Afeto em Ferenczi

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O uso do afeto na obra de Sándor Ferenczi

The use of affect in the work of Sándor Ferenczi


_________________________________________
Julio Sérgio Verztman1
Fernanda Pacheco Ferreira2

Resumo: O artigo tem como objetivo investigar o uso do afeto na obra de Sándor Ferenczi.
Busca apresentar quais as vivências afetivas descritas por ele como constitutivas do encontro
clínico, discutindo a relação entre suas proposições técnicas e a expressão de determinados
afetos que, até então, haviam sido descartados ou insuficientemente explorados pela psicanálise.
Além disso, procura delinear uma espécie de “metapsicologia dos afetos”, com o intuito de
apontar aspectos decisivos da visão ferencziana sobre o desenvolvimento emocional. Por fim,
aborda o universo afetivo do sujeito traumatizado.

Palavras-chave: afeto, trauma, introjeção, ternura, recomendações técnicas

Abstract: The article aims to investigate the use of affect in the work of Sándor Ferenczi. It
presents which affective experiences were described by the author as part of the analytical
encounter. It discusses the relation between his technical propositions and the expression of
specific affects that were, until then, discarded or insufficiently explored by Psychoanalysis. It
also provides a sort of "metapsychology of affects", with the purpose of pointing out the decisive
aspects of his thoughts on the emotional development. Finally it approaches the affective
universe of the traumatized subject.

Keywords: affect, trauma, introjection, tenderness, technical recomendations

1 Psicanalista e psiquiatra, Doutor (UFRJ), Coordenador do Núcleo de Estudos em Psicanálise


e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC-UFRJ), Psiquiatra do IPUB-UFRJ.
2 Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio)
1

Quando nos foi sugerido escrever um artigo sobre a dimensão do afeto na obra de Ferenczi,
a correlação entre assunto e autor pareceu evidente. Desde o início de sua trajetória, Ferenczi
privilegiou determinados aspectos do encontro analítico, os quais, na ausência de melhor termo,
poderiam ser qualificados de afetivos. Comportamentos ativos durante a sessão, manifestações
lúdicas, movimentos do corpo, expressões faciais, choro, silêncio, tiques, flatulência, eructações,
Ferenczi não se deixava deter teoricamente por nenhum material apresentado por seus clientes,
mesmo que a intencionalidade destas manifestações não fosse expressa em palavras. Parecia fácil
alocar todos estes acontecimentos em uma dimensão que ultrapassa o campo representacional, o
que, em psicanálise, é imediatamente confundido com afetividade. Estranhamos, contudo, o fato
de não termos encontrado em nenhuma base de dados procurada – e procuramos em várias –
textos específicos sobre o afeto em Ferenczi e supusemos, em função disto, que nossa tarefa não
seria tão rapidamente realizada como parecia à primeira vista.
Determinados problemas precisavam ser ultrapassados e o primeiro deles era chegar a uma
definição satisfatória a respeito do papel dos afetos em nosso campo. A psicanálise não é o único
saber sobre a subjetividade que deixa imensas lacunas na definição do que é a vida afetiva. O
mesmo ocorre com a psicopatologia, a psiquiatria, diversas correntes da filosofia, as ciências
cognitivas, enfim, com todos aqueles que se debruçam sobre o tema. Dessa forma, nos perdemos
algumas vezes na teia de conceitos cuja articulação era extremamente delicada. Quando o
desânimo tomou conta e a tarefa parecia praticamente irrealizável, dada a nossa formação e o
tempo exíguo para sua execução, lembramo-nos do conselho de outro eminente habitante das
margens do Danúbio, Wittgenstein, que dizia mais ou menos o seguinte: se um problema parece
sem saída (mesmo que provisoriamente) mude de problema! Seguindo esta máxima, deixamos
de lado a necessidade de avançar sobre o tema geral dos afetos e de fornecer uma definição
teórica consistente sobre o que é o afeto em psicanálise e passamos a tomar este assunto como
resolvido. O assunto estava resolvido porque decidimos que usaríamos a noção de afetividade tal
como ela aparece no senso comum da língua e no nosso campo teórico. Afeto, em nosso artigo, é
simplesmente aquilo que costumamos designar como emoções, humor, sentimentos, sensações,
paixões, enfim, tudo aquilo pelo qual o sujeito costuma ser afetado. A única certeza que
possuíamos quanto à teoria geral dos afetos, é que exploraríamos a vida afetiva como um campo
experiencial que, apesar de produzir reflexos imediatos no que se costuma chamar de
interioridade, ocorre na interseção entre o eu e os objetos que constituem o mundo exterior
(mesmo que esta separação não se encontre ainda estabilizada). O uso que fizemos da noção de
afeto é o de um termo geralmente determinado por uma relação afetiva, esta sim constitutiva do
universo teórico por nós pesquisado. Como os leitores terão a oportunidade de perceber, esta
2

visão sobre a afetividade tem em Ferenczi um defensor incontestável.


Após este gesto banal de mudança de foco, nossas idéias passaram a fluir sem as barreiras
anteriores e pudemos nos reencontrar com a figura ímpar de Ferenczi. Ao invés de escrevermos
um texto sobre como este autor circunscrevia a noção de afeto, decidimos mapear quais seriam
os campos afetivos por ele privilegiados. Deixamos de lado a discussão sobre se Ferenczi
expressava, mais do que Freud ou outros autores, a vida emocional na teoria e na clínica, para
defendermos a idéia de que cada autor, de acordo com o universo de interesses que o move e o
tipo de paciente com o qual tem contato, necessariamente privilegia diferentes aspectos da
afetividade ao longo de sua obra. Se Ferenczi suscita cada vez mais interesse no meio
psicanalítico, isto decorre da semelhança entre os problemas com os quais ele se deparou e os
percalços enfrentados por todos nós na clínica atual. A semelhança às vezes é tamanha que
ficamos tentados, contrariamente a tudo que ele defendeu, a nos definirmos como ferenczianos, a
nos condenarmos a repetir seu caminho, a sermos, como diz Teresa Pinheiro (1995, p.21)
“viúvas de Ferenczi”. A nosso ver, esta é uma estratégia perigosa contra os desafios que temos
pela frente, porque, mais do que ser repetido, acreditamos que Ferenczi preferiria ser usado.
Dividiremos, então, nosso uso particular de seu legado em três aspectos. Começaremos
apresentando quais eram as vivências afetivas descritas por Ferenczi como constitutivas do
encontro clínico, discutindo a relação entre suas proposições técnicas e a expressão de
determinados afetos, até então exteriores à exploração psicanalítica. A seguir, ensaiaremos uma
espécie de “metapsicologia dos afetos”, buscando apresentar aspectos decisivos da visão
ferencziana sobre o desenvolvimento emocional. Por fim, teceremos considerações sobre os
transtornos do universo afetivo no tipo clínico que ele primeiramente descreveu, o sujeito
traumatizado.

A exploração do universo afetivo do analista: as inovações técnicas

Sándor Ferenczi foi pioneiro ao pensar mais detidamente o lugar do analista e ao


interpretar também as expressões afetivas não-verbais de seus pacientes, sendo um crítico tenaz
da postura neutra e passiva tradicionalmente atribuída ao psicanalista. À medida que ia
avançando em sua prática clínica, munido do entusiasmo terapêutico que lhe era peculiar,
desenvolveu e sugeriu novas técnicas que lançaram luz sobre questões pouco privilegiadas por
seus contemporâneos como, por exemplo, o lugar do afeto na clínica. Nos textos de Ferenczi,
percebe-se que o afeto surge menos enquanto energia móvel, passível de ser transferida,
deslocada e fixada, e mais como uma propriedade do sujeito. O afeto aí não se limita a um
3

movimento interno ao aparelho psíquico, ele é antes um fenômeno que ocorre no contexto
relacional com o mundo exterior, tendo conseqüências práticas na relação transferencial. Nesta
seção, pretendemos abordar algumas expressões afetivas privilegiadas por Ferenczi no
acolhimento de seus analisandos. Não se trata, como afirmamos antes, de contrapor um Ferenczi
“afetivo” na clínica a um Freud “representacional” na teoria, mas simplesmente de explorar o
resultado, no campo dos afetos, das experiências clínicas heterodoxas de Ferenczi. De nosso
ponto de vista, estas trouxeram à tona alguns aspectos da experiência emocional no encontro
analítico que antes estavam em repouso, esmaecidos pelo desinteresse ou por um desejo
deliberado de esquecimento. São eles: 1- a valorização, na transferência e na contratransferência,
da experiência emocional da relação com o objeto materno; 2- o papel do analista como
possibilitador de vivências novas no campo afetivo e não somente como receptáculo
transferencial de investimentos afetivos infantis; 3- a valorização das emoções do analista como
veículo para a análise de casos onde as resistências impunham bloqueios diversos daqueles
produzidos pelo recalque ou por outros mecanismos de defesa descritos por Freud; 4- a
articulação entre atividade e afetividade, com a conseqüente valorização dos afetos que
acompanham a ação livre do sujeito nas sessões em detrimento dos afetos que acompanham o
seu aprisionamento passivo; 5- a exploração de uma espécie de comunicação afetiva direta, não
verbalizada, entre analista e paciente, mediada pelo que alguns autores designam pelo
controverso nome de empatia3; 6- o analista na função de testemunha afetiva, ou seja, como
aquele que também ratifica a realidade de uma experiência afetiva presente ou passada e, por
fim; 7- o analista passa a desempenhar mais um papel, o de catalisador dos afetos4 que, antes
sem lugar, adquirem direito de existência. Embora cada um destes itens não vá ser discutido por
nós em separado, o itinerário que percorreremos neste artigo os terá sempre como pano de fundo,
já que foram extraídos das diversas proposições técnicas levadas a cabo por Ferenczi.
De certo ponto de vista, as investigações técnicas de Ferenczi podem ser encaradas como
uma resposta à famosa “virada de 1920-1923” na obra de Freud, ou seja, a introdução da nova
dualidade pulsional entre vida e morte e a elaboração da segunda tópica. A virada impôs à
comunidade analítica questões importantes relativas ao futuro da psicanálise enquanto método
terapêutico, já que a combinação da repetição com a destrutividade apresentava-se como um
oponente praticamente invencível ao êxito clínico. Dentre os analistas que buscaram combater

3 O conceito de empatia em psicanálise ganhou relevo principalmente através da obra de Kohut (1959) mas, segundo
Rachman (1997), Ferenczi teria sido o pioneiro a incluir a empatia na técnica psicanalítica. Dizemos que o conceito
de empatia é controverso porque os critérios para o acesso afetivo a outro psiquismo são difíceis de discriminar e
podem dar origem a arbitrariedades perigosas no manejo clínico. Este ponto é o alvo principal das críticas à validade
da empatia como ferramenta útil de trabalho.
4 Sobre este aspecto, bem como sobre o lugar de testemunha do analista, cf. Pinheiro, Verztman e Barbosa (2006).
4

esse pessimismo terapêutico, Ferenczi foi certamente o mais ousado e, também, o mais criticado.
Ele havia detectado uma desorientação entre os analistas - sobretudo com relação aos problemas
técnicos - decorrente do crescente descompasso entre os avanços da teoria e os da prática clínica.
Em contraste com o rápido desenvolvimento da teoria psicanalítica,
também a literatura negligenciou de forma singular o fator técnico-
terapêutico, que, entretanto, constituiu o núcleo primitivo do processo
e o verdadeiro estímulo de todos os avanços importantes da teoria.
Poder-se-ia ficar com a impressão de que a técnica permaneceu
imutável nesse meio tempo, tanto mais que o próprio Freud, como se
sabe, deu sempre provas de extrema reserva nesse domínio e não
publica há uma dezena de anos qualquer obra de ordem técnica.
(Ferenczi, 1924, p.226)

De fato, desde 1914, Freud não produzia trabalhos voltados especificamente para o manejo
da clínica e, com a elaboração de novas recomendações técnicas, Ferenczi buscava somente
preencher esse gap, dando continuidade ao que Freud deixara em suspenso. Pouco a pouco,
contudo, suas pesquisas o levaram a um pensamento original que acabaria por distanciá-lo de
Freud e, por muitos anos, também da cena psicanalítica. Muito embora as inovações técnicas de
Ferenczi já sejam suficientemente conhecidas do público psicanalítico em geral, faremos um
sobrevôo em suas principais proposições, buscando destacar as formas pelas quais ele privilegiou
o afeto na clínica.
A primeira dessas inovações, a técnica ativa5, surgiu como uma nova regra visando superar
fortes resistências à continuação do trabalho analítico e basicamente consistia na proibição de
atos que implicassem no desvio da libido do trabalho associativo. Na base dessa técnica,
portanto, estava a idéia de que o trabalho analítico sofria de uma retirada de investimento,
destinada a alimentar fantasias e provocar satisfações físicas inconscientes, o que propiciava o
enfraquecimento da relação transferencial. Nesses casos, era tarefa do analista observar o
paciente, detectar o desvio da libido do tratamento e intervir ativamente no sentido de provocar
um aumento de tensão e a reativação das associações. A atividade, entretanto, não era tanto do
analista e sim do paciente, que se via obrigado a trabalhar. Do ponto de vista de Ferenczi, a
técnica ativa era uma forma de levar ao extremo a técnica clássica da interpretação e, portanto,
absolutamente fiel às recomendações de Freud. Seu ponto de partida foi, aliás, a regra da
abstinência e da frustração, já indicada por Freud, a qual preconizava que o tratamento deveria
ser efetuado sob privação, em um estado de abstinência, levando o paciente a eximir-se da
satisfação que insistentemente buscava junto ao médico. A frustração seria o estado ideal e a
condição indispensável para o afloramento do material inconsciente.

5 Cf. Ferenczi (1919), (1920), (1924), (1925), (1926).


5

A proposta de Ferenczi, todavia, modificava significativamente o setting analítico já que,


mesmo insistindo na frustração, a ênfase era agora deslocada para o estabelecimento de uma
atmosfera de disponibilidade e confiança, como se pode perceber através de seu relato a respeito
de uma musicista croata que sofria de fobias e medos obsessivos. Ferenczi notou que, a despeito
de uma análise anterior, a evolução do caso não correspondia à profundidade da compreensão
teórica da paciente a respeito de seus complexos inconscientes. Foi então que, durante uma
sessão, a jovem aludiu a um refrão de música popular cantado com freqüência por sua irmã mais
velha.
Após ter hesitado muito, a paciente disse-me o texto bastante
equívoco da canção e depois emudeceu demoradamente; eu a fiz
confessar que era na melodia da canção que tinha pensado. Pedi-lhe
logo que a cantasse. Mas foram necessárias mais duas sessões até que
ela decidisse cantar a canção tal como a imaginava. (...) Mas nem por
isso a resistência cessou; confessou-me, não sem reticências, que sua
irmã tinha o hábito de cantar esse refrão acompanhado de gestos
expressivos e desprovidos de qualquer equívoco (...). Finalmente,
pedi-lhe que se levantasse e repetisse a canção exatamente como tinha
visto interpretada por sua irmã. Após inúmeras tentativas frustradas e
acessos de desânimo, a paciente acabou por mostrar-se uma perfeita
cançonetista (...). E, a partir de então, pareceu encontrar prazer nessas
exibições, decidindo dedicar-lhes suas sessões de análise. Quando me
dei conta disso, observei-lhe que já sabíamos que ela gostava muito de
mostrar seus diversos talentos e que, por trás de sua modéstia,
escondia-se um não menos desejo de agradar; e agora, bastava de
cantoria e de dança, era preciso trabalhar. (Ferenczi, 1920, pp.113-14)

Segundo Ferenczi, foi apenas a partir dessas encenações que o trabalho de análise pôde
prosseguir, acompanhado de importantes lembranças infantis e verdadeiros insights. Desde o
abandono do método catártico o procedimento padrão era a interpretação e os psicanalistas
encorajavam seus pacientes a utilizarem apenas a via da expressão verbal. Diante da resposta
positiva da paciente, contudo, Ferenczi tomou esse tipo de intervenção como modelo e insistiu
para que ela confrontasse outros sintomas, realizando as ações que suscitavam mais angústia. A
jovem foi assim convidada a tocar piano e a imitar a direção de uma orquestra, mas também a
interromper seus jogos anais durante a sessão, entre outras tarefas. Com a ajuda da atividade, ou
seja, da reprodução da ação acompanhada de todo furor afetivo correspondente, o prazer latente
em exibir-se e o onanismo inconsciente da paciente - razão de seu excessivo pudor - foram
evidenciados.
Este trabalho só foi possível porque Ferenczi estava muito atento ao comportamento desta
paciente no setting. Ferenczi era especialmente sensível ao que, posteriormente, Balint (1949,
p.224), chamou de elementos formais do comportamento do paciente na situação analítica, isto é,
as mudanças de expressão do rosto, a forma de deitar no divã, de usar a voz, de iniciar e terminar
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a sessão, uma doença intercorrente, etc. Nos casos em que uma verdadeira estagnação se
instalava e em que se verificava estarem analista e paciente derrapando em um excesso de
associações verbais infrutíferas, cabia ao analista acessar um conteúdo emocional,
provavelmente oriundo de experiências não-verbais, e incitar o paciente a colocá-los em ação,
para que depois pudessem ser postos em palavras. Era como se o paciente devesse aprender com
o analista a se expressar plenamente pela primeira vez. Como ficou evidenciado no caso desta
paciente, o procedimento da técnica ativa se fazia em dois tempos:
Nossa atividade pode, neste caso, decompor-se em duas fases. Na
primeira, fui levado a dar à paciente, que tinha fobia de certos atos, a
ordem de executar esses atos, apesar de seu caráter desagradável.
Quando as tendências até aí reprimidas se converteram em fontes de
prazer, a paciente foi incitada, numa segunda fase, a defender-se:
certas ações lhe foram interditadas. As injunções tiveram por
conseqüência torná-la plenamente consciente de certos impulsos, até
então recalcados ou que se exprimiam sob uma forma rudimentar
irreconhecível, acabando por conscientizar-se deles como
representações que lhe eram agradáveis, enquanto moções de desejos.
Em seguida, quando lhe foi recusada a satisfação proporcionada pela
ação agora impregnada de voluptuosidade, as moções psíquicas
despertadas encontraram o caminho do material psíquico recalcado
desde longa data e das lembranças infantis; sem o que o analista teve
que interpretá-las como a repetição de algo infantil e reconstruir os
detalhes e as circunstâncias dos eventos infantis com a ajuda do
material analítico fornecido por outros meios (sonhos, associações,
etc.). Foi então fácil fazer a paciente aceitar essas construções, pois ela
não podia negar, nem para si mesma nem para o médico, que acabara
de experimentar agora essas presumidas atividades e sentir os afetos
correspondentes. Portanto, a “atividade” que consideramos até então
como uma entidade decompõe-se na intimação e na execução
sistemáticas de injunções e de proibições, embora mantendo
constantemente a “situação de abstinência” segundo Freud. (Ferenczi,
1920, pp.115-6)

De início Freud mostrou-se muito receptivo em relação à proposição de Ferenczi, já que,


de certa forma, foi o primeiro a adotar uma atitude mais ativa em alguns casos de fobia e neurose
obsessiva. Mas alertou que esta medida técnica corria o risco de transformar-se numa tentação
perigosa para os analistas mais novatos e menos experientes, que poderiam vê-la como fim
último da análise e não como um meio de aprofundar a investigação psicanalítica clássica 6.

6 Em 1924, quando Ferenczi publicou conjuntamente com Rank “Perspectivas da Psicanálise”, houve um certo
temor de que as idéias ali contidas pudessem incitar um movimento dissidente. Na época, Freud foi cauteloso e
acalmou os ânimos em uma carta circular: “[E]u considero que a obra comum é uma correção da minha concepção
do papel da repetição ou do agir (Agieren) na análise. Diante disso eu tinha, até aqui, receios em relação a esses
incidentes, essas experiências vividas (Erlebnisse), como vocês as chamam hoje, como fracassos desagradáveis. R. e
F. chamam atenção para seu caráter inevitável e para o possível aproveitamento dessa experiência” (Freud, 1924,
p.50). O trabalho conjunto, publicado apenas parcialmente nas Obras Completas de Ferenczi, pretendia, entre outras
coisas, responder ao texto de Freud, de 1914, “Recordar, repetir e elaborar”, insistindo na idéia de que a repetição
não é apenas resistência à rememoração e sim um importante material do inconsciente.
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Gradativamente, contudo, o próprio Ferenczi foi percebendo os impasses e fracassos da técnica


ativa. Notou que seu uso com freqüência aproximava a relação entre médico e paciente da
relação entre mestre e aluno, colocando os pacientes em uma posição demasiado submissa de
modo que, mesmo quando profundamente insatisfeitos, eles não ousavam expressar abertamente
sua revolta. Ao reconhecer os excessos no campo da atividade, fez uma série de autocríticas,
acabando por abandoná-la em prol de outra inovação técnica, o princípio de relaxamento e
neocatarse, apresentado em 1929 no XI Congresso Internacional de Psicanálise de Oxford.
Ferenczi constatou que não se podia atribuir tudo o que se passava na sessão ao aumento
de tensão provocado pela frustração, como se fazia na técnica ativa. Além do aumento de tensão
pela frustração, era interessante provocar um relaxamento, quando certas ações fossem
permitidas. Ele acreditava que uma maior liberdade na análise ajudaria o paciente a esgotar as
agressões possíveis, o que permitiria uma transferência positiva e melhores resultados. Segundo
Ferenczi, ao estabelecer uma atmosfera de confiança sólida entre médico e paciente, juntamente
com o favorecimento de mais liberdade, sintomas histéricos corporais surgiriam pela primeira
vez. O passado reconstruído a partir desses “símbolos mnêmicos corporais” estaria muito mais
próximo, em sua natureza, de uma verdadeira lembrança (1930a, p.62) já que, no relaxamento,
esses sintomas corporais conduziam a um estágio do desenvolvimento em que “não estando o
órgão do pensamento completamente formado, só eram registradas as lembranças físicas”
(1930a, p.65). A neocatarse revalorizava o fator traumático na etiologia das neuroses, mas de um
modo diferente do método preconizado por Breuer e por Freud no início da psicanálise.
Enquanto a paleocatarse provocava erupções emocionais e mnêmicas fragmentárias e
passageiras, através do estado hipnótico induzido pelo médico, a neocatarse seria uma
confirmação do inconsciente, resultado do longo trabalho analítico de construção e
preenchimento da lacuna deixada pelo trauma. O objetivo da nova técnica era possibilitar a
transformação da tendência à repetição em rememoração, mas operou-se aí mais uma mudança
bastante original para a época: a aproximação entre a análise de adultos e a análise de crianças.
Ferenczi buscava um acesso à criança traumatizada que existia no adulto e acreditava ser
necessário dirigir-se diretamente a ela, o que seria apenas possível através de uma mudança na
atmosfera emocional da análise. “Do que esses neuróticos precisam é de ser verdadeiramente
adotados e de que se os deixe pela primeira vez saborear as bem-aventuranças de uma infância
normal”. (Ferenczi, 1930a, p.67)
A técnica de frustração e laisser-faire evidenciava mais uma vez a preocupação de Ferenczi
com o afeto do analista na clínica, exigindo um maior controle de sua contra-transferência. Era
fundamental que o analista estivesse atento para não intervir de acordo com a satisfação das
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próprias tendências sádicas ou libidinais inconfessadas, esquecendo assim o “bem-estar” dos


pacientes. Ferenczi foi, aliás, um dos primeiros a enfatizar a importância decisiva da análise
pessoal do analista.
É aí que nos defrontamos com resistências não desprezíveis, não as do
paciente mas as nossas próprias resistências. Devemos, antes de tudo,
ser analisados muitíssimo bem, e conhecer a fundo todos os nossos
traços de caráter desagradáveis, exteriores ou interiores, a fim de
estarmos prevenidos para quase tudo o que as associações dos nossos
pacientes possam conter de ódio e de desprezo escondidos. (Ferenczi,
1933, p.99)

Ferenczi critica, assim, uma certa hipocrisia profissional do analista que recebe o paciente
e promete escutá-lo com total atenção e interesse quando, em realidade, é possível que “certos
traços, externos ou internos, do paciente nos sejam dificilmente suportáveis” (Ferenczi, 1933,
p.99). Ele dará cada vez mais relevo à importância da sinceridade e da simpatia autêntica do
analista em relação ao analisando. Ganhar a confiança do analisando torna-se um objetivo
primordial na clínica de Ferenczi. “Essa confiança é aquele algo que estabelece o contraste entre
o presente e um passado insuportável e traumatogênico” (1933, p.100). Embora entenda que para
o neurótico há uma dose inevitável de sofrimento na análise, e que, em tese, ele deve aprender a
suportá-lo, Ferenczi fala de uma “economia de sofrimento” (1930a, p.61), ressaltando a
preocupação de que a prática analítica não se tornasse uma repetição do trauma infantil.
Ao comparar a atitude inicialmente obstinada e fixa do paciente com a
flexibilidade que resultava do relaxamento, pode-se constatar nesses
casos que o paciente vê a reserva severa e fria do analista como a
continuação da luta infantil contra a autoridade dos adultos, e que
repete agora as reações caracteriais e sintomáticas que estiveram na
base de sua neurose propriamente dita. (1930a, p.61)

A participação afetiva do analista no processo analítico, muitas vezes tida como temerária
e desnecessária, foi levada mais longe ainda com sua derradeira inovação técnica, a análise
mútua. Intimamente ligada a sua concepção de trauma, que abordaremos mais adiante, essa
técnica pretendia alcançar pontos cegos da análise, produzidos por partes clivadas, inacessíveis,
tanto do paciente como do analista. A análise mútua pode ser considerada como o resultado dos
questionamentos de Ferenczi sobre sua própria análise com Freud, de quem ele costumava se
queixar por não ter trabalhado a transferência negativa durante o tratamento. Esta técnica não se
encontra formulada em suas obras completas, já que Ferenczi faleceu antes de poder elaborá-la
da forma como pretendia, mas podemos ter algum acesso a ela através das notas e observações
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de seu “Diário Clínico”7. Nasceu de uma experiência concreta com uma jovem paciente, a partir
de manifestações contra-transferenciais, onde analista e analisanda se analisaram por algum
tempo. Ferenczi nos mostra, ele mesmo, como chegou à idéia de mutualidade através de seus
experimentos clínicos.
A minha ‘terapia ativa’ era um primeiro ataque inconsciente contra
essa situação [resistência]. Pelo exagero e pela revelação do caráter
sádico-educativo evidente dessa metodologia, percebi claramente que
ela era insustentável. À maneira de uma teoria nova (um novo delírio),
veio a teoria do relaxamento, o laisser-faire completo a respeito do
paciente, a repressão brutal das reações emocionais naturalmente
humanas. Mas os pacientes recusam a falsa doçura do mestre irritado
em seu foro íntimo, tal como antes a brutalidade do analista ‘ativo’
que deixa o paciente sofrer tormentos infernais e espera ainda que lhe
agradeçam por isso. E acaba-se finalmente por indagar: não será
natural, e também oportuno, ser francamente um ser humano dotado
de emoções, ora capaz de empatia, ora abertamente irritado? O que
quer dizer: abandonar toda a ‘técnica’ e mostrar-se sem disfarces, tal
como se exige do paciente. Quando se começa a agir desse modo, o
paciente chegará, com toda a lógica, a exprimir sua suspeita quanto à
análise imperfeita do analista e, despertando de sua timidez, ousará
pouco a pouco lhe apontar tal traço paranóide ou outro levado ao
exagero; finalmente, chegará à proposta de análise mútua. (Ferenczi,
1932, p.132)

Através de suas proposições técnicas, Ferenczi procurou satisfazer ao máximo as


expectativas de seus pacientes, aceitando casos considerados não-analisáveis por outros
analistas. Não é à toa que ficou conhecido entre seus contemporâneos como salvador dos
fracassos dos outros e especialista dos casos limite. Como afirma Dupont (1990, p.26), Ferenczi,
tanto como analista quanto como analisando, teve a experiência da insuficiência do dispositivo
clássico e buscou inventar para seus pacientes o que desejou e, de seu ponto de vista, não obteve
em sua análise com Freud.
Ferenczi foi continuamente criticado por suas inovações técnicas que, desde 1919,
ocuparam um lugar central em seu pensamento. No final de sua vida, as pequenas censuras de
Freud haviam se transformado em grave desacordo, cavando um verdadeiro distanciamento entre
os dois homens. Quando, em 1933, Ferenczi faleceu, após uma longa e dolorosa doença, sua
posição no meio psicanalítico encontrava-se abalada. Na notícia necrológica redigida por Freud,
fica claro que, para além das possíveis modificações teóricas, uma das questões principais do
desacordo foi justamente a diferente compreensão da dimensão terapêutica e do lugar do analista
na clínica.

7 O Diário Clínico de Ferenczi, escrito entre janeiro e outubro de 1932, é constituído por notas privadas a
respeito de questões transferenciais e contratransferenciais de seus casos mais difíceis.
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Quando de seu regresso de um período de trabalho na América,


pareceu retrair-se cada vez mais para um trabalho solitário, embora
anteriormente participasse muito ativamente de tudo o que acontecia
nos círculos psicanalíticos. Sabíamos que um só problema vinha
monopolizando seu interesse. Nele, a necessidade de curar e de
ajudar havia-se tornado soberana. Provavelmente ele se havia
proposto objetivos que, mediante nossos meios terapêuticos, estão,
atualmente, totalmente fora de nosso alcance. De fontes inesgotáveis
de emoção, brotara nele a convicção de que se podia efetuar muito
mais com os pacientes, se se lhes desse todo aquele amor que tinham
desejado profundamente quando crianças. Ele queria descobrir o
modo como isto podia ser realizado, dentro do quadro referencial da
situação psicanalítica; e como não o conseguisse, mantinha-se
afastado, talvez não mais seguro de que pudesse haver concordância
com seus amigos. (Freud, 1933, pp.224-25, grifos nossos)

Como tentamos mostrar, Ferenczi levou ao extremo a convicção de que o analista deveria,
em alguns casos, modificar a atmosfera emocional da sessão e ser um verdadeiro parceiro da
troca analítica, aí contribuindo com sua personalidade e qualidades reais, como atesta sua idéia
de uma análise mútua. Sabe-se que a técnica acabou falhando, mas é possível afirmar que, com
esse tipo de avanço proposto por Ferenczi, a psicanálise pós Freud se abriu à possibilidade de
uma técnica empática, na qual as reações emocionais dos analistas tornaram-se mais importantes
do que as técnicas interpretativas tradicionais. Green (2002) chama esse analista que entra em
cena, sobretudo a partir de Ferenczi, de analista-terapeuta, ou seja, um analista mais preocupado
com a função dos objetos externos reais na vida do sujeito e, conseqüentemente, com o próprio
papel de sua subjetividade na clínica.
Sem renunciar à interpretação, passaram [os herdeiros de Ferenczi] a
privilegiar a relação afetiva que, conforme os esquemas teóricos, foi
chamada de ‘fusional’, ‘holding’, ou ‘empática’, englobando este
último termo (...) uma multiplicidade ambígua de significações e
chegando até a constituir, segundo certos psicanalistas a condição sine
qua non de qualquer análise. (Chertok e Stengers, 1990, p.160)

Esse novo modelo de setting implicará, portanto, uma mudança radical da perspectiva
clínica e um distanciamento das recomendações de Freud. A orientação técnica de Freud a
respeito da função do analista permaneceu basicamente a mesma; ele o considerava como um
instrumento da análise, enquanto Ferenczi o concebia como partícipe da análise. Na psicanálise
clássica, o afeto se manifestava na relação analítica basicamente através da noção de
transferência, ou seja, do deslocamento de afeto do passado para o presente tendo a figura do
analista como suporte, e da idéia de resistência afetiva. Para Freud, contudo, a transferência,
enquanto ferramenta clínica, nunca subentende o envolvimento emocional e afetivo do analista,
enquanto para Ferenczi, ao contrário, o analista implica-se emocionalmente na análise,
11

acreditando poder restituir ao paciente o ‘tato’8 que lhe faltou ao longo do desenvolvimento e,
assim, reparar o trauma infantil precoce.
Podemos dizer que o cerne dessas questões era uma nova ênfase na importância crucial da
experiência afetiva do aqui e agora da transferência analítica9. Ferenczi resgata o lugar da
experiência vivida, que passa a ser a condição do verdadeiro insight analítico. Dito de outra
forma, ele radicaliza a idéia de transferência, tomando-a praticamente ao pé da letra. Não se pode
esquecer, entretanto, da diferença entre os tipos clínicos privilegiados por cada um nesta época:
enquanto Freud dedicava-se quase que exclusivamente a análises didáticas, cujos candidatos
eram presumidamente neuróticos não muito graves, Ferenczi recebia pacientes muito
perturbados para os quais a via clássica da interpretação se mostrava insuficiente. Tais pacientes
exigiam uma postura muito mais interativa e criativa do analista. No caso da musicista croata,
por exemplo, era como se ele buscasse unificar a vertente intelectual da tomada de consciência
com a vertente emocional da encenação do afeto.
Sem dúvida, Freud tem razão em ensinar-nos que a análise obtém uma
vitória quando consegue substituir o agir pela rememoração; mas
penso haver também vantagem em suscitar um material atuado
importante, que poderá em seguida ser transformado em
rememoração. (...) Ninguém pode enforcar um ladrão antes de tê-lo
agarrado. (Ferenczi, 1931, p.74)

A meta de Ferenczi era tornar possível uma verdadeira relação objetal, uma relação na qual
o sujeito pudesse sentir que o objeto se tornou externo (conseqüentemente ele pode ter vivências
de interioridade) e passou a lhe propiciar infinitas sensações, desejos, apropriações de sentido,
enigmas, desconhecimentos e frustrações - ressaltando que estas vivências já se encontram
vinculadas ao sujeito. Estes pacientes lhe ensinaram que esta maneira de existir, ao contrário do
que pensava Freud, não é um caminho natural da pulsão, mas sim algo que depende do outro
para ser fundada. A partir deste ato de fundação viabilizado pela cena analítica, o analista poderá
ocupar um outro lugar, o lugar de fazer vacilar qualquer ideal absolutizante ao qual o sujeito

8 Em 1928, no artigo “Elasticidade da técnica psicanalítica”, Ferenczi apresenta de forma mais clara uma noção
muito presente em seus textos, a de tato psicológico, que consiste na capacidade de perceber quando uma
comunicação ou reação é ou não oportuna. Segundo Ferenczi, o tato é a faculdade de ‘sentir com’ (Einfühlung), de
colocar-se no diapasão do paciente. Para Pinheiro (1995), “[o] conceito de tato é uma questão central neste texto de
1928. O tato (...) pode ser também compreendido como a capacidade de se representar o vivido do paciente. O tato é
uma distância justa, nem a mais nem a menos, um poder ‘sentir com’ sem ‘ser como’. O conceito de tato torna-se
fundamental para a compreensão de sua proposta técnica, assim como a revisão dos conceitos que participavam da
pré-história e da história da teoria da clínica freudiana” (p.110).
9 “Na transferência, será dada a ocasião de receber a proteção e o apoio que faltaram no momento do trauma. O

amor e a força do analista, supondo-se que a confiança nele seja suficientemente profunda e suficientemente grande,
agem como um amplexo de uma mãe amorosa e de um pai protetor. (...) Os sentimentos positivos da transferência
fornecem, de certo modo a posteriori, o contra-investimento que não pôde constituir-se no momento do trauma”
(Ferenczi, 1932, p.104).
12

passa a aderir. O analista assume, assim, a imagem do catalisador de afetos, funcionando como
um catalisador dos sentidos dos quais o objeto é portador.
O analista seria, na concepção de Ferenczi, um possibilitador da
introjeção. Ele catalisaria a força do sentido absoluto referido ao
objeto, ampliando os muitos sentidos possíveis. A função do analista,
nestes casos, é abrir para o paciente a possibilidade polissêmica,
apontando para a parcialidade, visando re-escrever sua história. O
catalisador não é propriamente uma função transferencial, mas uma
função do analista. É um possibilitador da introjeção, que tem como
suporte o movimento transferencial. (Pinheiro, Verztman e Barbosa
2006, p.297)

Como se pode perceber, uma discussão a respeito do conceito de introjeção é fundamental


para avançarmos no estudo da afetividade na obra ferencziana.

Relações afetivas precoces: da introjeção à ternura

Através do conceito de introjeção e da idéia de ternura, Ferenczi descreveu modelos


afetivos precoces distintos daqueles pensados até então pelo movimento psicanalítico. Introjeção
e ternura representam, assim, o ponto de partida e o ponto de chegada de uma complexa
trajetória teórica que inovou nossa capacidade de compreensão a respeito do que é próprio ao
universo infantil e não pode ser reduzido à experiência pulsional. Ferenczi abriu a possibilidade
de um olhar diferente sobre a experiência de ser e sobre a articulação do domínio de si e do
universo libidinal, entre inúmeros outros avanços.
Quando a noção de introjeção foi introduzida em 1909 (e reorganizada em 1912), o
conceito de identificação em psicanálise se limitava à identificação histérica. Neste modelo, a
identificação correspondia a uma segunda etapa da relação com o objeto: a entrada no mundo
interno de traços de objetos anteriormente amados e sua posterior incorporação ao terreno do eu
e das fantasias. A identificação histérica era a forma de conservar a relação com o objeto que
teve que ser abandonado na realidade, em função da castração ou outros limites. Ferenczi
inverteu a seqüência proposta por Freud, oferecendo uma nova descrição da capacidade
neurótica de amar:
É essa união entre os objetos amados e nós mesmos, essa fusão desses
objetos com o nosso ego, que designamos por introjeção e – repito –
estimo que o mecanismo dinâmico de todo amor objetal e de toda
transferência sobre um objeto, é uma extensão do ego, uma
introjeção. (Ferenczi, 1912, p. 61)

Ou ainda:
13

Insisti nesta ‘introdução’, para sublinhar que considero todo amor


objetal (ou toda transferência) como uma extensão do ego ou
introjeção, no indivíduo normal como no neurótico. (Ferenczi, 1912,
p. 61)

Na origem da relação com qualquer objeto encontra-se a introjeção, isto é, a capacidade de


lidar com o excesso pulsional através da ação de estender ao mundo a maior quantidade possível
de interesse, transformando os objetos interessantes em partes do eu. A relação objetal ao estilo
freudiano seria, assim, uma segunda etapa, posterior à introjeção. O investimento objetal só seria
possível após uma espécie de fusão do ego com partes do mundo, num processo que tentaria
negar a alteridade do objeto, a estranheza que ele poderia causar. É preciso um sentimento de
familiaridade com o objeto para que o amor possa capturá-lo e toda a trama de conflitos descrita
por Freud possa produzir o recalcamento e outros mecanismos de defesa.
Nosso interesse nesse pequeno recorte sobre a introjeção é circunscrever o germe de uma
noção de afetividade em Ferenczi, a qual destacará a importância da continuidade ou mesmo da
mistura com o ambiente como aquela que preside a relação com o outro em etapas precoces da
vida. É preciso se misturar com o outro para amá-lo! É preciso torná-lo parte do eu! Assim
procedendo eu incluo o mundo dentro de mim, mas também passo a ser incluído no mundo.
Posteriormente - serão necessários muitos anos para esta dura percepção - Ferenczi irá postular
que o mundo precisa estar disponível e maleável para que o sujeito possa se misturar a ele, para
que o processo introjetivo não encontre obstáculos. Neste momento, entretanto, ele ainda
acreditava que é da natureza do neurótico a tendência à introjeção e, por conseguinte, à
transferência e ao deslocamento. Transferência e deslocamento seriam os sucedâneos do
processo introjetivo e explicariam os excessos quase cômicos que estariam na base do contágio
histérico ou das ramificações do pensamento obsessivo.
Pode-se dizer que há duas etapas no processo introjetivo, embora Ferenczi não tenha
organizado as coisas exatamente deste modo. Numa etapa que consideramos posterior e que é
mais tematizada pelos seus comentadores (e pelo próprio autor) a introjeção é uma necessidade
econômica frente a energias livremente flutuantes no psiquismo, as quais são mal toleradas e
seriam quase que incompatíveis com a vida, caso não se ligassem a objetos no mundo. É
importante frisar que a ligação proposta por Ferenczi não é em primeiro lugar satisfação
pulsional, como já mencionamos, mas ligação no eu. Tal mecanismo seria da ordem da
necessidade já que após a introjeção – aqui introjeção implica sempre em excesso de inclusão do
mundo dentro de si – o processo de recalque desfaria várias das ligações consideradas
incompatíveis com o eu e recolocaria um quantum de energia livre e flutuante no psiquismo. O
modo de amar do neurótico teria, assim, móveis eminentemente egoístas, a ligação com o outro
14

seria uma maneira de permitir o amor a si mesmo. Dizemos que esta etapa da introjeção é
posterior porque ela sempre supõe um processo anterior que desfaz ligações, neste caso o
recalque. Imaginar esta descrição da introjeção como origem seria impossível a não ser que se
suponha esta energia livremente flutuante (ao modo freudiano) como pulsão originária sem
objeto, o que requereria explicações extremamente especulativas das quais Ferenczi procurava
escapar.
A outra etapa que passaremos a descrever pode perfeitamente passar pelos crivos da
observação e da experiência e sua proposição é incrivelmente original para a época. Ferenczi
afirmou que no início da vida o bebê tem uma experiência monista do mundo:
Pode-se pensar que o recém-nascido experimenta todas as coisas de
maneira monista, quer se trate de um estímulo externo ou de um
processo psíquico. Só mais tarde a criança aprenderá a ‘malícia das
coisas’, aquelas que são inacessíveis à introspecção, rebeldes à
vontade, ao passo que outras ficam à sua disposição e submetidas à
sua vontade. O monismo converte-se dualismo. (Ferenczi, 1909, p.85)

O monismo da experiência do bebê é a matriz da introjeção porque ele não necessita de


qualquer processo de desligamento energético como sua condição de possibilidade. Esta mistura
com o ambiente será a forma mais primitiva de relação do sujeito com o mundo e o neurótico
tentará reavê-la operando a introjeção. A introjeção remonta a um modo arcaico de
pertencimento e será uma defesa primitiva contra a diferenciação e a separação. O dualismo será
instaurado após o que ele denomina de primeira projeção:
Quando a criança exclui ‘os objetos’ da massa de suas percepções, até
então unitárias, para formar com eles o mundo externo e, pela primeira
vez, opõe-lhes o ‘ego’ que lhe pertence mais diretamente; quando
distingue, pela primeira vez, o percebido objetivo (Empfindung) do
vivenciado subjetivo (Gefühl), está efetuando, na realidade, a sua
primeira operação projetiva, a ‘projeção primitiva’. (Ferenczi, 1909,
p.85)

Mais tarde, em 1926, quando o conceito de introjeção já podia ser utilizado com mais
propriedade, Ferenczi correlacionou de modo mais enfático introjeção e universo monista da
criança, como podemos verificar nesta citação de “O problema da afirmação do desprazer”.
Recorrendo à terminologia psicanalítica, designei a primeira fase,
aquela em que só existe o ego e em que este se apropria de todo o
universo da experiência, como o período de introjeção; a segunda fase,
aquela em que a onipotência é atribuída a potências exteriores, como o
período de projeção; quanto ao último estágio de desenvolvimento,
pude concebê-lo como o período em que os dois mecanismos são
utilizados em partes iguais e compensam-se mutuamente. (Ferenczi,
1926b, p.399)
15

É exatamente este processo projetivo criador do dualismo sujeito/mundo que produzirá


barreiras, as quais o neurótico tentará evitar através da introjeção. A introjeção neurótica será
então uma tentativa, geralmente mal sucedida, de retorno ao monismo (ou introjeção primitiva);
do mesmo modo que o paranóico tentará se defender destas barreiras projetando partes do ego no
mundo externo (através da projeção paranóica).
A proposição de uma origem monista para o psiquismo obrigará Ferenczi a entrar em
contato de forma cada vez mais intensa com experiências afetivas que não poderão ser descritas
através da ótica dualista. O seu conceito de introjeção, apesar de mostrar grande pujança desde
que foi formulado (tendo influenciado profundamente a literatura psicanalítica), entrou numa
fase de hibernação, adquirindo conseqüência teórica apenas no final de sua obra e vida, quando
sua clínica e sua relação com Freud já tinham passado por sensíveis transformações. Nesta
época, contudo, Ferenczi não possuía ferramentas conceituais para descrever adequadamente um
mundo onde o eu e o outro não apresentam linha clara de descontinuidade, porque a introjeção
ainda era descrita sob um modo sexual. Ele se aproximava de um terreno no qual a continuidade
com o mundo, característica do monismo, não era inteiramente compatível com um
funcionamento em termos sexuais - um dispositivo baseado no aumento de tensão com
conseqüente descarga, determinado pela separação mais clara com o ambiente - mas ele só
encontrava a sexualidade como móvel heuristicamente satisfatório para seu modelo. Isto explica
porque Ferenczi conferiu tanta relevância à energia livremente flutuante como base para a
introjeção. A hipótese econômica o mantinha atrelado à sexualidade infantil e a Freud. Não havia
nada além ou aquém da indomável pulsão sexual e ele permanecia fiel no seu assentimento sobre
a importância desta na etiologia das neuroses.
Como todos sabemos, a obstinação de Ferenczi em se aproximar de um universo que não
poderia ser descrito por um vocabulário adulto, pós-edípico, o levou a experiências nem sempre
bem sucedidas ou hipóteses nem sempre bem fundamentadas. Já descrevemos as idas e vindas de
suas proposições técnicas, que contribuíram, com seus erros e acertos, para desdobramentos
clínicos e teóricos sem os quais nossa capacidade terapêutica com sujeitos que não se adequam
ao tipo clínico clássico estaria infinitamente mais pobre. Como ele afirma, há situações nas quais
se a questão “não for o bastante simples, se não estiver verdadeiramente adaptada à inteligência
de uma criança, então o diálogo é interrompido rapidamente (...)” (Ferenczi, 1931, p. 72).
O assunto do qual pretendemos tratar a partir de agora se situa no entrecruzamento dessas
questões: qual é a experiência emocional compatível com a “inteligência de uma criança”? As
vivências de amor descritas a partir da hipótese da sexualidade infantil constituem todo o
universo afetivo da criança? Quais tipos de satisfação estão implicados na relação com o outro
16

materno na tenra infância? A procura de tais respostas levou Ferenczi a perceber um universo
relacional no qual a criança encontrava no outro um parceiro para sua ação e não um rival ou um
objeto de prazer. Esta região silenciosa do humano, esta mistura identitária com o outro, esta
relação assimétrica onde o papel do outro é unicamente suprir minhas necessidades (sem
confundir necessidades com satisfação pulsional), tudo isto e muito mais fez com que Ferenczi
inventasse o tema que o consagrou, que o tornou praticamente um autor contemporâneo: o
universo da ternura.
Ferenczi formulou mais completamente a teoria da ternura apenas no final de sua obra em
“Confusão de língua entre os adultos e a criança” (Ferenczi, 1933), quando a utilizou para
descrever sua teoria do trauma, da qual nos ocuparemos posteriormente. Na verdade, o que ele
descreveu sobre a ternura não é exatamente uma teoria das etapas precoces do desenvolvimento
porque ela é eminentemente o contraponto da linguagem da paixão, esta sim conhecida dos
psicanalistas. É como se o autor afirmasse: existe uma outra forma de linguagem, de experiência
emocional e de campo de ação próprios à infância que são distintos do universo passional,
pulsional, sexual, tensional com o qual estamos acostumados a lidar. Ocorre, todavia, que as
características daquilo que ele denomina de ternura estão mais implícitas que explícitas nos seus
textos e foi tarefa da posteridade discriminar quais são os elementos que a compõem. Sua morte
prematura o privou de nos acompanhar nesta jornada - tal como Moisés, ele atravessou o deserto
sem que lhe fosse permitido adentrar a terra prometida.
Ainda assim, mesmo não havendo terra prometida, não conheceríamos outros territórios
sem suas pistas. Algumas palavras transformaram-se em símbolos desta região da vida afetiva
denominada de ternura: lúdico, amor passivo, repouso do ego, espontaneidade. Como
propusemos anteriormente quando discorremos sobre a introjeção, para falar desta experiência
emocional Ferenczi dispunha apenas do vocabulário pulsional e foi a ele que recorreu para
descrever o estado de repouso egóico. Como em 1926 Freud já havia enunciado a segunda teoria
pulsional, Ferenczi utilizou a noção de intrincamento pulsional para falar de uma vivência de
neutralização entre as pulsões que produziria o estado de repouso:
Tudo se passa como se as duas espécies de pulsões se neutralizassem
mutuamente quando o ego se encontra em estado de repouso, à
maneira da eletricidade negativa e positiva num corpo elétrico inerte e
como se nos dois casos influências externas particulares fossem
necessárias para separar as duas espécies de correntes e torná-las de
novo ativas. (Ferenczi, 1926b, p. 398)

Este intrincamento pulsional, segundo propomos, permitiria um estado não conflitual que
refaria o momento originário no qual o repouso do aparelho psíquico era um acontecimento
17

freqüente e necessário. Como no artigo citado Ferenczi formulava as forças que levariam ao
reconhecimento e aceitação da realidade, a neutralização das pulsões permitiria todo o processo
porque em parte o sujeito estaria reencontrando uma realidade que já lhe era familiar, o estado
de repouso. Outro aspecto que podemos realçar nesta citação é a importância crescente que o
autor irá conferir às influências externas. Se, segundo o modelo que sugerimos, a neutralização
pulsional remontasse a um estado originário do aparelho psíquico, somente influências externas
poderiam transformar as pulsões em energias ativas. Ferenczi irá, nos anos seguintes,
obstinadamente buscar o que só poderia se realizar na relação com o outro - as “forças externas”
- e vai encontrar uma bifurcação no papel do outro que produzirá caminhos subjetivos
radicalmente distintos: o outro que reconhece a alteridade do universo infantil e o outro que não
a reconhece, tornando ativas pulsões que deveriam por mais tempo permanecer silenciosas.
Voltaremos a isto mais tarde.
No seu artigo seminal “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” (1929), Ferenczi
correlacionou, de modo absolutamente novo para a época, tonalidade pulsional e relação com o
ambiente. O que ele denominou de “neurose de privação” era um acontecimento clínico no qual
as expressões da pulsão de morte seriam determinadas pela forma com que o sujeito foi acolhido
em tenra infância pelo objeto materno. Ferenczi estava aplicando o seu modelo anterior no qual a
autonomia da atividade pulsional derivava diretamente de forças externas e isto não poderia
ocorrer precocemente sob pena da mortificação do psiquismo, de sua desvitalização. No texto o
autor usa a palavra “ternura” com um significado diverso da conotação negativa que ela recebia
em alguns de seus escritos técnicos, quando representava uma certa docilidade artificial na
relação com o analista. Ternura aqui significa “impulsões de vida positivas”:
Uma senhora, unilateralmente influenciada pela psicologia do ego, por
sinal muito inteligente, como eu lhe falasse da importância de
introduzir ‘impulsões de vida positivas’, ou seja, demonstrações de
ternura, em relação às crianças, fez-me de imediato esta objeção:
como é que isso pode conciliar-se com a importância que a psicanálise
atribui à sexualidade, na gênese das neuroses? (Ferenczi, 1929, p.51)

Ele pareceu ainda um pouco embaraçado pela questão formulada e terminou o artigo sem
respondê-la de modo mais satisfatório. Em “Análise de crianças com adultos” (1931) o
embaraço tornou-se ousadia e Ferenczi nos brindou com páginas marcantes de seu gênio
criativo. O termo “lúdico”, e seus derivados, ganhou cada vez mais espaço em seu pensamento,
sendo comum Ferenczi aludir a uma ação de tomar o lugar do outro como uma brincadeira,
como uma forma de se aproximar dos papéis por ele desempenhados sem que isto implicasse em
sentimentos rivalitários, hostis ou de desejo sexual. A primeira aparição desta atividade lúdica
18

refere-se à atuação, na análise, daquilo que não podia ser associado livremente:
Obtive a prova disso quando, a partir desses procedimentos mais ou
menos lúdicos, alguns pacientes começaram a mergulhar numa
espécie de transe alucinatório, durante o qual encenavam diante de
mim acontecimentos traumáticos cuja lembrança inconsciente estava
igualmente dissimulada atrás das verbalizações lúdicas. (Ferenczi,
1931, p. 73)

O acesso a esta atividade lúdica só seria possível num setting onde o analista
desempenhasse um papel de parceiro, onde ele não precisasse obedecer à regra da frustração
como forma de ter acesso ao inconsciente. A possibilidade de brincar na cena analítica, de
experimentar pela primeira vez o silêncio da neutralização pulsional, permitiria o contato com
uma forma de amor que ainda não havia sido descrita em nossa disciplina. Ferenczi passou a ser
cada vez mais afirmativo com relação ao universo afetivo da criança, e tornou-se mais enfático
sobre a especificidade da diferença entre crianças e adultos, até asseverar que a ternura é a matriz
emocional do infans:
A esse respeito, gostaria de emitir a hipótese de que os movimentos de
expressão emocional da criança, sobretudo os libidinais, remontam
fundamentalmente à terna relação mãe-criança, e que os elementos de
malevolência, de arrebatamento passional e de perversão aberta são,
na maioria das vezes, conseqüências de um tratamento desprovido de
tato, por parte do ambiente. (Ferenczi, 1931, p.74)

A partir daí, ainda neste artigo, o autor passou a descrever o tipo clínico que o celebrizou -
o sujeito clivado oriundo do trauma - e não mais retornou a uma definição precisa sobre esta
relação terna com a mãe. Sublinhemos, entretanto, que a palavra libidinal presente em sua
hipótese demonstra que Ferenczi produziu uma bifurcação no seio de Eros e não rompeu com a
teoria da sexualidade infantil. A ternura é uma forma libidinal primária do período monista de
relação com o mundo e permanece produzindo efeitos mesmo após o período dualista. Caso o
adulto não respeite o tempo da criança, um outro vínculo libidinal impossível de ser
decodificado pela criança silenciará o sujeito, pois lançará a criança num mundo de exigências
onde o outro não é seu parceiro nem está ali para suprir suas necessidades. Um mundo onde não
há lugar para brincadeiras e onde o prazer pode estar do lado de lá.
Ao escrever sua “Confusão de línguas...” Ferenczi pagou o preço exigido de todos aqueles
que falam o que não se está preparado para ouvir. O artigo selou por muito tempo o papel
pejorativo conferido a seu autor no meio psicanalítico. Nele, Ferenczi realizou o que estava em
germe no texto sobre a introjeção de 1909, demarcando claramente dois universos lingüísticos
(mas podemos afirmar, experienciais e afetivos) presentes no desenvolvimento de um aparelho
19

psíquico que apresenta cada vez mais características relacionais. Paixão e ternura, adulto e
criança, serão campos cada vez mais complexos de diferenciação do humano, os quais
necessitarão de mediações para que as ações do sujeito possam ter a marca da pessoalidade. Do
ponto de vista do desenvolvimento, Ferenczi é taxativo: a ternura é anterior à paixão, não pode
ser um derivado sublimado desta e é a maneira propriamente infantil de se relacionar.
O autor inicialmente descreve a ternura de modo indireto, ou seja, retomando sua forma de
expressão, a maneira lúdica. Ele acrescenta alguns aspectos ao brincar, principalmente porque
ele não está se referindo a um brincar na cena analítica, mas ao lúdico na atividade da própria
criança. Há grande correlação entre lúdico e imaginação:
É assim que as crianças, quase todas sem exceção, brincam com a
idéia de ocupar o lugar do progenitor do mesmo sexo, para tornar-se o
cônjuge do sexo oposto, isto, sublinhe-se, apenas em imaginação. Na
realidade, elas não quereriam, nem poderiam, dispensar a ternura,
sobretudo a ternura materna. (Ferenczi, 1933, p.103)

Este jogo infantil entre realidade e imaginação, esta capacidade de brincar de faz-de-conta,
esta forma introjetiva de se tornar o outro para amá-lo, este exercício do desejo e da destruição
sem que estas ocorram na realidade; a fonte para todas estas possibilidades encontra-se na
ternura. A linguagem da paixão rompe com o faz-de-conta, exige que se leve os desejos a
conseqüências impensáveis na linguagem terna. O aspecto relacional do novo enquadre pode ser
aquilatado quando Ferenczi aponta para o adulto como guardião da ternura infantil, como
defensor do seu direito à imaginação10, como aquele que deve viabilizar o desenvolvimento da
linguagem da paixão apenas quando a criança estiver madura.
O último aspecto que gostaríamos de realçar sobre a teoria da ternura é o surgimento de
uma expressão pouco utilizada por Ferenczi, mas que será muito tematizada por outros autores,
sobretudo Balint: o amor passivo.
Devemos referir-nos aqui a idéias que Freud desenvolveu, há muito
tempo, quando sublinhava o fato de que a capacidade de sentir um
amor objetal era precedida de um estágio de identificação. Qualificarei
esse estágio como o do amor objetal passivo, ou estágio da ternura.
Indícios do amor de objeto já podem aparecer, mas somente enquanto

10 Esta função do adulto para o psiquismo, tal como concebida por Ferenczi, foi tematizada por Pinheiro (1995).
Para esta autora, “[a] noção de ‘adulto’ aparece freqüentemente nos textos de Ferenczi, recebendo um lugar e um
tratamento todo especiais. Levando em conta que o objeto externo tem papel fundamental na constituição do sujeito,
o personagem principal é o adulto” (op.cit., p.35). Ocupando este lugar de fonte externa de subjetivação, ele se torna
um dos pilares determinantes do destino psíquico do infans. Para Pinheiro, cabe a ele ser alguém que em
determinado momento terá vontade própria e ensinará à criança as básculas que dizem respeito ao jogo entre
verdade e mentira. Ele não pode, entretanto, apressar este aspecto de sua função, pois lhe cabe zelar pela assimetria
constitutiva da relação entre adulto e criança. Tal assimetria implica que o adulto veja na criança algo que esta
demorará ainda muito tempo para perceber: que a criança é um ser diferenciado, que tem necessidades próprias, as
quais devem ser garantidas pelo adulto.
20

fantasia, de forma lúdica. (Ferenczi, 1933, p.103)

Amor passivo significa fundamentalmente ser amado. A fonte fundamental de todo amor
ativo, de toda possibilidade de amar, é sua forma passiva. No mundo monista da criança amar
tem que equivaler a ser amado, portanto não pode haver conflito entre essas duas formas de amor
nesta etapa da vida. O direito ao amor passivo é a fonte da ternura11, um amor que o sujeito
introjeta, trazendo o outro para dentro de si. A introjeção, para retornarmos ao início desta seção,
não é introjeção de qualquer objeto, mas a transformação de passividade em atividade, a
atividade de alocar no espaço interno algo que já existia no campo relacional: a experiência de
amor passivo do qual o objeto é ao mesmo tempo mediador, avalista, símbolo e portador12.
Passaremos agora a descrever uma forma de organização na qual este direito foi abjetamente
violado.

O esgarçamento do universo afetivo: trauma e indiferença de si

Através de sua experiência clínica com pacientes muito graves, Ferenczi convenceu-se da
importância dos traumatismos externos, em especial o sexual, como fator patogênico. Embora
não negasse a origem do trauma a partir da fantasia, foi tal a multiplicidade de relatos e
confissões de pacientes em análise que diziam manter ou ter mantido relações sexuais com
crianças, que ele insistiu nessa vertente, em detrimento da idéia corrente na época de que tais
relatos teriam como origem “mentiras” histéricas. Ao retomar a teoria do trauma, especialmente
no final de sua vida, nos anos de 1930, Ferenczi foi acusado de retorno à época pré-psicanalítica
da Psicanálise. Freud mostrou-se profundamente decepcionado com o posicionamento de
Ferenczi, pedindo que ele reconsiderasse suas posições e evitasse publicar artigos por certo
tempo.
Não acredito mais que você se corrija, como eu me corrigi uma
geração mais cedo... Nos últimos dois anos, você se distanciou
sistematicamente de mim... Acredito estar objetivamente em
condições de lhe mostrar o erro teórico em sua construção, mas de que
adianta? Estou convencido de que você se tornou inacessível a
qualquer reconsideração. (Freud apud Dupont, 1990, p.17)

Naquele momento, entretanto, Ferenczi pouco se preocupou com os possíveis desvios

11 “A vida normal começa, portanto, por um amor de objeto passivo, exclusivo. Os bebês não amam, é preciso que
sejam amados”. (Ferenczi, 1932, p.236)
12 Sobre isso, cf. Torok (1995) e Pinheiro (1995). Ambas as autoras afirmam que o processo de introjeção não diz

respeito ao objeto, mas a algo do qual ele é portador. Para Torok (op.cit.), o que é introjetado é a pulsão mediada
pelo objeto. Para Pinheiro (op.cit.) o que é introjetado é o sentido do qual o objeto é fiador. Parece-nos que estas
duas propostas são complementares e se coadunam perfeitamente com a introjeção do amor passivo aqui defendida.
21

teóricos de suas idéias, tão impressionado estava com o impacto devastador do trauma. Na busca
de tornar suas novas descobertas claras para o meio psicanalítico, recorreu a uma cena
paradigmática de sedução para ilustrar o traumatismo, a famosa confusão de língua entre os
adultos e a criança.
[U]m adulto e uma criança amam-se; a criança tem fantasias lúdicas,
como desempenhar um papel maternal em relação ao adulto. O jogo
pode assumir uma forma erótica mas conserva-se, porém, sempre no
nível da ternura. Não é o que se passa com adultos que tiveram
tendências psicopatológicas, sobretudo se seu equilíbrio ou seu
autodomínio foram perturbados por qualquer infortúnio, pelo uso de
estupefacientes ou de substâncias tóxicas. Confundem as brincadeiras
infantis com os desejos de uma pessoa que atingiu a maturidade
sexual, e deixam-se arrastar para a prática de atos sexuais sem pensar
nas conseqüências. (Ferenczi, 1933, pp.101-2)

Infelizmente, pelo seu forte apelo imagético, a cena da sedução de uma criança por um
adulto acabou chamando mais atenção do que outras importantes questões formuladas ou
intuídas por Ferenczi. A cena tem como eixo central a idéia de que a criança percebe a investida
sexual do adulto, determinada pela linguagem genital da paixão, mas a percebe a partir de sua
própria linguagem, a da ternura, e de seu universo lúdico. Ao dizer que a cena traumática é uma
confusão de línguas, isto é, ao enfatizar a má-compreensão por parte do adulto das manifestações
eróticas próprias da infância, tomando-as como análogas às manifestações da sexualidade adulta,
Ferenczi deu um importante relevo ao papel do ambiente na traumatogênese. Embora ele
estivesse preocupado com a realidade do acontecimento em si, a sedução concreta, o que se
depreende daí é uma definição diferente de trauma, o qual será menos considerado em seus
aspectos intrapsíquicos para ser encarado como resultado de graves falhas nas relações primárias
com o outro. Para Ferenczi não se tratava apenas de sedução e violação sexual, mas sobretudo de
violação psíquica pelo excesso de demanda ou privação de amor parental. O resultado da
interpretação confusa dos dois níveis eróticos é a confusão traumática e patológica na criança, já
que o adulto ignora suas necessidades afetivas mais básicas e fundamentais, pondo em risco o
processo identificatório. O adulto da vinheta clínica falhou especialmente em sua função de
suporte mediador entre a criança e o mundo pela cegueira momentânea produzida por sua
excitação. Desse modo, o processo introjetivo fica comprometido, pois no lugar da introjeção do
objeto idealizado situa-se a incorporação13 do adulto enquanto o que violenta e invade, e não
enquanto o que ama e acolhe.
Retomando a vinheta de Ferenczi, ao restabelecer-se de seu estado apaixonado, o adulto

13 A distinção entre introjeção e incorporação é especialmente aprofundada por Abraham e Torok (1995).
22

reage com culpa e nega que algo tenha se passado. A criança recorre então a um terceiro que,
atordoado com o relato, atribui as palavras da criança a fantasias infantis, produzindo uma
segunda negação. Segundo Ferenczi, era o desmentido, e não a linguagem da paixão em si, o
principal fator traumático, sendo por isso de suma importância que a situação analítica não
reproduzisse a cena traumática ao reafirmar a negação do ocorrido. Como um de nós já salientou
em outro lugar, o elemento central da teoria da traumatogênese não seria a linguagem da paixão,
mas sim a linguagem da indiferença (Verztman, 2002). Ou seja, o trauma só se instala realmente
porque as instâncias de mediação entre os dois jogos de linguagem falharam.
(...) quando se abandonou qualquer esperança de ajuda por parte de
uma terceira pessoa, e se sente as próprias forças de autodefesa
totalmente esgotadas, nada mais resta senão esperar pela clemência do
agressor. Se me submeto tão completamente à vontade dele que deixo
de existir, se, portanto, não me oponho a ele, talvez me conceda salvar
a vida... (Ferenczi, 1932, p.143)

O trauma quebra alguma coisa de muito importante no sujeito. Após os sentimentos de


irrealidade e perplexidade gerados pelo desmentido, instala-se um tipo particular de submissão,
através de um mecanismo que Ferenczi denominou de identificação com o agressor. Na busca de
preservar a boa imagem do objeto, a criança assume a culpa do adulto. Este desaparece da
realidade externa, deixa de existir como um outro e ocupa todo o espaço de reconhecimento de si
da criança, impossibilitando a construção de um universo subjetivo próprio e pessoal. De certo
modo, a identificação com o agressor é uma tentativa desesperada de introjeção, uma busca de
simbolizar o ocorrido, já que o desmentido anula os demais vestígios do ato exceto a culpa do
adulto.
As crianças sentem-se física e moralmente sem defesa, sua
personalidade é ainda frágil demais para poder protestar (...). Mas esse
medo, quando atinge seu ponto culminante, obriga-as a submeter-se
automaticamente à vontade do agressor (...) Por identificação,
digamos, por introjeção do agressor, este desaparece enquanto
realidade exterior, e torna-se intrapsíquico (...). [A] agressão deixa de
existir enquanto realidade exterior e estereotipada, e, no decorrer do
transe traumático, a criança consegue manter a situação de ternura
anterior. (Ferenczi, 1933, p.102)

A criança é então forçada, não só no plano emocional, mas também intelectual, a um


amadurecimento precoce, a entender que deve adequar-se ao mundo tal qual ele é e que nada
pode fazer para transformá-lo. É dessa impotência e agonia da vida psíquica que nos fala
Ferenczi, na qual impera a imposição do sentido pelo agressor, conturbando a construção do Eu.
O trauma não se limita, portanto, à imposição excessiva e violenta de uma excitação sexual
23

prematura, ele se constitui na falha da resposta do objeto externo a uma situação de


fragmentação do eu. Ferenczi retrata uma criança traumatizada, mutilada em sua unidade
narcísica, o que nos leva a concluir que, em sua concepção do trauma, o que é desmentido é o
próprio sujeito.
Uma das principais conseqüências do trauma será a clivagem, mecanismo através do qual o
sujeito se retira da experiência traumática primária e cinde sua subjetividade. Assegurando uma
sobrevivência paradoxal, ele se descentra de si mesmo e se distancia de sua vida subjetiva. Para
Ferenczi, a clivagem produz no sujeito uma espécie de mimetismo que, “tal como um reflexo
condicionado, incita apenas a repetições” (Ferenczi, 1932, p.259). Nunca é demais lembrar que
não se trata da mesma clivagem evocada por Freud em 1937, a cisão de um eu dividido entre
duas cadeias representativas independentes que não se reconheciam ou influenciavam. Na
clivagem sugerida por Ferenczi, embora as partes cindidas também não se reconheçam, elas
entram em conflito e produzem sintomas. Na ausência de um melhor termo, Ferenczi mantém a
palavra recalque para demonstrar a presença de conflito, mas o que é recalcado é o próprio eu e
não os atributos, crenças ou desejos a ele referidos.
A memória é, portanto, uma coleção de cicatrizes de choques no Ego.
O pavor dissolve tão totalmente a rigidez do Ego (resistência) que o
material do Ego torna-se como que fotoquimicamente modelável – e,
de fato, ele é sempre modelado – pela excitação exterior. Em lugar de
me afirmar, é o mundo exterior (uma vontade estranha) que se afirma
às minhas custas, que se impõe a mim e recalca o Ego. (Será essa a
forma original do ‘recalcamento’?) (Ferenczi, 1932, p.150)

O curioso é que o recalque evocado por Ferenczi não é obra do supereu, ele não faz parte
do sujeito, de seu domínio de reconhecimento pessoal; trata-se de um recalque exterior. Este
recalque exterior dissolve as correlações anteriores entre o eu e a vida afetiva do sujeito.
Segundo Ferenczi, “o ego abandona total ou parcialmente o corpo, a maior parte das vezes
através da cabeça, e observa desde o exterior ou do alto o destino posterior do corpo, sobretudo
os seus sofrimentos” (1930b, p.241). Mas, cabe lembrar, isso não implica necessariamente uma
frieza ou insensibilidade por parte do sujeito traumatizado, ele é antes desconectado daqueles
afetos que dão sentido à existência e ao trauma e, por isso, apresenta inclusive um estranhamento
extremo ao reconhecer que alguns sentimentos e sensações lhe dizem respeito. Ele se refugia na
posição de observador e no discurso da terceira pessoa, “torna-se de súbito como que um olho
presbita e pode deslocar-se facilmente nas extensões infinitas. (Desviar-se da dor e voltar-se para
os eventos exteriores)” (1930b, p.241).
A pessoa divide-se num ser psíquico de puro saber que observa os
eventos a partir de fora, e num corpo totalmente insensível. Na medida
24

em que o ser psíquico ainda é acessível aos sentimentos, incide todo o


seu interesse no único sentimento que subsiste de todo o processo, isto
é, o que o agressor sente. (Ferenczi, 1932, p. 142)

Ao ser recalcada pela linguagem da paixão, a linguagem da ternura foi violentamente


clivada do eu, não podendo mais ser reconhecida por estes sujeitos. Na clínica cotidiana,
percebe-se que embora eles não expressem qualquer sentimento terno em relação a si mesmos,
costumam apresentar uma grande disposição para a solidariedade e o cuidado ao outro. Não se
trata aqui de um jogo de sedução histérico ou de uma formação reativa obsessiva, o que
percebemos nesses sujeitos é uma tentativa desesperada de contato consigo mesmo através do
cuidado ao outro. Através do cuidado ao outro eles deixam de ser observadores para serem
agentes. Os dados de uma pesquisa clínica14 realizada com pacientes melancólicos e portadores
de uma doença auto-imune podem nos fazer aquilatar o peso desta hipótese. Aurora é portadora
de lupus eritematoso sistêmico desde a adolescência. Uma das características de sua doença é a
potencialidade para o acometimento renal. Para esta paciente, uma das funções mais importantes
de seu corpo é a capacidade deste servir para a doação de órgãos, para a resolução de problemas
graves por que passam outras pessoas. Um de seus quadros depressivos teve como fator
desencadeante a descoberta de que não poderia doar seus rins, mesmo que não houvesse, naquele
momento, nenhuma pessoa conhecida necessitando do órgão. Nesta mesma pesquisa nos chamou
atenção o fato de que em uma amostra tão pequena (11 pacientes) tenha sido significativa a
escolha dos pacientes pela profissão de auxiliar de enfermagem (4 pacientes). Outra paciente
dizia que o mais terrível quando do surgimento das crises agudas da doença não era o sofrimento
pelo qual seu corpo passava, mas sim a impossibilidade de comparecer às reuniões do grupo de
lúpicas do hospital onde se tratava. Sua função em tais grupos era mostrar que estava bem e com
isso dar esperança a todos os doentes. Poderíamos dar inúmeros outros exemplos desta
necessidade. O desamparo do outro é a única via que estas pessoas encontram para entrar em
contato com seu próprio desamparo, é um dos poucos vestígios perceptíveis do trauma. O outro,
neste caso, não é um outro, é o que outrora foi si mesmo necessitando urgentemente ser
reconhecido por um adulto como desprovido de suprimentos básicos do ambiente. Esta forma
particular de expressão da ternura não sucumbiu ao modo desafetivizado próprio ao
funcionamento do observador. A sobrevivência, para o exterior, da ternura é uma via possível de
ser explorada na clínica. Na relação transferencial, por exemplo, ela pode ser deslocada para o
cuidado ao analista (Pinheiro, Verztman e Barbosa, 2006). Tal capacidade empática, a qual
torna o sujeito especialmente sensível ao sofrimento do outro, estava certamente presente na

14 Cf. Pinheiro, Verztman, Venturi, Caravelli e Canosa (2006).


25

concepção da técnica da análise mútua que expusemos mais acima. Nesta mesma linha, Ferenczi
evoca um sonho típico no qual um bebê ou uma criança muito pequena se mostra sábia diante
dos familiares.
O medo diante de adultos enfurecidos, de certo modo, transforma por
assim dizer a criança em psiquiatra; para proteger-se do perigo que
representam os adultos sem controle, ela deve, em primeiro lugar,
saber identificar-se por completo com eles. É incrível o que podemos
realmente aprender com as nossas ‘crianças sábias’, os neuróticos.
(Ferenczi, 1933, p.105)

Se o ambiente é demasiadamente decepcionante e intrusivo, o sujeito será forçado a tomar


conta de si mesmo e como uma tentativa precária de simbolização, a parte clivada pode se tornar
prematuramente adulta e auto-maternante. O sujeito traumatizado é muitas vezes o depositário
dos fardos familiares, aquele encarregado de resolver os conflitos dos outros. O cerne deste
mecanismo é adquirir segurança externa pagando um alto preço, com o sacrifício da segurança
interna, já que a culpa é transferida para dentro do sujeito15, o qual se torna o responsável pela
falta de amor. Ao mesmo tempo, conserva-se assim a esperança de controle onipotente sobre a
maldade, nutrindo a possibilidade de desfrutar de novo da paz e da ternura perdidas. Qualquer
que seja a solução encontrada, o que está em questão é sempre um empobrecimento do eu. Para
tais sujeitos, ser o outro é simplesmente a única condição de existência, a única possibilidade
identificatória, um outro em cujo núcleo repousa o enigma de uma culpa impossível de se
decifrar.
O elemento impossível de ser introjetado, como notado, é a culpa
edípica do adulto. A criança não possui vocabulário para correlacionar
a linguagem da mímesis com o crime da sexualidade, entretanto, ela é
capaz de assumir todos os outros aspectos da culpa, tais como a
comiseração, a imputação compulsiva de responsabilidade a si, a
percepção de ter cometido um ato condenável, dentro da sua forma de
usar a linguagem. Se caracterizarmos a ternura como uma modalidade
de expressão do desejo relativamente independente, podemos sugerir
que no traumatizado a culpa se dirija eminentemente a desejos ternos.
Se a culpa, pelo mecanismo de identificação com o agressor, ocupa
um alto posto na hierarquia moral do sujeito, sendo impossível
manter-se neutro diante dela, o único desejo reconhecido pela criança
como capaz de ser imputado como seu móvel é o desejo mimético de
ser. Esta é a maneira pela qual a culpa passional do adulto é degradada
no universo psíquico da criança tornando-se culpa por ser. Percebo

15 Recentemente, ao nos confrontarmos com a literatura psicanalítica sobre a vergonha, pudemos compreender
melhor como a culpa do adulto pode ser introjetada pela criança na teoria do trauma de Ferenczi. Tisseron (1992) foi
o primeiro autor a apontar para a importância da vergonha de si como conseqüência da cena traumática. Como a
culpa é uma emoção posterior na ontogênese se comparada à vergonha, esta última pode ser a emoção penosa
conhecida e utilizada pela criança, que a atrela à própria identidade e a transforma em vergonha de si. Sobre as
articulações entre vergonha e identidade conseqüentes a relações traumáticas com o ambiente, podemos indicar
também Zygouris (1995); Verztman (2005); Pinheiro, Verztman, Venturi e Barbosa (2006); Pinheiro (2005) e Green
(2003).
26

alguma afinidade entre esta modalidade paradoxal de culpa e a culpa


narcísica, definida por Freud como angústia diante da perda do amor
parental. (Verztman, 2002, p.74)

Como se pode perceber, a teoria do trauma proposta por Ferenczi comporta muito mais
elementos do que a cena de sedução e pode ser aplicada a situações em que o elemento da
violência sexual esteja ausente. Sistematizando o que pudemos observar sobre as conseqüências
afetivas do trauma, para Ferenczi, o sujeito sensível do ideal de interiorização romântico,
dilacerado pelo seu excesso de sentimento e desejo, é apenas um dos destinos psíquicos
possíveis; há outros, mesmo que não estejamos falando de psicose. O sujeito traumatizado
ferencziano é, ao contrário dos psicóticos, alguém inteiramente subsumido à lei, mas uma lei que
sempre lhe será exterior, pois é a marca de sua abdicação de si mesmo. Esta saída criativa que o
defende contra outras formas mais severas de adoecimento, cobra seu preço exatamente na esfera
da afetividade. A insegurança sobre seus próprios sentimentos, a anestesia psíquica, a sensação
de máxima idiossincrasia no mundo dos humanos, o esmaecimento da tonalidade emocional, a
dificuldade de decifração dos estímulos que emanam do corpo, são algumas das formas de
sofrimento por que passam tais pessoas, sofrimento este que, segundo elas, será redimido por um
neném sábio que habita dentro de suas mentes, um híbrido adulto/criança que encontrará a saída
se observar de forma correta o mundo, envolvendo-se afetivamente o mínimo possível com
aquilo que ele (a criança) deixou de ser. Este verdadeiro esgarçamento da vida afetiva, da relação
entre afeto e o eu, reconheçamos, deve sua primeira descrição ao gênio clínico de Ferenczi.

Conclusão
Ferenczi ressaltou a importância do papel da mãe e dos traumatismos, abrindo caminho
para a compreensão das carências e fracassos ambientais precoces. Para ele, os afetos
despertados na contra-transferência eram uma ferramenta indispensável para acessar o
sofrimento do sujeito traumatizado. Acreditava que a perlaboração dos afetos acontecia
essencialmente no domínio do encontro analítico, “através da avaliação das mudanças afetivas
recíprocas” (Borgogno, 2003, p. 11) do par analista-analisando. Como bem sublinhou Haynal
(2003), Ferenczi nunca abordava a questão do afeto em si mesma, tomando-a sempre no
contexto da situação analítica, na transferência e na contra-transferência.
Ferenczi foi o único a trazê-lo [o tema do afeto] à luz, e isso em uma
época na qual o afeto era tido como algo estrangeiro, até mesmo
perigoso, o que Freud exprimiu por exemplo através de seu temor de
que a análise de uma relação íntima pudesse estar a perigo por
‘alguma outra coisa, indeterminável’ (Freud a Ferenczi, 21.04.12).
(Haynal, 2003, p.71)
27

Ferenczi estava preocupado em oferecer alternativas a um certo paradigma clínico ainda


sem lugar na psicanálise. Seu intuito não era substituir o paradigma anterior (freudiano e outros)
e sim aumentar nosso repertório clínico e teórico para lidar com um tipo de sofrimento para o
qual a psicanálise ainda não tinha respostas. Os grandes impasses da clínica atual, em
consonância com as transformações culturais contemporâneas, constantemente nos seduzem a
buscar em Ferenczi, e naqueles por ele influenciados, uma bússola para encontrar saídas
aparentemente tranqüilas. Com isso, corre-se o risco de escorregar para uma relação
excessivamente estável do analista com seus conceitos, técnicas e teoria, postura que Ferenczi
sempre combateu. Em sua época ele lutava contra aspectos sacralizados e consagrados da teoria
e técnica freudianas que poderiam antecipar verdades e impedir, assim, a produção de um saber
construído no encontro analítico singular. Tudo o que Ferenczi não esperaria de nós, voltamos a
repetir, é que nos tornássemos seus dóceis discípulos, passando a encontrar todas as respostas em
suas teorias e experimentos clínicos. Sermos seus herdeiros significa simplesmente conhecer seu
percurso, aprender com seus erros, sermos persistentes no que fazemos e acreditarmos em novas
teorias construídas com nossos clientes. Nesse sentido, Ferenczi é uma fonte inesgotável de
inspiração para momentos em que certo desmapeamento teórico turva a nossa visão. Seu
conselho nessas horas difíceis certamente seria: esqueçam-se de mim e olhem para frente!

Julio Vertzmann
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