Ubuntu Negras Utopias

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ANTES DE TUDO, CELEBRO A BELEZA do

encontro que este livro, Ubuntu: negras utopias,


proporciona a nós, leitores. O olhar do mestre
Muniz Sodré para o que está no mundo e nos for-
ma é apresentado com imensa fluidez pelo próprio
e interpretado, desdobrado, acolhido pela grande
mulher que é Renata Souza e pelo jovem brilhante
Seimour Souza. Em textos que encontram par
perfeito nos traços, na identidade, na visceralida-
de de Senegambia. Que linda obra temos aqui. E
que orgulho me somar a esta construção.
É a solidariedade se desenhando nas palavras e
nas cores de afeto e respeito às nossas raízes afri-
canas, que nos apontam perspectivas mais huma-
nas de futuro. Isso é ubuntu, no conteúdo e na
forma. E está no cuidado com o que é comunitá-
rio, coletivo, com o chão que nos alimenta, com
nossas origens.
Quando zelamos por nossos saberes ancestrais,
por nossas utopias negras, preservamos em nós a
esperança em um amanhã que nos pertença.
Nossas aspirações utópicas sustentam nossa per-
sistência numa caminhada rumo a uma sociedade
mais igualitária, fundamentada no amor, na qual
teremos a verdadeira emancipação e valorização
de nossa população e de nossa História pretas.

Pastor Henrique Vieira


UBUNTU
topias
negras u

Renata Souza (org.)


Muniz Sodré
Seimour Souza
Senegambia (il.)
1
coordenação editorial: Marina Iris e Rafael Maieiro
projeto gráfico, capa e diagramação: Evlen Bispo
revisão: Zeh Gustavo e Marina Iris
ilustrações: Senegambia
arte do selo: Flávia Belchior

tiragem: 1000

Ubuntu: negras utopias


Organização: Renata Souza. 60 p.; 17cm

deputada estadual
SUMÁRIO

5 APRESENTAÇÃO

15 UBUNTU
22 A condição do negro à luz do ubuntu
26 O que é relação racial?
28 Um problema de biopoder:
a tara social racista
31 A permanência da forma
social escravista
35 Os meios de comunicação e o racismo
36 A questão indígena
38 Por uma política ubuntu
41 Necropolítica
42 Devemos continuar
usando o conceito de raça?
43 Amor e ódio como conceitos não binários
45 Raça ou povo?
48 Povo de santo e seus jogos de negociação

52 MOVIMENTOS NEGROS
4
APRESENTAÇÃO
Renata Souza

CREMOS
Ao poeta Nei Lopes,
pelo poema “História para ninar Cassul-Buanga”.

Cremos.
Quando as muralhas
desfizerem-se
com a mesma leveza
de nuvens-algodoais,
os nossos mais velhos
vindos do fundo
dos tempos
sorrirão em paz.

Cremos.
O anunciado milagre
estará acontecendo.
E na escritura grafadada
da pré-anunciação,
de um novo tempo,
novos parágrafos
se abrirão.

Cremos.

CONCEIÇÃO EVARISTO
5
• 1 •

POVO PRETO: Luísa Mahin, Quilombo dos Palmares,


Nelson Mandela, Panteras Negras, Marielle Franco. Éra-
mos e somos uma multidão nas quebradas do Brasil e do
mundo? Também, mas não só. Por isso, tecemos a nossa
identidade como povo, como povo preto, na nossa diver-
sidade cultural: da ancestral à contemporânea. E não só
entre nós, pretos, mas a partir da afirmação dos nossos
preceitos, lutamos pela unidade dos de baixo. Animada
por esse debate, a nossa mandata lança o segundo livro
do selo editorial Luísa Mahin: Ubuntu: negras utopias.
“Eu sou porque nós somos”, essa é a forma mais co-
mum de se definir ubuntu. Entretanto, dizer apenas isso
é insuficiente, pois não estamos diante apenas de uma
palavra, estamos encarando um conceito fundador –
poderíamos dizer ética ou filosofia. “Uma filosofia de
resolução de conflitos”, defende o arcebispo sul-africano
Desmond Tutu1. Aliás, ubuntu tem origem sul-africana
e seu preceito foi um dos sustentáculos da reconstrução
da África do Sul pós-apartheid.
Com a filosofia ubuntu, afirmamos a solidariedade e o
combate ao individualismo. A solidariedade não como
ação pontual, mas como método da ação política. Quere-
mos construir a utopia real de um mundo sem fome, sem
exploração e rico na diversidade dos seus modos de vida.
Por isso, este livro também é um terreiro de candomblé,
uma igreja cristã com sua teologia negra, uma ocupação.

6
O professor Muniz Sodré, um dos maiores intelectu-
ais brasileiros vivos, abre a publicação. Sodré nos brinda
com um ensaio sobre o conceito de ubuntu, sua origem,
sua atualidade e, o mais importante, sua radicalidade.
Logo em seguida, apresento um artigo meu em coauto-
ria com o cientista político Seimour Souza: falamos so-
bre o movimento negro no Brasil de hoje e as nossas
diásporas de resistência. Ao longo do livro, somos pre-
senteados com belíssimas ilustrações de Luang Sene-
gambia. Em tempos de avanço neofascista, celebrar a
beleza do povo preto, a força da nossa ancestralidade e
atualidade da nossa arte é um protesto radical da vida
contra o culto genocida.

• 2 •

MUNIZ SODRÉ É JORNALISTA E PROFESSOR eméri-


to da Escola de Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Porém, com essa frase simples
e direta, mais escondemos do que revelamos sobre a sua
trajetória. Nascido na cidade de São Gonçalo dos Cam-
pos (BA), em 12 de janeiro de 1942, trabalhou como jor-
nalista e tradutor, fez graduação em Direito pela Univer-
sidade Federal da Bahia (UFBA), mestrado em
Sociologia da Informação e Comunicação pela Univer-
sité de Paris IV (Paris-Sorbonne) e doutorado em Letras
pela UFRJ. Sodré é um nome incontornável nos estudos
em comunicação no Brasil e uma referência internacio-

7
nal desse campo.  Além disso, como presidente da Bi-
blioteca Nacional (2009-2011), construiu 1800 bibliote-
cas municipais no país3.
Ainda assim não conseguimos dizer quem é Muniz
Sodré. Membro da Academia de Letras da Bahia (ALB),
ocupa a cadeira 33, que foi de Castro Alves. Sua anteces-
sora foi Mãe Stella de Oxóssi, quinta Ialorixá do Ilê Axé
Opô Afonjá3. Aqui se revela mais uma faceta dessa incrí-
vel figura: Sodré é Obá de Xangô4 do Axé Opô Afonjá. E
tem orgulho em dizer que ocupa a cadeira na ALB por
solicitação do terreiro.
Não posso deixar de comentar que Muniz, permi-
tam-me a intimidade, foi meu professor na Escola de
Comunicação da UFRJ, fez parte da minha banca de
mestrado e doutorado. É uma referência para mim, um
amigo, um intelectual ajudando a construir pontes entre
o mundo acadêmico e a vida do povo. Vale trazer uma
formulação do Muniz, do seu livro O terreiro e a cidade:
a formação negro-brasileira, para este jogo:

Um pensamento não racista surge da perspectiva de


um solo comum com o Outro, pois o espaço real de
uma Nação consiste no processamento de diferenças
sem perda de sua totalidade. Apenas essa totalidade
não se cria por um “todo” imposto à força (das armas
ou da razão) nem por uma “cultura nacional” (que só
existe como um monopólio oficial de ideias), mas
pela aceitação de um jogo pluralista, heterocultural,
em que se afronta sempre o Destino. “Todo homem
não embrutecido pelo egoísmo”, diz o peruano José
Maria Arguedas, “pode viver todas as pátrias”.6

8
Por tudo que foi dito, Muniz Sodré é um dos intelec-
tuais mais qualificados para nos ajudar a pensar o con-
ceito de ubuntu, desde as suas raízes até a sua importân-
cia para o debate contemporâneo. O ensaio que
apresentamos aqui, intitulado simplesmente como
Ubuntu, é inspirado na sua exposição no Seminário
aberto: gênero, raça e classe, realizado pela nossa man-
data, em 25 de julho de 2019, no Centro do Teatro do
Oprimido (CTO). Nele Sodré tenta “conceber ou viven-
ciar um ponto em comum”6 entre África e Ocidente,
sem se deixar ser hegemonizado por este. Como pode-
mos ver no trecho a seguir:

Possivelmente, se um africano fosse chamado a ex-


plicar a palavra, ele não ia explicá-la sob os mesmos
termos nossos, contaminados por uma formação eu-
ropeia, também, por filosofia grega. Mas, quando se
diz ubuntu, o homem estando junto aos outros, nós
estamos também junto aos europeus. Não existe essa
história de um território poder se abstrair do resto
do mundo e encontrar forças apenas em si mesmo
para existir. Nós estamos juntos: junto aos vizinhos,
junto aos condôminos, junto aos habitantes da cida-
de e junto aos estrangeiros também, aqueles estran-
geiros que não querem nos destruir. Então, ubuntu,
portanto, e a ética são o imperativo de responsabili-
dade que cada um de nós tem para com todos os ou-
tros. Nós somos responsáveis por nós mesmos e por
todos os outros.

Mais uma vez aprendi muito com o professor Muniz


Sodré.

9
• 3 •

O SEGUNDO TEXTO do livro é o Movimentos negros,


um artigo que escrevi a quatro mãos com o cientista polí-
tico Seimour Souza, jovem brilhante e integrante da nossa
mandata. Coordenador do Núcleo Independente e Co-
munitário de Aprendizagem (NICA) e da Uneafro-RJ,
Seimour é uma importante liderança das lutas antirracis-
tas no Rio de Janeiro. Em nosso artigo, pensamos o movi-
mento negro na sua riquíssima diversidade, sem deixar
de afirmar a urgência da unidade do povo preto para
combater o nosso maior inimigo: o Estado racista.
Também é indispensável destacar o trabalho do artista
visual Luang Senegambia. Suas ilustrações não são deco-
rativas, rascunham outras formas de pensar. Muito além
da lógica acadêmica e do discurso científico. Através das
colagens, e com uma linguagem futurista, Senegambia re-
presenta a nossa ancestralidade. Como ele afirmou, em
declaração ao jornal O Globo, “arte gráfica é a forma
como eu absorvo, metabolizo e devolvo para o mundo a
minha opinião sobre o que é ser negro no Brasil”7.

• 4 •

A RAÇA COMO REALIDADE BIOLÓGICA não


existe. Como nos lembra Silvio Almeida, é um “fenôme-
no essencialmente político"8. Assim o racismo, “forma
sistemática de discriminação que tem a raça como fun-

10
damento”9, é uma forma de opressão criada para o con-
trole de algum grupo social. Para Clóvis Moura,10 a luta
antirracista dos negros começa com a escravidão. E, por
isso, se constitui como luta de classes. Manter os negros
como o setor mais oprimido e explorado da classe traba-
lhadora cumpre um papel econômico primordial, “pois
o interesse das classes dominantes é” ver o negro “mar-
ginalizado para baixar os salários dos trabalhadores no
seu conjunto”. Em outras palavras, o racismo cumpre
um papel estrutural nas sociedades capitalistas.
Mas se a questão de fundo é a de classe, qual a neces-
sidade de afirmar a identidade negra, de chamar o povo
preto a se unir? É à luz do ubuntu que podemos respon-
der esta questão. Em primeiro lugar, apontar o racismo
como tática das classes dominantes para dividir a classe
trabalhadora não significa dizer que ele não existe. Pelo
contrário, a existência do racismo é colocada em termos
ainda mais trágicos. O racismo está dentro da classe,
sendo praticado diuturnamente por trabalhadores con-
tra outros trabalhadores. Por isso, a união do povo pre-
to, a afirmação da nossa identidade, é indispensável. Re-
pare na escolha da palavra: “povo” e não “raça”. Ela foi
bem pensada para eliminar qualquer confusão, para
afirmar que a ideia de raça é uma arma das classes domi-
nantes, não é nossa. Em segundo lugar, reafirmamos a
identidade do povo preto sem nenhum sectarismo, mas
como um lugar de acolhimento, de reconhecimento de
nossa ancestralidade e de nossa potência, sempre posta
em dúvida pelo racismo. A partir disso, teremos um re-

11
fúgio onde aprendemos a andar com a cabeça erguida, a
ter orgulho de si e dos nossos. Não para dividir a classe
trabalhadora, mas para combater o racismo, inclusive,
dentro dela. Só assim vamos construir uma política re-
volucionária dos de baixo contra os de cima.
Em última instância, o povo preto se reúne pensando
táticas e estratégias para superar o capitalismo. Sabemos
que não vamos fazer isso sozinhos, mas desejamos uma
universalidade que não seja eurocêntrica, precisamos
construir uma universalidade solidária12. Isso só é possí-
vel superando o racismo e filosofia ubuntu nos oferece
muitas lições.

• NOTAS •

1. BBC. Ubuntu: o que significa essa filosofia africana e como pode


nos ajudar nos desafios do hoje. Disponível em: <https://www.you-
tube.com/watch?v=KaQSIvWV7wo>. Acesso em: 11/03/2021.

2. CORREIO DO POVO. Muniz Sodré, o intelectual tropical.Dis-


ponível em: < https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremir-
machado/muniz-sodr%C3%A9-o-intelectual-tropical-1.312006>.
Acesso em: 03/05/2021 às 15h.

3. Ilê Axé Opô Afonjá é um dos terreiros de candomblé mais tradi-


cionais da Bahia. Foi fundado por Eugênia Ana dos Santos e Tio
Joaquim, Obá Sanyá, em 1910.

4. Título honorífico do candomblé exclusivo do Ilê Axé Opô Afonjá,


criado em 1936.

12
5. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a formação negro-
brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010, p. 63.

6. Ibdem, p. 62.

7. O GLOBO. Como Iemanjá se tornou o orixá mais pop da arte


brasileira. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/
como-iemanja-se-tornou-orixa-mais-pop-da-arte-
brasileira-1-24864507>. Acesso: 01/05/2021 às 22h.

8. ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Polén, 2019,


p. 31.

9. Ibdem, p. 32.

10. Ibdem, p. 186.

11. Aqui dialogamos com dois conceitos: o de universalismo estratégi-


co, elaborado por Paul Gilroy, e o de universalismo insurgente,
elaborado por Asad Haider. Ambos propõem a negação do univer-
salismo abstrato, baseado no apagamento dos crimes da Europa
iluminista. Contudo, apostam no regaste da melhor herança do Ilu-
minismo, citando como exemplo os intelectuais negros radicais da
Revolução Haitiana. Por mais que achemos o ponto de vista inter-
essante e frutífero, não seguimos Asad Haider em alguns passos.
Por exemplo, o de colocar a identidade necessariamente como um
entrave. Pelo contrário, achamos que a identidade é um momento
fundamental da consciência de classe. Por isso, propomos a ideia
de universalidade solidária. Para ter acesso a esse debate com
mais detalhes ver HAIDER, Asad. Armadilha da identidade. São
Paulo: Veneta, 2019, p. 137-150.

13
14
UBUNTU
Muniz Sodré 15
UBUNTU: o que significa o título deste en­saio? Com-
preendê-lo trata-se de uma oportunidade ética e políti-
ca. Primeiro, porque ubuntu é uma palavra sul-africana
curta em tamanho, mas enorme no conceito. Porque
ubuntu é um verbo, um substantivo, é ao mesmo tempo
substantivo e verbo. E representa, filosoficamente, o ho-
mem como humanidade, o homem inscrito somente na
condição do humano. Ubuntu é o substantivo homem;
mas, para ser percebido como homem, como humano,
ubuntu diz que o indivíduo, o homem, só é humano sen-
do, só é humano sendo humano junto ao outro. Essa pa-
lavra tem um programa, que é ao mesmo tempo ético e
ao mesmo tempo político. Portanto, em termos mais
práticos, ubuntu é um preceito ético-político.
Pois bem, por que um preceito político? Porque ele
se refere à política no sentido originário do termo. E
neste sentido, política é um movimento agregativo, um
movimento agregativo de gente. Política quer dizer: co-
operação, solidariedade, amizade, espírito crítico. Isso
não tem nada a ver com política partidária – é política
no sentido agregativo. Mas o é tanto no plano das rela-
ções impessoais, quanto no plano dos vínculos que se
caracterizam por afetos, portanto nos vínculos de famí-
lia, nos vínculos comunitários. A política no sentido ori-
ginário tem a ver com isso. Ora, e ética não é o conjunto
codificado de regras de convivência. Ética não é moral,
ética não é ajustamento de moral. Não, ética é toda a
envergadura das realizações de um grupo humano
quando guiado pelo brilho de sua verdade própria. E

16
essa verdade própria vem de seus ancestrais, vem dos
fundadores do grupo. Em primeiro lugar, segundo o
apelo da dignidade. Mas, o que é que significa dignida-
de? O filósofo Immanuel Kant diz isso em muitas pági-
nas, nós vamos resumi-lo em uma frase: dignidade é
aquilo que não tem preço. Em suma, aquilo que não pas-
sa por ter preço, o que não é medido por um preço. Pa-
rece simples, mas é de longo alcance e isso é o digno.
Dignidade, portanto, é isso, exatamente isso: é aquilo
que está acima do preço.
Podem conviver, pois, dois valores éticos, no que tra-
távamos sobre o ubuntu: o valor do ancestral, o valor do
fundador do grupo, que quer que o grupo vibre e conti-
nue imortal; e o segundo, o valor da dignidade. Portan-
to, ética no sentido de ubuntu diz respeito à radicalidade
do ato de morar. Nós só moramos e habitamos de modo
pleno quando vivemos na dignidade do morar. É um
pouco o contrário do que está acontecendo no Rio de
Janeiro, em que estamos, digamos, com o risco de cair
no abismo da indignidade do morar. Ora, portanto, éti-
ca diz respeito a tudo aquilo que implica o destino co-
mum, que é um destino que foi prefigurado pela funda-
ção. Para entendermos sem muita delonga a importância
de juntar ética com a política, diríamos que a ética é
aquilo que repercute em cada um de nós, aquilo que re-
percute em nós de modo calado, de modo tácito, mas do
desejo dos fundadores, dos nossos pais, dos nossos avós,
dos que fundaram o grupo, de que o grupo continue ins-
tituído tal e qual.

17
Ora, isso pode gerar uma ideia de transcendência, e
não se trata disso, mas tão somente que no sagrado, na
utopia, na ciência, essa ideia de permanência do grupo
comparece. Não há sagrado, não há utopia, nem ciên-
cia, sem essa ideia de que o grupo possa permanecer tal
e qual: são, sadio e politicamente ativo. Uma ciência
que não se compromete com isso é uma que serve ape-
nas ao interesse e para a destruição do mundo; uma
utopia que não vê isso é uma utopia fadada ao fanatis-
mo e ao fundamentalismo. Então é preciso que no sa-
grado, na utopia e na ciência, a ética compareça e a ética
como aquilo que reside no que radicalmente o homem
é, que é ser humano, e no sentido de que ser humano é
sê-lo junto aos outros.
Portanto, a ideia de ética que é a ideianoção de ubun-
tu não implica nenhuma matéria de valores, de modis-
mo de valores, mas é a ética como uma imanência dinâ-
mica, que é comum a toda morada humana num
território. Como moramos, como habitamos um espa-
ço determinado, nós atendemos a exigências radicais
da vida, que é disso que a ética fala. A ética fala das
exigências radicais que a vida faz nos seus termos e isso
está bem explicado quando se diz que a vida não se es-
gota como se manifesta no ser vivo. A vida não se esgo-
ta apenas na vida que se vive. Não, o homem é um ser
vivo. Mas o que constitui o homem como vivo está
aquém, está além de tudo aquilo que perfaz a condição
dele de sujeito, a condição de viver, está além e aquém
disso. Pode ser da consciência, pode ser do inconscien-

18
19
te. Digamos com outras palavras: todo indivíduo se
sustenta pelo não nascido, todo indivíduo se sustenta
pelo não constituído, pelo não existente, em tudo que
está no nascimento dele, que está na sua constituição,
está na sua existência.
O que é esse não nascido? É o ancestral; e é o filho
dele. Por isso, toda ética – e ubuntu remete a uma ética
preocupada com a rede nacional – se chama ética por-
que é preocupada com o que vem da palavra de funda-
ção. Se uma política, uma ação, uma ciência não tem
esse desenho de possibilidade que a palavra ubuntu con-
tém, vamos desconfiar dela. Vamos desconfiar, portan-
to, de planos econômicos que com o tempo vão embora.
Que contempla as finanças, que contempla os bancos,
que contempla apenas o que está nos ares, mas não no
território. Vamos desconfiar de políticos que não olham
para o local, olham para o abstrato e para fora. E não nos
esqueçamos da mensagem americana de que toda polí-
tica é local, toda e qualquer política é local, se não, não é
política. Você tem que olhar para o local, tem que olhar
para o território. Isso aí é ubuntu.
Então a ética é um movimento de escuta brutal dessa
dinâmica abrangente que é a dinâmica da ancestralida-
de, e essa dinâmica do ancestral é maior do que os limi-
tes da subjetividade. Por isso ubuntu é um imperativo
ético, político. Prestemos atenção: essa palavra é africa-
na. Possivelmente, se um africano fosse chamado a ex-
plicar a palavra, ele não ia explicá-la sob os mesmos ter-
mos nossos, contaminados por uma formação europeia,

20
também, por filosofia grega. Mas, quando se diz ubuntu,
o homem estando junto aos outros, nós estamos tam-
bém junto aos europeus. Não existe essa história de um
território poder se abstrair do resto do mundo e encon-
trar forças apenas em si mesmo para existir. Nós esta-
mos juntos: junto aos vizinhos, junto aos condôminos,
junto aos habitantes da cidade e junto aos estrangeiros
também, aqueles estrangeiros que não querem nos des-
truir. Então, ubuntu, portanto, e a ética são o imperativo
de responsabilidade que cada um de nós tem para com
todos os outros. Nós somos responsáveis por nós mes-
mos e por todos os outros.
Portanto, a palavra responsabilidade nós a toma-
mos aqui como um princípio ético. Ser responsável é
ser ético, porque responsabilidade é um princípio rela-
tivo à dignidade da linguagem, relativo também ao
cuidado de si mesmo, como fonte de sentido relativo à
existência humana. Nós estamos vivendo um momen-
to de fúria global, na linguagem, no comportamento.
Isso que circula nas redes sociais, essa vida artificial
que se divulga como vida nas redes sociais vai nesse
sentido. É um discurso sem o cuidado de linguagem, é
um discurso sem respeito. Portanto, é nesse momento
e exatamente nesse momento que o ubuntu se faz mais
vigoroso, se faz mais imperativo. Portanto, ubuntu, éti-
ca, é o fundamento dos valores, é o fundamento da
normatividade. Que é naturalmente intrínseca à con-
dição humana de autoafirmação da vida. É preciso,
exatamente nos momentos de obscuridade, de falta de

21
clareza, de opressão, é preciso escutar o movimento de
autoafirmação da vida que está às vezes fora da econo-
mia, está fora do preço, está fora do dinheiro, e por isso
é digno.
Ora, como princípio, portanto, a responsabilidade
não é nada individual, a responsabilidade é sempre cole-
tiva. Quer dizer, todos são socialmente corresponsáveis
pelo que acontece na cidade. Cada um é responsável
quando vota, é responsável quando joga o lixo na rua, é
responsável quando não vai cerrar os braços ao redor da
cidade que um tiraninho de momento quer destruir.
Nós somos responsáveis pela cidade e por votar em
quem a governa. Então tem essa responsabilidade do
fato social, que não se reduz às responsabilizações indi-
viduais mas adere a uma responsabilização de ordem
jurídica, econômica, administrativa que está implicada
na organização da sociedade.

A CONDIÇÃO
DO NEGRO
À LUZ DO UBUNTU

E como entender a negritude, a condição do negro à


luz do ubuntu? Ou o ubuntu como categoria explicativa
do que queremos dizer com negritude? Porque esse con-
ceito ilumina de modo muito particular a condição do
afrodescendente no Brasil e no mundo. O ubuntu nos dá
uma iluminação diferente da questão do racismo.

22
Num livro recente, chamado Pensar nagô, levantamos
a seguinte evidência histórica: nem sempre existiu racis-
mo. Até o século XVI, havia comunidades, havia povos
que se caracterizavam por aparências diferentes, distintas;
mas não havia a ideia de gente de cor. Essa expressão gen-
te de cor só aparece no século XVI. Antes isso aparecia de
outro modo. O indivíduo de costume diferente podia ser
até ridicularizado: era o turco, era o japonês, era o africa-
no... Mas, não se caracterizava esse indivíduo por sua cor
de pele, como gente de cor. E essa designação gente de cor,
essa designação universalista, aparece com os sistemas
classificatórios elaborados por teóricos europeus e que
montaram os contornos de uma biopolítica colonizadora.
Portanto, essa questão da raça, essa questão de cor, surge
com a colonização, com a biopolítica na colonização. En-
tão a fonte doutrinária dessa classificação de gente de cor,
com uma formação ideológica, é a tentativa de monopo-
lização do espírito pela Europa. A Europa se acha a dona
monopolista do espírito, em uma busca, pela ideologia
cristã, pelo cristianismo, de cavar uma distância, com o
foco de espiritualização, entre os europeus e os judeus e
os mouros, tidos como raças infectas. Tal classificação,
pois, provém da expressão da Igreja no século XVII. Ju-
deu e mouro são, por essa expressão, raças infectas.
Ora, o antissemitismo cristão, que pretexta diferença
religiosa, visa realmente a raça, é a matriz do racismo.
Todo o racismo com o negro é posterior e antecedido
pelo antissemitismo. A primeira vítima do racismo na
Europa é o judeu, o mouro. Então, no centro de tudo

23
isso, opera o que chamaríamos de uma hermenêutica do
corpo. O que queremos dizer com isso? Sem o corpo, o
racismo é inconcebível. O racismo precisa de um corpo
para se alojar, e essa é uma visão de um colega nosso, um
grande professor que nos convidou recentemente a
Nova York, John Murungi, um congolês. Ele diz: o racis-
mo se apoia numa versão da percepção e da interpreta-
ção do corpo humano. O racismo equipara à interpreta-
ção do corpo aquilo que o corpo é. Então o corpo é uma
coisa, mas você interpreta outra sobre ele e você diz que
aquilo é o que você interpreta. É sempre uma interpreta-
ção do corpo que suporta o racismo.
Então é dessa interpretação do corpo, que é a inter-
pretação colonialista, narcisista, que reduplica a própria
imagem do intérprete do espelho, que vem a aversão à
diferença cromática, à diferença de pigmentação. O
branco, loiro, de olhos azuis se olha no espelho, se acha
lindo no espelho, depois vê alguém que não é que nem
ele. A aversão cromática surge logo depois. Esse mesmo
branco interpreta o outro de maneira depreciativa, de
maneira inferiorizada. Então foi assim que a branquitu-
de – a chamemos assim – se converteu em paradigma de
biopolítica. Em todo racismo há, portanto, uma biopolí-
tica. O racismo nasce desse paradigma, desse espelho
que se quer onipotente, se quer poderoso, se quer mais
sábio, se quer humanamente universal. Ora, foi assim
que isso se disseminou, via colonialismo, nas escolas e
das escolas para as cabeças das elites nacionais, para a
arte no Brasil e em todos os lugares.

24
Em que pese essa igualdade material do corpo hu-
mano – todos somos iguais em corpo –, o racismo sur-
giu sob a forma de um valor eurocêntrico que é um
valor pleno, supostamente universal, fundado numa
social universalidade do inumano. Como se diz o ser
humano, em que o conceito de humano é universal,
automaticamente se cria o seu oposto, o inumano uni-
versal. E o que é o inumano universal? É aquele que
não se parece com o humano interpretado por um eu
que é o branco eurocêntrico. Então, tudo que for dife-
rente desse humano será, logo, inumano e objeto do
julgamento e da interpretação racista. Funda-se um
paradigma de cerca e é pela introdução dessa cerca que
essa condição da cor da pele se torna uma injunção
moral. E a segregação racial se institui, então, como
um fato civilizatório. Não temos nenhuma dúvida dis-
so: o ser branco, a ilusão de ser branco é vivida pela
consciência racista como se fosse um fato de civiliza-
ção. E um fato civilizatório se impõe como evidente:
você passa a nutrir aversão, talvez você tenha ódio,
você tenha raiva, você tenha desprezo por quem não se
pareça com você.
Você já nasce com uma vantagem patrimonial na
cor da pele: “Oh, é clarinho!”. Então, qual é a realidade?
A realidade nós sabemos, o ubuntu nos diz... Nossa in-
terpretação está seguindo essa linha do ubuntu, de que
a bem da verdade não existe raça, dado que raça signi-
fica uma diferença radical de genótipo humano e nesse
sentido não existe raça, como diferença radical. A bio-

25
logia comprova isso: você pode dizer raça humana,
além da animal. Por outro lado, não há como negá-lo,
existe a relação racial. Se a raça não existe, existe, po-
rém, essa relação racial.

O QUE É
RELAÇÃO RACIAL?

A relação racial nasce marcada pela crença de que


raça existe. E é nessa relação racial que se infiltra e que
se instala a discriminação. Cabe chamar bem a atenção
para isso, porque os movimentos negros, os movimen-
tos de ativismo negro, hoje não sabemos muito, mas
num passado recente, aqui no Brasil, gostávamos de
afirmar a existência da chamada raça negra. Ora, o ra-
cismo está aí também: toda vez que se afirma a raça, o
racismo está aí, também afirmado. Se você veste uma
luva pelo avesso, você não muda a natureza da luva: você
pega uma luva e a veste pelo avesso, ela continua sendo
luva. Você pega um lápis, o coloca de cabeça para baixo,
ele continua sendo lápis – o avesso não faz uma diferen-
ça. Então, devemos desconfiar da palavra raça, porque
raça não existe, raça é o ser humano. O que existe é o
homem, o nativo de qualquer pele, de qualquer cabelo,
de quaisquer olhos. Quando alguém valoriza, em ter-
mos absolutos e violentos, a cor branca dizendo que é a
raça branca, ao se tentar fazer o movimento contrário,
de se dizer não a isso afirmando a raça negra, se mantém

26
a mesma lógica do racismo, o racismo não é vencido, o
racismo não é superado.
Se pensarmos em termos de ubuntu, ele diz: o ho-
mem, o ser humano, é aquele que é junto ao outro, pou-
co importa a condição do cabelo ou da cara ou a cor da
pele. Então, diríamos que a palavra raça, na ótica do
mundo, carrega o cadáver insepulto dum conceito
odioso, que é o conceito de raça, que animou no passa-
do essa forma linguística chamada raça. Apesar de isso
provocar tantas reações, podemos discutir mais sobre
isso e talvez seja uma palavra que a consciência molda-
da pelo mundo nesse momento tenha de se desembara-
çar, da palavra e do conceito de raça. É um conceito
pesado para se arrastar.
Mas, como dissemos, existe a relação racial, atraves-
sada pelo imaginário da raça. E um francês de que gos-
tamos muito, um grande poeta, Paul Valéry, ele já tinha
pressentido isso, quando diz: olha, não há nada mais
profundo do que a pele. É profundo porque a pele pare-
ce superficial e quanta gente já se matou e quanta gente
já se desprezou e quanta gente já se desesperou por essa
aparente superfície que é a pele? A questão da pele é
profunda para o racista. Por quê? Porque a consciência
racista confunde cor da pele com essência humana. O
ubuntu não o confunde: a cor da pele não tem nada a ver
com a essência humana. Ser negro não faz ninguém me-
lhor do que o outro porque se é negro; e nem ser branco
faz ninguém melhor do que o outro porque se é branco.
Não há equivalência entre essência humana e cor da

27
pele. Isso é o que nos diz a palavra ubuntu. E é por isso
que dissemos que ubuntu é uma palavra curta, mas de
conceito extenso.
Hoje, essa nominação, digamos, abertamente racial,
em termos clássicos, tem sido amenizada, tem sido
apresentada no interior de um complexo maior. Tem se
sustentado, por exemplo, na Europa, que o “problema”
não é tanto a cor da pele, é o imigrante, é o diferente. A
questão da raça tem se esmaecido um pouco nos Esta-
dos Unidos. Aqui parecia que estava elucidada e voltou,
estranhamente voltou; mas também não devemos nos
apegar tanto a isso, porque nós vivemos num momento
de retrocesso.

UM PROBLEMA
DE BIOPODER: A TARA
SOCIAL RACISTA

Mais do que a consideração da cor da pele, o que há


é um problema de biopoder, que é poder de vida sobre
os outros, o poder de controle sobre a vida dos outros,
em que a cor da pele é um pretexto para o exercício
desse poder, é só um pretexto. Nenhum racista, razoa-
velmente educado, acredita mais nessa essência. É sim-
plesmente uma questão de ódio, é uma questão de
aversão ao outro. Porque o atual sistema de iluminação
não se apoia mais no conceito biológico de raça. Esse
argumento explicitamente racista não leva a lugar ne-

28
29
nhum, só leva aos redutos anacrônicos da tara social.
Existe uma tara que não é individual, é uma tara social.
Mas, o que é uma tara social? Ela se manifesta na ex-
pressão de um grupo supremacista americano, por
exemplo, ou em um grupo fundamentalista de odiado-
res que se mostram na rede eletrônica. São todos tara-
dos. Isso é uma tara social.
Não nos enganemos: a loucura não é um fenômeno
apenas individual. Ela é a sociopatia coletiva, que é in-
fectante, infecciosa, contagiante. Assim como as taras de
aversão dos grupos supremacistas americanos, em pe-
quenos redutos, como a dos que odeiam o diferente na
rede eletrônica. Isso faz parte de uma tara social. Mas
dizer isso não sublinha o racismo, quando se quer aca-
bar com o racismo? Não, porque o racismo, fato é, per-
siste, refratário, como bolinha de mercúrio, na denomi-
nação da palavra preconceito. Então se diz: não há
racismo, há preconceito – preconceito de classe. Todo
economista, seja de direita ou de esquerda – sim, de es-
querda também! – costuma dizer: “Não, problema de
raça no Brasil não é racismo, é uma questão de se elevar
a renda...”. Ouvimos muito isso porque essa questão im-
portante para o ubuntu, importante para nós, não che-
gou ainda ao estudo dos economistas, não chegou ainda
ao estudo da economia política. Você acha que é uma
questão de fomento, e essa é uma das principais ques-
tões, senão a principal questão, que atravessa e que divi-
de a população brasileira.

30
Não se engane, não nos enganemos. Nunca fui do
Partido dos Trabalhadores (PT). Mas não nos engane-
mos: o ódio ao PT tem a ver com aquela pequena consi-
deração de que, num determinado momento, o PT era
um partido dos negros. Nada mais do que isso. O ódio
ao PT não é ideológico, não é econômico – aliás, que
ideologia? Qual é a ideologia do PT? O PT tem ideolo-
gia? O PT tem um plano econômico de largo espectro e
coerente capaz de produzir tamanha reação de ódio? Pa-
rece que não. Não é disso que se trata o ódio ao PT, mas
dessa coisa que atravessa fundo o Brasil e que diz: cada
macaco no seu galho, cada negro no seu lugar. Isso foi
ferido, isso foi tocado e de repente ninguém suportou
mais isso. Por ninguém queremos dizer: aquela consci-
ência de se achar superior ao outro.

A PERMANÊNCIA
DA FORMA SOCIAL
ESCRAVISTA

Num contexto de memória escravista é que esse jogo


hegemônico parece eminente, porque o racismo brasi-
leiro, fundado no que chamaríamos de racial democra-
cia brasileira, tem a especificidade dele. Porque aqui no
Brasil se aboliu política e juridicamente a escravidão,
logo, a subordinação direta do corpo sequestrado do ne-
gro, mas a forma social escravista permanece. E esse é o

31
problema, quer dizer, aparentemente a escravidão aca-
bou, aparentemente houve a abolição, a abolição foi um
fato jurídico, político, a escravidão não tem mais lugar
nas relações sociais modernas. Ou melhor, tem, porque
pode morrer a forma jurídica e continuar a forma social,
pessoal, que é psicossocial, que é psicossociológica – e
essa forma continua firme. O que não existe mais é a
grosseria escravista daquela velha sentença do Padre
Antoninho, que dizia, no séc. XVIII: “Tudo o que o ne-
gro precisa no Brasil é de pano, pão e pau.” Essa forma
grosseira não existe mais, aparentemente. No entanto, se
foi a segregação explícita, mas ficou o horror ao outro,
que é conotado como raça. O horror continuou, porque
a forma, quando era escravista, não foi tocada. Por isso
talvez mereça menção o título daquela música de Carto-
la [Autonomia], em que ele está falando de relação de
amor, mas que pode se desdobrar nesse sentido: “É ne-
cessária a nova abolição”. É preciso se abolir o precon-
ceito, o que ficou implícito na noção de raça.
Então, no interior de uma forma social escravista,
como é a nossa forma social, o horror não tem a cara do
inimigo – o horror tem a cara do vizinho. O horror tem
a cara do próximo. E esse próximo, numa sociedade de
maioria negra, é quase sempre negro, a sua cor é escura.
Logo, o inimigo está próximo, o horror está na cara do
próximo, não tem a cara do estrangeiro, não tem a cara
do alemão. Ora, como é que se lida com isso? Lida-se
com educação. Pois essa é uma questão que atravessa o
Ocidente. A questão do racismo é tão funda! Talvez não

32
se resolva por essa geração, nem pela outra. Mas a reso-
lução passa, sem dúvida nenhuma, pela educação, e não
é pela educação que virá das universidades, nem dos
institutos de tecnologia, nem dos economistas ilumina-
dos. Virá da professora primária, virá da escola funda-
mental e depois do ginásio, da educação básica, tem que
começar aí. A verdadeira questão da cultura brasileira
não está no reerguimento de Ministério da Cultura ne-
nhum, embora até fosse interessante. Está na professora
e no professor do primário, na professora e no professor
de ensino fundamental. Vai começar aí. Está no espírito
dos legisladores, dos novos legisladores, que, mal ou
bem, o povo num determinado momento elege legisla-
dores que são marcantes... Marielle Franco é uma figura
como essas. Legisladores como a deputada Renata Sou-
za, uma jovem, a resolução virá de legisladores, não de
leis. Virá de escolas e virá claramente de um sentimento
de respeito, que esse é o terceiro elemento que está in-
cluído na palavra ubuntu.
O terreiro – o terreiro de candomblé na Bahia, em
Cuba... – só o aprende quem o respeita. Só aprende
quem respeita. Respeitar é fundamental. É respeitar o
fundador, respeitar o pai, o mais velho, respeitar a quem
nós podemos dar um título de autoridade. Mas, princi-
palmente, respeitar o próximo, o vizinho. Nós só somos
sendo junto com o outro. Portanto, esse é o terceiro sen-
tido do ubuntu, além dos dois já abordados: respeitar. Se
começarmos a respeitar, nós vamos começar a dar um
pé na bunda do racismo!

33
34
OS MEIOS DE
COMUNICAÇÃO
E O RACISMO

Goethe e Schopenhauer, na Alemanha, foram educa-


dores públicos. No Brasil, o movimento abolicionista foi
um movimento de educação com o homem negro. To-
dos os que se disseram, de um modo geral, abolicionis-
tas, até mesmo quando eram um pouco reacionários,
como Rui Barbosa, eram educadores públicos. Esses
educadores públicos não tinham muito compromisso
com o negro concreto, real, mas com a introdução do
Brasil no concerto moderno das nações.
Por outro lado, há os meios de comunicação. Nesses
40 ou 50 últimos anos, todos foram educados publica-
mente por televisão. A televisão é um grande e péssimo
educador público! Para ser mais radical, vejo que existe
uma coisa de pornocultura. Não é pornografia, é a cul-
tura mediada pelo comércio rasteiro. Porno, em grego, é
um verbo que significa vender. A pornocultura é a cul-
tura da venda, é a cultura comprometida com a venda e
que nos habituou ao pior. Nesse momento que estamos
vivendo, a pessoa já tem a consciência habituada ao pior,
por 40, 50 anos, que a televisão nos ofereceu, e pode su-
portar esse lixo que trafega pelas redes sociais e não
morrer de escândalo.
Os meios de comunicação poderiam, sem dúvida ne-
nhuma, fazer muito mais, mas não fizeram. E não o fize-
ram por quê? Porque os meios são os intelectuais coleti-
35
vos das classes dirigentes. Eles repercutem narci­sicamente
as ideias das elites dirigentes, que são racistas. Em qual-
quer estado brasileiro tem o racista padrão. Na minha
terra, na Bahia, tem muito racista. Eu sou baiano e,
quando eu era menino, trabalhava em banco, eu era
contínuo de banco, e eu me lembro que o dono do famo-
so Banco Econômico da Bahia não comia fruta que não
fosse fervida e nem tocava em telefone que tivesse sido
tocado por um servente dele, porque era negro. Ele era
muito racista. Todas as elites nacionais são racistas. Os
meios de comunicação, que pertencem sempre às famí-
lias, às grandes famílias, são reflexos desse sentimento
racista. Não fizeram nada contra o racismo brasileiro.
De vez em quando há um ou outro que tem ascensão,
tem um programa, tem a novela. É meritório. Mas não
se ataca o racismo. Pode até ser meritório um passo pro-
gressista, mas ele por si não toca na questão do racismo.

A QUESTÃO
INDÍGENA

Quando se fez o pacto da independência, na iconogra-


fia do pacto da independência do Brasil, das nossas clas-
ses dirigentes, aparecia o índio, a imagem do índio. Que
tinha sido dizimado e continua sendo dizimado. E por
que é que o índio apareceu? Porque ele estava distante. E
havia um discurso indigenista europeu, que se refletia em
alguns romances, se valorizava romanticamente o índio.

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37
É uma outra maneira de interpretar a frase de Vinicius de
Moraes: o amor só é realmente bom quando vai embora.
Se está distante, logo podemos amar o índio.
Mas a verdadeira valorização simbólica do indígena
está nas casas matrizes de candomblé do Brasil, onde o
índio é venerado na forma de caboclo. Por quê? Porque os
negros, de pronto, sempre souberam que o dono da terra
era o índio. E o dono da terra é valorizado. Segundo a
própria ideia do ancestral, o nosso ancestral coletivo é o
índio. Mas está distante... E nós sabemos, por outro lado,
que o racismo se exacerba na proximidade, não se o sujei-
to está mais distante, se é menos, numericamente.

POR UMA
POLÍTICA UBUNTU

O conceito de ubuntu é muito reflexivo, mas é tam-


bém operativo. Quando ele diz, em resumo: olha, o ho-
mem só é, o homem só existe sendo, mas sendo junto ao
outro, de saída ele se abre como programa político. Ele
não se faz presente num plano econômico, nas políticas
de território ou nas políticas de Estado que contemplem
apenas a circulação do capital, apenas o jogo dos capitais
que chegam e vão embora rapidamente, que não olham
para o território, nem olham para a produção. E é isso que
ocorre com as finanças, é isso que ocorre com os bancos.
Um financista, o sistema financeiro não tem nenhum
compromisso com o território concreto. O capital não

38
gosta de gente, jamais gostou. Capital gosta de valor, para
incrementar o capital, para realimentá-lo. Você tem uma
coisa que não é junto com ninguém, é junto com si mes-
ma e para se regular. Politicamente, o ser junto do ubuntu
implicaria uma política de território, uma política de ges-
tão e de cuidado com o bairro, com as comunidades, com
as territorialidades específicas – e não com as obras, diga-
mos, com os monumentos na cidade, com as obras mo-
numentais, com os palácios, com os megaeventos, que é o
que nós estamos assistindo de um tempo para cá, no Bra-
sil, na gestão das cidades. Isso aí não é ubuntu.
Sobre política educacional, isso aí qualquer economis-
ta conservador nos diz: só há crescimento econômico e só
pode haver investimento econômico de qualidade com a
educação. Educação não é um acréscimo; é vital, é funda-
mental. Mas esse tipo de discurso em que educação se
reduz apenas à distribuição de verbas não é ubuntu. Edu-
cação, antes de ser verba, é verbo, como ubuntu é palavra-
-verbo, e no entanto é discurso, é investimento. A partir
desse conceito de ser junto podemos pensar em mais, na
questão da saúde, por exemplo. Mas uma política prática
de ubuntu é uma política aproximativa, é uma política de
aproximações. Você só pode lidar com as diferenças na
cabeça. Em tese você está preparado para lidar com qual-
quer diferença, basta ser medianamente educado; mas
deixa nos aproximar para ver como o ódio se exacerba...
Portanto, é a aproximação a única coisa que dá um drible
imediato no racista. É a aproximação, é deixar se aproxi-
mar. Aí é que as coisas começam a mudar um pouco.

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40
NECROPOLÍTICA

Em toda aversão ao outro está implícita a palavra


ódio. Ódio não se trata de uma coisa circunstancial. Essa
palavra é muito antiga – a palavra ódio, em latim, signi-
fica aversão ao outro, uma aversão radical. E o ódio é tão
estruturante e tão fundante quanto o amor. O ódio fun-
da. O ódio não é a mesma coisa que a raiva, não é a mes-
ma coisa que o asco, não é a mesma coisa que o nojo,
justamente porque o ódio é estruturante. E o ódio, tanto
quanto o amor, pode alimentar. É nessa alimentação que
a necropolítica surge. Talvez uma historinha valha para
explicitar essa posição... É sobre um velho indígena che-
rokee americano que está perto da fogueira e diz pros
netos: “Olha, eu tenho no peito dois lobos famintos, dois
lobos esfomeados. Um é mau, destrutivo, cheio de von-
tade de matar o outro; e o outro também é esfomeado, é
faminto, mas ele é pacífico, é dócil.”

(...)

Na verdade, o desejo que sustenta o ódio é de que o


outro desaparecesse, numa lógica de que o lugar do ou-
tro é insuportável para nós, porque ele é sempre uma
ameaça para ocupar o nosso lugar, que nós mal susten-
tamos. Cada um de nós sustenta muito mal o seu pró-
prio lugar, por isso que a cabeça do homem – e isso está
em São Lucas – não descansa, diferentemente do pássa-

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ro, que tem onde repousar a cabeça. Mas a cabeça do
homem não descansa, pensa o tempo inteiro, está o tem-
po inteiro pensando, é preciso aplacar a cabeça. En-
quanto essa cabeça tem ódio, ali o desejo de morte do
outro é muito forte. É isso que funda a necropolítica, e
essa necropolítica, esse desejo de morte, contamina as
políticas de Estado. Acreditamos, sinceramente, e não
falamos sobre ninguém especificamente, que determi-
nadas pessoas assumem o governo, o poder, com vonta-
de de matar o diferente. E o problema do negro é que ele
é um diferente, é muito diferente. Quando eu entrava
em sala na Sorbonne, eu era muito diferente. “Aquele é
negro brasileiro”, cochichavam. O negro é diferente. E a
necropolítica se funda nesse modo de vida fundamental
que é o ódio ao diferente.
De maneira objetiva, é obsceno, escandaloso, nojento
quem assuma um governo, por exemplo, com a ideia de
dar tiro na cabecinha dos outros. Essa cabecinha é a cabe-
cinha do negro. Isso é necropolítica em ação, em ato.

DEVEMOS CONTINUAR
USANDO O
CONCEITO DE RAÇA?

Nós não podemos simplesmente eliminar a palavra


raça, nós não podemos eliminá-la, nós não podemos ig-
norá-la. Mas nós devemos sempre ver que as palavras
são também resultado de invenções, as palavras são

42
aquilo, significam aquilo em que acreditamos. E elas
crescem também na injeção de amor ou de ódio que nós
damos a elas. O nosso convite é para nós relativizarmos
a palavra, para não acreditarmos tanto nela. Ela não me-
rece tanta crença, ela não merece tanta fé. Mas às vezes é
estratégico usá-la, num determinado momento. Às ve-
zes é uma estratégia necessária afirmar a raça negra. Mas
não acreditemos nessa afirmação, porque, embora ela
seja uma ficção, as ficções têm força de nos convencer. O
amor é uma ficção, é uma ficção alimentada por afeto,
por palavras; mas uma ficção. Se você deixa a ficção es-
morecer, o amor também esmorece. Então essa ficção
que a palavra raça arrasta simplesmente não deve ser
muito alimentada, como o lobo que estava no peito do
cherokee: ele não dava muito alimento para esse lobo.
Mas às vezes, estrategicamente, sem dúvida nenhuma, a
palavra raça pode nos servir.

AMOR E ÓDIO
COMO CONCEITOS
NÃO BINÁRIOS

Há um problema em se tomar amor e ódio como afe-


tos absolutamente diferentes: aqui está o amor, aqui está
o ódio... Pois aí se tem o binarismo. Isso se resolve se nós
pensarmos como princípios. Isso é bem africano: pensar
com princípios. Princípios contraditórios, mas que se
seduzem. Por exemplo, homem e mulher: o Ocidente

43
pensou-os de modo binário e a dominação está nessa
separação. Quando você separa radicalmente homem
de mulher, você separa para dominar: um dos dois vai
dominar o outro e nós sabemos historicamente que o
patriarcalismo, o homem tem dominado a mulher.
O que é que ocorre quando você pensa em termos de
princípios? O princípio feminino, o princípio masculino
ou qualquer outro nome que você der, isso pode habitar
como princípio, qualquer que seja a sexualidade anatô-
mica do indivíduo. Então você pode ter o princípio femi-
nino imperando e reinando tranquilamente numa figura
masculina, no homem, ou o princípio masculino habi-
tando perfeitamente uma mulher, porque os princípios
se trocam, os princípios se seduzem, os princípios se in-
terpenetram, eles não são entidades edificadas. Então o
problema é você acreditar nessa separação e achar que
ela é compacta, que o homem é homem e mulher é abso-
lutamente mulher, isso não existe. No homem, na figura
do homem tem mulher, tem avô, avó, o parente e o ani-
mal, a transcendência, a divindade, porque tudo isso é
princípio. A masculinidade é um princípio, o feminino é
um princípio e isso não permite nenhuma discriminação
radical de escolhas afetivas e sexuais diferentes. É por
isso que os terreiros, com todos os seus problemas, sem-
pre foram mais modernos do que a sociedade ocidental
ao tocar na questão da homossexualidade. Não quer di-
zer que sejam o paraíso, mas sempre foram mais avança-
dos, mais compreensivos sobre esse habitar de sexualida-
des diferentes nos corpos das pessoas.

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RAÇA OU POVO?

A unificação por raça, digamos, estrategicamente, dá


uma certa força. Outro dia, fui convidado para falar
numa casa de manhã, num domingo, e eu fiquei sincera-
mente siderado – só tinha praticamente mulheres ne-
gras, muito bem articuladas! Elas eram de uma dignida-
de de fala, de uma serenidade de fala, que eu me
perguntei o seguinte: “O que é que trouxe de manhã to-
das essas mulheres aqui?”. Que se diga: foi a raça, foi a
cor. Mas será que de alguma delas poderia partir um
discurso separatista, no sentido de branco é branco e
preto é preto? Não acreditaríamos nisso.
Sem dúvida nenhuma, não tem nada mais profundo
do que a pele. A cor da pele não faz raça diferente. Ela
faz uma identificação racial, uma relação racial, daí sim
a identificação da unidade. Nós nos identificamos pri-
meiro pela cor da pele, mas não precisamos nos identifi-
car com raça, essa não é uma questão de semelhança. É
uma questão de homeopatia, é uma questão de analogia.
E ainda aí há um pensamento ubuntu, tem mais pensa-
mento do terreiro, porque o negro tradicional pensa por
analogia, não pensa por contradição. Se as coisas são
análogas, se podemos fazer um acerto, negociar, ainda
que simbolicamente, nós nos aproximamos.
É uma razão parcial a cor da pele permitir uma uni-
dade, porque essa cor da pele não fez raças diferentes,
fez apenas fenótipos diversos. Uma intelectualidade se
constituiu no Brasil, ao longo dos anos, com a cor negra,
45
com esse marco negro, que é insustentável para as elites
universitárias e mesmo para as elites brasileiras. É por
isso que depois que essa fração de povo, esse povo parti-
cular se uniu – chamaríamos, pois, de povo aquela raça
–, você o reconhece por certas características. Como po-
demos reconhecer o povo indígena não por raça, mas
por certas características, de fala, de língua, de aparên-
cia. Esse povo está investido de tal poder de fala que ne-
nhum discurso racista, nenhuma pressão racial pode
tornar a sua fala em branco de novo. Nenhuma ditadura,
nenhum poder militar poderá fazer mais essa jovem
gente se calar. E sabe por que não vai fazer? Porque – e
falemos como membro e obá de terreiro – quem trans-
porta a fala é exu.
Exu é o dono da fala, exu é o dono da comunicação;
e depois que a fala sai da boca, ela só entraria de volta se
exu a levar, e exu não vai levar a fala de volta. Portanto,
as coisas mudaram. Mas não foi a raça que deu unidade:
foi a identificação de povo, porque o Brasil não tem um
povo nacional, o Brasil tem povos nacionais. São muitos
os povos brasileiros. Esse conceito de povo é republica-
no, é abstrato demais para acreditarmos nele. Nós temos
muitos povos. Temos os povos indígenas, os povos ne-
gros, os povos ribeirinhos, os povos de alta urbanidade,
são muitos os povos brasileiros. Substituiríamos, na
busca de uma unidade, pois, a palavra raça pela palavra
povo. Povo.

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47
POVO DE SANTO
E SEUS JOGOS
DE NEGOCIAÇÃO

É escandaloso que a cultura negra tradicional seja


expulsa do morro por fundamentalistas, escudados por
milícias. Como é que nós podemos aceitar um retroces-
so desses? No entanto, o que podemos dizer do Brasil, a
mesma coisa em relação aos Estados Unidos, é que há os
jogos. Se tem uma coisa que faz a cultura popular, a cul-
tura americana, vital para a economia não é a bomba
atômica, é a música. São os jogos americanos, é o jazz, é
o canto, é isso que faz os Estados Unidos, que dá uma
vitalidade àquele país. Fora isso, tem poder, máquina
militar, bomba atômica – e a gente experimentando isso.
No Brasil é a mesma coisa.
O passo civilizador mais forte do Brasil foi dado no
Rio de Janeiro com a presença do negro baiano na re-
gião da Saúde, no início do século XX. Os negros baia-
nos sociabilizaram e civilizaram o Rio de Janeiro e isso
nunca se esgotou, esse impulso nunca se acabou. Então
o que tem de forte nos povos, o que tem de forte nas
nações não é apenas a cabeça – são as vísceras! Vieira é
que dizia isso. E as vísceras de uma nação são os povos,
as vísceras são a diversidade dos povos. E esses povos se
manifestam como: falando, articulando, escrevendo li-
vros? Não, se manifestam com jogos. Jogos de entreteni-
mento, mas jogos também litúrgicos, jogos de corpo.
Então há que se manterem vivos esses jogos. E isso
48
não achamos que seja tarefa do Estado – claro que uma
festa como o Carnaval do Rio de Janeiro não precisa ser
manifestamente objeto de ódio por parte do prefeito
atual da cidade [na época, o bispo Marcelo Crivella]...
Mas não acho também que seja o Estado que deva pro-
mover essa festa. Essa festa tem que ser suficientemente
viva e diversa, para que ela continue vindo do povo – ou
então que se faça experiências de sua morte, pode-se fa-
zer! É preciso pelo menos contar com a possibilidade da
experiência de sua morte, como todo mundo conta,
como todo grupo conta.
Existe algo efetivamente vivo, transitivo nos jogos li-
túrgicos. Aliás, as coisas, os conceitos são transitivos ou
intransitivos. O que é que é transitivo? É uma palavra, é
uma forma, um conceito que tem a ver com a prática,
com o trabalho. Se pegarmos um açougueiro falando de
carne, a fala dele é transitiva. Já um poeta falando de
carne, mesmo que a fala dele seja muito mais bonita do
que a do açougueiro – deve ser! –, mas essa fala é intran-
sitiva, pois ele não trabalha com carne, ele não tem uma
relação de trabalho de transformação com a carne, ele o
tem com as palavras, que é outro plano. O intransitivo,
portanto, é a fala que se estabiliza. Toda essa fala de rede
eletrônica também é intransitiva; não é fala de diálogo, é
fala de ricochete. Aquele que está brigando na rede não
é falante, é usuário. Ele é peão de um sistema publicitá-
rio e ele acha que tem liberdade para falar, que pode xin-
gar etc. Já os jogos litúrgicos nascem na espontaneidade
do comum de uma comunidade, nascem da dialética de

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vida dessa comunidade. Os jogos vêm daí, e é por isso
que eles são fortes. Nunca, com 200 anos de cinema do
Brasil, com televisão, acabaram-se os jogos litúrgicos
brasileiros. Nenhuma religião de ódio conseguirá acabar
com os orixás. Agora, as tentativas são grandes para
isso: pode botar para fora do morro! Mas, essa praga que
é o fundamentalismo não acaba conosco, pois esse é o
jogo litúrgico fundamental para grande parte dos brasi-
leiros, é na vitalidade dos jogos que ele nutre a sua força.

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51
MOVIMENTOS NEGROS
Renata Souza
Seimour Souza
HÁ SÉCULOS, os movimentos negros no Brasil e no
mundo vêm denunciando as condições de vida das pesso-
as negras em diversos lugares. Num quadro em que o ra-
cismo cimenta todos os tijolos da nossa estrutura social,
em que nossos corpos negros são mobilizados para de-
senvolvimento capitalista, ao custo das nossas vidas, a
luta dos movimentos negros é essencial, não só para de-
nunciar esse modelo excludente e mortal, mas também
para propor alternativas efetivas de saídas para a crise
social, política e econômica.
Os números demonstram que vivemos no Brasil um
verdadeiro genocídio dos povos negros. De acordo com
o Atlas da Violência 2020, que avaliou o período entre
2008 e 2018, jovens entre 15 e 29 anos representaram
53,3% das vítimas de homicídio no país. E 75,7% das
vítimas de assassinatos eram negras. Enquanto a taxa de
homicídio de negros cresceu 11,5% em uma década, en-
tre não negros houve redução de 12,9%. Vivenciamos o
aumento da mortalidade materna de mulheres negras
em razão da violência obstétrica, que faz com que a
chance de morte seja duas vezes maior, e o aumento em
mais 54% do feminicídios de mulheres negras nos últi-

52
mos anos. A perseguição e a violência sistemática contra
os terreiros e os adeptos das religiões de matriz africana,
e a criminalização das expressões culturais negras, como
o rap e o funk, são também tentáculos do genocídio an-
ti-negro do Estado brasileiro.
O racismo tem elaborado narrativas criminalizadas,
produzido dores, controlado corpos, sentenciado vidas,
fomentado violência, e nos fazendo contabilizar mortos.
O genocídio anti-negro não faz parte de uma narrativa
que deve ser denunciada, mas já se incorporou no coti-
diano como um fato habitual e previsível.
O processo de dominação é pelo extermínio da vida,
assassinatos à luz do dia e da noite, sob a certeza da impu-
nidade e, não menos, sob o manto de aprovação de signi-
ficativa parcela da sociedade, sintetizada nos defensores
da “moral e dos bons costumes”. Boa parte da sociedade
aprova a aniquilação sistemática de corpos negros.
Apesar de inseridos em um processo genocida que
diuturnamente suprimi as nossas vidas, nós, pessoas ne-
gras, estamos adoecidos e fragmentados enquanto indi-
víduos e enquanto coletividade. Em pedaços miúdos.
Nossas vidas não valem nada, as perspectivas não exis-
tem para nós e o futuro nos aponta para a morte.
A despeito de tudo o que estamos submetidos coti-
dianamente nessa necrópole, os nossos sonhos seguem
sendo a nossa principal bússola para apontar um futuro
que tem de ser diferente, sob o custo de não estarmos
honrando os nossos ancestrais que um dia ousaram so-
nhar com a liberdade. Precisamos nos organizar sobre o

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que os passos daqueles e daquelas que pavimentaram o
caminho para que pudéssemos estar vivos mesmo ape-
sar de tudo, dos que nos ensinaram práticas de resistên-
cia que fizeram com que chegássemos em 2021 sendo a
maioria da população.
É necessária a completa desarticulação de um gru-
po para que se possa ter mais facilidade em sua domi-
nação, por isso devemos traçar linhas intransponíveis,
as quais jamais vamos ultrapassar. Estabelecer limites e
valores que deverão ser inegociáveis. As nossas vidas,
as nossas crianças, os nossos sonhos e os nossos corpos
não podem servir como moeda de troca, nem como
combustível de desenvolvimento de um sociedade ca-
pitalista e excludente.
Temos um pacto duro com a realidade, a ancestrali-
dade que nos trouxe até aqui é a mesma que foi assassi-
nada nos tumbeiros, nas senzalas e nas plantações, e
disso não podemos esquecer nem por um minuto, sob o
custo de estarmos consensuando com apagamento do
nosso bem mais precioso: a memória ancestral.
Lembrar nossa ancestralidade é honrar aqueles que
criaram as ferramentas necessárias para que hoje possa-
mos lutar. É honrar Dandara e Zumbi de Palmares, a
princesa Aqualtune, Zacimba Gaba, Tereza de Benguela,
Manuel Congo e Mariana Criola, Luiz Gama, e tantos
outros ancestrais negros que deram as suas vidas pela
nossa liberdade, tal como Luisa Mahin, nossa grande re-
ferência. Uma mulher negra e escravizada, que foi uma
das principais lideranças da Revolta dos Malês, ainda

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durante o período escravagista. Honrar nossos ances-
trais é lembrar a todo momento que temos uma história
que é de altivez e resistência.
Valores como coletividade, solidariedade, humani-
dade e circularidade são o que tem conduzido o movi-
mento negro brasileiro até os dias atuais. Dos tempos do
escravagismo, passando pelo processo de apagamento e
vilepêndio dos corpos negros no seculo XX até os dias
atuais, o compromisso tem sido a luta intransigente con-
tra o racismo, a exploração e pelo bem viver.
E a partir desse processo que avanços foram produzi-
dos. À luz de muita luta, vemos cada vez mais pessoas
negras ocupando os bancos das universidades e produ-
zindo saberes que são racialmente referenciados em ter-
ritórios e corpos negros, e evidenciando cada vez mais a
potência das favelas e periferias, que historicamente so-
frem com um processo de violência intencional e letal, e
agora, cada vez mais, tem produzido possibilidades e
alternativas a partir do proprio território.
Consequência direta também da articulação dos mo-
vimentos negros brasileiros é o aumento nos ultimos
anos da eleição, em especial de mulheres negras, cis e
trans, para ocupar cargos politicos em parlamentos de
diversas esferas e territórios. Mulheres negras, com
nome e sobrenome, e autonomia de fala e percepção
para falar sobre si mesmas, sobre as suas dores e para
propor saídas e alternativas eficazes contra aquilo a que
foram submetidas. Falo de mulheres que, assim como
Lélia Gonzalez, Antonieta de Barros, Beatriz do Nasci-

55
mento e tantas outras, romperam com a barreira do si-
lêncio, da dor, do lar. Falo de mim, Renata Souza, mas
também de Benedita da Silva, Andreia de Jesus, Taliria
Petrone, Erica Malunguinho, Dani Monteiro, Aurea Ca-
rolina, Benny Briolly, Jurema Batista, Mônica Francisco,
Erika Hilton, Thais Ferreira, Vivi Reis, Tainá de Paula,
Luana Alves, Monica Seixas, Olivia Santana, Rejane de
Almeida, Jô Cavalcanti e tantas outras mulheres negras
comprometidas com a luta antirracista e pela defesa das
vidas das pessoas negras nesse país.
E é em nome de todas essas que também reverencio e
honro a nossa ancestral jovem Marielle Franco, que teve a
sua vida brutalmente interrompida, vítima de um femini-
cídio político. Marielle Franco é símbolo da resistência,
da luta e da resiliência política das mulheres negras. Por
ela e por nós, seguimos cobrando que o Estado brasileiro
responda “Quem mandou matar Marielle Franco?”
Por Marielle e por tantas outras, devemos estar aten-
tos ao processo de reintegração de posse daquilo que
nos é de direito, mas também ao processo de restabele-
cimento de agência para criação e produção indepen-
dentes, com todas as estratégias possíveis. Para isso, é
necessário atenção ao óbvio: estarmos vivos em todas as
dimensões de vida. Proteção e vida longa a todas as mu-
lheres negras que colocaram seus corpos à disposição da
luta e pelo bem viver do povo preto.
Chamamos a atenção para um processo essencial
para pessoas pretas deste país. É necessário muito mais
do que revolta para lidarmos com as consequências le-

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tais que o racismo tem produzido nas nossas vidas, é
preciso organização. Organização não somente sobre a
égide da nossa ancestralidade, mas sobretudo na cana-
lização de forças e estratégias na produção de mudan-
ças concretas.
Organizar para não estarmos tão vulneráveis às es-
tratégias de dominação de nossos corpos e, principal-
mente, vulneráveis à tentativa de reinvenção das nossas
histórias. Organizar, pois essa é a nossa primeira e prin-
cipal estratégia possível para a subversão do racismo.
Somente através da nossa organização é que poderemos
fazer frente a um Estado estruturado para nos aniquilar.
O movimento do “Vidas Negras Importam” demons-
trou o tamanho da nossa força e da nossa capacidade de
mobilização para chamar a atenção do mundo, sobre a
barbárie a que os corpos negros estão submetidos, mas
também demonstrou o quanto a nossa luta é transnacio-
nal e capaz de produzir fissuras necessárias às estruturas
da sociedade. A recente condenação, nos EUA, do poli-
cial Derek Chauvin, responsável pelo assassinato de Ge-
orge Floyd, é a conjectura necessária que precisávamos
para que os ventos das mudanças chegassem ao Brasil.
Apesar dos avanços, nós precisamos enfrentar a
complexidade de nossos processos. Lidar com a violên-
cia, a dor, e a morte dos nossos, cotidianamente, tam-
bém nos adoece e nos coloca em posição de duvidar da
nossa força. Por isso é necessário que a resistência não
seja romantizada na nossa luta e nos nossos espaços, re-
sistir é necessário, mas também muito doloroso. Mesmo

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não en­contrando caminhos fáceis no que nos diz respei-
to, o afeto e o amor - sentimentos abandonados entre os
nossos por uma percepção machista de fragilidade - pre-
cisam ser a tônica das nossas ações em todas as esferas
possíveis de atuação, sem ele é impossível avançar na luta
Para isso, precisamos nos voltar para a nossa história,
compreender que o tempo nunca foi nosso inimigo, que
o nosso caminho não é o norte, mas o sul, e que por isso
nosso destino caminha ao contrário. Mais do que reve-
renciar, precisamos dialogar com os nossos ancestrais,
como Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento, mas para
isso precisamos retornar o modelo africano de socieda-
de, que diferente do modelo ocidental e capitalista, nun-
ca colocou o resto da humanidade em risco. Compreen-
dermos que para nós não existe o fim, mas sim
inicio-meio-inicio. Que somos os sonhos dos nossos
ancestrais, e que por isso não podemos perder nunca o
sentimento de pertencimento, de um ciclo que não se
iniciou e nem termina em nós. E que, por isso, temos a
obrigação de deixar um legado melhor aos que virão de-
pois de nós. Vida longa ao povo negro, vida longa a nos-
sa coletividade, vida longa às organizações negras.

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DEPUTADA ESTADUAL

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