pertencem as duas potências originais, a bondade e o poder;
pela primeira, ele é propriamente Deus, pela segunda é o Senhor. Entre estas duas
potências existe uma terceira, conciliadora de ambas, a Sabedoria, Logos ou Verbo de
Deus, que é a imagem mais perfeita do próprio Deus.

O Logos foi o mediador da criação do mundo. Antes de criar o mundo, Deus criou um
modelo perfeito, não sensível, incorpóreo, e semelhante a ele, que é precisamente o Logos
(De mundi opif., 4). E sei-vindo-se dele criou o mundo. Criou-o ser-

90

vindo-se de uma matéria que ele próprio tinha aprontado antecipadamente e a qual era
originariamente indeterminada, privada de forma e de qualidade: Deus determinou-a,
deu-lhe forma e qualidade e deste modo da desordem a levou à ordem, Da matéria derivam
as imperfeições do mundo.
O Logos divino é a sede das ideias por intermédio das quais Deus ordena e forma as coisas
materiais. As ideias são, portanto, concebidas por Filon como forças, porque a matéria é
formada por seu intermédio.

O fim do homem é a sua união com Deus. Para chegar a Deus o homem deve, em primeiro
lugar, libertar-se da sensibilidade e dos vínculos com o corpo, deve libertar-se também da
razão e esperar a graça divina que o eleve até à visão de Deus. Só se tem esta visão quando
o homem saiu fora de si mesmo (estasi) e está debaixo de urna espécie de furor dionisíaco,
como ébrio e enlouquecido. Trata-se de uma condição que não se pode exprimir porque é
sobrehumana e misteriosa (De ebrietate, 261-62).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 177. O material antigo sobre os Neopitagóricos, indicado em ZELLER, 111, 2, p. 124 ss,
234 ss. Os Ditos Areos em DIEHL, Anthol. 1yrica, Leipzig,
1923. O escrito de Ocello in MULLACH, Fragm. phil. graec., I, que contém também as
Cartas atribuídas a Pitágoras, assim como a Vida de Pitágoras de PORFIRio e de
JÂMBLICO foram traduzidas para italiano por PESENTI, Lanciano, 1922 (Cultura dell'
anima).

§ 118. Dados antigos sobre Plutarco, recolhidos em ZELLER, 111, 2, 176 ss. As obras de
Plutarco encontram-se em numerosas edições: ver a de 7 volumes a cargo de vários autores
na Biblioteca Teubneriana de Leipzig. D. BAssi, Il pensiero moraZe, peda, gogico, religioso
di Plutarco, Florença, 1927; P. THÉ-

91

VENAZ, LIâme du monde, le devenir et Ia matière chez Plutarque, Paris, 1939.

§ 119. Noticias antigas sobre os Essénios In ZELLER, 111, 2, p. 308 ss. Sobre os
manuscritos do Mar Morto: DuPONT-SOMMER, Observations sur le Commentaire
d'Habacuc découvert près de Ia Mer morte, Paris,
1950; ID., Observations sur le Manuel de Discipline découvert près de Ia Mer Morte'
Paris, 1951; MILLAR BURROWS, The Dead Sea, Scrolls, Nova Iorque, 1956 (que contém
também a tradução inglesa dos textos encontrados).

§ 120. Das obras de Ffion as edições são: Mangey, Londres, 1742 (com tradução latina);
Richter, Leipzig, 1828-30; Cohn e WendIand, Berlim, 1896 ss. Commentaire allégorique
des saintes lois, texto, tradução francesa e comentário de BRÉHIER, Paris, 1909.

Sobre F'ílDn: BRÉHIER, Les idées philos. et relig. de Ph. d'Alex., Paris, 1908;
GOODENOUCri, The Politics of Philo. Juda6us, New Haven, 1938 (com bibl.); WOLFSON,
Philo. Foundations of Religious Philosophy in Judai.sm, Christianity and Islam,
Cambridge (Mass.),
2 vols., 1947.

92

XVIII

O NEOPLATONISMO

§ 121. A "ESCOLÁSTICA" NEOPLATóNICA

O Neoplatonismo é a última manifestação do Platonismo no mundo antigo. Ele resume e


leva à formulação sistemática, e (com Proelo) de um modo escolástico, as tendências e
orientações que se tinham manifestado na filosofia grega e alexandrina do último período.
Elementos pitagóricos, aristotélicos, estoicos fundem-se no Platonismo numa vasta síntese
que devia influenciar poderosamente todo o curso do pensamento cristão e medieval e
através dele também o do pensamento moderno, O Neoplatonismo é assim a manifestação
mais notável da orientação religiosa que prevalece na filosofia da época alexandrina. É
também a primeira forma histórica da escolástica, se com tal nome se entende a filosofia
que procura realizar uma compreensão racional das verdades religiosas tradicionais (§
173). Com efeito, a atitude religiosa implica que a verdade como tal não se busca: ela foi
revelada e é garantida pela tradição. Por outro lado, é oportuno

93

compreender, explicar e defender tal verdade; para este fim se utiliza a filosofia que melhor
se presta, neste caso o Platonismo.

Por isso o Neoplatonismo não tem nada que ver com o Platonismo original e autêntico. É,
pelo contrário, uma espécie de escolástica que utiliza o Platonismo, em mistura confusa
com elementos doutrinais heterogéneos com o fim de justificar uma atitude religiosa. O
facto de Proclo, o representante mais sabedor da escolástica neoplatónica, ter considerado
apócrifas a República e as Leis de Platão, que se prestam mal, pelo seu dominante interesse
político, a serem utilizadas para os fins de uma apologética religiosa, constitui uma prova
evidente da descontinuidade que existe entre o Platonismo e Neoplatonismo e da
impossibilidade de utilizar este último como elemento de compreensão histórica do
Platonismo originário.

Fundador do Neoplatonismo é António Sacca, que viveu entro o ano 175 e o 242 d.C. sem
deixar nenhum escrito. Era braceiro (donde o sobrenome de "Sacca"); seguidamente
ensinou em Alexandria a filosofia platónica.

Entro os seus alunos contaram-se Orígenes, que não se deve confundir com o Orígenes
cristão (§ 144), e Cássio Longino (cerca de 213-273), retórico o filólogo, sob o nome do qual
nos chegou o escrito Do sublime, que não obstante não é seu.

A maior figura do Neoplatonismo é Plotino. Nascido em Licopoli, no Egipto, em 203 ou


204 d.C., participou na expedição do imperador Gordiano contra os persas para conhecer
as doutrinas dos persas e dos indianos. No regresso, estabeleceu-se em Roma, onde a sua
escola contou entre os seus ouvintes numerosos senadores romanos. O imperador Galieno
e a sua mulher Salonina estiveram entre os seus admiradores. Morreu na Campânia com
66 anos, em 269 ou 270 depois de Cristo.

94

O s--u aluno Porfírio de Tiro (nascido em 232-33 e falecido no princípio do IV século)


publicou os escritos do mestre ordenando-se em seis Enneadi, ou seja, livros de nove
partes cada um. Porfírio é também autor de numerosas obras originais. Entre estas são
particularmente importantes uma Vida de Plotino, uma Vida de Pitágoras e a Introdução
às Categorias de Aristóteles que é um comentário em forma de diálogo ao escrito
aristotélico. O interesse fundamental de Porfírio, é prático-religioso. Ele tira da doutrina
de Plotino motivos para defender a religião pagã.

§ 122. PLOTINO: DEUS

Plotino acentua até ao extremo limite a transcendência de Deus, na qual tinham já


insistido os Neopitagóricos e Ffion. Mas ao passo que Ffion, ainda identifica Deus com o
ser, Plotino afirma que Deus está "para lá do sem (V, 5, 6); "para, lá da substância" (VI, 8,
19); "para lá da morte" (111, 8, 9) de modo que é transcendente a respeito de todas as
coisas, ainda que produzindo-as e mantendo-as ele próprio em ser (V, 5, 12). Assim a causa
do ser vem de qualquer modo destacada do ser, como aquilo que é inalcançável e
inexprimível da parte do homem. O nome que é menos inadequado para dar a Deus é,
segundo Plotino, o de Uno e isto quer porque Deus é unidade, isto é, a causa simples e
única de todas as coisas, quer porque o nome "Uno" se presta a designar aquilo que é
simples e diferente de todas as coisas que vêm depois (V, 4, 1). O próprio Plotino adverte,
porém, que este nome não contém mais que a exclusão do múltiplo e, salvo esta exclusão,
não é mais adequado que os outros para exprimir Deus (V, 5, 6". Com estas considerações,
Plotino inicia aquilo que se chamou seguidamente a teologia negativa, isto é, a
95

determinação de Deus através do reconhecimento da impossibilidade de predicar dele


todas e cada uma das determinações finitas.

Além disso, a definição de Deus como unidade não tem nada a ver com o monoteísmo.
Conformemente a toda a tradição grega, Plotino defende explicitamente o politeísmo como
consequência necessária do poder infinito da divindade. "Não restringir a divindade a um
único ser, fazê-la ver múltiplice: como ela própria se manifesta, eis o que significa conhecer
o poder da divindade, capaz, ainda que permanecendo aquele que é , de criar uma
multiplicidade de deuses que se ligam com ele, existem para ele, existem para ele e vêm
dele" (11, 9, 9).

Para uma divindade concebida deste modo a criação não pode ser um acto de vontade, o
que implicaria uma mudança na essência divina. A criação acontece de tal maneira que
Deus permanece imóvel no centro dela, sem querê-la nem consenti-Ia. Ela é um processo
de emanação, semelhante àquele pelo qual a luz se difunde em torno do corpo luminoso ou
o calor em torno do corpo cálido ou, melhor, semelhante ao perfume que emana do corpo
odorífero (V, 1, 6). Utilizando a noção aristotélica de Deus como "pensamento do
pensamento" (§ 78), Plotino interpreta a própria emanação como o pensamento que o Uno
pensa de si.
O Uno, pensando-se, dá origem ao Intelecto, que é a sua imagem (V, 4, 2); o Intelecto,
pensando-se, dá origem à Alma, que é a imagem do Intelecto (IV, 8, 3). Passando
rapidamente de imagem a imagem, a emanação @ também um processo de degradação.
Aquilo que emana do Uno é inferior ao Uno, assim como a luz é menos luminosa do que a
fonte donde emana e a onda de perfume é menos intensa à medida que se afasta do corpo
odorífero. Os seres que emanam de Deus não podem--- por-

96

séneca

tanto, ter nem a sua perfeição nem a sua unidade, mas tendem cada vez mais para a
imperfeição e a multiplicidade.

§ 123. PLOTINO: AS EMANAÇõES

A primeira emanação do Uno é o Intelecto (Nous) que é a imagem mais próxima dele. O
Intelecto contém já a multiplicidade na medida em que implica a distinção entre o sujeito
que pensa e o objecto pensado. Este Intelecto, como o Logos, ou o Verbo de Fílon, é a sede
das ideias platónicas. Ele é identificado por Plotino com o Demiurgo de que fala Platão no
Timeu.

Do Intelecto procede a segunda emanação, a Alma do Mundo, que é Verbo e Acto Intelecto,
como o Intelecto o é do Uno. Por um lado, a alma olha o Intelecto de que provém e com o
qual pensa, pelo outro olha-se a si própria e conserva-se; pelo outro ainda, olha aquilo que
está depois dela e ordena-o, governa-o e rege-o. Assim a Alma universal tem uma parte
superior que se dirige ao Intelecto e uma parte inferior que se dirige ao corpo: com esta
governa o universo corpóreo e é Providência.

Deus, o Intelecto e a Alma do mundo constituem o mundo inteligível. O mundo corpóreo


supõe para a sua formação, além da acção da Alma do mundo, de um outro princípio de
que derivam a ,imperfeição, a multiplicidade e o mal. Este princípio é a matéria, concebida
por Plotino negativamente, como privação da realidade e do bem. A matéria está no
extremo inferior da escala no cimo da qual está T)eus. Ela é a obscuridade que começa
onde termina luz, portanto não-ser e mal.

As almas singulares são partes da alma do mundo. A Alma universal penetrou a matéria
vivi-

97

ficando-a e penetrando-a toda, mas permanecendo em si mesma única e indivisível. Ela


produz a unidade e a simpatia de todas as coisas do mundo, já que estas, tendo uma única
alma, se ligam umas às outras corno os membros de um mesmo animal.

Dominado como está pela Alma universal, o mundo tem uma ordem e uma beleza
perfeitas. Para descobrir esta ordem é necessário olhar o todo no qual encontra o seu posto
e a sua função cada parte singular, ainda aquela aparentemente imperfeita ou má. O
próprio vício tem uma função útil ao todo porque se torna um exemplo da força das leis e
acaba por produzir consequências úteis (111, 2, 5).

§ 124. PLOTINO: A CONSCIÊNCIA E O RETORNO A DEUS

Na filosofia de Plotino toma-se central e dominante um conceito que já assomara na


especulação dos Estoicos: o de consciência. Consciência não é * conhecimento dos próprios
estados internos, mas * atitude do sage que não tem necessidade de sair fora de si para
encontrar a verdade e que, por isso, tem o olhar constantemente voltado para si próprio. A
consciência é, neste sentido, o campo privilegiado em que se manifestam na sua evidência
as verdades mais altas que o homem pode alcançar e a fonte ou o próprio princípio de tais
verdades, isto é, Deus. O pressuposto deste conceito é a auto-suficiência do sage sobre que
tinham insistido os Estoicos e que tinha dominado as especulações morais dos estoicos
romanos. A distinção estabelecida por Epicteto entre "s coisas que estão em nosso podem,
isto é, os nossos actos espirituais e "as coisas que não estão em nosso podem, isto é, as
coisas externas, como fundamento das atitudes

98

morais do homem, não é senão um corolário do princípio da consciência. Para indicar a


consciência como introspecção ou auscultação interior, Plotino adopta expressões como
"retorno, a si próprio", "retorno à interioridade", "reflexão sobre si próprio" e contrapõe
constantemente esta atitude própria do sage a quem, em contrapartida, se orienta, pela
conduta da sua vida, para o conhecimento das coisas externas. "0 sage -diz Plotino- tira de
si próprio aquilo que revela aos outros e olha para si próprio dado que não somente tende a
unificar-se e a isolar-se das coisas externas, mas se dirige a

si próprio e encontra em si todas as coisas" (111,


8, 6).

O retomo a Deus é um itinerário que o homem só pode iniciar e percorrer mediante o


retorno a si próprio. As etapas do retorno a Deus são as etapas da progressiva
interiorização do homem; e, em primeiro lugar, da sua libertação de toda a dependência ou
relação com a exterioridade corpórea. Plotino afirma, portanto, que o primeiro dever do
homem é o de subtrair-se aos seus laços com o corpo e purificar-se mediante a virtude. As
virtudes são caminhos de purificação porque são caminhos de libertação da exterioridade.
Com a inteligência e a sabedoria, a alma do homem habitua-se a operar por si só, sem a
ajuda dos sentidos cor-

póreos; com a temperança liberta-se das paixões; com a coragem não teme separar-se do
corpo; com a justiça faz que comande em si apenas a razão e o Intelecto (1, 2, 3). A virtude
como purificação constitui, contudo, apenas uma condição libertadora do itinerário
interior em direcção a Deus. Na música, no amor e na filosofia, a alma encontra os
caminhos positivos do retorno a Deus.

Através da música, o homem deve progredir para lá dos sons sensíveis, procurando
alcançar as suas relações o as suas medidas para se erguer até

99

àquela harmonia inteligível que é a própria beleza. Através do amor, o homem eleva-se
gradualmente (segundo o processo já descrito por Platão no Fedro) da contemplação da
beleza corpórea à da beleza incorpórea, a qual é um reflexo ou imagem do Bem, isto é, de
Deus. Com efeito, a beleza resplandece nas coisas que estão mais próximas da perfeição;
uma estátua é mais bela do que um bloco de mármore, um corpo vivo mais belo do que
uma estátua. Mas para lá da beleza o homem deve avançar com a filosofia para a própria
fonte da beleza que é Deus. Todavia, a Deus não se poderá chegar através da inteligência
porque esta está confficionada pelo dualismo do sujeito que pensa e do objecto pensado,
enquanto que Deus é absoluta unidade. Na visão de Deus não há já intervalo, não há já
dualidade, mas a alma une-se a Deus totalmente com um êxtase de amor. Não se trata de
uma visão mas de "êxtase e de simplificação, de descanso e de união, de completa entrega".
Esta condição só raramente pode ser alcançada pelo filósofo. Porfírio testemunha-nos que,
nos seis anos que esteve com o mestre, Plotino só quatro vezes atingiu o êxtase.

§ 125. A ESCOLA SIRíACA

O discípulo de Porfírio, Jâmblico de Cálcide, falecido por volta de 330, inicia o chamado
Neoplatonismo siríaco, muito mais próximo das fontes orientais do que o plotiniano. Foi
autor de numerosos escritos dos quais nos restam cinco livros da obra Sobre os mistérios
dos egípcios. Jâmblico, é mais um teólogo do que um filósofo. Elo multiplica as emanações
plotinianas subdividindo-as em outras tantas divindades, às quais faz corresponder os
deuses da religião popular. Insiste, pois, sobre o valor da teurgia, que é a virtude mágica
dos ritos

100

e das fórmulas propiciatórias. A divindade, diz ele, não pode ser persuadida a agir pelo
nosso pensamento porque a perfeição não é levada a agir por aquilo que é imperfeito. Ela
age, em contrapartida, em virtude dos símbolos o das fórmulas que ela própria sugeriu
aos homens. O Neoplatonismo inclinava-se assim com Jâmblico para uma teologia mítica
que se prestava a justificar todas as superstições das crenças pagãs.

Jâmblico -teve numerosos discípulos que, pelas notícias que nos chegaram, aparecem
desprovidos de qualquer originalidade. Quando o imperador Juliano, (dito o Apóstada)
quis dar nova vida ao paganismo para pô-lo como fundamento da vida política do Império,
recorreu precisamente à filosofia neoplatónica na forma que Jâmblico lhe tinha dado.

Entretanto, a escola platónica de Alexandria continuava e teve novo esplendor com uma
mulher, Hipázia, que caiu em 415 vítima do fanatismo da plebe cristã, suscitada contra ela
pelo bispo Cirilo.
Dos escritos do seu discípulo Sinésio de Cirena (nasceu por volta do ano 370) que em 411
se torna bispo de Ptolomaida (§ 169) parece que ela expusera a doutrina neoplatónica
segundo os ensinamentos de Jâmblico.

§ 126. A ESCOLA DE ATENAS

A última fase do Neoplatonismo foi dedicada provalentemente ao comentário das obras de


Platão o de Aristóteles. No princípio do século V, o chefe da escola ateniense é Plutarco de
Atenas, filho de Nestório, que morreu muito velho no ano 401-02 e comentou Platão e
Aristóteles.

A especulação metafísica foi, em contrapartida, cultivada por Siriano (o mestre de Proclo),


o qual se refere especialmente a Platão que considerava

101

superior a Aristóteles e que quis conciliar com os Pitagóricos e com os Neoplatónicos.

Proclo é o maior representante da orientação ateniense. Nascido em Constantinopla no


ano 410 e educado em Lícia, aos 20 anos dirigiu-se para Atenas onde permaneceu até a sua
morte, ocorrida em 485. As suas obras mais importantes são o Comentário ao Timeu, à
República, ao Parménides, ao Alcibíades 1 e ao Crátilo e dois escritos sistemáticos, a
Instituição teológica e a Teologia platónica.

Proclo deu à filosofia neoplatónica a sua forma definitiva. Sucederam-lhe numerosos


pensadores que seguiram as suas pisadas mas que não oferecem nenhuma contribuição
original para a sua doutrina. À última geração de neoplatónicos pertence Simplício, cujos
comentários a muitas obras de Aristóteles têm para nós a máxima importância como
fontes de todo o pensamento antigo, e representam também uma notável obra de
pensamento.

No ano 529 Justiniano proibiu o ensino da filosofia em Atenas e confiscou o ingente


património da escola platónica. Damáscio, que era o seu chefe, com seis companheiros,
entre os quais Simplício, refugiou-se na Pérsia. Mas dali voltaram depressa desiludidos.
Doravante o pensamento platónico não existia mais como tradição independente porque
havia sido absorvido e assimilado pelo pensamento cristão.

O seu último representante pode dizer-se que foi Severino Boécio (§ 172). Boécio traduziu
e comentou os principais escritos do Organon aristotélico e a Introdução às categorias de
Porfírio. Escreveu também um Comentário desta obra e outros trabalhos de lógica,
matemática e música. No cárcere escreveu depois a obra que o tornou famoso durante toda
a Idade Média, A consolação da filosofia. Esta obra não é original, mas resulta da utilização
de várias fontes, entre as quais o Protréptico de Aris-

102

tóteles, talvez conhecido através de algum escritor mais recente que o reproduzira. O ponto
de vista de Boécio, é um platonismo, ecléctico. De Platão tira Boécio o conceito da
divindade como sumo Bem; com Aristóteles considera Deus como o primeiro motor
imóvel; com os Estoicos admite a providência e o fado. Embora seja cristão, na sua filosofia
segue de perto o Neoplatonismo, da época. Apresenta na sua pessoa a passagem da
antiguidade à Idade Média; é o último romano e o primeiro escolástico.
§ 127. A DOUTRINA DE PROCLO

O ponto fundamental da filosofia de Proclo, é a ilustração daquele princípio triádico, que é


próprio do Neoplatonismo. Todo o processo se cumpro por via da semelhança das coisas
que surgem com aquilo de que procedem. Um ser que não produz um outro permanece em
si próprio imutável; mas a coisa produzida necessariamente se lhe assemelha. Ora o
produto, enquanto tem qualquer coisa de idêntico com o que produz, resta nele; enquanto
tem qualquer coisa de diverso, procede dele. Mas sendo semelhante é de algum modo
idêntico e diverso; portanto permanece e procede ao mesmo tempo, e não faz nenhuma das
coisas sem a outra. Ora todo o ser, que procede por sua natureza do uma coisa, retorna a
ela. Retoma porquanto não pode fazer outra coisa senão aspirar à própria causa que é seu
bem; e todo o ser deseja o bem. Este retorno ou conversão realiza-se pela semelhança de
quem retoma com aquilo a que retoma (Ist. Teol., 30, 32). Com isto, Próclo, distingue, no
processo das emanações de todo o ser pela sua causa, três momentos: 1.' o permanecer
(moné) lutável da causa em si mesma; 2.* o proceder (próodos) dela pelo ser derivado que,
pela sua

103

semelhança com ela, permanece aderido a ela e por sua vez se afasta dela; 3.' o retorno ou
conversão (epistrophé) do ser derivado à sua causa originária. Aquele processo de
emanação, que Plotino ilustrava em termos metafópicos com o exemplo da luz e do odor, é
justificado por Proclo com esta dialéctica da relação entre a causa e a coisa produzida, pela
qual ao mesmo tempo se enlaçam, se separam e voltam a unir-se num processo circular no
qual o princípio e o fim coincidem.

O ponto de partida de todo o processo é o Uno, Causa primeira e Bem absoluto que Proclo,
como Plotino, considera incognoscível e inexprimível. Do Uno procede uma multiplicidade
de Unidades ou Enadi que são também Bens supremos e Divindades e fazem de
intermediários entre o Uno originário e o mundo do Intelecto. O Intelecto, que é a terceira
fase da emanação, é dividido por Proclo em três momentos; o inteligível (o objecto do
Intelecto), que é o ser; o inteligível-intelectual, que é a vida; o intelectual (o Intelecto como
sujeito), que é o Intelecto. O ser e a vida, por sua vez, dividem-se em vários momentos a
cada um dos quais Proclo faz corresponder uma divindade da religião popular.
O quarto momento da emanação é a Alma, dividida em três espécies: a divina, a demoníaca
e a humana, as primeiras duas são ainda divididas e identificadas com divindades ou seres
da religião popular.

O mundo é organizado e governado pela Alma divina. O mal não deriva da divindade, mas
da imperfeição dos graus médios e baixos da escala do mundo e da sua deficiente aceitação
do bem divino. A matéria não pode ser causa do mal porque ela foi criada por Deus como
necessária para o mundo.

Além das faculdades assinaladas na alma por Platão e Aristóteles, Proclo admite nela uma
faculdade superior a todas, o Uno na alma, que corresponde ao Uno no mundo e é a
faculdade apta a

104

conhecê-lo. O processo da elevação moral e intelectual da alma culmina na união extática


com o Uno. Os graus últimos deste processo de elevação são o amor, a verdade e a fé. O
amor leva o homem até à visão da beleza divina; a verdade até à sabedoria divina e ao
conhecimento perfeito da realidade. Mas só a fé o leva para lá do conhecimento e de todo o
devir, ao repouso e à união mística com aquilo que é incognoscível e inexprimível.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

121. Os dados antigos sobre Amónio Sacca, Orígenes e Longino foram recolhidos por
ZELLER, HI,
2, p. 500 ss. Para Plotino a fonte principal das notícias biográficas é a Vida de Plotino de
PORFIRIO.

As obras de Plotino foram editadas por Creuzer e Moser, O.@ffürd, 1835, ed. reproduzida
na de Firmin-Didot, París, 1855; Volkmann, Leipzig, 1883-84; na colecção "A Universidade
de França" apareceu a edição e a tradução de BRÉHIER em 6 vdls., 1924-38. Traduções
italianas: CILENTo, 4 vols., Bari, 1947-49; FAGGIN, Milão, 1947-48. As fontes para a
biografla de Porfirio, são a sua Vida de Plotino e o artigo do Léxico de Suidas. A Vida de
Plotino está publicada na edição plotiniana de Creuzer e M<)ser, o Co~tário às categorias
de Aristóteles nos "Comentários gregos de Aristóteles" da Academia de Berlim, IV, 1. Para
as edições das obras de Porfirio, ver UEBERWEG-PRAECHTER, p. 598.

Sobre Porfírio, ver BIDEZ, Vie de P. Ze philosophe néoplatonique, Gand-Leipzig, 1913.

§§ 122, 123, 124. Sobre Plotino: INGE, The Phi-


1,osophy of P., 2 vols., Londres, 1918; BRPHIER, La philosophie de P., Paris, 1928;
CARBONARA, La filosofia di P.' 2 vols., Roma, 1938-39; JENSEN, Plotin, Kjijbenhavn,
1948; Les sources de Plotin. Entretiens sur l'antiquité classique, Vandoeuvres-Genève,
1957; bibli. de MARIEN in apéndice, -ao vol. IV da citada -tradução italiana de Cilento.

§ 125. Os dados antigos sobre Jàmblico, Giuliano, Hípãzia, Sinésio, in ZELLER, 111, 2, p.
773 ss.

105

Sobre os mistérios dos egípcios, ed. Parthey, Berlim,


1857.

As obras de Juliano foram publicadas por Bidez e Cumont, P@tris, 1922; a de Sinésio, por
Petavio, Paris, 1612, 2.1 ed., 1633, e na Patr. Greca de MiGNE, vol. 66. Sobre Juliano o
Apóstata: BARBAGALLO, Ciu;. lIAp., Gênova, 1912; ROSTAGNI, Giu1. l'Ap., Turim,
1920.

§ 126. Os dados antigos sobre Proclo, foram recolhidos na Vida escrita pelo seu disc@pulo
M_ARiNo, ed. Boisonade, Leipzig, 1814. Sobre os outros Neoplatónios da escola de Atenas
os dados antigos foram recolhidos em ZELLER, 111, 2, p. 805 ss. (Plutareo),
890 ss. (Simplício, Damáscio, Boécio).

§ 127. As obras de Proclo foram publicadas por Cousín, 6 vols. Paris, 1820-25; existem
também numerosas edições de Leipzig de obras separadas. As obras de Boécio está(> na
Patr. Latina de MIGNE, vol. 63 e 64. Os Elementos de Teologia de Proclo foram traduzidos
para italiano por LoSAceo, Lanciano, 1927. G. MARTANO, L'uomo e Dio in Proclo,
Nápoles, 1952, com bibliografia.

106
SEGUNDA PARTE

FILOSOFIA PATRISTICA

O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA

§ 128. A FILOSOFIA GREGA E A TRADIÇÃO CRISTã

A Grécia foi o berço verdadeiro da filosofia. Pela primeira vez no mundo ocidental,
compreendeu e realizou a filosofia como investigação racional, isto é, como investigação
autónoma que em si mesma encontra o fundamento e a lei do seu desenvolvimento. A
filosofia grega demonstrou que a filosofia só pode ser procura e a procura liberdade. A
liberdade implica que a disciplina, o ponto de partida, o fim e o método da investigação
sejam justificados e postos por essa mesma investigação, e não aceites independentemente
dela.

A influência do cristianismo no mundo ocidental determinou uma nova orientação da


filosofia. Toda a religião implica um conjunto de crenças que não são fruto de qualquer
investigação porque consistem na aceitação de uma revelação. A religião é a adesão a uma
verdade que o homem aceitou devido a um testemunho superior. Tal é, com efeito, o

109

cristianismo. Aos fariseus que lhe diziam: "Tu alegas de ti mesmo e, portanto, o teu
testemunho não tem valor", Jesus respondeu: "Eu não estou só, somos eu e aquele que me
enviou (S. João, VIII, 13, 16), apoiando assim o valor da sua doutrina no testemunho do
Pai. A religião parece, portanto, nos seus próprios princípios, excluir a investigação e
consistir antes numa atitude oposta, a da aceitação de uma verdade testemunhada do alto,
independentemente de qualquer investigação. Todavia, logo que o homem se interroga
quanto ao significado da verdade revelada e tenta saber porque caminho pode realmente
compreendê-la e fazer dela carne da sua carne e sangue do seu sangue, renasce a exigência
da investigação. Reconhecida a verdade no seu valor absoluto, tal como é revelada e
testemunhada por um poder transcendente, imediatamente se impõe a cada homem a
exigência de se aproximar dela e de a compreender no seu significado autêntico para com
ela e dela viver verdadeiramente. Esta exigência só pode -ser satisfeita pela investigação
filosófica. A investigação renasce, pois, da própria religiosidade, pela necessidade que o
homem religioso tem de se aproximar, tanto quanto lhe for possível, da verdade revelada.
Renasce com uma tarefa específica, que lhe é imposta pela natureza de tal verdade e pelas
possibilidades que pode oferecer à sua efectiva compreensão pelo homem; mas renasce
com todas as características, próprias da sua natureza, e com força tanto maior quanto
maior for o valor que se atribui à verdade em que se acredita e se pretende fazer sua.

Da religião cristã nasceu assim a filosofia cristã. Esta tomou também como objectivo
conduzir o homem à compreensão da verdade revelada por Cristo, de modo a que ele possa
realizar o seu autêntico significado. Os instrumentos indispensáveis para este fim
encontrou-os a filosofia cristã, prontos a

lio

servirem, na filosofia grega. As doutrinas da especulação helénica do último período,


essencialmente religioso, prestavam-se a exprimir, de modo acessível ao homem, o
significado da revelação cristã; e com

O esta finalidade foram, efectivamente, utilizadas da maneira mais ampla.

§ 129. OS EVANGELHOS SINóPTICOS

A pregação de Cristo, por um lado, está ligada à tradição hebraica e, por outro, renova-a
profundamente. A tradição hebraica ensinava a crença num Deus único, puro espírito e
garantia da ordem moral no mundo dos homens; um Deus que escolheu como seu povo
eleito o povo hebraico, a quem ampara nas dificuldades como pune inexoravelmente nas
aberrações religiosas e nas suas imperfeições morais. A última tradição hebraica, a dos
profetas, anunciava, depois de um período de desventuras e tremendas punições, o renovo
do povo hebreu. e o seu ressurgimento como potência material e moral, que faria dele o
instrumento directo de Deus para o seu domínio no mundo.

Ao anúncio desta renovação, que deveria verificar-se pela obra de um Messias


directamente investido por Deus, está ligada a pregação de Cristo. Nas tal pregação alarga
imediatamente o horizonte do anúncio profético, estendendo-o do único povo eleito a
todos os povos da terra, a todos os homens "de boa vontade", seja qual for a sua raça, a sua
civilização ou a sua posição social. Simultaneamente, retira ao anunciado renascimento
todo e qualquer carácter temporal e político e faz dele um ressurgimento puramente
espiritual que deve realizar-se na interioridade das consciências.

O reino de Deus anunciado por Jesus não exige uma transformação política: "Dai a César o
que é

111

de César e a Deus o que é de Deus" (5. Mateus,


22, 21; S. Lucas, 20, 25). É antes uma realidade invisível e -interior ao homem: "Não se
poderá dizer "está aqui" ou "está ali", porque, na verdade, o reino de Deus está dentro de
vós". (S. Lucas, 17,
21). Ele é como o grão de mostarda que é o mais pequeno de todos os grãos e se torna uma
grande árvore; ele é como o fermento que se espalha na farinha e a faz levedar (S. Mateus,
13, 31 e ss.; S. Marcos, 4, 30 e ss.; S. Lucas, 13, 18 e ss.): quer dizer, é uma vida espiritual
que se desenvolve e se difunde gradualmente entre os homens. O reino de Deus exige do
homem o abandono radical de todos os interesses mundanos. Jesus afirma explIcitamente
que não veio para trazer a paz, mas a espada (S. Mateus 10, 34); a aceitação da sua
mensagem significa a ruptura definitiva com todos os laços terrenos e a entrega total a
Deus. Por isso exclama: " Quem encontrar a sua alma perdê-la-á, e quem a perder por mim
encontrá-la-á" (S. Mateus,
39). O que esta ruptura total com o mundo e com

o seu próprio eu, o que esta total entrega a Deus implica para o homem disse-o Jesus no
Sermão da Montanha. O reino de Deus é para os pobres de espírito, para os que sofrem,
para os pacíficos, para aqueles que desejam a justiça, para os que são perseguidos. Isto
impõe ao homem o amor. À lei do Velho Testamento: "Olho por olho, dente por dente",
Jesus opõe a nova lei cristã: "Amai os vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem e
caluniam, para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus, o qual faz nascer o sol para
os bons e os maus e dá a chuva aos justos e aos injustos. Pois se amais apenas os que vos
amam que mérito tereis? Não fazem os publicanos 1 o mesmo? E se estimais ape-

1 Publicanos (telonai) eram os funcionários dos impostos públicos, gente odiosa e agarrada
ao dinheiro.

112

nas os vossos irmãos, que fareis de extraordinário? Não fazem os pagãos a mesma coisa?
Sede perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celeste" (S. Mateus, 5,
44-48).

Na pregação de Jesus, Deus mais do que Senhor é o Pai dos homens; mais do que executor
daquela justiça inflexível e vingativa que lhe atribuíam os hebreus, é fonte inesgotável de
amor, que aponta a todos os homens como primeiro e fundamental dever. A comunidade
humana que deverá surgir da pregação de Cristo será , portanto, uma comunidade fundada
no amor. Mesmo a relação entre o homem e Deus deve ser uma relação de amor. O homem
deve abandonar-se à providência do seu Pai celeste: "Procurai antes de mais nada o reino
de Deus e

a sua justiça e tudo o restante vos será concedido" (S* Mateus, 6, 33). Mas este abandono
não deve ser uma expectativa inerte. "Velai-disse Jesus porque não sabeis o dia em que
chegará o vosso Senhor. (S. Mateus, 24, 42). Esperar pelo reino de Deus significa preparar-
se incessantemente para ele. Não é concedido sem esforço: "Pedi e recebereis; procurai e
encontrareis; batei e as portas se abrirão" (S. Lucas, 11, 9). Todo o ensinamento de Jesus
pretende transmitir a necessidade desta expectativa activa e preparatória, desta procura
sem a qual não é possível tornarmo-nos dignos do reino de Deus. Por isso Jesus se volta de
preferência para os humildes e para os que sofrem ("Eu fui enviado apenas às ovelhas
tresmalhadas da casa de Israel", S. Mateus, 15, 24), enquanto considera que o seu apelo
ressoa em vão naqueles que estão contentes consigo e nada têm que pedir à vida": "É mais
fácil passar um camelo pelo cu de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus" (S.
Mateus, 19,
24). Só pela dor, pela inquietação e pela necessidade nasce no homem a aspiração da
justiça, da paz e do amor, que conduz ao reino de Deus.

113

§ 130. AS "CARTAS" PAULINAS

As Cartas de S. Paulo, escritas ocasionalmente a várias comunidades cristãs, contêm, além


da apologia da doutrina fundamental de Cristo, admoestações, conselhos, prescrições
rituais. Mas contêm também a clara expressão dos fundamentos conceptuais da nova
religião, que deviam servir nos séculos seguintes, como constantes pontos de referência
das disputas teológicas e das interpretações filosóficas. Tais fundamentos podem
recapitular-se do seguinte modo:

1.* A cognoscibilidade natural de Deus, de onde ser tomada como culpa a ignorância ou o
seu não conhecimento. Deus é, de facto, cognoscível através das suas obras, nas quais ele
mesmo se revelou e nas quais se apoiam de modo evidente o seu poder e a sua glória
(Romanos, 1, 18-25).

2.' A doutrina do pecado original o da redenÇão pela fé em Cristo. "Assim como por um só
homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte, assim a morte trespassou todos
os homens porque todos pecaram" (Rom., V, 12). A redenção do pecado realiza-se pela fé
em Cristo. "Deus é justo e justifica quem tem fé em Jesus. Onde está, pois, a razão da
vanglória? Foi excluída. Por que lei? Pela das obras? Não, pela lei da fé. Convençamo-nos
de que o homem será justificado pela fé, sem as obras da lei" (Rom., 26-28).
3.* O conceito da graça como acção salvadora de Deus através da fé. "Não acontece com o
pecado o que sucede com a graça; pois se pelo pecado de um pereceram muitos, muito
mais abundou a graça de Deus e o dom da graça de um homem: Jesus Cristo" (Rom., V, 15-
16).

4. O contraste entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. "Se viverdes pela
carne,

114

precipitar-vos-eis na morte; se pelo espírito fizerdes morrer os actos do corpo, vivereis.


Porque todos os que seguem o espírito de Deus, são seus filhos. (Rom. VIII, 13-114).

5.o A identificação do reino de Deus com a vida e o espírito da comunidade dos fiéis, isto é,
com a Igreja. Segundo S. Paulo, a Igreja é o corpo de Cristo de que os cristãos são os
diferentes membros harmonizados e concordes. (Rom., XII, 5 sg).

Na comunidade cristã há lugar para as tarefas mais variadas, pois todas contribuem para a
unidade do conjunto, mas cada uni deve escolher aquela para que foi chamado. Domina
nas epístolas paulinas o conceito da vocação (cléisis) pela qual a graça (charis') divina
opera em cada indivíduo chamando-o ao dom ou à função carismática que está mais de
acordo com a sua natureza. "Que cada um fique na vocação a que foi chamado". (Coríntios,
1, 7, 20). "Há diversidade de carismas, mas um só é o Espírito; há diversidade de serviços,
mas um só é o Senhor; há diversidade de operações, mas um só é Deus que opera tudo em
todos. Em cada um o Espírito se manifesta da maneira mais útil". (Cor.,
1, 12, 4-7). E assim é dada a um a sabedoria, a outro a ciência, a outro a fé, a outro o dom
da profecia e assim por diante, mas todos são como os membros de um único corpo que é o
próprio corpo de Cristo, a comunidade dos cristãos (Cor.,
12, sg). Mas a diversidade mesma de funções na comunidade torna necessária a harmonia
espiritual entre os seus membros e esta harmonia é garantida apenas pelo amor (agápe-
charitas). O amor é a condição de toda a vida cristã. Todos os outros dons do espírito, a
profecia, a ciência, a fé, nada são sem ele". "A caridade suporta todas as coisas, tem fé em
tudo, em tudo tem esperança, tudo mantém... Estão aqui agora estas três coisas: a fé, a
esperança e a caridade; mas a caridade é a maior

115

de todas" (Cor., 1, 13, 7, 13). Este acentuar o valor da caridade e a posição central que o
conceito de vocação ocupa nas epístolas paulinas demonstram com toda a evidência que o
cristianismo se tornou uma comunidade histórica, cuja vida consiste em procurar
compreender os ensinamentos e a pessoa de Cristo e realizar o seu significado.

§ 131. O QUARTO EVANGELHO

Nos evangelhos sinópticos a doutrina de Cristo surge já estreitamente ligada à pessoa de


Cristo. Cristo deu testemunho da verdade da sua doutrina, apelando para o Pai celeste que
o enviara aos homens, com os milagres que operou e sobretudo

com a sua ressurreição. O Evangelho de S. João é dominado, mais do que os sinópticos,


pela figura de Jesus, e apresenta, pela primeira vez, a tentativa de compreender
filosoficamente a figura do Mestre e o princípio da sua doutrina. O prólogo do Quarto
Evangelho vê em Jesus o Logos ou o Verbo divino. "No princípio era o Logos e o Logos
estava em Deus e o Logos era Deus. No princípio Ele estava em Deus. Tudo foi criado
através dele e nada do que foi feito foi feito sem Ele. N'EIe estava a vida e a vida era a luz
dos homens. E a luz apareceu nas trevas e as trevas não a receberam" (S. João,
1, 1-5). Nestas palavras de S. João determina-se pela primeira vez a natureza de Cristo pelo
conceito do Logos, que já tinha entrado na tradição hebraica com o livro da Sabedoria (§
119). Ao Logos é atribuída a função de mediador entre Deus e o mundo, enquanto se diz
que tudo foi criado por seu intermédio. É reconhecida a sua directa filiação e derivação do
Pai (9, 35: 16, 28) e é-lhe atribuído claramente o papel de salvador de todos os homens.
"Eu não rogo apenas por estes (os discípulos), mas por todos aqueles que por sua palavra
acreditaram

116

em mim, para que todos sejam uma única coisa, como tu, 6 Pai, estás em mim e eu em ti,
para que eles estejam em nós e todo o mundo acredite que tu me enviaste". (17, 20-21).

No Quarto Evangelho a oposição entre os laços terrenos e o reino de Deus vem expressa
como oposição entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito e apresentada
como a alternativa crucial do homem. A vida segundo o espírito é uma nova vida que traz
consigo um novo nascimento. "Em verdade, em verdade vos digo que se cada qual não
nasce de novo, não pode ver o reino de Deus". Nicodemos disse-lhe: Como pode nascer
um homem já velho? Pode ele entrar pela segunda vez no seio de sua mãe e voltar a
nascer? Jesus respondeu-lhe: Em verdade, em verdade te digo, que se cada um não
nascer da água e do espírito não pode entrar no reino de Deus. O que nasceu da carne é
carne, e o que nasceu do espírito é espírito. Não te surpreendas se te digo: é necessário
nascer de novo. O vento sopra de onde quer, tu ouves o seu ruído, mas não sabes de onde
vem e para onde vai; assim é tudo o que é gerado pelo espírito" (3, 3-8). Este renascer no
espírito (pneuma) é o nascimento para a verdadeira vida. "0 espírito é o que vivifica, a
carne de nada vale; as palavras que vos dirigi são espírito e vida" (6, 663). A vida espiritual
implica um novo critério de juízo, e por isso Jesus diz aos Fariseus: "Vós julgais segundo a
carne, mas eu a ninguém julgo. E se julgo, o meu juízo é verdadeiro, porque não estou só,
somos eu e Aquele que me enviou" (8, 15-16).

§ 132. A FILOSOFIA CRISTÃ Entender e realizar a mensagem de Cristo foi a finalidade da


comunidade cristã durante os séculos que se seguiram. A vida histórica da Igreja é a

117

tentativa contínua de aproximar os homens do significado essencial da mensagem cristã,


reunindo-os numa comunidade universal (catolicismo), na qual o valor de cada homem se
baseia unicamente na sua capacidade de viver em conformidade com o exemplo de Cristo.
Mas a condição fundamental desta aproximação é a possibilidade de compreender o
significado daquela mensagem; e tal tarefa é própria da filosofia. A filosofia cristã não pode
ter a finalidade de descobrir novas verdades, nem mesmo a de aprofundar e desenvolver a
verdade original do cristianismo, mas apenas a de encontrar o melhor caminho, pelo qual
os homens possam chegar a compreender e a fazer sua a revelação cristã. Tudo o que era
necessário para erguer o homem do pecado e salvá-lo foi ensinado por Cristo e -selado com
o seu martírio. Ao homem não é dado descobrir a não ser com fadiga o significado
essencial da revelação cristã, nem pode descobri-lo apenas por si, fiando-se unicamente na
razão. Na Igreja cristã, a filosofia encaminha-se não só para o esclarecimento de uma
verdade, que já é conhecida desde o início, como ainda para a esclarecer no âmbito de uma
responsabilidade colectiva, na qual cada indivíduo encontra um guia e um limite. A própria
Igreja, nas suas assembleias solenes (Concílios), define as doutrinas que exprimem o
significado fundamental da revelação (dogmas).

Daqui deriva o carácter específico da filosofia cristã, na qual a procura individual encontra
antecipadamente assinalados os seus limites. Não é, como a filosofia grega, uma procura
autónoma que, em primeiro lugar, pretende fixar os termos e o significado do seu
problema; os termos e a natureza do problema já lhe foram dados. Isto não diminui o seu
significado vital: só pela reflexão filosófica a mensagem cristã, na imutabilidade do seu
signi-

118

ficado fundamental, se renovou e manteve, através dos séculos, a. força e a eficácia do seu
magistério espiritual.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 128. Acerca da relação entre o cristianismo e a filosofia grega à qual, se refere o final
deste parágrafo: RENAN, Les Evangiles et Ia seconde génération chrét., Paris, 1877;
HAVET, Le christianisme et ses origines, 4 vols, París, 1871-84; HARNACK, Lehrbuch der
Dog~ngeschi,chte, I, 4.a ed., 1909, esp. 121-148 e
496 segs.

§ 129. A fonte para o conhecimento do cristianismo é o Novo Testamento que é composto


pelos seguintes livros: Evangelhos de S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas, chamados sinópticos
porque a exposição que fazem da doutrina e da vida de Cristo é concordante e forma um
único quadro; IV Evangelho ou Evange.lho de S. Joã o, que apresenta uma elaboração
filosófica da doutrina e do significado de Cristo; os Actos dos Apóstolos; as Epístolas de, S.
Pedro aos Romanos, aos Corintios (I e II), aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos
Tessalonicenses (1 e II), a Timóteo, a Tito, a Filemon, aos Hebreus; as Epístolas Católicas
de Tiago, de Pedro (I e 11), de João (1, 11 e III), de Judas; O Apocalipse de S. João. Os mais
importantes destes escritos, sob o ponto de vista doutrinaJ, são os quatro Evangelhos e as
Epístolas de S. Paulo, particularmente as dirigidas aos Romanos e aos Coríntios. O Novo
Testamento está escrito em grego. Entre as edições críticas mais recentes, veja-se a de
NESTLE, Stuttgart, 1928, da qual foram traduzidas as passagens citadas no texto.

Sobre o Novo Testamento vejam-se as seguintes Introduções gerais: R. KNOLF-H.


LIETZMANN-H. WEINEL, Binfuhrung in das Neue Testament, Berlim, 1949; W.
MICHAELIS, Einleitung in das Neue Testament, Bern, 2.1 ed., 1954; A. WICKENHAUSER,
Einleitung in das Neue Testament, Friburgo, 1956; A. ROBERT-A. PEUILLET,
Introduction à Ia Bible: II, Nouveau Testament, Tournal, 1959; ao cuidado de vários
autores, Introduzione alla Bíblia: IV, I Vangeli, Turim, s. d. (1959). Actualização
bibliográfica anual na "Internationale Zeitschriftenshau fur Ribelwissenschaft und
Grenzegebiete" (Dusseldorf) e in "BibUca> (Roma)

119

§ 130. Sobre os pontos tratados no texto velam-se os seguintes comentários à Epístola aos
Romanos: T. ZAHN, Der Brief des Paulus an die Rõmer, Leipzig,
1910; M. J. LAGRANGE, St. Paul. Êpitre aux Ramains, Paris, 1915 (numerosas
reimpressões; a última de
1950); K. BART, Der Romerbrief, Munique, 1929; O. Kuss, no Regensburger Neues
Testament, Regensburger, 1940; C. K. BARRET, The Epistle to the Romans, Londres, 1957.
§ 131. Acerca do IV EvangeMo: J. WELLHAUSEN, Das Evangelium Johannis, Berlim,
1908; A. LOSIY, Le Quatrième Evangile, Paris, 1921; M. J. LAGRANGE, Evangite selon
Saint Jean, Paris, 1925; W. BAUER, in Handbuch zum Neuen Testament, Tubingen, 1933;
R. BULTMANN, in Kritisch exegetischer Kommentar uber das Neues Testament,
Gottingen, 1953; Supl.
1957; A. W1KENHAUSER in Regensburger Neues Testament, Regensburger, 1957; sobre o
Prólogo em particular: M. E. BOISMARD, Le prologue de Saint Jean, Paris, 1955.

120

A PATRISTICA DOS DOIS PRIMEIROS SÉCULOS

§ 133. CARACTERISTICAS DA PATRISTICA

Quando o cristianismo, para se defender dos ataques polémicos e das perseguições, e


também para garantir a própria unidade contra cisões e erros, teve de pôr a claro os
próprios pressupostos teóricos e organizar-se num sistema doutrinal, apresentou-se como
expressão completa e definitiva da verdade que a filosofia grega tinha procurado, embora
imperfeita e parcialmente encontrada. Uma vez no terreno da filosofia, o cristianismo
defendeu a sua continuidade com a filosofia grega e apresentou-se como a sua última e
mais completa manifestação. Justificou esta continuidade com a unidade da razão (Logos),
que Deus criou idêntica para todos os homens e em todos os tempos e à qual a revelação
cristã deu o último e mais seguro fundamento; e com isto afirmou implicitamente a
unidade da filosofia e da religião. Esta unidade não é um problenw para os escritores
cristãos dos pri-

121

meiros séculos: é mais um dado ou um pressuposto do que guia e dirige toda a sua
reflexão. E mesmo quando estabelecem uma antítese polémica entre a doutrina pagã e a
cristã (como no caso de Taciano), esta antítese estabelece-se no terreno comum da filosofia
e pressupõe, portanto, a continuidade entre cristianismo e filosofia.

Era natural, segundo este ponto de vista, que se tentasse, por uni lado interpretar o
cristianismo mediante conceitos tirados da filosofia grega, para assim o ligar a esta
filosofia e, por outro, -reconduzir o significado da filosofia grega ao próprio cristianismo.
Esta dupla tentativa que, na realidade, é uma só, constitui a essência da elaboração
doutrinal que o cristianismo sustentou nos primeiros séculos da nossa era.

Nesta elaboração, os Padres da Igreja foram frequentemente ajudados e inspirados, como


era inevitável, pelas doutrinas das grandes escolas filosóficas pagãs; e, especialmente aos
Estoicos, foram eles beber muitas das suas inspirações, impelidos até muitas vezes (como
acontece com Tertuliano) a aceitar teses aparentemente incompatíveis com o cristianismo
como a da corporalidade de Deus.

O período desta elaboração doutrinal é a Patrística. Padres da Igreja são os escritores


cristãos da antiguidade que contribuíram para a elaboração doutrinal do cristianismo e
cuja obra foi aceite e tomada como sua pela Igreja. O período dos Padres da Igreja pode
considerar-se como terminado com a morte de João Damasceno para a Igreja grega (cerca
de 754); e com a de Beda o Venerável para a Igreja latina (735). Este período pode dividir-
se em três partes. A primeira, que vai até cerca do ano 200, é dedicada à defesa do
cristianismo contra os seus adversários pagãos e gnósticos. A segunda, que vai de 200 até
cerca de 450, é dedicada à formulação doutrinal das crenças cristãs. A última,

122

que vai de 450 até ao final da Patrística, é mar. cada pela reelaboração e sistematização das
doutrinas já formuladas.

§ 134. OS PADRES APOLOGETAS

Os Padres Apostólicos do século 1 são os autores das Cartas que ilustram alguns pontos da
doutrina cristã e regulam questões de ordem prática e religiosa. Tais são: o autor da
chamada Carta de Bernabé, Gemente Romano, Hermes, Inácio de Antioquia e Policarpo.
Mas estes escritores não encaram ainda problemas filosóficos.

A verdadeira actividade filosófica cristã começa com os Padres Apologetas no século 11.
Esses Padres escreviam em defesa (apologia) do cristianismo contra os ataques a
perseguições que lhe eram dirigidos. Neste período "os cristãos são hostilizados pelos
Hebreus como estrangeiros e são perseguidos pelos pagãos" (Epist. ad Diogn., 5, 17).
Escritores pagãos adoptaram contra o cristianismo a sátira e a zombaria (Luciano, Celso).
Os cristãos são alvo de ódio da plebe pagã e das perseguições sistemáticas do Estado.

É nestas condições que nascem as apologias. A n-ia@s antiga de que há conhecimento é a


defesa apresentada ao imperador Adriano, por volta do ano 124, quando de uma
perseguição aos cristãos, movida por Cuadrato, discípulo dos Apóstolos. Temos apenas um
fragmento, conservado por Eusébio (Hist. Eccles., IV, 3, 2). A apologia do filósofo
Marciano Aristides foi encontrada em 1878 e é dirigida ao imperador Antonino Pio (138-
161). Nela se afirma já claramente que só o cristianismo é a verdadeira filosofia. De facto,
só os cristãos têm aquele conceito de Deus que deriva, necessariamente, da consideração
da natureza. Nesta demons-

123

tração são usados conceitos platónicos. A ordem do mundo, tal como aparece nos céus e na
terra, faz pensar que tudo se move por necessidade e que Deus é aquele que move e
governa tudo. Aristides insiste na inacessibilidade e inefabilidade da essência divina, para
contrapor o monoteísmo rigoroso do cristianismo às crenças dos bárbaros que adoraram
os elementos materiais, às dos gregos que atribuíram aos seus deuses fraquezas e paixões
humanas, o às dos judeus que, admitindo embora um só Deus, servem melhor os anjos do
que a Ele. Mas a primeira grande figura de Padre apologeta e o verdadeiro fundador da
Patrística é Justino.

§ 135. JUSTINO

Justino nasceu provavelmente no primeiro decénio do século 11 em Flávia Neápolis, a


antiga Siquem, agora Nablus na Palestina. Ele próprio nos descreve a sua formação
espiritual. Filho de pais pagãos, frequentou os representantes das várias escolas
filosóficas.- Estoicos, Peripatéticos e Pitagóricos, e professou durante largo tempo as
doutrinas dos Platónicos. Por fim, encontrou no cristianismo aquilo que procurava e desde
então com a sua palavra e os seus escritos defende-o como a única e verdadeira filosofia.
Viveu muito tempo em Roma e ali fundou uma escola, foi ainda em Roma que
suportou o martírio entre 163 e 167. Das obras que nos ficaram, apenas três são
seguramente autênticas: o Diálogo com o judeu Trifon e duas Apologias. A primeira e a
mais importante é dirigida ao imperador Antonino Pio e deve ter sido composta nos anos
150-155. A segunda, que é um suplemento ou um apêndice da primeira, foi motivada pela
condenação de três cristãos, réus apenas por se terem confessado como tais: O Diálogo
com o judeu Tri-

124

fon refere uma discussão que ocorreu em Éfeso entre Justino e Trifon e visa, em
substância, demonstrar que a pregação de Cristo realiza e completa os ensinamentos do
Velho Testamento.

A doutrina fundamental de Justino é que o cristianismo é "a única filosofia segura e útil"
(Dial., 8) e que esse é o resultado último e definitivo que a razão pode alcançar na sua
pesquisa, uma vez que a razão não é mais do que o Verbo de Deus, ou seja, Cristo, do qual
participa todo o género humano. "Nós aprendemos -disse ele (Apo. primeira, 46) que
Cristo é o primogénito de Deus, e que é a razão de que participa todo o género humano. E
aqueles que viveram segundo a razão são cristãos, ainda que tenham sido considerados
ateus como, entre os Gregos, Sócrates, Heraclito e outros; e entre os bárbaros, Abraão e
Ananias e Azarias e Misael e Elias. De modo que também aqueles que antes nasceram e
viveram irracionalmente eram maus e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem
segundo a razão, mas aqueles que viveram e vivem conformes com a razão são cristãos
impávidos e tranquilos". Todavia estes cristãos "avant Ia lettre" não conheceram toda a
verdade. Neles existiam sementes de verdade, que não puderam entender plenamente.
(1b., 44). Podiam, por certo, ver obscuramente a verdade, mediante aquela semente de
razão que com eles nascera. Mas uma coisa é a semente e a imitação e outra o
desenvolvimento completo e a realidade, da qual a semente e a imitação se geraram. (Apol.
seg., 13). Aqui é adoptada a doutrina estoica das razões seminais para fundamentar a
continuidade do cristianismo e da filosofia grega, para reconhecer nos maiores filósofos
gregos os precursores do cristianismo e para justificar a obra da razão mediante a sua
identificação com Cristo. Esta mesma doutrina permite a Justino a identificação completa
entre o

125

cristianismo e a verdade filosófica. "Tudo aquilo que se disse de verdadeiro pertence a nós
cristãos, já que, além de Deus, nós amamos e adoramos o Logos do Deus ingénito e
inefável, que se fez homem por nós, para nos curar das nossas enfermidades participando
delas" (1b., 13).

Deus é o eterno, o que não teve princípio, o inefável: o conhecimento de Deus é um facto
inexplicável, radicado na própria natureza dos homens (Apol. sec., 6). Ao lado e abaixo
dele existe outro Deus, o Logos coexistente e gerado antes da criação, por meio do qual
Deus criou e ordenou todas as coisas (1b., 5). Assim como uma chama não diminui quando
se acende urna outra, o mesmo aconteceu com Deus na criação do Logos (Dial., 48).
Depois do Pai e do Logos está o Espírito Santo, a quem Justino chama o espírito profético,
ao qual os homens devem as virtudes e os dons proféticos (Apol. prima, 6).

O homem foi criado por Deus, livre de fazer o bem e o mal. Se o homem não tivesse
liberdade, não teria mérito no bem nem culpa no mal realizado (Apol. prima, 43). A alma
do homem é imortal, apenas por obra de Deus: sem esta, com a morte volveria ao nada
(Dial., 6). Mas o próprio corpo está destinado a participar na imortalidade da alma.
Efectivam-ente, deverá vir, segundo o anúncio dos profetas, uma segunda parusia de
Cristo, e desta vez ele virá em glória, acompanhado pela legião dos anjos, ressuscitará os
corpos e revestirá com imortalidade os dos justos, ao mesmo tempo que condenará ao fogo
eterno os dos iníquos (Apol. prima, 52).

§ 136. OS OUTROS PADRES APOLOGETAS

Taciano o Assírio, discípulo de Justino em Roma, nasceu na Síria e converteu-se em Roma

126

depois de ter conquistado nome como filósofo. Mais tarde, provavelmente, em 172,
separou-se da Igreja passando para os Gnósticos. Taciano é autor de uma apologia
intitulada Discurso aos Gregos que é, na realidade, uma crítica do Helenismo. A obra de
Taciano é essencialmente polémica. Acusa de imoralidade os pensadores e os poetas gregos
e alarga-se em invectivas contra eles. Aos erros dos Gregos contrapõe a doutrina cristã
acerca de Deus e do mundo, do pecado e da redenção. O Logos é a potência racional de
Deus e nasceu dele através dum acto de participação, não de separação. Como um facho
acende muitos outros sem que a sua luz diminua, assim o Logos não esgota a potência da
razão do seu geriltor (Or. ad graec., 5). No homem distingue a alnw e o espírito. Só o
espírito é a imagem e a semelhança de Deus. (lb., 12). A alma não é uma essência
simples, mas é composta de várias partes. A sua existência está ligada ao corpo e não é
separável dele, pelo que não é imortal Ub., 15). Só pela sua união com o espírito, a alma e o
corpo participam da imortalidade. Através do espírito, o homem pode reunir-se a

Deus. Ele deve desprezar a matéria, da qual se servem os demónios para perdê-lo, e voltar-
se exclusivamente para a vida espiritual (Ib., 16).

Atenágoras de Atenas é autor de uma apologia intitulada Súplica para os cristãos, dirigida
a Marco Aurélio ou Cómodo, e por isso composta entre 176 e 180, provavelmente em 177.
Esse escrito propõe-se refutar as três acusações que eram lançadas comummente contra os
cristãos: o ateísmo, os banquetes tiesteos e o incesto à maneira de Édipo. A primeira
acusação é refutada mediante a exposição da doutrina cristã de Deus; contra as outras duas
-são aduzidos os fundamentos da moral cristã. Na Súplica recorre, pela primeira. vez, a
uma prova racional da unicidade de Deus. Se existissem mais

127

divindades, não poderiam existir no mesmo lugar porque, sendo todas incriadas, não
poderiam cair sob um tipo ou modelo comum. Deveriam, pois, existir em lugares
diferentes. Mas não podem estar em lugares diferentes porque o espaço para lá do mundo
é a sede de um único Deus que é essência supramundana e assim não há espaço para as
outras divindades. Uma outra divindade poderia existir num outro mundo ou em torno de
um outro mundo; mas, em tal caso, essa não chegaria até nós e, pela limitação da sua
esfera de acção, não seria a verdadeira divindade (Supp1. pro crist., 8). Por isso, os
próprios poetas e filósofos gregos conheceram a unidade de Deus, ainda que o claro,
seguro e completo conhecimento dele só nos tenha sido dado através dos profetas (1b., 7).
O Logos gerado pelo Pai e coeterno com ele, é o modelo, a força criadora de todas as coisas
criadas, enquanto o Espírito Santo é um eflúvio de Deus, semelhante a um raio de sol (1b.,
24).

Teófilo de Antioquia foi bispo desta cidade e deixou três livros Ad Autolico, que são três
escritos independentes, o terceiro dos quais foi composto à volta de 181-182 e os primeiros
dois pouco antes. Ao desafio de Autólico: "Mostra-nos o teu Deus", Teófilo responde:
"Mostra-me o teu homem e eu te mostrarei o meu Deus." Deus só é visto por aqueles que
têm bem abertos os olhos da alma. Como não se pode ver a face do homem no espelho
coberto de ferrugem, também o homem quando está no pecado não pode ver a Deus (Ad.
Autol., 1, 2). À pergunta: "Tu que o vês, descreve-me o aspecto de Deus", Teófilo responde:
"Escuta-me; a beleza de Deus é indizível e inefável e não se pode ver com os olhos
corpóreos" (1b.,
1, 3). Deus que é eterno e, portanto, não gerado e imutável, é o criador de tudo: tudo ele fez
do nada, para que através da sua obra se compreen-

128

desse a sua grandeza. Por isso, ele torna-se visível através da, sua criação. "Como a alma
humana que é invisível aos homens é conhecida através dos movimentos do corpo,
também Deus, que não pode ser visto pelos olhos humanos, pode ser visto e conhecido
através da sua providência e das suas obras." (Ib., 1, 5). A via da criação divina é o Logos
Deus, mediante o Logos e a sabedoria, criou todas as coisas (1b., 1, 7). O Logos é o
conselheiro de Deus, a sua mente e a sua prudência (1b., 11, 22). Pela primeira vez, Teófilo
usou a palavra trindade (trias) para indicar a distinção das pessoas divinas. Os três dias da
criação da luz de que fala o Génesis "são imagens da trindade, de Deus, do seu Verbo, da
sua sabedoria" (1b.,
11, 15).

Sob o nome de Justino chegou até nós uma Carta a Diogneto que certamente não pertence
a Justino pela diversidade do estilo e da doutrina.
O autor responde às dúvidas levantadas por um pagão que se interessa pelo cristianismo. A
composição da Carta não deve ter sido antes de 160, e provavelmente nos finais do século
11. O autor responde a três dúvidas de Diogneto. Ao culto pagão e judaico, a Carta
contrapõe o culto cristão do Deus invisível e criador. A religião cristã não é uma descoberta
humana mas uma revelação divina: Deus mandou o seu Filho, a eterna Verdade e a eterna
Palavra, a ensinar aos homens a verdadeira religião; e o Filho de Deus veio ao mundo não
como senhor mas como salvador @ libertador e encaminhou-nos para a salvação pelo
amor (Ep. ad Diog., 7).

Com o título Irrisão dos filósofos pagãos, de Hermias filósofo, chegou-nos um pequeno
escrito polémico no qual se põem sarcasticamente à luz as contradições dos filósofos
gregos @na, sua dou-

129

trina sobre a alma humana (cap. 1-2) o sobre os princípios fundamentais das coisas (cap.
3-10). A obra pertence provavelmente ao final do século II.

§ 137. A GNOSE

A obra dos Padres Apologetas não tem de se dirigir apenas contra os inimigos externos do
cristianismo, pagãos e hebreus, mas ainda contra os inimigos internos, contra as
tendências e as seitas que, na tentativa de interpretarem a mensagem original do
cristianismo, falseavam o seu espírito e a letra, contaminando-o com elementos e motivos
heterogéneos. O maior perigo contra a unidade espiritual do cristianismo foi representado
nos primeiros séculos pelas seitas gnósticas que se difundiram amplamente no Oriente e
no Ocidente, especialmente nas esferas dos doutos e produziram uma rica o variada
literatura. No entanto, esta literatura, com excepção de poucos escritos, conservados em
traduções coptas, perdeu-se o só a conhecemos através dos passos citados pelos Padres
Apologetas que os refutaram.
A importância da tentativa dos gnósticos reside no facto de que é a primeira investigação
de uma filosofia do cristianismo. Mas esta investigação foi conduzida sem rigor
sistemático, misturando juntamente elementos cristãos, míticos, neoplatónicos e orientais
num conjunto que nada tem de filosófico. A palavra Gnosis, como conhecimento religioso
distinto da pura fé, foi tirada da tradição grega, especialmente do pitagorismo, no qual
significava o conhecimento do divino próprio dos iniciados. Foi assim empregada para
indicar um grupo de pensadores cristãos do século II que fizeram do conhecimento a
condição da salvação. Atribuíram a si próprios, pela primeira vez, o

130

nome de gnósticos, os Ofitas ou sócios da serpente, que depois se dividiram em numerosas


seitas. Estes utilizavam grande quantidade de textos religiosos atribuídos a personalidades
bíblicas: tal era o Evangelho de Judas, a que se refere Irineu (Adv. haer.,
1, 31, 1). Outros escritos do género foram encontrados recentemente em traduções coptas,
o mais importante dos quais é a Pistis Sophia, que foi editada em 1851 e expõe, em forma
de diálogo entre o Salvador ressuscitado e os seus discípulos, particularmente Maria
Madalena, a queda e a redenção de Pistis Sophia, um ser pertencente ao mundo dos Eones
(seres intermédios entre o homem e Deus), e o caminho para a purificação do homem
mediante a penitência. Os principais gnósticos de que temos conhecimento são Basílides,
Carpócrates, Valentino e Bardesanes.

Basilides, que ensinou em Alexandria entre 120 e 140, escreveu uni Evangelho, um
Comentário e Salmos. A sua doutrina é conhecida através das obras de Clemente de
Alexandria (Stromata) e das refutações de Irineu (Contra os heréticos) e de Hipólito
(Filosofemi). Para Basilides, a fé é uma entidade real, uma coisa, deposta por Deus no
espírito dos eleitos, isto é, dos predestinados para a salvação. Levado pela necessidade de
explicar o mal no mundo, Basilides foi levado a admitir dois princípios da realidade, um
como causa do bem, o outro do mal: a luz e as trevas. Postas em contacto entre si, as trevas
procuraram unir-se à luz e participar dela, enquanto a luz, por sua vez, permanecia
retraindo-se sem absorver as trevas. As trevas originaram assim uma aparência e uma
imagem da luz, que é o mundo, no qual o bem se encontra por isso em quantidade
desprezível e o mal predomina. Esta concepção de Basilides é muito semelhante à
maniqueia, mas não admite, como esta, a luta entre os dois princípios.

131

De Carpócrates de Alexandria apenas sabemos que uma sua sequaz, Marcellina, foi a Roma
nos tempos de Aniceto (cerca de 160), e "provocou a ruiria de muitos" (Irineu, Contra os
hereges, 1, 25,
4). Carpócrates, para explicar a superioridade de Cristo sobre os homens, serve-se da
teoria platónica da reminiscência. Cristo torna-se superior aos outros homens, porque a
sua alma recordou mais abundantemente quanto tinha visto durante o seu curso com o Pai
não gerado, onde este lhe deu uma virtude particular que o tornou capaz de escapar ao
predomínio do mundo e de regressar livremente até ele. O mesmo acontecerá a toda a
alma que se atenha à mesma linha de conduta. Os sequazes de Carpócrates ou
carpocracianos admitiam a transmigração da alma de corpo em corpo, enquanto não
tivesse completado o ciclo das experiências pecaminosas; só no termo desta odisseia, a
alma seria digna de voltar para o Pai, libertando-se de todas as ligações com o corpo.

O maior número de sequazes pertence à escola de Valentino que, segundo Irineu, foi a
Roma nos tempos do bispo Higino (135-140). No cume da realidade, Valentino e os seus
seguidores colocavam um ser intemporal e incorpóreo, não gerado e incorruptível a quem
chamavam Pai ou Primeiro Pai ou ainda Eone (do grego: aión=eterno) perfeito. Este
primeiro princípio é formado por pares de termos, Abismo e Silêncio; e também os eones
que emanam dele são constituídos por pares. Efectivamente, do primeiro Eone derivam a
Mente e a Verdade, da qual procedem por emanação a Razão e a Vida; e dos quais
procedem ainda o Homem (como determinação divina) e a Comunidade (ecclesia,
comunidade de vida divina). O conjunto destas oito determinações divinas (ogdoade) é o
reino da perfeita vida divina ou Pleroma. Ora o último Eone, a Sabedoria, quis descobrir o
primeiro, o

132

Abismo, e procurou subir até às regiões superiores do Pleroma. Mas isso não foi avante e
neste esforço inútil deu origem ao mundo, o qual por isto apresenta as características de
um esforço incompleto o os erros e o pranto que o esforço fracassado produz. "Da
ansiedade e da inquietação nasceram as trevas; do temor e da ignorância nasceram a
malícia e a perversão; da tristeza e do pranto as Contes de água e os mares. Cristo foi
mandado pelo Pai Primeiro, inviolável no seu mistério, a restaurar o equilíbrio desfeito
pelo louco sonho da Sabedoria" 'Tertuliano, Contra os Valentinianos, 2). Deste modo, o
universo nasce na rebelião infecunda do cone Sophia que dá origem à obra plasmadora de
um Demiurgo. Valentino repartia o género humano em três categorias: a massa dos
homens carnais, o conjunto dos psíquicos e a casta dos espirituais (pneumáticos). Os
primeiros estão destinados à perdição; os segundos podem salvar-se à custa de um esforço;
aos privilegiados basta, para alcançar a beatitude, a gnose, isto é, o conhecimento dos
mistérios divinos.

Bardesanes, nascido em Edessa em 154 e falecido em 222, foi discípulo de Valentino. É


essencialmente um astrólogo e um naturalista que, da astrologia babilónica e egípcia, retira
a teoria da influência dos astros sobre os acontecimentos do mundo e sobre as acções
humanas.

O persa Mani, nascido provavelmente cerca de


216, proclamou-se Paráclito, isto é, aquele que devia trazer a doutrina cristã à sua
perfeição. A sua religião é uma mescla fantástica dos elementos gnósticos, cristãos e
orientais, fundamentada no dualismo da religião de Zaratustra. Ele admite efectivamente,
dois princípios originais, um, o do mal ou princípio das trevas, o outro do bem ou princípio
da luz, que se combatem perpetuamente no mundo. Também no homem existem duas
almas,

133

uma corpórea que é o princípio do mal, a outra luminosa que é o bem. O homem atinge a
sua perfeição com um tríplice selo, isto é, abstendo-se da comida animal e dos discursos
impuros (signaculum oris), da propriedade e do trabalho (signaculum manus) e do
matrimónio e do concubinato (signaculum sinus). O maniqueísmo encontrou o seu grande
e implacável adversário em S. Agostinho.

§ 138. A POLÉMICA CONTRA A GNOSE

Na polémica contra o gnose o cristianismo atinge uma mais rigorosa elaboração doutrinal.
Neste ponto era necessário, em primeiro lugar, individualizar e defender as fontes
genuínas da tradição cristã e, em segundo lugar, fixar o significado autêntico desta tradição
contra as perversões e erros que pretendiam disputá-la e exprimir o seu verdadeiro
significado. Um certo número de obras antignósticas perdeu-se, de outras obras (de
Agrippa Castor, Egesipo, Rodón, Filipe de Cortina, Heraclito) restam escassos e
insignificantes fragmentos (Migne, Patr. grec., 5.0). Em contrapartida, temos as obras de
Irineu e de Hipólito.

Irineu nasceu cerca de 140 na Ásia Menor, provavelmente em Esmima. No tempo da


perseguição de Marco Aurélio, era padre da igreja de Lyon e, segundo uma tradição que
remonta a S. Jerónimo, morreu mártir mas ignora-se em que data. Irineu escreveu
numerosas obras. Eusébio, na sua História Eclesiástica (V, 20), cita um tratado: Sobre a
monarquia ou sobre não ser Deus autor do mal; um outro, Sobre ogdoade; várias cartas e
escritos menores um dos quais contra os pagãos, intitulado Sobre a ciência. De todos estes
escritos só restam escassos fragmentos (em Migne, Patr. grec., 7.0),
1225-74). Em contrapartida, conserva-se uma grande

134

obra contra o gnosticismo, intitulada Refutação e desmascaramento da falsa gnose,


comummente chamada Adversus haereses. Mas chegou-nos não no seu original grego, mas
uma versão latina do século IV; existem, contudo, fragmentos do texto grego,
especialmente do primeiro livro, sob a forma de citações dos escritores posteriores.

A verdadeira gnose é, segundo Irineu, aquela que foi transmitida pelos apóstolos da Igreja.
Mas esta gnose não tem a pretensão de superar os limites do homem, como a falsa gnose
dos heréticos. Deus é incompreensível e impensável. Todos os nossos conceitos -são para
ele inadequados. Ele é intelecto, mas não é semelhante ao nosso intelecto. É luz, mas não é
semelhante à nossa luz. "É melhor não saber nada, mas crer em Deus e permanecer no
amor de Deus, do que arriscar-se a perdê-lo com investigações subtis" (Adv. haer., 11, 28,
3).
O que podemos saber de Deus, podemos conhecê-lo somente por revelação: sem Deus não
se pode conhecer Deus. E a revelação de Deus acontece também através do mundo que é
obra dele, como reconheceram até os melhores entre os pagãos. A mais grave blasfémia
dos gnósticos é, segundo Irineu, (11, 1, 1) a tese de que o criador do mundo não é o próprio
Deus, mas uma emanação sua. Que Deus tenha tido necessidade de seres intermédios para
a criação do mundo, significaria que ele não teria tido a capacidade de levar a efeito aquilo
que tinha projectado. Contra a doutrina gnóstica de que o Logos e o Espírito Santo são
eones subordinados, Irineu afirma a igualdade de essência e de dignidade entre o Filho, o
Espírito Santo e o Pai. O Filho de Deus não teve princípio. pois que ele é desde a
eternidade coexistente com o Pai, nem teve princípio o Espírito Santo, o qual como o Filho
está desde a eternidade junto ao Pai. Nem se pode admitir a emanação do Filho e do

135

Espírito Santo do Pai. A simplicidade da essência divina não consente a separação do


Logos ou do Espírito Santo do Pai (11, 13, 8). O Filho é o órgão da revelação divina e está
subordinado ao Pai não pelo seu ser ou pela sua essência, mas apenas pela sua actividade
(V, 18, 2).

Pelo que se refere ao homem, Irineu, contra a distinção gnóstica de corpo, alma e espírito,
afirma que o homem resulta da alma e do corpo e que o espírito é apenas a capacidade da
alma pela qual o homem se torna perfeito e se constitui à imagem de Deus. Mas para que o
espírito transfigure e santifique a figura humana é necessária a acção do Espírito Santo. A
alma humana está entre a carne o o espírito e pode voltar-se para uma ou para outro.
Apenas pela fé e pelo temor de Deus, o homem participa do espírito e se eleva à vida divina
(V, 9, 1). Mas os gnósticos erram ao afirmar que a carne em si é um mal ou a origem do
mal.
O corpo como a alma é uma criação divina e não pode, portanto, implicar o mal na sua
natureza (IV,
37, 1). A origem do mal está antes no abuso da liberdade e, por isso, deriva não da
natureza, mas do homem e da sua escolha (IV, 37, 6). O bem consiste em obedecer a Deus,
em acreditar nele, em guardar os seus perceitos, o mal consiste na desobediência e na
negação de Deus (IV, 39, 1).
O bem conduz o homem à imortalidade que é concedida à alma por Deus, mas não é
intrínseca à sua própria natureza; o mal é punido com a morte eterna. Também os corpos
ressuscitarão; mas ressuscitarão com a nova vinda de Cristo, que se verificará depois do
reino do Anticristo. Então as almas, tendo readquirido os seus corpos, poderão chegar à
visão de Deus (V, 31, 2; 27, 2).

Da vida de Hipólito, discípulo de Irineu, dá-nos algumas indicações a própria obra que nos
ficou dele, os Philosophoumena. Contra o papa Calisto

136

(217-22) colocou-se à cabeça de um partido cismático e foi assim um dos primeiros


antipapas que a história conhece. O motivo do cisma foi o abrandamento da disciplina
eclesiástica, introduzido por Calisto, que permitira a readmissão na Igreja daqueles que
retornavam das seitas heréticas, a concessão das dignidades eclesiásticas aos bígamos, etc.
(Philos., lX, 12). Em 235, Hipólito foi exilado para a Sardenha com o segundo sucessor de
Calisto, Ponziano, e ali se reconciliaram provavelmente o papa e o antipapa. Falecidos
ambos na Sardenha, os seus corpos foram transportados para Roma e sepultados no
mesmo dia, a 13 de Agosto de 236 ou 237. A estátua de Hipólito, encontrada mutilada no
ano de 1551 e conservada no Museu de Latrão, tem, nos lados do pedestral, uma lista
incompleta dos seus numerosos escritos. Entre as obras de Orígenes andava incluí do, em
muitos manuscritos, o primeiro livro de uma Refutação de todas as heresias, que
certamente não pertence a Orígenes porque o autor se intitula bispo. Em 1842, num
manuscrito do monte Athos, foram encontrados os livros IV-X da mesma Refutação, a qual
hoje é universalmente atribuída a Hipólito com o título impróprio de Philosophoumena.
Das outras obras chegaram-nos fragmentos; entre estes o capitulo final do escrito Contra
Noetum. Restam-nos completos um escrito apologético Sobre o Anticristo e um
Comentário ao profeta Daniel, que é a primeira tentativa do género entre os teólogos
cristãos. Outros fragmentos de obras de Hipólito conservaram-se em eslavo, arménio,
siríaco, etc.

Hipólito propõe-se refutar os heréticos mostrando que eles vão beber a sua doutrina não
na tradição cristã, mas na sabedoria pagã. Por isso, o I e o IV livro (no último dos quais
talvez se possa ver também o 11 e o 111), traçam um quadro da sabedoria pagã, enquanto os
últimos seis expõem e

137

Tefutam as heresias. Ao papa Calisto reprova Hipólito o facto de não estabelecer uma
distinção suficiente entre o Pai e o Logos e o de atribuir, portanto, toda a obra redentora ao
Pai mais que ao Filho. A sua doutrina do Logos tende essencialmente a estabelecer esta
distinção. O Pai e o Filho são duas pessoas (prosopa) diferentes, ainda que constituam uma
só potência (dynamis). Primeiramente o Logos existia no Pai impessoalmente, em
inseparável unidade com ele, como Logos não expresso. Quando o Pai quis e da maneira
que quis, ele procedeu do Pai e tornou-se uma pessoa à parte como outro em relação a ele.
Finalmente com a incarnação, o Logos tornou-se o verdadeiro e perfeito Filho do Pai.
Hipólito insiste sobre a arbitrariedade da geração divina do Logos. "Se Deus tivesse
querido, diz ele, (Philos., X, 33), teria podido fazer um homem Deus (ou o homem) em vez
do Logos". Afirma assim a subordinação da natureza do Logos à do Pai. Contudo, ao
afirmar que o Logos é distinto de Deus, ele não pretende dizer que sejam duas divindades:
a relação entre o Pai e o Logos é semelhante à que existe entre a fonte luminosa e a luz,
entre a água e a fonte, entre o raio e o sol. Com efeito, o Logos é uma potência que deriva
do todo e o todo é o Pai de cuja potência procede (Contra Noet., 11). A procedência do
Logos do Pai era necessária para a criação do mundo, pois que o Logos é o intermediário
da obra criadora. Além do Pai e do Filho, Hipólito admite a terceira instituição (economia),
o Espírito Santo. "0 Pai manda, o Filho obedece, o Espírito Santo ilumina; o Pai está acima
de tudo, o Filho é por tudo, o Espírito Santo está em tudo. Não podemos pensar num único
Deus, se não acreditarmos no Pai, no Filho e no Espírito Santo" (Contra Noet., 14).

138

O homem foi criado por Deus dotado de liberdade e Deus deu-lhe. através dos profetas e
especialmente de Moisés, a lei que deve guiar a sua vontade livre. O homem não é Deus;
mas se quiser pode tornar-se Deus: " Sô seguidor de Deus e co-herdeiro de Cristo, em vez
de servir os instintos e as paixões e tornar-te-ás Deus" (Philos., X, 33).

§ 139. TERTULIANO

Frente aos apologetas orientais que tentaram estabelecer a continuidade entre o


cristianismo e a filosofia grega e apresentaram a doutrina cristã como a verdadeira filosofia
que a revelação de Cristo conduziu à sua última perfeição, os apologetas ocidentais tendem
a reivindicar a originalidade da revelação cristã em confronto com a sabedoria pagã e a
fundá-la sobre a natureza prática e imediata da fé, mais que sobre a especulação. Este
carácter da apologética latina demonstra-se, sobretudo, no seu maior representante,
Tertuliano.

Quinto Septímio Fiorente Tertuliano nasceu cerca de 160 em Cartago de pais pagãos. Teve
uma educação excelente e exerceu, provavelmente em Roma, a profissão de advogado.
Entre 193 e 197 converteu-se ao cristianismo e recebeu a ordenação sacerdotal.
Desenvolveu então uma intensa actividade polémica a favor da nova fé; irias, a meio da sua
vida, passou para a seita dos montanistas e começou a polernizar contra a Igreja Católica
com violência pouco menor do que aquela que tinha usado contra os hereges. Finalmente,
fundou uma seita própria, os "tertulianistas" (Agostinho, De haeres., 86). Parece que viveu
até idade avançada (Jerónimo, De vir. iII., 53). A actividade literária de Tertuliano é
vastíssima, mas exclusivamente polémica. As suas obras costumam dividir-se

139

em três grupos: apologéticas, em defesa do cristianismo; dogmáticas, em refutação das


heresias; prático-ascéticas, sobre questões de moral prática e de disciplina eclesiástica. Ao
primeiro grupo pertencem: o Apologeticus, dirigido no ano de 197 aos governadores das
províncias do Império Romano; o Ad nationes, pouco anterior ao primeiro; o De
testimonio animae, que pretende fundar a fé no testemunho da alma, "naturaliter
christiana"; a carta Ad Scapulam, dirigida a um procônsul de África que perseguia os
cristãos; o Adversus judaeos, que, provavelmente, só nos primeiros oito capítulos pertence
a Tertuliano. As obras dogmáticas são: o De praescriptione haereticorum que é um dos
seus escritos filosóficamente mais significativos; Adversus Marcionem, Adversus
Hermogenem e Adversus Valentinianos, dirigidos contra os Gnósticos; o Scorpiace,
também dirigido contra os Gnósticos, comparados aos escorpiões; o De baptismo, que
declara inválido o baptismo dos heréticos; o De carne Christi que confirma a realidade do
corpo de Cristo contra o docetismo; o De ressurrectione Christi, em defesa da ressurreição
da carne; o Adversus Praxean; o De anima, que é o primeiro escrito de psicologia cristã. Os
dois últimos escritos pertencem ao período montanístico. As obras prático-ascéticas são: o
De patientia, o De oratione, o De poenitentia, o De pudicitia, a carta Ad martyras, o De
exortatione castitatis, o De monogamia, todos dirigidos contra o segundo matrimónio; o
De spectaculis, contra a intervenção dos cristãos nos jogos pagãos; o De idololatria, contra
a participação dos cristãos na Vida pública e na actividade artística; o De corona, contra o
serviço militar; o De cultu foeminarum, contra os adornos das mulheres; o De virginibus
velandis; o De fuga in persecutione, que declara ilícita a fuga durante as perseguições; o De
ieiunio adversus psychícos, contra os jejuns dos
140

católicos; o De palfio, em defesa da veste que havia adoptado ao abandonar a toga.

O traço característico de Tertuliano é a irrequietude. No tratado De patientia, que dirige


sobretudo a si próprio, existe indubitàvelmente uma confissão sincera: "Pobre de mim, que
ardo continuamente com a febre da impaciência." E, na realidade, ele era incapaz de deter-
se sobre os problemas e examiná-los com profundidade. O trabalho paciente e rigoroso da
pesquisa não era para ele; por alguma coisa, como veremos, desvaloriza a investigação ante
a fé. Servido por uma habilidade polémica excepcional e por uma faculdade oratória pouco
comum, examina os problemas tomando as posições mais simples e extremistas com
suprema indiferença por toda a cautela crítica e toda a exigência de método. Este homem
que nega o valor da pesquisa e passa a vida à procura de qualquer coisa; este adversário
implacável de todas as seitas que depois passa a uma delas e acaba por fundar uma; este
defensor do cristianismo que afirma a corporeidade de Deus e da alma, perdendo assim a
primeira conquista não só do cristianismo mas de qualquer religião; este defensor
intransigente do pudor que se detém com complacência a descrever o acto carnal do amor
(De an., 27), este causídico que defende com igual violência polémica a trindade de Deus e
a forma do seu vestir, revela em todas as suas atitudes uma carência fundamental de
clareza e de sinceridade consigo próprio. Com demasiada frequência deixa transparecer na
sua arrogância polémica, sob o manto oratório das frases incisivas, a inconsistência da sua
espiritualidade e o carácter formalístico da sua fé. Aquela seita dos montanistas, que tinha
as características do seu fundador Montano, ex-sacerdote de Cibele, formada por exaltados
que viviam em contínua agitação à espera do iminente regresso de Cristo,
141

pôde seduzi-lo por algum tempo, mas não pôde detê-lo. E assim, se imprimiu à
especulação cristã do Ocidente a sua terminologia, não conseguiu dar-lhe um contributo
substancial de pensamento.

§ 140. TERTULIANO: AS DOUTRINAS

O ponto de partida de Tertuliano é a condenação da filosofia. A verdade da religião funda-


se na tradição eclesiástica-, da filosofia só nascem as heresias. Não existe nada de comum
entre o filósofo e o Cristo, entre o discípulo da Grécia e o dos céus (Apol., 46); os filósofos
são "os, patriarcas dos heréticos" (De an., 3). A raiz de todas as heresias está nos filósofos
gregos. Valentino, o gnóstico, era discípulo de Platão; Marción, dos Estoicos. Para negar a
imortalidade da alma recorre-se aos Epicuristas; para negar a ressurreição da carne, ao
acordo unânime dos filósofos. Quando se fala de um Deus-fogo recorre-se a Heraclito. E a
coisa mais inútil de todas é a dialéctica do desgraçado Aristóteles que serve tanto para
edificar como para destruir e que se adapta a todas as opiniões (De praescr., 7). Que valor
têm então as palavras de Cristo: "Procurai e achareis"? É necessário procurar a doutrina de
Cristo enquanto não a encontrarmos, isto é, enquanto não acreditamos nela. "Se
procuramos para encontrar e encontramos para crer, põe-se fim, com a fé, a toda a ulterior
investígação e achamento. Eis o limite que o próprio resultado da investigação estabelece.
Eis aqui o fosso que traçou diante de ti aquele que quer que tu creias só naquilo que te
ensinou e que não busques outra coisa" (De praescr., 10). A investigação excluí pois a posse
e a posse exclui a investigação. Procurar, depois que se alcançou a fé, significa precipitar-se
na heresia (1b., 14). Nada há
142

mais estranho à mentalidade de Tertuliano do que a exigência de uma investigação que


nasça e se alimente da fé: esta exigência encarnará na grande figura de S. Agostinho.
Medido pelo critério de Tertuliano, S. Agostinho seria incrédulo ou herético.

A verdade do cristianismo funda-se, portanto, apenas no testemunho da tradição. Às seitas


heréticas que procuram interpretar a seu modo as Sagradas Escrituras, ele opõe que a
interpretação delas diz respeito apenas às autoridades eclesiásficas, às quais foi
transmitido, por hereditariedade ininterrupta, o ensinamento de Cristo. Com mentalidade
de advogado defende este direito da Igreja, que foi instituída, através dos Apóstolos, como
herdeira da mensagem de Cristo. Mas admite também, além da tradição eclesiástica, um
outro testemunho a favor da fé: o da alma. Mas a alma não é para ele, como será para S.
Agostinho, o princípio da interioridade, o rincão interior onde ressoa do alto a voz da
verdade divina; é a voz do senso comum, a crença que o homem da rua manifesta nas
expressões correntes da sua linguagem. "Eu não invoco a alma que se formou nas escolas,
exercitada nas bibliotecas e inchada pela sabedoria das academias e dos pórticos da Grécia.
Eu invoco a alma simples, rude, inculta e primitiva, tal como a possuem aqueles que só a
têm a ela, a alma que se encontra nas encruzilhadas e bifurcações dos caminhos" (De
testimon. an., 1). E Tertuliano recolhe o testemunho desta alma nas expressões mais
simples e mais frequentes que o vulgo emprega, com a convicção de que tais expressões são
"vulgares porque comuns, comuns porque naturais, naturais porque divinas" (lb., 6).

O testemunho da alma é, pois, para Tertuliano, o testemunho da linguagem ou do senso


comum mais que o testemunho da consciência. O princípio da consciência é,
efectivamente, estranho a Ter-

143

tuliano, que aceita dos Estoicos a corporeidade do ser.

"Tudo aquilo que é, é o corpo de um género determinado. Nada é incorpóreo a não ser
aquilo que não é" (De carne Christi, 11). O próprio Deus é corpo ainda que seja espírito,
pois que o espírito não é mais do que um corpo sui generis. A diferença entre a natureza
espiritual da alma e a natureza carnal do corpo é a diferença entre dois corpos: o espírito é
um sopro que dá vida à carne, mas que é ele próprio corpóreo. O mundo sensível e o
mundo intelectual diferenciam-se entre si só enquanto um é visível e aparente e o outro
evanescente e imperceptível.
O primeiro cai sob a sensibilidade, o segundo sob o intelecto. Mas o próprio entender é um
sentir e o sentir é um entender. A sensação é efectivamente a inteligência da -realidade que
se sente e a intelecção é a sensação da realidade que se percebe (De an., 18). A alma tem,
pois, a mesma figura do homem e, precisamente, do corpo que a contém (lb., 9). Ela é
definida por Tertuliano como "uma substância simples, nascida do sopro de Deus, imortal,
corpórea e dotada de uma figura, capaz por si mesma de sabedoria, rica em atitudes,
partícipe de arbítrio, sujeita às circunstâncias, mutável de humor, racional, dona da sua
capacidade, rica de virtudes, adivinhadora, multiplicando-se a partir de um único ramo
(Ib., 22).

Esta última determinação exprime a convicção de Tertuliano de que a alma se transmite,


em conjunto com o corpo, de pai para filho através da geração (traducianisnio). No
resoluto materialismo de Tertuliano exprime-se, por um lado, a necessidade de dar ao
espírito a realidade mais sólida e concreta pelo outro a sua incapacidade para conceber
um'@ realidade estável e firme fora do corpo. Contudo, isso permite-lhe afirmar com
extrema energia a unidade indissolúvel do homem. "Se a morte não é mais que a separação
entre o corpo e a alma, aquilo que é

144

contrário à morte, a vida, não será outra coisa senão a união da alma e do corpo. Estão
fundidos pela vida os elementos que são desintegrados na morte" (1b., 27). Por isso,
Tertuliano defende a realidade do corpo de Cristo contra aqueles que o reduziam a uma
pura aparência (docetismo). No De carne Christi detém-se, com aquela complacência no
repugnante e no abjecto que lhe é tão característica, nos mais grosseiros detalhes da
geração e do nascimento, para defender a total e plena humanidade do homem. "Cristo, diz
ele (De carne Christi, 4), amou o homem tal como é. Se Cristo é o criador, amou
justamente o que era seu; se vem de outro Deus, o seu amor é mais meritório porque se
redimiu a um estranho. Era, pois, lógico que amasse também o seu nascimento, a sua
carne; é impossível amar um objecto qualquer sem amar o que é uno com ele. Acaba com o
nascimento e faz-me ver um só homem que seja; suprime a carne e diz-me que coisa pôde
Deus remir, se de um e da outra resultou a humanidade que Deus redimiu". A realidade e o
valor da carne justificam a ressurreição de Cristo. E a este respeito encontramos palavras
paradoxais que exprimem aquela exasperada tensão entre a certeza da fé e a verdade do
intelecto que se expressou na fórmula (que não se encontra em Tertuliano): credo quia
absurdum. "0 Filho de Deus foi crucificado; não é vergonhoso porque poderia sê -lo. O
Filho de Deus morreu: é crível porque é inconcebível. Sepultado, ressuscitou: é certo
porque é impossível" (De carne

Chr., 5). Aqui a fé tem tanta maior certeza quanto mais repugna às avaliações naturais do
homem.

A ressurreição de Cristo é a garantia da ressurreição do homem. Tertuliano deduz as


provas da imortalidade da alma dos testemunhos do senso comum, da necessidade
implícita em todos de viver de qualquer modo para lá do túmulo, necessidade que se funda
numa instintiva certeza do futuro (De

145

testim. an., 6). Mas à imortalidade da alma andará unida a ressurreição da carne. O
homem deverá ressurgir na sua natureza inteira e esta não seria tal sem a carne (De ressur.
carnis, 56-57).

Na sua doutrina do Logos, Tertuliano liga-se expressamente aos Estoicos: "Deus criou todo
o mundo com a palavra, com a sabedoria e com a potência. Também os vossos sábios
chamam Logos, isto é, palavra e sabedoria, ao artífice do universo. Zenão chama-lhe o
autor da ordem que dispôs todas as coisas; Cleanto redu-lo a um espírito e afirma que
penetra o universo. E nós à Palavra, à Sabedoria e à Potência pela qual Deus criou todas as
coisas, atribuímos-lhe, como substância própria, o Espírito, no qual existe a Palavra para
mandar, a Razão para dispor e a Potência para efectuar" (Apol., 21). Tertuliano admite,
contudo, a subordinação do Filho e do Espírito Santo ao Pai. O ser pertence
principalmente ao Pai, do qual se comunica ao Filho e, através do Filho, ao Espírito Santo.
Tudo aquilo que o Filho é vem-lhe da substância do Pai; toda a sua vontade, todo o seu
poder lhe vem do Pai (Adv. Praexan., 3-4).
O Logos tem um duplo nascimento, o imanente e o emanewe; pelo primeiro, é gerado na
sensibilidade de Deus; pelo segundo afasta-se do Pai e procede à criação do mundo (1b., 7).

§ 141. APOLOGETAS LATINOS

Contemporâneo de Tertuliano foi Minúcio Félix, autor de um diálogo intitulado Octavius,


que é uma das primeiras apologias do cristianismo. Pouco sabemos do autor, que se
intitula advogado (causidicus) em Roma. No diálogo, faz de árbitro na disputa entre o
cristão Octávio Gennaro e o pagão Cecilio Natale que, no final, se declara vencido. A
apologia

146

de Minúcio Félix é, no seu espírito, uma obra mais próxima dos escritores gregos do que de
Tertuliano.
O cristianismo é apresentado como monoteísmo e caracterizado acima de tudo através da
sua moral prática. Não se fala dos mistérios da fé nem da Sagrada Escritura. A
concordância de todos os filósofos sobre a unicidade de Deus faz concluir que "ou os
cristãos são os filósofos de agora ou os filósofos de então eram cristãos" (Oct., 20).
Todavia, a obra apresenta no seu conteúdo uma grande afinidade com o Apologeticum de
Tertuliano. Não é fácil elucidar a prioridade de uma ou de outra obra. Como quer que seja,
as teses que, em Tertuliano, têm uma forma violenta e extrema, tomam em Minúcio Félix
uma forma atenuada e cortês, que as torna mais aptas para influir persuasivamente sobre
os pagãos cultos a quem a obra se dirige. À posição céptica de Cecílio, o interlocutor pagão
que, reconhecendo a impossibilidade da mente humana para olhar os mistérios divinos,
julga que nos devemos contentar com as crenças dos nossos pais, Octávio contrapõe a
evidência pela qual o Deus único se manifesta na sua obra: o céu e a terra. Como quem
entra numa casa e, ao vê-Ia bem ordenada e disposta, atribui esta ordem ao dono, do
mesmo modo quem considera a ordem, a providência e a lei que regem o céu e a terra,
deve crer num senhor do mundo que o move, o alimenta e o governo (1h., 18). Como
Tertuliano, Minúcio recorre ao testemunho da alma simples e reconhece nela "a palavra
espontânea da multidão". A crença cristã num Deus único confirmada juntamente pela
demonstração dos filósofos e pelo sentido comum da maioria, e contraposta por Minúcio
ao politeísmo pagão, tal como a moral cristã se opõe à moral pagã, degenerada e corrupta.

Nos escritos prático-ascéticos de Tertuliano se inspirou frequentemente Tascio Cecilio


Cipriano (morto em 258), em tratados e cartas que tratam

147

apenas questões referentes à disciplina eclesiástica e não têm, por conseguinte, interesse
filosófico. Em contrapartida, tem conteúdo filosófico a apologia de Arnóbio intitulada
Adversus nationes, composta no tempo da perseguição de Diocleciano (303-305) ou pouco
depois. Arnóbio era professor de retórica em Sicca, na África romana. Uma visão
convenceu-o a converter-se e para vencer a desconfiança do bispo, que devia acolhê -lo na
comunidade cristã, publicou esse escrito contra o paganismo. Tal é, ao menos, o relato de
S. Jerónimo (De vir. ÚI., 79). Pelo seu conceito pessimista da condição do homem, Arnóbio
foi comparado a Pascal. Tudo no homem lhe parece baixo, repugnante e ignóbil. A sua
própria existência é inútil para a economia do mundo, que permaneceria imutável se o
homem não existisse (11, 37). A convivência humana não chega nunca a ser justa e
duradoira; a história é um suceder de violências e de crimes (11, 38) que se repetem
eternamente da mesma maneira (1, 5). Posto isto, parece a Arnóbio "um crime de
impiedade sacrílega" admitir que haja sido criada por Deus, autor da ordem e da perfeição
do mundo, "esta coisa infeliz e mísera, que se dói de ser, que detesta e chora a sua condição
e não entende ter sido criada por outrem senão para difundir o mal e perpetuar a sua
miséria" (11, 46). Portanto, o homem deve -ter sido criado por uma divindade inferior em
dignidade e potência, e em muitos graus, ao sumo Deus, ainda que pertencente à sua
família (11, 36). Arnóbio admite assim divindades inferiores, subordinadas ao Deus
supremo. Nem sequer exclui a existência das divindades pagãs: se existem, serão também
divindades de ordem inferior subordinadas ao Deus dos cristãos (1, 28; 111, 2-3; VII, 35).

A alma humana não tem, pois, o carácter divino que os Platónicos lhe tinham atribuído.
Arnóbio combate expressamente a doutrina platónica da

148

reminiscência. Um homem que tivesse estado desde o seu nascimento em completa solidão
teria o espírito vazio e não chegaria de modo algum a ter conhecimento das coisas
ultraterrenas. A sensação é a origem única de todo o conhecimento humano (11, 20). Uma
só ideia é inata no homem, a ideia de Deus, o único criador e senhor de tudo (1, 33); com
ela se revela também a certeza da existência de Deus, da sua bondade e da sua perfeição.
Ainda devido à sua natureza inferior, a alma não é naturalmente imortal. Ela não é puro
espírito nem puro corpo, mas de uma qualidade intermédia e de natureza incerta e
ambígua (11, 14). Só Deus pode subtraí-Ia à morte e conferir-lhe a imortalidade; ele
confere a imortalidade àqueles homens que o reconhecem e servem, enquanto os demais
serão por ele condenados à verdadeira morte e consumidos até ao aniquilamento pelo fogo
do inferno (11, 14). Erram pois os Epicuristas ao afirmar incondicionalmente a morte da
alma (11, 30) e também Platão ao afirmar a sua imortalidade incondicionada (11, 4)0. O
destino da alma é um resultado da sua conduta.

Discípulo de Arnóbio, segundo parece, foi Lúcio Célio - Firmiano Lactâncio que também
havia ensinado retórica em África e desenvolvera já uma certa actividade literária quando
se converteu ao cristianismo. Chamado por Diocleciano para ensinar retórica latina em
Nicomédia, a nova capital do Império, conheceu a vida errante e pobre quando, no ano de
305, foi obrigado pela perseguição a deixar o seu ofício. Mas alguns anos depois assistia à
mudança radical da política do Império, relativamente ao cristianismo, por obra de
Constantino e compunha o De mortibus persecutorum, no qual, com amargo espírito de
vingança, se compraz com a ruína em que caíram os perseguidores dos cristãos. Na sua
velhice foi, na Galiá, perceptor de Crispo, filho de Constantino. A sua obra mais
importante, os 7 livros

149

das Divinae institutiones são, ao mesmo tempo, a apologia do cristianismo contra os seus
inimigos e um manual de toda a doutrina cristã. Um compêndio desta obra é o Epitome
divinarum institutionum.
O tratado De opificio Dei tem como fim demonstrar contra os Epicuristas que o organismo
humano é uma criação de Deus; e o tratado De ira Dei, contra a indiferença atribuída pelos
Epicuristas à divindade, pretende demonstrar a necessidade da ira divina. A obra principal
de Lactâncio é a primeira tentativa, realizada no ocidente, para reduzir a sistema a
doutrina cristã expondo-a de modo orgânico e completo. Pela forma literariamente
apreciável desta exposição, Lactâncio foi chamado pelos humanistas o Cicero cristão; mas
a sua obra apresenta escassa originalidade de pensamento. Que existe uma providência
que rege o mundo é evidente, segundo Lactâncio, a quem quer que erga os olhos ao céu. Só
pode haver dúvidas sobre a quem pertence tal providência, se a um único Deus ou a várias
divindades; a alternativa é, pois, entre monoteísmo e politeísmo. Mas admitir mais
divindades significa aceitar que Deus não tinha poder suficiente para reger por si só o
mundo, com o que se nega a Deus uma potência infinita e se elimina o próprio conceito de
Deus. Divindades diversas poderiam estabelecer no mundo leis antagónicas que lutassem
entre si, o que está excluído pela unidade e a ordem do mundo. Além disso, como no corpo
humano os diferentes membros e os diversos aspectos da vida espiritual são dirigidos por
uma única alma, assim o mundo deve ser regido por uma única mente divina (Instit. div.,
1, 2). A doutrina cristã do Logos não divide nem multiplica o único Deus. O Pai e o Filho
não estão separados um do outro, pois nem o Pai pode ser dito tal sem o Filho, nem o Filho
pode ser gerado sem o Pai. Constituem entre ambos uma única razão, um único espírito,
uma única substância. Mas o Pai é como a fonte

150

transbordante, o Filho é a torrente que emana da fonte; o Pai é como o sol, o Filho é o raio
irradiado pelo sol; como a torrente não pode separar-se da fonte e o raio não pode separar-
se do sol, também o Filho não pode separar-se- do Pai. Como uma casa que pertença a um
dono que ame o seu único filho

e o reconheça igual a si, não cessa com isto de ser juridicamente uma só casa com um só
dono, assim o mundo é a casa de Deus e o Pai e o Filho que a habitam são um único Deus
(1b., IV, 29). O Filho foi gerado antes da criação do mundo para ser o conselheiro de Deus
na concepção e na realização do plano da criação (Ibid., 11, 10). E o mundo não foi criado
por Deus para si próprio, pois não tem necessidade dele, mas para o homem; Deus criou,
em contrapartida, o homem para si, para que o reconhecesse e lhe prestasse o devido culto,
compreendendo e medindo a perfeição da obra que tem diante de si (Ib., VII, 5). Deus
também não teve necessidade, na criação, de uma matéria pré-existente: o homem tem
necessidade da matéria para todas as suas obras, mas Deus cria a própria matéria (1b., 11,
9). O homen-i é composto de alma e corpo. A alma não tem nenhum peso terreno: é tão
ténue e subtil que escapa até aos olhos da mente (1b., VII,
12-13). Alma e mente não são idênticos; a alma é o princípio da vida e não entorpece no
sonho nem se extingue na loucura; a mente é o princípio do pensamento, aumenta ou
diminui com a idade, perde-se no sonho e na loucura (1b., VII, 12). A alma e o corpo estão
ligados entre si e contudo são opostos: aquilo que é bem para a alma como a renúncia à
riqueza, aos prazeres, o desprezo pela dor e pela morte é um mal para o corpo; aquilo que é
um bem para o corpo é um mal para a alma que se relaxa e extingue com os prazeres e com
o desejo da riqueza (1b., VII, 15). O homem é formado por princípios diferentes e
contrários, como o mundo é formado

151

por luz e trevas, vida e morte. Estes princípios combatem dentro dele e se nesta luta a alma
vence será imortal e admitida à luz eterna; se vence o corpo, a alma estará sujeita às trevas
e à morte (1b., 11, 13). Mas a imortalidade não é só o termo e o prémio da virtude: é
condição da própria virtude. Seria estulto renunciar àqueles prazeres aos quais o homem é
naturalmente inclinado e entrar num caminho que é hostil e mortificante para a natureza
humana, se a imortalidade não existisse para dar um sentido à obra contra a natureza da
virtude (lb., VII, 9).

Reaparece aqui como pressuposto da vida moral o pessimismo de Amóbio sobre a


condição do homem. A natureza humana é radical e totalmente contrária à vida moral e
religiosa. Nada existe nela que a resgate e a atraia para o espírito; pelo contrário, o espírito
a dana, pois o seu único bem é o prazer, o único mal a dor. Mas este pessimismo é usado
por Lactâncio como fundamento da vida moral e religiosa. Se a natureza humana não fosse
fundamentalmente perversa, a própria virtude seria impossível. Os Estoicos que negam o
vício no homem retiram do mesmo modo a própria virtude, pois que coisa seria a
mansidão se não existisse a ira, e a continência se não existisse desejo sexual? A virtude,
com termo médio, supõe os extremos viciosos (lb., VI, 15). Pela virtude, a alma,
desligando-se da sua natureza e da sua ligação corpórea, tende para aquela imortalidade
que lhe será dada como prémio, Mas isto significa que o sumo bem do homem só e
alcançável na religião (1b., 111, 10), não em toda a religião mas só naquela com a qual está
essencialmente ligada a esperança na imortalidade: a cristã (lb., 111 12). Tudo está para o
homem no reconhecimento e no culto de Deus: esta é a sua esperança e

a sua salvação, este é também o sumo grau da sabedoria (Ib., VI, 9). Mas este grau mais
alto da sabedoria não é a filosofia. A filosofia procura a

152

sabedoria, mas não é a própria sabedoria (1b., 111, 2). Ela não atinge o conhecimento das
causas, como ensinam com razão Sócrates e os Académicos. A disparidade das escolas
filosóficas torna impossível orientar-se alguém nas suas opiniões se se não possui
antecipadamente a verdade. Só a revelação pode, pois, dar a verdade. E a dialéctica é inútil
(1b., 111, 13).

NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 133. São fundamentais para o estudo da Patristica as seguintes obras: MIGNE,


Patrologiae cursus completus, série L, "Ecelesia graeea>, 162 volumes (com tradução
latina) que chega até ao século xv, Paris, 1857-66; série 2.1 "Eeclesia latina", 221 vols. até
ao princípio do século MU, Paris, 1844-64. Corpus scriptorum ecelesiasticorum latinorum,
a cargo da Academia de Viena, Viena, 1866, ss.; Monumenta Germaniae historica. Auctores
antiquissimi, 13 vols. Berlim, 1877-98; Escritores gregos cristãos dos priineiros trêo
sécu7,os, Academia de Berlim, 31 vols. a partir de 1897; S.S. Patruum opuscula selecta,
editados por HuRTER, 43 vols. 1868-85; outra série: 6 vo,18-,
1884-92. Sobre a Patrística em geral: STÜCKL, GCSchichte der christliche Philosophie zur
Zeit der Kirchen-Vãter, Mogúncia, 1891. Bibliografia in UEBERWEGGEYER, Die
Patristiche und scholastische philosophie, Berlim,
1928, p. 640 e ss.

§ 134. Sobre os apologistas em geraJ: HARNACK, Der Vorwurf des Atheismus in den
ersten drei Jahrunderten, 1905; ZÜCKLER, Geschichte der Apologie des Christentums,
1907; CORBIÈRE, Le christianisme et Ia fin de Ia philosophie antique, Paris, 1921;
CARRINGSTON, Christian Apologetes of the 2nd Century in their Relation to Modern
Thought, Londres, 1921*, M. PELLEGRINO, Gli Apologeti greci del II secolo, Roma, 1947.

§ 135. As obras de Justino em Patr. Graec., vol. 6.1; Apologia, edição Pautigny, Paris, 1904;
edição Rauschen, Bonn, 1911; edição Pfattisch, Münster,
1912. Sobre Justino: LAGRANCE, Saint Justin, Paris
1914; MARTINDALE, St. Justin, Londres, 1921; RIVIÈRE, st. Justin et les apologistes du
Ile. siècle, Paris, 1907;

153
GOODENOUGH, The Theology of Justin Martyr, Iena,
1923.

§ 136. As obras dos padres apologetas estão impressas no Corpus apologetarum


christianorum saeculi II, edição d3 OTTO, 9 vols., Iena, 1847-72; nova edição dos
primeiros 5 vols., 1876-81.

O escrito de Hermias, Jn DIELs, Doxographi.graeci, Berlim, 1879, pp. 649-656.

§ 137. Os fragmentos dos gnósticos estão recolhidos (de mo-do incompleto) na colectânea
de W. VOLKER, Quellen zur Geschichte der christlischen Gnosis (SammIung ausgewãhlter
kirchen-und dogmengesch. Quellenschriften) hrgg. v. g. G. KRUGER NF 5), Tübingen,
1932; uma selecção de textos traduzidos em italiano é a de E. BUONAIUTI, Frammenti
gnostici, Roma, 1923. Tratados gnõsticos conservados em língua copta publicados (em
tradução alemã) por C. SCHMIDT, Koptisch-gnostiche Schriften, Berlim,
1905 (com actualização de W. TILL), 1954; W. TILL, Die gnostische Schriften des
koptischen Papyrus Berolinensis 8502 ("Texte und Untersuchungen", LX), Berlim, 1955.
Em 1946 foram descobertos no Alto Egipto 11 vols. contendo 48 escritos de inspiração
gnóstica. Sobre eles: 11. CH. PuECH, Les nouveaux écrits gnostiques découverts en Ilaute-
Egypte, in "Coptie Studies in Honour of Walter Ewing Crum", (Mass.), 1950, p. 91-154.
Desta bibliografia gnóstica foram publicados até agora: o valentiniano Evangelium
veritatis, edição de M. MALILINE-H. Cil. PUECII-G. QUISPEL, Zürich, 1956; O Evangelho
segundo Tomás, trad. francesa, Paris, 1959; trad. alemã e Inglesa, Leide, 1959.

Sobre a gnose: W. BOUSSET, Hauptprobleme der Gnosis, Gottingen, 1907; A. V.


HARNACK, Marcion. Das Evangelium vom fremden Gott, Leipzig, 1924; E. DE FAYE,
Gnostiques et gnosticisme, Paris, 1925; F. C. BURKITT, Church and Gnosis, Cambridge,
1932. S. PÉTREMENT, Essai sur le dualisme chez Platon, les gnostiques et les manichéens,
Paris, 1947; G. QUISPEL, Gnosis aIs Weltreligion, Zurich, 1951; H. JONAS, Gnosis
und spãtantiker Geist, Gottingen,
1954; H. CH. PUECII, Gnostische Evangelien und verwandte Dokumente, in E.
H.ENNECKE~W. SCHNEEMÉLCHER, NeutestamentUsche Apokryphen, I, Tubingen,
1959 (fundamental). Sobre o maniqueísmo: H. CH.

154

PUEcH, Le manichéisme. Son fondateur, sa doetrine, Paris, s. d. (ma-9 1949).

§ 138. As obras de IRINEU, in Patr. Graec., vol. 7.o; Adversus haereses, edição Harvey,
Cambridge, 1857; edição Stieren, Londres, 1848-53. Sobre Irineu: HITCHCOCK, Irenaeus
of Lugdunum, Cambridge, 1914; BON=SCH, Die Theologie des Irenaeus, Güterslok, 1925.

As obras de Hipólito, in Patr. Graec., vol., 10.1. Há também edição berlinense em 3 vols.,
1897-1916. Sobre Hipólito: A. DIALÉs, La théologie de St. Hyppolite, Paris, 1906.

§ 139. As obras de TERTULIANO, em P. L.@ 1.---2.o e no Corpus de Viena@ 20.o 47.o;


edição de OEHLER@
3 voIs. Leipzig, 1851-54; edição menor, Leipzig, 1854. Sobre Tertuliano: MONCEAUX,
Hist. litt. de l'Afrique chrétienne, vol. 1, Paris, 1901; BUONAIUTI, 11 cristianesimo'
nell'Africa romana, Bari, 1928, p. 37-208; LORTZ, Tertullian aIs apologets, 2 vols.,
Münster,
1927-28.
§ 141. A obra de MINucio FÉLIX, in P. L.,
3.1 edição, Teubner, Leipzig, 1912. Sobre W11núcio. BARDENHEwER, Gesch. der altkirch.
Litter., 1, Friburgo, 1913, p. 337 ss; BU0NAlUTI, ob. cit., p. 217 ss.

A obra de ARNõBIO, in P. L., 3.1 e no Corpus de Viena, 4.1. Sobre Arnóbio: MONcEAux,
Hist. Litt. de PAfrique chrétienne, võl. III, p. 275 ss; BUONAIUTI, ob. cit., p. 278 ss.

As obras de LACTÂNCIO, in P. L., 6.---7.g e no Corpus de Viena, 19.o, 27.o. Sobre


Lactâncio: PICHON, Lactance, Paris, 1901; BU0NAlUTI, ob. cit., pp. 285 ss.

155

HI

A FILOSOFIA PATRISTICA NOS SÉCULOS III E IV

§ 142. CARACTERISTICAS DO PERIODO


´
A elaboração doutrinal do cristianismo, iniciada pelos apologetas para defender a
comunidade eclesiástica contra os perseguidores e heréticos, foi continuada e aprofundada
nos séculos seguintes por uma necessidade interna, que se afirma cada vez mais dominante
no próprio campo da Igreja. Nesta elaboração seguinte dominam menos os motivos
polémicos e mais a exigência de constituir a doutrina eclesiástica num organismo único e
coerente, fundado numa sólida base lógica. A parte da filosofia torna-se, por isso, cada vez
maior. A continuidade que os apologetas orientais, a começar em Justino, tinham
estabelecido entre o cristianismo e a filosofia pagã consolida-se e aprofunda-se. O
cristianismo apresenta-se como a autêntica filosofia que absorve e leva à verdade o saber
antigo, do qual pode e deve @servir-se para trazer elementos e motivos para a sua própria
justificação. As doutrinas

157

fundamentais do cristianismo encontram, mediante este trabalho, a sua sistematização


definitiva. O período que vai de 200 a cerca de 450 é decisivo para a construção de todo o
edifício doutrinal do cristianismo. As esperanças escatológicas das numerosas seitas
cristãs, que tinham dominado no período precedente, vingam menos. Se, frente ao
iminente regresso de Cristo, o trabalho longo e paciente da investigação doutrinal parecia
quase inútil e os ritos preparatórios e propiciatórios ocupavam o primeiro lugar, uma vez
esmorecida a esperança deste retorno, a investigação doutrinal torna-se a primeira e
fundamental exigência da Igreja, que é a que deve garantir a sua unidade o a sua solidez na
história.

O primeiro impulso para tal investigação foi dado pela escola catequística de Alexandria,
que existia já há muito tempo quando, em 180, se tornou seu chefe Panteno, que lhe deu as
características de uma academia cristã , na qual toda a sabedoria grega era utilizada para
os fins apologéticos do cristianismo. A escola alcançou o seu máximo esplendor com
Clemente e Orígenes; mas quando, em 233, Orígenes procurou na Palestina uma nova
pátria e abriu em Cesareia a sua escola, esta suplantou a outra e tornou-se a sede de uma
grande biblioteca que foi a mais rica de toda a antiguidade cristã.

§ 143. CLEMENTE DE ALEXANDRIA


Tito Flávio Clemente nasceu cerca de 150, provavelmente em Atenas. Convertido ao
cristianismo viajou pela Itália, a Síria, a Palestina e, finalmente, o Egipto. Em Alexandria,
pouco antes de 180, torna-se discípulo de Panteno e, seguidamente, padre daquela Igreja.
Cerca de 190 foi colaborador e

158

ajudante no ensino de Panteno e, depois da morte deste (cerca de 200), tornou-se chefe da
escola catequística. Em 202 ou 203, foi obrigado a deixar Alexandria devido à perseguição
de Sétimo Severo; cerca de 211 estava na Ásia Menor junto do seu discípulo Alexandre, que
foi depois bispo de Jerusalém. Numa carta de Alexandre a Orígenes, de
215 ou 216, fala-se de Clemente como de um padre já falecido (Eusébio, Hist. ecc1., VII, 14,
8-9).

Os três escritos de Clemente que nos restam, Protréptico aos gregos, Pedagogo e Stromata
foram concebidos por ele como três partes de um plano único, de uma progressiva
introdução ao cristianismo. O Protréptico, ou exortação aos gregos, aproxima-se muito,
pelo conteúdo e a forma, da literatura apologética do século H. O Pedagogo, em três livros,
procura educar na vida cristã o leitor que já se afastou do paganismo. Os Stromata ou
Tapetes, isto é, "tecidos de comentários científicos sobre a filosofia" deviam ter como
finalidade expor cientificamente a verdade da revelação cristã. Perdeu-se a sua obra
intitulada Hipotiposis (esquemas ou esboços) e chegou até nós uma liomilia com o título
Qual o rico que se salvará?

O primeiro fim de Clemente é o de elaborar o próprio conceito de uma gnose cr,,'stã. Não
há dúvida de que o conhecimento é o limite mais alto que o homem pode alcançar. Ele é a
realização (teleiosis) do homem; é a só lida e segura demonstração daquilo que foi aceite
pela fé e, frente a

ele, a fé é apenas o conhecimento abreviado e sumário das verdades indispensáveis


(Stromata, VII,
10). Mas, por outro lado, a fé é condição do conhecimento. Entre a fé e o conhecimento
existe a

mesma relação que os Estoicos estabeleciam entre os prolepsi, isto é, o conhecimento


preliminar dos primeiros princípios, e a ciência; como a ciência pressupõe a "prolepsi"
assim a gnose pressupõe a

159

fé. A fé é tão necessária ao conhecimento como os quatro elementos são necessários à vida
do corpo (1b., 11, 6). Fé e conhecimento não podem subsistir um sem o outro (1b., 11, 4).
Mas para chegar da fé ao conhecimento é necessária a filosofia. A filosofia teve para os
gregos o mesmo valor que a lei do Velho Testamento para os hebreus: conduziu-os a
Cristo. Clemente admite, corno Justino, que, em todos os homens, mas especialmente
naqueles que se dedicaram à especulação racional, está presente um "eflúvio divino", uma
"centelha do Logos divino" que lhes faz descobrir uma parte da verdade, ainda que não os
torne capazes de alcançar toda a verdade que só é revelada por Cristo (Prop.,
6, 10; 7, 6). Por certo, os filósofos misturaram o verdadeiro e o falso; trata-se agora de
escolher entre as suas doutrinas aquilo que é verdadeiro, abandonando o falso, e a fé
fornece o critério desta escolha (Stromata, 11, 4). A filosofia deve ser neste sentido a serva
da fé como Agar de Sara (1b.,
1. 5). Nesta subordinação da filosofia à fé reside o carácter da gnose cristã. A gnose dos
Gnósticos é a falsa gnose porque estabelece entre a filosofia e a fé a relação inversa: se ao
gnóstico fosse dado escolher entre a gnose e a salvação eterna, ele escolheria a gnose
porque a julga superior a todas as coisas (1b., IV, 22).

Este conceito da gnose influi poderosamente sobre as doutrinas teológicas de Clemente. O


cristianismo é a educação progressiva do género humano e Cristo é essencialmente o
Mestre, o Pedagogo. Tal interpretação torna-se predominante na Igreja à medida que
diminuem as esperanças no imediato regresso de Cristo e, portanto, na iminente
destruição e regeneração do mundo. Ao conceito de uma regeneração instantânea
substitui-se o da regeneração gradual que deve verificar-se através da história com a
assimilação e a compreensão pro-

160

gressiva dos ensinamentos de Cristo. Esta interpretação, já clara em Clemente, dominará


toda a obra de Orígenes.

Frente a Deus, que é inatingível porque supera toda a palavra e todo o pensamento e de
quem podemos saber aquilo que não é mais do que aquilo que é, o Logos é a sabedoria, a
ciência, a verdade, e, como tal, o guia de toda a humanidade (Ped., 1, 7). O Logos é o alfa e
o omega porque tudo se move por ele e tudo regressa a ele (Strom., IV, 25). A própria acção
do Espírito Santo está subordinada ao Logos porque o Espírito é a luz da verdade, luz da
qual participam, sem multiplicá-la, todos aqueles que têm fé (1b., IV, 16). Como supremo
mestre, o Logos é também o guia e a norma da conduta humana. A máxima estoica de viver
segundo a razão assume em Clemente o significado de viver segundo o ensinamento do
Filho de Deus (lb., VII, 16). Mas obedecer ao Logos significa amá-lo; a obediência e o amor
estão condicionados pelo conhecimento. À fé é dado o

conhecimento, ao conhecimento o amor, ao amor o prémio celeste (1b., VII, ]0).

§ 144. ORÍGENES: VIDA E ESCRITOS

Orígenes nasceu de pais cristãos em 185 ou 186, provavelmente em Alexandria. O pai,


Leónidas, morreu mártir na perseguição de Sétimo Severo, em 202 ou 203, e o filho, que
queria partilhar a sorte do pai, foi salvo pela mãe (Eusébio, Hist. ecc1., VI, 2-5). Com 18
anos, em 203, foi colocado por Demétrio, bispo de Alexandria, à frente da escola
catequística como sucessor de Clemente que se tinha afastado. Desta data até 215 ou 216
desenvolveu uma actividade ininterrupta; e, através do estudo dos filósofos gregos e dos
textos sagra-

161

dos, conseguiu formular as bases do seu sistema. Neste período, o seu zelo religioso levou-
o a castrar-se. Tomara por certo à letra a palavra evangélica (Mateus, 19, 12) que louva
aqueles que se fazem eunucos por amor do reino dos céus. Mas, provavelmente, como
observa ainda Eusébio (IV,
23, 1), queria tirar todo o pretexto à malignidade pública, dado que a sua escola era
também frequentada por mulheres. Em 215 ou 216 os massacres praticados por Caracala
em Alexandria obrigaram Orígenes a fugir para a Palestina onde os bispos Alexandre de
Jerusalém e Teoctisto de Cesareia o acolheram com honra e o fizeram pregar nas suas i,-
rejas. Demétrio não aprovou esta pregação de um laico e impôs a Orígenes o regresso a
Alexandria. Aqui retomou a sua actividade de mestre e de escritor que era intensíssima:
um discípulo, Ambrósio, pusera à sua disposição sete estenógrafos e vários copistas (Eus.,
IV, 23, 2). Ordenado padre durante uma viagem, caiu em desgraça do bispo Demétrio e foi
expulso de Alexandria. Demorou-se então em Cesareia onde fundou uma escola teológica
que, em breve, se tornou florescentíssima e onde permaneceu até à morte. Morreu mártir
durante a perseguição de Décio. Orígenes suportou a tortura na prisão e pouco depois
morreu em Tiro, com 69 anos, e portanto em 254 ou 255. Um seu discípulo, Gregório o
Taumaturgo, fornece interessantes pormenores acerca do seu ensino em Cesareia
(Panegiricum in Orig.,
7-15). O princípio e base do ensino de Orígenes era o estudo da dialéctica. Seguia-se o
estudo das ciências naturais, das matemáticas, da geometria, da astronomia; a geometria
era considerada como o modelo de todas as outras ciências. Seguidamente, estudava-se a
ética que tinha por objecto as quatro virtudes cardiais de Platão e a Caridade cristã. A
filosofia grega tinha um posto eminente neste

162

curso de estudos e o seu ponto culminante era representado pela teologia.

A produção literária de Orígenes foi vastíssima: atribui-se-lhe um número de obras que vai
de
6000 (segundo Epifânio, Haer., 64, 63) a 800 (segundo S. Jerónimo, Epist., 33). Mas o
édito de Justiniano contra Orígenes (543) e a sentença do V Concílio Ecuménico (553) que
o incluía entre os heréticos provocaram a perda de boa parte da produção de Orígenes.
Chegaram-nos: uma obra apologética em oito livros Contra CeIsum, dirigida contra o
neoplatónico> Celso que, em 178, escrevera um Discurso verdadeiro de refutação do
cristianismo; um tratado dogmático De principiis que nos chegou apenas numa tradução
latina refundida por Rufino, o qual se preocupou em atenuar ou eliminar as afirmações que
contrastavam com as decisões do Concílio de Niceia; partes ou fragmentos dos seus
vastíssimos comentários bíblicos; dois escritos Sobre a oração e Exortação ao martírio,-
duas cartas e fragmentos de outras obras. As obras exegéticas que, indubitavelmente,
constituíam a sua mais vasta produção, eram de três espécies: scolli, isto é, notas sobre
passos difíceis da Bíblia; homilias, isto é, discursos sagrados sobre capítulos da Bíblia;
comentários ou tomos que eram análises minuciosas de livros inteiros da Bíblia. De todos
estes escrites, as partes mais notáveis que nos restam sã o o Comentário ao Evangelho de
S. Mateus, do qual ternos os livros X-XVII, o Comentário ao Evangelho de S. João, do qual
temos 9 livros não consecutivos, e o da Epístola aos romanos, de que temos um arranjo de
Rufino em 10 livros.

§ 145. ORIGENES: FÉ E GNOSE

A doutrina de Orígenes, é o primeiro grande sistema de filosofia cristã. No prólogo de De


piin-

163

cipiis, ele próprio traça a finalidade que se propôs. "Os apóstolos, diz, transmitiram-nos
com a maior claridade tudo aquilo que julgaram necessário a todos os fiéis, mesmo aos ma-
is lentos no cultivo da ciência divina. Mas deixaram àqueles que são dotados dos dons
superiores do espírito e especialmente da palavra, da sabedoria e da ciência o cuidado de
procurar as razões das suas afirmações. Sobre muitos outros pontos, limitaram-se à
afirmação e não deram nenhuma explicação, para que aqueles seus sucessores que têm a
paixão da sabedoria possam exercitar o seu génio" (De prine. pref. 3). Orígenes distingue
aqui as doutrinas essenciais e as doutrinas acessórias do cristianismo. O cristão que
recebeu a graça da palavra e da ciência tem a obrigação de interpretar a primeira e de
explicar a segunda. A primeira função é indispensável a todos; a segunda é uma
investigação supletória, movida por um amor particular da sabedoria e que consiste no
simples exercício da razão. Orígenes empreendeu uma e outra investigação. O seu trabalho
exegético dos textos bíblicos tende a fazer luz sobre o significado oculto e, portanto,
procura a justificação profunda das verdades reveladas. Ele distingue um tríplice
significado das Escrituras o somático, o psíquico e o espiritual, que estão entre si como as
três partes da alma: o corpo, a alma e o espírito (De princi., IV, 11). Mas, na prática,
contrapõe ao significado corpóreo ou literal o significado espiritual ou alegórico e sacrifica
resolutamente o primeiro ao segundo sempre que o considera necessário (1b., IV, 12).

A passagem do significado literal ao significado alegórico das Sagradas Escrituras é a


passagem da fé ao conhecimento. Orígenes acentua a diferença entre uma e outra e afirma
a superioridade do conhecimento que compreende em si a fé (In Joan., XIX, 3).
Aprofundando-se em si própria, a fé

164

torna-se conhecimento: este processo verificou-se nos próprios Apóstolos que,


primeiramente, atingiram pela fé os elementos do conhecimento, depois progrediram no
conhecimento e tornaram-se capazes de conhecer o Pai (In Mat., XII, 18). A própria fé, por
uma exigência intrínseca, procura, pois, as suas razões e torna-se conhecimento. Veremos
de seguida que a redenção do homem, o seu ,retorno gradual à vida espiritual, de que
gozava no mundo inteligível no acto de criação, é entendido por Orígenes como a sua
educação para o conhecimento. Ora frente ao mais alto grau do conhecimento, o
ensinamento das Escrituras é insuficiente. As Escrituras são apenas elementos mífflmos do
conhecimento completo e constituem a sua introdução (In Joan., XIII, 5-6). Acima do
Evangelho histórico e como complemento das verdades nele reveladas, existe um
evangelho eterno que vale em todas as épocas do mundo e só a poucos é dado conhecer (De
princ., IV, 1 ss; In Joan., 1, 7).

§ 146. ORIGENES: DEUS E O MUNDO

A primeira preocupação de Orígenes é a de afirmar contra os heréticos a espiritualidade de


Deus. Deus não é um corpo e não existe num corpo: a sua natureza é espiritual e
simplicíssima. O seu ser homogéneo, indivisível e absoluto não pode ser considerado nem
como o todo nem como uma parte do todo, porque o todo é feito de partes (Contra Cels., 1,
23). Para indicar a unidade de Deus, Orígenes serve-se do termo pitagórico mónada, ao
lado do qual emprega o termo neoplatónico de énada, que expressa ainda mais
nitidamente a singularidade absoluta de Deus (De princ., 1, 1, 6).

Deus é superior à própria substância, pois que não participa dela: a substância participa de
Deus,

165

mas Deus não participa de nada. Do Logos pode dizer-se que é o ser dos seres, a substância
das substâncias, a ideia das ideias; Deus está para lá de todas estas coisas (1b., VI, 64).
Orígenes rejeita decididamente os antropomorfismos do Velho Testamento, interpretando-
os alegóricamente. Dizer que Deus tem forma humana e é agitado por paixões como as
nossas é a maior das impiedades (1b., IV,
71). A omnipotência de Deus encontra um limite na sua perfeição. Deus pode fazer tudo
aquilo que não é contrário à sua natureza, mas não pode cometer a injustiça, porque o
poder ser injusto é contrário à sua divindade e à sua potência divina (1b., 111, 70). Deus é
vida, mas num significado diferente da vida no nosso mundo, ele é a vida absoluta, isto é,
na sua absoluta imutabilidade (In Joha., 1, 31). Deus é o bem no sentido platónico já que só
a ele pertence a bondade absoluta: o Logos é a imagem da bondade de Deus, mas não o
bem em si (In Math., XV, 10). A providência divina dirige-se, em primeiro lugar, à
educação dos homens. Retomando e ampliando o conceito de Clemente, Orígenes compara
a acção de Deus à de um pedagogo ou de um médico que pune ou inflige males e dores
para corrigir ou para curar (Contra Cels., VI, 56). Assim se explica a própria severidade
divina, da qual os livros do Velho Testamento dão tantos exemplos. "Se Deus fosse apenas
bom e não fosse severo, desprezaríamos a sua bondade; se fosse apenas severo sem ser
bom, os nossos pecados conduzir-nos-iam ao desespero" (In Jerem., IV, 4).

Frente à transcendência divina, afirmada em termos tão rigorosos, o Logos encontra-se


numa posição subordinada. Ele é certamente coeterno com o Pai, o qual não seria tal se
não gerasse o Filho, mas não é eterno no mesmo sentido. A eternidade do Filho depende
da vontade do Pai: Deus é a vida e o Filho recebe a vida do Pai. O Pai

166

é o Deus, o Filho é Deus (In Joan., 11, 1, 2).


O Espírito Santo é criado não directamente por Deus, mas através do Logos (lb., 11, 10).
Aquele é compreendido por Orígenes como uma força puramente religiosa que não tem no
mundo nenhuma tarefa própria.

Retomando a doutrina platónica do Fedro, não sem sofrer a influência dos gnósticos e
especialmente de Valentino, Orígenes explica a formação do mundo sensível com a queda
das substâncias intelectuais que habitavam o mundo inteligível. As inteligências
incorpóreas que constituem o mundo inteligível são criadas e como tal sujeitas a mudança;
são, além disso, providas de livre arbítrio. A sua queda explica-se pela preguiça e
repugnância para e esforço que a prática do bem exige. Deus estabelecera que o bem
dependesse exclusivamente da sua vontade e tinha-o por isso criado livre. Descuidando e
opondo-se ao bem, elas provocaram a sua

queda dado que a ausência do bem é o mal o na medida em que alguém se afasta do bem
cai no mal. Assim as inteligências foram conduzidas ao mal, segundo descuraram mais ou
menos o bem, conformemente ao movimento secreto de cada uma delas (De princ., 11, 9, 2;
fr. 23 a). Orígenes insiste na liberdade do acto que provocou a sua queda. A doutrina
gnóstica negara essa liberdade: Orígenes combate vivamente o gnosticismo (1b., 1, 8, 2-3).
o próprio demónio, - diz ele - não é mau por natureza, mas tornou-se pela sua vontade (In
Joan. XX, 28). A queda é devida a um acto livre de webelião contra Deus, no qual
participaram todos

os seres supra-sensíveis com excepção do Filho de Deus. A primeira consequência da


rebelião é que as inteligências se tornam almas, destinadas a revestir-se de um corpo, mais
ou menos luminoso ou mais ou menos tenebroso, segundo a gravidade da culpa originária,
o segundo grau da queda é

167

precisamente o revestimento do corpo. Surge então o mundo visível na variedade e na


multiplicidade dos seres que o constituem. E assim algumas inteligências tornam-se as
almas dos corpos celestes etéreos, luminosos e subtis. Outras tornam-se anjos, aos quais
Orígenes dá os nomes bíblicos de tronos, potestades, dominações etc., destinados a ser os
ministros de Deus junto dos homens. Outros ainda "descem até à carne e ao sangue" e
tornam-se homens. Finalmente os últimos tomam-se diabos.

O mundo visível não é mais, portanto, do que a queda e a degeneração do mundo


inteligível e das puras essências racionais que o habitam. Orígenes admite uma pluralidade
sucessiva de mundos; mas, corrigindo o Estoicismo, nega que estes mundos sejam a
repetição um do outro. A liberdade de que os homens estão dotados impede tal repetição
(Contra Cels., IV, 67-68). Todavia, depois de se sucederem um número indeterminado de
mundos, chega ao fim. O mundo visível voltará ao mundo invisível. Os seres racionais
terão expiado através da série das vidas sucessivas nos vários mundos o seu pecado inicial
e alcançarão a perfeição e a salvação finais. Poderão então ser restituídos à sua condição
primitiva e conhecer Deus (In Joan., 1,
16, 20).

Neste processo de queda do mundo inteligível no mundo sensível e de retorno do mundo


sensível ao mundo inteligível, o Logos tem uma parte essencial. Em primeiro lugar,
Orígenes atribui ao Logos a mesma função que lhe atribuíam os Estoicos: o Logos é a
ordem racional do mundo, a força que determina a sua unidade e o dirige. Precisamente
como tal, ele é distinto de Deus. Apenas o Pai é Deus em si (Autothéos); o Logos é a
imagem e o reflexo de Deus. Ele é diferente do Pai "pela essência e pelo substracto" e
deixaria de ser Deus se não contemplasse continuamente o Pai Ub., 1,

168

11, 2). Por esta sua natureza subordinada, o Logos recebeu do Pai a tarefa de penetrar a
obra da criação e de infundir-lhe ordem e beleza (Ib., VI, 38,
39). Mas, em segundo lugar, o Logos vive nos homens e todos participam dele (1b., 1, 3):
ainda que permanecendo idêntico a si mesmo, o Logos adapta-se aos homens e à sua
capacidade de atingi-lo (Co.,dra Cels., IV, 15); e reveste formas diversas, segundo aqueles
que conseguem conhecê-lo, isto é, segundo a sua disposição e a sua capacidade de
progresso Ub., IV, 16). O Logos é, portanto, a força imanente que diviniza o mundo e o
homem. Na mesma medida em que se aproxima do mundo e do homem para penetrá-los e
reconduzi-los à perfeição originária, assim se afasta do Pai.

Precisamente a função do Logos no homem exige e justifica a encarnação. Por ela o Logos
apropria-se de um corpo mortal e de uma alma humana. Nem uma nem a outra são algo
divino: divino é somente o Logos que permanece imutável na sua essência e não sofre nada
do que acontece no corpo e na alma de Cristo (Contra Cels., IV, 15). O elemento divino e o
elemento humano não permanecem, contudo, justapostos em Cristo depois da encarnação
(a que Orígenes chama economia para indicar o seu carácter providencial); a alma e o
corpo de Jesus constituem com o Logos uma unidade absoluta (lb., 11, 9).

§ 147. ORíGENES: O DESTINO DO HOMEM

O destino do homem faz parte integrante do movimento conjunto do mundo a que o


homem pertence. O homem era primeiramente uma substância racional, uma inteligência;
com a queda tornou-se uma alma. A alma é algo de intermédio entre a inteligência e os
corpos: a inteligência, corno

169

pura vida espiritual, é refractária ao mal; a alma, pelo contrário, é susceptível do bem e do
mal (Itz Joan., XXX11, 18). Como a queda do homem foi um acto de liberdade, assim será
um acto de liberdade a redenção e o retorno a Deus. Com efeito, a liberdade é o dote
fundamental da natureza humana que é capaz de agir em virtude de razão, portanto de
escolher. Como Clemente, Orígenes interpreta a acção da mensagem cristã como uma
acção educadora que conduz gradualmente o homem à vida espiritual. Esta é a função do
Logos encarnando-se em Cristo. "Jesus afasta a nossa inteligência de tudo aquilo que é
sensível e leva-a ao culto de Deus que reina sobre todas as coisas" (Contra Cels., 111, 34).
Nisto consiste a obra da redenção. Comentando o prólogo do IV Evangelho, Orígenes
interpreta a acção iluminadora do Logos, não como uma revelação súbita, mas como a
penetração progressiva da luz nos homens, como a chamada incessante do homem para
que queira livremente voltar a Deus (In Joan., 1, 25-26). O caminho para este retorno pode
ser longuíssimo. Se a existência num mundo não basta, o homem renascerá no mundo
seguinte e depois noutros ainda até que tenha expiado a sua culpa e tenha retornado à
perfeição primitiva. Precisamente a necessidade da educação progressiva do homem
justifica a pluralidade sucessiva dos mundos que Orígenes tomou do Estoicismo. Os
mundos são outras tantas escolas nas quais se reeducam os seres que caíram (De princ.,
111, 6, 3).

A educação do homem como retorno gradual à condição de substância inteligente opera-se


através de graus sucessivos de conhecimento. Do mundo sensível o homem eleva-se à
natureza inteligível que é a do Logos e do Logos a Deus. O Logos é, com efeito, a sabedoria
e a verdade e, só através dele, se pode discernir o ser e para lá do ser o poder

170

e a natureza do Deus (In Jomi., VIII, 19). Mas quando for possível este conhecimento
directo de Deus, quando Deus não for visto já através do Filho, na imagem de uma
imagem, mas directamente corno o próprio Filho o vê, o ciclo do retorno do mundo a Deus,
da apocatastasi, estará completo e Deus será tudo em todos (lb., XX, 7).

Tais são os traços fundamentais do sistema de Orígenes no qual pela primeira vez o
cristianismo encontrou uma formulação doutrinal orgânica e completa. O Platonismo e o
Estoicismo constituíram as duas raízes fundamentais pelas quais se une à filosofia grega.
Mas Orígenes adaptou com grande equilíbrio, da mensagem cristã, a doutrina platónica da
queda e da redenção dos seres espirituais e a doutrina cosmológica dos Estoicos. Por certo,
alguns elementos que a consciência religiosa contemporânea considerava essenciais nesta
mensagem foram perdidos na síntese de Orígenes. o conceito da criação é, no fundamental,
estranho a Orígenes para quem a criação das substâncias racionais é eterna. Na sua
natureza o Logos está subordinado a Deus Pai e o Espírito Santo ao Logos, na sua natureza
e na sua função. O sacrifício de Cristo não encontra urna própria e verdadeira justificação e
a ressurreição da carne, sobre a qual tanto insistiram outros padres (por exemplo
Tertuliano) é explicitamente excluída (De princ., 11,
10, 3; Contra Cels., V, 18). Mas, em compensação, Orígenes elevou, pela primeira vez. à
clareza da reflexão filosófica o significado mais profundo e universal do cristianismo. Foi o
primeiro que viu no facto histórico da redenção o destino da humanidade inteira que,
decaída da vida espiritual, deve retornar a ela. Foi o primeiro que reuniu numa única visão
de conjunto a sorte da humanidade e a sorte do mundo, fazendo da antropologia cristã o
elemento de uma concepção cosmológica. Foi o pri-

171

meiro que afirmou a exigência de liberdade humana que se havia perdido não só nas
doutrinas duaUsticas dos gnósticos, mas também todas as interpretações que faziam do
homem o sujeito da obra redentora de Cristo.
Finalmente temos de recordar que Orígenes foi o primeiro que exprimiu claramente o
princípio em que deviam inspirar-se as doutrinas políticas do cristianismo nos séculos
seguintes. Utilizando também aqui um conceito estoico, afirma que "existem duas leis
fundamentais, a natural, cujo autor é Deus, e a escrita que é formulada nos diversos
estados." Nesta base, afirma a independência dos cristãos perante a lei civil: "Quando a lei
escrita não está em contradição com a de Deus convém que os cidadãos a observem e a
anteponham às leis estrangeiras; mas quando a lei da natureza, isto é, a lei de Deus ordena
coisas contrárias à lei escrita, a razão aconselha-te a deixar de bom grado as leis escritas e a
vontade dos legisladores e a obedecer unicamente à lei de Deus, a regular a tua vida
segundo os seus ensinamentos mesmo se isto custa fadiga, morte e desonra" (Contra Cels.,
V, 37).
O princípio estoico do direito natural era assim utilizado para defender a liberdade dos
cristãos frente à lei civil.

§ 148. SEQUAZES E ADVERSÁRIOS DE ORÍGENES

Discípulo de Orígenes foi Dionísio de Alexandria, ao qual Eusébio dá o qualificativo de


grande. A partir de 231-32 foi chefe da escola catequética de Alexandria sucedendo a
Heraclito; em 247-48 tornou-se bispo da cidade e morreu em 264 ou
265. Os Discursos sobre a natureza, de que Eusébio nos conservou fragmentos, eram
dirigidos contra

172

o atomismo de Demócrito e dos Epicuristas. Entre as numerosas Cartas, muitas das quais
tratam de questões dogmáticas ou disciplinares, as escritas contra o sabelianismo
acentuavam a diferença entre o Logos e Deus Pai, fazendo dele uma criação do Pai. Mas
uma obra seguinte, intitulada Refutação e defesa, abandonava a sua interpretação e
dava uma outra completamente ortodoxa.

Discípulo de Orígenes foi também Gregório o Taumaturgo, que nasceu por volta do ano
213 em Neo-Cesareia, no Ponto, e que foi depois bispo da sua cidade natal e morreu no
tempo de Aureliano (270-275). Duas biografias, uma de Gregório Niceno, outra siríaca, que
é um arranjo da primeira, narram uma série de histórias miraculosas que explicam o seu
cognome. Gregório é autor de um Discurso de acção de graças, no qual se exalta a obra do
mestre Orígenes, de um escrito "A Teopompo sobre a capacidade e incapacidade de
padecer em Deus", conservado em siríaco e no qual se discute a questão de saber se a
impassibilidade de Deus implica a sua despreocupação pelos homens; e de outros escritos
menores, exegéticos e dogmáticos. Atribui-se-lhe também o breve tratado Sobre a alma, a
Taciano, que examina a natureza da alma, fora de qualquer prova tomada das Escrituras.

Eusébio, bispo de Cesareia, nascido em 265, morto em 340 é conhecido principalmente


como historiador dos primeiros séculos da Igreja. Discípulo de Pânfilo, do qual por
reconhecimento assumiu o nome (Eusébio de Pânfilo) e a quem acompanhou quando o
mestre foi encerrado no cárcere. Em conjunto, compuseram uma Apologia de Orígenes, em
5 livros, dos quais resta apenas o primeiro num arranjo de Rufino. Eusébio é autor de uma
crónica que tem o título de Histórias Várias e de uma História Eclesiástica que vai até 423
e constitui um riquíssimo arquivo de factos, documentos

173

e estratos de obras de toda a espécie, da primeira época da Igreja. Escreveu, além disso, um
panegírico e um elogio do imperador Constantino, do qual foi amigo entusiasta. As obras
dogmáticas Contra Marcelo e Sobre a Teologia Eclesiástica mostram uma acentuada
tendência para o arianismo de que defende a tese fundamental, a da não identidade de
natureza entre o Pai e o Logos. As obras apologéticas, Preparação Evangélica, em 15 livros,
e Demonstração Evangélica, em 20 livros (dos quais só nos chegaram os primeiros 10)
pretendem demonstrar a ,superioridade do cristianismo sobre o paganismo o o judaísmo.
Um estrato destas duas obras é o escrito Sobre a Te~da, em 5 livros, de que existem
fragmentos em grego e uma versão siríaca completa. Permanecem de Eusébio outras obras
apologéticas (Introdução Geral Elementar, Contra Gerocles) e partes ou fragmentos da sua
vasta obra exegética das Sagradas Escrituras. O escrito filosoficamente mais significativo é
a Preparação Evangélica, na qual Eusébio, utilizando a rica biblioteca de Cesareia,
acumulou um vastíssimo material de estratos de escritos gregos, que muitas vezes são
preciosos também para nós, por se terem perdido as obras de que foram tirados. Esta obra
é dominada pela convicção de que filosofia e revelação sã o idênticas e que no cristianismo
encontrou plena expressão a verdade que alvorecera já nos filósofos gregos. É a mesma
convicção que animara Justino, Clemente e Orígenes e que dominará a obra de S.
Agostinho. Aquela identidade parece a Eusébio evidente sobretudo no que diz respeito ao
platonismo. Platão é por ele considerado como um profeta (XIII, 13) ou como um "Moisés
aticizante" (XI, 10). Platão e Moisés estão de acordo e têm as mesmas ideias; Platão
conheceu a trindade divina porque pôs, ao lado de Deus e do Logos, a alma do mundo (XI,
16). Nas doutrinas éticas e pedagógicas, coincidem

174

Platão e Moisés, Platão e S. Paulo, e a própria república platónica encontrou a sua


realização na teocracia judaica (XIII, 12). Contudo, Platão permanece amarrado ao
politeísmo e admite o dualismo de Deus e da matéria eterna, o que é inconciliável com o
cristianismo; ele chegou, pois, ao vestíbulo da verdade, não à própria verdade (XIII,
14). Esta é revelada pelo cristianismo porque ele é a verdadeira e definitiva filosofia. No
cristianismo, não só os homens são filósofos mas também as mulheres, os ricos e os
pobres, os escravos e os senhores (1, 4). Que a filosofia grega tenha podido alcançar tantos
elementos da verdade cristã, explica-se com a sua derivação das fontes hebraicas (X, 1); ou
talvez também porque Platão foi orientado para a verdade pela própria natureza das coisas
ou por Deus (XI, 8).

Adversário de Orígenes foi, em contrapartida, Metód@o, bispo de Filipo, que morreu


mártir por volta do ano 311. Contra Orígenes era dirigido o seu escrito Sobre a@ Coisas
Criadas de que nos restam fragmentos. É depois autor de três diálogos ao modo de Platão:
Banquete ou sobre a Virgindade, Sobre o Livre Arbítrio, que nos foi transmitido grande
parte em grego e numa tradução eslava, e Sobre a Ressurreição, do qual existem
fragmentos do texto grego e uma versão eslava abreviada. Para demonstrar a eternidade do
mundo, Orígenes afirmara que, se não houvesse mundo, Deus não seria o criador e o
senhor. Metódio responde que Deus é então por si incompleto e só atinge a sua perfeição
através do mundo, o que é contrário ao princípio, posto pelo próprio Orígenes, de que
Deus é por si próprio perfeito (De creatis, 2). Contra a doutrina de Orígenes, segundo a
qual os homens e os anjos existiam no mundo inteligível como substâncias espirituais do
mesmo género e que só com a queda se diferenciaram, Metódio defende a dife-

175

rença entre as almas humanas e os anjos e nega a pré-existência das almas humanas
relativamente ao corpo (De ressurectione, 10, 11). No escrito sobre o livre arbítrio, nega
que o mal dependa de uma matéria eterna (era a doutrina gnóstica) e afirma que é produto
da vontade livre da criatura racional.
Boa parte da actividade especulativa no século IV foi posta ao serviço da disputa sobre o
arianismo. Ario (morto em 336) afirmara que o Logos ou Filho de Deus foi criado do nada
exactamente como todas as outras criaturas e que, portanto, não é eterno. Se nas Sagradas
Escrituras é chamado Filho de Deus, é no sentido em que o são todos os homens. Portanto,
a sua natureza é diferente da do Pai; a sua substância é diversa.

De Ario conservou-nos alguns fragmentos o seu grande opositor Atanásio. Nascido por
volta do ano 295, Atanásio teve uma parte predominante na condenação que o primeiro
Concílio Ecuménico da Igreja, que teve lugar em Niceia no ano de 325, pronunciou sobre o
arianismo. Mas a setença do Concílio não foi acatada de repente e a polémica entre os
cristãos continuou por muito tempo. Atanásio, que fora nomeado bispo de Alexandria,
sofreu perseguições e condenações por obra dos arianos e morreu a 2 de Maio de 373, em
Alexandria. A parte mais notável da actividade literária é a dedicada à polémica contra o
irianismo: Discursos contra os Arianos, Carta a Serapião, Livro sobre a Trindade e sobre o
Espírito Santo. Escreveu também obras histórico-polémicas e ascéticas e duas apologias,
Discurso contra os Gregos e Discurso sobre a Encarnação do Verbo, que são duas partes de
um único escrito. Atanásio afirma energicamente a identidade de natureza do Filho com o
Pai; se o Filho fosse uma criatura, não poderia reunir a Deus as criaturas porque teria por
sua vez necessidade desta união. O Filho tem em comum com o

176

Pai toda a plenitude da divindade e participa do seu próprio poder. O Espírito Santo
procede conjuntamente do Pai e do Filho. Há, portanto, uma única divindade e um só Deus
em três pessoas. As formulações de Atanásio constituíram a doutrina oficialmente aceite
pela Igreja no Concílio de Niceia.

Esta doutrina teve como defensores "os três luminares de Capadócia": Basílio o Grande,
Gregório Nazianceno e Gregório de Nisa. Basílio foi sobretudo homem de acção; Gregório
Nazianceno, orador e poeta; Gregório de Nisa, pensador.

§ 149. BASíLIO O GRANDE

Nascido por volta de 331, Basílio estudou em Cesareia, em Constantinopla e em Atenas.


Aqui estreitou com Gregório Nazianceno uma amizade que se fundava principalmente na
comunidade dos estudos e das doutrinas. Fruto da colaboração dos dois amigos, foi uma
antologia das obras de Orígenes, intitulada Filocalia. Nomeado bispo de Cesareia
participou nas lutas teológicas do tempo e morreu no dia 1.* de Janeiro de 379. Basílio
deixou obras dogmáticas, exegéticas, ascéticas e também homilias e cartas. As obras
dogmáticas (Contra Eunómio, Sobre o Espírito Santo) são dedicadas à polémica sobre o
arianismo. Entre as obras exegéticas vêm em primeiro lugar as 9 homilias sobre
Hexamerón, nas quais Basílio utiliza, a propósito das diferentes fases da criação do mundo,
as doutrinas científicas da Antiguidade, especialmente de Aristóteles. As homilias de
Basílio foram também famosas na Antiguidade e colocaram o seu autor entre os maiores
oradores da Igreja. Só 24 delas são, de certeza, autênticas.

177

Basílio apela explicitamente. na sua luta contra a heresia, para a tradição eclesiástica. A fé
precede o intelecto: "Nas discussões em torno de Deus deve ser tomada como guia a fé, a fé
que leva mais fortemente ao assentimento do que a demonstração, a fé que não é causada
pela necessidade geométrica mas pela acção do Espírito Santo" (Hom. in Ps.,
115, 1). O conteúdo da fé é determinado pela tradição: "Nós não aceitamos nenhuma nova
fé que nos seja prescrita por outros, nem pretendemos expor os resultados da nossa
reflexão para não dar como regra de religião aquilo que é só sabedoria humana. Nós
comunicamos a quem nos pergunta só aquilo que os Santos Padres nos ensinaram" (Ep.,
140, 2). Basílio admite, contudo, que se possam acolher, além dos ensinamentos da
Escritura, também as tradições eclesiásticas que não se oponham a elas (De Spir. S., 29, 7
1).

Nas suas discussões trinitárias, Basílio mantém firme o fundamento: uma só substância ou
essência (ousía), três pessoas (ypostaseis). Em Deus, afirma, há uma certa e
incompreensível comunidade o juntamente uma diversidade: a distinção das pessoas não
elimina a unidade de natureza e a comunidade de natureza não exclui a particularidade dos
caracteres distintivos" (Ep., 38, 4). Euriómio de Cizico, no Apologético (composto por volta
de 360), contra o qual é dirigido um escrito de Basílio, sustentara que a essência de Deus
consiste em ser ingénito e que, por isso, tal essência não pode ser participada pelo Filho,
que é gerado pelo Pai. Basílio opõe que a essência divina é ingénita enquanto não depende
de outra coisa senão de si própria e, em tal sentido, quer o Pai quer o Filho são ingénitos
porque participam da mesma essência. Mas, na essência divina, o Pai é o único que recebe
o seu ser de pessoa por si próprio, enquanto o Filho o recebe do Pai. O Filho é, portanto,
gerado como

178

pessoa, não como essência e portanto só como pessoa se distingue do Pai. Por sua vez, o
Espirito Santo recebe o ser do Filho e tem, portanto, o seu lugar depois dele (Adv. Eun.,
111, 1). Contra a afirmação de Eunómio de que conhecemos directamente a essência de
Deus (que seria precisamente a não gerabilidade), Basílio opõe que podemos conhecer
Deus através das suas obras, mas a sua essência permanece inacessível para nós. "As
criaturas, diz (lb., 11, 32), fazem-no conhecer certamente o poder, a sabedoria e a arte do
criador, mas não a sua natureza. Mais ainda, nem sequer manifestam necessariamente o
poder do criador, pois pode acontecer que o artista não ponha toda a sua capacidade na
obra, mas só a exercite nela de maneira restrita. Que se tivesse aplicado todo o seu poder
na obra, seria possível por ela medir a potência dele, mas nunca compreender a essência,
na sua natureza." Mesmo depois da revelação, o conhecimento de Deus só nos é dado de
modo que o infinito pode ser conhecido pelo finito e até na vida futura a essência de Deus
nos será incompreensível. A conclusão é uma bela e profunda frase que Basílio coloca
como corolário da sua doutrina: "0 conhecimento da essência divina consiste apenas na
percepção da sua incompreensibilidade" (Ep., 234, 2).
O limite que o homem encontra no conhecimento do transcendente é a mais directa e
evidente revelação do mesmo transcendente.

§ 150. GREGóRIO NAZIANCENO

Gregório Nazianceno nasceu por volta do ano


330 em Arianzo, próximo de Nasâncio, e foi educado em Cesareia, em Alexandria e Atenas,
onde travou amizade com Basílio. Foi nomeado bispo de Sásima e depois de
Constantinopla (em 379), mas

179

renunciou a ambos os ofícios recolhendo-se a uma vida solitária, dedicada apenas ao labor
literário. Morreu em Arianzo, onde nascera, em 389 ou 390. Gregório escreveu sermões,
cartas e poesias. Dos
45 Sermões, os que vão do número 27 ao 31 são os mais importantes e famosos. Foram
designados pelo autor como Sermões Teológicos e grangearam-lhe o apelido de teólogo.
Foram proferidos em Constantinopla e tinham como objectivo justificar a doutrina da
Trindade contra o ariano Eunómio (de quem se falou já a propósito de Basílio) e o semi-
ariano Macedónio (morto depois de 360), o qual ao mesmo tempo que afirmava a estreita
semelhança de essência do Filho e do Pai, fazia do Espírito Santo uma natureza
subordinada ao Pai e ao Filho e em tudo semelhante ao@ anjos. As cartas de Gregório,
escritas em forma literária apuradísima, por conseguinte destinadas ao público, referem-se
a certos sucessos da vida do autor ou .dos seus parentes e por isso só algumas, entre elas a
última, tratam de questões teológicas. Em contrapartida, as poesias são de natureza
polémica, dirigidas especialmente contra os apolinaristas (Apolinário, bispo de Laodiceia,
na Síria, falecido por volta de 390, negava a humanidade de Cristo considerando-o
somente Deus; o Logos divino teria tomado em Cristo o lugar da alma intelectiva). Têm
escasso valor poético e não são mais que prosa versificada. A especulação de Gregório não
tem originalidade nem força, se bem que expressa numa forma oratória eloquente. Devido
a esta forma, ela contribuiu, contudo, para a difusão e a vitória das doutrinas que os seus
grandes contemporâneos haviam formulado.

Segundo Gregório, podemos chegar a conhecer, mediante apenas a razão, a existência de


Deus, considerando a ordem e a perfeição do mundo visível, mas não podemos conhecer a
substância

180

ou essência de Deus. Sabemos que ela é superior * todas as outras essências, é "um oceano
infinito * indeterminado de essências" (Or., 38), mas foge à nossa possibilidade
determinar-lhe a natureza. Ao mistério da essência divina acrescenta-se o mistério da
trindade. "Esta profissão de fé, diz Gregório (1b., 40, n.' 41), eu te dou como companheiro o
guia de toda a vida: uma única divindade e poder que se encontra unida em Três e Três
diversas compreende; que não é diferente por essência nem por natureza; que não se
aumenta por acrescento nem diminui por subtracções; que é totalmente igual, mais ainda
totalmente a mesma, como a beleza e grandeza única, do céu, que é a infinita conjunção de
três infinitos; e cada um destes, considerado separadamente, é Deus, o Pai como o Filho, o
Filho como o Espírito Santo, e cada um conserva

a sua propriedade, ao mesmo tempo que, considerados os três conjuntamente, são ainda
Deus, o uno pela unidade da essência, o outro pela unidade do comando".

Contra o apolinarismo, Gregório defende a integridade da natureza humana em Cristo e


assim tem ocas-ião de expor a sua antropologia. Ao homem pertencem o corpo, a alma e o
intelecto. Mas o intelecto não é distinto da alma ; é uma força da própria alma e, portanto,
parte integrante da natureza humana (Ib., 14). Cristo que tomou a natureza humana teve
de tomar também o intelecto humano; de outro modo, o homem seria um animal privado
de razão (1b., 5 1).

§ 151. GREGóRIO DE NISA: A TEOLOGIA

Gregório de Nisa era irmão de Basílio o Grande e bastante mais jovem do que ele.
Encaminhado para a carreira de professor de retórica, foi retirado

181

dela por Basílio que o nomeou bispo de Nisa. Como tal Gregório participou na luta contra
os arianos. Em 394 estava em Constantinopla para participar num sínodo que devia
resolver uma controvérsia entre bispos árabes; depois o seu nome deixa de aparecer; muito
provavelmente, a sua morte ocorreu pouco depois daquela data. A sua obra mais notável é
o Discurso Catequético Grande, demonstração e defesa dos dogmas principais da Igreja
contra os pagãos, judeus e heréticos. A obra mais extensa é o escrito Contra Eunómio,
réplica ao escrito Em Defesa da Apologia, com o qual Eunómio respondem a Basílio.
Gregório escreveu mais: duas obras Contra Apolinário: vários tratados ou diálogos (Contra
os Gregos, Sobre a Fé, Sobre a Trindade, Sobre a Alma e a Ressurreição, Contra o Fado,
Sobre os Meninos que Morrem Prematuramente). Compôs, além disso, numerosos escritos
exegéticos, dos quais os mais notáveis são o Apologético sobre Hexameron e o De opificio
hominis e outros discursos ascéticos, discursos e cartas.

Como Basílio, Gregório, afirma a distinção entre a fé e o conhecimento e a subordinação


deste àquela. A fé apoia-se na revelação divina e não tem necessidade da lógica e das suas
demonstrações. Ela é o critério de toda a verdade e deve ser tomada como a medida de
todo o saber. Por sua parte, a ciência deve fornecer à fé os conhecimentos naturais
preliminares que, na Idade Média, se chamarão preambula fidei e, em primeiro lugar, a
demonstração da existência de Deus (Or. catech., pref.). Em particular, a dialéctica fornece
o método para sistematizar o conteúdo da fé e constitui o instrumento mediante o qual os
princípios da fé podem ser fundados e se pode progredir para a gnose ainda que isto se faça
com grande cautela e em forma hipotética. (De hom. opif., 16). O próprio Gregório

182

pôs em prática este procedimento na medida mais lata, como só Orígenes fizera antes, e
apela continuamente, para lá do testemunho da tradição, para princípios e demonstrações
racionais. O seu Discurso Catequético bem como o diálogo Sobre a Alma e a Ressurreição
são inteiramente guiados por investigação puramente racional. No diálogo citado, vê na
dúvida uma ajuda metódica da pesquisa.

Na sistematização da teologia cristã, Gregório preocupa-se, em primeiro lugar, por


estabelecer a unicidade de Deus. Divindades diferentes só poderiam distinguir-se entre si
por qualquer propriedade ou perfeição que pertencesse a uma e não a outra: mas assim
nenhuma delas seria perfeita. O próprio conceito de Deus como substância perfeitíssima
implica a unicidade de Deus e exclui o politeísmo. Da perfeição divina deriva também a
trindade das pessoas. No homem, a razão é limitada e mutável e não é, portanto,
subsistente por si. Mas em Deus ela é imutável e eterna e não tem, pois, o carácter de uma
força impessoal, mas subsiste corno pessoa (Or. catech., 1). O mesmo vale para o espírito.
Em nós o espírito serve de mediador entre a palavra interna que é o pensamento e a
palavra externa na qual se exprime. Em Deus a palavra externa não é corno para o homem
um som, uma coisa como as outras, mas faz parte da sua essência e procede, pois, do Pai e
do Filho como uma outra pessoa que tem a sua própria subsistência e a sua própria
eternidade (1b., 1). O cristianismo, admitindo a unidade e trindade de Deus, conciliou o
politeísmo pagão com o monoteísmo judaico: admitiu com o judaísmo a unidade da
natureza divina,

com o paganismo a plural-idade das pessoas (1b., 3).

Na interpretação da trindade, Gregório serve-se do princípio platónico da unidade da


essência (ousía), princípio de que se servirá na Idade Média, com o mesmo fim, Anselmo
de Aosta. Se o nome de

183
Deus, diz ele no tratado Adversus Graecos, significa a pessoa, necessariamente falando de
três pessoas, falamos de três divindades. Mas se o nome de Deus indica a essência,
podemos reconhecer que há um único Deus porque uma só é a essência das três pessoas.
Ora na realidade o nome de Deus indica a essência divina. É um costume abusivo da
linguagem o de indicar com o plural do nome que significa a natureza comum os
indivíduos múltiplices que participam dela. Por exemplo, dizemos Podro, Paulo e Barnabé
são três homens e não um só homem, como se deveria dizer desde o momento em que a
palavra homem significa a essência universal e não a existência parcial ou própria dos
indivíduos singulares. Gregório toma neste caso (como foi muitas vezes observado) o
significado abstracto da palavra, que não admite o plural, em vez do significado concreto
que, ao contrário, o admite. Contudo, o sentido da sua doutrina é claro. A essência, toda a
essência, a divina como a humana, e uma única realidade una e simples, que não é
multiplicada pelo número de pessoas (ou ipostasi) que participam dela. A essência humana
pode ser

participada por um número indeterminado de pessoas, a essência divina só por três; mas
como todos os homens são tais em virtude de uma única essência humana, assim as três
pessoas divinas subsistem na única essência divina e constituem um único Deus. O traço
que distingue a essência divina de todas as outras é que ela, pela sua perfeição, implica
também a urky'dade de acção das pessoas que participam dela. Enquanto os homens têm
actividades diferentes e às vezes contrárias, ainda que participando da mesma essência, as
pessoas divinas têm uma única actividade. "Toda a actividade procedente de Deus, que se
refere à criatura e é denominada de modo diverso segundo a diversidade do objecto, parte
do Pai, procede através do Filho

184

e cumpre-se no Espírito Santo. Não se trata, por isso, de actividades que se diversificam
segundo as pessoas que são activas, porque a actividade de cada pessoa singular não está
separada da outra e tudo quanto acontece, quer diga respeito à providência sobre os
homens quer concerne o governo e a ordenação do mundo, acontece por intermédio das
três pessoas sem que, todavia, seja trino". De tal modo, a essência divina encontra, na
unidade da acção divina, a sua característica fundamental e própria frente às essências
criadas. Tal é a interpretação de Gregório no que se refere à unidade divina. No que se
refere à trindade, Gregório expõe uma interpretação que funda a diversidade das pessoas
na diversidade das relações de origem, formulando um princípio que devia tornar-se a base
da interpretação trinitária nos séculos seguintes. Com efeito, a distinção das pessoas
divinas é explicada admitindo que delas uma é a causa, a outra causada e distinguindo dois
tipos de causalidade que correspondem à segunda e à terceira pessoa da trindade. Deus Pai
é a causa; o Filho é imediatamente causado pelo Pai de maneira que lhe corresponde o
carácter de unigénito; o Espírito Santo é causado pelo Pai através da mediação do Filho e
não é ingénito como o PaI nem unigénito como o Filho.

§ 152. GREGÓRIO DE NISA: O MUNDO E O HOMEM

O mundo é uma criação de Deus. A questão de saber por que modo uma essência
absolutamente simples, incorpórea e imutável, como Deus, tenha podido produzir uma
realidade composta, mutável e, sobretudo, corpórea, só pode encontrar resposta se se
considera a natureza do corpo. Todo o

185
corpo resulta de partes que, tomadas de per si, são momentos ou potências puramente
inteligíveis, como a quantidade, a qualidade, a figura, a cor, a grandeza e assim
sucessivamente. Se se prescinde delas, nada resta do corpo. Portanto, o corpo como tal é
apenas a ligação de qualidades em si próprias incorpóreas e ele mesmo é incorpóreo no seu
fundamento. Pode-se, pois, conceber como possa ter sido criado por uma essência
incorpórea (De hom. opif., 23-24). Partindo da exigência teológica de eliminar o abismo
entre a natureza de Deus e a da criação, Gregório foi assim levado a formular uma doutrina
da pura inteligibilidade do mundo corpóreo, voltando ao contrário o materialismo de
Tertuliano que exprimia, contudo, uma tendência muito difundida entre as primeiras
seitas cristãs. Enganar-se-ia, porém, quem interpretasse esta inteligibilidade como
subjectividade das qualidades corpóreas em sentido idealístico. A inteligibilidade confirma
e reforça a pura objectividade das qualidades porque, aproximando-as da natureza de
Deus, as eleva ao princípio supremo da objectividade, que é o próprio Deus.

No mundo, o homem foi criado por um acto de "amor superabundante" (Or. catech., 5). O
mundo não podia permanecer privado de finalidade e, por isso, Deus quis que ele servisse
para um ser que pudesse participar do bem que nele havia espalhado. Por um lado, o
homem é um microcosmo que compreende em si o ser das coisas inanimadas, a vida das
plantas, a sensibilidade dos animais e a racionalidade dos anjos. Pelo outro, é a imagem de
Deus; como, em Deus, do Pai ingénito procede o Logos e do Pai e do Logos o Espírito,
assim, no homem, da alma ingénita procede a palavra inteligível e de ambas a inteligência.
Atributo fundamental do homem é a liberdade. A razão, que o faz distinguir entre o bem
e o mal, seria inútil se
186

não pudesse escolher entre o bem e o mal. Sem liberdade não haveria virtude nem mérito
nem pecado (1b., 5). Só na liberdade está a origem do mal. O corpo não é um mal nem
causa do mal porque é uma criação de Deus. O mal está na nossa interioridade e consiste
no desvio do bem devido ao livre arbítrio (1b., 5). O mal não tem nenhuma essência na
realidade em que é apenas privação do bem, que é a única realidade positiva. Como a
obscuridade é a privação da luz ou a cegueira a privação da vista, assim o mal não é outra
coisa senão a falta do bem. "A maldade tem o seu ser no não-ser: e não tem outra origem
senão a privação do sem (De an. et resur., p. 223).

§ 153. GREGóRIO DE NISA: A ApoCATÁSTASIS

O relato bíblico sobre o primeiro homem é interpretado por Gregório no sentido platónico,
na base da distinçã o entre o homem ideal e o homem empírico. O primeiro homem foi
criado, diz Gregório, provido de um estado semelhante ao dos anjos. A sua natureza era a
racionalidade e nenhum elemento irracional fazia parte dele; por isso não tinha corpo
material nem sexo, era privado de todas as tendências e dos impulsos que derivam do
corpo e superior à doença e à morte. Era o homem perfeito, o homem ideal, o homem feito
verdadeiramente à imagem e semelhança de Deus. Com o pecado, o homem perdeu esta
condição feliz. Como consequência do pecado nasceu o homem empírico, que se encontra
Emitado pela sua natureza animal e tem todas as qualidades e impulsos de tal natureza (De
hom. opif., 17). Nesta condição, o homem encontra-se em contraste com a sua natureza
originária, com a ideia perfeita do homem.
187

O homem deve retornar então à sua condição originária. Para orientá-lo na via do retorno,
foi necessária a encarnação do Logos. Contra a encarnação não vale a objecção de que o
finito não pode abarcar o infinito e de que, por isso, a natureza humana não pode receber
em si a divina, dado que a encarnação do Logos não significa mais do que a infinidade de
Deus se ter encerrado nos Emites da carne como num vaso. A natureza divina uniu-se com
a humana mais como a chama se une ao corpo inflamável ou também como a alma supera
os limites do nosso corpo e se move livremente com o pensamento através da criação
inteira (Or. catech.,
10). Com a morte e a ressurreição de Cristo, o Deus-homem, a natureza humana como tal,
recuperou a sua condição originária, da qual o pecado a tinha feito cair. Mas com ela não
retornaram à condição primitiva todos os indivíduos nos quais, depois da queda, se
multiplicou e dispersou. A obra redentora de Cristo deve, portanto, frutificar através dos
indivíduos singulares e reconduzi-los todos à condição originária.

Segue-se daqui que a punição que cai sobre o mal na outra vida só pode ser purificador.
Aqueles que deixaram por si a sujidade do vício com a água do baptismo não terão
necessidade de outra purificação, mas aqueles que não participaram desta purificação
sacramental serão necessàriamente purgados pelo fogo (1b., 35). Finalmente, a natureza
chega por necessidade inevitável à apocatástasis, à reconstrução da condição feliz, divina e
livre de toda a dor, como era a originária (1b., 35). Gregório afirma decididamente o
carácter universal da apocatástasis: "Até o inventor do mal, isto é, o demónio, unirá a sua
própria voz no hino de gratidão ao Salvador (1b., 26). Já um escritor antigo (Germano de
Constantinopla em Fozio, Bibli. cod., 233) adiantara a hipótese de uma posterior
falsificação dos
188

escritos de Gregório nos pontos em que trata da apocatástasis universal. Mas esta hipótese
não tem nenhum fundamento dado que aquela doutrma corresponde ao espírito e ao tom
geral da obra de Gregório. O ciclo do mundo ficaria incompleto ou coxo se uma parte dos
seres se subtraísse à apocatástasis e não fosse restituída à sua condição ideal originária.
Esta condição originária é concebida platónicamente por Gregório como o ser, a substância
ou a norma de toda a existência: portanto, a existência permanece tal, mesmo depois que,
afastando-se do bem, se incline para o nada, só pela possibilidade, que lhe é própria, de
uma restituição à sua substância originária.

Precisamente em virtude da exigência desta total reintegração da realidade no seu ser


próprio, Gregório defende a ressurreição do corpo num sentido que não tem nada já de
material. A alma é dominada por uma tendência natural para o corpo que lhe pertence e
por isso imprime ao próprio corpo a sua própria forma (eidos) que permanece na matéria
constitutiva do corpo e permitirá à alma reconhecê-la, e voltar a apropriar-se dela no
momento da apocatástasis (De hom. opif., 27). Aqui a força organizadora e modeladora da
alma (a forma) é utilizada para explicar a crença cristã na ressurreição.

O fim último do destino humano é, segundo Gregório, o conhecimento místico de Deus, o


êxtase. Alcançou-se quando se passa para lá das aparências sensíveis e da própria razão; e
nele o ver consiste em não-ver, dado que a essência divina é inconcebível e inexprimível.
Para ele, como para Basílio, o único modo de uma relação directa com a transcendência
divina é a impossibilidade de relação. O motivo fundamental e permanente da especulação
mística encontra nestas fórmulas a sua expressão.

189

Gregório representa, com Orígenes, a expressão máxima da especulação cristã dos


primeiros séculos.
O cristianismo alcançou com ele a sua primeira sistematização doutrinal na base de um
encontro substancial com a filosofia grega. Contudo, o princípio da interioridade espiritual
afirmado pelo cristianismo e o princípio do objectivismo, fundamento de toda a filosofia
grega, não encontram ainda, na obra dos Padres orientais, o seu ponto de encontro e de
fusão. Só o encontrarão em S. Agostinho mercê de um conceito renovado da natureza e da
finalidade da investigação.

§ 154. OUTROS PADRES ORIENTAIS DO SÉCULO IV

Foi escassa a contribuição que deram à elaboração filosófica do cristianismo os outros e


numerosos escritores que, nesta época, participaram nas disputas teológicas da Igreja.
Epifânio, bispo de Constância (a antiga Salamina), nascido por volta de 315, falecido em
403, é autor de um escrito intitulado Panario (ou caixinha de medicinas) no qual pretende
apresentar uma defesa para aqueles que são mordidos pelas serpentes, isto é,
contaminados pelas heresias. Enumera 80 heresias, mas 20 delas são seitas ou doutrinas
pré-cristãs. Entre as heresias está incluída a doutrina de Orígenes.

Macário, bispo de Magnésia, é autor de uma grande apologia, O Unigénito ou Resposta aos
Pagãos, que foi encontrada incompleta em 1867, e combate as objecções que opusera ao
cristianismo o neoplatónico Porfírio nos livros que se perderam contra os cristãos. A um
outro Macário, dito o Egípcio, foram atribuídos erradamente 50 homilias (às quais se
juntaram outras sete encontradas em
1918) que apresentam uma curiosa mescla de Estoi-

190

cismo e de Misticismo. Segundo Macário, tudo aquilo que existe, incluindo a alma e as suas
faculdades, é corpóreo, excepto Deus. Mas a alma corpórea tem em si uma "imagem
celeste" de Deus e é esta imagem celeste de Deus que é pouco a pouco libertada e
purificada pela acção de Deus sobre a alma com a cooperação da vontade humana. Este
processo de purificação é o processo de elevação a Deus, que parte da apatia e, através da
iluminação, da visão e da revelação da comunhão com Deus, chega ao grau mais alto, ao
êxtase, que é a união com Deus.

Carácter escassamente especulativo têm as homilias de João, dito Crisóstomo ou Boca de


oiro pela sua eloquência, que foi patriarca de Constantinopla e morreu em 407. Em 428,
Nestório, patriarca de Constantinopla, começou nas suas prédicas a defender a doutrina
que nega a unidade da pessoa de Cristo. Esta doutrina fora precedentemente sustentada
por Diodoro de Tarso (falecido por volta do ano 394) e pelo seu discípulo Teodoro de
Mopsuestia (falecido por 428). Consistia em admitir que em Cristo coexistiam não só duas
naturezas, mas também duas pessoas, uma das quais habitava na outra como num templo.
Nestório negava que Maria fosse mãe de Deus e considerava fábula pagã a ideia de um
deus envolto num sudário e crucificado. Contra esta doutrina, combateu Cirilo, bispo de
Alexandria, morto em 444. Reafirmou a unidade da pessoa de Cristo, aduzindo que o
Logos assumiu a natureza humana na unidade da sua pessoa, conjuntamente divina e
humana. A obra de Cirilo, importantíssima para a definição do dogma da encarnação,
como a de Anastásio para o dogma da trindade, não tem particular significado filosófico.

O mais douto adversário de Grilo foi Teodoreto, que nasceu por volta do ano 386 em
Antioquia, discípulo de Crisóstomo e de Teodoro de Mopsuestia e condiscípulo de
Nestório. Primeiramente favorável

191

à doutrina de Nestório, que só abandonou nos últimos anos de vida (morreu pelo ano 458),
Teodoreto combateu a doutrina contrária de Eutiques, bispo de Constantinopla, que
defendia uma só natureza em Cristo, não no sentido de um só indivíduo, como ensinara
Cirilo, mas no sentido de uma natureza mista na qual existissem fundidas a divina e a
humana. Contra esta doutrina, Teodoreto escreveu o Mendigo ou Polimorfo porque ela lhe
parecia uma aberração retirada de muitas heresias precedentes. A favor da tese de
Nestório, escreveu o Pentalogium de que apenas temos fragmentos. Teodoreto escreveu a
última e mais completa das apologias cristãs que nos transmitiu a antiguidade grega.
Intitula-se Cura das Enfermidades Pagãs ou Conhecimento da Verdade Evangélica por
meio da Filosofia Pagã. Ele utiliza as apologias precedentes, especialmente os Stromata de
Clemente Alexandrino e a Preparação Evangélica de Eusébio.

§ 155. OS PADRES LATINOS DO IV SÉCULO

É escasso o contributo da patrística latina, para a especulação cristã, anterior a S.


Agostinho. Júlio Fírmico Materno é autor de uma obra, De errore profanarum religionum,
escrita com o objectivo de converter os imperadores Constâncio e Constante a uma
enérgica política contra o paganismo. O escrito foi composto à volta do ano 347 o é urna
análise polémica do culto pagão.

As conquistas da especulação do Oriente foram tornadas acessíveis à igreja latina por


Hilário de Poitiers, morto em 366, cuja obra mais importante é a que leva o título De
trinitate, mas originariamente devia chamar-se De fide ou De fide adversus arianos. Nos 12
livros desta obra são recolhidos e expostos

192

minuciosamente todos os argumentos da polémica da Igreja contra o arianismo. Mas, por


maior que seja a importância de Hilário como divulgador e defensor das doutrinas
ortodoxas, é menosprezível o conteúdo especulativo da sua obra.

Uma grande figura de homem de acção é Ambrósio, que nasceu cerca de 340, bispo de
Milão de 374 a 397, ano da morte. Ambrósio escreveu numerosas exegeses dos livros
bíblicos, obras dogmáticas dirigidas contra os arianos, cartas, sermões e um tratado, De
officiis núnistrorum, que tem semelhança com os três livros do De officiis de Ocero. Nele
Ambrósio segue de perto a obra de Cícero, mas completa-a em sentido cristão, apontando
como último limite da moralidade a felicidade em Deus. Nas suas obras dogmáticas, de que
as principais são o De fide ad Gratianum Augustum e o De Spiritu Sancto ad Gratianum
Augustum, inspira-se preferentemente nas obras de Anastásio e de Basilio o Grande.

Como tradutor da Bíblia para latim, destaca-se o nome de Sofrónio Aurélio Jerónimo,
nascido em Estridón (entre a Dalmácia e a Panónia) e morto em Belém, onde havia muitos
anos se retirara para a vida erma, em 420. Reviu a versão latina, então em uso, do Novo
Testamento e traduziu do hebraico o Velho Testamento, com excepção dos livros de
Baruch, Macabeos 1 e II, Eclesiastes e Sabedoria porque duvidava da sua canonicidade.
Muito importante é a sua obra De vitis illustribus, composta em 392 em Belém, que é uma
história dos escritores eclesiásticos, cuja matéria, para os escritores gregos dos três
primeiros séculos, é tomada da obra de Eusébio de Cesareia (§ 148), enquanto que, para os
escritores latinos e gregos posteriores, Jerónimo se baseia no conhecimento directo.
Temperamento do polemista, Jerónimo redigiu também polemicamente as suas obras
dogmáticas; as suas

193

obras mais conseguidas são as Cartas que constituem algumas vezes verdadeiros tratados.
Contudo, a sua importância está toda na sua obra de crudito o de historiador.

Agostinho nomeia com louvor nas Confissões (VIII, 2) o retórico africano Mário Vitormo.
Convertido ao cristianismo em idade avançada, traduziu para latim o Isagogo de Porfírio,
as Categorias e a Interpretação de Aristóteles e escreveu diversos escritos contra os arianos
e maniqueus. O escrito De definitionibus, que está entre as obras lógicas de Boécio, deve
ser atribuído a ele. Aparece nas suas obras teológicas a doutrina da predestinação.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 143. As obras de Clemente in P. G., 8.1 e 9.1; ed. Dindorf, 4 vols., Oxford, 1869; ed.
Stãhlin, 3 vols., Berlim, 1906-1909. Sobre Clemente: DE FAYE, Clément d?Alexandrie.
Êtude sur les rapports du christianisme et de Ia philosophie grecque au II Wele, Paris,
1898, 2.1 edição 1906; MEYBOOM, Clemens Alexandrinus, Leiden,
1912; TOLLINGTON, Clemens of AIex. A Study in Christian Liberalism, 1-2, Londres, 1914.

§ 144. As obras de Origenes in P. G., 11.1, 17.1, ed. berlinense na colecção patrística, 12
vols., 1899-1955.

§ 145. Sobre Orígenes: E. DE FAYE, Origène. Sa vie, son oeuvre, sa pensée, 3 vols., Paris,
1923-28; A. MIURA-STANGE, CeIsus und Origene, Giessen, 1926; G. Rossi, ;Saggi su"
metafisica di Origene, Milão, 1929; H. KocH, Pronoia und Paideusis. Studien über Origene
und sein Verhãltniz zum Platonismus, Berlim, 1932; R. CADIOU, La jeunesse d10rigène,
Paris, 1936; H. DE LuBACH, Histoire et esprit. Lintelligence de I'Écriture d'après Origène,
Paris, 1950; M. HARL, Origène et Ia fonction révélatrice du Verbe Incarné ' in
"Patristica, Sorboniensia", Paris, 1958 (com bibl.).

§ 148. Os escritos de Dionísio de Alexandria in P. G., 10.,, 1233-1344, 1575-1602; os,de


Gregório Taumaturgo In P. G., 10.-, 963-1232. As obras de Eusébio in

194

P. G., 19.1-24.1 e na edição berlinense dos Padres da Igreja, 6 vols. 1902-13.

Os escritos de Metódio in P. G., 18.,, 9-408; e na edição berlinense dos Padres da Igreja,
1917.

As obras de Anastásio in P. G., 25.---28.,. § 149. As obras de Basílio o Grande in P. G.,


29.---32.1. Sobre Basílio: CLARRE, St. Basil the Great, Cambridge, 1913.

§ 150. As obras de Gregório Nazianeeno in P. G.,


35.---38.1. Sobre Greg6rio: PINAULT, Le platonísme de St. Gr. de Naz., Paris, 1926.

§ 151. As obras de Gregório de Nisa, in P. G.,


44.1~46.1. Contra Eunonium, ed. Jaeger, 2 vols, Berlim,
1921-24; Cartas, ed. Pasquali, Beillim, 1925; Oratio Catech. Magna, ed. Mèrídier, Paris,
1908; Qp. ascetiche, ed. Jaeger e outros, Leyde, 1954; Opuscoli dogmatici, ed. Muller,
Leyde, 1958.

§ 152. Sobre Gregório: H. CHERNISS, The P,aton~ of Gregory of N-yssa, Berkeley, 1930;
M. PELLEGRINO, Il platonismo di S. Grego-rio Nisseno, in "Riv. di filos. neoscol.", XXX,
1938; A. A. WEiswuRm, The Nature of Human Kno-w"ge according to St. Greg. de Nysse,
Paris, 1953; W. VOLKER, Gregor von N. aIs Mystiker, Wiesbaden, 1955.
§ 154. As obras de Epifânio in P. G.@ 41.---43.o: de Macário de Magnesia, ed. a cargo de C.
Blondel, Paris, 1876; de Macário o Egípcio, in P. G., 34., e as outras 7 hornilias in
MARRIOTT, Macarii aneedota, Cambridge, 1918; de João Crisóstomo, in P. G., 47.---64.,;
de Diodoro, de Tarso in P. G., 33.1; de Teodoro de Mopsuestia. in P. G., 66.o; de CiriIo in P.
G. 77.o; Sobre todos, ver bibliografia especial in BARDENHEWER, GeSchichte der
altkirchlichen Literatur, III, Friburgo in Brisg., 1923; e CHRIST-SCHMID-STAMIN,
Geschichte der griech. Literatur, 11, 2, Mónaco, 1924.

§ 155. O escrito de Firmico Materno in P. L.,


12.,, 9891-1050; e no Corpus de Viena, 2.o, 1867. Os escritos de Hilário in P. L., 9-10.1 e no
Corpus de Viena, 22.1. As obras de Ambrósio ín P. L., 14.---17-e no Corpus de Viena, 32.1 e
64.,. As obras de Jerónimo in P. L., 22.0-30.1. os escritos de Mário Vitorino in P. L., 8.",
999-1310; o De definitionibus in P. L., 64.%
891-910, Sobre todos, ver bibliografia nas obras citadas de BARDENHEWER E CHRIST.

195

IV

SANTO AGOSTINHO

§ 156. A FIGURA HISTóRICA DE SANTO AGOSTINHO

Pela primeira vez na personalidade de Agostinho a especulação teológica deixa de ser


puramente objectiva, como se conservara mesmo nas mais poderosas personalidades da
patrística grega, para se unir ao próprio homem que a institui. O problema teológico é em
Santo Agostinho o problema do homem Agostinho: o problema da sua dispersão e da sua
inquietude, o problema da sua crise e da sua redenção, da sua razão especulativa e da sua
obra de bispo. Aquilo que Agostinho deu aos outros foi aquilo que conquistou para si
próprio. A sugestão e a força dos seus ensinamentos que não diminuíram através dos
séculos, muito embora tenham mudado os termos do problema, deriva precisamente do
facto de que em toda a sua especulação, mesmo nos aspectos que parecem mais afastados
de qualquer referência imediata à vida, apenas procurou e alcançou a clareza sobre si
mesmo e sobre o seu próprio destino, o significado autêntico da sua vida interior.

197

O centro da especulação de Agostinho coincide verdadeiramente com o centro da sua


personalidade. A atitude de confissão não se limita só ao escrito famoso, mas é a atitude
constante do pensador e do homem de acção que, em qualquer coisa que diga ou
empreenda, não tem outra finalidade senão a de ver claro em si mesmo e de ser aquilo que
deve ser. Por isso declara que não quer conhecer mais nada senão a alma e Deus e
mantém-se constantemente fiel a este programa: a alma, isto é, o homem -interior, o eu na
simplicidade e verdade da sua natureza; Deus, isto é, o ser na sua transcendência e na sua
normatividade sem o qual não é possível reconhecer a verdade do eu.

Por certo, nesta radical interiorização da investigação filosófica, Agostinho tem


predecessores; e tais predecessores são "os Platónicos" que evoca muitas vezes nas suas
obras e especialmente Plotino. Mas para os Neoplatónicos. o retomo a si próprio, a atitude
da introspecção só pode ser privilégio do sábio; para Santo Agostinho está ao alcance de
todo o homem. Agostinho recolheu também o melhor da especulação patrística
precedente; e os conceitos teológicos fundamentais, já então adquiridos pela especulação e
aceites pela Igreja, não sofrem na sua obra desenvolvimentos substanciais. Mas
enriquecem-se com um calor e com um significado humano que antes não tinham,
tornam-se elementos de vida interior para o homem, dado que são tais para ele, para Santo
Agostinho. E assim consegue uni-]os à inquietação e às dúvidas, à necessidade de amor e
de felicidade que são próprias do homem, fundá-los, numa palavra, na procura. Procura
que encontra na razão a sua disciplina e

o seu rigor, mas não é exigência de pura razão. Todo o homem procura: toda a parte ou
elemento da sua natureza, intranquilidade da sua finitude, dirige-se para o Ser que é o
único que pode dar-lhe

198

consistência e estabilidade. Santo Agostinho representa na especulação cristã a exigência


da pesquisa com a mesma força com que Platão a havia apresentado na filosofia grega.

Mas, diferentemente da platónica; a procura agustiniana Tadica-se na religião. Desde o


começo Santo Agostinho abandona a iniciativa a Deus: Da quod jubes et jube quod
vis. Só Deus determina e guia a procura humana seja como especulação seja como acção; e
assim a especulação é na sua verdade fé na revelação e a acção é na sua liberdade
graiça concedida por Deus. A polémica antipelagiana ofereceu a Agostinho ensejo para
exprimir na forma mais extrema e enérgica o fundo da sua convicção; mas não constitui
uma ruptura na sua personalidade, uma vitória do homem da Igreja sobre o pensador.
Nele o pensador vive todo na esfera da religiosidade, a qual só a Deus reconhece
necessariamente a iniciativa da procura e encontra, portanto, a sua melhor expressão na
frase: só Deus é a nossa possibilidade.

§ 157. SANTO AGOSTINHO: A VIDA

Aurélio Agostinho nasceu em 354 em Tagaste, na África romana. Seu paÂ, Patrício, era
pagão; sua mãe, Mónica, cristã, e exerceu sobre o filho uma ' profunda influência. Passou a
sua meninice e a adolescência entre Tagaste e Cartago. De temperamento ardente, rebelde
a todos os freios, levou neste período uma vida desordenada e dispersa de que se acusou
asperamente nas Confissões. Mas cultivava os estudos clássicos, especial-mente latinos, o
dedicava-se com paixão à gramática a ponto de considerar (como confessa com horror,
Conf., 1, 18) tira solecismo mais grave do que um pecado mortal. Pelos 19 anos, a leitura do
Hortênsio de Cícero trouxe-o à filosofia. A obra de Cícero (que se per-
199

deu) em, como se disse (§ 110), exortação à filosofia que seguia de perto os passos do
Protréptico de Aristóteles. Assim, Santo Agostinho, do entusiasmo pelas questões formais
e gramaticais, encaminhou o seu entusiasmo para os problemas do pensamento e, pela
primeira vez, orientou-se para a investigação filosófica. Aderiu então à (374) seita dos
maniqueus (§ 137). Com 19 anos começou a ensinar retórica em Cartago e manteve o seu
erwino nesta cidade até aos 29 anos, entre amores de mulheres e o afecto dos amigos, do
que se acusou e arrependeu igualmente depois. Com 26 ou 27 anos compÔs o seu primeiro
livro Sobre o Belo e o Conveniente (De pulchro et apto) que se perdeu. O seu pensamento
ia amadurecendo; leu e compreendeu por si mesmo o livro de Aristóteles Sobre as
Categorias e outros escritos, e entretanto formulava as primeiras dúvidas sobre a verdade
do maniqueísmo, dúvidas que se confirmaram quando viu que nem o próprio Fausto, o
mais famoso maniqueu do seu tempo, sabia resolvê-las. Com
29 anos, em 383, dirigiu-se a Roma com a intenção de continuar ali o ensino de retórica;
era movido pela esperança de encontrar uma estudantada menos turbulenta e mais
preparada do que a cartaginesa
e talvez também pela ambição de conseguir sucesso
e dinheiro. Mas as suas esperanças não se realizaram e ao fim de um ano dirigiu-se a Milão
para ensinar oficialmente retórica, cargo que obtivera do perfeito Simaco. O exemplo e a
palavra do bispo Ambrósio persuadiram-no da verdade do cristianismo e tornou-se
catecúmeno. Em Milão reuniu-se-lhe sua mãe, cuja influência teve importância decisiva na
críse espiritual de Agostinho. A leitura dos escritos de Plotino na tradução de Mário
Vitorino, um famoso retórico que se convertera ao cristianismo, fornece a Agostinho a
orientação definitiva. Não encontrou nos livros dos Neoplatónicos

200

S
1 . AGOSTINHO (Ambrósio Berognone)

ensinada a encarnação do Verbo e, por conseguinte, o caminho da humildade cristã, mas


encontrou afirmada e demonstrada claramente a incorporeidade e incorruptibilidade de
Deus e isto libertou-o definitivamente do materialismo, ao qual permanecera ligado até
então ao ponto de acreditar que o universo estava cheio de Deus à maneira de uma esponja
gigantesca que ocupasse o mar (Conf., VII, 5). No Outono de 386, Agostinho deixa o ensino
e retira-se, com uma pequena companhia de parentes e amigos, para a vila de Verecondo,
em Cassiciaco, próximo de Milão. Da meditação nesta vila e das conversações com os
amigos nascem as suas primeiras obras: Contra Académicos, Sobre a Ordem, Sobre a
Felicidade, Solilóquios. A 25 de Abril de 387 recebia o baptismo das mãos de Ambrósio.
Convence-se então de que a sua missão era a de difundir na sua Pátria a sabedoria cristã;
pensou, pois, no regresso. Em Ostia, enquanto esperava o embarque, passou com a sua
mãe dias de intensa alegria espiritual discorrendo com ela sobre questões religiosas, mas
Mónica morreu ali. A partir daquele momento a vida de Santo Agostinho é uma contínua
procura da verdade e uma luta contínua contra o erro. Depois de uma nova permanência
em Roma, voltou a Tagaste onde em 391 foi ordenado sacerdote; em 395 foi consagrado
bispo de Hipona. A sua actividade dirigiu-se então não só a defender e a esclarecer os
princípios da fé, mediante uma procura de que a fé é mais o resultado que o pressuposto,
mas também a combater os inimigos. da fé e da Igreja: o maniqueísmo, o donatismo e o
pelagianismo. O saque de Roma, perpretado em 410 pelos "os de Alarico. voltara a dar
actualismo à velha tese de que a segurança e a força do Império Romano estavam ligadas
ao paganismo e que o cristianismo representava por isso um elemento de debilidade e de
dissolução.

201

Contra esta tese escreveu Santo Agostinho, entre 412 e 426, a sua obra-prima: A Cidade de
Deus. Mas, entretanto, um flagelo análogo, a invasão dos Vândalos, abateu-se em 428
sobre a África romana. Havia três meses que as tropas de Genserico assediavam Hipona
quando, a 28 de Agosto de 430, Agostinho morreu.

158. SANTO AGOSTINHO: AS OBRAS

Os primeiros escritos de Agostinho que chegaram até nós foram os que compôs em
Cassiciaco@ Contra Acadêmicos, Sobre a Felicidade, Sobre a Ordem, Solilóquios. De uma
exposição completa de quase todas as artes liberais só acabou, em Tagaste, a parte que
respeita à Música. Em Roma, enquanto esperava a partida para a África, compôs o escrito
Sobre a Quantidade da Alma, relativamente às relações entre a alma e o corpo. De volta a
Tagaste, terminou o escrito Sobre o livre Arbítrio, começado em Roma, compôs o livro
Sobre o " Génesis" contra os Maniqueus, o diálogo Sobre o Mestre e o livro Sobre a
Verdadeira Religião que é um dos seus escritos filosóficos mais notáveis. A polémica contra
os maniqueus ocupou-o largamente. Os seus escritos polémicos contra a seita são
numerosos (Sobre a Utilidade de Crer, composto em 391 em Hipona; Sobre as duas Almas;
Contra Fortunato; Contra Adimanto; Contra Fausto; Sobre a Natureza do Bem, e outros).
Tornado bispo, S. Agostinho desenvolve a sua polémica, por um lado contra os donatistas
que propugnavam por uma igreja africana independente e resolutamente hostil ao Estado
romano (§ 165), pelo outro contra os pelagianos que negavam ou pelo menos limitavam a
acção da graça divina. Contra os donatistas compôs, entre 393 e 420, muitos e 'tos (Contra
a carta de Parmeniano; Sobre o scri Baptismo; Contra os Donatistas; Contra a Carta de
202

Petiliano Donalista; Cartas aos Católicos contra os Donatistas; Contra o Gramático


Crescónio; Sobre o único Baptismo; Contra Petiliano, etc.). Contra os pelagianos,
Agostinho abriu a sua luta em 412 com o escrito Sobre a Culpa e sobre a Remissão dos
Pecados e sobre o Baptismo dos Meninos, ao qual se seguiram: Sobre o Espírito e sobre a
Letra, a Marcelino; Sobre a Natureza e sobre a Graça; Carta aos bispos Eutropio e Paulo;
Sobre a Gesta de Pelágio: A Graça de Cristo e o Pecado Original; e vários outros. Por altura
de uma carta de Santo Agostinho em 418 (Ep., 194), os monges de Adrumeto (Susa)
começaram a rebelar-se contra os seus abades, sustentando que, sabido que a boa conduta
depende exclusivamente do socorro divino, os seus superiores não deviam dar ordens, mas
apenas elevar preces a Deus pelo seu melhoramento. Para tranquilizar e iluminar aqueles
monges sobre o verdadeiro significado da sua doutrina, Agostinho compôs em 426 ou
427 o escrito sobre a Graça e sobre o Livre Arbítrio e outro Sobre a Correcção e sobre a
Graça. Como o movimento pelagiano se difundia na Gália meridional, sob a forma
atenuada que se chamou depois semipelagianismo, o qual declarava inútil a graça no início
da obra de salvação e na perseverança da justificação conseguida, Agostinho escreveu
contra tal doutrina outros dois escritos: Sobre a Predestinação dos Santos e Sobre o Dom
da Perseverança.

Juntamente com estas e outras obras polémicas menores, compunha o importante escrito
Sobre a Trindade, e Sobre a Doutrina Cristã, o exegético Sobre o Génesis à Letra e a sua
obra mais vasta: A Cidade de Deus (413-426). Por volta de 400, escreveu os 13 livros das
Confissões que são a obra chave da sua personalidade de pensador. Para o final da sua
vida, em 427, nas Retratações, lançava um olhar retrospectivo sobre toda a sua obra
literária a partir
203

da conversão em 386. Agostinho recorda, por ordem cronológica e, um por um, todos os
seus escritos, excluindo as cartas e sermões, e muitas vezes indica a ocasião e o fim da sua
composição e ao mesmo tempo faz a revisão crítica das doutrinas neles contidas,
corrigindo os seus erros ou as imperfeições dogmáticas. A obra é um guia precioso para
compreender o desenvolvimento da actividade literária de Agostinho.

§ 159. CARACTERISTICAS DA INVESTIGAÇÃO AGOSTINIANA

Santo Agostinho foi chamado o Platão cristão. Esta definição é verdadeira não tanto
porque se encontrem na sua doutrina pontos e motivos doutrinais do Platão autêntico ou
do Neoplatonismo, mas porque renova no espírito do cristianismo a investigação que fora
a realidade fundamental da especulação platónica. A fé está para Agostinho no termo da
investigação, não no seu início. Por certo a fé é a condição da procura que não teria
direcção nem guia sem ela; mas a procura dirige-se para a sua condição e trata de,
esclarecê-la com o aprofundamento incessante dos problemas que suscita. Por isso a
procura encontra o fundamento e o guia na fé e a fé encontra a sua consolidação e
enriquecimento na procura. Por um lado, na medida em que leva a esclarecer e a
aprofundar a própria condição, a procura estende-se e robustece-se porque se aproxima da
verdade e se funda nela; por outro lado, a própria fé é alcançada e possuída através da
procura na sua realidade mais rica e consolida-se no homem triunfando da dúvida. Nada é
tão contrário ao espírito de Agostinho como uma pura gnose, um conhecimento puramente
racional do divino, a não ser talvez a afirmação desesperada da irracionalidade da fé,

204

que se encontra em Tertuliano. Para Agostinho, a procura empenha o homem todo não
apenas o intelecto. A verdade para que tende é também, segundo a palavra angélica, a via e
a vida: procurá-la significa procurar a verdadeira via e a verdadeira vida. Por isso, não é só
a mente que tem necessidade dela, mas o homem inteiro e deve dar satisfação e repouso a
todas as exigências do homem. Por outro lado, a procura agustiniana impõe a si própria
uma disciplina rigorosa: não se entrega facilmente a crer, não fecha os olhos diante dos
problemas e das dificuldades da fé, não tenta evitá-los e iludi-los, mas afronta-os e
considera-os incessantemente, retornando sobre as próprias soluções para as aprofundar e
esclarecer. A racionalidade da procura não é para Santo Agostinho o seu organizar-se como
sistema, mas antes a sua disciplina interior, o rigor do procedimento que não pára frente
ao limite do mistério, mas faz deste limite e do próprio mistério um ponto de referência e
uma base. O entusiasmo religioso, o ímpeto místico para a verdade não agem nele como
forças contrárias à procura mas robustecem a própria procura, dão-lhe um valor e um
calor vital. Daqui deriva o enorme poder de sugestão que a personalidade de Agostinho
exerceu não só sobre o pensamento cristão e medieval, mas também sobre o pensamento
moderno e contemporâneo.

§ 160. SANTO AGOSTINHO: O FIM DA PROCURA: DEUS E A ALMA

No início dos Solilóquios (1, 2), que são uma das suas primeiras obras, Agostinho declarava
o fim da sua investigação deste modo: "Desejo conhecer Deus e a alma. E nada mais? Nada
mais, absolutamente". E tais foram na realidade os termos para os quais se dirigiu
constantemente a sua especulação

205

do princípio ao fim. Mas Deus e a alma não requerem para Agostinho duas investigações
paralelas ou diversas. Com efeito, Deus está na alma e revela-se na mais recôndita
interioridade da própria alma. Procurar a Deus significa procurar a alma e procurar a alma
-significa reclinar-se sobre si mesmo, reconhecer-se, na própria natureza espiritual,
confessar-se. A atitude de confissão que deu origem à mais famosa das obras agustinianas
é, na realidade, desde o princípio, a atitude fundamental de S. Agostinho, aquela que ele
mantém e observa constantemente em toda a sua actividade de filósofo e de homem de
acção. Esta atitude não consiste em descrever para si e os outros as alternativas da própria
vida interna ou externa, mas em pôr a claro todos os problemas que constituem o núcleo
da própria personalidade. Mesmo as Confissões não são uma obra autobiográfica: a
autobiografia é um dos seus elementos que fornece os pontos de referência dos problemas
na vida de Santo Agostinho, mas não é o seu carácter dominante, tanto que, num certo
ponto, no livro X todo o acento autobiográfico cessa e Santo Agostinho passa nos outros
três livros a tratar de problemas de pura especulação teológica. O esforço de Santo
Agostinho nesta obra é dirigido no sentido de fazer luz sobre os problemas que constituem
a sua própria existência. quando, consegue aclarar a natureza da inquietação que dominou
a primeira parte da sua vida e que o levou a dissipar-se e a divagar desordenadamente, dá-
se conta que, na realidade, nunca desejou outra coisa a não ser a verdade, que a verdade é
o próprio Deus, que Deus se encontra no interior da sua alma. "Não, saias de ti mesmo,
volta * ti próprio, no interior do homem habita a verdade; * se verificas que a tua natureza
é mutável, transcende-te para lá de ti mesmo" (De vera rel., 39). Apenas o retorno a si
próprio, o encerrar-se na própria interioridade é verdadeiramente o abrir-se à

206

verdade e a Deus. É necessário chegar até ao mais íntimo e escondido núcleo do eu para
encontrar mais além dele ("transcende-te para lá de ti mesmo") a verdade de Deus.

Na busca desta interioridade que se transcende e se abre a Deus encontra-se uma certeza
fundamental que elimina a dúvida. Não foi por acaso que a carreira de escritor de Santo
Agostinho se iniciou com uma refutação do cepticismo académico. Não podemos
permanecer firmemente na dúvida, como pretendiam os Académicos, e na suspensão do
assentimento. Quem duvida da verdade está certo de duvidar, isto é, de viver e de pensar;
tem, por conseguinte, na própria dúvida uma certeza que o subtrai à dúvida e o leva à
verdade (Contra acad., 111,
11); De vera rel., 39; De trin., X, 10). Este movi. mento de pensamento para o qual a
própria dúvida é tomada como fundamento de uma certeza, que não é imóvel porque
apenas significa que se pode e se deve procurar, encontrar-se-á nos começos da filosofia
moderna em Descartes. Em Agostinho, esta atitude significa que a vida interior da alma
não pode encerrar-se na dúvida e que até a dúvida permite à alma transcender-se e mover-
se para a verdade.

A verdade é, pois, ao mesmo tempo interior ao homem e transcendente. O homem só pode


procurá-la encerrando-se em si próprio, reconhecendo-se naquilo que é, confessando-se
com absoluta sinceridade. Mas não pode reconhecer-se nem confessar-se se não pela
verdade e frente à verdade, a qual se afirma, precisa-mente, naquele acto em toda a sua
transcendência como guia e luz da pesquisa. A verdade revela-se como transcendente
àquele que a procura como deve procurar-se: na interioridade da consciência. Com efeito,
a verdade não é a alma, mas a luz que do alto guia e chama a alma à sinceridade do
reconhecimento de si e à humildade da confissão. A verdade não é a razão mas é a lei da
razão, isto

207

é, o critério de que a razão se serve para julgar as coisas. Se a razão é superior às coisas que
julga, a lei, na base da qual ela julga, é superior à razão.
O juiz humano julga na base da lei, mas não pode julgar a própria lei. O legislador humano,
se é honesto e sábio, julga das leis humanas, mas consulta, ao fazer isto, a lei eterna da
razão. Mas esta lei escapa a todo o juízo humano porque é a própria verdade na sua
transcendência (De vera rel., 30-31).

§ 161. SANTO AGOSTINHO: A PROCURA DE DEUS

A verdade é Deus: este é o princípio fundamental da teologia agostiniana. O carácter


fundamental da verdade está no facto de que ela nos revela aquilo que é, em contraste com
o falso que faz aparecer ou crer aquilo que não é. A verdade é a revelação do ser como tal.
Ela é o ser que se revela, o ser que ilumina a razão humana com a sua luz e lhe fornece a
norma de todo o juízo, a medida de toda a avaliação. Neste revelar-se do ser na
interioridade do homem, neste seu valer frente ao homem como o princípio iluminante da
sua procura, tal é a verdade. Mas o Ser que se revela e fala ao homem, o Ser que é a Palavra
e Razão iluminante, é Deus no seu Logos ou Verbo (De vera rel., 36). A verdade não é, pois,
mais que o Logos ou Verbo de Deus. A primeira e fundamental determinação teológica do
Deus cristão nasce do próprio implantar da pesquisa agostiniana. Precisamente, enquanto
o homem procura Deus na interioridade da sua consciência, Deus é para ele Ser e Verdade,
Transcendência e Revelação, Pai e Logos. Deus revela-se como transcendência ao homem
que incessantemente e amorosamente o procura na profundidade do seu eu: isto quer dizer
que Ele não é ser senão enquanto é conjuntamente manifestação de si como tal, isto é,
Verdade, que não é transcen-

208

dência senão enquanto é conjuntamente revelação; que não é Pai senão enquanto é
conjuntamente Filho, Logos ou Verbo que se acerca do homem para o trazer a si. As duas
primeiras pessoas da Trindade manifestam-se ao homem na procura; e também a outra, o
Espírito Santo, que é amor. Deus é Amor além de Verdade; amor e verdade vão
conjuntamente porque não se pode ser amor senão pela verdade e na verdade. Amar a
Deus significa amar o Amor, mas não se pode amar o Amor se não se ama quem ama. Não
é amor aquele que não ama ninguém. Por isso o homem não pode amar a Deus, que é o
Amor, se não ama o outro homem. O amor fraterno entre os homens "não só deriva de
Deus mas é o próprio Deus" (De trin., VIII, 12). Deus revela-se como verdade só a quem
procura a verdade; Deus oferece-se como Amor só a quem ama. A procura de Deus não
pode ser, portanto, apenas intelectual, é também necessidade de amor. Parte da pergunta
fundamental: "Que coisa amo, ó Deus, quando te amo"? (Conf., X, 6).

Aqui está o nó da procura que se dirige à alma e da procura que se dirige a Deus, nó que é o
centro da personalidade de Agostinho. Não é possível procurar Deus senão submergindo-
se na própria interioridade, senão confessando-se e reconhecendo o verdadeiro ser
próprio; mas este reconhecimento é o próprio reconhecimento de Deus como verdade e
transcendência. Se o homem não se procura a si próprio não pode reconhecer a Deus. Toda
a experiência da vida de Agostinho se exprime nesta fórmula, dado que só para lá de si,
naquilo que transcende a parte mais elevada do eu, se entrevê, pela própria
impossibilidade de alcançá-la, a realidade do ser transcendente. Por um lado, as
determinações de Deus radicam-se na procura dado que Deus se revela como
transcendência e verdade apenas na procura; por outro lado, a procura funda-se nas

209

determinações da transcendência divina. Por certo o homem não pode conhecer a


transcendência se não a procura, mas não pode procurar se a transcendência não o chama
a si e não o sustém revelando-se na sua imprescrutabilidade. Deus precisamente na sua
transcendência, é o transcendente da alma, a condição da sua procura, de toda a sua
actividade. E é ao mesmo tempo a condição das relações interhumanas. Deus é o Amor e
condiciona e torna possível todo o amor. Mas não é possível reconhecê-lo como amor e,
portanto, amá-lo se não se ama; e não se pode amar senão o outro homem. Amar o Amor
significa, em primeiro lugar, amar, e não se pode amar a não ser o homem. O amor
fraterno, a caridade cristã, condiciona. a relação entre Deus e o homem; e ao mesmo tempo
é condicionado por ela. Também aqui o Amor divino, o Espírito Santo é, na sua
transcendência, o transcendental da procura que leva o homem para o outro homem.

O tema de toda a especulação de Santo Agostinho é um só e é o tema da sua vida: a relação


entre a alma e Deus, entro a procura humana e o seu termo transcendente e divino. Mas
esta relação manifesta-se em Santo Agostinho religiosamente, não filosoficamente<) seu
acento não cai sobre a possibilidade humana na procura do transcendente mas sobre a
presença do transcendente no homem como possibilidade da procura. A iniciativa é
abandonada a Deus. Mais precisamente, enquanto o homem se entrega à iniciativa da
procura e queima no ardor dela as escórias da sua humanidade inferior, deve reconhecer
que a iniciativa não é sua, mas é de Deus; que ele consegue relacionar-se com a
transcendência divina apenas porque ela se lhe revela, consegue amar a Deus só porque
Deus o ama. O esforço filosófico transforma-se em humildade religiosa: a procura torna-se
fé. A liberdade da iniciativa filosófica surge como graça. A exigência de referir todo o
esforço,

210

todo o valor humano à graça divina não é um puro resultado da polémica contra os
pelagianos, um resultado que negaria os motivos agostinianos mais profundos, mas é
exigência intrínseca da especulação agostiniana. Tal exigência funda-se na relação com
que, na personalidade de Agostinho, se enlaçam a filosofia e a religião, a procura e a fé:
relação de tensão, pela qual se a-traem o ao mesmo tempo se opõem uma à outra.

§ 162. SANTO AGOSTINHO: O HOMEM

A possibilidade de procurar a Deus e de amá-lo está radicada na própria natureza do


homem. Se fôssemos animais, poderíamos amar apenas a vida carnal e os objectos
sensíveis. Se fôssemos árvores não poderíamos amar nada daquilo que tem movimento e
sensibilidade. Mas somos homens, criados à imagem do nosso criador que é a verdadeira
Eternidade, a eterna Verdade, o eterno e verdadeiro Amor; temos, portanto, a
possibilidade de voltar a ele, no qual o nosso ser não terá mais morte, o nosso saber não
terá mais erros, o nosso amor não terá mais ofensas (De civ. Dei, XI, 28). Esta
possibilidade de retornar a Deus na tríplice forma da sua natureza, está inscrita na tríplice
forma da natureza humana, enquanto imagem de Deus. "Eu sou, eu conheço, eu quero.
Sou enquanto sei e quero; sei por ser e querer; quero ser e saber. Veja quem pudor como
nestas três coisas existe uma vida inseparável, uma única vida, uma única mente, uma
única essência e como a distinção é inseparável e, todavia, existe". (Conf. XIII, 11). São os
três aspectos do homem que se revelam nas três faculdades da alma humana, a memória, a
inteligência e a vontade, as quais conjuntamente, e cada uma por si, constituem a vida, a
mente e a substância da alma. "Eu, diz Agostinho (De trin., X, 18), recordo por ter
memória, inteligên-

211

cia e vontade; entendo por compreender, querer e recordar; e quero querer, recordar e
compreendem. E recordo toda a minha memória, toda a inteligência e toda a vontade e do
mesmo modo compreendo e quero todas estas três coisas; as quais coincidem plenamente
e, não obstante a sua distinção, constituem uma unidade, uma só vida, uma só mente e
uma só essência. Nesta unidade da alma que se diferencia nas suas faculdades, cada uma
das quais compreende as outras, está a imagem da trindade divina, imagem desigual mas
imagem.

A própria estrutura do homem interior torna, pois, possível a procura de Deus. Que o
homem seja feito à imagem de Deus significa, portanto, que o homem pode procurar a
Deus e amá-lo e relacionar-se com o seu ser. Deus criou o homem a fim de que ele seja,
dado que o ser, mesmo em grau menor, é sempre um bem e o Ser supremo é o supremo
Bem; mas o homem pode afastar-se e decair do ser e, em tal caso, peca. A constituição do
homem como imagem de Deus, se lhe dá a possibilidade de se relacionar com Deus, não
lhe garante a realização necessária desta possibilidade. Com efeito, o homem é, em
primeiro lugar, o homem velho, o homem exterior ou carnal que nasce e cresce, envelhece
e morre. Mas, em segundo lugar, pode ser também homem novo ou espiritual, pode
renascer espiritualmente e conseguir submeter a sua alma à lei divina. Também este
homem novo tem as suas idade que, contudo, não são dadas pelo transcorrer do tempo,
mas pelo seu progressivo aproximar do divino (De vera rel., 26). Todo o indivíduo é pela
sua natureza um homem velho, mas deve tornar-se um homem novo, deve renascer para a
vida espiritual- Este renascimento apresenta-se-lhe como a alternativa em que deve
escolher- ou viver segundo a carne e debilitar e romper a própria relação com o ser, isto é,
com Deus e cair na mentira e no pecado; ou viver

212

segundo o espírito estreitando a sua relação com Deus e preparar-se para participar na sua
própria eternidade (De civ. Dei, XIV, 1, 4). Mas a primeira escolha não é verdadeiramente
uma escolha nem uma decisão. A verdadeira escolha é aquela com o que o homem decide
aderir ao ser, isto é, relacionar-se com Deus. A causa do pecado, quer dos anjos rebeldes a
Deus quer dos homens, é uma só: a renúncia àquela adesão. "A causa da beatitude dos
anjos bons é que eles aderem àquilo que verdadeiramente é; enquanto a causa da miséria
dos anjos maus é que eles se afastaram do ser e se voltaram para si próprios que não são o
ser. O seu pecado foi, pois, o da soberba." (Ib., XII, 6). Precisamente esta soberba da
vontade, que nos aparta do ser e nos ata ao que tem menos ser, é o pecado, o qual, por isso,
não tem causa eficiente mas apenas causa deficiente: não é uma realização (effectio) mas
uma defecção (defectio). É renúncia àquilo que é supremo para adaptar-se àquilo que é
-inferior. Querer encontrar as causas de tais defecções é como querer ver as trevas ou
ouvir o silêncio: tais coisas só se podem conhecer ignorando-as, enquanto que,
conhecendo-as, se ignoram (1b., XII, 7).

§ 163. SANTO AGOSTINHO: O PROBLEMA DA CRIAÇÃO E DO TEMPO

Enquanto é ser, Deus é o fundamento de tudo o que é; é, portanto, o criador de tudo. E de


facto a mutabilidade do mundo que nos rodeia demonstra que este não é o ser: teve, pois,
de ser criado e leve de ser criado por um ser eterno (Conf., XI, 4). Deus criou tudo através
da Palavra, mas a palavra de que fala a narração do Génesis não é a palavra sensível, mas o
Logos ou Filho de

213

Deus, que é coeterno como ele (1b., XI, 7). O Logos ou Filho tem em si as ideias, isto é, as
formas ou as razões imutáveis das coisas que são eternas como eterno é ele próprio: e em
conformidade com tais formas ou razões são formadas todas as coisas que nascem e
morrem (De div. quaest., 83, q; 46). Estas formas ou ideias não constituem, portanto,
como queria Platão, um mundo inteligível, mas a eterna e imutável Razão, através d a
qual Deus criou o mundo. Separar o mundo inteligível de Deus significaria admitir que
Deus está privado de razão na criação do mundo ou antes dela (Retract., 1, 3). As ideias
divinas são comparadas por Agostinho às raízes seminais de que falavam os Estoicos (§
93). A ordem do mundo, que depende da divisão das coisas em géneros e espécies, é
garantida precisamente pelas razões seminais que, implícitas na mente divina,
determinam, no acto da criação, a divisão e o ordenamento das coisas singulares.

Alguns Padres da Igreja, por exemplo Orígenes, consideravam que a criação do mundo era
eterna não podendo implicar uma mudança na vontade divina. O problema apresenta-se
também * Agostinho. "Que coisa fazia Deus antes de criar * céu e a terra"? Poder-se-ia
responder ironizando: "Preparava o inferno para quem quer saber demais"; mas seria
iludir com uma graça um problema sério. Na realidade, Deus é o autor não só daquilo que
existe no tempo, mas do próprio tempo. Antes da criação não havia tempo: não havia
portanto um "antes" e não tem sentido perguntar-se que coisa fazia Deus "então". A
eternidade está acima de todo o tempo: em Deus nada é passado e nada é futuro porque o
seu ser é imutável e a imutabilidade é um presente eterno em que nada passa. Mas o que é
o tempo?

214

Certamente, a realidade do tempo não é nada permanente. O passado é tal porque não é
mais, o futuro é tal porque não é ainda; e se o presente fosse presente e não se
transformasse continuamente em passado, não seria tempo, mas eternidade. Não obstante
esta fuga do tempo, nós conseguimos medi-lo e falamos de um tempo breve ou longo, quer,
passado quer futuro. Como e onde, efectuamos à sua medição? Agostinho responde: na
alma. Certamente não se pode medir o passado que não é mais, ou o futuro que não é
ainda; mas nós conservamos a memória do passado e estamos à espera do futuro.
O futuro não é ainda, mas existe na alma a espera das coisas futuras; o passado não existe
já, mas existe na alma a memória das coisas passadas. O presente está privado de duração
e num instante transforma-se, mas dura na alma a atenção às coisas presentes. O tempo
encontra na alma a sua realidade: no distender-se (distensio) da vida interior do homem
através da atenção, da memória e da espera, na continuidade interior da consciência que
conserva dentro de si o passado e tende para o futuro. Partindo à procura da realidade
objectiva do tempo, Agostinho consegue, no entanto, aclarar a sua subjectividade. Uma vez
mais o voltar da consciência sobre si mesma surge como o método resolutivo de um
problema fundamental.

§ 164. SANTO AGOSTINHO: A POLÉMICA CONTRA O MANIQUEISMO

Alcançada a determinação da natureza do pecado, S. Agostinho estava à vontade para


afrontar o problema do mal no mundo e combater vitoriosamente as afirmações dos
Maniqueu. Aquilo que, segundo S. Agostinho, desmente irrefutavelmente o próprio
princípio do maniqueismo é o carácter fundamental

215

de Deus: a incorruptibilidade que é própria de Deus na medida em que é o próprio Ser. A


argumentação do seu amigo Nebridio fazia ver o contraste entre este carácter da divindade
e as teses dos Maniqueu. Estes admitiam que Deus devia combater eternamente com o
principio do mal. Mas se, o principio do mal pode prejudicar Deus, Deus não é
incorruptível porque pode receber uma ofensa. E se não pode ser ofendido, falta algum
motivo porque Deus tenha de combater (Conf., VII, -2). Assim o reconhecimento da
incorruptibilidade de Deus retira todo o fundamento à afirmação maniqueia de um
princípio do mal; mas ao mesmo tempo volta a propor em toda a sua urgência e
grandiosidade o problema do mal no mundo. Se Deus é o autor de tudo e também do
homem, donde deriva o mal? Se do mal é autor o diabo, donde deriva o próprio diabo? Se o
mal depende da matéria de que o mundo é formado, porque é que Deus ao ordená-la
deixou nela um resíduo de mal? Qualquer que seja a solução a que se recorra, a realidade
do mal contradiz a bondade perfeita de Deus: não resta, pois, mais que negar a realidade
do mal, E tal é a solução por que se decide Agostinho.

Tudo aquilo que é, enquanto é, é bem. Também as coisas corruptíveis são boas, dado que
se tais não fossem não poderiam, corrompendo-se, perder a sua bondade.. Mas à medida
que se corrompem, elas não perdem apenas a bondade, mas também a realidade; dado que
se perdessem a bondade continuando a ser, chegaríam a um ponto em que seriam privadas
de toda a bondade e, contudo, seriam reais, portanto incorruptíveis. Mas incorruptível é
Deus e é absurdo supor que as coisas, corrompendo-se, se aproximam de Deus. É
necessário, pois, admitir que, à medida que se corrompem, as coisas perdem a sua
realidade, que

216

o mal absoluto é o nada absoluto e que o ser e o bem coincidem (Conf., VII, 12 ss).

Não pode, pois, haver outro mal no mundo senão o pecado e a pena do pecado. Ora o
pecado consiste, como se viu, na deficiência da vontade que renuncia ao ser e se entrega ao
que é inferior. Como não é um mal a água, enquanto, pelo contrário, é um mal o precipitar-
se voluntariamente na água, assim nenhuma coisa criada, por humilde que seja, é um mal,
mas é mal entregar-se a ela como se fosse o ser e renunciar por isso ao ser verdadeiro. (De
Vera rel., 20). Da tese maniqueia que fazia do mal não apenas unia realidade, mas um
princípio substancial do mundo, Santo Agostinho chegou à tese oposta: a negação total da
realidade ou substancialidade do mal e a sua redução à defecção da vontade humana frente
ao ser. O mal não é, portanto, realidade nem sempre no homem, dado que é defecção,
deficiência, renúncia, não-decisão, não-escolha; também no homem é, pois, não-ser e

morte. No pecado, Deus que é o ser abandona a alma, precisamente como na morte do
corpo a

alma abandona o corpo (De civ. Dei, XIII, 2).

§ 165. SANTO AGOSTINHO: A POLÉMICA CONTRA O DONATISMO

A segunda grande polémica de Agostinho é a

que dirige contra o donatismo. Trata-se de uma polémica que levou Agostinho a esclarecer
vigorosamente pontos fundamentais da sua construção religiosa. O donatismo (assim
chamado de Donato de Casas Negras, um dos seus corifeus), quando Agostinho foi
consagrado bispo, estendia-se pela África romana havia quase um século. Era um
Movimento cismático fundado no princípio da abso-

217

luta intransigência da igreja frente ao Estado. A Igreja é uma comunidade de perfeitos que
não devem ter contactos com as autoridades civis. As autoridades religiosas que toleram
tais contactos perdem a capacidade de administrar os sacramentos * os fiéis devem
considerá-los traidores e renovar * baptismo e os outros sacramentos recebidos deles.
Estas afirmações dos Donatistas tornavam impossível toda a hierarquia eclesiástica porque
davam a

qualquer fiel o direito de indagar dos títulos do seu


superior hierárquico e negar-lhe, quando o julgasse oportuno, obediência e disciplina.
Além disso. ligando o valor dos sacramentos à pureza de vida do ministro, expunham os
próprios sacramentos a uma dúvida contínua. Estabeleciam finalmente entre a Igreja e o
Estado uma antítese que estirilizava a

acção da Igreja numa pura negação.

Contra o donatismo, Agostinho afirma a validade dos sacramentos independentemente da


pessoa que os administra. É Cristo que opera directamente através do sacerdote e confere
eficácia ao sacramento que lhe administra; não podem, portanto, existir dúvidas sobre tal
eficácia. Além disso a comunidade dos fiéis não pode restringir-se a uma minoria de
pessoas que se isolam do resto da humanidade. "0 sangue de Cristo foi o preço do universo,
não de uma minoria. Só a Igreja que levantou as suas

tendas por toda a parte onde há vida civil, testemunha, com a sua existência, a validade do
Evangelho no mundo. E esta Igreja é a Igreja de torna." Assim Santo Agostinho via na
universalidade da Igreja a demonstração de facto do valor da mensagem cristã e ao mesmo
tempo defendia essa universalidade contra a tentativa de a negar e de reduzir
* comunidade cristã, como queriam os Donatistas,
* um conventículo de isolados.

218

§ 166. SANTO AGOSTINHO, A POLÉMICA CONTRA O PELAGIANISMO

A terceira grande polémica agostiniana é a que dirige contra o pelagianismo. Foi a


polémica que teve maior importância na formulação da doutrina agostiniana, levando
Agostinho a fixar com extraordinária energia e clareza o seu pensamento sobre o problema
do livre arbítrio e da graça.

O monge inglês Pelágio vivia em Roma nos primeiros anos do século V. Ali teve, pela
primeira vez, informação sobre a doutrina agostiniana da graça expressa na famosa
invocação a Deus: "Dá aquilo que mandas e manda aquilo que queres" (Da quod jubes et
Jube quod vis). Tendo Pelágio ido depois a Cartago com o seu amigo Celestio, na altura em
que à aproximação dos Godos muitas famílias romanas se refugiavam em África, as suas
críticas ao agostinismo difundiram-se principalmente por obra de Celestio, na própria grei
do bispo Agostinho. O ponto de vista de Pelágio consistia essencialmente em negar que a
culpa de Adão tivesse debilitado radicalmente a liberdade originária do homem e,
portanto, a sua capacidade de fazer o bem. O pecado de Adão é apenas um mau exemplo
que pesa, sim, sobre as nossas capacidades e torna mais difícil operar o bem, mas não o
toma impossível e principalmente não priva os homens da possibilidade de reagir e de
decidir-se pelo melhor. Para Pelágio, o homem, quer antes do pecado de Adão, quer
depois, é naturalmente capaz de operar virtuosamente sem necessidade do socorro
extraordinário da graça. Mas esta doutrina levava a considerar inútil a obra redentora de
Cristo. Se o pecado de Adão não colocou o homem na impossibilidade de salvar-se só com
as suas forças, o homem não tem evidentemente necessidade da ajuda sobrenatural que
lhe trouxe a encarnação do Verbo, nem tem necessi-

219

dade, por conseguinte, de fazer-se participe desta ajuda pela obra mediadora da Igreja e
dos sacramentos que ela administra.
Frente a uma doutrina que se apresentava tão destruidora para a dogmática cristã e a obra
da Igreja, Agostinho reagiu energicamente, afirmando que com Adão e em Adão pecou
toda a humanidade e que, portanto, o género humano é uma só "massa condenada" e
nenhum membro dela se pode subtrair à devida punição a não ser pela misericórdia e pela
não devida graça de Deus (De civ. Dei, XIII, 14). E para justificar a transmissão do pecado,
Agostinho foi levado a defender, acerca da origem da alma, não o criacionismo (dado que
não se pode admitir que Deus crie uma alma condenada), mas o traducianismo pelo qual a
alma é transmitida de pai a filho através da geração do corpo. O vigor com que Agostinho
defendeu estas teses levou-o a não hesitar diante de nenhuma das consequências.
Inclinou-se para um pessimismo radical sobre a natureza e a possibilidade do homem,
considerado incapaz de dar o mais pequeno passo no caminho da elevação espiritual e da
salvação; e foi levado a insistir no carácter imperscrutável da escolha divina que predestina
alguns homens e condena os outros. Mas por mais que estas conclusões pareçam
paradoxais (e a própria Igreja católica teve de mitigar-lhes o rigor), não há dúvida de que o
princípio sobre o qual S. Agostinho as funda tem na sua doutrina um alto valor, de todo
independente da polémica antipelagiana. Este princípio é a identidade da liberdade
humana com a graça divina. A vontade, segundo Agostinho, só é livre quando não está
escravizada pelo vício e o pecado; e é esta liberdade que só pode ser restituída ao homem
pela graça divina (lb., XIV, LQ. O primeiro livre arbítrio, aquele que foi dado a Adão,
consistia no poder não pecar. Perdida esta liberdade pelo pecado original, a liber-

220

dade final, aquela que Deus dará como prémio, consistirá no não poder pecar. Esta última
liberdade -será dada ao homem como um dom divino, dado que não pertence à natureza
humana, e tornará esta última partícipe da impecabilidade própria de Deus. Mas pois que
a primeira liberdade foi dada ao homem a fim de que ele procure a última e completa
liberdade, é evidente que só esta última exprime aquilo que o homem verdadeiramente
deve ser e pode ser. O não poder pecar, a libertação total do mal é uma possibilidade do
homem fundada numa dádiva divina: "0 próprio Deus é a nossa possibilidade" diz
Agostinho (Sol., 11, 1; De gratia Chr., 25).

Estas palavras de Santo Agostinho exprimem a entidade essencial da liberdade e da graça.


Aquilo que no homem é esforço de libertação, vontade de procurar e amar a Deus é, na sua
última possibilidade, a acção gratificante de Deus. Agostinho não pode admitir, como
faziam os pelagianos ou os semipelagianos, uma cooperação do homem com Deus, dado
que o homem não está no mesmo plano de Deus. Deus é o Ser que lhe dá existência, a
Verdade que dá lei à sua razão, o Amor que o chama a amar. Sem Deus o homem só pode
afastar-se do ser, da verdade e do amor, isto é, só pode pecar e condenar-se. Por isso ele
não possui méritos próprios que faça valer perante Deus. Os méritos do homem não são
mais que dons divinos; e o homem deve atribuí-los a Deus, não a si (De gratia et libero
arbítrio, 6). A iniciativa só pode pertencer a Deus porque Deus como Ser, Verdade e Amor
é a única força do homem. A graça divina revela-se no homem como liberdade, como
procura da verdade e do bem, afastamento do erro e do vício, aspiração à impecabilidade
final. Verdadeiramente a vontade humana de libertação é acção de graça. S. Agostinho
concebeu a relação entre Deus
221

e o homem no modo mais intrínseco; e assim reconhece à iniciativa divina todos os


caracteres positivos do homem.

§ 167. SANTO AGOSTINHO: A CIDADE DE DEUS


A vida do homem singular é dominada pela alternativa fundamental: viver segundo a carne
ou viver segundo o espírito. A mesma alternativa domina a história da humanidade. Esta é
constituída pela luta de duas cidades ou reinos: o reino da carne e o reino do espírito, a
cidade terrena ou a cidade do diabo, que é a sociedade dos impios, e a cidade celeste ou
cidade de Deus que é a comunidade dos justos.

Estas duas cidades nunca dividem nitidamente o seu campo de acção na história. Nenhum
período da história, nenhuma instituição é dominada exclusivamente por uma ou por
outra das duas cidades. Elas nunca se identificam com os elementos particulares de que a
história dos homens é construída, dado que dependem apenas daquilo que cada homem
singular decide ser. "O amor de si levado até ao desprezo de Deus gera a cidade terrena; o
amor de Deus levado até ao desprezo de si gera a cidade celeste. Aquela aspira à glória dos
homens, esta coloca acima de tudo a glória de Deus, testemunhado pela consciência... Os
cidadãos da cidade terrena são dominados por uma estulta cupidez de predomínio que os
induz a subjugar os outros; os cidadãos da cidade celeste oferecem os seus serviços uns aos
outros com espírito de caridade e respeitam docilmente os deveres da disciplina social" (De
civ. Dei, XIV, 28). Nenhuma marca exterior distingue as duas cidades que estão
misturadas desde o começo da história humana e o estarão até ao fim dos tempos. Só
interrogando-se a si
222

próprio, cada um poderá averiguar a qual das duas pertence.

Toda a história dos homens no tempo é o desenvolvimento destas duas cidades: ela divide-
se em três períodos fundamentais. No primeiro os homens vivem sem leis e não há ainda
luta contra os bens do mundo; no segundo os homens vivem sob a lei e por isso combatem
contra o mundo, mas são vencidos. O terceiro período é o tempo da graça em que os
homens combatem e vencem. Agostinho distingue estes períodos na história do povo de
Israel. Atenas e Roma são julgadas por Santo Agostinho principalmente através do
politeísmo da sua religião. Roma é a Babilónia do Ocidente. Na sua origem está um
fratricídio, o de Rómulo, que reproduz o fratricídio de Caim do qual nasceu a cidade
terrena. A própria virtude dos cidadãos de Roma são virtudes aparentes, na realidade são
vícios porque a virtude sem Cristo não é possível (1b., XIX, 25).

O livro VIII do De Civitate Dei é dedicado ao exame da filosofia pagã. Agostinho detém-se
principalmente em Platão a quem chama "o mais merecidamente famoso dos discípulos de
Sócrates". Platão reconheceu a espiritualidade e a unidade de Deus, mas nem sequer o
glorificou e adorou como tal, antes como os outros filósofos pagãos admitiu o culto
politeísta (lb., VIII, 11). As coincidências da doutrina platónica com a cristã são explicadas
por Agostinho com as viagens de Platão ao Oriente durante as quais pôde conhecer o
conteúdo dos livros sagrados (1h., VIII, 12). Quanto aos Neoplatónicos viu-se como o
próprio Agostinho foi orientado para o cristianismo pelos escritos de Plotino: eles
ensinaram a doutrina do Verbo mas não que o Verbo encarnara e se sacrificara pelos
homens (Conf., VII, 9). Est" filósofos entreviram, sem dúvida, ainda que de maneira
obscura, o fim do
223

homem, a sua pátria celeste, mas não puderam ensinar-lhe o caminho que é o assinalado
pelo apóstolo João: a encarnação do Verbo (De civ. Dei, X, 29).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 157. A principal fonte para a vida de Santo Agostinho são as Confissões em 13 livros dos
quais só têm carácter autobiográfico os primeiros 10. Sobre a conversão de S. Agostinho
ver especialmente: TruMME, Augustins geistige Entwickelung in den ersten Jahren nach
seiner "Bekehrung", Berlim, 1908; ALFARIE, L'évolution intellectuelle de Saint-Augustin,
Paris, 1918. Bibliografia completa sobre o tema no artigo Augustin de PoRTALiÉ no
"Dictionnalre de Théologie catholique". Ver também: BUONAIUTI, II Cristianesimo
nell'Africa romana, Bari, 1928, p. 341 ss; PINCHERLE, SantIAgostino vescovo e teologo,
Bari, 1930.

§ 158. As obras de Santo Agostinho em MIGNE, P. L., 32.1-47.1; no Corpus seript. ecel. lat.
da Academia de Viena; e no Corpus Christianorum, Série latina, Turnhout-Paris. Além
disso: Confissões, ed. Skutella, Leipzig, 1934; De civitate Dei, ed. Dombart-Kalb, Leipzig,
1928-29; Retractiones, ed. Ynoll, no Corpus de Viena.

O melhor estudo de conjunto sobre Santo Agostinho é GILSON, Introduction à I'étude de


Saint-Augustin, Paris, 1943. Além disso: DE PLINVAL, Pour connaitre Ia pensée religieuse
de Saint-Augustin, Paris,
1954; MARRou, Saint-Augustin et Ilaugustinisme, Paris,
1955.

§ 159. Sobre as relações entre a razão e a fé em Santo Agostinho: GRABMANN, Die


Geschichte der scholastichen Methode, 1, 1909, p. 125-143.

§ 161. Sobre o conceito de verdade: BoyEn, Llidée de vérité dans Ia philosophie de Saint-
Augustin, Paris,
1921; GUZZ0, Dai "Contra academicos" ai "De vera religione", Florença, 1925.

§ 162. Sobre as doutrinas morais: ROLAND-GosSELIN, Lcs morale de St.-Augustin, Paris,


1925.

224

§ 163. Sobre a doutrina das razões seminais: WIE=, Geschichte der Lehre von den
Koimekrãften,
1914, p. 108-224.

§ 164. Sobre o maniqueismo: CUMONT, Recherches sur le manichéisme, Bruxelas, 1908.

§ 165. Sobre o donatismo: BATTIFOL, Le catholicisme de Saint-Augustin, Paris, 1920;


BONAIUTI, Op. cit., p. 292 ss.

§ 166. Sobre a luta antipelagiana: DuCHESNE, Histoire ancienne de IÊglise, Paris, 1910;
BONAlUTI, La genesi della dottrina agostiniana intorno al pecato originale, Roma, 1916;
Guzzo, Agostinho contra Pelagio, 2.1 ed., Turim, 1934; BU0NAlUTI, Il Cristianismo ne111
Africa romana, p. 361 ss.

§ Sobre a cidade de Deus: SCHOLZ, Glaube und Unglaube in der Weltgeschichte, 1911;
TROELTSCH, Augustin, die chrL,@tliche Antícke und das Mittelalter, Mónaco, 1915.

225

A úLTIMA PATRÍSTICA
§ 168. DECADÊNCIA DA PATRÍSTICA

A partir dos meados do século V a patrística perde toda a vitalidade especulativa. No


Oriente, a sua actividade sobrevive nas disputas teológicas que, contudo, passam cada vez
mais para o serviço da política eclesiástica e perdem portanto todo o valor filosófico. No
Ocidente, a civilização romana rompeu-se sob os golpes dos bárbaros e não se formou
ainda a nova civilização europeia. O letargo do pensamento filosófico é, na realidade, o
letargo da civilização europeia. A cultura vive a expensas do passado. O poder do criação
diminuiu; permanece a actividade erudita que se reduz à compilação dos estratos ou dos
comentários e parte de uma renúncia prévia a qualquer investigação original.

No Ocidente permanece, todavia, um núcleo de interesse laico pelas sete artes liberais, o
trivio (gramática, retórica, dialéctica) e o quadrivio (aritmética, geometria, astronomia,
música). O conteúdo deste interesse manifesta-se em poucas obras que

227

compendiam na forma mais genérica a sabedoria da Antiguidade: a História Natural de


Plínio o Velho, o De officiis de Cícero, a Farsália de Lucano

e a Consolação da filosofia de Boécio. Devido a estas obras salva-se a tradição humanística


que é característica e que conduzirá ao florescimento do século XIII.

§ 169. ESCRITORES GREGOS

Mais próximo do Neoplatonismo do que do cristianismo está, mesmo depois da conversão,


Sinésio de Cirena, nascido entre 370 e 375 e falecido por volta de 413. Fora discípulo da
neoplatónica Hipázia (§ 125) com a qual manteve relações amigáveis mesmo depois. Em
409 foi nomeado bispo de Ptolomaida com a condição de renunciar à mulher e às suas
convicções filosóficas. Algumas obras suas não mostram sinais do cristianismo. Tais são:
os discursos sobre o poder real; o escrito sobre o dom do astrolábio, as narrações egípcias
ou sobre a providência; o elogio da calvície, sátira aos Sofistas que falam sem tom nem
som; a apologia de Dion Crisóstomo; um escrito sobre os santos. Têm carácter mais
estritamente cristão numerosas cartas, duas homilias, duas orações e alguns hinos. Sinésio
considera Deus neoplatonicamente como a unidade da unidade e nega a ressurreição da
carne e o fim do mundo.

Bastante próximo do neoplatonismo está também Nemésio que foi bispo de Emessa na
Fenícia e compôs, no final do século IV ou princípio do século V, um escrito Sobre a
Natureza do Homem, que se difundiu na Idade Média através da versão latina feita no
século XI provavelmente por Alfano (1058-1085), arcebispo de Salerno. O homem é,
segundo Nemésio, o traço de união entre o mundo sensível e o mundo supra-sensível: pelo
espírito par-

228

tence ao mundo supra-sensível, isto é, ao mundo dos seres espirituais ou anjos; pelo corpo
pertence ao mundo sensível. Por isso o primeiro homem não foi criado imortal nem
mortal; podia tornar-se uma ou outra coisa e cabia a ele escolher uma ou outra alternativa.
Transgredindo o mandado divino, torna-se mortal; mas pode de novo, retornando a Deus,
participar da imortalidade (De nat. hum., 1). Nemésio aceita a definição aristotélica da
alma como "enteléquia de um corpo físico que tem a vida em potência". Como tal a alma é
uma substância imaterial e incorpórea que subsiste por si e não é, portanto, gerada no
corpo ou com o corpo. A sua união com o corpo não é uma mistura de substâncias mas
uma relação pela qual a alma está toda presente em todas as partes do corpo e o vivifica do
mesmo modo que o sol ilumina com a sua presença o ar (1b., 3). A alma está dotada de
livre arbítrio porque a sua natureza é racional. Quem pensa pode também reflectir e quem
reflecte deve também poder escolher livremente (1b., 41). Foge à liberdade humana aquilo
que foge à reflexão: a saúde, as doenças, a -morte e assim sucessivamente (1b., 40).

Quando as escolas retóricas do mundo grego se aproximavam já da ruína, tiveram um


breve florescimento as escolas da cidade síria de Gaza. Entre os mestres desta escola dois
têm um certo relevo e figuram como apologetas do cristianismo. Um é Procópio, cuja vida
decorre entre 465 e 528, que foi autor dos comentários do Velho Testamento; o outro é
Encias que viveu no mesmo tempo e que deve a sua celebridade na Idade Média ao diálogo
Teofrasto ou sobre a imortalidade da alma e sobre a ressurreição do corpo, composto antes
de 534. O escrito é dirigido contra a doutrina da pré-existência da alma e da sua
transmigração. As almas não existem antes da sua união com o corpo, mas

229

são criadas por Deus no momento desta união. Deus criou todas as inteligências
incorpóreas de uma vez, mas cria diariamente as almas dos homens.

Na mesma linha de pensamento navega o irmão de Eneias, Zacarias, que foi bispo de
Mitilene, dito o escolástico (isto é, o retórico) e morto antes de 533. Zacarias é autor de um
diálogo intitulado Ammonio, destinado a combater a doutrina da eternidade do mundo. É
notável o facto de que, para negar a eternidade, Zacarias negue a necessidade do mundo,
procedimento que seguem todas as críticas do género que virão depois. O mundo foi criado
pela vontade de Deus, por isso não é o efeito necessário da natureza divina e não é coeterno
com Deus. À objecção de que se Deus não tivesse criado o mundo ab aeterno, não seria o
eterno criador e feitor do bem, Zacarias responde que Deus tem em si, desde a eternidade,
a ideia do mundo e de todas as coisas que o compõem e também a potência e a vontade de
criá-lo. Um construtor é sempre construtor, mesmo no momento em que não construa
nada e um retórico é sempre tal mesmo se nem sempre pronuncia discursos.

Contra a eternidade do mundo escreveu também uma obra o gramático alexandrino João,
dito Filipono pela sua incansável actividade. É também autor de uma obra teológica
intitulada Árbitro ou sobre a Unidade, de uma outra, Sobre a Ressurreição do Corpo e de
um comentário à narração bíblica da criação, intitulado Sobre a Construção do Mundo.
Este último e o escrito Sobre a Eternidade conservaram-se; das outras duas obras temos
fragmentos conservados pelo seu adversário Leôncio de Bizâncio e João Damasceno. João
Filipono entendia por natureza a essência comum dos indivíduos e por hipostasis ou
pessoa a mesma natureza circunscrita à existência singular de determinadas qualidades.
Flor isso entendia a unidade de substância

230

em Deus como a natureza comum das três hipóstasis e fazia assim, das três pessoas
divinas, três existências particulares, isto é, três divindades. Ao lado desde trideísmo (que,
por outro lado, teve neste período, como no precedente, numerosos defensores) João
admitia o monofisismo no que respeita à encarnação. Não podem subsistir duas naturezas
numa única hipóstasis: na pessoa de Cristo não pode, portanto, subsistir senão a natureza
divina. O pressuposto destas interpretações dogmáticas é a lógica aristotélica, à qual João
dedicara um comentário: de facto o significado de natureza e de hipóstasis é tirado de
Aristóteles. É curioso notar que quando a lógica aristotélica for de novo empregada, por
acção de Roscelino de Compiègne, na interpretação do dogma da trindade, chegar-se-á à
mesma conclusão trideIstica.

Ao tempo de Justiniano pertence Leôncio de Bizâncio que viveu entre 475 e 543
aproximadamente, autor de três livros contra os Nestorianos

o os Eutriquianos e de dois escritos contra Severo, o patriarca monofisita de Antioquia. O


fundamento das interpretações dogmáticas de Leôncio é a lógica aristotélica filtrada
através dos escritos dos Neoplatónicos. Para salvar a interpretação ortodoxa do dogma da
encarnação, segundo o qual na única pessoa de Cristo subsistem as duas naturezas,
humana e divina, e para manter firme conjuntamente o princípio aristotélico de que cada
natureza não pode subsistir senão numa única hipóstasis, Leôncio introduz o conceito de
etúpostasi, isto é, de uma natureza que subsista, não numa hipóstasis própria, mas na
hipóstasis de uma outra natureza. Tal é o caso da natureza humana de Cristo, a qual não
tem uma hipóstasis sua mas subsiste na hipóstasis própria da sua natureza divina. Mas
nem nesta doutrina, que se encontra já em Cirilo, o máximo antagonista dos monofisitas,
nem nas

231

outras, Leôncio atinge uma verdadeira originalidade de pensamento.

§ 170. PSEUDO-DIONíSIO O AEROPAGITA

Pelos princípios do século VI começam a ser conhecidos e citados alguns escritos cujo
autor se qualifica como Dionísio, aquele que, segundo os Actos dos Apóstolos (XVII, 34),
foi convertido ao cristianismo pela prédica do apóstolo Paulo diante do Aerópago. Motivos
internos e externos demonstram que tais escritos não podem remontar para lá do fim do
século V e que, portanto, a sua atribuição a Dionísio é impossível. Na verdade, a fonte
principal destes escritos é o neoplatónico Proclo (418-485), de quem o autor nalguns
pontos inclui estratos textuais.

Como Proelo, Dionísio distingue uma teologia afirmativa, a qual, partindo de Deus, se
dirige para o finito com a determinação dos atributos ou nomes de Deus e uma teologia
negativa, a qual procede do finito para Deus e o considera acima de todos os predicados ou
nomes com que podemos designá-lo. A este segundo tipo de teologia pertence o breve
tratado Teologia Mística, segundo o qual o mais alto conhecimento é o não saber místico:
só prescindindo de toda a determinação de Deus, se compreende Deus no seu ser em si. No
tratado Sobre os Nomes Divinos, Dionísio insiste na impossibilidade de designar
adequadamente a natureza de Deus. Ainda que seja a unidade absoluta e o bem supremo
de que todas as coisas participam e sem o qual não poderiam ser, Deus é superior à própria
unidade tal como é concebida por nós: é o Uno super-essencial, que é causa e princípio de
todo o número e de toda a ordem. Elo não pode ser designado verdadeiramente nem como
unidade, nem como trindade, nem como número,

232

nem como qualquer outro termo de que nos servimos para as coisas finitas. O próprio
-nome de Bem, que é o mais alto de todos, é inadequado para a altura da perfeição divina.
A emanação das coisas por Deus, que tem em si as ideias ou modelos de toda a realidade, é
compreendida por Dionísio como criação. O mundo não é um estádio do desenvolvimento
de Deus, mas um produto da vontade divina. Contudo os seres do mundo sã o todos
manifestações ou símbolos de Deus e por isso a sua consideração permite ao homem
ascender a Deus e refazer assim no inverso o caminho da criação.

Nos dois tratados Sobre a Jerarquia Celeste e Sobre a Jerarquia Eclesiástica, Dionísio
coloca Deus no centro das esferas em que se ordenam todas as coisas criadas. Mais
próximas dele estão as criaturas mais perfeitas, enquanto nas esferas periféricas estão
situadas as criaturas menos perfeitas. A hierarquia celeste é constituída pelos anjos que se
distribuem em 9 ordens reunidas em disposições ternárias. A primeira é a dos Tronos, dos
Querubins e dos Serafins; a segunda é a das Potestades, das Dominações e das Virtudes; a
terceira é a dos Anjos, dos Arcanjos e dos Principados (De celesti hier., 6 ss). Ã hierarquia
celeste corresponde a eclesiástica, disposta também em três ordens. A primeira é
constituída pelos Mistérios: Baptismo, Eucaristia, Ordens sacras. A segunda é constituída
pelos órgãos que administram os mistérios: o Bispo, o Padre, o Diácono. A terceira é
constituída por aqueles que através destes órgãos são conduzidos à graça divina:
Catecúmenos, Energúmenos e Penitentes. O termo da vida hierárquica é a deificação, a
transfiguração do homem em Deus. Só se consegue através da ascensão mística e o seu
cume é o não saber místico, a muda contemplação do Uno.

Os livros de Dionísio seguem a direcção neoplatónica, adaptando-a o melhor possível às


exigên-

233

cias cristãs, mas servindo-se contudo da terminologia dos mistérios, em que se comprazia
o neoplatonismo. Traduzidos por João Erígena, tiveram na Idade Média uma difusão
larguíssima e constituíram o fundamento da mística e da angeologia medieval.

§ 171. MÁXIMO CONFESSOR. JOÃO DAMASCENO

Nos escritos do falso Dionísio se inspira Máximo, dito o Confessor, nascido em


Constantinopla em 580, falecido em 622. Foi o maior adversário do chamado
monoteletismo segundo o qual todos os actos de Cristo dependeriam da sua vontade
divina, da qual a natureza humana seria o instrumento passivo. Esta doutrina foi depois
condenada no VI Concílio Ecuménico de 680; mas a luta contra ela custou a Máximo
perseguições e suplícios. Contudo, escreveu numerosas obras quase todas na forma de
comentários ou de recolhas de sentenças. Entre essas obras estão os comentários ao
Pseudo-Dionísio e a Gregório Nazianceno (Ambígua in S. Gregorium theologum),
opúsculos teológicos e várias recolhas ou florilégios de sentenças. Segundo S. Máximo, o
homem pode conhecer Deus não em si próprio mas apenas através das coisas criadas de
que Deus é a causa. Por isso só pode chegar a determinar os atributos de Deus que as
próprias coisas revelam: a eternidade, a infinidade, a bondade, a sabedoria e assim
sucessivamente. No seu ser em si, Deus é inconcebível e inexprimível. As próprias
perfeições que nós lhes atribuímos, fundadas na consideração das coisas criadas, estão
abaixo da sua natureza e podem, por isso, ser quer negadas quer afirmadas dele. A
influência da teologia negativa do Pseudo-Dionísio é aqui evidente. E é também evidente
na doutrina mística de S. Máximo. Se voltarmos as costas às paixões

234

que contrastam com a razão e nos elevarmos ao perfeito amor de Deus, podemos conseguir
um conhecimento de Deus que transcende a razão e o procedimento discursivo e no qual
Deus se revela imediatamente. Mas a este conhecimento de Deus não se pode chegar com a
capacidade da natureza humana, mas mercê da graça divina, a qual, todavia, não age por si
só, mas eleva e aperfeiçoa as capacidades que são próprias do homem (Quaest. ad
Thalassium, q. 59). O centro das especulações teológicas de S. Máximo é o Deus-Homem.
Para ele o Logos é a razão e o fim último de todo o criado. A história do mundo efectua um
duplo processo: o da encarnação de Deus e o da divinização do homem. Este último só se
Pôde iniciar com a encarnação e com o f@n de restabelecer no homem a imagem de Deus.
Como princípio deste segundo processo, Cristo devia necessariamente ser verdadeiro Deus
e verdadeiro homem. As duas naturezas nele não se misturam nem rompem a unidade da
pessoa e dado que a cada uma das duas naturezas está unida a capacidade de querer, em
Cristo subsistiam duas vontades, a divina e a humana, mas a vontade humana era levada à
decisão e à acção pela vontade divina (Patr. Grec.,
91.*, col. 48).

João Damasceno resume as características do último período da patrística e conclui a


própria patrística no seu ramo oriental, retomando e sistematizando os resultados. Não se
conhece o ano do seu nascimento. Sabe-se que pertencia a uma família cristã do Damasco
na qual era hereditário de pai para filho um ofício público por conta do governo árabe; e
João tinha de facto o nome árabe de Mansur. Por volta de 730 começa a sua actividade de
escritor teológico a favor do culto das imagens que fora proibido alguns anos antes por
Leão o Isáurico. Quando João foi condenado em 754 por um concílio iconoclasta de
Constantinopla, havia já falecido.

235

é a Fonte do ConheA mais famosa das suas Obras primeira Ciniento, que se divide
em três partes. A ,uma introdução filosófica que segue de perto parte é a lógica de
Aristóteles. A segunda é a metafísica e mosta em boa parte urna história das
heresias, COIr sobre o Panário 'de Epifânio (@ 154). A terceira é dedicada à exposição da fé
Ortodoxa e com este @e (De fide ortodoxa) foi traduzida título precisamente ndione de
Pisa (falecido em 1194) para latim por Burgu ndamentais da escolásticae tornou-se um
dos textos fu de urna

A obra de João Damasceno não passa compilação sendo a parte original escassissima. Mas

tom o mérito de recolher e reordenar sistematicamente toda a especulação da patrística


grega que a Igreja reconheceu e fez sua. A sua obra é, portanto, uma espécie de florilégio da
própria patrística, unificada pelo critério da ortodoxia. João fixa o principio da
subordinação das ciências profanas à teologia e

afirma designadamente que a filosofia deve ser a

serva da teologia segundo uma expressão que devia, ser retomada n@ escolástica por
Pedro Damião. Como serva da teologia, a filosofia fornece certos pressupostos
fundamentais da fé e em primeiro lugar a demonstração da existência de Deus. A
demonstração é retirada por João de outros esmitores, mas a formulação que ele lhe dá é
aquela de que partiram muitos escolásticos, entre eles S. Tomás. Em primeiro lugar, tudo
aquilo que é criado é mutável, dado que a própria criação é mudança (do nada ao ser). Mas
tudo aquilo que existe no mundo sensível ou espiritual é mutável, portanto criado: supõe,
portanto, um

criador, que não seja criado por sua vez mas incriado; e este é Deus. Em segundo lugar, a
conservação e

a duração das coisas supõem a existência de Deus, dado que elementos diversos e
contrastantes como o fogo, a água, a terra, o ar não poderiam permanecer unidos sem
destruir-se se não interviesse uma força omnipotente para mantê-los e conservá-los juntos;

236

esta força omnipotente é Deus- Finalmente, a ordem

e a harmonia do mundo não podem ser produzidos pelo puro acaso e pressupõeM um
principio ordenador que é Deus (De fide orthod., 1, 3), Mas se a

existência de Deus pode ser alcançada pela razão humana, a sua essência é
incompreensível. "A divindade, diz joão (Ib., 1, 4), é indeterminável e incOm-

pode ser compreendido dela, a preensivel; e só isto preensibilidade". sua


indeterminabilidade e incOM trasta com a sua Podemos negar dela tudo o que con
r-lhe tudo aquilo

ao infinita e podemos atribui perfeiç~ inho que está implícito em


tal perfeição; mas o cairi -guro é o negativo porque todo O atributo mais se positivo é
desigual a Deus. Trata-se, como sc vê,

de noções familiares a toda a patrística oriental, que

masceno reproduz com as mesmas fórmulas. COM Da ureza da alma


igual procedimento aborda a nat humana que considera naturalmente imortal, porque

o das substâncias incorpóreas e pertence ao númer não é espirituais e é


dotada. de livre, arbítrio. Isto

negado pela presciência divina, que tudo Prevê 'a'

não predetermina tudo: o mal depende unicamente do livre querer do homem (Ib., 11, 30).

§ 172. ESCRITORES LATINOS

Os escritores latinos da última patrística caminham sobre os passos de S. Agostinho e


manifestam a mesma falta de originalidade especulativa dos seus

contemporâneos gregos e a mesma tendência para expor, coordenar e sistematizar


doutrinas já conhecidas.

o iniciador do semipelagianismo foi JO" Cassiano, nascido por volta do ano 360 na Gália

em 435, autor de um escrito sobre ,meridional, falecido regras dos mosteiros e de unia a
organização e as tiones, que é a rela0o dos colóobra intitulada Colla

237

quios travados por ele e seu amigo Germano com eremitas egípcios. Precisamente nesta
obra, Cassiano considera a tese de que Deus ilumina e reforça a boa vontade que nasce no
homem, mas que esta vontade tem origem apenas no esforço humano. Se o querer bem
não basta ao homem, quando não é socorrido pela graça divina, todavia esta graça só é
dada àquele que tem boa vontade. A tese de Cassiano difundiu-se largamente nos
mosteiros do Sul da Gália.

Claudino Mamerto, que foi padre em Viena no Delfinado e morreu por volta de 474, é
autor de um escrito em três livros, De statu anin2ac, composto em 468 ou 469, no qual se
defende a incorporeidade da alma humana. É impossível que a ffima caia sob a categoria
da quantidade, que é própria do corpo, dado que o seu poder, memória, razão, vontade
estão privados de quantidade, portanto são incorpóreos. Ora estas faculdades da alma são
a sua própria substância, dado que toda a alma é razão, vontade, memória; segue-se daqui
que toda a alma está privada de quantidade e é incorpórea (De statu an.,
111, 4). A alma é a vida do corpo e está, portanto, presente em todas as partes do corpo;
mas está presente num modo que exclui a sua distribuição espacial porque está toda em
todo o corpo e toda em cada parte singular do corpo. A sua presença no corpo é idêntica à
de Deus no mundo. Portanto, a alma tem a mesma incorporeidade de Deus. Trata-se de
um resumo da demonstração agostiniana da imaterialidade da alma.

Por volta de 430, Marciano Capela compunha o seu escrito De nií,Ptiis Mercurii et
Philologiae, um prospecto de todas as artes liberais, que subsistiu como um dos textos
fundamentais da erudição medieval. Mas a quem se deve a sobrevivência de uma parte
notável da filosofia grega na Idade Média é a Ãneio Mânho Torquato Severino Boécio,
nascido

238

em Roma por volta de 480, cônsul de Roma sob o

rei Teodorico, depois caído em desgraça deste, encarcerado e morto em 524. Boécio
empreendeu a tarefa de traduzir e interpretar todas as obras de Platão o de Aristóteles e de
demonstrar o seu acordo fundamental, mas só em pequena parte conseguiu realizar este
vasto projecto. Possuímos as versões dos Analíticos 1 e 11, dos Tópicos (de que se perdeu
um

comentário), dos Elencos Sofísticos e do De interpretatione com dois comentários, das


Categorias com um comentário. Temos, além disso, o comentário à versão de Mário
Vitorino do Isagogo de Porfírio, a sua versão do Isagogo com um comentário e outros
trabalhos de lógica, Entre estes últimos são importantes os do silogismo hipotético dado
que neles Boécio, seguindo o próprio exemplo dos Aristotélicos, insere a lógica estoica no
tronco da lógica aristotélica; e foi por estes escritos e pelos de Cícero que os escritores
medievais tiveram conhecimento da lógica estoica.

Mas a obra mais famosa de Boécio é o De consolatione philosophiae, que é também pouco
original porque resulta da utilização de várias fontes entro as quais o Protréptico de
Aristóteles, conhecido talvez através de algum escrito mais recente que o

reproduzia. A obra está redigida em forma retórica o alegórica e a filosofia é apresentada


na figura de uma nobre dama que conforta Boécio e responde às suas dúvidas. Nada de
especificamente cristão se

encontra na obra e assim não faltou quem, em tempos recentes, acreditasse que Boécio era
pagão, ou então cristão só de nome, e que portanto fossem apócrifos os opúsculos
teológicos que nos chegaram dele (De Sancta Trinitate; Utrum Pater et Filius et Spirictus
Santus de divinitate substantialiter praedicentur; Quomodo substantiae in eo quod sint
bonae sint; De fide; Liber contra Nestorium et Eutychen). Mas a autenticidade destes
escritos, com excepção do
239

De fide, está comprovada, não só pelo testemunho dos códices, como pelo do
contemporâneo de Boécio, Cassiodoro, e portanto não pode ser posta em dúvida. Além
disso, se o De consolatione não tem qualquer referência aos mistérios do cristianismo, está
impregnado por aquele espírito platónico ou neoplatónico que os escritores da patrística
consideram substancialmente cristão. As traduções e os escritos lógicos de Boécio
asseguraram a sobrevivência da lógica aristotélica mesmo no período da maior
obscuridade medieval e fizeram dela um elemento fundamental da cultura e do ensino
medieval. Quanto à De consolatione, está entre as obras mais famosas da Idade Média.
Divide-se em 5 livros e é mista em verso e prosa. O primeiro livro é uma espé cie de
introdução na qual a filosofia se apresenta a Boécio na forma de augusta matrona que vem
trazer-lhe conforto na triste condição em que se encontra, não por sua culpa, mas por ter
querido seguir a verdade
e a justiça. No segundo livro, a filosofia faz ver a Boécio que a felicidade não consiste nos
bens da fortuna, que são mutáveis e caducos e que, mesmo quando se possuem, trazem
consigo o perigo e o temor da sua perda. A felicidade deve consistir numa condição que
exclua qualquer temor deste género e compreenda em si todos os bens que tornam o
homem suficiente por si próprio. O terceiro livro contém, precisamente, a teoria da
felicidade assim compreendida. É evidente que não pode consistir nem na riqueza, nem no
poder, nem nas honras, nem na glória, nem nos prazeres. Nenhum destes é o bem
supremo, o bem melhor de todos e que torna o homem auto-suficiente. Defende pois que a
felicidade consiste no próprio Deus, enquanto é o ser de que não se pode conceber melhor,
portanto o bem supremo. Deus é conjuntamente a origem de todas as coisas e o
fundamento da verdadeira felicidade humana (111, 10). O quarto livro examina em que

240

S. GREGÓRIO MAGNO

o mundo e modo Deus, como supremo bem, rege expõe uma teoria da providência e do
fado. A proVidência é o plano da ordem e da disposição do mundo na inteligência divina;
o fado é a própria ordem que por aquele plano vem a ser determinada no mundo. "A
providência é a própria razão (ratio) divina que, constituída como supremo Princípio
de tudo, dispõe todas as coisas; o fado é a disposição inerente às coisas mutáveis,
disposição pela qual a Providência assinala a cada coisa a sua ordem própria" (IV, 6). A
ordem do fado, na multiplicidade dos seus desenvolvimentos temporais, depende pois da
própria razão de Deus. Os problemas que nascem deste conceito da Providência e do fado
são examinados no quinto livro. A Providência e o fado parecem excluir à primeira vista a
liberdade, mas em tal caso seria inútil para o homem a razão que serve para julgar e
escolher livremente. A resposta da filosofia ao problema é que, se Deus prevê tudo, não
prevê que tudo aconteça com necessidade. A previsão de um acontecimento não implica
que o acontecimento se deva realizar necessariamente. Além disso, em Deus a previsão é
inerente à natureza da sua vida, que é uma eternidade privada de qualquer sucessão. Nele
não existe nem o passado nem o futuro e a sua ciência é o conhecimento total e simultâneo
de todos os acontecimentos que se verificam sucessivamente no tempo (V, 6). Nele estão
presentes também os

acontecimentos futuros, mas estão presentes no mesmo modo do seu acontecimento; e


aqueles que dependem do livre arbítrio estão presentes precisamente na sua contingência
(V, 6). A importância de Boécio para a cultura medieval foi enorme. A De consolatione teve
numerosíssimos comentários, as obras lógicas introduziram a lógica aristotélica (como se
disse) no ensino e na cultura escolástica. Os seus opúsculos teológicos forneceram às
discussões teológicas medievais os conceitos, a terminologia e o método. Com

241

tudo isto, Boécio não assume o lugar de pensador original. É um hábil compilador e uni
retóricO CIO-

adaptar à língua e à mentalidade quente que soube seguindo a sombra de latina a


especulação grega, S. Agostinho de quem tomou a divisa: unir, nos

limites do possível, fé e razão,

Contemporâneo e amigo de Boécio mas de têmpera diferente foi Magno Aurélio


Cassiodoro, nascido cerca de 477 em Squillace na Calábria, ministro de Teodorico e dos
seus sucessores. Em 540 abandonou a corte e retirou-se para o mosteiro de Vivario que
fundara, para se dedicar à vida espiritual e à ciência. Morreu em 570. De Cassiodoro têm
grande interesse histórico as cartas que escreveu por conta de Teo(10-

rico, cuja recolha leva o nome@de Variae, e a História dos godos de que só nos chegou um
estrato A obra mais importante, que escreveu no claustro, são as

Istitutiones divinarum et saecularium lectiOnum em

dois livros: o primeiro indica os autores que são estudados Corno guias das disciplinas
teológicas; o

segundo é uni manual das sete artes liberais. A obra

devia servir aos monges e foi na Idade Média um dos manuais mais usados. Num breve
escrito, De a?úma, Cassiodoro propõe-se demonstrar, nas pegadas de Claudiano Mamerto,
a incorporeidade da alma humana. O escrito reproduz os argumentos de Mamerto que, por
sua vez, como se viu, foram retirados de S. Agostinho.

A última figura da patrística é verdadeiramente


O papa Gregório Magno, nascido em Roma provavelmente em 540, consagrado pontifico
em 590, falecido em 604. Documento da actividade papal de Gregório é o Registrum
epistolarum, colecção das suas cartas Oficiais. O Uber regulae pastoralis estabelece a
missão do pastor de almas. Os Diálogos tratam da vida e dos mil@gres dos diferentes
homens pios de Itália, o mais conhecido dos quais é S. Bento de Nórcia. Gregório escreveu
também uma exposição do livro de Job e

242

duas colectânias de homilias sobre os Evangelhos e sobro Ezequiel. A parte especulativa de


todos estes escritos é muito restrita. A importância de Gregório está toda no ter procurado
conservar, num período de decadência total da cultura, as conquistas dos séculos passados.
O tempo em que vivia parecia ter levado à destruição total da cultura e de to-da a
civilização e prenunciar o fim do mundo. "As cidades estão despovoadas, escrevia Gregório
(Dial., 111, 38), as aldeias arrasadas, as igrejas queimadas, os mosteiros dos homens e das
mulheres destruidos, os campos abandonados pelos homens estão privados de quem os
cultive, a terra está deserta na solidão e nenhum proprietário a habita, as bestas ocuparam
os lugares onde antes se aglomeravam os homens. Não sei o que acontece nas outras partes
do mundo. Mas na terra em que vivemos, o fim do mundo não só se anuncia, mas já se
mostra em acto". A desolação de uma civilização quebrada e despodaçada não se
podia descrever melhor. Nesta desolação, a cultura mantém-se viva apenas nalguma figura
solitária de erudito que a atinge nas obras do passado e a transmite em rudes e
desordenados compêndios.

Assim Isidoro de Sevilha, nascido cerca de 570 e falecido em 636, compôs uma série de
obras que deviam servir às escolas abaciais e episcopais onde se

formavam os clérigos. Estas obras têm um carácter de pura compilação: são justapostas
noções heterogéneas sem sequer uma tentativa de unificação. No De natu@a rerum
Isidoro expõe a astronomia e a medicina tiradas das Questioni naturali de Séneca. No De
ordine

creaturarum descreve a hierarquia dos seres espírituai,s, segundo o modelo neoplatónico.


Nas Sententiae faz a história da humanidade desde a criação e trata da graça, das
condições da vida terrestre do homem e de direito natural. A obra mais célebre são os 20
livros de Origini ou Etimologias, uma espécie de enciclopédia, onde está condensado todo
o saber do

243

passado, das artes liberais à agricultura e às outras artes manuais. Grande parte desta
enciclopédia é destinada a investigações gramaticais, mas não se descura aquilo que pode
ser útil a uma educação filosófico-teológica. Há entremeados estratos retirados das obras
de escritores clássicos e dos padres da Igreja, em particular de Gregório Magno. A filosofia
é definida com os Estoicos como "a ciência das coisas humanas e divinas" e é dividida em
física, ética e lógica. Através da obra de Isidoro, de Sevilha os resultados da ciência antiga
eram salvos do naufrágio e destinados a alimentar o trabalho intelectual dos séculos
seguintes.

A mesma natureza têm os escritos de Boda o Venerável, nascido em 674 em Inglaterra,


morto em
735 no claustro de Jarrow. Boda forneceu ao catolicismo inglês o mesmo arsenal
intelectual que Isidoro forneceu ao espanhol. O seu De natura rerum, baseado
principalmente na obra de Plínio o Velho, dá-nos a mesma imagem do mundo que o
tratado homónimo de Isidoro. Boda é também autor de escritos gramaticais e cronológicos
e de uma História eclesiástica da gente dos Anglos que vai até 731. Do ponto de vista
filosófico, Boda inspira-se nas obras de S. Agostinho. Em particular considera que a
matéria do mundo contém as sementes de todas as coisas e que delas, como de causas
primordiais, se desenvolvem no curso do tempo todos os seres do mundo.
O homem é um microcosmo; a história divide-se em partes correspondentes aos sete dias
da criação. Boda é um outro anel da cadeia através da qual a

cultura antiga se transmite à Idade Média.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 168. Sobre a história deste período: DAWSON, Les origines de I'Europe, Paris, 1934.
Sobre os escritores gregos deste período: KRUMBACHER, Geschichte der byzantinische
Literatur, 2.1 edição, 1897.

244
§ 169. Os escritos de Sinésio in P. G.@ 66.o; de Nemésio in P. G.@ 40.o9 504-817
(tradução latina do De natura hominis -a cargo de Holzinger, Leipzig, 1887); de Procópio
de Gaza in P. G., 87.1 p. I-III; de Eneias de Gaza e de Zacarias Escolástico in P. G.@ 85.%
871-1004; de João FilipGno, edição teubneriana do De mundi aeternitate, a cargo de Rabe,
1899, e do De opificio mundi, a cargo de Reichardt, Leipzig, 1897; de Leõncio de Bizâncio
in P. G., 86.o, p. I-U. - JAEGFR, Nemesios von Nemesa, Berlim, 1914.

§ 170. As obras do falso Dionísio in P. G.@ 3.o-4.o. Sobre o carácter pseudo-epigráfico dos
escritos: STIGLMAYR in "Hist. Jahrb.", 1895, 253-273, 721-748; KOCH, in "Theal.
QuartaIschr.", 1895, 353-420, 1896, 290-298; Forschungen zur christ. Litteratur-und
Dogmengeschichte, 1, 2-3, Mogúncia, 1900. Sobre a doutrina de Dionísio: M-ULLER, nos
"Beitrãge" do Baeumker, XX, 3-4; RoQuEs, LIunivers dionysien. Structure hiérarchique du
monde selon le Pseudo-Denys, Paris, 1954 (com bibl.).

§ 171. Os escritos de Máximo Confessor in P. G.,


90.---91.1; de João Damasceno in P. G., 94.o-96.,. Sobre João Damasceno: PRANTL,
Gesch. der Logik, 1, 657-658; GRABMANN, Gesch. der scholast. Methode, 1, 108-113; 11,
93 ss., 389 ss.

§ 172. Os escritos de Cassiano in P. L., 49.o-50.* e no Corpus de Viena, 13., e 17.1; os de


Mamerto in P. L., 53.,, 697-780 e no Corpus de Viena, 11.1. o escrito de Marciano Capella,
ed. Eyssenhardt, 1866. As obras de Boécio in P. L.@ 63.---64.o e no Corpus de Viena,
48.o e 67.o; os Opúsculos Teológicos, ao cuidado de STEWART e RAND, Londres, 1926.

Sobre a autenticidade dos escritos teológicos e o testemunho de Cassiodoro: USENER,


Anecdoton Holderi, Bonn, 1877. Sobre a não autenticidade do De fide: RAND, in
"Jahrbucher für klass. Philol.", supl., 1901,
405-461. Sobre as obras lógicas de, Boécio: GRABMANN, Die Gesch. der scholast.
Methode, 1, 149-160; 11, 70-72; DCRR, The Propositional Logie of Boethius, Amsterdão,
1951; VANN, The Wisdom of Boethius, Londres, 1952.

As obras de Cassiodoro in P. L., 69.---70.1; de Gregório Magno in P. L., 75.---79.1; de


IsidorG in P. L.,
81.---84.o; de Beda in P. L., 90-95.o.

Sobre todos: bibliografia especial in UEBERWEG-GEYFR, Die patr. und schol. Philos.,
Berlim, 1928, p. 669-672; e in VASOLI, La filosofia medievale, Milão,
1961, p. 516 ss.

245

íNDICE

XII - A ESCOLA PERIPATÉPTICA ... ... 7

§ 86. Teofrasto, ... ... ... ... ... 7 §87. Outros discípulos de Aristóteles 8 §88.
Estratão ... ... ... ... ... ... 9

Nota bibliográfica ... ... ... 10

XM-O ESTOICISMO ... ... ... ... ... 11


§89. Características da Filosofia pós-

-Aristotética ... ... ... ... ... 11 §90. A escola estoica ... ... ... ... 12 §91.
Característica da Filosofia estoica 15 §92. A Lógica ... ... ... ... ... 16 §93. A
Física ... ... ... ... ... 23 §94. A Psicologia ... ... ... ... ... 27 §95. A ntica ... ...
... ... ... ... 29

Nota bibliogrãfica ... ... ... 35

XIV -0 EPICURISMO ... ... ... ... ... 37

§ 96. Epicuro ... ... ... ... ... ... 37 § 97. A escola epicurista ... ... ... 38

247

§ 98. Características do epicurismo § 99. A Canónica ... ... ... ... § 100. A Física § 101. A
Ética ... ... ... ... ...

Nata bibliográfica ... ...

XV-0 CEPTICISMO ... ... ... ...

§ 102. Características do cepticismo § 103. Pirro ... ... ... ... ... § 104. A média
Academia ... ... § 105. A nova Academia ... ... § 106. Os últimos cépticos ... ... §
107. Sexto empírico ... ... ...

Nota bibliográfica ... ...

XVI --0 ECLECTISMO . . ... ... ...

§ 108. Características do Eclectismo § 109. o estoicismo Ecléctico ... § 110. o Platanismo


Eclético ... § iii. o Aristotelismo Ecléctico

248

§ 112. A Escola Cinica ... ... ... ... 73 § 113. Séneca ... ... ... ... ... ... 74 § 114.
Musónio. Epicteto ... ... ... 77 § 115. Marco Aurélio ... ... ... ... 79

Nota bibliográfica ... ... ... 81

XVII --PRECURSORES DO NEOPLATO-

NISMO ... ... ... ... ... ... ... 83

§ 116. Características da Filosofia na

época Alexandrina ... ... ... 83 § 117. Os Neopitagóricos ... ... 84 § 118. O
Platonismo médio ... ... 86 § 119. A Filosofia greco-judaica ... 88 § 120.
Filon de Alexandria ... ... ... 89

Nota bibliográfica ... ... ... 91

XVIII -0 NEOPLATONISMO ... ... ... .. 93


§ 121. A "Escolãstica" Neoplatónica ... 93 § 122. Plotino: Deus ... ... ... ... 95 § 123. Plotino:
as emanações ... ... 97

249

§ 124. Plotino: a consciência e o retorno a Deus ... ... ... ... 98 § 125. A escola
siriaca ... ... .. 1 100 § 126. Aescola de Atenas ... ... ... 101 § 127. A doutrina de
Proclo ... ... 103

Nota bibliográfica ... ... ... 105

SEGUI-4DA PARTE

FILOSOFIA PATRISTICA

1-0 CRISTIANISMO E A FILOSOFIA 109

§ 128. A Filosofia grega e a tradição

cristã ... ... ... ... ... ... 109 § 129. Os evangelhos sinópticos ... ... 111 § 130. As
"cartas" Paulinas ... ... 114 § 131. O quarto evangelho ... ... ... 116 § 132. A
Filosofia cristã ... ... ... 117

Nota bibliográfica ... ... ... 119

250

A PATRISTICA DOS DOIS PR=IROS SÊCULOS ... ... ... ... ... ... 121

§133. Caracteristicas da Patristica ... 121

§134. Os padres Apologetas ... ... 123 §135. Justino ... ... ... ... ... ... 124 §136.
Os outros padres Apologetas ... 126 §137. A Gnose .. . ... ... ... ... 130 §138. A
polémica contra a gnose ... 134 §139. Tertuliano ... ... ... ... ... 139 §140.
Tertuliano: as doutrinas ... ... 142 §141. Apologetas latinas ... ... ... 146

Nota bibliográfioa ... ... ... 153

III -A FILOSOFIA PATRISTICA NOS SÊ-

cULOS M E IV ... ... ... ... ... 157

§142. Caractexisticas do período ... 157 §143. Clemente de Alexandria ... ... 158
§144. Origenes: vida e -escritos ... 161 §145. Orígenes: Fé @e gnose ... ... 163
§146. Origenes: Deus e o mundo ... 165 §147. Origenes: o destino do hom@em
169

251

§118. Sequazes e adversários de Orígenes ... ... ... ... ... ... 172 §149. Basílio o grande
... ... ... 177 §150. Gregório Nazianceno ... ... 179 §151. Gregõrio de Nisa: a
Teologia ... 181 §152. Gregório de Nisa: o mundo e o
homem ... ... ... ... ... ... 185 §153. Gregório de Nisa: a Apoca-

tástasis ... ... ... ... ... 187 §154. Outros padres orientais do sé-

culo IV ... ... ... ... ... 190 §155. Os padres latinos do IV século 192

Nota bibliográfica ... ... ... 194

IV -SANTO AGOSTINHO ... ... ... ... 197

§ 156. A figura histórica ... ... ... 197 § 157. A vida ... ... ... ... ... ... 199 § 158.
As obras ... ... ... ... ... 202 § 159. Características da investigação

Agostiniana ... ... ... ... ... 204 § 160. O fim da procura Deus e a

alma ... ... ... ... ... ... 205

252

§ 161. A procura de Deus ... ... ... 208 § 162. O homem ... ... ... ... ... 211 §
163. O problema da criação e do

tempo ... ... ... ... ... ... 213 § 164. A polémica contra o mani-

queísmo ... ... ... ... ... 215 § 165. A polémica contra o donatismo 217 § 166.
A polémica contra o pelagia-

nismo ... ... ... ... ... ... 219 § 167. A cidade de Deus ... ... ... 222

Nota bibliográfica ... ... ... 224

V-A CLTIMA PATRISTICA ... ... ... 227

§ 168. Decadência da patrística ... 227 § 169. Escritores gregos ... ... ... 228 §
170. Pseudo-Dionísio o ae@roípagita ... 232 § 171. Máximo confessor. João Da-

masceno ... ... ... ... ... 234 § 172. Escritores latinos ... ... ... 237

Nota bibliográfica ... ... ... 244

253

HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Volume terceiro
Nicola ABAGNANO

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