David William Foster - Sexualidades e Identidades Culturais - UFPel, 2020
David William Foster - Sexualidades e Identidades Culturais - UFPel, 2020
David William Foster - Sexualidades e Identidades Culturais - UFPel, 2020
Reitoria
Reitor: Pedro Rodrigues Curi Hallal
Vice-Reitor: Luis Isaías Centeno do Amaral
Chefe de Gabinete: Taís Ullrich Fonseca
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Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Flávio Fernando Demarco
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Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Otávio Martins Peres
Pró-Reitor Administrativo: Ricardo Hartlebem Peter
Pró-Reitor de Infra-estrutura: Julio Carlos Balzano de Mattos
Pró-Reitor de Assuntos Estudantis: Mário Ren ato de Azevedo Jr.
Pró-Reitor de Gestão Pessoas: Sérgio Batista Christino
Conselho Editorial
Presidente do Conselho Editorial: Ana da Rosa Bandeira
Representantes das Ciências Agrárias: Victor Fernando Büttow Roll (TITULAR) e Sandra Mara da Encarnação Fiala Rechsteiner
Representantesa da Área das Ciências Exatas e da Terra: Eder João Lenardão (TITULAR)
Representantes da Área das Ciências Biológicas: Rosangela Ferreira Rodrigues (TITULAR) e Francieli Moro Stefanello
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Representantes da Área das Ciências da Saúde: Fernanda Capella Rugno (TITULAR) e Anelise Levay Murari
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e Maria da Graças Pinto de Britto
Representante da Área das Ciências Humanas: Charles Pereira Pennaforte (TITULAR), Lucia Maria Vaz Peres
e Pedro Gilberto da Silva Leite Junior
Representantes da Área das Linguagens e Artes: Lúcia Bergamaschi Costa Weymar (TITULAR), Chris de Azevedo Ramil
e João Fernando Igansi Nunes
2
David William Foster
pelotas, 2020
Sexualidades e identidades culturais
Direção
Ana da Rosa Bandeira
Editora-Chefe
Seção de Pré-Produção
Isabel Cochrane
Filiada à A.B.E.U. Administrativo
Filiada à A.B.E.U. Seção de Produção
Rua Benjamin Constant, 1071—Porto Suelen Aires Böettge
Pelotas, RS—Brasil Administrativo
Fone +55 (53)3227 8411 Anelise Heidrich
[email protected] Revisão
Guilherme Bueno Alcântara (Bolsista)
Design Editorial
Seção de Pós-Produção
Morgana Riva
Assessoria
Madelon Schimmelpfennig Lopes
Administrativo
Revisão Técnica
Ana da Rosa Bandeira
João Luis Pereira Ourique e
Lizandro Carlos Calegari
Revisão Ortográfica
Anelise Heidrich
4
SUMÁRIO
Prefácio 9
Apresentação 13
PARTE I 16
A perspectiva queer e as identidades homoeróticas: proposições teóricas 17
PARTE II 55
_ “Homossexualismo: sexualidade e valor”, de Samuel Rawet:
um texto fundador da teoria queer brasileira 56
_ Do “Para inglês ver” ao “Para brasileiro entender”:
escrevendo o sócio-texto homoerótico brasileiro 66
_ Duas modalidades de escrita sobre a homossexualidade
na ficção brasileira contemporânea 75
_ Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha:
um texto fundador da literatura queer brasileira 89
_ Construindo espaços Queer:
A intrusa, de Carlos Hugo Christensen 108
_ Um Teorema brasileiro:
a queerização da família em O visitante, de Hilda Hilst 125
_ A homossexualidade em Aqueles dois, de Sérgio Amon:
dentro e fora do armário 138
_ Re-visões culturais da trupe brasileira Dzi Croquettes 154
_ Barrela, dePlínio Marcos: posicionamentos
e poder social entre pessoas do mesmo sexo 163
_ Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues,
e a fragmentação cênica do casamento 178
_ A literatura homoerótica de Glauco Mattoso 186
_ Santidade, uma encenação de Zé Celso
no Teatro Oficina (São Paulo, 2007) 202
_ A feminização do espaço social em Parque
industrial, de Patrícia Galvão 209
_ O maravilhoso poder das mulheres contra os deuses
telúricos em Guadalupe, de Angélica Freitas e Odyr Bernardi 233
PARTE III 241
_ “Espanhol queer”, “português queer”: notas para investigação 242
_ O estudo dos temas gays na América Latina a partir de 1980 259
_ O recente cinema queer latino-americano 279
Referências aos textos 288
Referências bibliográficas 293
Sobre os tradutores 316
O autor 320
Os organizadores 321
APRESENTAÇÃO DA
SEGUNDA EDIÇÃO
Desde o início do projeto que pretendia divulgar as pesquisas do professor David William
Foster para os leitores de língua portuguesa a partir da seleção de textos voltados para a
realidade brasileira e latino-americana, sabíamos da responsabilidade e da importância
que esse trabalho carregava. Além da tradução de ensaios publicados ao longo de uma
trajetória extremamente relevante de pesquisas e de reflexões acerca das culturas e das
identidades sexuais – cujos elementos teóricos vieram a compor o título da publicação
lançada no formato impresso em 2019 –, também tivemos a oportunidade de disponibilizar
ensaios inéditos que, em conjunto com os demais textos publicados em vários idiomas, dão
um panorama significativo para os leitores que poderão ter acesso a esse material com a
publicação no formato digital no ano de 2020 de Sexualidades e Identidades Culturais.
O que não estava na nossa agenda de trabalho e de divulgação do resultado
da seleção, organização, tradução e preparação dos originais – sempre com o
acompanhamento do professor Foster –, foi a grande perda que tivemos desse brilhante
intelectual que articulava aspectos da produção artística e cultural com questões políticas
e histórico-sociais indispensáveis para pensar os diversos matizes da nossa sociedade. O que
nos causa ainda mais incredulidade é o fato de que estávamos em contato com David
Foster com frequência, incluindo poucas semanas que antecederam a sua morte, visando,
entre outros assuntos, exatamente ao lançamento de uma segunda edição digital com o
intuito de atingir um público maior, especialmente nessa época em que a pandemia exige
ainda mais de todos nós.
Esperamos que este material a que agora ampliamos a possibilidade de acesso seja
algo que venha a embasar novas reflexões. Acreditamos que não haveria maior homenagem
a David W. Foster do que a leitura da sua obra, objetivando manter um pouco mais entre nós
a presença de um pensamento indomável e questionador ao lado de uma personalidade
amável e generosa.
In this collection, editors Lizandro Carlos Calegari and João Luis Pereira Ourique
have gathered together a wide selection of David William Foster’s essays that braid
together queer theory and Brazilian literature, culture, and film. Foster has long been
at the forefront of expanding the canon in Latin American literary studies, and his
insistence upon reading queer texts, and reading texts queerly, has helped to shape the
field and expand its reach. It is hard not to wax poetically when speaking about Foster’s
oeuvre – he is prolific, and he has, as Debra Castillo writes, “a wide-ranging curiosity
that takes him from Río Bravo to Tierra del Fuego, and to almost every imaginable stop
in between”1.
In this preface, I briefly want to dwell on Foster’s essay, “Bom-Crioulo, de
Adolfo Caminha: um texto fundador da literature gay brasileira”, which was originally
published in English in 1988 and is the earliest essay in this collection. Preparing this
preface has given me a chance to re-read Foster’s essays, and if Foster found Bom-
Crioulo to be “almost a startling discovery”2, I find myself finding his essay to be quite
the “startling discovery”, as well. On its face, read in 2018, the essay might not appear
1 CASTILLO, Debra A. Review of Mexico City in Contemporary Mexican Cinema by David William
Foster. Hispania. 2004. p. 82.
2 FOSTER, David William. Adolfo Caminha’s Bom-Crioulo: A Founding Text of Brazilian Gay
Literature. Chasqui. 1988. p. 13.
all that impressive; after all, we routinely discuss, teach, and research gay literature,
but when I begin to think of the context of this essay, I am startled. Foster’s essay is
written before Eve Kosofsky Sedgwick’s Epistemology of the Closet, Judith Butler’s
Gender Trouble, David M. Halperin’s One Hundred Years of Homosexuality, Annamarie
Jagose’s Queer Theory, Mark Doty’s Making Things Perfectly Queer3 (one of Foster’s
favourites!) and Diana Fuss’s edited collection Inside/ Out: Lesbian Theories, Gay
Theories. Foster could not rely on the critical apparatus that scholars now have, a point
he notes in the preface to Sexual Textualities: “[s]everal years ago, when I published Gay
and Lesbian Themes in Latin American Literature4, queer issues were just beginning to
gain a place in Hispanic studies”5. It is important to stress this point because Foster was
at the forefront of these discussions, searching not only for texts, but for a language to
help give not only meaning, but also legitimacy, to these seemingly forgotten texts.
In his essay on Caminha’s Bom-Crioulo, Foster begins in an almost canonical
fashion, paying respect, as one ought to, to Machado de Assis, who he calls “the first great
nineteenth-century Latin American writer”6. From this vantage, he seeks to amplify the
scope of nineteenth-century Latin American literature by including Adolfo Caminha’s
Bom-Crioulo. Foster writes that “the most striking quality of Bom-Crioulo is that not
only is it the first explicit gay novel in Brazilian (and Latin American literature), but that
it may be alleged to be one of the first such works in modern Western literature”7. Read
today, Foster’s essay seems quaint, but it doesn’t seem queer. But, if one reads closely,
perhaps reads Foster queerly, one can see inklings of something that would become
queer theory. Foster continues, “this is especially true if we define gay literature as
writing about questions related to male homosexual identity, whether viewed as inherent
3 DOTY, Alexander. Making Things Perfectly Queer: Interpreting Mass Culture. 1993.
4 FOSTER, David William. Gay and Lesbian Themes in Latin American Writing. 1991.
5 FOSTER, David William. Sexual Textualities: Essays on Queer/ ing Latin American Writing. 1997. p. ix.
6 FOSTER, David William. Adolfo Caminha’s Bom-Crioulo: A Founding Text of Brazilian Gay Writing.
Chasqui. 1988. p. 13.
7 Idem. Ibidem. p. 14.
character or chosen behavior”8. Foster is interested perhaps more in the behavior than
in the identity politics. Truth be told, I do not think Foster has been too invested in gay
literature or lesbian literature – this was merely the language available to him; instead, I
think he has long been more interested in something queerer. It would seem that identity
politics narrows the scope of vision, the possibilities of interpretation for Foster. Indeed,
Foster seems interested in “the open mesh of possibilities” that Eve Kosofsky Sedgwick
speaks of in Tendencies, which enables Foster to masterfully explore the intersections of
race and sexuality in Bom-Crioulo9. In “Reafirmações sobre o queer e o teatro”, Foster
explains, “sempre existiu o queer no teatro (entendendo o termo em seu alcance mais
extensive, como tudo aquilo que desdiz o rigor da heteronormavidade)”10. It should not
be lost on us either that Foster uses words like “homosexual”, “gay”, and “lesbian” less
and less in his writings and seems more and more interested in “making things perfectly
queer” as Doty would have it.
For Foster, queer theory has something of a utopian potential as it is always
exploding things open, asking a new and exciting set of questions, pushing us to think
more expansively, broadly, and perhaps even, flirtatiously. Foster writes in the preface
to Queer Issues in Contemporary Latin American Filmmaking, “queer studies questions
patriarchal heteronormativity and the compact narrative of compulsory matrimony,
compulsory heterosexuality, compulsory monogamy, and the unquestionable
homologizing of romantic love, erotic desire, and individual fulfilment”11. Foster wants
his readers to leave behind the comforts to which they have grown accustomed and to
think through the polemics of desire that clutters the page, stage, and screen. Foster
moreover encourages readers to think through the various ways in which identities and
desires interest, his work is interested in questions of race, religion, and region, for
- Jonathan A. Allan12
12 Jonathan A. Allan é professor de inglês na Brandon University, no Canadá. Suas áreas de interesse in-
cluem a teoria queer, a escrita criativa, estudos de gênero e de mulheres. É autor de Reading from Behind:
A Cultural Analysis of the Anus (Lendo por trás: uma análise cultural do ânus, University of Regina Press
and Zed Books, 2016), que consiste num estudo sobre a analidade e a masculinidade na teoria literária e
cultural. Atualmente, está concluindo o seu segundo livro, Uncut: A Cultural Analysis of the Foreskin (Sem
cortes: uma análise cultural do prepúcio), que visa a um estudo cultural do prepúcio, reunindo elementos
da sociologia, da psicologia, dos estudos religiosos, das ciências biomédicas, dos estudos culturais, dos
estudos literários e da teoria queer.
Apresentação
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Sexualidades e identidades culturais
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como Eu, Vós, Ele/Um e Outro em um circuito de prazeres eróticos através e ao longo
do corpo/dos corpos onde as fronteiras entre os indivíduos perdem sua especificidade
propícia ao patriarcado.
Em contrapartida, se reivindica a masturbação como signo do controle do sujeito
sobre o seu próprio corpo: masturbação como prática autoerógena e masturbação como
aquilo que um corpo faz com outro em um gozo autocentrado que é compartilhado
recíproca e reflexivamente. A masturbação não é necessariamente uma prática solitária,
mas um cuidado com o próprio corpo e, nesse sentido, constitui um nível de controle
autoerógeno que permite compartilhar eficazmente o prazer com outro(s) corpo(s).
***
São duas características que se sobressaem do queer no que se refere a levá-lo até
uma teorização cultural:
1) O queer se fundamenta em uma epistemologia aberta que repudia as definições
fixas sobre as tensões do patriarcado e suas definições da sexualidade. Definir a língua,
e desde esse ponto definir o mundo, sempre tem sido o sonho principal do patriarcado,
e um dos impulsos cruciais do queer é a subversão deste projeto por amor a outras
formas de construir uma epistemologia da experiência e a subcategoria que constitui a
sexualidade.
2) Em vista de que o patriarcado propõe um sistema fechado de análise social
e histórico, tanto no que diz respeito ao que exclui quanto no que se refere a suas
aspirações desde um modelo que engloba e explica tudo, o queer se afasta da urgência
de formular um contramodelo igualmente excludente e globalizante. O queer não
constitui uma narrativa mestra, nem se propõe a elaborar tal coisa, por uma questão
de deixar em aberto e suspenso considerações sobre identidades fixas, motivações
inteiramente consequentes, antecedentes e procedentes estritamente unidirecionais e
transitivos e formulações exclusivamente entrelaçadas. Trata-se uma boa dúvida quanto
a possibilidade de entender o vasto mare mágnum do desejo humano e de inculcar
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vagina como signo da castração do pênis e dos testículos, ou o clitóris como uma atrofia
(paródia?) do membro viril.
Nas duas conjugações, o primeiro termo alude à condição biológica (vista como
predeterminada e inapelável — por ele, imperativamente inalterável). O segundo se
refere à identidade de gênero que se forja sobre a base do sexo biológico. Visto como
um conjunto de personagens imóveis, é praticada uma distribuição incondicional de
cada gênero frente às categorias sexuais. No discurso popular, tende-se a tratar sexo
e gênero como sinônimos, tanto as palavras como as categorias que nesta formulação
pretende-se captar. Essa sinonímia reforça a continuidade sem rupturas entre as esferas
da construção social do patriarcado e os princípios do heterossexismo compulsório. O
terceiro termo aponta para o papel social que os corpos estão condenados a cumprir,
papéis que são projetos de toda uma vida. A construção de cada um vale-se do amplo
panorama de elementos da tecnologia da identidade genérica e o indivíduo, ao longo de
toda a vida, cuida de polir, manter e corrigir a realização de um e outro dos únicos papéis
válidos. Ser “nada menos que um homem inteiro” ou “nada menos que uma mulher
inteira” requer um enorme esforço e múltiplas validações frente a si mesmo e frente aos
outros. Acaba que muitos não cumprem com um papel estelar e poucos triunfam sem
ambiguidades. Somente na terceira idade se encontram concessões e tréguas, quando
não diretamente um grau de cansaço, como a mulher que começa a negar a máscara da
maquiagem ou o homem que aceita ir às compras no bairro com uma bolsa plástica de
mercado.
Revisar esse sistema de homologias não conduzirá imperiosamente a uma
reconfiguração definitiva da sociedade, Mas sim oferecerá uma brecha desde a qual se
pode contemplar a dinâmica construtiva do patriarcado. Em uma primeira instância,
uma revisão permitirá entender a instabilidade essencial deste sistema, de onde, uma e
outra vez, na realidade da sociedade vivida, quase sem exceções, o indivíduo deixa de
cumprir, de alguma outra maneira, com esta trama e com as delicadas negociações no
fórum cultural que lhe permitem sustentar uma afinada homologia entre os componentes.
Enfatiza-se que, pelo menos para os propósitos da discussão neste momento, se está
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no corpo dos outros. Um não pode auscultar seu próprio corpo com outros propósitos,
e o mero afã de conhecer o próprio corpo tem sido proscrito por poder conduzir a
descobertas inconvenientes para o sistema, de definições heterossexistas. Encobre-se,
elimina-se, reprime-se qualquer pormenor do corpo que descarte o sistema e qualquer
ato ou processo que tenda a propiciar algo que desminta este sistema é uma ameaça para
ele e para a participação do indivíduo no mesmo.
Assim, o queer propaga um olhar não circunscrito, desenfreado, um olhar sem
propósito fixo, como um radar, não de conformismo, mas de rupturas com ele. Procurando
sempre aporias no sistema homológico do heterossexismo, o olhar transgressor busca
seu apoio no olhar do outro: olhem para mim como um sujeito transgressor e olhem
os traços da minha transgressão. O olhar do outro ajuda o sujeito a encontrar em si
mesmo quais são os traços de sua sexualidade, sejam os signos convencionais, mas
codificados, ou os territórios do corpo que foram deixados como terra incógnita para o
heteressexismo compulsório.
A homofobia pode se valer do olhar transgressor ao outro, mas não com o afã
de erotizá-lo nem de erotizar-se a si mesmo através do corpo do outro, mas através do
olhar retributivo do outro. O olhar homofóbico anula. Porém, antes que ocorra pode
enfatizar os elementos do corpo que terão que permanecer vedados: mostra para o outro
o próprio pênis não apenas como um ato de incompreensão metonímica (como se o pênis
fosse o único e paradigmático órgão sexual, a única e paradigmática fonte de prazer),
mas também para oferecer o que não deve ser oferecido em uma sinistra generosidade
espetacular que logo abrirá caminho para a violência contra aquele que olha para o que
é oferecido. O olhar-armadilha do homofóbico lhe permite erotizar seu próprio corpo
(ainda que de uma maneira radicalmente parcial), precisamente como parte de uma
afirmação da proscrição de semelhante erotização e do olhar que a acompanha.
***
O queer se coloca contra o heterossexismo compulsório. Não contra o
heterossexismo em si: por mais que seja a norma, não deixa de ser uma opção entre
outras (por exemplo: o ménage à trois). Pode-se optar ou não pelo heterossexismo,
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e se pode optar por ele com exclusão de outras opções ou em concurso com elas. O
heterossexismo será uma opção normalizadora por razões de recreação biológica e/
ou como consequência do peso de uma determinada herança sociocultural encarnada
em múltiplas ideologias políticas e religiosas. Mas a compulsão do heterossexismo
opera com o intuito de excluir a contemplação de qualquer outra opção disjuntiva ou
conjuntiva e se fundamenta mais do que em qualquer outra coisa na premissa de que
qualquer distanciamento dele ameaça a reprodução da raça humana, de que a raça
humana somente pode perpetrar-se mediante uma rigorosa imposição e manutenção do
heterossexismo compulsório.
A compulsão ao heterossexismo traz à tona outro sistema de relações homológicas.
Impõe a necessidade do matrimônio monogâmico e reprodutivo. O indivíduo que não
se casa, se não é por razões sancionadas pelo Estado (seja a categoria privilegiada dos
casado com um Ser Supremo, seja a categoria da escória marginalizada: prostitutas,
presos ou deficientes), ocupa uma Terra de Ninguém, quando não é alvo de francos
repúdios sociais. E o casal que não se reproduz, se não é por razões confirmadas pela
ciência (infertilidade, inaptidão fisiológica), é também igualmente estigmatizado. Às
vezes, a relação homoerótica é menos denunciada pelo que pode ser assumida (e sempre
se supõe que surge acompanhada de uma total exclusão de uma relação heteroerótica
paralela), que pelo que não é, no que o aspecto reprodutivo se refere: trata-se de
desperdiçar a semente.
A estrita correlação entre reprodução e monogamia, que a assegura e legitima
dentro de uma genealogia social, se complementa com a estrita correlação entre romance,
intimidade, amor e prazer. Somente o casal heterossexual que alcança a harmonia
integral entre estas (e possivelmente outras) esferas de emoções ou sentimentos cumpre
com o paradigma do heterossexismo. Concomitantemente, qualquer subtração a esta
homologia atenta contra a lei do heterossexismo e abre caminho para a dissidência/
dissolução sexual. Dentro de uma concepção do queer que reconheça a possibilidade
do prazer erótico sem o amor romântico — ou de uma relação sentimental que exclua a
reprodução da espécie — se vê assomar o inimigo do heterossexismo compulsório. Por
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mais que se admita hoje em dia, em maior ou menor medida, a congruência de práticas
não reprodutivas dentro do casamento, é sempre com o intuito de consolidar outras
dimensões da relação que tenderão a propiciar a reprodução em seu devido momento e
as responsabilidades familiares que ela acarreta.
Ainda quando há setores sociais dispostos a tolerar as relações homoeróticas (ou
homossexuais, para não cair também no privilégio forçado do prazer, a menos que se
mantenha que o prazer é sempre o grau zero da motivação humana, defina-se da melhor
forma), é “a falta de algo melhor” (por exemplo: um parceiro do sexo oposto), na ausência
de uma relação heterossexual considerada como o ponto de referência da sociedade.
Portanto, tende-se a contemplar com benevolência aquelas relações homoeróticas que
se assemelham a um paradigma da relação heterossexual e a negar a legitimidade, ou
pelo menos, o status ontológico de qualquer relação que resista a tal equiparação.
***
Costuma-se perguntar qual é a causa do problema da homossexualidade. Esta
pergunta sofre de sérios problemas quanto aos três predicados subjacentes. O mais
óbvio é a utilização da palavra “homossexualidade” (a única que se prefere neste tipo de
interrogações), por causa do discurso médico-jurídico. Recentemente tem-se trabalhado
de forma ansiosa para superar esse conceito, para deixar em seu lugar outras propostas que
captem facetas do desejo entre homens e mulheres que ficam de fora da contemplação do
discurso médico-jurídico. Mas há uma ambiguidade na palavra “homossexual” que não
se transcende facilmente. Tem haver com as alusões sobrepostas se a homossexualidade
é uma maneira de ser (permanente — proposta biológica — ou transitória — proposta
comportamental/volitiva), uma maneira de identificar-se e/ou um conjunto de atos
corporais consigo mesmo ou com alguém do outro sexo. Tanto os discursos populares
como os discursos técnicos sofrem com o deslizamento entre esses três pontos cardeais,
uma homologia que unicamente tem sentido se a homossexualidade é considerada um
fenômeno singularmente opaco a discriminações. Em verdade, no entanto, os vários
discursos em circulação sobre a sexualidade tendem a privilegiar uma ou outra faceta,
com o resultado de que o status das outras — e de outras que se possa detectar — flutuam
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termos médios ao homem pelas mulheres do patriarcado (por exemplo: para as que o
tamanho do pênis não é uma consideração de primeira importância).
Este ideal pautado na paródia dá lugar a outro valor simbólico do supermacho
a cultura gay masculina: para zombar da imagem do macho. Esta zombaria, além de
ser a primeira instância de uma apreciação do temor de “No fim das contas, eu sou
mais homem que vocês” (por ser mais sensível, mais aberto, mais sofisticado, mais
experimentado e, acima de tudo, com a cabeça menos confusa frente a padrões rígidos
de comportamento e sentimentos), se estende até o tenebroso desafio de rebaixar o
macho. O macho é perseguido não para aproveitá-lo em seu papel de penetrador, o
que confirmaria ao patriarcado deixar intacto os esquemas do heterossexismo binário,
mas para fazê-lo penetrar em uma radical revisão dos papéis, marcada pelo prazer
desconhecido e delirante que o macho sente ao abordar experiências e conjugações
do corpo empenhadamente excluídas do roteiro do patriarcado. Confirma-se o ideal
do macho precisamente no momento da penetração, rompendo com o terrível tabu
da penetração como a fronteira intransponível da divisão entre os dois segmentos do
sistema sexual (ainda se pode dizer que há metáforas que assinalam passos prévios e
parciais da penetração: as palmadas, o beijo grego, a manipulação dos mamilos). Menos
que uma veneração ao corpo do Macho, tais práticas apontam para um manuseio do
corpo masculino que, no heterossexismo, somente se pratica no corpo inerte, abjeto da
mulher.
No que se refere ao lesbianismo, geralmente é denunciado a incursão do
masculinismo—sapatão, caminhoneira, cola velcro — como não apenas uma filiação
ao patriarcado, mas como agente de compensação do mesmo. Porém, há também um
jogo com a construção da masculinidade: a masculinidade não se alcança a não ser pela
ameaça, com toda crítica potente que insulta o processo de atração e repulsão. O travesti
é um elemento do papel social, e sua graça se desvanece se não chegamos a entender
que está se (re)criando. Sugere-se que a fascinação com o masculino no lesbianismo é o
resultado do peso da figura do homem na sociedade patriarcal e heterossexual, e não há
dúvida de que há um amplo espectro de forças que servem para carregar esta imagem
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do gênero quando aparece usado por uma pessoa no seu cotidiano fora das convenções
da literatura.
***
A tentativa de apontar características determinantes para uma produção cultural,
lésbica ou gay, tende a fracassar enquanto natureza protéica desta produção em uma
sociedade (pós)moderna que resiste a qualquer tipo de limitação a priori. Porém, em
um momento específico e em uma cultura específica, é possível detectar aglomerações
de certas modalidades de produção que se relacionam com (ainda que não seja a
consequência de) linhas de força no debate público que a produção cultural responde
parcialmente.
Daí surgiram formas expressivas privilegiadas: abordagens autobiográficas
(contar a história pessoal dos esforços pela separação da ideologia do patriarcado e
de forjar uma subjetividade própria), picarescas (as experiências contestadoras do
indivíduo nas margens e interstícios da sociedade decente), confessionais (embora a
confissão seja uma das grandes técnicas do patriarcado; ao transformá-la para confessar
o que não se deve confessar, o que se alega não existe, para se desculpar do que não tem
desculpa, é criar um contradiscurso que se não é privativo do queer, caracteriza a todos
os movimentos de reivindicação cultural). Outra modalidade como o diário representa
um ditado, na penumbra da escrita do veículo público do romance, o que deve ser dito.
Houve, em outro registro, esforços para minar as possibilidades da pornografia,
mas menos para complementar a que já existe com o inventário da pornografia lésbica
ou gay do que para praticar uma auscultação do conceito mesmo de pornografia. Tem
sido dito que a pornografia é a teoria e o estupro a prática, entendendo que os dois são
instrumentos do patriarcado em sua ânsia por manter fixos os papéis sexuais e castigar e
identificar qualquer desvio desses papéis. Esta formulação fundamenta-se na observação
de que a pornografia é essencialmente um gênero masculino e os participantes são
essencialmente mulheres que sofrem humilhações nas mãos dos homens. Nesse sentido,
a pornografia apresenta o que acontece com a mulher se esta se afasta do caminho da
proteção do pai, ao mesmo tempo que concede aos homens o direito de se valerem até
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de reflexão suficiente para questioná-lo. Até certo ponto pode haver uma acumulação de
arranhões na fachada do patriarcado, mas seria arriscado confundir tais começos muito
parciais e essencialmente circunspectos com o grau de revisão radical das estruturas do
patriarcado que contemplam as propostas contestatórias. E uma leitura queer, vista ou
como um imperativo ético ou como um imperativo político, com todas as graduações
que permitem estas duas opções fundamentais, é necessariamente uma prática radical, na
medida em que o heterossexismo compulsório segue sendo a norma cultural irreflexiva
e inquestionável da nossa sociedade.
***
É variável a correlação entre a liberação sexual pessoal e liberações sociais
maiores que as do indivíduo. Por exemplo: na América Latina, se destaca como a
liberação pessoal acompanha necessariamente certas dimensões da liberação nacional,
seja a liberação de um governo repressivo (que frequentemente significa governos de
repressão de direitos individuais conjuntamente com a instalação de um código de
moral convencional persecutório), a liberação de estruturas constitutivas do Estado (um
sistema econômico feudal que depende e se reforça no patriarcado), ou a liberação de
uma tirania estrangeira (a ingerência, por exemplo, dos valores norte-americanos na
América Latina, sustentados por sobredeterminação através de múltiplas instituições ou
práticas, como por exemplo a presença inapelável da cultura popular que reside a moral
convencional).
Esta liberação pode ser nacional, mas dificilmente nacionalista, na medida em
que o nacionalismo é uma seção do patriarcado. Somente uma profunda revisão do
nacionalismo tal como é entendido na América Latina, tanto à direita quanto à esquerda,
poderia permitir uma correção entre nacionalismo e o queer. Precisamente o empenho
do queer em transcender fronteiras obriga a um sério questionamento do conceito de
fronteira firmemente traçada que envolve o sólido entendimento do nacionalismo na
América Latina.
***
Uma das muitas assimetrias entre o homem gay e a mulher lésbica é a relação
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com o outro sexo no esquema sustentado pelo patriarcado. Se toda mulher, lésbica ou
não, pode ver em todo homem um agente do patriarcado, e portanto um estuprador em
potencial (embora nem todos os homens o sejam, e há mulheres que são perfeitas agentes
do patriarcado e até estupradoras — A Cadela de Buchenwald, por exemplo), o que o
homem vê na mulher, concebido especialmente como exemplificação de Mulher, pode
ser todo o mistério de sua outridade como um homem problemático. Precisamente as
limitações do homem julgado como afeminado pelo patriarcado o levam a ver na Mulher,
especialmente quando é agredida e violentada pelo patriarcado, toda uma dimensão de
ser como agente social e sexual que é contrapartida valiosa de sua degradação pelo
macho. Não importa que poucas mulheres vivam essa dimensão de mistério, sedução,
patetismo agônico (e até trágico) e beleza manchada, pois se trata de uma projeção de
certa categoria de homem e não de uma mulher necessariamente histórica. É por isso
que essas imagens tendem a se localizar preferencialmente no cinema, na ópera, na
telenovela, não sendo encontradas na vizinha de bairro.
Ao mesmo tempo, o ideal de Mulher que geralmente se encontra na história e é
materializado parcialmente nas mulheres que se alternam diariamente, é daquelas que
procuram ser donas de si mesmas, as que o patriarcado apelida de sapatões. Na história
há mulheres determinadas e impulsivas como Eva Perón (que o patriarcado sempre
se esforçou em feminizar), Catarina da Rússia, Imelda Marcos, Isabel I da Inglaterra,
Eleanor Roosevelt. Estas mulheres tem seus pares na produção cultural: as personagens
de Bettie Davis são indistinguíveis de sua pessoa como figura profissional e Maria Félix
sempre terminava fazendo o mesmo papel (que também se pode entender como o de uma
mulher fazendo o papel de uma mulher: este deslocamento de significados patriarcais
não é tanto um questionamento da figura da Dona — embora tenha sido fortemente
criticada pela maneira com que reforça o patriarcado ao invés de proporcionar uma
alternativa feminista — mas um caminho para enfatizar como sua atuação se afasta do
sistema fechado de papéis fixos do patriarcado).
O mistério da Mulher é menos encontrar-se a si mesma na figura da Outra que uma
fascinação pelas dimensões Dela que o patriarcado não foi capaz de inventariar e analisar.
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Freud terminou confessando que não podia responder a sua própria pergunta: “Was wilst
das Weib” (O que quer a mulher?), e é precisamente a busca por um significado que não
pode ser descrito, pelo menos não em termos da paupérrima linguagem sentimental
e sexual que nos brinda o patriarcado, o que conquista o homem marginalizado do
poder masculino. O superávit de signos, a limitação dos significados, os excessos dos
referentes, a histeria que a linguagem não pode conter porque ameaça aniquilá-lo,
são traços que se associam reiteradamente com a Mulher/Outra. Esta busca reforça o
sistema binário do patriarcado na medida em que reafirma uma inversão na economia
de Homem/Mulher, na medida em que a definição de Mulher aqui tem pouco a ver com
a mulher do patriarcado é o que legitima estas propostas tão ricas em ressonâncias de
“sensibilidade gay”.
Por outro lado, a imagem da mulher forte potencializa um ponto de referência para
a mulher lésbica, ao romper com o romantismo e com o sentimentalismo da fragilidade e
da dependência que caracterizam a mulherzinha que se refugia na sombra do macho. No
entanto, como a mulher forte se situa às vezes na reduplicação do poder masculino, ao
invés de constituir uma oposição contestatória, é necessário examinar cuidadosamente o
papel da mulher presente, a fim de assessorar a profundidade do seu conteúdo feminista
e/ou lésbico.
***
O patriarcado e sua classe dominante, a burguesia decente, operam sobre a base
de estruturas relativamente fechadas, pelo menos no que se refere às identidades fixas e
papéis nítidos. Como uma dimensão da sua relação contestadora da ideologia dominante,
o queer busca as aporias e as fissuras na estrutura do patriarcado não somente para
exercer seu trabalho de análise e de (des)construção, mas também para se apropriar do
poder do patriarcado. Além do fenômeno flexível da noção de hipocrisia que se pode
estender desde as jogadas para encobrir a disjunção entre dizer que as coisas são assim,
quando na realidade se está dizendo que que as coisas devem ser assim, até fingir que
amplos raios da vivência sociocultural não devem ser levados em conta porque não
gostam das formas estáveis — o queer jogo com a relação entre o visível e o invisível.
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por querer evadir de uma vez por todas o sistema binário do patriarcado, é qualquer
tentativa de prescindir da mania classificatória dos corpos, as condutas, etc.
***
O homossocial não deve ser confundido com o homossexual/homoerótico,
começando pelo fato de que é um princípio constitutivo do patriarcado heterossexista.
A homossociabilidade fomenta a solidariedade entre homens por uma questão de defesa
da sociedade masculina, e das mulheres como súditas da mesma: se a irmandade entre
mulheres (sororidade?) em algum momento se desvia até uma posição contestatória,
dissidente, resistente, se começa a mergulhar em uma configuração social independente
ou relutante ao patriarcado, aplicam-se as sanções do caso para que voltem ao leito
consagrado. Acorrentados em estreitas relações de dominação e dependência — raras
vezes são relações de completa igualdade — os homens contam com suas mútuas
obrigações para consolidar o poder do patriarcado como único refúgio social. O homem
que não cumpre com suas obrigações ou que não respeita a verticalidade do comando,
está fora, des-socializado e proscrito.
No esquema social, a mulher serve para confirmar a relação dos homens e os
homens fazem circular as mulheres entre eles como uma maneira de consagrar sua
posição na hierarquia do poder: amarrar o nó do casamento é soldar o nódulo no qual
ele se encontra na rede do patriarcado. Um homem saúda a outro através do corpo da
mulher e as responsabilidades contraídas com a mulher fixam o papel que ele cumpre
com os outros homens. Concomitantemente, perder o respeito pela esposa do outro,
estuprá-la, roubá-la, é romper com o pacto homossocial.
Quando o homossocial cede espaço ao homossexual, também se rompe com o
pacto, visto que a aproximação transgressiva (o homossocial une, mas também mantém
distância) e suas consequências começam pela repugnância dos verdadeiros homens
que souberam respeitar — que resistiram a qualquer oportunidade ou tentação de violar
— o pacto de aproximações e distanciamentos. Se a relação homoerótica irrompe,
resta observar se a hierarquia de poder é reduplicada, mesmo quando invertida, ou se
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Para o queer pode-se tratar de reorganizar essas relações, para que a sexualidade
assuma uma posição abrangente em relação às demais organizações, para que seja uma
linha de travessia desestruturante, desestabilizadora de todos os níveis sociais. Converter
todas as macroestruturas da sexualidade dentro do patriarcado em uma possibilidade
perturbadora em relação a outras esferas de poder é jogar com os mesmos signos, mas
com outras regras, em prol de uma nova comunidade, utópica, em que se respeite e se
efetive a centralidade do erótico. Sexualidade não é o mesmo que erotismo: o primeiro
termo implica um sistema estrutural subjacente, ligado a uma ideologia determinada,
enquanto que o erotismo alude ao desejo informado pelo corpo. A sexualidade pode,
porém, ancorar o erotismo em uma estrutura no processo de uma revisão radical.
***
Embora exista uma circulação do prazer no heterossexismo compulsório, com a
finalidade de cumprir com o imperativo reprodutivo do patriarcado, nada mais é do que
uma força instrumental para levar a termo os propósitos do heterossexismo. O queer
busca a liberação da imposição patriarcal e sua circunscrição do prazer ou de sua exclusão
além de circunstâncias muito parciais. Trata-se de uma liberação sem concessões do
heterossexismo reprodutor e uma exploração sem fronteiras da potencialidade do prazer
para reconfigurar relações pessoais e sociais. A conquista deste propósito implica a
suspensão de quaisquer pressupostos racistas ligados ao heterossexismo compulsório
que possam existir, pressupostos que se legitimam com o objetivo de sua suposta
maximização das possibilidades reprodutivas. O biologismo, além de outras ideologias
de reputadas como científicas, é aliado do heterossexismo quando impede o acesso ao
corpo do outro e restringe a inter-relação de um com o outro.
“Não existem homossexuais, somente atos homossexuais”: esta afirmação se
converteu no lema principal do queer. Repudia-se a construção do verbo ser mais
um predicado de identidade fixa como uma dupla construção do patriarcado, por um
lado, por operar sobre a base de identidades fixas e, por outro lado, por assumir que a
dissidência sexual lança categorias homologáveis em direção as do patriarcado: homem
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Ainda quando certas ênfases no queer queiram superar a distinção binária entre os sexos
e os gêneros, não se pode prescindir do fato social hegemônico da construção de uma
diferença entre homens e mulheres e, por isso, entre gays masculinos e lésbicas.
Aliás, deve-se observar que a distinção que certo feminismo gostaria de enfatizar
para suportar a proposta de que há apenas um sexo, o masculino, e a mulher é um desvio
ou uma degradação dele, uma manufatura imperfeita do homem: no patriarcado há uma
tensão irresolúvel entre a proposta de polos sexuais binários e a mulher como homem
inacabado.
Debate-se intensamente se a perseguição aos gays tem sido mais forte do que a
sofrida pelas lésbicas. Indubitavelmente, o imperativo que existe sobre os homens de ter
que confirmar a cada momento de sua existência social sua masculinidade faz com que
se apliquem de imediato e de forma severa sanções ao homem que não a cumpre, ou por
distração ou intencionalmente. Porém, o homem goza sempre de mais poder social do
que a mulher, e geralmente ocorrem casos de que mesmo o homem mais marginal não
perde o poder de exercer suas prerrogativas masculinas antes de qualquer mulher.
Por outro lado, alega-se que a marginalização geral da mulher permite que se
esconda nas dobras da sociedade, vivendo boa parte de sua vida sem que o patriarcado
possa notá-la. Ao contrário da premissa de que o papel maternal, que é primordial para a
mulher, a coloca sempre sob o intenso escrutínio do patriarcado, tanto quando o realiza
ou deixa de realizá-lo, e em particular quando está na “idade de casar”, define que a
mulher é menos importante do que homem na sociedade e pode resultar que, depois de
certa idade, ninguém se importa com ela ou com o que faz com seu corpo.
Além dessas considerações, existem propostas a respeito da diferença entre
lésbicas e homens gay que constituem pontos de partida mais para uma análise cultural
do que conclusões sociais da índole das que decorrem das ciências do patriarcado. Por
exemplo: a questão da pornografia e do sadomasoquismo: desdobra-se a tese segundo
a qual para a mulher é uma reduplicação do patriarcado — e no caso do homem gay,
uma reiteração da violência que, como homem, herda do patriarcado (São Sebastião
como santo padroeiro do gay) — e a teses que afirma que se trata de outra dimensão da
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jurídico, ao longo do século XIX e até o surgimento da liberação gay no século XX, opera
sobre a base do suicídio como desfecho narrativo. Somente quando ambos protagonistas
de O beijo da mulher-aranha, de Manuel Puig, morrem em gestos suicidas, podemos
dizer que o esquema narrativo, embora ainda represente um contexto homofóbico, mudou
substancialmente, ou quando o protagonista autobiográfico de Antes que anoiteça, de
Reinaldo Arenas, se suicida, podemos falar de um simples ato de escolha para enfrentar
os efeitos destrutivos da AIDS e declarar uma posição política. Além disso, trata-se
de descobrir novos esquemas narrativos para o texto social, ao El Divino, de Gustavo
Álvarez Gardeazábal, para que o suicídio nunca mais seja uma narrativa válida.
***
As práticas do sadomasoquismo dividem profundamente as comunidades
gay e lésbica, provavelmente mais estas do que aquelas, dado que o feminismo e o
lesbianismo veem no sadomasoquismo uma projeção das fantasias agressivas do
machismo. A violência contra a mulher na pornografia, a prática da teoria do machismo,
adverte, nesta versão, para a erotização da dor no sadomasoquismo lésbico. (Ao mesmo
tempo, são refutadas as imagens do lesbianismo na pornografia masculina por serem,
primeiramente, falsas e, em segundo, devido precisamente a sua falsidade, como um
pretexto para que o macho entre em cena para impor o verdadeiro prazer; quando estas
imagens assumem contornos sadomasoquistas, por “fugazes” que sejam, pretende-se
entender a confirmação da proposta de que a dor do corpo feminino nunca pode constituir
uma erotização legítima: a dor é um primeiro passo para a vertiginosa inclinação da
morte do corpo).
No entanto, outras propostas começam precisamente pelo questionamento da
ideia de que pode haver uma erotização ilegítima e de que a dor é um primeiro passo
para a morte. Dessa forma, ocorreria uma confusão perigosa das categorias ao fazer da
imensa panóplia de práticas sexuais/eróticas apenas uma, a do assassinato. Por outro
lado, questiona-se a ideia de que a dor seja algo identificável em si, pois é relativo e
circunstancial em um corpo determinado e o que se percebe como dor varia enormemente
de um corpo a outro, com fatores fisiológicos, psicológicos, emocionais, contextuais
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impossíveis de medir de algum modo: um beijo pode doer mais psicologicamente que
alguns fortes açoites se provém de alguém que nos repugna ou em um momento que
consideramos dolorosamente indevido. Vista assim, a dor é um conjunto de fatores e não
somente uma sensação nas terminações nervosas. Concomitantemente, o que percebem
essas terminações pode ser traduzido como um vasto panorama de sensações, entre
o extremo prazer e a extrema dor, segundo as múltiplas circunstâncias em que essas
percepções ocorrem.
O sadomasoquismo — que em uma primeira instância reluta em repetir o esquema
ativo-passivo: o passivo, o “masoquista”, pode ser o que controla o roteiro dos atos —
se apresenta como um conjunto de práticas cujo inventário resiste às circunscrições
limitadoras (“Isso é sadismo, aquilo não”) e que permite uma plena realização das
sensações territoriais do corpo. As complexas práticas do sadomasoquismo provêm
da complexidade da materialidade sensorial do corpo. Em consequência, trata-se
simplesmente de empreender uma adequada exploração desta materialidade em todas
suas nuances possíveis. Além disso, entregar-se a semelhantes práticas, entregar o
corpo a outro em semelhantes práticas, é um ato de resistência que desafia o conceito
de controle que, segundo o patriarcado, deve ser exercido sobre seu próprio corpo,
controle que pode ser entendido como a mão oculta do mesmo patriarcado que controla
o corpo do indivíduo ao determinar a maneira que ele deveria controlar o próprio corpo
e colocá-lo sob proteção contra as contaminações do corpo dos outros. As marcas no
corpo como consequência do ato sexual e, mais ainda, as múltiplas e incrementadas
marcas que deixam as práticas sadomasoquistas, testemunham a violação das fronteiras
entre os corpos que tanto altera e inquieta o patriarcado.
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PARTE II
“Homossexualismo:
sexualidade e valor”, de
Samuel Rawet: um texto
fundador da teoria
queer brasileira
Embora seja bastante conhecido por suas narrativas ficcionais curtas altamente
elaboradas acerca da vida judaico-diaspórica no Brasil, muitas vezes dotadas de
uma envergadura profética ou apocalíptica, Samuel Rawet (1929-1984) também
escreveu importantes textos sobre filosofia religiosa. No entanto, seu longo ensaio
“Homossexualismo: sexualidade e valor” (1970) ganhou destaque tanto pelo fato de
ter sido publicado como um panfleto independente quanto pela forma como o autor
abordou questões queer que estavam recém começando a se cristalizar no pensamento
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13 Deve-se lembrar que o primeiro volume de A história da sexualidade, de Michel Foucault, apareceu
em 1976.
14 LOPES (2002, p. 134) faz referência a uma das narrativas de Rawet, alegando que o autor merece
mais estudos, mas não menciona o ensaio de 1970 sobre homossexualidade.
15 MacRAE, Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”.
1990.
16 RAWET, Samuel. Homossexualismo: sexualidade e valor. In: ______. Ensaios reunidos. 2008. p. 34.
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Everyman e Querelle). Apesar disso, não é possível encontrar qualquer reflexão mais
prolongada por parte do autor no que tange à importância exemplar de Genet para a
definição da sexualidade, em geral, ou da homossexualidade, em particular20.
Certamente, seria justo dizer que o discurso emergente sobre a defesa da
homossexualidade – a defesa de sua existência, a defesa da dignidade daqueles a quem
é atribuída, a defesa da legitimidade para agir sobre o desejo homossexual – não é
amparado pelo amplo direito dos indivíduos em obedecerem às suas pulsões sexuais. Na
época em que Rawet escreveu o seu ensaio – lembre-se de que foi publicado como um
panfleto em 1970 –, a homossexualidade ainda era uma espécie de amor que não ousava
mencionar o seu nome (isto é, não podia falar por si em seu próprio direito), sendo
então um não amor declarado que o Estado continuava a patologizar e a criminalizar,
juntamente com vários outros projetos que levavam à sua erradicação. Isso era um fato
tanto no Brasil de Rawet quanto nos Estados Unidos de Gore Vidal, James Baldwin e
John Rechy (apenas para mencionar três autores americanos que escreveram romances
de temática abertamente homossexual em 1948, 1956 e 1963, respectivamente)21.
As ideias essencialistas sobre o desejo homoerótico sempre gravitaram em torno
da presunção de ele ser um problema psicológico (prefiro a afrontosa proposição de
que a homossexualidade seja um “erro” da natureza, ou mesmo do próprio Deus), uma
marca de Caim (a embriaguez do naturalismo e de outros genes maus) ou um desafio
perversamente decretado pela vontade de Deus (mas qual mandamento ele transgride?).
20 No que concerne aos homossexuais como uma importante categoria do outro, para Sartre, cf.
CHARMÉ (1991, p. 258-260).
Sartre faz certas confusões para tentar explicar a homossexualidade de Genet, sugerindo que se trata de
uma escolha que ele deliberadamente fez para afirmar sua marginalização social como consequência de
seus precoces desentendimentos com a lei (SARTRE, 1963, p. 90-91). Nesse ponto, o autor vai além
a fim de contradizer o próprio Genet segundo o qual seus sentimentos sexuais, aos dez anos de idade,
antecipam sua carreira de ladrão. Embora esse não seja um entendimento adequado de como a homos-
sexualidade poderia ser uma escolha livremente determinada, ele faz, do seu jeito, um paralelo com as
ideias de Rawet acerca da homossexualidade enquanto uma escolha existencial. Se Rawet tivesse lido o
longo ensaio de Sartre sobre Genet, que foi originalmente publicado em 1952, ele não mencionaria isso.
21 Algumas dessas obras são: A cidade e o pilar (1948), de Gore Vidal, O quarto de Giovanni (1958),
de James Baldwin, e As cidades da noite (1963), de John Rechy. É importante ter em mente que, desses
três romances fundadores da literatura gay norte-americana, dois deles foram escritos por homens de cor
(Baldwin era afro-americano, e Rechy é americano de origem mexicana).
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Na verdade, é claro, a ideia de sexo transgressor (isto é, qualquer prática sexual que não
atenda à heteronormatividade patriarcal compulsória), como uma provocação, adéqua-
se com o critério existencialista de absoluto livre arbítrio, mas se caracteriza (lembre-se
de que ele não está falando em seu próprio nome) sempre como um empreendimento
destrutivo, e nunca construtivo ou glamoroso.
O discurso emergente do sujeito revolucionário (não sem uma profunda tradição
homofóbica, lembrando-se principalmente dos valores heteronormativos defendidos tão
estridentemente e mesmo tão violentamente por Che Guevara) ainda tinha que introjetar
a liberação sexual no cerne de sua ideologia (como os “Montoneros” na Argentina na
década de 1960 estavam acostumados a entoar: “No somos ni putos ni faloperos / somos
montoneros” [“falopero” = consumidores de drogas]), e, quando o que podemos chamar
sinteticamente de prática hippy do amor livre realmente veio à tona, estava-se ainda
muito distante de se abraçar, de fato, a homoafetividade e o desejo homoerótico.
Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, a luta pelo reconhecimento dos
direitos gays é, como nós todos sabemos, longa (e arriscada, especialmente quando se
leva em conta o que aconteceu quando o grupo LBGTQ tornou-se homonormativo).
Há diferenças estruturais significantes entre essas duas sociedades. Embora ambas
considerem a homossexualidade como uma perversão psicológica, no Brasil, condena-
se apenas a sua exibição pública, sob a alegação da existência de normas de decência
que regem o comportamento humano, ao passo que, nos Estados Unidos, desaprova-se
tanto essa exibição pública quanto os chamados atos consentidos de comportamentos
privados desviantes. Assim, ocupa-se rotineiramente em forjar uma cadeia semântica de
suposições, inevitavelmente, subentendendo-se a existência de atos privados desviantes,
sem qualquer prova ou sem ninguém para oferecer um contradiscurso eficiente ou
convincente.
Um componente central da luta pelos direitos gays tem sido o compromisso
quase universal (principalmente se for estratégico ou firmemente mantido como uma
convicção) de assegurar que ser gay consiste na projeção daquilo que o indivíduo é e,
por isso, não pode ser moralmente condenado. As estatísticas sobre questões referentes
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a padrões de biodiversidade têm mostrado inúmeras vezes que, quando se alude aos
homossexuais, estes são equiparados a pessoas com deficiência, para quem a sociedade
se mantém inerte, a exemplo do que acontece com os cegos ou coxos. A chamada
teoria crip funciona a partir dessas bases22 e parece ter desempenhado um discurso
muito eficiente politicamente. A ideia de que a suposta homossexualidade seja inerente
aos sujeitos tem sido responsável pelo aumento de sua aceitação (como acontece em
algumas regiões da América Latina, como um componente integral da ideologia da
Nova Esquerda) e, inquestionavelmente, é um sólido pilar para a defesa da legitimidade
do casamento gay nos Estados Unidos23. Não há diferença entre ser gay e ser cego.
Acomode-se e siga em frente (“E durma-se!”, diz Rawet24).
Porém, todo esse discurso sobre direitos humanos e toda essa atenção dada às
pessoas com necessidades especiais podem não ter nenhuma importância para Rawet
(assim como a sociedade estadunidense pós-Segunda Guerra Mundial não tinha nada a
ver com as forças políticas brasileiras daquela época). Não sei se ele teria aderido aos
direitos humanos ou aos direitos das pessoas portadoras de deficiência na formulação
de sua teoria sobre a homossexualidade, mas elas teriam constituído uma instância
inviolável da base existencialista de seu pensamento. É irrelevante que os exemplos
reais fornecidos por Rawet sobre homossexualidade sejam um tanto inconsistentes e
incompletos para os padrões de conhecimento de hoje no que diz respeito ao potencial
sexual queer do corpo humano. O autor permaneceu firmemente ligado ao que ficou
conhecido como princípios inversionistas da sexualidade desviante: o homem que
deseja assumir o papel da mulher, a mulher que deseja assumir o papel do homem, tudo
calcado na confusa dicotomia ativo/passivo, que tem pouco a ver com o verdadeiro
comportamento sexual dos seres humanos.
Até 1977, Charles Silverstein e Edmund White não haviam publicado The Joy of
22 Cf. McRUER, Robert. Crip Theory: Cultural Signs of Queerness and Disability. 2006.
23 Algo parecido aconteceu na Argentina. O país fez com que os demais países da América pensassem
de forma diferente a questão em 2010.
24 RAWET, Samuel. Homossexualismo: sexualidade e valor. In: ______. Ensaios reunidos. 2008. p. 31.
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Gay Sex (A alegria do sexo gay)25, e Rawet, na formulação de seu pensamento, leva em
conta aquilo que fazia parte do discurso público daquela época sobre a homossexualidade:
a inversão do desejo sexual em sujeitos sociais que estavam, todavia, ainda firmemente
presos ao binarismo sexista formulado a partir do sexo biológico, das categorias
sociais de feminino e masculino de ser no mundo, da configuração psicológica e do
amadorismo sexual derivado desse binarismo biológico. Como consequência, para
Rawet, por exemplo, seria necessário estímulo anal para que o homem gay atingisse
seu orgasmo em virtude de ter havido um deslocamento da vagina feminina para o ânus
masculino. Porém, ao mesmo tempo em que ele se opõe a tais esquematismos, ele não
consegue ir além e resumir a essência do comportamento sexual humano num sentido
pronunciadamente mecanicista:
25 Confira a edição brasileira, as traduções portuguesas dos americanos Alicia Gallotti (2005). The Joy
of Gay Sex, de Silverstein e White, foi o primeiro manual de consumo massivo a promover a naturalidade
dos chamados atos homossexuais. Limitava-se ao conhecimento informal e popular sobre atos homos-
sexuais, conhecimento esse que primava, falsamente, o sexo anal.
26 RAWET, Samuel. Homossexualismo: sexualidade e valor. In: ______. Ensaios reunidos. 2008. p. 36.
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escandaloso. Tanto uma quanto outra parte do princípio da modéstia intelectual no que
concerne ao conhecimento de Rawet acerca das teorias dos sexólogos e mesmo do Latim
a que tinham acesso com frequência com o intuito de não chamar seus nomes próprios
no vernáculo dos sujeitos sociossexuais vivos.
Não sei se é realmente apropriado caracterizar o ensaio de Rawet como apocalíptico
nos termos em que Lindstrom tem debatido suas obras ficcionais32, embora esteja claro
que ele tenha se empenhado intensamente em repudiar crenças e valores prevalecentes
no que tange à ética sexual e, portanto, esteja muito engajado numa reestruturação radical
daquilo que os princípios éticos poderiam significar. Em comunhão com a retórica de
“Homossexualismo: homossexualidade e valor”, Rawet se detém nas questões centrais
de imigração e exílio que predominam em sua escrita ficcional:
Essas são, poderíamos dizer, propostas que estão totalmente alinhadas à atual
Maré Rosa na América Latina, mesmo quando seus proponentes podem não ter em
mente nenhuma subjetividade sociossexual. Porém, a escrita dessa subjetividade,
quando realizada de maneira adequada, terá o ensaio de Rawet como uma grande âncora
bibliográfica.
Traduzido do inglês por Lizandro Carlos Calegari.
32 LINDSTROM, Naomi. Los usos del discurso profético en la narrativa de Samuel Rawet. Revista de
Crítica Literaria Latinoamericana. 2010.
33 RAWET, Samuel. Homossexualismo: sexualidade e valor. In: ______. Ensaios reunidos. 2008. p. 48.
65
Do “Para inglês ver”
ao “Para brasileiro
entender”: escrevendo
o sócio-texto
homoerótico brasileiro
34 PARKER, Richard G. Bodies, Pleasures, and Passions: Sexual Culture in Contemporary Brazil. 1990.
35 FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. 1982.
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uma vigorosa depuração de quaisquer elementos em dissonância com tal imagem social.
Esse duplo processo embutido no projeto oficial no que diz respeito ao sexo – depuração
e culto – constitui o núcleo gerador de estruturas ainda muito resistentes à mudança
no Brasil, e cujo reforço funcionou, efetivamente, como uma dimensão importante do
golpe militar em 1964. Para consolidar esse discurso hegemônico, Fry alude à premissa,
na história institucional do Brasil, da medicina e da psicologia. Seu intento vem a ser,
no fundo, uma recodificação desses dados, lançando mão, agora, de uma teorização pelo
viés da antropologia social. Por exemplo, o antropólogo abre o capítulo “Da hierarquia
à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil” com a seguinte
colocação:
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escrevi em outro estudo43 sobre um dos textos chaves de Mattoso, Manual do pedólatra
amador: aventuras e leituras de um tarado por pés44. Naquela oportunidade, meu interesse
era sublinhar como esse texto – uma mistura de informação erudita que provém da
formação do autor como bibliotecário profissional e de especulações desenfreadas sobre
os impulsos eróticos – constitui o único tipo de discurso que disseca uma tecnologia
do saber sexual numa sociedade como a brasileira: a necessidade de evitar reproduzir
os conhecimentos científicos das sumidades estrangeiras (os dogmatismos sexológicos,
de que fala Mott), o que permite as divagações sem fronteiras, resultando, neste caso,
numa proposta que ressalta as vantagens de ser um “tarado por pés”, um adepto do sexo
sujo, interessado literalmente no chulé. É importante frisar que tal estratégia erótica
permite transar com certa tranquilidade, sem o risco de contrair AIDS: este manual
de um poeta nacional legitima – “terapeuticamente”, por assim dizer – a liberação da
praga internacional. A sexologia do primeiro mundo (ponto de refutação tanto em Fry
como em Mott) e a AIDS não pertencem, é óbvio, às mesmas esferas significantes, mas
o repúdio de uma atinge claramente a outra no denso panorama do desejo que Mattoso
esboça no seu livro, cuja linguagem e cujas ilustrações (acrescentadas na versão em
quadrinhos) evidentemente não são para inglês ver.
Gostaria de finalizar com uma alusão a outro texto de Mattoso, tão ausente como
o Manual nas bibliotecas dos Estados Unidos. Refiro-me a O calvário dos carecas:
história do trote estudantil45, que parece ser apenas uma recompilação de material sobre
o ritual sádico entre os grupos de estudantes brasileiros (quando os veteranos “iniciam”
os calouros, via de regra, raspando-lhes a cabeça). O livro envereda pelas conexões do
trote com instituições similares europeias e suas coincidências norte-americanas, com
o objetivo de proporcionar imagens mórbidas sobre costumes e práticas que alguns
43 FOSTER, David William. Some Proposals for the Study of Latin American Gay Culture. In: ______.
Cultural Diversity in Latin American Culture. 1994. p. 25-71.
44 MATTOSO, Glauco. Manual do pedólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés. 1986.
Ver também a versão em quadrinhos, As aventuras de Glaucomix o pedólatra, de 1990, de Mattoso e
Marcatti Jr.
45 MATTOSO, Glauco. O calvário dos carecas: história do trote estudantil. 1985.
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David William Foster
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Duas modalidades
de escrita sobre a
homossexualidade
na ficção brasileira
contemporânea
Apesar de não ser possível assegurar que a literatura brasileira manifeste uma
representação confirmada da homossexualidade, deve-se admitir que há uma bibliografia
extensa sobre o assunto. Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha (1895), é provavelmente o
primeiro testemunho do tratamento assinado, romanceado, explícito e público do tema
na literatura ocidental46; o romance anônimo Teleny (1890), possivelmente de autoria de
Oscar Wilde e outros, destinava-se estritamente a círculos marginais não convencionais,
e The Picture of Dorian Gray (O retrato de Dorian Gray) (1891) não transcende a
insinuação metafórica e irônica47; as duas antologias de Winston Leyland48, uma
tradução ao inglês da literatura gay da América Latina, baseiam-se tão extensamente em
materiais brasileiros que o primeiro volume foi catalogado pela Biblioteca do Congresso
dos Estados Unidos sob o título de “literatura brasileira”. Ainda que as generalizações
sobre um Brasil liberado sexualmente possam ser ideologicamente suspeitas, há poucas
46 FOSTER, David William. Adolfo Caminha’s Bom-Crioulo: A Founding Text of Brazilian Gay Writing.
Chasqui. 1988. p. 13-22.
47 COHEN, Ed. Writing Gone Wilde: Homoerotic Desire in the Closet of Representation. PMLA. 1987.
p. 801-81.
48 LEYLAND, Winston (Ed.). My Deep Dark Pain is Love: A Collection of Latin American Gay Fiction.
1983. LEYLAND, Winston (Ed.). Now the Volcano: An Anthology of Latin American Gay Literature.
1979.
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David William Foster
49 FOSTER, David William. The Search for Text: Some Examples of Latin American Gay Writing. Ibero-
-Amerikanisches Arquiv. 1988. p. 329-376.
50 PENTEADO, Darcy. Nivaldo e Jerônimo. 1981.
51 SILVA, Aguinaldo. No país das sombras. 1979.
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geral. Apesar do fato de que os dois amantes são apoiados por outros indivíduos –
um padre austríaco e uma hotelaria cujo marido foi morto pela polícia –, Nivaldo e
Jerônimo seguem uma trajetória de liberação sexual e pessoal que não pode sobreviver
às circunstâncias de uma tirania militar que sustenta seu poder através da destruição
emocional e física do indivíduo. Chamando Nivaldo para seu lado, Jerônimo o expõe
aos perigos dos participantes da luta e acaba pagando o preço de seu compromisso
através de seu tormento físico, enquanto que Nivaldo é destruído emocionalmente.
Assim, o pano de fundo do romance é a confirmação do esquema de terror oficial
que existia no Brasil durante os primeiros anos da Ditadura Militar que durou de 1964
a 1985. A ameaça imposta à união entre dois homens não vem diretamente de um
código predominantemente heterossexual da sociedade brasileira em geral, mas, mais
diretamente, da ideologia de extrema-direita da tirania militar. Enquanto que o primeiro
representa realmente uma confirmada ameaça aos desvios sexuais do indivíduo, a
sociedade urbana brasileira é notadamente tolerante para com a homossexualidade,
embora práticas sociais e considerações legais sejam, com frequência, coniventes
igualmente para com a extorsão econômica e o abuso físico da homossexualidade.
Os governos militares que detinham o poder na América Latina em meados dos
anos 1960 estavam comprometidos, entre outras coisas, com a depuração moral do
corpo político, projeto que incluía a reforma de códigos sexuais, mais especificamente,
o banimento da presença homossexual52. Ainda assim, Penteado não retrata Nivaldo
e Jerônimo como vítimas da condenação social ou das cruzadas morais de extrema-
direita. A mãe de Nivaldo se conforma passivamente em ver seu filho seguir seu amante
ao interior e, embora os dois sejam cuidadosos em não mostrar publicamente sua
paixão, as pessoas que o conhecem aceitam a natureza do seu envolvimento. Nesse
sentido, o romance de Penteado é bastante utópico, dado que os dois amantes são
capazes de explorar seu relacionamento sem muitas preocupações quanto ao fato de
serem socialmente condenados como pervertidos ou pecadores morais. De fato, além do
52 Pinochet tem sido uma exceção notável a esse respeito e seu governo não tem sido caracterizado pelos
programas morais insistentemente repressivos encontrados em outros lugares da América do Sul.
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Sexualidades e identidades culturais
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casulo de seu espaço privativo na selva urbana de São Paulo, os dois homens encontram
um refúgio utópico nas montanhas (durante a convalescença de Jerônimo), na cidade
do interior onde se reúnem e precariamente na fazenda para onde vão juntos a fim
de que Jerônimo retorne a suas atividades revolucionárias e Nivaldo se comprometa,
juntamente com seu amante, com a causa53.
É nesse terceiro contexto que o ideal dos amantes se desmorona quando o governo
destrói as guerrilhas e o romance deixa claro que a perseguição de Jerônimo não tem
a ver com a sua sexualidade, mas envolve a destruição geral de qualquer projeto nas
mãos de uma opressão política. Na medida em que a narrativa explora as dúvidas de
Jerônimo quanto à validade de ter convocado Nivaldo para o seu lado e suas crescentes
indagações quanto à legitimidade da causa revolucionária à qual está filiado, causa
essa que talvez acabe impondo nele uma tirania tão destrutiva à sua dignidade pessoal
quanto às opressões da Ditadura Militar, o romance de Penteado desenha o perfil de uma
história de amor em moldes maniqueístas.
Em decorrência, os dois personagens nunca se expressam em outros termos que
não os dos clichês do amor romântico, e a agonia de sua separação é uma indubitável
antecipação da inevitável derrota do seu amor em face de uma ditadura destruidora
de qualquer vestígio de dignidade humana, representada aqui pelas demandas das
necessidades sexuais personalizadas. Uma passagem (na metade do romance) é índice
que antecipa a impossibilidade de pureza no amor apaixonado entre dois homens diante
da ameaça de destruição da dignidade pessoal:
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Sexualidades e identidades culturais
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O narrador continua nesse teor por mais outra página, culminando com uma
visão de pesadelo para Nivaldo, quando Jerônimo morre esmagado: “era uma ordem
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todos, não só às feministas ou aos gays e lésbicas. Por essa razão, Silva reestrutura seu
romance em dois eixos narrativos básicos: um “crime” homossexual como metonímia de
um ato fundador de repressão social e os ecos tipológicos que existem entre a experiência
política contemporânea e os acontecimentos históricos precedentes. O narrador, como
jornalista e pesquisador teórico que se confronta com um acontecimento obscuro na
história do Brasil colônia, que passa a assumir para ele proporções enormes, finalmente
chega à inequívoca conclusão de que “a única função do passado era explicar o presente
e ajudar a modificá-lo”58. Escrito contra o pano de fundo de atos violentos de repressão
social, o texto do narrador é incapaz de fazer muito para modificar o presente e, no fim
do livro, ele se transforma em vítima da brutalidade policial.
Seguindo o modelo de Terra nostra (1975), de Carlos Fuentes (ou do romance
anterior do mexicano, Cambio de piel [1967]), das obras dos argentinos Ricardo Piglia,
Respiración artificial (1980), e Mercedes Mercader, Juanamanuela mucha mujer
(1980), ou do brasileiro Haroldo Maranhão, O tetraneto del-Rei (1982), Silva encaixa
seu texto como um exercício de pesquisa que revelará a relação entre atos fundamentais
de violência e um código social reforçador, baseado na justificação hipócrita de repressão
e no argumento cínico da dissidência social e política.
No país das sombras trata de dois soldados jovens que iniciam uma relação
homossexual durante as primeiras décadas da ocupação portuguesa do Novo Mundo.
Um deles, entretanto, é o objeto de desejo do comandante do regimento militar, que
aparentemente esconde suas inclinações pedofílicas atrás da fachada de um casamento
conveniente e de retidão social. Determinado a separar o jovem que ele deseja como seu
amante, o general-provedor os informa que serão enviados a divisões diferentes. Em
vez de aceitar a separação, os amantes atraem o general-provedor a um lugar isolado e
o matam. Por terem sido vistos deixando a área onde o corpo foi mais tarde descoberto,
os dois homens são presos, acusados de terem assassinado seu oficial superior como
parte de um plano de revolta contra o domínio português, torturados para que confessem
o plano e em seguida enforcados. Apesar de a maioria dos escassos documentos
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formas “naturais” de oposição a uma postura oficial monolítica, que deita suas raízes
nos primeiros vestígios de controle colonial.
Por outro lado, o narrador de Silva descobre, quase que acidentalmente, que os
dois homens talvez não tenham sido inocentes dos crimes a eles impingidos. Depois de
apossar-se das memórias do jesuíta que estava presente ao processo (documento que o
narrador tem que “roubar” de volta de um historiador americano que está prestes a sair
do país, seguindo a persistente tradição do saque da América Latina por meios do “sirva-
se” usado pelas autoridades imperiais), o narrador consegue ler as revelações do padre
relativas à confissão feita a ele por um dos soldados. Na conclusão dos documentos, ele
reproduzia, “para uma comparação também futura”, a revelação do mesmo prisioneiro,
que ajudara a forjar, e que foi a única citada no processo – aquela pela qual os dois
soldados foram condenados. A citação abaixo segue a transcrição feita pelo padre da
acusação do Capitão-Geral, com a qual a igreja está obrigada a cooperar, fazendo com
que os fatos do crime alegado se encaixem nas exigências políticas do momento:
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Sexualidades e identidades culturais
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Nessa versão dos acontecimentos, que deve supostamente ser tomada a sério
por ser a revelação das confissões sagradas de um dos acusados, as relações sexuais
transgressoras entre dois soldados passam a ser um repúdio revolucionário generalizado
à autoridade militar centrada na Europa. Concomitantemente, a execução do general-
provedor é, ao mesmo tempo, o primeiro passo para a eliminação tanto dos agentes
da dominação portuguesa como da ameaça à união homossexual entre os amantes. O
amor definido como imoral pelas convenções da cultura dominante é transformado em
solidariedade revolucionária contra a exploração das riquezas naturais do Novo Mundo.
O romance de Silva estabelece uma intertextualidade invertida com os sentimentos
utópicos estampados nas crônicas coloniais da conquista que viram o Novo Mundo
como a oportunidade de realizar os ideais renascentistas da cultura europeia. Os
amantes executados são as vítimas de uma repressão distópica que os julga tanto pelo
comportamento sexual transgressor quanto pela chama de revolta social que o fato
acende. Como ato fundador da história social brasileira, a perseguição homofóbica
dos soldados que o narrador redescobre em sua pesquisa (pesquisa essa que lhe dá, de
início, esperanças de obter a ajuda do Instituto Nacional do Livro, fazendo-o mais tarde
compreender que a história que tem a relatar não pode contar nunca com o apoio oficial),
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Bom-Crioulo, de Adolfo
Caminha: um texto
fundador da literatura
QUEER brasileira
61 Cf. apresentação de Robert Howes (1982) à Editora Gay Sunshine na tradução em inglês e apresen-
tação de Luis Zapata (1987) para a tradução em espanhol.
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
que Caminha publicou antes de sua morte prematura por tuberculose, Bom-Crioulo
ainda carece de uma análise crítica adequada. Muitos aspectos desse livro merecem
estudo. Além de lidar com os detalhes da vida a bordo dos marinheiros da época e
com as particularidades dos setores populares correspondentes da sociedade, com os
quais aqueles entravam em contato em terra, o romance de Caminha também examina
a relação entre um homem negro e um menino branco em um período em que o Brasil
estava em processo de transição da escravatura para a emancipação (a escravatura foi
oficialmente abolida pela Monarquia em 1888, menos de um ano antes da criação da
República).
Contudo, a qualidade mais surpreendente de Bom-Crioulo é de que ele é não
apenas o primeiro romance gay explícito na literatura brasileira (e latino-americana)62,
como também um dos primeiros com essa vertente temática que foram produzidos na
literatura moderna ocidental. Isso é particularmente verdadeiro se definirmos a literatura
gay como a escrita sobre questões relacionadas à identidade homossexual masculina,
quer seja ela vista como natureza inerente ao indivíduo ou como escolha comportamental.
Essa escrita pode ser tanto explícita quanto, como tem ocorrido mais frequentemente
nos últimos anos, velada; nesse último caso, ela pode ser marcada com indícios que
se tornam explícitos pelos cognoscentes. Por fim, a escrita sobre essas questões pode
(tipicamente) levar a se examinar a tragédia de ser homossexual ou a explorar a repressão
e a hipocrisia atribuída aos “infelizes”. Do ponto de vista dessa definição de literatura
gay, um grupo de escritos não explicitamente (ou dissimuladamente) gay, mas marcado
por uma suposta “sensibilidade gay”, não é reconhecido enquanto tal.
Embora a crítica recente tenha sido capaz de ler temas homoeróticos em
outros trabalhos da literatura do século XIX (por ex., as famosas interpretações de
Leslie Fiedler) e, embora o interesse contemporâneo nos temas gays permita-nos ver
como O retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde, ou Billy Budd, de Herman
Melville (escrito aproximadamente entre 1886 e 1891; primeira publicação em 1924),
62 LEYLAND, Winston (Ed.). Now the Volcano: An Anthology of Latin American Gay Literature. 1979.
p. 82.
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Tal espaço poderia ser um lugar de dormir separado a bordo do navio, um esconderijo
seguro no estabelecimento da famosa D. Carolina – conhecida como Carola Bunda –
ou simplesmente algum lugar afastado do público em que os dois homens pudessem
estar juntos, como quando Bom-Crioulo chamou Aleixo à parte durante uma tempestade
no mar.
Em todos esses casos, o narrador reconhece nos homens um sinal disjuntivo
em relação à sociedade heterossexual mais ampla: em vista da natureza de seu
relacionamento, os dois protagonistas poderiam apenas prosseguir juntos fechados em
um refúgio secreto. Isso é óbvio em termos de experiência de vida real no caso de práticas
que são condenadas pela tradição e/ou pela lei. O que é de fato importante sobre essa
circunstância no romance de Caminha é a criação de uma narrativa baseada na evolução
do movimento de afastamento do protagonista da sociedade a que ele pertence em razão
das perseguições da sociedade branca, mas não por motivos raciais, mas em virtude de
uma identidade sexual que o difere seja dos outros marinheiros, seja da população em
geral. A reflexão a seguir baseia-se na iniciação sexual de Bom-Crioulo com Aleixo:
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moralista da homossexualidade diz respeito a uma crença cuja retórica diz respeito ao
fato de a homossexualidade ser um “pecado contra a natureza”, faz com que o romance
de Caminha recorra imediatamente a um leitor moderno por causa de seu tom quase
indolente de relatar esse caso de amor homossexual e devido à escolha do herói por
meio de quem o legitima biologicamente.
Caminha escolheu para o protagonista de seu romance homossexual não apenas
um negro em uma sociedade que tinha só recentemente iniciado seu processo de
estabelecimento da igualdade racial, mas também um indivíduo dotado de um bom
físico masculino estimado pela sociedade ocidental. Frequentemente se constata que
inclusive o mais simpático tratamento atribuído à homossexualidade na literatura visa à
representação de personagens que são neuróticos, muito emotivos e de comportamento
efeminado, como se os atos homossexuais fossem praticados por indivíduos com
características pessoais estereotipadas e perceptíveis. Em conformidade com a atual
convicção amplamente aceita de que a noção de um indivíduo especificamente
homossexual é um conceito ideológico reacionário e de que não há homossexuais,
mas apenas atos homossexuais praticados por seres humanos muito diversificados, tem
havido uma tentativa de retratar indivíduos que buscam uma identidade homossexual ou
um estilo de vida “normal” em termos de características sociais convencionais (como em
Job’s Year (o ano do trabalho) [1983], do americano Joseph Hansen) ou personificando
dimensões heroicas valorizadas (como em El beso de la mujer araña (O beijo da mulher
aranha) [1976], de Manuel Puig).
Dessa maneira, Bom-Crioulo é apresentado como um magnífico exemplo de
masculinidade, admirado e respeitado por seus companheiros de viagem e enaltecido
por seus superiores por sua navegação alerta e benevolente. Como consequência dessa
natureza benevolente, ele recebe o apelido pelo qual é conhecido. Contudo, Bom-
Crioulo, para quem os rigores da vida militar são triviais em comparação aos muitos
que como escravo ele previamente sofrera, submete-se à perda da inocência diante das
inevitáveis injustiças a bordo do navio. O romance começa com um tom elogioso a
castigos infligidos a três homens em razão de seu envolvimento com brigas. Dois deles
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É inquestionável que Caminha invista seu protagonista com uma nobreza primitiva
de espírito que não teria sido considerada compreendida na época. Além do mais, como
uma prefiguração do herói masculino convencional que busca interesses homossexuais,
Bom-Crioulo não deixa transparecer nenhum dos sinais externos de “queer” neurótico
e efeminado que escritores como Oscar Wilde tendiam a exemplificar (frequentemente
como uma paródia desafiadora de estereótipos homofóbicos) e que ambas antagônicas e
simpáticas representações da homossexualidade têm rotineiramente ecoado.
Além disso, Caminha contrasta a busca de Bom-Crioulo pela satisfação de
suas próprias necessidades e a sua inocência em defender Aleixo com a hipocrisia dos
oficiais que aplicaram impiedosamente a disciplina enquanto procuravam cumprir suas
próprias necessidades em segredo67. De fato, parte da representação de Caminha da
hipocrisia do sistema da disciplina militar envolve reconhecer a sexualidade inerente
no sadismo do indivíduo que empunhava a vara da disciplina militar68. Em termos
do processo de investigação de personagens fictícios com valores contrastantes (um
processo característico do alto Realismo do período), a inocente masculinidade de Bom-
Crioulo oscilou contra a hipocrisia dos indivíduos, dos oficiais e de seus agentes, os
quais aplicaram a ele uma punição excessiva por um ato que marcou seu envolvimento
com Aleixo. O fato de ele ser um homem negro apenas aumenta a severidade da punição
recebida, enquanto expõe para o universo do romance um nobre selvagem de dimensões
heroicas.
Se Bom-Crioulo é representado como um homem naturalmente decente
(apesar de seus senhores brancos), sua sexualidade masculina é contrabalançada pelo
adolescente branco a quem ele persegue. Aleixo é o personagem do romance que revela
a androginia estereotípica ou as características efeminadas normalmente associadas às
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imagens dos adolescentes gregos que eram iniciados sexualmente por um adulto. Uma
vez que Aleixo veio a bordo do sul do Brasil, Caminha pôde, inclusive, descrevê-lo com
as características de seu estereótipo loiro e de olhos azuis:
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referência para uma disputa de direitos sexuais entre o escravo negro/ amante homem
e a portuguesa branca/ prostituta mulher. Enquanto a voz onisciente do narrador sugere
que Carola Bunda não tem desenvolvido por inteiro, na sua mente bastante primitiva,
todas as consequências sociais de suas ações, para o leitor, devem ser óbvio que Aleixo
é muito mais do que simplesmente um fantoche em uma disputa de desejos eróticos.
Como um homem negro que trocou a escravidão da plantação pela disciplina
opressiva de militar, Bom-Crioulo fundamenta seu relacionamento inicial com Aleixo
na asserção de seu domínio sobre o menino branco a quem ele iniciou (como ele, de fato,
iniciou a si mesmo) nos detalhes do amor homoerótico, um curso de comportamento
que o isola da sociedade como um todo, assim como fez a sua raça (então, a importância
do refúgio no quarto na Rua da Misericórdia). Embora ela tenha explicitamente se
voltado contra Bom-Crioulo por ele ser um homem negro e por ser, em suas palavras,
um pederasta, D. Carolina não está realmente convencida de ter realizado uma
reivindicação social contra Bom-Crioulo. Não obstante, o que de fato acontece é uma
forma de dupla humilhação do negro, tanto que, no decorrer da segunda metade do
romance, ele é reduzido novamente ao seu status de escravo, sem dignidade, respeito
ou direitos. Rejeitado por Aleixo, que ele mata em decorrência de um excesso de fúria
causado pelos ciúmes, e desprezado pela mulher branca a quem ele tinha anteriormente
salvo de um assalto, Bom-Crioulo reassume a condição de total sujeição dentro de uma
sociedade na qual não há de modo algum lugar para ele.
Uma questão crucial no romance não foi mencionada até o momento: o direito de
Aleixo de escolher seu próprio parceiro sexual. Mas esse nunca foi realmente um assunto
durante a disputa silenciosa entre Bom-Crioulo e D. Carolina e, enquanto Aleixo foi
originalmente seduzido pelos cuidados anteriores, ele sucumbiu com igual disposição
aos avanços não menos agressivos de D. Carolina. Certamente, Aleixo vem a repudiar
o interesse sexual de Bom-Crioulo sobre ele, mas o narrador é insistente em mostrar
que seus pensamentos são ecos da persuasão erótica de D. Carolina. De um ponto de
vista, pode-se dizer que Aleixo mudou de opinião, enfim, para assumir seu papel sexual
“próprio” e “natural”, renunciando à pressão da perversão sobre ele por Bom-Crioulo.
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Enquanto os leitores podem desejar aceitar e, talvez, inclusive, endossar essa mudança
em sua identidade, é importante destacar que o narrador de Caminha dificilmente está
interessado em sondar os detalhes da decisão de Aleixo; antes, seu foco, nesse segmento
crucial do romance, está na luta de D. Carolina contra Bom-Crioulo. Trata-se de uma
luta traçada nos termos austeros de um conjunto de oposições semânticas primárias
que de forma bastante eficaz exclui Aleixo e suas próprias preferências sexuais como
meramente um pretexto para a disputa sexual entre, primeiramente, o seu “senhor” e,
em seguida, a sua “senhora”.
A afirmação de independência sexual de Bom-Crioulo não é, certamente, um ato
político consciente, mas sim fundamentalmente o cumprimento de suas necessidades
pessoais como um ser humano, a naturalidade biologicamente neutra, se não a legitimidade
social, a qual o narrador claramente reconhece. Porém, esse gesto de independência e o
exercício de um domínio sexual sobre Aleixo não pode durar, e a degradação de Bom-
Crioulo é a reafirmação de uma ordem social predominante e, convém ressaltar, injusta.
Depois de sua inesperada transferência para outro navio, uma transferência contra a qual
ele não tinha recursos para resistir, Bom-Crioulo é mais tarde açoitado impiedosamente
(por um comandante que é notório por sua própria homossexualidade72) por conduta
desordeira decorrente de seu desespero ao pensar que perderá Aleixo na reestruturação de
sua nova rotina. As razões pelas quais ele é açoitado são significantes: “[d]esobediência,
embriaguez e pederastia são crimes de primeira ordem”73.
Essa flagelação e o seu confinamento como prisioneiro em um hospital a fim de
recuperar-se das lacerações da vara são o começo de sua degradação como marinheiro,
cujo apelido era originalmente dado pelo reconhecimento de sua natureza dócil e
cooperativa. De forma paralela, enquanto Bom-Crioulo está sofrendo essa humilhação
física pública, ele é rejeitado por Aleixo em favor de uma ardilosa meretriz:
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elemento importante dentro do inevitável curso dos eventos impostos por Bom-Crioulo,
de forma bastante Naturalista, por seu personagem e por suas circunstâncias.
O narrador onisciente de Caminha – o próprio Caminha, certamente, em uma
distinção crítica menos rigorosa – fala com grande simpatia ao Bom-Crioulo, com um
pouco de condescendência em relação ao nobre negro, mas acima de tudo tratado como
ignorante e rústico. Enquanto ele ressalta a natureza instintiva do comportamento de
Bom-Crioulo, deixa claro que a sua busca por Aleixo é um ato “natural” em vez de
um ato político consciente; e, na medida em que tal distinção pode ser feita, o narrador
concorda inquestionavelmente com a legitimidade das necessidades do escravo, as
quais são destacadas pela simples nobreza de suas ações. Todavia, no caso de seus três
personagens centrais, o narrador adota um tom onisciente não apenas porque esse é o
modelo básico para os narradores no século XIX, mas porque deriva de uma natureza
irrefletida de Bom-Crioulo, D. Carolina e Aleixo como tipos sociais humildes.
Talvez exista um conflito fundamental inerente à visão de Caminha em relação
a Bom-Crioulo. Esse conflito se dá 1) entre um gesto em direção à legitimação de
sua homossexualidade (porque esse é um fato biologicamente neutro) e a visão de
sua paixão que o condena inevitavelmente, e 2) entre ver em sua destruição final o
destino inevitavelmente fatal do oprimido (seja negro ou homossexual, ou ambos) e
considerar que essa destruição é uma consequência lógica do seu desvio morbidamente
fascinante76. Por outro lado, o narrador tem muito a dizer para justificar a humanidade
de Bom-Crioulo, e não apenas no sentido em que muitos romancistas do Naturalismo
costumavam envolver nossa simpatia por pessoas humildes no intuito de mostrá-las
destruídas por sua natureza biológica e pelas estruturas opressivas da sociedade (Thomas
Hardy e Frank Norris, por exemplo).
Uma vez que a voz do narrador domina no romance, com pouca recorrência ao
uso de diálogos diretos, é difícil, por vezes, distinguir entre a voz do próprio narrador
e o discurso indireto que ele atribui aos seus personagens. A consequência é que as
76 Flora Süssekind (1984) fornece comentários excelentes sobre o Naturalismo e o romance de Adolfo
Caminha.
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Construindo espaços
queer: A intrusa, de
Carlos Hugo Christensen
Não sei se existe algum registro sobre quanto tempo um filme pode estar passando
antes de aparecerem os créditos de abertura, mas, se existe algum interesse em algo do
tipo, a discussão deve incluir o filme A intrusa (1979), de Carlos Hugo Christensen,
baseado no conto “La intrusa”, de Jorge Luis Borges, do livro El informe de Brodie
(1970). Quando o título e os créditos que o seguem aparecem na tela, exatos 20 minutos
do filme já se passaram, ou seja, um quinto de toda a sua duração. Durante esses 20
minutos, assistimos a uma série de cenas que nos asseguram o vínculo entre os irmãos
Cristián (o mais velho e de aparência mais masculina dos dois) e Eduardo (um loiro
extremamente bonito, quase um efebo), contra o panorama de uma sociedade de
fronteira e homossocial de fins do século XIX. O filme se situa no ano 1879, época
da conquista do deserto, quando tropas argentinas abriram caminho a oeste de Buenos
Aires para facilitar a entrada de uma colonização em massa, dispersando (e em grande
parte massacrando) o que restava da população nativa. A história de Borges situa-se em
Turdera, na província de Buenos Aires, embora o filme de Christensen a transporte para
o nordeste, na fronteira entre Argentina e Brasil, na área de Uruguaiana (do outro lado
do Rio Paraná, defronte à cidade de Paso de los Libres, na província de Corrientes).
Essa região de Uruguaiana é bilíngue e bicultural, o que permite ao diretor usar atores
brasileiros com quem ele já havia trabalhado desde quando deixou a Argentina, sua terra
natal, na década de 1950.
Seja em Turdera ou em Uruguaiana, o ambiente de Borges/ Christensen é
nitidamente uma versão argentina do faroeste americano: brutal e masculino de um
modo intransigente, insistente e inclemente, um mundo onde os esportes violentos
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de cabeceira (castiçal em cima) separando o terreno de cada irmão para a hora do sono
– torna claro que dormir abraçados é um privilégio especial que não é parte da rotina
diária dos homens colonizadores da fronteira.
Finalmente, como se fosse necessário mediar essa cena de sugestivo
homoerotismo entre os dois irmãos com uma afirmativa de sua publicamente respeitada
masculinidade, a sequência seguinte envolve a tarefa de recolhimento do gado, quando
o cavalo de Eduardo se machuca. Eduardo se vê obrigado a pôr um fim à agonia do
animal, e o proprietário do rebanho dá a ele a oportunidade de substituir o cavalo morto
por qualquer outro cavalo de sua escolha. Esse interlúdio de respeito masculino, gratidão
e recompensa, serve para confirmar o estrito código de hombridade que controla os
assuntos do dia a dia desses desbravadores de fronteiras: há uma rede complexa de
expectativas e exigências que servem alternadamente para excluir aqueles que não
conseguem agir em conformidade com elas e para garantir proeminência aos que
conseguem. Não há nada de particularmente notável nos detalhes desse código, e ele
tem sido decretado em inúmeras versões, com algumas poucas variações, em um imenso
inventário da cultura ocidental (nesse caso, em um traçado um pouco mais cruel, para
desbravadores de fronteiras), e é essa a própria essência dos filmes de caubóis, sejam eles
estadunidenses ou latino-americanos – de tal modo que é suficiente aqui fazer referência
à função icônica da sequência (mais do que descrever qualquer particularidade narrativa
que ela possa ter).
A sequência seguinte, no entanto, tem uma considerável particularidade narrativa,
e é em sobreposição a essa sequência que os créditos de abertura do filme são finalmente
apresentados. Enquanto seu irmão se aproxima pela planície ondulada da campanha,
Eduardo o aguarda com incontida antecipação: encostado no palanque, um sorriso de
emocionada expectativa lhe ilumina o rosto. É o tipo de sorriso que uma pessoa dirige
ao ser amado que está chegando, algo muito distante do aspecto sóbrio que se espera
ver no rosto de um homem acentuadamente viril. Porém, à medida que o irmão vai se
aproximando, o sorriso de Eduardo muda de prazeroso para angustiado: tem alguém
na garupa do cavalo de Cristián, e é uma mulher que ele trouxe para casa, para morar
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
com ele. Nenhuma explicação é oferecida quanto a onde ele achou a mulher, e nenhuma
conversa acontece entre os homens quanto a onde a mulher vai ficar acomodada
na coesa organização doméstica dos dois. Eduardo está obviamente arrasado, e seu
desgaste é visível enquanto a mulher vai se instalando e começa a cumprir com suas
responsabilidades para com o homem que a escolheu84.
Um ponto dos arranjos domésticos fica imediatamente claro: Juliana vai ocupar
seu próprio quarto de dormir, separado do quarto dos dois homens por um grosso
cobertor que faz as vezes de porta. E outro ponto é que os dois vão continuar a dormir
juntos no mesmo quarto, embora não haja mais qualquer sugestão de juntarem as duas
camas para que eles possam aproveitar o calor um do corpo do outro e seja lá que outros
confortos derivados da intimidade compartilhada. Juliana claramente é desde o começo
a parceira sexual de Cristián, e a primeira das várias representações de sexo deixa
claro que o irmão mais velho pretende aproveitar o corpo de Juliana em todos os seus
recursos. No caso da primeira visita de Cristián à cama de Juliana após sua chegada,
dois detalhes são enfatizados pela câmera. Um é a primazia do corpo de Cristián e
o relativo desaparecimento do corpo feminino. O filme de Christensen foi produzido
ainda no tempo áureo das pornochanchadas brasileiras – um estilo de comédia soft
porn que foi um padrão na época em que a linha dura da censura no Brasil neofascista
(que passou a ser governado pelos militares em 1964) forçou a incisiva análise política
e social – que foi característica do internacionalmente observado Cinema Novo das
décadas de 1950 e 1960 – a ser substituída por uma espécie de cafonice sexual que muito
84 No que diz respeito às dimensões homoeróticas do texto original de Borges, cf. BRANT, Herbert
J. The Queer Use of Communal Women in Borges “El muerto” and “La intrusa”. Hispanófila. 1999.
Sobre homoerotismo e Borges em geral, cf. ALTAMIRANDA, Daniel. Borges, Jorge Luis. In: FOSTER,
David William (Ed.). Latin American Writers on Gay and Lesbian Themes: A Bio-Critical Sourcebook.
1991. Cf. também BALDERSTON, Daniel. The “Fecal Dialectic”: Homosexual Panic and the Origin of
Writing in Borges. In: BERGMANN, Emilie J.; SMITH, Paul Julian (Eds.). ¿Entiendes? Queer Readings,
Hispanic Writings. 1995.
Rebecca E. Biron (2000) discute a história de Borges na qual o filme de Christensen é baseado,
ressaltando como ele reforça um pacto violento de masculinidade a fim de reprimir a homossexualidade.
Nesse caso, a história diferencia do filme, onde eu sustento que esse pacto violento de masculinidade
serve para clarear um espaço para um intenso vínculo homoerótico.
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Sexualidades e identidades culturais
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Sexualidades e identidades culturais
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Sexualidades e identidades culturais
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em termos de outras passagens menos explícitas para condenar o afeto entre indivíduos
do mesmo sexo, fornecem o título para um dos primeiros romances de literatura gay,
a obra de 1976 de Carlos Arcidiácono, Ay, de mi, Jonatán (Ai, de mim, Jonatan)86. A
proximidade cronológica entre o romance de Arcidiácono e o filme de Christensen e
o fato de que aquele foi censurado e esse nem mesmo foi exibido publicamente na
Argentina provavelmente levaram poucas pessoas a fazer a conexão entre os dois
textos, embora assistir ao filme mais de duas décadas depois e saber da proeminência
do romance de Arcidiácono num inventário de escritos gays latino-americanos torne
difícil não perceber a imediata alusão à intensidade do amor homoerótico entre Cristián
e Eduardo.
Qual é a natureza desse amor? Com certeza está longe de ser o estereótipo da
homossexualidade abjeta que domina o imaginário latino-americano, um estereótipo
no qual um homem marcadamente efeminado se vê como mulher (e isso se confirma
em gestos comprobatórios para a homofobia de plantão) e, como mulher, toma a si
a tarefa de chamar a atenção de um homem masculino adequado; a arte da narrativa
envolve o tratamento daquele por este com o desprezo que é dispensado a mulheres, em
geral desvalorizadas, numa sociedade masculinista, isso compondo, portanto, o páthos
característico dos dramalhões de telenovelas que é um ingrediente essencial dessa
narrativa homossexual paradigmática. Há tantos exemplos dessa narrativa na cultura
latino-americana que basta citar um clássico: El beso de la mujer araña (1976), de
Manuel Puig, para caracterizar essa vasta bibliografia. (É interessante notar que foi um
diretor argentino trabalhando no Brasil, Héctor Babenco, que adaptou o romance de
Puig para o cinema, mas dessa vez a versão fílmica foi produzida em língua inglesa –
Kiss of the Spider Woman [1985])87.
Embora seja um tanto abjeta a sensação que Eduardo experimenta de ter sido
86 FOSTER, David William. Gays and Lesbian Themes in Latin American Writing. 1991. p. 107-110. Cf.
também COSTA PICAZO, Rolando. Arcidiácono. In: FOSTER, David William (Ed.). Latin American
Writers on Gay and Lesbian Themes: A Bio-Critical Sourcebook. 1991.
87 Ver a discussão da representação do desejo entre indivíduos do mesmo sexo no filme de Babenco em
FOSTER, David William. Contemporary Argentine Cinema. 1992. p. 123-135.
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Sexualidades e identidades culturais
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abandonado por Cristián, a relação entre os dois está baseada em uma igualdade sexual
de masculinidade/machismo que só recentemente começou a ser reconhecida também
como tendo potencial para um relacionamento homoerótico pleno. O autor americano
descendente de mexicanos, John Rechy, desenvolve em seus escritos o modelo do
homossexual superviril que vai de encontro ao legado do homem efeminado como o
único agente sexual que podia ser chamado de homossexual; isso aparece especialmente
na obra The Sexual Outlaw (1977, revisada em 1984). As amizades entre homens
categoricamente não efeminados começam a surgir na literatura latino-americana de
modo a serem interpretadas como uma suave transição para o homoerótico depois que
Gustavo Geirola escreve duas análises críticas de Martín Fierro (1872 e 1879), de José
Hernández, uma obra literária que se passa nos pampas argentinos à mesma época que
a história de Borges.
Os primeiros exemplos claros de homoerotismo não efeminado na ficção latino-
americana estão provavelmente na obra de Luis Zapata, com Las aventuras, desventuras
y sueños de Adonis García, el vampiro de la colonia Roma (1979), e de Darcy Penteado,
com Nivaldo e Jerônimo (1981), além do texto gay fundador na literatura latino-
americana, de Adolfo Caminha, Bom-Crioulo (1895), esse notável por não repetir os
estereótipos efeminados, apesar de sua proximidade cronológica com um texto como O
retrato de Dorian Gray (de 1891, na publicação original em língua inglesa), de Oscar
Wilde. Não quero com isso insinuar que haja algo a lamentar em um modelo homoerótico
envolvendo “efeminização” ou qualquer outro tipo de construção não masculinista. Pelo
contrário, meu foco está em chamar atenção para a estereotipagem, homofóbica ou não,
desse modelo como sendo por necessidade a fundação de todos os relacionamentos de
mesmo sexo masculinos88.
O amor de Eduardo por seu irmão é contíguo a uma hipermasculinidade que 1) não
permite ser confundida com o feminino, 2) não permite que Eduardo seja erroneamente
88 Ver a análise dessas questões em relação à América Latina por MANZOR-COATS, Lillian.
Introduction. In: FOSTER, David William (Ed.). Latin American Writers on Gay and Lesbian Themes: A
Bio-Critical Sourcebook. 1991. p. xv-xxxvi.
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
interpretado como alguém que pudesse ocupar uma posição de subjetividade sexual
próxima à de Juliana, e 3) certamente não admite exceção alguma à virilidade duramente
conquistada e duramente defendida da qual ele se orgulha como sendo parte de sua
persona pública. Tampouco existe uma problemática do interno/externo no que diz
respeito à disjunção entre o espaço público e o espaço privado; não há uma necessidade
de esconder um modo de ser (sexual) desse último que não possa intervir naquele. Em A
intrusa, não há um “armário” de onde Eduardo pudesse (ou não) “sair”. Isso porque não
ocorre nenhum dos sinais que alguém pudesse querer manter guardados no “armário”
– roupas, gestos, comportamentos, ações (pelo menos não até este ponto da narrativa
fílmica) no filme de Christensen. Somente mais tarde, quando Cristián diz a Eduardo,
antes de livrar-se de Juliana, e em referência ao casebre deles: “Isto aqui agora tem a
ver só conosco”, é que a necessidade de um “armário” pode começar a tomar forma.
Contudo, até chegar a esse ponto, vai acontecer uma extensiva série de negociações,
com atos de considerável violência que lhes vêm na esteira.
Cristián de início não sabe como lidar com o desespero esganiçado (embora
inarticulado) do irmão. Eduardo tenta trazer para casa outra mulher para si, mas de
repente repensa a questão e, sem a menor cerimônia, a puxa de arrasto para fora de
casa para levá-la de volta à cidade. Quando Cristián precisa viajar por alguns dias para
tratar de um dado negócio (os irmãos, como muitos gaúchos da campanha, dependem da
venda de couro para sua subsistência), ele diz a Eduardo que fique à vontade para usar
Juliana. Não há em momento algum qualquer dúvida quanto à capacidade de Eduardo no
desempenho com as mulheres – mais um elemento que diverge do estereótipo efeminado,
uma vez que tais sujeitos sexuais são incapazes de ter relações com uma mulher. Ao ter
sexo com Juliana, Eduardo está, num sentido muito real, tendo sexo com seu irmão, o
que pode explicar desde certo ponto de vista o destemor de sua performance. A cena em
que ele aparece fazendo amor com Juliana repete as mesmas diretrizes daquela cena em
que Cristián possui a mulher, inclusive com o mesmo grau de concentração da câmera
no corpo masculino e na filmagem explícita dos glúteos do homem.
Porém, o compartilhamento de Juliana torna-se insustentável – mais um elemento
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Sexualidades e identidades culturais
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de tensão entre os irmãos e também uma oportunidade para Eduardo ferir com gravidade
um outro homem numa briga de facão. Eduardo sente-se ultrajado porque o homem em
tom zombeteiro pergunta se Juliana, apesar de morar com os dois, ainda é virgem. O
irmão desse homem será ferido por Cristián em outra briga, onde ele está defendendo
Eduardo, ferido naquela primeira briga (como observa Domingo Faustino Sarmiento
no Capítulo 3 de seu clássico estudo sobre o gaúcho, Facundo (1848), o propósito de
uma briga de facão entre os gaúchos é ferir e não matar – presumivelmente devido à
humilhação causada àquele que fica sendo um sobrevivente derrotado). Esse é o único
momento do filme em que aparece algo que se aproxima de uma acusação pública de
sexualidade irregular na casa de Cristián/ Eduardo. Se isso tudo parece um tanto quanto
esquemático, é porque faz parte da eficiência semiótica do filme: existe algo como uma
ars combinatoria entre os dois irmãos e Juliana, e os dois duelos são extensões disso,
tudo com o efeito de ressaltar as negociações que vão se desenvolvendo entre os dois
irmãos no que diz respeito à presença de Juliana em suas vidas e a perturbação que essa
presença causa no vínculo pessoal entre os dois.
Essas negociações continuam com a primeira tentativa de se livrarem de Juliana:
Cristián, com Eduardo como coadjuvante, leva Juliana, mala e cuia, para o bordel, onde
ele a vende para a cafetina por 300 pesos. Num gesto curioso – e magnânimo –, ele dá
parte do dinheiro para Eduardo. Afinal, Eduardo possivelmente salvou a vida de seu irmão
quando matou uma cobra venenosa no capim ao decepar-lhe a cabeça com um machete
enquanto Juliana observava. O símbolo masculino de Eduardo, o machete, elimina um
signo, a cobra no ambiente silvestre, associado à mulher, um agente do mal que sempre
traz e para todo o sempre trará desequilíbrio para um mundo adequadamente preservado
de valores masculinos, vínculos homossociais e, por extensão, afetos homoeróticos.
Contudo, a história não termina assim. Cada homem sai escondido, em
separado, para visitar Juliana no bordel, um fato que não significa que o vínculo entre
eles foi quebrado e que cada um, separado e individualmente, direcionou seu afeto
para Juliana, o que acarretaria em um duelo masculinista pelo afeto da mulher. Muito
pelo contrário, como declara um gaúcho grisalho no bordel aquele dito que vaticina
118
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
que qualquer homem que pensa em uma mulher por mais de cinco minutos é boiola.
Tanto Cristián quanto Eduardo estão pensando muito em Juliana – não porque cada um
respectivamente a deseje, mas porque parece que eles precisam autoafirmar-se um em
relação ao outro, o que proporciona uma ressonância altamente irônica ao comentário
do velho no bordel, mesmo que os dois estejam longe de serem boiolas no sentido
de ostensivamente efeminados (“maricão” é a palavra que o gaúcho velho no bordel
usa, que é uma adaptação brasileira de fronteira pampeana para maricón, a palavra
paradigmática em espanhol para “veado” ou “boiola”). Cristián, no entanto, descobre
Eduardo na fila do bordel e, tirando uma conclusão prática de que não há razão para
cansar os cavalos, toma a si a tarefa de comprar Juliana de volta da dona do bordel.
A sequência mais importante do filme ocorre após os dois homens terem retornado
para casa com Juliana, que se acomoda de novo em seu próprio quarto. Em uma das
cenas mais turgidamente homoeróticas do cinema latino-americano, Cristián e Eduardo
fazem amor com Juliana ao mesmo tempo. Não se pode falar de um ménage à trois
propriamente dito, uma vez que é questionável se Juliana é realmente uma participante
no ato. De um ponto de vista, a participação dela é uma extensão do modo em que é
uma parceira no ato de amor com um e outro dos dois homens individualmente. Ou
seja, tudo que ela tem de fazer é ficar deitada, quieta, ou então mover-se um mínimo,
conforme seu parceiro a requisita. Essa é a única participação solicitada de Juliana,
embora ela deixe a metade superior do corpo ser erguida num abraço, embora acaricie
um pouquinho o homem e embora emita gemidos em voz baixa. Todavia, não fica claro
se seus gemidos são de prazer sexual, uma vez que ela não se envolve em nenhum outro
movimento associado com entusiasmada participação sexual. E, realmente, ela é vista
sempre deitada, o corpo quase rígido, as pernas fechadas mesmo durante os momentos
de maior ímpeto de seu parceiro.
Isso deixa a questão aberta a diversas especulações: 1) essa é a posição padrão
da fêmea no ato de amor no meio rural àquela época; talvez outras posições fossem
associadas com a licenciosidade das prostitutas (quando a cafetina vende Juliana de
volta para os irmãos Nilsen, ela requer um lucro de dois terços em seu investimento,
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
argumentando que Juliana aprendeu muito no tempo que esteve em sua casa); 2) isso
serve à narrativa fílmica como um contraponto à intensidade da sexualidade dos irmãos,
ressaltando assim a necessidade sexual de ambos (as necessidades sexuais dos dois
serão detalhadas a seguir); ou 3) isso serve cinematograficamente para enfatizar a
exibição do corpo masculino, já que as pernas da mulher, batendo contra o corpo do
homem, teriam interferido na filmagem vagarosa dos corpos dos dois homens, suas
pernas, seus glúteos, suas costas, seus braços, tudo esculpido pelo duro trabalho braçal
dos pampas (os corpos de Cristián e de Eduardo serão detalhados a seguir). Um clichê
dos comentários feministas sobre a utilização sexual dos corpos femininos por homens
que têm pouco ou mínimo envolvimento emocional com as mulheres com quem estão
tendo sexo é que o corpo da mulher serve como um instrumento de masturbação, pouco
mais que uma boneca inerte e próxima da própria mão (que, com frequência, aparece
como um eufemismo antropomórfico em língua espanhola como Doña Manuela).
Quando os dois homens têm sexo juntos com Juliana, o papel dela não muda
significativamente; nem fica claro que tipo de intimidade sexual eles estão tendo com
ela, na medida em que há apenas uma brevíssima sugestão de uma penetração de seu
corpo simultaneamente vaginal e anal. Uma vez que nem fluidos sexuais nem o clímax
sexual podiam ser retratados em um filme brasileiro sério daquela época, não fica claro
como os dois homens atingem o clímax ou mesmo se o atingem. Se houve clímax
sexual, é provável que tenha sido mais uma questão de esfregação que de penetração;
tanto uma como outra servem apenas para sublinhar o modo como os dois corpos
machos necessariamente entram em contato como parte do ato sexual. Enquanto o
corpo de Juliana desaparece embaixo do peso conjunto desses dois imponentes gaúchos,
a câmera deixa claro que o ato orbita ao redor da sexualidade compartilhada dos dois,
e não apenas ao redor de suas relações simultâneas com Juliana. Seja lá o que for que
esteja acontecendo, está acontecendo de uma maneira que significa mais que apenas
Cristián e Eduardo compartilhando do corpo de Juliana – uma vez que os corpos dos
dois homens envolvem-se um com o outro. Isso se dá independentemente da natureza
específica dos atos sexuais que ocorrem.
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Se há esfregação envolvida, é difícil para cada homem ter uma área claramente
delimitada do corpo de Juliana: enquanto os dois passeiam livremente sobre o corpo
dela, eles estão passeando sobre zonas onde o outro possivelmente ou necessariamente
esteve, assim compartilhando um com o outro os vestígios de fluídos deixados no corpo
de Juliana a partir de seus dois corpos individuais (suor, líquido pré-ejaculatório, talvez
finalmente o sêmen). Se a penetração simultânea está envolvida, parte inevitável da
sensação é a presença do pênis do outro, separado do próprio por uma membrana ínfima;
e cada pênis movimenta-se um na direção do outro ao ritmo do coito. Um homem
pode estimular o outro tanto quanto cada um fica estimulado pelo corpo da mulher,
e, se o sexo torna-se interfemoral em algum momento, os homens estão estimulando
diretamente um ao outro. Por fim, como se todo o evento já descrito não fosse realidade
física suficiente no que diz respeito a pulsações eróticas que se passam necessariamente
entre dois homens tendo sexo com a mesma mulher, em vários momentos da cena, os
irmãos passam a mão um no corpo do outro e, finalmente, beijam-se com fúria. É nesse
ponto que o corpo de Juliana desaparece por completo entre as cabeças unidas dos dois
homens.
Como se Christensen tivesse de se afastar do homoerotismo cada vez mais
explícito dessa cena, que dura quase cinco minutos na tela, o corpo de Juliana reaparece,
a mão de Eduardo agarrada em seu púbis. Ora, esse não é um finale razoável por duas
razões, a mais óbvia delas sendo a aversão masculinista aos fluídos emitidos pelo corpo
feminino; outra razão é que isso implica um interesse nada viril na estimulação do corpo
feminino – para um gaúcho da fronteira daquela época, supõe-se que a simples presença
do corpo dele seguida do ato de penetração era vista como suficiente para uma mulher,
sendo que tanto as atividades preliminares quanto as pós-gozo eram desnecessárias,
insensatas, talvez até insalubres, por envolverem manipulações do corpo feminino (e
tanto pior quando envolvem zonas de fluídos contagiosos).
Eu gostaria de ler esse gesto final de Eduardo de uma maneira mais narrativamente
simbólica. É Eduardo quem, embora não seja incapaz de ter sexo com uma mulher,
está interessado basicamente em seu próprio irmão, e é Eduardo quem sente ciúmes de
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Juliana por ela ter invadido o espaço doméstico compartilhado na intimidade entre ele e
o irmão. Em consequência, ao fim do ato sexual compartilhado, ato esse que demandou
considerável envolvimento dos dois corpos masculinos (dentro das limitações do olhar
relativamente recatado da câmera que está filmando uma narrativa com seriedade e
comprometimento), cobrir a vagina de Juliana é um gesto de sinalizar ao irmão que esse
é um território proibido para Cristián, o que traz em si uma insinuação concomitante de
que o único território sexual que está aberto para Cristián é o corpo dele, Eduardo.
Só depois dessa experiência sexual compartilhada é que Cristián declara para
Eduardo que o casebre dos dois é para eles dois e ninguém mais. Em seu atoleiro de
ciúmes, Eduardo recusou-se a agir de acordo com os costumes dos pampas: fornecer
hospedagem a outro gaúcho que se encontra de passagem. O viajante, incapaz de
compreender as expressões de raiva de Eduardo em sua direção, continua em sua jornada
a cavalo depois de gritar com Eduardo, acusando-o de ser louco. Cristián vem chegando
a cavalo nesse mesmo instante, e seu comentário se dá em resposta à versão de Eduardo
para o acontecido. No dia seguinte, Cristián mata Juliana e esconde o corpo sob uma
pilha de couros que os irmãos vão levar até o posto comercial (feitoria). Quando ele
conta a Eduardo o que fez, esse apeia do cavalo e vai puxando os couros para o lado,
desfazendo a pilha e revelando o corpo de Juliana, deitado de costas e olhando para o
teto – mesma posição que ela antes assumira ao cumprir com suas obrigações sexuais,
primeiro com Cristián, depois com Eduardo, e depois com os dois ao mesmo tempo.
Enquanto a câmera retrocede, a tela exibe as palavras que fecham o conto de Borges:
“[s]e abrazaron, casi llorando. Ahora los ataba outro vínculo: la mujer tristemente
sacrificada y la obligación de olvidarla”89. Na verdade, a melhor maneira de esquecer
uma amante é cair nos braços de outra, e a câmera se demora no longo abraço dos dois
irmãos ao esplêndido pôr do sol dos pampas.
As palavras de Borges para o fechamento do conto são tão problemáticas quanto
89 BORGES, Jorge Luis. Collected Fictions. 1998. p. 351. “Quase chorando, eles se abraçam. Agora
estavam unidos por um outro tipo de vínculo: a mulher dolorosamente sacrificada, e a obrigação de
esquecê-la”.
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Sexualidades e identidades culturais
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a maior parte do que escreveu esse narrador enigmático, e elas deixam em aberto todo
tipo de pergunta: Juliana foi sacrificada em prol do quê? Por que esse sacrifício foi triste/
doloroso? (Pode-se ter certeza de que Borges escolhia as palavras com muito cuidado
e não teria usado um advérbio simples nessa construção frasal.) Presume-se que, numa
cultura que legitima matar os outros pela sobrevivência material ou simbólica (isto é, a
preservação da masculinidade), as pessoas esquecem suas vítimas, especialmente quando
é provável que haja muitas a serem esquecidas. Mas por que existe uma “obrigação”
de esquecer essa vítima em particular? Certamente não é porque essa é uma mulher.
Numa sociedade que menospreza as mulheres, os oponentes derrotados na luta pela
supremacia masculina são os que mais provavelmente serão lembrados, uma vez que
seu valor faz o homem recordar da legitimação de sua própria masculinidade.
O aviltamento homoerótico de Eduardo pode fornecer a chave para a narrativa,
uma vez que, só quando os dois irmãos se incumbem definitivamente da tarefa de
esquecer a mulher que quase rompeu a unidade fraterna, essa unidade pode ser
reafirmada e fortalecida no espaço doméstico que agora é de fato deles e só deles (como
na afirmativa acima citada, de Cristián para Eduardo). Juliana foi sacrificada (oferecida
em sacrifício) para o vínculo entre os dois, primeiro simbolicamente ao desaparecer
debaixo dos corpos deles, corpos esses unidos na cama dela e agora literalmente,
quando eles assumem a tarefa de fazer desaparecer de uma vez por todas o corpo dela
(que eles haviam anteriormente fracassado em fazer desaparecer quando a venderam
para a cafetina). Com isso, não estou dizendo que tudo funciona às mil maravilhas
no filme de Christensen. Pelo contrário, estou apontando uma série de eventos e uma
sobreposição textual enigmática; como essa é apenas a segunda sobreposição do filme,
não há como não evocar a primeira – um texto claramente sugestivo de homoerotismo,
com o lamento amoroso de Davi para Jônatas.
Quero encerrar fazendo referência aos corpos de Cristián e Eduardo e à sua
presumida sexualidade. Como ressaltei acima, de modo algum o filme interpreta os
dois como “gays” no sentido contemporâneo; tampouco como “efeminados” no sentido
homofóbico clássico. Repito: esses são homens viris que, como tal, se movimentam com
123
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
liberdade no mundo, completamente aceitos que são por sua imponente masculinidade.
Essa masculinidade é predeterminada por seus corpos. Os atores de Christensen vêm do
mundo das telenovelas brasileiras, o que não é de surpreender, pois, no Brasil, as mesmas
pessoas rotineiramente movimentam-se entre o teatro, a televisão e o cinema. Mas José
de Abreu (Cristián) e Arlindo Barreto (Eduardo) têm os corpos de atores brasileiros
contemporâneos: esbeltos, sem marcas e musculosos – como ficam os homens que
fazem musculação em academia e não homens que lidam com rebanhos de gado no dia
a dia e sofrem cortes e tombos e esfolam a pele no trabalho. A câmera de Christensen
demora-se nos corpos dos dois, principalmente em seus atraentes rostos, sublinhando as
intensas centelhas de emoção entre os dois que prenunciam a intensidade da união física
por cima do corpo de Juliana.
Barreto/ Eduardo é quase perigosamente bonito para um gaúcho primitivo,
especialmente na perfeição de comercial de shampoo de seu corte de cabelo – como o do
Príncipe Valente. Esses dois atores, portanto, sinalizam uma presença homoerótica: num
primeiro momento, através da apresentação de corpos que evoca os códigos eróticos das
telenovelas modernas e urbanas – mesmo que não seja através da ambiguidade de gênero
da beleza masculina – e depois, num segundo momento, através da atenção inusual e
sem pressa que a câmera dá aos corpos nus dos dois quando engajados, cada um, nos
primeiros atos heterossexuais convencionais que o filme mostra e, mais adiante, no sexo
grupal em que os papéis se confundem. O fato de termos uma apresentação do corpo
masculino nu – e ainda mais em uma cena de sexo grupal – permanece problemático no
cinema brasileiro (ou latino-americano e até mesmo estadunidense) mesmo duas décadas
depois de A intrusa ter sido realizado. Esse fato serve para confirmar o relacionamento
definitivamente queer dos dois irmãos, selado na cena final que os mostra de braços
dados, andando em direção ao pôr do sol.
124
Um Teorema brasileiro:
a queerização da
família em O visitante,
de Hilda Hilst
Escrita provavelmente no final do mesmo ano em que estreou o magnífico filme
de Pier Paolo Pasolini, Teorema, em 7 de setembro de 1968, a peça de Hilda Hilst, O
visitante, pode ou não ter sido inspirada na referida obra italiana. A estrela do filme de
Pasolini, Terence Stamp, no papel de A Visitante, evidencia as amarras da sexualidade e
as relações interpessoais em uma abastada família industrial de Milão, do pater familias
arrogante à empregada brega, passando pela mãe e pelos vários filhos, filhas e primos.
Embora Pasolini – a despeito de sua própria vida homoerótica turbulenta e de sua morte,
talvez por homofobia – não tenha contemplado diretamente a homossexualidade nessa
sua produção, ele certamente o fez em seu primeiro grande filme de sucesso internacional
com base em seu próprio romance homônimo lançado, também, em 196890. Não se pode
ignorar o fato de que a peça de Hilst é chamada de O visitante, mesmo que, no universo
da trama, o visitante designe, com um substantivo comum, Corcunda (= Corcovado).
Não é minha intenção, neste capítulo, realizar um paralelo entre o romance e o
filme de Pasolini e a peça de Hilst91, que teve apenas uma modesta edição92. Em vez
90 Lamentavelmente, RUSSO (1987), em seu trabalho sobre cinema queer, faz apenas algumas
referências esparsas à obra Teorema.
91 Isso só poderia ser feito, em primeiro lugar, se fosse possível se certificar de que Hilst teria tido algum
tipo de acesso seja ao romance de Pasolini ou ao seu filme de 1968, quando da elaboração de sua peça.
Eu não pude verificar tais informações.
92 A cronologia que acompanha a edição de Teatro completo, de Hilst, indica que a peça foi colocada,
assim como outras obras do gênero, “para o Exame dos Alunos da Escola de Arte Dramática da
Universidade de São Paulo” (cf. HILST, 2008, p. 543).
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
disso, a importância do grande texto do filme italiano serve para aumentar o interesse na
peça de Hilst e para enriquecer ambas as suas características cristológicas e a maneira
como a autora queeriza a decente família burguesa cuja instanciação brasileira, na obra,
seja tão alternadamente séria e estranha como a que se observa nos potenciais textos
italianos.
A dramaturgia para Hilst foi apenas um breve passatempo, uma transição entre o
início de sua bem-sucedida poesia e sua posterior legítima ocupação, conquistada por
meio de seus grandiosos e experimentais – de fato, pornográficos, como ela mesma
chamou – romances que se destacaram nas últimas décadas de sua vida. Hilst deixou
oito peças completas, compostas entre 1967 e 1969, sendo O visitante a terceira e uma
das quatro publicadas em 2000 pela Editora Nankin; as outras permaneceram inéditas
até 2008, quando a Editora Globo publicou as oito peças sob o título de Teatro completo.
Não se está preocupado, aqui, em saber se as peças de Hilst foram ou não grandes
contribuições para a dramaturgia brasileira. Em vez disso, o breve flerte com a forma
dramática foi mais um meio de a autora trabalhar em função de sua própria expressão
literária a qual julgava distinta, uma estratégia discursiva que permitiu que ela começasse
a configurar mundos narrativos que seriam realmente desenvolvidos de modo definitivo
e satisfatório quando ela passaria a se dedicar à narrativa curta e ao romance como gênero
literário (sem nunca abandonar a poesia, deve-se acrescentar). Aliás, Alcir Pécora, em
sua “Nota do organizador”, afirma que as peças de Hilst tinham pouco a acrescentar à
linguagem do teatro de protesto de base universitária organizado no período93, sendo as
principais obras aquelas que denunciavam as repressões do período do ponto de vista
das prevalecentes ideologias de resistência de esquerda: só para citar um exemplo, a
peça Auto da barca de Camiri (1968), que teve como pano de fundo a morte de Che
Guevara na Bolívia em 1967.
Apesar dessas ressalvas, O visitante é “diferente”94, e o prefácio dessa peça a liga
93 PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. In: HILST, Hilda. Teatro completo. 2008. p. 7.
94 Idem. Ibidem. p. 11.
126
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
à segunda parte do romance posterior de Hilst, Tu não te moves de ti (1980). Seja como
for, como um texto dramático, essa obra de Hilst de 1968 é devedora das peças de Lorca,
pois se caracteriza por apresentar elementos de prosa e de poesia mesclados (trata-se da
única peça de Hilst que faz uso da poesia como uma forma de diálogo dramático), por
recorrer a certos motivos vitais tais como o sol e a lua, e, acima de tudo, por desafiar,
a partir de postulados queer, o conceito de família nuclear, os papéis de gênero fixos,
as relações eróticas e, ainda, a sexualidade afetiva que traz à tona proposições não
convencionais ou escandalosas.
Além de levar o leitor a se recordar da principal trilogia de Lorca – Bodas de
sangre (1932), Yerma (1934) e o póstumo Bernarda Alba (1936; não executado até 1945,
em Buenos Aires) –, O visitante, na linha de interesse de Hilst ao que denominamos de
surreal, remete ao grande final de Lorca, em relação à peça incompleta El público (1929-
1930; executada em Madrid só em 1972). Porém, enquanto El público é uma releitura
de Romeu e Julieta, de Shakespeare, O visitante é, pelo menos em linhas gerais, uma
reformulação da história da Anunciação Cristã95. Teorema é cristológico no sentido de
que o Visitante concede a cada um dos membros da família italiana, urbana, moderna e
alienada, certa graça sexual. Ademais, O visitante é cristológico de duas maneiras. Por
um lado, porque o marido de Maria engravida não a Maria, mas à sua mãe aparentemente
estéril, Ana; por outro, porque o Visitante, a quem o marido afirma ter encontrado ao
longo da estrada, como ocorre em vários grandes episódios envolvendo os milagres de
Cristo, traz graça sexual ao marido de Maria.
Vale ressaltar que o personagem referido é aqui chamado simplesmente de Homem
e não de José. Maria fica, aparentemente, transpassada pela satisfação sexual tanto de seu
marido quanto de sua mãe. Além dessa versão até certo ponto escandalosa de recontar a
história de Maria, soma-se o fato de que é provável que Ana dará à luz um terceiro filho,
que será uma menina (ela sente que vai ser uma menina96), que novamente será chamada
95 Para uma análise da peça de Lorca, cf. JEREZ FARRÁN, Carlos. Un Lorca desconocido: análisis de
un teatro “irrepresentable”. 2004.
96 HILST, Hilda. “O visitante”. In: ______. Teatro completo. 2008. p. 177.
127
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
de Maria (uma outra morreu, assim como o que aconteceu com os respectivos pais das
duas primeiras Marias). Finalmente, como uma espécie de metacomentário a respeito
da releitura excêntrica da história mariana, o visitante ironicamente se autodenomina de
Meia-Verdade, por extensão, em todas as partes atingidas pelo projeto da modernidade
(afinal de contas, a assim chamada Sagrada Família era judia).
Mesmo quando eventos sócio-históricos desestabilizam tanto um determinado
modelo quanto suas questões culturais alternativas ou mesmo quando eles os desconstroem
(mais notavelmente a constelação de casamentos entre casais homossexuais e as
crianças que estão criando), campanhas extenuantes promovidas por forças reacionárias
e ultraconservadoras lutam para manter a suposta legitimidade universal – de fato, dada
por Deus – do modelo da Sagrada Família (ignora-se que um casamento com um único
filho seja um caminho para o desastre econômico, o que pode explicar o fato de que
alguns chegam a alegar que Jesus tinha irmãos). Mesmo quando a gravidez divina de
Maria é reconhecida como altamente irregular (uma fonte contínua de humor que inclui
a visão de José como um “corno” divino), ela serve para mistificar esse fenômeno e a
gestação como parte integral desse modelo social hegemônico97. Todo o ser de Maria
é marcado por sua maternidade divina: a ela não cabe outra história. Assim, mesmo
quando os fatos básicos da vida humana desafiam o modelo da Sagrada Família, ela
continua a ser defendida como uma base inquestionável da vida humana.
A peça de Hilst não terá nada disso. Antecipando por décadas questões queer
sobre relações afetivas que trazem para o seu universo aquelas questões baseadas em
amor e em desejo homoafetivo, juntamente com consequentes revisões da família e
de outras unidades sociais98, O visitante postula um conjunto da experiência humana
em que a família inclui outras dinâmicas sexuais muito além daquelas associadas ao
97 As contradições da figura da Virgem Maria, que também é a Mãe de Cristo, são examinadas no notável
ensaio de Julia Kristeva, “Stabat Mater” (1983). Essas contradições estão preservadas no imaginário
social mexicano, de forma que os homens, no México, acreditam que suas mães sejam virgens, sem
nunca terem praticado qualquer ato sexual.
98 Como discutido em detalhes no primeiro capítulo, “Who’s Your Daddy? Queer Kinship and Perverse
Domesticity” de seu livro Sexual Futures, Queer Gestures, and Other Latina Longings (2014), da teórica
queer porto-riquenha Juana María Rodríguez.
128
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
129
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
ele diz ter encontrado no caminho de casa e ter sido convidado a se unir à família para
tomar um copo de vinho103, o diálogo entre Ana e Maria volta-se para o estreito laço
afetivo entre elas, mais forte por parte de Ana do que por parte de Maria. É um vínculo
que beira o lésbico, se não for autenticamente lésbico por natureza:
Ana, de fato, mostra sinais de gravidez, enquanto que Maria não, embora seja
necessário aguardar a chegada dos dois homens para confirmar o primeiro fato.
103 As implicações sacramentais são demasiado óbvias para serem expandidas, especialmente porque
também vemos Maria preparando pão (hosts?). Podem-se concluir várias coisas a partir desses detalhes,
como já pude fazer com o Cristo de Corcovado, porque eles não são determinantes para uma revisão
queer da Sagrada Família, que é central para o trabalho. Ou seja, há aqueles tipos de detalhes dramáticos
incidentais que preenchem o espaço teatral.
104 HILST, Hilda. “O visitante”. In: ______. Teatro completo. 2008. p. 152.
105 Idem. Ibidem. p. 151.
106 Idem. Ibidem. p. 153.
130
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
As palavras podem ser fúteis na medida em que não mudam nada, mas são
eloquentemente sintomáticas em relação à extensão da dissonância sexual a que aludem.
É quando o estrangeiro chega que a geometria queer da peça começa a se definir de fato.
Maria se recusa a abrir a porta, de modo que Ana o faz, recebendo, assim, a flor que
o visitante anuncia ter trazido para dar à pessoa que o recebesse108. O Homem reage
imediatamente:
HOMEM (Levantando-se)
Ainda bem que foi Ana e não eu.
Uma flor para um homem, já pensaste?
Até a mulher podia duvidar
Se serias ou não, mensageiro amoroso
De uma trama109.
131
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
132
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Antes disso, o Homem deixou o quarto e, depois de um longo discurso em que ela
acusa sua mãe de permitir Corcunda de frequentar a cama do seu ex, ela percebe que
ele, também, desapareceu:
Há, com certeza, uma marca feminista em toda essa questão. Em primeiro lugar,
são Ana e Maria que “arranjam” a casa de modo que fiquem bastantes próximas uma
das outras, enquanto Homem aparece sem aviso prévio e some de forma semelhante,
introduzindo na sala de estar da família um estranho que também vem e vai sem aviso
112 HILST, Hilda. “O visitante”. In: ______. Teatro completo. 2008. p. 174.
113 Idem. Ibidem. p. 182. A disposição das citações diferencia uma da outra porque é uma consequência
de quando os personagens estão falando de um modo poético (na citação anterior, por exemplo, de Maria)
e de quando eles estão falando de forma prosaica (nessa citação).
114 Idem. Ibidem. p. 181.
133
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Com isso, Maria insinua que Corcunda e seu marido também poderiam ser
amantes. Mesmo que se insista no fato de o texto não ser conclusivo nesse aspecto e
que o que está realmente em questão é que o Homem facilitou o acesso sexual à sua
sogra, uma e outra possibilidade são igualmente queer no que se refere à figura central
da Sagrada Família heteronormativa. Como Maria já havia dito, assim que ela começa
a reestruturar a geometria erótica dessa família nuclear: “[s]abes mãe... estou ficando
contente”116. Finalmente, a peça tem conotações feministas na crítica continuamente
implícita de prerrogativa masculina, que inclui o recurso do Homem para uma
caracterização denegrida de sua esposa, acompanhada de violência física. Como diz
Maria: “MARIA: Inquieto... como todo homem”117. Não há nada de particularmente
extraordinário aqui, exceto a maneira como os topoi da dominação masculina são feitos
para funcionar dentro dos limites da queerização da Sagrada Família heterossexista.
O que é mais notável, na obra de Hilst, é a incorporação aleatória das normas
portuguesas peninsulares de uso da segunda pessoa. Isso poderia ser menos perceptível
se a peça estivesse inteiramente constituída em forma poética: tanto no espanhol
quanto no português da América Latina, as normas pronominais peninsulares, quando
acompanhadas de formas verbais, têm historicamente prevalecido em poesias (e em
134
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
118 Embora o pronome “tu” exija concordância com a segunda pessoa, e o “você” com a terceira pessoa
do singular, notam-se casos em que se usa um verbo conjugado em terceira pessoa para o pronome “tu”.
119 É claro, estou simplificando um pouco as coisas aqui, uma vez que existem muitas complicações em
relação aos pronomes e à concordância verbal no português brasileiro coloquial e na sua representação
escrita em diálogo em discurso direto.
120 HILST, Hilda. “O visitante”. In: ______. Teatro completo. 2008. p. 167.
121 Mais uma vez, estou simplificando, porque há uma longa lista de títulos honoríficos em uso no Brasil
que inclui o pronome possessivo Vossa, que é, presumivelmente, um uso arcaico de vós. No entanto, as
formas como Vossa Senhoria e Vossa Magnificência já foram substituídas por formas de terceira pessoa,
em consonância com o senhor e a senhora: Sua Senhoria, Sua Magnificência. Aliás, o Brasil é um vasto
país, onde se verificam ainda empregos gramaticais arcaicos, e estamos falando do emprego da norma
culta, usada em contextos profissionais e formais específicos.
135
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Brasil, vê-se o senhor / a senhora. Outros desvios ocorrem na implantação das formas
de segunda pessoa, como quando Ana diz: “[d]isseste que tu e ele eram dois homens”122,
quando a concordância mais correta seria “tu e ele éreis” (tu + ele = vós éreis). Outro
exemplo diz respeito ao uso supostamente “correto” por Ana quando ela diz a Corcunda
“Perdoa”123, em vez de “Perdoai”.
Meu interesse aqui não é elencar todos os supostos desvios gramaticais presentes
no texto de Hilst (especialmente no que diz respeito ao uso de pronomes e à concordância
verbal), mas discernir o efeito semiótico que eles produzem na conjuntura da peça.
Com isso, quero dizer que eles contribuem para a queerização do universo humano
de O visitante, corroborando, ainda, o desmantelamento das relações heterossexistas
convencionais. Nesse sentido, tal queerização deve afetar, necessariamente, a linguagem,
além de afetar as experiências, as emoções e as interpretações dos personagens.
Hilst era uma perita na língua portuguesa124, e seria presunçoso afirmar que ela não
sabia o que estava fazendo com cada palavra que escrevia. Como consequência, só se pode
supor que os usos supostamente inadequados de Hilst quanto ao emprego de pronomes e
de formas verbais faziam parte de uma decisão discursiva estratégica pretendida por ela
para destacar as relações reguladoras entre os membros do microcosmo social. Afinal de
contas, uma das funções pragmáticas essenciais da linguagem é sinalizar tais relações
regulatórias em termos não apenas do que as pessoas podem dizer umas às outras, com
base em sua relação, mas como elas devem ou não dizê-lo.
Isso é particularmente verdadeiro na família, em que as características
metalinguísticas (metalinguísticas porque chamam a atenção para como a linguagem está
sendo usada) são cruciais para a relação entre as gerações (mãe/filha), para as relações
pela divisão sexual (marido/esposa), e através da partilha entre membros conhecidos e
estranhos (Ana ou Maria/Corcunda). As chamadas irregularidades que se notam nesse
122 HILST, Hilda. “O visitante”. In: ______. Teatro completo. 2008. p. 161.
123 Idem. Ibidem. p. 165.
124 Acredita-se que é a maneira despojada e direta da natureza transgressiva da sua escrita que afasta
Hilst de uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, a que ela teria pelo direito.
136
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
âmbito, isto é, nos traços discursivos inesperados, servem para alertar o público para
o fato de que esse microcosmo não pode ser tratado da maneira como se tratam outros
assuntos no dia a dia, e aqui se incluem os princípios heteronormativos125.
O visitante não é uma grande obra. Num sentido bem autêntico, nenhum texto
de Hilst constitui uma grande literatura, da maneira como a crítica tem definido
Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, Grande sertão: veredas (1956), de
João Guimarães Rosa, ou A paixão segundo G. H. (1964), de Clarice Lispector. Hilst
escreveu fragmentos brilhantes, mas que têm ficado escondidos em volumes publicados
discretamente, pelo menos no que diz respeito à sua prosa e ao seu teatro. Isso, porém,
não rebaixa sua importância artística global para a cultura brasileira, mas simplesmente
significa que temos de olhar para os seus textos de uma forma não reducionista, isto é,
que não os veja como uma sucessão de títulos que interagem uns com os outros como
elementos de uma obra magistral126. Pode-se concebê-los como peças de um mosaico
em que certas formas e questões recorrentes podem ser encontradas, entre elas, o uso
de paródias de ícones e temas da moralidade judaico-cristã convencional, bem como
a aprovação das configurações eróticas queer. Não é de se admirar que Maria, que é
tão amarga e infeliz no início de O visitante, torna-se, no final da peça, uma mulher
sonhadora e realizada.
125 Remeto-me aqui à questão da queerização da linguagem. Cf. FOSTER, David William. Espanhol
queer, português queer: notas para investigação. In: ______, CALEGARI, Lizandro Carlos; MARTINS,
Ricardo André Ferreira (Orgs.). Excluidos e marginalizados na literatura: uma estética dos oprimidos.
2013. p. 213-39. O capítulo pode ser consultado nesta antologia.
126 Essa característica presente em seu trabalho também pode ter contribuído
para sua exclusão da Academia Brasileira de Letras, juntamente com o fato
de ela ter feito uso de formas literárias muito conservadoras.
137
A homossexualidade em
Aqueles dois, de Sérgio
Amon: dentro e fora
do armário
Como John Corvino127 ressaltou, o principal argumento a favor do homoerotismo
é que ele serve para fazer felizes certas pessoas que o praticam e que, por outro lado,
é bom para uma sociedade saudável. Se não se pode encontrar nenhum motivo que se
baseie em princípios para invalidar relações homoeróticas (e Corvino criteriosamente
revisa os motivos que foram apresentados com bases religiosa, moral, psicológica ou
social e conclui que são tanto desprovidos de fundamentação quanto não convincentes),
também não se vai, como passo seguinte, procurar um motivo para defender relações
homoeróticas (isto é, algo não tem de ser socialmente libertador; ao ser permitido, basta
saber que não é uma clara e presente ameaça à sociedade). Contudo, se alguém se
sente levado a procurar um motivo para defender relações homoeróticas para além da
comprovação de que elas não fazem mal a ninguém – nem aos que nelas se envolvem
nem a terceiros (exceto pelo modo como todo e qualquer amor é potencialmente danoso,
pelo menos psicologicamente) –, então essa defesa encontra-se na alegria pura e simples
de que as relações sexuais satisfatórias trazem para qualquer indivíduo, hétero ou não.
A Igreja Católica, pelo menos desde o fim dos anos 1960, reconhece que o sexo,
além de servir simplesmente à função crucial de estímulo para a procriação, serve também
– de modo não menos crucial – para cimentar os vínculos de amor e responsabilidade
mútua entres os indivíduos. É claro que a Igreja está interessada apenas nos casamentos
127 CORVINO, John. Why Shouldn’t Tommy and Jim Have Sex? A Defense of Homosexuality. In:
______. Same Sex: Debating the Ethics, Science, and Culture of Homosexuality. 1997.
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
128 O título aparece na tela durante a exposição dos créditos de abertura com a vogal “i”, de “dois”,
invertida. Isso chama a atenção não somente para o que poderia ser o referente da palavra, como também
evoca a sexualidade masculina pelo fato de criar um ícone do pênis.
129 ABREU, Caio Fernando. “Aqueles dois”. In: ______. Morangos mofados. 2005. p. 132-140.
139
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
130 Para uma contextualização do filme de Amon dentro da indústria cinematográfica brasileira sobre
questões queer, cf. MORENO, Antônio. A personagem homossexual no cinema brasileiro. 2001. p. 134-
136.
140
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
uma seca observação: “isso” é uma doença que não tem cura. Em seguida, vemos Clara
agindo com frieza para com os dois homens, e deve-se supor que ela não guardou para
si os resultados de sua visita à cartomante.
O que está acontecendo aqui, portanto, é uma densa ação interpretativa concebida
para demonstrar que os dois homens são queer e que, pelo bem da saúde e do bem-estar
da “grande família”, como o dono gosta de chamar a sua empresa, os dois homens
devem ser demitidos. Depois de fazê-los escutar uma denúncia anônima gravada na sua
secretária eletrônica131 (serviço de caixa postal de telefonia fixa), o Dr. André demite os
dois, alegando que não está interessado em quem deixou a mensagem (isto é, o discurso
da homofobia é inquestionável, irrepreensível, incontestável), e sim em seu conteúdo.
Portanto, a alegação é por definição autocomprobatória: o simples ato de fazer uma
alegação desse teor assegura sua verdade, e a fortaleza impenetrável da homofobia faz
dela um discurso que é inquestionável, irrepreensível e incontestável.
Em termos de uma praxis da masculinidade, a mensagem é clara: um homem não
pode ser nem fazer nada que possa vir a colocar em marcha as implacáveis maquinações
da homofóbica reação em cadeia, que é uma dinâmica metonímica pela qual cada indício
pode promover uma ação totalizadora de interpretações que resulta na conclusão de que
o indivíduo sob suspeita é queer. Uma vez que nenhum homem (ou mulher, embora a
heteronormatividade de uma sociedade masculinista possa sujeitar homens mais que
mulheres a maiores suspeitas) pode provar definitivamente que ele é hétero, o dia a dia
da pessoa deve ser estruturado de tal modo que (espera-se) prove que ele não é queer –
ou pelo menos de modo a afastar qualquer tentativa de se começar a interpretá-lo como
queer, já que, uma vez em marcha, a homofobia muito raramente pode ser freada. Na
verdade, ela se torna muitas vezes uma profecia autogratificante, como Bruno Barreto
131 No conto de Caio Fernando Abreu (2007), em que o filme se baseia, não se tem uma secretária
eletrônica, mas cartas escritas anonimamente, as quais são descritas pelo narrador nos seguintes termos:
“Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias – e tinham planejado, juntos, quem sabe
Parati, Ouro Preto, Porto Seguro –, ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou,
perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas
cartas, anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como ‘relação anormal e osten-
siva’, ‘desavergonhada aberração’, ‘comportamento doentio’, ‘psicologia deformada’, sempre assinadas
por Um Atento Guardião da Moral”.
141
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
demonstrou com brilhantismo em seu filme de 1981, O beijo no asfalto, talvez um dos
melhores tratamentos dado ao tema, tanto no filme quanto em sua versão original, em
texto dramatúrgico de 1960 de Nelson Rodrigues132.
O incentivo a essa reação em cadeia no enredo de Aqueles dois pressupõe várias
dimensões. A mais óbvia é o simples fato de que existem mais candidatos para empregos
que empregos para candidatos. E uma das funções do racismo, sexismo, classismo e
similares é diminuir a competição para aqueles que os praticam, porque eles intuem
que são membros da minoria hegemônica, seja no ambiente de trabalho ou em outras
esferas. Assim, a homofobia com frequência serve para engendrar a demissão de outros
de forma a haver gente alcançando sucesso por meio de menos competição; um corolário
disso é a crença de que “eles” se unem, defendem os de sua “laia” e, assim, aumentam a
competição para os membros da maioria e, consequentemente, sua eliminação justifica-
se para “tornar as coisas mais justas para nós, os caras do tipo normal”.
Um dos aspectos interessantes de Aqueles dois é que, pelo menos com base nos
estereótipos convencionais, vários gays trabalham para o Dr. André. Um deles, o jovem
Mário, entrou para a firma à mesma época que Raul e Saul (houve seis candidatos, e
três foram admitidos para as vagas disponíveis). Embora Mário nunca apareça com
proeminência no filme, seus gestos efeminados fornecem de imediato um pretexto para
a homofobia. Mas o peixe graúdo está nas pessoas dos outros dois funcionários, colegas
que parecem ter criado uma relação entre si e, portanto, são uma ameaça maior que Mário
– provavelmente mais fácil de intimidar por ser mais obviamente queer. E também tem
o Ferreira, a quem todos chamam (de modo revelador) de Ferreirinha. Em português, o
uso de diminutivos, particularmente nos sobrenomes, é uma estratégia discursiva para
identificar alguém como queer sem afirmar isso explicitamente: o diminutivo afetivo na
língua (que é mais verdadeiramente afetivo quando empregado para o nome de batismo,
ou seja, o primeiro nome para a maioria dos brasileiros) é apropriado como uma ofensa
homofóbica, como insinuação de que a pessoa assim designada é queer.
Ferreira é um homem mais velho que trabalha na empresa há muitos anos; assim
132 FOSTER, David William. Gender and Society in Contemporary Brazilian Cinema. 1999. p. 129-138.
142
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
como Mário, ele também dá sinais de ser efeminado, sinais esses que são interpretados
como ainda mais ofensivos e transparentes devido à sua idade e à sua óbvia solteirice.
Saul comenta com Raul que é uma pena que Ferreira não tenha outra vida que não o
trabalho e que ele sem dúvida não teria escolhido essa vida para si (isto é, fazer da
empresa o centro de sua vida em vez de, no meu entendimento, uma relação erótica, o
que lhe é interditado pela homofobia). Ferreira comete um erro ao lidar com a papelada
de um cliente particularmente valorizado pelo Dr. André, e esse não tem pruridos em
humilhá-lo na frente de todos. Quem o consola é Norma, uma funcionária do escritório,
que parece estar sempre pronta a defender a dignidade de seus colegas de trabalho; é
ela quem fornece um contradiscurso para a afirmativa do Dr. André de que a empresa é
uma grande família, ao dizer que a empresa é um ninho de cobras onde cada um pensa
tão somente em si mesmo.
Outro sinal de homofobia no universo do filme é a identificação da suposta
semelhança entre os dois homens. Eles são fisicamente diferentes e têm diferentes
experiências de vida. Raul é separado da mulher, um pouco mais velho, está ficando
careca e usa barba; Saul, que teve um relacionamento de longo tempo e nunca finalizado
com uma mulher que ele diz ter sido a paixão de sua vida, tem o rosto liso de um
menino, talvez com aquilo que se convencionou chamar de (com inflexão positiva ou
negativa) um jeito “sensível”. A semelhança dos nomes é um piscar de olho do diretor
para o público espectador, sinalizando que, afinal, eles são, por assim dizer, farinha do
mesmo saco. Embora nenhum dos dois tenha um histórico de relações homoeróticas
– e, de fato, não fica explícito no filme que eles irão se vincular de modo definitivo
através de relações homoeróticas, pelo menos não no sentido do termo como entendido
pela homofobia e pela liberação gay –, existe uma química entre os dois que poderia
passar por (em qualquer definição razoável da palavra) amor: eles descobrem que têm
interesses mútuos que os levam a se engajarem em animadas conversas, de tal modo
que eles têm prazer um na companhia do outro; os dois têm carências emocionais que
ressoam as de um no outro; e o jogo de palavras que Saul lança para Raul na véspera de
Ano Novo, perguntando se ele alguma vez fez amor com outro homem (uma cantada a
143
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
que Raul parece responder de bom grado), pelo menos sugere a possibilidade de uma
sexualidade física satisfatória.
Contudo, se por um lado a semelhança entre os nomes sugere que eles devam
inevitavelmente ficar juntos em uma relação sinergética, ela também é subjacente à
ligação dos dois em uma denúncia homofóbica. A mensagem anônima gravada na
secretária eletrônica do Dr. André fala de “aqueles dois caras com nomes parecidos”,
como se a semelhança dos nomes fosse prova de serem queer. A cultura popular
estadunidense parece sustentar que certos nomes são queer por natureza, uma variante
da fórmula isidoriana, segundo a qual nomes são a consequência de certas coisas;
alguns gays trocam seus nomes por formas que hoje são reconhecidas como parte da
cultura gay: Ken, Kurt, Bobby, Billy, Joey, por exemplo, são recorrentes em textos gays.
Acredito que não seja esse o caso da cultura brasileira, com a exceção de certos “nomes
de guerra” preferidos, que podem ser usados por travestis e drag queens. Entretanto, o
processo da homofobia no filme implica que “aqueles dois” são um “par natural” com
base na semelhança de seus nomes, como se fosse inevitável que eles viessem a se
tornar um par de queer com base nos seus nomes. Contratados pela empresa à mesma
época, trabalhando lado a lado no mesmo escritório, os dois cantando um ao outro,
almoçando juntos, os dois sendo fotografados em poses simétricas, tudo serve para
reforçar, na cultura homofóbica de seus perseguidores, que a atitude gêmea dos dois é
constituída primariamente por seus nomes.
Apesar de seus perseguidores os enxergarem juntos numa pose simétrica numa
foto que Saul deixa cair sem querer no elevador (ela é parte de um portfólio de materiais
– incluindo-se ali desenhos do próprio Saul – que ele está levando para mostrar a Raul),
outro incidente visual (não verbal) no filme envolve a apaixonada Clara. Clara tenta em
vão envolver Raul em um relacionamento, usando o que ela entende ser uma amizade
(não homoerótica, claro) entre ele e Saul para chegar até Raul, convidando-o para uma
festa em sua casa (de Clara), indo até o apartamento dele (de Raul), para exigir dele –
que com isso fica muito surpreso – que “explique” a relação entre ele e Saul. Ao fazer
isso, ela sem querer obriga Raul a perder um programa com Saul: iam pegar um cinema
144
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
juntos. Clara, com isso, está usando os conselhos de uma amiga sobre como conquistar
Raul. Durante esse processo, e antes de seguir o conselho da amiga para procurar os
serviços de uma cartomante, vemos Clara estudando Raul e Saul entretidos em uma
conversa na hora do almoço, os dois fisicamente próximos. Ela está passando em frente
à porta do refeitório e vê os dois homens juntos e para de súbito para estudá-los por um
momento, antes de prosseguir em seu caminho – com relutância. Será essa descoberta
da proximidade dos dois que irá talvez despertar em sua mente a suspeita de que os dois
são amantes quando a cartomante mostra a ela como as cartas identificam um outro
homem que não é o marido de Clara interpondo-se entre ela e Raul.
A homofobia sustenta-se em grande parte em evidências visuais: alguém é
visto fazendo seja lá o quê, e isso dá início a uma reação em cadeia, semiótica, de
interpretações homofóbicas, e a homofobia é usualmente não generosa quanto a que
tipo de coisa ela permite que seja computada como evidência. Assim, enquanto que
para o espectador os dois homens estão simplesmente engajados numa boa conversa,
Clara parece ter o tipo de baque gerado pelo ciúme, em geral inspirado pela descoberta
de ver o objeto de seu afeto em companhia de outra pessoa, quando o que se quer é
tê-lo na própria companhia. E, quanto mais íntima parece ser a relação com o outro,
maior o grau de ciúme. O ciúme de Clara, discernível em sua expressão fisionômica,
não é imediatamente homofóbico, mas é evidente que ela fica perturbada ao ver os
dois homens juntos, quando se supõe que ela só se deixaria perturbar se visse Raul
em conversa animada com outra mulher. Clara tem uma segunda oportunidade visual
no filme, dessa vez algo que está claramente escorado na raiva homofóbica da mulher
desprezada – e por um homem! Quando o pai de Raul adoece e ele precisa tirar uns dias
de licença no trabalho para visitá-lo no interior, ele pede a Saul que lhe dê apoio moral.
Quando eles se encontram e Raul informa Saul da morte de seu pai, essa é a primeira
vez que os vemos se abraçarem, numa demonstração calorosa de afetividade. Quando
Saul recebe uma ligação de Raul no telefone da mesa de trabalho de Clara, vemos Clara
observando Saul ao telefone, ela com um olhar de franca e gelada hostilidade. Agora
145
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
ela “sabe” sobre eles, e esse telefonema de Raul, pedindo a Saul que lhe preste socorro
emocional, só vem confirmar a extensão da relação queer dos dois.
Finalmente, a homofobia, a fim de funcionar com eficiência, deve buscar a
confirmação de sua correção moral através do consenso social: outros devem concordar
com os perseguidores homofóbicos, reiterando que suas percepções são corretas, e
devem concordar com eles no que diz respeito à adequação da punição a ser infligida
aos transgressores. Portanto, o colega dos dois homens dá início ao seu discurso de
denúncia pelo qual os outros são informados da “descoberta” e são requisitados a
concordar com ele que, em prol da saúde e do bem-estar do ambiente de trabalho,
os funcionários ameaçadores devem ser demitidos. A pergunta de Norma, sobre que
diferença faz para os outros o relacionamento dos dois, não encontra quem a queira
ouvir, e vários colegas de escritório apoiam as afirmativas do perseguidor com um
silêncio cúmplice (em situações desse tipo, alguém como Ferreira não tem escolha a
não ser apresentar-se como o mais cúmplice de todos, pois não vai querer atrair para si
as agressões homofóbicas, que sempre buscam se justificar pela expansão do seu círculo
de inclusão), e o resultado é que o perseguidor tem toda razão para acreditar que sua
denúncia é endossada pelos homens e mulheres de boa índole do escritório. Serve de
pouco consolo a decisão do perseguidor de denunciar os dois homens por meio de uma
mensagem telefônica gravada, anônima, em vez de – como é mais comum nesses casos
– empunhar tijolos e pedaços de pau. Porém, deve-se compreender que a demissão
sumária (ainda que não seja ilegal, pode ser vista como imoral) do local de trabalho que
representa a fonte de renda de alguém (e ainda mais num mercado de trabalho como o
sugerido no filme, de vagas tão escassas) é algo potencialmente tão violento quanto uma
agressão física direta.
Mesmo assim, a conclusão do filme fornece uma virada interessante, até mesmo
utópica, para as inevitáveis consequências da demissão dos dois homens pelo Dr.
André. Com ajuda da suspensão da descrença no que se refere à viabilidade econômica
da situação dos dois homens após suas demissões, o filme descreve o alto estado de
felicidade que envolve os dois no mês de janeiro, apesar do verão escaldante que faz
146
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
derreter a cidade ao redor deles. Como heróis conquistadores, e talvez numa alusão
intertextual a saltitar em direção à felicidade na estrada de tijolos amarelos de Oz, vemos
os dois aparecerem com alegria, no topo de um morro, no meio do trânsito. Em voice
over, o filme conta que, enquanto eles passaram o janeiro juntos em delirante felicidade,
o escritório que os dois deixaram para trás mergulhou numa infelicidade da qual nunca
se recuperou.
O contexto de felicidade é reforçado pelo fato de que a demissão dos dois acontece
na virada do ano, depois dos dois feriados importantes de Natal e de Ano Novo. Vemos
os funcionários da empresa decorando o escritório para o Natal e cantando uns para os
outros trechos de canções natalinas, e o suposto primeiro encontro sexual entre os dois
homens ocorre nesse cenário de festividades do Réveillon, que só é menos importante
que o Carnaval no calendário de feriados brasileiros (um filme interessante, cujo enredo
está centrado na importância das comemorações de Ano Novo no Brasil, é O primeiro
dia [1998], de Walter Salles e Daniela Thomas). Mas esse é também o contexto em que
a denúncia contra Raul e Saul chega ao Dr. André – um contexto em que esse entende a
vantagem pragmática de demiti-los.
A homofobia serve para nos fazer entender que sua virtude está em livrar o mundo
do mal pernicioso e contagioso dos desvios sexuais a fim de assegurar a prosperidade
saudável da heteronormatividade. Além da proposta de serem os desvios sexuais uma
praga moral, execrá-los e persegui-los é uma prática a ser defendida como absolutamente
necessária para evitar os efeitos deletérios de meramente estar na presença de queers.
Claro está que a homofobia nunca é chamada a esclarecer que efeitos deletérios são
esses, e, como manda o figurino, quando tais acusações são formuladas contra “aqueles
dois”, nenhum esclarecimento é dado sobre por que é necessário se livrar deles. O que
é particularmente eficaz no filme de Amon é a mensagem implícita de que o que há de
errado com eles é que eles são, muito simplesmente, felizes juntos133.
133 O termo “felizes juntos” foi empregado ironicamente como o título em inglês de um filme de
1997 dirigido por Kar-Wai Wong, de Hong Kong. Situado em Buenos Aires, os dois protagonistas de
Hong Kong, que pertencem à classe operária, encontram tudo, exceto felicidade no seu relacionamento
homoerótico, algo que serve para provar que as relações homossexuais, diferentemente das heterossexuais,
não garantem nenhuma alternativa de felicidade.
147
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Não deixa de ser uma questão controversa, se o que a homofobia não consegue
tolerar são pessoas queer felizes. Mas é um postulado importante do heterossexismo
que queers não podem, por definição (já que estão desrespeitando os tabus da natureza),
ser felizes. Assim, a presença de queers felizes é um claro insulto – por ser um desafio
direto – aos princípios básicos da heteronormatividade. No contexto da empresa do Dr.
André, a especial felicidade de Raul e Saul contradiz a proposta de que o escritório é
uma família feliz, enfatizando consequentemente a infelicidade de seus colegas. Essa é
uma infelicidade que é consequência da desunião venenosa que existe entre os colegas
de trabalho e que se fecha sobre todos como uma mortalha implacável quando se remove
a felicidade dissonante dos dois homens ofensivos. Em outras palavras, a diferença da
felicidade dos dois sublinha a infelicidade de seus colegas, e, para o Dr. André, mesmo
que isso signifique uma tremenda injustiça para com Raul e Saul, é vital restaurar a
infelicidade indiferenciada de seus funcionários: seus semblantes azedos e seus olhares
amedrontados, irados, furtivos e acusadores.
É altamente questionável até que ponto Raul e Saul serão capazes de manter sua
felicidade frente à triste realidade social de seu mundo, esteja o mundo deles dentro
dos limites da firma do Dr. André ou lá fora, nas ruas de Porto Alegre, onde o filme foi
rodado. Mesmo assim, eu insistiria em que Aqueles dois é menos um filme sobre o amor
homoerótico e mais um filme sobre homofobia, esteja ela no local de trabalho ou na
sociedade em geral; como produções culturais têm mostrado, o local de trabalho é tão
somente um ícone da sociedade em geral. O local de trabalho é um espaço privilegiado
apenas por ser onde passamos uma grande porção do dia. Um excelente filme brasileiro
sobre o local de trabalho como ícone social e que aborda a temática das questões de
gênero é A hora da estrela (1985), de Suzana Amaral134.
Aqueles dois não é tanto um filme sobre homoerotismo (porque a relação dos
dois homens como amantes está representada de modo apenas oblíquo), pois o filme gira
mais em torno da homofobia (porque essa é a dinâmica detalhada diretamente no filme).
134 Cf. FOSTER, David William. Gender and Society in Contemporary Brazilian Cinema.
1999. p. 70-82.
148
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Vemos mais das consequências do relacionamento entre Raul e Saul gerando homofobia
nos outros do que vemos do amor entre os dois – nem mesmo quando consideramos
como os filmes gays dão importância a uma insistência em detalhar o encontro de corpos
do mesmo sexo. O amor físico em si é tanto uma estratégia em prol da naturalização da
sexualidade homoerótica quanto uma maneira de dissipar pressuposições heterossexistas
sobre o homoerotismo: isso aparece sob a forma de demonstrar enfaticamente que um
amor assim é mais que uma caricatura grotesca de uma heterossexualidade superior ao
colocar em evidência as diferenças significativas do amor homossexual e a felicidade
que ele traz aos que o praticam – para combiná-la em pé de igualdade com a felicidade
que se assume convencionalmente como resultante do amor heterossexual. Aqueles dois
não fornece nada disso aos espectadores, nem mesmo a representação de um beijo – por
mais breve que fosse – entre os dois homens, embora haja uma breve cena de fantasia
dos dois dançando abraçados ao som de música lenta.
Essa fantasia faz parte de uma sequência na qual Saul e Raul estão numa
festa: Clara parece ter conseguido com que Raul aceitasse um convite, mesmo que
isso signifique convidar Saul (bem como outros colegas do escritório) também. Raul e
Clara começam a dançar juntos, e Clara tenta beijar Raul, mas ele rejeita sua investida.
Quando ele e Saul deixam a festa ao mesmo tempo, ambos terminam dividindo uma
garrafa de cerveja, sentados no meio-fio, diante de uma loja de vestidos de noiva
(talvez os dois homens venham a se “casar” um com o outro). Eles alternam goles de
cerveja entre si, bebendo diretamente do gargalo, numa espécie de camaradagem física
compartilhada – e o homossocial começa a deslizar para o homoerótico, e a incipiente
simbologia fálica da garrafa de cerveja (num filme que não pode representar a intimidade
física) fica enfatizada pelo modo como Raul está sentado no meio-fio, com a garrafa
projetando-se do meio de suas pernas. Mais tarde, quando Saul acorda em sua própria
cama, sua mão está pousada em uma garrafa de cerveja. A fantasia do dançar abraçados
acontece quando os dois estão numa praça ou parque e parecem estar compartilhando
uma cena imaginada na qual Raul convida uma mulher sentada num banco de praça
a dançar com ele. Outros dançarinos aparecem, e a representação dos dançarinos em
149
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
dimensões múltiplas dissolve-se na imagem dos dois homens dançando abraçados. Loja
de vestidos de noiva, garrafa de cerveja, dançar juntinho, tudo funciona aqui como
imagens deslocadas do crescente envolvimento erótico entre os dois homens.
Uma vez que homens têm mais contato físico no Brasil que nos Estados Unidos,
fotografias em praça pública de homens com o braço de um no ombro do outro, a
proxêmica estreita de uma conversa entusiasmada ou a troca calorosa de um abraço entre
homens dificilmente são taxadas de marcadores de desejo ou atividade homossexual,
não interessa o quão significativas se tornem de um modo cumulativo para a rejeitada
Clara e para os colegas invejosos do filme de Amon (ou seja, aparece aqui, uma vez
mais, a reação em cadeia da homofobia).
Parece que Aqueles dois, a julgar pelas resenhas do filme a que se tem acesso
visitando o website da Casa de Cinema de Porto Alegre, provocou certa confusão quanto
a suas intenções. Alguns críticos elogiaram a eloquência com que o filme representou a
alienação da cidade grande e seus resultantes ambientes de trabalho desumanizados. Isso
está bem colocado, pois o filme apresenta um sem-número de imagens, enriquecidas por
uma repetição mecanicista que lembra a obra-prima de Fritz Lang – o filme expressionista
Metropolis, de 1927, um marco do cinema –, representativas do amortecimento que vem
da falta de sentido do trabalho nos escritórios, o que, por sua vez, está colocado no
contexto de cacofonia e despersonalizada massificação da cidade grande e de seu espaço
artificialmente construído. Essas imagens mecanizadas ressaltam como o trabalhador
num escritório é um joão-ninguém perdido entre mesas de trabalho, equipamentos,
edifícios, ruas e rios de pessoas e de veículos.
O efeito sufocante de tanta desumanização e despersonalização é uma enfermidade
espiritual generalizada: o indivíduo sente-se triste e insatisfeito e simplesmente infeliz.
Essa infelicidade é uma condição uniforme que, em formulações tais sobre o ambiente
de trabalho como esse filme tende a sugerir, é necessária a fim de manter o maquinário
todo (ou seja, a imagem controladora expressionista do filme de Fritz Lang) funcionando
sem parar, arrastando-se. Nesse sentido, a infelicidade que se abate sobre o escritório
do Dr. André com a partida de Raul e Saul não se dá em função de qualquer percepção
150
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
arrependida por parte de seus colegas pelo modo abjeto com que trataram os dois
homens ou por parte do Dr. André por tê-los demitido. Pelo contrário, é um retorno à
normalidade, com a remoção do elemento desestabilizador de sua felicidade (que, a bem
dizer, não é em nada evidente quando eles estão cumprindo suas tarefas no escritório).
Que tal normalidade tenha sido recuperada graças a terem exercido um heterossexismo
homofóbico é simplesmente a ironia dominante do filme.
No entanto, as resenhas do filme que se concentraram em descrevê-lo
principalmente como uma metáfora da anestesiante rotina do ambiente de trabalho
deixaram de ressaltar o modo como parte dessa rotina envolve a dinâmica da homofobia
e a maneira como ela funciona para eliminar uma sexualidade que deve ser condenada
precisamente porque torna seus participantes felizes e, ao fazer isso, enfatiza a infelicidade
dos outros. Com isso, não quero dizer que Aqueles dois esteja defendendo a maior
eficácia do amor homossexual para tornar as pessoas felizes; quero dizer simplesmente
que o filme mostra como qualquer felicidade gerada pela homossexualidade deve ser
destruída pela infelicidade – pelo menos a infelicidade como modelada nesse filme – da
sociedade heterossexista em geral: uma infelicidade que está apresentada no contraponto
da participação ridícula de Clara na cena de telenovela de uma conquista heterossexual.
Por outro lado, não estou afirmando que relações homossexuais não tenham suas próprias
cenas de telenovela ou suas próprias variações das cenas de telenovela heterossexuais;
só que essa dimensão do amor homossexual não é uma parte do relacionamento retratado
no filme135.
Nenhuma das resenhas incorporadas ao website acima mencionado foi capaz
de reconhecer a representação de homofobia no filme, o que talvez assinale o modo
como tal homofobia encontra-se tão naturalizada na nossa sociedade que fica difícil
para algumas pessoas surpreenderem-se com sua presença ou ficarem particularmente
preocupadas com suas inexoráveis artimanhas; essa falta de reconhecimento torna-se,
por sua vez, outro modo pelo qual a homofobia funciona. Ao mesmo tempo, alguns
135 Sobre o melodrama do amor homoerótico em alguns filmes argentinos recentes, cf. FOSTER, David
William. Contemporary Argentine Cinema. 1992. p. 135-149.
151
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
críticos mencionam o desfecho precipitado do filme. Isso não deixa de ser irônico, pois,
como meus comentários indicam, o que está verdadeiramente incompleto no filme é
a representação do real erotismo de um casal do mesmo sexo – ou pelo menos sua
representação de maneira que expresse a sexualidade genital que nossa sociedade requer
como marca de um “verdadeiro” sexo, mesmo sendo importante promover a validade
das variedades não genitais de sexualidade como igualmente gratificantes e igualmente
determinantes de uma identidade sexual específica como se acredita ser gratificante e
determinante a sexualidade genital.
Se o final do filme é precipitado, isso se deve à inexorabilidade das maquinações
da homofobia. Uma vez que Raul e Saul foram identificados como gays, e uma vez que
quem os persegue moralmente assegurou-se de que pode persuadir outros a acreditar
em sua interpretação da relação daqueles dois, basta um passo então para efetivar uma
denúncia cujo único efeito será causar a demissão de ambos. Está assim garantida a
violência da denúncia – que será agravada pela violência de uma demissão sumária e
incontestável. A menos que quem os persegue valorizasse sua interpretação homofóbica
como uma licença para atormentá-los sem trégua e com impunidade no dia a dia do
ambiente de trabalho, não há outra razão que justifique a homofobia (mesmo calcada
em boatos) a não ser seguir em frente, rumo à demissão, isto é, em direção à execução
de um veredito sem que os fatos sejam verificados. Essa execução toma a forma de
uma denúncia dos dois homens no recado anônimo que fica gravado na secretária
eletrônica do telefone do Dr. André. Cabe aqui ressaltar que essa secretária eletrônica
é o que há de mais moderno em termos de ferramenta tecnológica no empório do Dr.
André, com um mecanismo capaz de tornar a voz humana robótica, capaz de torná-
la irreconhecível, apresentando-se assim descorporizada e despersonalizada a voz ao
telefone. É significativo, então, vermos que o Dr. André insiste em afirmar que não tem
importância saber quem é o dono da voz que denuncia – apenas a mensagem interessa.
E aqui temos o discurso da homofobia como um deus ex machina.
Dessa maneira, o filme menospreza a precipitação não do ritmo da narrativa
fílmica, mas sim do discurso homofóbico: esse funciona com pontaria certeira e fatal,
152
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
e não há como nem por onde ir contra seus pronunciamentos. Em vários momentos do
filme, Saul entrega-se a flashbacks nos quais ele vê o corpo retorcido de uma vítima de
violência largada numa cama em um quarto destroçado. É difícil identificar se a cena
mostra o temor de Saul em terminar daquele jeito, uma vez que afirmam e reafirmam
(explicitamente ou por meio de insinuações) para a grande maioria dos queers que um
fim violento é o que os espera neste mundo – tanto quanto a danação eterna na vida
após a morte. Da mesma maneira, é difícil saber se essa é uma cena que ele realmente
testemunhou em algum momento de sua vida. Num final mais “realista” para Aqueles
dois, alguma forma de violência física poderia muito bem aparecer, mesmo que
significasse que os dois terminam na sarjeta – dado que, uma vez que você foi demitido
por ser queer, é possível que você dificilmente vá conseguir colocação no mercado
de trabalho de novo. Mas também poderia significar que um deles ou mesmo os dois
foram atacados pelos que praticam o espancamento de homens gays, trogloditas que se
arvoram a ser fiscais do heterossexismo. Outra interpretação possível seria que um deles
ou os dois acabariam cometendo suicídio por causa das consequências do tipo beco sem
saída que advêm do fato de terem sido rotulados com o adjetivo queer. Que nada disso
ocorra ao final do filme de Amon é verdadeiramente notável, dadas às realidades sociais
que permeiam o Brasil e outros países da América Latina (isso sem falar nos Estados
Unidos). E é por essa razão que é ainda mais notável que o filme termine com uma
proposta absolutamente inaceitável para o heterossexismo homofóbico: dois homens
queers apaixonados e felizes na companhia um do outro.
153
Re-visões culturais
da trupe brasileira Dzi
Croquettes
Abril de 1964: as Forças Armadas do Brasil depõem o governo e mandam para
o exílio o então Presidente João Goulart. Março de 1968: o Ato Institucional número 5
(AI-5) é aprovado, suspendendo todos os direitos civis para os brasileiros e impondo
ao país uma censura draconiana. Mil novecentos e setenta e dois: cria-se uma trupe
de dançarinos no Rio de Janeiro que terá profundo efeito no desenvolvimento de uma
cultura de resistência à Ditadura Militar. O primeiro show foi apresentado no Rio de
Janeiro em 1972 no Teatro da Praia; em 1973, a trupe se apresenta em São Paulo,
primeiramente na pequena boate Ton-Ton Macoute (apelido do ditador haitiano Papa
Doc Duvalier e seus homens famintos – uma ironia, claro, frente aos duros tempos da
ditadura e às festas que aconteciam dentro da boate). Com o enorme sucesso que teve,
o show transferiu-se para o grande Teatro 13 de Maio no bairro de Bixigas, um bairro
pobre e uma área de casas de espetáculos. Foi quando começaram a usar o nome Dzi
Croquettes. A última performance do grupo aconteceu em 1980 no Rio de Janeiro.
As origens do nome Dzi Croquettes são até hoje debatidas, mas a maioria dos
críticos concorda em dizer que o nome teve inspiração num grupo de São Francisco
(Califórnia, EUA), chamado The Cockettes (1969-1972), uma trupe psicodélica de
drag queens. Contudo, o que ninguém destaca é que também pode ser um comentário
irônico brasileiro em cima de duas palavras: a primeira delas, o artigo “the” da língua
inglesa (pronunciado “dzi”); e a segunda palavra, mais importante, o substantivo
masculino “croquete” (de carne moída), um lanche barato no Brasil [que tem formato
fálico], fazendo um trocadilho com o adjetivo feminino “coquete”, aportuguesado do
francês “coquette”, também adjetivo feminino. Assim é que as duas palavras estão
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
“personificando” palavras estrangeiras (uma do inglês e uma do francês) num país onde
ser estrangeiro [do Primeiro Mundo] é melhor e tem mais valor do que ser local.
Além disso, como gíria, a palavra “croquete” faz referência direta, ainda que sutil
e ambígua, ao falo. A cultura brasileira sempre criou e continua criando duplos sentidos
para palavras, principalmente de conotação sexual. [...] “Gostar de um croquete” significa
ser homossexual, porque você pode gostar de “carne fresca e redonda” – expressão
comum em guetos hétero e homo por causa da forma alongada do croquete [de carne]
–, de acordo com esse modo de expressar o desejo homossexual. Se você é homo, você
gosta de “pôr carne dentro”. “Coquete” também é palavra para designar uma prostituta
(cocote), termo esse que pode também referir uma mulher francesa, pois o senso
comum parte da suposição de que ela tem sex appeal. Esse jogo de palavras de fato é
interminável, pois uma cocote também é uma galinha – outro termo brasileiro, esse mais
recente, para prostituta [mulher “fácil”]. Assim é que “The Croquettes” carrega também
um significado ambíguo, pois quer dizer ao mesmo tempo “ser pobre e chique”, com a
interferência da letra “r” e do dígrafo “tt”, aparecendo ali para fingir ser coisa de alta
classe. Se você mistura isso com o mote do grupo, “nem homem, nem mulher: gente”,
isso pode também ser lido como “gente: pode ser os dois (homem e mulher)”.
155
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
que o Dzi Croquettes teve na cultura brasileira e que repercute até hoje. Apesar da
enorme importância da trupe como parte de história da resistência cultural no Brasil
durante a ditadura que durou de 1964 a 1985 e principalmente nos anos duros do início
da década de 1970, tanto quanto eu saiba, não há cópias em arquivo de performances
completas no Brasil ou na Europa137.
Particularmente importantes são 1) o modo como o filme de Issa contribui para
a atual reconstrução da cultura brasileira durante o período da Ditadura Militar [...] e
2) a elaboração de um registro cultural fundamentado tanto em continuidades entre
períodos institucionais quanto em relevantes rupturas. Além disso, o Dzi Croquettes é
parte não só de uma larga tradição de cultura transgressiva no Brasil, mas também mais
especificamente de dimensões queer que são parte integrante do ponto onde se encontra
o país em termos socioculturais nos contextos urbanos. A trupe formada por Lennie
Dale (um americano ex-dançarino da Broadway), Wagner Ribeiro de Souza, Claudio
Gaya, Cláudio Tovar, Ciro Barcelos, Reginaldo de Poli, Bayard Tonelli, Rogério Poli,
Paul Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlinhos Machado, Eloy Slater e Robert Rodrigues
começou a trabalhar na década de 1970, alcançando seu apogeu no fim da mesma
década em Paris (Liza Minelli foi apenas uma dentre muitos artistas internacionais que
promoveram o trabalho da trupe). O grupo se separou nos anos 1980 depois de uma
desastrosa volta ao Brasil; diversos atos de violência e também a AIDS estiveram entre
as causas dessa separação.
O nome da trupe também se refere ao fato de que os 13 participantes projetavam,
todos eles, uma persona masculina viril, do tipo macho. Aquele não era um clã
engraçadinho de transvestis cujos programas fossem concebidos para uma plateia
de turistas interessada em uma peça teatral leve e apimentada sobre gêneros. Como
137 Informações sobre a história do grupo podem ser encontradas no website da Enciclopédia Itaú Cul-
tural: Teatro. Rosemary Lobert (2010) fornece uma análise impecável, histórica e interpretativa, do Dzi
Croquettes. É interessante notar que o trabalho de Lobert começou como dissertação de mestrado em
Antropologia Social, defendida em 1979 na Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. Isso explica
como Lobert teve acesso direto ao grupo durante a primeira versão de seu trabalho.
N. T.: A ambiguidade da frase “não há cópias em arquivo de performances completas no Brasil ou na
Europa” deve-se a ser igualmente ambígua a frase no original em inglês: “no archival copies exist of
complete performances in Brazil or Europe”.
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
um empresário da noite que trabalhou com eles ressalta, nenhum dos membros do
grupo tinha qualquer interesse em se tornar uma mulher – ou seja, transgênero ou
transexualidade não estava na base das rotinas da trupe. Pelo contrário, eles estavam
basicamente interessados em questionar as convenções estabelecidas de gênero e de
identidade e em desconstruir as rígidas convenções de gênero que eram parte integrante
de um Brasil supostamente decente e cuja dominância era particularmente reforçada
pelo masculinismo do regime militar com sua ênfase em ideologias patriarcais e de
hipermasculinidade.
A atitude “foda-se o gênero” do Dzi Croquettes (e de fato não há outra expressão
para o que eles faziam) ridicularizava as convenções de gênero de tal modo que o
aspecto superficial aparentemente grotesco de suas performances enfatizava a natureza
ainda mais grotesca da obrigatoriedade das categorias de gênero. Isso está muito bem
resumido na asserção muitas vezes repetida no documentário – tanto no material filmado
das performances quando nas entrevistas e narrações em voice over – de que eles não
eram “nem homem, nem mulher, mas [pelo contrário] apenas gente”. O uso do pronome
“gente” em português aqui é crucial, uma vez que ele significa “pessoas” e também
é um pronome de “primeira pessoa do plural” inclusivo, abrangendo em seu escopo
pragmático tanto as pessoas que falam quanto as pessoas com quem se fala, ou seja, o
espectador da performance.
Essa abolição do limite entre “nós, os artistas queer” e “vocês, a plateia
privilegiada” (alguns dos quais podem ter ido assistir a, digamos, macacos do zoológico
se apresentando no palco para eles), é um princípio discursivo fundamental dos
roteiros dos espetáculos do Dzi Croquettes. E, claro, também é um princípio discursivo
fundamental do documentário de Issa e Álvarez. Não se pode respeitar o universo
do documentário sem reconhecer que a plateia dos espetáculos no filme faz parte da
performance. Os riscos que correram os dançarinos do Dzi Croquettes com a censura
brasileira (e portuguesa) de meados da década de 1970, os riscos que correram com seus
próprios corpos na criação das personas da performance (que incluíram encarceramento,
deterioração física e morte prematura) e, fundamentalmente, os riscos que correram com
157
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
contradiscurso que forneceu elementos discursivos que viriam a se tornar parte integrante
do movimento gay e do desenvolvimento da cultura queer no Brasil. Quase 40 anos
depois, as borboletas de uma de suas famosas rotinas no show do Dzi Croquettes podem
servir de ícone de uma resposta performática a um dos períodos mais horrendos da vida
social e cultural no Brasil. Como um de seus fundadores, Wagner Ribeiro, repetia em
suas declarações: “nada se faz sem amor” – e amor em múltiplas conjugações há em
quantidade no fenômeno Dzi Croquettes.
138 Examino o trabalho fotográfico de Schwartz no meu livro São Paulo: Perspectives on the City and
Cultural Production (2011, p. 98-111), o que inclui uma análise detalhada de algumas de suas imagens
do Dzi Croquettes.
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
notável foi ela ter frequentado os bares, cabarés e locais de performances de travestis
na vida noturna sem limites e sempre metamórfica de São Paulo antes mesmo de se
profissionalizar como fotógrafa – o que a fez trabalhar, principalmente com retratos,
para as mais importantes editoras de livros e de revistas do país. Num período em que
aquele universo de bares, cabarés e boates estava sob constante e intenso escrutínio do
regime militar instalado em 1964, especialmente lugares que hoje seriam chamados de
dimensões queer de contestação, Schwartz lá estava, presente, fazendo amizade com
os artistas e ganhando sua confiança, de modo a conseguir deles a concordância para
fotografá-los não só no esplendor de suas performances, mas também nas diferentes
fases do montar e des-montar suas personas.
Fotógrafos muitas vezes trabalham em seus autorretratos – imagens aparentemente
não posadas de momentos em que se mostram envolvidos em seus trabalhos e que possam
de algum modo servir para legitimar os aspectos muitas vezes dissonantes de sua arte.
O acervo de Schwartz não é exceção, e logo no começo, à página 9, temos uma imagem
de Schwartz, câmera na mão, boca aberta em máxima concentração, fotografando uma
imagem que está fora do enquadramento da autoimagem. O cenário atrás dela lembra o
ambiente de um banquete, mais que um cabaré, mas o efeito é o mesmo: a matrona judia
e algo corpulenta tendo acesso, com sua câmera, a alguns dos espaços mais íntimos da
vida de São Paulo.
Schwartz talvez seja mais conhecida e reconhecida por seu trabalho com a famosa
trupe de dançarinos travestis/cross-dressing/foda-se-o-gênero, Dzi Croquettes. Eles
não foram só e simplesmente artistas transvestis. Pelo contrário, eles se esforçaram
para organizar números complexos que envolvessem a problematização do gênero
e o comentário sociopolítico (dois engajamentos que, sem sombra de dúvida, se
sobrepunham). Memorável no trabalho da trupe, além da complexidade de suas
performances, é a maneira com que desconstruíram ícones culturais, incluindo-se aí o
fato de as performances serem de travestis, numa época em que tanto a direita quanto
a esquerda no Brasil e na América Latina encontravam-se firmemente ancoradas na
heteronormatividade.
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Na América Latina, a fotografia artística ainda não é estudada como deveria ser –
e muito menos quando ela envolve algumas das coordenadas presentes nessa publicação
póstuma do trabalho de Schwartz – produção cultural de mulheres, de minorias étnicas
e as vidas queer nas margens de uma sociedade decente. É digno de nota salientar que
ainda é escassa a fotografia queer na América Latina (Graciela Iturbide no México,
Marcos Zimmerman na Argentina, Pedro Meyer também no México), e há muito a
se dizer sobre esse trabalho realizado na opressiva década de 1970 no Brasil por uma
dona de casa judia que se recusou a limitar o uso de seu recém-encontrado interesse por
fotografia a eventos de família. Uma análise acadêmica adequada do Dzi Croquettes
foi realizada por Rosemary Lobert141, que finalmente colocou a trupe em seu devido
contexto histórico e social. Os trabalhos de Issa e Álvarez142, desde uma perspectiva
do cinema de documentários, e de Schwartz143, desde uma perspectiva da fotografia
artística, contribuem com títulos igualmente importantes para o registro bibliográfico
dessa importante trupe de dançarinos.
141 LOBERT, Rosemary. A palavra mágica: a vida cotidiana do Dzi Croquettes. 2010.
142 Cf. Dzi Croquettes. Dir. Tatiana Issa e Raphael Álvarez. Brasil, 2005. Dur.: 110 min.
143 SCHWARTZ, Madalena. Crisálidas. 2012.
162
Barrela, dePlínio Marcos:
posicionamentos e poder
social entre pessoas do
mesmo sexo
Não de minha filha. Ciúmes de você. Tenho! Desde o teu
namoro, que eu não digo o teu nome. Jurei a mim mesmo
que só diria teu nome a teu cadáver. Quero que você morra
sabendo. O meu ódio é amor.
(Nelson Rodrigues, O beijo no asfalto)
Foram necessários mais de 25 anos para que a peça teatral Barrela, de Plínio
Marcos, recebesse sua adaptação cinematográfica144. Embora escrita em 1958 e encenada
pela primeira vez em 1959, em Santos, a intervenção do governo militar impediu novas
encenações da peça, bem como sua adaptação para o cinema. Com isso, o texto não foi
publicado antes de 1976. Assim como a maioria das peças teatrais de Marcos145, Barrela
retrata a correlação entre violência social e interpessoal. A violência é uma propriedade
estrutural do sistema social dominante. Com efeito, tal sistema depende da violência
enquanto instrumento complexo para assegurar suas funções: a violência é usada na
formação do sujeito social; é usada para corrigir e afinar o comportamento do sujeito
144 Cf. CAMARGO, Robson Corrêa de. Un diálogo constante y fructífero. Teatro al Sur: Revista
Latinoamericana. 1995. p. 20-24. Ver também HOIN. Review of Barrela. Variety. 1990. p. 34.
145 SCHOENBACH, Peter. Plínio Marcos: Reporter of Bad Times. In: LYDAY, Leon F.; WOODYARD,
Georg W. (Eds.). Dramatists in Revolt: the New Latin American Theatre. 1976.
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
146 Lamentavelmente, David George, em The Modern Brazilian Stage (1992), mal menciona Marcos.
Ver comentários mais detalhados em Severino João Albuquerque, Violent Acts (1991), onde, infelizmente,
Barrela não é citado.
164
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
na sua expressão mais patriarcal possa desejar que assim acreditemos), apresenta uma
diferenciação binária, pois toma por base o modelo de penetração masculina em uma
mulher.
Essa penetração utiliza o pênis ou outro elemento corporal (dedos das mãos ou dos
pés) ou mesmo elementos extracorporais (consolo ou praticamente qualquer coisa que
se configure enquanto pênis de acordo com a concepção freudiana), sendo o feminino
qualquer corpo no qual se insere o pênis, necessariamente com o máximo de brutalidade
possível. O local de penetração é a vagina ou locais substitutos (qualquer outro orifício
existente ou em alguns casos criados para a ocasião – esse é um feminismo pouco
comum147). De modo significativo, esse imaginário pode referir-se a um corpo masculino
feminizado, com quaisquer de seus orifícios, existentes ou criados para tal fim, sendo
considerados substitutos da vagina. O elemento favorito em substituição da vagina,
tanto no corpo masculino quanto no feminino, é o anus, seja devido à forte dor causada
pela penetração abrupta, seja por causa do papel do ânus como o local tradicionalmente
associado ao prazer homoerótico, no caso do corpo masculino (não porque o ânus seria
um substituto da vagina, mas por causa do papel da próstata no prazer sexual). Os
homens assim estuprados seriam tratados como “mulheres”. Poder-se-ia ainda especular
que o estupro anal de mulheres serve para exprimi-las como homens rebaixados: em
uma sociedade sexista, o homem superestimado perde o valor quando associado a um
estatuto feminino, dado que as mulheres são sempre subestimadas.
As peças de Marcos não operam na lógica desde tipo de explicação didática da
estrutura social da violência, da dinâmica da brutalização sexual ou da semiose do
estupro. Porém, elas certamente dependem do nosso conhecimento intuitivo sobre a
forma exata como as coisas funcionam. As peças podem servir para converter nossas
intuições em conhecimento explícito ou para preencher possíveis lacunas: primeiramente,
em nível de compreensão intuitiva ou, em segundo lugar, em nível do que pensamos
saber explicitamente, operando sempre fora da concepção teórica de que a ideologia
tem contribuído para ocultar ou distorcer esse saber para nós e que a produção cultural
165
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
148 Sobre a violência e o sexo no contexto da opressão militar, ver GRAZIANO, Frank. Divine Violence:
Spectacle, Psychosexuality, and Radical Christianity in the Argentina “Dirty War”. 1992. Sobre fantasias
sexuais masculinas e violência autoritária, ver THEWELEIT, Klaus. Male Fantasies. 1987.
149 Ver comentários de Marcos sobre a censura de suas peças em SZOKA, Elzbieta. The Spirit of
Revolution in Contemporary Brazilian Theatre: An Interview with Plínio Marcos. TDR: The Drama
Review. 1990. p. 70-83. Na página 76, particularmente, a autora chama a atenção para o fato de a peça de
Marcos ter sido proibida durante o governo democrático de Juscelino Kubitschek.
166
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
teatro era suscetível à denúncia e à censura150. Portanto, somente será possível alcançar
seu significado pleno entre espectadores que tenham adquirido ou desejem adquirir um
entendimento complexo das teorias da violência e do estupro nas quais o teatro de
Marcos se baseia, seja pela fundamentação filosófico-social marxista, feminista radical
ou, mais recentemente, da teoria queer. Tais perspectivas apresentam como componente
essencial uma interpretação da construção da sexualidade institucionalizada e do uso
do estupro entre pessoas do mesmo sexo como instrumento para a opressão do desejo
homoerótico.
O foco de Marcos no estupro entre pessoas do sexo masculino é integrado ao
seu entendimento da violência enquanto elemento crucial da hegemonia social. Seu
teatro não é sexista por representar um mundo quase exclusivamente masculino; nem
por retratar o machismo dominante daquele mundo. Na verdade, a questão é que nossa
hegemonia social é apresentada pela supremacia dos sujeitos sociais chamados de
“homens”. Assim, faz-se necessária uma análise desses sujeitos e da ideologia específica
dessa supremacia, o machismo. Além disso, visto que a violência apresenta-se enquanto
a pedagogia, a métrica, a aplicação do machismo, a execução dessa violência deve ser
cartografada detalhadamente, em todas as suas múltiplas formas de funcionamento. Por
fim, à medida que um dos instrumentos prediletos dessa violência é, entre os homens,
o estupro masculino – pode não haver instrumentos de tortura tão “profissionais” e
acessíveis, mas sempre há um corpo disposto a estuprar o corpo que se faz objeto de
atenção –, o teatro de Marcos precisa dar atenção privilegiada à explicação do cenário
de estupro. Conforme veremos no caso de Barrela, garantir que um indivíduo seja
estuprado é o objetivo específico das ações policiais.
O filme de Cury divide-se em quatro atos. Os primeiros três ocorrem em uma cela
com indivíduos sentenciados por crimes violentos (na peça, trata-se apenas de uma cela
de segurança). O quarto ato situa-se no corredor da cela em direção à saída da cadeia.
Há um terceiro cenário, intervalado com a cela da cadeia: o interior de um carro policial,
150 Sobre a censura no teatro brasileiro, ver MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de
resistência. 1985. Plínio Marcos não é analisado nesse livro.
167
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
168
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
169
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
O assédio sofrido por Portuga é interrompido por Bereco, o qual possui a autoridade
equivalente a um capitão da cela, pessoa que conquistou certa dose de lealdade dos
outros presos e que desfruta de privilégios entre eles. Bereco tem seu próprio canto
especial, fechado com cortinas e decorado com pôsteres de futebol e mulheres nuas.
Ele desarma a situação e fica óbvio que está acostumado a ter esse tipo de atitude.
Pessoas como Bereco (um tipo administrador, mas que só é consensualmente aceito
pela sua capacidade de imposição sobre os outros) são usadas em certa medida pelas
autoridades carcerárias quando essas não conseguem manter o controle e a vigilância
sobre os presidiários, particularmente em instituições com organização primária. Tipos
como Bereco recebem tratamento especial em troca de contenção da violência, porém
não para suprimi-la: Bereco entende perfeitamente que o brotar contínuo da violência
deve ser respeitado como um ingrediente necessário para a situação social na qual todos
se encontram e que precisa ser tolerada, permitida, e mesmo incentivada de vez em
quando. Por outro lado, ele também sabe que deve ser controlada e tem todo um arsenal
retórico à disposição para tanto.
O ataque a Portuga é contido, mas a calmaria dura pouco e o filme avança ao
próximo estágio da rodada de violência. Conduzida por Portuga – a vítima torna-se o
próximo opressor na dura lógica da violência –, os colegas de cela voltam-se agora para
Tirica. Tirica é o mais atraente entre os seis, do ponto de vista convencional, e ficamos
sabendo que, para sobreviver nas ruas, ele se tornara um michê, aproveitando-se de
sua relativa beleza física. Apesar da interpretação de certo modo romântica de Néstor
Perlongher a respeito dos michês, a maioria dos homens que se prostitui nas ruas não é gay.
Mesmo que alguns de seus clientes sejam mulheres prósperas, geralmente são militares,
turistas ou pessoas locais que possam pagar (Tirica os chama de mandarins). Assim
como as mulheres prostitutas, os michês assumem qualquer papel que seja solicitado
pelo cliente. Portuga, é claro, não irá diferenciar de maneira social e antropológica entre
identidades sexuais e os papéis desempenhados pelos prostitutos.
O jogo de assédio exercido pelos colegas de cela requer o isolamento de uma fraqueza
passível de exploração. No entanto, ser um prostituto não é uma boa fraqueza, mesmo
170
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
que seja verdade que os homens que se prostituem possuem menor respeitabilidade do
que as mulheres nessa profissão. Questões de masculinidade parecem estar envolvidas
na percepção social da prostituição masculina e – também em parte porque os homens
que se prostituem comumente são incentivados a não adotar uma postura agressiva de
macho – há um índice criminal muito maior (roubo, assalto e até assassinato) de michês
contra seus clientes do que nos casos de prostituição heterossexual. Normalmente, a
mulher prostituta é que acaba sendo vítima de seus clientes homens, os quais a usam
para desempenhar um papel agressivo que a sociedade demanda deles, mas que não
conseguem levar adiante em outras ocasiões.
De qualquer modo, assediar Tirica por ser prostituto não parece o suficiente,
então o Portuga triunfante realiza a operação retórica de converter a ideia de michê em
veado, usando-se da prostituição de Tirica para acusá-lo de homossexual. Essa é uma
jogada de efeito: ao passo que todos se voltam para Tirica, Louco novamente entona
o imperativo para pegá-lo, “Enraba”. Uma vez mais, Bereco intervém, não para salvar
Tirica, mas para reestabelecer a ordem antes que as coisas saiam do controle. Para o
público espectador, há certa nuance aqui. O Portuga possui uma aparência repulsiva e o
espectador provavelmente não se identifica com ele, nem contempla seu corpo como um
fetiche, um local de provocação do desejo sexual. Tirica, pelo contrário, configura-se
muito mais enquanto um símbolo sexual aceitável, pois é jovem, fisicamente atlético e
possui um rosto relativamente atraente. Os filmes costumam usar-se de atores e atrizes
que atendem às definições convencionais de beleza e de atração erótica para provocar
a identificação do público. Essa identificação geralmente é queer, no sentido de que
a distinção pode ser tênue entre uma identificação com a estrela, independente da
identidade sexual/de gênero do indivíduo, havendo o desejo de ser um agente sexual
como a estrela, e a vivência do próprio desejo erótico pela estrela.
Nesse sentido, as estrelas são essencialmente andrógenas, motivo pelo qual
Hollywood historicamente tem invocado dois tipos de pessoas que são, fora dos filmes,
inaceitáveis para o “mundo real” da heterossexualidade patriarcal: a mulher forte (ex.:
171
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Bette Davis) e o homem bonito (ex.: Tyrone Power)151. Com efeito, seria difícil decidir
qual é o pecado maior, ser uma mulher forte (= masculina) ou ser um homem com um rosto
bonito (= feminino). Mas Tirica é um valentão das ruas; diante de seus atormentadores,
ele consegue adotar as atitudes necessárias para se defender, inclusive contorce o rosto,
fazendo uma cara feia de malvado capaz de apagar a metonímia evidente que o levara a
ser o estranho da vez. Se a violência por si só associada ao assédio de Portuga demonstra
mais razoavelmente algum traço de desejo erótico no caso de Tirica, convencionalmente
mais atraente, Bereco assegura que a agressão contra ele pare antes de qualquer contato
físico maior. Tirica afasta-se e começa a forjar uma faca com uma colher com a qual
mais tarde irá apunhalar Portuga até a morte como vingança por tê-lo apontado como
homossexual. Entretanto, Garoto chega.
No que se refere à transição gradual da atração masculina de Portuga para Tirica e
então para Garoto, cabe ressaltar que esse último é eminentemente desejável. Outra vez,
estamos tratando de determinadas convenções que podem ser verificadas por referência
a estereótipos da televisão, propaganda e filmes comerciais. Esses estereótipos no Brasil
não são significativamente diferentes daqueles dos Estados Unidos por razões óbvias de
dependência comercial. Ou seja, Garoto é jovem e limpo; suas roupas são, senão caras,
ao menos consideravelmente melhores do que as roupas baratas e mal-cuidadas dos
presos com os quais se encontra, para não falar dos quase trapos usados por Portuga;
e seu rosto de expressão franca em geral é o de quem está acostumado a algum tipo de
consideração dos outros na vida. Além de encaixar-se no estereótipo da prosperidade
de classe média, Garoto é sexualmente atraente enquanto um homem jovem: seu rosto
é limpo, bem barbeado, tem uma pele bonita e um corte de cabelo profissional, olhos
claros e uma aparência que foge ligeiramente do tipo andrógeno. O mais importante
é que, por seu corpo não ser endurecido pelas ruas como o de Tirica, ele acaba não
151 Cf. DOTY, Alexander. Making Things Perfectly Queer: Interpreting Mass Culture. 1993. Cf. ainda
DYER, Alexander. There’s Something Queer Here. In: ______; CREEKMUR, Corey K. (Eds.). Out
in Culture: Gay, Lesbian, and Queer Essays on Popular Culture. 1995. p. 71-90. Ver também BELL-
METEREAU, Rebecca. Hollywood and Androgyny. 1993.
172
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
152 No filme Toda nudez será castigada (1973), de Arnaldo Jabor, baseado em uma peça teatral de
Nelson Rodrigues, um filhinho de papai também é preso e estuprado coletivamente. Porém, nas cenas
finais, como a esposa do pai está morrendo por ter cortado os pulsos, o jovem é visto fugindo com um
dos homens que o estuprou na cadeia.
173
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
174
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Tirica esfaqueia Portuga até a morte, mas isso se coloca quase como um parêntese em
meio ao evento principal que está sendo retratado, o estupro de Garoto.
A outra limitação de Cury na sequência após o estupro é mais séria e confirma que
o diretor escolhe não retratar de modo significativo a forma como Garoto lida com o
que acontecera consigo. Essa segunda limitação apresenta-se através de Garoto sentado,
encostado nas barras da cela, uma posição não muito provável para alguém que acaba
de ser estuprado por seis homens. Presume-se que Cury tenha tido certa cautela por
“razões estéticas”, o que se confirma pelo fato de que as calças de cores claras do jovem
não se encontram manchadas pela violência à qual seu corpo fora submetido, conforme
normalmente teria ocorrido. Ou quem sabe Cury quisesse reforçar a identificação do
público por meio da representação de Garoto enquanto não tão maltratado quanto na
realidade teria sido: desse modo, os espetadores identificam-se com sua dor psicológica
mais do que se Garoto fosse mostrado com as manchas ocasionadas pelo sangramento
retal e contorcendo-se de dor. O estupro como um ato de violência corretiva e instrutiva
tem a intenção de dilacerar o corpo, sendo dificilmente sedutora a visão de alguém que
acaba de ser vítima de estupro coletivo. Da forma como são mostradas, a aparência de
Garoto e a sua exposição da humilhação não se apresentam maiores do que se fosse um
menino que acabara de ser espancado.
O cuidado de Cury confirma-se também quando, não muito tempo depois, os
guardas – aparentemente certos de que Garoto havia obtido a atenção que desejavam –
aparecem, bruscamente arrastam Tirica para outra cela a fim de que seja responsabilizado
pelo assassinato de Portuga e dizem a Garoto que já pode ir embora. Quando o filme
acaba e começam a rodar os créditos, vê-se Garoto primeiro caminhando e em seguida
correndo pelo corredor em direção à saída. Esse final é bastante significativo – Garoto
está escapando do pesadelo de seu breve encarceramento e está provavelmente mais
convicto de que não vale a pena ser objeto de atenção da polícia –, mas não representa
muito bem as possibilidades ambulatoriais de alguém que acaba de ser vítima de estupro
coletivo. O retrato forte e preciso da realidade social que é o pilar principal do teatro
de Plínio Marcos e sua tradução cuidadosa para a linguagem cinematográfica na maior
175
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
parte de Barrela acaba prejudicada por um final banal que busca fazer de Garoto objeto
de fácil identificação por parte dos espectadores, basicamente pertencentes à classe
média. Ao reter a imagem de Garoto como um garoto “legal” de classe média que cai
nas mãos da polícia corrupta e nesse buraco infernal que é uma cela de cadeia, ocupada
por presidiários violentos, assassinos, Barrela parece perder sua força à medida que
o retrato de uma dinâmica social básica (os usos da violência do estupro para impor
determinado comportamento social e sexual) desvia-se em direção a uma lógica de Nós/
Eles: a classe média (o espectador, Garoto) nas mãos de uma sociedade violenta (os
presidiários criminosos, a polícia corrupta).
Portanto, é importante enfatizar um detalhe do enredo que nos ajuda a ter em
mente que Garoto não é apenas uma vítima circunstancial, não é só alguém que teve o
azar de cair nas mãos da polícia, mas que, enquanto sujeito social que acaba chamando
a atenção da polícia, ele está sendo submetido a uma lição calculadamente aplicada.
Não há dúvida de que Garoto é mais um registro na agenda policial de controle social
dirigida aos jovens de certa classe social privilegiada que se torna desordeira em bares
ou similares. Ainda que não possam ser responsabilizados enquanto criminosos, é
preciso dar-lhes uma lição que os deixará menos arrogantes e certos de si mesmos, um
pouco mais cuidadosos no exercício de um poder social simbólico que exceda qualquer
pode real à sua disposição: eles são, afinal de contas, apenas “filhinhos de papai” e não
completamente machos ainda. Prendê-los por algumas horas junto com criminosos de
verdade lhes causará medo o suficiente para que tenham um pouco mais de respeito pela
autoridade social em forma de polícia. É claro, se no processo eles forem estuprados,
bem, essas coisas acontecem, especialmente quando sua subjetividade social é deficiente
para o mundo real no seu sentido mais transparente.
O detalhe do enredo que deve ser observado para que o espectador tenha um
entendimento efetivo de como planejamento e má sorte operam aqui no caso do estupro
de Garoto é o fato de que Bereco, na terceira ocasião do jogo de assédio, não intervém,
sendo na verdade um dos que incita o estupro. Com efeito, a caracterização que Bereco
faz de Garoto enquanto uma isca é a primeira a ser articulada. Bereco não pode intervir
176
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
porque não se trata mais de uma questão de manter os outros presos em ordem, mas
de conduzi-los no cumprimento de seu importante papel no funcionamento da cadeia,
que é a execução do estupro como um ato corretivo. Desse modo, Bereco une-se aos
outros para o desempenho de tal função. O título do filme já deixa claro que tal estupro
é o principal papel desses indivíduos. A palavra barrela pode ter outras conotações
(ironicamente, uma delas é de “restaurar a reputação de uma pessoa”), mas na gíria da
cadeia significa violência sexual. Há um instante no início do filme justamente para
assegurar que o espectador esteja completamente ciente do que está prestes a ver: não
apenas violência, mas violência sexual institucionalizada.
Barrela, de Cury, exceto pelas dificuldades apresentadas pelos detalhes no
tratamento do corpo de Garoto depois do estupro, é uma excelente adaptação da
peça teatral de Marcos e, no processo, um ótimo registro no inventário da produção
cinematográfica brasileira durante o período que segue a Ditadura Militar de 1964 a
1985, em particular no que se refere à necessidade de fornecer uma devida interpretação
da violência estrutural com base teórica.
177
Vestido de noiva, de
Nelson Rodrigues, e a
fragmentação cênica
do casamento
Começamos com uma boa epígrafe. Diz Alaíde, a protagonista de Vestido de noiva:
Você está vendo, Clessi? Outra vez. Penso que estou contando
o seu caso, contando o que li nos jornais daquele tempo sobre
o crime, e quando acaba, misturo tudo! Misturo Traviata, …E o
vento levou…, com o seu assassínio! Incrível. (pausa) Não é?153
153 RODRIGUES, Nelson. Vestido de noiva: tragédia em três atos 1943: peça psicológica. 2004. p. 67.
154 David George (1992) discute detalhadamente o impacto da obra no teatro brasileiro e sintetiza as
pesquisas feitas sobre ela. Ver também a exposição de David George (2010) sobre Rodrigues na história
do teatro brasileiro, Nelson Rodrigues and the Invention Of Brazilian Drama: “[é] frequentemente men-
cionado que Vestido de noiva é a primeira peça moderna e que ela revolucionou o teatro nacional” (2010,
p. 35). Nesse livro, George fala também da importância da direção de Ziembinsky (p. 39-41). O estudo
de Ronaldo Lima Lins (1979) sobre o teatro de Rodrigues apresenta um bom panorama de sua obra.
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
155 Costuma-se destacar que Vestido de noiva é inovadora quanto à representação dos estados psicológi-
cos – o inconsciente – das personagens. Como diz seu subtítulo, trata-se de “uma peça psicológica”.
Lourdes Manrique (2001) inclui Vestido como paradigmática nesse sentido em sua revisão de um teatro
latino-americano que trata o inconsciente (p. 67-77). Ver o estudo de CLARK (1991) para uma análise
particularmente detalhada da estrutura inovadora da obra.
156 RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é… 2006.
157 Ver a recopilação das crônicas de Rodrigues com esse título; há outra recopilação intitulada Não
tenho a culpa que a vida seja como ela é, Rio de Janeiro, Agir, 2009.
158 ZECHLINSKI (2007) estuda as versões desconstrutivistas do casamento no teatro de Rodrigues.
Sobre o tema da mulher burguesa no Brasil, ver D’INCAO (1997).
179
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
como formar família deve ser o próximo compromisso. Não fazê-lo implica ficar à
margem da decência e tornar-se suscetível às mais desenfreadas fantasias com respeito
à vida, ora vã, ora sinistra, a qual está condenado a viver o então fracassado cidadão. De
fato, para tais indivíduos, os próprios frutos da cidadania entram na desamparada zona
obscura do menosprezo. Ser castigado com o estigma associado à homossexualidade é
só o começo de tal menosprezo, e o indivíduo não pode fazer mais do que considerar
que um dos maiores perigos para a legitimação do homoerotismo é conformar-se com a
ideologia do casamento obrigatório.
Para Rodrigues, o casamento aglutina conceitos descaradamente falsos e
igualmente cínicos, como as promessas de amor, a fidelidade e a nobreza moral da
dinâmica das relações que narrativiza a família. Questionar tais princípios não nos parece
algo tão inovador nos dias atuais, quando a família já não goza do mesmo status social
de meio século atrás. Entretanto, em plena época da ditadura de Getúlio Vargas, foi algo
extremamente importante, ainda mais quando percebemos que Rodrigues questiona
sistematicamente esses princípios em seus textos dramáticos e em suas crônicas em prosa
que eram dirigidas, em formato jornalístico, ao grande público brasileiro. Rodrigues não
deixa pedra sobre pedra ao radiografar de maneira implacável o cinismo moral que regia
a sociedade brasileira, particularmente nos termos da instituição nuclear da família e do
contrato de casamento sob o qual ela descansava.
No caso de Vestido de noiva, Rodrigues parte do potente ícone do vestido branco
da mulher que se casa, inapelável sinédoque e metonímia da instituição incrustada tão
inextricavelmente em todas as estruturas da sociedade nacional. O {VESTIDO DE
NOIVA}, semema linguístico e culturema social, é sinédoque no sentido de que o
vestido feminino de casamento evoca não somente toda a materialidade do ritual do
matrimônio, mas também todas as camadas ideológicas sobrepostas a ele. Como é de
amplo conhecimento cultural, diz-se que a cor branca do vestido evoca a castidade com
a qual a noiva chega ao altar, ainda que se trate de uma sociedade onde ninguém se
atreva a casar-se com alguém com quem não tenha tido primeiro o devido treinamento
sexual. Indubitavelmente, dados o teor da obra de Rodrigues e o profundo cinismo com
180
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
181
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
Clessi que fantasiou com matar seu marido, Pedro, e que sua irmã Lúcia a acusa de tê-
lo conquistado em uma luta de sedução entre as duas mulheres. Lúcia acusa a irmã de
casar-se com Pedro sem amá-lo, apenas para vencê-la nesse jogo. Em consequência,
Lúcia amaldiçoa a irmã, afirmando que lhe tirará o marido, o que acontece quando
Alaíde é fatalmente atropelada e a obra é concluída com o casamento entre Lúcia e
Pedro. Rodrigues, em sua visão cínica da vida social brasileira, entende muito bem que
no jogo da vida não há vítimas nem vitimários, mas sim um jogo de poder, um processo
de signos em rotação: uns ganham, outros perdem e a vida segue sempre “como ela é”.
Costuma-se comentar que uma das características mais inovadoras de Vestido de
noiva é a divisão do espaço cênico em três planos: (Cenário – dividido em três planos:
primeiro plano: alucinação; segundo plano: memória; terceiro plano: realidade.
[…])161. O plano da alucinação corresponde ao encontro fantasiado com Madame Clessi,
em um passado compartilhado pelas duas mulheres. O plano da memória corresponde à
história específica de sua vida e de seu casamento com Pedro, incluindo os conflitos com
sua irmã Lúcia. O terceiro plano refere-se a sua agonia no hospital depois do acidente
automobilístico: no leito de sua morte, Alaíde entretece as cenas de sua memória com
as alucinações que, entendemos, constituem de fato uma ficção interpretativa elaborada
por ela ao confrontar-se com a natureza de seu próprio casamento, suas indignidades,
suas vinganças e seus instintos assassinos. Em uma discussão entre o casal, no final da
obra, Pedro enfrenta sua mulher de forma impositiva quando se dá conta de que Alaíde
busca abrigo na ficção interpretativa de Madame Clessi para entender suas relações com
o marido:
relações!162
Trata-se de um marido que começa a perceber que sua mulher tem mais interesse
em outra mulher do que nele próprio? Possivelmente. Mas Rodrigues, finalmente,
não está interessado em aprofundar-se nas possíveis relações afetivas/eróticas entre
mulheres, mas sim no desafio à autoridade de Pedro, que constitui o desejo de sua
mulher de relacionar-se de maneira imaginativa com uma espécie de mulher morta há
quase quatro décadas. É assim que a disposição cênica de Vestido de noiva representa
materialmente a fragmentação da consciência de Alaíde quanto a sua percepção da
complexidade do casamento. Não se trata simplesmente de uma narrativa não linear
de experiências acumuladas, as boas junto das ruins – ou, nesse caso, as ruins com
as piores –, mas sim de dar forma teatral à maneira com que Alaíde mistura tudo nas
múltiplas obsessões que sua experiência marital lhe impõe:
Seria possível defender que tudo na vida é uma “misturada” e que três planos
cênicos muito pouco fazem para propiciar uma justa representação do que se passa na
consciência cotidiana da mente humana – especialmente tratando-se de um fenômeno
tão crucial, segundo as estruturas do patriarcado, como é o casamento, ainda mais
da perspectiva da mulher, que é a parte mais afetada por esse fenômeno. Porém, na
história do teatro brasileiro, é de enorme importância a forma com que Rodrigues
buscou experimentar com o espaço cênico a fim de conseguir veicular a complexidade
da experiência humana. Dita fragmentação serviu-lhe com real eficácia dramática
184
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
quando nos damos conta de que propôs que a fragmentação do espaço cênico poderia
servir, de maneira excepcionalmente eloquente, para montar uma obra sobre as fissuras
provocadas pelo casamento dentro do sistema patriarcal brasileiro. Não é necessário
dizer que tal fragmentação não ajuda, finalmente, a colocar a vida de Alaíde em ordem, a
esclarecer definitivamente os seus fatos pertinentes. Não serve mais do que para colocar
em evidência a confusão, a “mistura” em que se encontram essas vidas.
185
A literatura homoerótica
de Glauco Mattoso
Parte I – Notas sobre o Manual do pedólatra amador
164 Cf. PARKER, Richard. Beneath the Equator: Cultures of Desire, Male Homosexuality, and Emerging
Gay Communities in Brazil. 1998. PARKER, Richard. Bodies, Pleasures, and Passions: Sexual Culture
in Contemporary Brazil. 1990.
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
165 MATTOSO, Glauco. Manual do pedólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés. 1986.
166 MATTOSO, Glauco; MARCATTI JR., Francisco de Assis. As aventuras de Galucomix o pedólatra.
1990.
187
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autor em primeira pessoa, que, por sua vez, apresenta-se na forma de um manual sexual.
Essa caracterização de Manual é legítima, e, se as bibliotecas o tivessem (parece que
existe somente nos Estados Unidos, na Biblioteca do Congresso), possivelmente seria
classificado tanto como ficção brasileira quanto como um tratado sexual, ou talvez ainda
mesmo como literatura pornográfica. Desse modo, o que me proponho a fazer aqui é
analisar as implicações ideológicas da leitura do Manual enquanto um registro válido,
embora particularmente ultrajante, de uma biografia de tecnologias sexuais alternativas.
Comecemos com uma caracterização inicial do Manual enquanto ultrajante.
Cumpre esclarecer que, ao usar tal adjetivo, minha intenção não é pejorativa de modo
algum. Na verdade, no contexto de uma estética pós-moderna, qualquer desvio – sexual
ou retórico ou ainda a combinação das duas – que possa ser julgado ultrajante pode, de
fato, constituir um elogio considerável. Ao invés de insinuar uma atitude descuidada em
relação ao texto, devido à sua incapacidade de se sustentar diante das convenções do
discurso do senso comum – uma adesão a uma objetividade equilibrada com o propósito
de não alienar o leitor receoso –, o texto ultrajante se configura de maneira agressiva,
sendo uma voz transgressora cuja “autoridade”167 o leitor está disposto a aceitar no
momento. Para fins de argumentação, para que se veja aonde se quer chegar, o leitor não
considera a autoridade como inerente, mas como um apofântico.
O texto de Mattoso é ultrajante de diversas maneiras. Em primeiro lugar, é
francamente autobiográfico, com nenhuma apologia por sua natureza ultrajante ou pelo
fato de que os desvios sexuais descritos sejam recontados sem traço algum de uma
retórica mediadora da exoneração moral (“isto é algo horrível, mas lamentavelmente
trata-se da natureza humana como ela realmente é”). A consideração de Mattoso acerca de
uma educação sexual, seja autobiográfica ou de qualquer outra natureza, não se constrói
pelas convenções naturalistas da escrita pseudocientífica, que serve para postular uma
linha divisória sólida entre a superioridade moral do pacto compartilhado entre leitor e
narrador (o qual transcende o abismo moral do que é narrado) e uma corrupção humana
167 Convém assinalar que as citações de sustos servem aqui para nos lembrar da natureza paradoxal de
uma conjugação do tipo “autoridade transgressora”.
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Sexualidades e identidades culturais
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sexual para, essencialmente, conferir uma espécie de foco analítico para cada forma de
comportamento.
Assim, se, ao vivenciar o seu único ato “heterossexual” com uma mulher que
acaba virando lésbica, o narrador desafia a homossexualidade normativa – uma mulher
com quem ele em seguida estabelece um relacionamento interpessoal estável, a forte
ligação entre Mattoso e Sylvia, primeiro como um casal “tradicional” e então como
duas pessoas cada uma com identidades homossexuais assumidas –, pouco o faz no
sentido de reafirmar a primazia social do casamento heterossexual. E, se a podolatria
tem como seu aval mais expressivo a possibilidade de “continuar transando numa boa
sem risco de AIDS” (contracapa), só pode ser um poderoso tesão para o narrador na
sua dimensão mais gritante de “sexo sujo”. Ao recontextualizar a experiência sexual
em termos de uma zona erógena que desafia os culturemas ocidentais de limpeza, o
Manual desafia seus leitores a exceder limites que eles talvez jamais tenham imaginado
existir. Todas essas estratégias são movimentos em um processo de transformar os
significantes sexuais num processo de livre flutuação de significados que pouco tem a
ver com manuais sexuais padrões, sejam hetero- ou homossexuais.
Esse tipo de avaliação analítica de opções, baseada em um apelo à experiência
pessoal concreta, sendo essa última reforçada por um registro coloquial, complementado
por jogos de palavras circunstanciais, é o que distancia a exposição de Mattoso de
um tratado sobre sexo do Primeiro Mundo, ancorando-se num contexto sociocultural
específico do submundo sexual do Rio de Janeiro e de São Paulo dos anos 1970 e início
dos 1980 (submundo não só por causa da sexualidade marginalizada, mas porque o
Brasil vivia numa ditadura, fato ao qual Mattoso faz referência quando fala da censura
de publicações gays “imorais” a que é associado). Esse apelo de uma fundamentação
na experiência pessoal é particularmente evidente quando o narrador expõe detalhes de
seus desejos e realizações eróticas com o registro escrito, geralmente a partir de fontes
estadunidenses (e citados no original em língua inglesa):
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
[c]omo o leitor terá notado, tais contos nada mais eram que
uma transposição de minhas experiências reais para um
plano ligeiramente mais fantástico. Coisa que agora até
afigura supérflua, em face deste livro onde estou relatando
tudo em suas proporções exatas168.
Deve-se notar aqui que a citação acima se refere a um texto do próprio Mattoso,
o qual é citado no original em língua portuguesa e em seguida na tradução em língua
inglesa na qual ganhou circulação internacional na antologia de Winston Leyland169.
Noutra ocasião, o narrador reclama da reticência perturbadora dos textos no relato
de fatos reais de sofrimento físico, um sofrimento que para ele constitui uma dimensão
erótica crucial:
Realmente, a dimensão dos registros pessoais de Mattoso que realça seu interesse
no sadomasoquismo aponta para um dos aspectos ideológicos mais problemáticos de
seus textos – isto é, uma instância na qual se tornam particularmente ultrajantes no
168 MATTOSO, Glauco. Manual do pedólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés. 1986.
p. 120. Os grifos são meus.
169 LEYLAND, Winston (Ed.). Now the Volcano: An Anthology of Latin American Gay Literature.
1979.
170 Idem. Ibidem. p. 123.
192
Sexualidades e identidades culturais
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contexto dos tratados sexuais objetivos. Não é que Mattoso simplesmente defenda
o apelo sadomasoquista enquanto impulso erótico. Trata-se de uma posição que tem
produzido sérias fendas na escrita gay; podem-se comparar as imagens negativas
geradas, desde uma perspectiva masculina, no romance Rushes (Correrias), de John
Rechy171, com as positivas, do ponto de vista feminino, nas histórias de Pat Califia em
Macho Sluts (Putas machas)172. A antologia de Califia contém um ensaio importante
em defesa do sadomasoquismo lesbiano: o sadomasoquismo com frequência é visto
como problemático porque, entre outros aspectos, ritualiza a condição do homossexual
enquanto vítima desamparada, sendo que, no sadomasoquismo lesbiano, soma-se
a dimensão da vivência geral das mulheres enquanto objeto de violência sexual173.
Mattoso deixa claro que não defende o sadomasoquismo numa perspectiva “nazista” de
dominação do mais fraco pelo mais forte, mas como forma de dramatização sexual, com
rituais de humilhação simbólica, não enquanto tortura real174.
A distinção que Mattoso faz entre tortura real e sadomasoquismo enquanto forma
de dramatização sexual175 não esgota uma dimensão altamente problemática da sua
defesa ultrajante da podolatria. O autor prossegue na defesa não tanto da ressonância
erótica da tortura política real quanto do uso dessa questão como ingrediente de seu
próprio psicodrama erótico, em que as descrições das torturas infligidas a outros
em nome da economia política podem muito bem ser recodificadas para servir de
estímulo na arena dos prazeres sexuais pessoais. Mais do que questionar a validade
dessa transcodificação e evitar uma consideração sobre o quão politicamente correto
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Sexualidades e identidades culturais
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os leitores acharão essa operação cínica, a ponto de se gerar uma cumplicidade com a
legitimação da tortura política, o narrador autobiográfico de Mattoso considera que tais
textos sejam eroticamente inadequados por não fornecerem o tipo de detalhe explícito
sobre o sofrimento eroticizado que seu interesse pessoal requer. Em vez de fazer o
questionamento no sentido de por que esses silêncios e eufemismos estão presentes em
textos de memórias de sobrevivência – uma análise do discurso dessa escritura (com
a qual Mattoso não tem nenhum compromisso) pode começar com o que pode e o
que não pode ser dito, dado o abismo inaugural entre o conhecimento do narrador e a
“externação” do narratário –, o narrador enquanto escritor contempla a necessidade, que
é afinal de contas o ponto de partida do Manual, de criar seu próprio discurso erótico.
Assim como Mattoso se preocupa em defender sua interpretação podólatra de
textos literários em que os pés ganham atenção em primeiro plano, ele igualmente evita
teorizar seu desejo de ler de maneira erótica as memórias dos sobreviventes de tortura
política, fracassando inclusive no reconhecimento das diferenças reais, substantivas
entre as duas categorias do discurso. A conjugação indiscriminada dos dois constitui
um dos aspectos mais ultrajantes, senão ideologicamente problemáticos, do Manual.
O fato é que Mattoso prescinde das duas formas de escrita como inadequadas às suas
próprias necessidades expressivas, sendo no espaço clareado pela licença conferida
tanto à literatura quanto às memórias da prisão que o Manual vem à tona, baseado numa
destacada experiência pessoal que valida a si mesma, não pela confirmação de imagens
noutras fontes, mas por sua singularidade putativa. De fato, a grande autoconfirmação
de Mattoso virá da resposta do leitor que ele registra para versões anteriores de suas
vivências, todas sustentadas por variedades dos mesmos topos.
A paneroticidade transgressiva do desejo sexual que a narrativa de Mattoso
coloca em ação a partir de múltiplas dimensões do ultraje aqui descrito, variando desde
postulados eróticos básicos do narrador a aspectos ideologicamente problemáticos de
sua exposição, desvia significantemente da sanidade sexual sobre a qual se baseiam os
tratados sexuais científicos e manuais eróticos advindos do Primeiro Mundo, largamente
disponíveis na forma de traduções em livrarias na América Latina. Pode-se arriscar a
194
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
176 Para uma defesa acadêmica dessa proposição, ver o artigo de COHEN (1988) sobre Foucault, um
apropriado ponto de referência, já que foi Foucault quem analisou o conceito de sexualidade como
construto sociopolítico e institucionalizado. No seu posfácio ao Manual, todavia, Néstor Perlongher
realça o fato de que Mattoso subverte o discurso médico sobre a AIDS (p. 175-76).
195
Sexualidades e identidades culturais
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177 MATTOSO, Glauco. Manual do pedólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés. 1986.
p. 112-116.
178 Idem. Ibidem. p. 154.
196
Sexualidades e identidades culturais
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197
Sexualidades e identidades culturais
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que representa certa função sociossexual, mas o signo fica sem análise em termos de
seus constituintes físicos e simbólicos – quer dizer, em termos de um imaginário do
valor erótico do corpo masculino. Esse valor, é claro, não é intrínseco, pois nenhum
signo tem um significado inerente. Do que se está falando aqui é de um processo de
análise mediante o qual os elementos que o signo engloba serão analisados em termos
de seus próprios subsignificados dentro de microrredes de simiósis eróticas.
Em certo sentido, apesar da imagem “plástica, sanificada” do corpo masculino
na publicidade (e se entende que a publicidade no Brasil é sempre mais criativamente
extravagante e exuberante do que em outras sociedades), a lei da homofobia exige a
supressão das dimensões eróticas do corpo masculino, e, sem exagerar muito, seria possível
afirmar que um sexo encoberto entre homens é mais tolerável do que a sua exibição,
sem concessões, do corpo masculino (o mesmo aconteceu num contexto heterossexual
ou num contexto homoerótico). Isso acontece precisamente pelo perigo que envolve a
gala total do corpo masculino, que encontramos na literatura homoerótica dedicada a
transpassar definitivamente as fronteiras da decadência convencional, subscrita até por
certos setores homossexuais. É a indecência, o perigo do corpo masculino como agente
(homo) erótico (e não em termos de uma histeria contra a violência sexual atribuída
“por natureza” ao corpo masculino pela ideologia do patriarcado e – faz falta notá-lo –
por certas concessões do feminismo) e o imperativo de procurar – de recuperar – uma
extravagância do corpo masculino, o que motiva a poesia homoerótica de Mattoso.
Vejamos, por exemplo, um texto como “With a little helpmate” (Com uma
ajudazinha), em que o encontro de corpos masculinos fica inscrito no texto da cidade,
da “topografia urbana”. Desse jeito, a exploração e a gozação do sexo se entrelaçam
profundamente com os cenários dos lugares privilegiados da sociedade, sendo o jogo
erótico uma parte integral e legítima da experiência humana compartilhada no vasto
espaço urbano. Aliás, o jogo erótico se centra em “um beijo de macho/uma fome de
bicho”, prática e circunstância que propulsam semelhante encontro. Vale notar que o
beijo é de “macho”, e não somente de “homem”, pois o primeiro substantivo implica
198
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
um leque de conceitos semânticos eróticos que são neutralizados por um termo como
“homem”.
O poema referido se inclui no livro Línguas na papa e, como é o costume no
caso dos livros de Mattoso, a capa dá forma bem gráfica à ênfase nas características
de macho que o poeta procura verbalizar. Provavelmente, o poema mais genial dessa
coletânea é “Defectivo”, não somente porque conjuga uma justaposição entre as práticas
homoeróticas e a censura do discurso dominante, mas porque perfila um inventário
de atividades que envolvem o corpo inteiro, superando no processo a fragmentação
imposta pela obrigação de limitar o sexo somente àquelas zonas aprovadas pelo mesmo
discurso que o reprime:
eu mordo
tu mastigas
ele engole
nós digerimos
vós cagais
eles policiam
199
Sexualidades e identidades culturais
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E a declaração que fecha o poema pode servir como síntese desta nota sobre a
200
Sexualidades e identidades culturais
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201
Santidade, uma
encenação de Zé Celso
no Teatro Oficina
(São Paulo, 2007)
Entrar no galpão que hospeda o Teatro Oficina179 de Zé Celso (José Celso Martinez
Correa180, Araraquara, São Paulo, 1937) é adentrar num mundo totalmente teatral.
Mesmo que haja certa disponibilidade de cadeiras e bancos para o público, o espaço
em plena extensão funciona para as encenações de obras dramáticas, as quais também
se valem dos tablados que representam lugares de determinada ação, desde os detalhes
arquitetônicos da construção do galpão: vigas, encanamentos, andaimes colocados entre
eles, uma quantidade enorme de janelas que projetam a atuação para além do espaço
fechado, em direção a um jardim externo, sem mencionar os espectadores circunstanciais
que se aproximam das janelas e varandas das propriedades horizontais da vizinhança.
Em 2007, Celso fez uso desse espaço para dirigir uma versão de Santidade, obra
teatral do dramaturgo brasileiro José Vicente (José Vicente de Paula; Alpinópolis, 1954-
São Paulo, 2007). Santidade data de 1967 (o próprio José Vicente atuou na primeira
exibição) e foi reapresentada novamente por Fauzi Arap em 1997, merecendo os
principais prêmios do ano teatral. Depois da morte de José Vicente, que sofreu um ataque
cardíaco, a nova exibição de Celso de Santidade fica como homenagem comemorativa
a ele e aos 40 anos da obra.
José Vicente, mesmo com poucas publicações de suas obras teatrais, teve importante
papel no teatro brasileiro no contexto da resistência à Ditadura Militar que se instaurou
em 1964 e durou até 1985. Autor de uma série de textos que enfatizam a violência social
urbana e operam uma estética suja intransigente (nesse sentido, seguindo um caminho
paralelo ao seu compatriota Plínio Marcos [1935-1999], autor de peças que alcançaram
repercussão internacional), Vicente caracteriza-se por ser um dos primeiros dramaturgos
de sua geração que se atreveram a ventilar questões sexuais no palco, especialmente as
que se referem à chamada homossexualidade. Com grande relevância quanto a esse
aspecto, destaca-se a obra Assalto, montada por Fauzi Arap em 1969181. Centrando-se
no tema da prostituição masculina, Assalto ganhou prêmios importantes.
Santidade, peça censurada em 1967 pela presidência militar do General Costa
e Silva, como todas as obras de José Vicente, baseia-se em detalhes autobiográficos
da vida do autor, que terminou editando, em 1984, Os reis da terra, autobiografia na
qual se podem rastrear muitas das experiências pessoais que servem de pretextos e
referências para seu trabalho dramático. Santidade remete diretamente às experiências
que José Vicente teve como seminarista, a partir dos 12 anos, no Seminário de Guaxupé
(1957-64). Ao abandonar o seminário, instalou-se em São Paulo, onde estudou na USP
e começou a incursionar no teatro.
José Vicente afirma na apresentação de sua autobiografia que “este livro vai assustar
o leitor e eu sei disso”182. A exibição da Santidade, de Zé Celso, parece ter buscado com
dedicação tal princípio programático do autor da peça para organizar, sob a direção de
Marcelo Drummond, uma experiência teatral destinada a sacudir, com a franqueza sexual
na qual se tensiona, o espectador mais experiente no teatro profissional. Ainda que se
possa dispor de imagens e filmes que atendem a mais multicolorida imaginação erótica,
Celso, conhecido pelas ousadias de suas encenações, supera em forma geométrica a
materialidade do corpo masculino nos termos do que até então havia sido representado
203
Sexualidades e identidades culturais
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183 A palavra “estilista”, em português, não equivale apenas a “diseñador”, mas também a uma pessoa
conhecida por seus gostos refinados e sua genial criatividade.
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Sexualidades e identidades culturais
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ingerência nociva em uma das maiores produções culturais do mundo184. Apesar de não
dispormos de dados sobre a exibição da Santidade de Arap em 1997, pode-se afirmar
com total segurança que teria de ser uma montagem em fundamental dependência do
dialogismo entre as personagens: o tipo de direção na qual se aventura Celso em 2007
teria sido simplesmente impossível dez anos antes.
Valendo-se da modalidade do teatro total, que constitui o caráter basilar do trabalho
do Teatro Oficina, Celso opta por traçar de forma insistente, sem concessões e com o
maior atrevimento possível, uma correlação entre o sentido da obra de José Vicente e a
plasmação material do cenário. Daí que, apesar de se recorrer a vários outros espaços
do galpão à disposição da ação teatral, o foco e o centro axial da representação tomam
espaço em cima de uma cama. A obra abre e fecha com as personagens deleitando-se
sexualmente entre lençóis e cobertas que, como se fossem a cortina da boca de cena, se
rompem ao começo da obra para revelar os corpos de Ivo e Arthur em plena andança
erótica. Trata-se do estágio absolutamente transparente do ato sexual a entrar em jogo
na versão de Celso de Santidade, o que pretende levar da palavra à prática os princípios
de libertinagem reivindicados insistentemente por José Vicente (pela boca de Ivo e,
em definitivo, pela colaboração sem rodeios de Arthur e Nicolau) tanto em suas obras
teatrais quanto em sua autobiografia.
José Vicente diz “abri os olhos e vi”185 para caracterizar a forma em que percebeu
os processos degradantes da religião. A exibição de Celso é um chamado para que o
espectador chegue à mesma conclusão ao acompanhar aquela que, em termos religiosos,
se chamaria de tentação, sedução e corrupção de Nicolau, praticadas por Ivo e Arthur.
Ao terminar levando-o à cama para formar um trio sexual, o estilista e o jovem amante
“demonstram” a exaltação do erotismo como a irrefutável libertação do irmão mais
novo das garras da religião. Ao finalizar a obra, a roupa de cama não volta a cobrir os
corpos e o exercício corporal do sexo fica exposto ao público.
184 David George (2000, p. 26) fala como Celso pertence a um grupo de pessoas do teatro que fazia uso
do cenário para denunciar a ditadura.
185 VICENTE, José. Os reis da terra: autobiografia. 1984. p. 125.
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186 Cf. BERSANI, Leo. Is the Rectum a Grave?. AIDS: Cultural Awareness/ Cultural Activism. 1987.
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Sexualidades e identidades culturais
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entrega ao hedonismo libertador que defende como antídotos contra a asfixia cultural e
a alienação coletiva de um Brasil hegemônico.
Santidade deixa bem claro que a libertinagem homoerótica proposta e defendida
não consiste meramente numa questão dos direitos sexuais de um indivíduo, mas tem a
ver diretamente com o mundo circundante que esses indivíduos habitam: no momento
em que Nicolau chega do mundo de fora, carregando um conjunto de valores religiosos
imperantes na sociedade brasileira (chega para “salvar” seu irmão, ainda que, afinal de
contas, seja esse quem o salva...), Ivo se veste para ingressar nos antros pecaminosos
da cidade. Como pontua o programa da peça: “[c]om visão peculiar, o Oficina amplia
o universo tropicalista de Zé Vicente, deglutindo antropofagicamente os signos de São
Paulo, cidade onde o submundo e o catolicismo se misturam. Nas ruas paulistanas, a
divisão entre o sagrado e o profano perde sentido”187.
Em última instância, Santidade corre um enorme risco teatral. Embora se suponha
que, para o espectador que chega ao Oficina já sabendo exatamente quais são os tipos de
montagens levadas à cena pelo lendário Celso, não há surpresas quanto à disputa entre
o Bem e o Mal formulada da melhor maneira sadeana. Não se pode esperar menos que
o triunfo desse e a inversão irônica do título188, destacar como a maior via de acesso à
santidade é por meio daquilo que a Igreja chama de pecado, e sempre quando se exerça
de maneira desbocada. O maior desafio para o público, no entanto, é o processo mediante
o qual o espaço cênico vai se concentrando sucessivamente do galpão à cama, da cama
ao corpo de Ivo, e do corpo de Ivo a suas nádegas, e de suas nádegas ao seu ânus, tudo
em um processo de redução metonímica que, forçosamente, inquieta o espectador; quer
dizer, o projeto de Celso não tem sentido se não despertar a perturbação do público.
Trata-se de um público bem-pensante em relação ao imperativo de superar as repressões
vigentes ao nível da vida nacional; seria demais pedir-lhe que visse com os próprios
187 O fato de que há momentos em que a obra desenvolve diantes das grandes janelas do galpão é uma
forma de levar a obra para a própria rua de fora onde se misturam os elementos dos quais fala a citação.
188 O título da obra, além de seu significado básico, alude indubitavelmente à figura do Papa e a como
a visita de Bento XVI ao Brasil em maio de 2007 serviu para dar uma virada conservadora à Igreja
nacional.
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Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
olhos a salvação daquelas repressões oferecida pela Santidade de Celso. É preciso dizer
que o Oficina representa um tipo de teatro que apela a um espectador particularmente
preparado a acompanhar as propostas audazes de Celso. Norteado pela importância
que essas propostas conquistaram no panorama do teatro contemporâneo de São Paulo,
obras como Santidade constituem um êxito sem par.
208
A feminização do
espaço social em Parque
industrial, de Patrícia
Galvão
O romance Parque industrial (1933), de Patrícia Galvão, é, como observado
pelos críticos que o têm estudado nos últimos anos, uma anomalia textual. Agora, é
possível perceber, como Kenneth David Jackson registra em seu excelente estudo sobre
o romance (incluído como um posfácio na tradução feita em parceria com Elizabeth
Jackson)189, que Parque industrial é coextensivo a muitos aspectos dos movimentos de
vanguarda dos anos 1920 e 1930 e ecoa um espectro de preocupações sociais comuns a
um período de capitalismo selvagem em São Paulo190. Conhecida quase universalmente
como Pagu191, Galvão, embora advinda de uma sólida família pequeno-burguesa, foi,
desde muito cedo, uma rebelde social. Inconvencional em sua vida pessoal e desafiadora
em sua postura com referência à autoridade patriarcal, sua conduta lhe rendeu não só
vários períodos de prisão em condições terríveis nas mãos do Estado, como também
uma relação tumultuada com o Partido Comunista, do qual finalmente se distanciou192.
Embora haja, agora, boas referências sobre a vida de Galvão (1910-1962), não há ainda
189 JACKSON, Kenneth David. Afterword. In: GALVÃO, Patrícia. Industrial Park: A Proletarian
Novel. 1993. p. 115-153.
190 DEAN, Warren. The Industrialization in São Paulo: 1880-1945. 1969.
191 Seu filho, Geraldo Galvão Ferraz, no entanto, observa que Galvão repudiou esse apelido em 1940,
após a sua demissão do Partido Comunista. Cf. FERRAZ, Geraldo Galvão. Introdução: a pulp fiction de
Patrícia Galvão. In: SHELTER, King (pseud. de Patrícia Galvão). Safra macabra: contos policiais. 1998.
p. 3.
192 CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da Era Vargas. 1993.
Sexualidades e identidades culturais
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uma biografia definitiva, de forma que uma das melhores fontes é o bem-sucedido
filme de Norma Bengell, que muito deve ao feminismo que se seguiu ao período pós-
ditatorial. Eternamente Pagu (1987) talvez mais bem capte o espírito desta figura-chave
na história da produção cultural feminina no Brasil193.
O leitor encontrará, no posfácio à tradução de Parque industrial, de autoria de
Jackson e Jackson, uma extensa caracterização da estrutura do romance, sua relação
com os movimentos sociais e artísticos do período e referências a reações críticas a
ele, incluindo uma discussão de como, devido a tabus, o romance de Pagu caiu no
esquecimento194. Patrícia Galvão, infelizmente, continua a ser praticamente inexistente
na história literária brasileira. Isso não se deve ao fato de que é uma mulher, já que
houve várias artistas do sexo feminino importantes que viveram e produziram no
mesmo período e alcançaram reconhecimento significativo, tornando-se parte do
registro cultural, das quais a de mais destaque foi Tarsila do Amaral, considerada uma
figura absolutamente crucial no movimento de vanguarda de São Paulo, marcado pela
importantíssima Semana de Arte Moderna de 1922. Também não se deve à sua denúncia
social, uma vez que os romances de Raquel de Queiroz sobre a situação do campesinato
nordestino da época são exemplos clássicos do realismo social brasileiro, que incluiu
alguns dos mais famosos escritores do período, a começar pelo internacionalmente
famoso Jorge Amado (que, como Galvão, também se distanciou, posteriormente, do
Partido Comunista). Mesmo a História da literatura brasileira, de Silvio Castro195, em
três volumes, não menciona Galvão, e a ela só são concedidas duas referências breves,
sem menção de seu romance, no Cambridge History of Latin American Literature,
alentado volume sobre literatura brasileira organizado por Roberto Gonzalez Echevarria
193 Cf. FOSTER, David William. Gender and Society in Contemporary Brazilian Cinema.
1999. p. 83-96.
194 JACKSON, Kenneth David. Afterword. In: GALVÃO, Patrícia. Industrial Park: A Proletarian
Novel. 1993. p. 127.
195 CASTRO, Sílvio. História da literatura brasileira. 1999.
210
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
e Enrique Pupo-Walker196. Galvão não é também incluída nos estudos clássicos sobre o
movimento modernista, estando ausente tanto no do brasileiro Wilson Martins197 como
no do americano John Nist198. Susan Canty Quinlin, em seu estudo acerca de escritoras
brasileiras, dedica apenas um breve parágrafo a ela (e incorretamente cita a data de
publicação de Parque industrial como sendo 1931)199. Da mesma forma, Cristina
Ferreira-Pinto não faz mais do que uma referência de passagem ao interesse de Galvão
no corpo feminino em sua monografia sobre sexo e desejo em escritoras brasileiras200.
Talvez uma forma de abordar o destino histórico do romance de Galvão seja em
termos de sua perspectiva feminista. Enquanto Jackson faz questão de ressaltar que
Galvão não se considerava uma feminista – ela até zombava das mulheres de sua
época que assim se consideravam201 –, é preciso ter-se em mente qual o alcance dos
compromissos ideológicos a serem incluídos no termo, especialmente levando-se em
conta o modo como teria sido compreendido à época em que o livro foi escrito. Como os
exemplos selecionados por Jackson para evidenciar o desprezo de Galvão ao feminismo
deixam obvio, Galvão, que era membro do Partido Comunista no momento que a obra foi
escrita, via o feminismo como uma reivindicação exercida por mulheres burguesas com
respeito a privilégios masculinos, e não como um movimento revolucionário por justiça
196 GONZÁLEZ ECHEVARRÍA, Roberto; PUPO-WALKER, Enrique (Eds.). The Cambridge History
of Latin American Literature. 1995.
197 MARTINS, Wilson. The Modernist Idea: A Critical Survey of Brazilian Writing in Twentieth
Century. 1970.
198 NIST, John. The Modernist Movement in Brazil: A Literary Study. 1967.
199 QUINLIN, Susan Canty. The Female Voice in Contemporary Brazilian Narrative. 1991. p. 52.
200 FERREIRA-PINTO, Cristina. Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian
Women’s Literature. 2004. p. 53.
Concede-se a Galvão, todavia, um excelente verbete no Dicionário de autores paulistas, de Luis Correia
de Melo (1954, p. 250). Isso é particularmente importante, uma vez que o Dicionário é uma publicação
oficial do IV Centenário da Cidade de São Paulo.
201 JACKSON, Kenneth David. Afterword. In: GALVÃO, Patrícia. Industrial Park: A Proletarian
Novel. 1993. p. 143
211
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
202 Essa observação também é feita por Susan K. Besse (1994) em sua discussão sobre Patrícia Galvão.
Cf. também BLOCH, Jayne H. Patrícia Galvão: The Struggle Against Conformity. Latin American
Literary Review. 1986. p. 191.
212
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213
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205 JACKSON, Kenneth David. Afterword. In: GALVÃO, Patrícia. Industrial Park: A Proletarian
Novel. 1993. p. 10-141.
206 Cf. WOLFE (1993) sobre a história dos trabalhadores em São Paulo; o que é particularmente
importante é sua inclusão das experiências femininas.
214
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207 Essas duas epígrafes desapareceram da edição Mercado Aberto/EDUFSCar (eu tenho em mãos a
terceira edição, datada de 1994); assim, vou citá-las da edição fac-símile de 1981; e ambas as epígrafes
são mantidas na tradução de Jackson e Jackson.
208 GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. 1981. p. 1.
209 Para uma análise detalhada do crescimento da indústria em São Paulo durante este período, ver
DEAN, Warren. The Industrialization of São Paulo: 1880-1945. 1969.
210 JACKSON, Kenneth David. Afterword. In: GALVÃO, Patrícia. Industrial Park: A Proletarian
Novel. 1993. p. 128.
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212 JACKSON, Kenneth David. Afterword. In: GALVÃO, Patrícia. Industrial Park: A Proletarian
Novel. 1993. p. 127.
213 Outro estudo pode preocupar-se com a textura estilística da língua de Galvão no romanece, seu
uso de certas metáforas centradas nas mulheres e a ênfase em vocabulário e sintaxe altamente visual e
telegráfica (talvez futurista), e o muito eficaz registro coloquial de muitas passagens. Tal estudo seria
substancialmente diferente do meu exame aqui da linguagem como discurso social, feminista e de con-
testação.
214 Vicky Unruh (1998, p. 275) enumera os muitos espaços femininos do romance.
215 Na tentativa de entender por que Parque industrial foi por tanto tempo ignorado pela história literária
brasileira, Hilary Owen (1999) se concentra em como o romance retrata discursos sociais que se tornam
supostamente descartados por causa do modo como Galvão examina as questões femininas de uma forma
que as distancia da ideologia patriarcal e centrada na família adotada pelos movimentos sociais no Brasil.
217
Sexualidades e identidades culturais
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produzir o que poderia propriamente ser compreendido como feminista, isto é, a adesão
a uma agenda conscientemente fundamentada em uma base teórica216.
No mínimo, a feminização do espaço social deve superar o modo como a
representação ricamente texturizada da vida das mulheres é tão impressionantemente
ausente da produção cultural. Por exemplo, se alguém lembra de O cortiço (1890),
de Aluísio Azevedo, a grande obra do naturalismo brasileiro – uma obra que, como o
Parque industrial de Galvão, provê uma visão complexa da vida urbana –, sabe que o
romance evidencia uma perspectiva essencialmente masculinista. O romance de Azevedo
é considerado a primeira obra da literatura brasileira e, de fato, da literatura latino-
americana, que representou o lesbianismo217. Contudo, O cortiço é pouco simpático
para com o lesbianismo, que é visto como um mal-estar social que ataca os miseráveis
da terra. Dito isso, Parque industrial também fornece um retrato pouco lisonjeiro do
lesbianismo218. Entretanto, o que gostaria de ressaltar aqui é que Galvão, pelo menos,
trata-o em um contexto amplo, relacionando-o a uma série de questões da vida das
mulheres, e não apenas como uma infelicidade de gênero, como acontece no romance
de Azevedo. Nesse último, o lesbianismo figura como um item dentre outros de um
inventário de infortúnios que não são essencialmente marcados por gênero, mesmo que
se esteja falando, nesse caso, do abuso de uma mulher por outra. A vida das mulheres
não é um ponto importante no romance de Azevedo, mas sim todas as vidas do cortiço
como um microcosmo da exploração social e da mesquinhez da existência daqueles
216 Ver os ensaios sobre abordagens de gênero e espaço geográfico em BELL, David; VALENTINE, Gil
(Eds.). Mapping Desire: Geographies of Sexualities. 1995.
217 REIS, Roberto. Aluísio Azevedo. In: FOSTER, David William (Ed.). Latin American Writers on Gay
and Lesbian Themes: A Bio-Critical Soucebook. 1991a. p. 49.
218 Galvão é pouco simpática à homossexualidade também em outros escritos tais como a nota jorna-
lística “Saibam como ser maricons”, na qual o contexto torna evidente de que ela está falando contra
um paradigma de decadência burguesa rotineiramente atacado pela esquerda e pela retórica do Partido
Comunista (para uma visão geral de pesquisas sobre este tema, cf. WILKERSON, 2000, p. 154-155).
No entanto, é importante notar que Galvão está, sem dúvida, atacando os homossexuais masculinos
efeminados, não os “masculinos”. (Vicky Unruh registra isso enfaticamente em seus comentários no
ensaio Performing Women and Modern Literary Culture in Latin America, 2006, p. 207). A homofobia
de Oswald de Andrade, atribuída a suas ligações com o Partido Comunista, é mencionada de passagem
por TREVISAN (2002, p. 273).
218
Sexualidades e identidades culturais
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219 É interessante notar que, na caracterização dos aspectos naturalistas do romance de Azevedo, LOOS
(1963, p. 47), embora afirme que “a maioria dos personagens [...] é obcecada por sexo”, não faz nenhuma
menção ao lesbianismo no romance.
220 Ver comentários de Foster sobre escritoras como Márcia Denser, por exemplo, em Gay and Lesbian
Themes in Latin American Writing (1991, p. 94-97).
221 GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. 1994. p. 62. Todas as referências a Parque industrial são, a
menos que claramente expressas, retiradas da edição Mercado Aberto/ EDUFSCar, 1994.
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Sexualidades e identidades culturais
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produção cultural e investigação científica. Deve, antes, trazer consigo algo a respeito
do questionamento de papéis sociossexuais e do imperativo que leva a ver o mundo em
termos do binarismo feminino/masculino, a despeito da proporção em que se apresente.
Uma vez que o feminismo é quase universalmente compreendido como envolvendo um
questionamento sobre a construção e a interpretação de papéis de gênero, também é
inevitavelmente um processo de exame sobre o que a ideologia masculinista considera
ser a fixidez de tais papéis, trazendo com ela, em primeiro lugar, a desestabilização do
que “homem” e “mulher”, “masculino” e “feminino” abrangem, e, consequentemente,
uma indefinição de sua distribuição na experiência humana e no espaço social222.
Não estou dizendo que tudo isso ocorre em Parque industrial, embora gostasse de
salientar que a queerização de papéis sociossexuais no romance de Galvão está presente
na medida em que a autora não se contenta em limitar a experiência das mulheres aos
estreitos limites ditados pelos imperativos machistas. Isso é visível nas formas como as
mulheres no romance procuram ser agentes, ainda que apenas de forma imperfeita e às
vezes desastrosa, de suas próprias vidas. Evidentemente, as mulheres não fazem parte
da força de trabalho como uma forma de independência feminista, uma vez que elas
têm que trabalhar devido à dura realidade econômica. Refiro-me, antes, a casos como
o da mulher imigrante lituana, Rosinha, que assume um papel importante na luta pelos
direitos das trabalhadoras.
Além disso, a maneira pela qual figuras masculinas são notavelmente ausentes
ou minimizadas na romance significativamente mina a masculinidade patriarcal – se
não, com certeza, no mundo real, pelo menos no universo dessa narrativa. Na verdade,
o escândalo para o ainda predominantemente masculino mundo da crítica – e o universo
de leitores predominantemente masculino que representa – é o que mais seguramente
explica a forma como o romance de Galvão, junto com suas outras produções culturais,
tem sido diminuído ou ignorado pela academia brasileira. Da mesma forma, quando
um poeta de vanguarda como Augusto de Campos assina a única avaliação global das
222 Para um levantamento mais detalhado dessas questões consulte Annamarie Jagose (1996), especial-
mente as págs. 119-125.
220
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223 Veja depoimento de Lúcia Maria Teixeira Furlani, já em terceira edição (a citada nas referências é de
1991); Jayne H. Bloch (1986) fornece uma caracterização geral do caráter boêmio de Galvão.
224 Veja o famoso documentário de Helena Solberg-Ladd, The Double Day, de 1976.
225 Para uma excelente análise da relação entre a modernização e a desigualdade de gênero no local de
trabalho, ver BESSE (1994). Infelizmente, Besse não toma Parque industrial como uma forma de prova
documental para sua análise.
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que a latrina foi originalmente o banheiro dos homens, sendo depois reservada para uso
das mulheres: essa falta de preocupação para as diferentes necessidades de higiene de
homens e mulheres constitui ainda outro motivo de indignação dos trabalhadores com
respeito a seu tratamento indigno. O texto refere-se ao fato de que as paredes “gravam
desabafos dos operários”230, deixando claro que o banheiro tinha sido usado por homens
e mulheres. Além disso, o texto passa a referir-se ao grafite obsceno dirigido contra os
supervisores dos trabalhadores (embora não o transcreva). Inquestionavelmente, o âmbito
semântico da palavra impropérios – insultos – inclui aspectos sexuais e escatológicos.
O tipo de “conversa de mulheres” representada pela alusão aos grafites do banheiro é
provavelmente uma transcrição de como essas mulheres poderiam realmente falar em
público entre si. Uma mulher realmente chama a atenção especificamente para o grafite
e, assim, torna claro que os insultos são conscientemente notados por essas mulheres.
Outra mulher observa que um grafite deveria ser coberto, mas ninguém a apoia. O fato
de que as trabalhadoras leem os impropérios fica claro quando há um breve diálogo com
referência a um deles, embora nesse caso o grafite faça alusão à política: “[o] que quer
dizer esta palavra ‘fascismo’?”231. Então, embora não ouçamos realmente as mulheres
lerem o grafite em voz alta ou proferirem o tipo de linguagem escrito nas paredes, é
evidente que elas leem o grafite, mas não entendam suas alusões políticas. Ao chamar o
escrito de “porcaria” e usar a palavra “versinho”, as mulheres demonstram que sabem
pelo menos o significado ofensivo das palavras rabiscadas.
A latrina, contudo, tem uma importância diferente na feminização do espaço
social no romance. Se, numa primeira instância, trata-se de um lugar onde as mulheres
podem admitir a linguagem de rua entre si, mesmo que o leitor não as ouça pronunciá-
la232, a latrina não é apenas um refúgio contra a escravização do trabalho na fábrica,
mas é uma exceção à predominância masculina de seu mundo. Uma vez que foi,
224
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225
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pelo sistema, sendo a Madame responsável junto aos clientes, que são parte integral do
mundo dos proprietários:
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produção de refinamento, mas é, não obstante, não menos sujeita ao abuso degradante
do que suas irmãs que trabalham na fábrica235.
O bordel é outro espaço em que as mulheres obtêm apenas um espúrio escape
da supervisão masculina. Claro, estão ao serviço das demandas sexuais dos homens,
mas, em certo sentido, o bordel é um mundo da mulher, governado pela Madame
matriarcal. De fato, uma das funções simbólicas do bordel é consagrar uma interpretação
particular da feminilidade, que talvez até mesmo envolva o endeusamento da prática da
prostituição236. No entanto, a realidade social da prostituta, tal como aludida em Parque
industrial, não tem nada de divina e torna-se, como podemos ver através de Corina,
mais uma estação da cruz em sua exploração social. Como se o rebaixamento de Corina
à condição de prostituta não fosse suficiente para a explícita representação do ambiente
sórdido no romance de Galvão, mais uma vez, a autora recorre ao escandaloso uso da
linguagem das mulheres a fim de destacar a natureza infeliz de sua existência material.
Nesse caso, é especificamente uma linguagem pronuciada por mulheres, uma vez que é
o discurso de prostitutas de sedução e excitação como utilizado na prática de seu ofício
e na geração de lucro (em última análise, para os empregadores do sexo masculino na
indústria da prostituição) através do comércio sexual. É uma linguagem que Corina deve
aprender: toda linguagem é uma atividade aprendida, e versões específicas da linguagem
são adquiridas em espaços específicos e com referência a ocupações definidas; nesse
caso específico, o espaço é o bordel, e a ocupação definida é a de prostituição.
Certamente, a atividade sexual humana envolve uma versão da linguagem
específica. De certo ponto de vista, a linguagem da prostituição pode ser vista como
uma versão aprimorada do discurso comum da sexualidade humana, enquanto, a partir
de outro ponto de vista (mas de modo algum contraditório ao primeiro), essa linguagem
pode ser considerada como complementar à fala comum. Um postulado feminista defende
235 O poema do argentino Evaristo Carriego (1964, p. 132-133), “La costurerita que dio aquel mal paso”,
é contemporâneo ao romance de Galvão: “Daba compasión/verla aguantar esa maldad insufrferable/de
las compañeras/tan sin corazón”.
236 Vejam-se as fotos de bordéis do início do século XX publicadas por Ava Vargas (1991); cf. também
Sergei Lobanov-Rostovsky (1997, p. 312-320).
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Vale a pena notar que essa passagem contrasta duas instâncias de discurso: por um
lado, o das mulheres na loja de roupas em suas conversas sobre prostitutas; por outro,
o vocabulário real da prostituta, quando uma das costureiras move-se de uma forma de
escravização a outra.
A sexualidade feminina reaparece no romance quando a narrativa volta à
Eleonora e Matilde, a quem a primeira, apesar de anunciar que está para se casar com
um homem rico, beija no início do dia escolar da Escola Normal. Essa escola, por sinal,
é outro espaço pseudofeminino, na medida em que tem um corpo de estudantes do
sexo feminino sendo preparado para uma ocupação exclusivamente feminina (o ensino
da escola primária). No entanto, os professores e a administração são masculinos, e
não pode haver dúvida de que essa é ainda outra instituição integrante do patriarcado.
Enquanto Eleonora casa-se bem, Matilde é reduzida a viver em um cortiço:
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porque, como ela diz para Eleonora, “– Não tinhas este apartamento nem estas bebidas
gostosas...”241.
Repetidamente, Parque industrial enfoca experiências de mulheres que são
sujeitos de seu mundo, mas, circunstância após circunstância, o que parece ser um espaço
feminizado tão somente o é porque é um reino precariamente habitado por mulheres –
um reino em que qualquer forma de poder, qualquer forma de efetiva feminização do
espaço, é minada pelo fato de que é dominada por um universo masculinista implacável
em que a dinâmica da exploração industrial garante que as mulheres nunca podem
realmente falar com sua própria voz, e nunca realmente controlar as esferas em que se
movem. Considere-se um exemplo final: o da imigrante lituana Rosinha. O romance
retorna à fábrica e a um levante operário:
O que é marcado como feminino nesse discurso não é o próprio discurso, embora
se note a bela metáfora feminina de tirar a última gota de leite de uma mulher. Na
verdade, Rosinha usa uma gramática masculina que abarca o mundo real feminino no
seu interior, e afirma a necessidade de “estar ao lado dos nossos companheiros” e “lutar
juntos”. Mas o que é distintamente feminino aqui é o fato de que uma mulher dirige-se
a outras mulheres, uma mulher com uma “voz pequenina”, mas uma voz de mulher,
231
Sexualidades e identidades culturais
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contudo. Quando a greve é reprimida pela polícia, o narrador apresenta a figura de uma
Rosinha quebrantada: “[a] polícia surge, carrega. Uma mulher pequena fica no chão,
gritando com a perna triturada. Os seus cabelos loiros, lituanos, escorrem lisos pela testa
suada. Parecida com Rosinha243.
Desse modo, Galvão, sendo precisa em seu mosaico narrativo sobre o distrito
industrial do Brás (o qual ela inquestionavelmente vê como emblemático da opressão
capitalista universal: “Brás do Brasil. Brás de todo o mundo”)244, deseja mostrar o
registro das vidas das mulheres e suas experiências como sujeitos sociais no lar, na rua,
na fábrica e em outros locais de trabalho, até mesmo no bordel e no aposento lésbico. Ela
deseja capturar a fala das suas mulheres e a aquisição de vocabulário necessária à sua
sobrevivência. Está disposta a mostrar momentos precários, descritos como “roubados”,
em que elas são capazes de se envolver em conversa de mulheres contra, mas nunca
realmente livres do escrutínio masculinista.
O que nos resta, no final, porém, é o grito de Rosinha gravemente ferida, ou de
alguém como Rosinha, um grito despercebido, pelo menos pelos agentes do capitalismo
explorador, mas um grito da única voz definitivamente feminina245. Claramente, Galvão
faz uso do privilégio de literatura, um privilégio de que se apropria devido à sua própria
educação burguesa, para articular uma voz feminista que não era/ainda não é possível
para suas personagens. Mas, ainda assim, o próprio silenciamento de Galvão pelo Partido
Comunista (que a obrigou a publicar sob pseudônimo e depois a forçou a renunciar a
sua filiação), bem como o fato de que a academia brasileira está ainda por conceder um
lugar adequado ao romance Parque industrial no cânone literário nacional, são modos
alternativos de silenciar o discurso feminino.
232
O maravilhoso poder
das mulheres contra
os deuses telúricos em
Guadalupe, de Angélica
Freitas e Odyr Bernardi
Guadalupe (1973), de Angélica Freitas, com arte de Odyr Bernardi, é uma
narrativa feminista queer que exemplifica a consciência global da escrita gráfica no
Brasil. Como o título (que remete à protagonista da obra) sugere, a narrativa é ambientada
no México, o que é imediatamente confirmado pelo painel de abertura que ocupa uma
página inteira: embora não haja texto, qualquer pessoa familiarizada com a Cidade do
México reconhece imediatamente o icônico Palácio de Bellas Artes no primeiro plano
inferior esquerdo e a cadeia de colinas em torno da cidade que aparece ao fundo. O céu,
perpetuamente nublado da Cidade do México (especialmente nos meses mais frescos
de verão), paira sobre as colinas e vastas extensões de uma cidade que, apesar de ser
uma das duas ou três maiores do mundo, é caracterizada por um horizonte com poucos
edifícios altos, até mesmo no centro histórico da cidade onde o palácio está localizado.
Apesar de o texto de Freitas estar escrito em português, há abundantes referências
culturais ao México, incluindo características proeminentes do espanhol mexicano tais
como a presença verdadeiramente unificadora do prato mexicano por excelência, o
taco246.
246 Em um dado momento, FREITAS (2012) mostra Minerva – que está naturalmente falando em es-
panhol, apesar de nós a estarmos lendo traduzida, por assim dizer, para o português – combinando as
duas línguas, com o balão representando seu discurso combinando uma interjeição fática em espanhol
mexicano com um comentário em resposta a algo que seu interlocutor disse com uma frase em português:
“[o]rale, que surpresa” (s. p.).
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
247 Há muita bibliografia histórica e ideológica sobre a Virgem de Guadalupe, incluindo discussões de
suas dimensões feministas e até mesmo lésbicas. Uma excelente fonte é a análise de Alicia Gaspar de
Alma (2011) da obra de arte sobre a Virgem por Alma López.
234
Sexualidades e identidades culturais
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mais velhas. Na verdade, fica-se sabendo que, enquanto Elvira ainda era uma artista de
cabaré e antes de se tornar a mãe substituta da criança, ela levava Guadalupe consigo
para seu camarim, onde a vemos interagir com as outras artistas travestis, até mesmo
ajudando uma delas com o batom. Guadalupe concordava entusiasticamente em não
dizer a seus pais aonde Minerva a levava, o que só fortalecia o vínculo fraternal entre a
menina e sua guia transgênero no que é o vasto submundo queer da Cidade do México
– que é hoje cada vez mais visível com a mudança de costumes sexuais na capital
mexicana, se não na sociedade mexicana como um todo.
O incidente narrativo central no romance de Freitas é a morte repentina de Elvira.
Uma vez que ela prediz à neta que tal fato é iminente, Guadalupe e Minerva suspeitam
de que possa ter sido suicídio, especialmente porque ela bate a sua motocicleta que
transita pela cidade em total descuido no estande de taco de um homem que ela odeia. De
fato, há uma constante em Guadalupe de animosidade antimasculina, parte certamente
do lesbianismo de Elvira e de seu tratamento nas mãos de seu pai e de seu marido,
bem como do comportamento transgênero de Minerva, que é um desafio evidente ao
binarismo heteronormativo de gênero, cuja violência ela experimentou pela primeira
vez em espancamentos pelas mãos de seu pai248.
A morte de Elvira imediatamente ocasiona uma crise para Guadalupe e Minerva.
A mulher tinha enfatizado o seu pedido para ser enterrada em sua terra natal, Oaxaca,
com um funeral tradicional, acompanhado por músicos mariachi. Embora Minerva
originalmente retroceda ante as complicações envolvidas, Guadalupe insiste, e elas
partem em uma viagem da Cidade do México em direção ao sudeste, para Oaxaca. Ao
longo do caminho, a van de entrega de sua livraria quebra e Guadalupe chama um amigo
de Minerva para vir ajudá-las a continuar a sua viagem a Oaxaca. Esse amigo, Chino,
248 Esse último, em certo momento, com o cinto na mão, grita “Cabrón!” na cara da mãe que está prote-
gendo seu filho da raiva do homem. O leitor é levado a imaginar se esse multifacetado insulto mexicano
(algo como o americano “Motherfucker”, em português “Filho da puta”), usado aqui na forma masculina,
é dirigido contra a sua esposa, que ele provavelmente sabia ter tido uma relação lésbica com Juanita a
quem ele, com certeza, culpa pelas não conformidades sexuais do seu filho, ou contra o filho, a quem,
portanto, forçosamente identifica como masculino, apesar da roupa e do brinco feminino da criança.
Nota-se que, ao usar essa interjeição espanhola, Freitas está atenta à utilização da marca de exclamação
introdutória invertida do espanhol, mas não do português, e faz uso dela.
235
Sexualidades e identidades culturais
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dono de uma oficina mecânica, em dado ponto, identifica-se como o tio de Guadalupe,
e somos levados a acreditar que ele também costumava ser parte do elenco de artistas
no Divina Perla, cabaré onde Minerva era a estrela. Ademais, apesar de Guadalupe
identificá-lo com o “circuito gay”, ela também sabe que ele sofre de um amor não
correspondido por ela, mas não está pronta para as suas propostas de matrimônio. Essa
não aceitação ocorre menos em razão de sua não adesão ao matrimônio heteronormativo
convencional do que por causa de sua rejeição feminista ao matrimônio como uma
passagem necessária na vida de uma adolescente. Com isso, Guadalupe ainda tem que
descobrir como essa situação foi imposta à sua avó, não por causa de seu relacionamento
lésbico com Juanita, que parece ter seguido a sua vida após o casamento, mas porque
seu pai não podia aceitar uma filha solteira.
Todas as boas road stories (e a presente história de enterrar Elvira em Oaxaca
é apenas um prenúncio da que Guadalupe faz no final do romance) não levam a lugar
nenhum, narrativamente, se não há impedimentos ao longo do caminho. O problema da
van de entrega é sério, mas muito mais grave é o aparecimento, em um restaurante de
beira de estrada, de uma personagem misteriosa e desagradável que hipnotiza Minerva,
induzindo-lhe a pegar uma carona consigo. Quando Guadalupe se opõe, esse sujeito
lança a ela um mau-olhado, que permite que Minerva entre no veículo. Nós já sabemos
quem é o agente do mal: ele foi enviado pelo deus telúrico do submundo, Xyzótlan,
que está necessitando desesperadamente de almas mortas para manter, supõe-se, sua
legitimidade e autoridade. No México moderno, ninguém mais acredita em deuses como
Xyzótlan (o nome é criado por Freitas – observe que se baseia na sequência alfabética
conclusiva XYZ), que, a rigor, está ameaçado de perder o seu alvará – algo como a
sua licença ou autorização para continuar a existir no panteão dos deuses telúricos
mexicanos. A alegação feita é de que seu reino está sendo tomado por “seitas” de fora.
A figura de Xyzótlan (talvez o último dos deuses devido à configuração alfabética
do seu nome?) e seu agente procurador desagradável, buscando almas para o submundo
como um cafetão buscaria novas trabalhadoras em um bordel, funcionam aqui claramente
como ícones de um masculinismo opressivo que ainda é uma ameaça para a expansão
236
Sexualidades e identidades culturais
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249 O uso do ícone da Mulher Maravilha por Freitas é um índice importante da mudança de quadrinhos
para a narrativa gráfica, na medida em que envolve uma atribuição feminista específica para a figura cuja
representação é de difícil obtenção, em nível de história em quadrinhos. A relação que C. W. Marshall
(2011) estabelece entre a figura da Mulher Maravilha e as Fúrias clássicas envolve ressonâncias de algum
nível de sofisticação cultural que se poderia esperar encontrar na novela gráfica, mas não nas perspecti-
vas culturais, frequentemente de má qualidade, dos quadrinhos. No entanto, tendo feito essa distinção,
devo reconhecer que o ensaio de Marshall aparece em um livro que pertence à prática de evitar uma
distinção entre quadrinhos e narrativa gráfica.
237
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
250 Há muito trabalho antropológico sobre o muxe, que se refere a homens crossgênero (performatizam
o crossgender como mulheres); nguiu é o termo para o fenômeno menos comum de mulheres que per-
formatizam crossdress como homens. Para um recente estudo antropológico, cf. MIAMO BORRUSO
(2002). Um dos registros mais importantes de gênero em Oaxaca é a fotografia de Graciela Iturbide, com
textos da romancista Elena Poniatowska (2010). David William Foster (2014) examina as questões de
gênero nas fotografias de Iturbide. É importante notar que, embora o fenômeno Oaxacano do muxe seja
aludido por Freitas (2012), nem Elvira nem Juanita se envolvem com a performatividade crossgênero,
tornando-as mais conformes com a identidade lésbica do que com o fenômeno muxe. Além do uso mais
frequente muxe, muxé também é utilizado; esta última forma replica o padrão de tonicidade da palavra
moderna mujer.
238
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
capturado pelo universo em que Guadalupe se move facilmente, outras partes do México
podem não ser necessariamente assim, e a subjacente herança indígena similar ao muxe
não garante a liberdade do tipo de homofobia exibido pelo marido de Elvira, pai de
Minerva, para não mencionar pelo pai de Elvira, tão ansioso para tê-la casada para –
pensava ele – frustrar a relação entre ela e Juanita.
A narrativa de Freitas dificilmente pode mergulhar com qualquer profundidade
nas complexidades do fenômeno muxe, que serve aqui tanto como um suporte para
a determinação de Guadalupe, quando ela se transforma pelos cogumelos em Muxe
Maravilha, para realizar os desejos de sua avó, quanto uma confirmação do mundo
queer em que habita e aqui defende através da satisfação, precisamente, desses desejos.
Enquanto ela ainda não está completamente ciente de toda a história, a história de
Minerva sobre a vida de Elvira ecoa para Guadalupe a instrução de sua avó para procurar
Juanita em Oaxaca, porque ela “saberia o que fazer”. Assim, a cena final do enterro de
Elvira é o abraço de Guadalupe, quase literalmente sobre o túmulo de sua avó, naquela
que foi o grande amor perdido dessa última.
A narrativa de Freitas desloca uma consciência globalizada brasileira não só
por se passar no México, mas pelo uso do espanhol mexicano e de referentes culturais.
Tal consciência se mostra através da caracterização alegre de valores feministas
internacionais, que são confirmados pela busca de Guadalupe, na segunda, porém truncada
road story do romance, para encontrar-se no mundo251. Ela também é reforçada pela
validação descomplicada do universo queer em que Guadalupe se move e na reinscrição
das práticas pré-colombianas de cultura muxe através do uso dos cogumelos mágicos252.
251 O capanga de Xyzótlan, em uma oferta pela sua liberdade, após ter sido subjugado pelo Village
People, oferece a Minerva um espelho dos deuses, em que a pessoa pode se ver daí a 20 anos. Minerva
o oferece a Guadalupe, que se vê como uma solteirona agora a cargo da livraria de Minerva. Quando sai
em busca da sua aventura pessoal, ela vai jogar o espelho mágico ao mar de um barco no qual ela está
fugindo de seu passado e, por implicação, de seu futuro sombriamente predito. É evidente que é vanta-
joso, para os deuses masculinistas, que as mulheres olhem para o seu futuro e se vejam como criaturas
murchas.
252 É de pouca importância que o consumo ritualístico de cogumelos alucinógenos por grupos indígenas
não seja coextensivo com o fenômeno do muxe. A interseção entre eles aqui deve ser tomada como uma
licença de ficção, como se faz da figura inexistente de Xyzótlan.
239
Sexualidades e identidades culturais
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Enquanto tudo isso poderia certamente ter sido conseguido ambientando a história
em qualquer lugar em um Brasil urbano multifacetado, e enquanto o “deslocamento”
de Freitas para o México provavelmente tem pouco a ver com a educação de leitores
brasileiros com relação a perspectivas feministas e queer no país, ele – o romance –
certamente satisfaz um interesse brasileiro em ser internacionalista e globalizado em
tantas e variadas maneiras quanto possível.
Fábio Moon e Gabriela Bá, mesmo quando escrevem em inglês diretamente para
publicação nos Estados Unidos, ainda continuam atados, em seu trabalho em conjunto, a
temas brasileiros (mesmo que ambos tenham trabalhado com outras pessoas em projetos
que não são de temática brasileira). Freitas permanece ancorada no idioma português
(embora em Guadalupe use um pouco de espanhol), mas ela evidentemente acha muito
importante para a sua própria consciência feminista e queer se conectar com histórias
em outros lugares da América Latina.
240
David William Foster
PARTE III
241
“Espanhol queer”,
“português queer”:
notas para
investigação
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253 Inglês queer já é uma área de pesquisa consolidada dentro dos estudos de língua inglesa. Veja
LEAP e BOELLSTORFF (2004); LÍVIA e HALL (1997). Considero a dificuldade em se estudar tais
questões no espanhol e no português como um exemplo típico de manifestação de homofobia, conforme
FOSTER (2010). Consulte RODRÍGUEZ (2008) para um levantamento inicial de registros lexicais do
espanhol queer. Peña (2004) trabalha com americanos-cubanos que, em sua maioria, falam espanhol. O
livro Queer French, de PROVENCHER (2007), aborda o queer dentro dos limites da fala masculina, e
não da língua francesa em si, mas há algumas explicações linguísticas úteis nesse sentido. O estudo de
KULAWICK (2009) sobre o “travestismo linguístico” é um excelente manual para se entender a relação
entre a língua e a heteronormatividade, e a maneira pela qual escritores espanhóis consagrados – como
Severo Sarduy – teriam trabalhado a língua como estratégia de representar sua transgressão.
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de algo tão inocente como a canção infantil “Arroz com leche”: “Arroz con leche / me
quiero casar, con una señorita de San Nicolás, / que sepa coser, que sepa bordar, / que
sepa abrir la puerta para ir a jugar. / Yo soy la viudita, del barrio del frente / me quiero
casar y no sé con quién. / Con esa sí, con esa no, con esa señorita me caso yo”254.
Não é preciso rastrear as origens de “Arroz con leche” em direção a alguma forma
ancestral de fala gay para se entender que, aí, há algo surpreendentemente errado em
relação à distribuição discursiva de marcadores de gênero. E tal rompimento pode
conduzir a todo um conjunto de observações a respeito das identidades – ou, pelo menos,
dos possíveis desejos eróticos de sujeitos que estrategicamente os possuem – que se
revezam na prática de intercâmbio linguístico. Pesquisas sobre discursos codificados,
comuns ou restritos a certos domínios e ocasiões, como bares e clubes, que podem
permitir a abordagem de identidades não convencionais (como as não heteronormativas),
são essencialmente sensíveis às transgressões das categorias linguísticas, quer sobre o
nível da morfossintaxe, quer sobre o nível de unidades linguísticas sutis ou de vetores
estilísticos.
Com o crescente aumento daquilo que até certo ponto é sinedoquicamente/
metonimicamente denominado direitos gays no Brasil e em certos países latino-
americanos, e com o aumento geométrico de publicações e atividades culturais sobre o
tema, a análise linguística da ainda codificada, mas não velada, expressão queer se torna
quase que uma necessidade em termos de interpretação. Em algum lugar ao longo do
espectro de resistência à homofobia, à total autodeclaração da não heteronormatividade,
há muita produção que merece ser analisada. Retrospectivamente, está-se relendo
Borges255 com sua desconstrução (queer) da epistemologia e da metafísica256; a relutante
lésbica e escritora infantil María Elena Walsh; o antropólogo cultural Mário de Andrade,
254 Tradução livre: “Arroz com leite / quero me casar, com uma senhora de San Nicolás / que saiba cos-
turar, que saiba bordar / que saiba abrir a porta para ir brincar. / Eu sou a viuvinha, do bairro da frente / eu
quero me casar, mas não acho com quem. / Com essa sim, com essa não, com essa senhora me caso eu”.
255 BALDERSTON (1995) escreve sobre o “pânico homossexual” de Borges.
256 A propósito da dimensão queer nos escritos de Borges, cf. ALTAMIRANDA (1991).
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259 Cf. os trabalhos de LAKOFF (2000); CAMERON (1985; 1998); COATES (2004).
260 Sobre o sexismo na língua espanhola, veja LOZANO (1995); PARDO FERNÁNDEZ (1992);
VILLASEÑOR ROCA (1992). Também importante é a análise específica da língua masculinista como
algo que vai além de meras normas neutras; cf. NEFF VAN AERTSELAER (1997). Eu não encontrei
nenhum estudo linguisticamente confiável sobre o sexismo na língua portuguesa. Entretanto, o estudo de
PIRES (1999, p. 260) sobre o discurso feminista resistente faz uso de algo que se pode chamar de uma
premissa queer muito pertinente: “[u]ma postura de assujeitamento tende a deixar as coisas como estão,
pois deduz que o ser humano e todas as coisas existem por força da natureza. Em oposição, uma postura
crítica resiste à naturalização e concebe o indivíduo e o mundo como o resultado de ações e práticas so-
ciais que fundam as culturas e as diferenças existentes entre os seres humanos”.
261 O sistema não se constitui sem suas surpresas contrárias, tais como certos substantivos que são sem-
pre femininos, a despeito de seu referente no mundo real – víctima é o exemplo mais comum. Ou quando
o português apresenta a forma plural de muitas palavras, geralmente não registradas nos manuais de
língua: avô + avô = avôs; avô + avó = avós (o mesmo acontece em espanhol: los abuelas). O lexema está
incluído em uma lista de “palavras só usadas no plural” (como antepassados) e glosadas por BECHARA
(2006, p. 125), sem qualquer comentário sobre sua relação com avô e avó.
262 É importante considerar a ambivalência nas chamadas culturas berdaches encontradas na América
Latina, em que dois sexos biológicos aparentes (uma distinção rastreada na falha em se levar em conta
qualquer polimorfismo sexual, conforme os graus de hermafroditismo ou intersexualidade) interagem
com outros quatro gêneros construídos socialmente, que em inglês podem apenas ser designados por
“she-she” [“ela-ela”], “she-he” [“ela-ele”], “he-he” [“ele-ele”] e “he-she” [“ele-ela”], em que o segun-
do termo refere-se à essência biológica percebida, e o primeiro à identidade de gênero socialmente
construída.
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263 MORAGA, Chérrie. Queer Aztlán: The Re-Formation of the Chicano Tribe. In: ______. The Last
Generation: Prose and Poetry. 1993. p. 145-174.
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necessariamente se constrói a partir de elementos da cultura chicana que são queer, tal
como sua resistência lésbica à supremacia masculina. Para Moraga, tal projeto consiste
num empreendimento sócio-histórico queer contra as pretensões anglo-protestantes de
superioridade gabacho a la raza. Pode-se muito bem investigar os mesmos pontos em
relação às práticas religiosas afro-caribenhas (santería) e afro-brasileiras (macumba,
candomblé), com suas dimensões de espiritualidade transgênera concebidas como
resistência e transgressão às práticas burguesas eurocêntricas (ou américo-cêntricas264,
no caso dos mórmons e dos pentecostalistas), cuja função é, como se diz em português,
“para inglês ver”: uma sociedade decente adequada para os estrangeiros e no exterior265.
Concomitantemente, como mencionei acima, as práticas dos americanos
nativos ou dos primeiros povos, mesmo que não sejam uniformes no continente
americano, demonstram uma continuidade impressionante em termos de fenômenos
que invasores espanhóis e portugueses agruparam sob o pecado da sodomia ou de
métodos semelhantes266. Muitas dessas práticas ainda são encontradas hoje entre os
nativos americanos, embora talvez quase nunca intocadas pelas reações horrorizadas
264 Jen Westmoreland Bouchard (2010, p. 44) observa a atração que o candomblé e a religião Yoruba
Orisha exercem nos homossexuais. Candomblé e homossexualidade também são estudados por
TREVISAN (2002). O antropólogo Luis Mott (2003a) tem escrito extensivamente a respeito do que
ele identifica como cultura gay no Brasil colonial. Além disso, a sua hipótese controversa quanto à
possibilidade de o grande escravo rebelde Zumbi dos Palmares ser gay foi uma cause célèbre quando
ele a formulou em 1990 (MOTT, 2003b, p. 155-163). NASCIMENTO (2007, p. 40-41) discute que a
dominação distorceu os valores culturais Yorubans – os quais teriam sido vistos como “gerados” (isto é,
queer) pelos senhores de escravo – que a Afrocentricidade pode desejar recuperar na cultura brasileira.
MATORY (2005, p. 207) fala sobre “‘homossexuais passivos’ ou o que os adeptos do Candomblé
denominam adés”. SANTOS e GARCIA (2002) usam, em seus ensaios sobre a cultura queer no Brasil,
o termo adé como uma tradução para queer.
265 Uma virada interessante sobre isso diz respeito à forma como o estupro masculino – uma forma par-
ticularmente perversa de prática homoerótica, pelo menos no contexto em que é aplicado – é usado como
uma punição contra escravos errantes. Robert Richmond Ellis (1998) deseja excluir a referência a isso no
livro Autobiografía de un esclavo (1849), de Juan Francisco Manzano. Para ser mais preciso, se alguns
senhores de escravo em suas rotinas abusavam das suas escravas, não há razão para descartar a hipótese
de que alguns homens escravos também eram abusados sexualmente – essas são dimensões sexuais que
fazem parte das diferentes formas de violência, como castigos e torturas.
266 Enquanto MIGNOLO (2005, p. 32) não detalha os efeitos do controle de gênero e da sexualidade
pelos conquistadores espanhóis e portugueses, ele não inclui isso em sua lista sobre “‘colonialidade de
poder’ (isto é, apropriação imperial de terra, exploração de trabalho, e controle de finanças; controle de
autoridade; controle de gênero e sexualidade; e controle de conhecimento e subjetividade)”.
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267 O antropólogo mexicano Guillermo Núñes Noriega (2009) apresenta um catálogo impressionante
de vestígios remanescentes nas sociedades nativo-americanas mexicanas. Do ponto de vista da práxis
social, sua pesquisa sustenta a ideia de que o esforço contra a DST apenas pode ter sucesso quando se
levam em conta amplos sistemas sociossexuais diferentes: “[...] minha posição teórica para o estudo da
sexualidade é a do construtivismo social. Segundo essa abordagem, as concepções, os valores, as práti-
cas, as identidades e as relações sexuais são fatos culturais e diferem de uma cultura para a outra. Nós,
indivíduos, aprendemos e construímos nossa sexualidade no contexto sociocultural em que nascemos e
nos desenvolvemos” (NORIEGA, 2009, p. 11).
268 O vasto registro de práticas eróticas encontrado por Richard Burton e por outros invasores britânicos
nas sociedades nativas constitui um caso paralelo. Parte do conceito do “tornar-se nativo”, na antropo-
logia de significado imperialista, pelo menos para aqueles suficientemente poderosos que puderam fazer
isso com impunidade, provando os frutos proibidos das práticas indígenas da sodomia, como no caso do
Capitão Ronald Merrick, na tetralogia de Paul Scott sobre a ocupação indígena, The Raj Quartet (1966-
75).
269 Observe o que acontece com as leituras em sala de aula ao final do El matadero, de Esteban
Echeverría (ca. 1840), em que a sugestão mais que sutil de estupro anal do Unitário não é nada divertida.
Cf. FOSTER (2002, 2007b) sobre questões relacionadas com ensino da escrita assinalada com elemen-
tos queer. Em “El estúdio de los temas gay en América Latina desde 1980”, David William Foster
(2008) disponibiliza pesquisas em espanhol feitas durante os últimos 25 anos (o vocábulo “gay” do título
foi colocado pelos editores). Fazem falta as pesquisas em português e em espanhol, representadas por
PROVENCHER (2007) e SPURLIN (2000).
270 O lesbianismo de Sor Juana também é um tópico para discussão. O debate proposto por Mary
Elizabeth Ginway (2010) sobre uma tradição de “transgeneridade” na literatura brasileira inicia com a
história “As academias de Sião” (1884), de Machado de Assis.
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271 FOSTER, David William. The Feminization of Social Space in Patrícia Galvão’s Parque industrial.
Brasil/ Brazil. 2005-2006. p. 23-46,
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272 Uma proposição a ser retomada nesse ponto é em relação ao anúncio de Francisco Quevedo sobre
a fumigação da residência de Luis Góngora, que ele comprou só para tocar esse último fora dela, para
livrá-lo da pestilência de seu verso. Tal proposição ganha sua devida atribuição de homofobia com o
reconhecimento de Góngora como um ícone queer da poesia espanhola da Era Dourada: “[...] quedó de
modo / la casa y barrió todo, / hediendo a Polifemos, Estantios, / coturnos tenebrosos y sombríos / y con
tufo tan vil de Soledades, / que para perfumarla / y desengongorarla / de vapores tan crasos / quemó,
como pastillas, Garcilasos; / pues era con tu vaho el aposento / sombra del sol y tósigo del viento”
(PORRAS, 1930, p. 311). Veja DÍAZ-ORTIZ (1999) sobre a dimensão erótica nos escritos de Góngora.
273 Embora o filme de 1988 sobre Galvão, de Norma Benguell, Eternamente Pagu, sugira, bem
discretamente, experiências lésbicas com a pintora Tarsila do Amaral e a cantora Elsie Houston.
274 A majestosa biografia de MOSER (2009) sobre Lispector faz apenas um breve comentário acerca de
alegações de uma identidade lésbica para a escritora (MOSER, 2009, p. 18). Do seu ponto de vista, não
é preciso incluir esse comentário no índex da sua obra.
275 Earl E. Fitz (2001, p. 91-95) refere-se à paixão sexual reprimida dessa história e fala tanto da
homossexualidade quanto do desejo lésbico (cf. p. 172) com referência a outros textos.
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276 MOSER (2009, p. 269) aceita a proposição de que a narradora de A paixão segundo G. H. realmente
tenha comido a barata.
277 Isto é, não a ausência de um discurso coloquial, mas o modo como há algo sempre “não espanhol”
sobre a escrita, algo a que tanto KRISTAL (2002) quanto WAISMAN (2005) dedicaram atenção em
suas reflexões de como, para Borges, a escrita é sempre uma forma de tradução problemática. Há
muitos aspetos da língua, da escrita e do discurso a serem considerados no caso de Borges, e a ideologia
linguística permanece sendo a maior lacuna nas pesquisas concernentes à sua obra.
278 HORAN, Elizabeth Rosa. Gabriela Mistral. In: FOSTER, David William (Ed.). Latin American
Writers on Gay and Lesbian Themes: A Bio-critical Sourcebook. 1991. p. 221-235.
279 FIOL-MATTA, Licia. A Queer Mother for the Nation: The State and Gabriela Mistral. 2002.
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Sexualidades e identidades culturais
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todas as imagens açucaradas por muito tempo oficialmente associadas a ela. A morte
de Carlos Monsiváis, em julho de 2010, embora de importância menos categórica, por
ele não ter sido agraciado com o Prêmio Nobel o qual o teria tornado incontestável,
deu ao México algo como se fosse um pai queer para a nação. Assim, embora trate do
homoerotismo e da sexualidade no México de forma dispersa, tornou-se uma tarefa
urgente reunir a sua extensa obra, cuja escrita como um todo exige o signo do queer
para ser lida280.
Este capítulo dedicou atenção a uma grande variedade de perspectivas e escritos
culturais. Em síntese, gostaria de esclarecer que, por mais interessante que a vida de um
escritor possa ser, sua sexualidade – identitária, declarada na prática por insinuações ou
atribuições – não é um traço determinante da sua escrita (nem mesmo qualquer outra
característica biográfica pode falaciosamente ser tomada como motivo de criação). A
análise da língua portuguesa e espanhola sob a perspectiva queer deve levar em conta
complexas questões do contexto sociocultural e da criação linguística. Ela deve também
estar em sintonia com a presença de prioridades hegemônicas e heteronormativas, bem
como com o grau com que um escritor pode desenvolver uma voz transgressora e
desconstrutivista relativa a si281. Questionar os pressupostos dessas prioridades, como
as impostas sobre escritores de tradição acadêmica e/ou protocolos críticos, deve
280 Um tópico que Linda Egan (2001) sabiamente evita em seus excelentes estudos – o primeiro dessa
natureza – sobre os escritos de Monsiváis.
281 Um tópico de importância fundamental diz respeito ao sistema complexo de nomes no espanhol e
no português, tanto em relação ao primeiro quanto em relação ao último nome, e a Lei do Pai nesses
modelos. Para uma observação literária chave nesse sentido, veja o comentário sobre o nome da madame
do bordel (gay?) que aparece no conto “Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu: “Isadora, queridinho.
Nunca ouviu falar? Isadora Duncan, a bailarina. Uma nulher finíssima, ma-ravilhosa, a minha ídola,
eu adoro tanto que adotei o nome. Já pensou se eu usasse o Valdemir que minha mãezinha me deu?
Coitadinha, tão bem-intencionada. Mas o nome, ai, o nome. Coisa mais cafona. Aí mudei. Se Deus quis-
er, um dia ainda vou morrer estrangulada pela minha própria echarpe. Tem coisa mais chique?” (ABREU,
2007, p. 235). Note que Isadora fala de seu nome como sendo assinado por sua mãe, mas, é claro, na
melhor tradição lacaniana, a mãe é o maior agente autoritário da Lei do Pai.
255
Sexualidades e identidades culturais
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ser o lugar de onde se pode começar uma crítica queer282. Talvez possa não existir
qualquer fenômeno institucional como o “Português queer” ou o “Espanhol queer”
em contraposição às normas heterossexistas. Provavelmente seja mais o processo de
uma consciência particular, e talvez, para a literatura, possa acabar como os mapas
dos cartógrafos na história homônima de Borges, uma vez que há toda uma razão
para acreditar que a prática da literatura – ou mais amplamente a produção cultural –
sempre será transgressora ou descontrutivista. Isso permanece sendo visto na medida
em que examinamos textos, num giro de alargamento, que se recusam a estar em
conformidade com a vida, sexual ou qualquer que seja, e são inevitavelmente pensadas
para inquestionavelmente ser.
Considerando autores individuais, há um número de temas abrangentes
concernentes à linguagem que precisa ser interrogado. Pensa-se, por exemplo, em
convenções discursivas que afetam hierarquias de poder, frequentemente marcadas por
uma visão heterossexista de gênero, tais como a infantilização da mulher através do
uso de formas familiares de endereçamento, em termos de uso pronominal ou formas
de complemento verbal, no caso do português, em que a distinção entre o formal e o
familiar não é sistematicamente estruturada como no espanhol. (Deve-se notar também
que o espanhol, ao menos na área Andina, mantém uma divisão tripartida entre o uso
formal usted, o familiar tú ou vos, e o íntimo usted, o que explica o uso desse último
para crianças, animais domésticos e outros). A fala gay no espanhol, por exemplo, é
transgressiva em ambos os usos de marcadores femininos por parte do sujeito da fala,
exceto o uso de tú ou vos, sem ter em conta a estratificação convencional de respeito ao
se referir ao outro. Tais procedimentos discursivos também podem ser considerados em
termos de transgressões lexicais e estilísticas, para não mencionar a linguagem corporal
e proxêmica. Embora eu esteja ansioso em não recorrer a generalizações da fala gay
282 Um estudo recente que considero tremendamente útil diz respeito ao modelo de desconstrução de
ST. PIERRE (2010) da presumível masculinidade de grau zero da legítima prosa masculina de Ernest
Hemingway. Deve-se começar pelo discurso masculinista do boom hispano-americano (por exemplo,
Carlos Fluentes, Mario Vargas Llosas) ou do romance regionalista e social-realista brasileiro (por
exemplo, Erico Verissimo, Graciliano Ramos, José Lins do Rego). Consulte FEAL (2000) a respeito dos
escritos queer de Julio Cortázar. Da perspectiva do teatro, cf. FOSTER (2004b).
256
Sexualidades e identidades culturais
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283 Ver WILLIAMS (1986). Há também extensivos comentários sobre o berdache americano nativo em
ensaios do livro Queer Indigenous Studies (DRISKILL, 2011).
284 CHIÑAS, Beverly N. Isthmus Zapotec: Attitudes Toward Sex and Gender Anomalies. In: MURRAY,
Stephen O. (Ed.). Latin American Homosexualities. 1995. p. 293-302. Cf. ainda MIAMO BORRUSO,
Marianela. Hombre, mujer y muxé en el Istmo de Tehuantepec. 2002.
257
Sexualidades e identidades culturais
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fêmea biológica285, mas pode-se imaginar a dor de cabeça que isso gera para linguistas
espanhóis e portugueses primitivos na sua tentativa de acomodar esse fenômeno nas
suas respectivas línguas. O recurso à noção inquisicional do sodomita é uma marca de
sua confusão epistemológica. Os conquistadores da Península, portanto, não entendem,
ignoram ou acomodam (inicialmente com violência linguística e, depois, com a violência
das armas – ou dos cães, na famosa imagem de Francisco Balboa jogando seus mastins
famintos sobre os sodomitas) a inconveniência estrutural desse sistema de gênero em
quatro partes, e missionários protestantes que vieram em seguida, nos séculos XIX
e XX, fizeram muitas vezes o mesmo. Embora, a seu crédito, eles não tenham tido
aquilo que viam como gênero renegado que alimentaria os cães286. A cristianização
dos povos indígenas fez desaparecer muitos casos históricos acerca dos berdaches,
embora permaneçam resquícios que, no caso de Oaxaca, podem se cruzar, de forma
complexa e confusa, com uma agenda lesbigay pós-moderna. Ou seja, o “muxé” pode
ser visto menos como um dos quatro gêneros possíveis e mais como alguém engajado
no transgenerismo dentro do binarismo de gênero espanhol ou português.
285 Cf. JACOBS, Sue-Ellen; THOMAS, Wesley; LANG, Sabine (Eds.). Two-Spirit People: Native
American Gender Identity, Sexuality, and Spirituality. 1997.
286 Osvaldo Bazán (2004), na Parte I de seu livro, investiga a questão dos conquistadores e dos sodomitas.
258
O estudo dos temas
gays na América Latina
a partir de 1980
Indubitavelmente, a década de 1980 foi importante para os direitos LGBT287/
homoeróticos/homossexuais na América Latina288. É o momento em que as sociedades
que viveram tiranias neofascistas com governos militares masculinistas particularmente
comprometidos na perseguição e na opressão de mulheres e de minorias sexuais (e, em
alguns casos, de judeus) começaram a se abrir à democracia constitucional: Argentina
e Brasil, em meados da década de 1980; Chile e Uruguai, em princípios da década de
1990; e também poderíamos agregar à lista o Paraguai, ainda que a Ditadura Militar que
suportou naquela mesma época tem sido mais personalista do que neofascista289. Um
momento histórico como esse implica toda uma série de disposições, códigos legais,
direitos constitucionais e formas de tolerância social que permitem a exposição da
cultura homossexual em espaços públicos, a sua generosa representação na produção
cultural e a sua legitimação graças aos estudos acadêmicos e teóricos290.
Este capítulo está centrado nos estudos acadêmicos e teóricos relevantes para
as culturas homossexuais que datam a partir dos anos 1980, para descobrir as linhas
de força que emergiram nos últimos 25 anos de atividade cultural e intelectual. Serão
1 Definições em discussão
291 O autor utiliza o termo “masculinistas”, optei aí traduzi-lo por “masculinidades” [N. T.].
292 Ainda que se queiram incluir referências a temas brasileiros, não vou tratar especificamente das
questões terminológicas com referência ao português: homossexual, gay, puto e viado (o autor escreve
“veado” [N. T.]) são aproximadamente equivalentes a homosexual, gay, puto e maricón, em espanhol.
293 Cf. MOTT, Luiz. Crônicas de um gay assumido. 2003a.
294 Cf. ACEVEDO, Zelmar. Homosexualidad: hacia la destrucción de los mitos. 1985.
295 Cf. MONSIVÁIS (1995) e IRWIN (2003).
260
Sexualidades e identidades culturais
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296 Note-se que travesti e pederasta, além de seu significado “particular”, tendem a ser usados como
termos sinônimos negativos de homossexual, em parte através do processo metonímico irracional, de
onde se supõe que um homossexual, por definição, deve ser um travesti e um pederasta ao mesmo tempo
(como foi comum, numa época, nos Estados Unidos e na América Latina, relacionar ser homossexual
com ser comunista).
297 De gai savoir [N. T.]. Uma das primeiras publicações sobre tradições gay na América Latina
(MURRAY, Stephen O. Male Homosexuality in Central and South America. 1987) levou estampada a
legenda “Gai Saber Monograph”; esta publicação contém um apêndice orientado a reunir um léxico gay
em espanhol e em português.
298 Cf. JOCKL, Alejandro. Ahora, los gay. 1984.
261
Sexualidades e identidades culturais
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a postura ideológica que os situa no universo dos termos de uma identidade inclusiva,
seja ela religiosa, política ou sexual (entre outras possíveis, seguramente). A relevância
do trabalho de Guillermo Núñez Noriega299, em Sonora, será comentada mais abaixo;
basta dizer, por ora, que é parte de uma postura importante pela qual se identificam atos
circunstanciais (nesse caso, circunstância sexual) em vez de identidades patológicas,
ativistas ou subjetivas.
Essa categoria é também conceitualmente importante para situar esses estudos
nos quais o princípio regente – especialmente quando antecede a criação do termo
homossexual e a organização de identidades gay – envolve homens aos quais se
atribuem atos sexuais com outros homens ou homens em que se percebe que poderão
vir a participar de atos sexuais com outros homens; esse último no caso dos chamados
afeminados que comumente, se supõe, buscam atos sexuais, como atores sociossexuais,
como mulheres, e (exitosamente ou não) rotineiramente ou de outra maneira, em fantasia
ou em realidade, com homens heterossexuais. São, sem dúvida alguma, homens a que
se designa o termo marica (há um sem número de sinônimos sucedâneos) na cultura
hispânica300. O primordial aqui é não equiparar, nem necessária nem automaticamente,
o marica ao homossexual institucionalizado ou ao gay ativista e resolvido a assumir
uma identidade.
Há uma inquietação no que diz respeito ao uso do termo queer que desejo destacar.
Frequentemente rechaçado como uma acepção importada do inglês (e como as palavras
tomadas do inglês foram em outras circunstâncias problemáticas no espanhol latino-
americano contemporâneo) tem-se usado, tanto no espanhol quanto no inglês, como
sinônimo de homossexual (porque transcende às ressonâncias médico-legais dessa
última) e também de gay (porque transcende a política de movimento ativista dessa
última). Porém, o que acontece com a importante questão teórica de distinguir entre
299 NÚÑEZ NORIEGA, Guillermo. “¿Quiénes son los HSH?”: la otra realidad homoerótica y la lucha
contra el sida. Revista de Psicología Política. (No prelo). Ver ainda NÚÑEZ NORIEGA, Guillermo.
Sexo entre varones: poder y resistencia en el campo sexual. 1999.
300 Proponho, ao invés de apenas pensar hispana, por se estar analisando América Latina, pensar
“hispano-americana” [N. T.].
262
Sexualidades e identidades culturais
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301 Como veremos mais adiante, a vital importância dos trabalhos de José Quiroga (2000) e de
José Esteban Muñoz (1999) é demonstrar a queerness (nesse último sentido) dos exemplos sociais e
produções culturais majoritárias que eles analisam, e não somente para demarcar e defender a uma
cultura minoritária homossexual ou gay.
302 DOTY, Alexander. Making Things Perfectly Queer: Interpreting Mass Culture. 1993.
303 ALZATE, Gáston. Nota a Alexander Doty, “¿Qué és lo que más produce el queerness?”. Debate
Feminista. 1997.
304 Chamo a atenção à possibilidade de pensar esse termo “hispana” como “hispano-americana”, ou
mesmo íbero-americana [N.T.]. A tradução de Alzate aparece em um exemplar da revista mexicana
Debate Feminista com o título Raras y rarezas.
305 MIRA, Alberto. Para entendernos: diccionario de cultura homosexual, gay y lésbica. 1999.
263
Sexualidades e identidades culturais
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que utiliza no subtítulo, há uma explicação de queer em que o autor explora seus diversos
usos, porém com especial ênfase em suas dimensões teóricas306.
306 No meu livro Produccion cultural e identidades homoeróticas: teoría y aplicaciones (1999), tentei
sintetizar, em espanhol, muito do que foi escrito sobre o assunto no âmbito acadêmico norte-americano. A
importância dessa monografia não reside tanto na exposição que faço das teorias pertinentes, mas no fato
de que a sua publicação foi patrocinada pelo Programa de Identidades da Facultad de Filosofía y Letras
de la Universidad de Costa Rica, que, naquele momento, estava especificamente interessado em incluir
as sexualidades queer sob sua área de competência. Denilson Lopes, que fez estudos de pós-graduação
nos Estados Unidos e no Canadá, incorpora muito desse conteúdo acadêmico nos estudos brasileiros em
seus ensaios no livro O homem que amava rapazes e outros ensaios (2002).
307 RICH, Adrienne. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence. In: ______. Blood, Bread,
and Poetry: Selected Prose (1979-1985). 1986.
308 MATAMORO, Blas. Rubén Darío. 2002. Cf. ainda a análise do seu trabalho em BAZÁN, Osvaldo.
Historia de la homosexualidad en la Argentina: de la conquista de América al siglo XXI. 2004. p. 326-
29 e passim.
264
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
309 Grande parte dessa linha acadêmica se encontra nos trabalhos de BERGMANN e SMITH (1995),
BLACKMORE e HUTCHESON (1999) e MOLLOY e IRWIN (1998). Os três livros constituem
importantes foros para investigação sobre temas queer em curso.
310 OROPESA (2003) cita uma comunicação pessoal de Frank Dauster, um dos principais acadêmicos
estudiosos dos Contemporâneos, referindo-se a esse tema (p. 79).
311 QUIROGA, José. Tropics of Desire: Interventions from Queer Latino America. 2000.
265
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
312 Idem. Ibidem. p. 3. “The interventions in this book colide with identity narratives deployed in
the United States. The book also challenges the sense of unproblematized visibility created in those
narratives”.
313 GORBATO, Viviana. Fruta prohibida. Un recorrido por lugares, costumbres, estilo, historias,
testimonios y anécdotas de una sexualidad diferente: la cara oculta de la Argentina gay. 1999.
314 RAPISARDI, Flávio; MODARELLI, Alejandro. Fiestas, baños y exilios: los gays porteños en la
última dictadura. 2001.
315 GORBATO, Viviana. Noche tras noche. 1997.
266
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
3 Estudos históricos
316 MIRA, Alberto. De Sodoma a Chueca: una historia cultural de la homosexualidad en España en el
siglo XX. 2004.
Concentrei-me na importância da publicação de temas queer na Espanha, em termos dos trabalhos
literários e teóricos originais, assim como de traduções de textos estrangeiros, que constituem um pro-
grama de publicações que um país latino-americano não se pode permitir, sequer o editorialmente expan-
sivo Brasil. Muitas dessas obras chegam à América Latina e influenciam nos debates que ocorrem ali,
ainda que se deva ser cauteloso para não exagerar no grau de influência (cf. FOSTER, 2007a).
317 Latin American Writers on Gay and Lesbian Themes: a Bio-Critical Sourcebook (FOSTER, 1991),
embora não tenha sido organizado por um latino-americano, contém muitos registros preparados por
acadêmicos latino-americanos. Ver também meu livro El ambiente nuestro: Chicano/ Latino Homoerotic
Writing (FOSTER, 2005). A primeira monografia dedicada por completo a um escritor gay chicano é o
excelente estudo de Frederick Luis Aldama (2005) sobre Arturo Islas.
318 BAZÁN, Osvaldo. Historia de la homosexualidad en la Argentina: de la conquista de América al
siglo XXI. 2004.
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Sexualidades e identidades culturais
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ofereça excelente documentação histórica (mesmo que nem sempre consciente de que
algumas não são fontes argentinas), seu uso do termo homossexualidade está totalmente
desconectado da história e não condiz com a terminologia, por mais precária e com
frequência arbitrária que seja, do seu material histórico. Aqui é onde o conceito de
homens que praticam sexo com homens resulta vantajoso, já que o fio unificador comum
das ideias sobre termos como o sodomita pré-moderno, o moderno homossexual médico-
jurídico, e o ativista gay (um importante movimento na Argentina, especialmente com
referência à oposição à neofascista e “homofóbica” tirania), envolva sujeitos sociais já
vistos, estejam eles desejando praticar sexo ou fazendo-o realmente com pessoas do seu
mesmo sexo, independentemente dos componentes motivacionais dos seus atos. Com
efeito, Bazán fecha seu estudo com o fervente desejo de que essas categorias deixem de
ser socialmente relevantes: “[e] algum dia, finalmente, se haverá de saber a verdade tão
zelosamente guardada: a homossexualidade não é nada”319.
A monografia de Gabriel Giorgi, Sueños de exterminio: homosexualidad y
representación literaria en la literatura argentina contemporánea320, que é menos conhecida
justamente por se tratar de uma monografia acadêmica, tem, todavia, a significativa
importância, diferentemente do trabalho de Bazán, de destacar não somente autores
que se hão autoidentificado como homossexuais, como também possui o mérito de
incluir tanto o rigoroso esquerdista tradicional (e, em consequência, programaticamente
homofóbico) David Viñas, como o aristocrata Adolfo Bioy Casares, cuja vida privada
está, em consequência, presumivelmente, para além de qualquer censura (por extensão,
quem Giorgi não menciona, é o também aristocrata Manuel Mujica Láinez, cuja vida
privada homossexual foi, por assim dizer, um livro aberto). Porém, o que resulta útil da
análise de Giorgi é que ele se centra na questão de como foi representada, nos textos
literários argentinos, a homossexualidade como ameaça à identidade nacional, tanto
para a esquerda, quanto para a direita, alegando a eliminação dos homossexuais como
268
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
321 Francisco Manzo-Robledo (2001) especificamente escreve sobre a homofobia em dois escritores
mexicanos que não são gays. É importante destacar que a monografia de Manzo e o trabalho de Emílio
Bejel, Gay Cuban Nation (2001), são os únicos dois livros escritos por autores latino-americanos que
figuram na lista da OCLA FirstSearch WorldCat sob o intitulado Homophobia in Literature.
322 BAJEL, Emilio. Gay Cuban Nation. 2001.
323 PARKER, Richard G. Bodies, Pleasures, and Passions: Sexual Culture in Contemporary Brazil.
1990. Cf. ainda PARKER, Richard G. Beneath the Equator: Cultures of Desire, Male Homosexuality,
and Emerging Gay Communities in Brazil. 1998.
324 SALESSI, Jorge. Médicos maleantes y maricas: higiene, criminologia y homosexualidad em la
construcción de la nación argentina (Buenos Aires: 1871-1914). 1995.
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Sexualidades e identidades culturais
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café boêmio do México a partir da segunda metade do século XIX até a atualidade325,
ao analisar o uso de conceitos tão problemáticos como “antro”, “boemia”, “baixos
fundos”, “o maldito” e “o perverso”, gera uma rede finamente tecida que captura
uma impressionante coleção de flora e fauna sexual, entre as quais figuram pessoas
que constituem as diversas caras da homossexualidade, entre bons vivants, alcóolicos,
viciados em drogas, cross-dressers [heterossexuais com forte elemento do sexo oposto
em seu interior] de diversas crenças, mulheres bravas, todos eles tanto clientes quanto
provedores do que a sociedade decente do Porfiriato bem como a dos sóbrios partidários
da classe média mexicana pós-revolucionária qualificaram como o inaceitavelmente
marginal326.
Com frequência, tenho me queixado, nas resenhas que tenho escrito sobre estudos
culturais ou teorias latino-americanas, de que o gênero esteja ausente como categoria a
ser questionada, teorizada e desconstruída – desestruturada. Não é tão somente porque
a bibliografia sobre o assunto tenha sido escrita em sua grande parte por homens, senão
porque esses acadêmicos são avessos à ideia de incluir o gênero em suas análises. Com
certeza, isso não se deve ao fato de as mulheres não serem bem recebidas nesse âmbito:
presume-se que a maioria das pesquisadoras acadêmicas continua limitando seu centro
de atenção às diversas formas de estudos feministas (senão de maneira independente,
pelo menos de forma separada) e é provável que elas estejam procurando se desvincular
da proposta de que muitos temas incluídos nos estudos culturais investigados por seus
colegas homens estejam englobados no feminismo. Embora me preocupe o fato de não
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Sexualidades e identidades culturais
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327 RICHARD, Nelly. Masculino/ feminino: practicas de la diferencia y cultura democrática. 1993.
328 “Mais que escrita feminina, conviria então falar – qualquer que seja o gênero sexual do sujeito
biográfico que assina o texto – de uma feminização da escrita: feminização que se produz a cada vez
que uma poética ou uma erótica do século transbordem o marco de retenção/contenção da significação
masculina dos seus excedentes rebeldes (corpo, libido, gozo, heterogeneidade, multiplicidade, etc.) para
desregular a tese do discurso majoritário” (RICHARD, 1993, p. 35).
271
Sexualidades e identidades culturais
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tem servido para naturalizá-lo em qualquer conversa que se esteja realizando em espanhol
sobre o tema dos estudos culturais, ao se referir a uma multidão de artistas chilenas que
podem ser examinadas produtivamente em termos de uma estética feminista e de uma
produção cultural revisionista. Esse trabalho de revisão se pode encontrar incrustrado,
especialmente durante o último período da ditadura de Pinochet e os primeiros anos
da transição à democracia, na figura de um travesti, entendido de múltiplas formas. Na
verdade, a seguinte classe de axioma é nada mais, nada menos, que um postulado da
teoria queer.
Embora Richard não utilize diretamente o termo queer (seus tradutores observam
em uma nota que ela poderia tê-lo feito329), na fórmula “masculino/feminino”, que
compõe o título de seu trabalho, a barra vertical “alternativiza” a primazia do primeiro
termo, mas, ao mesmo tempo, sugere retoricamente que há uma espécie de combinação
sinérgica dos dois, algo que acena para uma das premissas básicas da teoria queer.
Uma das modalidades mais importantes dos estudos culturais que afeta os
estudos queer é a teoria das encarnações representadas (performativity), que se baseia
no axioma de que todas as formas de discurso social são representações de regras,
imitando, portanto, um ao outro sem nenhum significado transcendente, quer dizer,
sem nenhum modelo extrassubjetivo ou universal330. A estudiosa estadunidense Judith
Butler, especializada em temas queer, tem exercido enorme influência nesse aspecto331.
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Sexualidades e identidades culturais
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332 GUTMANN, Mathew C. The Meaning of Macho: Being a Man in Mexico City. 1996.
333 IRWIN, Robert McKee. Mexican Masculinities. 2003.
334 Stephen O. Murray, em Latin American Male Homosexualities (1995), embora tenha aderido a um
conceito institucional de identidades masculinas gays, refere-se a um tema apontado com frequência, mas
não que permaneça inexplorado em termos teóricos, como é o das continuidades de práticas homoeróticas
entre as sociedades pré-colombianas e as latino-americanas, com ou sem nada que se iguale aos modernos
conceitos de identidade. Os antropólogos têm estudado, é certo, o que se dá a chamar tradição berdache
nas culturas pré-colombianas (no sudeste dos Estados Unidos e partes dela, pelo menos), mas em que
medida a tradição berdache pode ser a razão das práticas queer contemporâneas permanece sem se
estudar nem comprovar. Cf. o estudo realizado por Alberto Cardín (1994), cujo subtítulo (“Indícios de
homosexualidad entre los exóticos”), entretanto, sugere que sua análise não satisfaz teoricamente. David
F. Greenberg (1988) também trata das culturas norte-americanas (p. 40-48).
335 NÚÑEZ NORIEGA, Guillermo. Sexo entre varones: poder y resistencia en el campo sexual. 1999.
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Sexualidades e identidades culturais
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Guillermo Núñez Noriega, é provavelmente uma das obras mais importantes escritas
por um acadêmico latino-americano sobre questões de masculinidade e homoerotismo.
Núñez Noriega escreve como sociólogo, e, portanto, sua monografia tem um alcance
limitado: centra-se principalmente nas práticas sexuais entre homens no Estado de
Sonora, noroeste do México. A primeira edição desse livro incluía algumas imagens da
cultura pecuarista de Sonora, muito notavelmente um par de botas de vaqueiro, uma vez
que a cultura vaqueira constitui um constante complexo de fetiches para a cultura gay
contemporânea. De acordo com Núñez Noriega, não se pode falar particularmente sobre
uma cultura gay masculina em Sonora, mas sobre uma série de práticas tipicamente
centradas no espaço somente para “homens da cantina”336, que inclui homens que
fazem sexo com homens, mas que não se identificam como gays e para quem o termo
homossexual seria claramente inadequado.
Uma vez que o México, assim como a maior parte da América Latina, estigmatiza
o afeminado (razão pela qual Manrique recalca a necessidade de construir o marica
como o paradigma do afeminado), os homens que se comportam como “verdadeiros
homens” raramente sentem sua sexualidade ameaçada, e são relativamente livres
para participar em inadvertidas práticas homoeróticas privadas e, com frequência, em
certa medida, públicas, com outros homens. Em semelhante universo conceitual, a
dicotomia entre gay e heterossexual, homossexual e heterossexual, patriarcal e queer,
resulta essencialmente inoperantes337. A linha de pesquisa que persegue Núñez Noriega,
complementada por apropriadas referências literárias e culturais (como faz Quiroga338),
é, quiçá, um dos veios mais importantes do saber queer nesse momento para os estudos
culturais latino-americanos.
336 As aspas são por conta da tradução, o termo no original em espanhol é hombres de la cantina, e,
mais que cantina em português, mescla como sentido de barzinho, ou algum estabelecimento semelhante.
337 GIRMAN (2004), trabalhando mais anedótica que teoricamente sobre a base de suas experiências
pessoais na América Latina, chega a conclusões similares a respeito dos homens latino-americanos em
geral, brindando algo como uma “continuidade de homens queer” equiparável à famosa “continuidade
lésbica” de Adrienne Rich (1986).
338 QUIROGA, José. Tropics of Desire: Interventions from Queer Latino America. 2000.
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339 TREVISAN, João Silvério. Seis balas num buraco só: a crise do masculino. 1998.
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reservados somente para homens, a maravilhosa contradição pela qual o suposto macho,
ao penetrar outro homem, retém todos os direitos e privilégios da masculinidade e
nunca pode ser visto como alguém que cruzou à homossexualidade, e a forma em que
a homossexualidade masculina em geral deve manter sob vigilância o homoerótico
como se nunca pudesse haver uma continuidade entre eles. 3) O reconhecimento das
formas em que o erotismo de homem-sobre-homem (com ou sem sexo “real”) tem saído
do armário e destroçado, pelo menos no concernente à América Latina, a imagem do
marica como o único homossexual legítimo.
A partir desse último ponto de vista, o mesmo paradigma de masculinismo se torna
desconstruído, convertido em uma séria ameaça para a heteronormatividade binária, que
o marica-como-homossexual essencialmente reforçava. Dado que a cultura massiva ou
popular é onde frequentemente se encontra a ação queer, não surpreende que o trabalho
de Trevisan, tanto seu uso do Carnaval brasileiro quanto sua referência aos esportes, ao
jornalismo, às produções cinematográficas e a outras, seja de primordial importância340.
340 Uma área completa de estudos queer na América Latina abarca os esportes, especialmente o futebol.
Juan José Sebreli (1998) apresentou o tema do homoerotismo na Argentina já há um bom tempo e logo
se dedicou a desenvolver suas opiniões mais amplamente em La era del fútbol. Serbeli considera que a
homossociabilidade do esporte cria a oportunidade para veladas manifestações de homoerotismo, ainda
que não seja o único a atribuir ao futebol ou a outros esportes a responsabilidade por esse aspecto.
Seu colega argentino Eduardo P. Archetti (2003) considera, além do futebol, o tango e o polo. Se, para
Archetti, o futebol é um dos lugares onde os meninos argentinos aprendem a ser homens, também é onde
aprendem as regras da homofobia. Osvaldo Bazán (2004) também estuda os motivos homossexuais no
futebol argentino (p. 433-434).
341 MANRIQUE, Jaime. Eminent Maricones: Arenas, Lorca, Puig, and Me. 1999.
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342 Para se realizar um programa de estudos literários queer estadunidenses latinos, cf. o ensaio de
Manuel de Jesús Hernández-G. (1999). O livro no qual se inclui o ensaio de Hernández-G. contém
muitos trabalhos importantes escritos por acadêmicos latinos e latino-americanos que pesquisam nos
Estados Unidos as culturas queer latinas e latino-americanas.
343 A análise do livro de Jaime Manrique (1999) se baseia no capítulo sobre Eminent Maricones que
aparece no meu trabalho El ambiente nuestro: Chicano/ Latino Homoerotic Writing, cf. FOSTER (2005).
344 MOTT, Luiz. “Era Zumbi homossexual?”. In: ______. Crônicas de um gay assumido. 2003b. p.
155-159.
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278
O recente cinema queer
latino-americano
345 Assim como a palavra gay, queer é de origem inglesa. O significado original corresponde a esquisito,
ou estranho, mas o termo é também usado como gíria no sentido de bicha, maricas ou veado. A palavra
tem sido adotada pela comunidade LGBT no Brasil como uma alternativa aos substantivos e adjetivos
portugueses associados ao grupo, carregados de valor. Desse modo, na tradução optou-se por manter o
anglicismo queer (N. T.).
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compuseram, recordações dos cinco que ainda estão vivos, de outros que estiveram
envolvidos com vários aspectos da história e/ou com vários membros do grupo, e,
finalmente, declarações que procuram caracterizar o impacto revolucionário que os Dzi
Croquettes tiveram na cultura brasileira. De particular importância é a maneira como
o filme de Issa contribui para a contínua reconstrução da cultura brasileira durante o
período da Ditadura Militar (1964-1985) e a criação de um registro cultural baseado na
continuidade entre períodos institucionais ao mesmo tempo em que recupera importantes
rupturas. Além disso, os Dzi Croquettes fazem parte não somente de uma tradição mais
ampla de cultura transgressiva no Brasil, mas especificamente de uma dimensão queer
que é fundamental para o momento que o Brasil atravessa em termos socioculturais, em
particular nos contextos urbanos.
O nome do grupo se refere ao fato de que todos os 13 membros projetavam uma
forte persona masculina. Essa não era uma trupe engraçadinha de travestis com shows
elaborados para uma audiência de turistas interessados em um joguinho apimentado de
gêneros sexuais. Como diz um dos empresários que trabalharam com o grupo, ninguém
tinha interesse em ser mulher – isto é, transgenerismo ou transexualidade não estavam
na origem dos trabalhos. Ao contrário, eles estavam interessados primeiramente no
questionamento das convenções de gênero associadas a um suposto Brasil decente,
cuja dominação era particularmente reforçada pela masculinidade do regime militar,
com sua ênfase na hipermasculinidade e em ideologias patriarcais. A avacalhação dos
gêneros nos Dzi Croquettes (não há outra palavra para o que eles faziam) ridiculariza
as convenções, de tal maneira que a aparente superfície grotesca de suas performances
enfatiza o que há de mais grotesco na rígida natureza das categorias sexuais. Isso é
resumido na afirmação repetida frequentemente no documentário, tanto em imagens
de arquivo de apresentações do grupo quanto em entrevistas e narrações, de que eles
não eram “nem homens nem mulheres, mas apenas pessoas”, incluindo dentro de uma
mesma realidade pragmática tanto a pessoa que fala quanto a pessoa para quem se fala
– isto é, o espectador da performance.
Essa abolição das diferenças entre nós, artistas queer, e você, a audiência
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Sexualidades e identidades culturais
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privilegiada (entre os quais alguns que podem ter vindo para ver macacos do zoológico
se exibindo no palco), é um princípio fundamental do discurso nos textos das
performances dos Dzi Croquettes. E, claro, é também um princípio fundamental no
discurso do documentário sem entender que o público doméstico do filme é também
parte da performance. O risco que os Dzi Croquettes correram, com a censura brasileira
e portuguesa nos anos 1970, os riscos que eles correram com os próprios corpos na
criação de personas artísticas (riscos que incluíram aprisionamentos, deterioração física
e morte precoce) e, fundamentalmente, os riscos que correram na criação de números
que público e críticos da época acharam difíceis de categorizar, eram todos parte da
desobediência a categorias culturais fossilizadas, expressões artísticas autorizadas, e
subjetividades sociais impostas violentamente. Se a ditadura exercitou a violência no
jogo entre o que era permitido e o que era banido, os números dos Dzi Croquettes seriam
atos simbolicamente violentos de desobediência criados para romper uma complacência
cultural. No final, a trupe se apresentou tanto – talvez até um pouco mais – no exterior
quanto no Brasil (eles atuaram em Lisboa, Paris, Londres, mas nunca em Nova Iorque,
apesar de o líder do grupo, Lennie Dale, ter vindo da Broadway e de terem o apoio de
Liza Minelli). Porém, como muito da cultura latino-americana, o sucesso de crítica no
exterior legitimou-se na cultura brasileira.
Há, é claro, um imenso tom nostálgico no documentário, mas não porque Issa
se lembre dos “pequenos palhaços” de sua infância, sem questionar o quão importante
são as memórias para ela, mas sim porque, em termos de história da arte brasileira, os
Dzi Croquettes surgiram e acabaram muito rápido. No final dos anos 1970, o grupo
se fragmentou significativamente. Quatro foram vítimas precoces da AIDS (incluindo
Dale), enquanto outro morreu de aneurisma; três foram assassinados em circunstâncias
nunca explicadas, e os cinco restantes seguiram outras carreiras, apenas alguns ainda
atuando. O consenso que a estrutura do filme se dispõe a confirmar é o de que o grupo
forneceu um efetivo contradiscurso à censura, deu voz a novas maneiras de se construir a
sexualidade entre os brasileiros, e providenciou elementos discursivos que se tornariam
integrantes do movimento gay e do desenvolvimento da cultura queer no Brasil. Quase
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285
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de seus personagens. Tanto mais não seja, La Mission vale pelo vigoroso retrato da vida
contemporânea da classe trabalhadora chicana.
Mas o filme é muito mais. Complexamente estruturado e sensivelmente organizado,
La Mission não oferece respostas ou soluções simples, não tem final feliz barato, e não
se acanha na tarefa de contar uma história importante de forma precisa. De fato, o filme
enfrenta muitos riscos, como o duvidoso relacionamento, às vezes profundamente erótico,
entre Che Rivera e sua vizinha afro-americana Lena (interpretada brilhantemente por
Erika Alexander), ou o envolvimento romântico do filho Jesse com um norte-americano
branco (Max Rosenak), que fornece rápidas, porém contrastantes, imagens da cultura
gay da alta classe branca de São Francisco e do distrito Castro (predominantemente
branco). Tal comparação não está livre de problemas ideológicos, mas Peter Bratt a
usa para mostrar o amplo espectro de questões violentas que deseja abordar no filme,
questões maiores do que aqueles particulares ao pequeno microcosmo chicano.
Uma das decisões mais inteligentes do filme envolve a escolha dos nomes dos
dois personagens principais. O pai, como Che, invoca a masculinidade e a violência
homofóbica dos anos 1960 e a natureza ilimitada daquela violência para produzir
mudanças efetivas na sociedade. E, embora o fato de nomear o filho como Jesse possa
a princípio parecer uma evocação superficial do martírio de Jesus Cristo346, La Mission
é um filme profundamente religioso. Além das repetidas referências a práticas católicas
cotidianas (Che guarda um altar na entrada do seu duplex e sempre leva um rosário nas
ruas e no trabalho), há também a aderência de Lena a práticas religiosas africanas, e os
rituais astecas de dança de rua no distrito Mission – que na encenação de uma limpia
pré-colombiana têm papel determinante na anagnórise de Che ao final do filme. Um dos
atos cruciais acontece quando Jesse é baleado no peito por um de seus rivais antigays
e ele segura a ferida à maneira de algumas imagens de Cristo. Além disso, a dança
ritualística asteca no final do filme que é feita para o agressor de Jesse e seus amigos são
346 Como Jesus não pode ser nome de pessoa em inglês, os latino-americanos que levam esse nome são
transformados em Jesse, não oficialmente, mas na fala coloquial.
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algo como uma horda de fúrias ameaçadoras que perseguem tanto Che quanto seu filho
em nome da raiva homofóbica.
Finalmente, uma das dimensões mais prazerosas do filme é o motivo recorrente
do low-riding. Che e seus amigos fazem parte de um clube de low-rider347que percorre
as ruas de São Francisco, indo a nenhum lugar específico, mas mesmo assim fazendo-o
em esplêndido estilo “baixo e lento”. Che ganha a vida como motorista de ônibus e o
contraste entre os dois tipos diferentes de veículos é um eloquente indicador de sua
relação com a cidade. Em um exemplo particularmente interessante, Che observa em um
dos ônibus no estacionamento um anúncio de canal a cabo homoerótico. Outro motivo
recorrente em La Mission é o “keep it brown” (isto é, continue um chicano mestiço), e
no final o filme volta às questões principais da vida chicana, e embora não resolvendo
nenhuma delas exibe-as ao espectador com verdadeiro talento cinematográfico. Ao
final, se Jesse é queer segundo o sistema de valores do pai, comparado às imagens
turísticas internacionais de São Francisco, a cultura chicana e especialmente a cultura
low-rider são igualmente transgressivas. Igualmente queer. Essa é a lição que Che tem
de aprender ao aceitar a sexualidade recém-descoberta pelo filho. E talvez fazer as pazes
com issoz
347 Low-rider é um estilo de carro criado pelas comunidades chicanas dos EUA com adaptações nos
sistemas hidráulicos que permitem rebaixar e controlar a altura dos veículos, e que também ostentam
uma decoração muito colorida e extravagante.
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288
“A perspectiva queer e as identidades homoeróticas: proposições teóricas” foi
originalmente publicado em espanhol com o título “Propuestas” e constitui o capítulo
introdutório do livro Producción cultural e identidades homoeróticas: teoría y
aplicaciones. San José: Editorial de la Universidad de Costa Rica, 2000. p. 15-68.
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“O estudo dos temas gays na América Latina desde 1980” foi publicado com
o título “El estudio de los temas gays en América latina desde 1980” na Revista
Iberoamericana, v. 74, n. 225, p. 923-941, Oct./ Dic., 2008.
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Sexualidades e identidades culturais
Sobre
os tradutores
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Aline Coelho da Silva é professora na Graduação e na Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel, RS). É Doutora em Letras pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, RS) e Pós-Doutora pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
318
Sexualidades e identidades culturais
David William Foster
319
o aUTOR
O livro Sexualidades e identidades culturais visa a reunir uma série de ensaios e ca-pítulos redigidos
pelo Prof. David William Foster (ASU, EUA) nas últimas décadas, com o intuito de ampliar as
discussões em torno de temas como sexualidade e cultura, preconceito e identidade de gênero,
a partir de um corpus heterogêneo constituído de obras produzidas no Brasil e, também, oriundas
de outros países latino-americanos. Essa diversidade de objetos investigados inclui obras literárias,
cinematográficas e teatrais, o que, por um lado, atesta os interesses de pesquisa do professor
norte-americano e, por outro, demonstra a importância dos temas tratados em diversos âmbitos
culturais, dada a sua repercussão e relevância para a formação ética e moral da sociedade
contemporânea.
João Luis Pereira Ourique | Lizandro Carlos Calegari