Elisa Costa p153-181
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O POVOAMENTO DO BRASIL
(SÉCULOS XVI-XIX)*
por
Elisa Maria Lopes da Costa**
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2 Cf. Ático Vilas-Boas da Mota, “Le chemin des Amériques”, in Courrier de l’unesco, Pa-
ris, 37e année, octobre 1984, p. 33 (tradução nossa). Veja-se ainda, do mesmo autor “Con-
tribuição à História da Ciganologia no Brasil”, Revista do Instituto Histórico e Geográfi-
co de Goiás, Gôiania, 1982, ano IX, nº 10, pp. 77-113 (no final contém uma cronologia -
entre 1885 e 1982 - dos estudos ciganológicos publicados no Brasil). Leitura complemen-
tar pode ser Luís da Câmara Cascudo, “Ciganos”, in Dicionário do Folclore Brasileiro,
A-I, 2ª edição, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1962, pp. 216A-217A.
Retomando a afirmação de Ático Mota veja-se, a título exemplificativo, a questão da to-
ponímia e as informações veiculadas a propósito por Francisco Augusto Pereira da
Costa, Anais Pernambucanos 1701-1739, Recife-Pernambuco, Arquivo Público Esta-
dual, 1953, vol. V, p. 303.
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CONTRIBUTOS CIGANOS PARA O POVOAMENTO DO BRASIL
3É frequente ouvir dizer que o “ler a sina” foi invenção do Povo Cigano todavia, o estudioso
destas matérias Chris Morgan esclarece: “(…) Não tem qualquer base segura a ideia de que
foram os ciganos a iniciar esta prática ou sequer que a trouxeram para a Europa (…) porque
ela teve origem na China há mais de cinco mil anos (...)”, Fortune Telling. How to predict
your own future, London, Grange books, 1995, “Palmistry”, chap. 5, p. 57 (tradução nossa).
4 Cf. Elisa Maria Lopes da Costa, O Povo Cigano entre Portugal e terras de além-mar (sé-
culos XVI-XIX), Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para a Comemo-
ração dos Descobrimentos Portugueses, 1997, pp. 60-64.
5 Cf. Bill M. Donovan, “Changing perceptions of social deviance: Gypsies in early modern
Portugal and Brazil”, in Journal of Social History, s.l., Fall 1992, p. 33 (tradução nossa).
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6 Para os interessados nesta temática indispensável se torna a leitura do conjunto dos arti-
gos insertos na revista Textos de História: Revista da Pós-Graduação em História da
UnB, Brasília, Universidade de Brasília, vol. 6, nºs 1 e 2 (1998), 1999, e, ainda, a obra
da autoria de Timothy Joel Coates, Degredados e Órfãs: Colonização dirigida pela Co-
roa no Império Português 1580-1755, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemora-
ções dos Descobrimentos Portugueses, 1998.
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CONTRIBUTOS CIGANOS PARA O POVOAMENTO DO BRASIL
7 De assinalar ainda que, durante a Época Moderna, e de acordo com a opinião expendida
por vários estudiosos do tema, o degredo deteve o papel central no conjunto dos castigos
aplicados pelas autoridades, restando aos outros: de morte, de trabalhos forçados, de mu-
tilação corporal, pecuniários, etc…, um papel secundário.
Quanto ao transporte dos degredados para o Brasil, a saída de qualquer barco de Lisboa
era regulada pelo Regedor da Casa da Suplicação que dava indicação do número que ca-
da um levaria. Ao passar a Torre de Belém a certidão emitida pelo Regedor tinha de ser
exibida, caso contrário seria um sinal de irregularidade para o qual estavam previstas san-
ções graves, cf. Emília Viotti da Costa, “Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos
degredados”, in Textos de História (…), p. 96 e, para todo o texto pp. 77-100.
A propósito da colonização das terras brasílicas por parte da coroa portuguesa atente-se
no que escreveu Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 7ª reimpressão, São
Paulo, Editora Schwarcz, 1999, p. 107: “(…) Mesmo em seus melhores momentos, a
obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um caráter mais acentuado de feitoriza-
ção do que de colonização. Não convinha que aqui se fizessem grandes obras, ao menos
quando não produzissem imediatos benefícios. (…)”.
8 Cf. Geraldo Pieroni, “No Purgatório mas o olhar no Paraíso: o degredo inquisitorial pa-
ra o Brasil-Colônia”, in Textos de História (…), p. 137 Apud Documentos para a Histó-
ria do Açúcar (Legislação 1534-1569). Explicação de Gil Methodio Maranhão, Institu-
to do Açúcar e Álcool, Serviço especial de documentação histórica, vol. I, Rio de
Janeiro, 1954, p. XV.
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“(...) as mulheres dos ciganos que estiverem presos nas galés que estão
no porto desta cidade [Lisboa], ou em qualquer outro deste Reino em
que estiverem, se sairão dele dentro dos ditos quatro meses, ou se avizi-
nharão no Reino pela maneira acima declarada, deixando o dito hábito e
língua dos ciganos: e não o fazendo assim serão publicamente açoitadas
com baraço e pregão, e degredadas para sempre para o Brasil (...)”10,
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CONTRIBUTOS CIGANOS PARA O POVOAMENTO DO BRASIL
11 Veja-se Isabel Drumond Braga, “Para o estudo da minoria cigana no Portugal Quinhen-
tista”, in Brigantia - Revista de Cultura, Bragança, vol. XII, nº 4, Outubro-Dezembro
1992, “Quadro V - Delitos e Perdões”, p. 36.
12 Cf. Francisco Adolfo Coelho, Ibidem, doc. nº 5, p. 232.
13 Cf. Pedro d’Azevedo, “Os Ciganos em Portugal no século XVI e XVII”, in Archivo his-
torico portuguez, Lisboa, vol. VI, 1908, doc. nº VI, p. 468.
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“(...) Gal.: (…) E quanto as ciganas não as quis acceitar nesta festa o se-
nhor Devoto antes as despedio, e elle dirá o porque.
Devoto: Tenho tamanho aborrecimento a essa gente, que nem esmolla à
porta quero se lhes dê, por os ter por indignos della. (…) são quasi todos
estes Ciganos, ladrões, salteadores, matadores, sem ley, nem temor del-
la, e ellas ladras, feiticeiras inquietadoras da honestidade das molheres,
e fazendo-as mal parir. (p. 267) (…) E esta gente com haver tantos cen-
tos de anos que Espanha os agasalhou (...) não sei como os conselheiros
dos Reis, e os que governam as Repúblicas desvelando-se tanto em no-
vas pragmáticas sobre ninharias, não buscam remédio a coisa tão impor-
14 Cf. Elisa Maria Lopes da Costa, “Diáspora cigana para o Brasil nos quinhentos anos do
seu achamento”, in Al-Ulyã Revista do Arquivo Histórico Municipal de Loulé, Loulé, nº
9, 2003, pp. 33-38.
15 Cf. Idem, O Povo Cigano entre Portugal e terras de além-mar (séculos XVI-XIX), pp.
75-76.
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tante como fora não estar Portugal e Espanha toda criando em suas en-
tranhas, estas lombrigas ou digo víboras que o estão roendo de contínuo
por todas as partes do seu todo (...). E pudera isso ter muito bom remé-
dio, embarcando-os divididos para o Brasil e Angola e outras nossas
conquistas, e agora para a nova povoação do Maranhão poucos a pou-
cos em cada navio que fosse, e se iriam acabando de sair do Reino ou
deles estes maus costumes (...).
(p. 269) Crisp.: Deixemos os pobres Ciganos, e ir as cousas por onde
vão que nos não havemos de governar, nem emmendar o mundo (…)”16.
16 Cf. Francisco Adolfo Coelho, Ibidem, doc. nº 38, pp. 266-269 (itálico nosso).
17 Cf. A. J.R. Russel-Wood, “Grupos Sociais”, in Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri
História da Expansão Portuguesa - vol. II: Do Índico ao Atlântico (1570-1697),
Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, p. 185B.
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“(...) e que os Ministros que assim o não executarem, lhes seja dado em
culpa para serem castigados, conforme ao dolo, e omissão que sobre es-
te particular tiverem (...)”19,
o que sucedia, aliás, com relativa frequência. Com efeito, por vezes, pare-
ce ter acontecido que tidas por exageradas, as medidas previstas caíram no
esquecimento, pese embora os castigos em que incorria quem prevaricasse!
Nos alvores de Setecentos a “questão cigana” permanecia irreso-
lúvel, razão pela qual o Poder continuava no seu fulgor legislativo. A 10
de Novembro de 1708, nova lei destinava as mulheres ao Brasil, e os ho-
mens ao serviço das galés se, por ventura, não corrigissem o seu modus
vivendi, mas, também abrangia todos quantos não o sendo se juntassem
aos ciganos:
“Eu El-Rei faço saber aos que esta minha Lei virem, que, por ter mostra-
do a experiência não haverem sido bastantes as disposições da Ordena-
ção do Reyno e outras Leis posteriores, e várias ordens, que em diversos
tempos passarão para os Ciganos não entrarem no Reyno, e se conserva-
rem nas Terras delle, nem para que estes, e outros homens, e mulheres de
ruim vida, que se lhes agregão, fação com elles escandalosa vida, que os
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nas e o Conselho Ultramarino, que iria durar desde 1755 até 175823. Ar-
gumentava-se que ao serem enviados para outra terra nela eram introdu-
zidos problemas antes desconhecidos, e a situação era agravada pela difi-
culdade em torná-los sedentários e pela impossibilidade de lhes alterar o
modo de vida, em especial pelo trabalho. Ainda assim, reconhecia-se que
“esta gente tinha sido útil ao Estado com a multiplicação” (com frequên-
cia as famílias tinham grande descendência, o que ainda sucede nos nos-
sos dias), qual panaceia para o mal endémico que constituía a escassez po-
pulacional.
Por sua vez, o alvará régio de 20 de Setembro de 1760, pretendeu
ser o remédio para os problemas de um Povo que permanecia constante
preocupação para os poderes, quaisquer que fossem e onde quer que esti-
vessem. E, a aplicação das medidas nele insertas parece ter surtido alguns
efeitos, conforme se verá mais adiante:
“Eu El-Rey faço saber aos que este Alvará de Ley virem que sendo-me
presente que os Siganos, que deste Reino têm sido degradados para o Es-
tado do Brasil vivem tanto à disposição da sua vontade que uzando dos
seus prejudiciaes costumes com total infracção das minhas Leis, causão
intoleravel incómodo aos moradores, cometendo continuados furtos de
cavalos, e Escravos, e fazendo-se formidáveis por andarem sempre en-
corporados, e carregados de armas de fogo pellas estradas, onde com de-
clarada violencia praticão mais a seo salvo os seus perniciozissimos pro-
cedimentos; considerando que asim para socego público, como para cor-
recção de gente tão inutil e mal educada se faz preciso obrigá-los pellos
termos mais fortes e eficazes a tomar a vida civil:
sou servido ordenar que os rapazes de pequena idade filhos dos ditos si-
ganos se entreguem judicialmente a Mestres, que lhes ensinem os offi-
cios e artes mecanicas, aos adultos se lhes assente praça de soldados, e
por algum tempo se repartam pellos Prezidios, de sorte que nunca este-
jão muitos juntos em hum mesmo Prezidio, ou se fação trabalhar nas
obras públicas pagando-lhes o seo justo salario; prohibindo-se a todos
poderem comerciar em bestas e Escravos e andarem em ranchos: Que
não vivão em bairros separados, nem todos juntos, e lhes não seja permit-
tido trazerem armas, não só as que pellas minhas Leis são prohibidas, que
de nenhuma maneira se lhes consentirão, nem ainda nas viagens, mas
tãobem aquellas, que lhes poderião servir de adorno: E que as mulheres
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“(…) eu fui servido mandar degradar para essa praça da Bahia varios
ciganos e ciganas e seus filhos pelo mau e escandaloso procedimento com
que se haviam neste Reino de que havia tão repetidos clamores, e reparti-
dos pelos navios que vão para esse porto. E como pela lei novíssima que
aqui mandei promulgar lhes está proibido usarem da sua língua e gíria,
com que se costumam explicar, Me pareceu ordenar-vos (…) não permi-
tindo que a ensinem a seus filhos para que pelo tempo adiante se extinga
de todo a prática e uso dela o que vos hei por muito recomendado (…)”27.
“(...) é Sua Majestade servido que daí sejam mandados para o Ceará e
Angola nos navios que houver para aquela Conquista pondo Vossa Se-
nhoria todo o cuidado nessa execução para que nenhum fique nessa Ca-
pitania. Recomendando aos governadores (...) a que hão-de ser remeti-
dos os não deixem voltar para o Reino (...)”28.
27 Cf. AHU, Baía, Cod. 247, fl. 135. Aduza-se a informação veiculada por José B. d’Oli-
veira China, Ibidem, p. 427, de que, em Dezembro subsequente, esta ordem teria sido
enviada ao Desembargador Geral do Crime da Bahia (itálico nosso).
28 Cf. Elisa Maria Lopes da Costa, O Povo Cigano entre Portugal e terras de além-mar
(séculos XVI-XIX), p. 47 (itálico nosso).
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CONTRIBUTOS CIGANOS PARA O POVOAMENTO DO BRASIL
Dado o equilíbrio entre os dois sexos parece que se trataria, pelo menos
em parte, de casais.
Ao contrário do que fora preconizado teriam permanecido na ca-
pitania vários ciganos, aliás com autorização do Vice-rei, em 14 de De-
zembro de 1720, para se estabelecerem em Sergipe d’El-Rei30.
Tais chegadas estão atestadas por dois autores, são eles: José Alvares
do Amaral o qual refere que teriam alcançado a cidade de Salvador a 31 de
Julho do mesmo ano “as primeiras famílias de ciganos degredados”31; e
Moraes Mello Filho, que nos legou um livro para cuja elaboração contou com
um informador de origem cigana, Pinto Noites de seu nome. Ancião com a
provecta idade de 89 anos (cerca de 1886), teria referido que nos alvores de
Setecentos haviam aportado ao Rio de Janeiro, idos do Reino, os seus avós e
familiares, devido a um roubo de quintos de ouro, atribuído aos ciganos. Re-
cordava o nome dos seus chefes, os quais estariam compreendidos no decre-
to de 1718: João da Costa Ramos, por alcunha João do Reino, com seu filho
Fernando da Costa Ramos e sua mulher D. Eugénia; Luís Rabelo de Aragão;
Ricardo Fraga, que seguiu para Minas Gerais; António Laço com sua mulher
Jacinta Laço; o Conde de Cantanhede (parece ter sido apropriação por um tal
Peres do título de um Conde de Cantanhede, fidalgo português que viajava
29 Cf. Elisa Maria Lopes da Costa, “O Povo Cigano e o espaço da colonização portuguesa -
Que contributos?”, in Ciganos e degredos. Os casos de Espanha, Portugal e Inglaterra,
séculos XVI-XIX, Lisboa, Col. «Interface, nº 15», Centre de recherches tsiganes-Secreta-
riado Entreculturas-Ministério da Educação, 1999, II., pp. 49-91 (há tradução castelhana:
“El Pueblo Gitano y el espacio de la colonización portuguesa. Cuales han sido sus aporta-
ciones?”, in Deportaciones de Gitanos, Madrid, Editorial Presencia Gitana, 1999, pp. 43-
85), p. 78. Confirma estas informações a referência de um par de navios ter rumado à
Índia e, de vários terem tido por destino a Baía e Pernambuco, em Abril e 18 de Maio ime-
diato, se bem que não tenha ficado registado o nome de quem partiu, cf. Manuel Lopes de
Almeida, Notícias históricas de Portugal e Brasil (1715-1750), Coimbra, 1961, pp. 17-26.
30 Cf. Francisco Augusto Pereira da Costa, Anais Pernambucanos 1701-1739, vol. V,
1953, pp. 299-303.
31 Cf. José Alvares do Amaral, Resumo cronológico e noticioso da Província da Bahia
desde o seu descobrimento em 1500, 2ª ed., Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1922,
p. 327. Mas, como ficou demonstrado já antes tinham chegado à Baía famílias ciganas.
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32 Alexandre José de Mello Moraes Filho, Os Ciganos no Brasil e Cancioneiro dos Ciga-
nos, 2ª ed., Belo Horizonte, Ed. Itatitaia, 1981, pp. 26-27.
33 Cf. José B. d’Oliveira China, Ibidem, pp. 415-416.
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34 Cf. Elisa Maria Lopes da Costa, O Povo Cigano entre Portugal e terras de além-mar
(séculos XVI-XIX), p. 49 (itálico nosso).
35 Cf. Idem, Ibidem, “V. A prática do degredo intercolónias”, pp. 59-68.
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logrou sequer escapar a população cigana, quanto mais não fosse devido
à sua itinerância constante36.
A construção de Minas (denominada mineiridade por Arminda
Arruda) teria resultado, na feliz asserção do investigador Barros Latif, da
inter-relação entre a liberdade e a ponderação de personagens apelidáveis
de Dom Quixotes e de Sanchos Pança:
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CONTRIBUTOS CIGANOS PARA O POVOAMENTO DO BRASIL
se gasta em cordões, arrecadas e outros brincos, dos quaes se vem hoje car-
regadas as mulatas de máo viver, muito mais que as senhoras”. E mesmo
essa emigração faz-se largamente a despeito de ferozes obstruções artifi-
cialmente instituídas pelo governo; os estrangeiros, então, estavam decidi-
damente excluídos delas (apenas eram tolerados - mal tolerados - os súdi-
tos de nações amigas: ingleses e holandeses), bem assim como os monges,
considerados dos piores contraventores das determinações régias, os pa-
dres sem emprego, os negociantes, estalajadeiros, todos os indivíduos, en-
fim, que pudessem não ir exclusivamente a serviço da insaciável avidez da
metrópole. Em 1720 pretendeu-se mesmo fazer uso de um derradeiro re-
curso, o da proibição de passagens para o Brasil. Só as pessoas investidas
de cargo público poderiam embarcar com destino à colônia. Não acompa-
nhariam esses funcionários mais do que os criados indispensáveis. Dentre
os eclesiásticos podiam vir os bispos e missionários, bem como os religio-
sos que já tivessem professado no Brasil e preci-(p. 103)sassem regressar
aos seus conventos. Finalmente seria dada licença excepcionalmente a par-
ticulares que conseguissem justificar a alegação de terem negócios impor-
tantes, e comprometendo-se a voltar dentro de prazo certo.
Então, e só então, é que Portugal delibera intervir mais energicamente nos
negócios de sua possessão ultramarina, mas para usar de uma energia pu-
ramente repressiva, policial, e menos dirigida a edificar alguma coisa de
permanente do que a absorver tudo quanto lhe fosse de imediato provei-
to. É o que se verifica em particular na chamada Demarcação Diamanti-
na, espécie de Estado dentro do Estado, com seus limites rigidamente de-
finidos, e que ninguém pode transpor sem licença expressa das autorida-
des. Os moradores, regidos por leis especiais, formavam como uma só fa-
mília, governada despoticamente pelo intendente-geral (…) [Martius].
A partir de 1771, os moradores do distrito ficaram sujeitos à mais es-
trita fiscalização. Quem não pudesse exibir provas de identidade e ido-
neidade julgadas satisfatórias devia abandonar imediatamente a região.
Se regressasse, ficava sujeito à multa de cinqüenta oitavas de ouro e a
seis meses de cadeia; em caso de reincidência, a seis anos de degredo
em Angola. E ninguém poderia, por sua vez, pretender residir no dis-
trito, sem antes justificar minuciosamente tal pretensão. Mesmo nas
terras próximas à demarcação, só se estabelecia quem tivesse obtido
consentimento prévio do intendente. “A devassa geral, que se conser-
vava sempre aberta”, diz um historiador [Dr. Joaquim Felício dos
Santos], “era como uma teia imensa, infernal, sustentada pelas dela-
ções misteriosas, que se urdia nas trevas para envolver as vítimas, que
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ELISA MARIA LOPES DA COSTA
“(...) pelo descuido que houve em alguma das praças da Marinha, vie-
ram para estas Minas várias famílias de ciganos, onde podem fazer
maiores roubos que em outra nenhuma parte e, por esta devem ser in-
falivelmente presos e remetidos para o Rio de Janeiro, para daí se trans-
portarem para Angola, porque só desta forma se continuará o grande
sossego em que se acha todo este país, não se experimentam roubos, o
que infalivelmente haverá se nele se consentirem ciganos. (...) ordeno
a todos os capitães-mores e mais oficiais de guerra ou justiça, que in-
falivelmente mandem prender todo o cigano ou cigana que aparecer e
qualquer outra pessoa de qualquer qualidade ou condição que seja, que
38 Cf. Sérgio Buarque de Holanda, Op. cit., pp. 102-103. As referências das notas são: (11)
João Antonio Andreoni (André João Antonil), Cultura e opulência do Brasil (texto da edi-
ção de 1711), São Paulo, 1967, p. 304; (12) J. B. von Spix e C. F. Ph. Von Martius, Reisen
Brasilien, Munique, 1823, II, p. 436, “Única na história”, observa Martius, “essa idéia de
se isolar um território, onde todas as condições civis ficavam subordinadas à exploração
de um bem exclusivo da coroa” e (13) Dr. Joaquim Felício dos Santos, Memória do Dis-
trito Diamantino da comarca de Serro Frio, Rio de Janeiro, 1924, p. 107.
39 Cf. João Dornas Filho, “Os Ciganos em Minas Gerais”, in Revista do Instituto Históri-
co e Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano 3, vol. III, 1948, p. 146.
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CONTRIBUTOS CIGANOS PARA O POVOAMENTO DO BRASIL
“(...) Faço saber aos que este meu Bando virem que, porque em todas es-
tas Minas se acham quantidade de ciganos e ciganas com grande escân-
dalo e prejuízo destes Povos pelos muitos furtos e insultos que todos os
dias andam cometendo, e como sobre a expulsão desta gente se têm lan-
çado vários bandos e expedidas várias ordens que todas dou por inclusas
neste Bando, porque umas e outras se publicaram segundo as reais deli-
berações de Sua Majestade, ordeno por este Bando que da publicação
deste a três dias, todo o cigano e cigana despeje todo o governo das
Minas, sem embargo de que mostre qualquer licença, ou dispensa, que
tenha em contrário, que tudo dou por derrogado (...)”41.
40 Cf. Idem, Ibidem, pp. 148-149. Importa citar neste passo o investigador Stuart B.
Schwartz, Da América Portuguesa ao Brasil. Estudos Históricos, Lisboa, Difel, 2003,
p. 233, n. 37, que apelida este governador como “figura de perfil profundamente racis-
ta, [para quem] o problema do Brasil era a sua população incontrolável (…) D. Lourenço
sentia que, mesmo com forcas a cada esquina, não se podia trazer ordem a tal lugar”
Apud Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo (IAN/TT), Manuscritos do
Brasil, Lº 27, carta de Vila Rica, 20.04.1722.
41 IAN/TT, Manuscritos do Brasil, Lº 8, f. 48.
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43 Cf. Frans Moonen, “A História esquecida dos Ciganos no Brasil”, in Saeculum - Revista de
História, João Pessoa, Universidade Federal da Paraíba, nº 2, Julho-Dezembro 1996, p. 126.
44 IAN/TT, Manuscritos do Brasil, Lº 4, f. 96 (itálico nosso).
Outrossim, atente-se que, por vezes, as autoridades coloniais aludem à população ciga-
na de uma forma semelhante a esta: “Pelo que toca a ciganos as queixas que há são só
por serem ciganos, sem que se aponte culpa individual”.
45 IAN/TT, Manuscritos do Brasil, Lº 15, fl. 88. Acerca da importância do trabalho que foi
cometido a este sábio, chegado à colónia em 24 de Outubro de 1730 e vindo a falecer
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“(...) As filhas será mais difícil acomodá-las porque, na Baía, não se que-
rem servir com brancas e menos com filhas de ciganos, temendo que al-
guma noite se ajuntem com os pais para roubar as casas e sobretudo que-
rem só servir-se com mulatas e pretas (...) Eles se se juntarem serão al-
guns mil em toda a capitania além dos escravos que possuem, tais como
eles, e de alguns índios que poderão coadunar. Por isso lhes temos pro-
posto aos que nos falam que deles se não procura outra coisa mais do que
viver como portugueses, vassalos de Sua Majestade (...)”46.
“(...) Os ciganos vêm vindo bastantes a querer tomar vida regulada, por-
que por todas as partes os prendiam (...). Os casados entregam os filhos
solteiros aos ofícios mecânicos, se são de idade competente; e os adul-
tos alguns assentaram praças, mas muito raros, por não aparecerem ou
porque esta gente casa logo nestas terras de muito pouca idade. [De pas-
sagem atente-se na circunstância deste traço cultural, com raízes pro-
fundas, permanecer de forma indelével até à actualidade] Os que vão ar-
em São Paulo, a 14 de Fevereiro de 1736, veja-se Jaime Cortesão, “A Missão dos Pa-
dres Matemáticos no Brasil”, in Stvdia, Lisboa, nº 1, Janeiro 1958, pp. 123-150.
46 Cf. Elisa Maria Lopes da Costa, Ibidem, p. 53.
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CONTRIBUTOS CIGANOS PARA O POVOAMENTO DO BRASIL
“(…) Costumam andar dispersos por todos estes continentes uns mera-
mente ladrões disfarçados com o titulo de ciganos tendo só por vida o
viajarem com toda a sua família de umas para outras comarcas furtando
cavalos e tudo o que podem por ser ofício próprio de semelhante casta
de gente passando os furtos que fazem a uns e a outros para melhor en-
cobrirem a sua maldade e indo seus donos no alcance de tirarem o que
lhes levam os maltratam e muitas vezes matam (...) porque com os trans-
portes que fazem para outros distritos lhes fica comutada a pena em de-
gredo da própria vontade, sendo para utilidade do bem comum é preci-
so que residam em paragem certa com penas rigorosas para os que se
acharem com semelhante modo de vida (...)”48.
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49 Cf. Eduardo Castro e Almeida, Inventário dos Documentos relativos ao Brasil existen-
tes no Archivo da Marinha e Ultramar de Lisboa. II - Bahia, Rio de Janeiro, 1913, n.
10979, p. 512.
50 Cf. José B. d’Oliveira China, Ibidem, pp. 431-474.
51 Cf. Maria Cândida Proença, A Independência do Brasil, Lisboa, Ed. Colibri - Grupo de
Trabalho do Ministério da Educação para a Comemoração dos Descobrimentos Portu-
gueses, 1999, pp. 98-99. De referir que para além de um amplo conjunto de documen-
tos transcritos em anexo, a obra também insere uma “Cronologia” referente aos anos de
1808 a 1825, a pp. 95-105.
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CONTRIBUTOS CIGANOS PARA O POVOAMENTO DO BRASIL
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54 Cf. Mary Karasch, Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850, Princeton-New Jersey,
Princeton University Press, 1987. Pela ordem citada no corpo do texto, eis as referên-
cias das respectivas fontes: p. 50, n. 58: Diario 1, 8 Agosto 1821, p. 51; p. 54; p. 70,
Arquivo Nacional, Polícia, Correspondência com os Juízes de Paz, 8 Setembro 1832,
Cod. 331, fl. 10; n. 70, AN, Polícia, Oficios com anexos IJ6 173, 1836; n. 70, Ibidem,
IJ6 163, 1822-1824; p. 311; n. 24, Ibidem, IJ6 166, 1833 (tradução nossa).
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CONTRIBUTOS CIGANOS PARA O POVOAMENTO DO BRASIL
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