Jagunços Kelly Marise Silveira Durães e Telma Borges
Jagunços Kelly Marise Silveira Durães e Telma Borges
Jagunços Kelly Marise Silveira Durães e Telma Borges
1
Verbete produzido por Kelly Marise Silveira Durães. A sua pesquisa resultou na monografia Um sertão
movediço: a ambivalência dos jagunços em “Grande Sertão: Veredas”, defendida em 2013 na
Universidade Estadual de Montes Claros.
e desmandavam em todo e qualquer território do qual se consideravam donos.
(CARDOSO, 2012, p. 22).
Cada bando de jagunços era regido por leis particulares; tinham toda uma ética
que os unia a seu grupo e causava repulsa nos demais. Nesse âmbito, podemos
relacionar o jaguncismo ao banditismo, posto que no sistema jagunço existem bandos de
valentões, de bandidos que lutam pelo poder, que travam uma guerra para fazer valer,
em todo o sertão, as leis que regem seu bando; eles se organizam para conquistar o
poder.
Segundo WilliBolle, o “sistema jagunço é uma grande metáfora para designar o
complexo de violência e miséria, a história dos sofrimentos do povo, a falta de justiça e
de diálogo social.” (BOLLE, 2007, p. 144). Ou seja, sem apoio e sem justiça social, os
jagunços são obrigados a se unir para se organizarem nesse espaço sertão. No âmbito
do romance, a lei se manifesta através da força, das armas, da violência, dos tiros e da
luta constante. Isto é, o que impera no sertão rosiano é a lei do mais forte. Logo no
início do romance Riobaldo nos diz que tiros e guerra são rotineiros no sertão: “O
senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a
latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é
o sertão.” (ROSA, 2001, p. 23). Tiros e lutas são acontecimentos tradicionais; é uma
cultura arraigada ao sertão e é através dessa cultura que a lei se expressa. Quem é mais
forte tem poder sobre os demais e, na tentativa de se organizar, acabam desorganizando
cada vez mais o sertão; é uma vida atribulada, notadamente marcada por “constante
brutalidade” (ROSA, 2001, p. 151).
Ao fazermos uma análise do jaguncismo, é mister destacar a definição expressa
pelo vocábulo jagunço. Segundo o Dicionário Etimológico da língua portuguesa,
jagunço é uma “arma de defesa; o indivíduo que a manipula, cangaceiro, valentão
assalariado.” (CUNHA, 1982, p. 452). No Dicionário Houaiss, jagunço é também
sinônimo de cangaceiro; é criminoso foragido ou qualquer homem violento contratado
como guarda-costas por indivíduo influente (fazendeiro, senhor de engenho, político) e
por este homiziado. Na segunda acepção, esse dicionário menciona o seguidor de
Antônio Conselheiro, personagem histórica da Guerra de Canudos. Em terceiro lugar
aparece “pau armado de uma ponta metálica.” (HOUAISS, 2009, p. 1124).
Como se observa, a palavra surgiu, primeiramente, para designar a arma; no seu
processo evolutivo passou a designar metonimicamente o sujeito que a manipula.
Portanto, o substantivo que designa o jagunço é, antes de tudo, atributo da função que
exerce. Por associação, tornou-se sinônimo de cangaceiro que, por sua vez, significa
“malfeitor fortemente armado que andava em bando pelos sertões do Nordeste,
notadamente ao longo das três primeiras décadas do século XX.” (HOUAISS, 2009, p.
386). Malfeitor, guarda-costas, cangaceiro, valentão, não importa a designação, o fato é
que jagunço não designa apenas uma arma rústica, mas também um sistema paralelo,
com leis próprias, rústico, uma vez que é regido por indivíduos que transformam a força
em lei ou operacionalizam o sistema político de modo privativo. O jagunço é mais que
uma arma ou um bandido; como as definições nos sugerem, o jagunço é a metáfora de
um sistema político e social marcado pela rusticidade e pela luta constante de
elaboração e manutenção de leis peculiares.
O adjetivo homiziado, como atributo comum ao jagunço, deixa claro que suas
ações não são espontâneas, mas previamente deliberadas por aquele que lhe oculta da
justiça, donde se conclui da relação de favor entre o jagunço e seu protetor-mor. É
nítido que as atitudes dos jagunços são moldadas por um protetor, que indica o que eles
devem fazer e em troca os livra do acerto de contas com a justiça, ocultando-os dos
meios legais.
Tomando como referência o contexto da literatura rosiana, Nilce Sant’Anna Martins
define jagunço como “sertanejo integrado num grupo, bandoleiro.” (MARTINS, 2001,
p. 283). Nessa definição estão expressas as ideias de banditismo, dos jagunços
integrados em um bando, que tentam se organizar no sertão e organizar o sertão,
reforçando a percepção de que o jaguncismo é um sistema social típico do espaço
sertão, por oposição ao sistema do Estado orientado, em princípio, pelo que se chama de
Leis abstratas, impessoais, comum a todos. Com essa definição, percebemos a relação
do espaço (sertão) com o homem, sendo que essas leis impessoais e abstratas são os
meios que buscam para garantir a sobrevivência, principal objetivo dos jagunços. Para
Danielle Corpas, “os ditames da ferocidade com que o homem tem que lidar no sertão
se convertem em norma de ferocidade do homem.” (CORPAS, 2007, p. 65). No próprio
romance temos várias definições de jagunço:
Um jagunço sai do bando quando quer – só tem que definir a ida e devolver o
que ao chefe ou ao patrão pertence. As armas, eles não devolviam, porque
eram deles; mas, como tinham de primeiro vindo a pé, largavam bem agora
os cavalos. Pegavam era um tanto de matula – trivial de farinha e carne-seca,
e rapadura, para uns três dias, mal. Mesmo assim, era doideira, achei.
(ROSA, 2001, p. 513).
A troca de um bando por outro não pode ser considerada uma questão de
infidelidade, uma vez que a necessidade de mudanças para a manutenção da
sobrevivência é inevitável. Trocar de bando, em alguns casos, é questão estratégica para
a vida tumultuada do sertão. Em relação às alternâncias de bandos, podemos citar
Riobaldo que, primeiramente, integrou o grupo de Zé Bebelo, depois passou a fazer
parte do de Joca Ramiro, bando ao qual Diadorim pertencia e ambos, posteriormente ao
julgamento de Zé Bebelo, se dispersaram e acabaram indo para o bando de Titão Passos.
Ao citarmos o julgamento de Zé Bebelo, é fundamental analisarmos o que ele
significa no que tange à ausência de leis do sertão. A ideia de julgamento permite fazer
uma relação com leis mais abstratas e impessoais. O sertão se torna palco de um
tribunal, para julgarem aquele que, segundo Riobaldo, não poderia ser preso nem
dominado: “Também o que eu não entendia possível era Zé Bebelo preso. Ele não era
criatura que se prende, pessoa coisa de se haver às mãos.” (ROSA, 2001, p. 271).
Riobaldo, ao dizer que Bebelo é pessoa que não se prende, refere-se ao fato de ser um
jagunço letrado, por ter conhecimentos passados por ele. Segundo Riobaldo, Zé Bebelo
era inteligente demais para ser preso.
Para que o julgamento ocorra, Joca Ramiro, o chefão dos jagunços, faz uma
convocação aos jagunços para darem suas opiniões no momento em que Zé Bebelo
fosse julgado. Sô Candelário, Ricardão, Titão Passos, Hermógenes e João Gonhá
participaram de uma das cenas mais marcantes do romance: o julgamento de Zé Bebelo.
Joca Ramiro foi quem propôs o Julgamento de Bebelo, com o intuito de agir sem
injustiça, uma tentativa de instaurar no sertão uma nova forma de organização e de leis.
Antônio Carlos Monteiro de Castro, em seu artigo intitulado “O Tão do sertão –
julgamento e transformação em Grande sertão veredas”, diz que Joca Ramiro, “ao
propor o julgamento, demonstrou outras virtudes necessárias a um Sábio – a renovação
dos costumes e a instauração de uma nova era, e por fim, ao aceitar o banimento,
mostrou flexibilidade política e visão histórica [...]” (CASTRO, 2007, p. 99). Joca
Ramiro mais uma vez espalha sabedoria e bom senso pelos lugares pelos quais passa.
Logo no início, Joca Ramiro dispara: “– ‘Lhe aviso: o senhor pode ser fuzilado,
duma vez. Perdeu a guerra, está prisioneiro nosso... ’” (ROSA, 2001, p. 276). Momento
em que Zé Bebelo não se abate e nem intimida e rebate o grande chefe: “– ‘Com efeito!
Se era para isso, então, para que tanto requifife? ’” (ROSA, 2001, p. 276). Ele achava
que não era necessário julgamento; se o intuito fosse apenas o fuzilamento, este podia
ser feito rapidamente, sem delongas. Esse debate continuaria por horas a fio, afinal
nenhum ia entregar as forças, era o momento de iniciar realmente o julgamento:
“Julgamento, já. Ele mesmo, Joca Ramiro, como de lei, deixava para dar opinião no
fim, baixar sentença. Agora, quem quisesse, podia referir acusação, dos crimes que
houvesse, de todas as ações de Zé Bebelo, seus motivos; e propor condena.” (ROSA,
2001, p. 278), cada qual manifestando seus pontos de vista sobre o que deveria ser feito
com Zé Bebelo; o sertão virou um tribunal e os jagunços transformaram-se em jurados.
Hermógenes começa: “– ‘Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar
este cujo, feito porco. O sangrante... Ou então botar atravessado no chão, a gente todos
passava a cavalo por riba dele – a ver se vida sobrava, para não sobrar!’” (ROSA, 2001,
p. 279). Este, pactário com o demo, tinha sangue nos olhos. Para ele matar, matar e
matar era a solução mais cabível para todos os problemas. Zé Bebelo tentava rebater
Hermógenes, porém ele continuava:
“– ‘Cachorro que é, bom para a forca. O tanto que ninguém não provocou,
não era inimigo nosso, não se buliu com ele. Assaz que veio, por si, para
matar, para arrasar, com sobejidão de cacundeiros. Dele é este Norte? Veio a
pago do Governo. Mais cachorro que os soldados mesmos... Merece ter vida
não. Acuso é isto, acusação de morte. O diacho, cão!’” (ROSA, 2001, p.
279).
Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre
defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. Eh, bê. Mas, para o
escriturado da vida, o julgar não se dispensa; carece? Só que uns peixes têm,
que nadam rio-arriba, da barra às cabeceiras. Lei é lei? Loas! Quem julga, já
morreu. Viver é muito perigoso, mesmo. (ROSA, 2001, p. 285).
Para Riobaldo, Zé Bebelo deveria ser solto, pois ninguém tem o poder de julgar.
Titão Passos concorda com o amigo Sô Candelário: “O que eu acho é que é o seguinte:
que este homem não tem crime constável.” (ROSA, 2001, p. 285). E João Gonhá está de
acordo com ambos: “– meu voto é com o compadre Só Candelário, e com meu amigo
Titão Passos, cada com cada... Tem crime não. Matar não. Eh, diá!...” (ROSA, 2001, p.
286). Ou seja, achavam que não havia nada que pudesse condenar Zé Bebelo à morte.
Antes de Joca Ramiro dar o veredito final, Riobaldo ainda tem a fala:
... A ver. Mas, se a gente der condena de absolvido: soltar este homem Zé
Bebelo, a mãvazias, punido só pela derrota que levou – então, eu acho, é
fama grande. Fama de glória: que primeiro vencemos, e depois soltamos...”
(ROSA, 2001, p. 291).
[...]
Melhor é se ele der a palavra de que vai-s’embora do Estadopara bem longe,
em desde que não fique em terras daqui nem da Bahia... (ROSA, 2001, p.
292).
Para tanto, Hermógenes contou com o auxílio Ricardão e de seus homens; estes
uniram-se para armarem a cilada contra Joca Ramiro nos mostrando que, apesar de os
bandos terem cingindo, Hermógenes ainda conseguia encontrar apoio e cumplicidade
em Ricardão, formando assim outro bando, outro grupo: os judas. O crime foi
considerado uma grande traição e teve repercussão enorme, afinal Joca Ramiro era o
grande Chefe, respeitado e admirado por grande parte dos jagunços. O que vai movê-los
daí em diante é o desejo de fazer justiça. Zé Bebelo retorna ao sertão com o intuito de
vingar a morte de Joca Ramiro, a quem admirava muito. Segundo Antônio Carlos
Monteiro de Castro, “ele encontrava uma arte de governar naquele Grande Chefe. O
reconhecimento do Soberano o colocava como um verdadeiro antagonista de um grande
drama, ser valorizador do protagonista.” (CASTRO, 2004, p. 102). Zé Bebelo sempre
levava em conta o Homem Superior que Joca Ramiro era. Apenas nas últimas páginas
do romance, Hermógenes é morto por Diadorim (filho (a) de Joca Ramiro), ao mesmo
tempo em que é morto (a) pelo pactário.
Outro ponto que podemos destacar em Grande sertão: veredas é a menção ao
personagem histórico da guerra de Canudos (BA): Antônio Conselheiro. A guerra teve
como principais causas a miséria e a pobreza pelas quais passavam os sertanejos e
caracteriza a crise da República Velha, cujos governantes não davam as atenções
necessárias às regiões mais distantes. Era um cenário de miséria, opressão, cujos
políticos ajudavam a agravar esta situação, pois eram indiferentes a esse quadro. Para
Felipe Araújo:
Os problemas na área eram, e ainda são, a falta de chuvas que causa a morte
das plantações e rebanhos e o descuido dos governantes locais. Parte deste
esquecimento dos políticos nasceu na época do Coronelismo, criado no
Império. O coronel dispunha de um título oficial de militar e atuava como um
chefe político local, mandando na região como bem entendia. (ARAÚJO,
2010. s. p.).*2
Seria velhacal? Não fio. E isto, que retrato, é devido à estúrdia opinião que
divulgou em mim esse velho homem. Que, por armas de sua personalidade,
só possuía ali era uma faquinha e um facão cego, e um calaboca – Porrete
esse que em parte ocado e recheio de chumbo, por valer até para mortes.
(ROSA, 2001, p. 536).
2
Artigo sobre a guerra de Canudos, disponível em http://www.historiabrasileira.com/brasil-
republica/guerra-de-canudos/.Acesso em: 12 out. 2013.
Com essa descrição da arma do “velho” é notória semelhança entre as armas de
defesa dos jagunços e as dos cangaceiros; afinal o termo jagunço, além de significar o
indivíduo, caracteriza a arma utilizada por ele. Sendo assim, é importante retomar uma
das definições de jagunço expressa pelo Dicionário Houaiss: “jagunço é também
sinônimo de cangaceiro” (HOUAISS, 2009, p.1124). Atentando-nos para a associação
de jagunço a cangaceiro, relacionamos mais uma vez a presença de Antônio
Conselheiro, afinal podemos lembrar dos cangaceiros combatentes de Canudos. O que
se depreende aqui é uma semelhança entre a Guerra de Canudos (BA) e a Guerra do
contestado (SC e PR), pois ambas ocorreram na Primeira República e eram movimentos
considerados messiânicos, pois tinham como líderes algum religioso que ajudaria os
sertanejos a mudarem o quadro de sofrimento e injustiça social.
Euclides da Cunha descreve o episódio de Canudos, cujo líder era Antônio
Conselheiro. Guimarães Rosa, assim como Euclides, discorre sobre experiências
alternativas de leis; ambos descreviam a busca por melhores condições de vida para os
moradores do sertão. Este relatava a Guerra de Canudos, que tinha como objetivo
melhores condições de vida para os habitantes do sertão e aquele apresentava o
jaguncismo como a tentativa de organização desse sertão. Enfim, ambos não
acreditavam no sucesso da República. Nos dois autores há uma filiação de tema, pois
retratam o sertão e os costumes dos sertanejos. Rosa parece dialogar com Euclides e
esse diálogo pode ser percebido pela temática e pela metáfora da presença de Antônio
Conselheiro. Porém, eles se divergem, entre outros aspectos, na maneira como retratam
o sertão. A noção de sertão euclidiano o caracterizava como lugar vasto de vegetação,
com poucas casas e habitantes. Rosa expande a definição, relatando um sertão além de
geográfico, histórico, sociológico e metafísico, mostrando que o sertão é o mundo, está
em todos os lugares, em cada um de nós.
Enfim, para finalizarmos este capítulo, salientamos que o autor de Cordisburgo
usa de características bem peculiares para a construção de suas personagens. Para
retratar essas características dos jagunços, Rosa utiliza de estratégias que estimula o
leitor a se convencer da consistência da sua escrita e da concretude dos elementos por
ele apresentados. Segundo Beth Brait,
como um bruxo que vai dosando as porções que se misturam num mágico
caldeirão, o escritor recorre aos artifícios oferecidos por um código a fim de
engendrar suas criaturas. Quer elas sejam tiradas de sua vivência real ou
imaginária, dos sonhos, dos pesadelos ou das mesquinharias do cotidiano (...)
(BRAIT, 1987, p. 52).
A despeito de ser uma obra ficcional, Rosa apresenta uma história que nos
permite inferir que esteja remetendo a um momento histórico no qual os jagunços eram
personagens reais do nosso sertão.
Fica claro que Selorico narra a presença de chefes políticos que configuravam a
ordem e a chefia do sertão, fazendeiros de posses (“fazendeiro graúdo”); tinham
companheiros, “agregados valentes”, que cumpriam ordens. Sendo assim, esses
fazendeiros reinavam como mantenedores da ordem sertaneja.
Nesse espaço regido pelo coronelismo estava em voga o “sistema jagunço”. O
jaguncismo é um sistema social típico do espaço sertão que pode ser um ambiente
propício para disputas entre os bandos de jagunços. Para Willi Bole, esse sistema “é o
grande personagem coletivo que constitui o pano de fundo de Grande sertão: veredas: o
corpo político dos donos de terra e gente (...)” (BOLLE, 2004, p. 136). Segundo o autor,
o jagunço, como personagem coletivo, representava todos que povoavam o sertão, os
donos de terra, os políticos, e eles mesmos, os homens livres.
No âmbito de Grande Sertão: veredas, os jagunços são vistos através de
ambivalências. Segundo o Minidicionário da Língua Portuguesa, ambivalência é
“caráter que apresenta dois aspectos ou valores; estado de quem, em determinada
situação, experimenta, ao mesmo tempo, sentimentos opostos.” (FERREIRA, 2001, p.
38). Ou seja, é a oscilação de valores, motivada pelas diferentes situações vividas.
Em Grande sertão: veredas nos deparamos com algumas ambivalências, como
bem e mal, Deus e Diabo, certo e errado, medo e coragem. Elas podem ser vistas de
forma diferenciada, porque dependem do ponto de vista interpretativo de cada leitor e
de cada personagem, o que caracteriza uma das máximas que percorre o romance, qual
seja, “tudo é e não é” (ROSA, 2001, p. 27). Ninguém é totalmente bom ou totalmente
mal, são dois extremos que fazem parte de um mesmo universo, mas nunca podem ser
vistos fora dessa dualidade. Sendo assim, não é possível contemplar apenas uma parte
do todo, mas as várias e por vezes contraditórias faces de um mesmo indivíduo.
Essas ambivalências podem ter cunho social, como a necessidade de se adequar
a um lugar com problemas sociais como a seca, a fome, o abandono e o descaso por
parte do governo, assim como indaga Riobaldo: “Valor de lei! Só assim, davam
tranquilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?!” (ROSA, 2001, p. 14). As
ambivalências propõem uma ideia de travessia, a vida com constantes mudanças; os
personagens se deparando com as “tensões da alma”, vivendo inquietações, indefinições
e oscilações, o que nos leva a inferir que há uma espécie de dialética, de contradições.
Os personagens estão em constante busca de ordenação e organização no mundo.
No plano do romance, essas contradições podem ser provenientes do ambiente
no qual os jagunços estão inseridos, o sertão. Para Sperber, “a entidade sertão é ampla,
tendo tanto de concreto, como de abstrato, tendo tanto de preciso quanto de impreciso,
de indeterminado.” (SPERBER, 1976, p. 114). Ele é um ambiente tumultuado e
conflituoso, no qual os jagunços acabam tendo valores oscilantes, com o fito de
sobressair e alcançar seus objetivos. Eles têm, portanto, que se organizar a partir de
esquemas que variam dependendo da situação. Isso faz com que tais personagens
tenham uma vida ambivalente, assim como afirma Antonio Candido: “o jagunço é,
portanto, aquele que, no sertão, adota uma certa conduta de guerra e aventura
compatível com o meio [...]” (CANDIDO, 2004, p. 113).
Os jagunços são moldados pelo sertão em que vivem. Para Candido, “os homens
são produzidos pelo meio físico. O Sertão os encaminha e desencaminha” (CANDIDO,
2006, p. 117). Eles se adaptavam às condições de vida do sertão. Nesse âmbito, é válido
destacar o episódio da travessia do Liso do Sussuarão, momento no qual os jagunços se
deparam com a fome, a sede e não tinham nada para saciar suas necessidades. É nesse
momento, já fracos, que encontram o que pensaram ser um um macaco e optaram por
matá-lo para saciar a fome: “Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam
zuretados de fome – caça não achávamos – até que tombaram à bala um macaco
vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo.” (ROSA, 2001, p. 70). Não
obstante, tiveram grande surpresa, pois não encontraram o rabo do macaco: “Era
homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de aviso,
chorando e explicando: era criaturo de Deus, que nu por falta de roupa...” (ROSA, 2001,
p. 70). Assim, desolados, todos começaram a passar mal: “Não se achou graça. Não,
mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha não tinham. E eu
lancei. Outros também vomitavam. A mulher rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com
febre, diversos perrengavam.” (ROSA, 2001, p. 70).
A fome fez com que eles matassem um ser humano achando que era um macaco;
a necessidade de lutar pela sobrevivência falou mais alto; as condições adversas do
sertão acabaram condicionando-os a tentarem adaptar-se a ela, pois só assim teriam
chance de resistir, de continuar vivendo. Depois de descoberto o engano, muitos
jagunços temiam as doenças provenientes da carne humana: “Depois Medeiro Vaz
passou mal, outros tinham dores, pensaram que carne de gente envenenava.” (ROSA,
2001, p. 71).
Podemos considerar um episódio de canibalismo em Grande sertão: veredas,
pois há uma prática de consumo de carne humana. Na concepção de Eliane Knorr de
Carvalho, em seu artigo “Canibalismo e antropofagia: do consumo a sociabilidade”, “o
termo canibalismo é usado mais frequentemente, com relação ao ato de comer a carne
para saciar a fome ou uma vontade...”. (CARVALHO, 2008, p. 1). É o que ocorre no
romance rosiano, posto que os jagunços mataram o homem, mesmo que enganados,
com o intuito de saciar a fome que eles tinham. Assim era vida sertaneja, valia de tudo
para viver; luta constante pela sobrevivência. Ainda na concepção de Carvalho, agora
em sua dissertação de mestrado Canibalismo e normalização, “nas situações em que o
canibalismo foi impulsionado pela fome existe certa compaixão com os canibais. Eles
acabam sendo vistos como vítimas de circunstâncias sempre traumáticas.”
(CARVALHO, 2008, p. 63-64). Ou seja, a prática canibal em alguns casos, como em
Grande sertão: veredas, pode ser motivada por situações extremas, por momentos nos
quais o canibalismo é a única alternativa para não se padecer de fome. O que se
depreende aqui é que a própria noção de civilidade é inconstante, é relativizada. Vale
ressaltar que essa noção de vítima só é válida quando o canibalismo é motivado por
situações em que a vontade própria não prevalece, quando não há controle sobre as
ações; qualquer outra motivação para tal prática é injustificável, assim como conclui
Carvalho:
o canibal enquanto vítima é suportável, pois a vítima não tem vontade, ela é
submetida à uma situação arbitrária fora seu eu controle. Qualquer elemento
de desejo é anulado quando se confere a alguém esta condição. Mas se por
algum outro motivo que não for de extrema necessidade [...] estas pessoas
voltarem a praticar o canibalismo, perdem o seu status de vítima, e passam a
ser consideradas loucas, criminosas, monstruosas, anormais. (CARVALHO,
2008, p.64).
Diadorim estava me esperando. Ele tinha lavado minha roupa: duas camisas e
um paletó e uma calça, e outra camisa, nova, de bulgariana. Às vezes eu
lavava a roupa, nossa; mas quase mais quem fazia isso era Diadorim. Porque
eu achava tal serviço o pior de todos, e também Diadorim praticava com mais
jeito, mão melhor. (ROSA, 2001, p. 51).
É fundamental analisarmos a expressão “mão melhor”, utilizada na passagem
anterior, uma vez que ao utilizá-la Guimarães Rosa deixa transparecer o caráter
ambíguo da personagem Diadorim. Uma leitura rápida permite a construção “mão
molher”, em que a mudança de um fonema dentro de uma mesma palavra, a metátese
das vogais “e” e “o” sugere outro significado, permitindo inferir a forma “mão de
mulher”, propícia para os afazeres domésticos, para os dotes femininos, o que reforça a
dualidade da personagem, que não é notada apenas no plano interpretativo, mas também
se manifesta no plano da escrita.
O próprio nome Diadorim sugere traços femininos, provenientes de nomes de
mulheres, sonora e graficamente parecidos, como Diadorinha – Diadora – Deadora.
Diadorim, durante toda a narrativa, é apresentado como homem, salvo algumas pistas
para as quais precisamos estar muito atentos; apenas no final do romance sua identidade
de mulher é apresentada ao narratário – o doutor da cidade – e ao leitor. Para Antonio
Candido, “Diadorim é uma experiência reversível que une fasto e nefasto, lícito e ilícito,
sendo ele próprio duplo na sua condição.” (CANDIDO, 2006, p. 115). Ainda para
Candido, em seu estudo “Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa”, temos a
seguinte definição para jagunço:
Além disso, esse mesmo nome – Diadorim – sugere outra ambivalência, afinal
podemos relacioná-lo tanto ao que é divino quanto ao que é demoníaco. De acordo com
Sperber, “Diadorim pode ser Di, [...] da raiz latina, que confere a Diadorim uma
identificação com a divindade. Diadorim também pode ser ‘Diá’, [...] entidade maligna,
o ‘outro’ o ‘Que-diga’, o ‘Diabo’.” (SPERBER, 1976, p. 112-113).
Em síntese, os costumes, os traços físicos, os hábitos, a grafia e a sonoridade do
nome de Diadorim fazem dele (a) um ser oscilante entre o que é feminino e o que é
masculino. Esse é um grande enigma que povoa a narrativa rosiana.
Agora, é de grande relevância atentar para as pistas que sugerem a identidade
feminina de Diadorim, em contraponto àquelas em que a identidade de jagunço é
ressaltada, mostrando cada vez mais as oscilações de Diadorim entre o jagunço e a
donzela.
Diadorim (Reinaldo) e Riobaldo tinham uma relação muito íntima,
ultrapassando os limites da amizade e companheirismo de jagunços. Diadorim via a
vida no sertão com mais sensibilidade; valorizava, entre outras coisas, a beleza dos
pássaros, enquanto Riobaldo era mais frio, alheio; não reparava em tais detalhes.
Diadorim o ensina a ver o sertão com outros olhos, assim como é perceptível na
passagem a seguir:
A relação de Riobaldo e Reinaldo era tão singular, tão afetiva, que chegaram a
fazer o que podemos chamar “pacto de amor”, quando Reinaldo faz a grande revelação
do verdadeiro nome: “– ‘Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim... Guarda este
meu segredo. Sempre, quando sozinhos a genteestiver, é de Diadorim que você deve de
me chamar, digo e peço,Riobaldo... ’” (ROSA, 2001, p. 172). No momento em que
Diadorim faz essa revelação, Riobaldo entende que esse segredo significaria ter que
cuidar dele e o proteger sempre, dando pistas de que ele era um ser sensível, que
necessitava de cuidado e carinho, assim como é notório neste excerto do próprio
romance:
Riobaldo relata ao leitor que num dado momento quando pensou em Diadorim
um João-de-Barro ecoou seu canto. Esse pássaro é conhecido por construir sua casa no
alto das árvores para proteger sua fêmea. O João-de-Barro, quando encontra sua fêmea,
não separa jamais, é uma aliança eterna, que não se desfaz. Pode-se inferir, portanto,
que o principal anseio de Riobaldo era proteger e estar para sempre ao lado de
Diadorim.
É fundamental nos atermos à expressão “mano-oh-mão”, utilizada no trecho
anterior. Uma leitura desatenta pode nos permitir a construção “homão”, indicando que
Diadorim era, por outro lado, um homenzarrão, com características bem viris, que o
definia como macho. Isso só nos mostra, mais uma vez, o quanto Diadorim/Reinaldo
era ambíguo e enigmático.
Desde o primeiro momento em que Riobaldo viu Diadorim, na infância,
atravessando o rio, quando este o ensinou a ser mais forte, mais valente, algo estranho
se manifestou dentro dele; um sentimento muito forte e sem qualquer explicação
plausível, o que movia Riobaldo era a vontade de estar junto de Diadorim, de poder
senti-lo, abraçá-lo, independente de qualquer circunstância ou de explicação para tal
sentimento. Atentemo-nos para os desejos que Riobaldo apresenta ao leitor: “Que
mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e
eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as
muitas demais vezes, sempre...” (ROSA, 2001, p. 55). O que fica explícito, então, é o
grande amor de Riobaldo por Diadorim; amor que o afligia e vem a entender quando
Diadorim foi morto por Hermógenes e há a grande revelação da sua identidade de
mulher.
No romance, Riobaldo conta ao interlocutor sobre seu segundo encontro com o
Menino, com Reinaldo. Através de como o descreve podemos inferir que seja uma
descrição de alguém pertencente ao sexo feminino, uma vez que os traços descritos,
finos e “afiladinhos”, são mais característicos das mulheres. A descrição feita por
Riobaldo é muito sutil e delicada. Além disso, Riobaldo manifesta o desejo de ir abraçá-
lo, mas hesita por falta de coragem, posto que estava ansiando correr, abraçar e sentir
alguém do mesmo sexo que o seu:
Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma
vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria
entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer
tantos atos, dar corpo ao suceder. (ROSA, 2001, p. 116).
Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não
sabendo, não me entenderá. Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou. O
que há, que se diz e se faz – que qualquer um vira brabo corajoso, se puder
comer cru o coração de uma onça-pintada. É, mas, a onça, a pessoa mesma é
quem carece de matar; mas matar à mão curta, a ponta de faca! Pois, então,
por aí se vê, eu já vi: um sujeito medroso, que tem muito medo natural de
onça, mas que tanto quer se transformar em jagunço valentão – e esse homem
afia sua faca, e vai emsoroca, capaz que mate a onça, com muita inimizade; o
coração come, se enche das coragens terríveis! (ROSA, 2001, p. 170).
Com todas as dúvidas que rodeavam sua vida, Riobaldo começa a mencionar o
pacto:
Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um
porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de
com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava
das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma...
invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna
supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma
absoluta! (ROSA, 2001, p. 40-41).
Riobaldo se questiona, diz que não quer mais discutir a existência do demônio,
porém ainda tinha uma questão que lhe causava estranheza, será se é realmente possível
se vender ao demônio. Mas ele mesmo chega à conclusão (ou pelo menos tenta
acreditar) de que a alma é algo sagrado, supremo, não pode ser vendida, negociada. É
perceptível que, apesar do desejo de se pactuar com o demo, Riobaldo tenta negar que
ele existia. Para Antonio Candido, “Grande sertão: veredas é um livro de realismo
mágico, lançando antenas para um supermundo metafísico, de maneira a tornar possível
o pacto, e verossímil a conduta do protagonista.” (CANDIDO, 2011, p. 77).
De tanto ouvir falar sobre o demo e sobre o pacto que pode ser feito com ele,
Riobaldo conta ao doutor da cidade e aos leitores o ritual que deve ser feito para
conseguir pactuar com o demônio:
Pensei em Diadorim. O que eu tinha de querer era que nós dois saíssemos
sobrados com a vida, desses todos os combates, acabasse a guerra, nós dois
largávamos a jagunçada, íamos embora, para os altos Gerais tão ditos, viver
em grande persistência. (ROSA, 2001, p. 224).
Riobaldo queria mesmo era romper com qualquer paradigma e tradição; queria
largar o mundo jagunço, as guerras, as lutas e anseios, queria poder viver todo aquele
sentimento que guardava dentro do peito.
Esse sentimento era tão intenso que em certo momento do romance, quando
Riobaldo acorda e percebe que Diadorim o estava olhando dormir, descobre que
realmente não há como fugir de um sentimento tão grande, que invadiu sua vida e seu
coração:
Mel se sente é todo lambente – “Diadorim, meu amor...” Como era que eu
podia dizer aquilo? Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter
vergonha maior, o pensamento dele que em mim escorreu figurava diferente,
um Diadorim assim meio singular [...] Um Diadorim só para mim. Tudo tem
seus mistérios. (ROSA, 2001, p. 307).
O mistério de amar Diadorim enchia sua vida de angústias e incertezas, mas ao
mesmo tempo amava e deseja que Diadorim fosse seu, exclusivamente seu, para juntos
viverem um amor único e singular.
Somente nas últimas páginas do romance, após a morte de Diadorim, Riobaldo
descobre que ele era na verdade Maria Deodorina, o grande amor de sua vida. Riobaldo
se desesperou e passou por um sofrimento imensurável ao olhar o corpo de Diadorim:
Restou a Riobaldo seguir certeza: na vida não encontramos respostas para todas
as nossas indagações e incompletudes. As dúvidas e o aprendizado andam sempre
juntos, são diferentes faces de um mesmo mundo, afinal tudo na vida é TRAVESSIA.
Conclusão
Tudo que foi escrito por Rosa tinha um propósito, o acaso não fazia parte de
seus objetivos e não foi diferente ao falar dos jagunços, da sociedade jagunça como um
todo. Para ele, o jagunço era uma espécie diferente, recheado de aventuras, sentimentos
e comportamentos oscilantes; o jagunço era um ser peculiar, com características que o
diferenciavam dos demais, “porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de
amizades estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é
feito um por si.” (ROSA, 2001, p. 44). Cada jagunço é único e vive com as qualidades e
defeitos que tiverem, sem muitas amizades e relações estreitas, salvo momentos em que
a necessidade fala mais alto.
O jagunço não é uma pessoa comum, simples e, portanto, é muito dificultoso
falar sobre ele, defini-lo e analisá-lo, ele é muito complexo: “jagunço se rege por um
modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor.” (ROSA, 2001, p. 183);
“Lei de jagunço é o momento, o menos luxos.” (ROSA, 2001, p. 284); jagunço, pelo
que é, quase que nunca pensa em reto...” (ROSA, 2001, p. 291); “Triste é a vida do
jagunço...” (ROSA, 2001, p. 414); “jagunço não passa de ser homem muito provisório.”
(ROSA, 2001, p. 429); “a função do jagunço não tem seu que, nem p’ra que.” (ROSA,
2001, p. 440); “Jagunço é o sertão.” (ROSA, 2001, p. 327). Ou seja, o jagunço não tem
uma definição arraigada, não é fixo, é efêmero, oscilante, transitório, sua vida é
ambivalente, os valores dos quais se cerca são embasados no momento e na situação em
que se encontra.
É importante destacar aqui a ambivalência que é inerente à vida dos jagunços;
além das questões do bem e mal, certo e errado, Deus e Diabo, etc., há, em síntese,
variações do comportamento jagunço, das atitudes que estes têm diante dos obstáculos e
imposições do sertão. Para eles, mudar de bando, de princípios era cotidiano, claro, se
houvesse necessidade; crenças e valores eram mutáveis, as coisas são sempre bastante
relativizadas; nada é fixo, arraigado, pronto e/ou acabado.
Diante de tudo que foi analisado no decorrer desta pesquisa, podemos dizer que
este trabalho tem importância significativa para estudos posteriores sobre os jagunços
rosianos, contribuindo também, de maneira mais ampla, com a fortuna crítica do
romance Grande sertão: veredas. Este trabalho quis mostrar a vida ambivalente dos
jagunços que povoavam a narrativa e o sertão de Rosa, com o fito de analisar as razões
que pudessem justificar essa vida dual, marcada por oscilações de ideais e princípios.
Os jagunços eram dotados de grande importância na ficção rosiana, não foi à toa que
apareceram e foram nomeados mais de 200 jagunços ao longo da história. O narrador-
personagem de Grande sertão: veredas nos afirma que “o jagunço é o sertão” (ROSA,
2001, p. 327) e que “O sertão está em toda a parte” (ROSA, 2001, p. 24), ou seja, o
jagunço é aquele que povoa o sertão, o sertão lugar, sertão sentimento, sertão mundo, o
sertão que está dentro de cada um de nós. Tudo é vago, provisório, impreciso, afinal a
vida não passa de uma grande e maravilhosa travessia.
Enfim, “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a
gente é no meio da travessia.” (ROSA, 2001, p. 80). “Travessia perigosa, mas é a da
vida.” (ROSA, 2001, p. 558).
Referências
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Balancin. São Paulo: Edição Pastoral. 1990.
Ambivalência, capanga, donzela. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 38, 128, 245.
ANDRADE, Maria das Graças Drumond; MIRANDA, Newton Luiz de. Apostila
Ensino Médio. Rede PQS, 2006. Isso não é material para servir de referência numa
monografia, a menos que seja o objeto de estudo.
BOLLE, Willi. grandesertão.br. O romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas
cidades; Ed. 34, 2004.
BOLLE, Willi. O Brasil jagunço: retórica e poética. Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros, São Paulo, n. 47, p. 141-158, 2007.
BRAIT, Beth. A personagem. 3. ed: Ática. São Paulo, 1987.
CANDIDO, Antonio. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In: CANDIDO,
Antonio. Vários escritos. 4. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre o Azul, 2004. p. 99-124.
CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. In: CANDIDO, Antonio. Tese e Antítese.
5. ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre o Azul, 2006. p.111-130.
Cangaceiro, exílio, desterro, jagunço. In: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de
Salles. Dicionário Houaiss da Língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p.
386, 670, 856, 1124.
CARDOSO, RayanneKételle. Sertão lugar, sertão homem, sertão linguagem, ser tão
sertão: Tudo é e não é; do regional ao universal. Montes Claros, Unimontes, 2012, 63 p.
Monografia de graduação em Letras Português.
CARVALHO, Eliane Knorr de. Canibalismo e antropofagia: do consumo à sociabilidade.
Disponível em
http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XIX/PDF/Autores%20e%20Artigos/Elian
e%20Knorr%20de%20Carvalho.pdf. Acesso em: 26/09/2013.
REBELLO, Ivana Ferrante. Poética de atrito. Pedras, jogo e movimento no Grande Sertão.
Belo Horizonte, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2011. 235 p. Tese de
Doutorado.
http://www.historiabrasileira.com/brasil-republica/guerra-de-canudos/Acesso em: 12
out. 2013.
ANEXO 1 – Jagunços em Grande sertão: veredas
Passa por tropeiro liderado por Titão 157, 163, 166, 201,
Acrísio
Passos, um dos tenentes de Joca 336, 355, 378.
Ramiro. Viajando disfarçado, procura
conhecer o terreno por onde deve
viajar a tropa que transporta dos
esconderijos as armas e a munição.
Possuía, antes de entrar na guerra, a
profissão de tropeiro vindo do Rio das
Velhas, junto com Jenolim e João
Vaqueiro. Morto pelos hermógenes no
cerco à Fazenda dos Tucanos. Em sua
morte, os companheiros veem uma
quietude que não mostrava em vida.
84.
Arduininho
461, 560.
Jagunço pai de Sinfrônio, “era um
Assunciano
homem sem pescoço.” (ROSA, 2001,
p.560).
Berósio 360.
Borromeu “Um cego; ele era muito 462, 465, 466, 469, 470,
amarelo, escreiento, 483, 491, 493, 530, 565,
transformado.” (ROSA, 574, 575, 598, 601,606,
2001, p.462). 607, 609, 612, 614.
Credo 108.
Dagobé 190.
Deovídio 84.
“Diadorim, duro sério, tão 37, 40, 42, 44, 45, 46, 48,
bonito, no relume das 49, 51, 52, 53, 54, 55, 56,
brasas.” 57, 65, 66, 68, 69, 70, 71,
(ROSA, 2001, p.45). 72, 77, 78, 79, 80, 81, 86,
Jagunço dotado de grande 88, 94, 95, 96, 97, 98, 99,
ambivalência. Diadorim 100, 102, 106, 108, 109,
conseguia apresentar 110, 114, 172, 173, 174,
atributos masculinos para 175, 176, 177, 184, 185,
viver e guerrear no sertão. 186, 187, 188, 190, 191,
Diadorim (Reinaldo) Porém, dava alguns vestígios 195, 196, 197, 198, 199,
de características 200, 202, 203, 204, 205,
predominantemente 206, 207, 208, 209, 210,
femininas: “Às vezes eu 211, 212, 213, 214, 215,
lavava a roupa, nossa; mas 216, 218, 219, 224, 225,
quase mais quem fazia isso 233, 234, 236, 243, 244,
era Diadorim. Porque eu 246, 247, 248, 253, 254,
achava tal serviço o pior de 255, 257, 258, 259, 260,
todos, e também Diadorim 261, 262, 264, 265, 266,
praticava com mais jeito, 268, 269, 270, 272, 273,
mão melhor.” (ROSA, 2001, 279, 282, 286,289, 293,
p.51). Nessa fala de 296, 297, 298, 299, 300,
Riobaldo, percebemos que 301, 302, 304, 305, 306,
com olhar atento, é possível 307, 308, 309, 310, 311,
identificar em Diadorim 312, 314, 315, 316, 319,
alguns traços femininos. 320, 321, 323, 324, 325,
Diadorim, na verdade, era a 326, 327, 330, 332, 334,
moça Maria Deodorina da Fé 336, 337, 338, 339, 340,
Bettancourt Marins, filha do 341, 343, 346, 350, 354,
grande chefe de jagunços 363, 368, 369, 370, 376,
Joca Ramiro. Ela se vestia de 377, 379, 381, 382, 383,
homem para apresentar 386, 387, 388, 389, 390,
características adequadas 391, 392, 393, 394, 396,
para viver no ambiente 407, 409, 413, 419, 422,
tumultuado do sertão. 423, 425, 427, 431, 434,
Apenas no final do romance, 443, 444, 449, 450, 452,
com sua morte, que ocorre a 458, 459,464, 467, 469,
revelação que Diadorim 472, 473, 474, 480, 481,
pertencia ao sexo feminino. 482, 484, 485, 495, 497,
498, 499, 500, 501, 503,
504, 505, 506, 507, 509,
510, 511, 512, 517, 518,
519, 520, 522, 526, 529,
530, 531, 533, 539, 541,
545, 546, 549, 550, 551,
553, 554, 555, 557, 561,
566, 568, 574, 576, 579,
582, 583, 584, 588, 591,
592, 593, 597, 598, 599,
603,604, 608, 610, 611,
612, 614, 615, 617, 621.
Dimas Dôido “... doido mesmo não era, só 108, 336, 342, 559.
valente e esquentado.”
(ROSA, 2001, p.336).
Diodato (Diodato Nariz) Jagunço do Alto Urucuia, 512, 513, 514.
“quieto, certo e bem
procedido.” (ROSA, 2001, p.
512).
Diodôlfo “... mexendo os beiços num 201, 336, 352, 375, 376,
bis-bis: que era que sem 383, 559.
preguiça nenhuma rezava
baixo, ou repetia coisas de
mal, da vida alheia,
conversando com si-
mesmo.” (ROSA, 2001,
p.559). Morto pelos
hermógenes no cerco à
Fazenda dos Tucanos.
Dos-Anjos “... era o falador; e que foi 401, 402, 564, 565.
quem veio adiante, saudar Zé
Bebelo e render
explicação...” (ROSA, 2001,
p. 401).
Duzentos 336.
Feliciano 103.
Figueiró 84.
Filgueiras 128.
hermógenes (os do Bando de jagunços chefiado 72, 200, 214, 329, 333,
Hermógenes) por Hermógenes. 340, 349, 356, 357, 361,
362, 372, 540, 558, 568,
571, 572, 578, 606.
336, 533.
Jalapa
129.
João Brandão
“[...] João Concliz, que com 40, 101, 102, 103, 106,
João Concliz
o Sesfredo porfiava, 108, 109, 111,112, 113,
assoviando imitado de toda 270, 334, 341, 343, 378,
qualidade de pássaros, este 385, 394, 464, 469, 522,
nunca se esquecia de nada 548, 553, 559, 569, 579,
[...]” (ROSA, 2001, p. 334- 612, 613, 617.
335).
“João Goanhá, por valentão 82, 83, 85, 96, 99, 102,
João Goanhá
e verdadeiro, nem carecia de 183, 190, 194, 215, 235,
estadear orgulho. Pessoa 255, 274, 277, 286, 296,
muito leal e briosa.” 301, 313, 316, 320, 433,
(ROSA, 2001, p. 82). 434, 450, 451, 452, 454,
464, 469, 522, 548, 553,
554, 566, 571, 579, 606,
612.
514.
João Tatú
“[...] Joca Ramiro – grande 33, 52, 54, 57, 60, 81, 83,
Joca Ramiro (José Otávio
homem príncipe!” 102, 105, 106, 126, 132,
Ramiro Bettancourt (ROSA,2001, p. 33). Joca 133, 136, 186, 187, 193,
Ramiro era um grande chefe 194, 195, 196, 197, 198,
Marins, o Chefe)
de jagunços. Tinha o 218, 223, 244, 246, 247,
respeito de todos que 257, 258, 264, 265, 266,
chefiava e até dos que eram 268, 269, 270, 271, 272,
rivais. Pai de Diadorim, era 274, 275, 276, 277, 278,
um homem bom, justo e 280, 281, 282, 283, 285,
admirado por todos. Foi 286, 287, 288, 289, 290,
morto de forma traiçoeira 291, 292, 293, 294, 295,
pelo pactário Hermógenes. 296, 297, 298, 299, 300,
Depois disso, os jagunços 301, 302, 311, 312, 314,
seus seguidores, liderados 315, 319, 326, 346, 370,
por Zé Bebelo, lutaram para 378, 380, 382, 390, 425,
vingar sua morte. Joca 430, 444, 445, 462, 549,
Ramiro era o líder sábio, 550, 604.
justo, corajoso. Aparece
como representação das
virtudes.
336.
José Micuim
190.
Juvenato
92.
Leôncio Du
336.
Liberato
129.
Lióbas
“Chefe nosso, Medeiro Vaz, 33, 43, 46, 47, 50, 51, 52,
Medeiro Vaz
nunca perdia guerreiro. 56, 59, 60, 61, 62, 64, 65,
Medeiro Vaz era homem 66, 67, 69, 70, 71, 72, 73,
sobre o sisudo, nos usos 79, 80, 82, 87, 89, 91, 94,
formado, não gastava as 95, 96, 97, 102, 105, 107,
palavras. Nunca relatava 115, 126, 156, 173,
antes o projeto que tivesse, 185, 210, 213, 313, 317,
que marchas se ia 320, 323, 324, 326, 346,
amanhecer para dar. 395, 469, 471, 496, 508,
Também, tudo nele decidia 520, 521, 522, 548, 564.
a confiança de obediência.
Ossoso, com a nuca enorme,
cabeçona meia baixa, ele era
dono do dia e da noite – que
quase não dormia mais:
sempre se levantava no
meio das estrelas, percorria
o arredor, vagaroso, em
passos, calçado com suas
boas botas de caititu, tão
antigas.” (ROSA, 2001, p.
46-47). Chefe de jagunços
que vai unir-se aos homens
de Joca Ramiro para tentar a
vingança contra Ricardão e
Hermógenes.
128, 129.
Neco (Manoel Tavares de
Sá)
Nelson
40, 336, 398, 400, 452,
522.
336.
Nhô Faísca
385, 387.
Nicolau
O-Bispo 514.
35, 368.
OlivinoOliviano
461.
Osirino
336.
Osmundo
336.
Pau-na-Cobra
336.
Pedro Afonso
84.
Pedro Bernardo
336.
Pedro Pintado
363.
Quiabo
446.
Ragásio
336.
Remigildo
129.
Renovato
267.
Roque
136.
Rozendo Pio
190, 268.
Sangue-de-Outro
79.
Santos-Reis
“O Sesfredo comia muito. 40, 80, 81, 85, 86, 88, 94, 98,
E sabia assoviar seguido, 108, 189, 196, 334, 386, 571.
Sesfrêdo
copiando o de muitos
pássaros.” (ROSA, 2001,
p. 81).
134, 135.
Sié-Marques
“Soubessem que esse seo 467, 469, 470, 472, 473, 474,
Seo Ornelas
Ornelas era homem bom, 475, 476, 477, 478, 618, 619,
(JosafáJumiro Ornelas) descendente, posseiro de 620.
sesmaria. Antes, tinha
valido, com muitos
passados, por causa de
política.” (ROSA, 2001, p.
467).
461.
Sinfrônio
Bando de jagunços
sô-candelários
liderado por Sô
Candelário.
Sólon Nelson
84.
84, 263.
Sucívre
“[...] outro rastreador, feito 63, 335, 385, 414, 415, 496,
Suzarte
cão cachorro ensinado, boa 497, 522, 559, 571, 578.
pessoa [...]” (ROSA, 2001,
p. 335).
84.
Toquim
336, 580.
Trigoso
Triol 40, 157, 298, 310, 617.
Umbelino
“[...] tinha cara de gato.” 249.
(ROSA, 2001, p. 249).
201.
Ventarol
“Zé Bebelo era inteligente e 33, 91, 92, 93, 94, 104,
Zé-Bebelo (Zé-Bebelo Vaz
valente. Um homem 105, 106, 107, 108, 109,
Ramiro; José consegue 110, 111, 112, 113, 126,
intrujar de tudo; só de ser 144, 145, 146, 147, 148,
RebêloAdroAntunes)
inteligente e valente é que 149, 150, 151, 152, 153,
muito não pode. E Zé 160, 166, 167, 175, 177,
Bebelo pegava no ar as 183, 185, 187, 188, 190,
pessoas. No regular, Zé 214, 215, 223, 226, 235,
Bebelo pescava, caçava, 243, 253, 255, 256, 259,
dançava as danças, exortava 267, 268, 269, 270, 271,
a gente, indagava de cada 272, 273, 274, 275, 276,
coisa, laçava rês ou topava 277, 279, 280, 281, 282,
à vara, entendia dos 283, 284, 285, 287, 288,
cavalos, tocava violão, 289, 290, 291, 292, 293,
assoviava musical; só não 294, 296, 297, 298, 299,
praticava de buzo nem 300, 301, 319, 324, 326,
baralho – declarando ter 329, 331, 333, 334,
receios, por 336, 337, 338, 340, 343,
atreito demais a vício e 344, 345, 346, 347, 348,
riscos de jogo.” (ROSA, 349, 350, 351, 352, 353,
2001, p. 92-93). Foi 354, 355, 357, 358, 360,
obrigado a exiliar-se do 362, 363, 364, 365, 366,
sertão. Os demais jagunços 367, 368, 371, 372, 373,
acharam que ele tinha 374, 375, 376, 377, 378,
relações com o governo e, 379, 380, 381, 382, 383,
portanto, tinha ideias 384, 385, 386, 394, 395,
opostas. Zé Bebelo retornou 396, 397, 401, 402, 403,
ao sertão e integrou um 404, 406, 407, 409, 411,
bando de jagunços que era 412, 413, 414, 415, 416,
liderado por Joca Ramiro, 420, 421, 427, 428, 429,
tudo isso com o fito de 430, 431, 432, 433, 434,
vingar a morte do grande 441, 442, 444, 445, 447,
chefe. 448, 449, 450, 451, 452,
453, 454, 455, 466, 474,
485, 490, 492, 496, 502,
503, 512, 514, 515, 516,
526, 527, 534, 540, 547,
548, 569, 621, 622, 623.
336.
Zé Beiçudo
3
36.
Zé Geralista
313.
Zé Inocêncio
336.
Zé Onça
336.
Zé Paquera