Programa de Filosofia - 10º - Síntese

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SÍNTESES ESQUEMÁTICAS DE FILOSOFIA

PARA O 10º ANO


UNIDADE 1 – INICIAÇÃO À ACTIVIDADE FILOSÓFICA
Capítulo 1. O que é a filosofia
A FILOSOFIA E OS SEUS PROBLEMAS

A filosofia estuda problemas para os quais não há solução científica.

CARACTERÍSTICAS DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS

1 – São relativos às nossas crenças básicas ou fundamentais

2 – São problemas que os filósofos tentam resolver recorrendo ao


pensamento. São problemas de carácter geral ou não empírico. Não se
podem resolver recorrendo à experiência, nem à experimentação.

1 – São relativos às nossas crenças básicas ou fundamentais.


O que são crenças?

São teorias ou afirmações que têm a propriedade de serem verdadeiras ou falsas e


com as quais tentamos resolver um problema ou conjunto de problemas.

O que são crenças básicas ou fundamentais?

São crenças cuja verdade ou falsidade determina a verdade ou falsidade de outras


crenças que delas dependem. A crença fundamental de várias religiões é a de que
Deus existe. Se esta crença for falsa, então outras crenças que dela dependem tornar-
se-ão falsas ou pelo menos terão de ser revistas. É o caso da crença de que a
moralidade das nossas acções consiste em cumprir a vontade de Deus expressa num
dado número de mandamentos.

Qual é a atitude dos filósofos acerca desse tipo de crenças?

A filosofia interroga – se sobre a verdade deste tipo de crenças, transforma-as em


problemas. A crença «Deus existe» é pela filosofia transformada no problema «Será
que Deus existe?»

Exemplos de crenças básicas ou fundamentais

1. Acreditamos – algumas pessoas acreditam - que a moralidade de uma acção


depende da sua intenção ou do seu motivo.

2. Acreditamos que uma obra de arte é artística por ser bela.

3. Acreditamos que só tem direitos quem cumpre certos deveres.

4. Acreditamos que justiça é sinónimo de igualdade

O que implica termos certas crenças básicas ou fundamentais

Se acreditamos que só tem direitos quem cumpre deveres então temos de abandonar
a crença de que as crianças de tenra idade têm direitos.

Se acreditamos que a justiça é sinónimo de igualdade então temos de abandonar a


eventual crença de que cada um deve receber ou ganhar de acordo com o mérito ou o
esforço bem-sucedido.

Se acreditamos que em questões morais tudo é relativo e isso for verdade temos de
considerar falsa a crença de que «Roubar é moralmente errado» é uma regra
objectiva, válida em todo o lado.

2 – São problemas que os filósofos tentam resolver recorrendo ao


pensamento. São problemas de carácter geral ou não empírico. Não se
podem resolver recorrendo à experiência, nem à experimentação.

Para tentar resolver os problemas filosóficos não podemos recorrer:

1 – À experiência.

2 – À experimentação científica ou ao método experimental

O método experimental não serve para resolver questões como «Será que Deus
existe?» ou «Será que a vida tem sentido?». Formula hipóteses e confronta-as com
factos, o que, neste caso, é tarefa condenada ao fracasso.
3 – Ao cálculo matemático.

A filosofia não recorre, como a matemática, a métodos formais de demonstração nem


a simples cálculos para resolver os seus problemas. É uma afirmação bastante óbvia.
Basta pensar que um problema como o da existência de Deus não é de modo algum
um problema matemático.

Como os problemas da filosofia não são empíricos será que ela despreza a experiência
e unicamente relaciona ideias?

Não. O facto de a filosofia não ser uma disciplina empírica ou experimental, não deve
sugerir que ignore a experiência e a prática. A filosofia usa informação empírica
obtida pelas ciências e pela observação. O carácter conceptual da filosofia não
significa que esta unicamente relacione conceitos e ideias. Não é possível argumentar
de forma racionalmente persuasiva acerca da moralidade do aborto, da eutanásia, da
clonagem sem informação empírica. Não é possível defender que devemos ser
vegetarianos se não tivermos dados empíricos confiáveis que mostrem que o
consumo de carne é dispensável.

3 – Exemplos de problemas filosóficos e de problemas não - filosóficos

Problemas filosóficos Problemas não - filosóficos

1. Será que Deus existe?


1. A que se deve o triunfo do
2. Será que somos livres? cristianismo?
3. Como devemos viver? 2. Como surgiu a Sida?
4. O que é a justiça? 3. Fumar faz mal à saúde?
5. O que distingue uma acção 4. O que são países desenvolvidos?
moralmente correcta de uma acção
moralmente errada? 5.O que é a vida (o que é um ser
vivo)?
6. O que faz de uma coisa uma obra
de arte? 6. Os alimentos geneticamente
modificados são seguros?

7. O que fazer para combater o efeito


de estufa?
UNIDADE 1 – INICIAÇÃO À ACTIVIDADE FILOSÓFICA
Capítulo 2. Os instrumentos do trabalho filosófico.
OS ELEMENTOS DA FILOSOFIA

Problemas Teorias Argumentos

As questões fundamentais a que se As respostas que O modo como


procura responder. conseguimos dar aos justificamos ou
problemas defendemos as
fundamentais. respostas que damos.

OS ARGUMENTOS

Os argumentos são um dos elementos centrais da actividade a que chamamos filosofia.


Sem eles as respostas aos problemas da filosofia não passariam de simples opiniões.
Estudar filosofia é, em parte, analisar, discutir e avaliar os argumentos que os filósofos
usam para defender as suas teorias.

O que é um argumento?
Um argumento é um conjunto de proposições em que uma delas é defendida pelas
outras. A proposição defendida – a tese – tem o nome de conclusão. A proposição ou as
proposições que a defendem são as premissas.

Exemplo de argumento

1-Se Deus é perfeito, então tudo o que ele criou é perfeito.

2-Ora o mundo é imperfeito dado que há muito sofrimento, muita


fome e cada vez menos recursos naturais.

3-Logo, Deus não é perfeito.

Se Deus é perfeito, então tudo o Premissa 1 Proposições que


que ele criou é perfeito. fundamentam ou
justificam a conclusão.
2-Ora o mundo é imperfeito Premissa 2 São as razões que se
dado que há muito sofrimento, apresentam para fazer
muita fome e cada vez menos aceitar a tese.
recursos naturais.

Logo, Deus não é perfeito. Conclusão Aquilo que é justificado


ou apoiado pelas
premissas.

CONJUNTO DE FRASES QUE NÃO CONSTITUEM UM


ARGUMENTO

“No Irão, os adúlteros de ambos os sexos são punidos com a lapidação pública. Os
homens que cometerem adultério são enterrados até à cintura e apedrejados; as
mulheres adúlteras são-no também, só que são enterradas até aos sovacos. Quem
conseguir libertar-se é ilibado.”

O anterior conjunto de frases contém algum argumento? Tenta explicitamente provar


ou defender alguma ideia? Justifica-se alguma tese? Apresentam -se razões para aceitar
alguma ideia ou tese? Não. O texto é simplesmente descritivo e não argumentativo.
IDENTIFICAR E CLARIFICAR ARGUMENTOS

Eis um argumento por clarificar:

Sabemos que, se a inflação baixa, o consumo aumenta. Dado que a inflação está a
baixar, podemos concluir que o consumo vai aumentar.

Clarificação do argumento

Clarificamos o argumento reconstruindo-o na seguinte forma padronizada (forma-


canónica): apresentamos primeiro as premissas, uma em cada linha.
A conclusão surge no fim:

Se a inflação baixa, então o consumo aumenta.

A inflação está a baixar.

Logo, o consumo vai aumentar.

Indicadores de conclusão

Então… Qualquer frase colocada a seguir a estes indicadores


O que mostra (prova) que… é a conclusão.
Assim… Ex: Todos os animais que ladram são cães e por isso
Consequentemente….
Daí que… o animalque tenho em casa é um cão.
Por conseguinte…
Assim sendo… A proposição antes do indicador por isso é uma
Por isso… premissa.
Portanto… A proposição a seguir é a conclusão.
Segue-se que… Implícita está a outra premissa:
E por essa razão…
Tenho em casa um animal que ladra.
Argumento:
Todos os animais que ladram são cães.
Tenho em casa um animal que ladra.
Logo, o animal que tenho em casa é um cão.

Indicadores de premissa
Qualquer frase colocada a seguir a estes indicadores
Porque… é uma premissa.
Uma vez que… Ex: O animal que tenho lá em casa é um cão, visto
Pois…
Visto que… que é um animal que ladra.
Em virtude de… A proposição antes do indicador visto que é a
Como… conclusão.
Assumindo que… Implícita está a outra premissa:
Considerando que… Tenho em casa um animal que ladra.
Pode inferir-se disto… Argumento
Devido a…
Todos os animais que ladram são cães.
Por causa de…
Ora... Tenho em casa um animal que ladra.
Logo, o animal que tenho em casa é um cão.

O QUE SÃO BONS ARGUMENTOS?

Para defenderem as suas teorias os filósofos procuram apresentar bons argumentos

Os bons argumentos são:

1 – Válidos

2 – Constituídos por premissas e conclusão de facto verdadeiras ou pelo menos


plausíveis

Tem de haver uma preocupação com a verdade de facto (valor de verdade) das
proposições que constituem os argumentos.

Os nossos argumentos não serão convincentes e persuasivos se a validade não for


acompanhada pela verdade efectiva ou plausível do que dizemos, isto é, das premissas
e da conclusão.

BOM ARGUMENTO MAU ARGUMENTO

1 - Todos os animais que ladram são cães 2 -Todos os animais são seres que ladram

Os Serra da Estrela são animais que ladram Os Serra da Estrela são animais

Logo os Serra da Estrela são cães. Logo, os Serra da Estrela são seres que
ladram

Ambos os argumentos são válidos mas se perguntarmos qual deles é o melhor a resposta será que o argumento 1 é
melhor do que o 2. Porquê? Porque não só é logicamente correcto como também é constituído por premissas e
conclusão de facto verdadeiras.

O argumento 2, apesar de válido, não é bom porque tem uma proposição que é falsa: a premissa Todos os animais
são seres que ladram.

O que é a validade de um argumento?


A validade tem a ver com a relação entre o valor de verdade das premissas e o valor de
verdade da conclusão. Há dois grandes tipos de argumentos: os argumentos dedutivos
e os argumentos indutivos.

• O que são argumentos dedutivos? São argumentos cuja validade depende


exclusivamente da sua forma lógica.

• O que são argumentos indutivos? São argumentos cuja validade não depende
unicamente da sua forma lógica.

Validade dedutiva e validade indutiva

Argumentos dedutivos válidos

São argumentos em que, a partir da verdade das premissas, se infere (deduz)


necessariamente a verdade da conclusão. São argumentos em que é impossível que as
premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Argumentos cuja conclusão tem de
ser verdadeira, admitida a verdade das premissas e havendo uma relação apropriada
entre elas.

Exemplo de argumento dedutivo válido:


Todos os dentistas ganham muito dinheiro.
João é dentista.
Logo, João ganha muito dinheiro.

Como se determina a validade deste argumento? Como se avalia se é válido ou inválido?


Raciocinando do seguinte modo: Se a proposição “Todos os dentistas ganham muito
dinheiro” for verdadeira e se supusermos que a proposição “João é dentista” também é
verdadeira, o que dizer da conclusão “João ganha muito dinheiro”? Temos de afirmar que
a conclusão é verdadeira. Quem não o fizer comete uma contradição porque as
premissas implicam que João ganha muito dinheiro. Deriva necessariamente das
premissas? A resposta, neste caso, é obviamente afirmativa, ou seja, o argumento é
válido.
Exemplo de argumento dedutivo inválido:

Todos os dentistas ganham muito dinheiro.


Deco ganha muito dinheiro.
Logo, Deco é dentista.

Neste caso, raciocinamos do mesmo modo: Se a proposição “Todos os dentistas ganham


muito dinheiro” for tomada por verdadeira e a proposição “Deco ganha muito dinheiro”
também, o que dizer da conclusão “Deco é dentista”? Que não deriva necessariamente
das premissas, isto é, que o argumento não é válido. Com efeito, não se diz nas premissas
que só os desportistas ganham muito dinheiro.

Como avaliar a validade de um argumento dedutivo?

Para avaliar a validade de um argumento dedutivo não importa saber se as premissas


ou a conclusão são de facto verdadeiras. O que importa é saber se, supondo ou
imaginando que as premissas são verdadeiras, a conclusão pode ser considerada (ou
não) uma consequência necessária das premissas.
A verdade factual das premissas e da conclusão não garante a validade de um
argumento. A falsidade das premissas e da conclusão não impede que um argumento
seja válido:
A – Um argumento pode ser B – Um argumento pode ser inválido
válido tendo premissas e tendo premissas e conclusão
conclusão falsas. verdadeiras
Ex: Ex:
Um mês tem 365 dias. Pavarotti é um cantor
Um ano tem 31 dias Todos os tenores são cantores
Logo, um mês é maior do que um Logo, Pavarotti é italiano
ano
Forma lógica e validade

Considerem-se estes dois raciocínios:


1 - Todos os queijos são filósofos 2 – Todos os portugueses são
minhotos.
Alguns europeus são portugueses
Alguns produtos do Zumbo são queijos
Logo, alguns europeus são
minhotos
Logo, alguns produtos do Zumbo são filósofos

Se olharmos para o conteúdo vemos que estes argumentos tratam de assuntos diferentes.
Mas têm a mesma forma ou estrutura. Para verificar isso basta substituir o sujeito e o
predicado por letra ou símbolos.

Todos os A são B Todos os A são B

Alguns C são A
Alguns C são A
Logo, alguns C são B
Logo, alguns C são B

Estes argumentos são válidos e é suficiente inspeccionar a sua forma lógica para o
verificar. Qualquer raciocínio independentemente do seu conteúdo será válido se tiver
esta forma. Esvaziemos o argumento das letras ficando assim:

Todos os … são …

Alguns … são …

Logo, alguns … são …

Seja o que for que se escreva nos espaços vazios terá como resultado um
argumento válido porque a forma é válida:

Todos os homens são casados Todos os A são B

Alguns solteiros são homens Alguns C são A


Logo, alguns solteiros são casados. Logo, alguns C são B

Independentemente de falarem de filósofos e de queijos, de casados e de


solteiros, de europeus e de portugueses, estes raciocínios são avaliáveis como
válidos ou inválidos devido à forma ou estrutura lógica que apresentam. Os que
apresentámos são válidos. A validade dedutiva é uma questão formal. A validade
de um argumento dedutivo depende unicamente da forma lógica do argumento,
ou seja, da relação correcta que se dá entre as premissas e a conclusão (sejam
estas de facto verdadeiras ou não).

Argumentos indutivos válidos


São argumentos em que, apesar de muito improvável, não é impossível que as
premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Um argumento indutivo é válido
quando é improvável (ou muito pouco provável) mas não impossível que as suas
premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Um argumento indutivo válido é aquele
em que a verdade das premissas nos dá fortes razões para pensar que a conclusão é
verdadeira. Por isso se diz que um bom argumento indutivo é um argumento forte.

Argumento indutivo válido Argumento indutivo inválido

1 - Todas as pessoas que comeram no 2 - Até agora nenhuma mulher foi


restaurante Zodíaco ontem à noite Presidente da República em Portugal
ficaram doentes.
Logo, nenhuma mulher será Presidente
Logo, a comida estava estragada da República de Portugal

O argumento 1 é válido no sentido em que a Do argumento 2 podemos dizer que não é


premissa nos dá muito fortes razões para válido porque é fraco. Com efeito, é
crer que a conclusão é verdadeira. Não é perfeitamente possível e altamente provável
que apesar da verdade da premissa a conclusão
impossível que algumas pessoas tenham
seja falsa. Com efeito, noutros países há e já
ficado doentes por terem apanhado um houve mulheres presidentes da república, em
resfriado mas é muito provável que a Portugal já houve uma candidata ao cargo e o
conclusão seja verdadeira. A verdade da acesso de mulheres a cargos importantes está a
premissa torna fortemente provável a generalizar-se tornando provável que num
verdade da conclusão. futuro próximo tenhamos uma mulher na
presidência da república.
A IMPORTÂNCIA DA LÓGICA PARA O ESTUDO DA FILOSOFIA

A lógica é indispensável para o exercício da actividade filosófica pelas seguintes


razões:
1 – Permite-nos distinguir argumentos de não-argumentos.
Só é considerado argumento um conjunto de proposições formado pela conclusão e pelas
premissas que visam apoiá-lo.

2 – Permite-nos clarificar argumentos.


Clarificar argumentos significa saber identificar a conclusão (a tese ou ideia que se quer provar) e
as premissas que pretendem prová-la. Deste modo podemos reconstruir argumento destacando
as premissas e a conclusão. Em muitos casos isso implica detectar premissas que estão
subentendidas.

3 – A lógica ensina-nos a pensar de forma consequente.


O que é pensar de forma consequente? É saber chegar a conclusões apoiadas em boas razões.
Dadas certas premissas sabemos que conclusão é logicamente possível retirar delas e que
conclusão as premissas não permitem que defendamos. O pensamento consequente é o
pensamento rigoroso. Se fico a saber que o meu irmão percorreu 250 km em duas horas penso
consequentemente se inferir que o meu irmão circulou a uma média de mais de 100 km por hora.
Se reconheço que a vida só faz sentido se formos imortais, da ausência de imortalidade retiro a
conclusão de que a vida não faz sentido.

4 – Ensina-nos a avaliar criticamente argumentos, isto é, a verificar se são bons.

Para avaliar criticamente um argumento, para mostrar se é ou não é um bom argumento, temos
de perguntar duas coisas:

a) A conclusão é apoiada pelas premissas? Há uma relação apropriada entre as premissas


e a conclusão?

No caso de argumentos dedutivos, a questão traduz-se assim: se considerarmos as premissas


verdadeiras será que isso garante a verdade da conclusão?

No caso dos argumentos indutivos, a questão traduz-se assim: será que se as premissas forem
verdadeiras isso torna provável que a conclusão seja verdadeira?

b) As premissas são verdadeiras ou falsas?

Sabendo que um argumento dedutivo é bom se for válido e tiver premissas verdadeiras
basta mostrar ou que tem uma premissa falsa ou que não é válido para o refutar.

Sabendo que um argumento indutivo é bom se for válido (as premissas tornam provável a
conclusão) e se tiver premissas verdadeiras basta que algum destes critérios não seja
cumprido para que se refute o argumento.
4 – Como a actividade filosófica consiste essencialmente na discussão de ideias, mediante a
lógica tornamo-nos mais capazes de apresentar argumentos a favor de uma ideia ou de contra-
argumentar, isto é, de apresentar argumentos que a refutem.

Se a verdade da conclusão depende da verdade das premissas, tentar negar a conclusão ou tese
que é defendida por alguém consiste em tentar negar a verdade da ou das premissas.

Vejamos o seguinte argumento:

Todas as pessoas que gostam de ler romances são


advogados.

Miguel é advogado

Logo, Miguel gosta de ler romances

Podemos atacar a conclusão, negando a premissa inicial, isto é, mostrando que é falsa: há
milhões de pessoas que gostam de ler romances e não são advogados. Podemos também
mostrar que o argumento tem forma inválida, ou seja, que a sua conclusão não deriva das
premissas, não é logicamente apoiada por estas: ser advogado não implica gostar de ler
romances.

Considere-se ainda outro argumento:

Todos os estudantes são cábulas.

Alguns portugueses são estudantes

Logo, alguns portugueses são


cábulas

O argumento é logicamente correcto. Não há possibilidade de negar a conclusão se


aceitarmos as premissas. Mas será que o argumento é inatacável, será que além de válido é
bom? A resposta é não porque a primeira premissa é falsa. E como provamos que é falsa?
Negando-a, ou seja, opondo-lhe uma proposição que seja verdadeira. Essa proposição é
Alguns estudantes não são cábulas. A negação de uma proposição falsa tem de ser uma
proposição verdadeira pois não se nega uma proposição falsa com outra proposição falsa
como seria o caso de dizer que Nenhum estudante é cábula.

UNIDADE 2
A acção e os valores
Capítulo 1 – A acção humana
1. Análise e compreensão do agir.
O QUE É UMA ACÇÃO?
QUE CARACTERÍSTICAS DEVE TER UMA COISA PARA SER CONSIDERADA
UMA ACÇÃO.
1 – Uma acção é um acontecimento.
Considera-se que todas as acções são acontecimentos, ou seja, são coisas que
acontecem num dado momento e num certo lugar. Assim, ir à praia é um
acontecimento porque vamos a uma praia num determinado local e em dado
momento – normalmente no Verão, de manhã ou de tarde. Mas nem tudo o que
acontece é uma acção, ou seja, se todas as acções são acontecimentos nem todos
os acontecimentos são acções. Um furacão é um acontecimento, mas não é uma
acção.

2 - Uma acção é algo que envolve um agente.


O que distingue a proposição João foi à praia da proposição João sofreu um ataque
cardíaco? A primeira proposição fala-nos de algo que alguém fez. A segunda de
algo que simplesmente aconteceu a alguém. Uma acção é um acontecimento que
envolve um agente (o sujeito de uma acção).

3 – Uma acção é algo que um agente faz acontecer.


Uma acção é algo que acontece por iniciativa do sujeito nela envolvido. Ir à praia é
algo que João faz acontecer, mesmo que não o deseje (é de má vontade que
obedece à ordem do pai para se juntar à família). Sofrer um ataque cardíaco é algo
que acontece no organismo do João, mas não resulta de vontade sua. No primeiro
caso, não diremos que João foi à praia por vontade do pai. Foi algo que ele fez.
Seja qual for o motivo, por gosto ou por obrigação, ir à praia foi algo que ele fez.

4 – Uma acção é um acontecimento intencional (nem tudo o que


fazemos é uma acção).
Imaginemos que, inadvertidamente, escorrego numa casca de banana e acabo por
entornar uma garrafa de Coca-Cola em cima do livro de um colega que estudava
comigo no bar da escola. Sujar o livro do colega foi algo que eu fiz. Mas será isto
uma acção? Não, porque não tive intenção de sujar o livro do meu colega, não o fiz
de propósito. Estamos perante algo que eu fiz sem querer e assim sendo o livro foi
estragado pelo que me aconteceu e não propriamente por mim.

Definição de acção – Uma acção é um acontecimento desencadeado pela vontade


e intenção de um agente. Não é um simples acontecimento, não é simplesmente
algo que um agente faz, é algo que um agente faz acontecer intencional ou
propositadamente.

Um exemplo de acção
Vou à farmácia comprar uma embalagem de aspirinas porque me dói bastante a
cabeça.
A dor de cabeça é algo que me acontece, mas ir à farmácia comprar o
medicamento é algo que eu faço acontecer porque quero tratar a dor de cabeça.
Vou à farmácia com esse propósito e por esse motivo.

A rede conceptual da acção

Que conceitos são necessários para caracterizar uma acção?


1 – Deliberação
2 – Decisão
3 – Intenção
4 – Motivo

ACÇÃO

Ir à farmácia comprar um medicamento para tratar uma dor de cabeça.

1 – Deliberação
Antecede habitualmente a decisão e consiste em ponderar diferentes
possibilidades de acção
Ex: Devo ir à farmácia ou não? Será que não há alguém que possa ir por mim? A
aspirina não irá fazer-me mal ao estômago? Se calhar isto passa sem tomar
medicamentos, dormindo um pouco.

2 – Decisão
Momento em que se escolhe uma das alternativas ou possibilidades de acção,
preferindo uma delas.
EX: Vou à farmácia. Esta dor de cabeça tem de ser tratada com medicamento e não
vou poder dormir.

3 – Intenção
Trata-se do que pretendo com a acção. Neste caso a intenção é tratar uma dor de
cabeça.
Quando perguntamos "0 que quer fazer aquele que age?", referimo-nos à
intenção, ao que o agente pretende ser ou fazer.

4 – O motivo
O porquê ou a razão de ser da acção.
"Por que razão quero ir à farmácia comprar um medicamento para tratar uma dor
de cabeça?» A resposta apresentar-nos-á o motivo dessa decisão, tomando-a
compreensível. O motivo pode ser acabar com o desconforto físico e poder
trabalhar em melhores condições.

As condicionantes da acção
Entende-se por condicionantes da acção:
1- Os limites que factores internos e externos impõe à nossa acção.
2 – As possibilidades que factores externos e internos conferem às nossas acções.

Condicionantes físicas, biológicas e psíquicas


A nossa constituição genética impõe-nos limites: não podemos voar como
algumas aves, não podemos viver dentro de água como os peixes e se nascermos
com mãos pequenas e baixa estatura é quase impossível ser jogador da NBA. Mas
somos dotados de inteligência e criatividade que nos permitem voar de avião,
passar bastante tempo debaixo de água.

Somos seres com um programa genético aberto e flexível (1)

Programa genético aberto – Programa constituído por um conjunto de genes que


não determinam de forma absolutamente rígida características e
comportamentos.
Programa genético fechado – Programa constituído por um conjunto de instruções
genéticas que controlam de forma muito rígida quase todos os aspectos do
comportamento de um ser, deixando pouco espaço para que as relações com o
meio exerçam a sua influência.

Somos seres com um programa genético aberto e flexível (2)

Imagine que a maioria dos nossos comportamentos é biologicamente herdada,


como se fôssemos abelhas. Quanto mais comportamentos herdamos por via
biológica menos comportamentos podemos aprender. Sabemos que as abelhas
apresentam comportamentos muito complexos mas são os únicos que podem
realizar porque quase toda a sua conduta está determinada geneticamente. O ser
humano não está submetido ao determinismo biológico.

Somos seres com um programa genético aberto e flexível (3)

Dependemos mais do que fazemos com o que nos é dado do que do que nos é
dado. A relativa indeterminação biológica, o facto de os nossos comportamentos
não serem rigidamente controlados pela nossa herança genética, abre ao ser
humano a possibilidade de auto-determinação, e torna-o essencialmente uma
criatura social e cultural. Inacabados e desprotegidos pela natureza, cabe aos
seres humanos completar o seu projecto por si próprios, usando a razão e a
reflexão, que só eles têm.

Somos seres com um programa genético aberto e flexível (4)

No ser humano a adaptação cultural prevaleceu ao longo da história sobre a


adaptação biológica. Graças à cultura o homem pode adaptar-se modificando o
seu próprio meio e não simplesmente ajustando-se a ele. Quando graças à cultura
o ser humano modifica o seu meio de modo a torná-lo mais favorável no que
respeita à satisfação das suas necessidades ou à sua sobrevivência, diz-se que a
cultura tem uma função adaptativa. Trata-se de uma adaptação criativa e
inventiva. Enquanto, por exemplo, as outras espécies animais adaptam o seu corpo
ao alimento que podem consumir, o ser humano adaptou o alimento ao seu corpo
e assim se tornou omnívoro.

Somos seres com um programa genético aberto e flexível (5)

Não nos adaptamos a um determinado meio como uma chave se adapta a uma
fechadura. Transformamos o meio mediante a nossa imaginação e as nossas
capacidades de raciocínio e de reflexão. Somos «programados para aprender».
Temos, em comparação com os outros animais, a possibilidade de agir segundo
normas e padrões de comportamento aprendidos, de modificar as aprendizagens
efectuadas. Assim, há em nós um reduzido conjunto de comportamentos de base
instintiva e estereotipada.

As condicionantes psicológicas

As nossas acções também dependem das nossas características psicológicas.


Se decido deixar de fumar, a realização dessa decisão – a acção de deixar de
fumar – vai depender em parte da minha força de vontade, da capacidade de
persistência e do grau de motivação.

As condicionantes sócio-culturais

Para aprender e desenvolver a capacidade de adaptação não basta um programa


genético aberto nem um cérebro complexo. Isso é necessário mas não suficiente. É
necessário um meio que ensine e permita aprender. Esse meio são as outras
pessoas. Estas actuam sobre cada indivíduo desde que nasce – e mesmo antes.
Através delas e do que transmitem e ensinam, o indivíduo biologicamente muito
indeterminado quanto à sua conduta, aprenderá a comportar-se de acordo com o
que o grupo social exige.

As condicionantes sócio-culturais
A SOCIALIZAÇÃO (1)

É um constante processo de aprendizagem que nos torna relativamente


sociáveis, nos integra num meio sócio-cultural e nos faz pertencer a vários grupos.
Vários agentes sociais (família, escola, grupos de pares, meios de comunicação
social e outras instituições) participam nesse longo processo de aprendizagem e de
adaptação. Aprendemos a ser humanos, a viver em sociedade, a interiorizar
atitudes, comportamentos, valores e normas, em suma, os elementos culturais do
ambiente social em que crescemos e somos educados.
As condicionantes sócio-culturais
A SOCIALIZAÇÃO (2)

Mediante esse processo, aprendemos a ler, a escrever, a falar, a distinguir


alimentos comestíveis de não-comestíveis e a consumi-los de certas formas.
Criamos laços afectivos. Adquirimos conhecimentos sobre o mundo e sobre o que é
moralmente certo e errado. Aprendemos uma profissão. Tomamos consciência de
que as regras e leis a que temos de obedecer impõem limites aos nossos impulsos
mas também nos protegem dos impulsos dos outros. Compreendemos que sem um
certo grau de obediência e de conformismo é necessário para uma vida social
minimamente estável, que não é desejável que tudo o que é possível seja por isso
mesmo permitido.

As condicionantes sócio-culturais
A SOCIALIZAÇÃO (3)

Os outros exercem uma poderosa influência sobre nós tanto mais que chegamos
ao mundo completamente dependentes e sem competências para vivermos por
nós mesmos. Mas será que somos o que os outros fazem de nós? Será que pessoas
educadas e criadas no mesmo meio são necessariamente iguais?

As condicionantes sócio-culturais
A SOCIALIZAÇÃO (4)
Socializar não é «programar socialmente» um indivíduo, como se fôssemos
totalmente determinados pelo que nos transmitem. Também somos agentes da
nossa própria socialização, ou seja, indivíduos socialmente activos. Não nos
limitamos a guardar o que nos é transmitido. Reagimos, protestamos, propomos
mudanças, inovamos.

As condicionantes sócio-culturais
A SOCIALIZAÇÃO (5)

Cada um de nós é ao mesmo tempo natureza, sociedade e cultura. Somos o que


nos deram (o que herdamos por via genética), somos o que fizeram de nós
(mediante a transmissão social) e somos o que fizemos e fazemos de nós
(mediante as nossas experiências e o modo como reagimos à influência dos
outros).

Investigadores estudaram uma família composta por duas raparigas, um rapaz e


respectivos pais. A mãe sofria de esquizofrenia paranóide, estando convencida de
que um dos membros da família procurava envenená-la. Só fazia as refeições em
restaurantes. Uma das filhas desenvolveu temores semelhantes recusando-se a
comer a não ser em restaurantes. A outra rapariga somente comia em casa se o
pai estivesse presente. Licenciou-se e levou uma vida normal. O rapaz não padeceu
destes temores familiares. Desde a idade dos sete anos sempre fez as refeições em
casa não mostrando quaisquer sinais de ansiedade. Licenciou-se e seguiu uma
carreira profissional bem sucedida. Pessoas que crescem em meios semelhantes
desenvolvem-se de modo diferente.

Somos seres condicionados por


factores biológicos, psicológicos e
sócio - culturais

Não somos simplesmente o que herdámos. Não somos simplesmente o que nos
ensinaram. Não somos unicamente o resultado das nossas experiências pessoais.
Somos a resposta, positiva ou negativa, a todos esses factores. Seja qual for o
instrumento e seja quem for que o dê (a genética ou a transmissão cultural) a
música depende normalmente do intérprete. Para certas pessoas a vida é um
problema. Para outras a vida é resolver problemas, viver conflitos e ultrapassá-
los.
Capítulo 1 – A acção humana
2. Determinismo e liberdade na acção humana.
Somos livres ou o livre-arbítrio é uma ilusão?

Formulação do problema
1 – Se todas as nossas acções são determinadas – efeito necessário de
causas anteriores – não somos livres. Se não somos livres não
podemos ser responsabilizados pelo que fazemos, não podemos ser
elogiados nem culpabilizados.
2 – Se todas as nossas acções são indeterminadas - se não têm uma
causa, se são obra do acaso – então não são nossas e não podemos
também ser por elas responsabilizados.

Somos livres ou o livre-arbítrio é uma ilusão?

Três respostas

Determinismo radical Determinismo moderado Libertismo

Não somos livres – não Somos livres porque as Somos livres porque nem
há livre-arbítrio – porque nossas acções podem ao todas as nossas acções
todas as nossas acções mesmo tempo ser livres e são o efeito necessário
são o desfecho necessário determinadas, porque a de causas anteriores.
de causas anteriores. liberdade e o determinismo
são compatíveis.

O ARGUMENTO DO DETERMINISMO RADICAL

1 – Se tudo tem uma causa, então não há acções livres.


2 – É verdade que tudo tem uma causa.
3 – Logo, não há acções livres.
4 – Se não há acções livres, não podemos ser responsabilizados pelas nossas acções.
5 – Logo, não podemos ser responsabilizados pelas nossas acções.

Explicitação

Podemos resumir o determinismo universal atribuindo-lhe três características:


a) Crença no determinismo universal,
b) Negação do livre-arbítrio
c) Negação da ideia de responsabilidade moral.
Crença no determinismo universal

Para o determinista radical a crença no determinismo significa acreditar que todo e


qualquer acontecimento é o desfecho necessário de acontecimentos anteriores.

Negação do livre - arbítrio

A crença no livre - arbítrio é a crença de que há acontecimentos (acções humanas)


que não são o simples desfecho de acontecimentos anteriores, isto é, dependem da
nossa vontade. O determinismo radical considera falsa esta crença.
1 – Todos os acontecimentos, sem excepção, são causalmente determinados
por acontecimentos anteriores.
2 – As escolhas e acções humanas são acontecimentos.

3 - Logo, todas as escolhas e acções humanas são causalmente determinadas por


acontecimentos anteriores.

A queda de uma peça de dominó determina a queda da outra, dando origem a uma
cadeia causal que só termina com a queda da última peça. As acções dos seres
humanos também estão sujeitas a cadeias causais determinadas. Julgamos que as
nossas acções derivam da nossa vontade mas iludimo-nos. Se a certa temperatura e
sem qualquer interferência, o único comportamento possível para a água que está
no copo é congelar, o mesmo se pode dizer de uma dada acção humana. O ser
humano faz exactamente aquilo que tinha de fazer e não poderia fazer outra coisa;
a determinação de seus actos não depende da sua vontade mas de certas causas,
externas e internas. As acções humanas não constituem uma excepção à
necessidade causal que governa todos os acontecimentos. Pode objectar que as
acções humanas resultam de estados mentais e de factores psicológicos como
crenças, desejos, motivos, intenções, valores e personalidade que nos fazem pensar
que ao contrário da água no copo não somos determinados por forças externas. É
muito diferente a acção de preferir um sumo a um café, a universidade x à
universidade y e o congelamento da água em virtude de factores externos. Mas o
determinista radical perguntaria pela origem da sua personalidade. Decidiu ter a
personalidade que tem? E a que se devem os valores morais que tem? Reage
dizendo que os escolheu. Mas mesmo que os tenha escolhido, o que te fez escolher
estes e não outros? A nossa constituição psicológica tem uma origem e termos
certos valores, desejos e crenças é algo que precisa de explicação tanto quanto o
facto de sermos altos, baixos ou magros, diabéticos ou saudáveis. Grande parte das
nossas acções têm uma origem interna – não são o resultado de forças externas -
mas isso não faz com o que o determinista radical mude de ideias. As nossas
escolhas são o resultado da influência de factores biológicos - genéticos e
fisiológicos – e ambientais - as circunstâncias em que fomos socializados e
educados. Assim, se um estado psicológico causa uma certa acção numa dada
situação, esse estado mental é, por sua vez, o produto de múltiplas causas
anteriores.
Negação da ideia de responsabilidade moral.

A atribuição da responsabilidade de um acto a um agente supõe que este aja


livremente, ou seja, que tendo agido de certa maneira pudesse ter agido de outro
modo. Como a crença no livre arbítrio é falsa, então não somos responsáveis pelas
nossas acções. Antes dos nossos actos há uma longa cadeia de acontecimentos que
escapam ao nosso controlo: quer o cobarde quer o assassino, quer o intrépido
alpinista estavam «programados» pelos genes e pelo ambiente em que cresceram
para agir cobardemente, cruelmente e corajosamente. São agentes que não podiam
escolher agir de modo diferente do modo como agiram. Responsabilizá-los pelo que
fizeram não faz nesta perspectiva qualquer sentido.
O ARGUMENTO DO DETERMINISMO MODERADO

1 – Todas as acções humanas têm uma causa.

2- Essas causas ou são externas ou internas.

3– Agimos livremente quando não somos compelidos ou coagidos por forças


externas ou internas que nos dominam (As acções livres são acções causadas pelas
nossas crenças e desejos ou por outros estados internos).

4 – Somos causalmente determinados e também livres e responsáveis pelo que


fazemos.

5 – Assim, o determinismo causal é compatível com a liberdade e a


responsabilidade.

Explicitação

Para o determinista moderado uma acção é livre se:

a) Não for causada por compulsão externa, por coerção ou constrangimento


externo, como por exemplo quando sou forçado a fazer algo por alguém que
me aponta uma pistola à cabeça. (faço o que quero e não o que outros
querem).

b) Não for causada por compulsão interna como o caso de adormecer contra a
minha vontade quando estou a conduzir.
A ausência de compulsão, e não a ausência de causa, é a marca de um acto livre.
Todos os actos são causados, mas apenas alguns são compelidos (não livres).

O que distingue acções livres de acções não - livres é a natureza das causas que estão
na sua origem: as acções livres têm causas internas ou psicológicas (desejos, crenças)
que não me compelem ou forçam, ao passo que as acções não - livres têm causas
externas. Vemos aqui a diferença entre o determinista moderado e o radical. Este
considera que uma acção livre seria uma acção sem qualquer causa, o que ele nega
por não ser cientificamente credível ou respeitável. O determinista moderado
concebe a liberdade de outro modo: livre é a acção que tem como causa os desejos e
crenças de um indivíduo, isto é, uma acção cuja causa não são forças externas ao
agente nem forças que internamente o constranjam. Assim se alguém, apontando-
me uma pistola à cabeça me força a assaltar a casa do meu vizinho, a causa imediata
da acção é externa. A acção é realizada por mim mas a sua origem não está em mim.
Trata-se de uma acção compelida, contrária aos meus desejos (não quero assaltar a
casa do vizinho) e às minhas crenças (considero errado ou perigoso roubar). No caso
da jovem que visitou um enfermo em vez de ir a um agradável concerto, o
determinista moderado diria que a sua acção foi livre porque se baseou nas suas
crenças (é preferível ajudar alguém a divertir-me, esse é o meu dever) e na sua
O ARGUMENTO DO LIBERTISMO
1 – Nem todos os acontecimentos estão submetidos ao mesmo tipo de causalidade.
2 – A causalidade natural rege o mundo físico.
3 – Os agentes humanos são causas de acções que produzem efeitos no mundo.
4 – A causalidade livre é própria de algumas acções dos seres humanos.
5 – Essas acções não são o desfecho inevitável de acções anteriores.
6 – Se há acções livres, os agentes humanos são responsabilizáveis por elas.
7 – Assim sendo, o determinismo é falso e a crença na liberdade e na
responsabilidade é verdadeira.
EXPLICITAÇÃO

Segundo os libertistas, o determinismo é falso (o que significa que algumas acções


são livres, não são causalmente determinadas) e o indeterminismo também. Isto
significa que nem todas as acções são o desfecho necessário de causas anteriores
(negação do determinismo) ou o resultado do acaso. O que há de comum entre
acções causalmente determinadas e acções aleatórias, resultantes do acaso? Em
ambos os casos as acções não dependem da nossa vontade. Não fazemos o que
queremos fazer (não somos livres) porque não controlamos os acontecimentos.
Para o determinista radical a liberdade era sinónimo de acontecimento sem causa
(possibilidade que ele rejeitava). Os libertistas alteram o significado e a amplitude
do conceito de causa. Para eles não há um só tipo de causas a produzirem efeitos
no mundo. Uma coisa é falar da causa dos eclipses do Sol e da Lua, da queda dos
corpos ou dos tsunamis. Outra bem diferente é falar das causas de acções
realizadas por nós. Em termos mais técnicos, uma coisa é a causalidade dos
acontecimentos, outra a causalidade da vontade dos agentes. A causalidade dos
acontecimentos significa que um acontecimento ou fenómeno natural ocorre antes
de outro e causa necessariamente o acontecimento seguinte. A causalidade dos
agentes ocorre quando algo resulta da vontade de um agente.
Assim, é diferente o vidro de uma janela ser partido por uma pedrada do Manuel e
ser quebrado por uma forte rajada de vento. Nem todos os acontecimentos do
universo são o efeito do tipo de causas estudadas pelos físicos e biólogos. Os seres
humanos são seres com um estatuto diferente e nem todas as suas acções seguem
as leis que regem o comportamento de plantas, minerais e outros animais. Não
escolho livremente ter asma, tensão arterial elevada, ou cumprir a lei da gravidade.
Contudo, escolho livremente se caso ou não, se leio um livro ou uma revista.
Embora essas decisões possam ser influenciadas por vários factores, não são
causalmente determinadas por condições anteriores (estados psicológicos
anteriores ou factores externos).
SÍNTESE
Problema: Qual das crenças é verdadeira, o determinismo ou o livre-
arbítrio?

Determinismo radical

Crença no Crença no livre - arbítrio Crença na responsabilidade moral


determinismo

Verdadeira. Falsa Falsa

1.Todos os Se todas as acções são o Se não há acções livres não


acontecimentos, desfecho inevitável de podemos ser responsabilizados
sem excepção, são causas anteriores, não há pelo que fazemos
causalmente acções livres.
determinados por
acontecimentos
anteriores

2.As escolhas e
acções humanas
são
acontecimentos.

3.Logo,todas as
escolhas e acções
humanas são
causalmente
determinadas por
acontecimentos
anteriores.

O determinismo radical é a teoria que só reconhece como verdadeira a crença no


determinismo

Problema: Qual das crenças é verdadeira, o determinismo ou o livre –


arbítrio?

Libertismo
Crença no Crença no livre - arbítrio Crença na responsabilidade
moral
determinismo

Falsa Verdadeira Verdadeira

1.Nem todos os Se nem todos os Se há acções livres então


acontecimentos, acontecimentos são o podemos ser
são causalmente desfecho inevitável de causas responsabilizados pelo que
determinados por anteriores, então há acções fazemos
acontecimentos
livres.
anteriores

2- As acções
humanas são
acontecimentos.

3.Logo,há acções
humanas
desligadas do
encadeamento
causal e que dão
origem a uma nova
série de
acontecimentos.

O Libertismo é a teoria que só reconhece como verdadeira a crença no livre-


arbítrio.

Problema: Qual das crenças é verdadeira, o determinismo ou o livre-


arbítrio?

Determinismo moderado

Crença no Crença no livre - arbítrio Crença na responsabilidade moral


determinismo
Verdadeira. Verdadeira Verdadeira

1.Todos os 1. Todas as acções são Se há acções livres podemos ser


acontecimentos, determinadas por causas responsabilizados pelo que
sem excepção, são anteriores. fazemos.
causalmente
determinados por 2. As acções cujas causas
acontecimentos
são forças externas ao
anteriores
sujeito que age são
2- As escolhas e acções compelidas ou
acções humanas constrangidas.
são
acontecimentos. 3. Há acções cujas causas
são estados internos do
3.Logo,todas as sujeito (crenças e
escolhas e acções desejos).
humanas são
causalmente 4. Acções que não
determinadas por derivam da força de
acontecimentos
factores externos são
anteriores.
acções livres.

5. Há acções unicamente
causadas por desejos,
motivos, crenças ou
outros estados internos
do sujeito que age.

6.Logo, há acções livres

O determinismo moderado é a teoria que reconhece como verdadeiras as crenças no


determinismo e no livre-arbítrio.
Síntese final

Determinismo
Determinismo
Libertismo
Moderado
Radical

Todos os
acontecimentos
são
Aceita Rejeita Aceita
determinados
por causas
anteriores

Não há acções
Aceita Rejeita Rejeita
livres

Ninguém é
responsável Aceita Rejeita Rejeita
pelas suas acções
UNIDADE 2
Capítulo 1 – Análise e compreensão da experiência
valorativa
1. Valores e valoração - a questão dos critérios
valorativos
O que são os valores?
Os valores são os critérios das nossas preferências (são os motivos
fundamentais das nossas decisões). Ao tomarmos decisões
agimos segundo valores que constituem o fundamento, a razão
de ser ou o porquê (critério) de tais decisões.
A atitude valorativa é uma constante da nossa existência: em nome da
amizade, preferimos controlar e orientar noutra direcção uma atracção física
pela namorada ou mulher do nosso amigo; em nome do amor, preferimos
desafiar as convenções sociais em vez de perder a oportunidade de sermos
felizes; por uma questão de saúde preferimos o exercício físico, a dieta e o
fim do consumo de tabaco aos hábitos prejudiciais até então seguidos; em
nome da liberdade, preferimos combater, lutar e correr riscos a aceitar um
estado de coisas que, apesar de tudo, satisfaz os interesses económicos da
família a que pertencemos; por solidariedade, preferimos auxiliar os
famintos e os doentes na Somália e em Moçambique a permanecer em
Lisboa dando consultas; por paixão pela música decidimos interromper um
curso que não corresponde à nossa vocação profunda; em nome de Deus,
renunciamos a certas "ligações terrenas", etc.

ACÇÕES VALORES EM QUE SE BASEIAM

1 – Parar quando o semáforo está Civismo


vermelho.
2 – Consultar regularmente o Saúde
médico.
3 – Cumprir o que se prometeu. Honradez
4 – Participar numa manifestação
contra a repressão em Timor. Solidariedade
5 – Assumir e cumprir as
obrigações inerentes a Responsabilidade
determinada função.
6 – Defender as suas convicções
de forma racional em ambiente
hostil e opressivo. Coragem
7 – Vestir "roupas de marca"
combinando bem as cores.
Elegância

Os valores são diversos e hierarquizados (uns são


considerados mais valiosos do que outros)

Toda e qualquer pessoa dá mais importância a determinados valores em


relação a outros, estabelecendo-se assim uma espécie de hierarquia de
valores. Os valores a que cada pessoa confere mais importância vão reflectir-
se nas suas acções e decisões, vão de certa forma organizar e orientar toda a
sua conduta futura. Os valores podem, por sua vez, ser agrupados em vários
tipos. Assim, e destacando apenas os principais tipos, podemos falar em
valores religiosos, estéticos, éticos (sendo provavelmente estes três domínios
aqueles que enquadram os valores mais importantes), políticos, teoréticos
(da ordem do conhecimento), sensíveis (da ordem do prazer e satisfação),
vitais e económicos.

Diversos valores podem inspirar uma mesma acção

Acção: Visitar Roma

A acção pode ser orientada por:


1 - Valores religiosos (ir a Roma para receber a bênção do papa)
2 - Valores estéticos e artísticos (ir a Roma para ver os seus belos
monumentos e obras de arte)
3 – Valores morais (ir a Roma com os pais como prova de gratidão pelo que
estes fizeram por mim até ao momento)
4 – Valores económicos (ir a Roma porque é um local apropriado para fechar
um negócio).
5 – Valores sensoriais (ir a Roma porque se gosta da diversão nocturna da
cidade e da sua gastronomia)
A RELAÇÃO ENTRE VALORES E ACÇÃO
Os valores são ideias que influenciam as nossas decisões e acções, as nossas
escolhas e preferências. À razão que justifica a decisão de agirmos de um
modo e não de outro damos o nome de motivo. Quando justificamos as
nossas acções e decisões – quando indicamos o porquê ou a razão de ser –
estamos sempre a referir-nos a valores.
Agimos sempre segundo valores que constituem o fundamento, a razão de
ser ou o porquê (critério) das nossas acções.

VALORES INTRÍNSECOS E VALORES INSTRUMENTAIS

Uma coisa, acção ou objecto tem valor instrumental quando vale como meio
para atingir certo fim. Tem valor intrínseco se e só se for valiosa em si
mesma.
O dinheiro tem claramente valor instrumental ou extrínseco. Considera-se
que um ser humano, por ser uma pessoa e ter dignidade, é um fim em si, tem
valor intrínseco independentemente do seu estatuto económico, da
nacionalidade, etnia e género.

Juízos de valor
Juízos de facto

Descrevem a realidade ou Avaliam determinados acontecimentos,


informam-nos acerca de fatos, coisas e acções.
coisas, acontecimentos ou acções.
A morte de seis milhões de judeus nas
Durante a Segunda Guerra Mundial mãos dos nazistas foi um acto
seis milhões de judeus morreram criminoso e horrendo.
nos campos de concentração
nazistas.
O juízo de fato é verdadeiro ou O juízo de valor refere-se, de forma
falso, isto é, refere-se aos fatos
podendo ser negado ou confirmado explícita ou implícita, a valores ou
pela experiência princípios fundamentais nos quais nos
baseamos para produzir uma avaliação
Não se tem a certeza sobre o
número de judeus que morreram
nos campos de concentração nazis. A morte de seis milhões de judeus foi
Só se sabe que o número de vítimas um ato criminoso porque (justificação
mortais foi elevado. do juízo) o respeito pela vida e digni-
dade do homem é valioso.

Os juízos de fato são descritivos ou Os juízos de valor são normativos ou


informativos: não prescrevem ou prescritivos.
proíbem o que deve ou não fazer-
se. Ao julgar-se que a morte de seis
milhões de judeus foi um ato criminoso
dos nazistas, considera-se que esse ato
não devia ter sido cometido. O respeito
pelo valor da vida e da dignidade
humanas traduz-se na norma: "Não
matarás", que, neste caso, foi
infringida.

Capítulo 1 – Análise e compreensão da experiência


valorativa

2. Valores e cultura - a diversidade e o diálogo de


culturas
QUESTÃO CENTRAL

OS JUÍZOS DE VALOR TÊM VALOR DE VERDADE


(PODEMOS DIZER QUE SÃO VERDADEIROS OU FALSOS)?

Outras formas de apresentar o problema:

1. Há juízos morais universalmente válidos ou


objectivos?

2. Há verdades morais objectivas?

3. Há princípios e normas morais que, seja onde for, é


errado não respeitar?
Para respondermos a esta questão, vamos apenas debruçar-nos sobre os
juízos de valor com conteúdo moral, por serem aqueles que aplicamos com
maior regularidade no nosso dia-a-dia.

Várias respostas ao problema

1.O Relativismo Moral Cultural (RMC)

2.O Subjectivismo Moral (SM)


3.A Teoria dos Mandamentos Divinos
(TMD)
4.O Universalismo Moderado

O RELATIVISMO MORAL CULTURAL: Há verdades morais mas


não são objectivas.
«Matar é errado», «Roubar é incorrecto» e «Mentir é imoral». Será que
estes juízos são verdadeiros? Será que são objectivos e universais? «Há
verdade e falsidade em assuntos morais?», «Faz sentido dizer que uma
crença moral é correcta e que outra é errada?»

O relativismo moral afirma que aqueles juízos são verdadeiros mas não em
todo o lado e para todas as pessoas. A verdade dos juízos morais é relativa
ao que cada sociedade aprova. Moralmente verdadeiro é o que cada
sociedade - ou a maioria dos seus membros - acredita ser verdadeiro.
Moralmente verdadeiro é igual a socialmente aprovado e moralmente
errado é igual a socialmente desaprovado. Um juízo moral é falso quando
os membros – a maioria – de uma sociedade o consideram falso e
verdadeiro quando o consideram verdadeiro. Assim, afirmar que «Matar é
errado» significa dizer «A sociedade X considera que matar é moralmente
incorrecto». Afirmar que «Matar é moralmente correcto» significa dizer «A
sociedade X considera que matar é moralmente correcto».

As convicções da maioria dos membros de uma sociedade são a autoridade


suprema em questões morais. O relativismo cultural acerca de assuntos
morais afirma que o código moral de cada indivíduo se deve subordinar ao
código moral da sociedade em que vive e foi educado. Os juízos morais de
cada indivíduo são verdadeiros se estiverem em conformidade com o que a
sociedade a que pertence considera verdadeiro.

ARGUMENTO CENTRAL DO RELATIVISMO MORAL CULTURAL


Premissa 1 – O que é considerado moramente correcto ou incorrecto varia
de sociedade para sociedade. (Diversas culturas dão diferentes respostas
às mesmas questões morais).
Premissa 2 – O que é moralmente correcto ou incorrecto depende do que
cada sociedade acredita ser moralmente correcto ou incorrecto.
Conclusão – Logo, não há nenhuma resposta objectivamente verdadeira a
essas questões (não há verdades morais universais)
OBJECÇÃO
Resumindo o argumento:

Premissa – Diversas culturas dão diferentes respostas às mesmas questões


morais.

Conclusão – Logo, não há nenhuma resposta objectivamente verdadeira a


essas questões (não há verdades morais universais)
Contra-argumento

Premissa – Diversas culturas discordaram quanto à forma da Terra (umas


pensaram que era esférica, outras plana, outras esférica mas um pouco
achatada)

Conclusão – Não há nenhuma verdade objectiva acerca da forma da terra.

A premissa é verdadeira mas a conclusão é falsa (sabemos que a Terra é


redonda). Como de premissa verdadeira não pode logicamente derivar
conclusão falsa este argumento não é válido. Como o argumento do R.M.C. ´

tem a mesma forma deste, temos de concluir que não é válido.

OUTRAS OBJECÇÕES AO R.M.C.

1 - Há uma diferença significativa entre o que uma sociedade acredita


ser moralmente correcto e algo ser moralmente correcto.

O relativismo moral cultural transforma a diversidade de opiniões e de


crenças morais em ausência de verdades objectivas. Mas isso pode ser sinal
de que há pessoas e sociedades que estão erradas e não de que ninguém
está errado. Se duas sociedades têm diferentes crenças acerca de uma
questão moral, o relativista conclui que então ambas as crenças são
verdadeiras. Os adversários do RMC objectam que a conclusão não deriva
necessariamente da premissa porque essa discórdia pode ser sinal de que
uma sociedade está certa e a outra está errada.

2. O RMC reduz a verdade ao que a maioria julga ser verdadeiro.

Desde quando o que maioria pensa é verdadeiro e moralmente aceitável?


Os nazis acreditavam e fizeram com que a maioria dos alemães acreditassem
que os judeus eram subhumanos e que exterminá-los era um favor que
faziam à humanidade. Isso é claramente falso.

3. O RMC parece convidar-nos ao conformismo moral, a seguir, em nome


da coesão social, as crenças dominantes.

Algumas pessoas ao longo da história quiseram e conseguiram mudar a


nossa maneira de pensar acerca de certos problemas morais. Estou a
lembrar-me de quem combateu a escravatura em nome dos ensinamentos
de Cristo – embora os defensores da escravatura dissessem que a Bíblia
justificava o que faziam – de quem lutou contra o apartheid na África do Sul(
Nelson Mandela) e contra a segregação racial nos EUA ( Martin Luther
King).Essas pessoas fizeram bem à humanidade, combateram injustiças e
devemos-lhes grande progresso moral. Ora, o RMC parece implicar que a
acção dos reformadores morais é sempre incorrecta.

4.O relativismo moral torna incompreensível o progresso moral

É verdade ou pelo menos parece que não há acordo entre os seres humanos
sobre muitas questões morais. Mas também é verdade que a humanidade
tem realizado progressos no plano moral. A abolição da escravatura, o
reconhecimento dos direitos das mulheres, a condenação e a luta contra a
discriminação racial são exemplos. Falar de progresso moral parece implicar
que haja um padrão objectivo com o qual confrontamos as nossas acções. Se
esse padrão objectivo não existir não temos fundamento para dizer que em
termos morais estamos melhor agora do que antes. No passado, muitas
sociedades praticaram a escravatura mas actualmente quase nenhuma a
considera moralmente admissível. Muitos de nós e com razão consideramos
esta mudança de comportamento e de atitude um sinal de progresso moral.
Mas se para o RMC nenhuma sociedade esteve ou está errada nas suas
crenças e práticas morais torna-se difícil compreender a ideia de progresso
moral. Tudo o que o R.M.C. nos permitiria dizer é que houve tempos em que
a escravatura era moralmente aceitável e que agora ela é já não é aceite.

O SUBJECTIVISMO MORAL: a cada um a sua verdade em


assuntos morais
Subjectivismo moral - Forma de relativismo segundo a qual cada indivíduo
responde às questões morais baseado no seu código moral pessoal e não
pode estar errado se os seus juízos corresponderem aos seus sentimentos.
Os nossos juízos morais baseiam-se nos nossos sentimentos e como os
sentimentos são subjectivos nenhum juízo moral é objectivamente certo
ou errado. É também denominado relativismo individual.

João Miguel

«É moralmente errado matar animais «É moralmente correcto matar


para os comermos além de animais para os comermos»
desnecessário»

Quem tem razão?


Segundo o subjectivismo ambos os juízos morais são verdadeiros porque
cada um está em conformidade com os princípios em que cada um dos
indivíduos acredita. Uma vez que João aceita o princípio de que matar
animais para os comer não é incorrecto, o seu juízo é verdadeiro para ele.
Como Miguel tem como princípio moral pessoal que é errado matar
animais para esse fim, o seu juízo também é verdadeiro. Para o
subjectivismo moral não tem sentido perguntar quem está errado acerca
da correcção ou incorrecção moral de matar animais para os comer.

A verdade em assuntos morais é uma questão de opinião pessoal

A cada qual a sua opinião de acordo com aquilo em que acredita e em


nenhum caso o juízo moral de uma pessoa é mais correcto ou razoável do
que o de outra. O subjectivismo ético, a que podemos chamar relativismo
individual, afirma que todas as opiniões acerca de assuntos morais e estilos
de vida devem ser consideradas igualmente boas. A tolerância parece ser
um elemento central do subjectivismo moral. Rejeita a subordinação do
indivíduo ao modo de pensar da maioria da sociedade e não acredita em
verdades morais absolutas e objectivas. Ninguém pode dar lições de moral
a ninguém. A cada qual a sua verdade e assim deve ser.

OBJECÇÕES AO SUBJECTIVISMO MORAL

1. O subjectivismo moral torna inviável a discussão de questões morais.


O subjectivismo moral parece sugerir que não podemos dizer que as
opiniões e juízos morais dos outros estão errados. Se as verdades
morais dependem dos sentimentos de aprovação ou de desaprovação
de cada indivíduo basta que os nossos juízos morais estejam de acordo
com os nossos sentimentos para serem verdadeiros. Um genuíno
debate moral em que cada interlocutor tente convencer o outro das
suas razões acerca de algo em que acredita perde qualquer sentido.
Para o subjectivista será mesmo sinal de intolerância.

2. O subjectivismo ético acredita que não há juízos morais objectivos


porque os assuntos morais são objecto de discórdia generalizada mas
isso não prova que não haja uma resposta correcta ou verdades
objectivas.

Será que o facto de as pessoas discordarem acerca da existência de


Deus prova que não há uma resposta à questão Será que Deus existe?
Durante muito tempo as pessoas pensaram que as doenças eram
causadas por demónios. Sabemos hoje em dia que na maioria dos casos
são causadas por microrganismos tais como bactérias e vírus.
A TEORIA DOS MANDAMENTOS DIVINOS: Se Deus não existisse
nada seria moralmente certo ou errado.
Roubar é errado.

O que torna este juízo moral verdadeiro? O facto de Deus ter determinado
que roubar é errado. Moralmente correcto significa decidido e aprovado
por Deus, o criador das leis morais. Moralmente errado significa que não
foi querido nem é aprovado por Deus.

A verdade moral depende da vontade de Deus e não da


vontade dos seres humanos

Para a Teoria dos Mandamentos Divinos, há também juízos morais


verdadeiros mas esta verdade não depende do que o indivíduo ou as
culturas julgam ser moralmente certo ou errado. A TMD opõe-se às duas
teorias anteriores (O RMC e o SM) porque nenhuma delas permite falar de
objectividade e universalidade dos juízos morais tais como Roubar é errado e
Matar é incorrecto.

Há normas morais absolutas ou que devem ser sempre


respeitadas

Como a vontade de Deus é absoluta as normas morais que ela institui são
absolutas, isto é, valem para qualquer ser humano em qualquer época e em
qualquer lugar, não admitem excepções. Por outras palavras, se Deus existe
há um código moral absoluto - as leis ou mandamentos de Deus - que
constitui o critério fundamental que nos permite avaliar as diversas crenças
e práticas humanas. Assim, a prática da tribo Kwakiutl de matar pessoas
inocentes quando morre um familiar é errada porque viola as leis de Deus. O
mesmo se pode dizer do costume indiano de queimar a viúva do esposo
falecido juntamente com este. Ambas as sociedades podem não o saber mas
segundo a perspectiva que estamos a expor isso só mostra que
desconhecem a lei de Deus.

OBJECÇÕES À TEORIA DOS MANDAMENTOS


DIVINOS

1. Nem todos acreditamos que Deus existe.

Para os defensores da teoria dos mandamentos divinos as verdades morais


resultam da vontade de Deus. As noções de bem e de mal têm origem
divina. Esta crença depende de uma crença mais básica e fundamental: a
existência de Deus. Mas podemos provar que Deus existe? Podemos
justificar a tese de que Deus existe? Parece que se há desacordo quanto à
resposta correcta a determinada questão moral também há desacordo
quanto a saber se Deus existe. Quem não acredita que Deus existe não tem
de aceitar a teoria de que a moral depende da religião.

2 – Mesmo os que acreditam na existência de Deus discordam quanto ao


que Deus permite e proíbe.

O UNIVERSALISMO MORAL MODERADO: Há princípios morais


universais.

Tese central

Há verdades morais que não dependem nem das crenças de cada cultura,
nem dos gostos e sentimentos dos indivíduos, nem da vontade de Deus.

1.Há valores e princípios universais. Essa universalidade é necessária


(imprescindível).
2. Há que distinguir verdades morais absolutas e verdades morais
universais.
Um princípio moral universal aplica-se a todos os indivíduos mas admite
excepções conforme os casos. Um princípio moral absoluto aplica-se a todos
os indivíduos seja qual for o caso, ou seja, não admite excepções. Todos os
princípios ditos absolutos são universais mas nem todos os princípios ditos
universais ou objectivos são absolutos.

Verdades morais consideradas universais e necessárias

1- Devemos proteger as crianças.

2- Mentir é errado

Todas as culturas têm uma norma contra a mentira porque se houver a


expectativa de que na maioria dos casos os outros vão mentir então a
comunicação e a interacção social atingirão o ponto de ruptura e chegarão
a um grave impasse.

3- O assassínio é errado.

Nenhuma cultura aprova que se mate arbitrariamente alguém. Se vivermos na


expectativa permanente de que os outros nos podem matar, se esta expectativa
for a regra e não a excepção não arriscaríamos dar um passo para fora de casa e a
desconfiança generalizada conduziria ao colapso da vida social.
SÍNTESE FINAL
HÁ VERDADES MORAIS?

RELATIVISMO TEORIA DOS


MANDAMENTOS UNIVERSALISMO
DIVINOS MODERADO

Há verdades morais Há verdades morais e


mas não são são absolutas Há verdades morais e
objectivas. algumas são
objectivas mas não
RMC SM absolutas.
As As
verdades verdades
morais morais
dependem dependem
do que do que
cada cada
sociedade indivíduo
pensa. sente e
aprova ou
desaprova.

Podemos dizer que acerca de problemas éticos há juízos


verdadeiros e falsos?

Exemplo de juízo moral: Mentir é errado

Relativismo Subjectivismo Teoria dos Universalismo


moral cultural moral mandamentos moral
divinos moderado
Este juízo é Este juízo é Este juízo é Este juízo é
verdadeiro se verdadeiro se verdadeiro verdadeiro
uma sociedade estiver de porque Deus porque a
ou cultura o acordo com os decidiu que é desconfiança
considerarem sentimentos, errado mentir generalizada
moralmente gostos e destruiria uma
verdadeiro. crenças de um Há verdades vida social
indivíduo. morais minimamente
absolutas
Não há verdades morais Objecções saudável
objectivas e absolutas. Objecções
Moralmente verdadeiro é o que
depende do que uma sociedade 1.Nem todos Há verdades
ou uma cultura acreditam ser acreditamos morais
verdadeiro. que Deus objectivas
existe. Objecções
Objecções Objecções 2.Mesmo os 1.Há culturas
1.O RMC 1.O SM que acreditam que desprezam
contradiz-se. contradiz-se. que Deus a honestidade
2.O RMC torna 2.O SM torna existe não e louvam a
incompreensível impraticável a estão de mentira
a ideia de discussão de acordo quanto inteligente e
progresso moral. questões ao que ele eficaz.
3.O que uma morais. proíbe e
sociedade permite.
acredita ser
moralmente
correcto pode
ser moralmente
incorrecto
4.O RMC não
parece tornar
possível o
diálogo moral
intercultural
UNIDADE 3 - Dimensões da acção humana e dos
valores - A dimensão ético – política: Análise e
compreensão da experiência convivencial.

CAPÍTULO 1
Intenção ética e norma moral

O que são normas morais?


As normas morais são regras que pretendem regular as nossas acções
estabelecendo o que é proibido e o que é permissível. Dizem-nos o
que devemos e o que não devemos fazer. Ajudar os necessitados, ser
fiel aos seus compromissos, não matar, não mentir são exemplos de
normas morais. As normas morais podem expressar-se de várias
formas. Assim, a norma que condena o roubo pode enunciar-se
destes modos: «Não deves roubar!», «Não roubes!», «Roubar é
errado», «Roubar não é moralmente correcto» e «As pessoas não
devem roubar».

Moral e direito: Normas morais e normas jurídicas

Normas morais Normas jurídicas

Pretendem regular a nossa Não têm a pretensão de regular a


consciência distinguindo o nossa consciência, pelo menos de
certo do errado uma forma directa.
As normas morais são impostas As normas jurídicas são coactivas,
pela vontade a si própria. isto é, são acompanhadas pela
Nenhuma força ou ameaça ameaça de imposição de penas e
institucional as impõe. punições de tipo físico e financeiro.
São elaboradas, instituídas e
reforçadas pelo poder político, isto
é, pelo Estado.

A violação de certas normas A violação de certas normas morais


morais é moralmente errada é moralmente errada e também
mas não é legalmente errada. legalmente errada. É o caso de
Ser infiel à namorada ou não matar, roubar ou não cumprir
ajudar pessoas necessitadas determinados contratos. Mas uma
não é objecto de punição pelos coisa é experimentar sentimentos
tribunais. de culpa e outra bem diferente é ser
declarado culpado pelas
autoridades judiciais.

A transgressão das normas A sua transgressão é punida com


morais não é punida com multas ou prisão.
multas ou prisão. Pode dar
origem a sentimentos de culpa,
de remorso e a reprovação
social mas não a castigos
juridicamente estabelecidos

A sua aceitação e A sua aceitação e cumprimento são


cumprimento não são impostos impostos pelo Estado, apoiam-se no
pelo Estado mas resultam de poder coercivo do Estado
uma decisão voluntária ou de
adesão interior

Posso não as cumprir se me Sou obrigado a cumpri-las mesmo


parecerem injustas. que me pareçam injustas.

O reconhecimento de que há normas jurídicas injustas – caso de leis


de segregação racial, de leis que discriminam conforme o sexo ou a
orientação sexual – e aplicações injustas da lei mostram que uma
acção não é moralmente correcta só porque é legalmente admitida
nem moralmente incorrecta só porque é ilegal.

Que certas acções sejam ao mesmo tempo imorais e ilegais não


implica, contudo, que a moral e o direito sejam a mesma coisa.
NORMAS MORAIS E CONSCIÊNCIA MORAL
1.A intenção ética é importante porque não basta a conformidade ou
o acordo externo com as normas morais.

A avaliação da moralidade de uma acção exige mais do que a


verificação da sua conformidade externa com a norma moral. Uma
coisa é não roubar porque tenho receio de represálias – adesão
exterior e não íntima ao que a norma exige – outra é não roubar
porque considero isso errado e indigno.

2.Por maior que seja a pressão social, a moralidade é uma questão de


consciência, a única autoridade perante a qual tenho de responder.

A INTENÇÃO E AS
CONSEQUÊNCIAS

Como distinguir uma acção moralmente incorrecta de uma acção


moralmente correcta?

Na avaliação da moralidade das acções podemos, entre outros, dar


relevo a factores como a intenção, as consequências e o carácter de
quem age e toma decisões.

1- António é encarregue pelo director do museu em que trabalha


de transportar um precioso quadro para o museu da cidade
mais próxima. Ao passar por um rio repara que uma jovem se
está afogar. Imediatamente salta para a água sem tirar o fato
que um amigo lhe emprestou. Como nada mal usa o quadro
para flutuar e tentar chegar à jovem que está em situação
aflitiva. Apesar de todos os seus esforços não consegue salvar
a rapariga. O quadro fica irremediavelmente danificado e o
mesmo acontece com o fato do seu amigo.
2- João, considera intolerável que tantas crianças morram de
fome no mundo e decide dar 1.000 euros a uma instituição
que se dedica a combater esse flagelo. Inspirados pelo seu
extraordinário exemplo, muitos estudantes da faculdade que
frequenta dão também uma quantidade significativa de
dinheiro à instituição de caridade.O que não sabem é que João
roubou os 1.000 euros a um tio muito rico que eventualmente
nem dará pela sua falta. Como resultado directo e indirecto da
generosidade de João muitas crianças são alimentadas.
3- Miguel dedica boa parte dos seus fins-de-semana a iniciativas
em benefício dos pobres.Com tal esforço pensa assegurar uma
boa reputação e atrair clientes às suas lojas de materiais
informáticos.
4- Manuel é o melhor amigo de Joaquim. Estudam literaturas
modernas e Joaquim tem aspirações a romancista. Um dia
mostra ao amigo uma novela que pensa apresentar numa
aula. Manuel considera que o escrito de Joaquim não tem a
mínima qualidade mas não quer ferir os sentimentos do amigo
e desiludi-lo. Diz que a novela está magnífica. Encorajado e
iludido, Joaquim lê o seu escrito na aula sendo humilhado
pelos colegas que consideram a obra insuportável. Joaquim
nunca mais confia no seu amigo.
António agiu com a intenção de salvar uma vida mas as
consequências foram desastrosas: não só não conseguiu o que
pretendia como também prejudicou o museu e o amigo. Serão estes
aspectos relevantes ou irrelevantes na avaliação moral do acto de
António?

Miguel envolveu-se numa actividade em si mesma louvável. Contudo,


ajudou por interesse pessoal, por egoísmo. Será que este motivo
retira valor moral à sua acção?

Manuel provavelmente não imaginou que as consequências da sua


acção seriam tão negativas. Pensou provavelmente que a sua
simpática mentira seria a melhor opção. Teria sido melhor que
tivesse dito a verdade sobre o que pensava da novela escrita pelo
Joaquim? O motivo que o levou a mentir foi o de não ferir ou
desmoralizar o seu amigo.

João age baseado num bom motivo ou com uma boa intenção: ajudar
crianças que passam fome. As consequências da sua acção foram
boas. As crianças foram ajudadas. Será relevante para a avaliação
moral do que fez sabermos que a sua generosidade resultou de um
roubo?

A intenção ou as consequências? Qual o critério adequado para


determinar a moralidade de um acto? Este problema é um dos
grandes problemas da reflexão moral ou ética.
CAPÍTULO 2
A necessidade de fundamentação da moral: análise
comparativa de duas teorias filosóficas.

A NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DA MORAL

Fundamentar a moral significa encontrar um critério, uma base que


distinga uma acção boa ou moralmente correcta de uma acção má
ou moralmente incorrecta.

Como distinguir o bem do mal?

Como distinguir o moralmente correcto do moralmente incorrecto?

Quais os critérios mais frequentemente


apresentados?
1.A intenção

2.As consequências ou resultados da acção.

As duas teorias a estudar distinguem-se pelo valor que atribuem a


cada um dos critérios
As duas teorias mais estudadas acerca deste problema
A teoria deontológica de Kant

A teoria utilitarista de Mill.

1. A TEORIA ÉTICA DE KANT

TIPOS DE ACÇÕES SEGUNDO KANT

Acções contrárias ao Acções em conformidade Acções feitas por dever


dever com o dever

Acções que violam o Acções que cumprem o Acções que cumprem o


dever dever não porque é dever porque é correcto fazê
correcto fazê-lo mas -lo. O cumprimento do
Ex: Matar, roubar, porque daí resulta um dever é o único motivo em
mentir. benefício ou a satisfação que a acção se baseia. A
de um interesse. intenção de cumprir o dever
não está associada a outras
Ex: Não roubar por receio intenções, é a única
de ser castigado. intenção.

Ex: Não roubar porque esse


acto é errado.
AS ÚNICAS ACÇÕES MORALMENTE BOAS

As únicas acções moralmente boas são as acções feitas por dever. Agir por dever
significa reconhecer que há deveres absolutos como não roubar, não mentir e não
matar.

AGIR POR DEVER É CUMPRIR O QUE A LEI MORAL EXIGE


Quem apresenta este princípio «Age por dever!» à minha vontade? A razão.

Que nome dá Kant ao princípio ético fundamental que exige que eu cumpra o
dever sempre por dever, sem qualquer outra intenção ou motivo? Kant dá -lhe o
nome de lei moral.

As acções feitas por dever são assim acções que cumprem o que a lei moral exige.

REPEITAR A LEI MORAL É CONSIDERAR QUE O SEU CUMPRIMENTO É UM


IMPERATIVO CATEGÓRICO

Ouvir a voz da lei moral é ficar a saber como cumprir de forma moralmente correcta
o dever. Essa lei diz-nos de forma muito geral o seguinte: «Deves em qualquer
circunstância cumprir o dever pelo dever, sem segundas intenções». O cumprimento
do dever é uma ordem incondicional, não depende de condições ou de interesses.
Devemos ser honestos porque esse é o nosso dever e não porque é do nosso
interesse.

Pense em normas morais como «Não deves mentir»; «Não deves matar»; «Não
deves roubar». A lei moral, segundo Kant, diz-nos como cumprir esses deveres, qual
a forma correcta de os cumprir. Assim sendo, é uma lei puramente racional e
puramente formal. Não é uma regra concreta como «Não matarás!» mas um
princípio geral que deve ser seguido quando cumpro essas regras concretas que
proíbem o roubo, o assassinato, a mentira, etc.

O que é um imperativo categórico O que é um imperativo hipotético

Um imperativo categórico é um Um imperativo hipotético é um


princípio que: princípio que:

- Ordena que se cumpra o dever -Transforma o cumprimento do dever


sempre por dever, ou seja, ordena numa ordem condicionada pelo que de
que a vontade cumpra o dever satisfatório ou proveitoso pode
exclusivamente motivada pelo resultar do seu cumprimento.
que é correcto fazer.
As acções baseadas num imperativo
- Ordena que se aja por dever. hipotético são:
- Ordena que sejamos imparciais e - Acções conformes ao dever, feitas a
desinteressados, agindo segundo pensar nas consequências ou
máximas que todos podem resultados de fazer o que é devido.
adoptar.
- As acções que cumprem o dever
- Ordena que respeitemos o valor baseadas em interesses e por isso
absoluto de cada ser racional seguem máximas que não podem ser
nunca o reduzindo à condição de universalizadas.
meio que nos é útil
- As acções que não respeitam
«Deves ser honesto porque esse é absolutamente o que somos enquanto
o teu dever!» seres humanos

«Deves ser honesto se quiseres ficar


bem visto perante os vizinhos do teu
bairro.

AS FORMULAÇÕES MAIS IMPORTANTES DO IMPERATIVO


CATEGÓRICO

Fórmula da lei universal Fórmula da Humanidade


“Age apenas segundo uma
Age de tal maneira que uses a
máxima tal que possas querer ao humanidade, tanto na tua pessoa como
mesmo tempo que se torne lei na pessoa de outrem, sempre e
universal simultaneamente como fim e nunca
apenas como meio.

Imagine que uma pessoa com Quem pede dinheiro emprestado sem
problemas financeiros decide pedir intenção de o devolver está a tratar a pessoa
dinheiro emprestado. Sabe que não que lhe empresta dinheiro como um meio
pode devolver o dinheiro que lhe for para resolver um problema e não como
emprestado, mas prometê-lo – alguém que merece respeito, consideração.
mentir – é a única forma de obter Pensa unicamente em utilizá-la para resolver
aquilo de que precisa. A máxima da uma situação financeira grave sem ter
acção poderia enunciar-se assim “Se qualquer consideração pelos interesses
isso servir os teus interesses, não próprios de quem se dispõe a ajudá-lo.
devolvas dinheiro emprestado ao seu Sempre que fazemos da satisfação dos
dono.” A referida pessoa não pode nossos interesses a finalidade única da nossa
querer sem contradição universalizar acção, não estamos a ser imparciais e a
a excepção que abriu para si própria máxima que seguimos não pode ser
porque se tornará excepção para universalizada. Assim sendo, estamos a usar
todos. Se todos nós fizéssemos os outros apenas como meios, simples
promessas com a intenção de não as instrumentos que utilizamos para nosso
cumprir todos desconfiaríamos delas proveito.
e o empréstimo de dinheiro baseado Esta fórmula não fala só de respeitar os
em promessas acabaria. A prática de outros. Diz que nenhum ser humano se deve
fazer e de aceitar promessas tratar a si mesmo apenas como um meio. A
desapareceria. A máxima referida prostituição, o masoquismo são exemplos
auto destrói-se ao ser universalizada de violação desta norma, mas, mesmo
porque ninguém poderá agir de quando desrespeitamos directamente os
acordo com ela. direitos dos outros, como no caso da
escravatura, da violação, do roubo e da
mentira, estamos também a abdicar da
nossa dignidade.
AUTONOMIA HETERONOMIA

Característica de uma vontade Característica de uma vontade que não


que cumpre o dever pelo dever. cumpre o dever pelo dever. Quando o
Quando o cumprimento do dever cumprimento do dever não é motivo
suficiente para agir tendo de se invocar
é motivo suficiente para agir a
razões externas como o receio das
vontade não se submete a outra consequências, o temor a Deus, etc., a
autoridade que não a razão. vontade submete-se a autoridades que
Quando decido não a razão.
independentemente de quaisquer Por isso, a sua acção é heterónoma,
interesses, isto é, quando sou incapaz de respeitar
imparcial e adopto uma incondicionalmente o dever. Todas as
éticas de tipo consequencialista são,
perspectiva universal, obedeço a
para Kant, heterónomas, reduzem a
regras que criei ao mesmo tempo moralidade a um conjunto de
para mim e para todos os seres imperativos hipotéticos.
racionais. Uma vontade
autónoma é uma vontade
puramente racional, que faz sua
uma lei da razão, que diz a si
mesma «Eu quero o que a lei
moral exige».Ao agir por dever
obedeço à voz da minha razão e
nada mais.

O QUE É UMA BOA VONTADE

É uma vontade que age de forma moralmente correcta

É uma vontade que cumpre o dever respeitando absolutamente a lei moral,


ou seja, cuja única intenção é cumprir o dever
É uma vontade que age segundo regras ou máximas que podem ser
seguidas por todos porque não violam os interesses de ninguém

É uma vontade que respeita todo e qualquer ser humano considerando-o


uma pessoa e não uma coisa ou um meio ao serviço deste ou daquele
interesse.

É uma vontade autónoma porque decide cumprir o dever por sua iniciativa
e não por receio de autoridades externas ou da opinião dos outros.

UM EXEMPLO ILUSTRATIVO DO QUE É PARA KANT AGIR CORRECTAMENTE

Imagine que um grupo de terroristas se apodera de um avião em Berlim. Os seus


passageiros e tripulantes ficam reféns. Contudo, os terroristas propõem libertá-los se um
cidadão local que eles consideram envolvido em actividades antiterroristas lhes for
entregue para ser morto. Se as autoridades da cidade não colaborarem no prazo de quatro
horas ameaçam fazer explodir o aparelho com todas as pessoas lá dentro. As autoridades
locais sabem que o cidadão em causa não cometeu o menor crime durante a sua vida e
que os terroristas estão enganados pois não participou na morte de membros do grupo
que agora dele se quer vingar. Não obstante, sabem que será vã a tentativa de convencer
os terroristas de que estão enganados. Após longa deliberação decidem entregar o
referido cidadão aos terroristas que libertam os reféns e matam quem queriam matar.

Posição de Kant

A acção é moralmente incorrecta

Justificação

1. Há actos intrinsecamente errados (errados em si mesmos apesar de poderem


ter boas consequências) que é nosso dever evitar e actos intrinsecamente
correctos que é nosso dever realizar. Certos deveres constituem uma obrigação
moral sejam quais forem as consequências. Que deveres absolutos são esses? Eis
alguns: «Não matar», «Não roubar», «Não mentir». Por insistir em que há deveres
absolutos a ética kantiana é considerada deontológica.

2.Viola-se o imperativo categórico de respeitar absolutamente a pessoa


humana. Transforma-se uma vida em meio para atingir um fim que é a salvação de
outras vidas humanas. É evidente que as autoridades que decidem entregar o
cidadão aos terroristas estão a tratá-la como um meio para resolver um problema e
não como alguém que merece respeito, consideração. Pensam unicamente em
utilizá-lo para resolver uma situação grave sem ter qualquer consideração pelo seu
interesse próprio. Para Kant, uma vida humana não é mais valiosa do que outra nem
várias vidas humanas valem mais do que uma. Devido a esta ideia a ética kantiana é
frequentemente denominada ética do respeito pelas pessoas.
2. A TEORIA ÉTICA DE JOHN STUART-MILL
TEORIA ÉTICA CONSEQUENCIALISTA

As consequências de uma acção é que determinam se é


moralmente correcta ou incorrecta.

TEORIA ÉTICA HEDONISTA


Todas as actividades humanas têm um objectivo último, isto é,
são meios para uma finalidade que é o ponto de convergência
de todas. Esse fim é a felicidade ou bem-estar. Mais
propriamente procuramos em todas as actividades a que nos
dedicamos viver experiências aprazíveis e evitar experiências
dolorosas ou desagradáveis. Esta perspectiva que identifica a
felicidade com o prazer ou o bem-estar tem o nome de
hedonismo. Mas trata-se da felicidade geral e não da individual.

O CRITÉRIO DA MORALIDADE DE UMA ACÇÃO

Segundo Mill a utilidade é o que torna uma acção moralmente


valiosa. O critério da moralidade de um acto é o princípio de
utilidade. Este princípio é o teste da moralidade das acções.
Uma acção deve ser realizada se e só se dela resultar a máxima
felicidade possível para as pessoas ou as partes que por ela são
afectadas. O princípio de utilidade é por isso conhecido também
como princípio da maior felicidade. A ideia central do
utilitarismo é a de que devemos agir de modo a que da nossa
acção resulte a maior felicidade ou bem - estar possível para as
pessoas por ela afectadas. Uma acção boa é a que é mais útil,
ou seja, a que produz mais felicidade global ou, dadas as
circunstâncias, menos infelicidade. Quando não é possível
produzir felicidade ou prazer devemos tentar reduzir a
infelicidade. Costuma-se resumir o princípio de utilidade
mediante a fórmula «A maior felicidade para o maior número».
Esta fórmula foi cunhada por Francis Hutchinson e não aparece
tal e qual nos escritos de Mill.

MORALMENTE INCORRECTO/MORALMENTE
CORRECTO

Acção moralmente Acção moralmente


incorrecta
correcta
A acção que tem más
A acção que tem boas consequências ou dadas as
consequências ou dadas as circunstâncias piores
circunstâncias melhores consequências do que acções
consequências do que alternativas
acções alternativas.

O que é uma acção com O que é uma acção com más


boas consequências consequências

-Acção cujos resultados - Acção cujos resultados não


contribuem para um contribuem para um aumento
aumento da felicidade (bem da felicidade (bem-estar) ou
-estar) ou diminuição da diminuição da infelicidade do
infelicidade do maior maior número possível de
número possível de pessoas pessoas por ela afectadas.
por ela afectadas.
- Acção egoísta em que a
- Acção subordinada ao felicidade do maior número não
princípio de utilidade. é tida em conta ou em que só o
meu bem-estar ou satisfação é
procurado.

- Acção que não se subordina ao


princípio de utilidade.

NÃO HÁ DEVERES ABSOLUTOS

Para o utilitarista as acções são moralmente correctas ou


incorrectas conforme as consequências: se promovem
imparcialmente o bem-estar são boas. Isto quer dizer que não
há acções intrinsecamente boas. Só as consequências as
tornam boas ou más. Assim sendo, não há, para o utilitarista,
deveres que devam ser respeitados sempre e em todas as
circunstâncias. Se para a ética kantiana, alguns actos como
matar, roubar ou mentir são absolutamente proibidos mesmo
que as consequências sejam boas, para Mill justifica-se, por
vezes, matar, deixar morrer, roubar ou mentir.

O PRINCÍPIO DE UTILIDADE E AS NORMAS MORAIS


VIGENTES
As normas morais comuns estão em vigor em muitas
sociedades por alguma razão. Resistiram à prova do tempo e
em muitas situações fazemos bem em segui-las nas nossas
decisões. Contudo, não devem ser seguidas cegamente. Nas
nossas decisões morais devemos ser guiados pelo princípio de
utilidade e não pelas normas ou convenções socialmente
estabelecidas. Dizer a verdade é um acto normalmente mais
útil do que prejudicial e por isso a norma «Não deves mentir»
sobreviveu ao teste do tempo. Segui-la é respeitar a
experiência de séculos da humanidade. Mas há situações como
em que não respeitar absolutamente uma determinada norma
moral e seguir o princípio de utilidade terá melhores
consequências globais do que respeitá-la.

FELICIDADE GERAL E FELICIDADE INDIVIDUAL

A minha felicidade não é mais importante do que a felicidade


dos outros. O utilitarismo de Mill não defende que tenhamos
de renunciar à nossa felicidade, a uma vida pessoal em nome
da felicidade do maior número. Trata-se através da educação
segundo o princípio de utilidade de abrir um espaço amplo
para que a inclinação para o bem geral se sobreponha com
frequência cada vez maior ao egoísmo. O princípio da maior
felicidade em Mill exige que cada indivíduo se habitue a não
separar a sua felicidade da felicidade geral sem deixar de ter
projectos, interesses e vida pessoal.

UM EXEMPLO ILUSTRATIVO DA TEORIA ÉTICA DE MILL

Imagine que um grupo de terroristas se apodera de um avião em Berlim. Os


seus passageiros e tripulantes ficam reféns. Contudo, os terroristas
propõem libertá-los se um cidadão local que eles consideram envolvido em
actividades antiterroristas lhes for entregue para ser morto. Se as
autoridades da cidade não colaborarem no prazo de quatro horas ameaçam
fazer explodir o aparelho com todas as pessoas lá dentro. As autoridades
locais sabem que o cidadão em causa não cometeu o menor crime durante
a sua vida e que os terroristas estão enganados pois não participou na
morte de membros do grupo que agora dele se quer vingar. Não obstante,
sabem que será vã a tentativa de convencer os terroristas de que estão
enganados. Após longa deliberação decidem entregar o referido cidadão
aos terroristas que libertam os reféns e matam quem queriam matar.
Posição de Mill
Acção moralmente correcta
Justificação

Há que ter em conta a acção que produziria mais felicidade


global. O que produz mais infelicidade? Deixar morrer um
inocente ou deixar eventualmente morrer dezenas de
inocentes? Quantas famílias não ficariam enlutadas caso não
se cedesse às pretensões dos terroristas? Para Mill justifica-se,
por vezes, matar, deixar morrer, roubar ou mentir. Nenhum
desses actos é intrinsecamente errado e, por isso, os deveres
que proíbem a sua realização não devem ser considerados
absolutos. Deve notar-se que estamos a referir-nos a um caso
dramático em que as alternativas – permitir a morte de um ou
permitir a morte de muitos – são ambas repugnantes. Mas há
que optar e, segundo Mill, seguir um princípio como cumpre o
dever é vago.
COMPARAÇÃO ENTRE AS DUAS TEORIAS

Teoria deontológica de Kant Teoria utilitarista de Mill

O que é uma acção moralmente boa?

É uma acção feita por dever, que cumpre É uma acção cujos resultados
a lei moral considerando – a um contribuem para o aumento da
imperativo categórico. felicidade ou para a diminuição da
infelicidade do maior número possível
de pessoas por ela afectadas.

Importância das consequências e da intenção na avaliação da acção

Os bons resultados da acção não são de A acção é avaliada pelas suas


desprezar mas o que conta é a intenção consequências e o motivo ou a intenção
ou o motivo que nos leva a cumprir o não são decisivos porque se referem ao
dever quando o cumprimos carácter do agente e não à acção em si
mesma.

O estatuto ou a importância das normas morais convencionais

Há normas morais absolutas que Há normas morais que se tem revelado


proíbem o assassínio, o roubo, a mentira úteis para organizar a vida dos seres
e que devem ser incondicionalmente humanos mas devemos ter em conta
respeitadas em todas as circunstâncias. que nem sempre o seu cumprimento
produz bons resultados.

O fim último das actividades humanas

O fim último da acção moral é o respeito A felicidade é o objectivo fundamental


pela pessoa humana, pelo valor absoluto da acção moral embora não se trate da
que a sua racionalidade lhe confere. A felicidade individual nem da felicidade
felicidade é um bem mas não deve que se traduza na redução do bem-
influenciar as nossas escolhas morais. estar da maioria das pessoas a quem a
acção diz respeito.
O egoísmo, impedindo acções
desinteressadas e imparciais é o grande O egoísmo é também condenado
inimigo da moralidade porque impede que se tenha em vista
um fim objectivo que é a maior
felicidade para o maior número possível
de pessoas.
CAPÍTULO 3 – A dimensão pessoal e social da ética:
A justificação da moralidade (Por que razão
havemos de agir moralmente?)
Se certos actos são errados e outros correctos por que razão se deve
fazer o que é correcto e evitar o que é errado? Por que razão havemos
de ser morais?
Neste capítulo, a questão já não consiste em esclarecer de que depende a
correcção moral de um acto mas em perguntar se há alguma razão para fazer o
que é correcto. Ficou a saber que, para um kantiano, roubar é errado e que para
um utilitarista roubar pode ser errado por não ter boas consequências, ou seja,
que nalguns casos roubar é incorrecto. Uma coisa é sabermos o que é moralmente
correcto ou incorrecto, outra é tentarmos saber por que razão havemos de fazer o
que é correcto e evitar o que em termos morais é errado

Resposta 1: Sermos morais é


uma obrigação básica ou
fundamental

Por que razão não devo enganar a minha namorada? Por que razão não devo
roubar que me confiou dinheiro? Porque é errado. Mas por que razão é errado?
Porque devo agir bem se pode não ser do meu interesse? Há quem responda que
a pergunta é absurda porque estaremos a dar razões morais para sermos morais:
Devemos agir moralmente porque temos a obrigação moral de agir moralmente.

Resposta 2: Sermos morais é


uma obrigação que temos
perante Deus

Invocam-se razões religiosas por vezes (Respeito e temor de Deus porque


entendemos que as normas morais são mandamentos seus). O problema é que
esta justificação não vale para quem não acredita na existência de Deus.

Resposta 3: O egoísmo: Não


há razões válidas para
adoptar um ponto de vista
universal e imparcial nas
minhas decisões morais. Só
devo preocupar-me com os
meus interesses.

A negação do ponto de vista moral baseia-se numa dupla tese:

1.Somos egoístas (egoísmo psicológico)

2. Devemos ser egoístas (egoísmo normativo)

1.Somos egoístas (egoísmo psicológico)

Se fazemos bem aos outros é porque queremos a sua simpatia e amizade ou


eventual ajuda no futuro. Se não roubamos é porque não queremos que nos
roubem. Se criamos e educamos os filhos com cuidado e amor é porque mais
tarde desejamos ser por eles tratados com amor e cuidado. Em suma, para o
egoísta psicológico, todos nós esperamos, no imediato ou a médio e longo prazo,
ganhar algo com o que fazemos. Segundo o egoísmo psicológico é assim que
somos e não podemos deixar de o ser. O prazer, o bem-estar, os nossos interesses
têm sempre a última e decisiva palavra. Actos genuinamente altruístas são
ilusões.

Mas será verdade? Pensemos no caso do casal que em tempo de privações dá os


melhores alimentos disponíveis aos filhos e passa fome. É plausível dizer que o seu
próprio bem-estar é a motivação fundamental do seu comportamento? Será
admissível dizer que agiram assim para não ficarem de consciência pesada? Mas
sentir problemas de consciência neste caso não significa que o bem-estar dos
outros é a preocupação fundamental? E a mãe ou o pai que sacrifica a sua vida
para preservar a do filho age por motivos egoístas?

Como o egoísmo psicológico afirma que todas as nossas acções são, em ultima
análise, determinadas pela preocupação com o nosso bem-estar ou o nosso
interesse pessoal, é suficiente encontrar um contra-exemplo plausível para
contestar a verdade de tal teoria.

1.Devemos ser egoístas (egoísmo


normativo)

O egoísmo normativo é uma teoria de tipo consequencialista que diz que devemos
agir sempre em função do nosso interesse pessoal. Para o egoísmo normativo
cada um de nós tem a obrigação moral de promover o seu próprio interesse. Esta
teoria rejeita que sacrifiquemos o nosso próprio bem-estar para ajudar os outros e
que os outros sacrifiquem o seu bem-estar para nos ajudar a nós. Se as pessoas
devem agir sempre apenas motivadas pelo seu interesse pessoal então é
moralmente aceitável qualquer acção que não acarretando prejuízos ao agente
satisfaça essa finalidade.

Uma vez que pode justificar actos profundamente imorais, o egoísmo normativo é
para muitas pessoas uma teoria sem credibilidade.

O egoísta adopta este princípio básico: «Deves pensar no que é benéfico para ti e
não no que serve o interesse dos outros». E admite que esse princípio seja
adoptado por todos. Isto significa que se só devo pensar no que é bom para mim
também devo admitir que os outros pensem unicamente no que é bom para eles.
É esta posição sustentável?

Imagine que estou interessado numa mulher que também interessa a outro
homem. Defendo a teoria do egoísmo normativo. O que implica isso? Que ao
mesmo tempo defendo que o meu rival deve procurar conquistar essa mulher
porque é do seu interesse e que não deve procurar conquistá-la porque isso não é
do meu interesse.

O egoísmo normativo parece incapaz de resolver conflitos de interesses dado


basear-se no princípio de que todas as pessoas devem procurar satisfazer única e
exclusivamente os seus interesses pessoais. Se assim é, eu devo satisfazer o meu
interesse e os outros devem satisfazer os seus. Ora se a defesa dos meus
interesses implicar que prejudique os outros não tenho também de admitir que os
outros me prejudiquem para defenderem os seus. Um dos grandes problemas do
egoísmo ético é ser uma teoria que além de inconsistente, se auto-derrota quando
procuramos convencer os outros de que é um guia de acção. É, quando muito,
uma moral para uso privado, incapaz de resolver conflitos públicos, que fomenta a
hipocrisia e que torna difícil conceber como possíveis relações genuínas de
amizade, de amor e de solidariedade.
Resposta 4:Devemos ser
morais porque ter um
objectivo mais amplo do
que os nossos interesses é
ter uma existência com
sentido

Viver eticamente é melhor do que ser egoísta, preenche mais a nossa existência.
Interessar-me pelo bem-estar dos outros pode fazer-me mais feliz do que viver
centrado exclusivamente nos meus interesses.

Adoptar o ponto de vista moral, agir por razões em que não está envolvido de
forma determinante o meu interesse pessoal, nos torna seres humanos mais
completos e mais auto-realizados, que uma vida sem acções genuína e
espontaneamente altruístas não tem grande valor e é pouco gratificante. Mais
importante do que aquilo que obtemos com o que fazemos é aquilo em que nos
tornamos. Mais do que o interesse pessoal que as acções humanas em certa
medida visam, importa que estas nos engrandeçam como seres humanos. Talvez
esta seja a melhor resposta.
CAPÍTULO 4 – Estado, direito e liberdade.
Estado Direito Liberdade
O Estado é uma O conjunto de normas e Em sentido político é a
instituição que organiza leis que apoiadas no liberdade de optarmos por
e regula a vida social, poder coercivo diferentes modelos de
exercendo o seu poder (imposição de penas e organização económica e
sobre os cidadãos e punições) do Estado que social e de, consequente,
manifestando-se sob a as elabora e institui votarmos ou não no partido
forma de autoridade. regulam o que no nosso entendimento
comportamento dos mais fielmente defende
membros de uma essas opções políticas.
sociedade

1. A JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – Porque devemos consentir


em ser governados e em obedecer a regras exteriormente
impostas por uma autoridade externa?

AS TEORIAS CONTRATUALISTAS (Hobbes, Locke e Rousseau)


Caracterização geral

Uma teoria contratualista é aquela que defende o estabelecimento de um acordo entre


vários indivíduos implicando compromissos recíprocos. A este acordo entre os indivíduos
chama-se pacto ou contrato social (porque estabelecido entre os indivíduos de uma
determinada sociedade).

Finalidade do acordo

Este acordo visa alterar uma determinada situação na sociedade que se tornou
insustentável, concretamente o desrespeito pelos direitos básicos dos indivíduos,
desrespeito esse que gera um estado conflituoso. O acordo vai permitir eliminar ou
reduzir os conflitos na sociedade.

Que compromissos
recíprocos são
estabelecidos com o
acordo?

Estes compromissos traduzem-se geralmente no


seguinte: todos os indivíduos comprometem-se a obedecer a um poder exterior que
garanta uma melhoria das relações entre eles e promova um maior bem-estar geral.

Que poder exterior é esse a que todos os indivíduos


se comprometem obedecer?

Esse poder é o Estado. Neste sentido, o contrato social é uma forma de legitimação do
Estado. As teorias contratualistas que vamos estudar são as de Thomas Hobbes, John
Locke e Rousseau.

O CONTRATO SOCIAL SEGUNDO THOMAS HOBBES

O argumento de Hobbes

No estado de natureza assiste-se a uma situação de permanente conflito e medo


entre os indivíduos.

O permanente conflito e medo entre os indivíduos são insustentáveis.

O Estado vai impedir esta situação de conflito permanente entre os indivíduos


exigindo a sua submissão em troca da segurança que estabelece.

Logo, o Estado é um bem necessário.

Explicitação

1.Por que razão é necessário o contrato social e por conseguinte a autoridade do


Estado?

Para Hobbes, no estado de natureza, o indivíduo vive num permanente estado de


violência e de medo, estado no qual ninguém se encontra a salvo e onde a vida de cada
um corre sempre um grande risco. Hobbes sintetizou este estado de guerra permanente
entre todos com a seguinte expressão: “O Homem é o lobo do Homem”.

Os indivíduos não podem continuar a viver neste estado de permanente angústia e


temor. Torna-se necessário o estabelecimento de um contrato ou pacto entre todos os
indivíduos que salvaguarde as suas vidas e os seus bens.

2. De que modo entende Hobbes o estabelecimento deste pacto?

Defende Hobbes que, para se instaurar a paz e a segurança na sociedade, é necessário


transferir os direitos de todos os indivíduos (direitos esses que eram ilimitados no estado
de natureza) para uma pessoa que seria o titular desses mesmos direitos. Esta pessoa, o
soberano, estaria acima dos indivíduos e deteria um poder absoluto (detém todos os
poderes: poder legislativo, executivo e judicial), não se encontrando submetido a
qualquer poder ou lei que não a sua.

3.Porquê transferir os direitos para uma pessoa e não para duas, três ou mais?

Porque, de acordo com Hobbes, ao transferirem-se os direitos para mais do que uma
pessoa, regressava-se ao estado de natureza, no qual vários detinham direitos ilimitados.

4.Por que razão o poder do soberano é absoluto?

Para Hobbes, o soberano não se encontra submetido ao contrato ou pacto estabelecido


entre os vários indivíduos, porque nesse caso também estaria limitado pelo pacto e,
portanto, limitado ao nível dos direitos como os outros indivíduos. Se todos estivessem
igualmente limitados nos seus direitos, não haveria ninguém que pudesse governar os
outros.

5. Mas não se pode transformar este poder absoluto do soberano num poder
despótico?

Hobbes responde que, mesmo que se transforme num poder despótico, os súbditos não
têm direito de resistência (a não ser apenas quando o soberano obriga o próprio súbdito
a matar-se – porque também esta situação não ocorria no estado de natureza), porque o
seu poder lhe foi confiado legitimamente pelos próprios súbditos a partir de um pacto ou
contrato.

O CONTRATO SOCIAL SEGUNDO JOHN LOCKE


O Argumento de Locke

No estado de natureza os indivíduos possuem certos direitos que não são


totalmente respeitados.

O respeito pelos direitos individuais é um bem.

O Estado vai garantir o pleno respeito de todos os direitos individuais.

Logo, o Estado é um bem necessário.

Explicitação

1. Para Locke, no estado de natureza os indivíduos possuem um conjunto de


direitos naturais – o direito à vida, à liberdade e à propriedade – que são,
inicialmente, reconhecidos e respeitados por todos, reconhecimento de direitos
esse que torna possível a convivência entre os indivíduos.

Verificam-se nesta concepção de estado de natureza de Locke diferenças em relação a


Hobbes. Enquanto para Hobbes, no estado de natureza, se assistia a uma situação de
permanente conflito e medo entre os indivíduos, um estado de guerra de todos contra
todos, para Locke, no estado de natureza, assiste-se a uma situação de convivência e
sociabilidade entre os indivíduos, de respeito pelos direitos do outro, como o direito à
vida, à liberdade e à propriedade (o direito à propriedade é aqui entendido como o
direito sobre o produto do trabalho).

2. Mas se os indivíduos vivem no estado de natureza numa situação convivencial


de liberdade e de responsabilidade, por que razão defende Locke o
estabelecimento de um contrato ou pacto social?

De acordo com Locke, a necessidade do estabelecimento de um pacto entre os vários


indivíduos tem a ver essencialmente com um factor: os conflitos de interesse que
resultam do direito à propriedade privada.

3. Mas por que razão o direito à propriedade privada gera conflitos de interesses?

Para Locke, o direito à propriedade privada começa a provocar discrepâncias de bens


materiais entre os indivíduos, de tal modo que passa a haver uns indivíduos que
possuem muito e outros que possuem pouco. Esta desigualdade de posses gera conflitos
de interesse entre os indivíduos, porque os que possuem muitos bens procuram
sucessivamente obter mais bens à custa dos que possuem pouco. Ora, esta situação cria
uma dependência dos que possuem pouco em relação aos que possuem muito e, dado
que a posse dos bens não se encontra legitimada, geram-se conflitos entre os indivíduos
pela posse dos bens.

4.Como surge e por que razão é necessário o Estado?

É necessário regular estes conflitos de interesses para bem de todos. É com vista a
regular os conflitos de interesse que se estabelece um pacto entre os indivíduos. Este
pacto social passa pelo reconhecimento de uma autoridade que supervisione e regule
esses conflitos e garanta os direitos que os indivíduos já usufruíam no estado de
natureza. Essa autoridade será o Estado.

4.Qual é a finalidade do Estado?

O Estado terá como finalidade garantir os direitos individuais básicos (designadamente o


direito à propriedade, que no estado de natureza começou a correr alguns riscos) que os
indivíduos já possuíam anteriormente à instituição do poder político, legalizando esses
mesmos direitos.

5.O poder do Estado tem limites ou é absoluto?

Tem limites. O estabelecimento do contrato social não implica que cada indivíduo
transfira os seus direitos (direitos que cada indivíduo possuía no estado de natureza)
para o Estado. O contrato social não anula um conjunto de direitos que o indivíduo já
possuía no estado de natureza (o direito à vida, à liberdade e à propriedade). Enquanto
em Hobbes havia uma clara separação entre o estado de natureza e o estado civil –
encarados como dois estados distintos, residindo no primeiro o conflito e o medo e no
segundo a paz e a segurança –, em Locke o estado civil corresponde apenas a uma
legalização de direitos que o indivíduo já possuía no estado de natureza, não se
verificando, por isso, uma separação tão nítida como em Hobbes.

6. O poder do Estado encontra-se limitado, pois o Estado não poderá interferir ou


pôr em causa o direito à vida, à liberdade e o direito à propriedade por parte dos
vários indivíduos. O que é que isto vai implicar?
Que os indivíduos apenas obedecem ao Estado se o Estado cumprir as suas obrigações.
Quando o Estado não cumprir a tarefa que lhe foi imposta pelo pacto, os indivíduos têm
o direito e o dever de desobedecer ao poder político, elegendo para tal novos
representantes.

7.Por que razão a desobediência civil é neste caso um dever?

Porque no caso de o Estado não cumprir o seu dever – o de fazer respeitar os direitos
naturais dos indivíduos –, a situação na comunidade ficaria pior do que a situação vivida
no estado de natureza, no qual os direitos eram reconhecidos (mas apenas não se
encontravam legitimados). Reconhece-se na teoria política de Locke, pela primeira vez,
uma limitação do poder político com a sua consequente subordinação ao consentimento
popular.

O CONTRATO SOCIAL SEGUNDO ROUSSEAU


O Argumento de Rousseau

No estado de natureza o indivíduo vive de forma livre e independente.

No estado civilizado surgem os conflitos de interesse entre os indivíduos.

Os conflitos de interesse entre os indivíduos são um mal.

O Estado vai resolver estes conflitos de interesse.

Logo, o Estado é necessário.

Explicitação

1. A civilização corrompe o ser humano.

Para Rousseau, no estado de natureza o indivíduo vive livremente e de forma isolada dos
outros indivíduos. Assegura por si próprio a sua sobrevivência e vive feliz.

Com a passagem do estado de natureza ao estado selvagem, o indivíduo começa a


estabelecer relações com os outros indivíduos, vivendo de forma livre e harmoniosa com
os outros.
Com a intensificação das relações com os outros surge o estado civilizado. No estado
civilizado o indivíduo começa a comparar-se com os outros, verificando que existem uns
indivíduos que possuem mais bens materiais do que outros. Ao tomar consciência destas
desigualdades e conduzido pela sua inveja, desencadeiam-se os conflitos de interesse,
conflitos mantidos com base na força e que põem em causa as liberdades individuais.
Neste sentido, para Rousseau, é a civilização que torna o Homem mau. Verifica-se aqui
uma importante diferença entre Hobbes (sobretudo este) e Rousseau: enquanto para
Hobbes o estado de natureza é caracterizado por permanentes conflitos entre os
indivíduos, para Rousseau estes conflitos entre os indivíduos apenas surgem com o
estado civilizado.

Torna-se então necessário regular estes conflitos, não com base na força, mas no direito.
Para isso, defende Rousseau a necessidade do estabelecimento de um contrato social.

2. Qual é a finalidade do estabelecimento deste contrato social?

O pacto social tem a finalidade de restabelecer os direitos que o indivíduo já possuía no


estado de natureza: a liberdade, a independência e outro direito crucial, a igualdade.
Para Rousseau, todos os indivíduos são iguais perante a lei, nenhum tem mais poder do
que outro, porque apenas pode haver liberdade num espaço de igualdade entre todos os
indivíduos. Esta perspectiva vai influenciar o modo como Rousseau defende o
estabelecimento do pacto social: não existe uma relação vertical de poder, mas, antes
pelo contrário, o poder é o próprio povo.

3. Como é que Rousseau concebe o pacto social?

O pacto social é um pacto de associação entre os indivíduos, a partir do qual todos


concordam em obedecer a um conjunto determinado de leis, que, por sua vez, foram
aprovadas por todos. Com esta obediência a leis por todos aprovadas criam-se as
condições para o restabelecimento dos direitos naturais entretanto perdidos – como o
direito à liberdade, à igualdade e à independência.

4.Por que razão a obediência a leis por todos aprovadas – à vontade geral –
promove e assegura os referidos direitos naturais?

Os direitos naturais básicos são direitos de que todos os indivíduos desejam usufruir na
comunidade, porque ninguém quer viver sem liberdade, ser tratado de modo inferior em
relação aos outros ou viver na dependência de alguém. Se é desejo de todos os
indivíduos possuírem esses direitos e se as leis são a expressão da vontade de todos,
então as leis vão certamente promover os direitos naturais. Sendo as leis o reflexo dos
direitos naturais, torna-se deste modo possível a convivência social num respeito pelos
direitos naturais básicos.

5.Quem governa?

As leis são, para Rousseau, a única autoridade que existe no estado civil. Sendo as leis a
autoridade e sendo as leis a expressão da vontade geral (de todos os indivíduos), então é
o próprio povo que passa a ser a autoridade. É o povo que governa. No estado civil, o
indivíduo passa a agir, não enquanto vontade particular, mas enquanto vontade geral,
vontade de todos.

6. Por que razão é importante que cada indivíduo passe a agir como se fizesse
parte activa de uma vontade geral?

Porque se agisse apenas de acordo com a sua própria vontade regressaríamos ao estado
civilizado sem leis. Ao agir de acordo com uma vontade geral, está a agir de acordo com
um interesse comum e que, como tal, fará também parte do seu interesse. Na teoria
política de Rousseau não existe um poder superior aos outros, mas o poder é o próprio
povo. Rousseau evita deste modo o despotismo, a subjugação dos indivíduos a um poder
com mais força do que a totalidade dos súbditos.

2.ESTADO E LIBERDADE: Até que ponto é legítimo que o Estado


intervenha na vida dos indivíduos? É legítimo desobedecer às leis
do Estado?

ESTADO E LIBERDADE
INDIVIDUAL

A liberdade individual é um valor fundamental para muitas pessoas. Contudo, a


nossa vida em sociedade é regulada por um vasto conjunto de leis promulgadas
pelo Estado e que exigem obediência. Devemos respeitar as regras de trânsito, a
propriedade alheia, a integridade física dos outros, exceptuando casos de
legítima defesa, cumprir as normas de utilização dos espaços públicos (não sair
do restaurante sem pagar o que se consumiu) e muito mais. A liberdade não é
sinónimo de fazer tudo o que queremos. A liberdade de cada indivíduo deve
sofrer as restrições e limites que tornem possível a liberdade dos outros. Mas não
haverá aspectos da nossa vida que legitimamente escapam ao controlo social e
estatal? Não haverá uma esfera de liberdade pessoal, um conjunto de actividades
que legitimamente escapam à intervenção de autoridades externas? Se vou
praticar desportos radicais, é legítimo que o Estado intervenha para me obrigar a
fazer um seguro? É legítimo ou abusivo que o Estado me proíba de fumar? Que
me force a praticar exercício com regularidade? Que declare ilegais certas
práticas sexuais?

MILL E OS LIMITES DA INTERVENÇÃO DO ESTADO

1. Em que condições é justificável a limitação da liberdade de acção de uma


pessoa por parte do Estado?

O Estado pode limitar legitimamente a liberdade de acção de uma pessoa se esta causar
danos a outras pessoas ou ameaçar prejudicá-las. Somente para prevenir danos a
outrem o governo está moralmente autorizado a interferir, impondo restrições à
liberdade individual. Este princípio consequencialista é conhecido como princípio do
dano (prejuízo).

2. Onde começa a linha que divide as acções que eventualmente me causarão


dano a mim e as acções que podem prejudicar os outros? Que acções podemos
considerar como envolvendo somente os meus interesses e que portanto só a
mim me afectam?

Por exemplo, posso fumar e embebedar -me em minha casa, posso andar por aí sem
roupa, vestir-me em público de forma considerada bizarra, ter práticas sexuais pouco
comuns com adultos e com o seu consentimento, professar publicamente o ateísmo, etc.
Alguma destas acções prejudica os outros de modo a que legitime uma interferência
quer através de leis quer mediante a pressão social? A resposta de Mill baseia-se na
crença de que a autonomia individual é um dos valores mais importantes. Mas podemos
perguntar se a pessoa que se embebeda frequentemente só causa dano a si mesma. Não
acontece em muitos casos que pode transformar a vida dos seus familiares num inferno
e deixá-los sem apoio por, devido ao vício, perder o emprego? E o vício não a torna
menos capaz de contribuir para a sociedade com o seu trabalho? A resposta de Mill é a
de que o indivíduo em causa pode ser punido por descurar as suas responsabilidades
familiares, mas que não devemos interferir no estilo e opção de vida das pessoas,
mesmo que a sociedade como um todo seja em certa medida prejudicada. A liberdade
individual, para o bem e para o mal, deve ser preservada o mais possível.

3.Podemos sentir-nos ofendidos por comportamentos que consideramos


repugnantes e desagradáveis. Será isso razão para que através de leis ou de
outros meios limitemos a liberdade de quem provoca tais sentimentos?

A resposta de Mill é claramente negativa. Se a forma de vestir de uma pessoa ofende


outras, se as suas crenças religiosas desagradam a muitas, não há razão para que se
recorra à força da lei. Na verdade, o conceito de ofensa é pouco objectivo e facilmente
encontramos sempre alguém que se sinta ofendido com alguma coisa. O que
legitimamente podemos fazer é tentar persuadir essas pessoas a mudar ou então evitá-
las e seguir o nosso caminho.

O PROBLEMA DA DESOBEDIÊNCIA
CIVIL: Devo obedecer sempre às

leis?

1.O que é a desobediência civil?

É uma acção ilegal não criminosa que por razões éticas protesta publicamente contra leis
e medidas das autoridades políticas, estando os seus autores dispostos a sofrer as
consequências da infracção da lei.

2.O que transforma a desobediência em protesto moral?

A injustiça das leis ou das suas aplicações.

3.O que distingue a desobediência civil da desobediência criminosa?

A desobediência civil é pública e visa denunciar publicamente injustiças legais, enquanto


a desobediência criminosa consiste num acto ilegal cometido de forma tão secreta
quanto possível e que não pretende mudar nada que esteja errado. No primeiro caso, a
ilegalidade é um meio de combater uma grande injustiça. No segundo caso, infringe-se
deliberadamente a lei para benefício próprio e prejuízo da sociedade.

4. O respeito pela lei é importante porque nenhuma sociedade subsistiria sem a


obediência às leis aprovadas. Em que distinção se baseia a desobediência civil?

Baseia-se na distinção entre moralidade (legitimidade) e legalidade. Na Alemanha nazi


era possível prender pessoas que não tinham cometido qualquer crime, confiscar-lhe os
bens porque tinham sido aprovadas pelo governo leis que o permitiam. Sistemas legais
como os da Alemanha nazi ou do apartheid sul-africano mostram que o que é legal — em
conformidade com o direito positivo — pode não ser legítimo, ou seja, pode ser injusto.

A desobediência civil revela-nos que há uma diferença que nunca deve ser esquecida
entre obrigação moral e obrigação política ou jurídica, isto é, uma diferença entre os
direitos das pessoas e os deveres dos cidadãos.

5. Em estados ditos democráticos ou de direito justifica-se a desobediência civil?

As sociedades ditas livres ou abertas são aquelas que procuram evitar abusos de
poder negando a qualquer ser humano — governante ou governado, privilegiado
ou desfavorecido — o direito de estar acima da lei. Mas as leis podem ser injustas
e repressivas e as próprias sociedades democráticas não parecem estar imunes a
esta crítica. Ora, nessas ocasiões é habitual verificar-se um desacordo entre a
legalidade vigente e os princípios da consciência moral dos indivíduos. Estes não
reconhecem legitimidade a uma determinada lei (ou a várias), não a consideram
em conformidade com valores morais fundamentais. Assim, a legitimidade ou
não das leis define-se em função dos valores que estão na sua base.

O PROBLEMA DA DESOBEDIÊNCIA
CIVIL: Devo obedecer sempre às

leis?
O PROBLEMA DA JUSTIÇA: Não
posso ficar com tudo o que
adquiri?

JUSTIÇA

Segundo a antiga definição de Justiniano, imperador romano,


é a vontade constante de dar a cada um o que lhe é devido.
Divide-se em justiça retributiva e distributiva. A retributiva diz
respeito à forma adequada de punir infracções à lei; a
distributiva tem a ver com a apropriada distribuição de bens e
encargos entre pessoas diferentes.

PROBLEMA FUNDAMENTAL DA JUSTIÇA DISTRIBUTIVA:


COMO DISTRIBUIR OS BENS PELOS INDIVÍDUOS DE MODO
A QUE CADA UM TENHA O QUE É DEVIDO?

RESPOSTA 1 - O IGUALITARISMO

Todos devem receber o mesmo

Há sem dúvida diferenças entre os seres humanos mas no que respeita à


aplicação da justiça não há diferenças que se possam considerar relevantes
entre os seres humanos. Os igualitaristas defendem que numa sociedade justa
cada pessoa deve receber uma igual parte dos benefícios que a sociedade
proporciona e dos encargos que ela exige.

CRÍTICA

Esta concepção é muito criticada porque ignora a ideia de proporção, ou seja,


o que cada um recebe deve ser proporcional ao que faz ou ao que merece.
Poderemos considerar justa uma sociedade que promova uma igualdade
estrita? Os seres humanos têm diferentes capacidades, diferentes virtudes e
diferentes necessidades. Será justo que os professores pertencentes a um
mesmo escalão da carreira docente ganhem o mesmo ou quase o mesmo? Não
há diferenças relevantes entre eles? Será incorrecto que o mérito seja
reconhecido e promovido? Não será educativa e socialmente mais útil que de
acordo com o desempenho assim os benefícios sejam diferentes?
RESPOSTA 2 - A justiça como igualdade de
oportunidades: todos iguais nos blocos de partida.

1.Os defensores da ideia de justiça como igualdade de oportunidades pensam que toda
a justiça é uma espécie de igualdade mas distinguem dois tipos de igualdade: a
igualdade política e a igualdade económica.

2. A igualdade deve ser a regra no plano político.

Todos devemos ter igual direito de participar na vida política da sociedade a que
pertencemos. Falamos de direitos cívicos, de direito ao voto, e de direito a concorrer a
cargos de natureza política.

2.No plano económico defende-se a igualdade no ponto de partida e tolera-se a


desigualdade no ponto de chegada. Os direitos políticos e as oportunidades económicas
devem ser distribuídos igualmente ao passo que os benefícios económicos devem ser
distribuídos desigualmente de acordo com diferenças relevantes entre os indivíduos.

O igualitarista moderado admite diferenças entre as pessoas quanto à distribuição de


rendimentos e de benefícios sociais mas considera justa a ideia de igualdade de
oportunidades. Por outras palavras todos devem ter uma igual oportunidade de
conseguir empregos e posição social que permitam uma vida economicamente decente
e mesmo a constituição de riqueza dependendo os resultados ou do mérito ou do
esforço ou da competência. Se admite desigualdades, embora não excessivas, no ponto
de chegada, o igualitarista moderado defende a igualdade no ponto de partida. A
sociedade deve assegurar a igualdade de oportunidades dando a cada um igual
condição no acesso à educação e eliminando a discriminação sexual e racial no acesso a
empregos e posições sociais.

CRÍTICA

Se as pessoas em geral competem por dinheiro, cargos, prestígio e estatuto social, será
contudo possível assegurar a igualdade de oportunidades que tornaria a competição
social realmente justa? Não há pessoas que já estão à partida em vantagem? E será
que, por hipótese, iguais condições à partida se traduzirão em resultados semelhantes?
RESPOSTA 3 - A justiça como utilidade social: é justo o
que é socialmente útil

1. Na perspectiva utilitarista deve dar-se a cada um o que lhe é devido mas tendo em
conta o interesse global da sociedade. Nesta visão da justiça, o interesse público ou o
bem comum prevalecem.

O critério fundamental da justiça é o interesse do todo, sendo justas as decisões e medidas que
promovem a satisfação dos interesses do maior número. O papel de quem governa será o de
dirigir as sociedades de situações de menor bem-estar global para situações de maior bem-
estar.

2. Em si mesma a desigualdade não é uma coisa boa mas algumas desigualdades em


determinadas circunstâncias são justas porque aumentam o bem-estar global ou
diminuem os prejuízos sociais.

Se numa sociedade o trabalho competente e esforçado é recompensado com salários mais


elevados, é muito provável que mais bem-estar global resulte. Com efeito, tal recompensa
constituirá, para muitas pessoas, um incentivo para trabalhar mais e melhor e mais riqueza
resultará para a sociedade. Se as pessoas recebessem aproximadamente o mesmo salário
independentemente do seu esforço, mérito ou competência é muito provável que essa
sociedade fosse menos produtiva e da menor produção de bens e de serviços resultaria um
declínio dos padrões de vida em termos comparativos.

3.A justiça distributiva é encarada pelo utilitarista de um ponto de vista


consequencialista e imparcial.

O que conta são as consequências das medidas e políticas económicas e sociais. Aumentam o
bem-estar da maioria dos afectados? A ser verdade, são justas. Em caso contrário são injustas.
Sem desprezar critérios como a igualdade ou desigualdade, o mérito, a competência, o esforço
e certos direitos, o utilitarista subordina-os todos a um: o princípio de utilidade social.

CRÍTICA

A aplicação do princípio de utilidade social não gera situações de injustiça? Não haverá
casos em que a utilidade social colide com os interesses de um indivíduo ou de um
grupo de indivíduos? Devem certos indivíduos e grupos ser prejudicados em benefício
da sociedade? Será que a preocupação imparcial com o bem-estar geral não esquece os
interesses deste e daquele indivíduo em particular? Não importa saber por quem se
distribui o bem-estar? E não têm as pessoas direitos que não devem ser violados seja
em nome de que princípio for?
RESPOSTA 4 – Ralws - A Justiça como equidade: a
injustiça é a desigualdade que beneficia
exclusivamente os mais favorecidos.

1.Um filósofo que propõe uma nova forma de contrato social.

Para Hobbes, tinha como objectivo a obtenção da paz e da segurança. Para Locke e Rousseau, a
legitimação de um conjunto de direitos naturais básicos, como o direito à vida, à liberdade, à
igualdade e à propriedade. Rawls pretende conjugar na sociedade duas características: a
liberdade e a justiça social. Porquê ambas? Porque, se apenas houver liberdade, põe-se em
causa a justiça social (uns indivíduos possuirão sempre mais bens do que outros e os que
possuem mais possuirão sempre mais – a riqueza gera mais riqueza). Se apenas houver justiça
social, põe-se em causa a liberdade (limita-se a liberdade de os indivíduos possuírem mais bens
do que a quantidade de bens que possuem).

Exemplo de desequilíbrio entre liberdade e justiça social: o


exemplo das heranças

Enquanto as heranças existirem e não forem objecto de forte tributação, não partimos do
mesmo lugar, porque haverá uns indivíduos que possuirão mais bens do que outros e tenderão
sempre a possuir mais bens e a aumentar continuamente a sua riqueza. Esta é a situação de
apenas haver liberdade e não haver justiça social. Por outro lado, se penalizarmos as grandes
heranças, como, por exemplo, através do pagamento de elevados impostos, estaremos a
limitar os bens desses mesmos indivíduos e, portanto, a limitar a liberdade dos indivíduos para
investir, enriquecer e fazer o que lhes apetecer com a sua herança. Esta é a situação de apenas
haver justiça social e não haver liberdade.

2. Mas, se o mundo é habitado por ricos e pobres, será essa tarefa possível? Como deve
ser estabelecido o contrato social, para que seja possível a promoção simultânea da
liberdade e da justiça social na sociedade?

Para Rawls, o contrato social tem de ser estabelecido com base numa total imparcialidade por
parte de todos os indivíduos, ou seja, tem de ser estabelecido sem que os indivíduos tenham
nele qualquer interesse particular.
Para que seja possível o estabelecimento de um contrato social com base na imparcialidade, os
indivíduos têm de o efectuar a partir daquilo que Rawls denominou “VÉU DA IGNORÂNCIA”.

3.O que é este “véu da ignorância”?

O “véu da ignorância” é o desconhecimento por parte de cada indivíduo da sua condição social
e económica no momento do estabelecimento do contrato social, no momento em que dão
origem a uma determinada forma de sociedade. Esta posição original é uma situação
imaginária de total imparcialidade em que pessoas racionais, livres e iguais criam uma
sociedade regida por princípios de justiça. Para que tal imparcialidade se verifique essas
pessoas devem estar “cobertas” por um “véu de ignorância”.

4. Qual é a vantagem do “véu da ignorância”?

Vai possibilitar que, devido ao desconhecimento da sua situação social e económica, os


indivíduos exijam uma organização da sociedade que seja dentro dos possíveis a mais
vantajosa e melhor para todos, não inferiorizando qualquer grupo de indivíduos. Neste
sentido, vão exigir que a sociedade promova os valores básicos que permitam a todos ter uma
vida aceitável, designadamente a mesma liberdade para todos e o mínimo de desigualdades
sociais e económicas.

Exemplo do comportamento dos indivíduos que


procederão à escolha do seu modelo de sociedade sem
conhecer quais serão nela as suas condições de vida e o
seu estatuto social

Imagine que está num grupo de pessoas prestes a criar de raiz uma nova sociedade e um novo
governo. Essas pessoas têm uma tarefa muito importante que é a de decidir como construir
uma sociedade justa. Estão numa condição muito especial, a bem dizer extraordinária: estão
cobertas por um véu de ignorância quanto à sua condição na futura sociedade. Assim sendo,
você não sabes se vai ser homem ou mulher, rico ou pobre, doente ou saudável, idoso ou
jovem, pouco ou muito dotado em termos intelectuais, não sabe a que grupo étnico vai
pertencer, nem se vai ser católico, protestante, ortodoxo, muçulmano, judeu ou ateu. Em
termos gerais não sabe se vai estar no topo, no meio ou no fundo da escala social. Pensa que
dada essa condição deve escolher um governo e uma sociedade justa para todos: «Vou
escolher um tipo de sociedade que discrimine os ateus? Não porque posso vir a ser ateu. Quero
uma sociedade e um governo indiferentes às necessidades dos mais carenciados, que não
intervenha para atenuar a desigualdade económica? Não, porque não sei se não virei a estar
nessa situação. Quero uma sociedade em que haja discriminação racial no acesso às posições e
lugares economicamente mais favoráveis? Não, porque não sei a que grupo racial irei
pertencer. A prudência aconselha-me mesmo a que me prepare para o pior. Assim, vou
escolher um tipo de sociedade em que se me encontrar numa situação desfavorável me seja
garantido um nível de vida minimamente digno. Nestas condições seria tolice minha pensar
que os outros irão aceitar que a futura sociedade se reja por princípios que beneficiando-me os
prejudicarão. Nem posso aceitar princípios que beneficiem os outros em detrimento dos meus
interesses. O mais provável é que todos aprovem uma igual distribuição dos recursos sociais.
Mas e se, como é muito é provável dadas as diferenças entre os seres humanos, houver
desigualdade económica? Admitirei essa desigualdade se ela também for de alguma forma
vantajosa para mim. Nem todos vamos ter o mesmo nível de vida mas não aprovarei princípios
que permitam que os outros colham benefícios e eu unicamente prejuízos. E se nem todos
vamos ser iguais, pelo menos que haja igualdade de oportunidades. Não quero uma sociedade
que unicamente respeite os meus direitos políticos, que me permita votar e expressar as
minhas ideias, quero também uma sociedade que respeite os direitos das pessoas a bens
materiais e a serviços sociais».

5. Como promover a liberdade e a justiça social na sociedade?

Através respectivamente da promoção dos dois princípios seguintes (precisamente os dois


princípios que todos os indivíduos iriam querer que existissem na sociedade):
A – O princípio da igual liberdade.

O Estado deve garantir a todos os indivíduos o princípio da igual liberdade, ou seja, a


oportunidade de todos os indivíduos terem acesso de forma igual aos direitos que lhes garantam
as liberdades básicas (direito à liberdade de expressão, direito de voto, direito à propriedade
privada). A partir deste princípio procura-se promover a liberdade.

B – O princípio da diferença e da igualdade de oportunidades.

O princípio da diferença consiste em admitir na sociedade algumas desigualdades


económicas e sociais, desde que essas mesmas desigualdades possam servir em benefício dos
mais desfavorecidos. Se a minha fortuna duplicar e os indivíduos com mais dificuldades
económicas receberem cada um em troca 1 euro com esta minha acção, então a acção que
possibilitou a duplicação da minha fortuna será justa para Rawls. Porquê? Porque também os
mais desfavorecidos beneficiaram com esta minha acção.

O princípio da igualdade de oportunidades consiste em garantir a todos os indivíduos as


mesmas oportunidades de acesso aos vários lugares na sociedade, independentemente de ser de
raça branca ou negra, rico ou pobre, homem ou mulher. Desde que os indivíduos possuam as
mesmas capacidades e competências, têm as mesmas possibilidades de acesso a um emprego.

A partir destes dois princípios, procura-se promover a justiça social.


6.A justiça como equidade

A equidade equivale a uma distribuição desigual dos bens básicos que deve favorecer quem se
encontra em pior situação, isto é, as pessoas em desigualdade de condições por razões
económicas, físicas ou intelectuais. Por outras palavras, justifica-se que algumas pessoas
ganhem acima da média desde que essa desigualdade beneficie os membros menos
favorecidos da sociedade. A desigualdade justifica-se: a) se beneficiar todos os membros da
sociedade, em especial os menos favorecidos; b) se for uma condição necessária e suficiente
para incentivar uma maior produtividade.

Exemplos

1 – Se o que motiva as pessoas para se tornarem bons médicos e dentistas competentes for a
perspectiva de ganharem mais do que a média dos cidadãos, então é justo que, por exemplo,
tenham rendimentos duas ou três vezes superiores à média. Se isto é suficiente para que a
produtividade, a eficácia e a competência destes profissionais seja alta, será injusto que
ganhem cinco ou dez vezes mais do que o rendimento médio de uma sociedade.

2 – Se a condição necessária e suficiente que predispõe certas pessoas para serem eficientes e
capazes directores de empresas é o facto de poderem ganhar cinco ou dez vezes mais do que os
seus empregados, é justa essa desigualdade. Mas será injusto que, tal como Ralws reconhece
acontecer no seu país, o seu salário seja em muitos casos 50 vezes superior ao dos seus
empregados.

Ralws quer dizer que, até certo ponto, a desigualdade económica é um incentivo que aumenta
a produtividade global da sociedade. Assim, há mais recursos e bens que podem ser canalizados
para beneficiar os que estão em situação menos vantajosa. Os impostos são uma destas formas
de assistência contínua aos que estão em piores condições.

RESPOSTA 5 – Justiça como titularidade legítima: tenho


o direito de dispor livremente do que ganhei e adquiri
(A crítica de Nozick a Rawls).

1. Caracterização geral do conceito de justiça segundo Nozick

Defende um liberalismo radical que considera absolutos direitos individuais como a


liberdade e a propriedade. Opõe-se ao conceito de justiça social de Rawls defendendo
um Estado mínimo que como um guarda-nocturno proteja a segurança dos cidadãos e
as liberdades políticas mas não interfira na vida económica. Propõe uma distribuição da
riqueza baseada no mérito dos indivíduos - ideal que considera uma utopia mas que
deve regular a vida social. O estado mínimo é o único poder político legítimo e cada
indivíduo é titular absoluto do que ganha e adquire. A justiça social é incompatível com
a redistribuição da riqueza, seja qual for o critério, por parte de Estado.

2. Tese central - Uma sociedade justa é a que não impõe qualquer limite legal aos níveis
de desigualdade económica nela presentes.

Cada indivíduo, segundo esta perspectiva, deve exigir do Estado a máxima liberdade
sobretudo no que diz respeito à possibilidade de adquirir e dispor de uma quantidade
desigual de bens sociais.

3.Como justifica Nozick a sua tese?

Não há, segundo Nozick, uma forma padronizada de distribuição da riqueza que
determine até que ponto deve ir a desigualdade económica entre os indivíduos, ou seja,
o que cada qual deve possuir.

4.As desigualdades sociais e económicas não devem ser ajustadas de modo a que
reverta também a favor dos mais carenciados. Porquê?

Por duas razões: 1) distribuir os benefícios sociais de acordo com uma regra ou fórmula
geral – um padrão – exige sempre o uso ilegítimo da força e da coerção; b) as livres
escolhas dos indivíduos perturbam frequentemente os padrões de distribuição que as
sociedades pretendem estabelecer.

Exemplo

Imaginemos uma sociedade em que cada qual tem o que deve ter de modo a que a
desigualdade económica não seja injusta. Suponhamos agora que um famoso
basquetebolista - um dos maiores jogadores de sempre da NBA, Willt Chamberlain -
decide livremente efectuar vários jogos de exibição recebendo por jogo 1 dólar de cada
espectador. Milhões de admiradores decidem também livremente gastar essa quantia
para o ver jogar. Resultado: no final da época o jogador ganhou dezenas de milhões de
dólares. É agora detentor de mais bens do que aqueles que deve ter. Assim sendo, o
padrão de justiça em vigor na sociedade exige que algum do dinheiro que ganhou seja
transferido para outros indivíduos de modo a que a apropriada distribuição da riqueza
seja reposta. Mas será correcto este procedimento? Os admiradores do basquetebolista
sabiam que o dinheiro seria de Willt. Não têm direito de se queixar quanto mais porque
contribuíram para o seu enriquecimento por livre iniciativa. Por outro lado, os bens dos
que não assistiram aos jogos não foram de modo algum afectados e os que asssistiram
quase nada gastaram. A distribuição que resultou da conjugação das referidas livres
escolhas, isto é, que Willt tenha ficado mais rico nada tem de injusto.
5.O conceito de justiça de Ralws é imoral.

«O que é meu é meu». Cada um de nós tem direito ao que herdou, recebeu ou ganhou
legitimamente – seja muito ou pouco - e esse direito de propriedade não deve ser
violado pelo Estado. Mesmo que numa sociedade haja assinaláveis desigualdades
económicas, esse facto não torna legitima a redistribuição da riqueza, isto é, que se tire
aos mais favorecidos para dar aos mais desfavorecidos. Como o direito de propriedade
é, para Nozick, um direito absoluto, qualquer redistribuição da riqueza por parte do
Estado é uma violação de um direito fundamental. É imoral que me forcem a partilhar
com outros os bens que legitimamente adquiri.

6.Mas não é injusto haver um grande fosso entre ricos e pobres como acontece em
muitas sociedades?

O fosso entre ricos e pobres só é injusto se for criado através de meios injustos, tais
como a fraude e o roubo. Há várias formas de sermos proprietários de bens: por
heranças e doações que recebemos, por esforço pessoal, etc. A não-redistribuição não
viola nenhum direito e por isso não é injusta. A justiça social consiste em permitir que
os bens de que sou proprietário legítimo permaneçam em meu poder, dispondo deles
conforme entendo. A justiça é a titularidade de posses legítimas. Este direito ao que é
meu é um direito moral que não pode ser suplantado pelo objectivo utilitarista de
aumentar o bem-estar geral nem por ideais igualitários nem por outros direitos como
os direitos de subsistência. Providenciar serviços sociais e bens materiais aos mais
desfavorecidos redistribuindo a riqueza e forçando o pagamento de impostos é violação
do direito de propriedade individual. Segundo Nozick, pode e deve-se apelar à
generosidade dos mais favorecidos mas não é justo obrigá-los a socorrer os mais
necessitados.

7.Deste conceito de justiça que conceito de Estado decorre?

Decorre um conceito minimalista de Estado. Uma concepção minimalista do Estado


entende que o poder político não deve intervir na vida económica. Unicamente deve
ocupar-se em assegurar os direitos políticos dos cidadãos e com a sua segurança
relativamente a ameaças internas e externas. Para assegurar estes serviços mínimos é
legítimo que o Estado cobre impostos. Assim, forçar os indivíduos a pagar impostos
para que o Estado mantenha serviços como a defesa (exército e polícia), o governo e a
administração pública é perfeitamente legítimo e necessário. Para além desses
objectivos qualquer cobrança de impostos é uma violação dos direitos individuais.
UNIDADE 4 - Dimensões da acção humana e dos
valores - A dimensão religiosa - Análise e
compreensão da experiência religiosa.
CAPÍTULO 2 – Religião, razão e fé

O problema da existência de Deus


1.O argumento ontológico de Santo Anselmo

«Portanto, Senhor, Tu que dás o entendimento da fé, concede-me que, quanto sabes ser-me
conveniente, entenda que existes como acreditamos e que és o que acreditamos [seres]. E na
verdade acreditamos que Tu és algo maior do que o qual nada pode ser pensado.

Acaso não existe uma tal natureza pois o insensato disse no seu coração: «não há Deus»?

Mas com certeza esse mesmo insensato, quando ouvir isto mesmo que digo, algo maior do que
o qual

nada pode ser pensado, entende o que ouve e o que entende está no seu intelecto ainda que
não entenda que isso exista. Com efeito, uma coisa é algo estar no intelecto, outra é entender
que esse algo existe. Com efeito, quando o pintor concebe previamente o que vai fazer, tem
isso mesmo no intelecto, mas ainda não entende que exista o que não fez. Mas quando já
pintou, não só o tem no intelecto como entende que existe aquilo que já fez. E, de facto, aquilo
maior do que o qual nada pode ser pensado não pode existir apenas no intelecto. Se está
apenas no intelecto pode pensar-se que existe na realidade, o que é ser maior.

Se, portanto, aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado está apenas no intelecto,
aquilo mesmo maior do que o qual nada pode ser pensado é aquilo relativamente ao qual pode
pensar-se algo maior. Existe, portanto, sem dúvida, algo maior do que o qual nada é possível
pensar não apenas no intelecto mas também na realidade.»

Santo Anselmo, Proslogion

Explicitação do argumento
1 – Tenho no meu entendimento a ideia de Deus (como mesmo aqueles que negam a
existência de Deus têm a ideia de Deus na sua mente, então todos temos no nosso
entendimento a ideia de Deus).

2 –A ideia de Deus é a ideia de «alguma coisa maior do que a qual nada se pode pensar».

3 - Aquilo que existe na mente (entendimento) e na realidade é maior do que aquilo que
existe apenas na mente.

4 – Se Deus, o maior ser concebível) existir somente no entendimento então podemos


conceber algo maior do que Deus (Se Deus for uma simples ideia, algo que só existe na nossa
mente, então tudo o que existe na realidade é maior do que Deus)

5 – Ora é contraditório dizer que há algo maior do que o ser maior do que o qual nada se
pode pensar.

6 - Portanto, «aquilo maior do que o qual nada se pode pensar» existe tanto na mente como
na realidade, ou seja, Deus não pode não existir (existe necessariamente).

COMENTÁRIO

O argumento é dirigido contra pessoas como o insensato (o ateu) do Salmo, 14, 1 da Bíblia, que
dizem que Deus não existe. A estratégia de Santo Anselmo consiste em mostrar que as pessoas
que negam a existência de Deus na realidade (fora da mente) não podem negar que ele exista
nas suas mentes. Mesmo os insensatos compreendem a definição que é dada de Deus porque
negar Deus exige que se compreenda ou tenha a ideia daquilo que se está a negar. Assim Deus
existe pelo menos como uma ideia na nossa mente ou no nosso entendimento, isto é quer na
mente do crente quer na mente do ateu. A questão é saber se é logicamente admissível dizer
Deus só existe na nossa mente.

Anselmo pede-nos para imaginar que sim e para retirarmos as consequências lógicas de uma tal
afirmação. Então suponhamos que Deus, «aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado»
tem uma mera existência mental. Será que esta afirmação é logicamente compatível com a
ideia de que não podemos conceber nada maior ou mais perfeito do que Deus? Anselmo conclui
que não porque se Deus fosse uma simples ideia - se só tivesse existência mental - poderíamos
pensar em algo maior do que Deus (ou em um Deus ainda maior). Como existir na realidade é
superior a existir só no pensamento e não posso conceber um ser maior do que Deus, Deus tem
de existir quer no pensamento quer na realidade.

Críticas
1.O argumento assume como pressuposto que a existência é um predicado, uma propriedade
que não pode faltar a um ser perfeito.
Immanuel Kant dirigiu uma célebre crítica a esta versão do “argumento ontológico”. Kant
interpreta o argumento do seguinte modo:

Deus é um ser absolutamente perfeito.

Se Deus não existisse não seria perfeito (faltar-lhe-ia uma perfeição ou propriedade
fundamental).

Logo, Deus tem de existir.

A crítica de Kant: A existência não é um


predicado

Os predicados são geralmente usados para definir e caracterizar coisas. Quando, por exemplo,
dizemos «o quadrado é a figura geométrica com quatro lados e quatro ângulos iguais» estamos
a usar os predicados «figura geométrica», «quatro lados iguais» e «quatro ângulos iguais» para
definir quadrado. Do mesmo modo, quando dizemos que Deus é omnipotente, omnisciente,
etc., estamos a usar os predicados «é omnipotente», «é omnisciente», etc, para definir Deus.

Mas será a existência um predicado? Kant, um dos grandes críticos do argumento ontológico,
diz que não. Quando digo que George Bush existe não estou, segundo Kant, a atribuir um
predicado ou qualidade a esse indivíduo mas simplesmente a dizer que um sujeito possuidor
de certos predicados é uma realidade efectiva e não um simples conceito na minha cabeça.

Anselmo parte do pressuposto de que a existência é uma propriedade ou predicado que uma
coisa pode ter ou não ter. Declara que ter essa propriedade é melhor do que não a ter e conclui
que Deus, ser maior do que o qual nada é possível (perfeito) tem de possuir esse predicado sob
pena de ser imperfeito e inferior a outros seres.

Segundo Kant todo este elaborado raciocínio perde o seu carácter persuasivo porque a
existência não é um predicado mas a condição da realidade efectiva de qualquer predicado.
2.O argumento cosmológico de São Tomás de Aquino

A existência de Deus pode ser provada por cinco vias.

A segunda via resulta da natureza da causa eficiente. Vemos que no mundo dos sentidos existe
uma ordem das causas eficientes. Não há nenhum caso conhecido (nem, na verdade, é possível)
no qual se verifique que uma coisa é a causa eficiente de si mesma; pois, desse modo, seria
anterior a si mesma, o que é impossível. Ora, não é possível regredir infinitamente nas causas
eficientes, porque em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é a causa da causa
intermédia, e esta, quer seja várias ou apenas uma, é a causa da causa última. Ora, retirar a
causa é retirar o efeito. Portanto, se não existisse uma causa primeira entre as causas eficientes,
não existiria uma causa última nem nenhuma causa intermédia. Mas se for possível regredir
infinitamente nas causas eficientes, não existirá uma primeira causa eficiente, nem existirá um
último efeito, nem quaisquer causas eficientes intermédias; e tudo isto é completamente falso.
Portanto, é necessário admitir uma primeira causa eficiente, à qual todos dão o nome de Deus.

São Tomás de Aquino, Suma Teológica, Parte a, 2, 3.

Explicitação
1 – Algumas coisas são causadas

2 – Nenhuma coisa é causa de si mesma.

3 – Tudo o que é causado é causado por outra coisa, por algo diferente de si.

4 - Não pode haver uma regressão infinita nas cadeias de causas.

5 – Se não pode haver uma regressão infinita nas cadeias de causas, então tem de existir uma
causa primeira que tudo causa e por nada é causada

6 – A essa causa primeira dá-se o nome de Deus.

7 – Logo, Deus existe.

Cada coisa na natureza tem uma causa, esta por sua vez tem outra e esta outra ainda, mas temos de
parar em algum lado para que realmente encontremos a explicação da coisa de que partimos e também
para que faça sentido falar de uma série de causas. Na verdade, se não houver uma causa primeira
(Deus) não há segunda, terceira ou quarta.
Comentário
O argumento não parte da premissa de que tudo o que existe tem uma causa. Isso evita que
faça sentido perguntar no final do argumento se Deus também não tem uma causa.

A segunda e terceira premissas afirmam que na natureza um acontecimento é causado por


outro que por sua vez depende de outro e assim sucessivamente. O seu nascimento não foi
causado por si, nem o do seu pai ou da sua mãe foi causado por eles, etc.

Mas se A é causado por B, B por C, C por D, D por E, e assim sucessivamente, será que a cadeia
causal é infinita?

São Tomás não o admite e nega tal hipótese mediante um argumento intermédio que é uma
redução ou refutação ao absurdo.

Eis o argumento:

- Suponhamos que há uma cadeia infinita de causas ou uma regressão infinita na cadeia de
causas (popularizada na questão do ovo e da galinha). Que consequências tem esta hipótese?
São logicamente aceitáveis?

Se as cadeias causais (as ligações causa -efeito) regridem infinitamente não há um primeiro
membro da cadeia causal e faltando um primeiro membro também falta uma primeira causa.
Mas faltando uma primeira causa falta também um primeiro efeito e outros efeitos
intermédios. Como os efeitos intermédios são, por sua vez, causa dos efeitos mais próximos e
recentes, segue-se que numa cadeia causal sem primeiro membro não há causas nem efeitos,
ou seja, não há realmente membro nenhum. Se as ligações causa - efeito regredissem
infinitamente nada haveria no início para desencadear a sua sequência.

Como isso é absurdo prova-se que na natureza as cadeias causais não podem regredir
infinitamente.

Assim sendo, tem de haver uma causa primeira que esteja na origem de toda a sequência
causal. A essa causa primeira e necessária dá-se o nome de Deus.

Logo Deus existe.

Críticas
1.Não se prova a existência de um Deus que tenha as características do deus das religiões
monoteístas.

A primeira causa pode ter sido não Deus mas um conjunto de agentes ou de deuses. Isto
invalida a conclusão de que o Deus monoteísta seria a origem do acontecimento a que
chamamos causa primeira.
2.O argumento não é sólido porque podemos pensar que o universo existe desde sempre e que
não teve um início.

O processo de geração e de destruição pode ser infinito.

3.Dizer que todos os acontecimentos naturais têm uma causa não implica dizer que há uma só
causa de tudo.

Se todas as coisas naturais têm uma só causa - que não está na natureza, que é sobrenatural -
podemos objectar que se todos os filhos têm uma mãe então há uma mãe de todos os que são
filhos, o que é absurdo.

4.Afirmar que cada um dos acontecimentos ou fenómenos naturais deriva de um


acontecimento – o poder causal de um ser sobrenatural – que está fora do mundo natural não
implica necessariamente afirmar que há um só acontecimento sobrenatural do qual derivam
todos os fenómenos naturais. Dizer que todas as pessoas nascem num determinado dia não
implica dizer que há um só dia em que todas as pessoas nasceram.

5.Será preciso percorrer toda a série de cadeias causais e culminar numa eventual causa
primeira para explicar um acontecimento mais ou memos recente? Parece que não.

Se quisermos explicar porque Hitler invadiu a Polónia em 1939 podemos referir-nos à sua ambição de
encontrar espaço vital para os alemães no leste da Europa, à sua vontade de poder e ao seu ódio pelos
polacos. Se alguém disser que isto não explica porque invadiu a Polónia então temos de referir-nos às
condições económicas e políticas da Alemanha e da Áustria após a primeira guerra mundial, procurando
mostrar como essa situação contribuiu para a ascensão de Hitler ao poder e á sua aventura trágica. Se
alguém dissesse que ainda não é suficiente, teríamos de referir como era a Alemanha antes da primeira
guerra mundial e mostrar como essa guerra contribuiu para que Hitler ascendesse ao poder e anos mais
tarde quisesse dominar a Europa. Mas em algum ponto teríamos de parar e encontrar uma explicação. Não
precisamos de percorrer toda a história do mundo em sentido regressivo para encontrar as causas da
invasão da Polónia pelos exércitos de Hitler em 1939.

6. Não será o BIg Bang um ponto de paragem apropriado? Por que não parar no mundo
material?
3. O argumento teleológico ou do
desígnio

Suponha que ao atravessar uma mata tropeço numa pedra e me perguntam como foi ela ali
parar. Poderia talvez responder que, tanto quanto me é dado a saber, a pedra sempre ali
esteve; e talvez não fosse muito fácil mostrar o absurdo desta resposta. Mas suponha que eu
tinha encontrado um relógio no chão e procurava saber como podia ele estar naquele lugar.
Muito dificilmente me poderia ocorrer a resposta que tinha dado antes — que, tanto quanto
me era dado saber, o relógio poderia sempre ali ter estado. Contudo, por que razão esta
resposta, que serviu para a pedra, não serve para o relógio? Por que razão não é esta resposta
tão admissível no segundo caso como no primeiro? Por esta razão e por nenhuma outra: a
saber, quando inspeccionamos o relógio, vemos (o que não poderia acontecer no caso da
pedra) que as suas diversas partes estão forjadas e associadas com um propósito; por exemplo,
vemos que as suas diversas partes estão fabricadas e ajustadas de modo a produzir movimento
e que esse movimento está regulado de modo a assinalar a hora do dia; e vemos que se as suas
diversas partes tivessem uma forma diferente da que têm, se tivessem um tamanho diferente
do que têm ou tivessem sido colocadas de forma diferente daquela em que estão colocadas ou
se estivessem colocadas segundo uma outra ordem qualquer, a máquina não produziria
nenhum movimento ou não produziria nenhum movimento que servisse para o que este serve.
(...) Tendo este mecanismo sido observado (...), pensamos que a inferência é inevitável: o
relógio teve de ter um criador; teve de existir num tempo e num ou noutro espaço, um artífice
ou artífices que o fabricaram para o propósito que vemos ter agora e que compreenderam a
sua construção e projectaram o seu uso. (...) Pois todo o sinal de invenção, toda a manifestação
de desígnio, que existia no relógio, existe nas obras da natureza, com a diferença de que na
natureza são mais, maiores e num grau tal que excede toda a computação. Quero dizer que os
artefactos da natureza ultrapassam os artefactos da arte em complexidade, em subtileza e em
curiosidade do mecanismo; e, se possível, ainda vão mais além deles em número e variedade;
e, no entanto, num grande número de casos não são menos claramente mecânicos, não são
menos claramente artefactos, não são menos claramente adequados ao seu fim ou menos
claramente adaptados à sua função do que as produções mais perfeitas do engenho humano.
(...) Em suma, após todos os esquemas e lutas de uma filosofia relutante, temos
necessariamente de recorrer a uma Deidade. Os sinais de desígnio são demasiado fortes para
serem ignorados. O desígnio tem de ter um projectista. Esse projectista tem de ser uma
pessoa. Essa pessoa é DEUS.

William Paley, Teologia Natural, 1802, Cap. 1, 3 e 27

Explicitação
Primeira premissa - Se abrirmos um relógio e inspeccionarmos o modo como todas as peças do
mecanismo trabalham conjunta e harmoniosamente, compreenderemos que o relógio teve de
ser criado por alguém inteligente, o relojoeiro que o fabricou.

Segunda premissa - O universo e os organismos vivos são muito semelhantes aos relógios, isto
é, também revelam complexidade e organização e harmonia (desígnio).

Conclusão - Portanto, também o universo e os organismos vivos têm um criador inteligente,


que é Deus.

Comentário

O argumento do desígnio tal como o argumento cosmológico parte da observação de dados


empíricos, de factos do mundo. No entanto, quanto à sua estrutura há uma diferença
importante em relação ao argumento cosmológico. Este é um argumento de forma dedutiva,
ao passo que o argumento do desígnio é um argumento analógico, não-dedutivo. Por isso
mesmo a verdade da sua conclusão não é necessária mas sim provável. O que ele prova no
caso de ser um bom argumento é a forte probabilidade de Deus existir.

O argumento baseia-se numa analogia entre a natureza e um relógio (compara a natureza, o


universo, a um relógio).

Um relógio é um objecto que foi concebido com um determinado propósito ou desígnio, isto é,
cumpre uma determinada finalidade ou fim (“telos” em grego significa fim; daí a designação de
teleológico dada ao argumento).

Ora, a natureza é como um relógio. Tal como as peças do relógio formam um mecanismo que
funciona harmoniosamente (cada peça cumpre a função que lhe está destinada no conjunto)
porque não foram colocadas ao acaso, também o mundo natural revela, pela harmonia que
reina entre as diversas partes, que não foi obra do acaso ou da união fortuita dessas partes
(Não é o resultado de causas puramente físicas). Cada coisa na natureza, analogamente às
peças do relógio, cumpre uma função. Mesmo que disso não se possa aperceber, está
harmoniosamente adaptada àquilo para que aparentemente foi feita. Cada peça do todo que é
a natureza ocupa um lugar previamente definido dentro do conjunto.

Assim sendo, tal como não há relógio sem relojoeiro, não há natureza ou universo sem um
Criador, ser superiormente inteligente que pôs a natureza a funcionar como se fosse um
relógio. Esse Criador, esse grande Relojoeiro, é Deus.

O argumento de Paley compara - estabelece uma analogia – entre um relógio e as coisas e seres
vivos do universo para concluir que se, devido a certas características, o primeiro tem um
criador inteligente o universo devido a características semelhantes, também foi obra de um ser
inteligente.
Críticas

1.Fraca analogia – Um relógio de pulso e um relógio de bolso são suficientemente semelhantes


para supormos que foram concebidos por um mesmo relojoeiro. Mas os objectos naturais e os
artificiais não são significativamente semelhantes. A analogia entre o universo natural e um
relógio é demasiado fraca para que concluamos que tal como um relógio é obra de um ser
inteligente que o destinou a uma função, o universo é obra de um Ser Inteligente – de um
«Relojoeiro universal» - que o dotou de um propósito e de um conjunto de funções pré-
estabelecidas.

2. Não justifica a existência de um único Deus nem de um Deus omnipotente, omnisciente e


bom tal como é descrito pelas religiões monoteístas – Mesmo que admitíssemos que a
analogia é forte, o argumento só provaria a existência de um Ser inteligente que poderia muito
bem não ser o Deus das religiões monoteístas. Por outro lado, o argumento poderia chegar
sem qualquer incoerência lógica à conclusão de que a complexidade e subtil ajustamento e
harmonia do funcionamento das diversas partes do universo é obra não de um projectista mas
sim de vários o que poderia conduzir- nos ao politeísmo.

3. A complexidade dos organismos vivos é para Paley superior à dos objectos fabricados pelos
seres humanos mas isso não implica necessariamente que tenha de ser explicada por uma
causa sobrenatural – Deus.

Para Paley a beleza de uma paisagem ou a formação dos órgãos dos seres vivos (sobretudo do
olho que associa harmoniosamente um aparelho óptico e um aparelho nervoso) são exemplos
dificilmente desmentíveis de finalidade ou desígnio na natureza (de que as coisas na natureza
foram feitas para um determinado fim, isto é, segundo um plano que atribui a cada uma a
função a cumprir). Considera extremamente improvável que a harmonia natural se deva ao
encontro acidental de causas puramente naturais. Contudo, na sequência da teoria de Darwin,
a biologia actual afirma que a surpreendente harmonia e complexidade dos seres vivos pode
ser explicada através de causas simplesmente naturais, sem pressupor um desígnio inteligente
e sobrenatural. Essa complexidade dos organismos é o resultado de uma longa evolução regida
pela capacidade de adaptação dos indivíduos ao meio e à transmissão das características com
maior valor adaptativo por parte dos mais aptos e fortes na luta pela sobrevivência. A teoria de
Darwin enfraquece, de facto, a força do Argumento do Desígnio, uma vez que explica os
mesmos efeitos sem mencionar Deus como causa. A existência desta teoria acerca do
mecanismo de adaptação biológica impede o Argumento do Desígnio de constituir uma
demonstração conclusiva da existência de Deus».

4.O ARGUMENTO MORAL


A felicidade é o estado no mundo de um ser racional para o qual, na totalidade da sua
existência, tudo ocorre segundo o seu desejo e a sua vontade e funda-se, pois, na harmonia da
natureza com o fim integral desse ser e igualmente com o princípio determinante essencial da
sua vontade. Ora, a lei moral, enquanto lei da liberdade, ordena por princípios determinantes
que devem ser totalmente independentes da natureza e da sua harmonia com a nossa
faculdade de desejar (como móbeis); mas o ser racional agente no mundo não é, contudo,
simultaneamente causa do mundo e da própria natureza. Portanto, não existe na lei moral a
menor razão para uma conexão necessária entre a moralidade e a felicidade a ela
proporcionada de um ser que, fazendo parte do mundo e, portanto, dele dependendo, não
pode por isso mesmo ser pela sua vontade causa desta natureza e fazê-la por suas próprias
forças coadunar-se inteiramente — o que concerne à sua felicidade — com os seus princípios
práticos. No entanto, no problema prático da razão pura, isto é, na aplicação necessária ao
soberano bem, postula-se como necessária uma tal conexão: devemos procurar fomentar o
soberano bem (o qual, portanto, deve ser possível). Postula-se assim igualmente a existência
de uma causa da natureza no seu conjunto, distinta da natureza, a qual contém o princípio
desta conexão, a saber, da concordância exacta da felicidade e da moralidade. Mas esta causa
suprema deve conter o princípio da concordância da natureza não só com uma lei da vontade
dos seres racionais, mas também com a representação desta lei, na medida em que eles a
propõem a si como princípio determinante supremo da vontade, por conseguinte, não apenas
com os costumes segundo a forma, mas também com a sua moralidade enquanto princípio
determinante seu, isto é, com a sua intenção moral. Por consequência, o soberano bem só é
possível no mundo enquanto se admite uma causa suprema da natureza que tem uma
causalidade conforme à disposição moral. Ora, um ser que é capaz de acções segundo a
representação das leis é uma inteligência (ser racional) e a causalidade de um tal ser, segundo
esta representação das leis, é a sua vontade. Assim, a causa suprema da natureza, enquanto
ela se deve pressupor para o soberano bem, é um ser que, pelo entendimento e vontade, é a
causa (por conseguinte, o autor) da natureza, isto é, Deus. Pelo que, o postulado da
possibilidade do soberano bem derivado (do melhor mundo) é ao mesmo tempo o postulado
da realidade de um soberano bem primordial, isto é, da existência de Deus. Ora, era para nós
um dever fomentar o soberano bem, por conseguinte, não só um direito, mas também uma
necessidade conexa como exigência ao dever, de pressupor a possibilidade deste soberano
bem, o qual, uma vez que só tem lugar sob a condição da existência de Deus, liga
indissoluvelmente a pressuposição do mesmo com o dever, quer dizer, é moralmente
necessário admitir a existência de Deus.

Immanuel Kant, Crítica da Razão Prática, pp. 143-144

EXPLICITAÇÃO

1.Quem se esforça por ser moralmente perfeito (o virtuoso) não merece uma recompensa.
2. A recompensa adequada é a felicidade moral, a felicidade devida ao mérito moral.

3. A felicidade é um estado de completo acordo entre os acontecimentos do mundo e a


nossa vontade.

4. Não está em nosso poder realizar tal acordo. Não podemos dominar e governar o mundo
de modo a que este corresponda totalmente aos nossos desejos porque, pensa Kant, para tal
teríamos de ser os seus criadores ou autores.

5. Sermos dignos da felicidade mas não podermos ser felizes é moralmente injusto.

6.Só quem criou o mundo pode estabelecer essa harmonia completa e permanente entre a
virtude e a felicidade, ou seja, dar a quem se esforça por ser moralmente perfeito a felicidade
adequada ao seu sentido do dever.

7. A esse criador omnipotente e moralmente perfeito chamamos Deus.

8. Deus tem de existir para que seja possível esperar que a virtude será recompensada. Deus
tem de existir para que a esperança na recompensa legítima – a felicidade – tenha
fundamento.

UM ARGUMENTO CONTRA A EXISTÊNCIA DE DEUS: O ARGUMENTO BASEADO NO PROBLEMA


DO MAL

MAL NATURAL, MAL MORAL E MAL DESNECESSÁRIO

MAL NATURAL MAL MORAL MAL DESNECESSÁRIO

O mal natural é o sofrimento O mal moral é o sofrimento e Um mal necessário é algo exigido
que é causado pela natureza – a dor que os seres humanos para evitar ou lutar contra um
catástrofes como tsunamis e infligem uns aos outros mal maior ou para produzir um
terramotos, doenças, (guerras, assassínios, violência bem maior. Certos tratamentos
médicos causam sofrimento mas
epidemias, etc. gratuita, discriminação, etc.).
são necessários para evitar a
morte ou recuperar e melhorar a
saúde. O sofrimento, a dor e a
injustiça são necessários se, e só
se houver um bem que sem eles
não aconteceria.

Um mal desnecessário é o que


não evita um mal maior nem
promove um bem maior. O
sofrimento e a dor são são
desnecessários quando não
contribuem para nada melhor ou
nada de bom.

Tendemos a considerar que os


males necessários são
moralmente justificáveis e que os
males desnecessários não têm
justificação moral.

O ARGUMENTO CONTRA A EXISTÊNCIA DE DEUS BASEADO NA EXISTÊNCIA DE MAL


DESNECESSÁRIO

1 – Se Deus existisse (Se existisse um ser todo-poderoso, omnisciente e perfeitamente bom)


então não haveria mal desnecessário no mundo

2 – Há mal desnecessário no mundo.

3 – Logo, Deus não existe.

COMENTÁRIO

Para negar que o argumento seja aceitável, os defensores da existência de Deus têm de mostrar
que há razões plausíveis para considerar que todo o mal que existe no mundo é necessário.

Para defender que o argumento é plausível, os que negam a existência de Deus têm de mostrar
que há boas razões para acreditar que pelo menos algum mal existente no mundo é
desnecessário.

Vários defensores do argumento afirmam que é evidente haver mal desnecessário no mundo e
dão como exemplos o genocídio de Auschwitz e no Ruanda argumentando que seria o cúmulo
do cinismo e moralmente inaceitável afirmar desses imensos sofrimentos resultou algum bem.

UM CONTRA – ARGUMENTO: POR QUE RAZÃO UM SER OMNIPOTENTE PERMITE A EXISTÊNCIA


DO MAL

A DEFESA DE DEUS MEDIANTE O


LIVRE - ARBÍTRIO

Muitos teístas afirmam que Deus deve permitir e tolerar mesmo o mal desnecessário de modo
a proteger e respeitar a liberdade humana. Segundo o seu argumento, Deus escolheu criar um
mundo no qual as criaturas humanas podem realizar escolhas livres. Ora, ter livre-arbítrio
significa que somos capazes de fazer boas ou más escolhas. Criando agentes livres, Deus correu
um risco. Não podia necessariamente garantir que escolheríamos o bem em vez do mal. Não é
logicamente consistente dizer que Deus poderia ter-nos criado livres – com liberdade de
escolha - e ao mesmo tempo incapazes de fazer coisas más. Duas proposições como «Os seres
humanos têm liberdade de escolha» e «Os seres humanos estão programados para fazer só o
bem» não são compatíveis. Portanto o resultado da escolha de Deus ao criar um mundo em
que há seres livres e não meros robôs é este: Vivemos num mundo em que há pessoas que
escolhem agir de forma virtuosa, boa, solidária e pessoas que escolhem que escolhem agir de
forma destrutiva, odiosa, imoral e maldosa.

Se não houvesse mal no mundo então não existiria livre- arbítrio.

A liberdade consiste em fazer boas e más escolhas.

Das nossas más escolhas resulta o mal.

Deus deu-nos a liberdade da qual muitas vezes deriva o mal para que tenhamos valor e
dignidade moral quando essa liberdade opta pelo bem.

Deus não quer nem causa o mal.

Logo, a existência do mal é compatível com a existência de um ser omnipotente e benevolente.

DIFICULDADES DESTA FORMA DE DEFENDER DEUS

1.Esta defesa apresenta uma imagem de Deus desinteressado dos assuntos do mundo,
indiferente.

Ora um aspecto central da concepção teísta de Deus – a que é própria das religiões
monoteístas - é a ideia de que Deus intervem no curso do mundo. Não poderia Deus ter
evitado com a sua intervenção anomalias morais como Hitler, Estaline e Pol – Pot que
chacinaram milhões de seres humanos? Não poderia Deus permitir más escolhas aos seres
humanos mas evitar as suas más consequências?

2.Só se deve permitir o mal em nome de um bem maior mas há males cuja gravidade
ultrapassa qualquer bem.

De modo a permitir que agentes livres como nós existam Deus tem de permitir que existam os
maus resultados do uso dessa liberdade. Não é profundamente cínico dizer que Deus poderia
ter evitado os males terríveis e os horrores da história tais como Hitler, Estaline, a escravatura,
etc., mas o preço disso seria excluir os grandes momentos da história humana tais como
Mozart, Bach, Leonardo da Vinci, Gandhi, Einstein, Confúcio, Buda, e muitos outros?

3.Mesmo que o mal moral não fosse incompatível com a existência de Deus e mesmo que os
seres humanos escolhessem sempre fazer o bem haveria ainda o problema do mal natural.

Mesmo que o valor que atribuímos à posse de livre-arbítrio seja tão importante ao ponto de
admitirmos o mal moral resta um problema: que sentido atribuir ao mal natural? A chamada
«defesa do livre-arbítrio» não resolve o problema do mal desnecessário porque o desloca do
plano moral para o plano natural. Não se consegue perceber que bem maior advém do
sofrimento de quem tem cancro, de quem sofre terríveis deformações genéticas, das razias
que os terramotos, os tornados e os furacões causam? Ilibaremos Deus se dissermos que tudo
resulta do pecado original cometido por Adão e Eva? Ou dizendo que é acção do Diabo? Neste
caso não se põe em causa a omnipotência de Deus? E não é sinónimo de gratuita crueldade
que paguemos pelos pecados de antepassados imensamente longínquos e cuja existência
histórica é mais do que duvidosa? E fará sentido sermos dotados de livre-arbítrio, o que
ganhamos com isso se somos julgados pelos actos de antepassados muito remotos?

UNIDADE 5 - Dimensões da acção humana e dos valores -


A dimensão estética: Análise e compreensão da
experiência estética.

CAPÍTULO 1 – O QUE SE ENTENDE POR EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

CARACTERÍSTICAS GERAIS DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

É uma atitude contemplativa e desinteressada

Não é uma atitude prática ou Não é uma atitude cognitiva (de Não é uma atitude
utilitária. conhecimento). subordinada, em si mesma, a
princípios e objectivos
morais.
A atitude estética é alheia a A relação com os objectos A nossa atitude só terá
qualquer consideração sobre a naturais e artísticos na forma estética se dermos
utilidade do objecto, não é experiência estética não é atenção ao objecto
determinada pelo desejo de motivada primordialmente pela contemplado por si mesmo e
posse, ou pelo eventual valor vontade de adquirir e de não à relação do objecto
monetário ou comercial do ampliar conhecimentos. com os nossos conceitos e
objecto contemplado. princípios morais.

EXEMPLO EXEMPLO
EXEMPLO
Negações desta característica
Negações desta característica
O caso do agente imobiliário que,
O biólogo que estuda um bosque
quando observa as paisagens do
de árvores milenares para verificar Negações desta
Gerês, não consegue evitar
o estado da sua flora manifesta característica
pensar no seu valor monetário,
uma atitude cognitiva e não
no excelente negócio que seria
estética, tal como o antropólogo Se uma pessoa sente prazer na
construir um aldeamento
que estuda a arquitectura e a contemplação de um dado
naquele local ou o caso de uma
cerâmica de uma comunidade objecto estético (filme, poema,
pessoa que, num museu, imagina
para conhecer os seus costumes. romance, conto…) somente por
o que seria ter um determinado
lhe reconhecer valor moral, a
quadro em sua casa, se ele
sua atitude não é estética.
combinaria com os móveis e
tapeçarias da sala.

A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COMO DISTANCIAMENTO PSÍQUICO QUE É A SUA CONDIÇÃO DE


POSSIBILIDADE

O carácter peculiar do “distanciamento” consiste no seguinte: o sujeito coloca-se perante o


objecto da sua contemplação como se a sua personalidade tivesse sido filtrada, ficando isenta
de qualquer preocupação prática. Tomemos por exemplo a nossa atitude a respeito do
“drama”. As encenações e representações teatrais impressionam-nos muitas vezes de uma
forma semelhante aos acontecimentos do quotidiano, só que no teatro não podemos reagir
como no dia-a-dia, envolvendo-nos praticamente ou fisicamente naquilo que acontece perante
nós. A não participação é muitas vezes explicada referindo que sabemos que o drama não é
real e por isso nele não intervimos. Contudo, devemos virar esta explicação do avesso: não é o
nosso conhecimento do carácter fictício do drama que cria “o distanciamento” que nos leva a
não intervir nele, mas é, ao contrário, o”distanciamento” que ao alterar a nossa relação com as
personagens as torna aparentemente fictícias. A filtragem dos nossos sentimentos e a
“irrealidade” dos seres e coisas ocorrem quando, por vezes, mediante uma mudança da
perspectiva interior, somos invadidos pelo sentimento de que «o mundo inteiro é um palco».
OS JUÍZOS ESTÉTICOS E O PROBLEMA DA SUA NATUREZA: SÃO OBJECTIVOS OU SUBJECTIVOS?

O QUE É UM JUÍZO ESTÉTICO OBJECTIVISMO SUBJECTIVISMO

Teoria segundo a qual um objecto Teoria segundo a qual um


é belo ou feio em virtude de objecto é belo ou feio em
Um acto mediante o qual
propriedades ou características virtude de sentirmos prazer
formulamos uma proposição
que nele se encontram ou lhe ou desprazer ao observá-lo.
que atribui determinada
pertencem. A beleza e a fealdade A beleza ou fealdade
qualidade estética (beleza,
dos objectos não dependem dos dependem não das
sublimidade, fealdade) a um
sentimentos ou das reacções de propriedades intrínsecas do
objecto: “Este palácio é
quem os observa. objecto mas dos
belo” ou «O Requiem de
sentimentos que em nós
Mozart é uma obra-prima» e Para os partidários do objectivismo
provoca e desperta.
«O Padrinho de Francis Ford estético dizer «A catedral de Milão é
Coppolla é um filme bela» é muito diferente de dizer Para os partidários do
«Gosto da catedral de Milão». subjectivismo estético dizer «A
magnífico».
catedral de Milão é bela» é
igual a dizer «Gosto da
catedral de Milão».

Por que razão discordam as pessoas acerca da beleza ou da fealdade dos objectos estéticos?

Uma primeira explicação pode ser o facto de algumas pessoas não conseguirem assumir um
ponto de vista puramente estético. Há pessoas que estabelecem a ligação da obra com pontos
de vista morais e políticos, o que obviamente condiciona a sua avaliação e pode predispô-las
para aprovar ou rejeitar certas qualidades da obra. Parece consensual que um autor conotado
com o nazismo ou o fascismo tenha mais dificuldade em ser aceite.
Uma outra eventual explicação costuma acentuar a falta de educação estética de algumas

pessoas. Se as propriedades que agradam e deslumbram estão no objecto é preciso saber

descobri-las. Ora, quem limita o seu gosto musical á chamada música pimba ou a música ligeira

dificilmente estará em condições de apreciar Richard Wagner, Bach e Mahler.

CAPÍTULO 2 – A CRIAÇÃO ARTÍSTICA E A OBRA DE ARTE: O QUE SE ENTENDE POR


ARTE

A arte é imitação da A arte é expressão A arte é uma A arte é pura


realidade de sentimentos e transfiguração da forma
emoções realidade
A arte — e sobretudo a Um dos principais O que o artista cria O principal
pintura — imita ou deve representantes desta corresponde a uma representante
imitar a realidade,
teoria é Tolstoi. transfiguração do mundo desta concepção de
constituindo-se como uma Defende que só é arte real. O universo artístico é arte é Clive Bell.
cópia ou espelho no qual o que for a adequada o real transfigurado, Uma obra é
os objectos são reflectidos
expressão de um recriado, nunca algo de artística se, e só se,
sentimento genuíno.
o mais fielmente possível. absolutamente irreal. provocar em nós
Uma obra é tanto Podemos dizer que o artista emoções estéticas.
Críticas melhor quanto melhor abre à realidade as portas Estas derivam das
conseguir exprimir os da imaginação e alarga o próprias obras, da
1 - O artista não
sentimentos do artista horizonte da nossa sua forma
representa as coisas que
que a criou. experiência sensível e significante
vê, mas o modo como vê
também pensante. A arte é (harmonia,
e também como imagina Críticas criação de formas sensíveis equilíbrio da
as coisas. (literárias, pictóricas, composição dos
1 - Há obras que não
cinematográficas, etc.) que, elementos).
O quadro aparentemente exprimem qualquer
mesmo quando parecem
mais “realista” está emoção ou Para os partidários
não o fazer, interpretam a
condicionado na sua sentimento. da concepção de
realidade enriquecendo-a
criação pela experiência do arte como pura
2 - Mesmo que uma com novas perspectivas e
artista, pelos seus forma, o
obra de arte provoque modalidades de expressão.
sentimentos, pela forma especificamente
certas emoções em
como avalia as relações Críticas artístico é a forma.
nós, daí não se segue
sociais do seu meio, pelos A arte deve ser
que essas emoções 1.Nemtoda a obra de arte é
ideais que, porventura, esvaziada de
tenham existido no seu
queira transmitir. Um simbólica qualquer conteúdo.
autor.
quadro de Daumier não é A arte não deve ter
2.Há obras de arte que
uma cópia do que este viu, qualquer
muito dificilmente
mas a tradução pictórica preocupação
podemos considerar uma
de uma experiência ou a temática ou em
transfiguração da realidade
forma simbólica de transmitir uma
dado o seu elevado grau de
expressar simpatia pela mensagem. A arte
abstracção.
condição dos abstracta é o
desfavorecidos, de expoente máximo
protestar contra as duras desta perspectiva.
condições de trabalho das Nela manifesta-se
mulheres e das crianças na de modo superior a
sociedade de meados do autonomia da arte
século XIX. a respeito de
qualquer intenção
2- Esta concepção
ou exigência de
baseia-se numa representar a
concepção ingénua da realidade.
realidade. Críticas

A realidade não se reduz 1. Há pessoas que


aos objectos da nossa não sentem
percepção imediata. A qualquer tipo de
física ensina-nos que os emoção perante
constituintes últimos da certas obras que
matéria (electrões, são consideradas
protões, neutrões) não são arte.
objectos dos nossos
2. O critério da
sentidos nem,
forma significante é
rigorosamente falando,
demasiado vago e
coisas. Aquilo a que
impreciso para se
chamamos real não é nada
aplicar às diversas
de evidente. Se olharmos
artes.
para alguns quadros de
Picasso podemos dizer que
aquilo que mostra é tão
pouco evidente como a
realidade que os físicos se
esforçam por
compreender. Não vendo
as coisas como são (não
vemos os átomos de que é
feita uma mesa) podemos,
como faz Picasso, imaginar
e pintar num quadro a
dimensão imperceptível
das coisas.

3 – Encontramos na
pintura abstracta, na
música e na arte não –
figurativa exemplos de
obras artísticas que não
imitam nada.

CAPÍTULO 3
A ARTE: PRODUÇÃO E CONSUMO; ARTE E CONHECIMENTO

As Funções da Arte
A arte deve estar A arte vale por si mesma A arte é uma forma de A arte é uma forma
ao serviço da (A arte pela arte) catarse e de purificação de evasão
sociedade
O artista deve estar Teoria cujo principal Para Aristóteles a função A arte permite, quer
ao serviço da representante foi Óscar principal da arte (e referia- ao artista quer ao
sociedade, Wilde. Para esta perspectiva se sobretudo à tragédia público, a evasão
contribuir para a a única finalidade que o grega) era a de libertar face a uma realidade
implantação de artista deve ter é produzir e indirectamente o insatisfatória e
determinados criar uma obra genuína e espectador de certas desagradável. É uma
valores morais e realmente artística. A arte paixões que poderiam ser- forma de escapar à
cívicos, deve ter não deve promover lhe prejudiciais mediante a rotina quotidiana e
consciência das suas princípios éticos e políticos. contemplação das acções de iludir
responsabilidades Deve ser alheia a propósitos normalmente funestas que momentaneamente
sociais e subordinar pedagógicos e acontecem no palco. os aspectos
as suas obras à moralizadores. dolorosos quer da
O espectador comove-se e
educação da nossa existência
colectividade, revive as paixões que pessoal quer da vida
representando dominam as personagens. e da condição
acções, personagens Mediante esse “contágio” humanas. A arte
e cenas que libertar-se-ia dessas paixões oferece-nos, no seio
despertem no Críticas que seriam desastrosas, nas deste mundo tantas
espectador a moral suas consequências, se vezes insuportável e
vividas pessoalmente.
cívica que se supõe 1. A arte, em geral, exerce desencantado,
dever impregnar a Segundo Aristóteles, a “outro mundo”,
uma influência de tal modo
vida de uma tragédia provoca compaixão maravilhoso,
profunda sobre os seres
e piedade no espectador
sociedade. Temos, humanos que não é encantador e
assim, a figura do porque este reconhece que mági
aconselhável avaliá-la em
artista socialmente poderia sofrer as mesmas co.
Críticas
termos simplesmente
consequências que o herói
comprometido ao artísticos. Sem
serviço da melhoria ou o protagonista da “peça esta dimensão
da ordem social e, 2. Uma obra com teatral” se estivesse extraordinária a vida
quando os tempos o extraordinário valor envolvido em circunstâncias seria muito mais
exigem, de ideias artístico pode ser o difícil de suportar.
semelhantes.
revolucionárias. resultado de uma vontade
de denunciar o horror da
Críticas guerra como a Guernica de
Críticas
Picasso ou os vícios dos
1.Perigo de
humanos como algumas 1.A reacção do público às 1.Corre – se o risco
instrumentalização
obras de Bosch. Os novelas, agredindo por de entender em
e de submissão da
Malditos, filme de Visconti parte o artista como
actividade artística vezes os actores que
critica com a densidade representam personagens alguém que nos
por parte do poder
simbólica que o caracteriza, desagradáveis e odiosos distrai, o que pode
político.
a corrupção moral da alta criar uma
coloca alguns limites a esta
2. Quer a actividade burguesia industrial alemã sobrevalorização de
ideia de arte como catarse e
do artista quer o que apoia os nazis produções cujo valor
purificação das paixões.
produto dessa hipotecando a sua liberdade artístico é quase
actividade devem e auto-destruindo-se. inexistente.
ser avaliadas
independentemente 3. Há artistas em cuja obra, 2. Nem toda a
da sua utilidade para além de uma enorme produção artística é
(por mais elevada riqueza artística, uma forma de
que esta possa ser). encontramos aquilo a que evasão ou de criação
se pode chamar a “ideologia de mundos
3. Não é por uma do compromisso com a alternativos dado
obra de arte nos
humanidade”. Em que não se consegue
instruir, nos tornar Beethoven ecoa a ideia de conviver com os
moralmente fraternidade universal no mundos reais em
melhores, promover
“Hino à Alegria” da Nona que existimos. Nem
a unidade e Sinfonia (“Todos os homens todos os artistas
fraternidade entre chegarão a ser irmãos”) e o produzem obras de
os seres humanos
apaixonado desejo de arte para criar um
ou descrever liberdade. mundo no qual
condições reais da possam viver porque
vida que tem valor se sentem
artístico. desadaptados a este
mundo real em que
vivem.

“O que julgam que é


um artista? Um
imbecil que não tem
olhos? A pintura não
foi inventada para
decorar
apartamentos. Ela é
uma arma de defesa
e de ataque contra o
inimigo.”

A dimensão social da arte


A produção artística A obra de arte não é pura Arte e consumo
não é alheia ao e simplesmente a
contexto social manifestação da A tese de Walter A tese de
individualidade e da vida
A qualidade de uma Benjamin Theodor
interior do artista.
obra de arte não é Adorno
determinada pelo Nela exprimem-se também Os avanços tecnológicos e Vivemos na época
contexto social (a múltiplos aspectos da científicos dos finais do da “indústria da
coexistência de época em que o artista século XIX e dos princípios cultura” que
criadores geniais e viveu, da sociedade e do do século XX, tornaram ameaça reduzir a
medíocres é uma grupo social a que possível um fenómeno a obra de arte a
característica de todas pertenceu. que os teóricos da arte simples
as épocas), mas a sua deram o nome de mercadoria, a
temática, por exemplo, “reprodução mecânica da objecto de
é fortemente obra de arte”. As obras de consumo sujeito à
condicionada por arte, a partir de então, lei da oferta e da
acontecimentos podiam ser reproduzidas procura. A
históricos, políticos, ou copiadas em grandes consequência da
científicos, religiosos, quantidades. industrialização da
etc. arte é, para
As obras de arte Adorno, muito
anteriores à época da negativa: impõe-se
“massificação” tinham uma “cultura
aquilo que Benjamin artística” de massas
denomina “aura”, isto é, que só valoriza a
uma espécie de presença
obra que vende e é
espiritual decorrente do consumida pelo
seu carácter único e maior número
irrepetível. possível de
Quando alguém pessoas. As obras
contemplava um quadro de arte deixam de
de um pintor famoso ser fontes de
tinha consciência de estar conhecimento, e de
a viver uma experiência transfiguração,
estética que só aquele transformando-se
quadro lhe podia oferecer em simples
e mais nenhum outro objectos de
porque realmente só entretenimento e
havia esse quadro. de evasão.
Desvalorizada, a
A reprodução técnica em arte torna-se
série da obra de arte espectáculo (as
provoca a perda desta indústrias
“aura”. Dá-se uma espécie cinematográfica e
de dessacralização da televisiva são, para
obra artística. Adorno, as formas
mais flagrantes de
redução da arte a
espectáculo).

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