Desenhar Pensamento, Expressão e Linguagem - Divulgação
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Desenhar Pensamento, Expressão e Linguagem - Divulgação
Desenhar:
pensamento, expressão e linguagem
São Paulo
- 2010 -
Universidade de São Paulo
Desenhar:
pensamento, expressão e linguagem
São Paulo
- 2010 -
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou
eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação da Publicação
Serviço de Biblioteca
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
CDD 741
Epígrafe
Desenho é o tema ao qual esse trabalho se dedica a dissertar. Dividido em três partes que são o
pensamento, a expressão e a linguagem, trata do tema a partir de referências teóricas, bem como de seus meios
e materiais expressivos, utilizados no seu fazer, culminando em uma reflexão sobre seu ensino. O estudo
que ora se apresenta é resultado de pesquisas acerca de diversos pensamentos e reflexões sobre o
desenho aliado a uma seleção de imagens que complementam iconograficamente o texto. Uma das
contribuições do trabalho está em investigar a relevância do desenho para a arte e para a educação
artística atual. Sua abordagem procura ampliar os conceitos e compreensões do que seja desenho e sua
expressão material, refletindo como as novas tecnologias digitais convivem com os suportes e
ferramentas materiais. Considerando que os suportes, meios e ferramentas são elementos usados no seu
fazer, argumenta que conhecer a linguagem, no que ela tem de elementos fundamentais para a
comunicação, é necessidade básica para desenvolver o desenho. As pesquisas realizadas foram aplicadas
em um laboratório prático, que se constituiu em um curso de desenho oferecido para estudantes de
ensino médio em idade pré-vestibular. Finalmente o trabalho apresenta uma experiência síntese de
desenho em arte contemporânea.
Drawing is the subject of this following dissertation. It is divided into three parts, namely, thought, speech
and language, and deals with the subject according to theoretical references, and their expressive
environments and materials used in the making of drawing art, culminating in a reflection on its teaching.
The study now presented is the result of researches about several thoughts and reflections on the
drawing, combined with selected images that iconographically complement the text. A contribution of
this work is the research of the relevance of drawing to the contemporary art and art education. The
approach seeks the raising of concepts and knowledge of what drawing and its material expression mean,
reflecting how the new digital technologies coexist with media and material tools. Whereas the media,
environment and tools are elements used in their production, the dissertation argues that knowledge of
the language (in its essential elements for communication) is a primordial requirement to develop the
basic drawing. The researches have been applied in a practical laboratory, which was formed on a drawing
course offered for pre-university aged high school students. Lastly, this dissertation presents a synthesis
experience of drawing in contemporary art.
Sumário:
Apresentação.........................................................................................................................................................13
Introdução: Desenhar..........................................................................................................................................16
parte I:
pensamento
● Pensando o desenho;....................................................................................................................................21
● Modelos e modalidades; .............................................................................................................................31
● Arte atual e desenho; ....................................................................................................................................43
parte II:
expressão
● Formas do desenho; .....................................................................................................................................55
● O Meio é a mensagem;................................................................................................................................60
● Desenho e novos meios;..............................................................................................................................65
parte III:
linguagem
● Desenho e a escola;.......................................................................................................................................79
● Linguagem e ensino;....................................................................................................................................88
● O desenho e a imagem contemporânea;................................................................................................92
● Uma experiência síntese .............................................................................................................................95
Considerações finais.......................................................................................................................................102
Referências bibliográficas ............................................................................................................................105
Anexos ................................................................................................................................................................108
Imagem da Capa: Deyson Gilbert e Luiza Nóbrega, Intercâmbio (Performance). Barragem de Sobradinho,
Rio São Francisco, fotografia, Márcia Vaitsman, 2008.
Lay out de Capa: Guilherme Minoti
Revisão: Anderson Massao Tobita
Edição final: Paulo Marquezini
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 13
Apresentação
pensamentos, técnicas e metodologias que podem, a partir de uma linha de condução primeira,
trabalho. Para tanto, partimos de uma bibliografia fundamental, aliada a uma seleção de imagens
atualidade? Seguida da reflexão sobre sua educação, seu ensino e em qual medida ainda possui
relevância o seu aprendizado e sua prática. Desta maneira, uma investigação que se seguiu foi da
sua presença na escola, principalmente em relação a estudantes que optam pela graduação em
artes visuais, ou carreiras que envolvam desenho. Esta motivação se direcionou para as escolas do
ensino médio, devido à verificação da ausência de um preparo adequado da grande maioria das
vestibular de artes. Essas pesquisas iniciais originaram um curso de desenho que funcionou como
carreira de artes visuais. Esse laboratório foi fundamental para o desenvolvimento do trabalho e
permitiu testar alguns conceitos presentes nesta reflexão. Por esta razão o objetivo almejado com
tal pesquisa é, como uma função de uso prático, que seu resultado venha a servir
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 14
fundamentalmente a alunos em nível de ensino médio que procuram encaminhar seus estudos
para o campo das artes visuais ou áreas que envolvam desenho. A sua maior inspiração são estes
alunos, e sua aspiração é tornar-se um material que trate do tema de um modo adequado e
atualizado. Assim sendo, poderá também ser fonte de informação para professores que tenham
Claro está que o trabalho não está isento de erros, o que o leva a novas e aprofundadas
pesquisas e reflexões, para que os estudos se aprimorem e atendam a um rigor que o tema
“desenho” necessita. Uma possível, e justa, crítica em seu resultado final, é seu aparente
anacronismo, que, se é possível justificá-lo, resulta de uma pesquisa com vistas principalmente a
uma prática. Entretanto, as informações de caráter histórico e filosófico que se apresentam aqui
abarcar tudo em uma dissertação de mestrado seria obviamente impossível. Neste aspecto, o que
foi considerado foram reflexões que contribuem para questões do desenho que elucidam seus
modos de fazer, de pensar e de se estruturar como uma linguagem capaz de ser transmitida e
experimentada. Estas reflexões passam por artistas e autores que se dedicaram ao tema. As suas
escolhas feitas para este trabalho vêm de algumas relações e compreensões de conceitos que
podemos aplicá-los ao desenho ainda na atualidade. A ideia de ponto, linha e plano, é central no
trabalho, uma vez que aparecem em autores diferentes em épocas diferentes, e acreditamos que
ainda são válidas para se definir o desenho nos dias atuais. As transformações dos suportes e
materiais também constituem um dado importante do trabalho, que procura justamente entender
esta linguagem artística, como uma expressão humana embebida em conceitos que podem ser
alguém que vem das artes plásticas como formação acadêmica, portanto, a sua contribuição se
situa no campo da linguagem visual. É preciso dizer que desenho é tema apaixonante, e realizar
um trabalho como este é como nadar num oceano de informações, porém de águas aprazíveis.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 15
De modo que, embora o trabalho nunca chegue a um fim, a cada descoberta o fôlego se renova e
O que se espera é que esta dissertação colabore de alguma forma com a difusão da cultura
artística, principalmente num tema tão caro como o do desenho, e que venha a servir como
Imagem 1.
Introdução: desenhar
“El Dibujo es una de esas palabras que sobrepasan el ámbito Del discurso artístico para instalarse en
un marco más amplio de referencias”.1
(Juan José Gómez Molina)
uma ação que pode ser pensada e expressada, em um processo de síntese de ideias e conceitos
conhecimento que se estende da arte para outros campos da vida, é desdobrado em três partes
básicas, que são o pensamento, a expressão e a linguagem. Objetivando situar modos diversos de
demonstrando que há um sistema de comunicação, que podemos chamar de linguagem, que pode
ser transmitida por meio de seu ensino e ser compreendida e compartilhada por qualquer pessoa
A experiência criativa com desenho, ao longo da história, mostra também, por seus
racional do mundo. Então, pode-se dizer em uma primeira conclusão que é a partir do desenho
que o registro do mundo em que vivemos é realizado. A organização do espaço territorial, sua
ocupação pelas cidades, os objetos e imagens de consumo, são criadas por um desenho que se
reproduz no mundo. O desenho serve desde os períodos mais remotos, como planejamento de
Colocamos assim a ideia de que é por meio da representação gráfica, composta de linhas e
formas colocadas sobre um plano, que se faz possível estudar o espaço, pensar na construção do
abrigo, da casa, tornar presente e visível o que ainda não foi realizado. O desenho tem
característica de não ser um fim. Comporta-se como uma genealogia da obra de arte, como
projeto ou ensaio que deve ser observado, como elemento seminal de algo que virá a ser uma
obra acabada. Organiza assim, os espaços, com linhas que geram formas, funcionando como
Em certo sentido, o desenho se comporta como bastidor da obra acabada, sendo uma
parte do trabalho que muitas vezes não aparece em exposições de arte por exemplo. É um saber
das ideias que irão se transformar em objetos no mundo. A partir do estudo, da prática e da
experiência com o desenho tem início um modo de ver e relacionar-se com o espaço e com os
conhecimento das técnicas e dos diversos modos de seu fazer formam repertórios, revelam
conhecimento da linguagem do desenho permite uma organização expressiva que pode ter uma
Ignorar o desenho e seu estudo é deixar de refletir com maior profundidade sobre mundo
visível ao nosso redor. É ignorar o crescimento das cidades, o planejamento das edificações, das
casas, das ruas, da relação do ser humano com a natureza e das transformações decorrentes desta
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 18
interação. O universo de imagens que cada vez mais povoa o nosso cotidiano, reflexo do
desenvolvimento das tecnologias de comunicação, necessita de uma atenção sobre sua forma, que
pensamento, expressão e linguagem3 que, em suas definições em língua portuguesa encontradas num
dicionário como o Aurélio, curiosamente se contém uma dentro da outra. Essa proposição,
definida anteriormente, procura enlaçar que o seu conhecer se faz por meio de teoria e prática, e
que se desenvolver neste domínio depende de uma dedicação própria, que exige trabalho como
Sendo um tema amplamente explorado, escolher tratar do desenho, como já dito, foi
deparar-se com um volume imenso de informações, que ainda continua a intrigar e motivar novas
investigações. Por esta razão, o trabalho aqui apresentado não encerra assunto algum, mas
propõe desenvolver a percepção de que o desenho está plenamente presente em toda vida
cultural. Porém, tal percepção não é tão evidente e um problema é que no sistema de ensino
autores que pensam sobre este tema, alguns conceitos motivadores que se revelam como
fundamentos para a compreensão do que seja desenho. Estes conceitos apresentados arriscaram
50. A esta sequência seguem algumas considerações sobre as manifestações do desenho na arte atual.
3 Segundo FERREIRA (1985, pp. 360, 211, 293): Pensamento s.m. 1. Ato ou efeito de pensar. 2. Faculdade de pensar
logicamente. 3. Poder de formular conceitos. 4. O produto do pensamento: ideia. 5. Intelecto. 6. Recordação. 7. Opinião. 8. Frase que
encerra um conceito moral. Expressão s.f. 1. Ato de exprimir(-se). 2. Enunciação de um pensamento por gestos ou palavras
escritas ou faladas. 3. Dito, frase. 4. Manifestação. Linguagem s.f. 1. O uso da palavra como meio de expressão e de comunicação
entre pessoas. 2. A forma de expressão pela linguagem (1) própria de um indivíduo, grupo, classe, etc. 3. Vocabulário; palavreado.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 19
metade do século XX. A partir do conceito de que a escolha dos meios e materiais é uma
condição prévia que orienta e faz parte do resultado final de um desenho, tentamos ampliar sua
percepção pela via da materialidade. Assim como a ideia de desenhar não começou com o lápis e
o papel, sua tecnologia mais difundida e percebida como sinônimo de desenho, novas tecnologias
se desenvolvem para sua produção. Computação, meios digitais e ferramentas tecnológicas atuais
são modos expressivos que ainda se situam segundo de códigos de linguagem que podemos
compreender por desenho. Esta reflexão sobre a expressão pretende apresentar as técnicas e
do pensar, com os modos de expressar, com vistas a códigos que se constituem num sistema
possível de ser transmitido por um método de ensino. Esta parte trata, a partir da semiologia, da
desenho. Como complemento da pesquisa foi realizado um laboratório de ensino no MAC USP,
que se constituiu em um curso de desenho voltado para alunos do ensino médio. Esta aplicação
prática aconteceu em duas edições nos segundos semestres de 2008 e 2009. Este é o
Imagem 2. Imagem 3.
Imagem 4 Imagem 5
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 21
Parte I: Pensamento
Pensando o desenho
“Escrevendo sobre pintura nestas brevíssimas anotações, tomaremos aos matemáticos – para que nosso
discurso seja bem claro – aquelas noções que estão ligadas particularmente à nossa matéria. (...) Peço,
porém, ardentemente, que durante toda minha dissertação considerem que escrevo sobre essas coisas, não
como matemático, mas como pintor”.4
As imagens, em papel, nas telas de televisão, cartazes, propagandas, fotografias e nas mais
de modo absoluto. Deparamo-nos com inscrições em muros, paredes, telas de caixas eletrônicos
É possível que se projete, planeje e construa uma cidade com total embasamento pelo
desenho, pelo projeto urbanístico. Para se erguer uma casa ou um prédio é necessário que haja
uma planta, um guia visual sobre o qual o construtor irá se basear. Uma das funções básicas do
garrafas de refrigerantes, copos, garfos, facas, mesas, cadeiras, móveis, automóveis, aviões, dentre
muitos outros, são produtos que guardam em si um desenho, o resultado do projeto cuja
indústria convencionou nomear de design. As roupas que usamos – a moda – são criações que
primeiramente são desenhadas em uma folha de papel, idealizando a produção da beleza para se
florestas, os objetos de uso prosaico, são todas ações humanas de transformação que têm em sua
O desenho gera imagens que são a materialização das formas no espaço plano ou
4 ALBERTI,1992, p.71.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 22
fixação das formas, sensações ou coisas vistas ou sentidas que permanecem, a partir de então,
registradas como imagem. O conjunto dos desenhos que vão sendo produzidos constitui
mundo, carregam informação em vários níveis. O desenho pode ter a função de sinalização,
como nos sinais de trânsito, ter o objetivo de registrar uma cena rapidamente para que depois seja
trabalhada numa pintura, existir como projeto, como indicação para a realização de um trabalho
tridimensional, de uma escultura, entre diversas outras formas que constroem a comunicação
entre indivíduos.
Apesar da interação social e cultural que imagens interpolam nos processos diversos de
comunicação que usamos, existem ainda alguns mitos sobre o desenho e sua prática. Se
pensarmos a partir do conceito de que uma imagem contém em si uma estrutura compositiva que
vem de um desenho, podemos concluir que haveria um convívio natural com a ação de desenhar.
Entretanto, se for pedido, apenas como uma forma de comunicação, para que um grupo de
pessoas desenhe, de um modo geral, surgirão desculpas seguidas da explicação de que não sabem
desenhar. Tampouco temos na escola formal um trabalho claro e efetivo de busca pelo
conhecimento, prática e exteriorização da expressão pelo desenho. O que intriga é que habitamos
um espaço que é constantemente modificado pelo desenho, sem nos dar conta de seus conjuntos
de conhecimentos, que possibilitam ao individuo uma apreensão de mundo com o uso de uma
linguagem expressiva.
dom divino, ou de outros atributos que o afastam do horizonte de saberes que deveriam integrar
produção de memória, a partir da representação de algo que se passou no tempo fixado em uma
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 23
materialidade. Plínio o Velho, autor grego da antiguidade clássica, em Naturalis Historia5, nos
livros 34, 35 e 36, se dedica à história da pintura, da escultura e da arquitetura. Uma dessas
narrativas é o mito de Butades, ceramista grego, cuja filha era apaixonada por um jovem que teve
de se ausentar para o estrangeiro. A fim de guardar a imagem desse jovem, Butades delineou com
um carvão a sombra do rapaz projetada na parede pela luz de uma lanterna. A imagem do rapaz,
guardada pelo desenho circunscrito de sua forma física, torna presente no tempo a ausência de
seu corpo. Por meio da forma, que se constitui num registro ou representação, numa memória
acessível, talvez a saudade da jovem filha de Butades seja atenuada. Com a ajuda da imagem a
lembrança se faz mais nítida, presente, informada por detalhes mantidos na forma registrada e
fixada em uma matéria. Resulta em história, em arte, em conhecimento que se pode acessar em
Outra função que pode ser atribuída ao desenho é de colocar novas formas no mundo em
busca de projetar, descrever, alterar a natureza e criar a casa, os objetos, a arte. Este modo de
pensar se concentra no plano de ocupação dos espaços. Refere-se à maneira como, a partir de
uma delimitação espacial de uma área específica, se projeta e constrói uma casa. Esta forma de
desenho procura adequar o objeto ao seu plano, superfície, área, contexto. Sua manifestação
legendas, informações técnicas, cálculos matemáticos e outras informações que dão parâmetros
“Oriundo do intelecto, o desenho, pai de nossas três artes - arquitetura, escultura, pintura -, extrai de
múltiplos elementos um juízo universal. Esse juízo assemelha-se a uma forma ou ideia de todas as
coisas da natureza, que é por sua vez sempre singular em suas medidas”.6
como linguagem que é comum às artes da época. Sua afirmação corrobora com o significado da
palavra desenho, aqui empregada segundo sua origem latina que deriva do verbo designare e que se
refere ao desígnio de Deus, algo que é descrito, escrito, previsto para realização. Pensando sobre
a etimologia da palavra desenho7, notamos que, em suas várias derivações nas línguas latinas, há a
definição de desenho como forma que advém de um conceito, ou seja, um conteúdo que nasce
no pensamento e se projeta no mundo como forma. Temos, portanto aqui uma ideia de desenho
como projeto, como delineação de algo que se difere da natureza e se inscreve no mundo como
cultura, elaboração humana. Muito já se escreveu sobre o desenho, desde os textos de Plínio O
Velho, passando por autores como Cennino Cennini8, Federico Zuccaro9, além de pensadores
como Jean-Jacques Rousseau10, Johann Heinrich Pestalozzi11 e Friedrich Forebel12, que refletiram
tratado como conhecimento fundamental. São artistas, cientistas, filósofos e historiadores, que
Mobilizados, pelo período histórico particular em que se encontravam, os pensadores variam suas
visível, geralmente feito a lápis sobre papel ou técnica e material similar. Esta abordagem pode
tratar o desenho como uma atividade em que se realiza uma espécie de inventário das formas em
busca de apreensão e conhecimento do mundo. Porém, existem desenhos que não são feitos
como reprodução da natureza, mas com intuito de pesquisar, realizar e criar formas, sistemas,
objetos, ou esquemas arquitetônicos, por exemplo. São resultados de uma ideia, de um conceito
7 Segundo CUNHA (2000, p. 254, 392): Desenho: do latim desígnio/designare = desenhar; Desígnio de Deus. Graf(o)-
que parte da observação da natureza, mas que se transformam em algo já não mais identificável
como imitação do visível. Por razões como estas, o desenho pode caminhar em sentido duplo.
De um lado busca apreender com as coisas da natureza, e de outro, mais interno, está ligado a um
conceito, a uma ideia ou um pensamento que precisam ser expressos, colocados no mundo,
projetados. Federico Zuccaro articula uma definição a partir da existência de um desenho interno
e de um desenho externo, como manifestação de uma ideia, expressa como forma no mundo
“Diseño interno entiendo el concepto formado em nuestra mente para poder conocer culquier cosa y
obrar excelentemente conforme a La cosa entendida, Del mismo modo que nosotros, pintores, al querer
dibujar o pintar alguna digna historia”. 13
“Qué es el diseño externo(...). Siguindo pues nuestro planteamiento digo que, para clarificar este
concepto y diseño interno y mostrarlo al sentido y al intelecto, es necesario darle cuerpo y forma visual; y
para entendimiento nuestro mejor y mayor, lo circunscribiremos y Le daremos el ser, mastrándolo al
sentido com varias delineaciones, asignálandole también aparte sus proprios instrumentos, según sus
varias operaciones. Digo, por lo tanto, que disegño externo no es otra cosa que lo que aparece
circunscrito de forma pero sin sustancia de cuerpo. Simple delineación, circunscripción, medida y figura
de cualquier cosa imaginada y real. Este diseño así formado y circunscrito con línea es ejemplo y forma
de la imagen ideal. La línea, pues, es el próprio cuerpo y sustancia visual del diseño externo, de
cualquier manera que este formado”.14
povoam a mente, o pensamento. Coloca-se como atividade intelectual, racional, ainda sem forma
física e material no mundo. O desenho externo surge como manifestação material, das técnicas,
dos processos e procedimentos e materiais. É palpável, possível se ser visto, observado por outra
pessoa, espectador. Desenho interno é intangível, conceito puro, ideia, desenho externo, é
a dimensão daquilo que muitos chamam de criação. O artista florentino Leonardo da Vinci foi
viveu. Estudava, por meio do desenho, os movimentos e as forças que atuam nas relações físicas
da natureza e os aplicava nas suas invenções. Temos o exemplo de seus estudos do movimento
das águas e sua posterior aplicação nos seus projetos de máquinas voadoras. (imagens 8 e 9)
que legendas aparecem como anotações complementares das imagens obtidas em suas pesquisas.
de modo preciso, mais próximo de uma construção mimética que pretende compreender os
A constituição de modelos para estudo científico passa pelo desenho. Antes da fotografia
imagens, como temos hoje, o desenho tinha uma função fundamental para registro de observação
da natureza. Assim, até o século XIX no ocidente, foi se constituindo um conjunto de saberes, e
um sistema de ensino que se organizou como uma academia com regras bem específicas.
Composta de uma ciência de reprodução verossímil, este modelo se manteve como o pano de
colônias das Américas. O Sistema conhecido como acadêmico, que privilegia a imagem figurativa,
O que passa a ser conhecido por fotografia tem a ver com a captura de imagens e sua
impressão em papel fotossensível por meio de lente acoplada a uma câmera escura. Podemos
verificar que a captura da luz é uma das partes que constituem o conceito de pintura: “Portanto, a
captura e projeção de imagens para realizar desenho e pintura, na Europa desde o século XV e
XVI 16. Porém, a fixação da imagem em um suporte material, em materiais fotossensíveis, sem o
uso da mão humana, com o uso de câmara para captura de imagem, inaugura a fotografia. Esta
anotação gráfica. Outro fator decisivo foi o aparecimento da indústria e a crise da produção
artesanal, com a fabricação de objetos em série. Sobre esta alteração da função do desenho, a
“O “desenho” já não é o meio gráfico com o qual se abstrai a forma a partir da acidental matéria da
coisa; “desenho”, no sentido ativo de “projeto”, é intuição de relações construtivas ou espaciais dentro da
matéria e por isso já não é um abstrair a realidade pluridimensional em duas dimensões, mas um
concretizá-la e todas as dimensões”.17
para o sistema industrial. Segundo Juan José Gómez Molina, há dois fatores que provocam e
“A crise da representação que produzida diante do desenvolvimento da fotografia e que leva a arte a
abandonar o papel privilegiado de ser a geradora da ideia de realidade e de verdade que permite
constituir-se em sua formulação e crítica. O deslocamento que a arte realiza sobre o território de sua
autonomia ao abandonar os campos da descrição e antecipação de objetos que a vinculavam ao
desenvolvimento da indústria”.18
exploração se liga mais a forma do projeto e, devido à entrada de outros modos de expressão e
produção de imagens, como a fotografia, o desenho não seria tão evidente. Entretanto, quando
desenho em suas obras. No caso específico de Duchamp, é curiosa a existência do desenho como
projeto em seus trabalhos como no caso de O Grande Vidro (imagens 12 e 13). Duchamp
investiu um ataque à arte retiniana, pictórica, inaugurando uma arte de ideias, conceitual. Com
esta atitude suas obras se despedem dos suportes e meios que ainda caracterizam a arte como a
pintura a óleo ou a escultura. São objetos, ou proposições de experiências cujo sentido está
lógicos, e como o próprio Duchamp diz, ligado a uma dimensão de pontos cardeais. Esquerda,
direita, acima ou abaixo, são orientações que este artista tenta desconstruir, por isso a lógica da
linguagem é alterada. Durante o início do século XX as formas industriais começam a fazer parte
cada vez mais presente no modo de vida moderna: os produtos da indústria, os automóveis, a
cidade que se transforma, que muda seu desenho para abrigar as máquinas. O modo artesanal de
sua criação até a sua finalização, na indústria há a especialidade. O trabalhador passa a conhecer
apenas uma pequena parte, específica, do produto que ajuda a produzir. Surgem os objetos em
série já prontos, como se estivessem sendo gerados apenas no interior da fábrica, cujo desenho
partir do trabalho de quem o fez ou criou. Estas são algumas das formas que o desenho vai
assumindo na modernidade. Para os artistas, neste caso específico Marcel Duchamp, as formas da
indústria estão muito presentes e, ainda assim, o desenho, como expressão de um autor, se
Com este modo de operar, a montagem, que se constitui em organizar partes no todo,
passa a ter uma importância mais acentuada. A composição, o dispor das partes, numa operação
de deslocamento e alteração da função objetiva dos objetos, vai produzir uma arte baseada em
dão no espaço, num plano de composição a partir de desenhos prévios, formas construídas, a
fundamental na disposição das partes no todo de uma criação visual, ou de um desenho (imagem
15). Pode-se verificar isso na indústria gráfica, na produção dos jornais, revistas e mídias
impressas que no início do século XX se desenvolve plenamente. Aparece uma forma de desenho
executado segundo formas modulares fixas, que se recombinam criando a imagem. A escola de
arte, arquitetura e design alemã, Bauhaus, cria uma metodologia baseada nos materiais para a
boa parte da arquitetura moderna. Paralelamente, também aparece uma arte de registro de
expressão visuais atravessam os anos 1950 e caracteriza a arte desse período quase em escala
mundial. É a partir dos anos 1960 que uma arte já plenamente constituída de referências da
este período como o que deu início às muitas formas de expressão, presentes até hoje, na arte que
Segundo esta reflexão, o desenho estaria em que lugar diante de tantas possibilidades de
se fazer arte? Talvez passe a existir justamente neste ponto ou período, um desenho que se
reconfigura diante das novas expressões da arte atual, que trataremos ao longo do trabalho. Aqui
cabe, enfim, pensar a partir do trabalho de alguns artistas que na segunda metade do século XX
incluíram o desenho na sua produção como parte fundamental do processo de se fazer arte. Em
artistas como Joseph Beuys (imagens 16 e 17), verificamos o desenho como suporte primeiro de
“Desenho é a primeira forma visível em meus trabalhos (...) a primeira forma visível do pensamento, o
ponto de mudança das forças invisíveis para a coisa visível (...) é realmente um tipo especial de
pensamento, colocado sobre uma superfície (...) não é apenas uma descrição do pensamento (...) você
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 30
incorpora também os sentidos (...) o sentido de equilíbrio, o sentido da visão, o sentido da audição, o
sentido do tato”.19
gravada num suporte físico, há uma qualidade do desenho que organiza o espaço. Por isso há que
se ressaltar que se trata de uma linguagem, com elementos estruturais, repertório e articulações
que se correlacionam na construção de uma imagem. Colocado em uma equação, com tantas
como parte estrutural de qualquer imagem. E neste trabalho, nosso argumento é que a estrutura
do desenho se apresenta assentada sobre uma tríade já secular. Para Wassily Kandinsky, artista
modernista europeu, o fundamento do desenho está no ponto e na linha sobre o plano20, e sua
autores a dissecar esses elementos estruturais do desenho fora Alberti, em seu livro Da Pintura,
“Digo inicialmente que devemos saber que o ponto é um sinal que não podemos dividir em partes.
Chamo aqui sinal qualquer coisa que esteja na superfície, de modo que o olho possa vê-la.(...) Os
pontos, se em sequência se juntarem um ao lado do outro, produzirão uma linha. Para nós a linha será
uma figura cujo comprimento pode ser dividido, mas será de largura tão tênue que não poderá ser
cindida. Das linhas, umas se chamam retas; outras, curvas. A linha reta será uma figura que avança
de um ponto a outro no sentido do comprimento. A linha curva é uma figura que vai de um ponto a
outro, não reta, mas como um arco. As linhas, se numerosas, quando se encostam umas às outras como
fios de um tecido, formam uma superfície. A superfície uma parte externa de um corpo que é conhecida,
não pela sua profundidade, mas tão somente por seu comprimento e largura, e ainda por suas
qualidades”.21
imagem até hoje. Mesmo a imagem digital, constituída de pixels22, se forma na tela eletrônica a
partir da varredura dos pontos de uma linha a outra, até o fim da tela, em cerca de 32 quadros por
segundo; são pontos colocados em movimento, na velocidade da luz construindo formas, cores,
computadores.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 31
Modelos e modalidades
Em uma metáfora, com certo grau de abordagem poética, podemos dizer que andar sobre
a superfície do planeta Terra produz desenho. Mapas geográficos são desenhados com, entre
outras, a função de orientação espacial. Rotas, direção, sentido, senso de orientação espacial são
em um determinado plano, se colocado em movimento, produzirá pela sua ação uma linha e
pode ser um modo de criação de consciência do desenho. Se outros corpos, no mesmo campo
delimitado como superfície, forem colocados em movimento, novas linhas serão produzidas. O
desenhos.
a ação de desenhar é pelo exercício do olhar. Pensando nisto como uma espécie de interiorização
de imagens colhidas no mundo, pela observação atenta dos fenômenos, pode manifestar-se em
expressão. O desenho pressupõe a ação de um corpo em movimento, por isto, não é necessário
ver para produzir desenho, mas isso acarretaria em outra discussão conceitual, sobre os sentidos e
desenho e sua presença no mundo se dá em grande parte pela visualidade. Esta visualidade,
ocorre, o resultado é um desenho vivenciado, pensado, que cria um mundo em si, que vai além
da representação sendo fruto de uma intenção. O olhar, como um dos inícios do desenho,
recolhe as formas que estão na natureza; produz uma ação, e esta ação transforma o mundo em
“Claro que este dom se conquista pelo exercício, e não é em alguns meses, não é tão pouco na solidão
que um pintor entra em posse de sua visão. A questão não é essa: precoce ou tardia, espontânea ou
formada no museu, sua visão em todo caso só aprende vendo, só aprende por si mesma. O olho vê o
mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio, e, na
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 32
paleta, a cor que o quadro espera; e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas as faltas, e vê os
quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas”.23
caracterizações visuais que compõem uma ideia. Esta argumentação faz referência ao indivíduo
como observador, um ser que possui uma estrutura de cognição informada pela sua origem
cultural. Ao olhar individual, existe como pano de fundo, o olhar coletivo. Este seria um olhar
político, que se configura de acordo com a cultura de cada população e é compartilhado pelo
diferenças que são particulares a grupo humano. Durante muito tempo e em diversas culturas,
verificam-se formas e métodos artísticos que permanecem fixos, obedecendo a cânones e regras
rígidas24. Modelos, contextos e padrões culturais determinam em grande parte a forma e modo de
sentido de arte de uma cultura é diferente de outra. O conceito de arte, organizada como campo
de conhecimento específico que utilizamos no Brasil, vem da Europa. Segundo Ana Mae
Barbosa25, a ideia de arte que prevaleceu no país se assentou a partir da Missão Francesa de Le
Breton26 e de seu modelo de desenvolvimento artístico trazida por Dom João VI27 (imagem 18).
O contato da cultura europeia com a cultura indígena no Brasil, por exemplo, produziu um
conflito entre dois paradigmas culturais muito diversos entre si. O que para o europeu português
eram roupas para vestir, que transmitem códigos de situação social e proteção do corpo, para o
índio era pintura corporal (imagem 19). O próprio desenho, que resulta da reunião de pessoas
para viver em comunidade, dos povos indígenas é muito diverso do nosso modo de viver e de
morar em cidades. As aldeias são circulares (imagem 20), as casas coletivas, e as imagens pintadas
nos corpos e objetos de uso cotidiano, quase sempre se configuram, grosso modo, como
1826.
27 Naturalmente, antes desse período no Brasil, houve o chamado Barroco Brasileiro e sua arte que ainda hoje chama
antropólogos Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro, vamos notar que a sua expressão gráfica,
ainda que não seja considerada arte para nossa cultura, tem um comportamento bastante singular.
A pintura corporal desses índios (imagens 21 e 22) é uma das mais notáveis e ricas expressões da
arte indígena brasileira. Os Kadiwéus tinham seu território localizado nas serras que separam os
rios Paraná e Paraguai, na divisa entre o estado do Mato Grosso do Sul e o Paraguai. Conhecidos
tribo hoje está em número bastante reduzido. A pintura corporal dos Kadiwéus se caracteriza por
finos desenhos que estampam os rostos e os corpos em traços sinuosos e simétricos. São obtidos
de uma tinta que é resultado da mistura de suco de jenipapo com pó de carvão, aplicada na pele
com uma fina lasca de madeira ou taquara. Interessante ressaltar que essa arte era executada
apenas por mulheres, e embora utilizassem padrões repetidos, as artistas mais habilidosas criavam
hierarquia social. No passado, a pintura corporal marcava a diferença entre nobres, guerreiros e
cativos. O fato é que são expressões de uma cultura que hoje praticamente desapareceu e não
deixou história, porém, possui uma expressão original e particular, diferente dos modelos que
Outras referências de imagens e formas de arte, mais uma vez na constituição de repertório, de
culturas nativas do território brasileiro, talvez possam conduzir a desenhos diversos, se trazidas
para a educação, de um modo presente no conjunto das formas que são tratadas como arte. A
Retomando o senso comum do “não sei desenhar”, que cria uma falsa ideia de que
algumas pessoas desenham e outras não, vamos pensar nos modelos visuais que definem
desenho. Talvez, um dos bloqueios ou insatisfação com o próprio desenho tenha origem em um
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 34
pelos Padres Jesuítas, é fundamentada por imagens idealizadas. Um de seus grandes expoentes foi
Michelangelo Buonarroti (imagem 23), artista ícone dessa representação. Essa cultura fortemente
advinda dessas religiões faz com que haja um desenho geometrizado, abstrato, que articula
formas no espaço. Em árabe28, por exemplo, as palavras usadas para definir desenhista e desenho
têm a ideia de forma: Musawer = o artista, que traça a linha, que faz a forma; Taswuir = desenhar,
formar. (imagem 24) O artista faz a forma e sua ação é a de montar essas formas em uma
composição.
período histórico, para certa cultura, que o elaborou como uma ciência da arte, cuja importância
não se coloca em dúvida. Conhecê-lo faz grande diferença, porém, seu modo de se inserir no
mundo não deveria intimidar a prática do desenho. Entre o modelo de desenho interno, que é
impregnado pela ideia acadêmica de figuração e virtuosismo como sinônimo de bom desenho, e a
expressão do desenho de cada um, existe uma lacuna difícil de superar, entretanto isto não deve
frustrar ou inibir a vontade de desenhar. Trata-se de buscar uma expressão, um desenho interno
em acordo com a própria personalidade. Os modelos têm função fundamental, que é apontar
Molina argumenta que os modelos podem funcionar de modo positivo, quando intentam resolver
28 Esta referência de tradução nos foi transmitida pelo Sr. Fares Youssef Murr, libanês radicado no Brasil. Este
senhor foi aluno participante em vaga oferecida pela Universidade Aberta para a Terceira Idade na disciplina de
graduação “O Papel do Desenho na Arte”, ministrada pela Profa. Dra. Carmen S.G. Aranha, no MAC edição de
2007.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 35
colaborando com a criação de continuidade da ação de desenhar.29 Porém, são negativos quando
se enraízam e se arcaízam em formas estanques e acabam servindo mais para a inibição do que
modelo de desenho se parte, e como este modelo pode ser favorável ao desenvolvimento da
expressão pessoal.
arte, se deduz que o desenho como manifestação sígnica está já presente no recorte espacial, no
visível, mediado pela posição, pelo material empregado no registro gráfico, pela pressão do lápis
sobre o papel, e uma série de contingências que interferem no resultado das linhas e formas.
Bruno Munari, em Das coisas nascem coisas30, apresenta algumas modalidades de desenho. O
autor trabalha motivado pelo campo do design, porém pode nos interessar conhecer estas
tipologias que o autor tenta definir. São tipos de desenho, segundo a concepção de Munari:
Neste trabalho, visando uma possível atualização do conceito, vamos supor, como modo
de definir alguns parâmetros, e propor, como possibilidade de articulação, que existam alguns
mesma categoria (outros tantos são possíveis; este é apenas um recorte para facilitar a
natureza, imagina formas que se articulam sobre esta mesma natureza, e com a invenção de um
projeto constrói uma edificação que passa a existir e fazer parte da paisagem. Da observação da
natureza e seu relevo, a arquitetura interfere na geografia e inventa uma construção que se
executa a partir de um projeto. Depois da obra pronta é possível observá-la e fazer um novo
desenho que investiga as formas produzidas e dá ao desenhista uma nova visão, por meio do
desenho de observação, de seu projeto realizado. Esta ação conjuga vários desenhos e camadas
e) De intervenção: sobre uma imagem produzida por outros meios ou suportes, como a
fotografia, são feitas intervenções pelo desenho. Não é um tipo de desenho específico: é mais
uma ação.
desenho registrado por fotografia e imagens digitais. Existe a possibilidade atualmente de com as
computadores, das fotografias fetias por satélite, etc; selecionar, reagrupar, fazer colagens e
Por meio da verificação deste conjunto de modalidades de desenho é possível ter alguns
parâmetros de como se utilizar dessas formas de desenhar. Pensando sobre o desenho com o
objetivo de atualizar suas formas e linguagem, é preciso avaliar que sua amplitude se tornou
amplitude pode ser encontrada em meio às novas mídias, formas e características diversas que se
desenrolou ao longo do século XX. Este aspecto trouxe muitas vezes para o senso comum a ideia
figurativa e mimética é mais reconhecível e compreensível. Muitos textos críticos, ainda hoje,
frente à obra de arte. Ou seja, a arte contemporânea, para um determinado extrato cultural e
social, é quase sinônima de incompreensível, incomunicável. Este aspecto acaba sendo muito
linguagem, como estrutura com base na representação, figurativa e mimética. Victor Chklovski
russa do final do século XIX e início do XX, sobre uma mudança na linguagem literária. Esta
alteração estaria marcada por aspectos formais que incorporam uma mobilização do espectador
desestabilizada pelos diferentes pontos de vista, são alguns dos aspectos que são enfatizados por
Chklovski. Podemos estabelecer nas artes uma similaridade formal com a literatura, inclusive, os
movimentos modernistas têm sempre conexões entre as linguagens expressivas (imagem 25).
Estas propostas criativas passam a ser exploradas pelos autores e artistas de então com o objetivo
Aleksandr Potebnia, no seu texto, diz que “a imagem é um predicado constante para sujeitos variáveis, um
Assim, o conjunto de sujeitos, possibilita uma leitura plural da obra de arte, que possui
Estratégias dos Signos, Lucrécia D'Aléssio Ferrara, aponta os estudos do discurso de Mikhail
imperativo; o discurso dialógico abre a possibilidade de interação do sujeito com a obra, mas para
Bakhtin, o discurso democrático por natureza seria o polifônico, cujas vozes interagem com a
obra, e interagem entre si, numa construção de conhecimento coletiva, na qual todos são atores
envolvidos no processo cultural e aprendem uns com os outros. Esta estratégia, digamos assim,
de interatividade, propondo uma participação nos trabalhos, tem se mostrado bastante relevante
Arthur Coleman Danto trata do tema a partir da ideia de fim da história da arte,
argumentando que existe atualmente uma equidade das manifestações culturais, e que a arte teria
abandonado o fim das grandes narrativas históricas, sendo muito mais múltipla e complexa. Seu
argumento se apoia sobre a teoria de Hegel, a qual diz que só há história onde há civilização,
notadamente de modelo europeu, e que este pensamento não se verifica possível no tempo que
“A visão de história de Hegel impõe que apenas certas regiões do mundo, e só em determinados
momentos, eram verdadeiramente “mundo histórico”, de modo que outras regiões, ou a mesma região em
outros momentos, não eram parte do que realmente estava ocorrendo historicamente”.34
Este conceito desenvolvido por Danto é definido como o fim das grandes narrativas
históricas e o fim da era dos manifestos, também apresentado e refletido pelo autor alemão Hans
Belting. O início desta argumentação se encontra no momento que o autor nomeia de Alto
Modernismo, que ocorre entre as décadas de 1940 e 1950. Este período é caracterizado pela arte
abstrata, de apelo internacional, que pode ser verificado, por exemplo, no catálogo da segunda
Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. A história e no nosso caso expressão de outras
culturas entram em cena e produzem outros modos de pensar e fazer arte. A estas transformações
surgem alguns conceitos que são precedidos de prefixos como inter-, pós-, multi-, trans-, neo-.
acabam sendo sinônimos de arte contemporânea. Acreditamos que aprofundamentos sobre estas
questões não estão entre os principais temas a serem discutidos neste trabalho em específico. O
internacional e das novas tecnologias de produção e difusão da imagem terem alterado o modo
de exteriorização do desenho. Estas novas configurações sociedade atual trazem uma sensação de
perda do desenho, que se desloca para o campo do projeto, do design. Há, no entanto, uma
transformação, uma migração do desenho, com ênfase no processo, que acaba se tornando
invisível, escondido do público. O desenho se expande ganha outra dimensão, muitas vezes
sociedade. A percepção do desenho dá-se então em outra chave de maior espectro, encontra-se
expandido e imbricado na vida, presente nos produtos de consumo. Décio Pignatari fala da
pelas pichações (imagem 26). Ocorre que do desenho ignorado decorre um desenho não
em um tipo de desenho espontâneo, não pensado, mau desenho: quando não penso o desenho,
outro pensa por mim. Se o desenho não é perceptível na sociedade corre-se o risco de que ele
não seja explorado adequadamente, e sua falta produz uma construção social, urbana, ecológica,
definições e os meios expressivos seculares; outras vezes, utiliza-se das novas possibilidades e
desenho atual tem disponível para sua expressão, novos meios, suportes e técnicas. A conjugação
cérebro, olho, mão, lápis, papel, muitas vezes é compreendida como sinônimo de desenho,
assunto que abordaremos na terceira parte desse trabalho, linguagem. O ato de empunhar um
objeto, normalmente pontiagudo, cuja forma mais comum que temos é o lápis, e produzir um
ponto, uma linha e formas sobre uma superfície, são os primeiros movimentos da ação de
desenhar. O papel como conhecemos hoje, ainda é um dos suportes mais consagrados onde se dá
o desenho. No entanto, se pensamos nos novos processos, técnicas e procedimentos para a arte
O filósofo alemão Walter Benjamin, em sua obra clássica “A Obra de Arte na Época de suas
“Tal como a água, o gás, e corrente elétrica vêm de longe para as nossas casas, atender às nossas
necessidades por meio de um esforço quase nulo, assim seremos alimentados de imagens visuais e
auditivas, passíveis de surgir e desaparecer ao menor gesto, quase que a um sinal” 36
possibilidades significativas leva a verificar a potência de alguns caminhos, porém, sem definições
fechadas. É possível perceber e apontar algumas possibilidades de lidar com o desenho, que se
apresentam num panorama de grande diversidade. Esta diversidade, além dos meios, tem a ver
também com culturas que começam a aparecer e serem visíveis no mundo contemporâneo. Para
além do “Velho Mundo” Europeu, e da América desenvolvida, outras vozes se fazem ouvir e
passam a solicitar participação no discurso da cultura mundial. Assim, a arte atual com o desenho
apresentando como projeto, como processo, mas ainda guardando em si uma estrutura de
mesmo pensar em imagens, ou desenhos, que são produzidos digitalmente e que são feitos
suportes materiais. Não há preconceito da grande parte dos artistas atuais no uso de materiais,
uso de novas tecnologias, retira ou obscurece a necessidade de conhecer com maior profundidade
a linguagem, a história, os processos que conduziram o desenho até os dias de hoje. De outro
ponto de vista, esta mesma “facilidade” de produzir imagens, se insere num aspecto relativo à
interatividade. Surgem cada vez mais coletivos de arte e obras que necessitam da participação do
encontrar para uma ideia o suporte e meios adequados para sua realização. Existem programas de
computador que simulam uma pintura com óleo sobre tela. O que ocorre é que não é um óleo
sobre tela, e a utilização do computador para um trabalho como este se torna uma subutilização
realizar a pintura, que tem sua linguagem própria. Entretanto, o computador pode gerar imagens,
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 48
e criar desenhos, por meio de uma câmera de segurança que altera a imagem transmitida
aleatoriamente (imagem 27). Ou mesmo construir games, jogos que geram linhas aleatoriamente,
contribuição para a arte atual é justamente sua amplificação. Entendê-lo dessa forma pode
contribuir para um desenho adequado ao seu suporte, à sua manifestação visual, à composição
americano Bruce Nauman, tem o desenho como estrutura fundamental de seu pensamento na
criação de suas obras. Nauman trabalha com suportes diversos, inclusive instalações, vídeoarte,
vídeoinstalações. O artista faz um comentário sobre o desenho em seu trabalho (imagens 29, 30,
31 e 32):
“Desenhar é equivalente a pensar. Alguns desenhos se fazem com a mesma intenção do ato de escrever:
são anotações que se tomam. Outros intentam resolver a execução de uma escultura ou trabalho em
particular, ou imaginar como funcionaria. Existe ainda um terceiro tipo, desenhos representacionais de
obras, que se realizam depois das mesmas feitas, dando-lhes um novo enfoque. Todos eles possibilitam
uma aproximação sistemática no trabalho, inclusive muitas vezes sua eficácia é de dar uma lógica a
algo absurdo”.37
É a partir desse contexto que se inscreve o desenho na arte atual, como manifestação que
continua a existir e a ser debatida. Portanto, ignorar o desenho e seu estudo, é o descartar como
ato do conhecimento que, por um lado pode expressar-se como primeira forma de visualidade,
como disse Beuys, e por outro, organizar, ao se estudar sua linguagem artística e seus elementos,
o mundo visível ao nosso redor. Esta lacuna prejudica a percepção da ocupação adequada dos
espaços e territórios, do crescimento das cidades, do planejamento das edificações, das casas, das
ruas, da relação do ser humano com a natureza e sua transformação. A possibilidade de pensar
visualmente e testar projetos usando o desenho, antes de cometer erros deve ser considerada. O
volume de imagens que povoa o nosso cotidiano necessita de uma reflexão sobre sua forma, que
em primeira instância é desenho. A informação tem sempre seu valor, os caminhos já percorridos
que faz surgir um horizonte em aberto, no qual há muitos desenhos por se fazer.
suportes podem ser muito variáveis, e ir desde o lápis e papel até o uso do corpo, da computação
e de outras possibilidades. Não é imprescindível optar exclusivamente por uma forma, pela
representação, pela abstração, ou qualquer outra forma estilística para começar a utilizar a
linguagem do desenho. O que vale é a exploração da ação de desenhar e de pensar pelo desenho,
gravando e registrando no plano uma intenção, que possui consciência de sua interferência, e,
Imagem 6 Imagem 7
Imagem 8 Imagem 9.
Imagem 20.
“Qualquer atividade mental produz um conhecimento; se a arte não produzisse, seria uma brincadeira
inútil. Mas o conhecimento artístico distingue-se do científico e do místico. O conhecimento científico
alcança-se por meio de tipos e categorias, que a razão formula como verdades. O conhecimento místico
deve-se à completa dedicação do indivíduo ao universal, sem recorrer à razão. O conhecimento artístico
também não se deve à razão, mas, em vez de ser dedicação ao universal, é conhecimento individual, de
um individual em que o universal presumivelmente se espelha”.38
Formas do desenho
Ao entendermos por desenho primeira elaboração de uma ideia nascida no interior do ser
sua prática e estudo aprimoram seu uso e constituem repertório para a criação visual. O resultado
de uma expressão, livre de parâmetros ou cânones específicos, pode passar a constituir códigos,
comunicação compartilhada entre membros de uma mesma cultura, gerando informação trocas
entre os indivíduos. O desenho está inserido em vários campos da atividade humana, porém não
diremos aqui que todo desenho pode ser chamado de arte. A subjetividade do desenho, nascido
artística está aberto a uma reinterpretação do espectador. Como vimos no capítulo anterior, na
maneiras diversas. Entretanto, em seu sentido artístico, uma característica comum se refere a
atributos que propõem uma recriação, uma participação do espectador, motivado por formas,
temáticas, propostas e experiências estéticas que buscam alteração do senso comum. Marcel
Duchamp, um dos nomes que propôs formas diferentes de fazer arte no início do século XX,
pensava em termos de uma arte viva enquanto interação com o espectador. Otavio Paz comenta
este pensamento de Duchamp: “Uma das ideias mais inquietantes de Duchamp se condensa numa frase
Ainda sobre Duchamp, refletindo sobre sua obra, o autor mexicano a define como: “Uma
poderá vir a ser considerada obra de arte. É desta característica do desenho que atribuímos o
coeficiente artístico41, conceito que trataremos mais adiante. A arte, para Duchamp, estaria
justamente nesta diferença entre o que se quis fazer e o que de fato apareceu na expressão
material.
desenhista, e um suporte físico. Entre eles há uma ferramenta, como um lápis, por exemplo. O
resultado se dá a partir da intenção convertida em ato, atitude, ação. Este movimento tem uma
instrumento que se move que gera a linha, originam-se tensões, densidade, ao se conjugar os
O ato de desenhar é que produz o desenho. Quando se inicia nesta prática, nesta
confrontar o resultado expressivo pessoal com um modelo ideal, como foi tratado na primeira
parte deste trabalho, não é o caso. Deve-se agir desenhando e, assim, com experiência e pesquisa,
partir de então vai se colocando sobre diversos panos de fundo da cultura, assimilando
referências, recusando posturas, se definindo como linguagem particular, que se comunica com o
todo. Após este encontro, abrem-se caminhos para pesquisas a partir de conceitos, ideias,
processos e interrogações que a própria dimensão da arte suscita. Neste ponto é possível começar
desenhos. Desenhar, portanto, exige desenhar. Sendo o resultado dessa ação traços, riscos, linhas
sobre uma superfície, em contrastes tonalidades sobre um plano, signos e registros de ideias, de
alegam desenhar livremente quando falam ao telefone. Portando um lápis ou uma caneta na mão
bem acabado, mas apenas de se perder nas linhas produzidas sobre a folha de papel. Fazendo um
paralelo, quase não nos damos conta que escrever é um modo de desenhar. As letras do alfabeto
são abstrações dos sons produzidos pela fala, linearmente e em sequência, que no ocidente se
convenciona a escrita na direção da direita para a esquerda. Esse modo de ordenação materializa
uma comunicação que é grafada num plano. Cada pessoa possui uma letra, uma voz e uma
impressão digital individual, que a identifica, sendo isso também desenhos que caracterizam sua
da forma sobre a superfície em que se inscreve o desenho, traz consigo a revelação de uma
artista, sua expressão pessoal. Este tipo de construção da expressão desenvolve-se ao longo do
tempo, com trabalho constante e poderá vir a definir uma individualidade criadora. A linha, um
dos elementos básicos da linguagem, revela um determinado temperamento, uma psique, um lado
subjetivo do autor e é carregada de sentido em si própria. É neste aspecto que podemos falar em
Criador, sua reflexão é sobre a criação artística. Ele não trata exatamente sobre o desenho, mas de
“Segundo esta declaração, o artista nunca tem plena consciência de sua obra: entre as suas intenções e a
sua realização, entre o que quer dizer e o que a obra diz, há uma diferença. Essa “diferença” é
realmente a obra. Pois bem, o espectador não julga o quadro pelas intenções de seu autor, mas pelo que
realmente vê; esta visão nunca é objetiva: o espectador interpreta e “refina” o que vê. A diferença se
transforma em outra diferença, a obra em outra obra”.42
“A obra faz o olho que a contempla – ou, ao menos, é um ponto de parida: desde ela e por ela o
espectador inventa outra obra”.43
Entre o que se quer realizar e o que se realiza temos uma diferença, que na verdade
somente o autor é capaz de perceber plenamente, que deve ser usada a favor da obra. Entre a
interpretações, significados e sentidos tornando-a mais complexa. Mostra-se como uma estranha
sensação que temos de não nos cansarmos de olhar uma mesma imagem, uma mesma obra de
Uma grande ambição dos artistas talvez seja a de produzir algo de se mantenha chamando
atenção por algum tempo, ou traga uma característica que mobilize de alguma forma o
espectador, em um olhar que se renove. Outro aspecto que precisa ser considerado é que existe,
de algum modo, uma motivação psíquica que se manifesta em vontade de expressão, que é inata
ao ser humano. Ainda que seja por meio de uma comunicação introspectiva, sendo o criador o
próprio espectador da obra, esta necessidade de expressão habita o ser. O poeta Manuel de
Barros tem um breve poema que diz: “estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma”.44 Este curto
poema de apenas um verso, ilustra uma postura de confiança do traço que sai da mão e como
cada um tem um modo individual de se expressar. É a parte de um estudo que não se pode
pensar em uma expressão pessoal, nos confrontamos com a cultura e modelos. A força e
presença, nas culturas ocidentais, da produção imagens figurativas ou miméticas, podem criar um
afastamento das pessoas da prática de desenhar. Pensamos, entretanto, que isso deve ser
combatido. Tomando como exemplo a escrita em sua forma desenhada, percebemos que cada
A expressão é identificável pela materialidade, pelo resultado das relações dos pontos, das
formas, das linhas, sobre o suporte, sobre o campo delimitado no qual se assenta a composição, a
disposição das partes. É da articulação entre o olhar e o gesto, mediado pelo pensamento
reflexivo que se origina desenho. Desenhando com a atenção direcionada para a própria linha,
consciência da própria expressão. Falamos isso para os indivíduos que querem se expressar pelo
desenho, mas que convivem com um bloqueio, que não cabe aqui averiguar sua procedência. O
desenho como expressão pode ser explorado pelo olhar e desenhar, desenhar e olhar, em ato, em
linguagem.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 60
O meio é mensagem
“Os antigos desenhavam com finas varetas metálicas (chumbo, prata, paládio) e, apesar da grafita ser
conhecida e utilizada em lápis rudimentares, o lápis de grafita moderno, em sua presente forma com
revestimento de madeira, data aproximadamente do começo do século XIX”.45
A invenção do papel, feito de fibras vegetais, remonta há cerca de 2.000 anos, e seu uso
popular ainda é recente na história humana, sendo popularizado notadamente pela imprensa no
século XIX. Antes disso a feitura de desenho era em suportes orgânicos como pele de animais,
A textura, coloração, aspectos de sua trama, dimensões do papel, do suporte dão ao olhar
material que se inscreve o desenho e sua expressão vai se constituindo a partir das características
inerentes à matéria. Esta relação também se apresenta nas escolhas do material de construção das
registro material. Os objetos de desenho como compasso, esquadro, régua, entre outros,
normalmente descritivos e usados para o desenho técnico, tendem a criar uma impessoalidade,
Espera-se de um desenho técnico uma comunicação direta e imediata, sem ruídos com o
receptor, uma vez que se destina a pessoas que serão executores normalmente de um projeto. O
modo desenhar conhecido como “desenho à mão livre” carrega quase que necessariamente a
estilo e ao observar em conjunto trabalhos de artistas que lidam com a geometria de forma direta,
podemos notar uma identidade que se manifesta na composição. (imagens 38, 39 e 40)
Observando desenhos e refletindo sobre a imagem e como ela se inscreve no plano, uma
metáfora ou um conjunto de analogias pode ser aplicado à expressão com o desenho. Esta
se caracteriza em uma relação formal binária entre luz e sombra. Esta oposição se verifica
também nas operações de desenhar com um lápis, quando a matéria se deposita no papel, ou de
fazer uma gravura em madeira, em que se retira matéria da superfície da matriz. Parece-nos que
sempre há uma ação de colocar ou retirar matéria, luz e sombra, entre outras ações dualistas, para
se produzir uma imagem. Mesmo as imagens digitais, projetadas nas telas eletrônicas, lidam com
o código binário “0-1”, no qual passa ou não passa a luz. Deste olhar, um tanto empírico, talvez
possamos determinar que pela relação de oposição binária é que dão-se as operações expressivas
do desenho. Surgem a partir das ações de cavar e amontoar, erodir e juntar, raspar e aglutinar,
passar ou não passar energia, projetar e executar. É pela articulação e consequente gradiente de
passagens dessas polaridades, junto com o atrito e resistência do suporte, do plano na ação sobre
a matéria, que podemos conceber a criação e o fazer do desenho. Quando se desenha está se
fazendo este tipo de operação, normalmente com ênfase em um ou outro lado da polaridade, ou
de “claro e escuro”, no contraste fundamental entre luz e sombra. (imagens 41, 42, 43, 44, 45 e
46)
O lápis sobre o papel configura-se em uma ação de depositar matéria sobre uma
assenta sobre o plano. O carvão ou a grafite, por exemplo, têm como resultado de sua ação a
matéria orgânica ou mineral, depositada sobre a superfície. Porém, temos outras formas de
O ato de gravar47, no sentido de ferir uma superfície para registrar uma imagem que, por
sua vez, pode ser reproduzida por posterior impressão em outra superfície, significa retirar
matéria, que resulta num sulco, numa erosão do material. É possível também desenhar por
apagamento, preenchendo o papel com grafite raspada, cobrindo toda sua superfície, e em
seguida desenhar com uma borracha ou outro instrumento de apagamento. (imagem 47)
usados para desenho vão desde pedaços de madeira, como gravetos, bambu, penas, lápis em
gradação de rigidez da grafita variável e vários outros. Existem pincéis, carvão vegetal, bastões de
próprias mãos, e muitas outras possibilidades possíveis. Para gravação, são usados, normalmente,
instrumentos de metal com pontas diversas, como goivas e formões, para gravura em madeira, e
ponta seca, como buris e berceau, para a gravura em metal (imagem 48 e 49). Em outras
modalidades de gravação se utiliza lápis oleosos, ácidos e outros produtos químicos para gravar
emulsionado com substância fotossensível, como sais de prata, da luz capturada pela lente da
máquina e projetada no interior de uma câmara escura. Não entraremos aqui em detalhes
técnicos, mas é preciso dizer que em cada uma destas técnicas ou tecnologias há características
físicas que dão resultados específicos na feitura da imagem. Os suportes para a fixação de
imagens são vários. A própria Terra pode servir de suporte, a parede das cavernas, as paredes das
construções e edifícios, além é claro dos papéis diversos, dos tecidos, do couro de animais, argila,
pedras, metais, madeira, tela de vídeo e outras muitas possibilidades. É pelos resultados obtidos
pelo uso dos materiais que argumentamos que a expressão se apresenta e dimensiona parâmetros
para linguagem que produz a imagem. Nos anos 1960, Marshall McLuhan afirmava que o “meio é
a mensagem”; neste trabalho pretendemos entender a afirmação sob a ótica de que o meio já traz
informação nele próprio e por isso mesmo é, também construção de linguagem. Por esta razão
escolher o material, o suporte para a realização de um trabalho, ajuda nas soluções do desenho.
Por exemplo, uma linha grafada uma linha grafada com uma esferográfica e uma linha inscrita a
lápis produzem resultados visuais muito diferentes entre elas. (imagem 50)
O mesmo se dá com o uso do papel, com sua gramatura, sua coloração e com outros
aspectos que trazem resultados plásticos diferentes, ressaltando ainda a existência dos limites do
suporte, a informação das dimensões do campo de atuação que temos para desenhar. É, também,
a partir dos limites do plano e de suas características que se desenha. Quando colocamos linhas
em um determinado suporte atuamos dentro dos limites do campo espacial que vamos utilizar: as
dimensões do suporte.
Podemos pensar, então, o espaço e a interferência gráfica que será executada pela
construção das sombras, pelo deposito da matéria ou pela exploração das luzes, do vazio. Pode-se
depositar matéria na superfície ou pode-se retirar matéria. O modo de pensar em cada operação é
diferente, assim como a forma de execução altera o resultado expressivo. Desenhar a partir da luz
é um exercício interessante, muito usado para aguçar a percepção e para descondicionar o olhar já
Outra construção expressiva pede ser feita pela exploração da palavra como desenho,
objeto de experimentos entre artistas e poetas. No Brasil, nos anos 1950 um grupo de jovens
poetas, inspirados pelas vanguardas artísticas do início do século XX, notadamente pela arte
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 64
construtivista abstrata, criou a chamada “poesia concreta”. Essa poesia buscava realizar uma
integração da palavra escrita com a imagem, produzindo um tipo de texto que valorizava o
aspecto visual da escritura. Três dos expoentes da chamada poesia concreta foram os paulistas
presente nesse tipo de arte, pois tem importância fundamental na composição gráfica do texto.
(imagem 51)
Além do desenho como resultado de uma elaboração mental é importante notar que seu
expressivo, tem algumas características que podem ser previamente conhecidas, sendo úteis no
desenho.
manifestações que vão para além das formas mais conhecidas de expressão. O lápis sobre papel,
como meio expressivo, se comporta, para o senso comum, quase como sinônimo de desenho, e é
apenas mais uma das possíveis técnicas de desenhar. O desenho, como conceito, ultrapassa uma
relação específica com uma determinada técnica. O que propomos é uma forma de compreender
a sua expressão de uma maneira mais ampla, que leve em consideração os meios expressivos e
surgindo. Essa visão lança a reflexão de como o desenho ainda está na estrutura, na
expressividade das imagens. Conhecê-lo a partir de experiências com suas diversas possibilidades,
em criações não estereotipadas. Mais do que seguir regras para a expressão, propomos tornar o
arte atual. As novas tecnologias que surgem e a produção de imagens com meios e suportes
diversos sugerem alguns questionamentos. O que seria considerado desenho na arte atual? Quais
são suas abordagens como linguagem hoje? Quais tecnologias e suportes são usados no atual
contexto?
Se o desenho não nasceu com a invenção do lápis, ele sobrevive submerso nas estruturas
Tecnologias sempre estiveram presentes na arte: a fotografia que surge no século XIX pode ser
considerada uma forma moderna de desenho. Do campo de expressão do desenho, ela guarda a
possibilidade de multiplicação e difusão da imagem, que hoje pode até prescindir do suporte
material do papel, existindo em suportes digitais como tela de computadores, formada somente
pela emissão de luz. A partir da fotografia muitos artistas têm se dedicado à arte digital, cujas
ferramentas gráficas estão contidas em softwares de computador e são utilizadas para realizar
amplamente difundida. Digitando “arte digital” em um site de buscas da Internet, com somente
um clique aparecerão centenas de imagens criadas em computador. Por esta razão, desenhar hoje
são expostas. A imagem eletrônica é composta de uma trama de pontos luminosos, com um
sistema de funcionamento binário, com entrada ou não de energia. A tela toda branca emite
todos os pontos de luz e a tela toda preta não emite luz. A partir desse sistema, usando um
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 66
modos de dimensionamento da imagem, toda estrutura pode ser trabalhada. Alguns programas
são muito usados como o Adobe Photoshop, Adobe After Effects, Adobe InDesign, CorelDRAW, dentre
muitos outros. Existem sites da Internet que simulam a ação de desenhar e há também hardwares
específicos para serem ferramentas de desenho como canetas, lápis e o próprio mouse do
projetadas, em sistema touch screen, no qual a mão produz desenhos e os movimenta neste espaço,
são utilizadas em caixas eletrônicos de bancos, em smartphones como o iPhone, que possui plugins
para softwares de desenho. Mesas de tecnologias tocáveis têm sido desenvolvidas para
Existem alguns sites que colocam programas online de desenho e animação, que podem
ser utilizados em rede. Como exemplos, temos o Mugtug Sketchpad48 e o Caligari49, no qual é
possível fazer um download gratuito de um programa de ilustração e animação chamado trueSpace 7.6.
que ainda são mais utilizadas por ilustradores ou aficionados por tecnologia. Porém, não
podemos deixar de perceber que cada vez mais estas ferramentas estão presentes na construção
animação cinematográfica. São modos de desenhar que fazem parte do universo cultural de
muitos jovens no mundo todo, que produz uma cultura digital, difundida via Internet para todo o
mundo. Aqui cabe a reflexão de como o desenho se insere neste contexto e como sua expressão
pode se individualizar diante das ferramentas disponíveis. É possível fazer desenho com um lápis
digital sobre mesa tablet sensível ao toque, ou usando as próprias mãos em telas tocáveis, ou até
mesmo desenhar com o próprio corpo a partir de softwares sensíveis ao calor. Enfim, é um
universo tecnológico e digital que se apresenta e propõe diferentes formas de desenhar, causando
partir de layers ou camadas que se sobrepõem. É possível desenhar sobre uma imagem já existente
como uma fotografia, ou mesmo com um desenho feito à mão, alterando texturas, luzes, formas,
etc. São recursos que produzem imagens que podem ser descartadas com um simples toque de
exclusão. Some-se a isso a possibilidade da inserção do movimento, que é algo que surge
muita força a partir da década de 1990, sendo o Pixar Animation Studios, pertencente ao
conglomerado Walt Disney, o estúdio pioneiro neste tipo de linguagem gráfica. O documentário
The Pixar Story, dirigido por Leslie Iwerks em 2007, conta a história da Pixar, relatando o processo
documentário que, por parte dos animadores mais antigos, havia um medo da perda do desenho
como habilidade manual. O que transparece no filme é a tecnologia surgindo como mais uma
Para nossa verificação neste trabalho realizamos uma breve entrevista com Nelson
Yokota de Paula Lima50, artista de animação brasileiro que trabalha em Londres, Inglaterra e
participou de produções como O Corajoso Ratinho Despereaux (2008), Sinbad – A Lenda dos
Sete Mares (2003) e O Grilo Feliz (2001). O objetivo de tal entrevista foi o de entender, a partir
do ponto de vista de um criador que lida cotidianamente com a tecnologia, que lugar o desenho
ocupa no seu processo de trabalho, bem como refletir se ainda há relevância do desenho fora do
suporte digital na sua produção. O breve diálogo que segue acaba por revelar que conhecer o
desenho e sua linguagem permite uma prática em que os suportes e técnicas são lugares de
nos mostra que os meios materiais e digitais não se excluem, mas se complementam no processo
Desenho é o transporte que leva minhas ideias que não podem ser transmitidas por palavras. Em minha opinião,
desenho é a forma de expressão mais pura e abstrata que existe. É a única forma que alguns pensamentos podem
2- Nas atuais produções, trabalhar com animação envolve uma tecnologia de ponta.
Porém, lápis e papel ainda existem. Você usa ainda lápis e papel no seu trabalho, ou materiais,
digamos tradicionais? Em que momento e que peso isso tem na sua criação?
Lápis e papel ainda são as ferramentas mais importantes em animação, mesmo na animação em computador
(CGI). Tudo que é criado por computador precisa ser desenhado primeiro. Por exemplo, o character designer
desenha um personagem com todos os detalhes em mais ou menos um dia. Para se recriar o mesmo personagem em
3D, no computador, levam-se diversos programas e meses de trabalho por um time de artistas. Em qualquer forma
de animação (stop motion, 3D/CGI ou 2D/tradicional), o desenho é usado para se chegar ao resultado desejado
3- Quanto à tecnologia, você poderia dizer quais equipamentos que utiliza e com quais
softwares trabalha?
Utilizo os equipamentos Cintiq e Mac Pro. Existem muitos programas de animação e a cada dia aparecem mais.
Entre os que eu usei: Autodesk Maya, 3D Studio MAX, LightWave 3D, Adobe Flash, Toon Boon
Lohbeck. Este vídeo pode ser visto na Internet, em meio a outros tantos trabalhos de desenho
Podemos dizer de alguma forma que o planeta Terra é um suporte que registra o desenho
natureza. Existem muitos desenhos feitos dessa forma que só podem ser observados de cima, a
certa distância ou do céu e do espaço, como os desenhos de Nazca, no sul do Peru, realizados
A ocupação territorial realizada pelo ser humano, tanto nas cidades quanto nas áreas
rurais e agrícolas hoje pode ser observada pelos satélites. Mapeamentos de áreas de
sistemas de transportes estão resultam em imagens capturadas pelos satélites e transmitidas pela
internet, muitas vezes em tempo real. Uma ferramenta de observação dessas imagens, que pode
mais diversos modos sobre o planeta. Basta observar estas fotografias realizadas por satélites para
vermos os desenhos que a atividade humana faz sobre a Terra. Os planos urbanísticos, ao serem
observados de cima, mostram desenhos produzidos em cada cidade. Observar estas imagens nos
ajuda a compreender que a presença humana obrigatoriamente gera desenhos, e que estes
desenhos muitas vezes são inadequados ou não pensados, ou muitas vezes causam ou são fontes
de problemas. (imagens 59, 60, 61 e 62) Podemos observar desenhos produzidos pela agricultura,
como as extensas plantações de trigo nos Estados Unidos ou as áreas de monocultura de cana de
florestas podem ser vistos em sites como Brasil Visto do Espaço52, da Empresa Brasileira de
observar um desenho agressivo, desordenado, com linhas adentrando a mata, que revela a
52 BRASIL visto do espaço. Disponível em: <http://www.cdbrasil.cnpm.embrapa.br>. Acesso em: 13. Abr. 2010.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 70
Na cidade de São Paulo temos inúmeros problemas causados por desenhos inadequados,
disso está em ocupações irregulares em áreas de mananciais, que são fornecedoras de água para a
cidade como as represas Billings e Guarapiranga na zona sul da capital53 (imagem 64). Mesmo
esta desordem produz desenho, talvez um mau desenho, que acarreta problemas de difícil
solução, pois apagar um desenho é também manifestar expressão ao alterar um espaço que está
fixo.
muitos trabalhos de arte contemporânea. Um aparelho de GPS pode ser usado como um lápis
virtual, em grande escala, e arquivar os desenhos produzidos pelo caminho de uma pessoa de
São proposições que procuram propiciar um desenho que seja capaz de ser vivenciado,
colocando os sentidos todos em sua percepção na experiência de desenhar com o corpo. São
num passeio bicicleta pela cidade, vendo um possível desenho que é feito neste movimentar-se.
Quando surge uma nova tecnologia ou novo meio expressivo, aparecem discussões sobre
a probabilidade do meio novo provocar o desaparecimento ou desuso do anterior. Foi assim com
a fotografia em relação à pintura, com o vídeo em relação ao cinema. O fato é que a linguagem
ou o suporte mais antigo sofre abalo em suas estruturas, promovendo mudanças no uso e na
“Pero lo mismo que la fotografia no Dio muerte a la pintura, ni el cine, ni el vídeo enterraron a los
otros sistemas ninguno de estos há enterrado al dibujo, em el entramado de todos ellos, e incluso algunas
de sus operaciones sustanciales como formas de conocimento siguen teniendo ahora mayor virtualidade.
Por eso si mirarmos ahora las imágenes de 3D, aquellas que se venden como las auténticas promesas de
la utopia futura, podemos observar que ellas más que ninguna outra son las herederas de los problemas
fundamentales de las antiguas representaciones a mano. Solo desde el conocimiento inteligente del dibujo
manual podemos compreender sus limitaciones y estabelecer los nuevos programas, como podemos ver los
ejemplos que nis proporcionam los nuevos catálogos digitales de imágenes. Frente a las pretendidas
posibilidades del sistema, la compreension de las interrelacines, de las articulacines, es la única
possibilidad de organizar com realidad; frente a su pretendida variedad, los nuevos modelos siguen más
que nunca fortaleciendo la homogeneidad de la representación. Si observarmos uma publicación como
Digital beauties, donde se reproducen representaciones de la mujer desde todas las partes del mundo,
veremos que más que nunca estas formalizan um imaginário de su visión tremendamente reductivo.
Olvidamos que la posibilidad de gerar nuevos modelos de representacion nunca está en la posibilidad de
establecer más variables del sistema, sino en establecer este como problema; cuantas más variables del
sistema de reencarnarse em múltiples apariencias, más favorecerá su clonación. En la medida que los
programas se universalizan, más possibilidades habrá de que ellos se conviertan em único modelo de
realidad posible, sobre todo si este se vende como el auténtico manual de libertad”.54
Por isto pensamos e tentamos salientar o desenho, em sua expressão material como inicio
de experiência com a linguagem e sua permanência como conhecimento na arte atual. Uma vez
que o ato de desenhar independe da eletricidade, condição sine qua non de manifestação da arte
digital, o desenho pode ser feito com lápis sobre papel, ou com outro instrumento qualquer.
Nossa argumentação sobre o desenho em sua expressão tem haver com a compreensão de que
conhecer os processos de trabalho, materiais e uso de ferramentas, permite que se constitua uma
percepção do fazer que vá além do que é visível como resultado final. Cada meio expressivo traz
mais uma forma dessa expressão que se soma a outros modos do fazer. O que ocorre é que a
expressão em si mesma se esvazia, por isso sempre se dá inserida num sistema de códigos, que
são dados pela linguagem. Em expressão consideramos que conhecer os modos de produção de
desenho, em seus mais variados aspectos, revela uma parte fundamental da construção artística e
proporciona uma forma diversa de ver a obra de arte. Desse modo, na próxima e última parte
desse trabalho procuramos situar o desenho como linguagem capaz de congregar informações
seu fazer.
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“O desenho é linguagem e, como tal, à composição, ao equilíbrio, aos contrastes, à diversidade dos
formatos, agrega-se os do repertório, ou os matizes e tons, as luzes, os traços, os pincéis, a sensibilidade
dos materiais grafite, pastel e dos suportes“.55
compreende e define como resultado de ações humanas sobre o ambiente em que habita. A arte
estaria então como o lugar do exercício criativo, estético, onde é possível pela representação
exercer o desenho em sua plenitude. Entretanto, se ações humanas produzem desenho, e se isso
pode ser compreendido por indivíduos como uma expressão cultural, sua organização se dá de
alguma forma. Esta forma de organização é o que trataremos aqui por linguagem. E um lugar
social em que se dá o ensino de linguagem, não somente do desenho, mas de todas as áreas do
saber, é a escola formal. Na esta terceira parte desse trabalho, intitulada linguagem, o que
dessas ações devem ser trabalhadas em linguagem. Acreditamos que uma possibilidade e um lugar
adequado é a escola, organizando o desenho como uma disciplina de conhecimento que contribui
O desenho pode começar como uma garatuja, despretensioso, um simples ato de rabiscar.
Este deter-se, concentrando numa atividade de desenho, aos poucos conduz a uma ideia, uma
imagem, um conceito, que vai posteriormente encontrar um caminho a ser seguido, podendo
desembocar no uso de outro meio ou suporte, além do lápis e papel. Este desenho pode ir além:
Estruturas do pensamento espacial vão aparecendo, vão sendo testadas, trazendo uma evolução
Em princípio pode-se não ter ideia do que se está fazendo, mas a partir do debruçar-se
sobre a superfície em branco, numa ação transformadora, é que se pode encontrar o desenho, em
ensino na atualidade, requer uma atitude criteriosa. Motivo para muitas reflexões ao longo da
história, e tão apregoado como virtude a ser aprendida e desenvolvida pelo estudo, o desenho
ainda permanece como mistério em sua presença no mundo. Relegado seu ensino a um universo
o relega a existir, quando muito, no ensino de arte. Sua presença em segundo plano no modelo da
escola brasileira faz com que seu ensino se degrade, e deixe de existir no território da educação.
construção de uma sociedade, de seu artesanato, de sua arte e de sua cultura. Entre os gregos
antigos, sua prática para os filhos dos nobres era parte da educação. Citando Plínio, Palomino
observa:
“(...) En Grécia los niños de los nobles debian aprender ante todas las cosas la diagrafica: esto es
picturam in buxo y como Dia era la diosa de la juventud...asi de dia e buxo pudo venir la etimologia
de dibuxo”.56
O autor se refere à madeira buxo, e a atividade de gravar a madeira durante o dia. Sua
reflexão tem a ver com a palavra Dibujo, desenho em espanhol, e denota sua atividade como parte
Estado de São Paulo, na primeira metade do século XX. Ana Mae Barbosa relata em seu livro
Entretanto, esta preocupação não sobreviveu ao longo do tempo e das mudanças ocorridas na
educação brasileira nas últimas décadas. Ainda hoje padecemos de desinteresse em relação à
educação artística no currículo escolar. Mais que isso, apesar dos Parâmetros Curriculares
indefinidos. Neste sentido, quando falamos em artes visuais ou artes plásticas, o desenho ainda é
base para a compreensão da estruturação na feitura de imagens, para a orientação espacial, para o
planejamento e desenvolvimento das cidades e na ocupação geográfica pelo ser humano. Mais do
que uma ferramenta para a educação artística, o desenho é interdisciplinar e está presente na
desenhamos algo, o conhecemos de modo diferente. Percorremos suas linhas, notamos sua
espaço, de criação de objetos. Além de ser um meio de expressão subjetivo, evoca emoções e
sentidos que só podem ser expressos por meio de imagens, pelo desenho.
partindo de análise do modo como foi constituído o ensino de arte institucionalizado no Brasil,
como o desenho foi deslocado para uma esfera diletante, em detrimento do reconhecimento de
sua importância na construção de uma sociedade. Sobre a organização da Academia Real de Belas
“Sabemos que os companheiros de Le Breton trouxeram para cá, principalmente, as lições de Jacques
Louis David. Sabemos ainda que David conhecera de Laymerir, por volta de 1777, a noção de que “o
verdadeiro desenho é a linha”. Entendida mais como contorno, a linha era o elemento configurador – o
limite, a favor da austeridade que na época se opunha à galanteria rococó. Estava assim impregnada de
uma nova comoção, produzida por um conjunto de condições emocionais da burguesia pré-
revolucionária. Era também manifestação de “um projeto social restrito”. Respondia melhor a uma
parte da sociedade que participou da revolução – os burgueses – e não ao povo em geral”.58
(imagem 67)
Neste aspecto, Motta avalia que se impôs um modelo único de desenho que desconsidera
a possibilidade de emancipação por meio de outras formas de se pensar a arte e o desenho que
poderiam ter se constituído no Brasil da época. Sobre a estratégia de desenvolver uma sociedade
burguesa, na qual a arte era atividade de apêndice, supérflua, necessária a um modo de vida de
“A ideia de desenho, ligada à linha, ao traço, ao limite espacial, foi considerado o fundamento das
assim chamadas “artes plásticas”, conforme a visão de Lessing. Outra proposição teórica que muito
influi no neoclassicismo, foi Winckelmann que reconhecia no desenho um fundamento na necessidade e
que, gradativamente, envolvia o supérfluo. Por isso, mais tarde poderíamos perguntar e verificar se essa
necessidade não era mais do que resultado da ciência burguesa. Toda essa visão que atingia o Brasil,
nas vésperas da nossa independência, era, possivelmente, um anteparo ante as ameaças inglesas”.59
Dessa maneira, as artes foram separadas dos ofícios, se restringindo ao hedonismo, sem
“Naquela oportunidade cuidavam de diversificar as “belas artes” dos “ofícios fabris”, como se a arte se
reservasse, apenas, a esfera do “prazer”, e a dos ofícios à área do “saber””.60
Este modo de operar com a arte e seu ensino, ou mesmo o reconhecimento da verdadeira
necessidade de ser parte da organização da vida humana, acaba por retirar do sistema
neste modo de organização da arte não serão os descritos aqui, porém é interessante verificar o
“Até hoje essa dicotomia perpassa os conflitos da modernidade. Inúmeros são aqueles que preferem ver
a arte confinada à condição de deleite pessoal. Assim, ela passará a ser o território onde se organizarão
as frustrações. Assim também, ela ingressa, quase exclusivamente, no terreno da laborterapia. Vira,
para alguns, atividade marginal. É interessante observar como determinados espectadores,
consumidores, desejam manter com a obra de arte apenas um relacionamento puramente agradável,
eliminando qualquer aprofundamento crítico que representaria o reconhecimento do trabalho
intelectual”. 61
É possível verificar esta assertiva, por exemplo, nas escolas públicas atuais, nas quais é
imperativa a presença de pichações nas paredes e nos objetos de uso escolar. Parece, grosso
uma necessidade não trabalhada pela escola. Estas manifestações ocupam as cidades por dentro;
nas suas ruas e construções é possível verificarmos uma proliferação desses desenhos.
Configuram-se como expressões gráficas que são feitas nas paredes, nos muros e nos lugares
expressão, parece incontrolável e vai preenchendo os espaços da cidade, sem pedir licença. Parece
que o contexto social mediado pela educação formal, não dá conta de lidar com essa necessidade
incontida de expressão, que não consegue ser reprimida. Se essas formas de desenho ocupam
espaços que são considerados intocáveis, é talvez porque não exista um lugar dedicado à
incompreensível para quem não compartilha de seus códigos, é porque não lhes é dado
Assim, estes desenhos vão se espalhando, em fluxos contínuos, gerando uma avalanche
de signos, que muitas vezes incomodam, mas que expõem justamente a inexistência de espaços
inscreve, como a forma expressiva de amplificar um grito que não é ouvido, e que faz de tudo
para ser esquecido. Daí decorre outro desvio: quando a escola tenta lidar com esta situação
recorre ao graffite, arte de rua que produz imagens com cores e figurações, mais aceitos do que a
pichação. Sem atribuir juízo de valor a esta atitude, que se converte em atividade escolar que
envolve o desenho, é preciso salientar que o graffite acaba por gerar também um modelo que
sobrepondo outras formas possíveis de trabalhar o desenho, é prejudicado pelo fato de gerar uma
única forma de ação visual no universo escolar (imagem 69). Existem uma série de estereótipos,
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 84
regras e modos de construção gráfica do graffite que tem que ser seguidas por quem o pratica. É
uma forma de expressão ligada à cultura urbana, que se organiza em grupos que criam normas
específicas de trabalho formal. Este fator gera, em oposição a uma pretensa liberdade de
expressão, uma obrigatoriedade e uma uniformidade expressiva aos seus praticantes. Existem
muitas outras formas de arte e de desenho que a escola deve apresentar aos estudantes, na
formação de seu repertório cultural que precisam ser trabalhadas. Entretanto, o que vemos se
espalhando pelos muros das escolas é a expressão do graffite, havendo raríssimas exceções. É
exatamente em oposição a uma forma de manifestação visual que tenha a tendência a se sobrepor
e anular outras formas e modos de se expressar que este trabalho gostaria de argumentar.
Retomando Flávio Motta, o autor explana sobre o modelo imposto pela academia, que
nos dá o lastro desta expressão que se impôs sobre o ensino de arte brasileiro, demonstrando
“A noção de beleza no traço sensível, por exemplo, nos veio muito de Ingres (1780-1867). Seu estilete
traçava linhas tão sensíveis quão precisas. Era o desenhista exemplar, cuja qualidade das obras se
ajustava a simplicidade dos meios. Poucos foram os que conseguiram versar dentro dos níveis
qualitativos de Ingres. Muitos, entretanto, se deixaram iludir pelas aparências quase “fotográficas” de
suas figuras. E se mostraram incapazes de reconhecer as sólidas estruturas do desenho do mestre
francês. Mais do que isso. Confundiram a simplicidade dos meios com a própria significação do
desenho. Academizaram o mestre. Passaram assim, a falar em desenho como “coisa” de lápis e papel.
Os propósitos, os desígnios, o conteúdo se separou da forma, na procura de um deleite, de uma
confirmação imediata. A forma reduziu sua significação. Foi esse o desvio”.62
século XX, as propostas modernistas de ensino da arte, nas quais o principal fundamento era o
“deixar fazer”. O professor não deveria fazer nenhuma interferência no trabalho do aluno,
metodologia que ficou conhecida como “livre expressão”, nem mesmo informá-lo ou dar
referências. A partir desta ideia de liberdade, a “criatividade” passou a ser o foco. É desse modo,
62 MOTTA, 1970, p 4.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 85
contribui com o que chamamos neste trabalho de perda do desenho, que é verificável, por
exemplo, nos currículos escolares brasileiros. Hoje, há poucos trabalhos com o desenho na
escola. Os Parâmetros Curriculares Nacionais não o colocam como conhecimento necessário à prática
utilizados nas escolas da rede estadual de São Paulo, esboçam uma relação com o desenho na
disciplina de artes, em alguns de seus pontos, mas não o aprofundam. Conteúdos e competências
desenho, inexistem. O seu ensino, com uma continuidade lógica, integrado nas disciplinas,
compreendido como forma de estudar a imagem, sobretudo com relação à estrutura de seu fazer,
é completamente ignorado. Estes fatores mostram uma imensa lacuna no sistema de ensino, que
não tem sido pensado para a construção da sociedade do futuro, muito influenciada pela
mundo que vai se construindo fica entregue ao acaso, a soluções inadequadas, imediatistas e
cursos de arquitetura, desenho industrial, artes, moda, entre outros. Entretanto, na escola, nos
ciclos fundamental e médio, os estudantes que escolhem estas carreiras, não obtêm nenhuma
No campo do ensino das artes, em sua prática em nível superior, trazemos aqui a reflexão
sobre o assunto feita pelo autor belga Thierry de Duve63. Para o autor, as dificuldades que se
colocam ao ensino de artes visuais, ainda hoje, estão ligadas a três modelos que se impuseram ao
longo dos tempos e que influenciaram a maioria das escolas de arte no mundo. O primeiro
formada por três conceitos fundamentais: talento, métier e imitação; o segundo é o Moderno (ou
modelo da escola alemã Bauhaus), cujas bases se assentam em conceitos como criatividade, meio
experimentação; o terceiro modelo é designado por De Duve como modelo Pós-moderno, que
teria surgido a partir da década de 1960, ante a crise do modelo Moderno, alicerçando-se sobre
noções de atitude, prática e desconstrução. Seu argumento, como o próprio autor destaca, tenta
fazer um diagnóstico e não apontar uma solução. Porém, pode ser relevante na medida em que
da arte, de maneira menos conflituosa, principalmente quanto a modos e práticas que têm que
Nosso intuito aqui é de lançar uma luz nesta dimensão obscura, em uma tentativa de
traçar um panorama, ainda que num recorte bem reduzido, do que se entenderia por desenho e
seu ensino na atualidade. Buscando colaborar com uma reflexão sobre a possível, e necessária,
argumenta o artigo de Flávio Motta. Por esta razão, se faz necessário propor algumas
argumentar que o desenho pode ser vivenciado e experimentado por qualquer indivíduo. Neste
Para tanto, ter consciência do ato de desenhar e procurar conhecer sua linguagem é um
modo de melhor compreender o espaço que habitamos e o desenho. É possível estudar desenho
por meio da investigação do processo de um artista, por meio de seu desenho e pelo aprendizado
64 Segundo Imannuel Kant, a arte deve ser separada do artesanato, e sua compreensão de artista tem haver com a
ideia de gênio, como um indivíduo diferente dos demais. Ainda hoje esta assertiva tem sido considerada como
sinônimo de grande arte. Crítica da Razão Pura. (Da Arte do Gênio Livro II) Coloca a arte como dom natural,
dividida e independente da noção de trabalho sendo fruto de um talento inato em que não se deve interferir com
formação ou informação. Ao artista deve ser dada total liberdade de expressão, e dotá-lo de conhecimento específico
ou de ciência da arte constrangeria o ato criador.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 87
como uma ferramenta de estudo da linguagem visual, entrando em contato com suas técnicas e
exercitando uma prática que podemos chamar de aprender a desenhar. Configura-se, portanto
um conhecimento de desenho que se torna ferramenta de alicerce da obra de arte, lugar que a
Linguagem e ensino
organizado num sistema que estabelece um processo de comunicação compartilhado pelos seres
humanos, estabelece-se a consciência de sua presença no mundo que a cultura construiu. Em seu
ensino, a proposição de que se perca o receio de vivenciar o desenho, motiva uma aproximação
com a linguagem antes da afirmação fatídica: não sei desenhar. Este ensino é conduzido a uma
prática que constrói certa habilidade, possibilitando vivenciar o desenho, compreender pelo
sistema de signos, de estrutura material que se estabelece como conjunto de códigos que são
determinados ponto fixos. O termo linguagem tem sua referência direta com a linguística,
semiologia e semiótica. Utilizamos aqui a semiótica como parâmetro desta reflexão visando sua
aplicação de um modo amplo, no sentido do uso do termo linguagem, que esta ciência propõe.
“Toda e qualquer coisa que substitua ou represente outra, em certa medida e para certos efeitos. Ou,
melhor: toda e qualquer coisa que se organize ou tenda a organizar-se sob a forma de linguagem, verbal
ou não, é objeto de estudo da Semiótica.”65
código e mensagem acrescentamos o desenho, e suas formas de composição são nosso estudo
compartilhados entre si. Comunicar-se tem uma relação direta com ensinar e aprender. Posto isto
e conduzido a uma visão de desenho que aplicamos neste trabalho, a hipótese levantada é que há
um processo de aprendizagem que precisa ser explorado numa educação artística que envolva
desenho, que há uma estrutura que permite ser transmitida em códigos e estruturas de
comunicação, que são ferramentas para a expressão do pensamento visual ou gráfico. Dessa
de desenho, como a própria definição de comunicação dada pelo esquema proposto por
Jakobson.
símbolos, os quais a semiótica trata por sintagma, o desenho apresenta-se no espaço total do
plano, tratado por paradigma. Ou seja, o eixo do sintagma para a semiótica é linear, horizontal,
exige uma sequência para construção da compreensão e leitura dos códigos. O desdobramento
seguinte leva para articulações sígnicas, gráficas, que se referem a tensões, densidades,
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 90
sintaxe espacial. Quando falamos em linguagem, pensamos que todo desenho ou imagem
produzido pode ser “lido” por um espectador, observador. Quanto aos eixos do paradigma e do
sintagma, os exemplificamos da seguinte forma: ao escrever um texto, por exemplo, uma carta, a
operação que se faz é da articulação de signos de forma linear, com o objetivo de construir uma
condutor da mensagem, em linguagem escrita está para a prosa. No caso da poesia, em linguagem
escrita, a linearidade fica em segundo plano e a mensagem se desenvolve com maior liberdade
espacial. O eixo condutor é o eixo vertical, o paradigma. Em desenho, a linha segue o eixo do
sintagma, ao ser definida como sequência de pontos. Entretanto sua dimensão de composição é
espacial, se expandindo e se relacionando com todo o espaço delimitado do suporte. Desse ponto
de vista, podemos dizer que o desenho começa na delimitação do campo de atuação, no suporte
é parte do desenho. O desenho linear é construído pela linha que produz uma circunscrição, um
contorno que gera uma forma. A esta linha traçada se determina um valor linear, em termos de
suporte ou espaço de composição. O desenho então começa pelos limites impostos por um
qual o trabalho irá se inscrever, já é desenho. É neste aspecto que o pensamento espacial
determina a construção gráfica. O plano permite uma movimentação que não se dá de modo
sequencial, mas sim de modo espacial. O pensamento tem toda a superfície para atuar e para se
espacial de ação que se pode prever, planejar pelo desenho. O desenho redimensiona o espaço e
orienta seu uso, por exemplo, no urbanismo das cidades. (imagens 70 e 71)
determinação de que o desenho começa no campo visual delimitado para a representação. Se este
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 91
campo for uma folha de papel, seu tamanho, suas arestas, seu perímetro já formam um recorte,
percepção de que se está desenhando, e, a partir desse suporte, é que se produzirá a imagem.
Leon Alberti menciona o quadrângulo, que consiste em um bastidor vazado em forma retangular,
como se fosse uma janela, com linhas esticadas entre seus lados formando uma trama, sendo
“Inicialmente, onde devo pintar, traço um quadrângulo de ângulos retos, do tamanho que me agrade, o
qual reputo ser uma janela aberta por onde possa eu mirar o aí será pintado, e aí determino de que
tamanho me agrada sejam os homens da pintura.”67
principio do desenho; suas escolhas são parte da ação e resultado material. Há no desenho uma
proximidade com a letra, com a escrita manual que atribui identidade e expressão em um
temperamento da linha. Cada indivíduo tem uma letra, uma escrita que se dá segundo a sintaxe
produzirá uma linha, que unida a outras linhas produzirão forma, é outro aspecto que
fundamenta a linguagem do desenho. Destas estruturas é que podemos partir para o desenho
Desenho e a Imagem Contemporânea”, dirigido para alunos do ensino médio em idade pré-vestibular,
com opção de seguir carreira em Artes Visuais. Este curso foi ministrado no MAC USP em duas
edições, nos segundos semestres de 2008 e 2009. O objetivo do curso foi o de possibilitar ao
O curso, cuja duração é de dez aulas, teve uma proposta diretamente relacionada com a
conquista de uma forma pessoal e de uma percepção da identidade no trabalho com o desenho.
arte, numa perspectiva de desenho como campo de estudo, dedicação e trabalho. Esta proposta
de ação educativa com o desenho buscou mostrar que é possível desenvolver o desenho, quando
desenho como um dom, algo misterioso, fruto de um autodidatismo que somente o talento
desenho, de suas técnicas, materiais e possibilidades de expressão, com vistas à consciência de sua
linguagem.
Com esta proposta metodológica, seu intuito foi proporcionar uma visão abrangente do
desenho em suas várias possibilidades. Lidando com estes aspectos, percorreu-se um caminho
que ampliou horizontes, tanto com relação a técnicas, quanto de abordagens do desenho. Assim
exercícios de composição.
Alunos inscritos 20
Vestibulandos 11
Alunos inscritos 20
Para esta segunda turma, devido aos imprevistos causados pela greve na universidade,
acarretando baixa procura de alunos que iriam prestar o vestibular. Por esta razão optamos por
aceitar também alunos que não estavam necessariamente inscritos para vestibulares.
Naturalmente, em dez aulas não é possível se ensinar desenho. Esta foi uma experiência
de um formato sintético que teve o objetivo de traçar uma linha que objetivou trazer à luz o
material. Os alunos do curso, interessados na matéria, já tinham uma prática com o desenho, e o
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 94
argumentar é que se faz preciso reconhecer a presença do desenho, sua tentativa de expressão,
sufocada pela incompreensão da escola. A ausência de espaço para sua manifestação, que o
marginaliza, o deixa a mercê de uma exploração, que pouco informada, perde a chance de se
que neste trabalho é chamada de linguagem, observamos que sua manifestação se dá, na
pensamento, da expressão e da linguagem, que se tornam atitude, são ações que se mostram na
arte atual. Uma dupla de artistas reviveu, no ano de 2008, como parte uma viagem artística
intitulada Expedição Francisco68, um trabalho do artista alemão Franz Erhard Walther denominado
Interchange69.
Navegando de barco pelo rio São Francisco, no nordeste brasileiro, um grupo de artistas
percorreu sua linha natural, vivenciando a experiência de tensão, de esforço, de trabalho que
diagrama o desenho do chamado rio da integração nacional. Em específico, dentro deste grupo,
houve o trabalho performático que os artistas Deyson Gilbert e Luísa Nóbrega70 realizaram ao
relação entre o eu e o outro, a dimensão conceitual do que seja desenho e sua participação
foram os desenhos e fotografias de Walther, publicados no seu livro Diagramme zum 1. Werksatz
(imagens 72, 73 e 74). O livro do artista traz uma série de propostas de performances
que envolvem pessoas e objetos em interação. O trabalho motivador de Deyson e Luiza, segundo
68 Em abril de 2008, um grupo de cinco artistas organizados em torno do projeto Expedição Francisco, com o apoio
do programa Conexão Artes Visuais da Funarte, percorreu o rio São Francisco, de Januária (MG) até sua foz, em
Piaçabuçu (AL). Colocando a produção de arte contemporânea no contexto desse debate sobre a transposição do
rio, realizou performances artísticas que propunham relações específicas com o rio, bem como uma tentativa
particular de entender questões que se colocam para a arte contemporânea no momento em que ela se dirige a
espaços distantes do circuito artístico de cidades como São Paulo. O projeto procurou pesquisar e compreender de
que maneira o trabalho de arte contemporânea do grupo seria transformado pelo contato com o rio São Francisco,
em um momento chave, marcado pelo início das obras de transposição de suas águas. Configurado como um ateliê
flutuante, o grupo promoveu ao longo de mais 1.800 km uma série de atividades artísticas, tais como exposições,
workshops e performances, buscando sempre a interação com as comunidades locais.
69 Desenhos e fotografias podem ser vistos em WALTHER (vide Bibliografia).
70 Deyson Gilbert é artista plástico e diretor de teatro. Luiza Nóbrega é atriz e performer.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 96
os registros do próprio Walther (imagens 75, 76 e 77), procura discutir a visão, o olhar, a relação
entre dois observadores ligados entre si. Esta performance, e todas as demais do livro, necessitam
da experiência entre corpos para acontecer plenamente. O desenho informa e está presente como
descrição, como orientação dos procedimentos que os artistas/performers devem adotar para
reproduzir ou fazer o trabalho acontecer. No caso de Intercâmbio, Walther propõe que se crie, pelo
encapuzamento, um canal de visão entre duas pessoas. O objeto é uma “linha” feita de tecido,
costurada na forma de um tubo e com uma abertura em cada extremidade, na qual os usuários
colocam suas cabeças. Se o tubo do capuz ficar frouxo, significa que os participantes se
aproximam, mas não conseguem se observar. Para que um possa olhar para o outro é necessário
que coloquem os seus corpos em tensão, os deslocando para trás de modo que se produza uma
enxergar, de ver o outro, se dá pela relação de forças que une e separa os corpos ao mesmo
tempo. No movimento, os músculos se expandem e descansam sobre a tensão gerada pelo tecido
tecido (a linha que os une) não se veem de imediato, mas graças ao esforço em produzir a tensão,
aos poucos há a possibilidade de um olhar para o outro. Intercâmbio, como um trabalho de tensão,
de identidade e alteridade teve seu sentido plenamente contemplado na discussão que os artistas
pretenderam participar, a transposição do rio São Francisco. Suas ações ao longo da viagem
inseriram a arte no debate acerca das tensões regionais provocadas pela transposição do rio. A
cultura, a sociedade e a política no Brasil, cuja diversidade é bastante grande, são parte dessa
alteração ambiental que a engenharia realizou ao mudar o desenho do rio São Francisco. Em
meio ao debate acirrado sobre a transposição ou não do rio, a arte apresentou sua mediação e
O resultado do trabalho pode ser verificado em registro fotográfico no livro Trans Posição
dupla Deyson Gilbert e Luiza Nobrega, realizou o trabalho Intercâmbio (imagem 78). Esta ação,
que se pode chamar de releitura do trabalho, foi feita em outro contexto, no caso às margens do
Rio São Francisco no Brasil, e mostra um desenho em camadas. Primeiro existe o desenho
registro fotográfico do ano de 2008 feito a partir da performance de Deyson e Luiza. A alteração
do contexto, da época, do propósito de se reativar esta obra, fazem com que a performance
ganhe uma natureza diferente da original, e portanto tenha uma autonomia. Este trabalho
olhar, e um somente consegue ver o outro no estado de tensão. De certa maneira, em todo
modo a ser compreendida está envolvida, em algum grau, uma tensão. O momento em que a
Expedição Francisco navegou pelo rio foi justamente quando o debate sobre a transposição do rio
estava acontecendo. O projeto secular de conduzir pelo engenho as águas do rio para o sertão
circunstância gerou uma grande tensão no país, principalmente naquela região, por questões
sociais, econômicas, culturais e ambientais, fato que contribuiu com o sentido da proposta dos
artistas. É pela tensão acaba por enxergar o outro e é no equilíbrio entre os corpos ao unir as
forças que o canal de comunicação se abre. Além da ação ter nascido de um desenho projeto, ela
se constitui num desenho como linguagem, como linha que liga pontos por meio de um
movimento e de força de tensão. O próprio rio como um desenho natureza, alterado pela
71 Livro resultante de um trabalho coletivo de mesmo nome, organizado pela Organização Social de Interesse
Público Ato Cidadão, com apoio da Prince Claus Fund for Culture and Development.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 98
resultado artístico foi apresentado também num contexto de grupo, de um coletivo de arte, como
parte de um todo. Embora ao observarmos esta performance, ou as fotos da ação, seja algo que
trabalho só é vivenciada pelos performers. Trata-se de uma arte que exige a experiência. Ao
espectador de fora resta ver as fotografias de registro do trabalho, que acabam por reconstituir
um desenho em sua particular forma de linha, cortando o horizonte da paisagem do rio São
Francisco.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 99
Imagem 67 Imagem 68
Imagem 69
Imagem 70 Imagem 71
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 100
Imagem 72 Imagem 73
Imagem 74
Imagem 75 Imagem 76
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 101
Imagem 77
Imagem 78
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 102
Considerações finais:
das coisas da natureza e dos objetos visíveis que surgem a partir do treino e desenvolvimento da
Não há motivo para se cobrar um resultado com base em um conceito artístico reduzido
a realismo, verossimilhança ou beleza. Pensando a partir dessa ideia, notamos que o único pré-
requisito para desenhar é ter coragem de seguir um caminho próprio, com desenvolvimento e
consciência da linguagem. É óbvio que todo artista possui influências e referências que o ajudam
a elaborar seu trabalho, entretanto, é necessário investir na linguagem pessoal, dando vazão à
própria personalidade, deixando que ela transpareça na arte, transformando um possível defeito
em efeito. Talvez o receio do erro possa ser um elemento intimidador, porém o erro tem sua
função. Existe na arte o mito do certo ou errado. A arte pode seguir caminhos de acerto, mas
conseguir assimilar o erro e transformá-lo em algo positivo na sua obra. A poeta paulista Orides
Fontela, em um de seus poemas do livro Teia, diz: “só porque erro encontro o que não se procura72”.
hoje em dia para a produção de imagens, o lápis e o papel ainda permanecem como fundamento
rudimentar da arte de desenhar. Basta ter uma folha de papel em branco e um lápis à mão e
deixar-se levar pela a linha, pela dança do desenho, pela geração e materialização de uma ideia.
Essa entrega pode dar início a uma obra de arte, a um projeto que pode vir a ser realizado, por
exemplo, em um computador, ou dar origem a uma instalação ou a uma pintura. Além disso,
estar à disposição do desenho leva o desenhador a um tipo de estado mental próximo a uma
ação de desenhar. Há também a vantagem do desenho ser esboço, não se comprometendo com
caminhos que podem gerar grandes frutos. Porém, não podemos esquecer que se trata de um
todas as formas culturais e assim sendo é possível de ser transmitido como conhecimento. Neste
desenhado, que se constitui de espaços e objetos que são resultado da ação humana sobre a
religioso ou místico ao profano e banal, em uma organização que foi, ou é, ou pode vir a ser
desenhada. A imagem que se assenta sobre um desenho e nos encanta pelas suas linhas, pelas
suas formas, pela sua ocupação de um espaço e sua existência em um contexto. Mais do que uma
linguagem que se compartilha, e como tal pede diálogo, capacidade de ser decifrada e interpretada
em um processo de troca simbólica. Sua presença como parte de uma educação, não só artística,
que serve a vida. Conhecimento que pode ser partilhado e que se dá como sistema que organiza
os espaços habitados pelo homem. Daí sua importância. Neste sentido, quem quiser se dedicar a
este modo de expressão pode encontrar um campo de pesquisa e informação bastante vasto, que,
de algum modo, este trabalho se propôs a apresenta algumas referências. É neste aspecto que
adequado, onde o receio e a dúvida sejam substituídos pela experiência informada. Sua utilidade
está na conjugação da teoria informando a prática e refletindo o fazer. Há também a procura por
ampliar o conceito ou compreensão do que seja desenho, demonstrando que suas formas podem
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 104
ser diversas e seus modos de fazer muito variados. Que envolve técnicas, conhecimento material
amparado pela história, pela filosofia, talvez se constituindo como uma parte fundamental de uma
ciência da arte. Suas formas então se transformam conservando uma essência que se manifesta
em processos de capazes de serem ensinados e aprendidos. Por esta razão é preciso desmistificar
desenho. O modo de lidar com esse medo é enfrentar a sua prática, tendo em mente que sua
amplitude de formas supera preconceitos e mesmo modelos visuais estanques. Mais que isso, o
somos um desenho no mundo, uma presença da forma humana que em conjunto desenha
realidades. Mesmo sem percebermos todos estamos deixando marcas de nossas ações
desenho, da carência de um sistema que o explique, que permita que ele seja vivenciado e
percebido como parte da vida. Finalmente, o que queremos com este trabalho é que o medo se
torne atividade criativa, força expressiva e aprendizado pela arte, para que isso aconteça basta
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Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 108
Anexos
1. Introdução nas especificidades da linguagem do desenho através de sua relação com a história
da arte.
2. Reflexões sobre a linguagem do desenho e sua contextualização histórica.
3. Estudo dos desdobramentos originados com tecnologias de produção e reprodução da
imagem, surgidas no século XX.
4. Experimentação de diferentes técnicas e recursos expressivos próprios do desenho.
Desse modo, segue o programa do curso em dez aulas, sendo que as oito primeiras trabalham
com conteúdo e as duas últimas são dedicadas exclusivamente para análise e reflexão dos projetos
individuais de trabalho.
Exercícios de fundamento
eixo do paradigma, que não obedece à linearidade linguística. Assim, são propostos exercícios de
diagramação, composição e distribuição das formas no espaço, no contexto. Como finalização do
processo, está a elaboração a partir de temas que devem resultar em um projeto pessoal de
pesquisa e desenvolvimento de desenho.
Aulas:
1ª AULA:
- Apresentação do curso, com os objetivos, formato, interesse, processo e projeto pessoal de
trabalho ao longo do curso.
- Imagem contemporânea e sua relação com o desenho.
Proposta:
Explorar o seu próprio desenho. O objetivo é reconhecer a linha de cada um e verificar como o
professor pode colaborar com o caminho escolhido pelo estudante.
2ª AULA:
- O desenho: história, materiais, abordagens e o desenho no século XX.
- Exercício de investigação da Linha.
Exercício:
A partir de um objeto:
- Desenho cego com tempo marcado.
- Desenho com tempo marcado.
- Desenho livre de observação.
3ª AULA:
- Exposição de imagens de desenhos de estudos, esboços, projetos e linguagem em si.
- As modalidades de desenho.
Exercício:
- Escala Tonal: como está relacionada com a percepção da luz.
- Exercício expressivo.
- Exploração de materiais.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 110
4ª AULA:
- Composição no espaço; o signo distribuído na delimitação do suporte.
Exercício:
- Composição, diagramação, planos, figura e fundo.
- O desenho como pensamento; o desenho analógico.
5ª AULA:
- A ação expressiva, materiais, ações de riscar, ferir, raspar, friccionar, etc.
- A materialidade: o meio é a mensagem.
- Linha temperamento: construção expressiva pelo valor da linha.
- Branco sobre preto. (exercício experimentação com materiais)
Exercício:
- Desenhar com borracha, por apagamento, sobre fundo de grafite espalhado sobre o papel.
6ª AULA:
- Forma, perspectiva, bi e tridimensionalidade, ilusão.
- Linguagem, léxico, gramática visual, ortografia, desenho e elementos que compõem sua
estrutura.
Exercício:
- Desenho da forma, perspectiva.
7ª AULA:
- Projeto pessoal de trabalho.
- Desenho conceito, desenho texto.
- Construção de uma proposta de trabalho que envolva a produção de um desenho pessoal.
Exercício:
- Desenho do vazio, das formas resultantes do espaço entre as coisas, o entremundo, olhando as
formas geradas pelo espaço vazio, o espaço negativo.
Desenhar: pensamento, expressão e linguagem 111
8ª AULA:
- O desenho contemporâneo, a imagem contemporânea, tratando da construção da imagem pela
luz, pela linha digital, pelo pixel, etc.
- Desenvolvimento do projeto pessoal.
- Apresentação e conversa sobre o campo de atuação artística.
- Análise dos resultados do curso a partir dos trabalhos realizados nas aulas e no cotidiano.
9ª AULA:
- Apresentação da proposta, projeto ou exemplo do Projeto Pessoal de Trabalho.
- Orientação do projeto pessoal a partir do material apresentado pelos alunos.
- Desenvolvimento e acompanhamento do projeto pessoal.
10ª AULA:
- Apresentação de trabalhos.
- Fechamento do curso.