019615-15 Completo
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ANOVELLA
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HiiimiMiiiiiiiiiBiíiiiiiiiiniiii •—imniiiiiuini IIIIIIIIIUIIII iiumiiiiin
grandes goles chupados, quando o Beréva, num Nhá Rita desabou como um muro que se ten-
terror que o immobilisara, deitando esgazeados- desse na base. Teve, momentos depois, "um máu
olhares para os lados, parecia cercado de visões suecesso". E no dia seguinte, os paudalhenses
aterradoras. tiveram um espectaculo inédito : a caminho da
E' que no ar parado do brejal passara, numa villa, para o descanço eterno na vala commum, lá
lufada, a exhalação pútrida dum corpo em de- seguiam, estrada afora, no balanço compassado;
composição. Nãó havia gado nessas paragens. duma rede encardida, os corpos da mãe e do li-'
De mais a mais a tiguéra queimada do Tuvira lho ; adiante, numa carroça emprestada, o corpo
não ficava longe dali. E pela imaginação apavo- disforme, violaceo, nauzeante do Tuvira, empes-
rada do caipira em tremuras, surgiu logo como tava o mormaço, afugentava os curiosos." Só os
uma coisa incontéste, a verdade terrível : Era corvos, famintos, vorazes, insistentes, não pare-
elle ! . . . ciam conformar-se com o banquete que lhes es-
capara 1'. . .
E voltando a si do estupor que o tomara, deu
O Bastiãosinho,, caboclinho máu, aquelle 1
de esporas e abalou desabridamente . . . .
Cáe o pano agora, como nos dramalhões anti-
Na casa do Tuvira, entre a fumarada suffo- gos. E este final de historia, que se poderia
cante dos cigarros, um cheiro activo de caninha quasi chamar também "Alguns annos depois" co-
errava no ar. O ultimo garrafão que o Dicto mo o celebrado romance de Dumas, não tem o
comprara ná venda do Portuguez, já s e fora. E desfecho brilhante dos do grande e fecundo ro-
pelos cantes, de cócoras, cuspilhando de esguicho mancista fidalgo. Epílogo bocejante. Culpa dos
para'os lados, sombras vagas moviam-se na es- Jecas. E' lá possivel hoje, depois que o Lobato
curidão da sala. Vinha do quarto ao lado, de tirou, com o bisíuri da observação, de ''Sobre a
envolta com as lamentações arrastadas do Chico, nudez forte da verdade, o manto diaphano da
a funda magua da viuva: "Tenha dó de mim, phantazia" — reeditar "Iracemás", "Ouaranys",
meu Deus! Ai, Jesiíis . . . . " E era tão compas- romantisar a vida dos Ubirajaras modernos, -J
sada, tão monótona a toada dolorida, que uma ' pasto inexgotavd de vtrminoses, amarelões, anki-
somnolencia invadia, pesava no ar. O muiherio, lostomos ?
A NOVELLA SEMANAL 237
Ah ! Alencar ! Macedo ! Quanta pílula dourada Não houve dito picante, allusão ferina, picuinha
nos destes ! mordente que nãó estravasasse. Chafurdaram-lhe
A vida do Chico, após a morte trágica do pae, a vida, châpinharam-lhe a reputação. O Chico,
é façil prever-se o que tenha sido. Faltou-lhe a moita. Por fim, deram tréguas á campanha sór-
sombra protectora do Tuvira : foi um desmoro- dida e torpe. A mátiíla, á falta de revide que a
namento. Por outro lado, nos arraiaes inimigos, açulasse, debandou indemne. Tréguas forçadas.
foi festejada a quentão a limpeza do mandachuva Ninguém luta com a própria sombra
'da zona. Muita raiva represada transbordou, Exilado pelo desprezo ambiente, num isola-
muito orgulho humilhado explodiu. Não houve 'Hiento raras vezes quebrado por antigos amigos
então, por toda aquella redondeza, quem não qui- de seu pae, o mísero, roida a pequena herança
zesse tirar o ventre da miséria. De 30 passou o paterna, conheceu mais um inimigo: a miséria.
Chico a 8. Levou pés-do-Owôido de estalar, mu- E vinham-lhe á mente, então, os saudosos' tempos
nhecaços puchâdOs á sustância, safanões afuci- da sua meninice, a casinha varrida, rebocada de
^nhantes . . . / novo, a meza farta, a ruidosa alegria do Tuvira,
Culminou tudo isso uma sova a chicote, entre Como isso tudo se fora tao bruscamente epilogar
a risota escarninha e os dichotes zombeteiros da numa emboscada icoyarde, tocaia armada pela as-
assistência: "Ué, Chico 1 Quedêlle as farófia ? „ tucia brutal duma alma mesquinha! - A sua feli-
Xingue, nhá mãi agora, mardito ! '' , cidade se dissipara ao sopro de morte que dissi-
E o Chico, enfiado, murcho,- encolhido, aco- para no brejal do Caviuna, a fumaça assassina.
vardado, a um canto, métteu dó aos circumstantes: Nasceu-lhe então no peito, como labareda que
"Chega, Bermiro ! Isso tamêm num se fáis!..." irrompe dum palheiro, um ódio surdo, implacável,
Desd'ahi era uma indignidade bater no Chico. feroz, contra o matador covarde de seu pae.'
Era degradante. Quem, fòi que disse que Jécá Egoísta mesmo na vingança, elle queria des-
não tem dignidade ? forrar-se, não do assassino que o orphanara ao
Os factos respondem por si. E este é um caso 17 annos, mas daquelle que o privara da abas-
• isolado. A verdade é que, aos vinte annos, o es- tança, até então tão commodameute gozada e que
tiolado rebento a que faltara a seiva forte de o fizera alvo, agora, da chufa e da risota escar-
tronco uberrimo, abatido á trahição na grota es- ninha daquelles a quem elle dominara outróra, á
cura duma restinga — morreu em vida, mas de sombra de quaesquer riscos, sob o prestigio con-
morte moral. vincente da fama avalentoada do Tuvira. Obce-
i E morreu porque casou. Casou . . . . Casou cado por essa idéia, ruminóu de mil modos, no
vcom a Isabézinha, filha da "Reboleira", para que isolamento soturno da tapera, o remate brutal da
se tivesse mais uma vez a confirmação ~ do ^que scena antegozada. E um riso diabólico lhe arre-
reza o mais sábio brocardo popular : "Filho de gaçava os lábios sedentos ; e ficava a olhar, ran-
peixe . . . . " gendo sinistramente os dentes, um ponto escuro
E como nesse tempo já Santos Dumont tinha do quarto : lá estava, como a sua imaginação o
revolucionado a sciencia do Ar e contornava ante desenhava, o quadro dantesco : de borco, escabu-
os basbaques de Pariz a Torre Eiffel na sua "An- Jando no pó que o sangue espastava, uma sombr
tOniette", e já tivessem chegado até Pau d'Alho vaga, que num fio de voz, pedia água.
as zabumbas da Gloria" patíicia e as conseqüentes E elle ia espojar-se, espostejar o corpo á la-
curvaturas da Europa ante o Brasil, nos versos.do nhadas, canibaleseaniente, horrido e sanhudo . . .
'defuncto Eduardo das Neves, julgou de bom- aviso Tropeçava . ....'' E offegante e febril, porefando-
. a trefega loifeira, dar de azas também . . . E lhe do rosto, em camarinhas grossas, um suor
numa noite estrellada, feita de encommenda para gelado, quedava-se aparvalhado, hirto, bestiahsado.
os prirhordios de romances em brochura, com fi- E ás vezes, quando o cansaço vencia a agitação
gura ria capa, a dez tostões o volume, — em- que o tomava e elle conseguia conciliar o somno,
quanto o Chico, espapaçado, roncava de lado, ella já pelas frinchas do reboque cabido, viilha um
abalou sorrateiramente nos braços dum soldado , retalho vivo dó sói beijar-lhe a grénha hirsuta....
de policia
Elle, coitado, deixou-se estar. Choveram re-
moques, chufas, escarneos babados de gozo á Eu sou fataüsta. O nosso destino, mal aporta-
desgraça humilhada do Chico. Cantaram ao vio- mos á vida, traça-õ- indeleveímente o Summo
lão, com denguices na voz, o caso escandaloso. Creador: e tanto podem nascer para o mundo
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dum mesmo santificado connubio, banqueiros res- queire de tiguéra, isso sim, era o que lhes im-
peitáveis e respeitados bandidos, homens d'alma la- portava. Numa cinzenta manhã de sexta-feira,
vada e límpida consciência ou requintados canalhas. uma noticia alvoroçante agitou a pasmaceira ge-
Não ha fugir: a rota traçada pelo dedo invisível ha ral da pacata Pau d'Alho: O Bastiãosinho tor-
de ser palmilhada. E' por isso que a vida é cheia nara á villa. Já não tinha agora aquelle ar aca-
de surprezas. Homens de reputação illibada e poeirado, petulante e rixento d'outróra. Do Se-
caracter impolluto acabam, não raro, como rato- relepe antigo só conservava o pernóstico bigodinho
neiros vulgares ; facinorosos bandidos fazem de retorcido e a paixão racial pela modinha e o vio-.
heróes de romance ; homens de vida intensa e lão. Não viera só : e isto era o que mais es-
trabalho activo, alquebrados ao peso das agruras candalisara as recatadas matronas paudalhenses.
no mourejar quotidiano, esmolam famintamente Trouxera de braço, rebolante e pimpona, uma
uma códea de pão, na velhice honrada e vene- espevitada figura rescendendo á Frèr d'Amú na-
randa. E, ironia da sorte ! — ladravazes trafican- cional. E logo que alguém os viu, uma vóz es-
cantes, para quem a honra é um peso incommodo ganiçada de mulher bisbilhotou p'ra dentro:
e a- dignidade um mytho, — ostentam a sua opu- "Venham vê gente ! A delambida da Zabé . . .
lencia regalada e o seu cynismo victorioso, so- Chi ! Que canaice! . . ."
berbos de empáfia e damos-lhes Excellencia ! . . . " A scena se repetiu. Ferveram commentarios
Nem sempre, se vence na vida tendo o Bem em torno do caso. "Ah ! póvre do Chico!"
por divisa e a sã Morai por dogma. Isto é velho Era com effeito a Izabézinha do Chico, que nu-
e sediço : e antes que eu descambe a pontificar ma noite enluarada quebrara os sagrados laços,
no intrincado cipoal da philosophia de algibeira, numa reles aventura com um soldado. Pou-
reatemos o fio da historia, que, com philosophia cos mezes depois elle a deixara, como traste
e tudo, quasi nem vale a tinta . . . de difficil transporte. Ella ficara, então, como
náu desarvorada, entregue aos caprichos da sorte.
Viveu ao léo, curtiu angustias amargas, jungida :í
Pois é assim : o homem põe e Deus dispõe... vida aventurosa e errante que herdara pelo san-
"O que tem de ser tem força ! " gue e pelo exemplo. Um acaso fortuito os apro- __
Vai dahi, o nosso Chico, com uma intuição ximou. Desde ahi não se largaram mais." Ella,
naturalissima, fundamentada em exemplos da pró- precavida e cançada, confiou-se ao braço forte do
pria ascendência, resolve, num golpe á gran-gui- amante. Elle, temeroso porque suspeitado, logrou
gnol, fazer-se o continuador invejado da gloríóla alliar-se a quem poderia, por despeito e vingança,
paterna. Nada detém o curso da vida ; nem a denuncial-o. O crime busca,o crime: çompleta-
morte, dizem os que crêm na transmigração das ram-se, pois.
almas e na vida futura. Assim viveram largos annos. Um dia, passou-
E a roda da vida; — motu-continuo donde nas- lhes pela idéia a imagem saudosa da terrinha dis-
ceu a roda loterica — na caprichosa indifferença da tante. Que saudade ! Um vago receio o tomava:
sua engrenagem silenciosa, vai extrahindo ás de- e si o prendessem? Mas que provas havia? E
zenas, os bilhetes premiados, (os a quemla fortuna quem tinha lá interesse em demmcial-o ? — O
sorri) aos milhares, os bilhetes corridos, como diz Chico... |
o vulgo (os que falharam na vida . . .) e os que, Mas esse, acovardado, pusilânime e cretino, não
muito sovinamente nos dão o mesmo dinheiro... lhe dava cuidados. Os demais tinham até feste-
São aquelles a quem o zombeteiro rifão satirisa : jado a quentão o trágico fim do Tuvira. Alem
"Quem nasceu p'ra vintém não chega a tostão..." disso, de antemão contava como o descaso das
O Chico queria chegar. A Sorte, que é varia autoridades da comarca, que só tinham rigor para
e inconstante, porque é bem feminina, deu-lhe os casos políticos, alheios a tudo que não fosse
a mão. ferir os interesses da camarilha absorvente. Ella,
Era em agosto. Um cansaço bocejante entor- por seu lado, conhecia á farta o marido. As ul-
pecia os membros, convidava ao repouso ou ao timas duvidas se desvaneceram. E arranjaram
banho frio estimulante. Feitas as roçadas, os Je- as malas.
cas deitavam-lhes fogo e iam socegadamdnte mam- Nessa noite, na casa do Ventura, ia animado o
parrear em casa. Pouco se lhes dava que o fogo bate-pé. No lar^o terreiro da frente, á luz pra-
iasaciavel lambesse em labaredas vorazes o mata- teada duma bojuda lua cheia, um grupo bulhento
gal visinho. A sua quarta de terra, o meio al- sapateava ao violão. Num claro aberto ao meio
.A NOVELLA SEMANAL 239
o Serelépe, de collarinho celulóide e gravata ver- sahindo. "Té aminhã, minha gente ! " E o Se-
melha borboleta, gemia, em nostálgico descante, relépe, repinicando ao violão uma pólkinha salti-
o exilio donde tornara. tante, rumou para casa com a companheira..
Andei mundo, corri terra, Foi se fazendo silencio. De longe em longe,
'tive até no Paraguay, numa volta de caminho, os que se separavam
Deixei os amigo veio davam os "Té aminhã" do costume. O vento tra-
Mas agora . . . nunca mái !
zia, de vez em quando, o écho amortecido dum
E um caboclinho fanhoso, o literato cia terra, tiro á distancia, praxe costumeira de fim de festa
dado a leituras nas horas vagas, com rasoavel na roça. As estrellas fugiam ariscas aos primor-
estoque de versos de Vitruvio, proezas de Sher- dios dum dia de canicula. Pela estrada deserta ia
lock, e pieguices de Macedo, a suspirada aspira- o par cantarolando. 'Scenas rememoradas, im-
ção de toda a lindeza de Pau d'Alho, — pi- pressões fugitivas obrigavam de quando em quan-
garreou e, do a comentários jocosos. Um longo silencio
Assúca preto e mascavo,
depois.
Só se compra no varejo ;' Estavam cansados, dérreados, anciosos por se
•«Nunca mais >" já disse o corvo pilharem em casa, na larga cama de colcha de
Quando perdeu o seu queijo . . .
retalhos e fronhas com monograma. Uma ma-
Toda a roda riu da alhtsão mofina. O Sere- céga, seguida de arbustos cerrados, fez-lhes ver
lépe deu de hombros e tornou •: que estavam chegando. - Isto animou-os. Deram-
Ninguém diga que num vórta,
se os abraços. Elle ertlaçou-a pela cinta, cari-
Quano arruma a troxa e sái. nhoso, ella cingiu-lhe o pescoço, amorosa. E ro-
Quero morre nesta terra bustecidos pela paixão que unira os seus destinos,
Onde tenho mãi e pai. — plangente, melodioso, evocando agruras pas-
E a roda, num sapateado vivo, repetiu, pían- sadas, entoaram em dueto um descante em
gente á copia final: surdina:
«Quero morre'nesta terra Quano chega minha hora
Onde tenho mãi. e pai . . . > Um só desejo me anima ;
Na cova de sete parmo,
E o fanhoso vate, sem esperar pela 'resposta, — Eu embaixo, ella em cima . . .
alteou a vóz e cantou : Não tenho medo da morte
. Quem arruma a trouxa e sái, Seja a mais feia que fô;
E' que tem negocio sério ; Quero i depindurado
Eufconheço um carniceiro Nas azas do meu amô ! . . .
Que já foi barão no império . . . E num movimento brusco, peito a peito, uni-
Jogado quano é matrêro, ram com força os lábios se,dentos . . . .
Pra joga prepara o maço, Da rnacéga ao lado, um urro de íéra a quem
Serelépe é bicho esperto,
Mas um dia cái no laço . . . . tomaram a preza, partiu.
E os dois canos duma garrucha, duma só vez
"Eta [cabocro d'espirito ! Chupa truco, Bas-
despejaram, num estrondo de roqueira, a metra-
tiãosinho ! „ E este, apontando para a compa-
lha assassina. E antes que se dissipasse a fuma-
nheira que o olhava embevecida, chorou no pinho:
rada que suecedeu ao clarão do fogo, um vulto
A muié que agrada os lióme,
Tem sempre cintura fina ;
cahiu sobre elles. Á luz pallida das ultimas es-
Serelépe cái no laço trellas — mudas testemunhas do nefando crime,
Se for sorte, se for sina . . . . — um brilho argenteo faiscou no ar . . .
Quano chega minha hora, Mas o abraço durava . . . A morte queos.sur-
Um só desejo me anima . prehendera num arroubo de amor, inteiriçara-lhes
Na cova de sete párnio,
os membros. E rijos, tezos, hirtos, como'um pi-
• — Eu embaixo, ella em. cima . . . .
nheiro que se abate, os dois corpos tombaram.
Não tenho medo da morte
Seja a mais feia que fô . . . . E sobre elles então, naquelles corpos que a
Quero i depindurado morte unira nnm abraço titanico, fundidos num
Nas azas do meu amô . . . . ultimo beijo, unificados para a viagem eterna,
nas azas do meu amô ! . . . . num furor iconoclasta, satânico, espantoso, o her-
É o bate-pé ferveu em roda viva, até que pe- deiro das glorias paternas, cevou-se na vingança
las três da manhã, os primeiros parceiros foram hedionda. O facalhão brutal com que o velho
240 A NOVELLA SEMANAL
Indifferente, má, quasi divina». Uma divina indifferença. Não riu, não sorriu
não choiou, não cahiu desmaiada, não sentiu a
II
menor emoção; disse apenas: — Esses estudantes
Não digo mais nada; um mez depois da pri- são uns infelizes; qualquei italianinha os perde
meira visita Paulo era noivo da senhorita Marianna. Divina, pois não achas ?
Fiquei boquiaberto, mas, nem por isso, duvidan- 1
S. Paulo 1921. JORGE FALLE1ROS
do menos. Pudera não! Se a familia havia
pedido prazo até ao dia da formatura !
III
O contracto que acabo de narrar se deu ha
uns dois mezes mais ou menos. Hontem assisti
ao casamento do meu irmão. Não houve outra
assistência além da minha. Fizemos a cousa ás
escondidas.
— Como assim? perguntará o leitor— pois a
PEITO-LARGO
noiva não tinha pedido um prazo enorme ? Eram decorridos alguns anos dês que o Guedes
De facto; mas é que elle não se casou com a comprara uma escassa bem que fértil gleba na,
noiva. Casou-se com uma pequena italiana, cos- sesmaria. "dos Cedros," quando lhe nasceu a Es-
tureirinha corriqueira. mera, "Merínha," consoante tratamento casei-
Paulo tinha o máu costume (por, mim varias ro, que era o alvo dos seus mimos, o ai Jesus!
vezes reprehendido) de ir estudar no Largo do da casa. . ,
Arouche porque o nosso quarto é um tanto es- Ajudava-o valentemente nas roças o filho mais
curo. Ora, aconteceu que a italianinha passava velho, o Neco, que já ia pelos vinte, com uma
por ãlli todos os dias, e elles se entreolhavam mu- notável estatura, torso de íutadpr e pulsos respei-
tuamente. E, como o Diabo escreve torto por táveis e tal arcabouço que bem justificava a al-
linhas direitas... o resto o leitor já sabe. Tam- cunha com que mais tarde vieram a nomeá-lo.
bém o pae delia veiu a saber e quiz que a policia Sua índole é ações, nada prenunciavam então
também o soubesse. Esta forçou meu. irmão ao que justificasse o renome e por completo briga-
casamento. Uma desgraça! Fiquei desconsolado. vam com esse sugestivo e lendário nome de guer-
—- Mas Paulo, — disse a meu irmão — que ra : era um borrêgo simples,' morigerado e timo-
fizeste? Deitaste a perder a tua honra, a honra rato. Se ia a festa,, como sofrível folgaz, e moço
da nossa familia, todo o teu futuro... que era, jamais alguém o vira excedesse em be-
Como, porém, elle começasse a • chorar como, bidas, tomar de cartas para jogar dinheiro ou
uma creança, de tal maneira que fazia dó, tive rentàr a qualquer. Ia aos terços e motirõés, sem
pena d'elle. Consolei-o: prescindir de convites, e tal era o seu porte nes-
— Mas afinal.1., agora... que diabo! sas reuniões, como em toda parte, que chegavam
a cumprimentar o Guedes pelo filho que possuía,
IV o qual era por outro; pais apontado á prole co-
Hoje estava eu fingindo esperar o bonde no mo modelo. '
Largo dos Guayanazes, quando me encontrou um Ha peroração das paternais admonendas suspi-
collega de pensão. ravam :— Se Deus me houvesse dad i um filho como,
— Estavas esperando o bonde? o Neco!,
— Não. Estava te esperando a ti para prosarmos,. Àquele sim! Trabalha em casa toda a semana
Não tínhamos prosa. Passou por nós uma e aos domingos, antes do pasaeio ou dâ caçada,
rapariga. vai á missa. Não ser recolhe para o quartinho á
— Divina, pois não? — fez-me elle. noite sem a bênção do pai, para que tenha um
— Deixa disso! — respondi com uma idéa fi- bom sono e seja feliz. Ali está um rap?z ás di-
xa. Só houve na terra uma mulher divina. reitas !
—. Qual terá sido, Deus de bondade! Acompanhava a irmã á missa ou a algum vi-
— Foi a noiva de meu irmão no momento em zinho que reclama -sua presença dela para que
que soube do casamento d'elle. desse uma demão ás panelas Ou ao' forno, se o
— Estás maluco? cumprimento de um voto > religioso determinava
— De facto, aauella indiffereaa»wjgL divina. para algum sábado ou véspera de santificado uma
242 A NOVELLA SEMANAL
ladainha em oblata ao santo respectivo, sucedida lhou de casa em casa que o decoro da casa do
da ceia e danças consuetas. Guedes fora conspurcado pelo Dito e que a pobre
Reconhecidamente hábil, péchosa em todos os Esmera ia ver-se constrangida pelos tentáculos de
•seus dons caseiros, a moça já aos dezesseis anos um dilema: a casar-se a todo transe com o chas-
era admirada pela diligencia e pelo esmero com quete do rapaz que a desdenhava, ou a eivar pa-
que, bem justificando o seu nome, se desobriga- ra sempre a honesta velhice do pai e as honro-
va de tais tarefas. Caseira e dedicada aos seus, sas, bem que humildes, tradições da familia.
era parca de sorrisos, avara de suas graças, co- Avultava-se a mu rmu ração odiosa, insinuando
medida em palavras, mantendo onde quer que que Esmera já não podia agora dissimular a pres-
aparecesse a mais irrepreensível e louvável.com- sa, talvez a leviandade com que afiusara nos pro-
postura. testos do noivo infame: sua falta, dia a dia, se
Seis meses, se tanto, havia que se mudara para tornava conhecida, evidente.
os "Cedros" uma familia procedente de municí- Pela manhã de Maio, eneblinada e fria, a pe-
pio cercão. As visitas usuais, a reciprocidade de quena e desordenada estação ferro-viária, de pou-
serviços em motirões, ocasionaram para logo a co levantada no seio da mata, vinha se animando,
aproximação das duas famílias. com a aproximação da hora em que devia passar
O Benedicto, "Dito", como lhe chamavam em o único trem diário de passageiros que a visitava.
casa, filho dos nossos vizinhos, em pouco acama- Chegaram fazendeiros, de chapéu de palha,
radou-se ao Neco, que a miúdo o levava para brancos, envergando sobretudos, rebuçados com
casa, aos sábados, ingressando-o até á cozinha, cachinés e repetenando-se nas almofadas do tróli;
onde conversavam junto ao fogo, conversas que ora um cavaleiro moço, de botas e rebenque,
muita vez eram continuadas no quarto do hospe- precedendo ao pagem condutor da mala e que,
deiro, onde o hospede evocava saudoso os encan- recebia às bridas ao apear-se o patrão.
tos do "Arvaré", como êle chamava á cidade pau- Alguns, trigosos e impacientes, iam-se abeiran-
lista, estropiando-lhe o nome., do da bilheteria deserta, a contar dinheiro, tiran-
Esse acotiar á casa do Guedes o foi, dia a dia, do do bolso do colete os níqueis para perfazerem
rendendo aos encantos de Esmera e a sua apro- o custo da passagem. Ociosos passeavam a plata-
positada guapice e rebuscada destreza ao trabalho forma, indiferentes, em passos á toa, e pretas
grangearam-lhe em breve a sua confiança. Assoa- quitandeiras, descobrindo taboleiros portáteis, ex-
lhou-se pelo bairro que a menina deixara de ser punham, junto á parede do edifício, as suas
a princeza encantada dos contos e topara final- mercês.
mente homem que lhe baldasse a timidez e lhe Um silvo possante, novelos de fumo entrevistos
frustrasse a esquivança. Diziam-nos até noivos. na próxima curva e, em uma gradativa conten-
Decorrido o tempo preciso para que se colhes- ção de marcha, o comboio abeirou-se, ruidoso, a
sem as informações sobre o pretendente, período resfolgar. Um rapaz vestindo talvez a sua melhor
de observação que se impusera o velho, foi o e mais nova fatiota de brim, que desde pela ma-
r
'Díto" admitido a participar dos trabalhos, penas nhã aí estava, já de posse da passagem, tomou o
e alegrias da familia como seu futuro membro. estribo de um carro de segunda, entrou, sentou-
Já o vizinho se lembrava, queixando-se, de que se junto a uma janela, cujo vidro desceu, e pôs-
"quem casa uma filha ganha mais um filho e se a olhar para fora, com um ar de satisfação e
quem casa um filho perde-o." Era o que lhe ia tranqüilidade.
fazer o Guedes, usurpando-lhe os direitos e talvez Um cavaleiro a meio galope sustou o animal
a afeição do filho. junto á cerca que guarnece a linha e, apeando-se,
Falava-se em marcar o dia, quando as visitas varou pela estação, abrigado por um espesso pon-
do noivo se foram espadando, até que de vez se cho-pala, cuja gola levantara até o queixo. Dirí-j
cortaram. A' menina foi-se-llie crescendo o re- gindo-se para o trem, defrontava conhecidos que
traímento, tornando-se mais recolhida, rindo-se o cumprimentavam :
raras vezes. — Olá, "seu" Neco! Então por aqui? Bom dia.
Deixou de sair, declinando dos mais instantes e — £' verdade. Bom dia . . .
-amáveis convites. v"" O viajante moço, debruçado á janela, ao vê-lo
E a choquice deu-lhe para a palidez: parecia aproximar-se, intimou-lhe com arrogância:
doente. — Pare aí. Acho bom você não se chegar
O boato malévolo, o abominando,-, onsta, espa- muito, não. >
A NOVELLA SEMANAL 243
O Neco, com um amargo sorriso, parou, obtem- Na, estação, antes que acodisse a? ação e a ini-
perando persuasívo e calmo: ciativa ás duas únicas praças de policia presentes,
— Que é que você receia, Dito ? Não brigo já o Neco, pouco antes apodado de poltrão, desapa-
com ninguém, como você sabe, e não trago ar- recia pela estrada arenosa paralela ao leito da linha.
ma. Olhe. E, tirando as mãos de sob o pala, agi- Mais tarde, quando foi a júri, aureolado pela
tou-as abertas, acrescentando, conciliador: simpatia popular, aclamavam-no e os jornais Ihe-
—Í Vim só para conversarmos Um pouco. En- faziam referências cheias de subtítulos, chamandõ-
tão é certo que se vai embora? lhe Neco Guedes, o Peito-largo.
— Para Botucatú. Estou entejado do sertão - ' indiferente a essa significativa antonomásia, o Ne-
Você embarca também ? co acareou a estima, a admiração e o respeito gerais.
— Não. Lá em casa estão chorando, por amol- Peito largo é hoje, até onde vai a sua fama,
de você... E o casamento, Dito, não sai mesmo ? simultaneamente temido e bemquisto.
Minha irmã como fica? Venda a que elle chegue deserta-se logo e a
—-Ora essa! Fica como era: nada lhe fiz, não sua presença desfaz rusgas' em começo, é portado-
lhe tirei nenhum pedaço . . . Casa com outro; há ra de reconciliação e de ordem. No entanto con-
tanto rapaz por aí. tinua sendo êle em casa o calado, o pacifico, o
O Neco voltou o rosto, por esconder a palidez, cangueiro de outros tempos.
e continuou: Pirajú (S. Paulo) 1898. CARLOS DA FONSECA
— Não é isso. Você bem sabe - e está se fazen-
do desentendido. Merinha não pode casar com
outro. È, aproximando-se mais, perguntou em voz '
frouxa, com um tom de piofunda angústia:
— E . . . a criança, Dito ?
— O'filho? Tudo se remedeia: você casa e
leva-o para criar. Não gosta de um sobrinho ?
Curiosos, interessados no dialogo, saboreando
o cômico e o inédito da scena^ os circumsíantes
sentiam-se boquiabrir ante aquela incrível poltro-
TIO GA IEL
Chovia desregradamente e as águas cahindo no
neira. Um viajante, apoiado ao "break", retirou-
inferno do monjolo velho, enchiam de clamores
se cuspindo, enojado, a murmurar: '
aquella noite escura. Com as barbas derramadas
— Apre ! Já é não prestar ! Tamanho homem ! sobre o ponche azul, mãos espalmadas para o ca-
Quem ouve destas e nada faz . . . lor da lareira, pois que a estação era de inverno,
O Neco baixou a cabeça trêmulo, meio cego, entretia-nos o nosso pae, recordando o seu tempo
livido, cruzando os braços ao largo peito, sob o de moço, quando enganava as velhas por causa
pala; e, como se calasse, o interlocutor pergun- das jovens e usava gravata de laço longo para os
tou a escarnear: exames em Palácio. Não fora songo e os"seus
— Então, é só ? Olhe que já houve signal de olhos, rebrilhando nas orbitas-fundas, diziam muito
embarque... em abono dos feitos que nos ia narrando. As
/ — E minha irmã? P e n s e . . . montadas e os novilhos nedios da chácara do
— Não tenho tempo de pensar. Adeus í Quer Pary; as fugas do collegio dos educandos em
alguma cousa para Botucatú ? SanfAnna, as festas da Penha e, sobre tudo, os
— Nada. Muito obrigado! Boa viagem'. sustos ao preto Manoelão, doceiro de Sinhazinha
O Dito, triunfante, a impar, estendeu a mão: Machado, passavam vividamente pela nossa ima-
— Então, adeus, Neco . . . ginação exaltada ao calor do brazido, aos arrou-
O rapaz, que já descruzara os braços; deixan- bos por vezes eloqüentes do narrador. E á con-
do-os caídos aos flanços, quando já tangera uma versa derivava deliciosa, cheia de encantos para
sineta e a locomotiva arrancava, tirou rapidamen- nós, cheia de saudades para o ancião. Gabriel, o-
te uma arma. heróe de todas as façanhas, companheiro e salvador
O estrugir de um tiro misturou-se ao silvo de daquelle que, para nós, tomava as proporções dum
partida e ao entréchocar de ferros em movimento. ser divino, insinuou-se em nosso affecto, assenho-
Quando, passada a estupefação da surpreza e reou-se da nossa alma. Quem era esse Gabriel ?
do terror súbito, alguém se lembrou do aparelho — Quem era? pois ainda não sabem que falo.
de alarma, já ó trem corria, levando o cadáver do seu tio Gabriel ? Arre ! . . .
de um passageiro. Uma dessas pausas communs nas palestras, so-
244 A NOVELLA SEMANAL
breveio á exclamação do velho que, em silencio, se duma jluz triste, melancólica, apagada. O sof-
apertava com a unha do pollegai a ponta encan- frimento extinguira o brilho daquellas pupillas
decida do cigarro, pensativo a olhar os carvões negras. Reavivou-se a lareira, erepiíou o lume
c-repitando no ladrilho. para guizados ligeiros, emquanto o nosso proge-
— Em que está pensando? interrogou um de nós. nitor rejuvenecido até, narrava ao tio Gabriel os
— "Não sei porque, respondeu-nos, fui soprar pensamentos fúnebres que tivéramos sobre a sua
essa cinza, essa poeira que os annos haviam aca- pessoa. "Ora veja, mano : chorávamos a sua mor-
mado por sobre tantas passagens da minha mo- te e você bem vivo, tão perto de nós; foi Deus
cidade ! Olhem, o coração da gente é como este que nos enviou aquellas maguas para melhor go-
brazido: venha a recordação reavival-o como faz zarmos este encontro inesperado. Chega de tanto
a aragem ao fogo e as saudades se ateiam como peregrinar; moraremos juntos, a casa é grande".
brazas, queimando mais do que ellas. A casa é grande — repetimos nós, olhando as
feições esbatidas do tio Gabriel. O seu porte não
Disse tanto do mano Gabriel e elle, coitado !
correspondia ao vulto que imagináramos atraveí
onde estará a estas horas ? Desde que a esposa
da eloqüência paterna. Não era\um forte; o cor-
morreu, nem commigo quiz morar; andava lar-
po se arqueava como si um peso o acurvasse para
gado, sosinho, alma penada a cumprir um fadario
a frente e as faces duma côr de cera pareciam de
triste, assombrando os viajeiros das estradas do
morto. Eram três horas da madrugada e ainda se
oeste. Nunca mais soube delle; talvez já não exis-
conversava animadamente ao redor da mesa quan-
ta, o pobre! Quem lhe haveria cavado a cova ?
do um bocejo longo nos fez pensar no cansaço
talvez morresse ao longo dos caminhos, sem uma
do velho tio. Demos-lhe o quarto da sala, desti-
prece, sem urna cruz para dizer que alli dormia
nado aas Hospedes. Coitado! ha quantos annos
um christão. Nem sei porque fui tocar nesses tre-
não veria nm leito bom como aquelle ? Ficamos
chos do meu passado, que me dormiam cá dentro,
ainda á mesa em commentarios cheios de excla-
no velho coração, frios como em cemitério."
mações e surprezas. Lá fora amiudavam os gallos
Seus grandes olhos choravam e nós commovi- e a chuva cedia; do beirai já gottejavam as ulti-
dos viamos também entre lagrimas, a cova pobre mas .águas da1 tormenta.
do tio infeliz, sem epitaphio e sem cruz.
Lá fora, continuava a chuva fragorosamente e Dispunhamo-nos a dormir as horas que restavam
as águas, cahindo no inferno do monjolo velho, para o amanhecer quando ouvimos o chapinhar
enchiam a noite escura de clamores. Um medo de um cavalleiro apressado e logo um ancioso —
se apoderou de nós. Era já bem tarde e o vento, "O' de casa! "
soprando no beirai, 'embrava choros, imitava ge- Que historia! exclamou o velho chefe; alguma
midos. Recahimos num silencio mortal; amedron- nova surpreza ? Abriu-se à porta. Um mulato ma-
tados, não ousávamos fitar uns os outros, quando gro, sem1 reverencia alguma saccou do bolso um
uma voz forte nos gelou o sangue com um po- telegramma. Dentro estava escripto: — Em Rin-
derosíssimo — ''O' de casa! " Ninguém respon- cão ; casa de amigo; meia noite, falleceu Gabrjel
deu. Quem seria? Era fanhosa a voz. "Vou abrir Lopez. Gabriel Lopez ! não era o nosso tio ! não
a porta," disse o nosso pae. Não vá — gritamos repousava na alcôVa da sala ? Havia de ser en-,
nós. E nesse entremeio de "vou" "não vá", amai- gano; voamos ao quarto, escancaramos a porta...
nou-se o vento; aproveitando a calada, a mesma Nada ! tudo vasio ; o leito sem uma ruga, intac-
voz retumbou e desta vez, accrescentando o no- to. Unicamente um mystico aroma de incenso e
me do chefe da familia. Não havia duvida, era rosas murchas perfumava o aposento vasio. Fora
gente conhecida. A porta se abriu. No fundo ne- uma visão; fora o fantasma do tio Gabriel.
gro da noite, mal alumiado pela chamma dum
lampeão, pudemos apenas ver um homem alto,
grande chapéu na cabeça, molhado inteirinho. Um Longe vinha o dia pallidamente. Na meia luz
sopro de vento apagou a luz. "Entre! " foi o que da nossa memória vibratilizada pelas emoções da
ouvimos e depois, o ranger dos quicios emperra- noite, desfazia-se aos poucos a personalidade mys-
dos da poita que se fecha. No clarão davasaJa- teriosa do Tio'Gabriel, cujo' olhar velado duma
de jantar, com voz tremula apresentou-nos o nos- tristeza que parecia eterna, diluia-se como as ul-
so pae ao desconhecido : "seus sobrinhos" ; e a timas estrellas nos esplendores da manhã, enchen-
• nós : "seu tio Gabriel". Tio Gabriel! Possivel ? ! e do-nos a alma duma dôr profunda, cónvidando-
precipitamo-nos para os braços delle, enchemol-o nos a chorar. E choramos sentidamente.
de caricias. Mas, os seus olhos fundos trasvasavam EIRA
A philosophia de Tan nhum guerreiro entediado, foi por va pote. Pois~si o seu t a n g r a m m a
mim deduzida, do texto, incomprehen- só dava para isso... ,
sivel aos olhos'do vulgo, bem que eu E eu estou com o chinez. As theo-
Nunca li obra alguma do philoso- não seja nenhum matador em dispo- rias philosophicas são um traço cari-'
pho chinez. Sei-lhe apenas o nome e nibilidade. catural, cujo complemento imagina-
conheço-lhe o invento, que aliás, é E u sempre achei exquisito o tan- mos de aeeordo com aJFpropria idío-
obra de fôlego : úm brinquedo de gramma. Fazer' uma gallinha, de- syncrasia... Assim, no geral, a ca-
creanças... compol-a e, oom luas partes, crear rantonha do autor degenera, na dà
Si Tan escreveu algum tratado igno- u m homem, sem, no entanto, lh'as gente. '
ro-o ; si existiu, não -sei'; mas com dar a comer,! Ou de um ganso fazer E eis ahi com o que .brincam me-
certeza, era philpsopho e chinez. Si. uma frueteira ou um lampeâo !... ' ninos e Bonapartes — com o sueco de
duvidam informem-se do tangramma, . Simples e profundo ! (Pudera ! Não
Qualquer um, me^mo um p i r r a l h o ! fosse tal e desabaria sobre mim o todas as sabedorias. Sempre è uma
esclarece 1-os-á, aTespeíto, recortando mundo todo para vingar-sc da affron- grande verdade que 6 simples ó o
. em papel cartão quadrungulár as sete ta que lhe faria em ser profundo e profundo.
cabaliscicas, geométricas figuras : um complicado.) Magno Tan !
parallelogrammo, um qxradrado, dois BKKNNO FERJCSÜ.-
triângulos grandes, outros tantos me- E puz-me a pensar, largos dias, na
nores e um médio. Com esse barro chiheza intenção oceulta, que presi-
fazem-se homens e coisas e até aquillo dira a faotura do magno, brinquedo.
que satan não' houvesse imaginado. Al,li havia dedo...
E o pequeno que isto lhes disser
accíescentará, por certo, a guiza, de
Transcendi. Passei pelo monismo
e1 detestei Haeekel" pelo Evolucionis- Avíd^-^écdiDtíca.
indefectível credencial, a particulari- mo e abominei . Spencer... Chegara
tarde para ' formulsr essas theoriás,
.é pifÍer&Ê&;405 :-Z
dade '-notável'de ter sido o t a n g r a m - que aliás estavam ha séculos alli, la-
ma o passatempo predilecto de Na- tentes, no papel recortado. Consolei-
poleão I. me, afinal, com o diminuir-lhes a
,E me venham dizer, depois, que gloria,, dizendo que muito antes o,meu
Tan não -era philosopho e chinez...
Pouco importa que elle nao tenha
Tan j á fizera do Um sahir o Tudo e o Epclydes da Cunha
Tudo voltar a Um. E com grande
existido, listará, então, em muito vantagem sobre aquelles dois, porque
b o a , companhia, - junto de Homero, Euclydes da Cunha viveu em São
não escreveu, mas demonstrou mate- Paulo. Fez-se em nosso meio e entre
Lycurgo, Siiakespeare e celebridades rialmente a Verdade... O seu invento ,nós escreveu «Os Sertões>. Fartamen-
taes, bastante celebres para que sua ó a corporisação daquellas philoso-
existência seja posta em duvida. O te conhecido, portanto,: em nossas me-
phias. lhores rodas, fácil se torna apanhar
facto é que existe a obra prima da
quinquilharia, que é delle. Nós somos tangrammas ; viver é algumas notas sobre a sua vida, isto
brincar com tangrammas ; o mundo é, sobre o seu modo de ser, a manei-
, Eis quanto basta para haver u m a ra de encarar as coisas e de se con-
philosophia de Tan. Mas ainda ha não passa de um grande tangramma... duzir entre os factos.
mais. Pois o passatempo de Bona- Sim, senhores. No fundo tudo é pa-
parte poderia djeixar de t e r , u m a phi- pel.;, perdão ! matéria e o que faze- A propósito, a personalidade do
losophia ? Não se concebe irreverên- mos é dar-lhe esta ou aquella forma. grande mestre do estylo se revelava
cia tamanha. 0 tangramma precisa, E a alma ? sempre typic.i, inconfundível, com
ter, tem uma profunda sabedoria, es- , A. alma também é rim quadrado de um caracter aneedotico' significativo
trangulada, esquartejada nos seus se- papel a se recortar, á medida que de bem vincadas feições moraes. A
te pedaços, como por certo, o bom crescemos, nas sete figuras «tangram- verdade a seu respeito é, sempre, ver-
chinez também ofoi. (Precisa ver-se matícas». E são ellas que, quando 1 dade pittoresca. E' que a originalida-
que um chím de gênio devia ter mais queremos philosophar, se põem a dan- de estava-lhe nos instinetos, no -mais
de quatro >quartos). sar, desordenadamente, em nosso cé- profundo dos nervos.
Pois é isso. 0 brinquedo de pape- rebro, até que se coordenam em uma Entre os episódios dó seu dia a dia,
lão foi inventado por um philqsopíio, imagem. 'Mas esta varia de indiví- conta-se um, oceorrido nesta capital,
que lhe transfundiu alguma coisa' de duo para indivíduo, porque não está em casa de distinetopaulista. E : uma-
sua alma, poíque Napoleão não era na sua vontade armsfr o tangramma passagem simples, vulgar, mas cheia
qualquer, nem era homem p'ara ma- da razão assim oxi assim. Nascemos 'Se significação. Anima-a ó grande po-
tar tempo. A expressão "passatem- j á com a silhueta bosquejada no ín- der aifectivo, o forte sentimento, que
po" é o que-ha de esfarrapadámente timo, mais ou menos definida nesta dis^inguia o genial brasileiro. Ressu-
eitphemieo. Ell,e matava coisa me- on naquelle. 0. trabalho é determi- ma, ao mesmo tempo, uni amor pró-
l h o r : a gallínha, b ganso, o vende- nar-lhe os contornos, justapondo-lhes prio hypertrophiado e um orgulo tão
dor de porcelana, o homem na bar- os polygonos para resaltar a nossa
quinha e outros animaes que , se fa- personalidade. E é difficil isto, por- ' profundo quão insopitaveL.
zem e desfazem com o, tangramma. que alguns- têm mais de um bosquejó Euclydes da Cunha-, quando de pas-
Sempre .fera... "' , e de um-para outro andam, sem nada sagem por São Paulo, hosped,ava-se,
geralmente, com ,um dos seus amigos.
E, além disso, .tinha pra.zer ainda conseguir cie eítavel... Mesmo com família, mulher e todos
maior : gosava o riso philosophieo, Na razão do valor da c-ffigie qtie os filhos, um bello dia lá vinha elle
sardonico, esboçado naquelles carac- i compuzermos está o nosso talento.' — gente de casa, que chega e entra
teres cuneiformes e nelles via a morte Quem não sae.do quadrado é... natir- , e, quando vae, só deixa saudade. Uma .
moral do gênero humano... '' ralmente,-quadrado. Quem chega ao ' vez, de mudança, precisou deixar nes-
Era isso. Devia ser, ao menos, por, lampeâo é menos grosseiro. E aquelle sa casa algumas malas, engradados e
honra da firma. B, si nao foi, me- que confecciona o ganso é quasi a- outros volumes, ,que na occasião não
lhor para mim, que terei, nesse caso, gnia. .Nessa proporção também está podiam seguir com elle. Muito bem.
para honra da familia, a prioridade a nossa philosophia : simplista, ba- Lá ficou tudo sem maior incommodo
na decifração dos sete hieroglyphos. rata, traseendente... , pára quem quer que fosse.
A philosophia do nosso homem — Tempos depois, volta Euclydes e
como se vê — ó extraordinariamente procura o que era seu. Levam-no ao
Começarei, portanto, por dizer que monista. Admitte a existência de to- porão. Embora na meia obscuridade
a philosophia de Tan, si nao e delle, das as outr-is, que não são mais que- daquelles quartos baixos, mas nem
é minha, bem que eu não seja chim; formàs da verdadeira. Admitte mes- tanto que nelles não se andasse á von-
,e, si jamais foi entrevista por ne- mo aquella do suieito que,, se julga- tade, os seus guardados ficavam bem
24S A NOVELLA SEMANAL
F a s c i c u l o 21. 5 F a s c i c u l o T\.O 1 1
O L u n d u m — José Veríssimo . . . 73 A resalva — João Luso . . . , !Bí*
A Feiticeira — Inglez de Souza . . . 7B A V i r g e m d a s e s m e r a l d a s - C a s t r o .Menezes . 172
Uma Santa Brasileira — Santa Diana — Lima O velocípede — J . Ramos . . . . . 171
Campos . , . . SO A e s m o l a — Mario Sette 177 ,
G , C . P . A. — H a s t a o C r u l s . . . . K3 Tia Elisa — J u l i o Scheibel . . . . . . 179
A carta do suicida — Sud Mennncci . . . i»)
S U P P L E M E N T O - Vida literária — Psycholo-
gia do tlieatro . . . , . .' 86 S U P P L E M E N T O .— A v i d a a n e c d o t i c a e p i t t o -
C u r i o s i d a d e s l i t e r á r i a s — «A C o m e d i a » . »~ resca dos grandes escriptores — Amadeu
Os n o s s o s p o e t a s — U m a s a t y r a d e H i l á - Amaral — Paulo Duarte . . . . . . 182
rio Tácito . . . . . . . . 8b C u r i o s i d a d e s literárias — Pensai»entos de
EU3- B a r b o s a ( C o l l e c t a n e a d e M a r i o d e L i -
m a Barbosa) . . . . . . is.i
Fe.scic-u.io n . 43 R a c i n e em C a f é - c o n e e r t o . . . . IS&
Preço d e f S a n g u e — Jorge Falleiros . . . 89 L e c o n t e d e I-i.sle — ,le;m D o r n i s . . . 1S4
O s v:cios d e l l e s — .Tulia L o p e s d e A l m e i d a . . 91
Ciar,nha d a s r e n d a s — Mario Sette . . . 93 F a s c i c u l o n . o12
conomiar domestica — Euclydes Andrade . . 100
Na escola — José Sizenando . . . . . . . 185.
S U P P L E M E N T O — A vida anecdotica e pitto- Conto d e F a d a s — Raul Pompeia 1Ü8*
resca d o s g r a n d e s escriptores — Simões A c a r a d o m e u visinho — J u l i a Lopes de A l -
Pinto — Lourenço Filho 102 meida M
Vida l i t e r á r i a — O p a r a d o x o d a c u l t u r a A. M. 102 A v i n g a n ç a d o T e i x e i r i n h a — JSicolau P e r o . : 192
Curiosidades literárias — VERSOS — João C h r i s t o — S y l v i o Kloreal -194
Ribeiro . . . . . . . . 103 T r a p o s d a vida — Manoel Víetor . . . 196
F a s c i c a l o n . 7 S U P P L E M E N T O - Vida l i t e r á r i a — V i s ã o g e r a l
d a l i t e r a t u r a b r a s i l e i r a — M o n t e i r o L o b a t o 198
Briga d e gallos — Julio Scheibel . . . . 105 A a u r o r a d e C a s t r o A l v e s — B o n a l d de
L a g r y m a p e r d i d a — Lúcio d e Mendonça . . 107 Carvalho . . . - . . . ' 199
O Cordão — / f bales Andrade 111 C u r i o s i d a d e s l i t e r á r i a s — L i t e r a t u r a do
O Arrepio — Oscar Lopes . . . . 11 ti outro mundo, . . . , 200
S U P P L E M E N T O —Vida Literária -'CRITICA
— Melían Lafmur . . . . . . . 119 F a s c i c u l o n . o -13
P a g i n a s Celebres— D a «Arte de F u r t a r » . . 119
L e i t u r a s — O nome Brasil — Questões de A v e l h i n h a — Affonso A r i n o s . . . . . . 201
P o r t u g u ê s — lli-liyuiils d a M e m ó r i a 120 Má s i n a — Lucilo Varejão . . . . . . . 203
Os n o s s o s p o e t a s — U m a bella i m a g e m 120 O n a t a l d e V o l t a i r e — E d u a r d o P r a d o . . . . 204
A e r m i d a — Rodrigo Octavio . . . 207
O poder d e D. Domitilla — V i r i a t o Corrêa . 209
F a s c l c u l o ín o 8 O a v ô — G-odofredo R a n g e l . . ... . . 210
Rogério, o rude — Raul Pompeia 121 O Tio d a Escócia — Luclo de Mendonça, . . 211
U m p r o b l e m a d e p s y c h o l o g i a — L é o Vaz 123
121 S U P P L E M E N T O — A vida a n e c d o t i c a e pitto-
A f u g a — Aftbuso A r i n o s . . . . . . r e s c a d o s g r a n d e s e s c r i p t o r e s — U m a car-
Noite d e São J o ã o — Luiz Carlos . . . 127
129 ta inédita de Euclides 211
" M ã e M a r i a " — Olavo B i l a c . . . . . Vida l i t e r á r i a — G-óea T a t u n a A r g e n t i n a —
J e s u s — T h o m a z Lopes . . . . 132 •Manoel ( l a l v e z H i j o 217
S U P P L E M E N T O — A vida a n e c d o t i c a e p i t - C u r i o s i d a d a s l i t e r á r i a s - - P o n s o n d u Ter-
t o r e s c a dos g r a n d e s escriptores — Euclides rail, poeta . . . . 215
da C u n h a — Viriato Corrêa . . . 131 O 'tactilismo» — S 215
Vida l i t e r á r i a — A Atlantid;i> . . . 1.55 Um discurso proferido pelo grammophone 2lfl
O s . - o s s o s p o e t a s — P a u l o Ku-ó — A.maderx Os nossos poetas — Simões Pinto . . . . 2 lli
Ar.nral . . . . 136 1
Paeinas celebres — De Anaereonte 136 F a s c i c u l o x&.o 1 4 -
Vida e l e g a n t e — J u l i o C é s a r d a -Silva . . 217
Fasciculo n . o <J A e n t r e v i s t a — T l i e o d o r o M a g a l h ã e s .. . . . . 219
Anecdoía pecuniária — Machado de Assis . 137 O h o m e m d a s c i r c u l a r e s — J u r a n d y r G o m e s ; 221
A lavadeira — José Veríssimo Ml S i m p l i c i d a d e — C o e l h o Metto . . . " 22i I
Natal no Lourenção - - Waldomiro Silveira 111 Dois idiotas — J u l i o Schcibol
A venda secca — Oliveira e Souza . ., lli
O veiho escrinio — F. Silveira . - 146 S U P P L E M E N T O - A vida a n e c d o t i c a e pitto-
O Tônico — João do Xorte 119 resco d e s grandes escriptores — Ricardo
G o n ç a l v e s — M, Vil l a ç a d e C a m a r g o . . 229-
SUPPLEiviENTO - - A vida anecdotica e pitto- C u r i o s i d a d e l i t e r á r i a s - - A ' s s e n h o r a s ha-
resca dos grandes escriptores — Coelho hiariii/i — C a s t r o A l v e s . . . .' . 230
Netto. . . . , . . . 150 O C e n t e n á r i o d e F h u i l i e r t — C. . . . 231
. Os nossos poetas — dnania verba» — B. F. 151 Paginas esquecidas O vocabulário —
Curiosidades literárias — A cAilantida» de Coelho Nctt.j . . . 23
iJlatão — 1-1. cie Rauville . O s n o s s o s p o e t a s — J u l i o César <ln S i j y a . 231
Leituras — Vultos e Livros — Figurões vis-
tos por dentro -*- Piraquaras . 152 F a s c i c u l o n . o 15
F a s c i c u l o m.o IO Alrna frivola - - S u d M e n m i e e i 2*1
C h i c ã o " D u a s m o r t e s " — Dima» C a m a r g o St.uin 235
A Façanha ,do Imperador Theortoro Maga- Divina — J o r g e F a l l e i r o s . . . . 210
lhães . . l r>:-s P e i t o l a r g o — Clarins d a Fonsee.i, 24!
Querer bem — Afranio Peixoto . . . I.'i8 Tio G a b r i e l — K. S i l v e i r a . . . . 213
Ultimo lance — Aluizio Azevedo 131
S,lo José — Thomaz Lopes . . . . 162 SUPPLEMENTO A philosophia do Tan
Brenno Ferraz 2-15
SUPPLEMENTO — A vida anecdotica.o piíto- A vida a n e c d o t i c a e p i t t o r e s c a d o s g r a n d e s
resca dos grandes escriptores - - Ola%o Bi- escriptores — Euclides d a Cunha — B F . . 245
lac — Mario de Alencar ,. Vti Vida literária — O j o r n a l i s m o e as,letras
Vida literária — Cupitaas literárias . . . 137 — J o s é V;.ria Bello . . . . . , , . 245
Tradição e novidade em poesia . . . '. 107 Ürupés n a Argentina , . . .!i'i
Curiosidades literárias — Helena, <.a dos P a g i n a s e s q u e c i d a s -•• P r i m a v e r a — Raul
braços brancos. - Helena, ca das bellas faces» 16H Pompeia . . . .
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