Afeto em Ferenczi
Afeto em Ferenczi
Afeto em Ferenczi
Resumo: O artigo tem como objetivo investigar o uso do afeto na obra de Sándor Ferenczi.
Busca apresentar quais as vivências afetivas descritas por ele como constitutivas do encontro
clínico, discutindo a relação entre suas proposições técnicas e a expressão de determinados
afetos que, até então, haviam sido descartados ou insuficientemente explorados pela psicanálise.
Além disso, procura delinear uma espécie de “metapsicologia dos afetos”, com o intuito de
apontar aspectos decisivos da visão ferencziana sobre o desenvolvimento emocional. Por fim,
aborda o universo afetivo do sujeito traumatizado.
Abstract: The article aims to investigate the use of affect in the work of Sándor Ferenczi. It
presents which affective experiences were described by the author as part of the analytical
encounter. It discusses the relation between his technical propositions and the expression of
specific affects that were, until then, discarded or insufficiently explored by Psychoanalysis. It
also provides a sort of "metapsychology of affects", with the purpose of pointing out the decisive
aspects of his thoughts on the emotional development. Finally it approaches the affective
universe of the traumatized subject.
Quando nos foi sugerido escrever um artigo sobre a dimensão do afeto na obra de Ferenczi,
a correlação entre assunto e autor pareceu evidente. Desde o início de sua trajetória, Ferenczi
privilegiou determinados aspectos do encontro analítico, os quais, na ausência de melhor termo,
poderiam ser qualificados de afetivos. Comportamentos ativos durante a sessão, manifestações
lúdicas, movimentos do corpo, expressões faciais, choro, silêncio, tiques, flatulência, eructações,
Ferenczi não se deixava deter teoricamente por nenhum material apresentado por seus clientes,
mesmo que a intencionalidade destas manifestações não fosse expressa em palavras. Parecia fácil
alocar todos estes acontecimentos em uma dimensão que ultrapassa o campo representacional, o
que, em psicanálise, é imediatamente confundido com afetividade. Estranhamos, contudo, o fato
de não termos encontrado em nenhuma base de dados procurada – e procuramos em várias –
textos específicos sobre o afeto em Ferenczi e supusemos, em função disto, que nossa tarefa não
seria tão rapidamente realizada como parecia à primeira vista.
Determinados problemas precisavam ser ultrapassados e o primeiro deles era chegar a uma
definição satisfatória a respeito do papel dos afetos em nosso campo. A psicanálise não é o único
saber sobre a subjetividade que deixa imensas lacunas na definição do que é a vida afetiva. O
mesmo ocorre com a psicopatologia, a psiquiatria, diversas correntes da filosofia, as ciências
cognitivas, enfim, com todos aqueles que se debruçam sobre o tema. Dessa forma, nos perdemos
algumas vezes na teia de conceitos cuja articulação era extremamente delicada. Quando o
desânimo tomou conta e a tarefa parecia praticamente irrealizável, dada a nossa formação e o
tempo exíguo para sua execução, lembramo-nos do conselho de outro eminente habitante das
margens do Danúbio, Wittgenstein, que dizia mais ou menos o seguinte: se um problema parece
sem saída (mesmo que provisoriamente) mude de problema! Seguindo esta máxima, deixamos
de lado a necessidade de avançar sobre o tema geral dos afetos e de fornecer uma definição
teórica consistente sobre o que é o afeto em psicanálise e passamos a tomar este assunto como
resolvido. O assunto estava resolvido porque decidimos que usaríamos a noção de afetividade tal
como ela aparece no senso comum da língua e no nosso campo teórico. Afeto, em nosso artigo, é
simplesmente aquilo que costumamos designar como emoções, humor, sentimentos, sensações,
paixões, enfim, tudo aquilo pelo qual o sujeito costuma ser afetado. A única certeza que
possuíamos quanto à teoria geral dos afetos, é que exploraríamos a vida afetiva como um campo
experiencial que, apesar de produzir reflexos imediatos no que se costuma chamar de
interioridade, ocorre na interseção entre o eu e os objetos que constituem o mundo exterior
(mesmo que esta separação não se encontre ainda estabilizada). O uso que fizemos da noção de
afeto é o de um termo geralmente determinado por uma relação afetiva, esta sim constitutiva do
universo teórico por nós pesquisado. Como os leitores terão a oportunidade de perceber, esta
2
movimento interno ao aparelho psíquico, ele é antes um fenômeno que ocorre no contexto
relacional com o mundo exterior, tendo conseqüências práticas na relação transferencial. Nesta
seção, pretendemos abordar algumas expressões afetivas privilegiadas por Ferenczi no
acolhimento de seus analisandos. Não se trata, como afirmamos antes, de contrapor um Ferenczi
“afetivo” na clínica a um Freud “representacional” na teoria, mas simplesmente de explorar o
resultado, no campo dos afetos, das experiências clínicas heterodoxas de Ferenczi. De nosso
ponto de vista, estas trouxeram à tona alguns aspectos da experiência emocional no encontro
analítico que antes estavam em repouso, esmaecidos pelo desinteresse ou por um desejo
deliberado de esquecimento. São eles: 1- a valorização, na transferência e na contratransferência,
da experiência emocional da relação com o objeto materno; 2- o papel do analista como
possibilitador de vivências novas no campo afetivo e não somente como receptáculo
transferencial de investimentos afetivos infantis; 3- a valorização das emoções do analista como
veículo para a análise de casos onde as resistências impunham bloqueios diversos daqueles
produzidos pelo recalque ou por outros mecanismos de defesa descritos por Freud; 4- a
articulação entre atividade e afetividade, com a conseqüente valorização dos afetos que
acompanham a ação livre do sujeito nas sessões em detrimento dos afetos que acompanham o
seu aprisionamento passivo; 5- a exploração de uma espécie de comunicação afetiva direta, não
verbalizada, entre analista e paciente, mediada pelo que alguns autores designam pelo
controverso nome de empatia3; 6- o analista na função de testemunha afetiva, ou seja, como
aquele que também ratifica a realidade de uma experiência afetiva presente ou passada e, por
fim; 7- o analista passa a desempenhar mais um papel, o de catalisador dos afetos4 que, antes
sem lugar, adquirem direito de existência. Embora cada um destes itens não vá ser discutido por
nós em separado, o itinerário que percorreremos neste artigo os terá sempre como pano de fundo,
já que foram extraídos das diversas proposições técnicas levadas a cabo por Ferenczi.
De certo ponto de vista, as investigações técnicas de Ferenczi podem ser encaradas como
uma resposta à famosa “virada de 1920-1923” na obra de Freud, ou seja, a introdução da nova
dualidade pulsional entre vida e morte e a elaboração da segunda tópica. A virada impôs à
comunidade analítica questões importantes relativas ao futuro da psicanálise enquanto método
terapêutico, já que a combinação da repetição com a destrutividade apresentava-se como um
oponente praticamente invencível ao êxito clínico. Dentre os analistas que buscaram combater
3 O conceito de empatia em psicanálise ganhou relevo principalmente através da obra de Kohut (1959) mas, segundo
Rachman (1997), Ferenczi teria sido o pioneiro a incluir a empatia na técnica psicanalítica. Dizemos que o conceito
de empatia é controverso porque os critérios para o acesso afetivo a outro psiquismo são difíceis de discriminar e
podem dar origem a arbitrariedades perigosas no manejo clínico. Este ponto é o alvo principal das críticas à validade
da empatia como ferramenta útil de trabalho.
4 Sobre este aspecto, bem como sobre o lugar de testemunha do analista, cf. Pinheiro, Verztman e Barbosa (2006).
4
esse pessimismo terapêutico, Ferenczi foi certamente o mais ousado e, também, o mais criticado.
Ele havia detectado uma desorientação entre os analistas - sobretudo com relação aos problemas
técnicos - decorrente do crescente descompasso entre os avanços da teoria e os da prática clínica.
Em contraste com o rápido desenvolvimento da teoria psicanalítica,
também a literatura negligenciou de forma singular o fator técnico-
terapêutico, que, entretanto, constituiu o núcleo primitivo do processo
e o verdadeiro estímulo de todos os avanços importantes da teoria.
Poder-se-ia ficar com a impressão de que a técnica permaneceu
imutável nesse meio tempo, tanto mais que o próprio Freud, como se
sabe, deu sempre provas de extrema reserva nesse domínio e não
publica há uma dezena de anos qualquer obra de ordem técnica.
(Ferenczi, 1924, p.226)
De fato, desde 1914, Freud não produzia trabalhos voltados especificamente para o manejo
da clínica e, com a elaboração de novas recomendações técnicas, Ferenczi buscava somente
preencher esse gap, dando continuidade ao que Freud deixara em suspenso. Pouco a pouco,
contudo, suas pesquisas o levaram a um pensamento original que acabaria por distanciá-lo de
Freud e, por muitos anos, também da cena psicanalítica. Muito embora as inovações técnicas de
Ferenczi já sejam suficientemente conhecidas do público psicanalítico em geral, faremos um
sobrevôo em suas principais proposições, buscando destacar as formas pelas quais ele privilegiou
o afeto na clínica.
A primeira dessas inovações, a técnica ativa5, surgiu como uma nova regra visando superar
fortes resistências à continuação do trabalho analítico e basicamente consistia na proibição de
atos que implicassem no desvio da libido do trabalho associativo. Na base dessa técnica,
portanto, estava a idéia de que o trabalho analítico sofria de uma retirada de investimento,
destinada a alimentar fantasias e provocar satisfações físicas inconscientes, o que propiciava o
enfraquecimento da relação transferencial. Nesses casos, era tarefa do analista observar o
paciente, detectar o desvio da libido do tratamento e intervir ativamente no sentido de provocar
um aumento de tensão e a reativação das associações. A atividade, entretanto, não era tanto do
analista e sim do paciente, que se via obrigado a trabalhar. Do ponto de vista de Ferenczi, a
técnica ativa era uma forma de levar ao extremo a técnica clássica da interpretação e, portanto,
absolutamente fiel às recomendações de Freud. Seu ponto de partida foi, aliás, a regra da
abstinência e da frustração, já indicada por Freud, a qual preconizava que o tratamento deveria
ser efetuado sob privação, em um estado de abstinência, levando o paciente a eximir-se da
satisfação que insistentemente buscava junto ao médico. A frustração seria o estado ideal e a
condição indispensável para o afloramento do material inconsciente.
Segundo Ferenczi, foi apenas a partir dessas encenações que o trabalho de análise pôde
prosseguir, acompanhado de importantes lembranças infantis e verdadeiros insights. Desde o
abandono do método catártico o procedimento padrão era a interpretação e os psicanalistas
encorajavam seus pacientes a utilizarem apenas a via da expressão verbal. Diante da resposta
positiva da paciente, contudo, Ferenczi tomou esse tipo de intervenção como modelo e insistiu
para que ela confrontasse outros sintomas, realizando as ações que suscitavam mais angústia. A
jovem foi assim convidada a tocar piano e a imitar a direção de uma orquestra, mas também a
interromper seus jogos anais durante a sessão, entre outras tarefas. Com a ajuda da atividade, ou
seja, da reprodução da ação acompanhada de todo furor afetivo correspondente, o prazer latente
em exibir-se e o onanismo inconsciente da paciente - razão de seu excessivo pudor - foram
evidenciados.
Este trabalho só foi possível porque Ferenczi estava muito atento ao comportamento desta
paciente no setting. Ferenczi era especialmente sensível ao que, posteriormente, Balint (1949,
p.224), chamou de elementos formais do comportamento do paciente na situação analítica, isto é,
as mudanças de expressão do rosto, a forma de deitar no divã, de usar a voz, de iniciar e terminar
6
a sessão, uma doença intercorrente, etc. Nos casos em que uma verdadeira estagnação se
instalava e em que se verificava estarem analista e paciente derrapando em um excesso de
associações verbais infrutíferas, cabia ao analista acessar um conteúdo emocional,
provavelmente oriundo de experiências não-verbais, e incitar o paciente a colocá-los em ação,
para que depois pudessem ser postos em palavras. Era como se o paciente devesse aprender com
o analista a se expressar plenamente pela primeira vez. Como ficou evidenciado no caso desta
paciente, o procedimento da técnica ativa se fazia em dois tempos:
Nossa atividade pode, neste caso, decompor-se em duas fases. Na
primeira, fui levado a dar à paciente, que tinha fobia de certos atos, a
ordem de executar esses atos, apesar de seu caráter desagradável.
Quando as tendências até aí reprimidas se converteram em fontes de
prazer, a paciente foi incitada, numa segunda fase, a defender-se:
certas ações lhe foram interditadas. As injunções tiveram por
conseqüência torná-la plenamente consciente de certos impulsos, até
então recalcados ou que se exprimiam sob uma forma rudimentar
irreconhecível, acabando por conscientizar-se deles como
representações que lhe eram agradáveis, enquanto moções de desejos.
Em seguida, quando lhe foi recusada a satisfação proporcionada pela
ação agora impregnada de voluptuosidade, as moções psíquicas
despertadas encontraram o caminho do material psíquico recalcado
desde longa data e das lembranças infantis; sem o que o analista teve
que interpretá-las como a repetição de algo infantil e reconstruir os
detalhes e as circunstâncias dos eventos infantis com a ajuda do
material analítico fornecido por outros meios (sonhos, associações,
etc.). Foi então fácil fazer a paciente aceitar essas construções, pois ela
não podia negar, nem para si mesma nem para o médico, que acabara
de experimentar agora essas presumidas atividades e sentir os afetos
correspondentes. Portanto, a “atividade” que consideramos até então
como uma entidade decompõe-se na intimação e na execução
sistemáticas de injunções e de proibições, embora mantendo
constantemente a “situação de abstinência” segundo Freud. (Ferenczi,
1920, pp.115-6)
6 Em 1924, quando Ferenczi publicou conjuntamente com Rank “Perspectivas da Psicanálise”, houve um certo
temor de que as idéias ali contidas pudessem incitar um movimento dissidente. Na época, Freud foi cauteloso e
acalmou os ânimos em uma carta circular: “[E]u considero que a obra comum é uma correção da minha concepção
do papel da repetição ou do agir (Agieren) na análise. Diante disso eu tinha, até aqui, receios em relação a esses
incidentes, essas experiências vividas (Erlebnisse), como vocês as chamam hoje, como fracassos desagradáveis. R. e
F. chamam atenção para seu caráter inevitável e para o possível aproveitamento dessa experiência” (Freud, 1924,
p.50). O trabalho conjunto, publicado apenas parcialmente nas Obras Completas de Ferenczi, pretendia, entre outras
coisas, responder ao texto de Freud, de 1914, “Recordar, repetir e elaborar”, insistindo na idéia de que a repetição
não é apenas resistência à rememoração e sim um importante material do inconsciente.
7
Ferenczi critica, assim, uma certa hipocrisia profissional do analista que recebe o paciente
e promete escutá-lo com total atenção e interesse quando, em realidade, é possível que “certos
traços, externos ou internos, do paciente nos sejam dificilmente suportáveis” (Ferenczi, 1933,
p.99). Ele dará cada vez mais relevo à importância da sinceridade e da simpatia autêntica do
analista em relação ao analisando. Ganhar a confiança do analisando torna-se um objetivo
primordial na clínica de Ferenczi. “Essa confiança é aquele algo que estabelece o contraste entre
o presente e um passado insuportável e traumatogênico” (1933, p.100). Embora entenda que para
o neurótico há uma dose inevitável de sofrimento na análise, e que, em tese, ele deve aprender a
suportá-lo, Ferenczi fala de uma “economia de sofrimento” (1930a, p.61), ressaltando a
preocupação de que a prática analítica não se tornasse uma repetição do trauma infantil.
Ao comparar a atitude inicialmente obstinada e fixa do paciente com a
flexibilidade que resultava do relaxamento, pode-se constatar nesses
casos que o paciente vê a reserva severa e fria do analista como a
continuação da luta infantil contra a autoridade dos adultos, e que
repete agora as reações caracteriais e sintomáticas que estiveram na
base de sua neurose propriamente dita. (1930a, p.61)
A participação afetiva do analista no processo analítico, muitas vezes tida como temerária
e desnecessária, foi levada mais longe ainda com sua derradeira inovação técnica, a análise
mútua. Intimamente ligada a sua concepção de trauma, que abordaremos mais adiante, essa
técnica pretendia alcançar pontos cegos da análise, produzidos por partes clivadas, inacessíveis,
tanto do paciente como do analista. A análise mútua pode ser considerada como o resultado dos
questionamentos de Ferenczi sobre sua própria análise com Freud, de quem ele costumava se
queixar por não ter trabalhado a transferência negativa durante o tratamento. Esta técnica não se
encontra formulada em suas obras completas, já que Ferenczi faleceu antes de poder elaborá-la
da forma como pretendia, mas podemos ter algum acesso a ela através das notas e observações
9
de seu “Diário Clínico”7. Nasceu de uma experiência concreta com uma jovem paciente, a partir
de manifestações contra-transferenciais, onde analista e analisanda se analisaram por algum
tempo. Ferenczi nos mostra, ele mesmo, como chegou à idéia de mutualidade através de seus
experimentos clínicos.
A minha ‘terapia ativa’ era um primeiro ataque inconsciente contra
essa situação [resistência]. Pelo exagero e pela revelação do caráter
sádico-educativo evidente dessa metodologia, percebi claramente que
ela era insustentável. À maneira de uma teoria nova (um novo delírio),
veio a teoria do relaxamento, o laisser-faire completo a respeito do
paciente, a repressão brutal das reações emocionais naturalmente
humanas. Mas os pacientes recusam a falsa doçura do mestre irritado
em seu foro íntimo, tal como antes a brutalidade do analista ‘ativo’
que deixa o paciente sofrer tormentos infernais e espera ainda que lhe
agradeçam por isso. E acaba-se finalmente por indagar: não será
natural, e também oportuno, ser francamente um ser humano dotado
de emoções, ora capaz de empatia, ora abertamente irritado? O que
quer dizer: abandonar toda a ‘técnica’ e mostrar-se sem disfarces, tal
como se exige do paciente. Quando se começa a agir desse modo, o
paciente chegará, com toda a lógica, a exprimir sua suspeita quanto à
análise imperfeita do analista e, despertando de sua timidez, ousará
pouco a pouco lhe apontar tal traço paranóide ou outro levado ao
exagero; finalmente, chegará à proposta de análise mútua. (Ferenczi,
1932, p.132)
7 O Diário Clínico de Ferenczi, escrito entre janeiro e outubro de 1932, é constituído por notas privadas a
respeito de questões transferenciais e contratransferenciais de seus casos mais difíceis.
10
Como tentamos mostrar, Ferenczi levou ao extremo a convicção de que o analista deveria,
em alguns casos, modificar a atmosfera emocional da sessão e ser um verdadeiro parceiro da
troca analítica, aí contribuindo com sua personalidade e qualidades reais, como atesta sua idéia
de uma análise mútua. Sabe-se que a técnica acabou falhando, mas é possível afirmar que, com
esse tipo de avanço proposto por Ferenczi, a psicanálise pós Freud se abriu à possibilidade de
uma técnica empática, na qual as reações emocionais dos analistas tornaram-se mais importantes
do que as técnicas interpretativas tradicionais. Green (2002) chama esse analista que entra em
cena, sobretudo a partir de Ferenczi, de analista-terapeuta, ou seja, um analista mais preocupado
com a função dos objetos externos reais na vida do sujeito e, conseqüentemente, com o próprio
papel de sua subjetividade na clínica.
Sem renunciar à interpretação, passaram [os herdeiros de Ferenczi] a
privilegiar a relação afetiva que, conforme os esquemas teóricos, foi
chamada de ‘fusional’, ‘holding’, ou ‘empática’, englobando este
último termo (...) uma multiplicidade ambígua de significações e
chegando até a constituir, segundo certos psicanalistas a condição sine
qua non de qualquer análise. (Chertok e Stengers, 1990, p.160)
Esse novo modelo de setting implicará, portanto, uma mudança radical da perspectiva
clínica e um distanciamento das recomendações de Freud. A orientação técnica de Freud a
respeito da função do analista permaneceu basicamente a mesma; ele o considerava como um
instrumento da análise, enquanto Ferenczi o concebia como partícipe da análise. Na psicanálise
clássica, o afeto se manifestava na relação analítica basicamente através da noção de
transferência, ou seja, do deslocamento de afeto do passado para o presente tendo a figura do
analista como suporte, e da idéia de resistência afetiva. Para Freud, contudo, a transferência,
enquanto ferramenta clínica, nunca subentende o envolvimento emocional e afetivo do analista,
enquanto para Ferenczi, ao contrário, o analista implica-se emocionalmente na análise,
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acreditando poder restituir ao paciente o ‘tato’8 que lhe faltou ao longo do desenvolvimento e,
assim, reparar o trauma infantil precoce.
Podemos dizer que o cerne dessas questões era uma nova ênfase na importância crucial da
experiência afetiva do aqui e agora da transferência analítica9. Ferenczi resgata o lugar da
experiência vivida, que passa a ser a condição do verdadeiro insight analítico. Dito de outra
forma, ele radicaliza a idéia de transferência, tomando-a praticamente ao pé da letra. Não se pode
esquecer, entretanto, da diferença entre os tipos clínicos privilegiados por cada um nesta época:
enquanto Freud dedicava-se quase que exclusivamente a análises didáticas, cujos candidatos
eram presumidamente neuróticos não muito graves, Ferenczi recebia pacientes muito
perturbados para os quais a via clássica da interpretação se mostrava insuficiente. Tais pacientes
exigiam uma postura muito mais interativa e criativa do analista. No caso da musicista croata,
por exemplo, era como se ele buscasse unificar a vertente intelectual da tomada de consciência
com a vertente emocional da encenação do afeto.
Sem dúvida, Freud tem razão em ensinar-nos que a análise obtém uma
vitória quando consegue substituir o agir pela rememoração; mas
penso haver também vantagem em suscitar um material atuado
importante, que poderá em seguida ser transformado em
rememoração. (...) Ninguém pode enforcar um ladrão antes de tê-lo
agarrado. (Ferenczi, 1931, p.74)
A meta de Ferenczi era tornar possível uma verdadeira relação objetal, uma relação na qual
o sujeito pudesse sentir que o objeto se tornou externo (conseqüentemente ele pode ter vivências
de interioridade) e passou a lhe propiciar infinitas sensações, desejos, apropriações de sentido,
enigmas, desconhecimentos e frustrações - ressaltando que estas vivências já se encontram
vinculadas ao sujeito. Estes pacientes lhe ensinaram que esta maneira de existir, ao contrário do
que pensava Freud, não é um caminho natural da pulsão, mas sim algo que depende do outro
para ser fundada. A partir deste ato de fundação viabilizado pela cena analítica, o analista poderá
ocupar um outro lugar, o lugar de fazer vacilar qualquer ideal absolutizante ao qual o sujeito
8 Em 1928, no artigo “Elasticidade da técnica psicanalítica”, Ferenczi apresenta de forma mais clara uma noção
muito presente em seus textos, a de tato psicológico, que consiste na capacidade de perceber quando uma
comunicação ou reação é ou não oportuna. Segundo Ferenczi, o tato é a faculdade de ‘sentir com’ (Einfühlung), de
colocar-se no diapasão do paciente. Para Pinheiro (1995), “[o] conceito de tato é uma questão central neste texto de
1928. O tato (...) pode ser também compreendido como a capacidade de se representar o vivido do paciente. O tato é
uma distância justa, nem a mais nem a menos, um poder ‘sentir com’ sem ‘ser como’. O conceito de tato torna-se
fundamental para a compreensão de sua proposta técnica, assim como a revisão dos conceitos que participavam da
pré-história e da história da teoria da clínica freudiana” (p.110).
9 “Na transferência, será dada a ocasião de receber a proteção e o apoio que faltaram no momento do trauma. O
amor e a força do analista, supondo-se que a confiança nele seja suficientemente profunda e suficientemente grande,
agem como um amplexo de uma mãe amorosa e de um pai protetor. (...) Os sentimentos positivos da transferência
fornecem, de certo modo a posteriori, o contra-investimento que não pôde constituir-se no momento do trauma”
(Ferenczi, 1932, p.104).
12
passa a aderir. O analista assume, assim, a imagem do catalisador de afetos, funcionando como
um catalisador dos sentidos dos quais o objeto é portador.
O analista seria, na concepção de Ferenczi, um possibilitador da
introjeção. Ele catalisaria a força do sentido absoluto referido ao
objeto, ampliando os muitos sentidos possíveis. A função do analista,
nestes casos, é abrir para o paciente a possibilidade polissêmica,
apontando para a parcialidade, visando re-escrever sua história. O
catalisador não é propriamente uma função transferencial, mas uma
função do analista. É um possibilitador da introjeção, que tem como
suporte o movimento transferencial. (Pinheiro, Verztman e Barbosa
2006, p.297)
Ou ainda:
13
seria uma maneira de permitir o amor a si mesmo. Dizemos que esta etapa da introjeção é
posterior porque ela sempre supõe um processo anterior que desfaz ligações, neste caso o
recalque. Imaginar esta descrição da introjeção como origem seria impossível a não ser que se
suponha esta energia livremente flutuante (ao modo freudiano) como pulsão originária sem
objeto, o que requereria explicações extremamente especulativas das quais Ferenczi procurava
escapar.
A outra etapa que passaremos a descrever pode perfeitamente passar pelos crivos da
observação e da experiência e sua proposição é incrivelmente original para a época. Ferenczi
afirmou que no início da vida o bebê tem uma experiência monista do mundo:
Pode-se pensar que o recém-nascido experimenta todas as coisas de
maneira monista, quer se trate de um estímulo externo ou de um
processo psíquico. Só mais tarde a criança aprenderá a ‘malícia das
coisas’, aquelas que são inacessíveis à introspecção, rebeldes à
vontade, ao passo que outras ficam à sua disposição e submetidas à
sua vontade. O monismo converte-se dualismo. (Ferenczi, 1909, p.85)
Mais tarde, em 1926, quando o conceito de introjeção já podia ser utilizado com mais
propriedade, Ferenczi correlacionou de modo mais enfático introjeção e universo monista da
criança, como podemos verificar nesta citação de “O problema da afirmação do desprazer”.
Recorrendo à terminologia psicanalítica, designei a primeira fase,
aquela em que só existe o ego e em que este se apropria de todo o
universo da experiência, como o período de introjeção; a segunda fase,
aquela em que a onipotência é atribuída a potências exteriores, como o
período de projeção; quanto ao último estágio de desenvolvimento,
pude concebê-lo como o período em que os dois mecanismos são
utilizados em partes iguais e compensam-se mutuamente. (Ferenczi,
1926b, p.399)
15
materno na tenra infância? A procura de tais respostas levou Ferenczi a perceber um universo
relacional no qual a criança encontrava no outro um parceiro para sua ação e não um rival ou um
objeto de prazer. Esta região silenciosa do humano, esta mistura identitária com o outro, esta
relação assimétrica onde o papel do outro é unicamente suprir minhas necessidades (sem
confundir necessidades com satisfação pulsional), tudo isto e muito mais fez com que Ferenczi
inventasse o tema que o consagrou, que o tornou praticamente um autor contemporâneo: o
universo da ternura.
Ferenczi formulou mais completamente a teoria da ternura apenas no final de sua obra em
“Confusão de língua entre os adultos e a criança” (Ferenczi, 1933), quando a utilizou para
descrever sua teoria do trauma, da qual nos ocuparemos posteriormente. Na verdade, o que ele
descreveu sobre a ternura não é exatamente uma teoria das etapas precoces do desenvolvimento
porque ela é eminentemente o contraponto da linguagem da paixão, esta sim conhecida dos
psicanalistas. É como se o autor afirmasse: existe uma outra forma de linguagem, de experiência
emocional e de campo de ação próprios à infância que são distintos do universo passional,
pulsional, sexual, tensional com o qual estamos acostumados a lidar. Ocorre, todavia, que as
características daquilo que ele denomina de ternura estão mais implícitas que explícitas nos seus
textos e foi tarefa da posteridade discriminar quais são os elementos que a compõem. Sua morte
prematura o privou de nos acompanhar nesta jornada - tal como Moisés, ele atravessou o deserto
sem que lhe fosse permitido adentrar a terra prometida.
Ainda assim, mesmo não havendo terra prometida, não conheceríamos outros territórios
sem suas pistas. Algumas palavras transformaram-se em símbolos desta região da vida afetiva
denominada de ternura: lúdico, amor passivo, repouso do ego, espontaneidade. Como
propusemos anteriormente quando discorremos sobre a introjeção, para falar desta experiência
emocional Ferenczi dispunha apenas do vocabulário pulsional e foi a ele que recorreu para
descrever o estado de repouso egóico. Como em 1926 Freud já havia enunciado a segunda teoria
pulsional, Ferenczi utilizou a noção de intrincamento pulsional para falar de uma vivência de
neutralização entre as pulsões que produziria o estado de repouso:
Tudo se passa como se as duas espécies de pulsões se neutralizassem
mutuamente quando o ego se encontra em estado de repouso, à
maneira da eletricidade negativa e positiva num corpo elétrico inerte e
como se nos dois casos influências externas particulares fossem
necessárias para separar as duas espécies de correntes e torná-las de
novo ativas. (Ferenczi, 1926b, p. 398)
Este intrincamento pulsional, segundo propomos, permitiria um estado não conflitual que
refaria o momento originário no qual o repouso do aparelho psíquico era um acontecimento
17
freqüente e necessário. Como no artigo citado Ferenczi formulava as forças que levariam ao
reconhecimento e aceitação da realidade, a neutralização das pulsões permitiria todo o processo
porque em parte o sujeito estaria reencontrando uma realidade que já lhe era familiar, o estado
de repouso. Outro aspecto que podemos realçar nesta citação é a importância crescente que o
autor irá conferir às influências externas. Se, segundo o modelo que sugerimos, a neutralização
pulsional remontasse a um estado originário do aparelho psíquico, somente influências externas
poderiam transformar as pulsões em energias ativas. Ferenczi irá, nos anos seguintes,
obstinadamente buscar o que só poderia se realizar na relação com o outro - as “forças externas”
- e vai encontrar uma bifurcação no papel do outro que produzirá caminhos subjetivos
radicalmente distintos: o outro que reconhece a alteridade do universo infantil e o outro que não
a reconhece, tornando ativas pulsões que deveriam por mais tempo permanecer silenciosas.
Voltaremos a isto mais tarde.
No seu artigo seminal “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” (1929), Ferenczi
correlacionou, de modo absolutamente novo para a época, tonalidade pulsional e relação com o
ambiente. O que ele denominou de “neurose de privação” era um acontecimento clínico no qual
as expressões da pulsão de morte seriam determinadas pela forma com que o sujeito foi acolhido
em tenra infância pelo objeto materno. Ferenczi estava aplicando o seu modelo anterior no qual a
autonomia da atividade pulsional derivava diretamente de forças externas e isto não poderia
ocorrer precocemente sob pena da mortificação do psiquismo, de sua desvitalização. No texto o
autor usa a palavra “ternura” com um significado diverso da conotação negativa que ela recebia
em alguns de seus escritos técnicos, quando representava uma certa docilidade artificial na
relação com o analista. Ternura aqui significa “impulsões de vida positivas”:
Uma senhora, unilateralmente influenciada pela psicologia do ego, por
sinal muito inteligente, como eu lhe falasse da importância de
introduzir ‘impulsões de vida positivas’, ou seja, demonstrações de
ternura, em relação às crianças, fez-me de imediato esta objeção:
como é que isso pode conciliar-se com a importância que a psicanálise
atribui à sexualidade, na gênese das neuroses? (Ferenczi, 1929, p.51)
Ele pareceu ainda um pouco embaraçado pela questão formulada e terminou o artigo sem
respondê-la de modo mais satisfatório. Em “Análise de crianças com adultos” (1931) o
embaraço tornou-se ousadia e Ferenczi nos brindou com páginas marcantes de seu gênio
criativo. O termo “lúdico”, e seus derivados, ganhou cada vez mais espaço em seu pensamento,
sendo comum Ferenczi aludir a uma ação de tomar o lugar do outro como uma brincadeira,
como uma forma de se aproximar dos papéis por ele desempenhados sem que isto implicasse em
sentimentos rivalitários, hostis ou de desejo sexual. A primeira aparição desta atividade lúdica
18
refere-se à atuação, na análise, daquilo que não podia ser associado livremente:
Obtive a prova disso quando, a partir desses procedimentos mais ou
menos lúdicos, alguns pacientes começaram a mergulhar numa
espécie de transe alucinatório, durante o qual encenavam diante de
mim acontecimentos traumáticos cuja lembrança inconsciente estava
igualmente dissimulada atrás das verbalizações lúdicas. (Ferenczi,
1931, p. 73)
O acesso a esta atividade lúdica só seria possível num setting onde o analista
desempenhasse um papel de parceiro, onde ele não precisasse obedecer à regra da frustração
como forma de ter acesso ao inconsciente. A possibilidade de brincar na cena analítica, de
experimentar pela primeira vez o silêncio da neutralização pulsional, permitiria o contato com
uma forma de amor que ainda não havia sido descrita em nossa disciplina. Ferenczi passou a ser
cada vez mais afirmativo com relação ao universo afetivo da criança, e tornou-se mais enfático
sobre a especificidade da diferença entre crianças e adultos, até asseverar que a ternura é a matriz
emocional do infans:
A esse respeito, gostaria de emitir a hipótese de que os movimentos de
expressão emocional da criança, sobretudo os libidinais, remontam
fundamentalmente à terna relação mãe-criança, e que os elementos de
malevolência, de arrebatamento passional e de perversão aberta são,
na maioria das vezes, conseqüências de um tratamento desprovido de
tato, por parte do ambiente. (Ferenczi, 1931, p.74)
A partir daí, ainda neste artigo, o autor passou a descrever o tipo clínico que o celebrizou -
o sujeito clivado oriundo do trauma - e não mais retornou a uma definição precisa sobre esta
relação terna com a mãe. Sublinhemos, entretanto, que a palavra libidinal presente em sua
hipótese demonstra que Ferenczi produziu uma bifurcação no seio de Eros e não rompeu com a
teoria da sexualidade infantil. A ternura é uma forma libidinal primária do período monista de
relação com o mundo e permanece produzindo efeitos mesmo após o período dualista. Caso o
adulto não respeite o tempo da criança, um outro vínculo libidinal impossível de ser
decodificado pela criança silenciará o sujeito, pois lançará a criança num mundo de exigências
onde o outro não é seu parceiro nem está ali para suprir suas necessidades. Um mundo onde não
há lugar para brincadeiras e onde o prazer pode estar do lado de lá.
Ao escrever sua “Confusão de línguas...” Ferenczi pagou o preço exigido de todos aqueles
que falam o que não se está preparado para ouvir. O artigo selou por muito tempo o papel
pejorativo conferido a seu autor no meio psicanalítico. Nele, Ferenczi realizou o que estava em
germe no texto sobre a introjeção de 1909, demarcando claramente dois universos lingüísticos
(mas podemos afirmar, experienciais e afetivos) presentes no desenvolvimento de um aparelho
19
psíquico que apresenta cada vez mais características relacionais. Paixão e ternura, adulto e
criança, serão campos cada vez mais complexos de diferenciação do humano, os quais
necessitarão de mediações para que as ações do sujeito possam ter a marca da pessoalidade. Do
ponto de vista do desenvolvimento, Ferenczi é taxativo: a ternura é anterior à paixão, não pode
ser um derivado sublimado desta e é a maneira propriamente infantil de se relacionar.
O autor inicialmente descreve a ternura de modo indireto, ou seja, retomando sua forma de
expressão, a maneira lúdica. Ele acrescenta alguns aspectos ao brincar, principalmente porque
ele não está se referindo a um brincar na cena analítica, mas ao lúdico na atividade da própria
criança. Há grande correlação entre lúdico e imaginação:
É assim que as crianças, quase todas sem exceção, brincam com a
idéia de ocupar o lugar do progenitor do mesmo sexo, para tornar-se o
cônjuge do sexo oposto, isto, sublinhe-se, apenas em imaginação. Na
realidade, elas não quereriam, nem poderiam, dispensar a ternura,
sobretudo a ternura materna. (Ferenczi, 1933, p.103)
Este jogo infantil entre realidade e imaginação, esta capacidade de brincar de faz-de-conta,
esta forma introjetiva de se tornar o outro para amá-lo, este exercício do desejo e da destruição
sem que estas ocorram na realidade; a fonte para todas estas possibilidades encontra-se na
ternura. A linguagem da paixão rompe com o faz-de-conta, exige que se leve os desejos a
conseqüências impensáveis na linguagem terna. O aspecto relacional do novo enquadre pode ser
aquilatado quando Ferenczi aponta para o adulto como guardião da ternura infantil, como
defensor do seu direito à imaginação10, como aquele que deve viabilizar o desenvolvimento da
linguagem da paixão apenas quando a criança estiver madura.
O último aspecto que gostaríamos de realçar sobre a teoria da ternura é o surgimento de
uma expressão pouco utilizada por Ferenczi, mas que será muito tematizada por outros autores,
sobretudo Balint: o amor passivo.
Devemos referir-nos aqui a idéias que Freud desenvolveu, há muito
tempo, quando sublinhava o fato de que a capacidade de sentir um
amor objetal era precedida de um estágio de identificação. Qualificarei
esse estágio como o do amor objetal passivo, ou estágio da ternura.
Indícios do amor de objeto já podem aparecer, mas somente enquanto
10 Esta função do adulto para o psiquismo, tal como concebida por Ferenczi, foi tematizada por Pinheiro (1995).
Para esta autora, “[a] noção de ‘adulto’ aparece freqüentemente nos textos de Ferenczi, recebendo um lugar e um
tratamento todo especiais. Levando em conta que o objeto externo tem papel fundamental na constituição do sujeito,
o personagem principal é o adulto” (op.cit., p.35). Ocupando este lugar de fonte externa de subjetivação, ele se torna
um dos pilares determinantes do destino psíquico do infans. Para Pinheiro, cabe a ele ser alguém que em
determinado momento terá vontade própria e ensinará à criança as básculas que dizem respeito ao jogo entre
verdade e mentira. Ele não pode, entretanto, apressar este aspecto de sua função, pois lhe cabe zelar pela assimetria
constitutiva da relação entre adulto e criança. Tal assimetria implica que o adulto veja na criança algo que esta
demorará ainda muito tempo para perceber: que a criança é um ser diferenciado, que tem necessidades próprias, as
quais devem ser garantidas pelo adulto.
20
Amor passivo significa fundamentalmente ser amado. A fonte fundamental de todo amor
ativo, de toda possibilidade de amar, é sua forma passiva. No mundo monista da criança amar
tem que equivaler a ser amado, portanto não pode haver conflito entre essas duas formas de amor
nesta etapa da vida. O direito ao amor passivo é a fonte da ternura11, um amor que o sujeito
introjeta, trazendo o outro para dentro de si. A introjeção, para retornarmos ao início desta seção,
não é introjeção de qualquer objeto, mas a transformação de passividade em atividade, a
atividade de alocar no espaço interno algo que já existia no campo relacional: a experiência de
amor passivo do qual o objeto é ao mesmo tempo mediador, avalista, símbolo e portador12.
Passaremos agora a descrever uma forma de organização na qual este direito foi abjetamente
violado.
Através de sua experiência clínica com pacientes muito graves, Ferenczi convenceu-se da
importância dos traumatismos externos, em especial o sexual, como fator patogênico. Embora
não negasse a origem do trauma a partir da fantasia, foi tal a multiplicidade de relatos e
confissões de pacientes em análise que diziam manter ou ter mantido relações sexuais com
crianças, que ele insistiu nessa vertente, em detrimento da idéia corrente na época de que tais
relatos teriam como origem “mentiras” histéricas. Ao retomar a teoria do trauma, especialmente
no final de sua vida, nos anos de 1930, Ferenczi foi acusado de retorno à época pré-psicanalítica
da Psicanálise. Freud mostrou-se profundamente decepcionado com o posicionamento de
Ferenczi, pedindo que ele reconsiderasse suas posições e evitasse publicar artigos por certo
tempo.
Não acredito mais que você se corrija, como eu me corrigi uma
geração mais cedo... Nos últimos dois anos, você se distanciou
sistematicamente de mim... Acredito estar objetivamente em
condições de lhe mostrar o erro teórico em sua construção, mas de que
adianta? Estou convencido de que você se tornou inacessível a
qualquer reconsideração. (Freud apud Dupont, 1990, p.17)
11 “A vida normal começa, portanto, por um amor de objeto passivo, exclusivo. Os bebês não amam, é preciso que
sejam amados”. (Ferenczi, 1932, p.236)
12 Sobre isso, cf. Torok (1995) e Pinheiro (1995). Ambas as autoras afirmam que o processo de introjeção não diz
respeito ao objeto, mas a algo do qual ele é portador. Para Torok (op.cit.), o que é introjetado é a pulsão mediada
pelo objeto. Para Pinheiro (op.cit.) o que é introjetado é o sentido do qual o objeto é fiador. Parece-nos que estas
duas propostas são complementares e se coadunam perfeitamente com a introjeção do amor passivo aqui defendida.
21
teóricos de suas idéias, tão impressionado estava com o impacto devastador do trauma. Na busca
de tornar suas novas descobertas claras para o meio psicanalítico, recorreu a uma cena
paradigmática de sedução para ilustrar o traumatismo, a famosa confusão de língua entre os
adultos e a criança.
[U]m adulto e uma criança amam-se; a criança tem fantasias lúdicas,
como desempenhar um papel maternal em relação ao adulto. O jogo
pode assumir uma forma erótica mas conserva-se, porém, sempre no
nível da ternura. Não é o que se passa com adultos que tiveram
tendências psicopatológicas, sobretudo se seu equilíbrio ou seu
autodomínio foram perturbados por qualquer infortúnio, pelo uso de
estupefacientes ou de substâncias tóxicas. Confundem as brincadeiras
infantis com os desejos de uma pessoa que atingiu a maturidade
sexual, e deixam-se arrastar para a prática de atos sexuais sem pensar
nas conseqüências. (Ferenczi, 1933, pp.101-2)
Infelizmente, pelo seu forte apelo imagético, a cena da sedução de uma criança por um
adulto acabou chamando mais atenção do que outras importantes questões formuladas ou
intuídas por Ferenczi. A cena tem como eixo central a idéia de que a criança percebe a investida
sexual do adulto, determinada pela linguagem genital da paixão, mas a percebe a partir de sua
própria linguagem, a da ternura, e de seu universo lúdico. Ao dizer que a cena traumática é uma
confusão de línguas, isto é, ao enfatizar a má-compreensão por parte do adulto das manifestações
eróticas próprias da infância, tomando-as como análogas às manifestações da sexualidade adulta,
Ferenczi deu um importante relevo ao papel do ambiente na traumatogênese. Embora ele
estivesse preocupado com a realidade do acontecimento em si, a sedução concreta, o que se
depreende daí é uma definição diferente de trauma, o qual será menos considerado em seus
aspectos intrapsíquicos para ser encarado como resultado de graves falhas nas relações primárias
com o outro. Para Ferenczi não se tratava apenas de sedução e violação sexual, mas sobretudo de
violação psíquica pelo excesso de demanda ou privação de amor parental. O resultado da
interpretação confusa dos dois níveis eróticos é a confusão traumática e patológica na criança, já
que o adulto ignora suas necessidades afetivas mais básicas e fundamentais, pondo em risco o
processo identificatório. O adulto da vinheta clínica falhou especialmente em sua função de
suporte mediador entre a criança e o mundo pela cegueira momentânea produzida por sua
excitação. Desse modo, o processo introjetivo fica comprometido, pois no lugar da introjeção do
objeto idealizado situa-se a incorporação13 do adulto enquanto o que violenta e invade, e não
enquanto o que ama e acolhe.
Retomando a vinheta de Ferenczi, ao restabelecer-se de seu estado apaixonado, o adulto
13 A distinção entre introjeção e incorporação é especialmente aprofundada por Abraham e Torok (1995).
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reage com culpa e nega que algo tenha se passado. A criança recorre então a um terceiro que,
atordoado com o relato, atribui as palavras da criança a fantasias infantis, produzindo uma
segunda negação. Segundo Ferenczi, era o desmentido, e não a linguagem da paixão em si, o
principal fator traumático, sendo por isso de suma importância que a situação analítica não
reproduzisse a cena traumática ao reafirmar a negação do ocorrido. Como um de nós já salientou
em outro lugar, o elemento central da teoria da traumatogênese não seria a linguagem da paixão,
mas sim a linguagem da indiferença (Verztman, 2002). Ou seja, o trauma só se instala realmente
porque as instâncias de mediação entre os dois jogos de linguagem falharam.
(...) quando se abandonou qualquer esperança de ajuda por parte de
uma terceira pessoa, e se sente as próprias forças de autodefesa
totalmente esgotadas, nada mais resta senão esperar pela clemência do
agressor. Se me submeto tão completamente à vontade dele que deixo
de existir, se, portanto, não me oponho a ele, talvez me conceda salvar
a vida... (Ferenczi, 1932, p.143)
O curioso é que o recalque evocado por Ferenczi não é obra do supereu, ele não faz parte
do sujeito, de seu domínio de reconhecimento pessoal; trata-se de um recalque exterior. Este
recalque exterior dissolve as correlações anteriores entre o eu e a vida afetiva do sujeito.
Segundo Ferenczi, “o ego abandona total ou parcialmente o corpo, a maior parte das vezes
através da cabeça, e observa desde o exterior ou do alto o destino posterior do corpo, sobretudo
os seus sofrimentos” (1930b, p.241). Mas, cabe lembrar, isso não implica necessariamente uma
frieza ou insensibilidade por parte do sujeito traumatizado, ele é antes desconectado daqueles
afetos que dão sentido à existência e ao trauma e, por isso, apresenta inclusive um estranhamento
extremo ao reconhecer que alguns sentimentos e sensações lhe dizem respeito. Ele se refugia na
posição de observador e no discurso da terceira pessoa, “torna-se de súbito como que um olho
presbita e pode deslocar-se facilmente nas extensões infinitas. (Desviar-se da dor e voltar-se para
os eventos exteriores)” (1930b, p.241).
A pessoa divide-se num ser psíquico de puro saber que observa os
eventos a partir de fora, e num corpo totalmente insensível. Na medida
24
concepção da técnica da análise mútua que expusemos mais acima. Nesta mesma linha, Ferenczi
evoca um sonho típico no qual um bebê ou uma criança muito pequena se mostra sábia diante
dos familiares.
O medo diante de adultos enfurecidos, de certo modo, transforma por
assim dizer a criança em psiquiatra; para proteger-se do perigo que
representam os adultos sem controle, ela deve, em primeiro lugar,
saber identificar-se por completo com eles. É incrível o que podemos
realmente aprender com as nossas ‘crianças sábias’, os neuróticos.
(Ferenczi, 1933, p.105)
15 Recentemente, ao nos confrontarmos com a literatura psicanalítica sobre a vergonha, pudemos compreender
melhor como a culpa do adulto pode ser introjetada pela criança na teoria do trauma de Ferenczi. Tisseron (1992) foi
o primeiro autor a apontar para a importância da vergonha de si como conseqüência da cena traumática. Como a
culpa é uma emoção posterior na ontogênese se comparada à vergonha, esta última pode ser a emoção penosa
conhecida e utilizada pela criança, que a atrela à própria identidade e a transforma em vergonha de si. Sobre as
articulações entre vergonha e identidade conseqüentes a relações traumáticas com o ambiente, podemos indicar
também Zygouris (1995); Verztman (2005); Pinheiro, Verztman, Venturi e Barbosa (2006); Pinheiro (2005) e Green
(2003).
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Como se pode perceber, a teoria do trauma proposta por Ferenczi comporta muito mais
elementos do que a cena de sedução e pode ser aplicada a situações em que o elemento da
violência sexual esteja ausente. Sistematizando o que pudemos observar sobre as conseqüências
afetivas do trauma, para Ferenczi, o sujeito sensível do ideal de interiorização romântico,
dilacerado pelo seu excesso de sentimento e desejo, é apenas um dos destinos psíquicos
possíveis; há outros, mesmo que não estejamos falando de psicose. O sujeito traumatizado
ferencziano é, ao contrário dos psicóticos, alguém inteiramente subsumido à lei, mas uma lei que
sempre lhe será exterior, pois é a marca de sua abdicação de si mesmo. Esta saída criativa que o
defende contra outras formas mais severas de adoecimento, cobra seu preço exatamente na esfera
da afetividade. A insegurança sobre seus próprios sentimentos, a anestesia psíquica, a sensação
de máxima idiossincrasia no mundo dos humanos, o esmaecimento da tonalidade emocional, a
dificuldade de decifração dos estímulos que emanam do corpo, são algumas das formas de
sofrimento por que passam tais pessoas, sofrimento este que, segundo elas, será redimido por um
neném sábio que habita dentro de suas mentes, um híbrido adulto/criança que encontrará a saída
se observar de forma correta o mundo, envolvendo-se afetivamente o mínimo possível com
aquilo que ele (a criança) deixou de ser. Este verdadeiro esgarçamento da vida afetiva, da relação
entre afeto e o eu, reconheçamos, deve sua primeira descrição ao gênio clínico de Ferenczi.
Conclusão
Ferenczi ressaltou a importância do papel da mãe e dos traumatismos, abrindo caminho
para a compreensão das carências e fracassos ambientais precoces. Para ele, os afetos
despertados na contra-transferência eram uma ferramenta indispensável para acessar o
sofrimento do sujeito traumatizado. Acreditava que a perlaboração dos afetos acontecia
essencialmente no domínio do encontro analítico, “através da avaliação das mudanças afetivas
recíprocas” (Borgogno, 2003, p. 11) do par analista-analisando. Como bem sublinhou Haynal
(2003), Ferenczi nunca abordava a questão do afeto em si mesma, tomando-a sempre no
contexto da situação analítica, na transferência e na contra-transferência.
Ferenczi foi o único a trazê-lo [o tema do afeto] à luz, e isso em uma
época na qual o afeto era tido como algo estrangeiro, até mesmo
perigoso, o que Freud exprimiu por exemplo através de seu temor de
que a análise de uma relação íntima pudesse estar a perigo por
‘alguma outra coisa, indeterminável’ (Freud a Ferenczi, 21.04.12).
(Haynal, 2003, p.71)
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