Celso Cruz
Celso Cruz
Celso Cruz
Kafka no Brasil: as edições de “A metamorfose”
Prof. Ms. Celso Donizete Cruz1 (UFS)
Resumo:
Breve histórico da recepção de A metamorfose no Brasil, inferida da análise dos paratextos das
edições brasileiras dessa narrativa publicadas entre 1956 e 2002. Diferentes características do
autor e de sua obra são realçadas nos paratextos de acordo com o público que cada edição tem em
mira. Assim percebem-se diferentes vias interpretativas e críticas propostas para a recepção da
obra pelo público brasileiro. Paralelamente, a história dessas edições, suposta a partir dos dados
disponíveis em seus paratextos, deixa ver um pouco da dinâmica do sistema literário brasileiro, nas
décadas consideradas, no que diz respeito à recepção de um clássico da literatura universal.
Falo da recepção brasileira de uma obra literária originalmente escrita em alemão. Por isso
retenho do título de nosso simpósio, em especial, a idéia de fronteira. Busco descrever o que
acontece “entre fronteiras”, isto é, na passagem de um texto literário de um país a outro, de uma
cultura a outra. Mais exatamente, trato do momento que antecede a entrada em circulação, no
mercado nacional, de uma obra estrangeira. Foi esse momento de recepção que investiguei em
minha pesquisa de mestrado, cujo desenvolvimento e resultados me levaram às reflexões que
seguem.
Inicialmente, precisemos os termos. Quando se fala em recepção, logo acorre a necessidade
de referir as teorias da estética da recepção, que, entretanto, não estarão em discussão aqui. Entendo
a recepção simplesmente como um processo de absorção de uma obra literária, processo que pode
ser flagrado em diferentes níveis. Em última instância, no que chamaria de “recepção ativa”, o foco
do estudo se fecha sobre o ato de leitura. Esse nível de recepção é de difícil apreensão. Complicado
saber exatamente o que se passa com o leitor no momento em que lê, qual o verdadeiro peso dos
vários fatores envolvidos no processo de absorção “ao vivo”. Não obstante, em que pesem as
dificuldades inerentes à descrição desse nível, é a ele que parecem remeter alguns dos conceitos da
estética da recepção, revelando a base hermenêutica dessa corrente de estudos, que para alguns,
como Antoine Compagnon (2003, p. 146), muitas vezes se vale do termo “recepção” como
“disfarce” para pesquisas sobre leitura. Se a observação de Compagnon é correta, um estudo de
recepção a esse nível terá como meta investigar a interação do leitor com o texto.
Para um estudo de recepção de uma obra de literatura estrangeira, seguem atuantes os mesmos
propósitos. Continua em questão o modo como o leitor interage com a obra estrangeira, por
exemplo, como compreenderá matizes singulares de significação, exclusivos, ao menos nessa
relação, à cultura de origem. É dessa perspectiva, e não por acaso valendo-se dos conceitos
propostos pela estética da recepção, que Dietrich Krusche, em Literatur und Fremde (1985),
examina o processo de recepção do texto estrangeiro. A motivação de Krusche advém da
constatação de que “as condições que pesam sobre a recepção da obra em sua cultura de origem não
são as mesmas a atuar em sua recepção por uma cultura estrangeira”. Não é só a distância no tempo
que favorece o estranhamento na recepção de um texto. Também o “distanciamento espacial da
origem [...] traz dificuldades ao leitor estrangeiro”, embora abra, é certo, “possibilidades de
interpretação não previstas ou subestimadas nas condições de recepção do leitor original” (cf.
CRUZ, 2007, p. 212).
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Ora, no limite, toda e qualquer recepção, todo e qualquer ato de leitura, necessariamente se
realiza a maior ou menor distância, no espaço e no tempo, de um texto original. As condições de
leitura nunca são idênticas, nem para um mesmo leitor, que dirá de um leitor a outro, de uma cultura
a outra. Certamente, algumas condições básicas de recepção podem ser previstas, porém, para saber
de fato como essas condições atuam na prática, é preciso ter acesso a um ato de leitura particular
que, exceto o nosso, é inobservável, a não ser indiretamente, mediante um relato de leitura. Nesse
ponto acede-se a um outro nível de recepção, que é o da crítica, entendida como externalização de
uma leitura particular. Todo comentário a respeito de uma obra é um relato de leitura, e é por meio
desses comentários que se pode inferir o modo como tal ou qual leitor leu e compreendeu uma dada
obra, estrangeira ou não.
Os estudos de recepção necessitam, pois, dos comentários dos leitores, para a comprovação de
suas hipóteses. Quis chamar de “crítica” a esse conjunto de relatos de leitura, mas penso que o
conceito de rewriting – reescritura ou reescrita –, proposto por André Lefevere (1992), seja mais
adequado e abrangente. As reescrituras correspondem às reenunciações diversas de um mesmo
texto original. O resumo, a resenha, a crítica, a paráfrase, o verbete – todas essas são formas de
reescritura. A cada vez que é reescrito, imprime-se no texto a marca particular de uma leitura. O
modo como é reenunciado revela a compreensão de quem o leu. São assim as reescrituras que
provêem acesso às leituras efetivamente realizadas. Aliás, mesmo o ato de leitura poderia ser
tomado como uma operação mental de reescritura, e isso é prova da abrangência do conceito.
Nas condições específicas de recepção de literaturas estrangeiras, ainda, temos de levar em
conta a tradução, cuja presença complexifica o processo de recepção. A tradução é uma outra forma
de reescritura e, como tal, testemunho de uma leitura: “O que chega ao leitor estrangeiro via
tradução já foi previamente recebido pelo tradutor [...]. Nos termos de Krusche, o texto traduzido
seria o resultado palpável da interação do tradutor (leitor estrangeiro) com o texto original” (cf.
CRUZ, 2007, p. 212). Desse ponto de vista, o texto traduzido corresponde à leitura do tradutor, e
nesse sentido interessa, obviamente, ao estudo da recepção de literaturas estrangeiras.
Uma outra fonte de onde inferir interpretações particulares de autores e obras de literatura
estrangeira são os paratextos, que até certo ponto podem ser tomados como reescrituras. Ambos os
conceitos se aproximam, à medida que se referem ao conjunto dos textos que acompanham um
texto principal, apresentando-o e comentando-o. Apresentações, agradecimentos, prefácios,
posfácios, epígrafes, orelhas, capas, todas essas partes que compõem as edições, e que comumente
entendemos como paratexto, adquirem sentido, em grande parte, em função da relação que
estabelecem com o texto principal que a edição veicula. E não é preciso se limitar aos livros. Gerard
Genette (1987), que escreveu sobre o assunto, estende o conceito de paratexto às resenhas
publicadas nos periódicos e mesmo às obras de história e crítica literária. Isso é possível porque o
que unifica todos esses textos tomados como paratextos é a referência a um texto principal, da
mesma forma que acontece com as reescrituras. Este último conceito apenas parece um pouco mais
genérico, embora, se entendermos o conceito de paratexto tão amplamente como o faz Genette,
acabaremos por nos referir às mesmas coisas com o emprego indistinto de um ou outro termo.
A fim de evitar o incômodo dessa oscilação, limito o sentido de paratexto ao conjunto de
textos que fazem parte das edições de obras traduzidas e que não correspondem ao texto traduzido.
Nessa acepção, o paratexto vem a ser tratado como uma instância de recepção situada no mesmo
nível das reescrituras. Mas talvez seja ainda melhor entendê-lo como um espaço de pré, às vezes
pós, recepção. Com efeito, antes de adquirir a edição, não é incomum que o leitor já tenha alguma
referência a respeito do autor e da obra editados. Essa referência, se existe, deve ter sido colhida nas
reescrituras da obra. No entanto, com ou sem referências, o contato com o paratexto antecede a
fruição da leitura, que é a recepção propriamente dita. Os leitores que se detêm no paratexto
antegozam a fruição, animam-se para a relação íntima que estão para travar com o texto principal.
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Os dados do paratexto, então, preparam a recepção; preparam o espírito do leitor; fornecem
informações e orientações que podem tornar a leitura mais proveitosa e satisfatória. Aqui se tem
também um espaço que pode ser ocupado pela propaganda, condição que não interessou ao meu
estudo, mas que não deixa de ser aproveitada pelas editoras. Pensado como espaço, o paratexto
interessa mais aos estudos de recepção quando fornece ao leitor uma interpretação prévia da obra. A
análise do paratexto contribui para explicitar essa interpretação.
A interpretação, resultante de uma leitura particular, deixa ver o modo como a obra é recebida
pelo leitor. E se a interpretação desse leitor é concorde com a de muitos outros leitores, temos base
para supor um padrão de recepção válido para toda uma comunidade ou cultura. É desse tipo,
imagino, a recepção deduzida do paratexto. As interpretações cristalizadas nesse espaço
correspondem à visão que se propõe para o autor e a obra, no nosso caso estrangeiros, na cena
literária nacional. Não há nenhuma garantia de que essas interpretações venham a ser legitimadas,
mas em todo caso o fato de serem propostas no paratexto é um sinal de que se busca legitimá-las
para o sistema literário que acolhe a obra. É assim que os paratextos muitas vezes propagam visões
estereotipadas no intercâmbio entre culturas. É assim que muitas vezes fazem circular
interpretações equivocadas que acabam perdurando e vão sendo repetidas por todos os estratos que
compõem um dado sistema literário.
Quem responde pelas posições firmadas nos paratextos são as editoras. Para compreender
parte do que acontece com o texto no trânsito entre fronteiras, penso que seja fundamental
considerar a atuação das editoras. É possível enxergá-las como as “aduanas” do processo, uma vez
que regulam, na prática, o que vai ser ou não admitido no mercado nacional de livros. Os textos
traduzidos, inclusive, mesmo quando devidamente creditados aos seus reais tradutores, passam
necessariamente pela chancela da editora, e nessa passagem não raro sofrem alterações de toda
sorte.
Não é difícil notar a participação decisiva das editoras no estabelecimento, manutenção e
transformação do contato entre sistemas literários distintos. São elas, afinal, que vão selecionar e
definir o que vai ser difundido para o sistema literário de chegada, e de que modo. Lógico que essa
seleção deve atender aos seus interesses comerciais, muitas vezes por cima de qualquer intenção de
interferência no sistema. Também não há nenhuma certeza do impacto ou da influência que uma
obra traduzida possa vir a exercer sobre o sistema de chegada. As editoras publicam para o
mercado, e o sistema não se faz exclusivamente a partir do que existe à disposição no mercado.
Contudo a publicação e difusão de uma obra literária não é só uma questão mercadológica. Nem
sempre a decisão de publicar é financeiramente pautada, e nada mais. Existe algum ideal ou
ideologia por trás da operação. As editoras não movimentam e abastecem somente o mercado
livreiro. A recepção não acaba na compra do exemplar, muito pelo contrário. Nessa medida, a
preparação da obra para o mercado não deixa de ser uma tentativa consciente de intervenção nos
sistemas literários dos quais as editoras participam.
Assim se percebe que o paratexto é uma entrada possível para a investigação do papel das
editoras na recepção de obras estrangeiras. E ainda há algo mais. Como todo relato de leitura tende
a revelar muita coisa acerca do próprio leitor, antes que sobre o texto objeto do relato, também o
estudo da recepção de uma obra estrangeira traduzida, vista a partir do paratexto, pode revelar mais
a respeito da cultura de chegada do que sobre a cultura de partida.
Tome-se o exemplo das edições de A metamorfose, de Franz Kafka. Este é um caso especial,
caracterizável pela grande quantidade de traduções e edições já disponibilizadas no mercado
editorial brasileiro. A história da recepção dessa obra no Brasil, analisada a partir dos paratextos das
edições, mostra algumas linhas dominantes de interpretação, que se repetem de uma edição a outra.
Ao mesmo tempo, cada edição destaca em seu paratexto aspectos distintos, a depender do público a
que idealmente cada uma se destina. Há Kafka para todo gosto, tanto para os formados quanto para
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os aspirantes; tanto para os leitores profissionais quanto para os amadores; tanto para os eruditos
quanto para os populares. É assim que as edições, vistas desde os seus paratextos, servem de
testemunho, não apenas do interesse brasileiro por Kafka, mas também da considerável variedade
de leitores brasileiros ao que tudo indica muito dispostos a conhecer sua obra.
Acompanhar a sucessão das edições de A metamorfose ao longo do tempo vem a ser
finalmente também uma oportunidade de observar um pouco mais de perto a dinâmica histórica de
nosso sistema literário na recepção de autores consagrados da literatura mundial. Sendo factível
diferenciar as edições de acordo com sua destinação ideal a um público mais erudito ou mais
popular, e se supomos que um sistema se organiza com base na oposição entre o centro (dominante)
e a periferia (dominada), é possível flagrar na história uma mudança significativa na composição de
forças ao centro, aprofundando, à medida que nos aproximamos do século 21, o hiato que separa o
popular do erudito, ao menos no campo literário, e enquanto o centro do sistema é reconhecido
como domínio da universidade.
A história das edições brasileiras de A metamorfose data de 1956, ano em que a editora
Civilização Brasileira publica em edição luxuosa a tradução indireta de Breno Silveira. Essa foi de
fato uma edição para poucos, ilustrada, limitada a mil exemplares numerados, doze dos quais
acompanhados de uma prancha original do ilustrador. O projeto gráfico é de autoria de nomes
reconhecidos e destacados das artes gráficas nacionais à época. O formato é grande, com sobrecapa
em forma de caixa que reproduz a ilustração de capa. Enfim, a primeira tentativa de difusão da
versão brasileira da obra não se dirige às massas. Dadas suas características especiais, a edição de
1956 marca um momento em que poucos leitores teriam acesso à obra kafkiana, só aqueles capazes
de ler uma língua estrangeira ou pertencentes a uma elite cultural que sem dúvida seria o público
alvo principal da publicação.
Essa situação dura quase dez anos. Na década de 1960, temos o primeiro surto de
popularização de Kafka no país. São três as edições de A metamorfose publicadas nesse decênio,
duas delas em formato de bolso, notoriamente popular. A editora Livraria Exposição do Livro
publica, em 1965, a tradução de Torrieri Guimarães, na antologia de contos intitulada A colônia
penal. Essa edição é um dos volumes que integra a primeira tentativa de publicação das obras
completas do autor no país. A antologia é republicada no mesmo ano, em formato de bolso, pela
editora Ediouro, que ainda publica à parte, no mesmo formato, uma edição só com a famosa
narrativa. Uma outra edição de bolso é lançada em 1963 pela Biblioteca Universal Popular – BUP,
na verdade um selo da editora Civilização Brasileira. A tradução dessa edição é a mesma de Breno
Silveira, editada em 1956, e quem assina o prefácio é Ênio Silveira, principal editor da Civilização
Brasileira.
Esses dois primeiros momentos de difusão, décadas de 50 e 60, são emblemáticos. Temos
edições para a elite e para a massa, diferenciáveis contudo apenas na embalagem. A recepção de
Kafka revela uma certa proximidade entre o centro e a periferia do sistema, afinal, afora a
embalagem, o produto oferecido a um e outro estrato é o mesmo. São as traduções indiretas que
dominam o mercado, situação que persiste até meados da década de 1980. A edição da Livraria
Exposição do Livro, sendo parte de uma iniciativa de publicação das obras completas do autor,
provavelmente se dirigia a um público mais intelectual; no entanto a mesma tradução indireta de
Torrieri Guimarães é publicada em edição popular pela editora Ediouro.
Esses dois primeiros momentos caracterizam igualmente a passagem da recepção do centro
para a periferia do sistema. Prefiguram também uma mudança no centro do sistema. Os prefácios
das edições publicadas na década de 1960 são unânimes no reconhecimento de que até então a
recepção de Kafka restringia-se a uma elite. Torrieri Guimarães, que é também prefaciador da
edição da Exposição do Livro, anuncia que enfim é chegado o momento de retirar Kafka da “torre
de cristal” a que estava confinado com a recepção de sua obra limitada a uns poucos privilegiados.
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A expansão do mercado editorial leva a uma recomposição do centro. O domínio do sistema deixa
de ser exclusividade dos que possuem melhores condições financeiras. O acesso às obras leva para
o centro os representantes de uma camada intelectual média, como é o caso de Torrieri Guimarães.
Tudo indica que esse momento de recepção se dá em meio a um movimento de democratização e
popularização do acesso à literatura e à cultura livresca.
Esse movimento continua na década de 1970 e entra pela de 1980, quando uma nova fase de
recepção parece ser inaugurada. Na década de 1970, surgem quatro novas edições da narrativa,
todas traduções indiretas. Duas são da Ediouro, republicações da tradução de Torrieri em coleções
de paradidáticos. Uma edição sai pela Nova Época Editorial, mais uma vez como iniciativa de
publicação das obras completas do autor, na certa uma tentativa de disputar o espaço ocupado pela
edição da Livraria Exposição do Livro. É nítida a marca do movimento editorial e político de
popularização da literatura em outra edição da mesma década, iniciativa do Clube do Livro. Essa
iniciativa é parte do projeto do Clube, de levar o livro “bom e barato” a camadas da população
ainda não integradas ao mercado livreiro. O projeto tem ainda a nobre meta de elevar o nível
cultural das camadas desfavorecidas de nossa população. É em nome desse objetivo que as
traduções publicadas pelo Clube do Livro são invariavelmente adaptadas, quando não mutiladas,
simplesmente. Mais detalhes sobre a “fábrica de traduções” do Clube são expostos no livro O Clube
do Livro e a tradução, de John Milton (2000). A tradução de Kafka publicada pelo Clube do Livro
também passa por esse processo de adaptação.
Nessas três primeiras décadas de recepção brasileira da obra, infere-se dos paratextos das
edições interpretações que marcam continuamente a recepção do autor desde então. Na edição de
1956, o único paratexto interpretativo, além do texto da tradução, são as ilustrações de Walter Levy.
Essas ilustrações tendem à representação surrealista, embora dê para enxergar com nitidez também
a influência da estética dos quadrinhos e, por meio desta, uma certa dose de humor. Suas
características surrealistas devem ter sido notadas de imediato, uma vez que o ilustrador é
reconhecido por suas ligações com o surrealismo. Claro que o exame da edição fora de seu contexto
imediato, e sem o conhecimento da autoria das ilustrações, pode não levar necessariamente a essa
identificação. Porém, dado que o público alvo dessa edição seria limitado e exclusivo, e que o
destaque dado ao autor das ilustrações não é desprezível (lembremos que os originais das
ilustrações, assinados, acompanharam os doze primeiros exemplares da edição), não é demais supor
que esse público conheceria Walter Levy, e teria informações a respeito de sua arte. Assim, embora
não diretamente, e como resultado de uma estratégia editorial, oficializa-se, na recepção brasileira, a
associação da obra kafkiana com o surrealismo.
Realmente, não se há de negar que a situação descrita em sua narrativa mais famosa seja
surreal. Essa identificação aparentemente se mantém quando do surto de popularização das décadas
de 1960 e 1970. Mas os paratextos agora também se projetam para além das capas e ilustrações, em
apresentações, prefácios, orelhas, rodapés. Nessas novas interpretações, a situação referida na
narrativa é apresentada em seu conteúdo simbólico. Para Ênio Silveira, prefaciador da edição da
BUP, Kafka denuncia a situação de opressão política e social vivida pelo homem ocidental
contemporâneo, como forma de conscientizá-lo para a luta política. Tal interpretação não
surpreende quando se sabe que autor do prefácio foi um célebre militante do socialismo no Brasil, e
que sua editora, a Civilização Brasileira, serviu como foco de resistência intelectual às investidas do
regime ditatorial de então. Já Torrieri Guimarães, que assina o prefácio da edição da Livraria
Exposição do Livro, vê na situação a representação da própria condição existencial do autor. Guia-
se pela interpretação biográfica, e chega a sugerir, muito para além do simbolismo judaico que
alguns críticos descobrem nas obras kafkianas, que a morte final do personagem principal de A
metamorfose corresponde ao sacrifício do autor em nome da redenção da humanidade. Kafka, ou
Gregor, é comparado a Jesus Cristo, e esse flerte com a religião pode se justificar pela necessidade
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de demarcar uma posição contrária ao socialismo externado pela posição de Ênio Silveira. O
prefácio de Torrieri se integra a uma edição aparentemente destinada ao centro do sistema, à época
certamente defensor de valores típicos dos generais da ditadura, incluindo o catolicismo extremado.
As edições da década de 1970 não entram em polêmicas. O ponto de partida das
interpretações é sempre o estranhamento provocado pela transformação do personagem principal da
narrativa. É para esse estranhamento que se procuram explicações simbólicas. Há uma certa
novidade na leitura psicológica oferecida pela edição da Nova Época Editorial, mas trata-se de uma
curta alusão, que consta apenas da orelha esquerda da edição (“o autor descreve[,] com uma força e
uma autenticidade realmente impressionante, o drama intenso do fenômeno da rejeição”). Já a
edição do Clube do Livro investe no biografismo, relacionando as situações opressoras descritas na
obra kafkiana às condições de vida enfrentadas pelo autor em seu país. “Franz Kafka é um pranto
contínuo...”, é a conclusão do prefácio. O prefaciador, Evangelista Prado, também um dos
principais editores do Clube do Livro, imagina aliás como tudo seria diverso se o autor tivesse
nascido “no esplendor tropical” da baía da Guanabara...
Detive-me mais detalhadamente nesses dois primeiros momentos de recepção porque aí se
forma a base de recepção da obra. Temos sugestões de identificação com as estéticas surrealista e
expressionista, com o universo da ficção científica, da HQ, do humor, do terror; interpretações
sociais, religiosas, psicológicas e simbólicas; intensa divulgação de dados e episódios biográficos
quase sempre associados à explicação das obras. Em todos os paratextos, com exceção da primeira
edição de 1956, Kafka é apresentado como escritor universal, que trata de questões que ultrapassam
as fronteiras dos países ocidentais. De modo que não se desvendam nos paratextos impressões que
apontem para caracterizações estereotipadas da cultura alemã, judaica ou tcheca. O autor e a obra
estão invariavelmente no primeiro plano das interpretações.
Essa base de recepção se mantém nas décadas seguintes, sobretudo nas edições que disputam
o mercado popular. Em meados da década de 1980, a publicação de uma nova tradução leva a uma
reorganização do sistema, a partir do domínio do centro por valores identificados e inicialmente
exclusivos à leitura universitária. É no ano de 1985 que chega ao mercado a edição da editora
Brasiliense, colocando em circulação a primeira tradução da narrativa feita diretamente do original
alemão. Essa publicação pode ser tomada como marco de um novo momento de recepção. O fato de
ser uma tradução direta, a primeira, é amplamente divulgado no paratexto da edição. A presença
dessa característica inédita é um sinal da mudança de critérios na avaliação do que deve pertencer
ao centro do sistema. Kafka, obviamente, tem o seu lugar assegurado, porém nem toda tradução terá
qualidade suficiente para satisfazer as novas exigências de fidelidade à letra, de recuperação da
função poética nas traduções literárias, valores do pensamento universitário de base estruturalista
que passam então a dominar amplamente o centro.
Para dizer o mínimo: a autoria da tradução é de Modesto Carone, professor da Universidade
Estadual de Campinas. Assim que é publicada, a tradução de Carone qualifica-se para ocupar a
posição de tradução “oficial” do autor, logo sendo considerada, nos círculos mais altos da
intelectualidade, a única recomendável para os leitores de literatura séria. Não obstante, ainda que
desvalorizadas. as traduções anteriores seguem sendo repropostas, e surgem mesmo novas
traduções não tão badaladas quanto a de Carone. No mesmo ano de 1985, a editora Civilização
Brasileira republica em nova roupagem a tradução indireta de Breno Silveira. Embora não seja uma
edição de bolso, a edição de 1985 apresenta o mesmo conteúdo da edição da BUP de 1963: o
mesmo prefácio, o mesmo texto de quarta capa, a mesma tradução, até o capista, Eugênio Hirsch, é
o mesmo nas duas edições. A diferença é que todos os textos republicados em 1985, tradução e
paratextos, foram copidescados. A interferência do copidesque é um sinal de que os valores que
orientaram a interpretação da obra anteriormente já estão algo defasados diante das novas
orientações que dominam o sistema.
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Em 1989, a editora Estação Liberdade lança a tradução de Erlon José Paschoal. Não é
possível garantir, apenas com os dados do paratexto, que se trate de uma tradução direta. Tal
condição não é mencionada, que dirá festejada como na edição da Brasiliense. É certo que, nos
créditos da edição, menciona-se o título original em alemão, Die Verwandlung, porém esse é um
expediente utilizado mesmo em edições que veiculam traduções notoriamente indiretas. E esta é
uma característica encontrada em várias edições, sobretudo as destinadas ao público popular, o
apagamento da verdadeira fonte, do verdadeiro texto de partida. O uso do expediente pode indicar
que as editoras têm consciência do desprestígio associado às traduções indiretas, desprestígio que se
intensifica com a chegada ao centro de valores mais exigentes. Não quero afirmar que seja este o
caso da edição da Estação Liberdade, inclusive uma busca na Internet pelo nome do tradutor
descobre-o relacionado à tradução de outros textos de língua alemã, o que é um indício de que a
tradução deva ser direta. Porém, é curioso que o paratexto da edição não faça nenhum alarde do
fato, num momento em que as traduções diretas ainda eram uma novidade no mercado. Talvez não
interessasse à editora concorrer diretamente com a tradução de Carone, tendo em vista a grande
diversidade de público encontrável nos estratos periféricos do sistema.
Na década de 1990, a posição central da tradução de Carone se consolida, quando é
republicada pela editora Companhia das Letras. A partir dessa década, também, a difusão da obra
intensifica-se, com vários lançamentos, novas e velhas traduções, por diferentes casas editoras. A
edição da Companhia das Letras, de 1997, difere em alguns detalhes da edição anterior da mesma
tradução, publicada pela Brasiliense. Por exemplo: a edição da Brasiliense conquista o centro da
recepção levantando a bandeira da tradução direta de Modesto Carone. Já a edição da Companhia
não traz em seu paratexto nenhuma alusão explícita a esse fato.
O que serviu como bandeira da Brasiliense na conquista do centro é agora
descartável, pois não se trata mais de conquistar o centro, mas de preservar a
posição alcançada. A qualidade do texto de Carone é realçada, sem que isso
implique o depreciar de outras traduções: na edição da Companhia, por
conseguinte, suprime-se do posfácio todo o trecho em que o tradutor insinua a
insuficiência das traduções anteriores. O paratexto da Companhia é o que mais
chama a atenção para os componentes estéticos da narrativa kafkiana. A capa é
uma criação sofisticada, sem alusões diretas ao inseto. Pode-se dizer que a editora
toma todos os cuidados para que sua edição não resvale para o popular (CRUZ,
2007, p. 223).
Considerada esta última edição como marco, distinguem-se quatro momentos principais na
recepção brasileira da obra. Para cada um desses momentos, existe uma edição mais avalizada
ocupando o centro do sistema, e a partir desta é possível elencar as outras. Creio que atualmente a
edição da Companhia ainda desfrute do maior prestígio entre todas as edições em circulação. Trata-
se de uma edição mais sóbria, preparada idealmente para leitores exigentes e intelectualizados. Em
torno dela, contudo, circulam diferentes versões, seguidamente repropostas, as quais, desde a capa,
podem ser distinguidas conforme sua vocação mais para o erudito do que para o popular, ou, em
outros termos, sua disseminação para públicos localizados mais próximos do centro ou da periferia
do sistema.
De 1994, a capa da edição publicada pela editora Moraes é assustadora em mais de um
sentido. O horrível inseto que parece se projetar para fora da capa é sensivelmente grotesco. Essa
associação da obra ao grotesco é o que pode torná-la atrativa para os leitores que apreciam o terror,
a ficção científica, a HQ, formas de expressão mais populares. A presença ou ausência da
representação do inseto nas capas serve de guia para distinção da destinação das edições. Quanto
mais próxima da barata, mais aparente é a destinação popular da edição. Nessa bitola, a capa da
edição da editora Moraes, secundada pela edição do Clube do Livro, apresentaria o máximo de
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apelo popular. Para esse mesmo lado tenderia a quarta capa da edição lançada pela editora Martin
Claret, em 2000.
Uma faixa intermediária pode ser composta pela capas que utilizam a fusão homem-inseto
como tema, uma imagem óbvia e recorrente, desde a edição de 1956, passando pelas criações de
Eugênio Hirsch de 1963 e 1985. A fusão volta a ser sugerida na capa em edições mais recentes,
como as da Civilização Brasileira e da Ediouro, de 1997. Aqui temos, novamente republicadas e
copidescadas, as traduções pioneiras de Breno Silveira e Torrieri Guimarães, respectivamente. A
mesma estratégia temática de ilustração de capa é utilizada outra vez na edição de 2000 da editora
Itatiaia.
As ilustrações de capa tendem a retomar e reiterar temas sensíveis ao universo kafkiano. A
capa da edição da Nova Alexandria, publicada em 2000, apresenta um corredor sombrio com uma
das paredes abaulada, como se contivesse enorme pressão interna, e o que a primeira vista seria um
escoadouro chega a lembrar uma boca em ríctus de agonia. Sugestão da opressão que se apregoa
povoar o universo kafkiano? Provavelmente sim, mas também a impressão de horror latente é um
tanto quanto exagerada, quer dizer, resvalando para o apelo mais popular, numa edição que, de
outro modo, apresenta propostas mais eruditas, como o posfácio de Olgária Matos, professora de
filosofia da Universidade de São Paulo.
Nessa faixa intermediária, é comum a hibridização. Embora tendam mais para o popular ou
mais para o erudito, as edições, devidamente contextualizadas, não deixam de apresentar
características que as destinam a um e outro público. Como exemplo, cito a capa da edição da
Pubblifolha/Ediouro, de 1998, que traz um detalhe do quadro O modelo vermelho, de René
Magritte. A escolha da ilustração de capa reforça o aspecto surrealista da ficção kafkiana, e essa
associação em geral é presente nas edições destinadas a um público mais erudito. No entanto, a
tradução veiculada nessa edição é mais uma vez uma versão copidescada da tradução de Torrieri
Guimarães, desprestigiada no centro do sistema. E a edição foi comercializada em bancas de
jornais, como parte de um projeto de popularização dos clássicos da literatura universal. Essas duas
últimas características acentuam o apelo popular da edição.
Já entrados no século 21, surgem as edições das editoras L&PM e da Nova Cultural/Suzano,
ambas em formato de bolso, buscando um público mais popular. A iniciativa editorial da Nova
Cultural/Suzano, inclusive, é idêntica à da Publifolha/Ediouro, da concepção à distribuição.
Entretanto, as capas dessas pequenas edições não são em absoluto apelativas, pelo contrário. A
edição da L&PM, ainda, além da sobriedade de capa, veicula uma tradução direta do alemão de
autoria de Marcelo Backes, professor e pesquisador universitário especialista em literatura alemã.
Essas últimas edições citadas são híbridas porque, de acordo com o ângulo de que são
examinadas, revelam uma face voltada para um ou outro público. Elas testemunham a existência
desse estrato intermediário de leitores, e também a progressiva diferenciação no interior desse
estrato à medida que as edições híbridas tendem a incorporar características mais identificadas com
o público erudito. Como é o caso das edições do século 21.
Chego aqui ao fim de meu brevíssimo histórico da recepção brasileira dessa obra. A descrição
detalhada dos paratextos e reproduções das capas e ilustrações de todas as edições citadas
encontram-se em minha dissertação, Metamorfoses de Kafka, publicada pela editora Annablume em
2007. Quis comprovar a validade de uma abordagem, a recepção, e de um objeto, o paratexto, para
o debate em torno do valor relativo de uma obra traduzida no sistema literário que a acolhe.
Acredito que os dados contextuais a que os paratextos dão acesso possam servir de baliza para
considerações mais detalhadas sobre as semelhanças e diferenças entre as várias traduções
propostas para o mercado brasileiro. É o passo que pretendo dar em minha pesquisa de Doutorado,
neste semestre iniciada.
XI Congresso Internacional da ABRALIC 13 a 17 de julho de 2008
Tessituras, Interações, Convergências USP – São Paulo, Brasil
Referências Bibliográficas
LEFEVERE, André. Translation, rewriting, and the manipulation of literary fame. London/New
York: Routledge, 1992.
MILTON, John. O Clube do Livro e a tradução. São Paulo: Editora da Universidade Sagrado
Coração, 2000.
Autor
1
Celso Donizete CRUZ,
Prof. Ms.
Núcleo de Letras de Itabaiana
Universidade Federal de Sergipe (UFS)
Doutorando
Língua e Literatura Alemã
Departamento de Letras Modernas
Universidade de São Paulo (USP)