III Elasticidade Da Tecnica Psicanalitica

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OBRAS COMPLETAS – ELASTICIDADE DA TÉCNICA PSICANALÍTICA 25

III

Elasticidade da Técnica Psicanalítica

Os esforços para tornar acessível a outros a técnica que utilizo


habitualmente nas minhas psicanalises reconduziram-me com frequência ao
tema da compreensão psicológica em geral. Seria verdade o que tantas
pessoas afirmam, ou seja, que a compreensão dos processos que se
desenrolam na vida psíquica de outrem depende de uma aptidão particular a
que se dá o nome de conhecimento dos homens, aptidão que, como tal, seria
inexplicável e, portanto, intransmissível; assim, todo esforço para ensinar aos
outros, alguma coisa dessa técnica estaria de antemão condenado.
Felizmente, não é nada disso. Depois que Freud publicou seus “Conselhos
sobre a Técnica Psicanalítica”, possuímos os primeiros elementos de uma
investigação metódica sobre o psiquismo. Todos aqueles que não temem o
esforço de seguir as instruções do Mestre estarão em condições, mesmo que
não sejam gênios da psicologia, de ganhar acesso às profundezas
insuspeitadas da vida psíquica de outrem, seja ela saudável ou doente. A
análise dos atos falhos da vida cotidiana, dos sonhos e, sobretudo, das
associações livres, colocá-los-á em situação de aprender, de seu
semelhante, muitas coisas que, antes, somente seres de exceção eram
capazes de captar. A predileção dos homens pelo maravilhoso fá-los-á
acompanhar com desprazer essa transformação da arte do conhecimento
dos homens numa espécie de profissão. Os artistas e os escritores em
particular parecem ver nisso uma espécie de intrusão nos domínios deles e,
após terem manifestado um início de interesse pela psicanálise, acabaram
contraindo o hábito de repudiá-la como um método de trabalho mecânico e
pouco sedutor. Essa antipatia em nada nos surpreende: a ciência é, com
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efeito, um despontamento progressivo: no lugar do que é místico e singular,


ela coloca sempre e por toda parte essa legalidade inflexível que, por sua
uniformidade, provoca facilmente o tédio e, por seu curso coercivo, o
desprazer. Para apaziguar um pouco os espíritos, acrescentemos, com efeito,
que nesta como em qualquer outra profissão, haverá sempre os artistas de
exceção, de quem esperamos os progressos e as novas perspectivas.
Do ponto de vista prático, é um progresso, entretanto, que a análise
tenha, pouco a pouco, colocado nas mãos do médico e do cientista
medianamente dotado um instrumento de exploração mais diferenciada do
homem. É como em cirurgia: antes da descoberta da anestesia e da assepsia,
apenas alguns tinham o privilégio de exercer a “arte de curar” cirúrgica e
podiam trabalhar, “cito, tuto et jacunde” ². É certo que ainda hoje existem
artistas da técnica cirúrgica, mas os progressos permitiram a milhares de
médicos medianos exercer sua atividade útil, salvando frequentemente vidas.
Sem dúvida falava-se também de técnica psicológica fora da análise
do psiquismo; entendia-se por tal os métodos de medicação utilizados nos
laboratórios de psicologia. Essa espécie de “psicotécnica” ainda hoje está em
moda e pode, inclusive, ser suficiente para certas tarefas práticas e simples.
Na análise, porém, trata-se de algo muito mais elevado: apreender a tópica,
a dinâmica e a economia do funcionamento psíquico, e isso sem a
impressionante aparelhagem dos laboratórios, mas com uma pretensão de
certeza sempre crescente e, sobretudo, uma capacidade de rendimento
incomparavelmente superior.
Entretanto, houve e ainda há no interior da técnica psicanalítica muitas
coisas que davam a impressão de tratar-se de algo individual, pouco definível
com palavras; em primeiro lugar, o fato de que, neste trabalho, a importância
que parecia ser atribuída à “equação pessoal” era muito maior da que
deveríamos, por outro lado, aceitar na ciência. O próprio Freud, em suas
primeiras comunicações sobre a técnica, deixava o campo livre para outros
métodos de trabalho em psicanálise, a par do seu. É verdade que essa
declaração data de antes da época em que se cristalizou *a segunda regra
fundamental da psicanálise, isto é, que quem quer analisar os outros, deve
em primeiro lugar, ser ele próprio analisado*. Após a adoção dessa regra, a
importância da nota pessoal do analista dissipou-se cada vez mais. Toda
pessoa que foi analisada a fundo, que aprendeu a conhecer completamente
e a controlar suas inevitáveis fraquezas e particularidades de caráter, chegará
necessariamente nas mesmas constatações objetivas, no decorrer do exame

_____________________________________________________________

² “Rapidamente, na segurança e alegria


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e do tratamento do mesmo objeto de investigação psíquica e, por via de


consequência, adotará as mesmas medidas táticas e técnicas. De fato, tenho
a impressão de que, após a introdução da segunda regra fundamental, as
diferenças de técnica analítica estão prestes a desaparecer.

Se tentarmos hoje analisar esse remanescente ainda não resolvido da


equação pessoal, e se tivermos em posição de ver muitos alunos e pacientes
já analisados por outros, mas, em especial, se todos tiverem que se deparar,
tão frequentemente quanto eu, com as consequências de seus próprios erros
antes cometidos, então ser-nos-á concedido o direito de formular um juízo de
conjunto sobre a maioria dessas diferenças e desses erros. Adquiri a
convicção de que se trata, antes de tudo, de uma questão de tato psicológico,
de saber quando e como se comunica alguma coisa ao analisando, quando
se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair deles certas
conclusões; em que forma a comunicação deve ser, em cada caso,
apresentada; como se pode reagir a uma reação inesperada ou
desconcertante do paciente; quando se deve calar e aguardar outras
associações; e em que momento o silêncio é uma tortura inútil para o
paciente, etc. Como se vê, com a palavra “tato” somente consegui exprimir a
indeterminação numa formula simples e agradável. Mas o que é o tato? A
resposta a esta pergunta não nos é difícil. *O tato, é a faculdade de “sentir
com” (Einfühlung). Se, com a ajuda do nosso saber, inferido da dissecação
de numerosos psiquismos humanos, mas sobretudo da dissecação do nosso
próprio eu, conseguirmos tornar presentes as associações possíveis ou
prováveis do paciente, que ele ainda não percebe, poderemos – não tendo,
como ele, de lutar com resistências – adivinhar não só seus pensamentos
retidos, mas também as tendências que lhe são inconscientes.
Permanecendo ao mesmo tempo e a todo momento, atentos à força da
resistência, não nos será difícil decidir sobre a oportunidade de uma
comunicação e a forma de que deve revestir-se. Esse sentimento nos
impedirá de estimular a resistência do paciente, de maneira inútil ou
intempestiva; por certo não é dado à psicanálise poupar o paciente de todo o
sofrimento; com efeito, aprender a suportar um sofrimento constitui um dos
resultados principais da psicanálise. Entretanto, uma pressão a esse respeito,
se for desprovida de tato, fornecerá apenas ao paciente a oportunidade,
ardentemente desejada pelo inconsciente, de subtrair-se à nossa influencia.

Em seu conjunto, todas essas medidas de precaução geram sobre o


analisando uma impressão de bondade, mesmo se as razões dessa
sensibilidade provêm puramente de raízes intelectuais. Todavia, no que se
segue, deverei justificar num certo sentido essa impressão do paciente. Não
exige nenhuma diferença de natureza entre o tato que se exige de nós e a
exigência moral de não fazer a outrem o que, em circunstancias análogas,
não gostaríamos que outros nos fizessem.
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Apresso-me a acrescentar, desde já, que a capacidade de exercer


essa espécie de “bondade” significa apenas um aspecto da compreensão
analítica. Antes que o médico se decida a fazer uma comunicação, deve
primeiramente retirar por um momento sua libido do paciente e avaliar a
situação com frieza; em nenhum caso deverá deixar-se guiar só pelos seus
sentimentos.

Nas frases que vão seguir-se, apresentarei num resumo aforístico


alguns exemplos que ilustram estas considerações gerais.

Convém conceber a análise como um processo evolutivo que se


desenrola sob os nossos olhos, e não como o trabalho de um arquiteto que
procura realizar um plano preconcebido. Que não nos deixemos levar, em
circunstância nenhuma, a prometer ao analisando mais do que isto: se ele se
submeter ao processo analítico, acabará sabendo muitíssimo mais sobre si
mesmo; e se perseverar até o fim, poderá adaptar-se melhor às dificuldades
inevitáveis da vida, e com uma distribuição mais justa de energia. A rigor,
também lhe podemos dizer que não conhecemos tratamento dos distúrbios
psiconeuróticos e do caráter que seja melhor e, sem dúvida, mais radical. Não
lhe dissimularemos, em absoluto, a existência também de outros métodos
que prometem esperanças de cura muito mais rápida e segura, e, no fundo
de nós mesmos, rejubilamos quando ouvimos os pacientes dizerem que já
seguiram, durante anos, tratamentos por métodos de sugestão, ergoterapia,
ou outros métodos de reforço da vontade; quando não, deixamos ao paciente
a opção de experimentar um desses tratamentos tão promissores, antes de
se entregar aos nossos cuidados. Mas não podemos deixar passar sem
resposta a objeção habitualmente levantada pelos pacientes, a saber, que
não acreditam no nosso método ou na nossa teoria. Explicamos desde o
início que a nossa técnica renuncia por completo ao presente imerecido de
tal confiança antecipada; o paciente só tem que acreditar em nós se as
experiencias do tratamento o justificarem. Mas não podemos anular uma
outra objeção que consiste em dizer que remetemos assim a “priori” a
responsabilidade de um eventual fracasso de tratamento à impaciência do
doente e devemos deixar que ela decida se quer ou não, nessas condições
difíceis, assumir o risco do tratamento. Se estas questões parciais não
ficarem precisamente esclarecidas, desde o começo e nesse sentido,
oferece-se à resistência do paciente as mais temíveis armas, que ele não
deixará, cedo ou tarde, de utilizar contra os objetivos do tratamento e contra
nós. Que não consistamos em nenhum desvio dessa base por qualquer
questão, por mais assustadora que seja, “O tratamento tanto pode, portanto,
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durar dois, três, cinco, dez anos?”, perguntarão muitos pacientes com uma
hostilidade visível. “Tudo isso é possível”, será a nossa resposta. “Mas,
naturalmente, uma análise de dez anos equivale em termos práticos a um
fracasso. Uma vez que nunca se pode apreciar de antemão a importância
das dificuldades a superar, tampouco se pode prometer um resultado certo,
e contentamo-nos em invocar o fato de que em muitos casos são suficientes
períodos muito mais curtos. Mas como você vive na crença, segundo parece,
de que os médicos adoram fazer prognósticos favoráveis e, além disso, como
já certamente ouviu muitas opiniões desfavoráveis sobre a teoria e a técnica
da psicanálise, ou como as escutará daqui a pouco, é preferível que, do seu
ponto de vista, considere este tratamento uma experiencia ousada que lhe
custará muito esforço, tempo e dinheiro; se, apesar de tudo isso, quer tentar
essa experiencia conosco, deve fazê-lo depender, portanto, do grau do seu
sofrimento. Em todo caso, reflita bem antes de começar: começar sem a
intenção séria de perseverar, apesar de agravamentos inevitáveis, só
acrescentará uma nova decepção aquelas que já sofreu.”

Creio que esta preparação excessivamente pessimista, por certo, está,


no entanto, melhor adaptada ao objetivo; em todo caso, ela corresponde às
exigências da regra de “sentir com”. Pois a fé entusiástica do paciente, muitas
vezes proclamada de maneira excessivamente ruidosa, esconde quase
sempre uma boa dose de desconfiança, cuja voz o doente procura abafar
mediante promessas de cura impetuosamente exigidas de nós. Eis uma
questão característica que nos é amiúde endereçada, mesmo depois de nos
esforçarmos durante quase toda uma sessão em persuadir o paciente de que,
no seu caso, consideramos sua análise o tratamento indicado: “O senhor
acredita mesmo, doutor, que o seu tratamento me ajudará efetivamente?”
Seria um erro responder a essa pergunta com um simples “sim”. É preferível
dizer ao paciente que nada esperamos de uma garantia constantemente
renovada. Mesmo o elogio inúmeras vezes repetido do tratamento não pode,
na realidade, fazer desaparecer a suspeita secreta do paciente de que o
médico é um homem de negócios que quer a todo custo vender o seu método,
ou seja, a sua mercadoria. A incredulidade escondida é ainda mais
transparente quando o paciente pergunta, por exemplo:” E o senhor não
pensa, doutor, que o seu método também poderia prejudicar-me?” Respondo
em geral devolvendo-lhe a seguinte pergunta: “Qual é a sua profissão?” Se a
resposta for, por exemplo, “Sou arquiteto”, prossigo: “Então, no seu caso, o
que é que você responderia a alguém que lhe perguntasse, depois de ver as
plantas de um novo edifício projetado por você, se a construção não
desmoronaria?” De um modo geral, as exigências para obter outras garantias
param por ai, sendo esse o sinal de que o paciente se deu conta de que, para
todo e qualquer trabalho, é imprescindível dar um certo crédito de confiança
ao homem do ramo, não estando excluídas, é claro, as decepções.
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Recrimina-se com frequência a psicanalise de ocupar-se realmente


muito de questões financeiras. Penso que ainda não se ocupa o bastante.
Mesmo o homem mais abastado faz cara feia quando tem que dar dinheiro
ao médico; algo em nós parece considerar a assistência médica – de fato,
fornecida primeiro na infância pelas pessoas encarregadas de cuidar da
criança – como algo evidente e incontestável; no final de cada mês, quando
os pacientes recebem sua nota de honorários médicos, a resistência do
doente só esmorece quando tudo o que está escondido, todo o ódio
despertado inconscientemente, toda a desconfiança ou suspeita, são de novo
expressos. O exemplo mais característico da distância entre o consentimento
consciente para o sacrifício e o desprazer escondido foi dado por um paciente
que, no início da entrevista com o médico, declarou: “Doutor, se me ajudar
dou-lhe de presente toda a minha fortuna.” O médico respondeu: “Me
contentarei com as 30 coroas por sessão.” “Não acha um pouco salgado?”,
foi o comentário inesperado do paciente.

No decorrer da análise, é bom ficar sempre de olho aberto para as


manifestações encobertas ou inconscientes que revelam a incredulidade ou
a recusa, e discuti-las em seguida sem rodeios. Com efeito, é compreensível,
desde o início, que a resistência do paciente não perca nenhuma
oportunidade que se lhe ofereça. Todo paciente, sem exceção, registra as
menores particularidades do comportamento, da aparência exterior, da
maneira de falar do médico, mas nenhum se resolve, sem um encorajamento
prévio, a dizê-lo face a face, mesmo que falte assim gravemente à regra
fundamental da análise; portanto, não nos resta outra coisa senão
adivinharmos nós mesmos, de cada vez, com base no contexto associativo
do momento, quando, ao espirrarmos ou ao assoarmos nos com demasiado
estrépito, ofendemos eventualmente o paciente em seus sentimentos
estéticos, quando foi chocado pelo formato do nosso rosto, ou quando
resolveu comparar a nossa estatura à de outras pessoas, muito mais
imponentes. – Em numerosas ocasiões já tentei mostrar como o analista no
tratamento deve prestar-se, às vezes durante semanas, ao papel de “joão-
teimoso” (Watschermann), em que o paciente exercita seus afetos de
desprazer. Se não só não nos protegermos, mas, em todas as ocasiões,
encorajarmos também o paciente, já bastante tímido, colheremos mais cedo
ou mais tarde a recompensa bem merecida de nossa paciência, sob a forma
de uma nascente transferência positiva. Todo indicio de despeito, ou de
sentimento de afronta por parte do médico, prolonga a duração do período de
resistência; mas se o médico não se defende, o paciente cansa-se pouco a
pouco do combate unilateral; quando já provocou o bastante, não pode
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impedir-se de reconhecer, ainda que com reticencias, os sentimentos


amistosos escondidos por trás da defesa ruidosa, o que permitirá
eventualmente penetrar mais a fundo no material latente, sobretudo naquelas
situações infantis onde a base de certos traços de caráter malicioso ³ foi
formada (em geral, por educadores incompreensivos ⁴).

Nada de mais nocivo em análise do que uma atitude de professor ou


mesmo de médico autoritário. Todas as nossas interpretações devem ter
mais o caráter de uma proposição do que de uma asserção indiscutível, e
isso não só para não irritar o paciente, mas também porque podemos
efetivamente estar enganados. O tão antigo costume dos comerciantes que
consiste em acrescentar ao fim de cada fatura a marca “S.E”, ou seja, “salvo
erro”, também deveria ser adotado a propósito de cada interpretação
analítica. Do mesmo modo, a confiança em nossas teorias deve ser apenas
uma confiança condicional, pois num dado caso talvez se trate da famosa
exceção à regra, ou mesmo da necessidade de modificar alguma coisa na
teoria em vigor até então. Já me aconteceu que um paciente sem cultura,
simplório na aparência, tenha apresentado, contra as minhas explicações,
objeções que eu estava disposto a rejeitar de imediato; um melhor exame, no
entanto, mostrou-me que não era eu, mas o paciente quem tinha razão, e que
suas objeções tinham me até ajudado a apreender muito melhor o problema,
de um modo geral. A modéstia do analista não é, portanto, uma atitude
aprendida, mas a expressão da aceitação dos limites do nosso saber.
Assinale-se, aliás, que talvez seja esse o ponto onde, com a ajuda da
alavanca psicanalítica, começa a realizar-se a mudança na anterior atitude
do médico. Compara-se a nossa regra de “sentir com” à presunção com que
o médico onisciente e onipotente tinha até agora o hábito de enfrentar o
paciente.

É evidente que não penso que o analista deva ser mais do que
modesto; ele tem todo o direito de esperar que a interpretação apoiada na
experiência se confirme mais cedo ou mais tarde, na grande maioria dos
casos, e que o paciente ceda à acumulação de provas. Mas, em todo caso, é
preciso aguardar pacientemente que o doente tome a decisão; toda a
impaciência por parte do médico custa ao doente tempo e dinheiro, e ao
médico uma quantidade de trabalho que teria perfeitamente podido evitar.

Aceito fazer minha a expressão “elasticidade da técnica analítica”


forjada por um paciente. É necessário, como uma tira elástica, ceder as ten-
_____________________________________________________________
³ Maliziös em alemão, o que seria preferível traduzir por “maldoso”. (NTF)
⁴ Ver também a esse propósito a comunicação do Congresso de Innsbruck, “O problema do fim
da análise” (neste mesmo volume, p.15).
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dências do paciente, mas sem abandonar a tração na direção de suas


próprias opiniões, enquanto a falta de consistência de uma ou de outra
dessas posições não estiver plenamente provada.

Em nenhum caso se deve sentir vergonha de reconhecer, sem


restrições, erros cometidos no passado. Nunca se esqueça que a análise não
é um procedimento sugestivo, em que o prestigio do médico e sua
infalibilidade têm que ser preservado acima de tudo. A única pretensão
alimentada pela análise é a da confiança na franqueza e na sinceridade do
médico, não lhe fazendo mal algum o franco reconhecimento de um erro.

A posição analítica não exige apenas do médico o rigoroso controle do


seu próprio narcisismo, mas também a vigilância aguda das diversas reações
afetivas. Se, outrora, se achava geralmente que um grau excessivo de
“antipatia” podia constituir uma contraindicação para a condução de um
tratamento psicanalítico, devemos hoje, após ter-se obtido uma melhor
compreensão das circunstâncias, excluir a priori uma tal contraindicação, e
esperar da parte de um analista analisado que o autoconhecimento e o
autocontrole sejam bastante fortes para não ceder diante das idiossincrasias.
Com efeito, esses “traços antipáticos” são apenas, na maioria dos casos,
fachadas que dissimulam traços de caráter muito diferentes. Se o psicanalista
anui, é como se ele deixasse dominar pelo paciente; fazer-se expulsar é
frequentemente o objetivo inconsciente de uma conduta intolerável. O saber
permite-nos, com todo o conhecimento de causa, considerar a pessoa mais
desagradável do mundo como um paciente que precisa curar-se e, como tal,
não se lhe pode recusar a nossa simpatia. Aprender essa humildade mais do
que cristã faz parte das tarefas mais difíceis da prática psicanalítica. Se a
realizarmos, então a correção poderia ser coroada de êxito mesmo em casos
desesperadores. Devo sublinhar uma vez mais que só uma verdadeira
posição de “sentir com” pode ajudar-nos; os pacientes perspicazes não
tardam em desmascarar toda pose fabricada.

Pouco a pouco, vai-se percebendo até que ponto o trabalho psíquico


desenvolvido pelo analista é, na verdade, complicado. Deixam-se agir sobre
si as associações livres do paciente e, ao mesmo tempo, deixa-se a sua
própria imaginação brincar com esse material associativo; nesse meio tempo,
comparam-se as novas conexões com os resultados anteriores da análise,
sem negligenciar, por um instante sequer, o exame e a crítica de suas
próprias tendências.

De fato, quase poderíamos falar de uma oscilação perpétua entre


“sentir com”, auto-observação e atividade de julgamento. Esta última anuncia-
se, de tempos em tempos, de um modo inteiramente espontâneo, sob a forma
de sinal que, naturalmente, só se avalia primeiro como tal; é somente com
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base num material justificativo suplementar que se pode, enfim, decidir uma
interpretação.

Ser parcimonioso nas interpretações, em geral, nada dizer de


supérfluo, é uma das regras mais importantes da análise; o fanatismo da
interpretação faz parte das doenças de infância do analista. Quando se
resolve as resistências do paciente pela análise, chega-se algumas vezes, na
análise, a estágios em que o paciente realiza todo o trabalho de interpretação
quase sozinho, ou apenas com uma ajuda mínima.

Retornaremos, uma vez mais, à minha “atividade” tão louvada e tão


vituperada⁵. Creio estar, enfim, em condições de dar a indicação precisa,
exigida por muitos com toda a razão, quanto ao momento dessa medida
técnica. Talvez saibam que, no início, eu estava propenso a prescrever, ao
lado da associação livre, certas regras de comportamento, desde que a
resistência admitisse tal carga. Mais tarde, a experiência ensinou-me que
jamais devíamos dar ordens ou formular interditos, mas no máximo,
aconselhar certas modificações da maneira de comportar-se, permanecendo
sempre pronto a retirá-las se se verificasse que eram um obstáculo ou que
provocam resistências. A opinião que sustentei, desde o começo, a saber,
que era sempre o paciente, e jamais o médico, quem podia ser “ativo”, levou-
me finalmente à constatação de que nos devemos contentar em interpretar
as tendências para agir, escondidas do paciente, a fim de apoiar as débeis
tentativas de superar as inibições neuróticas que ainda subsistem, sem
insistir inicialmente na aplicação de medidas coercitivas, nem mesmo sob a
forma de conselhos. Se formos suficientemente pacientes, o próprio doente
acabará, cedo ou tarde, por perguntar se pode arriscar tal ou qual tentativa
(por exemplo, ultrapassar uma construção fóbica); evidentemente, não lhe
recusaremos nesse caso o nosso acordo, nem os nossos encorajamentos e
obteremos dessa maneira todos os progressos esperados da atividade, sem
irritar o paciente e sem adulterar as coisas entre ele e nós. Em outras
palavras: cabe ao paciente determinar ou, pelo menos, indicar sem mal-
entendido possível, o momento da atividade. Mas está sempre bem
estabelecido que tais tentativas provocam variações de tensão nos sistemas
psíquicos, e que demonstram plenamente ser assim um instrumento da
técnica analítica, a par das associações.

Nem outro trabalho técnico⁶, já chamei a atenção para a importância da


translaboração; no entanto, falei dela num sentido um pouco unilateral, como
de um fator puramente quantitativo. Penso, contudo, que a translaboração
também tem um lado qualitativo, e que a reconstrução paciente do mecanis-
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⁵. Ver os trabalhos sobre a técnica nos volumes III a IV das Obras Completas.
⁶. “O problema do fim da análise”, neste volume.
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mo da formação do sintoma e do caráter tem que ser repetida a cada novo


progresso da análise. Cada nova compreensão das significações exige a
revisão de todo o material precedente, o que poderia muito bem derrubar as
partes essenciais do edifício que já se supunha terminado. A tarefa de uma
dinâmica da técnica, entrando em todos os detalhes, será a de constatar as
relações mais finas entre essa translaboração qualitativa e o fator quantitativo
(descarga de afeto).

Uma forma especial do trabalho de revisão parece reaparecer em cada


caso. Penso na revisão das experiências vividas durante o próprio tratamento
analítico. Pouco a pouco, a própria análise torna-se um fragmento da história
do paciente, que ele passa uma vez mais em revista antes de se separar de
nós. Durante essa revisão, ele vê com uma certa distância e maior
subjetividade as experiências do começo de seu encontro conosco, as
peripécias consecutivas de resistência e de transferência que lhe pareciam,
em dado momento, tão atuais e tão vitais, e desvia em seguida o seu olhar
da análise a fim de dirigi-lo para as tarefas reais da vida.

Finalmente, gostaria de arriscar alguns comentários a respeito da


metapsicologia da técnica⁷. Em vários dos meus artigos, chamei a atenção
para o fato de o processo de cura consistir, em grande parte, em o paciente
colocar o analista (o novo pai) no lugar do verdadeiro pai, que ocupa tanto
espaço no superego e que continua doravante convivendo com esse
superego analítico. Não nego que esse processo tenha efetivamente lugar
em todos os casos, admito até que essa substituição possa acarretar êxitos
terapêuticos importantes, mas gostaria de acrescentar que uma verdadeira
análise de caráter deve pôr de lado, pelo menos passageiramente, toda
espécie de superego, inclusive o do analista. Pois o paciente deve, em última
instância, estar livre de todo vínculo emocional, na medida em que o vínculo
transcende a razão e suas tendências libidinais próprias. Somente essa
espécie de desconstrução do superego pode levar a uma cura radical; os
resultados que consistirem apenas na substituição de um superego por outro
devem ser ainda designados como transferenciais; não correspondem
certamente a um objetivo final do tratamento: desembaraçar-se igualmente
da transferência.

Mencionarei agora um problema que nunca foi suscitado até o presente


momento, ou seja, uma eventual metapsicologia dos processos psíquicos do
_____________________________________________________________

⁷. Entende-se por “metapsicologia”, como todos sabem, a soma de representações que nos
podemos fazer a respeito da estrutura e da energética do aparelho psíquico, com base na
experiência psicanalítica. Ver os trabalhos metapsicológicos de Freud no volume V das
Gesammele Werke (em francês: Métapsychologie, Editions Gallimard).
analista durante a análise. Seus investimentos oscilam entre identificação
(amor objetal analítico), por um lado, e autocontrole ou atividade intelectual,
por outro. No decorrer de sua longa jornada de trabalho, jamais pode
abandonar-se ao prazer de dar livre curso ao seu narcisismo e ao seu
egoísmo, na realidade, e somente na fantasia, por breves momentos. Não
duvido de que tal sobrecarga – que, por outra parte, quase nunca se encontra
na vida – exigirá cedo ou tarde a elaboração de uma higiene particular do
analista.

É fácil reconhecer os analistas não analisados (selvagens) e os


pacientes incompletamente curados, pois sofrem de uma espécie de
“compulsão para analisar”; a motilidade livre da libido, após uma análise
terminada, permite, em compensação, deixar governar, se necessário, o
autoconhecimento e o autocontrole analíticos, mas sem ser impedido por
outro lado, de maneira nenhuma, de desfrutar simplesmente a vida. O
resultado ideal de uma análise terminada é, pois, precisamente, essa
elasticidade que a técnica exige também do psiquiatra. Um argumento a mais
em favor da necessidade absoluta da “segunda regra fundamental da
psicanálise”.

Dada a grande importância, em minha opinião, de qualquer conselho


técnico, não pude decidir-me a publicar este artigo sem o ter submetido antes
à crítica de um colega.

“O título (Elasticidade) é excelente”, declarou esse crítico, “e mereceria


receber uma aplicação mais ampla, pois os conselhos técnicos de Freud
eram essencialmente negativos. O que lhe parecia ser o mais importante era
ressaltar o que não se devia fazer, assinalar as tentações que surgiram na
contracorrente da análise. Quase tudo o que se deve fazer de positivo, ele
relegou ao tato que você mencionou. Mas o resultado assim obtido foi que os
sujeitos obedientes não perceberam a elasticidade dessas convenções e se
submeteram a elas como se fossem leis-tabus. Era preciso que isso viesse a
ser revisto um dia, sem anular, evidentemente, as obrigações.

“Justamente porque o que você diz a respeito do ‘tato’ é verdade,


parece-me perigoso aceitar isso sob essa forma. Todos os que não possuem
tato verão aí uma justificação do arbitrário, ou seja, do fator subjetivo
(influência dos indomados complexos próprios). Na realidade, tentamos
avaliar, num nível que continua sendo essencialmente pré-consciente, as
diferentes reações que esperamos para as nossas intervenções; o que conta,
antes de tudo, é a avaliação quantitativa dos fatores dinâmicos na situação.
Naturalmente, não se pode dar regras para essas medidas. A experiencia e
a normalidade do analista terão que decidi-lo. Mas deveria retirar-se assim
ao tato o seu caráter místico.”

Compartilho inteiramente da opinião do meu crítico, ou seja, que essa


indicação técnica conduzirá, como todas as precedentes e apesar da maior
prudência em sua formulação, a falsas interpretações e a abusos. Sem
dúvida alguma, serão numerosos aqueles – não só entre os principiantes,
mas também entre todos os que têm uma tendência para o exagero – que se
aproveitarão de minhas proposições acerca da importância do “sentir com”
para enfatizar, no tratamento, o fator subjetivo, isto é, a intuição, e subestimar
o outro fator que sublinhei como sendo decisivo, a apreciação consciente da
situação dinâmica. Mesmo as repetidas advertências ficarão provavelmente
sem efeito contra tais abusos. Vi mesmo alguns analistas usarem as minhas
tentativas de atividade – prudentes, e que cada vez o são mais – para dar
livre curso às suas propensões para a aplicação de medidas de coerção,
inteiramente não analíticas e até, por vezes, impregnadas de sadismo. Não
me surpreenderia, portanto, ouvir daqui a algum tempo que fulano ou sicrano
adotou as minhas considerações sobre a indispensável paciência e tolerância
do analista como base para uma técnica masoquista. E, no entanto, o
procedimento que aplico e recomendo, a elasticidade, não equivale, em
absoluto, a ceder sem resistência. Procuramos, é certo, colocar-nos no
diapasão do doente, sentir com ele todos os seus caprichos, todos os seus
humores, mas também nos atemos com firmeza, até o fim, à nossa posição
ditada pela experiência analítica.

Privar o “tato” do seu lado místico era justamente o motivo principal que
me levava a escrever este artigo; mas admito ter simplesmente abordado o
problema, sem tê-lo resolvido. No tocante à possibilidade de formular também
conselhos positivos para a avaliação de certas relações dinâmicas típicas, eu
seria talvez um pouco mais otimista do que o meu crítico. Aliás, sua exigência
no que se refere à experiência e à normalidade do analista é virtualmente
equivalente à minha, a saber, que a única base confiável para uma boa
técnica analítica é a análise terminada do analista. É evidente que num
analista bem analisado, os processos de “sentir com” e de avaliação, exigidos
por mim, não se desenrolarão no inconsciente, mas ao nível pré-consciente.

As advertências prodigalizadas acima também me obrigam,


manifestamente, a precisar um outro ponto de vista já exposto neste artigo.
Trata-se da passagem onde é dito que uma análise de caráter,
suficientemente profunda, deve desembaraçar-se de toda espécie de
superego. Um espírito cioso de rigor poderia interpretar isso dizendo que a
minha técnica quer privar as pessoas de seus ideais. Na realidade, o meu
combate só se volta contra a parte do superego que se tornou inconsciente
e, desse modo, ininfluenciável; naturalmente, nada tenho a objetar a que um
homem normal continue conservando no seu pré-consciente uma quantidade
de modelos positivos e negativos. É verdade, porém, que não terá de
obedecer como um escravo a esse superego pré-consciente, como obedecia
antes à imago parental inconsciente.

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