Livro - Volume 4 - Moral FINAL
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Livro - Volume 4 - Moral FINAL
MORAL
Volume IV
SACRATÍSSIMO
CORDI JESU
INSTITUTO
S ANTO
AGOSTINHO
www.institutosantoagostinho.org
Rua São Pedro, n° 48 – Florianópolis /SC
D666e
Dom Thiago Sinibaldi, Bispo titular de Tibiríades
Elementos de filosofia: v.4 – moral
/ Dom Thiago Sinibaldi. – 4ª.ed. - Florianópolis: Editora
Instituto Santo Agostinho, 2021.
296 p. ; 23 cm
ISBN 978-65-993723-3-9
CDU - 100
Leandra Ramos – Bibliotecária – CRB-14/698
PROÊMIO
abranger e não abrangendo o que devia abranger, que é a livre atividade do homem
em ordem ao seu fim. — Mas, ao menos nesse ponto, os positivistas são coerentes. Se
a alma humana é uma coisa fictícia, se Deus é uma coisa imaginária, ou, pelo menos,
incognoscível, como é possível formar a verdadeira ciência moral, que dirija os atos
livres do homem para Deus, que é o nosso último fim? — Teremos muitas ocasiões de
falar nas doutrinas positivistas, e sobretudo na 2ª parte, em que daremos um resumo
da física social ou sociologia.
1 A Moral distingue-se das outras duas partes da Filosofia, que são a Lógica e
Metafísica. Na verdade, a Filosofia é altíssima sabedoria. Ora, é próprio da sabedoria
estabelecer a ordem entre as coisas. As coisas, que se podem ordenar, — ou são os
atos da nossa inteligência, — ou são os atos da nossa vontade, — ou são os objetos que
compõem o universo. Os atos da nossa inteligência constituem o ente lógico, que é
o objeto da Lógica, pois esta dirige a nossa inteligência para a verdade; — os atos da
vontade formam o ente moral, que é o objeto da Moral, porque a Moral dirige a nossa
vontade para o bem; — os objetos, que compõem o universo, constituem o ente real,
que é o objeto da Metafísica; porque a Metafísica trata dos entes que existem indepen-
dentemente dos nossos atos. Se, pois, o objeto da Moral é distinto do objeto da Lógica
e da Metafísica, é evidente que a primeira é uma ciência distinta dessas duas últimas.
A Moral não só se distingue da Lógica e da Metafísica, mas também da Teo-
logia moral. Na verdade, o sujeito da Teologia moral é o cristão, o da filosofia moral é
o homem; — os princípios da Teologia moral são revelados ou deduzidos das verdades
reveladas, os da filosofia moral são descobertos pela luz natural da razão; — a origem
dos preceitos da Teologia moral é divina, porque derivam da Revelação sobrenatural,
ao passo que a origem dos preceitos da filosofia moral é natural, porque esses precei-
tos estão baseados na lei natural. — Donde se vê o erro de Kant, De Wette, Bruch, que
identificam a filosofia moral com a Teologia moral.
Todavia, a Teologia moral auxilia e ilumina a filosofia moral, afastando-a
dos perigos e guiando-a para um caminho seguro. A história da filosofia atesta que
o homem, abandonado às suas forças naturais, tem descoberto algumas verdades,
mas só depois de muito tempo e misturadas com muitos erros. Sirvam de exemplo
os escritos dos maiores entre os filósofos pagãos — Sócrates, Platão, Aristóteles. Kant
diz: “A maravilhosa religião do Cristianismo, na sua grande singeleza, enriquece a
filosofia imoral com idéias morais mais exatas e mais puras do que as que a mesma
filosofia tinha subministrado até essa época”. (Crit. Judic., p. 442).
PROÊMIO 7
tem sempre errado, sobretudo em assuntos morais e religiosos; e por isso, se quiser
encontrar a verdade, deve aceitar, com reconhecimento e veneração, o auxílio
de Revelação divina, não para provar as suas proposições, mas para conhecer o
caminho da verdade.
1 Atenuam ou rejeitam a força da razão, no estudo da Moral, os tradicionalistas,
os históricos, os positivistas, os sépticos.
a) Os tradicionalistas dizem que a razão individual não pode conhecer, com
certeza, nenhuma verdade, sobretudo de ordem moral, e que por isso, todas as verdades
devem ser ensinadas pela autoridade, divina ou humana. — Não nos detemos aqui
em refutar o tradicionalismo; porque já foi refutado na Antropologia.
b) Os históricos reconhecem a história como a única fonte das regras de mora-
lidade. — O exagero é manifesto. A história, embora seja de grande auxilio no tratado
da Moral, não pode, contudo, ser a única fonte das regras morais; porque, se não for
estudada a luz de princípios sãos, leva facilmente a muitos erros. Não são os princí-
pios que se hão de acomodar aos costumes, mas são estes que se devem conformar
com aqueles.
c) Os positivistas afirmam que devemos estudar a Moral, independente-
mente da Metafísica, isto é, de todo o suposto transcendental, apoiando-nos única e
exclusivamente na experiência. A vida intelectual e moral do homem, segundo eles,
está sujeita, como todas as coisas, a uma evolução constante; e por isso, a Moral é
uma parte da Mecânica e tira os seus princípios da Física, da Biologia, da Psicologia
e da Sociologia, que explicam as leis universais da evolução. Desse modo, o múnus
da Moral consiste em aplicar essas leis aos fenômenos da vida moral, mostrando
— não o que os homens devem fazer, pois os homens, segundo os positivistas, são
destituídos de liberdade, — mas o que farão. — O erro desses escritores é evidente.
A ordem especulativa não pode deixar de ser o fundamento da ordem moral. Se não
conhecermos ou se desvirtuarmos as grandes verdades, que se ensinam na Meta-
física e que são o princípio de contradição e de causalidade, a existência de Deus, a
espiritualidade, liberdade e imortalidade da alma humana, o fim último da nossa
vida, não é possível compor um tratado de Moral, sem errarmos, em cada passo,
acerca da lei natural, da sua obrigação e sanção, acerca da consciência, da honesti-
dade, do direito. A Moral dos positivistas não passa de uma história natural. De resto,
na Antropologia refutamos o determinismo, que é a base de Moral doa positivistas e a
negação da liberdade, e mais adiante veremos que a nossa vida moral não está nem
pode estar sujeita a uma evolução fatal e irresistível.
PROÊMIO 9
d) Os sépticos negam que as leis morais sejam universais e imutáveis para todos
os homens, em todos os tempos e em todos os lugares. — Mais tarde refutaremos
essa opinião.
1 O método analítico-sintético foi seguido por Sócrates, Platão, Aristóteles, S.
Agostinho, S. Tomás e por todos os escolásticos e escritores de bom senso, que, nas
suas especulações, servem-se dos princípios da razão e da experiência.
2 Advirta-se que a palavra ética (etos-costume) tem a mesma significação que
a palavra moral (mos-costume), e que por isso, não é muito rigoroso dar a uma parte
da divisão o nome que significa o todo. Mas é questão de palavras, e acomodamo-nos
aos mais autorizados escritores.
Os filósofos e os juristas discutem se o direito natural é, ou não, inseparável da
ética. As opiniões divergem; uns identificam as duas partes, outros separam-nas. — A
questão não pode ser resolvida aqui; visto que, para esta solução, é necessário conhecer
as definições da ética e do direito natural, e as relações que existem entre uma parte
e outra, — definições e relações, que só serão conhecidas no decurso deste tratado.
ÉTICA
CAPÍTULO PRIMEIRO
Fim dos atos humanos
ARTIGO I
Existência do fim último dos atos humanos
1 Falamos dos atos humanos, isto é, dos atos que são próprios do homem e
por isso, derivam da inteligência e da vontade, — e não dos atos do homem, isto é,
dos atos que derivam do homem enquanto é dotado de vida vegetativa o sensitiva e
que por isso, não emanam da inteligência e da vontade. Ora, é evidente que os atos
humanos devem ter um fim: não só porque a inteligência opera sempre para um fim
(o acaso é negação da inteligência), mas também porque a vontade tem por objeto
o bem, que é fim. — Há, pois, diferença entro os atos humanos e as operações dos
seres irracionais. Estes tendem para um fim, mas não o conhecem; e, se o conhecem
(como os animais), não o conhecem como tal, não percebem a relação entre o fim e
os meios, e por isso, não podem regular os seus atos, nem escolher os meios mais
eficazes. — Daqui se vê o erro, ou, pelo menos, a inexatidão de Spencer, quando no
seu livro — Les bases de la morale evolutioniste, aplica indiferentemente ao homem
e ao animal a palavra conduta.
Dissemos que o bem é fim da vontade, porque a vontade tende necessaria-
mente para o bem. — O bem distingue-se em útil, honesto e agradável. O bem útil é o
que se deseja, não por si, mas para se alcançar outro bem; — o honesto é o que se deseja
por si, como conforme a razão; — o agradável é o que, possuído, satisfaz a faculdade
apetitiva. O bem honesto e o agradável têm razão de fim; o útil tem só razão de meio.
Por isso, o homem, quando opera, ou é movido pela honestidade ou pelo prazer (Sum.
Th., 1-2, q. 1, a. 1).
CAPÍTULO I – FIM DOS ATOS HUMANOS 15
ARTIGO II
Natureza do fim último dos atos humanos
próximos, que são os bens particulares, enquanto desejamos o fim último, que é o bem
universal (Sum. Th., ib., a. 6).
1 O fim último dos atos humanos é o mesmo para todos os homens, conside-
rado objetivamente, isto é, em si mesmo; porque, considerado subjetivamente, isto é, no
juízo dos homens, não é um e o mesmo para todos, mas varia, segundo a diversidade
do objeto em que o fazem consistir; porque alguns fazem consistir o fim último nas
riquezas, outros nos prazeres, outros na glória, outros no poder, etc. (Sum. Th., ib., a. 7).
2 Todos os filósofos admitiram e admitem a objetividade do fim último dos
atos humanos, porque o desejo da felicidade, por não ser livre, mas necessário, deriva
da natureza, e por isso, tem fundamento na realidade. — A divergência das opiniões
começa, quando querem determinar o objeto, em que consiste o último fim.
CAPÍTULO I – FIM DOS ATOS HUMANOS 17
perfeito, constituído pela posse de todos os bens. Logo, o fim último dos atos
humanos é o bem universal.1
15. O fim último dos atos humanos não pode ser um bem
criado. — O fim último dos atos humanos é o bem universal. Ora, todo
o bem criado, por ser finito ou limitado, é sempre particular. Logo, o
fim último dos atos humanos não pode ser um bem criado.2
b) O fim último do homem não consiste nos bens do corpo. Porquanto, os bens
do corpo são particulares, porque não encerram os bens da alma, — não dependem da
nossa vontade, — são a origem de muitos males e inquietações, — são instáveis, pois
podem perder-se e perdem-se com a máxima facilidade. — Esses princípios aplicam-se
a cada um dos bens do corpo, mas sobretudo aos prazeres corpóreos, que são comuns
também aos animais irracionais, e que por isso, não são o fim último do homem, que
é racional; pois o fim de cada ente deve ser proporcionado a sua natureza (Sum. Th.,
ib., a. 5, 6).
c) O fim último do homem não consiste nos bens da alma. Os bens da alma
são principalmente a ciência e a virtude. Ora, nem a ciência, nem a virtude é o fim
último do homem. — Não a ciência; porque o fim último deve ser acessível a todos e
saciar completamente as tendências da alma, ao passo que a ciência é dote de poucas
pessoas, e, longe de saciar os desejos da alma, torna-os cada vez mais vivos. — Não
pode ser a virtude; visto que a virtude é meio para a consecução da felicidade, mas não
é a própria felicidade, pois não sossega completamente a vontade, podendo perder-se
e não excluindo todos os males e inquietações (Sum. Th., ib., a. 7).
d) O fim último do homem não consiste no conjunto de todos os bens criados.
Porquanto, embora o homem pudesse possuir todos os bens criados — de fortuna,
do corpo e de alma, contudo não seria completamente feliz. Na verdade, o conjunto
de todos os bens criados é sempre uma coisa finita e sujeita a mudanças, nem exclui
todos os males.
e) O fim último do homem não consiste na evolução completa de todas as suas
faculdades. Na verdade:
a) Essa opinião dos krausistas baseia-se em que o fim último do homem é o
próprio homem. Ora, repugna que o homem seja o fim último de si mesmo; porque
o fim último deve conter todos os bens e excluir todos os males, e a experiência atesta
que o homem não contém todo o bem e que está sujeito a muitos males.
b) A evolução completa de todas as nossas faculdades é impossível. Porquanto,
sendo a energia da alma uma coisa limitada, uma faculdade não pode desenvolver-se
sem prejuízo das outras. É o que a experiência mostra. — Os krausistas dizem que
a evolução é harmônica. Mas respondemos que a evolução, se é harmônica, não é
completa em nenhuma faculdade.
c) A evolução completa de todas as nossas faculdades, embora fosse possível,
contudo, não seria o fim último do homem. Na verdade, o fim último deve saciar
completamente as tendências do homem. Ora, a evolução completa de todas as nossas
faculdades não pode sossegar completamente as nossas tendências, porque é sempre
uma coisa finita e pouco duradoura.
d) Se o fim último do homem consistisse na evolução completa de todas as
suas faculdades, teríamos a obrigação de estudar, não só a Filosofia, mas também
a ginástica, a pintura, a música, e todas as artes liberais; o que Ahrens explicitamente
afirma (Cours de Droit. Naturel, part. génér., ch. I, § 17). Ora, o senso comum nunca
se lembrou de colocar, entre os deveres do homem, o estudo das ciências e das artes
CAPÍTULO I – FIM DOS ATOS HUMANOS 19
liberais, porque tal estudo é impossível para a máxima parte dos indivíduos, e porque
essas ciências e artes não são necessárias para uma vida boa e feliz.
f) O fim último do honrem não consiste no progresso constante e indefi-
nido do indivíduo para a perfeição. Com efeito, o fim último é repouso do espírito;
ao passo que o progresso indefinido é movimento e por isso, agitação. — O fim
último deve ser um bem infinito, porque só este pode saciar o espírito; ao passo
que o progresso indefinido é sempre finito, porque toda a série dos movimentos
é essencialmente finita.
g) O fim último do homem não consiste numa perfeição do gênero humano. Na
verdade, o fim último é próprio de cada indivíduo, de modo que a sua posse deve tornar
feliz cada um dos homens; ora, a perfeição do gênero humano é própria da coleção
dos homens, e não pode tornar feliz cada um dos indivíduos. — O fim último deve
ser um bem infinito; ora, a perfeição do gênero humano é sempre finita. — Notamos
que essa opinião está baseada também no panteísmo, cuja falsidade foi demonstrada.
1 Diz S. Tomás: “Impossibile est beatitudinem hominis esse in aliquo bono
creato. Beatitudo enim est bonum perfectum, quod totaliter quietat appetitum;
alioquin non esset finis ultimus, si adhuc restaret aliquid appetendum. Obiectum
autem voluntatis, quae est appetitus humanus, est universale bonum, sicut obiec-
tum intellectus est universale verum. Ex quo patet, quod nihil potest quietare
voluntatem hominis nisi bonum universale: quod non invenitur in aliquo creato,
sed solum in Deo; quia omnis creatura habet bonitatem participatam. Unde solus
Deus voluntatem hominis implere potest... In solo igitur Deo beatitudo hominis
consistit” (1-2, q. 2, a. 8).
Os próprios filósofos pagãos, como Pitágoras, Platão, Aristóteles, guiados pela luz
da razão, chegaram a conhecer que Deus, e só Ele, é o fim último do homem, o objeto
da nossa felicidade. — E nada mais lógico. O fim último deve consistir num bem que
se deseje por si e que por isso, não se refira a um bem mais perfeito e elevado; aliás
não seria fim último. Ora, só Deus é o bem que se deseja por si e que se não refere a
um bem mais elevado e perfeito; porque todos os bens criados, sendo participações
do bem infinito, referem-se ao próprio Deus.
Objetam: a vontade humana, sendo uma faculdade finita, pode e deve saciar-se
na posse de um bem finito.
20 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
alcançamos o nosso fim último, que é Deus. — Dadas estas explicações, procuraremos
resolver brevemente a questão.
A essência da felicidade não consiste no ato da vontade, mas no ato da inteligência,
que conhece perfeitamente a Deus. — Não consiste no ato da vontade. Porquanto, o ato
da vontade não só é posterior ao ato da inteligência (porque o amor e o gozo seguem o
conhecimento), mas, longe de apreender o objeto, tende para ele. — Mas consiste no
ato da inteligência. Na verdade, a felicidade consiste na consecução ou posse de Deus.
Ora, Deus consegue-se ou possui-se pela inteligência, porque é próprio dessa faculdade
apreender ou atrair a si o objeto, e torná-lo presente ao espírito.
Nota-se que o perfeito conhecimento de Deus, em que consiste a essência da
felicidade, pode ser direto ou indireto. — É direto, quando o meio, porque conhecemos a
Deus, é a sua Essência infinita, informante a nossa inteligência; por isso, esse conhe-
cimento chama-se intuitivo, porque vê-se o nosso Deus, como Ele é em si mesmo.
— É indireto, quando o meio, porque Deus é conhecido, é uma espécie analógica ou
semelhança ideal, que representa os atributos divinos, como estes se manifestam na
criação, e que é mais ou menos perfeita, conforme a diversidade dos merecimentos.
— O conhecimento direto de Deus excede as forças naturais da nossa inteligência,
e por isso, é sobrenatural; ao passo que o indireto não excede as forças naturais da
inteligência, e por isso, é natural.
Embora a Bondade de Deus nos tenha destinado ao conhecimento sobrena-
tural da sua essência infinita, e por isso, a uma felicidade sobrenatural; contudo, o
conhecimento natural da divina Essência, por meio de uma espécie inteligível, teria
sido bastante para a nossa felicidade natural, isto é, para a felicidade, que é exigida
pela nossa natureza.
Poderia dizer-se que o homem não teria encontrado perfeita felicidade na visão
indireta de Deus, visto que ele podia ainda desejar a visão direta de Deus. Mas respon-
demos que o homem, no estado natural, — ou não teria suspeitado da possibilidade de
uma visão direta de Deus,— ou, se a tivesse conhecido, ter-se-ia convencido de que ela
não era devida à sua natureza nem proporcionada às suas forças, e assim não a teria
desejado com desejo eficaz, nem a sua ausência teria diminuído a felicidade natural.
Ao perfeito conhecimento de Deus corresponde um ato de amor perfeito, e
esse amor, unindo a nossa vontade com Deus, produz na alma uma consolação tão
pura e constante, que nada pode inquietar ou destruir. Contemplar a Deus, amar a
Deus, gozar a Deus: eis o fim último do homem. (Cf. Sum. Th., ib., q. 3, aa. 2, 3, 4).
22 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
ARTIGO III
Fim próximo dos atos humanos
1 (Sum. Th., ib., q. 5, a. 3). — A idéia analógica, por meio da qual o homem, no
estado natural, conhece a Deus, representa, por um modo finito mas relativamente
perfeito, os atributos do próprio Deus, que se manifestam na criação. Tal conhecimento
é o ideal da ciência natural, porque encerra na unidade perfeita de todos os princípios a
grande variedade de todas as suas consequências e aplicações. Na verdade, o perfeito
conhecimento do Ser divino importa o conhecimento de toda a ordem criada, por-
que Deus é a causa eficiente, exemplar e final de todas as coisas. Essa idéia, que basta
para a nossa felicidade natural, é infusa por Deus na inteligência humana e é mais ou
menos elevada, conforme a diversidade dos merecimentos de cada um dos homens.
Repetimos que tudo o que dissemos acerca do estado natural do homem
é hipotético; porque esse estado natural, se é possível, não existe na realidade, pois o
homem foi elevado ao estado sobrenatural, constituído essencialmente pela visão direta
ou intuitiva de Deus.
Objetam: a filosofia só considera a ordem natural. Logo, não deve ocupar-se
da ordem sobrenatural.
Resposta. A filosofia deve ocupar-se do homem real, e não do homem hipo-
tético. Ora, o homem real foi elevado a ordem sobrenatural; e por isso, a filosofia não
pode prescindir inteiramente da ordem sobrenatural. — Uma coisa é que a filosofia
deve fundar as suas demonstrações na razão natural e não na revelação divina, o que
concedemos; outra coisa é que a filosofia prescinda inteiramente da revelação divina,
o que negamos.
CAPÍTULO I – FIM DOS ATOS HUMANOS 23
último. Ora, se esse fim próximo não existisse realmente, deveria dizer-se
que a vida do homem sobre a terra não tem razão de ser, e que o fim
último pode alcançar-se sem o emprego dos meios convenientes: o que
é absurdo. Logo, o fim próximo dos atos humanos existe realmente.1
20. O fim próximo dos atos humanos consiste na sua dis-
posição para o fim último.
a) O homem tem o dever de conseguir o seu fim último. Ora,
esse dever deve cumprir-se na vida presente; porque a vida futura está
reservada, não para a conquista, mas para a posse da felicidade. Logo, o fim
próximo dos atos humanos consiste na sua disposição para o fim último.
b) O fim próximo dos atos humanos é um meio em relação ao seu
fim último; aliás o homem não teria unidade de natureza nem de fim.
Ora, toda a perfeição do meio consiste na aptidão que tem de levar a
consecução do fim. Logo, o fim próximo dos atos humanos consiste na
sua disposição para o fim último.2
21. O fim próximo dos atos humanos consiste no conheci-
mento e no amor de Deus.
a) O fim próximo dos atos humanos consiste na sua disposição
para o fim último. Ora, o fim último consiste no perfeito conhecimento e
amor de Deus. Logo, o fim próximo consiste na disposição para o perfeito
conhecimento e amor de Deus. Mas semelhante disposição exige que
1 Deus, sendo a própria Sabedoria, não podia deixar de fixar um escopo ou
fim próximo, que o homem devesse conseguir aqui sobre a terra. — Nem se diga que
o fim último substitui o próximo; porque não pode imaginar-se um fim último sem
um fim intermédio ou próximo. — De resto, todos os filósofos estão de acordo nesse
ponto. As suas divergências começam, quando explicam a natureza desse fim próximo,
a qual não pode deixar de ser diversa, conforme a diversidade do fim último; porque o
fim próximo é meio em relação ao fim último, e o meio deve ser proporcionado ao fim.
2 A vida presente e a vida futura constituem a duração da existência da
nossa alma. Ora, uma só existência exige um só fim. Essa unidade de fim só pode
conceber-se, se o fim próximo dos nossos atos estiver disposto e ordenado para o
fim último. Porquanto, se não existisse esta subordinação, o fim próximo dos nossos
atos seria também último (porque não seria subordinado a outro superior), e assim
teríamos dois fins últimos do homem. Ora, repugna que existam dois fins últimos. Na
verdade, o fim último é o bem absolutamente perfeito, que sacia todas as tendências
da alma. Mas, se existissem dois fios últimos, nenhum deles seria o bem absoluta-
mente perfeito; visto que nenhum deles saciaria todas as tendências da alma, pois
esta, depois de estar na posse de um bem, podia desejar também o outro. Logo, não
podem existir dois fins últimos.
24 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
CAPÍTULO SEGUNDO
Essência dos atos humanos
ARTIGO I
Elementos e divisão dos atos humanos
1 Por isso, a causa imediata dos atos humanos é constituída pela inteligência
e pela vontade. Mas há diferença; porque o ato humano deriva substancialmente da
vontade, e só radicalmente da inteligência; porque é a vontade que tende para o bem,
embora essa faculdade seja movida pela inteligência, que o aponta. — Dissemos que
a inteligência e a vontade tão a causa imediata, ou próxima, do ato humano; porque o
apetite sensitivo, podendo atuar na inteligência e na vontade, pode ser causa mediata,
ou remota, do mesmo ato (Sum. Th., 1-2, q. 75, a. 2).
2 Para a essência do ato humano, que é o objeto da Moral, não bastam a
percepção da inteligência e o consentimento da vontade, mas é necessária também
a liberdade, isto é, requer-se que a vontade seja livre. Sem essa liberdade, é impossí-
vel estabelecer normas e marcar deveres. Quando a vontade, consultando a razão,
escolhe uma coisa e rejeita outra, então produz um ato humano. — A nossa vontade,
como vimos, é livre na sua tendência para os bens particulares, mas não o é na sua
tendência para o bem universal, para a felicidade. Daí a divisão do voluntário em livre
e necessário. Por isso, todo o ato humano é voluntário, mas nem todo o ato voluntário
é humano; pois o ato humano deve proceder da vontade livre.
Também não nos demoraremos em demonstrar a existência do livre-arbítrio
no homem; porque essa demonstração foi feita na Antropologia.
28 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
1 Diz S. Tomás (Sum. Th., 1-2, q. 77, a. 7): “Aliquid potest esse voluntarium
— vel secundum se, sicut quando voluntas directe in ipsum fertur, — vel secundum
suam causam, quando voluntas fertur in causam, et non in effectum, ut patet in eo,
qui voluntarie inebriatur, ex hoc enim quasi voluntarium ei imputatur quod per
ebrietatem committit”.
Pergunta-se: quais são as condições necessárias para que um efeito mau,
produzido por uma ação, possa ser imputado como voluntário?
Resposta. As condições necessárias para que um efeito mau possa ser impu-
tado ao agente, como coisa voluntária, são as seguintes: — 1º) a causa ou ação, de que
deriva o efeito, deve estar no poder do agente; — 2º) o efeito deve ter sido previsto,
ao menos de um modo confuso; — 3º) o efeito que nasce da omissão não é voluntário,
se não houve obrigação de o impedir; — 4º) o efeito mau, que nasce da ação, não pode
ser imputado como voluntário, — se a ação é por si boa ou indiferente, — se da mesma
ação procede também imediatamente um efeito bom, — se existo uma causa grave,
que permite o efeito mau.
Na pergunta e na resposta tratámos só do efeito mau: porque o efeito bom,
para ser imputado ao agente, como coisa voluntária, deve ser desejado e procurado
positivamente em si mesmo.
2 Alguns modernos opinam que o ato positivo corresponde ao ato direto e o
negativo ao indireto. — Mas essa opinião é falsa; porque, embora todo o ato negativo
seja indireto, todavia nem todo o ato indireto é negativo; pois há muitos atos indiretos,
que são positivos. (Cf. Sum. Th., 1-2, q. 6, a. 3 ad 1; De Malo, q. 2, a. 1 ad 2).
3 Alguns autores acrescentam a estas duas espécies o ato habitual, que,
embora tenha existido e não tenha sido desaprovado, todavia não conserva
nenhuma influência sobre o ato. Mas é claro que o ato habitual não pôde contar-se
entre os atos internos da nossa vontade, mas só pode verificar-se nos atos externos
ou nos seus efeitos.
30 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
ARTIGO II
Diversas espécies do ato elícito
ordem da execução, porque se alcança, depois do emprego dos meios, — mas é o pri-
meiro na ordem da intenção, porque é ele que leva a vontade ao emprego dos próprios
meios. — Embora o objeto adequado do gozo seja todo o bem agradável, porque este,
possuído, produz gozo; todavia o seu objeto principal é o bem do fim último, porque
só este, possuído, sacia completamente as tendências da alma (Sum. Th., 1-2, q. 11).
Além destes três atos, que a vontade exerce em relação ao fim, não há outros
especificam ente diversos. Porquanto a vontade pode referir-se ao fim por três diver-
sos modos — ou enquanto o fim se ama, e temos o amor, — ou enquanto se deseja
eficazmente, e temos a intenção, — ou enquanto é centro de descanso, e temos o gozo.
1 Na ordem da execução, o consentimento sucede imediatamente a intenção.
Porquanto a vontade, querendo tender eficazmente para o fim, move a inteligência a
investigar os meios proporcionados e a julgar acerca da sua aptidão. A esse conselho da
intelligencia a vontade dá o seu consentimento, aprovando os meios propostos. — Esse
consentimento é absolutamente livre; porque os meios são bens particulares, que levam
ao bem universal, e por isso, a vontade tende para eles livremente (Sum. Th., 1-2, q. 15).
2 Às vezes os meios, que a inteligência julgou aptos para a consecução do
fim e a vontade aprovou, são muitos e diversos, e não podem empregar-se todos ao
mesmo tempo. Então a vontade move a inteligência a julgar qual é, entre todos, o mais
apto e eficaz. A inteligência investiga, julga e propõe à vontade o meio mais apto. A
vontade então escolhe esse meio. — Quando, pois, os meios aptos para a consecução
do fim são muitos e diversos, o consentimento e a eleição são realmente distintos entre
si. Quando, porém, há apenas um meio apto para o fim, então aqueles dois atos só
logicamente diferem entre si (Sum. Th., 1-2, q. 13).
3 Em virtude da eleição, a inteligência íntima ou declara o que as outras facul-
dades devem fazer, para que a vontade alcance o que escolheu. Esse ato da inteligência
chama-se império; porque, por essa intimação ou declaração, a inteligência ordena as
32 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
ARTIGO III
Impedimentos da voluntariedade dos atos humanos
CAPÍTULO TERCEIRO
Moralidade dos atos humanos
ARTIGO I
Moralidade, sua existência e fundamento
*
Os sistemas, que negam a moralidade intrínseca, são muitos e diversos, mas
todos podem reduzir-se a quatro, que são o materialismo dos epicureus, o utilitarismo
cios empíricos, dos economistas e dos positivistas, o autonomismo dos nacionalistas, e o
voluntarismo dos juristas. — Na verdade, todos os sistemas, que negam uma diferença
absoluta e objetiva entre o bem e o mal moral, o só reconhecem uma moralidade subjetiva
e relativa, podem fundar essa moralidade e essa diferença — ou no sentimento do
prazer, ou no instinto do interesse, individual ou social, ou nos princípios da razão sem
caráter absoluto, ou na livre vontade dos homens. — Daremos o resumo e faremos a
crítica do cada um destes sistemas, procurando dar maior desenvolvimento aos dos
positivistas, que são mais seguidos.
I. Materialismo. — O materialismo, devido a Epicuro, formou a Moral sem
Deus, sem princípios absolutos, inteiramente egoísta, fundada sobre o bem sensível,
que é o prazer. O prazer, segundo esse sistema, divide-se em movei e permanente.
O movei é o que dura pouco tempo e cujo efeito produz mais tarde sofrimento; ao
passo que o permanente, que é mais íntimo e doce, consiste no perfeito repouso ou na
isenção de toda a dor ou magoa. A Moral deve proporcionar o meio para a aquisição
deste repouso perfeito. Tal meio é a fidelidade às quatro virtudes cardeais, que são: a
prudência (que leva a evitar os perigos das inquietações), a coragem (que nos defende
do medo vão e ilusório), a justiça (que nos indica a respeitar o pacto social, fundado
no interesse), e a temperança (que, moderando as necessidades e os desejos, diminui
a soma das dores e aumenta a dos prazeres). Por isso, a Moral de Epicuro é a arte de
procurar o prazer e evitar a dor, pelo modo mais fácil, seguro e duradouro; visto que
todo o ato, que produz prazer, é bom, e todo o ato, que produz dor, é mau. — Epicuro,
foi seguido — no sec. XVIII, por Lamettrie, Helvetius, Diderot, Holback e Volney, — e, no
sec. XIX, por Haeckel, Vogt, Molleschot, e por todos os que professam o materialismo
na sua forma mais grosseira.
A Moral materialista é falsa, não só pelas razões com que temos demonstrado,
em vários pontos do presente trabalho, os absurdos do materialismo, mas também
pelas seguintes:
40 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
a) A verdadeira Moral não pode existir, se o homem não for dotado de liber-
dade: porque é absurda a pretensão do dirigir a atividade, quando esta, por não ser
livre, não é capaz de direção. Ora, a Moral materialista nega que o homem é dotado
de liberdade; porque reduz todos os nossos atos a movimentos meramente mecânicos.
Logo, a moral materialista é falsa.
b) A moral materialista coloca o bem supremo do homem no bem sensível, e
o mal supremo no mal sensível. Ora, o bem supremo do homem é o bem universal e
infinito — Deus. Logo, a moral materialista é falsa.
c) Se o sistema dos materialistas fosse verdadeiro, o homem, no caso de um
conflito entre o prazer sensível e o dever, deveria pronunciar-se sempre em favor do
prazer e contra o dever; e por isso, o herói, que morre pela pátria, seria um insen-
sato, ao passo que um cobarde, que atraiçoa os seus para salvar a própria vida, seria
um homem sábio e prudente. Ora, essas consequências repugnam. Logo, a moral
materialista é falsa.
d) Se o sistema dos materialistas fosse verdadeiro, a medida do egoísmo seria,
sempre o em toda parte, a medida da perfeição; de modo que, na ordem moral, quem
mais exclusivamente procurasse, sempre e em toda parte, o seu maior prazer, seria
o mais perfeito. Ora, a humanidade não aceita uma teoria, que seria a apoteose do
egoísmo e produziria uma funesta e irremediável desordem social. Logo, a moral
materialista é falsa.
II. Utilitarismo dos empíricos, dos economistas e dos positivistas. —
Esse sistema, nos seus princípios, não difere muito do sistema anterior; porque o
fim último dos nossos atos, tanto para os materialistas como para os utilitaristas, é
um bem finito e criado, constituído pelos prazeres ou pelo interesse, ou pela glória,
ou por qualquer outra vaidade. — Alguns autores dividem o utilitarismo em indivi-
dual e social, conforme os seus defensores fundam a moralidade dos atos humanos
no interesse do indivíduo ou no da sociedade, isto é, conforme os seus defensores
são egoístas ou altruístas. E nada mais lógico. — Todavia, aqui fundamos a divisão
desse sistema nas diversas fases da sua evolução. A razão disto é que, embora o
utilitarismo possa ser egoísta e altruísta, contudo, as formas, que o exprimem, não
têm, em geral, um caráter definitivamente marcado, mas são todas, mais ou menos,
ego-altruístas. Dissemos — em geral; porque Comte parece exclusivamente altruísta,
e Bentham exclusivamente egoísta.
A) A primeira fase do utilitarismo é representada pelos sequazes do empirismo,
por Locke (1632-1704), pelo Conde de Shaftesburg (1671-1713), pelo Marquez de Sain-
t-Lambert (1717-1803) e por Adam Smith (1723-1790).
a) Locke, levado pelos princípios do sensualismo, baseou as suas teorias morais
na felicidade terrena e no interesse. A idéia do direito reduz-se a da utilidade, individual e
social. O primeiro direito, que é igual em todos, é o de procurar sobretudo o interesse
próprio. O fundamento de todos os direitos civis e políticos é a igualdade na liberdade;
porque todos os homens nascem iguais, livres e independentes uns dos outros. Para
a paz e harmonia destas liberdades é necessário um contrato social.
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 41
deve procurar e preferir sempre os prazeres, que valem mais; porque “é melhor ser
um Sócrates descontente do que um animal satisfeito”. Os prazeres, que valem mais
e devem ser preferidos, são os de simpatia, que derivam do egoísmo, mas estão ligados
com a felicidade dos outros. “Fazei aos outros o que queríeis que se fizesse a vós: essa
regra d’ouro do Jesus de Nazaréé a mais perfeita experiência da Moral utilitária”. — O
que leva o homem a escolher sempre os prazeres de simpatia é a associação das idéias.
A educação, a leitura, o juízo acerca da conduta dos outros, formam no homem
associações poderosas, porque ligamos a alguns atos a idéia de louvor e de admira-
ção, e a outros a idéia de censura e do desprezo, e que por isso, produzem prazer,
quando praticamos os da primeira espécie, e causam remorso, quando produzimos
os da segunda espécie. — É assim que se explicam os fenômenos morais, o império
da consciência, o prazer ou o remorso depois de termos praticado o ato. É assim que
se prefere a morte à ignomínia e o sacrifício à cobardia. Tudo é objeto de cálculo e
explica-se pela associação. A prática constante do bem, embora no princípio inspirada
pelo interesse e pelo prazer, torna-se agradarei em si mesma; e então que o homem
se torna virtuoso. Assim como, o avarento chega a amar o dinheiro pelo dinheiro;
assim também o homem generoso chega a encontrar um prazer superior o virtuoso
nos atos, que mais o honram diante da sociedade.
e) Herbert Spencer principia dizendo que a velha Moral, a qual se atribuía uma
suposta origem divina, perdeu toda a sua autoridade, porque ora, demasiadamente
severa e não se acomodava às modernas exigências da humanidade. Mas é necessária
uma regra para a nossa vida. Deve, pois, fundar-se uma nova Moral, que, prescindindo
de um legislador supremo, seja mais fácil e indulgente. Nesse intuito, o escritor inglês,
aplicando o darwinismo a Moral, apresenta a seguinte teoria.
A conduta é o complexo dos atos adaptados para o fim, — ou, melhor, é a
adaptação dos atos para o fim. O seu desenvolvimento é proporcionado ao desenvol-
vimento do organismo. Assim, imperfeitíssima é a conduta dos infusórios, que, sem
direção determinada, erram algum tempo, e morrem, quando as circunstâncias do
meio deixam de ser favoráveis. Menos imperfeita é a conduta dos vertebrados, dota-
dos de sentidos mais desenvolvidos para a consecução do seu fim; mas, empregando
poucos e simplicíssimos meios, não têm vida longa. Mais perfeita é a conduta dos
mamíferos. Perfeitíssima é a do homem, principalmente civilizado, que sabe adaptar
meios mais numerosos e exatos, chegando a possuir os sentimentos de moralidade e
a formar a idéia do bem e do mal,
Como chega o homem a possuir os sentimentos de moralidade e a idéia do
bem e do mal? — Por meio de três princípios: do interesse pessoal, do instinto social e
da hereditariedade
O homem primitivo vivia num estado absolutamente selvagem. Então não
havia moralidade, nem propriedade, nem mutua benevolência, nem família, nem
religião. — Mas esse estado não podia durar. Na desordenada satisfação das próprias
paixões, o homem primitivo muitas vezes provocava conflitos, e, ficando vencido, teve
medo do mais forte e fez-se violência. Outras vezes, tendo acumulado grande quanti-
dade de alimento, devorava tudo num dia, e, como no dia seguinte experimentava os
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 45
estímulos da fome, começou a ter a idéia de prudência, que lhe aconselhava a economia
e opôs resistência aos próprios apetites. Assim o primeiro sentimento foi o egoísmo.
O interesse pessoal, pois, foi o primeiro fator da moralidade.
Mas o homem é sociável por sua natureza. Como as abelhas e as formigas, os
homens primitivos formaram instintivamente uma sociedade. Formada a sociedade, o
homem ficou sujeito a novos deveres. Porquanto, compreendendo que o bem parti-
cular está indissoluvelmente ligado ao bem comum, concluiu que o indivíduo deve
contribuir para o bem de todos e a tudoo que é útil para a sociedade é bem, e tudo o
que lhe é nocivo é mal. A utilidade pública: eis o princípio da moralidade, o critério da
distinção entre o bem e o mal. Assim do egoísmo nasceu necessária e fatalmente o
altruísmo, com todas as suas formas mais elevadas, que são a generosidade, o sacrifício,
a dedicação, etc. O egoísmo e o altruísmo desenvolveram-se quase ao mesmo tempo.
O altruísmo, no homem, torna-se consciente, e abrange a família (virtudes domesticas),
a sociedade (virtudes sociais), a humanidade inteira (filantropia e caridade). O altruísmo
não só nasce do egoísmo, mas robustece-se com ele, até que o vence ou parece que o
vence; porque a vitória do altruísmo é também a do egoísmo, pois o bem da comunidade
é o bem de cada indivíduo. O egoísmo e o altruísmo harmonizar-se-ão numa sociedade
futura, para a qual tendemos, pois são coessenciais, e formarão o ego-altruísmo. Do
seu perfeito acordo dependerá a felicidade da humanidade ideal, quo a humanidade
presente está preparando. — Desse modo, a moralidade, se tem o começo no interesse
pessoal, tem o complemento no instinto social.
Mas não basta. Os juízos dos homens primitivos acerca da utilidade de certas
ações não foram isolados. Cada geração renovou as experiências, e, ampliando-as e
organizando-as, fixou-as tenazmente no cérebro e transmitiu-as, por hereditariedade, sob
a forma de modificações orgânicas. Por isso, as nossas intuições morais, sendo o resultado
das experiências de utilidade, acumuladas pelos nossos antepassados e transmitidas por
geração, têm todos os caracteres do instinto, são independentes de toda a experiência
consciente. “As intuições morais são o resultado das acumuladas experiências de utilidade;
organizadas gradualmente, passando de geração em geração, tornaram-se independentes
da experiência consciente. Assim como, a intuição do espaço, possuída por todo o ser
vivo, é o resultado das experiências organizadas e fortalecidas dos antepassados, que lhe
transmitiram a própria organização nervosa, lentamente desenvolvida, e não precisa
de experiência pessoal para ser definitiva e completa, mas praticamente é uma forma
do pensamento, que parece inteiramente independente da experiência; assim também
as experiências de utilidade, organizadas e fortalecidas por muitas gerações humanas
passadas, produziram modificações nervosas correspondentes, que continuamente
transmitidas e acumuladas desenvolveram em nós algumas faculdades de intuição moral,
algumas emoções correspondentes a conduta Boa ou má, que não têm nenhuma base
aparente nas experiências individuais” (Carta a Stuart Mill).
Proposto o critério e o modo porque deve regular-se a conduta do homem,
vejamos o seu fim. Esse fim é o bem, o prazer, a felicidade de cada um e de todos.
E, como é o fim que especifica os meios, a conduta será boa, se procurar prazeres
ou sensações agradáveis, e será viciosa, se não poder afastar as dores ou as sensações
46 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
*
Expostas as diversas fases do utilitarismo, é necessário passar a sua crítica. — Para
maior clareza, consideraremos primeiramente o utilitarismo na sua essência e na sua
divisão em particular e público, e depois nas várias formas, que o expõem e defendem.
Prop. I. — A utilidade não é o fundamento da moralidade.
a) Se a utilidade fosse o fundamento da moralidade, de modo que uma ação
fosse honesta por ser útil, e outra fosse não-honesta por ser nociva, seguir-se-ia — que
o parricídio, a traição dos amigos e da pátria, e outros atos semelhantes seriam honestos,
se nos causassem alguma utilidade ou interesse, — e que o amor da pátria e do próximo,
a justiça, a generosidade, seriam atos não-honestos, se nos trouxessem alguma perda ou
aflição. Ora, estas consequências propugnam a consciência e ao senso comum dos
homens. Logo, a utilidade não é o fundamento da moralidade.
b) O bem útil, desejando-se, não por si mesmo, mas por amor de outro bem,
tem razão de meio; ao passo que o bem honesto, desejando-se por si mesmo, tem razão
de fim. Ora, o meio é essencialmente diverso do fim. Logo, o bem útil é essencialmente
diverso do bem honesto, e por isso, nem tudo o que é útil é honesto. Logo, a utilidade
não é o fundamento da moralidade.
c) O fundamento da moralidade deve ser uma coisa absoluta, invariável, neces-
sária; porque existem atos, que são absoluta, invariável e necessariamente honestos,
independentemente de toda e qualquer vontade e circunstância. Ora, a utilidade é uma
coisa relativa, variável e contingente. Logo, a utilidade não é o fundamento da moralidade.
Prop. II. — A utilidade particular não é o fundamento da moralidade.
a) Se a utilidade particular fosse o fundamento da moralidade, todo o ato
desinteressado e inspirado pela mais sublime abnegação, como a morte por causa
da salvação da pátria, seria imoral e não-honesto; como, pelo contrário, todo o ato
baseado no egoísmo, como a traição da pátria com o fim de enriquecer, seria moral e
honesto. Ora, essas consequências são absurdas. Logo, a utilidade particular não é o
fundamento da moralidade.
b) Todos os homens julgam não haver coisa mais contrária a honestidade
do que operar pela utilidade própria, contrariando a dos outros. Logo, a utilidade
particular não é o fundamento da moralidade.
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 47
tenderá para bens superiores e espirituais e procurará a felicidade dos outros, mesmo
com sacrifício do seu bem sensível. — É falso que possa sempre construir-se uma
aritmética moral, para se decidir se de um certo ato resultará um prazer de maior ou
menor quantidade; porque prazeres há que se não podem reduzir a mesma medida
nem estar sujeitos ao mesmo critério de cálculo. — É falso que o dever do homem
consista em procurar o seu interesse ou prazer sensível, e que por isso, o homem mais
honesto e virtuoso é o que procura o seu maior bem o interesse; porque então Nero
e Sardanápalo deveriam ser mais dignos da nossa estima e admiração do que tantos
heróis, que sacrificaram as comodidades e a vida pelo bem da sua pátria. — É falso que o
interesse particular não possa ser contrário ao interesse comum, e que entre um e outro
exista necessariamente a mais perfeita harmonia; porque, embora o bem comum possa
produzir e produza muitas vezes o bem particular, todavia é certo que o indivíduo pode,
comprometendo o interesse e o bem comum, obter grandes bens e interesses particu-
lares. Por isso, a harmonia, que deve existir entre o interesse particular e o comum,
deve fundar-se num princípio absoluto e mais elevado do que o interesse particular.
C) Os sistemas dos positivistas são todos falsos.
a) É falso o sistema de Comte pelas seguintes razões:
a) Baseia-se em falso suposto. Na verdade, o sistema parte do princípio de
que se devem rejeitar, como coisas quiméricas, as idéias dos seres que escapam à
experiência sensível, como são as idéias de liberdade, de responsabilidade moral, de
deveres absolutos, de Deus. Ora, esse princípio, como vimos, é falso e reduz o homem
a condição dos animais irracionais.
b) O positivismo funda o seu altruísmo, isto é, os sentimentos de desinteresse
e de benevolência na sexualidade. Ora, uma vulgar experiência atesta que essa paixão
desenvolve o mais feroz egoísmo, e que os animais, que apresentam os mais belos
exemplos do altruísmo, são os destituídos de sexualidade. Assim, nos formigueiros, o
cidadão mais altruísta é um pobre neutro, que não pertence a nenhum dos dois sexos.
c) Comte reduz todos os deveres do homem a esta máxima: vive para os outros.
Ora, essa máxima, embora pareça generosa, é, contudo, inaceitável; não só porque leva
o homem a prescindir sempre dos seus direitos e deveres individuais, o que repugna
a dignidade humana, mas também porque, se abrange os deveres da humanidade,
não abrange os da justiça.
d) A máxima de Comte: vive para os outros, se fosse posta em prática, seria
causa de dissolução da sociedade. Na verdade, se cada um devesse sacrificar-se pelo
bem do outro, ninguém poderia aceitar o sacrifício dos outros. Sendo assim, a lei
do sacrifício universal daria em resultado a supressão de todo o ato moral e social.
e) Finalmente, a máxima de Comte não pode impor-se a ninguém, como regra
de conduta. O positivismo exclui os deveres absolutos. Pois bem, se o indivíduo não
estiver convencido de que um dever imprescindível o obriga a viver para os outros,
sacrificará ele por ventura o interesse próprio ao interesse dos outros? Certamente
que não. — Comte responde que o altruísmo, pela educação e pela ciência, terá fatalmente
preponderância sobre o egoísmo. Mas essa resposta é inútil. A educação e a ciência, se
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 49
evolução de uma espécie inferior, e por isso, entre nós e o animal não existe uma
diferença específica e essencial, — que o estado primitivo do homem foi o selvagem,
— que as faculdades humanas se transformam, e de vegetativas e sensitivas se tornara
intelectuais, — que o pensamento e a consciência são funções da atividade nervosa, — que
por isso, a alma do homem não é espiritual, nem imortal. Ora, todas essas suposições
são falsas. É falso que não existe um Criador e Conservador supremo de todas as coisas
(Teodiceia, cap. J). É falso que o homem é apenas a evolução de uma espécie inferior
(Anthr., Sec. IV, cap. I). É falso que o estado primitivo do homem foi o selvagem
(Anthr., Seção IV, cap. 1, art. II). É falso que as faculdades intelectuais são o resultado
da transformação das faculdades vegetativas e sensitivas; porque as faculdades intelectuais
são espirituais, ao passo que as vegetativas e as sensitivas são materiais, e repugna que
o espiritual derive do material (Anthr., Sec. II). É falso que o pensamento e a consciência
são funções da atividade nervosa (Anthr., Sec. I, cap. II. art. IV). É falso que a nossa
vontade está sujeita ao determinismo, que é uma negação do livre-arbítrio (Anthr., Sec.
II, cap. III, art. II). É falso que a nossa alma não é espiritual (Anthr., Sec. I, cap. II, art.
III), nem imortal (Anthr. Sec. IV, cap. II, art. II).
b) Spencer diz que o caráter moral dos indivíduos é transmitido pela hereditariedade.
Ora, isso é falso. Pela hereditariedade, os pais podem transmitir aos filhos o temperamento,
umas tendências para um determinado estado patológico, amas predisposições inerentes
ao sangue; mas não transmitem nem podem transmitir o que eles adquiriram pelo sou
próprio esforço, nem o que depende da sua vontade, como a ciência, a virtude, etc.
Quem não sabe que de pais sábios nascem filhos ignorantes, e de pais virtuosos nascem
filhos maus? — É verdade que os evolucionistas, para justificarem aquela transmissão,
condenada pela experiência e pela razão, dizem que a moralidade é uma coisa gravada
no cérebro, pois Gall descobriu a bossa da moralidade. Mas a justificação é mais absurda
que o princípio. o que está unido ao cérebro é uma entidade material, tem grandeza e
figura. Ora, ninguém dirá que a idéia de moralidade, de justiça, de bem e de mal, é uma
coisa grande ou pequena, branca ou vermelha, quadrada ou circular. De resto, o sistema
de Gall foi refutado na Anthr. (Sec. I, cap. II).
c) Spencer diz que o egoísmo, isto é, o amor de si mesmo, e o altruísmo, isto é, o
amor dos outros, são o fundamento da moralidade, são coessenciais, e do perfeito acordo
entre eles depende a felicidade da humanidade ideal. — Antes de tudo, notamos que
o egoísmo não se identifica com o amor de si mesmo; porque o egoísmo é sempre um
vício e nunca é um dever, e por isso, o amor de si mesmo não deve ser egoísta. — Em
seguida, perguntamos: qual é o princípio que pode estabelecer um perfeito acordo
entre o egoísmo e o altruísmo, entre o interesse particular e o comum? É o meio social,
responde Spencer. Mas estamos num círculo vicioso. O meio social, podendo formar-se
só depois de se ter manifestado um perfeito acordo entre o egoísmo e o altruísmo, é
efeito e não causa do mesmo acordo. Qual será, pois, esse princípio? Será o próprio
egoísmo? não: porque o egoísmo tendo sempre para o que é útil ou agradável ao indi-
víduo, e o que é útil ou agradável ao indivíduo é geralmente nocivo ou desagradável
a comunidade. Será o altruísmo? também não; porque o que convém a comunidade é,
muitas vezes, contrário ao interesse do indivíduo. Logo, o egoísmo e o altruísmo não
52 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
podem ser os únicos fatores do seu perfeito acordo, em que consistiria a felicidade da
humanidade ideal. — Diremos, pois, a Spencer que o amor honesto de si mesmo e o
amor honesto dos outros se harmonizam perfeitamente, mas só no amor de Deus. É
o amor de Deus que nos leva a consecução da nossa felicidade eterna, pelo sacrifício
das nossas paixões desordenadas, e que nos sujeita ao serviço do próximo e ao bem
da sociedade. Esse é único fundamento capaz de estabelecer uma perfeita harmonia
entre o interesse particular e o comum. Mas essa harmonia é apenas um fim próximo
e secundário; porque o fim último e principal do homem é Deus.
d) Spencer admite que a moralidade é um efeito, uma consequência da sociedade;
porque esta é a mãe de todos os sentimentos morais. — Ora, isto é falso. A moralidade,
longe de ser um efeito ou uma consequência da sociedade, é o seu princípio e funda-
mento. Porquanto, não pode haver sociedade, doméstica ou civil, sem a autoridade
de um superior e sem a obediência dos súditos. Ora, o que é que leva os súditos a
obedecerem ao superior? Será a simpatia? não; porque ela fica vencida pelo egoísmo.
— Será a força material? Também não; porque a força material só pode levar o súdito
a obedecer ao superior, quando este a possui, e não quando não a tem, e porque
deve haver um princípio, que conserve a ordem e a disciplina no exército. — Serão
os castigos e os prêmios? Também não; porque os castigos e os prêmios supõem a
moralidade. Se, pois, quisermos assignar ao efeito uma causa proporcionada, devemos
concluir que o princípio, que leva o súdito a obedecer ao superior, é o sentimento
moral do dever, é a moralidade. Logo, a moralidade é o fundamento e o princípio da
sociedade, e por isso, não é o seu efeito, a sua consequência.
e) Spencer diz — que a hereditariedade, se transmite a idéia do bem e do mal,
não transmite a razão porque uma ação é boa, e outra é má, — que os filhos, não
conhecendo as causas da diferença entre o bem e o mal, deram ao bem e ao mal um
caráter absoluto e necessário e erradamente disseram que deve fazer-se o bem, porque é
bem, e que deve evitar-se o mal, porque é mal, — que da mesma ignorância nasceram
as idéias de obrigação, de dever e de sanção, fundadas na existência de Deus, — e que
por isso, a moral absoluta e religiosa, sendo efeito da ilusão, do prejuízo e da ignorância,
deve ser destruída pela ciência. — Poderíamos responder a Spencer que a moral relativa
e ateia devo ser destruída, porque se funda na ilusão, no prejuízo e na ignorância.
Mas limitamo-nos a notar que a opinião de Spencer é destruída pela própria lei do
evolucionismo, em que ela se funda. Na verdade, segundo o escritor inglês, a moralidade
nos antepassados era consciente, pois eles conheciam a razão pela qual uma ação é boa
e outra é má, e era verdadeira, porque correspondia à realidade; ao passo que, nos
descendentes, é inconsciente, é uma ilusão, um engano. Sendo assim, é evidente que
os antepassados eram mais perfeitos que nós, que o homo primigenius era mais sábio
que o homo sapiens, o que por isso, na evolução das espécies, não houve progresso,
mas retrocesso. Desse modo, cai por terra o evolucionismo, que admite o progresso
contínuo e necessário; pois, nesse caso, a seleção, longe de acumular em volta da
espécie a perfeição das espécies anteriores, feria eliminado uma perfeição existente.
f) A Moral de Spencer é destituída de fim. Porquanto o prazer, que Spencer
propõe como escopo da conduta humana, sendo passageiro, amissível, enganador,
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 53
não pode ser o fim último, como demonstrámos no Cap. I. — É verdade que Spencer
propõe a humanidade atual, como fim, a humanidade futura, ideal e perfeita. Mas,
além de ser injusto e impossível sacrificar a humanidade de hoje à de amanhã, essa
humanidade ideal e perfeita é uma verdadeira quimera, em virtude do próprio princípio
da evolução. Na verdade, se tudo está sujeito a lei fatal da evolução, se tudo progride
necessariamente, não pode haver ideal nem fim. Nem falem no equilíbrio, na adaptação
perfeita do homem ao meio; porque, se tudo está sujeito a lei da evolução, também o
equilíbrio e o meio devem mudar. O próprio Spencer reconhece essa verdade, dizendo
que “a adaptação da natureza humana às condições da existência nunca poderá atingir
uma perfeição completa, e que ao período da evolução sucederá um período inverso —
o da dissolução”. A felicidade, pois, é, segundo os evolucionistas, o fim necessário dos
atos humanos, mas é um fim que nunca será alcançado, é a água a fugir sempre dos
lábios de Tântalos sequiosos! — Concluímos que a Moral de Spencer, não assinando
ao homem um fim último, é destituída de base.
g) A Moral de Spencer não só é destituída de fim, mas também de leis, que
dirijam a atividade livre do homem, marcando-lhe os direitos e os deveres. O escritor
inglês reduz as leis morais às leis físicas. Essa redução repugna; porque o nome de
lei convém primeira e propriamente às leis morais, e só secundaria e analogicamente às
leis físicas; ora, é absurdo reduzir o primeiro ao segundo, o próprio ao analógico. —
Além disso, tal redução equivale a uma destruição de toda a Moral. Com efeito, se
a lei moral não se distingue das leis fisiológicas, biológicas, etc., a moralidade será
orgânica, será o fruto de experiências acumuladas e transmitidas por hereditariedade,
e haverá um órgão moral, como há um órgão visual, auditivo, etc. Mas, sendo assim,
a Moral desaparece. Uma lei, que nos impele e leva necessariamente ao ato, não é
uma lei que dirige. E de que modo poderia ela dirigir a nossa conduta? Se o homem
herda a virtude, como herda a saúde, deve estar sujeito ao vício, como ele está à
doença. Como não pode mudar de temperamento, de constituição, de órgãos, de
fisionomia; também não pode mudar de conduta. — Não existindo verdadeiras leis
morais, é claro que não pode existir verdadeira obrigação, nem verdadeiro direito.
Porquanto, Spencer diz que a obrigação e o direito são apenas experiências desen-
volvidas e transmitidas, são faculdades orgânicas, que nos impelem para os seus
atos respectivos. Mas, se não há verdadeira obrigação, as tendências individuais e
egoístas podem vencer as tendências sociais e altruístas, e o equilíbrio será quebrado
e a sociedade dissolvida. Os evolucionistas apelarão, talvez, para a ordem; mas a
ordem, sem leis morais e por isso, sem um legislador soberano, é uma palavra vã e
irrisória. — Essa Moral de Spencer poderá ser uma física, uma química, uma história
natural; mas nunca será verdadeira Moral, a Moral que dirige a livre atividade do
homem para o seu fim.
h) Se a Moral de Spencer não tem fim nem leis verdadeiras, nem pode ter
uma sanção. Se os bons e os maus não recebem, aqui sobre a terra, a recompensa ou
o castigo, que lhes é devido, é claro que deve existir uma vida futura, em que Deus
dará a cada um o que lhe pertence. Mas os evolucionistas, suprimindo a vida futura,
a existência de Deus, a espiritualidade da nossa alma, não podem estabelecer uma
54 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
sanção da conduta humana. E aonde encontrar essa sanção?... Na justiça humana? Não;
porque a justiça humana é falível, está sujeita a corrupção, e não distingue sempre
o bom do mau, o inocente do criminoso... Nos remorsos? Também não; porque o
remorso é uma censura, não é um castigo; é ministro mais da misericórdia de Deus do
que da sua justiça, e é por isso, que o remorso diminui com o aumento dos crimes,
o que não deveria acontecer, se ele fosse uma sanção. Logo, a Moral dos evolucionistas
não tem verdadeira sanção.
f) O sistema de Bain é também inaceitável e falso sobretudo pelas razões que
apresentamos contra Spencer.
III. Autonomismo dos racionalistas. — Esse sistema admite que a razão deve
formar a Moral, independentemente de todo e qualquer princípio absoluto e objetivo,
que regule a nossa atividade. — O autonomismo é uma derivação da Crítica da razão
pura de Kant, em que o escritor alemão pretende provar que a razão é independente
da metafísica e que os primeiros princípios da razão são apenas fôrmas a-priori,
identificadas com a própria razão e destituídas de todo o caráter objetivo e absoluto.
Todavia Kant, na sua Crítica da razão prática, não aplicou, como veremos, a Moral
os princípios emitidos na Crítica da razão pura, porque reconheceu que os princípios
absolutos são indispensáveis para a ordem moral.
Os defensores do autonomismo dizem que a Moral não se deve fundar no sen-
timento, nem na utilidade, nem na força exterior, mas unicamente em alguns princípios
racionais. Esses princípios racionais não são metafísicos ou absolutos, nem subsistem
em si mesmos e fora de nós, mas encontram-se na análise das relações lógicas da
nossa natureza e das nossas faculdades. — Entre as nossas faculdades deve existir
uma ordem, uma subordinação, fundada na sua natureza e tendência instintiva.
Ora, em nós, há duas espécies de faculdades, que, por causa da diversidade do seu
objeto e do seu modo de operar, se chamam inferiores e superiores. Como é evidente,
a razão julga que as faculdades inferiores devem estar subordinadas às superiores. É o
primeiro princípio da Moral. — Entre as faculdades superiores encontramos a razão
e a vontade. A relação entre estas faculdades exige que a vontade, na sua tendência
para o bem, seja esclarecida e regulada pela razão. É o segundo princípio da Moral.
— Eis, pois, os dois princípios fundamentais da Moral: subordinação perfeita das
faculdades inferiores às superiores, e da vontade a razão. — É assim que a ordem das
relações lógicas funda a ordem das relações morais. Por isso, a razão é autônoma; ela
encontra em si mesma a lei moral; ela é a própria lei moral; ela manda na vontade
e em toda a nossa existência.
Esse sistema foi exposto e defendido principalmente por Vacherot no seu
livro — Essais sur la Philosophie critique. Dele extraímos o seguinte trecho: “Que
importa a Moral se o universo se desenvolve, ou não, segundo um plano concebido
pelo pensamento divino, se o mundo tende, ou não, para um escopo fixado pela mão
divina? Quer o mundo seja a obra de um Deus bom ou de um gênio mau, quer seja
governado por uma providência ou abandonado a fatalidade, o homem não deixa
de ter a sua natureza, o seu fim, a sua lei, o seu direito e o seu dever, — coisas que só
podem ser determinadas pela psicologia e pela moral” (p. 320).
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 55
1 Essa também é a doutrina de S. Tomás, que, quando quer dar a razão por-
que um ato é intrinsecamente bom ou mau, recorre sempre a natureza racional, com
a qual alguns atos convêm, e outros não convêm. (Cf. C. Gent., l. III, c. 129; — Sum.
Th., 1-2, q. 54, a. 3; q. 94, a. 2). Por isso, o fundamento próximo da moralidade do ato
humano não consiste: a) nem na conformidade do mesmo ato com o fim último do
homem, — b) nem na sua conformidade com a nossa razão.
a) Não consiste na conformidade do ato com o nosso fim último. Porquanto,
o ato honesto leva a consecução do fim último, porque é honesto, mas não é honesto,
58 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
dos nossos atos seja a nossa natureza racional, contudo o seu fundamento último é a
própria natureza de Deus, enquanto essa é modelo ou exemplar de toda a natureza
criada, sobretudo da natureza racional.
Dissemos que o fundamento último da moralidade é a natureza divina, para
excluirmos as opiniões, que encontram esse fundamento na livre vontade de Deus,
ou na sua lei eterna. Essas opiniões são falsas.
a) É falsa a primeira opinião, que coloca o fundamento último da moralidade
na livre vontade de Deus, e que foi defendida, sobretudo por Pufendorf. Na verdade,
alguns atos humanos, por si mesmos e sem nenhuma relação com a livre vontade de
Deus, levara ao fim último; e outros, também por si mesmos e sem relação com a
livre vontade de Deus, nos afastam daquele fim; porquanto, as essências das coisas
não dependem, como vimos, da livre vontade de Deus. — Além disso, se a morali-
dade intrínseca dependesse da livre vontade de Deus, Ele poderia fazer com que um
ato essencialmente mau fosse bom, e um ato essencialmente bom fosse mau. Ora,
isso é absurdo.
b) É falsa a segunda opinião, que constitui o fundamento último da moralidade
na lei eterna de Deus. Na verdade, se assim fosse, um ato seria honesto ou não-honesto,
porque assim o julgou a sabedoria de Deus. Ora, dá-se o contrário. Um ato não é
bom ou mau, porque Deus assim o julga; mas Deus o julga bom ou mau, porque é
tal em si mesmo; porque a essência das coisas não tem o seu fundamento último na
inteligência de Deus. — Além disso, a lei eterna de Deus supõe os atos moralmente
bons ou maus, e só lhes acrescenta a razão de preceito ou de proibição; porque,
embora haja muitos atos que são maus por serem proibidos, muitos outros há que
são proibidos por serem maus.
Os defensores da moral independente dizem: a moralidade objetiva, se não
prescindir inteiramente de Deus, não será intrínseca, mas só extrínseca, porque está
sujeita a Deus. Ora, a moralidade objetiva é intrínseca.
Resposta. A moralidade objetiva do nosso ato deixaria de ser intrínseca, se se
fundasse exclusivamente no preceito divino. Mas não é assim. A moralidade não se
funda exclusivamente no preceito divino, mas também, e sobre tudo, na essência
divina, que é o exemplar de todo o bem.
*
Depois de termos exposto a verdadeira teoria acerca do fundamento último da
moralidade do ato humano, resta-nos examinar algumas opiniões, que são diversas da
nossa, e que por isso, embora fundem a moralidade num princípio absoluto e objetivo,
contudo são falsas ou insuficientes. As principais opiniões, diversas da nossa, podem
reduzir-se a sete; porque — 1) alguns colocam o fundamento último da moralidade na
lei da evolução indefinida, — 2) outros, na lei da natureza ou da razão, — 3) outros, na
lei do respeito devido a pessoa ou a espécie humana, — 4) outros, no imperativo categórico,
— 5) outros, na idéia de justiça, — 6) outros, na idéia transcendental do bem, — 7) outros,
na idéia das relações essenciais das coisas. As quatro primeiras opiniões são falsas, as
três últimas são incompletas ou confusas — De cada uma faremos uma breve crítica.
60 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
o mundo com todos os fenômenos, que são as diversas vontades particulares. Estas
diversas vontades hão de desaparecer, quando os homens conhecerem que o desejo
da vida individual é uma loucura, pois a vida é um contínuo sofrimento. O dever,
pois, é a própria razão, enquanto se opõe a este desejo da vida. O fim da humanidade
é o suicídio coletivo, é a vitória do universal inconsciente.
Como é evidente, o sistema de Hartmann é uma nova edição do sistema de
Schopenhauer, não menos estéril, falso e arbitrário que o do mestre.
II. Lei da natureza ou da razão. — Os Estoicos, embora rejeitassem a noção
de um Deus pessoal e a imortalidade da nossa alma, contudo admitiam alguns prin-
cípios universais e imutáveis, reguladores da razão e da natureza. O bem, segundo
eles, consiste na retidão imutável da vontade, e esta retidão consiste na conformidade
com as leis essenciais da natureza ou da razão. Desse modo, uma ação é boa, quando se
conforma com essas leis, e é má, quando lhes é contrária. Por isso, os bens exteriores,
como avida, as riquezas, os prazeres, as honras, são bens falsos; e a morte, as doen-
ças, os sofrimentos, os desprezos, não são verdadeiros males. A virtude consiste na
independência completa de todo o influxo externo no reino perfeito da razão. Para
viver conforme a razão, é necessário sofrer todos os males e abster-se de tudo o que
nos pode inquietar.
Esse princípio dos Estoicos não pode legitimar um só dever moral. Na verdade,
para essa legitimação, seria necessário provar que temos obrigação de desprezar todos
os bens e males da terra, e do sacrificar os nossos interesses ao império da razão, sem
nos importarmos de outras vantagens superiores nem do fim do nosso sacrifício. Mas,
se Deus não existe e se a nossa alma não é imortal, essa obrigação não existe, e não se
vê a razão porque o homem devo resistir às tendências da sua natureza, desprezando
os b da terra e a satisfação das próprias paixões. — É claro que esse sistema é muito
semelhante ao autonomismo dos racionalistas, e refuta-se com as mesmas razões com
que este foi refutado.
III. Lei do respeito devido à pessoa ou à espécie humana. — Alguns
sequazes do Estoicismo substituíram a lei da natureza, ou da razão, a lei do respeito,
devido à pessoa ou à espécie humana, dizendo que um ato é bom, se traduz esse respeito,
e é mau, no caso contrário.
Nem essa opinião é verdadeira. O respeito devido a si mesmo, o respeito devido
à pessoa e a espécie humana, são verdadeiros deveres, mas não podem constituir o
fundamento da moralidade dos nossos atos. Porquanto, se prescindirmos de Deus, não é
possível impor ao homem o respeito para consigo nem para com os seus semelhantes.
IV. Imperativo categórico. — É o célebre sistema de Kant. Os fundamentos
da Moral do escritor alemão não são os princípios, mas sim os fatos morais da nossa
consciência. Estes fatos não se demonstram: analisam-se, não para se determinar por
um modo racional a sua realidade objetiva, mas para se conhecerem os seus caracteres
subjetivos; pois a fé moral deve substituir a ciência. — Há duas espécies de fatos morais:
máximas e imperativos. As máximas são regras de conduta, essencialmente individuais
e particulares. Os imperativos (ordens) são regras universais, aplicáveis a todo o gênero
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 63
universal, isto é, aplicável a cada um dos atos, aliás não seria a regra de toda
a moralidade; — deve ser suprema, de modo que todas a outras se reduzam a
ela; — deve ser evidente, porque, se devesse ser demonstrada por outra regra,
deixaria de ser suprema; — deve fundar-se na própria natureza específica.
Ora, a regra sobredita tem estes requisitos. Na verdade, — é universal, isto
e, aplicável a todo o ato, porque todo o ato, que convém a nossa natureza
racional, é por si bom, e todo o ato, que não convém, é por si mau; — é
suprema, e dela dependem todas as outras regras, porque a última razão da
bondade ou malícia moral do ato é a sua conveniência ou não-conveni-
ência com a nossa natureza racional; — é evidente, porque nada mais claro
do que a obrigação de operarmos em conformidade com a nossa natureza
racional; — funda-se na própria natureza específica do homem; pois esta,
especificamente, é racional. Logo, essa regra de moralidade é verdadeira.1
1 As opiniões dos filósofos acerca da regra de moralidade, são muitas e diver-
sas, conforme a multiplicidade e diversidade das suas teorias acerca do fundamento
da própria moralidade; porque é o fundamento que nos dá o critério para julgarmos
da qualidade dos atos humanos. Assim, para os materialistas, a regra de moralidade é
a seguinte: vive para as tuas satisfações; para os utilitaristas, é a seguinte: vive para a lua
utilidade ou para a dos outros; etc. — Para evitarmos repetições inúteis, limitar-nos-emos
a examinar apenas uma ou outra dessas regras.
a) Krause dá a seguinte regra: o homem deve realizar no tempo infinito toda a sua
essência e todas as suas propriedades eternas, e, em cada instante, uma parte determinada
da sua essência”. (Tiberghien, Esquisse de phil. moral).
Essa fórmula contém muitos erros, consequências do erro fundamental, que
é o panteísmo, e por isso, longe de conter a regra da moralidade, é a negação de toda a
regra. Com efeito, não se concebe moralidade sem livre-arbítrio. Ora, a tal realização
da essência, sendo fatal e necessária, destrói toda a liberdade. — Além disso, a lei
supõe o superior, que a promulgue, e o súdito, que a execute. Mas, se existe uma só
substância, infinita e eterna, não pode haver subordinação do inferior ao superior.
b) Kant propôs a seguinte regra: opera por forma que o teu ato pousa ser norma
de todo o agente livre.
Essa regra também não satisfaz. Porquanto, ela é obscura o indeterminada;
visto que é necessário sapontar o que é necessário, para que o ato possa ser norma de
cada agente livre. — Além disso, sendo tão variada a condição e o estado dos agentes
livres, é difícil que a norma, que serve para uns, possa servir para outros.
c) Para Jouffroy é a seguinte: o teu ato, para ser bom, deve ser conforme com o teu
fim. A razão é porque o bem do ente é o seu fim.
Essa regra também é imperfeita. Porquanto, o ato geralmente não é bom, porque
leva ao fim; mas leva ao fim, porque é bom. — Além disso, se fosse verdadeira essa regra,
a bondade ou a malícia seria sempre extrínseca e acidental ao ato, porque consistiria na
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 67
relação do ato com o fim. Ora, a bondade ou a malícia é geralmente intrínseca e essencial
ao ato; pois muitos atos são bons ou maus independentemente da consideração do fim.
d) Para alguns escritores essa regra é a seguinte: a vontade deve fazer o que a
inteligência mostra ser mais perfeito. A razão é porque o amor deve ser proporcionado
ao ato do entendimento, e por isso, a vontade deve escolher o que a inteligência
conhece ser mais perfeito.
Essa fórmula é inaceitável. Na verdade, ela supõe que a vontade esteja em
discórdia com a inteligência, quando não prefere o mais perfeito. Ora, tal suposição é
falsa; porque nem a inteligência manda que a vontade escolha necessariamente o mais
perfeito, nem a vontade, quando escolhe o menos perfeito, declara que este é superior
ao bem, que a inteligência julgou mais perfeito. — Além disso, essa fórmula confunde os
conselhos com os preceitos; porque ninguém é obrigado ao ótimo, nem absoluto nem relativo,
contanto que não se pratiquem coisas proibidas, nem se omitam coisas preceituadas.
e) Outros apresentaram a seguinte regra: observa a ordem. Essa regra não é
suprema. O homem deve observar a ordem, mas só porque a razão mostra a justiça e a
necessidade dessa observância.
f) Para Balmes é esta: o teu ato, para ser bom, deve derivar do amor divino, explícito ou
implícito. A razão é porque a moralidade do homem deve imitar a moralidade de Deus.
Ora, a moralidade em Deus é o ato, com que Ele ama a sua bondade infinita. Logo,
todos os atos humanos devem derivar, explícita ou implicitamente, do amor de Deus.
Essa regra também é inaceitável. Porquanto, não há comparação entre a moralidade
de Deus e a do homem; visto que, em Deus, não é possível outro ato que não seja o amor
da sua bondade, ao passo que no homem há muitos outros atos morais possíveis e obriga-
tórios, como o ato de fé, de esperança, etc. — Além disso, essa regra não é suprema; porque
é necessário demonstrar que o homem é obrigado a operar sempre por amor de Deus.
1 Essa proposição é contra os materialistas e os sensualistas.
a) Os materialistas, como Robinet, Gall, dizem que a faculdade perceptiva do bem
e do mal é um sentido interno corpóreo, semelhante aos cinco sentidos externos. — Essa
opinião é absurda. A bondade e a malícia moral são qualidades abstratas e imateriais,
porque denotam uma relação entre o ato e a nossa natureza racional. Ora, qualidades
abstratas e imateriais não podem ser percebidas por um sentido corpóreo, porque o
objeto deste é constituído pelas qualidades materiais e concretas.
68 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
ARTIGO II
Fontes da moralidade dos atos humanos
1 Um só ato, ainda que possa ter vários fins remotos, dos quais um e fim do
outro, contudo não pode ter senão um fim próximo, que o especifica; porquanto,
embora possam ser vários os fins próximos do ato, todavia um só é o fim principal, de
que o próprio ato tira a sua espécie substancial, sendo os outros meramente acidentais.
O mesmo devo dizer, e com mais razão, do fim que é último numa série de fins; por-
que este é o primeiro na intenção, e por isso, não pode deixar de especificar o ato.
2 O fim é sempre fonte de moralidade. Mas é necessária uma advertência.
Quando o fim se torna objeto da vontade, o que acontece todas as vezes que o fim do
agente se identifica com o fim do ato, então é fonte principal e essencial de moralidade e
especifica o ato humano. Quando, porém, o fim é distinto do objeto, nesse caso é fonte
secundaria e acidental de moralidade (a principal e essencial é o objeto) e não especifica o ato.
Essa última regra admite excepções. Porquanto, se o objeto for moralmente
indiferente, o ato tira a sua espécie do fim, embora extrínseco; porque, então, esse fim
é o próprio e principal termo da tendência da vontade. Como também, quando o
fim não se limita a acompanhar o ato, mas leva o próprio agente a operar e a tender
para um dado objeto, nesse caso, a moralidade do ato deriva principalmente do fim,
embora extrínseco, porque é ele o principal termo da vontade; assim, quem trabalha
para a glória do mundo, é mais vaidoso do que trabalhador (Sum. Th., 1-2, q. 18, a. 4).
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 71
1 Algumas circunstâncias são tão agravantes, que dão ao ato humano uma nova
espécie de bondade ou malícia moral; assim o roubo de um objeto sagrado encerra,
além da malícia do furto, uma nova espécie de malícia, que é a irreligião.
2 As circunstâncias estão contidas no celebre verso:
Quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando?
3 O ato humano não tende para um objeto abstrato, mas para um objeto
concreto, isto é, cercado de várias circunstâncias. Logo, o ato humano, assim como
tira do objeto a sua moralidade específica, assim também tira das circunstâncias a sua
moralidade acidental. — E se, às vezes, o ato tira de alguma circunstância a própria
moralidade específica, isto dá-se enquanto uma circunstância agravante, por causa da sua
conveniência ou não-conveniência especial com a ordem racional, se torna condição
principal do objeto; tal é o roubo de um objeto sagrado. Mas, em geral, a circunstância,
como tal, não muda a espécie do ato moral; só aumenta ou diminui a sua gravidade,
ou produz nele uma alteração acidental. (Sum. Th., 1-2, q. 18, aa. 3, 10, 11).
72 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
ARTIGO III
Consequências da moralidade dos atos humanos
responsável, pois quer livremente o mal; ao passo que, embora advirta na bondade de
um ato, não pode dizer-se que é responsável por ele, pois pode não o querer positi-
vamente, mas simplesmente tolerá-lo ou permiti-lo.
Não só os atos, mas também as suas livres omissões, com seus efeitos, nos são impu-
táveis. — Para que os efeitos maus, que derivam do ato ou da sua omissão, sejam impu-
táveis, é necessário, como dissemos, que o agente não só os preveja, mas também tenha
o poder e a obrigação de abster-se do acto ou da sua omissão (Sum. Th., 1-2, q. 21, a. 2).
1 As definições apresentadas consideram o mérito e o demérito em concreto.
Em abstrato, o mérito é a exigência do prêmio, inerente ao ato, pela vantagem, que este
causou a outrem, — e o demérito e a exigência do castigo, inerente ao ato, pelo prejuízo, que
este causou a outrem.
Vejamos os requisitos para que o ato exija prêmio ou castigo.
a) O ato, para que exija prêmio, deve ter os seguintes requisitos: — 1º) deve
ser moralmente bom, pois o ato mau merece castigo; — 2º) deve ser livre, não só
porque o ato necessário não é digno de louvor nem de prêmio, mas também porque
o mérito é posterior à imputabilidade, e esta supõe a liberdade; — 3º) deve causar a
outrem uma vantagem, pois o prêmio só pode exigir-se daquele, que recebeu do
nosso ato uma vantagem; — 4º) deve ser explícita ou implicitamente aceito, como
merecedor de prêmio, por aquele em cuja vantagem foi praticado; aliás o prêmio não
será devido por justiça, mas por conveniência; — 5º) deve não ser devido por causa de
uma recompensa anteriormente determinada e recebida; pois, nesse caso, o ato não
é meritório, não exige recompensa ou prêmio, a não ser que o ato se pratique com
tão extraordinário cuidado e celeridade, que produza uma vantagem superior â que
se podia e devia esperar.
b) O ato, para que exija castigo, deve ter os seguintes requisitos: — 1º) deve
ser moralmente mau; — 2º) deve ser voluntário e livre; — 3º) deve causar a outrem
um prejuízo. — A razão destes requisitos é manifesta.
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 75
Dizem: o ato, que é devido a outrem, não pode ser meritório diante dele. Ora,
os atos honestos são devidos a Deus. Logo, não podem ser meritórios diante de Deus.
Resposta. Não pode ser meritório o ato que é devido por causa, de uma recom-
pensa anteriormente determinada e recebida, mas pode ser meritório o ato devido pela
obrigação imposta pela lei. Ora, os atos honestos são meritórios diante de Deus, não
por causa da recompensa anteriormente prometida por Deus e recebida pelo homem,
mas por causa da obrigação imposta ao homem pela lei divina. — Todavia, deve
notar-se que muitos atos honestos não são impostos pela lei divina, mas dependem
exclusivamente da boa vontade humana, e merecem recompensa.
Insistem: um ato, que é devido por lei, não pode ser meritório.
Resposta. Negamos que o ato, devido por lei, não seja meritório. Com efeito,
o homem, enquanto, pela sua livre e boa vontade, faz o que deve fazer, merece; aliás o
ato de justiça não seria meritório, o que é falso.
Continuam: o ato, que é vantajoso para quem o realiza, e não para outrém,
não pode ser meritório diante deste. Ora, o ato honesto é vantajoso para o homem, e
não para Deus. Logo, não é meritório diante de Deus.
Resposta. Para o ato ser meritório diante de outrem, basta que este receba
algum bem extrínseco. Ora, Deus recebe dos nossos atos honestos um bem extrínseco,
que é a sua glória, e por isso, deve recompensá-los.
Replicam: se os nossos atos honestos tivessem razão de mérito diante de Deus,
Deus seria nosso devedor. Ora, isto repugna.
Resposta. Se os nossos atos honestos fossem meritórios diante de Deus, Deus
seria nosso devedor, não absolutamente, mas hipoteticamente, enquanto Deus, na sua
bondade, ordenou que as nossas boas ações, feitas com o seu auxilio, fossem meritórias
de prêmio. Ora, isto não repugna; pois, em tal caso, Deus não é devedor do homem,
mas da própria fidelidade e justiça.
1 O prêmio e o castigo são consequências do mérito e do demérito; porque todo
o mérito encerra o direito, embora remoto, ao prêmio, como todo o demérito envolve
a dívida, do castigo.
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 77
ARTIGO IV
A moralidade dos atos humanos e os hábitos
a decisão, a execução; o por isso, a sua definição não pode limitar-se a um só desses
atos, que é o amor da ordem.
c) Kant, seguido por Cousin, diz que a virtude consiste na dificuldade com que
a razão luta contra as paixões. — Essa definição também é falsa. Na verdade, a virtude
não pode referir-se exclusivamente às paixões, mas também, e por um modo mais
elevado, às operações externas. Além disso, o ato, para que seja virtuoso, basta que
tenda para o bem honesto, sendo por isso, as paixões apenas uma ocasião para a per-
feição da virtude.
1 Embora as virtudes intelectuais sejam mais nobres que as morais (pois o
objeto daquelas é mais universal do que o destas), contudo os efeitos, que as virtudes
morais produzem no homem, são mais benéficos e estimáveis do que os que derivara
das intelectuais. Na verdade, a virtude intelectual torna o homem bom, enquanto lhe
confere a aptidão para saber ou fazer bem uma coisa, assim o hábito da filosofia faz
com que o homem seja um bom filósofo; ao passo que a virtude moral torna o homem
absoluta e inteiramente bom, enquanto a sua vontade é boa ou honesta. — Donde
se vê o erro de Sócrates e de Platão, quo identificavam a ciência com a virtude moral;
pois a verdade, que é o objeto da ciência, distingue-se da bondade, que é o objeto da
virtude moral. — Lembramos que as virtudes intelectuais se dividem em especulativas
e práticas. As especulativas são a sabedoria, a ciência e o entendimento. As práticas são a
arte e a prudência.
As virtudes morais residem, como em seu sujeito, na vontade ou numa faculdade
subordinada à vontade e movida por ela. Porquanto. a virtude moral não só dá o poder de
operar bem, mas faz com que produzamos atualmente obras boas. Ora. só as virtudes,
que residem na vontade ou numa outra faculdade dependente dela, podem levar-nos
a produzir atualmente obras boas; pois que, para a prática do bem, é preciso que a
vontade se incline para ele. — Além disso, os hábitos morais são produzidos pelos atos
morais. Ora, o ato moral ou honesto só pode derivar da vontade ou de alguma faculdade
dependente dela. Logo, também o hábito moral só pode residir na vontade ou nalguma
faculdade quo dependo dela.
As virtudes morais, embora residam na vontade, como em seu sujeito, devem,
contudo, ser reguladas ou dirigidas pela razão. Na verdade, as virtudes morais incli-
nam a vontade ou as faculdades dependentes dela para o ato bom ou reto. Ora, o ato
é bom ou reto, quando a razão o julga tal, isto é, quando se conforma com a regra que
a razão impõe, de modo que o mesmo ato corresponda exatamente a regra, sem se
inclinar para um extremo nem para outro, evitando do mesmo modo o excesso e o
80 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
*
Digamos alguma coisa acerca da dignidade das virtudes morais, seu nexo, origem
e perda, aumento e diminuição.
a) Dignidade das virtudes. — Na ordem da dignidade, a primeira virtude
é a prudência, porque modera e regula todas as outras; em seguida é a justiça, que
prescreve ao homem o que deve a si mesmo e o que deve aos outros; depois é a
fortaleza, pela qual o homem, para operar o hem, despreza os perigos e a própria
morte; finalmente é a temperança, pela qual o homem prefere a honestidade a todos
os prazeres corpóreos.
b) Nexo das virtudes. — Entre as virtudes morais perfeitas existe um nexo,
tão íntimo e tão estreito, que uma não pode estar sem as outras, que são necessárias
para o ordinário e regular modo de vida. Na verdade, uma virtude é e chama-se
perfeita, quando o homem, em todas as ocasiões, firme e constantemente escolho
e executa o bem honesto. Ora, uma virtude perfeita não pode estar sem as outras,
que são necessárias para o ordinário e regular modo de vida. Com efeito, para que
a virtude seja perfeita, é necessária uma prudência perfeita, porque a prudência é a
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 83
regra moderadora de todas as virtudes. Ora, a prudência não pode ser perfeita sem
as outras virtudes cardeais; porque a prudência supõe a ordenada disposição do
apetite intelectual e sensitivo, não só em relação a uma virtude, mas em relação a
todas as virtudes, pois todos julgam conforme as suas afeições ou desejos. Logo,
entre todas as virtudes morais existe um nexo. — Note-se que falamos do hábito das
virtudes morais, e não do ato.
c) Origem e perda das virtudes. — As virtudes morais adquirem-se, na ordem
natural, pela freqüência ou repetição dos atos, e perdem-se pelo vício contrário ou
pela cessação do ato.
a) As virtudes adquirem-se pela freqüência ou repetição dos atos. Porquanto,
a virtude é um hábito, isto é, uma inclinação constante para a produção dos mesmos
atos, acrescentada a faculdade. Ora, essa inclinação só se adquire, na ordem natural,
pela repetição dos atos.
b) As virtudes perdem-se pelo vicio contrário, ou pela cessação do ato. —
Perdem-se pelo vício contrário. Na verdade, a mesma faculdade não pode ser sujeita,
ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, de duas qualidades opostas; e por isso, se
adquire um vício, não pode deixar de perder a virtude contrária; assim, o homem
que comete uma injustiça, deixa de ser justo. — Perdem-se pela cessação do ato; não
porque o hábito, para a sua conservação, depende do ato, mas porque as paixões, não
sendo mortificadas pelos atos das virtudes contrárias, acabam por subjugar à vontade.
d) Aumento e diminuição das virtudes. — O aumento e a diminuição das
virtudes consistem na maior ou menor perfeição e facilidade com que se produzem
os seus atos. Esse aumento e essa diminuição fundam-se na perfectibilidade e muta-
bilidade das nossas faculdades.
1 Dizem: os hábitos são necessários, porque facilitam o ato. Ora, para a pro-
dução dos atos virtuosos, não precisamos de facilidade alguma; porque dependem
da eleição, e muito fácil é o que está em o nosso poder. Logo, o homem, para operar
perfeitamente, não precisa de hábitos.
Resposta. Concedendo a proposição maior, negamos a menor. Na verdade, as
paixões podem por tal forma contrariar os atos virtuosos, que estes, embora depen-
dam de nós, todavia não se possam executar sem dificuldade. — Além disso, o ato,
embora não seja contrariado pelas paixões e dependa da nossa eleição, todavia, sem
84 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
os hábitos, não pode realizar-se com facilidade, uniformidade e agrado; pois este modo
perfeitíssimo de operar não acompanha necessariamente a faculdade.
Continuam: o hábito, determinando e inclinando à vontade para um certo ato,
tira a liberdade. Logo, longe de aperfeiçoar, deteriora a faculdade.
Resposta. Negamos o antecedente. Porquanto, toda a qualidade deixa intacta
a essência do sujeito, em que é recebida. Ora, o hábito é recebido na vontade, que é
essencial mente livre. Logo, o hábito não tira a liberdade, mas só a inclina para um
certo e determinado ato.
1 Nem se diga que o hábito, se aumenta o afeto da vontade, diminui a sua
indiferença e liberdade e por isso, o mérito do ato. Porquanto, esta diminuição é
efeito, pelo menos indireto, da própria vontade, pois deriva da virtude que se adquiriu
com a livre repetição de muitos atos, e por isso, não pode diminuir o mérito do ato.
2 No vício devemos considerar a entidade positiva, e a malícia, ou privação da
retidão; porque o vício consiste num bem de ordem inferior, que não é conveniente
a nossa natureza racional (Cf. Sum. Th., 1-2, q. 71 sqq).
CAPÍTULO III – MORALIDADE DOS ATOS HUMANOS 85
entre si, que um deriva de outro, — não enquanto o objeto de um vício deriva do
objeto de outro vicio, — mas enquanto um vício inclina para outro vicio; assim
a gula inclina para a luxuria, a avareza para a ira. É nesse sentido que o orgulho se
chama o pai de todos os vícios.
Do que deixamos escrito vê-se a falsidade da opinião dos Estoicos, segundo
a qual todos os vícios seriam iguais. Porquanto, um vício pode, mais do que um
outro vicio, afastar-se do meio termo onde está a virtude, e por isso, ter mais
malícia do que um outro vicio; assim como o erro, que mais se afasta da verdade,
é mais grave do que um outro erro, que se afasta menos. — Os Estoicos, dizendo
que todos os vícios são iguais, baseavam-se nas duas seguintes razões: 1ª) todo o
vício consiste na privação da honestidade, ora, a privação não admite graus; — 2ª)
a virtude consiste no indivisível; logo, também no indivisível deve consistir no
vício, que é o contrário da virtude. Mas essas razões não são concludentes. Não
é concludente a primeira; pois vimos que o vício não consiste na mera privação da
honestidade. Não é concludente a segunda; porque, embora houvesse proporção
entre as virtudes e os vícios, estes deveriam ser desiguais, porque também as
virtudes são desiguais, não só em relação ao seu objeto, mas também em relação
à sua intensidade.
1 Devemos advertir que, quando o homem, levado por um sincero arre-
pendimento, detesta os seus vícios, estes já não são voluntários; e por isso, a
intensidade maior, que os mesmos vícios dão aos atos moralmente maus, deixa
de ser imputável ao agente.
As virtudes e os vícios encontram poderosos auxiliares nas paixões, conforme a
direção que estas receberem da vontade; porque as paixões aumentam a intensidade
do voluntário, tanto na decisão como na execução. Quando o bem, para o qual tende
a paixão, é contrário ao verdadeiro bem da nossa natureza racional, então a paixão é
auxiliar do vício; como, pelo contrário, quando o bem, para o qual inclina a paixão,
é conforme com a nossa natureza racional, nesse caso a paixão é auxiliar da virtude.
Por isso, a vontade deve moderar as paixões, dirigindo-as para o bem conveniente a
nossa natureza racional. A vitória contra as paixões exige trabalho e sacrifício; mas
nunca houve vitória mais útil, nem mais gloriosa.
CAPÍTULO IV – REGRAS DOS ATOS HUMANOS 87
CAPÍTULO QUARTO
Regras dos atos humanos
ARTIGO I
Lei moral, sua divisão e existência
1 Deus, tendo estabelecido a ordem que existe no mundo, exige que todas as
criaturas a observem. Daí a lei eterna. Mas essa lei é diversa, conforme a ordem, que
se deve observar. Se a ordem é física, a lei também é física, e Deus aplica, no tempo,
essa lei aos movimentos necessários das criaturas. Se a ordem é moral, a lei também é
moral, e Deus aplica, no tempo, essa lei aos movimentos livres das criaturas. — Aqui
tratamos da lei eterna moral, isto é, da lei eterna, enquanto prescreve a observância
da ordem moral e proíbe a sua violação.
A lei eterna, embora não possa dizer-se necessária, enquanto supõe o ato da
vontade de Deus, que livremente criou o mundo, contudo deve dizer-se necessária,
enquanto, suposto que Deus quisesse criar o mundo, não podia deixar de prescrever
uma lei às suas criaturas e do executar por meio da sua providência infinita.
2 S. Tomás trata admiravelmente, como é seu costume, da lei eterna na Sum.
Th., 1-2, q. 91, a. 1; q. 93. — Embora a lei eterna pertença a providência, e esta àquela,
contudo a lei e a providência são coisas distintas. Porquanto, — a) a lei eterna é a razão
primeira e original do governo das coisas e refere-se a providência, como o princí-
pio universal se refere à conclusão; — b) a lei tem a força de obrigar, a providência
prescinde dessa força. Diz S. Tomás “Providentia in Deo proprie non nominat legem
aeternam, sed aliquid ad legem aeternam consequens. Lex enim aeterna consideranda
est iu Deo, sicut accipiuntur in nobis principia operabilium naturaliter nota, ex quibus
procedimus in consiliando et eligendo: quod est prudentiae, sive providentiae. Unde
CAPÍTULO IV – REGRAS DOS ATOS HUMANOS 91
hoc modo se habet lex intellectus nostri ad prudentiam, sicut principium in demons-
tratione. Et similiter etiam in Deo lex aeterna non est providentia, sed providentiae
quasi principium. Unde et convenienter legi aeternae attribuitur actus providentiae;
sicut et omnis effectus demonstrationis principiis indemonstrabilibus attribuitur”
(De verit., q. 5, a. 1 ad 6).
Thomasio (1655-1728) rejeita a doutrina acerca da lei eterna, comparando-a
a opinião dos pagãos acerca de matéria eterna. Slahl diz que a lei eterna, não existe,
porque seria uma restrição da liberdade de Deus nos seus atos transeuntes. — Mas
ambos erram. Erra Thomasio; porque, devendo a lei estar na razão e na vontade do
superior anteriormente a sua aplicação, é evidente que a lei, pela qual Deus governa
o mundo, deve ter existido, desde a eternidade, na sua razão e vontade infinita. Erra
Stahl; porque, sendo a lei eterna destinada para o governo das criaturas, que Deus,
desde a eternidade, conhece como existentes no tempo, em virtude do livre decreto
de criação, não se percebe como essa lei possa restringir a liberdade de Deus nos
seus atos transeuntes.
Objetam: a promulgação é essencial a toda a lei, e por isso, a lei eterna, não sendo
promulgada, não é verdadeira lei.
Resposta. A promulgação da lei pode considerar-se no seu princípio, que é o
superior, e no seu termo, que é constituído pelos súditos. Considerada no seu princípio,
a promulgação é necessária, enquanto ela é um decreto que fixa irrevogavelmente o
ato da razão e da vontade do legislador. Considerada no seu termo, a promulgação não
é necessária para a essência da lei, mas só para o efeito da própria lei, que é a obrigação.
Ora, a lei eterna tem a promulgação, considerada no seu princípio; porque em Deus
existe, desde a eternidade, o decreto imutável de promulgar no tempo o ato eterno
da sua vontade, ao qual devem sujeitar-se as criaturas.
1 Os ditames, pois, da lei eterna, que se referem às nossas operações, enquanto
são conhecidos pela razão, constituem a lei natural. Por isso, a nossa razão, assim
como, enquanto é teórica, conhece, pela sua própria luz, os primeiros princípios
especulativos e deles deduz as conclusões, assim também, enquanto é prática, conhece
os primeiros princípios da honestidade, e por eles conhece o bem que deve fazer e
o mal que deve evitar.
Sendo a lei natural uma participação da lei eterna, é impossível que o ato, que
repugna a reta razão, não seja uma transgressão da lei divina. — É, pois, absurda a divisão
do pecado em teológico (que é a transgressão moral da lei divina) e filosófico (que seria um
ato exclusivamente contrário à reta razão). O pecado filosófico é também teológico; e esta
identidade é atestada pela própria consciência, a qual receia o castigo de um poder superior,
quando comete uma falta contrária a reta razão. Veja-se a Sum. Th., 1-2, q. 91, a. 2; q. 94.
92 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
1 A existência da lei natural foi admitida por todos os povos, não só cristãos,
mas também pagãos. Os mais insuspeitos escritores, antigos e modernos, como
Aristóteles (Rhet., I, 13), Sophocles (Antig., v. 454), Voltaire (La loi naturelle), Rousseau
(L’Emile, l. V), exprimem a convicção de todos os povos acerca de uma regra para toda
a espécie humana, que é anterior à opinião, e de que tiram a força e a que se reduzem todas
as outras regras (Rousseau). Mas ninguém falou da lei natural com maior exatidão e
eloquência do que Cícero. O grande orador romano diz assim: “Est quidem vera lex
recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnes, constans, sempiterna, quae vocet
ad officium jubendo, vetando a fraude deterreat, quae tamen neque probos frustra
jubet aut vetat, nec improbos jubendo aut vetando movet. Huic legi nec abrogari fas
est, neque derogari ex hac aliquid licet, neque tota abrogari potest, nec vero aut per
senatum, aut per populum solvi hac lege possumus, neque est quaerendus explanator
aut interpres eius alius, nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia posthac, sed
et omnes gentes et omni tempore una lex et sempiterna et imutabilis continebit, unusque erit
communis quasi magister et imperator omnium Deus; ille legis huius inventor, disceptator,
lator, cui qui non parebit, ipse se fugiet, ac naturam hominis aspernatus hoc ipso luet
maximas poenas, etiam si cetera supplicia quae putantur effugerit” (Frag. de Rep., 1. III).
Os ateus (práticos), os materialistas, os panteístas, os nacionalistas, os fatalistas,
os positivistas, e outros infelizes da mesma raça, negam a existência da lei natural, e
atribuem os ditames de moralidade, que a razão manifesta a cada um, a educação, ou
aos enganos dos sacerdotes, ou às astúcias dos legisladores. — Mas essas opiniões são
absurdas. A educação, os enganos dos sacerdotes, as astúcias dos legisladores, são causas
particulares e diversas, conforme a diversidade dos povos, e por isso, incapazes de
produzir os ditames universais e constantes da lei natural; aliás o efeito seria superior
à causa. Um efeito universal e constante só pode derivar de uma causa universal e cons-
tante, como é a natureza humana, que é sempre uma e a mesma em todos os homens.
*
Como o efeito próprio da lei é a obrigação, é claro que a obrigação, que a lei
natural impõe, deriva de Deus; porque Deus é o autor da lei natural. Essa obrigação
deriva do direito que Deus tem sobre as criaturas, — direito, a que, por parte das cria-
turas, corresponde a devida obediência.
Alguns escritores desvirtuam a natureza e a origem da obrigação, que pesa sobre
a nossa consciência e a que devemos sujeitar o nosso livre-arbítrio. Limitamo-nos a
citar as opiniões de Thomasio, de Kant, de Spencer.
a) Thomasio, ensinando que os ditames da lei natural não são preceitos mas
conselhos, não reconhece verdadeira obrigação, imposta por essa lei.
94 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
Alguns autores pretendem que a sanção, para ser justa, deve garantir sempre
a observância da lei. — Essa pretensão não é razoável; porque não se harmoniza nem
com a liberdade física dos súditos, que a lei deixa sempre intacta, nem com os fatos,
que mostram que a sanção não garante sempre a observância da lei. Para que, pois, a
sanção seja justa, não é preciso que ela garanta sempre a observância da lei, mas basta
que seja por si suficiente para garantir essa observância, de modo que o motivo, que
ela apresenta em favor da observância da lei, seja por si superior aos motivos, que
podem levar a sua violação.
1 Nada mais razoável do que a sanção da lei natural. Deus promulgou a lei
natural, para que o homem, seguindo-a, alcançasse o bem. Se, pois, o homem seguir
a lei, encontrará o bem, e esse terá razão de prêmio; e, se a não seguir, encontrará o
mal, e este será castigo (C. Gent., 1. III, c. 140).
Todavia alguns negam a sanção da lei natural; porque, dizem, os nossos
pecados não ofendem a Deus, e porque repugna que a Bondade de Deus se vingue
e se deleite dos tormentos dos pecadores. — Mas estas razões nada provam. — Não
prova a primeira; porque o pecador, embora não tire a Deus nenhuma perfeição e
não lhe possa causar um mal intrínseco, contudo, quanto depende de si, despreza a
Deus, tira-lhe a glória extrínseca, e por isso, deve ser punido. — Não prova a segunda;
porque não é o desejo da vingança ou o sentimento da crueldade, mas é o próprio
amor da justiça, da santidade e da bondade, que leva Deus a punir os pecadores,
porque o castigo não só conserva e promove, mas também completa e restabelece,
como dissemos, a ordem moral, violada pelo pecado. Por isso, é a própria Bondade
de Deus que exige a sanção da lei natural.
2 As principais sanções da lei natural na vida presente são quatro, a saber: a
sanção da consciência, a sanção natural, a sanção social, a sanção da opinião pública. — A
CAPÍTULO IV – REGRAS DOS ATOS HUMANOS 99
na vida presente. Logo, deve existir na vida futura. Logo, a lei natural
deve ter uma sanção suficiente na vida futura.1
95. A sanção da lei natural, na vida futura, consiste na posse
eterna ou na perda eterna da felicidade.
a) Consiste na posse ou na perda da felicidade. — Deus criou
os homens para a felicidade, e quer que a consigam pela observância
da lei natural. Ora, a observância da lei é uma condição indispensável
para a consecução da felicidade; pois Deus não pode premiar, indis-
tintamente, os bons e os maus. Logo, os homens, observando a lei
de Deus, conseguem a felicidade, e, transgredindo a lei, perdem-na.
Logo, a sanção da lei natural, na vida futura, consiste na posse ou na
perda da felicidade.2
isso, acabando o caminho com a morte, os que percorreram o caminho que leva para
a felicidade, devem necessariamente consegui-la, e os que dela se afastaram, não a
conseguem. Ora, a posse e a perda da felicidade, que são consequências das obras, têm
razão de prêmio ou de castigo. Logo, a sanção da lei natural, na vida futura, consiste
na posse ou na perda da felicidade.
Todavia, isso não basta para a justa e completa sanção da lei natural.
Como os que conseguem o seu último fim, não são iguais nos méritos e nas
virtudes, mas um é mais perfeito do que outro, é necessário dizer que, embora todos
os virtuosos consigam o seu fim, contudo nem todos recebem igual prêmio, mas cada
um é elevado ao grau de felicidade, que está em harmonia com as suas obras boas. —
O mesmo critério deve aplicar-se aos ímpios que morrem no pecado. Esses infelizes
não são todos igualmente culpados, mas os crimes de um excedem, em número e
gravidade, os crimes de outro, e por isso, devendo a sanção ser proporcionada, é justo
que o castigo de um seja mais intenso que o do outro. Ora, se o castigo dos ímpios
se limitasse apenas à perda do fim último ou da felicidade, a sanção não seria propor-
cionada. Logo, é necessário dizer que os ímpios, além da perda do fim último, estarão
sujeitos a outros castigos positivos, diversos conforme a diversidade das suas culpas.
E nada mais natural. O ímpio, pecando, coloca o seu fim último não no Criador, mas
nas criaturas, e assim despreza a Deus pelo amor desordenado das criaturas. Ora,
devendo o castigo ser proporcionado a culpa, é justo que o pecador seja privado da
posse de Deus e seja punido pelas criaturas.
Um professor krausista, da Espanha, González Serrano, diz que a sanção da
lei, como também a sua observância, consiste na infinita continuidade da nossa vida.
— Essa opinião é falsa, não só porque se baseia no panteísmo, mas também porque a
observância da lei pertence a vida presente, e a sanção da lei não consiste na infinita
continuidade da vida, mas sim nos prêmios ou nos castigos, que se hão de dar em
conformidade com as obras.
1 Os incrédulos têm-se sempre levantado furiosamente contra a eternidade
das penas. — Citemos alguns trechos dos mais famigerados. — Pezzani diz que “a
teologia, ensinando o dogma da eternidade do enfermo, tem cometido um, crime
de lesa humanidade” (Dieu, l’homme). — Larroque julga que a eternidade das penas e
“uma horrível blasfêmia, pela qual se desvirtua a justiça de Deus, ao mesmo tempo
que se desconhece a sua santidade e bondade” (Examen critique de la religion chré-
tienne, t. I). — Maury diz: “A falta de reconciliação de todas as criaturas com Deus,
e a eternidade das penas inúteis para os culpados, — eternidade que transforma a
justiça e a expiação numa pura vingança, é uma idéia bárbara que o cristianismo
102 MORAL – PARTE PRIMEIRA – ÉTICA
Logo, as penas, que o pecador merece, devem ser infinitas. Ora, as penas, que se
infligem ao pecador, não podem ser infinitas na intensidade; porque nenhuma coisa
criada, como é a pena, pode ser intensivamente infinita. Logo, devem ser infinitas
na duração, isto é, devem ser eternas. — Os adversários poderiam responder que
a privação da posse de Deus, embora temporal, é uma pena infinita; porque Deus
é um bem infinito. Mas essa resposta seria inútil. Porquanto, a privação temporal
da posse de Deus, se é uma pena infinita em relação ao objeto, que se perde e que
é Deus, não é uma pena infinita em relação ao sujeito, a que se inflige; porque a
criatura, não compreendendo o Bem infinito, não pode conceber uma pena infinita,
se for privada da posse d’Ele.
b) As penas eternas são necessárias. Uma pena será necessária, se for a única
sanção suficiente da lei. Ora, só uma pena eterna pode ser a sanção suficiente da lei
natural. Na verdade, se considerarmos a natureza do homem inclinada para o mal,
a veemência das paixões, os atrativos dos bens sensíveis, as dificuldades da virtude,
veremos que penas passageiras não são motivo suficiente para conter, sempre e em
todas as circunstâncias. os homens na observância da lei. — Essa verdade encontra
a confirmação na própria conduta dos ímpios, que, para se abandonarem mais
livremente as desordens, procuram convencer-se de que as penas da vida futura hão
de acabar e de que as almas dos ímpios serão um dia admitidas à bem-aventurança.
Lucrécio exprime essa idéia nos seguintes versos (De nat. rer., I. 108).
em relação ao tempo, aos lugares, e aos países. — 3ª) A lei natural é essencialmente
divina, porque deriva de Deus; a positiva pode também derivar imediatamente do
homem, em virtude da autoridade que Deus lhe comunicou.
1 É claro que a necessidade, de que falíamos, é moral, e não absoluta. A razão
humana é por si suficiente para ordenar a nossa vida. Mas essa razão não devemos
considerá-la em abstrato, mas em concreto, isto é, como se encontra atualmente nos
homens. Considerada em concreto, a razão precisa de um auxilio, de um conforto supe-
rior; e esse auxilio, longe de deprimir a nossa razão, enobrece-a, porque a preserva
do erro. — É claro também que essa necessidade moral se refere a ordem natural;
porque, na hipótese da elevação do homem a ordem sobrenatural, a necessidade de
uma lei positivo-divina. é absoluta, porque a nossa razão, abandonada a si mesma, não
pode, de modo algum, conhecer o que pertence a essa ordem.
Nem se diga que a lei positivo-divina pode ser substituída pela lei positivo-humana,
a qual pode aplicar os princípios da lei natural aos casos particulares da nossa vida.
Porquanto, o homem não pode alcançar o seu último fim, se não tiver uma perfeita
retidão, não só nos atos externos, mas também, e sobretudo, nos atos internos, e por
isso, precisa de uma lei, quo julgue e regule todos esses atos. Ora, se a lei positivo-hu-
mana julga e regula os atos externos do homem, não pode julgar e regular os seus atos
internos, que não aparecem. Logo, é necessária uma lei positiva, que julgue e regule
todos os atos do homem — externos e internos; e essa lei só podo ser promulgada por
Deus. (Sum. Th., 1-2, q. 91, a. 3).
CAPÍTULO IV – REGRAS DOS ATOS HUMANOS 107
ARTIGO II
Consciência moral, sua divisão e direção
por isso, quer o mal. Faz mal, se opera em conformidade com a consci-
ência; porque, não empregando esforços suficientes para subordinar o
seu ato a lei, quer livre e conscientemente expor-se ao perigo de pecar
e por isso, quer o mal. Logo, o homem não pode desobedecer, nem
obedecer a consciência vencivelmente errônea.1
105. O homem não pode obedecer à consciência duvidosa,
mas pode obedecer a consciência provável.
a) O homem não pode obedecer a consciência duvidosa. — O
homem não pode querer o mal. Ora, quem obedece a consciência duvi-
dosa, pelo fato de se expor, livre e conscientemente, ao perigo de pecar,
quer o mal. Logo, o homem não pode obedecer a consciência duvidosa.2
b) O homem pode obedecer a consciência provável. — O
homem pode praticar um ato, de cuja honestidade está moralmente
certo. Ora, quem obedece a consciência provável, está moralmente
certo da honestidade do ato; porque então a lei, sendo duvidosa, não
proíbe o ato, e por isso, este é lícito. Logo, o homem pode obedecer
a consciência provável.3
o ato, por não ser proibido pela lei, é honesto. Logo, podemos obedecer a consciência
provável. — Note-se que as razões prováveis, que negam ou afirmam a existência da lei,
podem ser mais ou menos prováveis. Como nenhuma razão provável atinge o grau da
certeza, é evidente que, tratando-se da existência da lei, podemos deixar uma opinião
mais provável, que nega a existência da lei, para seguirmos a opinião menos provável,
que afirma a existência da lei, contanto que se funde em solidas razões; porque a opi-
nião, que é mais provável, não exclui o perigo do erro, e por isso, pôde ser verdadeira
a opinião menos provável e pode ser falsa a que o é mais. Dissemos — tratando-se da
existência da lei; porque quando o homem deve, por justiça ou por caridade, evitar
algum dano ou incômodo, deve preferir a opinião mais provável a que o é menos, isto
é, deve seguir a opinião mais segura, que mais afasta o perigo; tal devo ser a regra de
conduta de um médico relativamente aos remédios, que aplica aos doentes.
Digamos poucas palavras acerca da consciência delicada, laxa e escrupulosa. —
Quem tom uma consciência delicada, dê graças ao bom Deus, princípio e fonte de toda
a perfeição. — Quem tem uma consciência laxa, pense que, para operar com retidão,
é necessária a certeza moral acerca da honestidade do ato. — Quem tem a consciência
escrupulosa, pense que, para evitar o pecado, basta a certeza moral.
1 Os meios aptos para a reta formação da consciência são, principalmente, a
reflexão sobre os avisos e os exemplos de pessoas boas e prudentes o confronto dos
nossos atos com a lei moral, a prática das virtudes, a oração humilde e perseverante.
PRÓLOGO
deve fazer uma coisa, essa obrigação deriva da sua infinita sabedoria. Se Deus deve
alguma coisa, deve-a a si mesmo.
c) O termo do dever, isto é, o termo, a que se refere o sujeito do dever, é
também exclusivamente o ser racional; porque ao dever corresponde o direito, e só
o ser racional é, como veremos, o sujeito do direito. Por isso, é um erro estabelecer
deveres do homem para com os animais irracionais. — O homem, pois, só pode ter
deveres para com Deus, para consigo, e para com os outros homens. Na verdade, a
perfeição dos nossos atos consiste nas suas relações para com os seus fins; e por isso,
só os seres, que têm a razão de fim, podem ser termos dos nossos atos. Ora, a razão
de fim encontra-se em Deus, no próprio agente e nos outros homens. Encontra-se
em Deus; porque Deus não só é o primeiro princípio, mas também o fim último
do homem e de todas as criaturas. Encontra-se no próprio agente; porque Deus
produziu as criaturas para a utilidade do homem. Encontra-se nos outros homens;
pois foi também para a utilidade dos outros que Deus produziu as criaturas. — Os
deveres para com Deus são os mais nobres e universais, e o seu cumprimento é
mais importante e necessário; porque, sendo Deus o nosso primeiro princípio e o
nosso último fim, as nossas relações com Ele são as mais íntimas e essenciais, que
se podem imaginar. Os deveres para conosco excedem, em excelência, os que temos
para com os outros; porque o vínculo, que nos liga aos outros, é de semelhança, e
o que liga o homem a si mesmo é de identidade.
1 A lei positiva, como vimos na Ética, tira toda a sua força da lei natural, e
pode ser divina ou humana, conforme é promulgada por Deus, ou pelo homem, mas
em virtude da autoridade recebida de Deus.
2 Essa divisão indica a diversa origem do dever. O dever derivado, se imediata
e proximamente se funda num fato contingente, mediata e remotamente se baseia na
própria natureza do homem; porque os fatos só servem para determinar e aplicar os
deveres, que, por um modo indeterminado, derivam da natureza. É sob esse aspecto
que os deveres derivados estão compreendidos no direito natural. — O dever primitivo
chama-se também conatural; e o derivado diz-se também adventício.
PRÓLOGO 119
1 Devemos advertir duas coisas: 1ª) A lei civil pode obrigar o homem ao
cumprimento dos deveres jurídicos, porque isto é necessário para a ordem pública:
mas não pode obrigar ao cumprimento dos deveres morais, pela razão oposta. — 2ª)
Entre os deveres morais, uns obrigam por forma, que, sem o seu cumprimento, não
pode conservar-se a honestidade moral, tal é o dever de conformar a palavra com o
pensamento, o exterior com o interior; — outros são apenas necessários para a maior
perfeição, tal é dever da afabilidade, da liberalidade, etc.
2 Essa divisão do dever é de uma grande importância. Os deveres afirmativos
obrigam, mas essa obrigação pode sofrer excepções; ao passo que os negativos obrigam
sempre e em cada instante, seja qual for a necessidade ou o perigo. Na verdade, o
objeto dos deveres afirmativos, que por si é bom e até necessário de um modo geral,
pode, pelas circunstâncias, tornar-se indiferente e até mau; assim temos o dever de
auxiliar o próximo, que está em perigo de morte, mas este dever acaba ou transfor-
ma-se num conselho, se a vida dos outros só se pode salvar com o sacrifício da vida
própria. — Pelo contrário, o objeto dos deveres negativos é intrinsecamente mau, e a
malícia intrínseca do objeto não pode ser destruída pelas melhores intenções; assim,
nunca é permitido blasfemar, odiar os pais, etc. Sustentar o contrário, com os ateus,
materialistas, positivistas, é destruir toda a ordem moral. — Além disso, os deveres
afirmativos referem-se ao exercício da virtude; os negativos, a fuga do vício. Ora, é claro
que, se não é sempre necessário praticar a virtude, é sempre necessário fugir do vício.
— Finalmente, o homem, pelo cumprimento dos deveres negativos não se afasta do
fim último, mas persevera no amor supremo do bem moral; e, pelo cumprimento
dos deveres afirmativos, tende positivamente para Deus por um certo e determinado
modo. Ora, se é absolutamente necessário que o homem nunca se afaste do seu fim
último, e nunca deixe de amar o Bem supremo, não é sempre necessário que ele tenda
sempre e positivamente para Deus por um certo e determinado modo.
3 Os deveres primitivos, quando negativos, não admitem dispensa; porque,
como dissemos, nunca é permitido praticar o que é intrinsecamente mau, seja qual
120 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
necessário para o exercício desse poder; aliás a lei daria a um indivíduo a faculdade
de operar e aos outros a de impedir o ato: o que é contraditório. — O direito e o dever
correspondente constituem a relação jurídica. Por isso, as relações jurídicas são tantas,
quantos são os direitos com os seus deveres respectivos.
Em toda a relação jurídica devemos distinguir quatro elementos: o sujeito, o
termo, a matéria e o título do direito.
a) Sujeito do direito. — O sujeito do direito é o ente que o possui. O sujeito só pode
ser um ente racional, isto é, uma pessoa (física ou moral). Na verdade, o direito é um
poder moral; ora, a moralidade só é própria da natureza racional. Além disso, o direito,
na criatura, é uma consequência do dever primitivo e essencial de tender para o fim
último: ora, só a criatura racional tem esse dever. — Daqui se vê o erro dos que, seguindo
Damiron, Ahrens, os panteístas e os evolucionistas, admitem os deveres do homem para
com os animais irracionais. Porquanto, se o homem tivesse esses deveres, o animal
deveria possuir verdadeiros direitos; ora, o animal, como vimos, não pode ser o sujeito
do direito. É verdade que Ahrens, em confirmação desse erro, diz que o homem tem
obrigação de não ser cruel, sem necessidade, para com os animais; mas respondemos
que essa obrigação não nasce dos direitos dos animais para com o homem, mas sim da
lei divina, que proíbe o abuso das criaturas, e os sentimentos de crueldade.
b) Termo do direito. — O termo do direito deve ser também um ente racional;
pois o termo do direito tem o dever correspondente, e o dever é uma obrigação moral,
de que só pode ser capaz um ente dotado de liberdade e por isso, de razão. — Não é
necessário que o termo do direito exista atualmente; basta que seja possível ou hipotético.
c) Matéria da direito. — A matéria do direito é tudo o que é justo, isto é, tudo
o que é conforme com o fim e com a ordem estabelecida por Deus, tudo o que
concorre para estabelecer ou conservar a proporção e o equilíbrio nas relações
humanas, dando a cada um o que lhe pertence. — Podem ser matéria do direito
as criaturas irracionais, os atos das nossas faculdades, e os atos dependentes do
livre-arbítrio dos outros; porquanto, uma coisa, para que possa ser objeto do poder
humano, deve ter uma natureza inferior e subordinada à do ente racional. Por isso,
a pessoa humana, como tal, não pode ser matéria de direito. Daí a ilegitimidade e
injustiça da escravatura.
d) Título do direito. — O título, que é o fundamento em que descansa o direito,
é a razão objetiva, de que proximamente nasce a eficácia moral de um certo e determinado
direito sobre as inteligências e as vontades dos seres racionais. Por isso, todo o título do
direito é a apresentação de uma verdade prática; pois só a verdade, claramente conhe-
cida, pode impor-se a inteligência; e só uma verdade prática, ou um ditame da razão,
pode impor-se à vontade. O título contém dois elementos: um princípio geral, que é
o ditame da razão prática, e a aplicação desse ditame a um caso particular. — O título,
pois, do direito é como que um instrumento espiritual, pelo qual um direito parti-
cular se demonstra relacionado com toda a ordem racional, sancionada e imposta
por Deus, o que exerce o seu influxo moral no termo do mesmo direito. Donde se vê
que a eficácia do título do direito é a própria eficácia da lei natural, a qual prescreve a
observância da ordem racional. — Num sentido mais lato, porém, o título do direito é
122 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
o fato particular, porque o ditame da razão se aplica a um caso particular e que basta
para a determinação de um certo direito; pois, sendo evidente o princípio geral, só
é preciso demonstrar a sua aplicação a um certo e determinado caso. Assim, sendo
evidente o princípio geral de que tudo o que se compra pertence ao comprador, é
claro que, pai a se provar o direito do comprador sobre a coisa comprada, basta provar
o fato da compra. Esse fato é o título do direito.
Pergunta-se: será o direito anterior ao dever, ou vice-versa?
Resposta. A questão tem várias soluções, conforme os seus diversos aspectos.
Considerado em Deus, o direito é anterior ao dever; porque Deus só tem direitos, e
não tem deveres. — Considerado nas criaturas, o direito, às vezes, é posterior ao dever;
e, às vezes, é anterior. É posterior ao dever, quando ambos se encontram no mesmo
sujeito; pois cada uma das criaturas tem o dever de servir a Deus e de tender para o
seu fim último, e esse dever é o princípio de todos os direitos. É anterior ao dever,
quando o direito e o dever se encontram em sujeitos distintos; porque o direito de um
indivíduo impõe um dever aos outros indivíduos.
1 O direito positivo pode ser divino ou humano, conforme deriva da lei divina
ou humana. O direito humano pode ser eclesiástico ou civil, conforme a lei, de que
deriva, é eclesiástica ou civil.
2 A existência dos direitos inatos é incontestável. O homem, devendo tender
para o seu fim, tem o direito de procurar, sem ofensa dos outros, os meios adequados
para a consecução do mesmo fim; e esse direito nasce com o homem, isto é, compete
ao homem em virtude da sua existência atual; tal é o direito de conservar a vida, de
adquirir um domínio, de formar sociedades, etc. — Além desses direitos inatos, deve-
mos também reconhecer outros, que se dizem adquiridos e que são determinações
dos direitos inatos. Assim, temos o direito inato de adquirir o que é útil para a nossa
vida; mas a determinação desse direito, relativamente a uma ou outra coisa, depende
de una facto contingente. Por isso, os deveres adquiridos baseiam-se remotamente na
própria natureza, o proximamente num fato contingente.
PRÓLOGO 123
feito entre os homens, ou a lei pública, ou ao costume. Daqui a pouco faremos uma
exposição desses sistemas errôneos. Agora limitamo-nos a dar, em confirmação da
nossa tese, estas outras provas:
a) Existirá a ordem jurídico natural, se o indivíduo e a sociedade possuírem
direitos, independentes de toda e qualquer lei positiva. Ora, o indivíduo e a socie-
dade possuem efetivamente tais direitos. — Possui-os o indivíduo. Porquanto, o
homem tem direito sobre o exercício das suas faculdades, sobre a sua liberdade,
etc. Ora, esses direitos não derivam da lei positiva, mas unicamente da vontade do
Criador, que deu ao homem esses bens, para que deles se servisse em utilidade
própria. — Possui-os a sociedade. Porquanto, a sociedade existe, como veremos,
pela vontade de Deus. Ora, Deus não podia querer a existência da sociedade, sem
lhe conceder também os meios para a sua existência e para a consecução do seu
fim: e Deus não teria concedido a sociedade esses meios, se lhe não tivesse dado
o direito de exigir dos membros o que é necessário para o bem comum. Logo, a
ordem jurídico-natural existe.
b) A lei, que impõe um dever, deve conceder também o direito de o cumprir.
Ora, a lei natural impõe ao homem muitos deveres. Logo, concede-lhe também muitos
direitos; aliás Deus teria mandado ao homem que conseguisse o fim, sem lhe dar os
meios para essa consecução. Logo, existem muitos direitos, provenientes da lei natural.
Logo, a ordem jurídico-natural existe.
c) Se não houvesse algum direito natural, nem poderia haver algum direito
positivo. Porquanto, a autoridade civil, quando promulgou a primeira lei, devia possuir
o direito de preceituar, assim como os súditos deviam ter o dever de obedecer. Ora,
pergunta-se: donde derivou esse direito? — Derivou de um contrato? Mas ninguém
pode obrigar o homem a observância desse contrato, se não se admite o princípio,
anterior a todo o contrato e proveniente da lei natural, de que é necessário observar
os contratos. — Derivou do costume ou da persuasão dos povos? Mas esse costume
ou essa persuasão pode ter força de obrigar só em virtude do direito natural. Logo,
não poderia haver direito positivo, se não houvesse direito natural.
d) Se não existisse o direito natural, mas só o positivo, não só não haveria algum
ato intrinsecamente injusto, mas também todo o ato mau seria bom, se a lei positiva o
preceituasse. Ora, essas conseqüências são absurdas, como vimos na Ética. Logo, a
ordem jurídico-natural existe.
Objetam: todo o direito é coativo. Ora, o direito, fora da sociedade civil, não
é coativo. Logo, fora da sociedade civil, não há direito.
Resposta. É verdade que todo o direito é coativo; mas a coação não constitui
a essência do direito, é apenas uma sua propriedade, enquanto quem possuo o direito
tem o poder de empregar a força física, conforme as circunstâncias. Esse poder de
empregar a força existe mesmo fora da sociedade, embora seja insuficiente e muitas
vezes ineficaz, — insuficiência e ineficácia, que só mostram a necessidade da sociedade
civil para a defesa dos direitos naturais do homem.
PRÓLOGO 127
moralidade interna. É essa moralidade, que o Direito considera, quando a um réu, que
assassinou o seu benfeitor com premeditação, inflige uma pena mais severa do que a
pena, que inflige a quem matou um indivíduo por inadvertência ou por um subitâneo
movimento de ira. — Finalmente, como poderia o legislador prescindir inteiramente
da moralidade e por isso, da Ética, se a sua missão é defender a liberdade que os súditos
têm de viver honestamente, e promover a virtude e os bons costumes nos cidadãos?
— Logo, o Direito não devo prescindir nem se separar inteiramente da Ética.
b) Ahrens, embora reconheça que estas duas ciências — a Ética e o Direito —
estão unidas, contudo sustenta que são realmente distintas, que são entidades com-
pletamente diversas; pois imagina que só essa distinção real e completa pode obstar a
que a autoridade civil se intrometa nas coisas internas do homem.
Essa opinião também é falsa. Porquanto, nem o Direito natural nem o positivo
prescindem da Ética. Não prescinde da Ética o Direito natural; pois este, derivando de
Deus, é perfeitíssimo e ilimitado, o por isso, não pode deixar de mandar ao homem
que pratique o que é honesto e de um modo honesto; ora, praticar o que é honesto, e
de um modo honesto, é preceito também da Ética. Não prescinde da Ética o Direito
positivo; pois este, embora imperfeito e limitado a certos e determinados objetos, não
prescinde, nem pode prescindir, da moralidade interna, que forma o objeto da Ética,
não só porque preceitua atos humanos, mas também porque, na aplicação das penas
e na irritação dos contratos dolosos ou feitos por medo, considera essa moralidade
e o fim do agente. — A razão, que Ahrens apresenta para sustentar a distinção real
entre a Ética e o Direito natural, é fútil. Na verdade, aqui trata-se do Direito natural,
que deriva de Deus, e ninguém pode obstar a que Deus atinja diretamente, pelas suas
leis, a nossa moralidade interna. Mas, embora se tratasse do Direito civil, ninguém
poderia obstar a quo a autoridade civil atingisse indiretamente a moralidade interna
dos súditos, preceituando atos internos, enquanto necessários para que o ato externo
seja humano e assim corresponda ao fim da lei; pois que o legislador governa homens,
não governa corpos humanos. Por isso, nem o Direito natural nem o civil podem
prescindir da Ética.
c) Os Escolásticos dizem que deve admitir-se uma distinção entre a Ética e
o Direito, mas que essa distinção é apenas lógica ou de razão, pois a Ética e o Direito
constituem a mesma ciência moral.
Essa opinião é a verdadeira, e é a que seguimos. — Com efeito, é necessário
admitir alguma distinção entre a Ética e o Direito natural. Porquanto, a Ética considera
o homem em absoluto, isto é, enquanto é uma pessoa capaz de honestidade; ao passo
que o Direito considera o homem nas suas relações para com outras pessoas. Além
disso, a Ética considera a forma dos atos humanos, enquanto prescreve as condições
necessárias para a sua honestidade; ao passo quo o Direito considera a matéria dos
mesmos atos, enquanto investiga os deveres e os direitos do homem para com os outros.
— Todavia, essa distinção não excede a que existe entro as várias partes da mesma
ciência. A justiça, que é o objeto do Direito, é parte do bem moral ou honesto, que é o
objeto da Ética. Desse modo, a Ética está para com o Direito natural na proporção em
que a Metafísica geral está para com a especial. Por isso, alguns autores dão a primeira
PRÓLOGO 129
parte da Moral o nome de Ética geral ou Nomologia, e a segunda parte, que é o Direito
natural, o nome de Ética particular ou Deontologia.
*
Para conclusão desse prólogo, resta-nos examinar os vários sistemas acerca
da origem do Direito. — Antes da era cristã, o Direito, entre os Romanos, que eram
senhores do mundo, encobria, sob uma aparência de liberdade, o mais feroz des-
potismo. Ali todos eram escravos, ao menos do Estado. O Estado, a que se atribuía
uma onipotência absoluta, era o princípio de todo o direito. — Esse erro e este
despotismo foram destruídos pela doutrina eminentemente verdadeira e caridosa
do Cristianismo. Os escravos tornaram a conquistar a dignidade de pessoa; a mulher
voltou a ser a companheira do homem. O Estado renunciou à sua onipotência, e
reconheceu que dependia de um Deus e que, além dos direitos civis e políticos, havia
outros direitos mais elevados — os direitos naturais e divinos, proclamando a Deus
como fonte principal do todos os direitos humanos. Desse modo, a Igreja e o Estado,
desenvolvendo-se harmonicamente na sua esfera de ação, formavam, na obediência
às leis divinas, a felicidade espiritual e temporal dos seus súditos. — Essa união, tão
justa e tão útil, começada no século IV, foi destruída, infelizmente, no século XVI,
pelo protestantismo. A autoridade religiosa foi devolvida aos príncipes temporais; a
Ética e o Direito perderam a sua origem divina; e o Estado tornou a ser fonte principal,
senão única, do todos os direitos e de todos os deveres.
As doutrinas do protestantismo criaram cinco escolas para a explicação da
origem do direito: — a utilitarista de Hobbes, de Bentham e dos outros materialistas, — a
individualista de Rousseau, de Kant, de Rosmini, — a panteísta de Schelling, do Hegel, de
Krause, — a positivista de Stuart Mill, de Spencer, — a histórica de Savigny. Estas escolas,
embora partam de princípios diversos, chegam todas a mesma conclusão; pois todas
ensinam que a principal fonte dos direitos e dos deveres é o Estado ou a Sociedade
civil. — De cada escola faremos uma breve exposição com a crítica respectiva.
A) Escola utilitarista. — A escola utilitarista é representada sobretudo por
Hobbes e por Bentham.
a) Hobbes diz o seguinte: não há distinção intrínseca entre o bem e o mal. O
estado primitivo do homem foi o selvagem. Nesse estado, os homens, errando nos
bosques sem noção alguma de honestidade, combatiam-se mutuamente, até que veio
a lei civil, imposta pelos fortes aos fracos, pelos reis aos súditos. A lei civil é o direito.
O sistema do Hobbes é falso pelas seguintes razões: — 1ª) Nega uma distinção
intrínseca entre o bem e o mal. Ora, essa negação é absurda. — 2ª) Supõe que o estado
primitivo do homem foi o selvagem. Ora, essa suposição é falsa. — 3ª) Coloca a essência
do direito na força física. Ora, isso é absurdo. O direito é uma força moral; pois vigora
não só quando encontra garantia na força física, mas também, e sobretudo, quando é
oprimido. — 4ª) Destrói toda a idéia de obrigação. Porquanto, se o homem, como os
materialistas sustentam, é absolutamente independente, não há nenhum motivo que o
possa levar a obedecer a lei, sobretudo se for dotado de muita força física, porque então
o seu direito é mais forte e eficaz. — 5ª) Leva diretamente ao despotismo e a anarquia.
130 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
as partes. Esse ser realiza a sua essência, variando continuamente no tempo os seus
estados e as suas determinações. A realização, num tempo infinito, da essência de
Deus é a vida. A vida de Deus contem a vida de todos os seres. — A essência é o bem.
Realizar a essência é fazer o bem. Para que o ente realize a essência ou uma parte da
única essência, deve ter liberdade, que por isso, é a propriedade pela qual o ente se
determina para a realização da essência. — A moralidade, pois, é a propriedade, pela
qual o ser finito produz livremente o bem, porque é bem; e a máxima desta moral é
a seguinte: faze o bem, porque é bem, isto é, porque é uma parte da essência divina, que
manifesta ou realiza a sua vida no tempo.
Mas o bem do homem consiste na realização de tudo o que está contido na
sua essência, isto é, no desenvolvimento de todas as suas faculdades e das diversas
relações, que pode contrair. As várias esperas, em que o homem pode desenvolver-
-se, são as seguintes: a religião, a moralidade, a ciência, a arte, a educação, o comércio
e o direito. Para a realização desses fins, o homem deve ter prontos os meios ou as
condições indispensáveis. Essas condições podem ser subministradas pela natureza,
como a água, o fogo, etc., — ou podem depender da vontade humana, como são os
auxílios físicos, intelectuais, morais, etc. — O homem pode exigir as condições, que
são indispensáveis para o desenvolvimento da sua vida e que dependem da vontade
humana. Daí a origem do direito. O direito, pois, é o conjunto das condições, dependentes
da vontade humana e necessários para a consecução do fim, que foi determinado ao homem
pela sua natureza racional e que é o desenvolvimento da sua vida ou a realização do que
está contido na sua, essência. — Existe um só direito — o direito imanente de Deus,
abrangendo todos os direitos particulares dos seres finitos. Para tornar efetivos
os direitos do homem e da humanidade, isto é, para garantir as condições, que são
necessárias para o desenvolvimento do homem e da humanidade o que dependem
da vontade humana, foi instituído o Estado, que tem um poder absoluto sobre todas
as sociedades particulares.
Krause foi seguido por Ahrens, Tiberghien, e por outros escritores alemães,
espanhóis (Sanz del Rio, Giner de los Rios, Salmerón) e portugueses.
O sistema de Krause deve rejeitar-se, porque, baseado no panteísmo, apresenta
uma definição, que desvirtua completamente a noção de direito e é um conjunto de
falsidades. Krause diz que o direito é o conjunto das condições, dependentes da vontade
humana e necessárias para a consecução do fim, que foi determinado ao homem pela sua
natureza racional e que é o desenvolvimento da sua vida ou a realização do que está contido
na sua essência. As falsidades dessa definição são tantas, quantas são as palavras. — 1º)
É falso que o fim do homem é o desenvolvimento do que está contido na sua essência;
porque, como vimos, o nosso fim último é um bem absoluto e infinito, que é Deus.
— 2º) É falso ser a nossa natureza racional, que nos assigna o fim último; porque o
poder do estabelecer um fim, e de impor o dever de o conseguir, não pode derivar
do próprio ser que tende para o fim, mas deriva da inteligência e da vontade do
superior, embora este tenha de se conformar com a natureza do mesmo ser. — 3º) É
falsa a suposição de que o homem possa desenvolver a sua essência nas sete esferas,
apontadas por Krause; porque, sendo as forças do homem limitadas, o exercício de
136 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
b) Stuart Mill aplica o seu utilitarismo positivista ao Direito, como o tinha apli-
cado a Ética. Todo o esforço do escritor inglês consiste em dar-nos a idéia da justiça
e do direito. — O que é a justiça? Mill não a define diretamente. Limita-se a descrever
o sentimento da justiça, que é o desejo ou instinto da vingança e da defesa pessoal, o
qual, pela faculdade que o homem tem de comunicar os seus sentimentos de simpatia
e pela concepção humana de um egoísmo inteligente, abrange todas as criaturas. — O
que é o direito? O direito consiste em ter títulos, capazes de levar a sociedade a garantir
a posse de alguma coisa e a punir quem se opõe à mesma posse. A razão, porque a
sociedade deve garantir esta posse, é a utilidade geral. — Eis a que se reduz toda a
doutrina de Stuart Mill.
Esse sistema é falso pelas seguintes razões: — 1ª) Desvirtua a idéia de justiça;
pois não consiste num sentimento de vingança e de defesa pessoal, mas consiste em
dar a cada um o que lhe pertence. — 2ª) Não explica a idéia de direito. Na verdade,
os títulos, que levam a sociedade a garantir a posse de uma coisa e constituem o
direito, d’onde derivam? Da sociedade? Não; porque são anteriores a ela. Logo, esse
sistema, não explicando a origem dos títulos, não explica a idéia de direito. — 3ª) Se
esse sistema não explica a idéia de direito, nem pode explicar a idéia de obrigação,
correspondente a esse direito. Na verdade, quem pode obrigar os outros a respeitar o
direito? Respondem que é a utilidade. Mas perguntamos: essa utilidade, que obriga ao
respeito do direito, é a utilidade do sujeito ou do termo da obrigação? Se é a utilidade do
sujeito da obrigação, temos a consagração do egoísmo, com prejuízo de quem possui o
direito. Se é a do termo da obrigação, o direito fica assim exposto a todas as violações;
porque, nesse sistema, não há uma lei superior, que obrigue o homem a preferir a
utilidade própria a utilidade dos outros.
E) Escola histórica. — A escola histórica, fundada por Savigny (1779-1861)
para remediar os males causados pelo transcendentalismo, nega o direito natural e só
reconhece o direito positivo. O direito positivo, segundo Savigny, deriva da vontade
livre dos povos, a qual se manifesta pelas leis escritas e pelos pátrios costumes. Por
isso, não deve procurar-se um direito comum a todos os povos; cada povo forma
naturalmente um direito especial, acomodado às suas circunstâncias. Por isso, só a
história deve guiar-nos na investigação dos direitos humanos. — Esse sistema foi
seguido por Stahl, Ihering, Bluntschli.
O sistema, proposto pela escola histórica, é falso pelas seguintes razões: — 1ª)
Destrói a idéia de obrigação moral. Na verdade, se se prescindir da lei natural, não há,
nem pode haver, um motivo, capaz de obrigar a vontade humana a sujeitar-se à lei
positiva, a não ser a força física ou material; e assim chega a estabelecer-se a sociedade
civil sobre o fundamento da força física ou material. — 2ª) Encerra o mais despótico
e tirânico naturalismo; porque sustenta que as leis civis, embora contrárias a Moral
e ao Direito natural, são verdadeiras leis e têm a força de obrigar, e que ninguém,
nesses casos, pode resistir ao poder civil. Ora, é simplesmente ímpio e desonesto
que a sociedade civil prescinda inteiramente de Deus, Senhor e Governador de
todas as criaturas. — 3ª) Erradamente ensina que é só a história que nos deve guiar
na investigação dos direitos humanos. Porquanto, a história, se pode indicar o que é
138 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
ou o que foi, não diz o que deve ser, nem o que é conforme ao ideal da justiça, e por
isso, não pode levar ao conhecimento dos direitos, de que o homem é dotado para
a consecução do seu fim. — 4ª) Leva ao fatalismo dos panteístas. Porquanto, os seus
defensores afirmam que a vontade do povo, que é a fonte de toda a lei, se desenvolve
por um processo natural, à semelhança do organismo físico. Ora, isto é fatalismo.
Concluindo a exposição destes sistemas acerca da origem do direito, vemos que
todos prescindem da lei natural, que foi promulgada por Deus ao homem pela própria
luz da razão, e que é fonte e norma do direito positivo, ao qual impõe regras e limites,
salvando assim os direitos dos indivíduos e a existência da sociedade, e obstando a
que o direito se transforme no capricho do mais forte. — Foi com o fim de tutelar a
liberdade e a dignidade do homem e de firmar as bases da sociedade, que esses falsos
sistemas foram condenados pela Igreja Católica, Mestra infalível da verdade.
Seção Primeira: Direito individual
CAPÍTULO PRIMEIRO
Deveres do homem para com Deus
Sumário: — Deveres teóricos do homem para com Deus.
— Deveres práticos do homem para com Deus.
ARTIGO I
Deveres teóricos do homem para com Deus
1 Num sentido mais lato, todos os deveres do homem são deveres para com
Deus; não só porque são impostos por Deus, mas também porque nos levam ao fim
último, que é Deus, nem se podem transgredir, sem que ao mesmo tempo se transgrida
um dever para com Ele. Todavia, num sentido mais rigoroso, deveres para com Deus são
os que direta e imediatamente nos referem a Deus. É destes deveres que nos ocupamos.
A Religião toma-se em vários sentidos. — No sentido próprio, significa o culto
devido a Deus. — Em sentido lato, derivado do primeiro, significa a virtude moral,
que nos inclina a prestar a Deus o culto, que Lhe é devido. — Em sentido mais lato,
significa o conjunto — tanto das verdades, que exprimem as relações entre Deus e o
homem, — como dos deveres, que se fundam naquelas relações. — Tomada no segundo
sentido, a Religião é a parte principal da ordem moral ou dos deveres impostos pela lei
natural. Tomadano terceiro sentido, a Religião é o fundamento de toda a ordem moral;
140 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
porque Deus é o fim último da ordem moral, — a sua Essência é a norma última, de
que a ordem moral tira a sua necessidade, — a sua Vontade é a causa da obrigação e da
sanção da ordem moral, e a fonte de todos os direitos.
Na virtude da Religião devemos distinguir o objeto formal, o objeto material e
direto, e o objeto indireto. — O objeto formal da Religião é a honestidade, que se encerra
nos atos religiosos; porque nada mais honesto ou conveniente, do que dar a Deus o culto,
que Lhe é devido. O seu objeto material e direto é o culto, que se presta a Deus. O seu
objeto indireto é o próprio Deus, enquanto é o Primeiro Princípio de todas as coisas. —
Donde se vê que a Religião não é uma virtude teologal, mas moral; porque a virtude
teologal tem por objeto direto o próprio Deus, tal é a virtude da Fé, da Esperança e da
Caridade. — Todavia a Religião, enquanto nos inclina a prestar a Deus o culto, que lhe
é devido, compreende todos os deveres do homem para com Deus e por isso, também
os que se referem às virtudes da Fé, Esperança e Caridade. Nesse caso, os atos destas
três virtudes não são atos elícitos da própria Religião (porque uma virtude moral não
pode produzir os atos próprios de uma virtude teologal), mas são atos imperados por
ela, enquanto a Religião leva essas virtudes teologais a praticar os atos respectivos.
Desse modo, os atos das virtudes teologais derivam imediatamente das próprias virtudes;
mediatamente, da Religião.
Muitos autores modernos, escrevendo tratados de Direito natural, omitem
os deveres do homem para com Deus. As razões dessa omissão são várias. — Uns
dizem que os deveres do homem para com Deus são apenas morais, mas não são
jurídicos; porque Deus não pode coagir as criaturas. — Outros afirmam que esses
deveres são inúteis; porque Deus não precisa dos nossos obséquios. — Outros
finalmente sustentam que a criatura não pode nem deve ter deveres religiosos para
com Deus; porque a Religião é parte da justiça, a qual preceitua que a dívida seja
adequadamente satisfeita, e o homem não pode satisfazer adequadamente as suas
dívidas para com Deus.
Todas estas razões são falsas ou inconcludentes. — É falsa a primeira razão. Os
deveres do homem para com Deus são rigorosamente jurídicos; porque Deus, sendo o
Criador e o Senhor de todas as coisas, tem verdadeiro direito a exigir a observância da
sua lei. Nem se diga com Ahrens que Deus, pelo fato de não poder coagir as criaturas,
não tem direitos; porque respondemos que Deus, embora não tivesse a força coactiva,
não deixaria de ter direitos, pois a coação, como vimos, não constitui a essência do
direito. — É falsa a segunda razão. Porquanto, embora Deus não precise dos nossos
obséquios, nem por isso, esses obséquios são inúteis, porque são exigidos pela justiça, a
qual preceitua a observância das relações entre Deus e o homem. Em poucas palavras:
o culto, que prestamos a Deus, se não é útil e necessário para Ele, é útil e necessário
para o homem. — Não é concludente a terceira razão. Porquanto, embora o homem
não possa satisfazer adequadamente as suas dívidas para com Deus, nem por isso, fica
dispensado de dar o que pode, o que está ao alcance das suas forças.
É evidente que o homem, com relação a Deus, só tem deveres e não direitos;
porque o homem é essencialmente servo de Deus, e o Criador nada pode dever às
suas criaturas (Cf. Sum. Th., 2-2, q. 81 e seg.).
SEÇÃO I – CAPÍTULO I – DEVERES DO HOMEM PARA COM DEUS 141
1 São, pois, duas as partes da Religião: uma teórica, outra prática. A teórica
consiste no conhecimento, embora inadequado, da infinita excelência de Deus; — a
prática consiste no culto, que devemos prestar a Deus, pela sua infinita excelência. —
Quem erra na parte teórica, isto é, no conhecimento de Deus, enquanto Lhe nega uma
propriedade que possui, ou Lhe atribui uma propriedade que não possui, chama-se
blasfemo, — e quem nega a Deus o culto, que Lhe é devido, diz-se ímpio.
2 Deus é única, simplicíssima, infinita Verdade, identificada com a sua Essência
inefável. — A nossa inteligência, sendo finita e por isso, não podendo abranger com
um só olhar o infinito, procura formar da única e simplicíssima Verdade muitos e
diferentes conceptos, cada um dos quase reproduz, embora por um modo infinita-
mente inadequado, um ou outro atributo da Essência divina.
Essa maneira de conhecer a Essência infinita de Deus não é arbitraria nem
falsa; porque os diversos conceptos, que formamos da Essência divina, têm o seu
fundamento na realidade, isto é, as diversas verdades, que formamos acerca de Deus,
existem efetivamente na Essência divina, não inadequadas e acidentais, como na
inteligência humana, mas perfeitíssimas e unidas numa única Verdade, substancial e
infinita. — Em Deus, pois, podem distinguir-se muitas e diferentes verdades, distribu-
ídas em duas classes. Uma classe abrange as verdades, que não excedem a capacidade
ou compreensão da inteligência criada, como são existência e a unidade de Deus, a
criação do mundo, a espiritualidade e imortalidade da alma humana, etc.; — a outra
classe compreende as verdades, que excedem a capacidade ou compreensão de toda a
142 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
ARTIGO II
Deveres práticos do homem para com Deus
necessárias, nem por isso, seria inútil a oração; não só porque dentro da atual ordem
das coisas podem dar-se diversas mudanças, sem que se alterem as leis gerais da
natureza, — mas também porque, tendo Deus previsto desde a eternidade as orações
dos homens, ponde estabelecer leis, cujos efeitos correspondessem aos desejos dos
suplicantes. — O célebre Leibnitz dizia; “Não só os cuidados e os trabalhos são úteis
ao homem, mas também as orações; porque Deus as viu desde a eternidade, antes
de ordenar a existência e o movimento dos seres. Por isso, os que não fazem as
diligências necessárias para pôr em ordem as suas coisas, alegando o vão pretexto
da necessidade dos acontecimentos, incorrem no sofisma conhecido pelos antigos
sob o nome de sofisma do preguiçoso” (Theod., t. II, p. 416).
1 Não é menos evidente o dever que o homem tem de obedecer a Deus; não
só porque o homem é servo e Deus é o Soberano Senhor, mas também porque a
vontade do homem, sendo falível, deve estar sujeita a vontade de Deus, que é infalí-
vel e modelo de toda a santidade. — Essa obediência estende-se a todos os preceitos
divinos, naturais e positivos.
2 O homem, que transgrediu os preceitos de Deus, fica imediatamente pri-
vado da amizade de Deus e condenado ao castigo proporcionado às suas culpas. Se
quiser sair desse estado, deve reconciliar-se com Deus por meio do arrependimento. O
arrependimento, pois, é uma dor íntima da alma, pela qual detestamos as ofensas feitas
a Deus, e prometemos a emenda. — O arrependimento pode ser perfeito ou imperfeito,
conforme nasce do amor de Deus ou de temor do castigo.
Dissemos que os atos enumerados do culto interno são os principais, porque,
além desses, há muitos outros, como o temor filial, a gratidão, etc. — Todos esses
atos, como é evidente, derivam da vontade por um modo ilícito ou imperado, isto é,
imediata ou mediatamente.
152 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
humano, não pode deixar de ser também externo; porque deriva do corpo
informado pela alma. Logo, o homem deve prestar a Deus o culto externo.
b) O homem deverá prestar a Deus o culto externo, se este for
necessário para excitar e completar o interno; pois quem tem a obrigação
de alcançar um fim, tem também a obrigação de empregar os meios
convenientes. Ora, o culto externo é necessário para excitar e completar
o interno; porque é próprio do homem elevar-se ao espiritual pelo
sensível, e traduzir por atos externos o íntimo afeto da alma, quando é
sincero. Logo, o homem deve prestar a Deus o culto externo.1
129. Principais atos do culto externo. — Os principais atos
do culto externo são a adoração externa, o louvor, o juramento, a oblação,
o sacrifício.
a) Adoração externa. — Adoração externa é o ato pelo qual nos
prostramos diante de Deus, para desse modo, atestarmos a sua exce-
lência e o seu domínio sobre todas as criaturas, e a nossa inferioridade
e submissão para com Ele.
*
Depois de termos tratado da virtude da Religião, resta-nos dizer alguma coisa
acerca dos vícios, que lhe são opostos. Estes vícios são seis, a saber: a indiferença religiosa,
a incredulidade, a impiedade, o ateísmo, a superstição e o fanatismo. Os primeiros quatro
vícios opõem-se a Religião por defeito; os últimos dois, por excesso.
a) Indiferença religiosa. — A indiferença religiosa é o vício dos que dizem,
com as palavras ou com os fatos, que Deus não recebe as nossas homenagens, porque
não precisa delas, e que o homem pode ser bom e honesto, embora não seja religioso.
— Estas afirmações são falsas. É falso, como demonstrámos, que Deus não recebe as
nossas homenagens, pelo fato de não precisar delas. É falso também que o homem
pode ser bom e honesto, sem ser religioso; porque quem falta aos seus deveres para
com Deus, é injusto e ingrato, e uma pessoa injusta e ingrata não é boa nem honesta.
b) Incredulidade. — A incredulidade é o vício dos que dizem que só deve
admitir-se o que estiver ao alcance da razão humana, e que por isso, deve rejeitar-se
a Revelação sobrenatural.
c) Impiedade. — A impiedade é o vício dos que, embora admitam a existência
de Deus, contudo têm a ousadia de o ultrajar e combater.
d) Ateísmo. — O ateísmo é o vício dos que não admitem ou dizem não admitir
a existência de um Criador e Conservador do universo.
e) Superstição. — A superstição é o vício dos que adoram a criatura em lugar
do Criador, ou misturam coisas perniciosas ou supérfluas no culto do verdadeiro Deus.
— Todavia, não é superstição o culto, que os católicos prestam às imagens de Nosso
Senhor e dos Santos, pois o termo desse culto não é um pedaço de pedra, de pau, ou
de tela, mas é a Pessoa de Nosso Senhor e a dos Santos, que as imagens representam.
Assim a estima, que temos a um retrato de um amigo, não tem por termo um pedaço
do papel, mas a própria pessoa do amigo.
f) Fanatismo. — O fanatismo é o vício dos que propagam a superstição
por meio do ferro e do fogo, ou defendem a verdadeira Religião com meios
perniciosos e condenados.
Estes vícios encontram-se quase todos na religião positivista, fundada por
Comte. Eis o resumo dos erros do escritor francês a esse respeito: “Existe um Deus,
que é o Grande Ser, a Humanidade. Fazem parte do Grande Ser todos os seres aptos
para a assimilação, e por isso, não só os homens, mas também os animais. Ao Grande
Ser devem acrescentar-se o Grande Fetiche, que é a nossa terra com o sistema solar, e o
Grande Meio, que é o espaço. É a Trindade positivista”. Essa Religião tem o seu sinal da
Cruz, cuja fórmula é a seguinte: “O amor por princípio — a ordem por base — o progresso
por fim”. — E não hasta. Comte reformou o almanaque; instituiu sacramentos; fundou
um sacerdócio com os três graus de aspirantes, vigários e sacerdotes, subordinados a um
Grande Sacerdote. — E não é tudo. A nova religião devia ter os seus santos. A primeira
SEÇÃO I – CAPÍTULO II – DEVERES DO HOMEM PARA CONSIGO 155
CAPÍTULO SEGUNDO
Deveres do homem para consigo
ARTIGO I
Deveres do homem relativos à sua alma
pessoa, canonizada por Comte, foi a Grande Sacerdotisa, — Clotilde de Vaux. Morta esta,
o filósofo prestou-lhe culto, venerando as suas relíquias e passando várias horas do
dia em adoração diante da sua imagem.
Todo isto seria ridículo, se não fosse ímpio e pagão. E houve e há infelizes
que desprezam a Religião Católica, tão bela, tão pura, tão elevada, para se abaterem
diante da louca impiedade, que se chama religião positivista. Simplesmente triste!
1 O princípio, de que derivam e a que se reduzem todos os deveres do homem
para consigo, é o amor ordenado de si mesmo. É, pois, necessário notar que o princípio
desses deveres não é o preceito do amor de si mesmo; porque o amor de si mesmo é uma
necessidade, não é um dever; — mas é o preceito do amor ordenado de si mesmo; pois o
amor de si mesmo, em-quanto deve ser ordenado, é matéria de preceito e constitui um dever.
Mas quando é que o amor de si mesmo é ordenado? — Para que a resposta seja
clara, devemos notar que três amores devem ocupar o coração do homem: o amor de
Deus, o amor de si mesmo, o amor do próximo. O amor de Deus deve ser supremo,
absoluto e superior a todos os outros amores; porque Deus é o Bem supremo, absoluto
e princípio de todos os bens. Os outros bens devem ser amados, não só depois de
Deus, mas também em Deus e por Deus; porque, como dissemos, todo o bem criado
é uma participação e uma semelhança da infinita Bondade de Deus. Por isso, o amor
de si mesmo será ordenado, quando estiver sujeito ao amor de Deus, quando o homem
se amar a si mesmo em Deus e por Deus, cuja imagem e semelhança está gravada em
a nossa alma, simples e espiritual. O amor do próximo deve ser semelhante ao amor de
si mesmo; porque também o próximo deriva de Deus e tem gravada em si a imagem e
a semelhança do Criador. — Donde se segue que o amor, que o homem deve ter a si
156 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
ARTIGO II
Deveres do homem relativos ao seu corpo
morte é útil aos amigos, a pátria, ou é o único remédio para os males da vida presente.
Essa velha opinião, ressuscitada pelos incrédulos do século passado, é muito seguida
em nossos dias, chegando a considerar-se o suicídio como um ato heroico. — Os pro-
testantes e os sensualistas, pelo contrário, exageram o dever de conservar a saúde e a
vida, chegando a condenar, como pecado, a mortificação do corpo, embora moderada
e praticada para obedecer às leis da Igreja, ou para satisfazer pelas próprias culpas,
ou para reprimir as paixões desordenadas.
Reprovamos estes erros e exageros. Daí a razão das proposições, que vamos
estabelecer e provar no texto.
1 Pergunta-se: como se prova que Deus concedeu ao homem só o uso da
própria vida, e não o domínio?
Resposta. É a voz da natureza, a qual nos diz que Deus concedeu ao homem
só o uso da vida, e não o domínio. Na verdade, o homem tem um instinto natural
para a conservação da sua vida. Ora, tal instinto leva-nos a descobrir a intenção e a
vontade de Deus, que no-lo deu; assim como da tendência natural para a felicidade,
que experimentamos em a nossa alma, concluímos que Deus nos destinou para essa
felicidade, e que no-la concederá, se empregarmos os meios proporcionados. Logo,
do instinto natural, que temos para a nossa conservação, deduzimos que Deus quer
esta conservação. Se Deus quer a conservação da nossa vida, é claro que Ele só nos
concedeu o uso da própria vida, e não o domínio; porque Deus, se nos tivesse concedido
também o domínio, seria indiferente com relação a conservação ou a destruição da
nossa vida. — Além disso, o homem é essencialmente servo de Deus, e deve trabalhar
nesta vida para a consecução da felicidade imortal. Ora, o servo não pode estabelecer
a duração do serviço, mas deve esperar até que a voz do seu senhor o chame para o
descanso, para a recompensa. Por isso, o suicida é um servo infiel, e merece o cas-
tigo, que se dá a um soldado, quando caprichosamente abandona, antes do tempo
estabelecido, o posto que lhe foi confiado.
SEÇÃO I – CAPÍTULO II – DEVERES DO HOMEM PARA CONSIGO 161
1 Cf. Sum. Th., 2-2, q. 64, a. 5. — Os danos, que o suicídio produz nas famílias
e na sociedade, são incalculáveis. “Uma família precisa do trabalho e do amparo do
pai; este dá-se a morte; a família cobre-se de luto e de misérias. A sociedade precisa
de homens, que possam cooperar para o bem comum; o suicídio inutiliza tantas
esperanças. — E esse mal é excessivamente contagioso. A repetição dos casos torna
menos horrorosa a idéia da morte; a descrição e, por vezes, a glorificação do suicídio,
feita pelos jornais, exaltam a fantasia de modo, que se atenta contra a própria vida,
como se cumprisse a mais nobre e sublime das empresas!
Os defensores do suicídio apresentam os seguintes argumentos: — 1º) o sui-
cida não se ofende a si mesmo, porque a máxima diz: “volenti non fit injuria”; — 2º)
é razoável deixar a vida, quando é pesada ou inútil; — 3º) quando se não pôde viver
com honra, o suicídio é um ato heroico, digno de um homem sábio.
Esses argumentos são todos falsos. — É falso o primeiro; porque a máxima
— volenti non fit injuria — só vale, quando se trata de bens alienáveis, mas não vale,
quando se trata de bens inalienáveis, isto é, de bens de que não podemos dispor; ora,
a vida é um desses bens. — É falso o segundo; porque a nossa vida, embora pareça
pesada ou inútil, depende sempre de Deus, e não podemos dispor dela. — É falso o
terceiro; porque o suicídio, longe de ser um ato de heroísmo, digno de um homem
sábio, é um ato de cobardia, próprio de um homem fraco, que não sabe sofrer.
A causa ordinária do suicídio, fora dos casos de alienação mental, e a irreligião.
Porquanto, se o homem perder de vista a vida futura e se não tiver a esperança de
um prêmio eterno, nada é mais natural do que procurar no suicídio o remédio para os
males, que atualmente o atormentam. A experiência demonstra que a idéia do suicídio
começa, quando e onde acaba a idéia da fé. — Por isso, são dignos de compaixão os
que, para impedirem os contínuos atentados contra a própria existência, invocam
meios humanos, excluindo um meio divino, verdadeiramente eficaz, que é a prática
dos deveres religiosos. A cada mal o remédio proporcionado.
O que dizemos acerca do suicídio deve aplicar-se ao dever que o homem tem
de não procurar diretamente a mutilação do seu corpo.
Note-se que, declarando ilícito e injusto o suicídio, queremos falar do suicídio,
cometido unicamente pela livre vontade do homem, e não do suicídio, que fosse
ordenado por Deus; porque, se Deus o manda, o suicídio perde toda a sua imoralidade,
e torna-se lícito e necessário.
162 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
CAPÍTULO TERCEIRO
Direitos e deveres do homem para com o próximo
ARTIGO I
Direitos do homem para com o próximo
o dever, imposto pela lei natural, de crer e praticar tudo o que a ver-
dadeira Religião ensina, deve ter também o direito, concedido pela
mesma lei, relativo aquela crença e aquela prática. Logo, o homem
tem direito à liberdade religiosa.1
b) Direito à dignidade pessoal. — Direito à dignidade pessoal
é o poder, comum a todo o homem, de exigir que seja reconhecido
como ente racional, dotado de fim próprio, e não como simples meio
para o fim dos outros. — Esse direito existe no homem. Porquanto, o
homem, sendo um ente racional e tendo o dever de conseguir o seu fim
último, deve ter também o direito de exigir que os outros o reconheçam
e respeitem como ente racional, criado para conseguir esse fim. Logo,
o homem tem direito a dignidade pessoal.2
universal, que se relaciona com a paz e a ordem comum, e por isso, prevalece ao bem
individual do agressor.
Todavia, esse direito não se estende às agressões contra a própria fama e honra.
Na verdade, a defesa, como dissemos, deve ser proporcionada a agressão. Ora, o uso
da força física não é o meio proporcionado para a repulsão dos ataques contra a fama
e a honra; pois não é com a morte ou com o mal do agressor que se repara a fama e
a honra, mas só com a demonstração da falsidade do ataque contra esses bens. Além
disso, o direito, que o homem tem a própria fama e honra, é inferior ao direito, que
o agressor da mesma fama e honra tem a própria vida.
Do que temos exposto resulta a ilegitimidade do duelo.
Duelo é um combate singular e privado, combinado por mutuo acordo entre
duas pessoas, para resolver diferenças particulares, com perigo de morte ou de lesão
corporal, tendo precedido a determinação das armas, da hora, do sitio do combate,
e de outras circunstâncias e condições. — O duelo, que é um resto da barbaridade da
idade média, é ilícito pelas seguintes razões: — 1ª) despreza a Deus, que não concedeu
ao homem particular o domínio sobre a vida própria nem sobre a do próximo; — 2ª)
é uma violação do dever, que ternos de conservar a vida; — 3ª) é uma violação dos
direitos do próximo, cujo bem temporal e eterno ele injustamente compromete; —
4ª) despreza os direitos da sociedade, usurpando as funções da autoridade pública,
criando ódios, levando a viuvez e a orfandade ao seio das famílias, etc.
Benjamin Franklin diz a respeito do duelo o seguinte: “O homem ofende
continuamente a honra de Deus, e Deus o conserva; o homem ofende um outro
homem, e este julga, no seu orgulho, que a ofensa só pode ser expiada com a morte!
Um príncipe, quando condena a morte um súdito, que o ultrajou, chama-se tirano;
e um particular, exercendo as funções de juiz na própria causa e por autoridade pró-
pria, não só condena a morte o ofensor, mas ele mesmo é o carrasco!”. — O próprio
Rousseau escreve: “Deverá a honra de um homem honesto ser exposta ao capricho do
primeiro louco furioso, que ele pode encontrar? Dir-se-á que o duelo prova a coragem
do homem. E bastará isto para apagar a vergonha e o remorso de todo e qualquer fato?
Mas, então, um malvado, para ser bom, não haverá a fazer outra coisa senão bater-se
em duelo. As palavras de um mentiroso tornar-se-ão verdades, desde o momento
que possam ser sustentadas pela espada; e, se tu fores acusado deter assassinado um
homem, bastará para provar que não é verdade, que mates um outro homem. Desse
modo, a virtude e o vício, a honra e a infâmia, a verdade e a mentira, tudo depende
do êxito de um duelo. Uma sala de armas é a sede de toda a justiça; o único direito é
a força: a única razão é o homicídio; toda a reparação devida aos ofendidos consiste
em lhes dar a morte; e toda a defesa é igualmente lavada no sangue do ofensor e do
ofendido ... Se os lobos soubessem raciocinar, teriam máximas diferentes!... O duelo
é um esforço sem virtude, um crime sem prazer, uma honra sem razão” (Nouvelle Hel.)
Os defensores do duelo fazem as seguintes objeções:
a) Dizem: o duelo é uma consequência do direito da legítima defesa, de que
todo o homem é dotado. Logo, o duelo é lícito.
170 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
e de esforçar-se para que estes, depois da sua morte, continuem a viver honrada e
convenientemente. Ora, para isso, é indispensável que o indivíduo possua bens pró-
prios e estáveis, com o direito de excluir do uso deles os outros indivíduos, para que
os possa transmitir aos seus legítimos descendentes. Logo, o homem tem o direito
de propriedade particular, relativa aos bens estáveis.
d) A história de todos os povos confirma a verdade da nossa proposição. Com
efeito, em todos os povos, mesmo nos mais bárbaros e selvagens, encontra-se, numa
forma mais ou menos perfeita, a propriedade particular e estável. Ora esse fato, tão
geral e constante, só pode explicar-se na teoria, que reconhece no homem o direito
da mesma propriedade.
Examinemos três objeções contra o direito de propriedade particular.
1ª) Dizem: a terra é o patrimônio de todos os homens. Logo, quem apropria
a si uma parte dela, comete um roubo em prejuízo do gênero humano e destrói a
ordem estabelecida por Deus.
Resposta. A terra pode dizer-se patrimônio de todos os homens — em sentido
negativo, enquanto nenhuma parte dela foi assignada a esta ou aquela pessoa, — mas
não em sentido positivo, enquanto todos podem apropriar a si uma coisa, que uma
outra pessoa fez sua pela ocupação e pelo trabalho. Na verdade, Deus, tendo criado
a terra inculta, criou ao mesmo tempo o direito de propriedade particular; visto que,
sem esse direito, faltaria todo o estímulo para a cultura da mesma terra. Por isso, a
propriedade particular, longe de ser um roubo e destruir a ordem estabelecida por
Deus, representa o exercício de um direito natural e completa essa ordem.
2ª) Continuam: o Estado tem o dever de prover a todas as necessidades do indiví-
duo, e por isso, o direito de propriedade só pode pertencer ao Estado e não ao indivíduo.
Resposta. O indivíduo existe antes do Estado; pois o Estado é o conjunto de
indivíduos. Existindo antes do Estado, o indivíduo tem o dever, proveniente da lei
natural, de prover às suas necessidades, presentes e futuras, e por isso, tem o direito de
propriedade particular, derivado da mesma lei. Tal direito, por ser natural, não pode ser
destruído pelo Estado, mas deve ser garantido no seu exercício pelo próprio Estado.
3ª) Bentham objeta: todo o direito é essencialmente coactivo. Ora, o indivíduo
é destituído de força coactiva. Logo, o indivíduo não pode ter o direito de propriedade.
Resposta. O direito é coactivo, não enquanto é constituído essencialmente pela
coação atual, ou pela força física, mas enquanto pode ser defendido pela força física,
se o seu sujeito poder e quiser. A força coactiva é uma propriedade do direito; de modo
que o direito subsistiria, embora o indivíduo nunca pudesse empregar a força física
para obrigar os outros ao respeito do mesmo direito.
e) Origem do direito de propriedade. — Essa questão está já resolvida na
proposição antecedente. Mas, tratando-se de um assumpto tão importante, não é
inútil a insistência. — Há várias opiniões acerca da origem do direito de propriedade.
— Uns, como Hobbes, Montesquieu, Kant, Bentham, dizem que o direito de propriedade
deriva, única e exclusivamente, da lei civil. — Outros, como Grocio, Puffendorf, Hei-
necio, sustentam que esse direito deriva de um pacto primitivo, pelo qual os homens,
SEÇÃO I – CAPÍTULO III – DEVERES DO HOMEM PARA COM O PRÓXIMO 173
longe de ser um título suficiente para a aquisição dos bens materiais, é um meio
para semear discórdias no seio das famílias e da sociedade.
d) O direito de propriedade deriva, originaria e imediatamente, da própria
natureza, ou da lei natural. Essa proposição prova-se com os mesmos argumentos, que
aduzimos em favor da existência do direito de propriedade. Porquanto, esses argumentos
provam que o homem, tendo o dever, imposto pela natureza, ou pela lei natural, de
conservar e aperfeiçoar a própria vida e a dos seus filhos, deve ter também o direito,
proveniente da mesma natureza, ou lei natural, de empregar os meios indispensáveis
para o cumprimento desse dever. Ora, um desses meios indispensáveis é o direito de
propriedade, isto é, o direito de possuir, livre e exclusivamente, alguns bens materiais
e os externos. Cf. Sum. Th., 2-2, q. 66, aa. 1, 2. — É verdade que S. Thomaz faz derivar
do direito das gentes o direito da propriedade; mas o direito das gentes, na mente do S.
Doutor, não é o direito meramente positivo, introduzido por um pacto internacional,
mas é uma conclusão deduzida do direito natural e recebida pelo senso comum. Eis
as suas palavras: “Ad jus gentium pertinent ea, quae derivantur ex lege naturae, sicut
conclusiones ex principiis, ut justae emptiones, venditiones et alia huiusmodi, sine
quibus homines ad invicem convivere non possunt; quod est de lege naturae, quia
homo est naturaliter animal sociabile” (Sum. Th., 1-2, q. 95, a. 4). — A Encyclica Rerum
novarum do S. Padre Leão XIII, 16 maio 1891, estuda e resolve a questão social por um
modo exauriente à luz da fé e da razão.
e) Determinação do direito de propriedade. — O direito de propriedade
pode considerar-se em abstrato e em concreto. Considerado em abstrato, é o poder
moral de adquirir um domínio particular e estável, e esse poder é concedido pela
lei natural; — considerado em concreto, é o poder de usar e dispor dos bens materiais
e externos, que lhe pertencem. — O direito de propriedade em concreto deriva do
direito de propriedade em abstrato, por meio de um fato, enquanto este determina ou
limita a certos bens o poder que temos de adquirir e possuir. — A ordem lógica das
idéias exige que tratemos agora do fato primitivo, que determinou ou tornou concreto o
direito de propriedade em abstrato. — Esse fato primitivo não pôde ser um pacto, nem
um decreto, nem o trabalho só, mas foi a ocupação.
a) O fato determinativo do direito de propriedade não foi um pacto. Por-
quanto, tal pacto poderia conceber-se nalguns casos, quando, multiplicado o número
dos homens, tivessem distribuído entre si os bens das famílias ou tribos. Mas essa
distribuição suporia já o direito de propriedade, existente nas famílias ou nas tribos,
e determinado por um fato precedente.
b) Não foi um decreto de algum príncipe. Porquanto, tal decreto deveria supor
que, no princípio, todas as coisas eram positivamente comuns, ou que os primeiros
príncipes tinham jurisdição sobre toda aterra. Ora, ambas essas suposições são gra-
tuitas e inaceitáveis.
c) O fato determinativo do direito de propriedade não foi exclusivamente o
trabalho. Porquanto, há coisas, que não precisam de ser transformadas pelo trabalho,
porque são preparadas pô-la própria natureza para uso do homem, como as frutas,
os animais, etc., e por isso, relativamente a essas coisas, o trabalho não pode ser o fato
SEÇÃO I – CAPÍTULO III – DEVERES DO HOMEM PARA COM O PRÓXIMO 175
Logo, o proprietário pode transmitir os seus bens por meio do testamento. — É claro
que esse direito pode ser legitimamente limitado pela lei natural e positiva.
— Os filhos sucedem aos pais no direito de propriedade, embora estes não
tenham deixado testamento, isto é, embora tenham falecido ab-intestato. Porquanto,
o elemento do gênero humano não é propriamente o indivíduo, mas sim a família,
a qual constitui uma verdadeira sociedade, cuja cabeça e diretor é o pai; e por isso, o
direito de propriedade, embora pertença ao pai, reflete-se sobre toda a família. Ficando,
pois, a família, quando morre o pai, é claro que o direito de propriedade deve passar
para ela, a qual de algum modo já pertencia e em cuja vantagem era exercido pelo
pai. — Além disso, o pai adquire as propriedades sobretudo para os filhos, a cujas
necessidades deve prover. Logo, embora o pai morra sem deixar testamento (ab-in-
testato), pressupõe-se, em virtude da lei natural, que tivesse intenção de deixar os
bens aos seus filhos. — Finalmente, o pai gravou nos bens, que adquiriu, o cunho da
própria personalidade. Perseverando, pois, a personalidade do pai nos filhos, que são
uma parte do pai, os bens deste devem pertencer aqueles pelo próprio direito natural.
b) Contrato. — Contrato é um consentimento livre e expresso, pelo qual duas ou
mais pessoas conferem e aceitam algum direito. — Para a legitimidade do contrato são
necessárias as seguintes condições: conhecimento do objeto do contrato, liberdade nos
contraentes, coexistência do mútuo consentimento, possibilidade e honestidade do
objeto. — O contrato divide-se principalmente em igual e desigual. Igual, que se chama
também oneroso e bilateral, é o que obriga ambos os contraentes, embora o objeto da
obrigação possa ser diverso; — desigual, que se diz também gratuito e unilateral, é o
que obriga um só dos contraentes, porque o outro não faz senão aceitar a oferta. —
O homem pode, por um contrato oneroso ou gratuito, transmitir a outro o direito de
propriedade sobre os seus bens; porque esse direito estende-se, como dissemos, a toda
e qualquer disposição relativa aos bens possuídos. — Todavia, o direito de transmitir
os próprios bens, por meio do contrato, pode ser e é limitado pela lei natural e positiva.
É necessário advertir que a ocupação, a acessão, a herança, o contrato, sendo
fatos contingentes, dão lugar a direitos adquiridos. Porquanto, o direito de proprie-
dade pode, como dissemos, considerar-se em abstrato e em concreto. — Considerado
em abstrato, refere-se ao poder de adquirir e de dispor, livre e exclusivamente, das
coisas adquiridas; e esse direito é inato. — Considerado em concreto, refere-se a coisa,
que nos pertence; e esse direito é adquirido, porque se baseia num fato contingente.
h) Limitação do direito de propriedade. — O direito de propriedade, embora
derive da lei natural, não é, contudo, tão absoluto e independente, que não admita
limites; pois não há direito, entre as criaturas, que não seja limitado. — Esses limites
são morais e jurídicos. Os limites morais, que não podem ser impostos pela coação,
nascem não só da natureza do direito de propriedade, mas também dos deveres do
homem para com Deus, para consigo, e para com o próximo. Por isso, o homem não
pode abusar dos seus bens, nem os destruir inutilmente, mas deve empregá-los para
a subsistência própria e da sua família, deve socorrer aos pobres e contribuir para a
felicidade social. — Os limites jurídicos, que podem ser impostos pela coação, derivam
dos direitos do próximo e da sociedade, e têm por fim a garantia destes mesmos direitos,
SEÇÃO I – CAPÍTULO III – DEVERES DO HOMEM PARA COM O PRÓXIMO 177
contra os abusos do exercício do direito de propriedade. Por isso, o Estado pode exigir
os impostos, pode fazer expropriações forçosas, pode, numa palavra, limitar o direito
de propriedade, como e quando o exigir o bem social ou a conservação da sociedade.
*
O direito de propriedade é contestado por dois sistemas, que são o comunismo
e o socialismo. — Digamos alguma coisa acerca destes sistemas, que se alastram
por toda a parte, minando os fundamentos da sociedade e ameaçando os mais
funestos cataclismos.
I. Comunismo. — Comunismo é o sistema que rejeita o direito de propriedade
particular, como contrário à lei natural, e admite que todos os bens devem ser comuns
a todos os homens. — Foi defendido principalmente pelos Maniqueus, Albigenses,
Anabatistas, etc.
II. Divisão do comunismo. — O comunismo divide-se em negativo e positivo.
— O negativo rejeita todo o direito de propriedade e sustenta que todos os bens devem
ser negativamente comuns, de modo que todo o indivíduo possa servir-se do que lhe
agradar. O positivo ensina que todos os bens devem ser próprios não dos indivíduos,
mas de alguma comunidade. — O comunismo positivo subdivide-se em absoluto e
moderado. O absoluto sustenta que todos os bens, quer produtivos quer de consumo,
devem ser próprios de alguma comunidade, e que a produção e distribuição desses
bens devem ser feitas de modo que tudo, quanto é possível, seja comum, como os
jantares, os dormitórios, etc. O moderado afirma que só os bens produtivos (vinhas, olivais,
etc.) devem ser comuns. — O comunismo moderado divide-se ainda em anarquismo
e socialismo. O anarquismo afirma que todos os bens produtivos devem passar para o
domínio inalienável dos municípios ou das sociedades operárias, independentes entre
si, e que tal estado de coisas se deve realizar por meio da força. O socialismo sustenta
que todos os bens produtivos devem passar para o domínio de toda a sociedade civil,
e que tal estado de coisas se deve realizar por meio do sufrágio popular. — Digamos
alguma coisa acerca do socialismo.
III. Socialismo. — Socialismo é o sistema econômico-político, que ensina —
que todos os bens produtivos devem passar para a sociedade civil — e que a produção
e distribuição dos mesmos bens deve ser feita pela mesma sociedade, constituída em
forma democrática. — O socialismo costuma chamar-se também coletivismo.
IV. Divisão do socialismo. — O socialismo divide-se em absoluto e moderado.
— O socialismo absoluto sustenta que todos os bens produtivos, imóveis e móveis, devem
passar para o domínio da sociedade civil. Esse sistema foi sustentado principalmente
por Saint-Simon (1760-1825), Carlos Fourier (1772-1837), Proudhon (1809-1865), que
dizia: “A propriedade é um roubo”, Karl Marx (1818-1883), que o desenvolve no livro
“O Capital”. — O socialismo moderado, que se chama lambem agrário, ensina que,
entre os bens produtivos, só os imóveis devem passar para o domínio da sociedade
civil. Esse sistema, esboçado anteriormente por Lavelege na Bélgica e por Stuart Mill
na Inglaterra, foi aperfeiçoado por George na América, por Flürscheim na Alemanha,
e por Hertzka na Áustria.
178 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
Suponhamos que o operário precise de cinco tostões para a sua sustentação. Essa
quantia representa o valor comutativo das forças do operário, ou a soma que o capita-
lista deve ao operário como recompensa de um dia de trabalho. Mas, se essas forças,
que o operário aluga pelo espaço de um dia ao capitalista, chegarem a dar as coisas,
em que se exercem, um valor de dez tostões, o capitalista não pode, sem injustiça,
ficar com os outros cinco tostões, que representam o fruto do operário; porque, se é
apreciado o valor comutativo das forças humanas, não é apreciado o seu valor usual,
e o capitalista comete um roubo em dano do operário.
Semelhante processo, que diminui cada vez mais o número dos capitalistas e
aumenta o dos proletários, deve criar finalmente, como resultado fatal, mas lógico,
um estado de violência e de guerra, em que os capitalistas serão expropriados por
todo o povo.
Como remédio para tão grandes males, é necessário instituir uma nova ordem
social, em que sejam devolvidos para o domínio inalienável do Estado todos os bens
produtivos, como terras, casas, máquinas, etc. O Estado deve ser democrático; nada
de privilégios; tudo deve ser igual. O povo faz as leis; escolhe, por meio do sufrágio
universal, os magistrados, e julga-os nos seus atos. o ofício dos magistrados deve
consistir em ordenar a produção publica; e por isso, deve determinar, depois de um
diligente exame, a qualidade e quantidade — não só de cada gênero de produção,
— mas também do trabalho, que deve ser igual para todos na duração. Ninguém
poderá eximir-se do trabalho comum. Todos terão os mesmos direitos e os mesmos
deveres. — Não só a produção, mas também a circulação e a distribuição dos bens serão
confiados aos magistrados. Estes — ou darão a cada um parte dos produtos, conforme
o trabalho feito ou o estado de indigência, — ou passarão uma certidão do trabalho
feito ou do estado de indigência, de modo que os operários possam reclamar o que
lhes for devido ou necessário. — A propriedade particular, pois, longe de ser destruída,
fica estabelecida na mais firme base, que é o trabalho (Cathrein, Philosophia Moral).
VI. Doutrina do socialismo moderado. — O socialismo moderado, ou agrário,
sustenta, como dissemos, que todos os bens produtivos e imóveis devem passar para o
domínio da sociedade civil, ou do Estado. Os defensores deste sistema, pretendendo
demonstrar que a propriedade particular das terras é contraria a natureza, dizem — que,
no princípio, a posse das terras era comum, — que o trabalho é o único título justo da
propriedade particular e a terra não é produto do trabalho, — que todos têm direito à
vida, e por isso, todos devem ter direito a uma porção igual de terra.
VII. Crítica do comunismo. — O comunismo, embora não repugne a natureza
humana, considerada em abstrato, isto é, subordinada à reta razão e isenta das paixões
desordenadas, repugna a nossa natureza, considerada em concreto, isto é, cercada de
fraqueza e de misérias. Porquanto:
a) Baseia-se num falso princípio. — Os comunistas partem do princípio de que a
propriedade particular repugna a lei natural. Ora, esse princípio é falso. Porquanto,
não repugna a lei natural o que não repugna — nem às relações do homem para com
Deus, — nem às suas relações para com os bens materiais, — nem às suas relações para
com o próximo. Ora, a propriedade particular — não repugna às relações do homem
180 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
para com Deus, — nem às suas relações para com os bens materiais, — nem às suas
relações para com o próximo. — Não repugna às suas relações para com Deus; o que é
evidente. — Não repugna às suas relações para com os bens materiais; não só porque
estes foram criados para uso do homem, mas também porque são indiferentes em
relação aos seus possuidores. — Não repugna às suas relações para com o próximo;
porquanto — nem a propriedade particular torna por si impossível o exercício dos
direitos inatos dos outros, — nem os bens materiais são positivamente comuns a todos
os homens, — nem a desigualdade, que deriva da propriedade particular, é contraria ao
Direito natural, pois essa desigualdade é causa de progresso na ordem física e moral.
b) Repugna a tendência natural do homem. — Existe no homem uma tendên-
cia natural — para o livre desenvolvimento das suas forças, — para a posse livre e
exclusiva dos bens materiais, — para a própria dignidade, independência e liberdade.
Ora, o comunismo repugna a essa tríplice tendência do homem. Repugna a tendência
para o livre desenvolvimento das forças; pois obriga igualmente todos os homens
aos mesmos trabalhos. Repugna a tendência para a posse livre e exclusiva dos bens
materiais; o que é evidente. Repugna â tendência para a dignidade, independência e
liberdade pessoal; porque obriga, mesmo com a força, todos os homens a trabalhar
para a utilidade dos outros, reduzindo-os à condição de servos.
c) Não dá uma compensação suficiente. — O comunismo diz que o Estado devo
distribuir aos cidadãos, como compensação, uma parte do fruto, proporcionada às
suas necessidades e ao seu trabalho. Essa compensação poderia admitir-se, se os
superiores e os súditos procedessem sempre com justiça e com consciência. Ora, um
procedimento justo e consciencioso é tão difícil, que se não pode basear sobre ele o
interesse da sociedade.
VIII. Crítica do socialismo absoluto. — Esse socialismo baseia-se em falsos
fundamentos, e, no estado atual da sociedade, é impossível e absurdo.
a) O socialismo absoluto baseia-se em falsos fundamentos. — Porquanto, o socialismo
absoluto baseia-se — a) na negação de Deus, da espiritualidade da alma humana, da
existência da vida futura, — b) na teoria materialista da evolução, — c) na igualdade
de direitos em todos os homens, — d) na teoria do valor de Marx, — e) na suposição
de que a propriedade particular deve necessariamente dividir a sociedade em duas
classes inimigas: uma composta de poucos riquíssimos, e outra constituída por uma
multidão imensa de mercenários. Ora, esses fundamentos são todos falsos.
a) É falso que Deus não existe, que a nossa alma não é espiritual nem imortal,
que não existe a vida futura, e que por isso, o fim único e supremo da vida humana
é o gozo material. Não nos demoramos na refutação destes erros, pois que foram
suficientemente refutados nos respectivos lugares.
b) É falsa a teoria materialista da evolução. Na verdade, essa teoria pode ter dois
sentidos, — ou que tudo está sujeito a uma perpetua mudança, e por isso, cada idade
forma novas idéias, relativas a moral, a política, a Religião e também a economia
social, — ou que a evolução econômica tendo sempre para a concentração, de modo que,
assim como muitas coisas, que eram administradas pelos indivíduos, passaram depois
SEÇÃO I – CAPÍTULO III – DEVERES DO HOMEM PARA COM O PRÓXIMO 181
fonte de todo o progresso verdadeiro. Não é pela crítica das doutrinas econômicas,
por mais subtil que seja, nem por uma nova forma de associação, que hão de curar-se
os males da sociedade atual” (Le socialisme contemporain, p. 46). —
Mais tarde voltaremos ao assunto.
X. Crítica do socialismo moderado. — O socialismo moderado, ou agrário,
que ensina o desenvolvimento inteiro e exclusivo de todas as terras ao Estado, é falso.
Na verdade, lia três hipóteses possíveis para explicar o modo porque todas as terras
podem, ser possuídas e administradas por conta do Estado. Porquanto, o Estado — ou
administra e cultiva por oficiais seus todas as terras, — ou aluga a muitos colonos,
por um preço determinado, todas as terras, — ou deixa os atuais proprietários na
posse dos fundos, e só exige, a título de tributo, o rendimento dos mesmos fundos.
Ora, essas três hipóteses são praticamente impossíveis.
a) É impossível a primeira hipótese. Com efeito, a terra precisa de cultura
assídua e diligente, e essa cultura só pode ser feita por pessoas, que têm residência
atual nessas terras (pois só elas as podem conhecer) e que empregam todo o cuidado
e diligência para que o fruto seja abundante. Ora os operários ambulantes, de quem
o Estado teria de servir-se para a cultura das terras, devendo entregar todo o rendi-
mento e só contentar-se com o seu salário, não conheceriam a natureza das terras nem
teriam empenho em multiplicar o seu produto. — De resto, essa hipótese é rejeitada
pelos próprios defensores do socialismo moderado ou agrário.
b) É impossível a segunda hipótese. Porquanto, essa hipótese, além de acabar
com o estado dos agricultores, com as suas residências fixas, impede o progresso da
cultura. Com efeito, os colonos devem, muitas vezes, fazer grandes despesas e traba-
lhar durante largos anos, para que a terra dê finalmente um fruto abundante. Mas,
os colonos, estando sujeitos aos caprichos dos governos e das fações políticas, nunca
poderiam estar certos de que hão de ficar, durante longo tempo, na posse da terra
alugada, e por isso, nunca fariam grandes despesas nem se sujeitariam a gravosos
trabalhos. Daí a paralisação da agricultura.
c) É impossível a terceira hipótese, sustentada por George e sequazes. Na
verdade, estes socialistas dizem que não se deve tirar a posse das terras aos atuais
proprietários, mas que se devem impor graves tributos sobre as terras, de modo que
todo o rendimento delas seja devolvido ao Estado, com exceção da parte correspon-
dente ao capital e ao trabalho, e de alguma outra coisa necessária aos melhoramentos
dos fundos e a manutenção das casas, etc.
Esses tributos sobre as terras dispensam, na opinião de George, todos os outros
tributos e bastam para aliviar a miséria e para tornar feliz a sociedade. — Tal teoria
é impossível na realidade. Ordinariamente o produto líquido das terras não excede
3%. Os agricultores, embora sejam proprietários e empreguem todos os esforços,
apenas tiram do seu trabalho o necessário para a honesta sustentação da sua família.
E poderiam eles sustentar-se, se aumentassem os tributos sobre os fundos até não
haver precisão de novos tributos? Certamente que não. Daí o aumento da miséria
nas famílias e as desordens e revoluções na sociedade civil.
186 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
para esse fim e que não é prejudicial aos outros. Logo, o homem tem
direito à humanidade.
b) Direito a beneficência. — Direito a beneficência é o poder
moral que o homem tem de exigir, nas suas necessidades, o socorro
dos seus semelhantes. — Esse direito existe no homem. Porquanto, o
direito, que o necessitado tem a própria subsistência ou ao bem da sua
alma, excede o direito, que os outros tem a uma fortuna superabundante
ou às suas comodidades. Logo, o homem tem direito a beneficência.1
ARTIGO II
Deveres do homem para com o próximo
quantos são esses direitos. — Por isso, o homem tem o dever de respeitar
o direito que o homem tem, a liberdade religiosa, a dignidade pessoal, a
vida, a legítima defesa, a propriedade, a independência e a associação. — Esses
deveres, como se vê, fundam-se na virtude da justiça, que manda dar a
cadaum o que lhe pertence, e são negativos, porque obrigam a não fazer
coisa, que possa prejudicar o próximo.1
a) Dever de respeitar o direito à liberdade religiosa. — Esse
dever consiste em deixar ao próximo a liberdade de crer e praticar tudo
o que a verdadeira Religião ensina e em não fazer coisa que possa lesar
esse direito.2
b) Dever de respeitar o direito à dignidade pessoal. — Esse
dever consiste em reconhecer o homem como ente racional, dotado
de fim próprio, e não como simples meio para o fim dos outros, e em
não fazer coisa contraria a esse direito.3
c) Dever de respeitar o direito à vida. — Esse dever consiste
em não atentar contra a vida do próximo, nem contra a integridade do
seu organismo, nem contra a sua saúde.4
Deus fez ao indivíduo humano. Quem, pois, lesar esse direito, comete uma injustiça
contra Deus e contra o próximo. Comete uma injustiça contra Deus; porque invade
um domínio, que Deus reservou para si mesmo. Comete uma injustiça contra o
próximo; porque, sem razão, tira-lhe um hem que lhe pertence.
1 Esse dever obriga, como dissemos, a não fazer nada contra o direito de
legítima defesa. Seria, pois, injusta uma pessoa, que, vendo um inocente agredido por
um malfeitor, auxiliasse o agressor ou obstasse, de algum modo, a que o agredido se
pudesse defender do ataque.
2 O dever de respeitar o direito de propriedade consiste em não pôr obstáculos
ao exercício desse direito, e sobretudo em não apropriar a si uma coisa alheia contra
a justa proibição do dono. — Dizemos — contra a justa proibição do dono, porque, se
a proibição for injusta, a apropriação da coisa alheia não ofende o direito de proprie-
dade. Assim um pobre, que se encontra numa necessidade extrema, pôde apropriar
a si uma coisa alheia, que baste para prover a sua extrema necessidade. Porquanto,
o homem tem o direito de procurar os meios necessários para a sua sustentação; e o
direito, que o pobre tem a sua vida, é superior ao direito, que o proprietário tem aos
seus bens, e por isso, na colisão, deve prevalecer a este. Nesse caso uma proibição do
proprietário seria injusta. — Isto, porém, supõe que o proprietário não se encontre na
mesma necessidade, em que se encontra o pobre; porque, se o proprietário também
se encontrar nas mesmas circunstâncias do pobre, este não pôde apropriar a si a
coisa alheia, visto que, então, o direito que o proprietário tem a vida e a propriedade
é superior ao direito que o pobre tem a vida.
3 Esse dever proíbe, como dissemos, — os ataques contra os bens corpóreos
de próximo, e por isso, o homicídio, a mutilação, o duelo, etc., — os ataques contra
os bens internos da alma, intelectuais e morais, e por isso, é ilícito privar os outros do
192 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
uso da razão pela embriaguez ou pelo hipnotismo, inocular o erro nas inteligências,
sobretudo juvenis, dizer mentiras, depravar a vontade dos outros com os maus exem-
plos, com a sedução, etc., — os ataques contra os bens morais e externos, e por isso, é
ilícito o juízo temerário, a calúnia, a murmuração, a injúria, etc., — os ataques contra
os bens materiais e externos, e por isso, é proibido o roubo, a fraude (especialmente
nos contratos), a usura, a violação do domicilio, etc., — os ataques contra o legítimo
exercício da atividade humana, e por isso, é proibido impor-se, sem motivo justificado,
à vontade do próximo, obstando a que este disponha da sua liberdade na escolha da
profissão, do estado, etc.
1 Esse dever transgride-se, quando, injustamente, se impede a fundação das
associações, ou quando estas se dissolvem, depois de fundadas.
2 Os deveres morais do homem para com o próximo derivam do grande
preceito da caridade, imposto por Deus ao homem e contido na célebre fórmula:
ama o teu próximo como a ti mesmo. O advérbio — como — não significa igualdade, mas
semelhança; pois Dão somos obrigados a ter ao próximo um amor igual ao que temos
a nós mesmos (o que seria contra a ordem natural), mas devemos ter-lhe um amor
semelhante ao amor, com que amamos a nós mesmos, enquanto devemos amar a nós
mesmos e ao próximo em Deus e por Deus, desejando a todos a consecução do fim
último, que é um e o mesmo para todos os homens, e consiste na posse do Bem infinito.
A razão ou o fundamento do amor do próximo é a participação da mesma
natureza racional, pela qual todos somos filhos de Deus e herdeiros da mesma glória;
porque a semelhança é causa de amor.
O amor, que devemos ter ao nosso próximo, deve ser de benevolência, de
modo que desejemos e procuremos o bem o a felicidade dele e não a nossa satisfação
e o nosso proveito. — O amor de benevolência, quando é recíproco, chama-se amizade;
que tende sempre para a igualdade e comunicação de bens. Daí a máxima: amicitia
pares aut invenit aut facit.
SEÇÃO I – CAPÍTULO III – DEVERES DO HOMEM PARA COM O PRÓXIMO 193
O amor do próximo devo ser ordenado. Por isso, os que nos são mais unidos
pelo parentesco ou por outro laço devem ser preferidos aos outros. — Mas ninguém
pode ser excluído do nosso coração, nem o nosso maior inimigo; pois também este
convém conosco na participação da mesma natureza racional, que é, como dissemos,
a causa e o fundamento do amor para com o próximo. — O preceito de amar os
próprios inimigos c o claro distintivo do Cristianismo. pois era quase inteiramente
desconhecido dos pagãos. Sócrates dizia: “É merecedor dos maiores elogios quem
previne os inimigos nas ofensas e os amigos nos benefícios”. No mesmo sentido
falam Sêneca e Cícero. Veio N. S. Jesus Cristo, e, purificando de todo o egoísmo o
principal sentimento da nossa alma e elevando o homem aos mais sublimes ideais,
deu ao mundo o grande preceito: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos
odeiam — Diligite inimicos vestros, benefacite his qui oderunt vos” (Matth., V, 44).
Se o nosso amor deve estender-se aos inimigos, muito mais deve abranger a
nossa pátria. O amor da pátria deve ser sincero, desinteressado, ordenado, ativo; e, para ter
esses atributos, deve fundar-se na honestidade ou na virtude. Silvio Pellico diz: “Se alguém
violar os altares, a santidade conjugal, a decência, a probidade, e depois bradar: pátria,
pátria! Não acrediteis nele. É um hipócrita do patriotismo. É um péssimo cidadão”.
Donde se vê — que o amor de Deus envolve necessariamente o amor do
próximo; pois quem ama o original, não pede deixar de amar o retrato, — e que o
verdadeiro amor do próximo supõe necessariamente o amor de Deus; pois quem ama
o próximo por Deus e para Deus, não pode deixar de amar o próprio Deus.
1 Os deveres da humanidade resumem-se naquele princípio da jurisprudência
romana: “Estás obrigado a fazer o que não prejudica a ti e é útil a outrem — Quod
tibi non nocet et alteri prodest, ad id obligatus es”. — Cícero aplicou a estes deveres os
seguintes versos de Ênio:
livrando-os dos perigos de perdição e de morte eterna. — Esses deveres foram com-
pendiados nos versos seguintes:
Como é fácil ver, as obras de misericórdia são deveres morais, impostos pela lei
natural. Nada mais belo o consolador do que praticar essas obras por amor de Deus,
reconhecendo e agasalhando na criatura o próprio Criador! Esse é o grande princí-
pio, que leva tantas almas generosas a encontrar, em benefício do próximo, os mais
heroicos sacrifícios e a própria morte! A Verdade incriada disse: “Bem-aventurados os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia!”.
Seção Segunda: Direito Social
INTRODUÇÃO
deduziram que entre eles há igualdade, e que por isso, assim como o corpo orgânico
está sujeito às leis biológicas, que são fatais e necessárias, assim também a sociedade
está sujeita a leis fatais e necessárias. Basta o simples senso comum para mostrar —
que organismo moral não é igual ao organismo físico ou natural, — e que por isso, a
sociedade, sendo um organismo moral, composto de seres racionais e livres, deve ser
regulado por leis diversas das que regulam o organismo físico, composto de células
materiais, destituídas de razão e de livre arbítrio. — Essa teoria dos positivistas é uma
cópia ou reprodução da teoria de Heckel, que citamos na Cosmologia.
b) A união ou conspiração dos membros para o mesmo fim é, como dissemos,
a forma da sociedade; porque é ela que determina a pluralidade das pessoas ao estado
e a natureza da sociedade. Concebida esta união entre as pessoas, concebe-se a socie-
dade. — A união, porém, supõe um princípio, de que deriva e porque é constituída;
pois o efeito deve ter uma causa proporcionada. Esse princípio e dúplice: o fim
comum e a autoridade. O fim é princípio da união; porque é o conhecimento do fim
e o desejo da sua consecução que leva os homens a unir as suas forças — intelectuais,
morais e físicas. O fim comum é princípio ideal e objetivo da união social. Mas, se con-
siderarmos a sociedade, não numa ordem ideal e abstrata, mas sim na ordem real e
concreta, em que os homens são dotados de livre arbítrio, e divergem nos juízos e nas
forças, veremos que o fim não é por si suficiente para formar e conservar essa união
constante e ordenada entre os membros. E, pois, necessário outro princípio real e
subjetivo, que vivifique todos os membros da sociedade, como o princípio vital vivi-
fica todo o organismo natural, e que, por um modo constante e eficaz, una e dirija a
livre vontade dos membros para a consecução do fim comum. Esse outro princípio
é a autoridade. Por isso, estabelecemos a seguinte
Proposição. — A autoridade é essencialmente necessária na sociedade.
a) A autoridade será essencialmente necessária, se, sem ela, não for possível
a união moral e constante dos membros; pois esta união, por ser a forma da sociedade,
é essencialmente necessária. Ora, sem autoridade, não é possível a união moral e
constante entre os membros da sociedade. Porquanto, os homens, divergindo entre
si nos juízos ou apreciações acerca dos meios proporcionados para a consecução do fim,
e, sendo dotados de livre arbítrio, que os leva a fazer o que lhes agrada e não o que
é necessário para o bem de todos, nunca poderão formar nem conservar constan-
temente a união de inteligências, de vontades e de forças, se não estiverem sujeitos
a um princípio eficaz de obrigação, que é a autoridade. — E, embora os homens
pudessem estar unidos moral e constantemente pelo desejo e amor do fim comum,
nem por isso, era menos necessária a autoridade. Com efeito, a cooperação social
é multiplico e varia nas suas funções. E, pois, necessário distribuir essas funções,
conforme a qualidade dos membros; pois nem todos são capazes de fazer tudo. Ora,
essa distribuição, não estando por si determinada, deve ser determinada por um
princípio eficaz, que possa obrigar os membros. Este princípio é a autoridade. Logo,
a autoridade é essencialmente necessária na sociedade.
b) A sociedade tem analogia com o corpo orgânico. Ora, em todo o orga-
nismo, os muitos e diversos membros, as muitas e diversas faculdades precisam de
198 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
ser informadas por um princípio intrínseco e vital, que as conserve unidas entre
si e as dirija para o fim de todo o organismo. Logo, também o corpo social deve
ter um princípio intrínseco e eficaz, que conserve unidos os muitos e diversos
membros e dirija as suas atividades para um fim comum. Este princípio intrínseco
e eficaz é a autoridade.
c) A experiência atesta que nunca tem existido sociedade sem autoridade. Ora,
esse fato, tão universal e constante, mostra que a autoridade é essencialmente necessá-
ria a sociedade; aliás, alguma vez, teria existido uma sociedade sem autoridade. — A força
do argumento aumenta, se considerarmos que a autoridade não se conforma muito
com a inclinação que o homem tem de executar sempre as tendências da sua vontade.
Da doutrina exposta resultam os seguintes corolários:
I. Na ordem real, basta a autoridade para constituir a sociedade e para a tornar
pessoa moral. Sem autoridade, a sociedade não é pessoa moral, porque não tem em si o
princípio da sua essência, unidade e atividade.
II. Embora, na ordem metafísica, a forma da sociedade seja constituída pela
união moral e constante das pessoas em ordem ao fim comum; contudo, na ordem
real, a forma da sociedade ó a própria autoridade, porque é esta o princípio concreto,
que constitui essa união; ora, o elemento, de que deriva a unidade de entidade e de
atividade, é e chama-se forma.
III. A autoridade pode considerar-se em si e na sua existência concreta.
Considerada em si, ó o direito de obrigar os membros da sociedade para cooperarem
para o fim comum, não pertence a nenhum membro, mas é própria de todo o corpo
social (pois representa o seu princípio vital), e por isso, é por si indiferente para
existir neste ou naquele membro. Considerada na sua existência concreta, é o direito
particular, porque reside numa pessoa determinada. Em virtude desse direito particular,
a autoridade, que considerada em si ou no seu fim pertencia a toda a sociedade, tor-
na-se própria de uma pessoa particular, física ou moral.
c) Façamos algumas observações acerca do fim da sociedade.
a) O fim comum é o objeto formal da sociedade; porque é por ele que existe, e
é para ele que tende a união moral e constante das pessoas.
b) O fim especifica a sociedade. Porquanto, o fim, embora não pertença a
essência da sociedade, contudo especifica a união moral e constante das pessoas; porque
o fim é o termo desta união, e toda a tendência é especificada pelo termo. Se o fim
especifica a união, deve também especificar a própria sociedade; visto que essa união
é a forma da sociedade, e o composto é determinado na sua espécie pela forma. — Por
isso, uma sociedade diferirá especificamente de outra, se o fim de ambas for especifi-
camente diverso.
c) O fim é a razão e a regra de todos os direitos e deveres na sociedade. É a
razão; pois quem tem direito ao fim, tem também direito aos meios necessários. Ora,
os deveres e os direitos são meios para a consecução do fim. — É a regra; porque os
meios devem ser proporcionados ao fim. Por isso, o fim limita também o exercício da
própria autoridade.
SEÇÃO II – INTRODUÇÃO 199
*
Do exposto vê-se que a razão da sociabilidade do homem se encontra na
sua perfectibilidade. O animal nasce perfeito, e por isso, o seu estado é o selvagem;
o homem nasce perfectível, e por isso, o seu estado é o social. — Afastando-se desta
grande verdade, baseada na própria experiência, alguns escritores sustentam que
o estado primitivo e natural do homem foi o selvagem e que, só em virtude de uma
convenção ou contrato, se uniram em sociedade. Esse erro foi defendido sobretudo por
Hobbes e Rousseau, seguidos depois por Spencer e por todos os discípulos de Darwin,
que fazem descender o homem de um antropoide. — Façamos uma breve exposição
e crítica dos sistemas de Hobbes e do Rousseau, que são a base da revolução social e
política dos nossos dias.
a) Hobbes (1588-1679) expõe as suas idéias acerca da origem da sociedade nos
três livros: De cive — De corpore politico — Leviatã. Eis o resumo: o homem, no seu
estado natural e originário, tinha duas tendências: o egoísmo ou desejo ilimitado de
adquirir e de gozar, — e a solicitude de afastar a morte e de conservar a vida. Do
egoísmo resultava a guerra de todos contra todos; pois a natureza tinha dado a todos
o direito sobre todas as coisas. Da solicitude de conservar a vida derivava o desejo de
sair desse estado e de procurar companheiros. Por isso, a sociedade, na sua origem, foi
uma convenção de paz mútua; não foi o resultado da benevolência, mas sim do medo e
da necessidade. Constituída a sociedade, todas as vontades devem formar uma só von-
tade, quer seja a de um indivíduo, quer seja a de um conselho; e esta vontade publica
deve ter sobre a vontade de cada um o mesmo poder, que todo o indivíduo tinha sobre
si mesmo, antes da formação da sociedade. Esse poder deve ser sumo e absoluto, e a ele
deve estar subordinada a própria consciência moral dos cidadãos.
O sistema de Hobbes é falso pelas seguintes razões: — 1ª) Baseia-se no mate-
rialismo, supondo que o homem é apenas um animal aperfeiçoado, destituído de
alma espiritual. Ora, essas asserções são falsas e absurdas. — 2ª) Supõe que o estado
primitivo do homem foi antissocial e selvagem, e que deste estado passou para o de
civilização. Ora, essa suposição, como vimos na Antropologia, é falsa; porque, se o
estado primitivo do homem tivesse sido o selvagem, ele nunca teria chegado ao
estado de civilização. O próprio Rénan o confessa nas seguintes palavras: “Não há
um único exemplo de povo selvagem, que se tenha, só por si, elevado a civilização.
É necessário, portanto, supor que as raças civilizadas não atravessaram o estado
selvagem, mas tiveram em si mesmas, desde o princípio, o gérmen dos progressos
futuros” (História comparada das línguas semíticas, p. 268). — 3ª) É falso que o estado
primitivo e natural da humanidade foi a guerra de todos contra todos — bellum
omnium contra omnes; não só porque o estado de guerra é violento, e tudo o que é
SEÇÃO II – CAPÍTULO I – DEVERES E DIREITOS DOMÉSTICOS 205
violento não dura e por isso, não é natural, — mas também porque a guerra é apenas
um meio para alcançar a paz, a qual é o estado natural do homem. — Nem se diga que
há lutas e guerras entre todos os povos, e que por consequência a guerra é o estado
natural do homem. Porquanto, a guerra não deriva da natureza (pois esta inclina ao
amor mútuo), mas sim da corrupção da natureza. — 4ª) É falso que o poder público da
sociedade é tão absoluto, que a ele deva estar subordinada a própria consciência moral.
Porquanto, acima da autoridade pública está a autoridade divina, de que a outra tira a
sua origem e a sua força, e por isso, a autoridade pública não pode preceituar a nossa
consciência moral uma coisa contraria a lei divina.
b) Rousseau (1712-1778), nos seus livros — Discours sur l’origine et lesfon-
dements de l’inégalité parmi les homes — Du contrat social ou principe du droit politique
— expõe a seguinte teoria: o primeiro estado do homem foi o selvagem, dirigido
unicamente pelo instinto. As suas funções eram meramente animais, e os seus dese-
jos não excediam as suas necessidades físicas. O homem, nesse estado, era feliz;
não experimentava nenhum dos males, que o afligem agora na sociedade. — A esse
primeiro período, de duração incerta, seguiu-se um outro, em que o homem come-
çou a desenvolver as suas faculdades (pois, segundo Rousseau, o homem embora
não difira do animal em relação à inteligência, difere em relação à liberdade e per-
fectibilidade). Desenvolvendo-se gradualmente a razão com as outras faculdades,
começou a comunicação entre os homens, inventou-se a palavra e fundou-se a
família. Cada família tornou-se uma pequena sociedade, cujos laços eram unica-
mente a afeição recíproca e a liberdade, e que, se devia o seu princípio a natureza
(pois a família é a única sociedade natural), devia a sua conservação a um contrato.
Esse período, em que começou a existir a sociedade e a aparecer a moralidade,
devia ser a mais feliz época do mundo; porque o homem conservava um meio
termo entre a indolência do estado primitivo e a petulante atividade do amor pró-
prio. — No terceiro período, os homens, mais desenvolvidos, inventaram as artes
mecânicas e adquiriram a propriedade. Mas, começando a manifestar-se desigual-
dade nos talentos e nos caracteres, começou a acentuar-se a desigualdade entre
os homens, que no princípio eram iguais. Desta desigualdade nasceram todos os
vícios, todas as paixões, todas as desordens, as prepotências, as guerras. Para reme-
diar a estas desordens, acabar com o estado de guerra, e obter a paz e a segurança,
determinaram os homens formar uma sociedade, que defendesse e protegesse, com
toda a força comum, a pessoa e os bens de cada um, e em que todo o indivíduo se
unisse por tal modo com os seus semelhantes, que só obedecesse a si próprio e
ficasse livre, como no estado primitivo. Esse escopo alcançava-se, enquanto cada
um punha em comum a sua pessoa e o seu poder; e assim todos mandavam em cada
um, e o indivíduo recebia o equivalente de tudo o que perdia, e, além disso, alcan-
çava maior força para conservar tudo o que tinha. — O contrato social, pois, consis-
tiu em que todo o indivíduo colocou a sua pessoa e o seu poder debaixo da suprema
direção da vontade geral. Esse ato de associação produziu imediatamente um corpo
moral e coletivo, que é composto de tantos membros quantos são os contraentes,
e que recebe deste mesmo ato a unidade, a personalidade, a vida e a vontade. A
vontade geral é a soberania. — Assim, a força foi substituída a justiça, ao impulso
206 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
CAPÍTULO PRIMEIRO
Deveres e direitos domésticos
ARTIGO I
Deveres e direitos na sociedade conjugal
ARTIGO II
Deveres e direitos na sociedade parental
pelas pessoas dos pais e dos filhos. A forma é a união entre essas pessoas.
— A união é produzida pela autoridade, que reside no pai, e, na falta
deste, na mãe.1
162. Fim da sociedade parental. — O fim da sociedade parental
d, como dissemos, a educação dos filhos.2
163. A sociedade parental é necessária. — Uma sociedade é
necessária, quando é determinada imediatamente pela natureza. Ora,
a sociedade parental foi determinada imediatamente pela natureza.
Porquanto, a natureza, excitando no coração dos pais sentimentos de
afeto e de desvelo para com os seus filhos, que, quando nascem, precisam
de tudo e não podem procurar-se coisa alguma, une a indigência destes
são necessárias para o exato cumprimento dos seus deveres para com
Deus, para com sigo e para com os outros homens, inferiores, iguais
ou superiores. — Em relação à educação moral, os pais devem, com os
exemplos e com os conselhos, inspirar no coração dos filhos o amor
de Deus e do próximo, a inclinação para a virtude e a fuga do vício,
empregando também os meios da correção e do castigo.1
b) Direito dos pais para com os filhos. — Os direitos dos pais são
perpétuos e temporários. — Os perpétuos resumem-se no direito, que os pais
têm ao amor, à gratidão, à reverencia e (se precisarem) ao auxílio dos
filhos. Esses direitos são perpétuos, porque duram sempre. Os temporários
consistem no direito, que os pais têm de dar aos seus filhos a educação
física, intelectual e moral. Por isso, os pais podem dirigir e obrigar os
filhos, — julgar dos seus atos, — levá-los à submissão pelo emprego de
penas proporcionadas. Esses direitos são temporários, porque acabam
quando os filhos atingem a maioridade e abandonam a casa paterna.2
1 É claro que os principais deveres dos pais se reterem a educação intelectual
e moral dos filhos. Para isso é indispensável o elemento religioso; pois, como diz
Cláudio Janet, “o ideal da vida da família, que corresponde a verdadeira natureza
humana, e cuja noção a reta razão conservou, apesar dos impulsos para o mal, devi-
dos ao pecado original, foi fixado plenamente pelo Evangelho o pelos ensinos da
Igreja. A graça de Jesus Cristo deu a fraqueza humana o modo de praticar esta dou-
trina”. M. Davas demonstra esta verdade no artigo — La constitution de la famille, etc.,
publicado na revista — La Reforme sociale, 15 de julho de 1886.
Rousseau ensina, no seu Emilio, que aos filhos não se deve falar em Deus, na
Religião, na alma, enquanto não tiveram atingido, pelo menos, a idade de dezoito
anos. — Esta doutrina é ímpia e inepta. — É ímpia. Porquanto, o homem, desde o uso
da razão, tem a obrigação de cumprir os deveres, a que está sujeito, principalmente
os religiosos. — É inepta. Porquanto, o próprio Rousseau diz que os jovens devem
esforçar-se por adquirir as virtudes necessárias. Mas esse esforço não é possível,
sem o conhecimento da existência de Deus, da nobreza da alma, da importância
da salvação eterna, — conhecimento, que é indispensável para a repressão e mor-
tificação das paixões desordenadas, que agitam o coração do jovem, sobretudo na
perigosa idade de doze anos, como o próprio Rousseau confessa.
2 A soma dos direitos, que os pais têm para com os filhos, constituo o pátrio
poder, que por isso, é o conjunto dos direitos, que existem no pai, e, na falta deste, na mãe,
sobre as pessoas e os bens de seus filhos. — O pátrio poder tem os seus limites, prove-
nientes da própria natureza da sociedade parental e dos seus fins, que são a educação
física, intelectual e moral dos filhos. Por isso, os pais não podem fazer coisa alguma
contraria ao bem moral dos filhos, ou a sua saúde e integridade; e os filhos devem
ser protegidos pela autoridade pública contra os abusos do pátrio poder. — Aqui
216 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
ARTIGO III
Deveres e direitos na sociedade heril
devemos notar que a abolição do poder, que os pais, na Roma pagã, tinham sobre a
vida e a morte dos filhos, é devida exclusivamente ao Cristianismo. (Troplong, De
l’influence du Christianisme sur le droit civil des Romains).
1 Se os filhos, depois de atingir a maioridade, continuarem a viver na casa
paterna, são obrigados a estar sujeitos a autoridade do pai, e esta sujeição é exigida pela
ordem doméstica; pois não há ordem sem a devida sujeição a autoridade constituída.
2 Os filhos não podem empregar a força física para levar os pais ao cumpri-
mento dos deveres, que estes têm para com eles, mas, nas coisas de maior importân-
cia, podem recorrer à autoridade pública.
3 A sociedade heril funda-se na diversidade das condições, em que os
homens se encontram. De uma parte, a família precisa ordinariamente de quem
SEÇÃO II – CAPÍTULO I – DEVERES E DIREITOS DOMÉSTICOS 217
*
SEÇÃO II – CAPÍTULO I – DEVERES E DIREITOS DOMÉSTICOS 219
1 O que temos exposto acerca das relações entre o amo e o criado deve aplicar-
-se às relações entre o patrão e o operário. — Esse argumento é muito discutido, sobre-
tudo em nossos dias, e devemos tratá-lo com algum desenvolvimento. Falaremos,
pois, no contrato do trabalho, no salário, nos sindicatos profissionais, na greve.
a) Contrato do trabalho. — É o contrato, pelo qual o operário se obriga a
prestar a sua obra por um determinado salário. Esse contrato tem uma índole especial,
enquanto a obra humana não deve considerar-se como uma mercadoria qualquer,
mas como uma coisa que participa da dignidade humana, e por isso, deve ser regu-
lado por leis especiais. — Daí os deveres dos operários e dos patrões.
a) Deveres dos operários. — Os operários devem — 1º) prestar por inteiro e
com fidelidade o que foi livremente ajustado, isto é, fazer a obra determinada no
tempo marcado e com a diligencia, que é exigida pelo pacto, ou pela lei, ou pelo
uso; — 2º) abster-se de causar dano ao patrão, ou servindo-se das coisas sem par-
cimônia, ou destruindo as máquinas, ou produzindo mercadorias avariadas; — 3º)
não ofender a pessoa do patrão, com recriminações, ameaças; — 4º) não abandonar
o trabalho antes do tempo determinado, a não ser que haja uma causa grave.
b) Deveres dos patrões. — Uns derivam da justiça, outros da caridade. — O
patrão deve por justiça — lº) dar ao operário o justo salario no tempo determi-
nado; — 2º) respeitar no operário a dignidade da pessoa humana, enobrecida pelo
caráter de cristão; e por isso, é obrigado — a dar ao operário o tempo necessário
para ele satisfazer aos seus deveres religiosos, — a afastar dele todas as ocasiões
próximas do pecado, — a não desviá-lo do cumprimento dos deveres domésticos;
— 3º) não impor um trabalho superior às forças, ou incompatível com a idade ou
com o sexo do operário; — 4º) remover todos os perigos para a vida e a saúde do
operário, e compensar os danos, que possam casualmente derivar do trabalho. — O
patrão deve por caridade — lº) acolher com benevolência e ouvir de bom grado os
operários ou os delegados deles; — 2.) favorecer as várias instituições, que têm por
fim melhorar a condição dos operários, como são as escolas para as crianças, as
associações cooperativas, etc., sem, contudo, faltar a delicadeza para com a liber-
dade e dignidade dos operários.
b) Salário. — Dissemos que um dos deveres de justiça, para o patrão, é dar
ao operário o justo salário. Salário é a retribuição do serviço, que qualquer indivíduo
presta a outro, dia por dia, ou hora por hora. Mas quando é que o salário é justo?
a) Diversas respostas a pergunta. — A escola liberal ensina que o salário justo é
o que o patrão oferece e o operário aceita. Mas a resposta não é aceitável; porque o
operário pode ser constrangido pela miséria, ou pela concorrência, a aceitar um salá-
rio inferior ao trabalho e insuficiente para a honesta sustentação da vida. — A escola
socialista pretende que ao operário é devido, e por justiça, o fruto inteiro do seu tra-
balho, deduzidas somente as despesas que se fazem com a compra dos gêneros, ou da
220 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
matéria bruta, dos instrumentos, e com os que presidem ao trabalho dos operários
(o trabalho intelectual não vale mais que o trabalho manual). Também essa opinião
é inaceitável, como vimos na refutação do socialismo, — porque está baseada num
suposto falso (a propriedade é um roubo), — é injusta para com os patrões, que empre-
gam e comprometem o seu capital, — e é prejudicial ao próprio operário, que não
poderá encontrar trabalho, se os patrões não tiverem dinheiro para construir ofici-
nas, comprar máquinas e outros instrumentos necessários, e tentar novas empresas.
— A doutrina católica, exposta na Encíclica Rerum novarum do S. Padre Leão XIII,
16 Maio 1891, resume-se nas seguintes proposições: — a) em todo e qualquer caso,
o patrão deve, por justiça, dar ao operário o salário, que corresponde, no juízo de
homens prudentes, ao valor econômico do trabalho feito; — b) no estado normal da
indústria e do comercio, o patrão deve, por justiça, dar o salário, que é necessário e
suficiente para a honesta sustentação do operário, contanto que esse trabalho com a
devida solércia e atividade; — c) o salário ajustado com o operário capaz deve ser tal,
que, unido com o salário ganho pela mulher e filhos por um trabalho proporcionado
às suas forças, chegue para a honesta sustentação da família inteira; e isto por justiça
na opinião de alguns escritores, e só por caridade na opinião de outros.
b) Remédios contra a insuficiência do salário. — Para aumentar o salário, insu-
ficiente para a honesta sustentação do operário e da sua família, foram excogitados
vários meios, que, se não se baseiam na justiça, baseiam-se na caridade. Os principais
são — a) os prêmios concedidos aos operários, que trabalham mais ou melhor; — b)
a participação dos lucros, sobretudo quando esses lucros excedem as esperanças e os
cálculos do patrão; — c) os subsídios concedidos aos operários, enquanto o patrão
destina uma parte dos lucros para favorecer os institutos, fundados em benefício
dos operários, ou para garantir a vida e a sustentação dos mesmos operários contra
os casos fortuitos; — d) a moderada intervenção dos poderes públicos, não enquanto
devam fixar o salário, mas enquanto devem dar bom exemplo, assignando aos ope-
rários, que trabalham nas obras do Governo, das Províncias, dos Municípios, um
salário suficiente para uma honesta sustentação dos mesmos operários e das suas
famílias; — e) as associações dos operários, chamadas sindicatos profissionais, porque
um operário, unido com outros, pode mais facilmente alcançar o que só por si não
podo. — Mas deste último meio digamos mais alguma coisa.
c) Sindicatos profissionais. — Estes sindicatos são uteis e até necessários
para os operários, que, se ficassem entregues a si mesmos, seriam facilmente víti-
mas de uma concorrência desenfreada, nem poderiam fazer valer os seus direitos,
menosprezados, muitas vezes, por patrões prepotentes. — Mas estes sindicatos
devem ser — mistos (compostos de operários e patrões), — ou separados (consti-
tuídos só por operários, ou só por patrões)? Há divergência na resposta. Alguns
querem os sindicatos mistos, porque lº) promovem não só a mútua confiança e
concórdia entre patrões e operários, mas também a prosperidade industrial e por
isso, o melhoramento econômico de ambas as classes, e porque 2º) assim afastam
eficazmente o perigo do socialismo. Outros, embora reconheçam estas vantagens,
que derivam dos sindicatos mistos, contudo inclinam-se para os separados, — porque
SEÇÃO II – CAPÍTULO I – DEVERES E DIREITOS DOMÉSTICOS 221
CAPÍTULO SEGUNDO
Deveres e direitos civis
ARTIGO I
Sociedade civil, suas propriedades e elementos
não se poderão regular com exatidão os atos dos seus membros, nem conhecer os
deveres e os direitos que pertencem à autoridade civil, nem julgar da natureza e
excelência da própria sociedade.
O fim da sociedade civil é, como dissemos, o bem comum e externo, coordenado
com o bem interno e subordinado ao fim último. Desenvolvamos mais essa teoria. — O
fim da sociedade civil — é um bem comum a todos os membros, porque se alcança
com os esforços comuns e porque pertence a todos; — é um bem externo, porque os
sócios empregam meios externos, e com meios externos só pôde conseguir-se um fim
ou bem externo; — coordenado com o bem interno, porque a sociedade não é um fim
para o homem, mas é um meio para ele conseguir, com maior segurança e facilidade,
o bem interno, que constituo o fim da vida presente e que é a virtude: ora, se o fim da
sociedade civil não fosse coordenado com o bem interno, a própria sociedade não seria
útil ao homem, mas muito prejudicial, e o bem temporal, que fosse contrário ao bem
interno, não seria um verdadeiro bem, mas um verdadeiro mal; — subordinado ao fim
último, que é a felicidade eterna, porque, se o fim da sociedade fosse contrário ao fim
último, a mesma sociedade seria prejudicial ao homem. o bem comum e externo é o
fim próximo e direto da sociedade civil; — o bem interno dos sócios é o fim próximo e
indireto; — o fim último, que é a felicidade eterna, é o fim remoto.
Desta teoria resulta que a sociedade civil, — para alcançar o seu fim pró-
ximo e direto, deve tutelar os direitos dos cidadãos, conservar a ordem pública e a
paz entre as famílias, obrigar os homens ao cumprimento dos seus deveres sociais,
promover as ciências, as artes, a indústria, o comércio, etc.; — para alcançar o seu
fim próximo e indireto, que é o bem interno dos sócios, deve proteger e recompensar
a virtude, impedir e castigar os vícios e os escândalos, não deve praticar nenhuma
ação nem promulgar nenhuma lei, que sejam contrarias a Religião e a moralidade,
mas deve fazer tudo o que, nos limites da sua esfera, concorre para a felicidade eterna
dos homens. — A sociedade civil, procurando o bem interno dos homens, procura
implicitamente a felicidade eterna, para a qual foram criados.
Examinemos duas objeções contra a teoria exposta.
Dizem: se o fim da sociedade civil é o bem externo, mas coordenado com o
bem interno, essa sociedade influirá na ordem moral; o que é absurdo.
Resposta. A sociedade civil influi na ordem moral não diretamente, mas indi-
retamente. Não influi diretamente; porque a ordem moral, derivando de Deus, está
diretamente sujeita a autoridade, que para isso foi instituída pelo próprio Deus e que
é a religiosa. Mas influi indiretamente; porque a sociedade civil, devendo procurar o
bem externo, que se harmonize com o bem interno dos homens, indiretamente pro-
cura e facilita o bem interno.
Replicam. A sociedade civil, se procurasse, embora, indiretamente, o bem
interno dos homens, poderia preceituar atos internos; o que é absurdo.
Resposta. A sociedade civil pode preceituar atos internos, quando estes estão
necessariamente ligados com os externos, que a mesma sociedade preceitua; mas não
pode preceituar atos internos, quando estes não estão ligados com os externos, ou
224 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
quando os atos externos não dependem da mesma sociedade civil. Assim a sociedade
civil, tendo o direito de exigir dos soldados o juramento de fidelidade, tem o direito
de exigir que o mesmo juramento tenha as condições internas, que o constituem.
*
Muitos filósofos e juristas modernos discordam da nossa doutrina, e estabe-
lecem outros fins à sociedade civil. Limitamo-nos a citar as opiniões de Kant, Krause,
Spencer e Hegel.
a) Kant diz que, sendo a liberdade externa ilimitada e comum a todos os
homens, e tendo ela por seu fim o mesmo objeto, deve nascer entre os homens um
mútuo conflito, que a razão não pode aprovar. Daí o preceito racional: a liberdade
de cada um deve limitar-se de modo, que possa coexistir com a liberdade dos outros. Esse
preceito chama-se princípio da coexistência, e dele emanam todos os outros preceitos
jurídicos. O Estado, ou a sociedade civil, é um postulado deste princípio de coexistência;
porque, não estando os homens naturalmente dispostos a obedecer àquele princí-
pio, foi necessário formar a sociedade civil, para que pudesse obrigar, com a sua
autoridade, os cidadãos e defender a mútua coexistência. Por isso, a sociedade civil
não tem outro fim, senão uma igual limitação da liberdade de cada um. — Kant é
seguido por quase todos os modernos racionalistas.
O sistema de Kant é falso não só pelas razões, que aduzimos contra a sua
teoria da origem do direito, mas também pelas seguintes:
a) É falso que a liberdade externa é ilimitada. Porquanto, se a liberdade
ideal e abstrata se concebe sem limites, a liberdade real e concreta tem sempre limi-
tes, que derivam do seu objeto, dos deveres do mesmo agente, e dos direitos dos
outros homens.
b) Se o fim da autoridade civil consistisse unicamente em obstar a que uma
pessoa ofenda a liberdade dos outros, esse fim seria mais negativo do que positivo; e
assim a sociedade não teria um fim comum para alcançar, nem poderia haver união
de inteligências e de vontades entre os cidadãos, nem haveria um freio para a auto-
ridade, nem haveria sociedade.
c) Se todos os preceitos jurídicos derivassem do princípio da coexistência, a
autoridade civil não poderia proibir nenhum dos atos, que são favoráveis à liberdade
de uns, sem serem contrários à liberdade dos outros. Assim, seria lícito o suicídio, a
blasfêmia, a irreligião, o sacrilégio, o escândalo, e toda e qualquer ação ímpia e deso-
nesta, com tanto que não ofendesse a liberdade dos outros ou se fizesse com o con-
sentimento dos interessados. Ora, essas consequências são simplesmente imorais.
b) Krause, seguido por Ahrens, desenvolveu a teoria de Kant, mas em harmo-
nia com o seu sistema panteísta. Disse que o fim do Estado consiste em proteger o
direito dos cidadãos, tomando o direito — não em sentido negativo, enquanto signi-
fica o que não se opõe à liberdade dos outros, — mas em sentido positivo, enquanto
significa as condições necessárias para a consecução do fim, que foi assignado ao homem
pela natureza racional, e que consiste no desenvolvimento das faculdades huma-
nas, sem relação ao último fim o sem subordinação às regras da moralidade. Esse
SEÇÃO II – CAPÍTULO II – DEVERES E DIREITOS CIVIS 225
deve ser independente, na sua esfera, de qualquer outra sociedade. Ora, a sociedade
civil, na esfera do seu fim próximo e direto, que é o bem comum o externo dos seus
membros, é independente da Igreja, e por isso, é perfeita. — É verdade que, muitas
vezes, o Estado deve estar subordinado a Igreja, e isto dá-se, quando os interesses
do Estado vêm a contacto com os da Igreja; mas tal subordinação é apenas indi-
reta, e não tira ao Estado a qualidade de sociedade perfeita, Esse ponto, que é muito
importante e muito discutido, será tratado de modo mais desenvolvido no capítulo
III desta seção.
1 Os filósofos e juristas discutem se a sociedade é um composto orgânico,
ou se é um composto mecânico. — O composto orgânico difere do mecânico; porque
este resulta de partes homogêneas, dispostas artificiosamente para a execução do
movimento, a que são determinadas por uma força extrínseca, — e aquele resulta
de partes heterogêneas, dotadas de especial estrutura e de força intrínseca, pela qual
operam para a consecução do seu fim particular, embora em harmonia com o fim
comum. Posto isto, dizemos que a sociedade imita o composto orgânico, e não o
mecânico. — Não imita o composto mecânico. Porquanto, como demonstraremos
contra Rousseau, a sociedade não resulta apenas de indivíduos, que renunciaram a
todos os seus direitos para os devolver ao corpo social. Mas imita o composto orgâ-
nico. Na verdade, a sociedade civil é composta de pessoas e de sociedades menores,
que são as famílias e as diversas associações com os seus fins especiais. Ora, as pes-
soas têm muitos direitos inalienáveis, e as associações e as famílias, embora estejam
sujeitas ao supremo podei do Estado, possuem um fim intrínseco, leis intrínsecas, e
direitos intrínsecos, de que não podem ser despojadas, sem grande injustiça.
O que deixamos dito serve de critério para podermos julgar do centralismo,
apregoado pelos socialistas e liberais, para o qual as sociedades inferiores, privadas de
todo o movimento espontâneo, não passam de meras máquinas, destinadas a execu-
tar o movimento, que uma força extrínseca lhes imprime. Esse sistema enfraquece
as forças dos membros e por isso, a própria sociedade, cuja vida é a vida de cada uma
das partes, subordinadas a uma força suprema, que lhe dê unidade e direção.
228 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
de uns não são iguais às funções e aos direitos dos outros. Logo, a
sociedade civil é desigual.1
175. Elementos da sociedade civil. — Os elementos, que, na
ordem real, compõem a sociedade civil, são dois: um material, e outro
formal. — O elemento material é constituído imediatamente pelas famílias,
e mediatamente pelos indivíduos. O elemento formal, de que deriva a união
entre as famílias, é a autoridade. — Sendo, pois, a autoridade a alma da
sociedade civil, devemos ocupar-nos dela, indicando a sua natureza, o
seu fim, a sua origem, o seu sujeito e as suas funções.2
1 A sociedade civil, sendo composta de famílias e de outras associações, cujos
membros não possuem todos os mesmos direitos, deve ser necessariamente desi-
gual. A igualdade absoluta, proclamada pela revolução francesa, supõe, como observa
Taine (Les origines de la France contemporaine), que todos os homens nascera de
maior idade, sem pais, sem passado, sem tradições, sem deveres, sem pátria. — Essa
desigualdade da sociedade civil não se opõe à igualdade civil, que é própria dos indiví-
duos, segundo a qual todos os membros da sociedade têm os mesmos direitos inatos,
sagrados e invioláveis, o todos podem adquirir novos direitos.
2 A sociedade é um corpo, não físico, mas moral. Ora, em todo o corpo,
dotado de unidade, devemos encontrar as partes, que se unem, e o princípio, que as
une. As partes, que se unem, são proximamente as famílias e remotamente os indiví-
duos; — o princípio, que as une, é a autoridade.
Dizendo que a matéria da sociedade civil é constituída proximamente pelas
famílias, e remotamente pelos indivíduos, afirmamos que os indivíduos constituem a
sociedade civil, enquanto já fazem parte da sociedade doméstica, porque a sociedade
civil formou-se primitivamente pelo desenvolvimento sucessivo das famílias, e não
dos indivíduos. Além disso, os homens nascem na família, e, antes da própria eman-
cipação, dependem da autoridade paterna, não gozam dos direitos políticos, e por
tanto não pertencem ao Estado, senão enquanto pertencem à família. Advertimos
que nem todos os indivíduos se podem propriamente chamar cidadãos, mas só os
pais de família, isto é, todos os que são tais atualmente, ou, pelo menos, representam
virtualmente a família, enquanto têm uma próxima aptidão natural para a constituir;
só esses estão proximamente habilitados para exercer cargos públicos; só estes cons-
tituem imediatamente a sociedade, ao passo que a mulher e os filhos só pertencem a
sociedade, enquanto pertencem à família.
Daí se vê o inconveniente da emancipação política da mulher. Os sequazes do
liberalismo, como John Stuart Mill, Ed. Laboulaye, e outros, sustentam que à mulher se
deve conceder os direitos políticos, isto é, o direito de eleger os deputados, de exercer
os cargos de juiz, de advogado, etc. — Mas essas pretensões são inadmissíveis. Só os
homens e os pais de família são, como dissemos, os verdadeiros cidadãos, e não as
mulheres, que, pela lei natural, estão sujeitas a autoridade do próprio marido, chefe
da família, e que só por meio da família pertencem à sociedade. Ora, se às mulheres
SEÇÃO II – CAPÍTULO II – DEVERES E DIREITOS CIVIS 229
humanidade, dizem que a autoridade civil é o juiz supremo e absoluto desta cultura
e do que deve exigir-se dos indivíduos para a sua consecução, e desse modo atri-
buem a mesma autoridade poderes excessivos. Também essa teoria é inaceitável;
pois o fim da sociedade é, como vimos, diverso do fim apontado por esses escrito-
res. — Bluntschli, na sua obra — Teoria geral do Estado, ensina que o fim da sociedade
civil é o desenvolvimento das faculdades da nação, é o aperfeiçoamento da sua vida
por uma marcha progressiva, que não se oponha aos destinos da humanidade. Essa
teoria, que afasta do Estado a idéia de Deus, proclama o despotismo das maiorias e,
favorecendo excessivamente a autoridade, ofende e destrói a legítima liberdade e os
direitos dos cidadãos.
c) Os socialistas, partindo do princípio de que o fim da sociedade civil con-
siste em procurar direta e imediatamente o bem particular e individual dos cidadãos,
concedem a autoridade civil o direito de repartir a propriedade, organizar a pro-
dução em todas as esferas, distribuir os seus rendimentos, restringindo assim os
legítimos direitos dos indivíduos. O Estado, para os socialistas, deve ser ateu. — Essa
teoria é falsa; porque, concedendo ao Estado o direito de dispor de todos os direitos,
do todas as propriedades e de todos os rendimentos, importa a destruição das famí-
lias e a morte da verdadeira liberdade.
1 Essa proposição é uma consequência dos dois princípios acima estabeleci-
dos: — que a sociedade civil é necessária, isto é, instituída pela natureza e por isso, por
Deus, autor da natureza, — e que a autoridade é essencial mente necessária na socie-
dade. Porquanto, postos esses dois princípios, argumentamos do modo seguinte: o
ser, que é o imediato autor e instituidor de uma sociedade, é por isso, mesmo o ime-
diato autor e instituidor dos elementos, que a natureza da mesma sociedade exige.
Ora, Deus é o imediato autor e instituidor da sociedade civil (porque essa sociedade
é natural ou necessária, e o que deriva da natureza, deriva do próprio Deus), e a
natureza da sociedade civil exige uma autoridade suprema. Logo, Deus é também
o imediato autor e instituidor da autoridade civil. — Deus, pois, é a causa próxima
e particular (e não só remota e universal) da autoridade civil. — Deus, porém, não
concede a autoridade civil por um modo sobrenatural ou positivo, mas concede-a por
um modo inteiramente natural, enquanto a autoridade é um elemento essencial da
sociedade civil. — Nas sociedades livres, Deus é também causa da autoridade, mas é
causa exclusivamente primeira e universal.
232 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
é também um título legítimo. Mas a guerra deve ser justa; aliás a ocupação será um
roubo. Além disso, é preciso que a mudança do regime ou a perda da independência
da parte do povo vencido seja reclamada pela segurança do vencedor ou dos outros
povos; aliás a reparação ou o castigo será superior ao crime do povo vencido. — A
prescrição pode ser um título legítimo para adquirir o poder supremo. A questão refe-
re-se ao usurpador. É necessário fazer várias considerações a esse respeito. O usurpa-
dor tem sempre o dever do restituir a autoridade injustamente possuída ao legítimo
soberano; e até pode ser obrigado a essa restituição pelo povo, contanto que haja
esperança de um êxito favorável, e a insurreição não seja prejudicial ao país. O povo
tem obrigação de obedecer às ordens justas do usurpador; não só porque esta obe-
diência é necessária para o bem do país, mas também porque o usurpador possui,
embora ilegitimamente, a autoridade suprema, e esta conserva toda a sua força e
todo o seu direito relativamente aos súditos, que não obedecem ao usurpador, mas
à autoridade. Se, com o andar dos anos, a causa do usurpador por tal modo se ligar
com o bem e a tranquilidade do povo, que o passado não possa repristinar-se sem
uma revolução e efusão de sangue, o usurpador torna-se legítimo, o povo não pode
revoltar-se contra ele; porquanto, nesse caso, é verdadeira a máxima: salus publica
suprema lex, e a ela devem obedecer não só os súditos, mas também os príncipes, se
não quiserem preferir ao interesse público o seu interesse particular.
Determinado o sujeito por algum dos fatos indicados, ele recebe imediata-
mente de Deus a autoridade suprema, não por modos extraordinários e positivos,
mas pelos meios com que Ele, enquanto Autor da natureza, governa a sociedade. —
Como se vê, rejeitamos a opinião dos que afirmam que Deus concedeu a autoridade
suprema a todo o povo, como ao seu sujeito, e que o povo, não podendo exercê-la,
a transfere no príncipe; de modo que Deus daria o poder ao príncipe só mediata-
mente, isto é, só por meio do povo. Não podemos aceitar essa opinião. Na verdade,
o elemento, que reúne a multidão, é anterior à própria multidão e não depende
dela. Ora, a autoridade suprema é o elemento, que reúne em sociedade a multidão.
Logo, a autoridade suprema é anterior à multidão, e por isso, não reside na mul-
tidão, como no seu sujeito, e não deriva dela. — Além disso, a autoridade e, como
dissemos, o elemento formal da sociedade, e a multidão é o elemento material. Ora,
o elemento formal não pode depender do elemento material; porque o superior não
pode depender do inferior. Logo, a autoridade não depende da multidão, não reside
na multidão, como no seu sujeito. — A nossa opinião encontra uma confirmação na
Encíclica Diuturnum do S. Padre Leão XIII, que diz: “Quo sane delectu (multitudinis)
designatur princeps, non conferuntur jura principatus: neque mandatur imperium, sed
statuitur a quo sit regendum”. Concluímos que a autoridade é para a multidão, mas
não está na multidão.
Conforme o sujeito da autoridade civil é uma pessoa física ou moral, nascem
as diversas formas do governo, que por isso, são as diferentes organizações da auto-
ridade suprema em cada sociedade civil. — Se a autoridade reside numa pessoa física,
a forma é monárquica; — se reside numa pessoa moral, a forma é polyarchica, que
se subdivide em aristocrática e democrática, conforme a autoridade reside numa
SEÇÃO II – CAPÍTULO II – DEVERES E DIREITOS CIVIS 235
divide-se em civil e criminal. O poder civil tem por fim tutelar os direitos dos cida-
dãos e defendê-los dos ataques dos outros. O poder criminal consiste em julgar um
ato nas suas relações com a lei moral, aplicando-lhe, se ele for mal, o castigo conve-
niente, para reparar a ordem perturbada e evitar ulteriores transgressões. Por isso,
a pena é, ao mesmo tempo, vindicativa e defensiva.
Aqui levanta-se a questão acerca da justiça da pena de morte. Beccaria, Bentham
e Ahrens, seguidos por muitos escritores modernos, negam que a autoridade civil
tem o direito de infligir a pena capital. — Mas esses escritores erram. Porquanto,
cometem-se crimes horrorosos (como o parricídio, o homicídio premeditado, etc.), que
não podem ser convenientemente punidos senão com a privação da vida; pois um
mal sumo deve ser punido com a perda de um bem sumo (como é a vida); visto
que deve existir uma proporção entre o crime e a pena. — Além disso, o Estado
tem o direito de empregar os meios mais eficazes para a defesa dos direitos seus e
dos cidadãos. Ora, o meio mais eficaz para essa defesa é a pena de morte; visto que
os homens depravados geralmente deixam de praticar um crime, só quando sabem
que esse crime se expia com a própria morte. — A experiência confirma a nossa tese.
Quando, num país, fica abolida a pena de morte, os crimes, e sobretudo os homi-
cídios premeditados, aumentam; e, quando essa pena fica restabelecida, os crimes
diminuem. Foi o que aconteceu, há poucos anos, na Suíça.
Examinemos as objeções dos adversários da pena de morte.
a) Beccaria (Dei delitti e delle pene) e Bentham (Oeuvres, t. II) fazem as seguintes
objeções. — Iª) A autoridade civil, sendo a soma dos direitos dos cidadãos, não se
estende à pena de morte; porque ninguém tem direito sobre a própria vida. — Iª)
A pena de morte não tem eficácia para retrair os homens do mal; pois a morte não é
considerada pelos criminosos como o pior dos males. — IIIª) A pena de morte é uma
espécie de homicídio, e leva os espectadores mais ao crime do que a virtude. — IVª)
Para a sociedade é mais útil a vida do criminoso, condenado aos trabalhos, do que a
morte violenta, que a priva de um membro.
Estas razões são falsas. — É falsa a primeira; porque a autoridade civil não é
a soma dos direitos dos cidadãos, mas é uma participação da autoridade, que Deus
tem sobro a nossa vida e sobre a nossa morte. — É falsa a segunda; pois os conde-
nados à morte pedem para que essa pena seja comutada com os trabalhos por toda
a vida, e ficam imensamente satisfeitos, quando alcançam essa comutação, que lhes
permite esperar sempre pela liberdade. — É falsa a terceira; porque a pena de morte
é justa, e incute um terror salutar nos circunstantes e um ódio eficaz ao crime. — É
falsa a quarta; porque a sociedade tira um proveito imenso da morte do criminoso,
enquanto essa morte retrai dos crimes os outros, e assim a morte de um criminoso
é a salvação de muitos inocentes.
b) Ahrens faz as seguintes objeções. — Iª) Matar o homem é ato essencial-
mente mau. — IIª) o homem é fim e não meio. Ora, na aplicação da pena de morte,
é meio; porque serve para afastar dos crimes os outros. IIIª) O direito à vida, sendo
inato e natural, é absolutamente inamissível.
SEÇÃO II – CAPÍTULO II – DEVERES E DIREITOS CIVIS 239
ARTIGO II
Deveres e direitos dos soberanos
público e social. — Além disso, a sociedade, como tal, recebe continuamente de Deus
muitos e grandes benefícios, como são a prosperidade temporal, a Victoria contra
os inimigos, etc.; e precisa do auxílio divino para o bom êxito dos seus atos. Logo, a
sociedade, como tal, deve ser reconhecida a Deus, oferecer-lhe os seus votos, isto é,
deve, publica e socialmente, mostrar a Deus a própria gratidão, e as próprias neces-
sidades. Os Romanos, embora pagãos, faziam súplicas aos deuses para alcançar vitó-
rias, e, depois de as terem alcançado, davam graças e ofereciam sacrifícios. E não só
em Roma, mas em todos os outros povos vigorou sempre o culto público e social da
Divindade, e sempre existiram sacerdotes, sacrifícios, templos, etc. — Donde se vê o
erro dos que, apesar de reconhecerem no indivíduo o dever de prestar a Deus o culto
público, não o reconhecem, contudo, na sociedade; porque julgam que a sociedade
não é uma instituição natural e proveniente de Deus, mas uma instituição arbitraria
dos homens. É o indiferentismo político em matéria de religião.
Tendo a sociedade o dever de prestar a Deus um culto público, é claro que
devem ser proibidos todos os atos externos, que, direta ou indiretamente, ofendem
a Majestade Divina, como são a negação de qualquer atributo de Deus, ou do seu
domínio sobre os homens, as públicas violações dos deveres fundamentais, que a lei
natural impõe, com a força da evidência, a todos os homens. Por isso, a liberdade de
imprensa, sobretudo em matéria de Religião, é uma licença ímpia, que deve ser enfre-
ada. Philostrato narra que, em Athenas, foram queimados publicamente uns livros,
porque ensinavam o ateísmo. Tito Livio diz que ele se fez em Roma.
O culto, que a sociedade deve prestar a Deus, não só deve ser público, mas
também legítimo, em harmonia com a vontade de Deus; pois ninguém aceita um
serviço ou um culto, que não seja conforme com a própria vontade. Por isso, se
Deus revelar, por via sobrenatural, o modo porque deseja ser servido e venerado
pela sociedade, esta tem o dever de se conformar com a vontade de Deus. E, como
Deus se dignou revelar o modo porque deseja ser venerado, e como a depositaria
desta revelação é a Igreja Católica, segue-se que a sociedade civil deve prestar a Deus
o culto público sob a direção da mesma Igreja Católica.
Donde se vê que a liberdade de culto, que concede ao Estado o poder de
escolher a Religião que ele quiser, é ímpia, é injusta, é perniciosa. — É ímpia, porque
envolve uma desobediência e insubordinação contra Deus. — É injusta; porque não
reconhece o direito que a Igreja Católica tem de ser reconhecida como a única e
verdadeira Religião. — É perniciosa não só às almas, mas também a sociedade; pois
a diversidade de culto ou de Religião trouxe sempre discórdias e guerras no seio da
sociedade. — Todavia concedemos que a liberdade de culto, convenientemente redu-
zida ou limitada, possa, algumas vezes e nos países onde uma grande parte professa
uma religião falsa, tolerar-se conforme as condições dos tempos e dos países. Essa
tolerância pode admitir-se nestes casos: — lº) quando produz um bem maior; — 2º)
quando pode evitar um mal mais funesto; — 3º) quando é fisicamente impossível a
proibição de um culto falso. Nos países, porém, onde domina a verdadeira Religião,
o Estado, se não pode impor por força o exercício dela aos que a não professam,
deve proibir o exercício público e a propaganda das religiões falsas.
242 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
a influência do Cristianismo nas nossas modernas sociedades, pois é ele que traz
o pudor, a doçura, a humanidade, e que, entre nós, conserva a honradez, a boa fé
e a justiça. Nem a razão filosófica, nem a cultura artística e literária, nem a honra
feudal, militar e cavalheiresca, nem os códigos, nem os governos, nem as adminis-
trações podem substituí-lo nesta obra benéfica” (Orig. de la France contemporaine).
Sendo a moralidade e a religiosidade tão estreitamente ligadas com o bem
temporal e público dos povos, é claro que o soberano não só deve (deveres nega-
tivos) impedir, proibir e castigar todos os atos, que são dirigidos contra a Moral
e a Religião e constituem um escândalo público, — mas também deve (deveres
positivos) proteger e auxiliar tudo o que se refere à moralidade e a religiosidade
pública. Esse dever do soberano é exigido pelo próprio fim direto da sociedade;
pois, como vimos, a Moral e a Religião são meios indispensáveis para a felicidade
temporal dos homens.
Dizemos que a moralidade e a religiosidade pública formam o fim direto da
autoridade do soberano; porque o fim direto da sociedade é o bem externo e comum
dos homens. o bem interno e particular, que fôrma o fim direto da sociedade religiosa,
só forma o fim indireto da autoridade civil, enquanto esta, devendo promover e pro-
curar diretamente a religiosidade e a moralidade pública, promove também, ainda que
indiretamente, a religiosidade e a moralidade particular de cada membro da sociedade.
Concluímos com as palavras insuspeitas de Macchiavelli: “Os príncipes e as
repúblicas, que desejam manter-se incorruptas, devem sobretudo manter incorrup-
tas as cerimônias da religião e prestar-lhes a devida veneração. Porquanto o des-
prezo do culto divino é o maior indício da ruína de uma província” (La mente di un
uomo di stato, 1. I, c. 13).
Note-se que o soberano, ou a autoridade civil, tem a obrigação de defender
e promover a Religião na sociedade — não só para satisfazer aos deveres, que o
próprio Estado tem para com Deus, — mas também para cumprir os deveres que o
mesmo soberano tem para com a sociedade, pois o soberano deve promover dire-
tamente o bem comum e externo dos cidadãos e indiretamente o bem interno, e a reli-
giosidade é um meio para a consecução do bem comum e externo, e é um elemento
do bem interno.
c) A instrução, em sentido mais rigoroso, é o conjunto de conhecimentos
religiosos, literários, científicos e técnicos, adquiridos por meio dos livros, dos pro-
fessores, ou pela observação racional e direta dos fenômenos da vida física ou moral.
— A instrução refere-se à inteligência, como a educação à vontade (pois a educação tem
por fim acostumar a vontade a vencer todos os instintos e impulsos desordenados,
que afastam o homem do cumprimento dos seus deveres). A educação supõe a ins-
trução, pelo menos em tudo o que se refere à lei moral e religiosa, porque a vontade
não pode querer uma coisa, que a inteligência não conhece.
Para avaliarmos a importância da instrução, devemos distinguir os conhe-
cimentos morais e religiosos dos conhecimentos literários, científicos e técnicos. — Os
conhecimentos religiosos e morais são, como vimos, absolutamente necessários para
244 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
que a sociedade exista e prospere, e para que os indivíduos alcancem o fim da vida
presente, que é o bem interno, a virtude. — Os conhecimentos literários, científicos e
técnicos, quando são bem regulados e baseados na Religião, contribuem para o bem
social e individual, embora não sejam necessários para o homem alcançar o seu fim,
nem para a sociedade subsistir. Esses conhecimentos constituem a instrução superior.
Em relação a instrução superior, o soberano deve fundar universidades,
bibliotecas, museus, observatórios, etc., — cuidar para que as doutrinas sejam
conformes com a Religião e com a Moral, — conformidade, que, nos países onde
a Religião católica é oficial, deve ser julgada pelos Prelados, etc. — Todavia o
Estado não deve atribuir-se o monopólio da instrução superior, o que é contrário
ao direito dos pais.
Além da instrução superior, há uma outra instrução, chamada primaria ou
elementar, que é formada pelas noções da leitura, escritura e contabilidade, e que
é apenas um meio para adquirir os conhecimentos, que formam a instrução supe-
rior. Nesse século, dá-se a instrução primaria ou elementar uma importância, que ela
não merece, chegando-se a dizer que ela, só por si e desacompanhada dos conheci-
mentos religiosos e científicos, pode causar o bem estar individual e social, e assim
tornar-se a panaceia de todos os males sociais. É um grande exagero e um grande
princípio de desordens e agitações, como dizem autores insuspeitos — Spence e Prins,
o homem ignorante resigna-se com a sua sorte; o homem instruído revolta-se, quer
uma posição, e, veado frustrados os seus desejos, deixa-se arrastar para os mais hor-
rorosos crimes. Garofalo, fundando-se na estatística criminal, demonstra que a ins-
trução não influi na diminuição da criminalidade, e faz notar que, com o aumento
do salário e com a difusão da instrução na última metade deste século, coincido um
extraordinário aumento de crimes, revestidos das mais horrorosas circunstâncias.
Expostas essas noções, vejamos brevemente os deveres do soberano, ou
da autoridade civil, em relação à instrução primaria. O soberano deve lazer tudo
o que não pode ser feito por iniciativa particular, e por isso, deve fundar escolas,
velar para que a instrução literária seja acompanhada da instrução moral e reli-
giosa, prevenir e punir os abusos dos professores, etc. — O soberano deve, porém,
lembrar-se de que os pais têm o direito inato de dirigir a educação e a instrução
de seus filhos o de que a instrução é também, e sobretudo, um bem particular e
próprio do indivíduo. Por isso, o ensino obrigatório e o monopólio do ensino, atri-
buídos ao Estado, são despotismos e tiranias; pois que atacam os direitos dos pais
e a liberdade individual. — Aos partidários do ensino obrigatório, que dizem que o
Estado deve preceituar a instrução, por esta também concorrer para o bem social,
respondemos que o fim do Estado não pode ser um bem particular, que o indiví-
duo possa alcançar, mas só deve ser um bem comum, que só ele (o Estado) pode
conseguir; ora, a instrução alcança-se sem o Estado.
SEÇÃO II – CAPÍTULO II – DEVERES E DIREITOS CIVIS 245
ARTIGO III
Deveres e direitos dos súditos
nos demoramos nesses direitos dos súditos; porque a sua natureza e extensão foram
declaradas, quando tratávamos dos correspondentes deveres dos soberanos.
1 O bem comum e externo é a causa que formou e conserva a sociedade civil,
composta da multidão e da autoridade. — A multidão, se tem o dever de obedecer
ao soberano em vista do fim comum, tem também o direito de exigir que o soberano
exerça o poder para a consecução desse fim.
2 Em geral, uma classe social, que tem um fim honesto, meios lícitos, e cujo
bem não é contrário ao bem da sociedade civil, tem o direito ao respeito e a proteção
do soberano; porque os homens têm o direito inato da associação, com tanto que esta
não contenha elementos viciados e não seja contraria ao bem social. — Donde se vê
— lº) que as Ordens Religiosas, embora se considerem como associações meramente
naturais, têm direito a proteção do Estado, porque o seu fim e os meios são coisas
boas o honestas, e sumamente vantajosas para a sociedade civil; — 2º) que as associa-
ções secretas, como as maçônicas, cujo fim é contrário à Religião e à Pátria, devem ser
proibidas pela autoridade pública.
3 As famílias, sendo a origem e a base da sociedade civil, são anteriores a
mesma sociedade e possuem direitos provenientes da própria lei natural e não da
autoridade do Estado. Por isso, a família pode exigir que o soberano não a destrua e
oprima, mas que a defenda e auxilie.
4 O indivíduo tem muitos e diversos direitos inatos, e adquiridos. Esses direi-
tos são limitados, e a limitação tem a sua razão, como dissemos, ou nos deveres, a
que está sujeito o próprio indivíduo, — ou nos direitos mais elevados, que se encon-
tram nos outros indivíduos ou na sociedade. O soberano, pois, deve tutelar e limitar
esses direitos dos indivíduos. — Hoje, infelizmente, julga-se que o direito humano é
252 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
CAPÍTULO TERCEIRO
Direitos e deveres internacionais
ARTIGO I
Direitos e deveres mútuos das sociedades civis
Ela seja uma sociedade sobrenatural, contudo as suas relações com o Estado são
determinadas à luz dos princípios da razão natural.
1 Todavia, devendo as pessoas morais ou jurídicas ter um representante, que
exerça os direitos, de que são dotadas, segue-se que o sujeito da autoridade suprema
é o órgão do Direito internacional e o representante da sociedade. — Como se vê,
tratamos do Direito internacional público, que regula as mútuas relações das socieda-
des, consideradas como pessoas jurídicas, e não do Direito internacional privado, que
regula as relações jurídicas entre os indivíduos das diversas sociedades.
2 O homem, pessoa física, é dotado de muitos e diversos direitos. Desses
direitos uns são inatos, outros são adquiridos. Os inatos pertencem ao homem, como
tal, isto é, enquanto é dotado de natureza humana, e por isso, encontram-se em
todos os homens, e dizem-se inatos, porque nascem com o homem. Os adquiri-
dos pertencem ao homem, não pelo fato dele possuir a natureza humana, mas por
alguma circunstância particular ou pessoal, em que ele se encontra. — A sociedade
civil, pessoa moral, é também dotada dos seus direitos. Estes podem ser inatos ou
adquiridos. Os inatos pertencem à sociedade, como tal, isto é, enquanto possui a
natureza de sociedade, e por isso, encontram-se em todas as sociedades perfeitas. Os
adquiridos pertencem à sociedade, não porque é sociedade, mas por causa de algum
fato, costume ou circunstância particular, e por isso, não pertencem a todas as socie-
dades, embora perfeitas, e são diversos, conforme a diversidade das condições e das
circunstâncias da sociedade.
3 O homem, recebendo de Deus a vida, para que a empregue em se aperfei-
çoar e alcançar o fim último, que é a felicidade eterna, recebe da própria lei natural
o direito de conservação, de aperfeiçoamento, e de livre atividade. Do mesmo modo, a
natureza, querendo a existência de várias sociedades civis, perfeitas e independen-
tes, quer que elas se conservem e tendam livremente para a perfeita consecução do
254 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
federal ou unitário, — ou que, embora estejam unidos com povos de diversas nacio-
nalidades e sujeitos a mesma autoridade, conservem, dentro da unidade social, os
seus caracteres, costumes, tradições, língua, etc. — Os povos da mesma nacionalidade
podem legitimamente formar um Estado em consequência — de cessão voluntária, —
ou de casamento entre os soberanos (assim o reino de Castella e o de Aragão uniram-
-se pelo casamento de Izabel a Católica com Fernando), — ou de conquista depois de
uma guerra justa, — ou de prescrição.
A prescrição, como dissemos, verifica-se em. relação ao usurpador. Com o
andar do tempo, pode suceder que o legítimo soberano perca o seu direito ao trono,
de que foi injustamente privado; e isto acontece porque o seu direito se acha em
colisão com o outro mais forte, que a nação tem de não ser lacerada por discórdias
intestinas ou guerras civis; pois o bem particular deve ceder ao bem comum. — Há
só um caso em que a prescrição não é aplicável, e esse caso refere-se a soberania tem-
poral do Romano Pontífice sobre os seus Estados. Porquanto, na colisão do direito,
que o Papa tem â soberania, e do direito, que o Estado tem a sua paz, está sempre
superior o direito do Papa; visto que essa soberania é o direito da Igreja, que, sob
todos os aspectos, é imensamente superior ao do Estado. — Além disso, o poder
político do Papa não é para a vantagem material das suas terras, mas para a garantia
da liberdade do seu poder jurisdicional sobre toda a Igreja, e por isso, enquanto
permanece a necessidade desta garantia, não há e não pode haver prescrição em
contrário. A esse caso não pode aplicar-se o direito comum; porque o Principado do
Papa não tem o mesmo escopo que o dos outros reis.
1 Muitos políticos modernos, imitando Montesquieu, quando vêm que uma
nação entra, pelo emprego de meios lícitos, no caminho do progresso e da prosperi-
dade, ensinam que, para a manutenção do equilíbrio internacional, as outras nações
podem e devem impedir, mesmo pela guerra, esse progresso e prosperidade, que pode
constituir uma ameaça contínua contra a paz universal. — Nada mais injusto. Cada
país tem o direito de se aperfeiçoar, e se, para a consecução do seu fim, emprega meios
lícitos, não pode, sem grande injustiça, ser contrariado nos seus planos.
2 Uma nação tem, pois, direito a que as outras nações não se intrometam
na própria administração política, nem impeçam ao soberano o livre exercício dos
256 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
seus deveres. Porquanto, toda a nação é sociedade perfeita, isto é, independente das
outras na sua existência e nas suas operações. — Essa teoria, porém, deve aplicar-se
às nações, cujo regime interno é regular e não constitui um perigo iminente para as
outras nações.
1 É tríplice, pois, a fonte dos direitos jurídico-adquiridos; — o uso ou o cos-
tume dos povos, a aquisição do domínio, os tratados internacionais.
a) O uso ou o costume dos povos pode ser fonte de direitos. Assim como,
numa só sociedade, o uso ou o costume introduz um direito, assim também, entre
várias sociedades, ou nações, o mesmo uso ou costume pode dar origem a alguns
direitos; tal é o direito de inviolabilidade e de independência, de que os embaixadores
gozam. — Esses direitos encontram-se em todas as nações, porque estão em harmo-
nia com a natureza humana e facilmente se deduzem dos direitos inatos.
b) A aquisição do domínio é também origem de direitos jurídico-adquiridos. — A
razão é manifesta. Quem adquire o domínio sobre uma coisa, adquire direitos, de que
não pode ser despojado sem grande injustiça. — Advertimos que a sociedade pode
adquirir e possuir bens e propriedades em território pertencente a uma outra nação;
mas, nesse caso, o domínio não é absolutamente independente, pois é semelhante
ao dos particulares e sujeito a autoridade da nação, em cujo território estão situados
os bens. Advertimos também que uma nação pode legitimamente adquirir o domínio
de uma porção de mar, que banha as costas ou que avança pela terra dentro (golfo),
porque essa ocupação pode ser exigida pela segurança e utilidade da própria nação, —
mas não pode adquirir o domínio do alto mar, pois este não pode tornar-se útil por
indústria pessoal, e pode satisfazer igualmente às necessidades e exigências de todos.
c) Os tratados internacionais dão também origem a direitos jurídicos. — Esses
tratados, para serem lícitos e validos, devem ser feitos pelo soberano e em nome
da sociedade, que ele representa, devem ser honestos e justos em relação ao objeto,
às circunstâncias e ao fim. — Os tratados internacionais podem ter por objeto — ou
uma coisa, que já pertence ao Direito natural, — ou uma coisa, que se acrescenta
ao Direito natural. Os que têm por objeto uma coisa, que se acrescenta ao Direito
natural, produzem uma obrigação que anteriormente não vigorava; e dividem-se
em iguais ou desiguais, conforme as coisas, que as partes contraentes dão e rece-
bem, são iguais ou desiguais. — Os tratados podem ter, por termo principal e direto a
pessoa do soberano, ou a própria nação. No primeiro caso, o tratado diz-se pessoal;
no segundo, real. Sendo pessoal, o tratado dissolve-se com a morte do soberano; —
sendo real, não se dissolve com essa morte. — Os tratados dissolvem-se — 1º) por
mútuo consentimento das partes; — 2º) por morte de uma das partes contraentes,
SEÇÃO II – CAPÍTULO III – DIREITOS E DEVERES INTERNACIONAIS 257
e por isso, por morte física do soberano (se o tratado é pessoal) ou por morte civil
da nação (se o tratado é real); — 3°) por acabar o tempo determinado em que devia
vigorar o tratado; — 4°) pela absoluta e perpetua impotência, que uma parte tem de
satisfazer aos seus deveres.
*
A violação dos direitos jurídicos não só é uma ofensa, mas é uma injuria ou
injustiça, praticada contra a nação, que os possuía. — Essa injúria deve ser reparada.
— Quando a nação, que violou os direitos jurídicos de outra nação, não dá, por si
e espontaneamente, uma reparação, ou porque julga ter procedido retamente, ou
porque, embora conheça a necessidade da reparação, não a quer dar, então, se não
existir uma autoridade comum a todas as nações, que possa impor as suas decisões e
fazer respeitar o direito, há dois meios para reparar a ordem jurídica violada. Esses
dois meios são a guerra e a arbitragem.
a) Guerra. — Guerra, tomada no sentido rigoroso, é o estado de duas ou mais
nações que lutam entre si, fazendo uso da força, com o fim de tutelar o direito; — ou mais
brevemente: é uma violenta defesa da ordem. — É ofensiva ou defensiva, conforme se
emprega a força — para vingar uma injuria recebida, — ou para repelir os ataques
dos inimigos.
A guerra é lícita. Porquanto as pessoas, revestidas da autoridade suprema,
têm a obrigação de proteger os seus súditos não só contra os perigos, que nascem do
seio da própria nação a que pertencem, mas também contra os ataques, que partem
das outras nações e que são mais funestos. — Essa liceidade torna-se mais evidente,
se considerarmos as duas espécies de guerra. É lícita a guerra defensiva; porquanto,
na guerra defensiva, uma nação repele a injusta agressão da outra nação; ora, se um
particular pode repelir a força com a força, muito mais o poderá uma nação, agre-
dida por outra. É lícita a guerra ofensiva; porquanto a ordem jurídica, violada pela
injuria, deve ser restabelecida; ora muitas vezes não pode ser restabelecida senão
pela guerra. — Nem se diga que a guerra traz muitos males; pois estes são menores
do que aqueles que se seguiriam, se a guerra nunca fosse lícita.
Para que a guerra seja lícita, são necessárias as seguintes condições: — 1ª) a
autoridade, que declara ou aceita a guerra, deve ser a do soberano, porque só este tem
o dever e o direito de defender o bem público do seu povo; — 2ª) a causa deve ser
justa, o que é evidente; — 3ª) a intenção, com que se faz a guerra, deve ser reta, de
modo que se tenha em vista a promoção do bem e a repressão do mal.
O modo porque se deve fazer a guerra é o seguinte. Antes de começar a
guerra contra um Estado, a nação ofendida deve pedir-lhe uma reparação ou satisfa-
ção adequada, e, só no caso de recusa, pode empregar a força. Depois de começada a
guerra, é permitido fazer ao inimigo todo o dano, necessário para alcançar a vitória,
contanto que não seja intrinsecamente mau (assim não são permitidas as mentiras,
a perfídia, a morte direta dos inocentes, etc.). — Acabada a guerra, o vencedor pode
exigir do vencido, como justa compensação dos danos sofridos na guerra, uma con-
digna satisfação da injuria e uma garantia segura contra futuras agressões. — Essa
258 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
garantia pode ser a anexação de alguma província, e, nalguns casos, a morte política
do país vencido, a qual consiste na perda da independência. Daí o direito de con-
quista. — Como se vê, o direito de conquista baseia-se sobre a justiça da guerra e sobre
a necessidade de uma garantia contra possíveis agressões da nação vencida. Por isso,
deve reprovar-se a teoria — de Hegel, para quem toda a conquista é legítima, porque
representaria a fatal e progressiva evolução da humanidade, — e de Cousin, para
quem toda a conquista é justa, porque o vencedor seria sempre melhor que o ven-
cido. É a famosa teoria dos fatos consumados, que sanciona o direito da força brutal, o
direito dos ladrões e dos assassinos.
b) Arbitragem. — Arbitragem é a sentença, que, numa questão entre duas
ou mais nações, é ditada por um juiz escolhido livremente por elas. — A arbitra-
gem tem a imensa utilidade de poupar as grandes despesas e os funestos horrores
da guerra, e, ao mesmo tempo, de fazer justiça a quem a merece. — A instituição,
pois, de um tribunal internacional e permanente de paz seria um benefício incalcu-
lável para as pobres nações, que gemem sob o peso dos impostos, lançados para a
manutenção da paz armada. Os membros desse tribunal deviam ser os mais ilustres
e honestos personagens de cada nação. O seu presidente devia ser naturalmente o
Sumo Pontífice Romano, que, no pensamento de todos, é a mais alta personificação
da Religião, da justiça e da paz. Os próprios protestantes concordam conosco nesse
ponto. Em 21 de março de 1887, o jornal inglês — Saint James’s Gazette — publicou
um artigo, demonstrando que é imensamente útil a constituição de um tribunal de
arbitragem ou de paz para as questões internacionais, o que, para desempenhar esse
papel, ninguém está em melhores condições de imparcialidade e de autoridade do
que o Papa. Em 25 do mesmo mês e ano, outro jornal inglês — Pall Mall Gazette
— publicou outro artigo no mesmo sentido, acabando por dizer que talvez o Papa
chegará a ser o centro da paz do mundo. — A idéia da instituição desse tribunal de
paz, presidido pelo Santo Padre, começou a desenvolver-se nestes últimos tempos,
sobretudo por causa da célebre arbitragem, exercida pelo grande Pontífice Leão XIII,
entre a Alemanha e a Espanha, na questão das Carolinas. A escolha do Papa, como
arbitro, indicada por um Bismarck, mostra a todos os povos que no Vigário de N. S.
Jesus Cristo encontrarão sempre um juiz imparcial e justo, e reconhece que a missão
do Pontificado Romano é missão de paz e de amor.
Dissemos que a guerra e a arbitragem são meios para reparar a ordem jurí-
dica violada, se não existir uma autoridade comum a todas as nações, para nos referirmos
ao projeto de uma sociedade universal, defendido por alguns juristas. É o projeto da
ethnarchia, isto é, da sociedade universal, que seria formada por todas as nações, se
estas se unissem sob uma só autoridade, salva a independência de cada uma.
Essa sociedade universal seria admirável e não poderia deixar de dar excelen-
tes resultados; mas a sua atuação é muito difícil, considerando os antagonismos e os
ódios, que dividem os vários povos do mundo. Só num caso, a ethnarchia poderia
constituir-se: se todos os povos do mundo abraçassem, como é seu dever, a ver-
dadeira Religião, que é a Católica. Com efeito, tal feliz acontecimento, sujeitando
todos os homens ao Sumo Pontífice Romano, reduziria os espíritos a uma unidade
SEÇÃO II – CAPÍTULO III – DIREITOS E DEVERES INTERNACIONAIS 259
de crenças e de afetos, e assim tornaria possível a união entre todas as nações, que,
mesmo nas coisas temporãos, dependeriam da autoridade, sempre justa, desinteres-
sada e benéfica, do mesmo Vigário de N. S. Jesus Cristo.
A ethnarchia, de que falamos, não deve confundir-se com a idéia pante-
ísta ou semi-panteísta, segundo a qual, assim como o espírito tem um só corpo
em cada homem, assim também a humanidade deve ter um só corpo político, que
é o Estado no seu mais alto grau de perfeição. Bluntschli diz: “O Estado perfeito é
igual a humanidade corporalmente visível. O Estado ou o reino universal é o ideal
da humanidade progressiva” (A doutrina do Estado moderno, vol. I, pag. 26 o 27). O
escritor alemão, como é evidente, transforma em identidade uma simples analo-
gia, que existe entre o Estado e o corpo humano, fazendo da humanidade um todo
homogêneo e por isso, excluindo a pluralidade e variedade das nações, em que está
dividida a humanidade e que é necessária para o conceito da verdadeira ethnarchia.
Krause, coerente com o seu sistema panteísta, também falia do um único Estado, a
que um dia há de reduzir-se a humanidade.
1 Os obséquios de humanidade distinguem-se dos de beneficência; pois os de
humanidade fazem-se sem incômodo ou dano próprio, como é ensinar o caminho a
um cego, dar um bom conselho a quem o pede, etc., ao passo que os obséquios de
beneficência trazem algum incômodo ou dano, como é socorrer aos outros com o
dinheiro ou com o trabalho. Os obséquios da beneficência são mais nobres e elevados
que os de humanidade.
Os direitos, que uma sociedade tem a humanidade e à beneficência das outras
sociedades, são meramente morais, porque não se baseiam na justiça, mas só na
caridade; visto que a humanidade e a beneficência dos outros não são coisas nossas.
260 MORAL – PARTE SEGUNDA – DIREITO NATURAL
Por isso, esses direitos cessam, quando uma sociedade não pode cumprir os deveres,
correspondentes a esses direitos morais, sem grande dano seu; pois, nestas circuns-
tâncias, a caridade, devendo ser ordenada, manda que o bem próprio seja preferido
ao dos outros. — Todavia, em caso de estrema necessidade, o direito, que uma socie-
dade tem a humanidade e beneficência, transforma-se de moral em jurídico e por isso,
impõe às outras sociedades, que se não encontram na mesma necessidade, um dever
jurídico, de que não podem esquivar-se sem grande injustiça; porque, em caso de
extrema necessidade, torna-se propriedade da sociedade e do próximo o que é neces-
sário para a sua conservação.
Donde se segue que uma nação, agredida injustamente por outra, tem o direito
de pedir auxílio às outras nações, e nenhum Estado pode obstar a que se preste esse
auxílio. Porquanto, cada nação tem o direito à conservação e por isso, tem o direito de
empregar todos os meios para esse fim, contanto que não ofenda os direitos das outras
nações. Ora, pedir auxílio às outras nações é sempre útil e muitas vezes necessário, e
não ofende os seus direitos. Logo, a nação, que é injustamente agredida, pode pedir
auxílio a outra nação, e esta, podendo, tem o dever e, portanto, o direito de prestar
esse auxílio. — Donde se vê que o famoso princípio de não-intervenção é imoral, injusto
e funesto. É imoral; porque se opõe ao amor do próximo, que obriga a prestar auxílio,
não só ao indivíduo, mas também a sociedade. É injusto; porque ofende os direitos —
não só da nação, que pede auxílio, pois a priva de um meio útil e talvez necessário para
a sua conservação, — mas também da nação, que o presta, porque lhe nega o exercício
de um direito e o cumprimento de um dever. É funesto; porque protege os ataques da
força material contra as nações que só têm a força do direito.
1 Como já dissemos, o dever, que a lei impõe a uma pessoa, ou corres-
ponde a um verdadeiro direito, existente noutra pessoa, ou não. Se corresponde, o
dever é jurídico; se não corresponde, é apenas moral. Quem não cumpre os deveres
jurídicos, faz uma injuria e ofende a justiça (assim quem não restitui um deposito,
diz-se injusto); mas quem não cumpre os deveres morais, ofende a pessoa que possui
o respectivo direito moral, mas não comete uma injuria, pois não transgride a lei da
justiça, mas só a da caridade (assim quem nega a esmola a um pobre, é desumano, mas
não injusto). Por isso, se o sujeito que deve cumprir um dever jurídico pode ser obri-
gado pela coação, o sujeito que deve cumprir um dever moral não pode ser obrigado,
pois trata-se de dar uma coisa que é própria dele e não dos outros.
SEÇÃO II – CAPÍTULO III – DIREITOS E DEVERES INTERNACIONAIS 261
cujo domínio foi adquirido por outra nação, — não satisfazer a empenhos assumidos
por meio de tratados internacionais, etc.
1 As sociedades civis têm entre si deveres não só jurídicos, mas também
morais. Esses deveres reduzem-se todos ao grande preceito de mútua caridade,
imposto pela lei natural às sociedades. Porquanto, se cada homem deve amar os
outros homens, porque a natureza de um é semelhante â dos outros; pelo mesmo
motivo, uma nação deve amar as outras nações, pois a nação é constituída por
homens, elevados a uma condição mais nobre, e dotados, enquanto compõem o
corpo social, d’uma natureza mais culta e poderosa.
Os deveres de mútua caridade só obrigam em certos casos. Na prática, devem
observar-se os seguintes critérios: — 1º) A obrigação existe só relativamente aos
Estados, que têm verdadeira necessidade, e que não podem auxiliar-se a si mesmos.
— 2º) Quando um Estado se encontra em verdadeira necessidade, os outros Estados,
se poderem prestar-lhe auxílio sem incômodo ou dano próprio, devem fazê-lo, pois
assim manda a caridade. Se não poderem sem incômodo ou dano, devem comparar
esse seu incômodo ou dano com o dano que o tal Estado sofrerá, se não for auxi-
liado; e essa comparação mostrará se, nesse caso, a lei de caridade obriga, ou não.
— 3º) Se vários Estados se encontrarem em iguais críticas circunstâncias, e o Estado
não poder prestar auxílio a todos, deve observar-se a ordem devida, preferindo os
amigos aos inimigos, os dignos aos indignos, etc.
As nações, para satisfazerem aos deveres de benevolência, a que estão sujeitas,
não só devem exercer o dever e o direito de intervenção, mas também devem exer-
cer entre si mútuo comercio, que consiste na compra, venda ou permuta de coisas
SEÇÃO II – CAPÍTULO III – DIREITOS E DEVERES INTERNACIONAIS 263
ARTIGO II
Deveres da sociedade civil para com a Igreja
homem a operar pelo medo e por isso, imperfeitamente, contudo não seria nociva
nem inútil, porque é melhor operar o bem por medo e imperfeitamente do que
operar desonestamente. — III). É falso que a aplicação das penas temporais só sirva
para fazer hipócritas; pois a coação, por si, tende a tornar honestos os súditos. E,
embora, acidentalmente, a coação fizesse hipócritas, nem por isso, deixaria de ser útil
para a sociedade; porque serviria para impedir escândalos, que são piores e mais
funestos do que as hipocrisias.
1 Depois de termos tratado da natureza da Igreja, e dos seus poderes, resta-
-nos agora tratar dos seus direitos. — Estes direitos derivam de uma lei positiva de
Deus. — Aqui limitar-nos-emos a indicar os principais.
2 O direito territorial, de que a Igreja é dotada em relação ao mundo inteiro,
— não é direito de propriedade, porque ninguém se lembrou de dizer que a Igreja é
proprietária do mundo inteiro; — nem é direito de jurisdição política, porque N. S.
Jesus Cristo não concedeu a Igreja o domínio político do mundo; — mas é direito de
jurisdição religiosa, porque refere-se ao domínio espiritual, que a Igreja recebeu do
seu Divino Fundador sobre todos os povos. — Foi o nosso Redentor quem deu a
Igreja este domínio; e nenhum príncipe ou poder humano pode opor-se à vontade
d’Aquele, que é o Rei dos reis e o Senhor dos dominadores. — A Igreja, pois, não é
hospede em nenhuma parte do mundo, nem é um poder estrangeiro, que exerce a
sua jurisdição sobre súditos alheios. Em toda a parte, a Igreja está em sua casa, com
maior direito do que o próprio soberano temporal (porque o mundo pertence mais
a Deus do que aos príncipes); e o poder, que ela exerce sobre os fiéis, é um poder
SEÇÃO II – CAPÍTULO III – DIREITOS E DEVERES INTERNACIONAIS 271
nalguns lugares, não escolhia os pastores, mas dava apenas um testemunho da hones-
tidade e da capacidade dos candidatos. Hoje essa mesma intervenção seria motivo de
perpetuas lutas, de dano para as almas e de escândalo para a Igreja.
1 Aqui não falamos do direito, que a Igreja tem de pregar livremente o
Evangelho, mas do direito que Ela tem sobre o ensino em matéria de Religião, que
se ministra aos fiéis. O ensino pode ser o que se ministra aos clérigos, e o que se
ministra aos leigos. Vejamos os direitos da Igreja sobre um e outro ensino.
a) Em relação ao ensino dos clérigos, o direito da Igreja é evidente. A forma-
ção dos ministros pertence à sociedade, a que devem servir. Além disso, a ciência
teológica é propriedade da Igreja; porque se funda na divina Revelação, e a deposi-
taria da Revelação é a Igreja. — É, pois, absurdo o estabelecimento do cadeiras de
Teologia, com inteira independência dos Bispos, sujeitas somente ao ministério da
instrução pública.
b) Em relação ao ensino dos leigos, o direito da Igreja não é menos evidente.
O leigo não deve ser teólogo, mas deve ser cristão. Para ser cristão, ele deve conhecer
as coisas principais relativas à nossa Santa Religião. Mas o ensino das coisas relati-
vas à nossa Santa Religião pertence à Igreja; porque Ela, e só Ela, recebeu a missão
de ensinar a toda a gente. Esse ensino é dado pelo Episcopado em união com o Sumo
Pontífice. — o direito acerca do ensino abrange também, embora indiretamente, o
direito de julgar das outras ciências, condenando as proposições, que são contrarias
a doutrina Católica e que por isso, são necessariamente falsas.
2 A Igreja tem o direito de possuir bens temporais, e este direito deriva de
N. S. Jesus Cristo. Por isso, os bens da Igreja chamam-se sagrados, e quem os rouba
comete um sacrilégio. — A Igreja, tendo o direito de possuir bens materiais, tem
também o direito de os administrar.
Pergunta-se: o que é mais conveniente para o clero — possuir bens mate-
riais, ou receber dos governos o estipendio?
SEÇÃO II – CAPÍTULO III – DIREITOS E DEVERES INTERNACIONAIS 273
estão para com o pai, os discípulos para com o mestre, as ovelhas para com o pastor,
é justo que o pai não seja julgado e punido pelos filhos, nem o mestre pelos discí-
pulos, nem o pastor pelas ovelhas. — A imunidade eclesiástica é total e absoluta no
Romano Pontífice, que é o pastor supremo de todos, e não é julgado por ninguém,
pois é superior a todos os tribunais, civis e eclesiásticos. — Esse privilégio foi reco-
nhecido pelo primeiros Imperadores cristãos — Constantino, Theodosio, Valentiniano,
Arcadio, e por todos os soberanos que se servem da autoridade, que Deus lhes con-
cedeu, para o bem dos povos.
b) A imunidade real abrange os templos e os bens eclesiásticos. O Estado não
tem direito algum sobre os templos, que estão estreitamente ligados com a Religião,
nem pode lançar impostos sobre os bens eclesiásticos. Todos os povos, ainda que idó-
latras, estiveram sempre convencidos de que os bens destinados ao decoro dos tem-
plos e a sustentação dos ministros da Igreja devem ser isentos dos impostos comuns.
Assim Faraó, no Egypto, isentou os Sacerdotes da obrigação de vender as suas pro-
priedades ao Estado; — Artaxerxes, Rei da Pérsia, ordenou, depois da reedificação
do templo de Jerusalém, que os Sacerdotes e os outros Ministros fossem isentos
de toda a contribuição; — Júlio César conta que os Druidos, na Gália, não pagavam
impostos, nem estavam sujeitos ao serviço militar. Assim decretaram também os
verdadeiros Príncipes Cristãos. — Nem essa isenção dos impostos, concedida ao
Clero, era prejudicial ao Estado; porquanto o Clero, além de distribuir uma grande
parte dos seus rendimentos entre os pobres, auxiliava, com generosas ofertas, o
Estado nas suas necessidades.
1 Esse direito da Igreja em relação ao Estado nasce do outro direito de supe-
rioridade, que compete à Igreja. O fim subordinado não só não deve contrariar a
consecução do fim superior (subordinação negativa), — mas deve facilitá-la pelo
emprego de meios positivos (subordinação positiva).
O dever, que o Estado tem de dispensar a sua proteção e assistência à Igreja,
deriva também dos deveres, que ele tem para com Deus, para com os seus súditos, e
para consigo. — Deriva dos deveres, que o Estado tem para com Deus. Porquanto, o
Rei é ministro de Deus; pois Deus comunicou-lhe a sua suprema autoridade, para
que, em seu Augusto Nome, governasse os povos; ora o ministro deve fazer e pro-
mover os interesses do seu senhor, e os interesses de Deus são os que estão con-
fiados aos cuidados da Igreja, que é o Reino de Deus. — Deriva dos deveres, que
o Estado tem para com os seus súditos. Na verdade, o Estado, devendo proteger os
direitos e favorecer os interesses dos súditos, deve sobretudo proteger e favorecer
SEÇÃO II – CAPÍTULO III – DIREITOS E DEVERES INTERNACIONAIS 277
imunidade eclesiástica); e por isso, dá o que não tem o dever de dar nem pertence ao
direito do Príncipe. Pelo contrário, quando o Estado se compromete solenemente
a defender a liberdade e os direitos da Igreja, não dá senão o que devia dar, e ao seu
dever, imposto pela lei divina, acrescenta a obrigação de um pacto solene, de modo
que se torna devido também pelo pacto o que antes era devido pelo direito divino.
Por isso, as concordatas diferem dos pactos internacionais, estipulados entre socieda-
des juridicamente iguais, pelos quais tanto uma como a outra parte contraente dá o
seu e recebe o alheio; porque a Igreja, se concede ou renuncia aos seus direitos, não
recebe do Estado nada que já não lhe seja devido. — As concordatas obrigam ambas
as partes contraentes. Todavia os escritores católicos não estão de acordo acerca da
natureza dessa obrigação. Alguns dizem que as concordatas têm a força de contrato
bilateral o por isso, obriga por justiça não só o Estado, mas também a Igreja. Outros
afirmam que as concordatas obrigam por justiça o Estado, que tem o dever do obe-
decer à Igreja, e só por uma certa decência ou fidelidade obriga a própria Igreja. — A
interpretação das concordatas pertence só a Igreja; porque só a Igreja recebeu de Deus
o supremo poder legislativo, e por isso, o interpretativo, sobre as coisas espirituais e
mistas, que constituem a matéria ordinária desses tratados. — A Igreja pode ab-ro-
gar as concordatas em todos os casos, nos quais é permitido rescindir um contrato:
— quando o Estado falta às suas promessas, — quando a matéria se muda por tal
modo, que se torna impossível ou ilícita, — quando o exige o bem público da Igreja
(é condição implícita nesses pactos), — quando houve erro substancial, ou engano,
ou as concessões foram extorquidas pela força ou pelo medo, porque, embora o ato,
extorquido pela força ou pelo medo, não seja irrito por si, contudo o Papa, que não
pode recorrer a um juiz superior, pode desligar-se, por si mesmo, do um vínculo
injustamente estreitado.
Os direitos da Igreja, que foram até aqui enumerados, dizem respeito pro-
priamente aos Estados Católicos, que, vivendo na Igreja, estão sujeitos a sua espiri-
tual autoridade. — Em relação aos Estados infiéis, a Igreja tem o direito — de pregar
o Evangelho, sem que nenhum príncipe possa opor-se a missão recebida do próprio
Deus (embora Ela não possa constranger ninguém a abraçar a Fé), — e de exercer
os seus poderes de ordem e de jurisdição. — Em relação aos Estados heterodoxos (pro-
testantes ou cismáticos), a Igreja tem o direito de conservar e constituir a sua hierar-
quia, de educar o Clero, governar os fiéis, possuir e administrar os bens, etc. (Cf. P.
Liberatore, Del diritto pubblico ecclesiastico, cap. IV, art. VI).
SEÇÃO II – CAPÍTULO III – DIREITOS E DEVERES INTERNACIONAIS 279
1 Não nos demoramos na descrição dos deveres da sociedade civil para com
a Igreja; pois a sua natureza e extensão foram explicadas suficientemente, quando
tratámos dos correspondentes direitos da Igreja. — Só diremos que os soberanos
terrenos, se imitassem, na sua obediência para com a Igreja, a Carlos Magno, que
se assignava: karolus Dei grafia rex, devotus sanctae Ecclesiae defensor, atque adjutor in
omnibus Apostolicae Sedis, alcançariam, como ele, glória nas conquistas e tornariam
prospera a sua nação, convencendo-se, mais uma vez, da grande verdade, procla-
mada por Montesquieu (De l’esprit des lois, 1. XXIV): “Coisa admirável! A Religião
Cristã, que parece não ter outro fim senão a bem-aventurança da vida futura, faz
também a nossa felicidade na presente n. Soberanos e súditos veriam despontar uma
era de paz e de prosperidade, desde o momento em que, unidos numa só fé e num
só afeto, reconhecessem, na teoria e na prática, a soberania benéfica e gloriosa de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
SINOPSE
Dos tratados contidos neste volume
SINOPSE DA MORAL
ÉTICA
DIREITO NATURAL
PARTE PRIMEIRA
ÉTICA
Capítulo Primeiro: Fim dos atos humanos
PARTE SEGUNDA
DIREITO NATURAL
Prólogo.................................................................................................117
Sinopse.................................................................................................280
Agradecimento....................................................................................288