"Sermã o de Sãnto Anto Nio Ãos Peixes": Sal Terrae (Vós Sois o Sal Da Terra)
"Sermã o de Sãnto Anto Nio Ãos Peixes": Sal Terrae (Vós Sois o Sal Da Terra)
"Sermã o de Sãnto Anto Nio Ãos Peixes": Sal Terrae (Vós Sois o Sal Da Terra)
Estrutura:
“Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e
chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do
sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa,
havendo tantos nela, que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta
corrupção?”
o Corresponde à introdução do capítulo, à abertura do sermão, onde se
enuncia o conceito predicável: “vos estis sal terrae” (citação em latim,
mensagem evangélica, que serve de mote para o sermão e que se vai
desenvolver em torno desse raciocínio, dá origem ao tema), onde “vos”
significa pregadores e “terrae” significa ouvintes (os colonos).
o Pregadores são os padres daquele tempo, eram quem iluminavam as
almas perdidas, e tinham a função de sal, ou seja, tal como os sais na
comida, os padres na terra impediam que as coisas se deteriorassem, se
destruíssem na terra (no Maranhão). (“Pregadores, sois o sal da Terra: e
chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal” -
metáfora – os pregadores, ao pregarem a mensagem de Cristo, têm na
Terra a mesma função do sal, evitar a corrupção).
o Então o Padre António Vieira questiona-se do motivo de tanta
corrupção (Como é que a Terra, Maranhão, está tão estragada com
tantos pregadores?)
Dá inicio a várias hipóteses para a pergunta posta (Qual a causa da corrupção?)
utilizando várias perguntas retóricas (serve para captar a atenção do auditório
e levá-lo a reflectir):
“que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra?”: o que fazer a
Maranhão, à exploração dos índios e aos pregadores?
Recorre a Cristo, sendo uma autoridade máxima e cita frases em latim da bíblia
para provar os seus argumentos com uma autoridade máxima. (“O que se há-de
fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur?
Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. »)
Ou seja, se o sal não presta, é metê-lo fora, de forma a ser pisado por todos.
(“Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao
exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado
de todos.”).
Então, o Padre António Vieira diz que acha melhor metê-los no desprezo a
quem não cumpre a missão, a quem não prega de forma correta. (“Assim como
não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o
pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de
ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.”)
Cristo não dá uma resposta à corrupção na Terra: “Isto é o que se deve fazer ao
sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este
ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a
resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais
galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.”
Começa a alegoria (metáfora que é continuada), Santo António foi pregar aos
peixes e estes quiseram-no ouvir, meteram a cabeça para fora da água, ao
contrário dos homens que não o quiseram ouvir: “Pois que fez? Mudou somente
o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai -se às
praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não
querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh
poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a
concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua
ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.”
Por fim, no último parágrafo, diz então o que vai fazer. Vai pregar a quem o
quer ouvir, “aos peixes” tal como Santo António o fez. (“Os demais podem
deixar o sermão, pois não é para eles.” – quem não quer ouvir pode sair).
Termina com a invocação a Maria: “ Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do
mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a
costumada graça. Ave Maria.”
Todo o discurso do Padre António Vieira é muito rico e variado para despertar
a atenção do auditório. A utilização do raciocínio de forma simétrica facilita a
compreensão da mensagem por parte do auditório. O autor vai recorrendo a
sucessivas hipóteses em alternativa, imprimindo ao discurso um ritmo binário,
que facilita a captação da mensagem.
O discurso argumentativo que privilegia a 2º pessoa, tem por fim, persuadir e
garantir a adesão ao público.
Os peixes possuem 2 boas qualidades: ouvem e não falam, mas não se podem
converter à religião, daí a utilização da ironia “Nunca pior auditório”. A dor pela
qual ele sente pelos humanos também a sente pelos peixes, mas como já
estava habituado ou pensava estar habituado, a dor e o sofrimento é a mesma,
mas não a quer sentir. (ironia – “Mas esta…sente”). Este parágrafo pertence à
introdução do II capítulo: “Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca
pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e
não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os
peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume
quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim
será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos
encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.”.
Retoma ao conceito predicável (“vos estis sal terrae”) para que os ouvintes
saibam o tema e as propriedades do sermão. Serve-se o modelo de Santo
António, dizendo que também devem pregar bem todos os pregadores: “vos
estis sal terrae (conceito predicável) . Haveis de saber, irmãos peixes (apóstrofe),
que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se
experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa (funções do
sal). Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo
António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o
bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para
preservar dele (funções do pregador e do sermão) . Nem cuideis que isto pertence
só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar.”
Para além de repreender os peixes devido aos seus erros e vícios, há que saber
louvá-los e imitá-los. Comprova aquilo que está a dizer com referência a
argumentos de autoridade em latim (algo irrefutável, que serve para chamar a
atenção do auditório): “Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non
carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae
prosequenda sunt imitatione: «Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender
nos peixes, senão também que imitar e louvar.»”.
o “vós fostes as primeiras que Deus criou” – foram as primeiras criaturas que
Deus criou.
o “Vede, peixes (apóstrofe), e não vos venha vanglória, quanto melhores sois
que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o
peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra (Como é
possível os peixes terem melhores atitudes que os homens).”.
Por fim, termina o capítulo dizendo que se os peixes viverem longe dos
homens, então aí sim viverão bem, livres:
“No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas,
pescam as bengalas, pescam os bastões e até os ceptros pescam, e pescam mais que todos,
porque pescam cidades e reinos inteiros.” – Corresponde a uma gradação, que é a
enumeração dos vários elementos de diferentes grupos sociais, de ordem crescente de
poder de forma a enunciar o aproveitamento do poder que cada individuo faz uso para
si, para a sua ganância. Corresponde igualmente a uma anáfora, peala repetição da
palavra pescam com o sentido de expor quantos são os pecadores/pescadores que
pescam mas não tremem muito, quais são os pescadores da terra, e estes são muitos.
“Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em lhe
picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço.” – paralelismo
• 4º peixe – Quatro-Olhos
o O Padre António Vieira pede aos peixes para olhar para a terra, mas não
é de forma directa, ou seja, olhar para o mal que fazem uns aos outros:
“Olhai, peixes, lá do mar para a terra (alegoria ). Não, não: não é isso o que
vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão (terras no
brasil)? Para cá, para cá (repetição); para a cidade é que haveis de olhar.
o enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a
terra. (trocadilho metafórico). Ainda não lhe comeu a terra, e já se
aproveitaram totalmente dele.
o Dá o exemplo dos corvos, que comem alguém que foi enforcado, mas só
depois de morto. E afirma que o homem “come”, explora o outro ainda
enquanto é vivo: “São piores os homens que os corvos. O triste que foi à
forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que
anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está
comido.”
Síntese:
1º Peixe – Roncadores
o Os roncadores nunca estão calados, têm sempre muito que dizer, e
falam mais do que devem. São exibicionistas. Rocam para chamar a
atenção e mostra a arrogância, soberba e orgulho.
o Exemplos:
Gigante Golias – “bem deveis saber que este Gigante era a ronca
dos Filisteus. Quarenta dias esteve armado no campo (…) que fim
teve toda aquela arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado
e uma funda, para dar com ele em terra” .
• 2º Peixe – Pegadores
o São oportunistas e ignorantes, aproveitam-se dos outros para subir na
vida.
o São pequenos, fixam-se nas costas dos peixes maiores e alimentam-se
do resto da sua comida.
o Representam o oportunismo, o parasitismo social, subserviência.
o Exemplos:
Vice-rei ou Governador – “Vice-Rei ou Governador para as
Conquistas, que não vá rodeado de Pegadores, os quais se arrimam a
eles (…) mas os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos
maiores, vem-lhes suceder no fim o que aos Pegadores do mar”.
• 3º Peixe – Voadores
o São ambiciosos, mas não têm consciência dos limites, querem mais do
que podem.
o A ambição, a presunção (l. 111), o capricho (l. 111) e a vaidade (l. 112),
pois Deus predestinou-os a serem animais marinhos, e estes querem
sair do seu elemento e voar como as aves.
o Exemplos:
o Reflecte a ambição do peixe, tinha vários caminhos mas optou por ser
peixe e voar.
• 4º Peixe – Polvo
o Representa a alegoria da dissimulação, do disfarce, da hipocrisia, da traição.
o Muda de cor para passar despercebido para apanhar a presa quando ela passa.
Utiliza a camuflagem. É então o maior traidor do mar.
o Exemplos:
Capítulo VI
o Corresponde à conclusão do sermão, onde Padre António Vieira diz que
a condição de peixes é superior à dos outros animais: “escolheu Deus
certos animais que lhe haviam de ser sacrificados; mas todos eles ou animais
terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos sacrifícios.”;
diz que a condição dos peixes é superior à do pregador Vieira: “Ah
peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto
melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em
tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa
bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu
alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-
me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não
ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus
com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e
conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e
eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de ver a Deus, e
podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não
ofendestes; eu espero que o hei-de ver; mas com que rosto hei-de aparecer
diante do seu divino acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que quase
estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem que
tinha as mesmas obrigações, disse a Suma Verdade, que «melhor lhe fora
não nascer homem»: Si natus non fuisset homo ille. E pois os que nascemos
homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso nascimento,
contentai-vos, peixes, e dai muitas graças a Deus pelo vosso.”; e termina
com o louvor aos peixes (há a utilização do paralelismo para intensificar
as atitudes que António Vieira quer ver nos homens): “Benedicite, cete et
omnia quae moventur in aquis, Domino: «Louvai, peixes, a Deus, os grandes
e os pequenos», e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o todos
uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número. Louvai a
Deus, que vos distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de
tanta variedade e formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos os
instrumentos necessários à vida; louvai a Deus, que vos deu um elemento tão
largo e tão puro; louvai a Deus, que, vindo a este Mundo, viveu entre vós, e
chamou para si aqueles que convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos
sustenta; louvai a Deus, que vos conserva; louvai a Deus, que vos multiplica;
louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para
que vos criou; e assim como no princípio vos deu sua bênção, vo-la dê
também agora. Amen. Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não
acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.” Fim do sermão e da alegoria.