Tozoni-Reis 2004 Epistemologia Da Educao Ambiental

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CAPÍTULO•UM

A EPISTEMOLOGIA
DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL
O SUJEITO NATURAL, O SUJEITO
COGNOSCENTE E O SUJEITO HISTÓRICO

O homem vive da natureza, quer dizer: a


natureza é seu corpo, com o qual tem que
manter-se em permanente intercâmbio
para não morrer.

KARL MARX, 1993, p. 164

A formação dos educadores ambientais nos cursos de gra­


duação, embora não sistematizada nas instituições de ensino
superior, é efetivada por práticas educativas que não se
reduzem à formação profissional em sua área específica de
conhecimento. Essa formação, nesses espaços educativos, é
influenciada por condicionantes sociais, políticos e cultu­ rais
que configuram diferentes concepções de homem, de na­
tureza e de sociedade. Vejamos as representações da relação
homem-natureza entre os professores que, ao tratar da pro­
blemática ambiental em geral e da educação ambiental em
particular em suas atividades docentes, o fazem segundo al­
guns pressupostos teóricos.
Nos capítulos um e dois serão apresentados trechos re­
su m id os das falas dos professores entrevistados, que terão
suas identidades preservadas.
A relação homem-natureza expressa-se por um conjunto
28 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

de idéias que indicam que o homem deve-se submeter às "leis


natu ra is"1 , como todos os outros seres vivos, para garantir o
equilíbrio harmônico da natureza. Vejamos o que dizem es­
ses professores: "o homem não tem papel de destaque, é ape­
nas mais um elemento da natureza, ou mais uma parte do
sistema".
Vejamos também:
Educação ambiental é a inserção da espécie humana no
ambiente, seja ele como membro num ambiente criado pelo
homem, seja ele no ambiente natural. Então ele deve se com­
portar (e esse é um posicionamento bastante forte para nós).
deve se colocar como qualquer outra espécie que faz parte do
ambiente.

Assim, o "domínio da natureza" pelo homem é visto como


resultado da cultura, "porque os índios, por exemplo, não têm
essa postura, sua relação é de parceria". Nessa linha de re­
presentações, destaca-se a fala: "o homem é perturbador da
natureza". Essas afirmações indicam como relação ideal o
sujeito em contato direto com a natureza:

Parece ser esse o ponto de modern idade . Sempre que apa rece
num desenho animado um modelo de uma cidade cio futuro. ela
nunca tem árvores, nunca tem rios, nunca tem água. Ela tem
prédios, estradas flutuantes, nunca aparecem árvores. t uma
concepção... uma fuga, um medo da natureza, uma alienação.

Temos assim o primeiro núcleo de representaçües da


relação homem-natureza: o sujeito natural. Se o sujeito é um
sujeito natural, a crise ambiental emerge de sua "arrogância
em não se submeter. que seria humilhação ficar a mercê da
natureza". Esse raciocínio, geralmente, aponta o "crescimen­
to populacional", o aumento da população mundial, como prin­
cipal responsável por essa crise. Aparecem também aqui os

1. Todas as falas dos professores serão apresentadas entre aspas quando


curtas ou em citações com recuo do texto quando mais longas.
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 29

"valores filosóficos e culturais" como responsáveis pela crise


ambiental. Assim, desenvolvimento sustentável é a busca de
"uma relação harmónica da nossa presença aqui no planeta,
a manutenção do equilíbrio, a manutenção da qualidade am­
biental".
Nesse sentido, desenvolvimento sustentável é apresen­
tado também em uma linha mais subjetiva, de responsabili­
dade individual dos sujeitos com as futuras gerações: "eu não
me conformo que os indivíduos, embora tendo um espaço em
casa, não produzam nada, eles podem produzir alimento ali... ,
isso é desenvolvimento sustentável".
No entanto, um outro sujeito aparece como pressuposto
básico nas representações da relação homem-natureza, con­
figurando o segundo núcleo de representações: o sujeito
cognoscente. Nesta lógica, a relação homem-natureza é me­
diada pelos conhecimentos técnico-científicos. Com maior ou
menor sofisticação os professores sugeriram essa mediação.
/\qui se faz presente a idéia de que, embora o homem seja
parte integrante da natureza, a natureza não é intocável: "[... ]
tem que mexer, só que precisa ser de forma mais racional",
ou então, "o homem é um elemento da natureza mas com es­
paço próprio".

Ou. de uma outra forma:

O homem, para poder satisfazer as necessidades dessa gran­


de população, simplifica o ambiente e causa danos, porque o
ambiente natural foi criado para ter uma biodiversidade. A
agricultura simplifica o ambiente e a indústria explora recur­
sos naturais. Simplificar o ambiente é eliminar tudo o que está
naquele ambiente que não interessa e colocar só plantas que
interessam. Assim o homem elimina a biodiversidade do am­
biente natural, simplifica-o com o sistema da monocultura.

A idéia de que a intervenção predatória do homem pode


ser modificada pelo avanço do conhecimento científico sobre
.i natureza é a síntese dessas representações. Dessa lógica,

<'mergem idéias sobre origem da crise ambiental e desenvol-


30 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

vimento sustentável. $e esses conhecimentos são mediado­


res da relação homem-natureza, a origem da crise ambiental
relaciona-se a eles. Conteúdos como de que "embora os conhe­
cimentos científicos nunca sejam suficientes, a humanida­
de já produziu conhecimentos para melhorar as condições
ambientais" representam este núcleo. Se os conhecimentos
técnicos e científicos já foram produzidos, falta-nos então ga­
rantir o acesso a eles. Só a incorporação desses conhecimen­
tos, segundo essas afirmações, pode garantir o enfrentamento
dos problemas ambientais, pois só ela permite que a socieda­
de desenvolva ações de "fiscalização, controle e cobrança".
Nessa linha, as soluções dos problemas ambientais relacio­
nam-se à educação, que foi apresentada também como cons­
cientização. O desenvolvimento da tecnologia também foi in­
dicado para a solução dos problemas ambientais.
Se, nesse raciocínio, os conhecimentos garantem uma
relação homem-natureza suficientemente equilibrada, a idéia
de desenvolvimento sustentável apareceu associada à legis­
lação ambiental, "à fiscalização e controle pela sociedade" dos
impactos ambientais indesejáveis. Nessa linha, desenvolvi­
mento sustentável é o "controle populacional em função da
capacidade de suporte para o conhecimento dos limites téc­
nicos da relação do homem com o ambiente". Aqui, a susten­
tabilidade foi definida por uma equação entre a capacidade
de suporte e o crescimento populacional, uma solução tecni­
camente intermediária entre a exploração e a conservação
do ambiente: "acho que nós precisamos conhecer uma área
para que sejam então implementadas medidas para que ela
seja realmente, efetivamente, preservada". Assim, desenvol­
vimento sustentável "é produzir sem causar impacto". Sendo
a relação homem-natureza _med ia d a pelos conhecimentos
técnicos e científicos, esse sujeito cognoscente - que se apro­
pria dos conhecimentos sobre a dinâmica ecológica da natu­
reza - estabeleceria com ela uma relação não-predatória.
Já numa outra linha, configurando o terceiro núcleo, a
relação homem-natureza é representada pelos professores
que tratam da temática ambiental, numa perspectiva que
poderíamos chamar de histórica e social:
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇAO AMBIENTAL 31

Primeiro eu não gosto quando a gente começa a falar assim:


homem-natureza. Eu acho que aí a gente Já deixa para um se­
gundo plano categorias sociológicas que são fundamentais. e
históricas também. Eu prefiro falar em sociedade-natureza, mais
por uma questão de compromisso, não é por uma questão só de
terminologia, não. Porque é um termo que coloca uma respon­
sabilidade de analisar a história, analisar os atores sociais,
vamos assim dizer.

Então, a relação homem-natureza é entendida como so­


ciedade- natu reza . A idéia de que o homem se relaciona com a
natureza de forma que a modifique - a transforme - se contra­
põe à idéia de natureza harmõnica, natural, intocada: o homem
Interfere, "interage com a natureza". Os problemas ambientais
residem na forma histórica dessa interação: "o homem tam­
bém é natureza". Os seres humanos modificam a natureza e
cria m uma outra natureza, modificada, mas natureza: "a so­
cied ade deriva da natureza, e para a soc ied a de, só interessa
realmente a natureza que ela consegue transformar com sua
cu lt u r a ". Essas representações sugerem também a idéia de
con flito entre os sujeitos e a natureza: "o homem é um preda­
dor, mas a natureza é violenta, e a idéia de equilíbrio na rela­
ção homem-natureza é ideológica". Essa abordagem indica que
a dicotomia homem-social versus natu reza-na tura l está supe­
rada, a interação entre eles sugere o homem-social-natural e
a natureza-natural-social. A relação sociedade-natureza como
pressuposto da problemática ambiental, que define a relação
homem-natureza como construida pela história, aponta as con­
seqüência s das ações dos homens no ambiente como também
historicamente determinadas.
Assim, a história e a cultura aparecem como mediado-
ras da relação homem-natureza. Não há, segundo essa linha
'-, de pensamento, possibilidade de igualdade nessa relação. Ela
é construída como uma relação material, "econômica e cul­
tural". determinada em nossa sociedade pela "cultura capi­
talista: acho que o problema ambiental começou a se agra­
var a partir do momento em que o homem começou a
acumular". Em contrapartida, se "a transformação da natu-
32 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

reza em recursos naturais imposta pela idéia de natureza


servil" construiu a relação com o ambiente na modernidade,
essa Mracionalidade lógica" definiu ele forma arrogante o Mdo­
mínio e o distanciamento" nessas relações. Só "uma nova
ética", pós-moderna, pode colocar o homem Mcomo parte inte­
grante da natureza, não como um elemento como os outros",
mas também não como dominador, mas numa "relação dia­
lética" com a natureza. Diante de tudo isso, podemos afirmar
que nessa abordagem a relação, não mais homem-natureza,
mas sociedade-natureza, pressupõe o sujeito sócíal.
Se a história e a cultura definem a relação sociedade­
natureza. a origem da crise ambiental é pensada ta m bém
social e historicamente. Os fatores políticos e econômicos são
indicados como fatores determinantes cios problemas ambien­
tais. Entre esses fatores identificamos a idéia ele que o "mo­
delo econômico" ela sociedade atual produz cada vez mais
necessidades e, na busca das formas ele satisfazê-las. esgo­ tam-
se os recursos naturais. A Revolução Industrial e o pa­ pel
assumido pelo Estado na sociedade moderna foram apon­ tados
como componentes do "processo histórico ue apropriação dos
recursos naturais", determinantes ela crise ambiental. Se "o
modo de produção em que nós vivemos" é a principal causa da
degradação .ambiental, o lucro e a submissão elas políticas
públicas aos interesses privados são seus instrumentos. En­
tão, uma das idéias principais sobre a origem da crise ambien­
tal é a "ele transformação da natureza em mercadoria".
Nas falas sobre a relação homem-natureza, a história
das sociedades define as formas de relacionamento do ho­
mem-social-natural e a natureza-natural-social. Vejamos tam­
bém o que falam os professores sobre desenvolvimento sus­
tentável. Aqui, o modelo econômico, político, social e cultural
do mundo moderno não possibilita a sustentabilidade: "desen­
volvimento sustentável é uma idéia muito clivulgacla. mas
acrítica, precisa ser vista política e cientificame11lt'. pois o
que se tem visto é a defesa da natureza como forma de man­
ter a estrutura social". Embora a idéia de desenvolvimento
sustentável suponha a busca de soluções alternativas para a
convivência humana no ambiente, essa idéia "podt· ser uma
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idéia romântica". O caráter ideológico da idéia de desenvol­


vimento sustentável foi identificado entre aqueles que con- e.;
sideram o sujeito-social pressuposto da problemática ambien-
tal, pois defendendo a sustentabilidade como valor universal
"camufla as contradições da organização econômica e políti-
ca da sociedade", na qual o princípio básico da acumulação
implica ações predatórias na natureza.

A RELAÇÃO HO MEM- NATUR EZA: TENDÊNCIAS REVELADAS

Para compreender o sentido, o núcleo das representa­


ções da relação homem-natureza, categoria síntese para a
compreensão epistemológica da educação ambiental, nota­
mos que um quadro de tendências se delineou. Podemos iden­
tificar três concepções distintas e tendenciais da relação ho­
mem-natureza: aquelas que consideram pressuposto básico
o sujeito natural, o sujeito cognoscente ou o sujeito histórico.
A primeira concepção indica a igualdade entre todos os
elementos da natureza para voltar ao equilíbrio natural. Essa
concepção refere-se ao caráter idílico da relação homem­
natureza: os sujeitos são representados como vilões que pre­
cisam reencontrar seu lugar, naturalmente determinado.
Temos aqui uma concepção romantizada, na qual a idéia de
integração é sugerida pela volta ao paraíso perdido. Os proble­
mas ambientais e suas soluções estão permeados pela sub­
jetividade; embora a intencionalidade dos indivíduos apare­
ça em suas relaçõt s com o ambiente, ela é determinada pela
vontade subjetiva desses indivíduos.
Na segunda tendência, encontram-se as representações
da relação homem-natureza que, reconhecendo a desigualda­
de presente nessa relação, aponta a falta de conhecimentos
sobre as leis da natureza como determinantes dos problemas
ambientais. Aqui, o conhecimento aparece como mediador da
relação homem-natureza, mas uma mediação imediata, di­
reta, automática, mecânica, como se fosse assim: conheceu ...
preservou. Essa tendência refere-se ao caráter utilitarista da
relação dos indivíduos com o ambiente em que vivem: saber
34 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

(conhecimentos técnicos e científicos) usar, para poder usar


mais e sempre. mas sempre usar.
As representações da relação homem-natureza revela­
ram ainda uma terceira abordagem que poderíamos identifi­
car como uma terceira tendência. Ela indica a relação homem-
natureza marcada pela intencionalidade dos sujeitos. Segundo
essa concepção, na relação homem-natureza estão presentes
as condições históricas, sociais, políticas, econômi­ cas e
culturais. Essa relação é entendida pela ótica da rela­ ção
sociedade-natureza. A idéia síntese é que essa relação é
construida pelas relações sociais: a história e a cultura são
condicionantes e mediadoras, conferindo-lhe um caráter
sócio-histórico. O desenvolvimento da tecnologia aparece
como um dos instrumentos dessa relação, pois exige a inten­
cionalidade dos sujeitos para conservar ou impactar, estabe­
lecendo a relação entre a cultura e a história. A importãncia
dos conhecimentos técnicos e científicos é reconhecida. não
numa relação direta e mecãnica. mas definida pela vontade
intencional - portanto histórica - dos sujeitos.
Vários dos temas apresentados aqui têm preocupado
também o pensamento ambientalista. A cbmprecnsão da re­
lação homem-natureza tem sido tema central nas reflexões
sobre o agravamento acelerado da crise ambiental que se tem
vivido nas últimas décadas, especialmente no que diz respeito
ao antagonismo que contém e que é criado pela organização
da produção econômica na sociedade moderna. O desenvolvi­
mento intenso e acelerado dos conhecimentos técnicos e
científicos que permitem um conhecimento mais profundo
dos processos ecológicos da natureza não tem conseguido
mudar a relação dos homens com o ambiente em que vivem.
As novas tecnologias avançam trazendo em seu interior o
aprofundamento destas contradições. A biotecnologia, por
exemplo, possibilita avanços na agricultura, na saúde dos
homens e dos animais, na alimentação, na produção de com­
postos químicos industriais, na proteção dos recursos natu­
rais e do ambiente, na produção de novas formas de energia
etc. No entanto, ao transformar a vida e a natureza em mer­
cadoria, a sociedade moderna cria gigantescos problemas so­
cioambientais que exigem soluções urgentes.
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 35

A idéia da neutralidade da ciência e da tecnologia tem


sido mais uma forma de encobrir as contradições geradas no
interior dessa sociedade, pois os interesses sociais. políticos
e econõmicos as subordinam. A produção de técnicas. práti­
cas e instrumentos científico-tecnológicos, assim como todo
processo de conhecimento, estão carregados de ideologia.
Portanto, é necessário pensar a problemática ambiental no
contexto histórico da sociedade moderna.
Nas diferentes concepções acerca da relaçâo homem­
natureza, alguns temas estão problematizados. O ser huma­
no é ou não é "apenas mais um elemento" da natureza e deve
comportar-se como tal? Qual o papel dos conhecimentos téc­
nicos e científicos nessa relação? E o papel das subjetivida­
des humanas? Que formulações teóricas diferenciam essas
representações?
Para essa compreensão, é possível. primeiramente, con­
siderar as concepções de natureza através da história da hu­
manidade: para isso podemos contar com a ajuda de Duarte
( 1986). A concepção "mágica" de natureza, caracterizada pela
sua total antropomorfização, é a primeira concepção da histó­
ria. pois o homem primitivo projetava na natureza traços hu-
111anos. Assim, a natureza é valorizada a partir das necessi­
dades dos seres humanos. Já no pensamento clássico grego a
l'Oncepção de natureza sofre uma modificação que se caracte­
ri:,rn pela "passagem da concepção mágica à concepção cientí­
lka" de natureza (DUARTE, 1986). Nesse momento, aparece uma
<'Crta objetividade no conhecimento da natureza. a idéia de
domínio, de relação utilitarista do homem com a natureza está
desenvolvendo-se. O homem está na natureza.
No entanto. a concepção propriamente "mecanicista",
<'lcntífica, da natureza foi construída pela revolução mecani­
l'lsta do século XVII (DUARTE, 1986). Embora a idéia de que o
homem transcende a natureza também estivesse presente
110 cristianismo da Idade Média - o homem é o elo privilegia­
do entre a natureza e Deus - e a relação utilitarista estives­
se ali explicitada, pois a natureza existe para servir o ho­
rnem - imagem e criatura de Deus -, essa natureza ainda era
a natureza orgânica. A concepção de natureza orgânica sus-
36 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

tenta-se na idéia de que o mundo se organiza por um siste­


ma de relação entre as partes. As partes não são, nessa con­
cepção, autônomas ou independentes. Podemos relacionar a
visão orgânica com a visão mágica de natureza, caracteriza­
da por projetar na natureza traços humanos; a natureza era
vista como algo humanizado e vivo: o organismo.
Essa concepção orgânica desenvolveu-se e transformou­
se nos vários períodos da história da humanidade. No final do
século XVIII o movimento conhecido como Romantismo reto­
mou a idéia de natureza orgânica, expressando sua oposição
à concepção mecânica, científica, de mundo. O inglês Gilberto
White pode ser considerado um dos representantes, no cam­
po das ciências naturais, desse movimento organicista de
oposição às concepções mecanicistas do cartesianismo. O
naturalista inglês idealizava uma vida rural simples, modesta
e humilde para restabelecer a harmonia com a natureza,
ameaçada pela corrupção utilitarista da nova sociedade in­
dustrial que surgia. Herculano ( 1992) afirma que White pode
ser visto como o principal precursor do pensamento ambien­
talista por apoiar concepções naturalislas em uma postura
acirradamente crítica à ciência moderna: já para Grün ( 1996).
é no arcaísmo de White que se inspira a versão atual da opo­
sição ao pensamento científico cartesiano.
A revolução mecanicista trouxe a substituição dessa con­
cepção orgânica pela concepção mecânica do mundo e portan­
to da natureza. A concepção mecânica do mundo é aquela que
entende o funcionamento dos processos naturais como seme-
lha• nte ao de uma máquina, especialmente ao mecanismo do
relógio. Ao descrever a analogia máquina/vida biológica,
Channel ( 1991) demonstra como essa concepção se propagou
a partir da revolução científica - ou revolução mecanicista -
do século XVII e incorporou-se no pensamenlo moderno. Essa
concepção tem a marca do pensamento de Descartes, que fun­
damenta a ciência moderna ainda hoje, apesar de todas as
discussões sobre sua superação.
A ética antropocêntrica é anterior a Descartes, mas a
ciência moderna fortemente apoiada no pensamento carte­
siano resgatou e fortaleceu essa concepção. A crítica à ética
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 37

antropocêntrica é preocupação central na compreensão do


tema ambiental. No entanto. é preciso refletir sobre o con­
teúdo dessa crítica: é simplista a idéia de que a solução dos
problemas ambientais ocorre pelo deslocamento do homem
como dominador da natureza para o homem como mais um
elemento da natureza.
O pensamento científico para o qual, nos séculos XVI e
XVII, Copérnico e Galileu contribuíram para revolucionar foi
organizado sistematicamente por Bacon, que desenvolveu o
método empírico na ciência. O objetivo das ciências passou
a ser dominar e controlar a natureza. Se na Antigüidade a
sabedoria servia para a compreensão da ordem natural da
vida, no século XVII, como afirmou Capra ( 1993). "ela passa
da integração para a auto-afirmação". Essas idéias foram
desenvolvidas por Descartes e Newton.
A concepção cartesiana caracteriza então a ruptura
entre matéria e espírito, o que leva a consolidar a ruptura
entre homem e natureza, pois o domínio da natureza pelo
homem ocorreria por meio da ciência (o instrumento). Nes­
sa lógica, a ciência permite a intervenção na natureza com
objetivos práticos e econômicos, emancipando o homem de
sua dependência primitiva, pré-científica.
Capra (1993) é um dos problematizadores contemporâ­
neos desta questão: a racionalidade, ou melhor, o racionalis­
mo promove um desligamento do meio natural que impossibi­
lita a comunhão e a cooperação dos homens com a grande
variedade de seres vivos que compõem o ambiente. Essa ten­
dência emerge da concepção mecânica de mundo, que parte
da idéia de divisão do universo em elementos separados. As­
sim, o ambiente natural seria formado por peças separadas a
serem exploradas por diferentes grupos de interesses.
Com a subordinação do pensamento científico moderno
à ética antropocêntrica, a concepção de natureza como sel­
vagem e perigosa foi superada: a natureza passa a ser udomi­
nada" pelo homem, pela razão.

A noção do homem como dominador da natureza e da mu­


lher e a crença no papel superior da mente racional foram
38 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

apoiadas e encorajadas pela tradição judaico cristã, que adere


à imagem de um deus masculino, personificação da razão su­
prema e fonte do poder último, que governa o mundo a partir
do alto e lhe impõe sua lei divina. As leis da natureza investi­
gadas pelos cientistas eram vistas como reflexos dessa lei di­
vina, originada no espírito de Deus [CAPRA, 1993, p. 38].

Ainda refletindo sobre o conceito de natureza através da


história, em Marx o conceito de natureza é historicizado,
determinado pelo processo produtivo (DUARTE, 1986). Dessa for­
ma, Marx foi o primeiro dos filósofos a tematizar o problema
ecológico nos escritos sobre alienação, afirmando que a con­
tradição homem-natureza é a contradição da forma de pro­
dução capitalista que coloca o homem em oposição à nature­
za (SCHMIED-KOWARZIK, 1993).
Assim, se a relação homem-natureza subjacente à ló­
gica formal cartesiana separa o universo em objetos/partes
e dá ao homem o poder de dominá-los, a lógica dialética com­
preende a relação homem-natureza como uma relação per­
meada pela totalidade e pela contradição. O ser humano, se­
gundo esta concepção, é o sujeito histórico da construção de
sua relação com a natureza.
A concepção filosófica de ser humano expressa por Marx
constrói a idéia do homem como ser natural universal, social
e consciente. A categoria de totalidade e o caráter dinâmico,
de movimento do pensamento, caracterizam essas idéias. A
relação homem-natureza é construída com base no caráter
finito e limitado da naturalidade humana, que coloca o ho­
mem numa situação de dependência do seu eu complemen­
tar, chamado por Marx (1993) de "corpo inorgânico" - a natu­
reza transformada.
Segundo essa concepção, o processo de humanização
dos sujeitos coloca necessidades e capacidades como ser na­
tural incompleto que busca na natureza sua realização obje­
tiva. Se o caráter de uma espécie se encontra no tipo de ati­
vidade vital que ela exerce, o sujeito concreto é definido pelo
trabalho.
Aqui, é preciso pensar o conceito de trabalho da forma
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 39

mais ampla possível, superando o conceito puramente econô­


mico, tratando-o por um conceito filosófico. Para que isto pos­
sa ser mais bem compreendido, observemos:

A diferença entre o conceito filosófico de "trabalho" e seu


conceito cotidiano (o conceito que se manifesta dentro do sis­
tema de produção capitalista, o conceito puramente económi­
co). o qual generaliza empiricamente os traços gerais e a situa­
ção que aparecem no curso da pré-história, se manifesta muito
claramente no trecho em que na Ideologia Alemã Marx conside­
ra como uma condição capital e capital tarefa do comunismo a
"abolição-superação do trabalho" (no segundo sentido do ter­
mo) [MÀRKUS, 1974, p. 511.

O trabalho é atividade vital do homem, toda ação humana


intencional sobre o ambiente é trabalho humano. Temos assim
uma outra idéia: a relação homem-natureza mediada pelo tra-
, ba lh o. No entanto, podemos encontrar interpretações diferen­
tes sobre a questão ambiental no pensamento marxista
(BosguET, 1976; ScHMIDT, 1976; DUARTE, 1986; entre outros). Nos
estudos sobre a dialética da natureza, Engels (s/d.) apresentou
a idéia de que o movimento da natureza é um movimento
dialético, o movimento histórico seria então a essência da na­
tureza. A interpretação histórica da natureza aparece também
na obra A ideologia alemã (MARX & ENGELS, 1979). escrita em 1845,
que apresenta a história da natureza subordinada à história
social. Dessa forma, encontraríamos aqui a idéia de natureza
como parte da história dos homens, levando-nos a identificar
uma visão antropocêntrica no pensamento marxista. No entan­
to, numa fase mais madura teríamos, na teoria marxista, o tra­
balho como mediador das relações humanas com a natureza,
destinado a criar uma segunda natureza no homem: ser, ao
mesmo tempo, natural e social.
Algumas das muitas, diferentes e até divergentes cor­
rentes teórico-filosóficas ambientalistas têm o pensamento
marxista como referencial. Pode-se dizer que essas corren­
tes emergiram da crise do pensamento marxista, a partir da
década de 1960, e, principalmente, no interior da luta antinu-
40 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

clear da década de 1970 (DUMONT, 1975; BosguET, 1976; DuPUY,


1980; CASTORIADIS & COHN-BENDIT, 1981; VIOLA, 1987; PORTO­
GONÇALVES, 1990; PÁDUA, 1991; ACSELRAD, 1992; HERCULANO, 1992;
BENJAMIN, 1993; entre outros). Podemos interpretar algumas
das preocupações fundamentais do pensamento ambientalista
como herança das tradições utópicas e socialistas presentes
no marxismo, mesmo que renovadas com a preocupação am­
biental como eixo central de análise. Os setores mais críti­
cos do pensamento ambientalista têm apresentado a idéia de
que a crise ambiental, em suas raízes históricas, coloca, além
da exploração da natureza pelos seres humanos, também e
principalmente, a exploração dos homens pelos homens.
Nesse sentido, retomemos a idéia do trabalho como ele­
mento para nossas análises da relação homem-natureza,
pois compreender a exploração dos homens na sociedade
moderna significa compreender as relações sociais de traba­
lho, a organização da sociedade. É preciso apontar, no entan­
to, que a centralidade da categoria trabalho para as análises
sociais do mundo contemporâneo vem sendo questionada.
Ele não seria mais, segundo algumas teses recentes, o ele­
mento estruturante da relação dos homens em sociedade,
como entende o pensamento marxista.
Antunes (1995). analisando as mudanças, ou "metamor­
foses", na organização do trabalho, discute seus novos proces­
sos, que de alguma forma substituíram os processos do tra­
balho moderno - produção em série e de massa - consagrados
pelo taylorismo e fordismo até praticamente os anos de 1980.
Esses novos processos podem ser compreendidos pela identi­
ficação do que se conhece por toyotismo, organização propos­
ta para a Toyota, no Japão. Esse modelo japonês de organiza­
ção do trabalho traz como conseqüência modificações no
mundo do trabalho. Destaca-se aqui a possibilidade de um
trabalhador operar em várias máquinas, a polivalência dos
trabalhadores e o aumento da produção sem aumentar o nú­
mero de trabalhadores, a otimização ou qualidade total. Tra­
balhadores multifuncionais realizam o trabalho em equipes,
se auto-regulando.
Apesar das modificações do capitalismo, o trabalho em
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 41

seu conceito amplo, como atividade vital, como ação humana, C


continua a ser mediador da relação do homem com a natureza
(MARKUS, 1974; SCHM!DT, 1976; MÉDICI, 1983; KLOPPE:NBURG, 1988;
ScHM1e:o-KowARZIK, 1993; entre outros). A compreensão de sua C
centralidade e a superação do conceito economicista funda­
menta-se na abordagem filosófica de trabalho.
Portanto, para resgatar o sentido histórico do processo
que levou a relação homem-natureza ao atual estágio de de­
gradação, pode-se tomar esse conceito de trabalho como base.
A relação histórica real do homem com a natureza e com os
outros homens fundamenta-se na atividade vital consciente
do ser humano. Marx, nos Manuscritos económicos-filosóficos
( 1993), afirma que o homem condensa em si todas as forças
da natureza e as devolve a partir de suas necessidades. Esse
movimento de intercâmbio parece superar a idéia de superio­
ridade do homem em relação à natureza expressa pela visão
antropocêntrica da natureza. Aqui, é preciso perceber, pelo
caráter dialético desta análise, que a relação histórica do
homem com a natureza não tem o caráter interessado, utíli­
tarista, das idéias antropocêntricas, mas contribui para a
superação da concepção idílica - natural - da igualdade entre
os elementos da natureza presente nas falas de vários educa­
dores ambientais. Vejamos que o sentido, as mediações e os
límites da relação homem-natureza têm determinações dife­
rentes segundo as diferentes correntes de pensamento. Para
o setor mais crítico do pensamento ambientalísta, a proble­
mática ambiental é essencialmente política e sua superação
exige transformações profundas na organização da sociedade.
Nesse sentido. o pensamento marxista, embora contri­
bua eno,memente para o enfrentamento político da crise
ambiental, tem limites conceituais que precisam ser supe­
rados. A idéia de que a transformação social vem com o de­
senvolvimento pleno das forças produtivas revolucionadas pelo
desaparecimento da sociedade de classes é uma idéia de
raízes antropocêntricas, pois implicam ainda o domínio do
homem sobre a natureza. Essa preocupação aparece, também,
na crítica que esses ambientalístas fazem ao socialismo real,
socialismo burocrático ou socialismo autoritário, de inspira-
42 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

ção marxista. Segundo essas análises, o socialismo real er­


gueu-se sobre as mesmas bases conceituais do capitalismo:
o desenvolvimento industrial. Nesse sentido, essas formas de
socialismo, assim como o capitalismo, não têm perspectiva
de sustentabilidade.
No entanto, pensar o trabalho em sua concepção filosó­
fica, como mediador da relação homem-natureza, possibilita
superar as limitações anteriormente referidas. O trabalho -
ou atividade vital do homem - . como base da sua relação com
a natureza, indica que as necessidades biológicas do homem
não são imutáveis, que as relações sociais as transformam.
Este movimento de ida e volta do ser homem e sua objetiva­
ção na natureza parece indicar que na relação entre eles não
hã separação, ruptura. As necessidades biológicas do homem
e suas necessidades históricas estão em constante e articu­
lado movimento. Este parece ser o sentido das afirmações
acerca da transformação do homem em natureza e a trans­
formação da natureza em homem:

Nesta relação genérica natural, a relação do homem à natu­


reza é diretamente a sua relação ao homem, e sua relação ime ­
diata à natureza, à sua própria condição natural. Em tal rela­
ção, revela-se portanto de modo sensível. reduzida a um facto
observável, até que ponto a essência humana se tornou para o
homem natureza e em que medida a natureza se transformou
em essência humana do homem [MARX, 1993, p. 1911.

Ao fazer da natureza seu "corpo inorgânico", ou seja, a


extensão de seu limitado e incompleto ser biológico, o homem
transforma-se em naturezá, assim como transforma a natu­
reza em homem: "o homem vive da natureza, quer dizer: a
natureza é seu corpo, com o qual tem que manter-se em P.er­
manente intercâmbio para não morrer" (MARX, 1993, p. 164).
Essa idéia de intercâmbio parece superar a idéia utilitarista
ou a idéia de superioridade, que indicam ruptura entre o
homem e a natureza, assim como a idéia de relação natural,
idílica, do homem com a natureza.
Um outro importante ponto para reflexão que nos ofe re ­
ce o pensamento marxista diz respeito à consideração da so-'
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 43

ciedade como Ma unidade consumada do homem com a natu-


reza" (MARKUS, 1974), a forma social e histórica de desenvolvimento do
ser humano e, portanto, da humanidade. A humanização é um
processo sócio-histórico e nesse sentido a manifestação vital do
indivíduo é a manifestação de sua vida social. Ao se ob je tiva r 2 na
natureza o homem torna-se verda­ deiramente humano, o que Msó é
possível quando o próprio homem se torna um objeto social. no
momento em que se transforma em ser social e a sociedade para ele
se torna ser no referido objeto" (MARX, 1993, p. 172).
Pensemos na organização social na história da humani­
dade, a organização social do trabalho ou dos meios de produ­
ção, que vêm retirando dos sujeitos a possibilidade de faze­ rem-
se humanos, plenos de humanidade. É a transformação do
trabalho de atividade essencial em atividade aquisitiva que pelo
capitalismo toma forma de atividade interessada: merca­ doria,
trabalho alienado. No capitalismo, uma parte mínima de produto
do trabalho é apropriada pelo trabalhador. apenas o suficiente
para garantir sua necessidade de existir como tra­ balhador. não
como sujeito pleno. O trabalho assim organizado é o trabalho
como desrealizador do trabalhador (MARX, 1993). É nessa
condição histórica que a relação sociedade-natureza no
capitalismo se vem apresentando: como desintegrada. dese­
quilibrada e predatória. Podemos concluir. então. que no pro­
cesso de objetivação e apropriação dos homens na natureza
eles perdem a si próprios (alienação) e constroem uma relação
também alienada. desintegrada com a natureza.
O trabalho alienado separa o homem de seu próprio cor­
po. o orgânico e o "inorgânico". ou seja. da natureza externa
de seu ser humano (MARKUS, 1974). Pelo até aqui apresenta­
do, quando pensamos no trabalho como mediador da relação
homem-natureza temos que pensar sua forma histórica.

2. Objetivação, segundo Duarte (1993). é o processo pelo qual passa o


homem em busca de sua realização como ser humano. Nesse proces­
so, ele pode apropriar-se de sua humanidade ou pode ser alienado
dela.
44 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Se o trabalho alienado está na origem da desrealização


dos seres humanos, está também na origem da separação
homem-natureza. Se a organização do trabalho no capitalis­
mo impede o intercâmbio, profundo e radical com a nature­
za. deve-se examinar melhor o sistema de alienação. Como
e por que cada um de seus elementos determina a ruptura
homem-natureza e, portanto, como impossibilita a constru­
ção do mundo mais equilibrado também do ponto de vista am­
biental?
A sociedade moderna produz o trabalho alienado que
resulta da propriedade privada, do espírito de aquisição, da
separação do trabalho, do capital e da propriedade fundiária,
da troca e da concorrência. do valor e da desvalorização dos
homens, do monopólio, da concorrência e do dinheiro (MARX,
1993). A propriedade privada que explica a teoria da aliena­
ção é a propriedade privada dos meios de produção. Isso sig­
nifica dizer que os proprietários dos meios de produção com­
pram, por um preço mínimo, o trabalho dos trabalhadores,
assim os trabalhadores não se objetivam apropriando-se do
produto de seu trabalho para satisfazer suas necessidades;
vendem sua força de trabalho para sobreviver. A propriedade
privada dos meios de produção produz os indivíduos como
mercadorias, como seres desumanizados.

Por um.lado, há a produção da atividade humana como tra­


balho, isto ê, como atividade que ê estranha a si, ao homem e
à natureza, portanto, alheia à consciência e à realiza<;üo da vida
humana: a existência abstrata do homem como simples homem
que trabalha, que por conseguinte todos os dias mergulha a
partir do seu nada realizado no nada absoluto. 11a sua não­
existência social. E, portanto, real [MARX, 1993, p. 175}.

Há, também, um outro elemento do siste111.1 de alie­


nação: a propriedade fundiária. Para compreendê-los no in­
terior da problemática ambiental. tomemos como exemplo
as mudanças na agricultura produzidas pelo avanço tecno­
lógico neste século. Em primeiro lugar, é preciso lembrar
que o avanço tecnológico é o instrumento fundamental da
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÁO AMBIENTAL 45

organização de trabalho para a propriedade privada. As mo­


dificações ocorridas nas formas de organização da produção
agrícola têm o desenvolvimento científico e tecnológico como
determinantes. revelando a relação da propriedade fundiária
sob o capitalismo com o processo de alienação do trabalho e
dos homt;ns. A própria fertilidade do solo é transformada em
mercadoria, passa a ser atributo do proprietário da terra.
Kloppenburg (1988) discute os impactos sociais e ambien­
tais do progresso tecnológico como principal fator de mudanças
na agricultura: desaparecimento das famílias como unida­
de de produção, concentração da posse de terras (latifúndios).
deslocamento do trabalho, declínio qualitativo, impacto
ambiental no solo e na água etc. Além disso, assistimos à
mercantilização da agricultura em todas as suas dimensões,
agravando a marginalização do pequeno produtor e a desi­
gualdade na distribuição de créditos na agricultura. Esses
problemas são decorrentes do uso da tecnologia, de sua apro­
priação privada, unilateral. Para Kloppenburg, esses proble­
mas têm origem na transformação da semente, dos grãos,
do alimento, de "valor de uso em valor de troca". Este movi­
mento se dá pelo domínio da propriedade privada.
Considerando a divisão do trabalho como um elemento
do sistema de alienação, que ao mesmo tempo promove e é
resultado da alienação, a divisão entre trabalho intelectual
e trabalho manual é um dos elementos mais perversos desse
sistema. Sem a possibilidade de participar de forma plena de
sua atividade vital, o trabalhador perde a possibilidade de
construir-se como homem pleno. Assim, tornando-se execu­
tor de tarefas mecânicas, o trabalhador expropriado de sua
objetivação perde até mesmo sua relação de intercâmbio com
a natureza. Essa relação passa a ser estranha a ele.
Baseado na exploração do trabalho (dos trabalhadores).
o sistema político e cultural que vivemos na modernidade é
um sistema autoritário, que impõe formas alienadas de or­
ganização da vida. O capitalismo colocou no centro da vida
social necessidades econômicas que só ele pode satisfazer e,
ao possibilitar a satisfação dessas necessidades a uma par­
cela da população, cria, com a ajuda de seus instrumentos
46 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

ideológicos, a promessa de satisfação para todos. Esse meca­


nismo institui o que Castoriadis e Cohn-Bendit (1981) cha­
maram de "adesão". Um grande problema a ser enfrentado por
aqueles que buscam uma relação mais equilibrada, do ponto
de vista ambiental/social. é essa adesão de uma parte da po­
pulação ao modo de vida criado por esse processo. As pessoas
não estão convencidas da necessidade e da possibilidade de
alternativas civilizatórias. portanto, só a criação histórica de
sociedades e indivíduos autônomos pode construir a supera­
ção dos problemas ambientais:

Ecologia só tem sentido no contexto de um movimento muito


mais amplo e muito mais profundo que visa a transformação ra­
dical da sociedade e para o qual a questão do poder não pode ser
posta entre parênteses [CASTORIADIS & COIIN-BENDIT, 1981. p. 85].

O poder na sociedade moderna está cada vez mais arti­


culado com o desenvolvimento da tecnologia. No entanto, ao
examinarmos a temática da tecnologia no mundo moderno,
percebemos muitas contradições. A possibilidade do aumento
da produção decorrente do desenvolvimento tecnológico é ab­
solutamente fantástica. porém. no capitalismo ela resulta
num "caminho não percorrido" (KLOPPENBURG, 1988), isto é, o
desenvolvimento da tecnologia não gera produção para a me­
lhoria da qualidade de vida da população mundial. Assim, a
tecnologia transforma-se rapidamente em mercadoria, com
valor de troca submetendo o trabalhador ao trabalho alienado.
Dessa forma, a pesquisa e a produção com uso de tec­ nologias
avançadas precisam ser analisadas na perspectiva histórico-
política da propriedade privada no capitalismo. O
desenvolvimento tecnológico, na sociedade moderna, tem
como objetivo a acumulação de capital e é por ele controlada,
transformando a tecnologia de valor de uso em valor de troca.
Esse processo tem como resultado a ruptura do homem com
a natureza. Dessa forma, podemos pensar que o desenvolvi­
mento tecnológico no capitalismo não tem perspectiva de
sustentabilidade.
Os ambientalistas têm discutido essa problemática e
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÁO AMBIENTAL 47

avançado em sua compreensão. Se tecnologia é fazer o que a


natureza faz, num ritmo mais acelerado, se a tecnologia com­
bina invenção com materialização, a natureza produz tecno­
logia (SANTOS, M., 1 95). A idéia de que temos uma tecnologia
moderna. uma tecnologia da natureza e uma tecnologia dos
povos tradicionais recoloca a questão da riqueza entre os
países. Aqui se explica a nova face do enfrentamento interna­
cional, em que poder e riqueza justificam a exploração dos
países mais pobres economicamente (e ricos em biodiversi­
dade) pelos países mais ricos do ponto de vista tecnológico. Nas
atuais relações sociais a tecnologia serve de instrumento de
poder e exploração. O desenvolvimento tecnológico tem razões
políticas que, de forma geral, dizem respeito ao maior contro­
le sobre o trabalho social e sobre a natureza. Nesse sentido,
parece impossível pensarmos uma relação homem-natureza
mediada pela tecnologia, numa perspectiva de equilíbrio
ambiental: as soluções dos problemas ambientais não são
soluções de natureza técnica, mas de natureza política.
A tecnologia em sua perspectiva histórica e política tam­
bém é analisada por Soares (1992), que, escrevendo sobre a
Agenda 21, destaca a idéia de livre-comércio, que, para ele,
é construída com base em pressupostos falsos. Um deles diz
respeito à idéia de que a liberalização do mercado leva ao de­
senvolvimento e à difusão de tecnologias. A crítica aqui se
centra, por um lado, na insuficiência da tecnologia para a con­
servação ambiental e, por outro lado, no fato de que, no libe­
ralismo econômico, a tecnologia torna-se também fator de
competitividade. Dessa forma, se as tecnologias menos po­
luentes têm, como se sabe, custo maior, isso reduz sua com­
petitividade.
Sobre isso, Castoriadis e Cohn-Bendit ( 1981) afirmam
que as técnicas, ou as tecnologias, não são neutras, não são
somente instrumentos, portanto, não se trata de usá-las de
forma mais ou menos democrática. A idéia da neutralidade
técnica está em discussão. Essa compreensão - de que nas
mãos de grupos com práticas sociais mais democráticas as
tecnologias podem promover uma relação mais equilibrada
entre os homens e a natureza - não estaria levando em con-
48 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

ta que a construção histórica e política da tecnologia dispo­


nível no mundo atual, construída na lógica da exploração, é
uma das grandes responsáveis pela degradação ambiental.
Trata-se, segundo esses autores, de utilizar essa tecnologia
para "criar outra tecnologia", tecnologias não-predatórias,
criadas no interior de uma sociedade autônoma, transforma­
da, uma sociedade construída pela vontade - também autô­
noma - dos indivíduos como alternativa civilizatória.
A crise de energia na modernidade refere-se ao modo de
produção industrial e, em certa perspectiva, o uso das técni­
cas é tão predatório quanto as próprias técnicas (ILLICH. 1975).
Encontramos uma leitura um pouco diferente com relação às
tecnologias modernas: a não-condenação do uso da técnica,
que é vista como um fator de libertação do homem, isto é, a
crença de que, a partir de certo limite, a utilização da tecno­
logia causa um efeito de contraprodutividade; ao estourar a
capacidade de suporte da natureza, a tecnologia deixa de ser
um elemento de libertação (LA RovERE, 1992). Nesse sentido, o
controle desses limites, para não se tornar mais um instru­
mento de dominação, só pode acontecer numa sociedade
transformada.
Pelo exposto até aqui, podemos identificar, por ora, que
a relação homem-natureza, como uma relação histórica
construída pelas relações sociais, tem perspectiva de en­
frentamento dos problemas ambientais. Teríamos, assim, a
idéia de que o ser humano vive integrado ao ambiente, e que
essa integração só é possível numa sociedade que supere a
forma de organização do trabalho alienado. Nesse sentido,
sendo o homem um ser finito e incompleto, a ampliação de
seus limites biológicos faz com que, em busca da constru­
ção de sua realização, ele se relacione de forma intercam­
bial - metabólica até - com a natureza, com o ambiente em
que vive. É a idéia de integração entre homem - ou socieda­
de - e natureza.
Considerando que a força motriz das preocupações mais
recentes de alguns setores da sociedade com o ambiente re­
laciona-se à crise ambiental que estamos vivendo, qualquer
tentativa de sua superação deve considerar a compreensão
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 49

de seus determinantes históricos. O trabalho como mediador


da relação homem-natureza pode ser visto se superada a
abordagem economicista que lhe tem conferido a sociedade
moderna, se for entendido como ação humana intencional.
Assim, refletindo sobre a sua organização histórica, podemos
perceber que a sociedade moderna se organizou a partir da
exploração do homem pelo homem. Nesse sentido, a perspec­
tiva de construção de uma nova sociedade, expressa por pra­
ticamente todos os setores sociais quando se referem à pro­
blemática ambiental, só tem sentido na superação dessa
exploração. Então, a transformação da sociedade não é a adap­
tação do modelo político, econômico, social e cultural da so­
ciedade moderna à necessidade de conservação do ambiente
natural. Uma sociedade nova significa, nessa linha de pen­
samento, o fim da exploração do homem pelo homem.
Os temas "desenvolvimento sustentável" e "origem da
crise ambiental" aqui estudados têm o objetivo de ampliar a
primeira unidade temática: a relação homem-natureza. Ob­
servamos posições variadas sobre desenvolvimento sustentá­
vel. No estudo empreendido, encontramos professores que de­
fendem a proposta de desenvolvimento sustentável e os que
discordam dela. Há ainda uma posição cuidadosa: "talvez sim,
mas...". Essa discussão diz respeito ao conceito de desenvolvi­
mento e de sustentabilidade.
Lembremos que as diretrizes gerais internacionais tra­
çadas nos diferentes eventos ambientais apontam, geralmen­
te. para a necessidade de modificação no modelo de desen­
volvimento. A Agenda 21, discutida e pactuada na Rio-92,
destaca a idéia de desenvolvimento sustentável como forma
de garantir o equilíbrio ambiental. O conceito de desenvolvi­
mento sustentável, subjacente à idéia de "uma nova ordem
econômica internacional", foi primeiramente apresentado na
Conferência de Estocolmo. em 1972, e ganhou forma mais
sistematizada, em 1987, pelo Relatório Brundtland, ou o Nos­
so futuro comum, elaborado pela Comissão Mundial para o Meio
Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD) da ONU. Segundo esse
relatório, desenvolvimento sustentável "não é um estado per­
manente de harmonia, mas um processo de mudança no qual
50 EDUCAÇAO AMBIENTAL

a exploração dos recursos, a orientação dos investimentos, os


rumos do desenvolvimento tecnológico e a mudança institu­
cional estão de acordo com as necessidades atuais e futuras"
(CMMAD, 1991, p. 10). As idéias de "herança ambiental" e di­
minuição das desigualdades sociais são muito valorizadas em
todo o relatório, constituindo-se em princípios orientadores
para as análises e propostas.
O conceito de desenvolvimento sustentável expresso ali
discute as desigualdades econômicas e sociais entre os dife­
rentes países como uma das causas da degradação ambien­
tal e propõe políticas para o enfrentamento desses problemas.
No entanto, as estratégias propostas para substituir os atuais
processos de crescimento econômico pelo desenvolvimento
sustentável dizem respeito a modificações nas políticas de
desenvolvimento. a mudanças nos processos de desenvolvi­
mento econômico da sociedade atual. Em nenhum momento
esse documento expressa críticas ao modelo de desenvolvi­
mento em si; o que vemos é o delineamento de uma proposta
que modifica suas estratégias. Assim, desenvolvimento sus­
tentável diz respeito a uma forma de crescimento econômico
das nações que considerem o comprometimento dos recursos
naturais para as futuras gerações. A nova ordem internacio­
nal a que ele se refere é o controle da exploração dos recur­
sos naturais em níveis suportáveis em todo o mundo, a idéia
de desenvolvimento sustentável aí veiculada é de "crescimen­
to econômico com controle ambiental" em todos os países do
mundo. A desigualdade é tratada como um desajuste a ser
superado pela universalização do desenvolvimento econômi­
co, porém com sustentabilidade.
O conceito de desenvolvimento sustentável é recente,
complexo, e apresenta contradições (RATINER, 1994; CARVALHO,
1995; BRüSEKE, 1995; CAVALCANTI, 1995; SANTOS, B.S .. 1995; STAHEL,
1995; entre outros). Sua complexidade diz respeito principal­
mente às contradições entre as diferentes concepções de
desenvolvimento econômico. Desenvolvimento é uma noção
associada à modernização das sociedades no interior do ca­
pitalismo industrial - ou no socialismo real -. portanto um
conceito inserido na materialidade histórica do modo de pro-
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 51

dução da sociedade capitalista moderna e da experiência so­


cialista. Um dos aspectos mais relevantes para a compreen­
são da contraditoriedade do desenvolvimento sustentável diz
respeito à característica fundamental do modelo de desenvol­
vimento. que busca expansão constante e, de certo modo, ili­
mitada.
A "profecia do colapso ambiental" (FURTADO, 1998) suge­
rida pelo documento Limites do crescimento do Clube de Roma
( 1972) emerge do "mito do progresso econômico" (F UR TADO,
1998) como regulador das relações sociais e divulgam a idéia
de que, na sociedade_ industrial, o desenvolvimento pode ser
universalizado. Segundo essas análises, o mito do desenvol­
vimento econômico esconde o mecanismo pelo qual o proces­
so de acumulação pretende perpetuar a concentração de ren­
da . Ao exercer forte pressão sobre os recursos naturais, a
concentração de renda desencadeou uma crise no capitalis­
mo nos países industrializados que, em busca desses recur­
sos. investem na internacionalização da economia e na glo­
balização dos mercados como estratégia política e econômica.
Nessa busca, o mercado já aparece como regulador das relações
econômicas no liberalismo e como senhor absoluto dessas
relações no neoliberalismo (ANDERSON, 1995: MoRAES &
DuAYER, 1995: SADER & GENTILI, 1995: TouRAINE, 1995: SANTOS. M..
1995; SANTOS, 2002). O atual processo de internacionalização
da economia com a globalização do mercado viabilizada pelas
políticas neoliberais é a dimensão atual da expansão capita­
lista. cada vez mais competitiva.
Esse é o cenário no qual se insere a discussão da
(im)possibilidade do desenvolvimento sustentável. A nova or­
dem econômica internacional apontada no relatório é mais
um dos elementos desse cenário. Que nova ordem é esta? O
que tem de nova e qual é a ordem? À primeira vista a nova
ordem mundial apresenta-se como progresso tecnológico, que
modifica a base técnica da produção e traz modificações na
organização das relações sociais de produção, exigindo novas
diretrizes para a qualificação e a formação humana. A cha­
mada terceira revolução industrial, sociedade pós-industrial,
pós-capitalista, pós-moderna, pós-histórica ou sociedade glo-
52 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

bal traz em seu interior o avanço do conhecimento constituin­


do-se também na sociedade do conhecimento. São caracte­
rísticas dessa organização social a flexibilização da produção,
participação, auto-organização, trabalho em equipe, produti­
vidade, competitividade, qualidade total (ANTUNES, 1995;
FRIGOTTO, 1995; FERREIRA, 2002; entre outros). Estas modificações
nas relações sociais são acompanhadas de um processo de
internacionalização da economia, a globalização.
A globalização é um complexo fenômeno de intensifica­
ção das relações sociais no campo internacional. A internet,
por exemplo, é hoje o maior ícone da globalização. A globali­
zação é apresentada como um fenômeno estritamente eco­
nômico pelos seus defensores e por alguns de seus críticos.
No entanto, essa nova ordem constrói a cena econômica. polí­
tica, social e cultural da sociedade em sua atual forma de or­
ganização., A idéia de globalização tão difundida no mundo
atualmente sugere. de imediato. a abertura de todos os paí­
ses ao mercado internacional. Parece que. como aponta
Touraine ( 1995) em tom irônico, globalização é um termo
usado para difundir o desejo de "transformar o planeta num
imenso 'duty-free"'. Articulado ao processo de globalização está
a expansão do neoliberalismo como alternativa teórica e po­
lítica à crise do capitalismo internacional. Essa alternativa
pode ser entendida principalmente pelo seu descomprometi­
mento com as políticas públicas econômicas e sociais, pela
tentativa de implantação do Estado mínimo para o enfrenta­
mento da crise financeira do modelo de Estado de bem-estar
social (PIRES & TozoN1-RE1s, 1999).
A idéia de integração mundial, presente nessa estraté­
gia do capitalismo internacional em crise, tem defensores em
vários campos políticos. A tendência à globalização, apesar de
apresentada como nova ordem, é inerente ao capitalismo. Já
em 1848, Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista,
apontavam a tendência à expansão do capitalismo como u:na
característica desse modo de organização da produção:

Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante


de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa fal-
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 53

ta de segurança distinguem a época burguesa de todas as pre­


cedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e
cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secu­
larmente veneradas: as relações que as substituem tornam-se
antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável
se esfuma. tudo o que era sagrado é profanado, e os homens
são obrigados finalmente a encarar com seriedade suas condi­
ções de existência e suas relações recíprocas.
Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a
burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda
parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte.
Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime
um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os
países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à indús­
tria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram
destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas
por novas indústrias. cuja introdução se torna uma questão
vital para todas as nações civilizadas, indústrias que não em­
pregam mais matérias-primas autóctones, mas sim matérias­
primas vindas de regiões mais distantes, e cujos produtos se
consomem não somente no próprio país mas em todas as par­
tes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas
pelos produtos nacionais. nascem novas necessidades, que
reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais
longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo
isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias,
desenvolvem-se um intercãmbio universal. uma universal in­
terdependência das nações. E isto se refere tanto à produção
material como à produção intelectual [MARX & ENGELS, s/d.,
pp.26-27).

Ainda no campo político, Leis (1996) lembra-nos que o


desejo de um governo mundial atravessa a história e identi­
fica as preocupações com o ambiente como uma possibilida­
de de conferir um sentido contemporâneo à idéia de integra­
ção internacional. No entanto, os processos de globalização
em curso nos últimos anos, impulsionados pela expansão do
mercado internacional, não supõem uma sociedade integra-
54 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

da. A globalização vem sendo construída numa comunidade


global fragmentada.
A globalização e a internacionalização da economia, que
tem sido discutidas por vários setores sociais, têm um cará­
ter fortemente excludente. Além disso. acentua-se nesse pro­
cesso uma tendência de nova divisão mundial de poder polí­
tico e econômico - a substituição do conflito leste-oeste pelo
norte-sul, criando poderosos blocos econômicos (ToURAINE, 1995;
SANTOS, 1997. 2002) -. demonstrando que o processo de globa­
lização não é homogêneo como querem apresentar os novos
"donos do mundo", aqueles que formam o bloco hegemônico
também nas conferências internacionais sobre o meio am­
biente. Temos ainda problemas econômicos se agravando em
diferentes dimensões, em vários países do mundo, como: in­
flação, desemprego, taxas de juros, déficit orçamentário, cri­
se financeira dos Estados, dívida externa e a política econô­
mica em geral (SANTOS, 1997, 2002). Uma síntese dessas
questões pode ser tentada pela identificação, no interior do
processo de globalização, do mercado como regulador das re­
lações sociais.
No que diz respeito às modificações das formas de produ­
ção, que parecem sentidas, discutidas e proclamadas por dife­
rentes setores da sociedade, e que são alardeadas pela mídia
internacional. é preciso compreender suas dimensões para
compreender o que existe de novo na nova ordem mundial. Es­
sas modificações não passam de arranjos ou adaptações de
certa forma superficiais e temporários do sistema em crise.
Aceitar as exigências dessa nova ordem mundial. enten­
dida como globalização e organização neoliberal cios Estados,
significa acreditar que essa tendência do capitalismo atual
é uma etapa aprimorada, com o máximo de perfeição possí­
vel da organização social internacional. Os problemas senti­
dos por parcelas significativas da população, em todos os paí­
ses do mundo, impedem acreditar que as contradições do
sistema econômico em curso, ainda que em sua versão neo­
liberal. tenham sido resolvidas, que as necessidades huma­
nas do conjunto da população tenham sido satisfeitas e que
os grandes conflitos tenham sido superados. É a idéia de "fim
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 55

da história" de Francis Fukuyama 3 , especialmente em seu


caráter ideológico, pois ele não queria dizer que os eventos e
as coisas deixaram de acontecer, mas que a sociedade atual
chegara ao seu máximo de perfeição, isto é, que o capitalis­
mo e o liberalismo são formas perfeitas de organização eco­
nômica e política.
A sociedade capitalista atual. chamada também de so­
ciedade pós-moderna, na tentativa de revestir-se de um ca­
ráter de superação das contradições próprias da sociedade in­
dustrial moderna, não resolveu suas contradições básicas. A
desigualdade social é ainda a sua mais perversa face. A luta
de classes permanece na história, embora recolocada a par­
tir de diferentes formas de opressão e exclusão, como as que
se referem à raça, à etnia. à religião. ao sexo, bem como o
fenômeno das frações de classes que se observa na socieda­
de atual. Esse estágio de desenvolvimento do capitalismo
agrava ainda mais a crise ambiental.
Nesse contexto, de nova ordem mundial, transparece a
proposta de transformação social tão defendida quanto criti­
cada nos acirrados embates entre as forças internacionais de
maior expressão política. A transformação social, hoje consi­
derada pelos setores mais conservadores como uma utopia
ult.rapassada da esquerda, pode ser revitalizada quando se
pensa numa alternativa realmente nova para o futuro da
humanidade, inclusive na perspectiva ambiental. O movi­
mento ambientalista discute a problemática da sustentabili­
dade desde há muito tempo. Seus setores mais críticos en­
tendem que a humanidade chegou num momento de crise,
que exige modificações profundas na sua relação com o am­
biente e, no que diz respeito à organização econômica, na
produção e no consumo. A crise ambiental exige a determi­
nação de uma nova ética de comportamento humano, na qual
o interesse coletivo defina as formas de organização.

3. Cientista político e filósofo norte-americàno. Em seu livro O fím da


história e o último homem defende que o liberalismo político e econó­
mico é o grande vitorioso nos conílitos ideológicos entre o capitalis­
mo e o socialismo/comunismo, e é inevitável a adesão a ele.
56 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

A solução dos problemas ambientais nessa nova ordem


implica a garantia de governabilidade global na perspectiva
democrática. O movimento ambientalista tem abrigado em
seu interior várias correntes de pensamento, com estraté­
gias e práticas diferentes, mas os grupos majoritários vêm
conseguindo manter, com relação a algumas temáticas, uma
unidade de princípios, construída na diversidade. Com rela­
ção ao desenvolvimento sustentável, ambientalistas denun­
ciam o desgaste que essa idéia vem sofrendo por ter sido apro­
priada por grupos com poder político e econômico no cenário
internacional: os novos "donos do mundo". Desenvolvimento
sustentável é assim apresentado como uma alternativa ao
crescimento econômico para salvar o capitalismo em crise de
expansão. Podemos identificar no "Tratado de Educação Am­
biental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade
Global". documento do Fórum das ONGs pactuado durante a
Rio-92, as posições desses ambientalistas sobre desenvolvi­
mento sustentável. Substituir a expressão desenvolvimento
sustentável pela idéia de construção de sociedades susten­
táveis tem implicações teóricas e políticas profundas, que
revelam diferentes paradigmas no entendimento da idéia de
sustentabilidade.

Sustentabilidade é um termo do vocabulário ecológico e diz


respeito à tendência dos ecossistemas à estabilidade, ao equi­
líbrio dinâmico, a funcionarem na base da interdependência e
da complementaridade, reciclando matérias e energias, os
dejetos de uma forma viva sendo o alimento de outra; os
ecossistemas são tanto mais estáveis quanto mais complexos
e diversos, e sua permanência é função deste equilíbrio dinâ­
mico. Sustentabilidade nos remete às noções de estabiljdade e
de ciclos [HERCULANO, 1992, p. 25].

Ao refletir sobre sustentabilidade, essa autora questio­


na a possibilidade de articulação da idéia de crescimento,
subjacente a desenvolvimento. com a de sustentabilidade,
pois, enquanto sustentabilidade ê um conceito ecológico, cres­
cimento é um conceito social, político e econômico. Assim,
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 57

desenvolvimento sustentável teria dois significados: desen­


volvimento como sinônimo de sociedade ou como um conjun­
to de medidas paliativas. Nos dois cas>os podemos perceber de­
senvolvimento sustentável como um conceito ideologizado. A
redução da sociedade à sua dimensão econômica tem sido
uma das formas de escamotear a complexidade dos conflitos
nela existentes. No segundo caso, a idéia de incorporar a preo­
cupação com a conservação do ambiente ao modelo de desen­
volvimento em curso, e em crise, também tenta esconder seu
esgotamento enquanto projeto de organização social, escon­
de.r suas contradições. contribuindo para a manutenção da
"adesão" ao modelo, atitude hegemônica na sociedade atual.
A divulgação das idéias sobre desenvolvimento susten­
tável tem contribuído para a "adesão profunda" ao modo de vida
criado pelo sistema político, social, econômico e cultural da
sociedade moderna, o que seria um dos principais obstáculos
à construção de alternativas de organização social. A adesão,
que é muito mais do que passividade,' tem na necessidade e
na autoridade seus elementos constitutivos.
As alternativas civilizatórias que pretendam ser real­
mente alternativas têm que dar ênfase ao caráter internaeib­
nal da problemática ambiental. Internacional compreendido
como o respeito à diversidade. à coesão e à universalidade
com autonomia. Uma sociedade autônoma somente pode ser
construída por indivíduos autônomos, e indivíduos autônomos
somente podem existir numa sociedade autônoma. O capita­
lismo e o socialismo real. centrados nas questões econômicas,
não são alternativas suficientes para um projeto civilizatório
que tenha a autonomia como princípio ético (CASTOHIADIS &
CoHN-BENDIT, 1981). Dessa forma, as propostas de construção de
sociedades sustentáveis e de desenvolvimento sustentável
expressam diferentes tendências. Entre elas, destacam-se o
"ecocapitalismo" e o "ecosocialismo":

Embora haja quem acredite e quem diga que o ecologismo é


um novo sistema sócio-econômico pós-moderno. característico
do terceiro milénio, nova fase da humanidade, novo estágio
depois do capitalismo e do socialismo, vejo o ecologismo como
58 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

um campo de lutas dentro do qual o ideário liberal e o ideário


socialista, com todas as suas nuances, continuam a se digladiar.
[... ] Todavia, apesar dessa disposição de estar além da dicoto­
mia direita/esquerda, ou capitalismo/socialismo e de nela só
ser enquadrado a força de reducionismos (reducionismo
tecnocrático, que tenta reduzir a questão ambiental a uma ques­
tão de tecnologias adequadas: reducionismo marxista, que tenta
reduzi-la a uma questão entre possuidores e expropriados), o
ecologismo é um campo de lutas entre o capitalismo verde e
um ecosocialismo. A base dessa disputa é de ordem filosófica,
ética [HERCULANO, 1992, p. 31].

Já para outro autor, Viola (1992). há três posições na


discussão do desenvolvimento sustentável: "estatista, comu­
nitária e de mercado". Em cada uma dessas ele identifica um
locus diferente para os diferentes atores sociais atuarem com
relação à sustentabilidade do ambiente. Desse modo, traz para
a discussão as políticas públicas de desenvolvimento e sus­
tentabilidade. Esta questão é um divisor de águas entre os
ambientalistas: políticas públicas de sustentabilid ade defini­
das por um Estado democratizado que responda aos interes­
ses coletivos ou políticas de sustentabilidade numa socieda­
de autogestionária?
De qualquer forma, na construção de uma s oc ie dade
sustentável é preciso resgatar a idéia de utopia - retirando­
lhe o caráter pejorativo que, ideologicamente, se pretendeu
impor-lhe para esvaziar a organização e as esperanças das
idéias progressistas de consolidação da modernidade:

Para quem, como eu, pense que estamos a entrar num perío­
do de transição paradigmática, a utopia é mais necessária do
que nunca. A crise final de um determinado sistema social re­
side em que a crise de regulação social ocorre simultaneamente
com a crise de emancipação. A acumulação das irracionalida­
des no perigo iminente da catástrofe ecológica, na miséria e na
fome a que é sujeita uma grande parte da população mundial -
quando há recursos disponíveis para lhes proporcionar uma vida
decente e uma pequena minoria da população vive uma socie-
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 59

dade de desperdício e morre de abundância - na destruição pela


guerra de populações e comunidade em nome de princípios ét­
nicos e religiosos que a modernidade parecia ter descartado para
sempre, na droga e na medicalização da vida como solução para
um quotidiano alienado. asfixiante e sem solução - todas estas
e multas outras irracionalidades se acumulam e ao mesmo tem­
po que se aprofunda a crise das soluções que a modernidade
propõs. entre elas o socialismo e o seu máximo de consciência
teórica possível, o marxismo. As irracionalidades parecem ra­
cionalizadas pela mera repetição [.. . ] Julgo, pois. que precisa­
mos da utopia como do pão para a boca \SANTOS, 1997, p. 43].

Para a sustentabilidade ambiental, é preciso uma ordem


alternativa que seja nova. Uma ordem em que a utopia perca
seu caráter de impossibilidade ou de delírio sobre o futuro e
ganhe um caráter de meta, de vir a ser, de esperança e de­
safio de transformação social. Assim, ensina-nos Santos
(1997), a única utopia possível neste final de século é a "uto­
pia ecológica e democrática".
A utopia ecológica, como direção para a transformação
social necessária para garantir um futuro para todos. emerge
da necessidade apontada pela crise ambiental, crise plane­
tária que vive a humanidade. resultado do modelo de civili­
zação construido sobre o projeto econômico que se estabele­
ceu principalmente a partir da Revolução Industrial. Vimos
que o processo de "ecologlzação das sociedades" teve inicio na
década de 1940 e tomou corpo nas décadas de 1960 e 1970,
quando as grandes catástrofes ambientais demonstraram que
a humanidade havia conquistado o poder de destruição total
de si própria. Dai em diante se percebeu que os problemas
ambientais produzidos pelos homens definem a insustenta­
bilidade da civilização moderna a médio prazo.
Leff apresenta-nos, como contraponto às idéias neolibe­
rais de "crescimento sustentável", o conceito de "produtivi­
dade ecotecnológica ":

O conceito de produtividade ecotecnológica conjuga a produ­


tividade ecológica dos ecossistemas com a inovação de siste-
60 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

mas tecnológicos adequados à sua transformação, mantendo e


melhorando a produtividade global através de uso integrado dos
recursos. sujeitos à estrutura e funções de cada ecossistema e
à capacidade de auto-gestão das comunidades e dos produto­
res diretos. Esse projeto parte das necessidades das comuni­
dades e de seus conhecimentos sobre o meio e seus recursos;
das condições de apropriação de seu ambiente como meio de
produção e do produto de seus processos de trabalho: da assi­
milação da ciência e da tecnologia moderna as suas práticas
tradicionais para constituir meios de produção mais eficien­
tes, respeitando suas identidades culturais [2001, p. 60).

Em contrapartida. não se pode acreditar que os diferen­


tes grupos sociais, com diferentes interesses, têm as mes­
mas preocupações acerca do ambiente. O discurso ambien­
talista-universalista tenta esconder essas contradições: a
problemática ambiental ê apresentada como preocupação
comum, de toda a sociedade. Essa idéia de que a problemáti­
ca ambiental é universalmente igual para todos os países e
para todas as classes sociais está muito presente na prática
educativa ambiental. No entanto, o que se percebe é que os
diferentes grupos sociais vivem a relação com o ambiente de
formas diferentes:

Um novo pensamento se apresenta ao mundo com preten­


sões de universalidade. o ecológico, questionando o desenvol­
vimento e os modelos de sociedade. Esse desafio é apresenta­
do como necessidade de se repensar o desenvolvimento na sua
dimensão social. Recoloca a crítica dos sistemas existentes,
forçando o capital a se confrontar com o meio ambiente, que
pretendeu e ainda pretende subordinar em sua realização. O
pensamento ecológico está dizeHdo ao capital que antes dele
vem a relação com a natureza, diante da qual o capital é ape­
nas uma criança brincando de Criador, sem ter idade e sabe­
doria para isso [SouzA, 1992. p. 12).

. Dessa forma, a utopia ecológica para ser mesmo uma


nova ordem exige a utopia democrática. Uma democracia que
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 61

se refira à realidade total, econômica, política. social e cultu­


ral. Uma democracia que garanta o acesso ao conhecimento,
à informação e à educação, entre outros bens; que organize a
vida dos homens em sociedade para construí-la mais justa e
equilibrada. A nova ordem articula a perspectiva ecológica e a
perspectiva democrática, como aparece expresso em:

ô pensamento ecológico pode constituir-se num ponto de


partida capaz de aprofundar a crítica do desenvolvimento. tal
como realizado no mundo moderno, e de unir e produzir uma
nova confluência cultural e ideológica, que se move em dire­
ção à democracia, onde não somente os homens e mulheres
possam se encontrar num mundo de todos, como também esta­
belecer uma relação de qualidade diferente com a natureza de
que somos parte e que pela qual somos responsáveis. Os prin­
cípios básicos das relações humanas já foram propostos. não
estabelecidos, pelo pensamento democrático. Os princípios
básicos das relações entre a humanidade e a natureza ainda
não foram devidamente discutidos e estabelecidos entre nós.
o que nos leva muitas vezes a produzir dicotomias inconsis­
tentes e falsas contradições. Este é um desafio moderno. Não
fomos capazes de incluir em nosso horizonte toda a humani­
dade, nem fomos capazes de nos incluir no horizonte de um
universo que nos ultrapassa em tantas dimensões. Ao rec upe­
rarmos um desafio de tal magnitude, talvez sejamos capazes de
recuperar também a capacidade de nos superarmos [idem. pp.
12-13].

Assim, uma nova ordem que possibilite uma nova for­


ma dos seres humanos se relacionarem com a natureza cor­
responde à adoção de uma nova ética em que se destaque
como prioridade a dimensão coletiva - no sentido de abarcar
toda humanidade - e a dimensão democrática - no sentido
de incluir a igualdade (na diversidade) nas relações entre
pessoas e grupos.
A crise ambiental é global, porém seus efeitos atingem
diferentemente os grupos sociais. As soluções dos problemas
ambientais exigem Mque os indivíduos encontrem motivos
62 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

para descolonizar a sociedade de comportamentos individua­


listas e instrumentais, restaurando o privilégio de princípios
éticos" (LEIS, 1996, p. 50).
Assim, a necessidade de modificação do modelo de de­
senvolvimento é consenso entre os educadores ambientais,
mas as formas propostas para sua viabilização se diferenciam.
O importante é apontar a impossibilidade radical de modifi­
cações conjunturais em uma organização social que impos­
sibilita, profunda e estruturalmente, a relação equilibrada,
plena, do homem com a natureza. O caminho parece ser a
superação da lógica antropocêntrica que implica a domina­
ção da natureza pelos homens e dos homens pelos homens,
em toda sua complexidade histórica.
As idéias sobre a origem da crise ambiental também
trazem conteúdos interessantes para a discussão das re­
presentações da relação homem-natureza. Identificamos nas
entrevistas diferentes causas para a crise ambiental: edu­
cação deficiente, crescimento populacional, questões econõ­
micas. questões culturais etc.
A problemática da educação, que foi também expressa
pela idéia de conscientização e de acesso aos conhecimentos
técnico-científicos, será mais bem discutida no próximo capí­
tulo. O que interessa, por ora, é identificar as concepções da
relação homem-natureza subjacentes a essas falas: o conhe­
cimento técnico-científico aparece como mediador dessa rela­
ção.
A valorização dos conhecimentos tem, nesse sentido,
duas abordagens. De um lado está a articulação do papel dos
conhecimentos com os condicionantes históricos e sociais na
relação do homem com a natureza. De outro lado está a su­
pervalorização do papel dos conhecimentos nessa relação,
dando pouca importância a outros condicionantes. Essa últi­
ma posição parece caminhar para uma concepção utilitaris­
ta da relação homem-natureza, na qual as idéias antropocên­
tricas estão fortemente presentes. Podemos identificar aqui
uma das mais interessantes contradições: ao mesmo tempo
em que se rejeita a ética antropocêntrica como balizadora da
relação homem-natureza. sugere-se o papel - neutro - dos
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 63

conhecimentos expressos pela racionalidade técnica. Essa


contradição pode ser entendida como um sinal da busca de
um novo pensamento acerca das relações entre os sujeitos e
o ambiente em que vivem.
Voltemos à origem dos problemas ambientais. Há uma
tendência em apontar o crescimento populacional como um
dos fatores determinantes dos problemas ambientais. Nesse
sentido, as ações políticas adequadas para o enfrentamento dos
problemas ambientais seriam aquelas que limitam o cresci­
mento da população mundial.
Essas idéias não são novas. Desde o século XVIII, elas
entram e saem de cena nas discussões sobre os problemas
econõmicos das sociedades modernas. Em 1798, Robert
Malthus desenvolveu a teoria do crescimento populacional e
da produção de alimentos como tendências desequilibradoras
da ordem econõmica e social. Criticado por muitos, recontex­
tualizado por outros, Malthus faz-se presente quando essa pro­
blemática volta à cena. Essas afirmações apareceram nas
discussões dos temas ambientais. Lembremos que, por volta
de 1950, essas idéias reapareceram tomando forma em posi­
ções de extremo autoritarismo. Embora Pacheco ( 1968) fun­
damente-se em valores da Igreja católica, que sempre se
posicionou contra o controle da natalidade, suas críticas a
essas posições têm algum sentido. Esse autor contribui para
a compreensão dos conteúdos fascistas de algumas posições
anticrescimento, apresentando as idéias de alguns desses
autores. Entre eles estão aqueles que defenderam que os
avanços na medicina são os principais responsáveis pelo
crescimento da miséria e dos problemas econômicos e sociais
da sociedade, pois eles impedem a "seleção natural", desequi­
librando a relação entre as taxas de natalidade e de mortali­
dade. Essa lógica, insustentável do ponto de vista ético, é de
uma racionalidade cínica e elitista. Opondo-se a essas con­
cepções, encontramos os que defendiam a idéia de que o pro­
gresso cientifico por si só seria capaz de criar mecanismos
de controle ao crescimento desordenado da população mun­
dial. Naquele momento, tínhamos de um lado os chamados
pessimistas neomalthusianos e de outro os otimistas bradan-
64 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

do dados cientifico-desenvolvimentistas contra as prev1soes


proféticas da catástrofe mundial resultante do crescimento
populacional. Além disso, temos que considerar a presença
da Igreja católica nessas discussões.
Até esse momento, os enfrentamentos pareciam rela­
cionar-se a duas posições distintas e opostas: a favor ou con­
tra o controle da natalidade. No entanto, as questões ambien­
tais ainda não estavam colocadas na dimensão com que mais
recentemente, a partir da década de 1960, tem-se discutido,
mas essas idéias aparecem ainda nas discussões contempo­
râneas acerca da influência do crescimento populacional na
problemática ambiental. muitas vezes com conotações que
podemos chamar de ecofascistas (BosguET, 1976).
A publicação pelo Clube de Roma do relatório-síntese
Limites do crescimento, em 1972 (MEADows et al., 1978),
resul­ tado de sofisticados estudos científicos, pode ser
considerado mais um dos importantes momentos em que a
problemática do crescimento da população mundial volta à
discussão. O Clube de Roma propôs como objetivo maior do
estudo discutir os "dilemas" atuais e futuros do homem. Este
grupo, formado por cientistas de várias partes do mundo,
elaborou suas aná­ lises com base em cinco fatores que,
segundo sua compreen­ são, determinam e limitam o
crescimento econômico no pla­ neta: população, produção
agrícola, recursos naturais, produção industrial e poluição.
Um principio básico permeia todo o documento: os interesses
investigativos são situados em espaço global e num futuro
distante. A metodologia usada pelos autores nas
investigações, expressa na introdução do documento, é o
"modelo formal e matemático"; trata-se do uso do "método
científico, da análise de sistemas e das análises projetivas".
Esse "modelo mundial" investigou cinco tendências de
interesse global: o ritmo acelerado da industrialização, o rá­
pido crescimento demográfico, a desnutrição generalizada, o
esgotamento dos recursos naturais não-renováveis e a dete­
rioração ambiental. As conclusões do estudo podem ser sinte­
tizadas, em primeiro lugar, na idéia de que se as tendências
do crescimento da população se tornarem imutáveis e se ar-
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL 65

ticularmos essas tendências à industrialização, à produção de


alimentos e à diminuição dos recursos naturais. o limite do \J
,.
crescime_nto econômico será atingido em 100 anos, a partir
da data do estudo - 1972. Em segundo lugar, esses cientistas
afirmaram que essas modificações são urgentes e inadiáveis. U
Parte do pensamento ambientalista fez a esses estudos CQ
duras críticas, embora eles tenham sido amplamente divul­
gados e servido - e ainda servem - como referência para as
discussões sobre o ambiente promovidas pela comunidade
internacional. Essas críticas dizem respeito, fundamental­
mente. ao caráter essencialmente técnico das análises ali
apresentadas. O documento sugere uma abordagem raciona­
lista do ambiente, indicando, mas não considerando nas aná­
lises as dimensões políticas e sociais da problemática ambien-
tal. A concepção utilitarista da relação homem-natureza está
presente em todo o documento. As análises apresentadas
pelos cientistas do Clube de Roma não questionam o modelo
capitalista. mas fazem críticas - muito cuidadosas - à sua
forma. Fica evidente que as propostas políticas que emergem
do rigoroso estudo dos dados mundiais sobre as questões
identificadas ali como principais indicadores para a compreen-
são dos "dilemas da humanidade" são relacionadas ao aper­
feiçoamento - emenda rápida e radical - do modelo de desen­
volvimento capitalista.
O Relatório Brundtland, ou Nosso futuro comum, da ONU,
também identifica o crescimento da população como um dos
grandes problemas mundiais causadores da degradação am­
biental. Nesse documento, encontramos que o "desenvolvi­
mento sustentável só pode ser buscado se a evolução demo­
gráfica se harmonizar com o potencial produtivo cambiante do
ecossistema" (CMMAD, 1991, p. 47); nele a discussão sobre
crescimento da população dá ênfase às diferentes condições
de vida dos povos das diferentes nações. Ali encontramos a
identificação do crescimento populacional com os níveis e for­
mas de desenvolvimento econômico e social. O aumento de
renda, a urbanização e a condição das mulheres nas diferen­
tes sociedades são colocados como fatores determinantes do
equilíbrio ou desequilíbrio do crescimento populacional. O re-
66 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

latório aponta ainda para a necessidade de modificações na


política econômica, nacional e internacional, que possam
controlar não só o aumento da quantidade de pessoas, mas
também o padrão e as preferências na qualidade do consumo,
principalmente nos países cujas taxas de crescimento demo­
gráfico vêm sendo já controladas.
A Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentá­
vel produziu também um relatório (ONU, 2002) que aprofunda
a discussão do crescimento populacional. Nesse documento
também se discute sobre o controle desse crescimento afir­
mando que:

Não poderá haver garantias de um pico na população mun­


dial neste século sem que haja também compromisso sério por
parte de governos para promover o planejamento familiar e
serviços afins para aqueles que os buscam. compromissos es­
tes que continuam extremamente incertos IONU. 2002, p. 148].

Assim, hoje não é mais possível desconsiderar o proble­


ma do crescimento populacional, os dados são bastante as­
sustadores; na tabela a seguir, podemos observar que o in­
tervalo de tempo para dobrar o número de habitantes no
planeta é cada vez menor:

Ano Número de habitantes

até 1825 1 bilhão

1925 2 bilhões

1975 4 bilhões

2000 (dados atuais) 6 bilhões

2025 (projeção) 8 bilhões

2050 (projeção) 10 bilhões

Síntese dos dados apresentados por Pacheco (1968). Meadows et ai. ( 1978), CMMAD
(1991). Santos (1997) e ONU (200 l. 2002).
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÀO AMBIENTAL 67

No entanto, as análises mais complexas, que levam em


conta a história social, económica e política sobre a qual es­
ses dados se foram construindo, exigem mais do que o racio­
cínio formal da relação entre crescimento populacional e re­
cursos naturais não-renováveis. A pressão sobre os recursos não-
renováveis diz respeito, na sociedade moderna, à concen­ tração
de renda. Assim, outros elementos da economia capi­ talista têm
que ser analisados quando se pensa em controlar o
crescimento do consumo. O freio malthusiano e a profecia do
colapso têm mais relação com a ideologia capitalista do mito
do progresso (FURTADO, 1998). da idéia de que o desenvolvimen­
to pode ser universalizado, e, nesse sentido, o problema dos
recursos naturais passa ser um problema formal e não uma
escolha civilizatória. Esse é o fundamento político do docu­
mento do Clube de Roma.
A explosão demográfica é um dos problemas vividos pela
sociedade atual, mas é preciso contextualizá-la no novo cená­
rio do enfrentamento político entre países ricos do hemisfé­
rio norte e países pobres do hemisfério sul. Nesse sentido, a
fome e o desemprego, a violência e o colapso ecológico são
resultados da impossibilidade de universalização do modelo de
desenvolvimento industrial. A emigração, o aumento da pro­
dutividade da terra pela revolução agrícola e o aumento da
produtividade do trabalho pela revolução industrial e tecnoló­
gica são elementos balizadores das discussões acerca da pro­
blemática ambiental (SANTOS, 1997). E esses elementos estão
presentes de forma contraditória e diversa para as populações
com tão diferentes condições de vida nos países ricos e nos
países pobres.
A questão do crescimento populacional está então rela­
cionada à desigualdade entre pobres e ricos, cada vez maior
na sociedade atual; isso significa que a problemática do con­
sumo, atualmente tão discutida, está presente. Santos (2000,
p. 6) afirma que "20% da população mundial consome 80% dos
recursos produzidos no planeta, enquanto o restante sobre­
vive com migalhas", e que, no Brasil, os excluídos na distri­
buição dos recursos são 70% da população. Este autor indica
que a globalização, que parece ser a "consagração máxima"
68 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

atual do capitalismo, se dá no aguçamento da lógica da sobre­


vivência: a competição e o desemprego intensificam a luta
pela sobrevivência. O tema do consumo traz à tona as idéias
de autonomia e interesses coletivos. Autonomia ou aliena­
ção em consumidores e/ou consumidos?
Podemos refletir acerca do crescimento populacional
como causa dos problemas amBientais, com o objetivo de com­
preender as representações da relação homem-natureza.
Entretanto, é necessário considerar que, embora esse cres­
cimento seja em si uma grande preocupação, não é possível
pensá-lo fora do contexto da exploração, não somente da na­
tureza, mas da exploração dos homens pelos homens na so­
ciedade desigual. Dessa forma, a problemática do poder, da
democracia e da autonomia tem que estar no horizonte das
soluções políticas do enfrentamento do crescimento popula­
cional. com vistas ao equilíbrio ambiental.
Retomemos o crescimento populacional como fator de­
terminante dos problemas ambientais: temos concepções
mais reducionistas, de relação direta de causa e efeito e con­
cepções mais complexas, de entendê-lo como um dos fatores...
Essas posições revelam diferentes concepções da relação ho­
mem-natureza. Questões relacionadas à educação, informa­
ção e conscientização, articuladas ao crescimento populacional,
indicam referenciais racionalistas para pensar o ambiente.
Essas idéias sugerem como solução dos problemas ambien­
tais a aquisição de conhecimentos técnico-científicos pelos
indivíduos. Ao mesmo tempo, encontramos posições fortemen­
te contrárias ao antropocentrismo da concepção racionalista
da relação homem-natureza. Notamos nas discussões que a
idéia de sociedade harmônica .está implícita nas posições ra­
cionalistas e esvaziam o conteúdo sociopolítico da problemáti­
ca ambiental. desconsiderando principalmente as desigualdades
sociais. É interessante notar que os "limites do crescimento"
apresentados pelo Clube de Roma têm ainda forte influência
nos meios acadêmicos relacionados à problemática ambien­
tal. No entanto. uma análise mais cuidadosa dessas contra­
dições revela mais do que simples incoerências, revela um
movimento de busca de novos referenciais teóricos para com­
preender a relação homem-natureza.

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