Construção Do Caso Clínico
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Construção Do Caso Clínico
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mental, estamos indicando a qualidade multiprofissional e interdisciplinar
desse campo, e recusando uma certa oposição entre psiquiatria e saúde mental
que em nada seria benéfica para nosso trabalho, seja na clínica ou na política
institucional. Além disso, a psiquiatria é o campo no qual historicamente se
desenvolveram os conceitos psicopatológicos, e hoje temos aí diferentes
disciplinas convergindo na direção do diagnóstico, da localização do pathos
do sujeito, como balizador do tratamento, formando um novo campo para a
psicopatologia.
A psicanálise, herdeira da psiquiatria, tem como sua herança a própria
psicopatologia. Basta ver os grandes nomes alemães – principalmente
Kraepelin e Bleuler – até os franceses como Charcot, seu mestre, Liébault,
Bernheim, e mesmo Janet, cuja concepção de inconsciente Freud refuta
claramente, propondo o contrário: em vez de astenia psíquica, excitação de
traços de memória. Freud, ao tomar seu rumo na direção do inconsciente,
lança a psicanálise numa nova referência que redimensiona o alcance do
diagnóstico, indo da descrição à dinâmica; do fenômeno à estrutura
(Figueiredo & Machado 2000). Um novo campo aí se delineia por oposição
ao campo fenomênico-descritivo da psiquiatria e da psicopatologia geral, a
saber: o campo do inconsciente e suas formações (Freud) ou o campo do
Outro (Lacan). Essa concepção rompe com as concepções anteriores de
diagnóstico e tratamento da psiquiatria criando novas exigências para ambos
e abrindo uma nova porta para a psicopatologia.
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campo da saúde mental, como: a reabilitação, a cidadania, a autonomia e a
contratualidade, que visam ampliar as relações sociais dos usuários e fazer
proliferar suas possibilidades. O singular, nesse caso, seria a articulação do
particular de uma referência diagnóstica (histeria, esquizofrenia paranóide, etc.)
com o movimento do sujeito do inconsciente. Aqui, se dá uma primeira diferença:
o sintoma não vai sem o sujeito, nem o sujeito pode ser pensado sem o seu
sintoma. Um constitui o outro, melhor dizendo, um se constitui no outro, o sujeito
através do sintoma e vice-versa. Nesse sentido, diagnóstico e tratamento seriam
indissociáveis e intercambiáveis: o tratamento também definiria o diagnóstico e não
apenas o contrário.
Na psiquiatria atual, não há um diagnóstico do sujeito e sim de uma coleção
de fenômenos que nada dizem a respeito dele. Um exemplo gritante disso ocorre
com a categoria diagnóstica de histeria. De acordo com os manuais diagnósticos
em psiquiatria (CID 9 e 10, DSM III e IV), a histeria “sumiu do mapa”, não existe
mais, acabou. Existem descrições de todo tipo que fragmentam essa categoria em
síndromes e transtornos: dissociativo, conversivo ou somatoforme, histriônico,
para citar os principais. Assim, a histeria só existe se atrelada à concepção de
inconsciente e, portanto, à própria psicanálise. A psicanálise faz a histeria existir.
Entretanto, o que interessa marcar não é o fato de ressuscitar uma
determinada categoria psicopatológica entre outras com o mesmo caráter
descritivo da psicopatologia geral. Isso seria cair num relativismo classificatório,
fazendo variações sobre um mesmo tema. O que interessa é que a psicanálise, ao
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fazer a histeria existir, primeiramente, reconhece uma dívida, já que foi a histeria,
melhor dizendo, as histéricas que fizeram a psicanálise existir. E, o que é mais
importante, porque a maneira de fazer o sujeito existir é trazer à cena do
tratamento o sujeito do inconsciente que se apresenta por meio de seu sintoma.
É essa articulação que muda o eixo da discussão diagnóstica e de tratamento
(Figueiredo & Tenório, 2001).
Nas psicoses acontece algo semelhante, se não evocarmos o sujeito com sua
palavra e sua responsabilidade desde o primeiro momento, se só o tutelarmos,
estaremos decretando o fracasso da clínica e de qualquer transformação na
psiquiatria (Tenório, 2001).
Essa relação estreita do sujeito ao sintoma – seja o sintoma neurótico ou as
produções psicóticas –, por si já marca uma diferença radical com a concepção
funcionalista-organicista de uma certa psiquiatria e sua psicopatologia, que se
propõe justamente a separar os dois termos, a não estabelecer qualquer ligação
entre eles e, portanto, a distinguir ao máximo o diagnóstico do tratamento, tanto
no método quanto na dinâmica.
Se o sintoma não vai sem o sujeito, e esse sujeito é o do inconsciente, o
sintoma, como já sabemos, é uma formação (neurose) ou uma exposição do
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inconsciente (psicose). Lacan refere-se ao inconsciente na psicose como estando
“a céu aberto”. Um estudo de caso, então, não pode mais ser um relato compilado
de acontecimentos e procedimentos dispostos em uma seqüência com critérios
pré-estabelecidos a serem preenchidos. Este é o caso da anamnese, que resulta
na súmula psicopatológica padronizada que viceja nas sessões clínicas da
psiquiatria. Aqui está a diferença, todo o esforço diagnóstico deve se deslocar
dessa assepsia para trazer à cena o sujeito e suas produções. E este só aparece
pela via do discurso, no qual podemos localizar seu sintoma ou seu delírio.
A construção do caso
O outro termo, caso, se refere ao latim cadere, que quer dizer “cair”.
Segundo Viganò (1999, p. 51): “... ir para fora de uma regulação simbólica;
encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível, portanto impossível de
ser suportado”.
Quanto à clínica, sabemos que vem do grego kline, leito; o sentido da clínica
é o debruçar-se sobre o leito do doente e produzir um saber a partir daí. Em suma,
a “construção do caso clínico” em psicanálise é o (re)arranjo dos elementos do
discurso do sujeito que “caem”, se depositam com base em nossa inclinação para
colhê-los, não ao pé do leito, mas ao pé da letra. Incluímos aí também as ações
do sujeito, entendendo que são norteadas por uma determinada posição no
discurso. Convém um aparte para esclarecermos que a fala (parole) tem a
dimensão do enunciado (os ditos) e da enunciação (o dizer), que seria a “posição
no discurso”. Nunca é demasiado lembrar que o caso não é o sujeito, é uma
construção com base nos elementos que recolhemos de seu discurso, que também
nos permitem inferir sua posição subjetiva, isto é, se fazemos uma torção do
sujeito ao discurso, podemos retomar sua localização baseando-nos nesses
indicadores colhidos, do dito ao dizer. Aqui temos um método aplicável a
diferentes contextos clínicos.
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Como se daria então a construção de um caso, tomando as premissas
necessárias mencionadas acima?
Tomando-se por base o trabalho da equipe de pesquisa clínica em
psicanálise, que conta com participantes que são psicanalistas, pesquisadores e
alunos ligados ao Instituto de Psiquiatria IPUB/UFRJ e, mais recentemente, ao
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, desenvolvemos um
método que permite recolher da experiência clínica seus elementos de base para
podermos reter dessa experiência algo transmissível e avaliável de cada caso
(Figueiredo et al., 2001). Recortamos o que chamamos de binômios da
construção do caso, isto é, balizadores para nos indicar o caminho. São eles:
História n Caso:
Supervisão n Construção:
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da supervisão, a discussão não se encerra ao término da sessão, ela continua e
remete-se ao pesquisador/analista que apresentou o caso. Num primeiro tempo,
ocorre um retorno sobre ele em sua condição de sujeito (até aí não difere
exatamente da supervisão). Num segundo tempo, trata-se da reapropriação do
saber pelo analista na condição de pesquisador. Finalmente, este saber que é
depositado é um produto. Este produto é o ponto de basta feito pelo pesquisador
na condição de analista/praticante. O entrelaçamento das funções de sujeito,
pesquisador, analista rompe qualquer fixidez de posição diante do saber. Portanto,
sustentamos a construção – e não a super-visão – manejando os impasses que
atravessam o cotidiano de nossa prática, apostando na formalização possível de
seus princípios.
Conceitos n Distinções:
submetido à sua esposa, repetindo-se em “eu a quero mais que as outras”. Outro
argumento seria que todo enunciado já está no campo do eu, pois o sujeito é
sempre intervalar e evanescente. Mais do que definir se esse enunciado está no
campo do eu ou do sujeito, trata-se de perceber que o fundamental é distinguir
dois enunciados que correspondem a duas posições: “eu não a quero mais, quero
outra”, irrompe a partir de algo que insistia, até então silenciosamente. Ao passo
que “eu a quero mais que as outras” é algo que permanece resistindo, agora
explicitamente, estabelecendo os caminhos habituais do sujeito.
A psicanálise não é o efeito de um saber do Outro sobre uma história e, sim,
o feliz encontro entre as ferramentas conceituais do analista – pulsão e objeto, por
exemplo – e as contingências de uma história, produzindo um caso e, no melhor
dos casos, um novo sujeito. Buscamos, assim, estar próximos da possibilidade
de constituir enunciados positivos sobre este saber propriamente psicanalítico,
singular e inventado a cada nova situação (Figueiredo et al., 2001).
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falta de especificidade e confundindo as funções a ponto de perder a referência
da clínica e imobilizar o trabalho conjunto (Figueiredo, 1997).
A equipe de saúde mental tem uma indicação preciosa no termo que Lacan
usou para definir a relação de trabalho nos cartéis: “transferência de trabalho”.
Este termo permite que se dissolvam os efeitos narcísicos imaginários que
inevitavelmente ocorrem, seja na confusão de papéis (modelo igualitário), seja na
fixação de papéis (modelo hierárquico) (Figueiredo, 2000).
Quanto ao sujeito, o importante é seguir seu estilo para a partir daí lhe
indagar o que é pertinente a seu sintoma, e fazê-lo tomar sua responsabilidade
como tal, por seus atos, no mínimo que seja, mesmo que não tenha
responsabilidade plena, no sentido jurídico. É preciso separar esse campo de
responsabilidades porque, na maioria das vezes, os sujeitos se apresentam
tutelados, desresponsabilizados, mas nem por isso sentindo-se menos culpados,
ainda que se percebam como vítimas (em muitos casos o são de fato). Isso os
leva à imobilidade, à falta de solução, à confirmação da doença. Se nesse momento
lhes apresentamos o “remédio”, sabemos que este não é a cura, nem a restituição
pura e simples ao estado anterior à crise ou ao surto.
Promover um certo alívio do sofrimento e apaziguar a angústia é tarefa in-
dispensável, mas como um meio e não como um fim, e essa diferença deve ser
feita cotidianamente. Caso contrário, estamos indo mais na direção da cronifica-
ção, pois sabemos que há um incurável. Mas há também um movimento até esse
limite que pode seguir vias aparentemente inusitadas se olharmos com olhos nor-
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sujeito em questão. Voltamos aos binônios que nos servem como indicadores,
como ferramentas da construção para serem aplicados no trabalho em equipe,
diferente, portanto, de um trabalho de análise, mas contendo os elementos
“possíveis” a partir das referências de cada sujeito, novamente: da história ao
caso, da supervisão à construção, dos conceitos às distinções.
O que caracteriza a construção do caso na equipe de saúde mental, e diverge
do trabalho mais específico do psicanalista, é exatamente o fato da equipe ser
heterogênea em sua composição – diferentes profissionais e referências teórico-
técnicas, diferentes níveis de formação. Mas é justamente por meio desse trabalho
“coletivo” que a discussão do caso deve ir na direção do “aprendiz da clínica”,
ou seja, colher das produções do sujeito os indicadores para seu tratamento, e não,
ao contrário, impor o modelo da reabilitação em sua dimensão pedagógica e moral,
como acontece com freqüência.
Um exemplo prosaico pode nos ajudar a discernir nossa conduta: nos
remetemos ao trabalho da equipe de um CAPS com o supervisor.
Trata-se de uma paciente adulta, por volta de seus trinta anos, com diag-
nóstico duvidoso de hebefrenia, e com suspeita de retardo mental (diagnóstico
muito mais freqüente do que imaginamos), casada, tutelada pelo marido que a vi-
giava a cada passo, alegando sua condição. No CAPS , seu comportamento era
bem “regredido”, como diziam os profissionais da equipe. Quase não falava, ti-
nha dificuldade de expressar-se, era pouco “cooperativa”, e o que chamava mais
a atenção da equipe era seu comportamento bizarro de andar pelos corredores de
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olhos fechados, como se não pudesse enxergar. Era capaz de ficar sentada
de olhos fechados por muito tempo, recusando-se a falar; parecia ser mesmo um
desses “casos graves”. De vez em quando, participava de algumas atividades na
oficina de culinária, ou de bordado, aí abria os olhos muito bem. Alegava-se que
era a medicação que estava funcionando (e de fato estava!). Sabia-se, no entan-
to, que ela vivia fugindo do marido para ir ao encontro de um “amante”, e pare-
ce que este não era o primeiro.
Quase como por acaso, a assistente social da equipe conhecia a família e
sabia das histórias da vizinhança sobre ela (isso se passa numa cidade pequena,
onde todos se conhecem). Quando ela estava aparentemente um pouco melhor,
mais “cooperativa”, saía de casa bem nos horários em que o marido trabalhava
e não poderia vigiá-la, ia até o “amante” e voltava antes da hora dele chegar, enfim
tinha um bom cálculo de seu comportamento para não levantar suspeitas, mas era
“observada” pelos vizinhos que falavam entre si.
Em alguns momentos, ela confidencia com um dos técnicos de apoio (é o
nome dado aos profissionais de nível médio) que não agüenta o marido, aquele
jeito de tratar dela como se ela fosse uma boba, que gosta mesmo do outro fulano
e quer fugir com ele daquele lugar. Tudo isso bem falado e dirigido a alguém que
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não é o doutor, apesar dela também ter falado disso com o médico, mas de um
modo pueril, sem se fazer acreditar.
Somente na reunião da equipe é que foi possível discutir abertamente esses
contrastes em seu comportamento, e colher esses elementos de sua fala que
apontavam o sujeito, localizavam sua estratégia. Esse foi o passo preliminar para
a construção do caso. O passo seguinte seria o de acolher sua fala mais
sistematicamente, trazê-la à responsabilidade sobre suas ações sem culpabilizá-la
ou dizer o que é melhor para ela. E então fazê-la construir sua história, que era
contada pela vizinhança, mas não por ela, para a partir daí construir o caso ainda
que parcialmente, e dar uma direção para a conduta da equipe que, até então, se
limitava a “guardá-la” e ocupá-la para que o marido pudesse trabalhar.
O elemento diferencial nessa abordagem vem de uma atitude indicada pela
psicanálise que pode ser tomada mesmo por não psicanalistas. Mas uma coisa é
certa, é preciso que haja um despertar para a clínica nessa direção. A presença
de um psicanalista poderia ajudar bastante, desde que este não se apresente como
o portador da “boa nova” e sim como mais um “aprendiz” convocando os demais
a fazerem o mesmo. Eis a diferença que importa, a contribuição que podemos dar.
Esse caso não chegou a uma formulação próxima de uma construção. Por isso
mesmo, não se sabia o que fazer diante do modo como esse sujeito se apresentava,
e à equipe só restava atender à demanda do marido, acolhendo, cuidando, sem
dúvida, medicando o sintoma, trazendo até mesmo um certo alívio por vezes, mas
nunca trazendo à tona algo da verdade desse sujeito como produção sua, algo pelo
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Referências
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Resumos
Este texto presenta una propuesta de construcción del caso clínico a partir del
desarrollo de la investigación clínica en psicoanálisis. Se destacan tres ejes de ese
procedimiento como indicadores metodológicos para el manejo de elementos extraídos
de los relatos de los sujetos, presentándose segundo los siguientes binomios: historia/
caso; supervisión/construcción; conceptos/distinciones. La construcción del caso es el
punto central de la contribución del psicoanálisis tanto para la psicopatología, a
través de la construcción diagnostica y de los indicadores para el tratamiento, cuánto
para la salud mental, a través de su aplicación en los distintos dispositivos de atención
psico-social y en el trabajo en equipo interdisciplinario.
Palabras clave: Caso clínico, psicoanálisis, psicopatología, salud mental
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central de l’apport de la psychanalyse aussi bien à la psychopathologie, grâce à la
construction diagnostique et aux indicateurs pour le traitement, qu’à la santé mentale,
par son application dans les différents dispositifs d’attention psychosociale et dans le
travail en équipe interdisciplinaire.
Mots clés: Cas clinique, psychanalyse, psychopathologie, santé mentale
This text presents the case-building method based on clinical research developed
in psychoanalysis. Three axes of this procedure are pointed out as methodological tools
to deal with elements obtained from the subjects’ accounts, which consist of the
following binomials: history/case; supervision/construction; concepts/distinctions.
Case building is the core of psychoanalysis’s contribution to psychopathology as a
diagnostic tool and an orientation in treatment, as well as its contribution to mental
health through its application in different modes of psychosocial attention and in
interdisciplinary work.
Key words: Clinical case, psychoanalysis, psychopathology, mental health