Sociedade e Contemporaneidade 2018
Sociedade e Contemporaneidade 2018
Sociedade e Contemporaneidade 2018
Paulo G. M. de Moura
Paulo G. M. de Moura
Sociedade e
Contemporaneidade
Paulo G. M. de Moura
Apresentação 9
3. A sociedade agrícola 25
3.1 A civilização grega 26
3.2 A civilização romana 27
3.3 O cristianismo 28
3.4 A ordem feudal 29
3.5 O fim da era agrícola 29
4. A sociedade industrial 31
4.1 A lógica do sistema de produção 31
4.2 A lógica do sistema social 32
4.3 A lógica do sistema político 33
4.4 Capitalismo e socialismo: dois modelos e um sistema 35
4.5 Crise e ruptura do sistema 36
5. A história da globalização 39
5.1 O que é globalização? 39
5.2 Antecedentes da globalização 41
5.3 Formação do mercado mundial 41
5.4 O impacto da Revolução Industrial sobre a economia mundial 43
5.5 O surgimento do capital financeiro 45
7. A sociedade pós-industrial 55
7.1 A natureza da mudança 55
7.2 Sentido e rumo das mudanças 56
7.3 Conhecimento e velocidade 58
7.4 Riqueza intangível e economia simbólica 59
7.5 Trabalhar e empreender na nova economia 60
8. Identidades em transformação 65
8.1 O mundo virtual mudando nossa vida real 65
8.2 Espelho, espelho meu: onde estou, quem sou eu? 66
8.3 De onde viemos? Onde estamos? 66
8.4 Para onde vamos? 69
Gabarito 105
Referências 109
Apresentação
As ciências sociais surgiram muito recentemente, tendo por base e escopo um longo proces-
so de especialização do trabalho, que marcou a evolução do sistema de produção de riquezas e a
forma de organização segmentada do conhecimento humano.
Neste livro, recorreremos à analogia do corpo de organismos vivos, entendidos como sis-
temas, para compreender a estrutura e o funcionamento dos sistemas sociais que a civilização
humana, em geral, e cada Estado-nação, de modo particular, desenvolveram ao longo da história.
Nasce assim o “código genético” da nova civilização pós-industrial, cujos cromossomos pe-
netram como água em terreno irregular e nas veias de um sistema supercomplexo. Circula, de um
lado para outro do planeta, em alta velocidade, um volume imenso de informações e riquezas tan-
gíveis e intangíveis. Para entendermos corretamente a complexidade desse fenômeno, em suas múl-
tiplas facetas e implicações, é preciso analisá-lo sob um novo enfoque, que ultrapasse a dimensão
econômica e abandone a perspectiva de vê-lo apenas como uma nova etapa de um sistema antigo.
Com essa visão de sociedade como um grande sistema, percorreremos nesta obra temas
como os grandes ciclos de transformação sistêmica da sociedade, a sociedade agrícola e a indus-
trial, o surgimento e desenvolvimento da globalização e a ordem internacional estabelecida no
pós-Segunda Guerra Mundial. Trataremos também das características da sociedade pós-industrial
e da crise nas identidades individual e coletiva da humanidade, além de discutirmos os sistemas de
poder e suas representações. Nesse mesmo contexto, fechando a obra, discorreremos especifica-
mente sobre a sociedade brasileira como sistema, sua realidade e suas perspectivas democráticas.
Tal como fazem os psicólogos e psicanalistas quando investigam os mistérios da mente para
desvendar os meandros da matriz sistêmica de uma sociedade, é preciso compreendermos de ma-
neira aprofundada fatores como história, política, economia, sociologia, psicossociologia e cultura
de uma nação. Afinal, a construção das sociedades é uma obra aberta e inacabada, que pode nos
levar a um futuro melhor ou ao retrocesso.
Boa leitura.
1
As sociedades como sistemas
O surgimento das ciências sociais é relativamente recente. Ele se deu por meio de um longo
processo de especialização do trabalho, que marcou a evolução do sistema de produção de rique-
zas e a forma de organização segmentada do conhecimento humano. As revoluções Francesa e
Industrial – ocorridas nos séculos XVIII e XIX – cooperaram para o surgimento dessa ciência, e o
pensamento positivista1 possibilitou sua solidificação ainda no século XIX.
Em virtude de ser uma nova área do conhecimento científico, suas teorias se fundamen-
taram em modelos e representações figurativas oriundas de outras ciências. Para construir seus
próprios conceitos, empregaram-se sistemas teórico-metodológicos, categorias, metodologias e
teorias provenientes de outras áreas. A construção de analogias, com sistemas mecânicos ou com
os corpos de organismos vivos, emprestadas das ciências exatas ou biológicas, era recorrente nas
ciências sociais.
Neste capítulo, também recorreremos à analogia do corpo de organismos vivos, entendi-
dos como sistemas, para compreender a estrutura e o funcionamento dos sistemas sociais que a
civilização humana, em geral, e cada Estado-nação, de modo particular, desenvolveram ao longo
da história.
1 Doutrina filosófica de Auguste Comte (1798-1857) caracterizada pelo rigor científico e pelo emprego de metodolo-
gias quantitativas.
12 Sociedade e Contemporaneidade
Mediante outros raciocínios análogos, pode-se dizer que o governo equivale ao cérebro de
um sistema político, o parlamento ao órgão do sistema Estado, que pulsa conforme a influência dos
fluxos de pressão popular. Os fluxos de pressão popular, nesse caso, podem ser entendidos como
equivalentes funcionais ao papel que a corrente sanguínea exerce no organismo humano, especial-
mente em relação ao papel do subsistema cardiovascular para o corpo humano. Da mesma forma,
os partidos, os sindicatos e os grupos de pressão podem ser vistos como as veias por meio das quais
o fluxo sanguíneo da pressão popular chega ao parlamento (coração) e, com base nele, chegam ao
cérebro, que responde ao estímulo da irrigação sanguínea com o atendimento da demanda social.
Isso, é claro, em um sistema saudável.
As noções de equilíbrio, estabilidade, harmonia, entre outras, podem servir às teorias sociais
que têm como foco a preservação da ordem social e do bom funcionamento de uma sociedade
determinada e existente. Esse pressuposto implica a identificação da posição ideológica e do enfo-
que do cientista social que aplica esse modelo, com a preservação do status quo (estado que existia
antes) vigente nesse sistema social determinado.
As teorias que adotam esse tipo de enfoque entendem que os eventuais processos de mu-
dança social devem ter caráter reformista, isto é, servem como processos de adaptação a novas
exigências do ambiente interno e/ou externo ao sistema. Essa adaptação deve ocorrer obedecendo
às regras previstas e vigentes, definindo formas pacíficas pelas quais – de maneira gradual e em
um ritmo condizente com o equilíbrio do todo – as mudanças podem e devem acontecer, sem a
desestabilização ou a ruptura do todo.
No entanto, existem algumas correntes de pensamento da teoria social que entendem a evolução
da história por meio de conflitos e rupturas, descartando, portanto, as analogias orgânicas como recurso
adequado à compreensão dos fenômenos relacionados à ação dos seres humanos em sociedade.
vigorou nas civilizações desde o tempo em que o homem saiu das cavernas (pré-história) até o
fim da era feudal.
As sociedades com esse sistema de produção contavam com subsistemas sociais especí-
ficos (organização comunitária baseada em aldeias, organização familiar baseada em grandes
núcleos de convivência necessários ao trabalho braçal nas unidades de produção rural familiar
etc.). Da mesma forma, as relações de poder (subsistema político baseado na mistura entre re-
ligião e liderança, baixa complexidade e poucos níveis hierárquicos entre líderes e liderados)
dessas sociedades têm formas próprias de organização e funcionamento, o mesmo ocorre com o
subsistema cultural (religião, costumes, valores e rituais correlatos).
A matriz conceitual implícita à ideia de sistema apresentará sua aplicação correspondente
quando usada para o estudo da civilização, cujo subsistema econômico estava baseado no indus-
trialismo tradicional. A indústria de tipo tradicional usava, predominantemente, tecnologias mecâ-
nicas, trabalho especializado, produção em massa e seriada por meio de métodos de padronização
e sincronização da produção fabril, na qual o trabalho braçal repetitivo predominava como impul-
sionador da produtividade do sistema. Sob a vigência desse sistema, desenvolveram-se formas de
organização social (cidades, núcleo familiar reduzido devido à mobilidade urbana do trabalhador
fabril), política (democracia representativa, Estado-nação, burocracia etc.) e cultural correspon-
dentes, típicas e distintas daquelas que existiam sob a sociedade de base agrícola.
O mesmo esquema teórico-metodológico permite aplicar a analogia orgânica ao estudo
da sociedade pós-industrial emergente, cujo sistema produtivo baseia-se em tecnologias e co-
nhecimento (subsistema econômico), que por sua vez concebe seus correlatos, subsistema social,
político, cultural e assim por diante. A sociedade pós-industrial está em processo inconcluso de
formação, mas, como sistema, já insinua a formação de seus subsistemas social, político, cultu-
ral, que são objeto de análise, debate e estudo central das ciências sociais contemporâneas.
Finalmente, o modelo também se aplica aos casos de sociedades nacionais. Todas os Estados-
-nações, tal como as diferentes civilizações, agrícola, industrial e pós-industrial da teoria de Toffler,
podem ser vistas como sistemas cujos subsistemas social, econômico, político e cultural combi-
nam-se de maneira específica e distinta, como se tivessem uma personalidade e um código genéti-
co à imagem e semelhança dos seres humanos.
Atividades
1. Além das analogias entre organismos vivos apresentados neste capítulo, quais outras ana-
logias equivalentes você conseguiria fazer entre sistemas biológicos e/ou mecânicos e sis-
temas sociais?
2. Sob o enfoque de um sistema social comparado a um organismo vivo, quais fatos sociais
atuais poderiam ser utilizados como exemplos de doenças da sociedade contemporânea?
2
Grandes ciclos de transformação sistêmica da sociedade
300 anos. Segundo Toffler, a terceira onda civilizatória teve poucas décadas para completar seu
ciclo de mudanças, ou seja, trata-se de um conjunto de mudanças que já são e serão ainda mais
sentidas no decorrer dos anos (TOFFLER, 2001).
A velocidade das transformações é outra dimensão desse processo; a rapidez com que novas
tecnologias são descobertas e postas a serviço da sociedade torna a mudança veloz e constante,
uma característica estrutural intrínseca e permanente do novo sistema. Eventualmente, não é pos-
sível perceber a abrangência e a profundidade dessas mudanças. Pode-se citar como exemplos:
as estruturas familiares do casamento estável e monogâmico – que estão sendo substituídas por
inúmeras outras formas e configurações de organização familiar, as quais impactam diretamente o
sistema de crenças e valores que predominou no período precedente da história –; as crises econô-
micas e políticas localizadas – que se expandem rapidamente por meio de redes de comunicação
interligando pessoas e instituições –; os novos combustíveis, as novas fontes renováveis de energia,
as novas matérias-primas; os métodos inovadores de gestão da produção, que varrem as máquinas
e as linhas de montagem obsoletas das fábricas tradicionais.
Empresas vão à falência e surgem tantas outras; surgem também novas atividades econômi-
cas e novos postos de trabalho. A economia de serviços se sobrepõe à produção fabril. O trabalho
braçal e algumas atividades produtivas que requerem conhecimento específico são automatizadas
e robotizadas. Os empregos do antigo sistema desaparecem. Impérios desmoronam da noite para
o dia, fronteiras se desmancham, nações se fundem, diluem fronteiras e constroem novas institui-
ções inspiradas no paradigma estrutural das redes (CASTELLS, 1990).
O futuro promissor não está garantido. A humanidade já experimentou o retrocesso em seu
padrão civilizatório. É possível compará-lo ao tipo de vida e desenvolvimento cultural atingido no
apogeu das civilizações grega e romana com as condições sociais que se viviam na era feudal. Todavia,
Toffler (2001) acredita que, mesmo com os avanços e benefícios sociais que a transformação da
sociedade agrícola em sociedade industrial proporcionou à humanidade (aumento da expectativa
de vida e das condições gerais de sobrevivência do homem sobre a Terra), nem todos os problemas
da sociedade foram resolvidos. Novos problemas, resultantes do impacto do sistema de produção de
riquezas baseado no modelo fabril, surgiram. O futuro, estruturado pelo paradigma sistêmico das redes
tecnológicas, poderá oferecer uma vida melhor do que aquela sob a vigência da sociedade industrial.
2.2 A pré-história
Na pré-história a subsistência (subsistema econômico) estava baseada na caça, na pesca, na
coleta de frutos da natureza e no saque de outros grupos humanos. Os povos ancestrais viviam
em bandos nômades (subsistema social). Dentro desses bandos, as relações de poder (subsistema
político) eram simples e pouco hierarquizadas. Vigorava o poder da força do líder, que se impunha
sobre os demais pelo uso da violência. O sistema social apresentava baixo grau de complexidade.
A natureza dominava o homem, impunha suas regras e provocava medo.
A vida em grupos nômades era consequência direta do modo de subsistência. O grupo faci-
litava a defesa contra animais, contra as adversidades impostas pela natureza e contra outros gru-
pos humanos. A condição de nômades, isto é, de indivíduos obrigados a se deslocar pelo território
20 Sociedade e Contemporaneidade
de tempos em tempos, era imposta pela escassez de alimentos, pelas mudanças do clima, ou pela
ameaça de animais e outros bandos. A agricultura surgiu para modificar a maneira de viver da-
quele período e deu ao homem a capacidade de coletar grande quantidade de sementes, preparar a
terra, plantar, colher e armazenar alimentos para consumir no inverno e tornar sua vida melhor. A
consolidação dessa prática (por meio de um longo processo) criou uma nova forma de produção
de riqueza, cuja base passou a ser a agricultura tradicional.
deslocavam-se de uma cidade para outra em busca de emprego, junto de suas esposas e filhos. Sob
essas circunstâncias, as grandes famílias necessárias à agricultura tradicional – devido à importân-
cia do trabalho braçal para a produtividade do trabalho na terra – não tinham como sobreviver e
começaram a desaparecer (subsistema social). Com o povo concentrado nas cidades, em torno das
catedrais e das sedes do poder, não tardou para que a política sofresse o impacto das transforma-
ções provocadas pela emergência da sociedade industrial e seu sistema de poder.
Aos poucos, os povos europeus que tinham algum tipo de identidade cultural, proximidade
territorial ou interesses econômicos comuns se agruparam. A sociedade feudal, com formações
políticas, sociais e as unidades de produção do último estágio da sociedade agrícola, deu lugar
aos Estados nacionais. Em seguida, os Estados-nações experimentaram revoluções políticas que
deram origem às democracias modernas, baseadas na separação entre Estado e Igreja, na ordem
constitucional, na separação dos poderes e nos regimes de governo parlamentarista ou presiden-
cialista (subsistema político) que vigoram até hoje, em substituição à ordem política vigente na
Idade Média, na qual a aristocracia e o clero controlavam o poder e na qual o povo não participava
da política. O industrialismo organizou a sociedade à sua imagem e semelhança, pelo menos até o
fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Redes, economia de
Sistema de Caça, pesca, Agricultura, serviços, economia
Fábricas
produção coleta, saque artesanato simbólica, transna-
cionais
(Continua)
Grandes ciclos de transformação sistêmica da sociedade 23
Megacidades como
centros de serviços,
Aldeia, família Cidade, núcleo
Sistema social Bando nômade descentralização
tradicional familiar
urbana, ausência de
padrão familiar
Fusão religião/poder
Estado-nação,
Dois níveis hie- (Estado/Igreja),
República, separação Megablocos, Estado
rárquicos (líder e justificação pelo
Sistema de poder Estado/Igreja, demo- em rede, democracia
bando), sucessão direito divino,
cracia representativa, cibernética
pela violência sucessão por heran-
burocracia
ça consanguínea
Para Toffler (2001, p. 31), compreender que “está se travando uma luta violenta entre os que
procuram preservar o industrialismo e os que procuram suplantá-lo” é importante para entender
o contexto mundial. Além disso, o entendimento dessas questões auxilia o estabelecimento de nor-
mas para uma nação, estratégias para uma empresa ou até mesmo os objetivos pessoais.
Atividades
1. Com base nos conteúdos estudados, descreva de qual maneira se processam as transforma-
ções estruturais das sociedades.
2. Segundo Toffler, qual fator desencadeou a emergência da segunda onda e de qual maneira
esse fator, ao se generalizar e se transformar em um fenômeno abrangente, influenciou o
comportamento social, as formas de vida em sociedade e a organização jurídica e política da
civilização humana?
3. No seu entender, por que o avião a jato e o uso da informática combinada com as teleco-
municações são as tecnologias que estão revolucionando a economia e causando impacto
sobre as demais dimensões da vida na sociedade contemporânea (comportamento, cultura,
estruturas sociais e políticas)?
3
A sociedade agrícola
A sociedade agrícola durou, aproximadamente, dez mil anos: das primeiras aldeias primiti-
vas, que foram se formando muito lentamente após a pré-história, até a Idade Média, considerada
para o mundo ocidental o apogeu da era agrícola. Ao longo desse período, a evolução do processo
civilizatório aconteceu lentamente e assumiu formas diferenciadas conforme os povos do mundo
viviam suas experiências. Em momentos distintos, em lugares diferentes do planeta, sociedades
diversas desenvolveram-se e construíram civilizações culturalmente sofisticadas. Incas, maias,
astecas, egípcios, árabes e os povos orientais acumularam muito conhecimento e criaram sistemas
sociais complexos e hierarquizados, com graus variados de institucionalização das suas estruturas
sociais e de poder.
Para fins de aplicação do conceito de sistema social e seus subsistemas (econômico, político
e cultural), a estrutura básica de todas essas sociedades mostrou-se invariável. Todas tinham na
agricultura e no método artesanal de produção seu subsistema econômico. Suas bases sociais e cul-
turais apresentavam similaridades em sua organização e sistemas de crenças e valores (subsistema
cultural). A vida isolada no campo e o misticismo religioso como base dos valores morais formado-
res da vida social eram presentes em todas elas. O poder exercido por líderes que eram ao mesmo
tempo chefes militares e religiosos caracterizava também seus subsistemas políticos.
No entanto, foi no berço das civilizações grega e romana que se constituíram as experiências
civilizatórias por meio das quais nasceu e floresceu a sociedade ocidental. Foi nessa sociedade –
mais precisamente na Europa, onde se difundiu o modelo hegemônico de sociedade no mundo
moderno – que se desenvolveram processos específicos que possibilitaram o surgimento do sis-
tema de produção de riquezas baseado no modelo fabril que constituiria a civilização industrial.
Para fins de aplicação do conceito de sistema social e seus subsistemas (econômico, político
e cultural), a estrutura básica de todas essas sociedades mostrou-se invariável. Todas tinham na
agricultura e no método artesanal de produção seu subsistema econômico. Suas bases sociais e cul-
turais apresentavam similaridades em sua organização e sistemas de crenças e valores (subsistema
cultural). A vida isolada no campo e o misticismo religioso como base dos valores morais formado-
res da vida social eram presentes em todas elas. O poder exercido por líderes que eram ao mesmo
tempo chefes militares e religiosos caracterizava também seus subsistemas políticos.
A civilização grega, o Império Romano e o cristianismo – que se difundiu no mundo ociden-
tal com as conquistas romanas dos territórios – plantaram as sementes do sistema social vigente até
hoje em todo o mundo ocidental. A noção de democracia – sociedade hierarquizada, organizada
e governada por instituições verticais de poder, mediada por regras escritas, valores morais e base
da separação entre a religião e o poder de Estado – nasceu e se desenvolveu a partir do período
clássico da história da Grécia Antiga, atravessou mil anos de dominação romana sobre o mundo
e atingiu seu apogeu no final da Idade Média, às vésperas da formação dos Estados absolutistas.
26 Sociedade e Contemporaneidade
na esteira do renascimento das cidades, impulsionadas pela revolução comercial nos séculos que
marcaram o nascimento do capitalismo. Essa maneira de processar decisões coletivas por meio da
persuasão pela retórica e pelo voto da maioria, inventada pelos gregos, é chamada de democracia
direta, a qual estabelece relações de igualdade entre os cidadãos.
Essa ideia de igualdade, com ideia de democracia, também norteou os princípios funda-
dores do Estado moderno. Os princípios filosóficos implícitos às ideias de deliberação coletiva
apoiada no voto da maioria e de igualdade entre os membros da sociedade com direito de decidir,
no caso dos gregos, devem ser entendidos em sua dimensão histórica e evolutiva comparada ao
padrão de desenvolvimento social humano da época. De fato, se comparada à compreensão dos
conceitos de democracia e de igualdade entre os membros da sociedade hoje em dia, não se pode
considerar a sociedade grega igualitária e democrática. Apenas os homens tinham direito de voto
nas assembleias populares, ou seja, jovens, mulheres e escravos não votavam. Para os gregos, o
homem tem natureza divina, porém nos escravos, que, em geral, eram adversários derrotados em
guerras, o divino estava ausente.
A ideia de liberdade que vigorava entre os gregos – tão cara à sociedade ocidental moderna e
aos princípios das revoluções libertárias que varreram a Europa na esteira da Revolução Industrial
– também precisa ser compreendida no contexto específico da época. A vida na pólis grega, como
organização capaz de defender seus cidadãos na guerra – logo, de impedir sua escravização pelos
vencedores – era a garantia de sua liberdade. Portanto, para o cidadão grego, participar do processo
de deliberação coletiva de sua pólis, isto é, fazer política, era uma imposição, uma necessidade, uma
obrigação, não uma livre opção, como é atualmente. A ideia de liberdade (usada pelos gregos, mas
em outro contexto e com outro significado) também ressurgiu como combustível das transformações
políticas que as revoluções comercial e industrial provocaram na Europa após o fim da Idade Média.
Para uma análise do processo de evolução civilizatória da humanidade, o que interessa é a
realidade de direito e não a realidade de fato. Os gregos, diferentemente dos povos bárbaros, de-
cidiram que os conflitos internos à comunidade seriam equacionados pelo voto da maioria, e não
pelo uso da força. Essa ideia, como princípio, é que inspirou as formas democráticas de poder que
a humanidade desenvolveu, notadamente, após as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII.
Dando um passo adiante na história, é possível verificar que os romanos trouxeram novas
contribuições ao processo civilizatório que também serviram de base para a constituição do siste-
ma político da sociedade industrial moderna, nas dimensões social e política.
perante a república romana. Nasce então a ideia de res publica, entendida como esfera de atuação
política dos indivíduos, separada da esfera de seus interesses privados, que também inspirou a
constituição do subsistema político da sociedade industrial (CHÂTELET, 1994, p. 25).
Dessa forma, surgiu na sociedade romana o mecanismo de representação política a terceiros,
isto é, de delegação de poder pelos cidadãos (os senadores), para que legislassem e representassem
suas demandas no governo. As eleições romanas, guardadas certas imposições das circunstâncias
históricas, não eram muito diferentes das eleições de hoje em dia.
A expansão do Império Romano propiciou a difusão dos valores culturais e do modelo de
organização institucional da República Romana pelo Ocidente. O legado do modelo republicano
nascido em Roma inspirou em boa parte o padrão de organização institucional e do Estado no
mundo moderno que emergiu na Europa a partir do século XVII.
3.3 O cristianismo
Na sociedade romana, as funções e a autoridade do imperador eram, simultaneamente, tem-
porais (administração, política e guerra) e espirituais. Isto é, não havia separação entre política e
religião, característica essa que marcou as sociedades humanas durante todo o período de duração
do sistema social assentado na agricultura. Foi o cristianismo que legou à sociedade ocidental a
ideia de separação entre a autoridade temporal (potestas) e a autoridade sobre assuntos morais e
religiosos (auctoritas), na medida em que a ascensão política da Igreja correspondeu à decadência
do Império Romano e ao surgimento da instituição religiosa com atribuições separadas das fun-
ções de governo (CHÂTELET, 1994).
Curiosamente, o islamismo, cuja raiz é a mesma do cristianismo (o Velho Testamento), não
provocou esse fenômeno da separação entre Estado e Igreja no Oriente, pois no mundo muçul-
mano não existe uma religião institucionalizada e hierarquizada como a Igreja católica. A Jihad
Islâmica, guerra santa pela conversão dos pagãos à fé em Alá no mundo muçulmano, é função atri-
buída aos governantes. Por essa razão, a cultura política dos países de tradição islâmica resiste até
os dias de hoje à adoção do modelo político/institucional de democracia predominante no mundo
ocidental judaico/cristão (CHÂTELET, 1994, p. 30-31). Os ideais da liberdade, da igualdade e da
deliberação coletiva do destino da comunidade com base na vontade da maioria são legados da
civilização ocidental antiga às civilizações industrial e pós-industrial posteriores.
Durante o feudalismo a Igreja afirmou a separação entre o princípio de autoridade corres-
pondente às funções do papa e o princípio de autoridade correspondente às funções do impe-
rador e dos reis e deteve o poder político de fato, compartilhando-o com a aristocracia feudal e,
por vezes, sobrepondo seu poder ao poder do Estado.
Com o tempo, o legado teórico desse princípio de separação da autoridade do papa e do
imperador alimentou o processo de separação definitiva entre a Igreja e o Estado nos séculos XVII
e XVIII e consolidou o modelo de organização política e institucional da sociedade industrial oci-
dental (subsistema político) até os dias de hoje.
A sociedade agrícola 29
sem barreiras, começaram a reconfigurar o sistema social da época e criaram as bases da matriz
produtiva da sociedade industrial emergente. Um território, um rei, uma lei, um exército, uma
moeda, um único e padronizado sistema de medida para cumprimento e peso e um único e gran-
de mercado nacional. Os Estados-nações, dessa forma, converteram-se em espécie de incubado-
ras das empresas que impulsionaram o florescimento do capitalismo industrial, inicialmente na
Inglaterra e na França e, em seguida, no resto do mundo.
Atividades
1. Por que a configuração estrutural subjacente a todas as civilizações existentes na era
agrícola não se alterou ao longo do tempo, apesar de terem se formado civilizações so-
fisticadas culturalmente?
2. Quais foram os quatros princípios filosóficos que a civilização ocidental moderna herdou
das civilizações grega, romana e do cristianismo que servem até hoje como base do sistema
de valores que norteiam a organização sociopolítica dos países ocidentais?
3. Por que o sistema feudal passou a ser um empecilho à expansão do capitalismo após as re-
voluções comercial e industrial?
4
A sociedade industrial
A civilização agrícola, como se pode ver, enquadra-se no modelo teórico de Toffler ao cons-
tituir, por meio da unidade produtiva básica desse tipo de sociedade – a propriedade rural familiar
tradicional –, os seus correspondentes subsistemas, social, cultural e político.
Se a base da matriz sistêmica da civilização agrícola era o método artesanal de trabalho e
a propriedade rural familiar como unidade produtiva, seu equivalente na sociedade industrial é
a fábrica, no interior da qual se opera um sistema de produção que combina o uso intensivo de
equipamentos mecânicos com o método de gestão da produção baseado no trabalho especializado
na linha de montagem.
Com essa nova tecnologia – máquinas e o novo método de gestão –, toda a lógica do sistema
de produção de riquezas muda. Se o artesão era generalista, o operário é especialista. Se a produção
artesanal gerava produtos personalizados em pequena escala, a produção industrial gera grandes
quantidades de produtos padronizados. Se a vida e o trabalho na sociedade agrícola eram dispersos
no território, a sociedade industrial concentra trabalhadores em fábricas e cidades. Se o trabalho ar-
tesanal permitia ao trabalhador administrar com relativa flexibilidade seu tempo, o trabalho indus-
trial submete o trabalhador à ditadura do relógio – despertador, de pulso, de controle de ponto –,
pois a padronização e a sincronização das tarefas na linha de montagem são essenciais à eficiência
do método. Se o trabalhador artesanal era seu próprio chefe, o trabalhador industrial é apenas uma
peça em uma estrutura piramidal, que tem em seu topo uma elite cuja especialidade é pensar pelos
outros integrantes da estrutura e mandar fazer (TOFFLER, 2001).
encarregados de administrar a alocação dos recursos públicos e processar as decisões que o co-
mando do sistema gera para sua base. Nessa máquina, o governo central encabeça uma autêntica
“máquina integracional” (TOFFLER, 2001). Aos poucos, a corporação dos integradores ganha vida
própria. Com corpo escorregadio e mãos invisíveis, a hidra burocrática estende seus tentáculos e
começa a crescer e se multiplicar, fazendo-se parte estratégica na hierarquia intermediária de quais-
quer organizações modernas, sejam elas privadas ou públicas, sejam elas capitalistas ou socialistas.
Com as organizações se tornando cada vez mais complexas, novas ferramentas de controle e
gestão se tornavam necessárias e novos e sofisticados sistemas contábeis, de controles orçamentá-
rios e técnicas de gerenciamento de pessoas e da produção, aperfeiçoaram o poder de expansão do
sistema. As “elites integradoras”, na economia e na política, lutavam por sua expansão, buscando
dominar mais territórios para controlar mais riquezas e obter mais poder (TOFFLER, 2001).
A integração política das nações europeias foi uma imposição determinada pela lógica da
integração econômica. As revoluções comercial e industrial aumentaram a produtividade do tra-
balho e o volume de mercadorias em circulação. Era preciso mais mercados para tantos produtos.
Surgiu a interdependência econômica por meio da integração dos mercados nacionais em um
sistema mundial de importação de matérias-primas e exportação de manufaturados.
A serviço da expansão do sistema, desenvolveram-se os meios de comunicação e de trans-
portes. Na era agrícola, a maioria dos indivíduos, inclusive os da elite, nascia, crescia e morria sem
ir muito longe do território onde nascera. O industrialismo ampliou os horizontes físicos, a men-
talidade e a visão de mundo de uma parcela significativa da humanidade.
A expansão dos meios de comunicação e de transporte transcontinentais representou a
consolidação dos mercados nacionais como atores econômicos e políticos do mercado mundial,
consolidando o Estado-nação como uma estrutura-chave da civilização industrial. No entanto, as
tentativas de expansão dos mercados e da autoridade política dos governos encontrava obstáculos
nas fronteiras dos Estados nacionais. O surgimento de um sistema monetário foi o passo seguinte
na integração da matriz da sociedade industrial em escala mundial (TOFFLER, 2001).
O princípio da especialização galgou às relações entre as nações. Com a consolidação do
mercado em âmbito mundial, as nações assumiram suas funções na cadeia produtiva, tal como
a especialização do trabalho na linha de montagem – produtores, intermediadores, fornecedores,
compradores e assim por diante. Da mesma forma que a linha de montagem gerou a necessidade
de seus administradores, a divisão internacional do trabalho criou a irreversível necessidade de for-
mação das estruturas de gestão do mercado mundial, com sua correspondente “elite integradora”,
concentrada nas poucas nações que assumiram a frente da Revolução Industrial e hegemonizaram
as relações comerciais do sistema de trocas desiguais que se formou entre colonizadores e coloniza-
dos (TOFFLER, 2001).
O fluxo das riquezas do sistema corria do hemisfério Sul para o Norte ou das nações da
primeira onda em direção às nações da segunda onda (TOFFLER, 2001, p. 98). Em busca de maté-
rias-primas, mão de obra e mercados, os estados do Norte lançaram-se em um corrida desenfreada
pela ocupação territorial do planeta, estendendo os tentáculos do industrialismo por todo o mundo.
A sociedade industrial 35
Às portas do século XX, sem mais territórios a conquistar, os estados europeus da ponta da onda
industrial patrocinaram duas guerras mundiais pela liderança econômica e política do sistema.
Exaurida pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918), uma parte da sociedade industrial
ensaiou uma mudança de modelo sem mudar o paradigma. Surgiu o socialismo, que buscava levar
a matriz fabril ao extremo do tecido social. A ideia-força subjacente à ideologia socialista era trans-
formar a sociedade em uma enorme pirâmide fabril, centralizada e planejada com base na cúpula
do Estado e pela elite burocrática do partido único, a quem caberia intermediar a distribuição das
riquezas produzidas pelo sistema, transformando os indivíduos em um enorme exército de iguais.
Em 1917, pela primeira vez, os seguidores das ideias de Marx chegavam ao poder na Rússia.
A economia russa levou ao extremo a ideologia fabril. Planificada e sob comando centraliza-
do pelo Estado, a Rússia industrializou-se a passos acelerados e expandiu como em nenhuma outra
sociedade sua corporação de burocratas. A nova potência industrial, com seu Exército Vermelho,
avançou sobre o leste da Europa e expulsou Adolf Hitler (1889-1945) das nações conquistadas pela
Alemanha na primeira fase da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Na primeira metade do século XX, a Europa havia destruído duas vezes seu parque indus-
trial e suas cidades com as disputas das potências do século XIX pela liderança do “sistema-mundo”.
Emergiram do pós-guerra duas novas potências hegemônicas: EUA e URSS, as novas locomotivas
do sistema, os novos reorganizadores da economia mundial. Não obstante as diferenças ideológicas
entre os subsistemas econômico e político das duas novas potências, ambas se jogaram em uma cor-
rida desenfreada pela integração das regiões do planeta sob seu controle. Na fatia controlada pelos
EUA, surgiram o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o General Agreement on
Tariffs and Trade (GATT) como instrumentos de integração econômica e, ao mesmo tempo, de do-
minação política. Do outro lado do mundo, por meio do Conselho de Mútua Assistência Econômica
(Comecom), a URSS criou sua rede integradora (TOFFLER, 2001).
Sob o olhar dos paradigmas teóricos das ciências sociais da era industrial, os EUA e a URSS
eram inimigos mortais. Vistos pelo ângulo do paradigma teórico pós-industrial de Toffler, a com-
petição entre eles era uma “briga de irmãos”, unidos pelos laços familiares de um sistema monetá-
rio e de comércio internacional e pela identidade genética da matriz industrial de um sistema que
funcionava como dois pratos de uma balança.
O autor não ignora as diferenças entre esses modelos, mas chama a atenção para o fato de
que para entender como acontecem as mudanças estruturais que abalam civilizações, deve-se mu-
dar o foco e direcioná-lo para a matriz paradigmática ou “planta oculta” única sobre a qual ambos
se levantaram. Para ele, existe um padrão “transideológico” e transnacional por trás desse processo,
cuja matriz é o modelo mecânico/industrial da segunda onda.
Os diversos subsistemas políticos das sociedades da civilização industrial têm origens na
lógica da representação por base geográfica herdada da era agrícola, que vinculava o indivíduo ao
território, ao local de moradia. No entanto, aos poucos o modelo de representação por base geo-
gráfica passou a incorporar a “ideologia da máquina” (TOFFLER, 2001). Parlamentos, governos e
tribunais passaram a funcionar como fábricas de leis e decisões.
Aos poucos, a expansão do sistema dá origem a uma cadeia produtiva de normas e decisões
em escala mundial. As instituições políticas do Estado-nação, como canalizadoras e processadoras
das decisões coletivas da sociedade fabril, tanto sob o capitalismo como sob o socialismo, contro-
ladas por corporações burocráticas permanentes e estáveis, os funcionários do Estado, presidentes,
governadores, prefeitos, deputados, juízes, diplomatas, militares e funcionários de carreira admi-
nistram quaisquer relações que envolvam conflitos de poder e interesse na esfera pública. Seja para
efeito do jogo do político travado dentro das fronteiras nacionais, seja no tabuleiro das relações
internacionais, o Estado se converte na estrutura-chave do poder da civilização industrial.
novo perfil. Um sistema que, dependente de tecnologias sofisticadas, demanda de seus operadores
conhecimento, criatividade e inteligência. Quem pensa precisa fazer e saber como se faz. Quem faz
precisa saber e criar para descobrir o novo, antes que o competidor o faça. Na sociedade das redes,
a comunicação em tempo real suprime o tempo e o transporte veloz comprime o espaço. Nas veias
de um sistema supercomplexo, circula de um lado para outro do planeta, em alta velocidade, um
volume de informações e riquezas tangíveis e intangíveis. O paradigma das redes rompe com os
padrões “fisiológicos” da matriz industrial e requer organizações flexíveis, processos e fluxos assín-
cronos, aleatórios, descentralizados e conexões multidimensionais entre nodos autônomos. Nasce
o “código genético” da nova civilização pós-industrial, cujos cromossomos penetram como água
em terreno irregular, nas rachaduras do solo árido do sistema industrial em erosão.
Atividades
1. Descreva, com suas palavras, a influência das descobertas tecnológicas na transformação da
matriz sistêmica das sociedades.
3. Como se explica a falência das instituições políticas da civilização industrial por meio do
enfoque teórico de Toffler?
5
A história da globalização
pelo ingresso de metais preciosos no país – era o eixo estratégico das políticas econômicas estatais.
Para isso, os governos estimulavam as exportações e criavam barreiras alfandegárias para dificultar
as importações.
As relações desiguais do comércio com as colônias, por meio das quais as metrópoles bus-
cavam controlar regiões ricas em metais preciosos ou produtos tropicais que pudessem ser comer-
cializados no mercado europeu, eram fundamentais para as estratégias econômicas mercantilistas.
Nascido no sistema corporativo das cidades medievais, o mercantilismo entrou em crise
com a decadência dos Estados absolutistas a partir do século XVII. O surgimento e a expansão do
capitalismo industrial e da visão liberal sobre a economia, a sociedade, a moral e a política impul-
sionaram a crise da doutrina mercantilista a partir do século XVIII.
O mercantilismo marcou a transição do modo de produção feudal para o industrial e deixou
para trás a civilização agrícola no mundo ocidental. A partir de então, a produção artesanal e vol-
tada para o consumo em pequena escala no âmbito local começou a desaparecer. O mercantilismo,
portanto, deu o primeiro impulso para a economia capitalista, inicialmente comercial, monetária,
dinâmica, urbana e voltada para o lucro.
Assim, a revolução comercial foi a primeira etapa de constituição do sistema capitalista.
Sob o capitalismo comercial, as atividades produtivas se orientaram para o mercado e o comércio
se tornou o propulsor do progresso econômico. As transformações dessa fase estimularam, prin-
cipalmente, a formação de um sistema de circulação de riquezas que alavancou o escoamento da
produção industrial em larga escala, no período subsequente.
Com o declínio do poderio naval holandês no fim do século XVIII, a Inglaterra consolidou
sua hegemonia sobre os oceanos, tornando-se a “rainha dos mares”. Os ingleses conquistaram o
domínio sobre o comércio mundial e formaram um imenso império colonial fornecedor de maté-
rias-primas e minérios e, ao mesmo tempo, consumidor de produtos manufaturados.
Marx chamava a acumulação de riquezas ocorrida na Europa mercantilista de primitiva.
Assim o fazia, pois em seu ponto de vista essa acumulação não havia sido gerada por um sistema
de produção, e sim pelo saque e pela expropriação do Novo Mundo.
Contudo, a expansão dos mercados ocorrida ao longo desse período ocasionou o processo
de consolidação do capitalismo e criou as condições para o financiamento da Revolução Industrial,
a partir do século XVIII. Somente com o surgimento do modo industrial como sistema de produ-
ção de riquezas é que ocorreu a ruptura definitiva desse, à época, novo paradigma tecnológico, com
a matriz sistêmica de produção de riquezas da civilização agrícola.
Atividades
1. Conforme o conteúdo visto neste capítulo, existem autores que veem nas transformações
da sociedade atual uma continuidade (e não uma ruptura) do que acontecia na economia
mundial no momento histórico anterior. Pesquise na bibliografia sobre história econômi-
46 Sociedade e Contemporaneidade
ca (ver as Referências e outras fontes) pontos de vista diferentes daqueles aqui expostos e
forme a sua opinião.
3. Explique a relação entre a expansão do comércio e a formação dos Estados nacionais, por
meio da revolução comercial.
6
A ordem internacional pós-Segunda Guerra
1 Expressão criada em 1946 pelo primeiro-ministro inglês Winston Churchill (1874-1965) para caracterizar a fronteira
entre os países vinculados à União Soviética e os do Ocidente Europeu.
A ordem internacional pós-Segunda Guerra 49
EUA e URSS atemorizou o mundo e impôs uma dinâmica de intensas negociações diplomáticas
em busca do desarmamento, marcadas em geral por impasses e lentos avanços.
Em 1981, com o apoio da Igreja católica, surgiu na Polônia o Sindicato Solidariedade, o pri-
meiro movimento de massas em oposição à ditadura comunista comandada em Moscou. A partir
desse momento, a crise do socialismo real se expandiu rapidamente. Em 1987, a obsolescência do
modelo comunista de gestão estatal centralizada da economia tornou-se visível e o mundo consta-
tou que os acontecimentos da Polônia eram apenas a ponta de um iceberg. A URSS já vivia a crise de
esgotamento do seu sistema hiperburocrático. Mikhail Gorbachev (1931-), então secretário-geral do
Partido Comunista Soviético (PCURSS), para tentar conter a desagregação, promoveu políticas de
abertura democrática e de liberalização da economia. No entanto, era tarde demais: em 1989, caiu o
Muro de Berlim e, em dezembro de 1991, o império comunista se desestruturou.
A queda do Muro de Berlim, a desintegração da União Soviética e o consequente desmem-
bramento em vários Estados nacionais, a formação de megablocos econômicos regionais (União
Europeia, Nafta e Mercosul) e o crescimento econômico dos tigres asiáticos (Coreia do Sul, Taiwan,
Hong Kong e Cingapura) indicavam que essa crise não era comum, pois acontecimentos políticos e
econômicos dessa grandeza não ocorrem sempre. Nesse momento, estava se rompendo o paradigma
sistêmico da sociedade industrial, antecipando-se em mais de uma década o fim do século XX.
A configuração geopolítica do sistema bipolar – em torno do qual se estruturavam as re-
lações internacionais no período imediatamente posterior à queda do Muro de Berlim – mudou
totalmente. Com a falência do socialismo real e do paradigma marxista da revolução comunista,
a economia de livre mercado e a democracia liberal se consolidaram como referências solitárias
no espectro ideológico do sistema político na transição da matriz industrial para a pós-industrial.
Assim, os Estados Unidos emergiram como a única megapotência do novo momento histórico.
Entretanto, ao contrário do que muitos pensavam, a crise não era só do modelo socia-
lista. A ruptura sistêmica do paradigma industrial repercutiu também nos países capitalistas.
As grandes corporações empresariais (Ford, General Motors, IBM, Exxon Mobil, Texaco etc.),
que dominavam o mercado após a Segunda Guerra, começaram a sentir o impacto da emergên-
cia de novos competidores na disputa pelo comércio mundial. Em um primeiro momento, em-
presas da Europa, do Japão e da Coreia entraram na disputa por esse mercado. Em um segundo
momento, produtos fabricados na China, na Índia e no Brasil invadiram o mercado norte-ame-
ricano, conquistaram a preferência dos consumidores e impuseram às empresas dos EUA um
esforço de reestruturação e de adaptação a esse novo tipo de competição.
Sem o contrapeso socialista, os EUA ensaiaram tentativas de dominação sobre a economia
e a política mundiais. Contudo, enfrentaram a competição da Europa unificada em busca da lide-
rança perdida com as duas guerras mundiais e a articulação das potências médias emergentes, que
buscam por meio de negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) alterar as regras
do comércio mundial em seu benefício. Dessa forma, Brasil, Rússia, China e Índia articulam-se
para enfrentar os países-líderes nas disputas pelo poder, nas arenas política e econômica das rela-
ções globalizadas do século XXI.
50 Sociedade e Contemporaneidade
“nós pobres” reconfiguram a economia mundial, conectam indivíduos, empresas, setores econômi-
cos e países conforme seu grau de integração ao novo paradigma sistêmico.
Nos países ricos surgem bolsões de pobreza, enquanto nos países pobres surgem bolsões de
riqueza. Os capitais fluem rapidamente de um lado para outro e circulam com maior intensidade
no entorno dos nós onde mais tecnologia e conhecimento são acumulados. Os “desplugados” vão
ficando para trás, talvez irreversivelmente fora do sistema.
Nos EUA, os bolsões de pobreza e marginalidade são compostos principalmente por ne-
gros e imigrantes latino-americanos, na União Europeia, por imigrantes das ex-colônias africanas
e asiáticas das antigas potências (Reino Unido, França e Alemanha). Mas em todos os continentes,
integrantes da velha elite branca, judaica ou cristã – cujos valores dominam a sociedade mundial –
também podem ser encontrados em situação de penúria. Nos países ricos, a população começa a se
acostumar com a presença de mendigos nas ruas e de desabrigados protegendo-se sob marquises
e caixas de papelão. As estatísticas do governo norte-americano revelam que em 1993, em Nova
York, aproximadamente de 23 mil homens e mulheres dormiam nas ruas ou em abrigos públicos;
na Inglaterra, em 1989, aproximadamente 400 mil pessoas foram oficialmente classificadas como
“sem-teto” (HOBSBAWM, 1995).
Todos esses fatos compõem a questão da justiça social que, não resolvida no século XX,
prossegue exigindo respostas dos donos do poder.
Quantas pessoas vão nascer? Quantas pessoas vão morrer? A produção de alimentos será
suficiente? Há suficiência de matérias-primas? E se o clima produzir uma catástrofe na produção
agrícola? E os serviços públicos?
Como isolar a economia socialista das “más” influências dos mercados capitalistas vizinhos,
dos quais os países socialistas precisavam importar produtos que não conseguiam produzir? Como
evitar que as informações do outro lado da Cortina de Ferro chegassem aos ouvidos e olhos do
povo? Como impedir que pessoas trabalhadoras, inteligentes e talentosas se sentissem injustiçadas
ao serem igualadas com vagabundos e desprovidos de talento e inteligência? Como impedir que
insatisfeitos vejam, pensem e critiquem o que não gostam nesse sistema totalitário?
Ao contrário do que previa a teoria de Marx, que dizia que o Partido Comunista distribui-
ria a riqueza de maneira equânime ao povo, as riquezas apropriadas pelo Estado sob o sistema
socialista eram distribuídas de modo desigual. Os burocratas do partido (distribuidores privile-
giados) valiam-se de suas posições estratégicas na pirâmide burocrática do Estado e usufruíam
vantagens inacessíveis ao povo. As indústrias bélica e aeroespacial – únicos setores da economia
soviética submetidos à competição devido à corrida armamentista com os EUA – consumiam a
riqueza da economia socialista na pesquisa e desenvolvimento de artefatos militares de destruição
em massa. No setor produtivo das indústrias destinadas a fabricar bens de consumo para suprir
as necessidades do povo, as tecnologias e os métodos de gestão ficaram estacionados na primeira
metade do século XX.
O regime político socialista proibia a competição pelo poder, impedia a livre circulação de
ideias e informações, punia a crítica e a contestação, concentrava o poder no topo da pirâmide buro-
crática do Estado soviético – fundido às estruturas do Partido Comunista – e emaranhava o proces-
samento das suas decisões num labirinto de escaninhos que tornavam o sistema lento e ineficiente.
Ancorado no paradigma industrial, o socialismo, como sistema econômico e regime políti-
co, funcionava com uma máquina burra da era da mecânica, sem um “software” capaz de absorver
informações do ambiente e convertê-las em reestímulo, adaptação e melhoria dos seus próprios
índices de produtividade e eficiência.
Os socialistas atribuíam a pobreza do mundo capitalista à existência da propriedade privada
dos meios de produção. Para construir o paraíso comunista da igualdade total e impossível, Marx
dizia que os trabalhadores deveriam ser donos das fábricas por meio do Estado e de organizações
coletivas. Na prática, a lógica da propriedade estatal entrou em contradição com a evolução tecno-
lógica e a dinâmica do mercado atropelou o socialismo que não conseguiu romper com o passado
e nem mesmo melhorar a vida dos trabalhadores sob o paradigma industrial (TOFFLER, 1990).
A falência do sistema se tornou inevitável quando a reverberação da onda de mudanças que
rompeu com o paradigma industrial no Ocidente ultrapassou as fronteiras físicas da Cortina de
Ferro e entrou em choque com as estruturas obsoletas do industrialismo socialista.
A ordem internacional pós-Segunda Guerra 53
2 Formalmente, Toffler (2001) considera o ano de 1955 o início da era pós-industrial, ou terceira onda, conforme sua
terminologia, utilizando como indicador a estatística socioeconômica oficial que indicou, pela primeira vez, a superação
do número de trabalhadores vinculados ao setor de serviços em detrimento dos trabalhadores operários de ”chão de
fábrica”. No entanto, para efeito prático, foi na transição das décadas de 1970 para 1980 que as telecomunicações, os
computadores e o transporte comercial a jato adquiram escala capaz de provocar essa transformação qualitativa no
sistema econômico mundial.
54 Sociedade e Contemporaneidade
Atividades
1. Com base no que você estudou neste capítulo, pesquise sobre capitalismo, socialismo, co-
munismo e Guerra Fria, com o objetivo de enriquecer seu conhecimento sobre os temas
aqui abordados.
2. Faça fichas com textos sintéticos que contenham explicações teóricas e informações históri-
cas sobre esses tópicos.
3. Estabeleça contato com colegas de seu curso e compare as informações encontradas, buscando
novidades que você eventualmente não tenha encontrado em suas pesquisas.
7
A sociedade pós-industrial
1 Para os autores que defendem esse ponto de vista, a Primeira Revolução Industrial teria ocorrido entre 1760 e 1860,
caracterizada pela utilização do carvão como combustível, do ferro como matéria-prima, do vapor sob pressão como
fonte energética e pela produção de bens de consumo. A Segunda Revolução Industrial teria ocorrido entre 1860 e 1945,
caracterizada pela utilização do petróleo como combustível, do aço como matéria-prima, da eletricidade como fonte de
energia e a massificação da produção de bens de consumo.
56 Sociedade e Contemporaneidade
e nas trocas econômicas e de poder entre pessoas e organizações que interagem no sistema social
mediado pelas mensagens audiovisuais em circulação.
Os teóricos que permanecem presos ao paradigma do industrialismo constroem seus mode-
los atrelados a um campo conceitual que despreza o impacto dessas mudanças e da supressão da re-
lação tempo-espaço nas conexões entre os nodos da rede – que, em última análise, são indivíduos.
Sem compreender o que acontece com a substituição da matriz mecânico-fabril pela matriz das
redes digitais, não se percebem processos como a desmassificação da produção e do tecido social,
a desmaterialização da riqueza e a nova lógica do jogo do poder, entre outros.
A inserção de indivíduos, empresas, setores econômicos ou regiões do mundo nesse sistema
social revolucionário não se torna inteligível para quem tenta analisá-lo com os conceitos supera-
dos das ciências sociais, que manufaturaram suas teorias na esteira mecânica da civilização indus-
trial. Para entender a lógica da civilização das redes digitais, é preciso estar conectado a essas redes
e saber como se navega no oceano virtual, no espaço intangível existente entre os nodos da teia.
As informações são a matéria-prima básica das mercadorias simbólicas do novo capitalismo.
O novo capital é gerado com base nas unidades de informação que circulam no sistema, e são cap-
turadas e transformadas pelos criadores da nova riqueza, os quais selecionam, agrupam, classificam,
codificam, interpretam e organizam sob a forma de mercadorias simbólicas reintroduzidas na rede.
Fora da rede, um produto “não existe”, seu valor é tendente a zero para os consumidores conec-
tados à rede, os quais concentram o maior poder aquisitivo em qualquer lugar do mundo. Além
disso, dado o acesso desses consumidores aos instrumentos de produção (computadores, softwares,
smartphones, sistemas de captura e edição de sons e imagens etc.) dessa nova forma de capital, os
indivíduos conectados podem ser simultaneamente produtores e consumidores de bens simbólicos.
O velho sistema ainda existe e funciona paralelamente ao novo. Há quem ainda obtenha
algum lucro ao converter produtos em mercadorias tradicionais para vender às pessoas que não
estão conectadas à rede. Mas o mesmo produto, transformado em mercadoria simbólica – subme-
tido a um tratamento de publicidade e marketing que lhe confere marca e imagem –, ao ser posto
em circulação na rede, terá seu valor multiplicado, agregando mais valor.
Imaginar que um sistema social com essas características é mera continuidade sem ruptura
com seu predecessor pode ser um equívoco. Interpretar o mundo instável de hoje com o olhar de
ontem também. Uma das características do novo sistema é a mutação acelerada e constante, no
entanto, isso não impede que se percebam os sinais, o sentido e o rumo das mudanças.
competidores, pode mais quem corre mais. As mercadorias lançadas à rede tornam-se obsoletas
rapidamente. Os agentes de mercado, imediatamente, lançam-se em uma corrida desenfreada para
desenvolver um produto melhor a preço melhor.
Assim, a corrida pelo conhecimento gera mais e mais conhecimento, e mais riqueza. E quem
produz conhecimento são seres humanos estimulados por desafios. Com o apoio de tecnologias
que permitem ampliar os limites do poder criador do cérebro humano, com incentivos adequados,
mentes criativas trabalham em equipes inteligentes potencializam em escala exponencial o proces-
so de criação de novos conhecimentos e de mais riqueza. O novo sistema, portanto, depende de
tecnologia e de seres humanos inteligentes. Quanto mais seres humanos inteligentes integram essa
sociedade, mais rica e próspera ela é.
O que isso significa? Significa que estamos criando novas redes de conhecimen-
to [...] ligando os conceitos uns com os outros de maneira impressionante [...]
armando notáveis hierarquias de inferência [...] desovando novas teorias, hipó-
teses e imagens baseadas em inusitados pressupostos, novas linguagens, códigos
e lógica. (TOFFLER, 1990, p. 108)
Na atualidade, a maioria dos seres humanos sabe decodificar combinações de letras e/ou
algarismos e formar palavras e/ou números. Fazer contas, saber ler e escrever, em um passado não
muito distante, era privilégio de poucos. Na sociedade medieval, por exemplo, mesmo integrantes
da elite aristocrática por vezes precisavam de quem os auxiliasse nessas atividades, hoje acessíveis
a grandes parcelas da população mundial uma ferramenta indispensável.
Na década de 1960, o número de pessoas que tinham acesso a computadores e sabiam usá-
-los talvez equivalesse proporcionalmente aos poucos alfabetizados da Idade Média. Hoje o com-
putador conectado à uma rede está presente em quase todos os locais de trabalho e se tornou uma
ferramenta indispensável.
O progresso social e a acumulação de riquezas, assim como o acesso à riqueza, também é
resultado de um longo processo de democratização do acesso ao conhecimento. Grande parte da
capacidade criativa dos seres humanos de hoje não surgiu por geração espontânea e nem da estaca
zero: vem do conhecimento acumulado oriundo de diversas civilizações e culturas, os quais servem
de alicerce e combustível para o progresso da civilização contemporânea.
Desse modo, podemos dizer que todos os sistemas econômicos se apoiam em uma base de
conhecimento acumulado e que sociedades e empresas dependem deste para produzir riqueza.
Hoje, com a dependência da economia supersimbólica em relação à tecnologia e ao conhecimento,
esse insumo tornou-se o mais importante de todos.
obstinada e a capacidade organizacional dos colaboradores, e seu poder de inovar nas estratégias
de publicidade e marketing.
Aliás, o investimento em marketing e publicidade tornou-se central no novo sistema de pro-
dução de riqueza, pois o valor da mercadoria depende mais da imagem do produto e da marca pos-
tos em circulação na rede de trocas simbólicas que do custo material nele embutido. Isto é, o novo
consumidor compra antes os atributos de imagem que a publicidade agrega aos produtos (status,
prestígio, poder, sex appeal) que os produtos em si.
O próprio dinheiro de papel está sendo gradativamente substituído por um complexo sis-
tema de pagamentos eletrônicos que interconecta compradores, intermediadores e vendedores
sem que sequer um centavo precise ser sacado do bolso do consumidor para adquirir qualquer
mercadoria. Ao fazer operações bancárias pela internet ou com cartões magnéticos em terminais
conectados aos computadores dos bancos, são transferidos pulsos eletrônicos instantâneos. Isto
é, transferem-se dados, convertidos em informações e símbolos (TOFFLER, 1990). Informações
transformadas são a base do conhecimento. Assim, os símbolos (ícones e imagens lançados à cir-
culação na rede) agregam e se convertem em valor. Essa é a novidade da economia revolucionária
da sociedade das redes. Uma economia supersimbólica2.
2 Sobre esse aspecto, indicamos a leitura da obra Powershift: as mudanças de poder, de Toffler (1990).
A sociedade pós-industrial 61
Atividades
No questionário a seguir, há 13 perguntas que permitem avaliar seu espírito empreendedor.
Dadas as características da nova economia, o espírito empreendedor é um requisito importante
para a inserção no sistema de produção de riqueza.
Analise e descubra quais qualidades você precisa desenvolver para buscar o sucesso como
profissional ou empresário. Cada pergunta apresenta três repostas possíveis, desde o espírito mais
empreendedor (respostas [a]), passando para um nível intermediário (resposta [b]) e chegando a
um perfil mais distante das características adequadas às exigências do mercado (resposta [c]).
1. Você convive bem com situações de risco ao tomar decisões que envolvem sua vida pessoal
ou profissional?
( ) Sim.
( ) Avalio muito bem a situação antes de decidir.
( ) Não.
2. Você arriscaria investir sua poupança e seus bens pessoais na criação de uma empresa para
deixar de viver de salário e passar a viver de lucro (ou prejuízo)?
3. Você avalia como imprescindível ter a garantia de uma renda mensal fixa?
( ) Não, pois sei que a vida de empresário ou autônomo às vezes exige situações em que o
que se fatura não cobre todas as despesas.
( ) Não, mas sinto necessidade das garantias que a legislação social dá aos trabalhadores
(férias, décimo terceiro salário, aposentadoria pelo INSS etc.).
( ) Sim, pois fico emocionalmente desestabilizado sem a garantia de um salário fixo mensal.
5. Considerando seu enquadramento nas opções a seguir, você considera mais importante ob-
ter lucros bons e imediatos ou aplicar seus recursos na garantia de um futuro melhor?
( ) Gosto de ganhar dinheiro rápido, mas para investir sinto necessidade de prever os re-
sultados de curto, médio e longo prazo por meio do planejamento.
62 Sociedade e Contemporaneidade
6. Quando você está diante de problemas, consegue vê-los pelo lado positivo e pelas oportuni-
dades que se apresentam, mesmo na adversidade?
( ) Sim, pois ao buscar e encontrar a solução para um problema transformo isso em expe-
riência acumulada, o que me qualifica como competidor.
( ) Raramente, pois consigo assimilar uma solução somente depois de vê-la testada e aprovada.
( ) Não, prefiro que alguém resolva antes e me dê a solução pronta.
( ) Bem.
( ) Um pouco inseguro, mas se não tivesse alternativa me adaptaria.
( ) Não suporto a instabilidade da condição de autônomo.
8. Você agendou um encontro de negócios com investidores. No dia da reunião em seu escritório,
faltaram os funcionários de serviços básicos (faxineira, office-boy, secretária). Você assume as
tarefas desses funcionários – elas poderiam prejudicar a reunião se não executadas – para não
perder o negócio?
( ) Sim, a imagem da sua empresa e o sucesso dos negócios são prioridade número um.
( ) Faz todo o possível para que outros funcionários os substituam nas funções para não se
envolver com tarefas menores, a menos que irreversível.
( ) Adia a reunião pois não admite se humilhar executando tarefas menores.
9. Na condição de dono de uma galeria de artes que vende objetos valiosos, você se submeteria
a atender os clientes, fechar vendas, embalar as peças vendidas, receber pagamentos e preen-
cher notas fiscais?
( ) Acha que na vida nem tudo dá sempre certo e sempre podemos aprender com os even-
tuais insucessos.
( ) Leva um tempo para assimilar e se recuperar ao ponto de retomar as atividades nor-
mais, mas termina conseguindo.
A sociedade pós-industrial 63
11. Você se arriscaria investindo em um negócio novo, em área que desconhece totalmente?
( ) Mantém sempre o ânimo em alta para motivar seus colaboradores a agirem da mesma
forma.
( ) Sente necessidade de incentivo para superar a sensação de que nem tudo saiu como o
esperado e que precisará de esforço e apoio para prosseguir.
( ) Sem apoio e incentivo de um superior hierárquico, tem enorme dificuldade para reagir.
13. Como você lida com a situação quando trabalha com equipes de colaboradores e está pas-
sando por problemas pessoais que afetam seu estado de espírito e sua disposição?
( ) Finge que está tudo bem e procura não deixar que sua situação pessoal cause má in-
fluência sobre a equipe.
( ) Tenta fingir que está tudo bem, mas nem sempre consegue evitar que os problemas
pessoais afetem o desempenho da equipe por sua influência.
( ) Não se importa com os outros, pois todos são adultos e devem manter o desempenho
apesar de você demonstrar humor oscilante.
8
Identidades em transformação
1 O conceito aqui empregado considera equipamentos e formas de uso como implícitos à compreensão do que vem
a ser tecnologia. No caso, por modernas tecnologias, entendem-se aquelas que surgiram por meio do desenvolvimento
da informática, das telecomunicações e da automação industrial, entre outras, especialmente quando utilizadas a partir
de suporte digital.
2 Operações de input e output, em linguagem de informática, significam operações de introdução (ou entrada) e ex-
tração (ou saída) de dados em sistemas de informação.
66 Sociedade e Contemporaneidade
repostas às perguntas que a humanidade se faz desde o tempo dos filósofos gregos clássicos –
Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?) baseava-se na ideia de que o indivíduo-sujeito
era alguém autocentrado, uno, absolutamente racional, consciente e capaz de agir sobre a realida-
de. Esse sujeito se autoconstruía por meio de um núcleo interior que brotava quando o indivíduo
nascia e com ele se desenvolvia ao longo de sua existência, embora, em essência, esse indivíduo
permaneça o mesmo.
Com a crescente complexidade da sociedade urbano-industrial, a noção de sujeito evoluiu
para uma concepção interativa da identidade individual, originada na consciência de alguém que
fabrica sua percepção da realidade na relação de contraste que estabelece com outras pessoas com
quem interage. Desse modo, o sujeito passa a ser visto como resultado da fusão de sua “essência
interior” com as influências do mundo exterior e constrói sua identidade por meio das represen-
tações que esse mundo lhe oferece ao longo da vida. Assim, estabelece-se uma conexão entre os
processos psíquicos individuais e os processos sociopolíticos culturais em que o indivíduo se inse-
re. Indivíduo e mundo se completam e se amparam como referenciais estáveis que conferem segu-
rança psicológica e social ao processo de inserção do sujeito no mundo das fábricas e das cidades,
da produção e do consumo de massa, da comunicação de massa.
Um sistema de comunicação de massa que transmite as mesmas mensagens para multidões
contribui para a sensação psicológica de segurança do indivíduo que, sem perceber, é cercado por
referenciais simbólicos homogêneos e padronizados, típicos do padrão industrial de produção e
comunicação. Esse processo funciona da seguinte maneira: se o que um determinado indivíduo
assiste na TV aberta é o mesmo que todos veem, pois só existem esses canais de mensagens pa-
dronizadas, e todos veem a mesma coisa na mesma hora e nos mesmos canais, então só existe um
mundo. E esse mundo “é assim”, da maneira que esse individuo o vê (MOURA, 2007).
No entanto, o surgimento da TV a cabo e da internet trouxe novas possibilidades. Com a
tecnologia digital, ampliou-se o espectro de canais e de possibilidades de interação multidimen-
sional e multidirecional entre emissores e receptores. Muda a sociedade, mudam os indivíduos,
e vice-versa.
A mudança atual decorre do fato de as identidades que compunham aquele cenário e asse-
guravam a estabilidade subjetiva dos indivíduos já não corresponderem às necessidades objetivas
de uma sociedade que não funciona mais como antes. Junto das estruturas e instituições de um
mundo em processo de transformação, entra em colapso a matriz identidária do sujeito moderno,
que é um produto da sociedade industrial.
O indivíduo-sujeito da sociedade pós-industrial não tem identidade fixa, não nasce dotado
de uma essência interior permanente, una e estável. É fragmentado, multifacetado em dimensões
que podem, inclusive, ser conflitantes e mal resolvidas. Essa nova identidade resulta do bombar-
deio de informações, imagens e referências externas múltiplas e simultâneas a que o indivíduo é
submetido e que provoca a multiplicação dos sistemas de significação e representação por meio
dos quais ele constrói suas representações da realidade e suas identidades dentro de cada uma de-
las. Esse sujeito molda identidades diversas em diferentes momentos e lugares e não se apresenta
perante todos os mundos que frequenta sempre com uma mesma individualidade coerente, estável,
68 Sociedade e Contemporaneidade
autodefinida e imutável desde o nascimento até a morte: suas múltiplas identidades são sempre
contextuais, flexíveis e adaptáveis às circunstâncias e conveniências do momento e do ambiente.
Na sociedade pós-industrial, ao contrário do que ocorria nas sociedades do passado, as
mudanças são constantes, rápidas e permanentes. Giddens (1990) afirma que, nas sociedades
tradicionais, a memória e os símbolos do passado são valorizados porque contêm e perpetuam
a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço ao conferir
segurança psicológica a indivíduos e comunidades na medida em que lhes permite a inserção
em qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do tempo cronológico e li-
near que liga o passado ao presente e o futuro, os quais são estruturados por práticas sociais
estáveis e rotineiras.
Segundo esse autor, à medida que diferentes áreas do globo são interconectadas em tempo
real, ondas de transformação social atingem toda a superfície da Terra, pondo em questão a na-
tureza das instituições atualmente existentes. Em uma sociedade em que as regras e instituições
estão fragilizadas pelo descompasso com a dinâmica das mudanças, disputar a influência sobre a
reconfiguração das identidades individuais e coletivas é disputar poder. Uma das principais armas
dessa guerra é a produção e a veiculação de mensagens multimídia.
A identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado em
seu ambiente social. Na sociedade das redes digitais, a construção das representações é fortemente
influenciada pelas trocas simbólicas da comunicação audiovisual. Portanto, a identificação com
essas representações construídas não é automática. Pode ser ganhada ou perdida pelos fabricantes
de imagens a serviço do estímulo ao consumo ou dos jogos do poder.
Assim, a identidade cultural (nacional, regional, religiosa, sexual etc.) não é uma essência
fixa que se mantém imune às múltiplas e simultâneas influências externas. Muitas vezes, é essa no-
ção conservadora (eventualmente até reacionária) da identidade cultural dos povos ou comunida-
des que aciona os movimentos de resistência à globalização em suas dimensões mais retrógradas,
como o nacionalismo exacerbado e a xenofobia, o fundamentalismo e o fanatismo religioso.
As culturas nacionais e os sentimentos de lealdade e identificação que elas mobilizam corres
pondem a formas de identidade pela e na modernidade industrial. Na Antiguidade, a identidade
social e cultural era exercida por fatores étnicos ou religiosos. Em seguida, esses fatores foram re-
manufaturados e reenquadrados pela moldura dos Estados e pelas instituições jurídicas, políticas e
sociais fabricadas na esteira das revoluções comercial e industrial, como os governos nacionais, os
parlamentos, os tribunais, os partidos políticos e os sindicatos.
A nova realidade criada pelo fenômeno da globalização está abalando essas estruturas do
Estado-nação e de suas instituições. A economia simbólica que emerge nesse cenário provoca des-
locamentos do poder das velhas estruturas. Emergem pressões simultâneas no sentido da criação
dos grandes blocos econômicos regionais e de novas instituições supranacionais, que absorvem
parte das atribuições – antes soberanas – do Estado-nação. E, por outro lado, com a diluição das
fronteiras dos Estados nacionais nos megablocos, despertam do sono profundo aquelas identi-
dades étnicas e religiosas adormecidas desde a era feudal, estimulando as comunidades locais e
Identidades em transformação 69
o que você é”), com base no qual definimos o que somos. A identidade, portanto, constrói-se pela
demarcação da diferença em relação aos outros (WOODWARD, 2000).
Ora, a identidade social assumida pelos indivíduos perante seus grupos de pertencimento
ou comunidades regionais e nacionais são fatores fundamentais para a constituição da sensação de
segurança psicológica e psicossocial e, consequentemente, para a estabilidade emocional de cada
um e de todos. Essa estabilidade social e individual é construída tendo por base a demarcação das
diferenças existentes entre indivíduos e comunidades, por reflexos contrastados a símbolos (tra-
ços de personalidade no caso individual, sentimentos de pertencimento e identificação grupal, de
identificação com a nacionalidade e/ou com valores culturais, no caso de coletividades), cuja cons-
trução é influenciada por disputas de poder travadas entre indivíduos e grupos cujas interações
também são mediadas simbolicamente, por meio da cultura e das comunicações.
Se assim é, então se torna facilmente compreensível o que está acontecendo com o psiquis-
mo social e individual dos membros dessa sociedade que se autobombardeia de forma perma-
nente, multidimensional e multissensorial, com mensagens multimídia multidirecionais. Isto é,
a multiplicidade de representações simbólicas a que os indivíduos e coletividades são expostos
produz confusão e instabilidade, exercendo forte impacto sobre o psiquismo individual e sobre os
referenciais psicossociais das sociedades. Fabricar e veicular imagens que sirvam de referência de
identificação para indivíduos, grupos e povos, nesse contexto, é capital, é poder. Na medida em que
indivíduos e comunidades identificam-se com essas representações em circulação nos veículos de
comunicação, alinham-se com os interesses de seus emissores, assumindo atitudes de consumo, no
caso da dimensão econômica desse processo, ou de adesão e apoio político, no caso das disputas de
poder existentes em todas as formações sociais.
Atividade
1. Com base nos conteúdos desenvolvidos neste capítulo, construa suas respostas para as
seguintes interrogações:
Representação
Regulação Identidade
Consumo Produção
1 A representação gráfica do circuito da cultura tal como exposta na Figura 1 foi originalmente publicada no livro
O gauchismo no marketing de Olívio Dutra (MOURA, 2006), com base em briefing deste autor.
72 Sociedade e Contemporaneidade
criadas por estímulos decorrentes de bens simbólicos a que esse indivíduo foi exposto em algum
ponto do circuito.
O conceito que descreve o processo pelo qual os indivíduos se identificam uns com os outros
– seja pela não percepção da diferença, seja pela percepção de supostas similaridades – tem origem
psicanalítica e exerce função central na compreensão que, na fase edipiana, a criança desenvolve so-
bre sua própria situação como sujeito sexuado. O mecanismo é o mesmo aplicado à compreensão do
processo de ativação de desejos inconscientes que imagens despertam em indivíduos, como a iden-
tificação que certas pessoas assumem em relação a personagens de filmes (WOODWARD, 2000).
Na psicanálise usa-se o termo mimetismo para designar o mecanismo por meio do qual um
indivíduo se apropria de aspectos de outro, buscando parecer-se com ele, como ocorre, no complexo
de Édipo, no caso da identificação do filho com o papel paterno. Burgelin (1974, p. 105-118) suge-
re que talvez o termo mais adequado para esse mecanismo de identificação seja o de imaginário,
oposto ao sentido de real ou de simbólico. Sem isso, não poderia haver participação imaginária e um
determinado grau de identificação do sujeito com as representações a que é exposto. Participação
imaginária é algo mais abrangente do que apenas o mecanismo de identificação do sujeito com
representações, pois pressupõe a imersão dos indivíduos no mundo virtual de um sistema que se
movimenta e se retroalimenta pela circulação de bens simbólicos que ele mesmo produz e reproduz.
Segundo esse autor, não é somente a identificação mínima que se encontra em toda a parti-
cipação o que importa, mas sim o fato de a identificação poder desencadear atitudes e comporta-
mentos, como a idolatria do fã ou a imitação do herói, entre outras formas de participação. A partir
do momento que alguém adapta seu comportamento ao modelo que lhe é apresentado como bem
simbólico circulante, esse modelo é apresentado exatamente para estimular o comportamento as-
similado, como costuma ocorrer em função das imagens de mulheres veiculadas pela publicidade.
Para que o mecanismo de identificação funcione, é preciso que as mensagens possam se
desenvolver e que o universo representado simule como se fosse real algo que está no imaginário
do destinatário da comunicação. É o que ocorre nos spots publicitários que mesclam o cotidiano
das top models como se elas fossem donas de casa comuns, que consomem em seu cotidiano os
objetos-símbolo lançados ao mercado para consumo, sugerindo a ideia de que a vida imita a arte
(BURGELIN, 1974).
De acordo com Burgelin (1974), os meios de comunicação que operam na esfera da identifi-
cação mantêm um incessante discurso a fim de persuadir o destinatário de suas mensagens de que
as representações simbólicas encarnadas pelas top models e os popstars como personagens de spots
publicitários não são inacessíveis como pode parecer. Dessa maneira, vistos como gente como a
gente, eles ficam mais próximos do receptor e mais eficientes para recrutarem consumidores pela
magia da identificação. Assim, por meio desse mecanismo, produz-se uma rápida fusão entre sím-
bolo e receptor, pois o modelo não é apenas proposto à imaginação: o modelo é o que o receptor
precisa ser se pretende satisfazer seu desejo de identificação com a representação simbólica a que
foi exposto – imitar e consumir, no caso da publicidade comercial; votar em um candidato, no caso
do marketing eleitoral.
74 Sociedade e Contemporaneidade
A mais recorrente maneira de demarcação da diferença ocorre por meio de opostos biná-
rios, pois a relação entre os dois termos que uma oposição binária constrói desequilibra a balança
do poder entre os antípodas. No entanto, como está a serviço de disputas de poder, o significado
é viscoso, escorregadio, fluido, instável e sempre sujeito às metamorfoses decorrentes do interesse
circunstancial de seus construtores-emissores.
Max Weber (1864-1920), contemporâneo de Marx, já antevira isso muito antes de ser inventa-
da a televisão. Em A ética protestante e o espírito do capitalismo, por exemplo, Weber (1987a) mostra
que os sistemas de representação (no caso, o protestantismo na formação do espírito empreendedor
dos capitalistas alemães) têm o poder de recrutar identidades por meio de mecanismos que envol-
vem práticas sociais e simbólicas. Por essa via, mobilizam-se elementos conscientes e inconscientes,
sociais e individuais, que não são necessariamente determinados por fatores materiais.
Na sociedade das fábricas, a riqueza era o material, embora simbolizada pelo dinheiro de
papel. O poder político, em decorrência, derivava da riqueza material e tinha endereço: os palácios
governamentais. A política era monopólio do Estado, a luta pelo poder era drenada e canalizada
pelos dutos estatais ou paraestatais (sindicatos, partidos, parlamentos).
Em uma sociedade pós-industrial e supersimbólica, o poder também é simbólico. Logo,
a disputa pelo poder é uma guerra simbólica, que recorre às armas do marketing eleitoral e da
comunicação política. Na civilização das redes digitais, os poderes têm vários endereços IP3.
O governo é apenas mais um ícone – poderoso, obviamente – em meio ao turbilhão de imagens da
guerra simbólica entre os inúmeros centros de poder que disputam para permanecerem à frente
da onda de mudanças.
Atividades
1. O livro A identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall (1999), caracteriza o que
se entende pela crise de identidade que estaria desestabilizando os sujeitos individuais e
coletivos da sociedade contemporânea. Pesquise nos conteúdos estudados e sintetize sua
compreensão sobre a análise dessa questão por Hall.
2. Com base nos conteúdos estudados, descreva de que forma a crise de identidade se relaciona
com o processo de globalização.
3. Embasado nos conteúdos deste capítulo, caracterize de que modo as mensagens multimídia
e os valores culturais exercem o papel de mediação simbólica das relações sociais na socie-
dade contemporânea.
3 Combinação de números que identifica um computador conectado em uma rede, relacionando-o aos domínios.
10
O poder na sociedade pós-industrial
trocas; nasceu o dinheiro de papel. Simultaneamente, o poder da violência perdeu espaço para a
moeda-padrão, o novo suporte do poder político.
A ascensão do Estado-nação industrial foi acompanhada da concentração monopolista da
violência nas mãos do Estado e pela sua regulamentação legal da vida dos cidadãos na mesma
proporção em que se difundia a dependência de todos em relação ao dinheiro. Essas três transfor-
mações permitiram às elites da sociedade industrial fazer cada vez mais uso da riqueza em vez da
força como fonte de poder e imposição de vontades.
Os detentores de conhecimento e da inteligência sempre levaram vantagem sobre seus in-
terlocutores em quaisquer culturas ou sociedades humanas. Os indivíduos que combinavam o uso
do conhecimento – primeiro com a força e depois com o dinheiro – ocuparam os espaços privile-
giados reservados à elite do poder em todas as sociedades. Já na sociedade pós-industrial, a impor-
tância do conhecimento nas equações estratégicas voltadas para a aquisição de poder econômico e
político sofreu uma mudança qualitativa.
A novidade revolucionária resulta do uso intensivo da tecnologia em todas as relações so-
ciais. Mesmo que nem todos os indivíduos, organizações, setores econômicos ou regiões do mundo
estejam diretamente inseridos em redes digitais e em sistemas de transporte de alta velocidade, de
uma forma ou de outra, há impactos diretos e indiretos decorrentes das mudanças provocadas pelo
uso abrangente dessas tecnologias.
Atualmente, tanto o uso da força quanto do dinheiro se tornou dependente da tecnolo-
gia. Só é possível operar sistemas tecnológicos ao deter conhecimentos imprescindíveis para isso.
O conhecimento, não mais a força bruta e nem mais o dinheiro de papel, tornou-se o fator estraté-
gico para a aquisição de poder político e econômico na sociedade pós-industrial. O conhecimento,
ao contrário dos bens tangíveis, não é escasso nem mensurável. Para entender sua importância e
sua função na sociedade tecnológica, é necessário avaliá-lo de maneira subjetiva, qualitativa.
A violência, por exemplo, é um recurso limite que corresponde a um poder de baixa quali-
dade. Quem recorrer a ela, somente poderá punir àquele a quem quiser submeter. Se, ao usá-la, a
vítima mesmo assim não fizer a vontade do agressor, praticamente nada mais poderá ser feito para
submetê-la, a não ser tentar usar mais força, com resultados duvidosos. A riqueza, por sua vez, não
é um recurso limite, pois pode ser empregada tanto de maneira positiva quanto negativa, para pre-
miar ou para corromper a quem se quer submeter. Nesse sentido, sua qualidade como instrumento
de poder é média. Isso, sem esquecer que, se a premiação ou corrupção não funcionarem, o agente
ativo na relação de poder sempre poderá recorrer à força, em último caso, para tentar conseguir o
que não conseguiu com o dinheiro (TOFFLER, 1990).
Já o conhecimento supera os outros dois instrumentos de poder como ferramenta da mais
alta qualidade a serviço das legítimas ambições humanas. Ao usá-lo com sabedoria, pode-se per-
suadir interlocutores a fazer, sem precisar usar a força e preservar vínculos que permitem ampliar
possibilidades futuras de novas transações e parcerias. Além disso, sob determinadas circunstân-
cias, com o conhecimento posto a serviço da inteligência, pode-se potencializar o uso da força e do
dinheiro, usando-os de modo mais racional e econômico possível, quando seu uso é imprescindí-
vel à consecução de objetivos almejados (TOFFLER, 1990).
80 Sociedade e Contemporaneidade
Na sociedade das redes digitais, nada funciona sem a mediação de sistemas integrados de
comunicação eletrônica. Imagine um blackout no sistema enérgico do planeta, que desligasse e
danificasse irreversivelmente as redes de computadores, a memória das informações e transações
neles armazenadas e em trânsito permanente por todos os quadrantes do planeta. Imaginou? Seria
o caos. A pré-história voltaria em segundos.
O conhecimento e a capacidade de persuasão dos meios de comunicação para tentar influen-
ciar aquilo que os outros sabem, ou pensam que sabem, são parte irreversível – e já dominante –
do arsenal das novas técnicas de competição econômica e de luta política na sociedade do futuro,
em uma dimensão não percebebida em toda sua extensão. Não é despropositado imaginar que o
virtual e abrupto desaparecimento do sistema de comunicações por meio das redes de comunica-
ção gerasse um conflito violento e generalizado pela sobrevivência em uma terra sem lei. Simples
apagões provocados pelo colapso do abastecimento de energia em metrópoles norte-americanas na
década de 1990, em poucas horas, projetaram uma prévia desse cenário virtual.
burocrático, a falência financeira, a corrupção e o descrédito nos políticos são alguns dos fatores
relacionados a essa sociedade.
O colapso nos processos de tomada de decisões é causa e efeito da mudança nas relações de
poder na sociedade atual. Sob circunstâncias normais, o sistema político (poderes constituídos,
partidos, instituições de representação de interesses da sociedade) cumpre a função de processar
as decisões coletivas, produzindo deliberações executadas, fazendo com que os governos cumpram
suas finalidades.
Na sociedade de base agrícola, a liderança derivava do nascimento (direito divino, herança
consanguínea de títulos de nobreza). Na sociedade industrial, a liderança baseava-se no poder
impessoal e mais abstrato, que processava mais decisões sobre mais assuntos. A concretização das
decisões dependia de órgãos executores. O líder necessitava de instrução, capacidade de raciocínio
abstrato e vocação para comandar elites burocráticas. A autoridade era constrangida por leis e por
poderes fiscalizadores e reguladores. A legitimidade da liderança e das decisões coletivas provinha
do voto da maioria.
Na sociedade pós-industrial, o perfil da liderança é outro. A economia pós-industrial está
levando a sociedade para patamares mais altos de complexidade, tornando as decisões políticas
dependentes da assessoria de superespecialistas que abastecem o líder de informações que termi-
nam influenciando decisivamente as decisões tomadas. A alta especialização do conhecimento, a
complexidade, o volume e a velocidade das informações que envolvem as decisões, limitam o po-
der da liderança nas organizações da sociedade pós-industrial, tornando-a muito mais temporária,
compartilhada e subordinada ao poder dos técnicos.
As estruturas anacrônicas, piramidais e centralizadas no topo – típicas das organizações da
era industrial – produzem intermináveis disputas interburocráticas pelo controle de mais e mais
decisões que nada decidem, causam desperdício de tempo e dinheiro públicos e geram efeitos se-
cundários adversos, às vezes piores do que a tentativa inicial de solucionar o problema na origem.
A realidade muda muito rapidamente e as informações circulam de modo muito mais veloz do que
as decisões governamentais podem gerar efeitos. Ou as decisões vêm tarde demais, ou caem no
impasse paralisante. Flexibilidade, agilidade, criatividade e velocidade cada vez mais se impõem
sobre a ineficiência burocrática.
As tecnologias pós-industriais estão segmentando a produção, o consumo e os canais de co-
municação. Os produtos e mensagens agora se dirigem a grupos específicos de consumidores com
gostos e demandas específicas. A sociedade está se desmassificando como reflexo dessa tendência
da produção, da comunicação e do consumo. A política não ficou imune ao impacto dessas trans-
formações. Novos tipos de organizações e movimentos estão surgindo, efêmeros, fragmentados,
locais, transnacionais. Ambientalistas, pacifistas, minorias sexuais, minorias raciais, grupos reli-
giosos e tantos outros tipos de organizações, com suas manifestações midiáticas, invadiram o palco
antes monopolizado por partidos e sindicatos e criaram novos cenários. A formação das maiorias
estáveis e duradouras que sustentavam os líderes, os partidos e os governos da sociedade industrial
está cada vez mais difícil, senão impossível.
84 Sociedade e Contemporaneidade
As circunstâncias mudam de país para país, mas a crise política atinge todos os que não
conseguem se reciclar. Embora os sistemas políticos permaneçam baseados no voto das maiorias,
os governos têm crescente dificuldade para formar maiorias. Costurar uma verdadeira colcha de
retalhos de minorias, que se faz e desfaz em curtos espaços de tempo, em torno de causas pontuais,
é a lógica da nova engenharia política. Minorias bem organizadas de hoje com acesso à mídia po-
dem ter mais poder do que as amplas maiorias de ontem. A diversidade social é tão grande que os
representantes não conseguem articular consensos que lhes permitam falar em nome da “vontade
geral da nação”, ideia que foi um dos conceitos alicerces da “democracia representativa”.
O volume, a velocidade e a complexidade das informações que circulam no sistema geraram
uma correspondente sofisticação e diversificação dos problemas sobre os quais os governos precisam
tomar decisões. A essa fragmentação, sofisticação e diversificação corresponde uma compartimen-
talização e especialização das instituições políticas, levando os representantes, despreparados para
essa realidade nova, a usarem a intuição para decidirem, mais do que critérios racionais. As ordens
terminam não sendo cumpridas, ou o são de maneira diferente daquela desejada pelo emissor.
Legisladores e governantes dependem cada vez mais de assessoramento especializado para a
tomada de decisões. A influência dessas assessorias se sobrepõe aos critérios políticos ou racionais,
muitas vezes induzindo o representante, por ignorância dos aspectos técnicos que envolvem a de-
cisão em questão, a adotar posições que não adotaria sob outras circunstâncias.
Atividade
Neste capítulo realizou-se a análise acerca das grandes transformações políticas em curso na
sociedade atual. A construção da sociedade e das instituições políticas e jurídicas da sociedade do
futuro é uma obra aberta e inacabada. A civilização ocidental, no entanto, viveu experiências que
deram origem ao sistema de crenças e valores e às formas de organizar social e politicamente a vida
em sociedade. Períodos de instabilidade e mudanças profundas vivenciados nos dias atuais podem
O poder na sociedade pós-industrial 85
nos levar a um futuro melhor ou ao retrocesso. Valores como liberdade, igualdade dos cidadãos
perante a lei, preservação dos direitos humanos e individuais, entre outros, são perenes.
Aprofunde seus conhecimentos sobre as origens históricas, sobre os autores que teorizaram
sobre eles, sobre o significado desses conceitos filosóficos e suas implicações sobre a vida social,
econômica e política na sociedade moderna, lendo as seguintes obras:
MISES, L. Ação humana: um tratado de economia. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1949.
características herdadas de ancestrais (os colonizadores portugueses, no caso do Brasil), nas quais
as experiências vivenciadas (história e valores culturais introjetados na mentalidade do povo) se
agregaram também nas instituições sociais, políticas e jurídicas nacionais.
Essa personalidade é chamada de identidade nacional pelas ciências sociais. Por meio dela
se constrói referenciais psicológicos, individuais e sociais distintos entre os povos em função dos
valores, atitudes coletivas e instituições que marcam o modo de viver em família, de lidar com a
política, com a economia e com valores morais. Isto é, a composição e configuração do sistema-
-nação, com seus respectivos subsistemas, econômico, político, cultural e social. Esses subsistemas
combinados compõem um arranjo único. Historicamente configurado em suas dimensões social
e cultural, está psicologicamente arraigado na mentalidade individual e coletiva e nos sistemas de
crenças e valores.
Esses componentes integram as várias dimensões da nossa sociedade e formam um sistema
social coerente. Os ingredientes desse grande sistema são transmitidos inconscientemente de gera-
ção para geração e exercem uma sutil coerção, gradativamente absorvida por todos os membros da
sociedade, com o convívio e influência social e os processos educacionais formais e informais pelos
quais todos passam ao longo da vida.
Tal como fazem os psicanalistas quando investigam os mistérios da mente para desvendar os
meandros da matriz sistêmica de uma sociedade, é preciso compreender de maneira aprofundada
fatores como história, política, econômica, sociologia, psicossociologia e cultura de uma nação.
Assim como acontece com os indivíduos, que tendem a preservar características de perso-
nalidade por toda a vida, mudanças estruturais profundas nos sistemas sociais inteiros de uma na-
ção são raras. No caso das nações, esse processo corresponde às experiências sociais, econômicas,
políticas e culturais coletivas registradas pelo desenrolar da história, como o suceder de eleições e
trocas de governo, crises econômicas, crescimento populacional, mudanças no perfil socioeconô-
mico da população decorrentes da modernização da economia, e assim por diante.
Em geral, rupturas estruturais só acontecem com os indivíduos e com as nações em função
de experiências traumáticas muito profundas, haja vista aquelas que levam uma pessoa a rever toda
a sua vida e a mudar totalmente sua forma de ser. A vida das nações é mais longa e os traumas de
natureza psicossocial apresentam características próprias e nem sempre iguais às crises de natureza
psicológica dos indivíduos. Rupturas sistêmicas na história das nações, portanto, são raras.
A matriz sistêmica de cada sociedade resulta da combinação original de sua herança his-
tórica com as experiências acumuladas em seu processo de formação política e cultural. A essa
bagagem somam-se as opções e escolhas que a elite e o povo de cada país adotam diante dos
desafios que a realidade lhes impõe no presente.
Do conceito teórico à prática, a nação-sistema Brasil vive o impacto revolucionário das no-
vas tecnologias de comunicação e produção de riqueza, as transformações que elas desencadeiam
no sistema social globalizado, com desdobramentos em todas as dimensões da vida individual e
coletiva de quem vive a contemporaneidade.
A sociedade brasileira como sistema 89
enfrentar e resistir aos colonizadores europeus. O contraste entre essa população nativa e o coloni-
zador português era enorme.
Sob essas circunstâncias, a Coroa portuguesa instituiu as capitanias hereditárias e fundou o
Estado brasileiro antes que aqui existisse sociedade e atividade econômica privada. Os portugueses
vindos ao Brasil, em geral, tinham intenção de enriquecer pela extração de ouro, pedras preciosas,
madeira e outras atividades extrativistas e voltar para Portugal. A ocupação de posições no aparato
do Estado colonial possibilitou o acesso a condições privilegiadas para o enriquecimento rápido.
Instituiu-se assim uma característica marcante da cultura política brasileira, até hoje perceptível na
conduta política dos homens públicos, de parcelas expressivas das elites econômicas, e também do
próprio povo, que consiste na valorização do acesso ao Estado, seja na forma de ocupação de cargos
públicos, seja na forma de pressão pela obtenção de privilégios ou, ainda, nos casos da relação da
população de baixa renda com os políticos, por meio da cultura paternalista e clientelista.
Os valores culturais permissivos a esse tipo de conduta estão fortemente arraigados na so-
ciedade, conferindo condições de sustentação e reprodução desse tipo de relação entre Estado e
sociedade, elite e povo. Os interesses articulados em torno da preservação dessa matriz sistêmica
são poderosos: unem setores corporativos da esquerda e da direita, setores empresariais urbanos
e rurais, que agem com a mão invisível dos seus interesses corporativos para impedir a ruptura do
sistema e o acesso ao poder de novas elites desvinculadas de seus interesses dessa matriz sistêmica
estatista e patrimonialista.
O desenvolvimento da economia e da sociedade brasileiras revela que esse sistema assimila
mudanças, desde que não sejam rompidas as bases estruturais de sustentação do Estado patrimo-
nialista e nem contrariados frontalmente os interesses das elites que se beneficiam dessas relações
entre os interesses privados incrustados na máquina pública e o interesse público na eficiência dos
serviços públicos e no desenvolvimento social da nação. Esses processos são conhecidos como
modernização conservadora, isto é, mudar para não mudar.
A transição do Brasil rural para o Brasil urbano e industrial teve início na década de 1930,
impulsionada pelo Estado sob o governo de Getúlio Vargas (1882-1954), criador das primeiras
grandes empresas estatais no país. Na década de 1950, Juscelino Kubitschek (1902-1976) impulsio-
nou novo ciclo de modernização econômica com a atração da indústria automobilística. O regime
militar – constituído em 1964 para impedir a implantação de uma ditadura comunista do Estado
total, em um contexto internacional de avanço da esquerda – criou mais de cem novas empresas
estatais e construiu, com investimentos e políticas públicas estatais, a infraestrutura energética, de
telecomunicações e transportes até hoje existente.
O regime militar brasileiro perdurou até 1985, com a volta gradual do poder para mãos civis.
Em meados da década de 1980, o governo dos EUA e os principais países da Europa começam a
implementar reformas estruturais, com vistas a se prepararem para a competição aberta no merca-
do globalizado. A URSS vivia sua derradeira crise, quando ruiu definitivamente em 1991. Naquele
momento a revolução da informática, das telecomunicações, das redes digitais e das novas tecno-
logias de produção se expandia pelo mundo, impondo às empresas e aos governos a adaptação ao
novo paradigma sistêmico da sociedade pós-industrial.
A sociedade brasileira como sistema 91
O paradigma das redes digitais rompeu a lógica da produção massiva de mercadorias e men-
sagens padronizadas e sincronizadas, típicas da matriz tecnológica industrial. Em pouco tempo o
impacto dessas mudanças extrapolou o mundo do trabalho e/das empresas e se expandiu para todo
o tecido social, o código genético da nova matriz sistêmica. Processos de comunicação e produ-
ção aleatórios, assincrônicos, multidimensionais, combinados com sistemas de distribuição veloz
e simultânea de mensagens padronizadas para públicos massivos e segmentadas para outros, em
escala mundial, revolucionaram a visão de mundo, o comportamento social, as atitudes e as trocas
econômicas e políticas entre pessoas e organizações.
O paradigma fabril, baseado no trabalho especializado em linha de montagem, demandou
a necessidade de os especialistas intermediarem a relação entre quem decide e quem faz na ca-
deia de tarefas das organizações. A estrutura das organizações da sociedade industrial é piramidal.
O fluxo de comandos dentro dessas organizações é vertical, unidirecional e descendente; o fluxo de
execução dos comandos na base da pirâmide é horizontal.
O conhecimento e as informações – relevantes para o funcionamento das organizações com
essa estrutura piramidal – são concentrados no topo, diluídos e desidratados em seu conteúdo
estratégico à medida que saem da cúpula para a base que deve executar as ordens. O indivíduo
da base da pirâmide não precisa e não deve conhecer as razões que originaram a ordem e nem os
objetivos gerais que a orientam. Ele deve ter conhecimentos elementares, parciais, parcos e sufi-
cientes para a execução repetitiva de tarefas sincronizadas com outros integrantes de seu nível na
estrutura hierárquica da organização. As tarefas que o peão do chão da fábrica executa obedecem
a critérios de padronização dos movimentos e do tempo de execução, que tornam esse indivíduo
uma extensão da máquina.
No caminho entre o topo e a base da pirâmide organizacional, as ordens percorrem labirin-
tos burocráticos de um intrincado sistema, cuja finalidade original era a de planejar, administrar,
coordenar, controlar e auditar o bom funcionamento. Com o tempo, esse setor administrativo –
situado no espaço intermediário entre a base e o topo das pirâmides organizacionais – foi adqui-
rindo características distintas daquelas para as quais foi desenvolvido.
Os diferentes setores do miolo da pirâmide passam a disputar o poder de controlar as fun-
ções, os recursos e as informações que circulam pelos canais de comunicação entre os escaninhos
da pirâmide. As disputas interburocráticas levam os indivíduos que ocupam posições na hierarquia
dos diferentes departamentos a filtrar, politizar e distorcer informações e comandos, de modo a
valorizar sua posição de jogo nas lutas internas da organização e a prejudicar seus concorrentes
internos que buscam os mesmos objetivos e usam os mesmos métodos. Controlar recursos e infor-
mações é o que confere poder aos burocratas; a posição intermediária é estratégica.
Com o passar do tempo, os problemas se agravam, pois o efeito acumulado das distorções
no sistema introduz irracionalidade ao funcionamento geral e ao fluxo de informações que deveria
fazer com que a organização produzisse os resultados previstos por sua atividade-fim.
Obstáculos e mais obstáculos vão se interpondo no caminho da cadeia de comandos, que se
perdem nos labirintos burocráticos da pirâmide. Para resolver os problemas que surgem, os inter-
mediadores de informações apresentam sua solução: é necessário contratar mais intermediadores
92 Sociedade e Contemporaneidade
subordinados, criar mais departamentos com a atribuição suposta de resolver problemas que se
multiplicam justamente pelo gigantismo burocrático que se agrega como novo problema às demais
distorções. A ineficiência e desperdício de energia criam um círculo vicioso que se retroalimenta
e reproduz em uma lógica entrópica e autofágica. O resultado disso é a resistência a mudanças e
inovações – percebidas como ameaças às posições dos indivíduos na organização –, foco dos fun-
cionários na vida interna da organização e nas atividades-meio, inflexibilidade perante situações
que requeiram soluções originais não previstas em regras formais – mesmo que não proibidas –,
desperdício, lentidão, ineficiência e corrupção.
Por mais paradoxal que possa parecer, esses fatores obedecem a uma racionalidade própria
e imprevista por seus criadores. Sua lógica é corporativa, isto é, apesar de seus integrantes dispu-
tarem poder entre si no âmbito interno das organizações piramidais, desenvolvem-se posições de
jogo compartilhadas que se articulam sub-repticiamente para a preservação de um sistema que
proporciona poder, dinheiro e vantagens e une seus membros em uma teia invisível que age, de ma-
neira eficaz, em defesa de interesses corporativos que não coincidem com os objetivos que deram
origem à organização que os abriga.
Essa lógica é implacável e está presente nas organizações nascidas com a sociedade industrial
e geridas por matrizes piramidais que requerem lideranças especializadas em sua administração.
Weber, pai do conceito de patrimonialismo, estudou essas organizações e caracterizou o que deu
origem à teoria da burocracia. Weber descreveu o fenômeno da burocratização como uma mudan-
ça da organização baseada na autoridade tradicional para uma organização orientada aos objetivos
e ações pautadas pela lógica racional e legal1. Originalmente, o termo burocracia não tinha a carga
pejorativa que adquiriu com o tempo, sendo sinônimo de eficiência.
Esse problema é presente tanto em organizações públicas quanto privadas, com ou sem
fins lucrativos. No entanto, nas empresas privadas, a competição pelo lucro, pela sobrevivência
no mercado e a presença de um “dono do negócio” cria condições melhores para a introdução de
correções visando minimizar as distorções. No setor público, a inexistência de competição e au-
sência de um “dono do negócio”, materializada pela rotatividade do comando político, dificultam
as correções. Dada a natureza dos serviços prestados pelo Estado, o caráter público, político e
democrático de suas atribuições e funções, a sujeição permanente dos funcionários aos políticos
e a permeabilidade da cúpula da pirâmide das organizações públicas à pressão dos interesses cor-
porativos agregam-se como fatores agravantes a provocar distorções ainda mais sérias do que as
que afetam as organizações privadas.
A lógica que rege o funcionamento das redes digitais é frontalmente oposta à das pirâmides
burocráticas. O caráter democrático do conhecimento – que é a matéria-prima básica da riqueza
simbólica do novo sistema – e a compressão da relação tempo-espaço, provocada pela comunica-
ção em tempo real, faz com que as informações circulem nas redes na velocidade do pensamento,
impondo a criatividade, a agilidade e a flexibilidade como requisitos imprescindíveis à sobrevivên-
cia no novo ambiente hipercompetitivo. Para isso, a descentralização e a eliminação de estruturas
1 Sobre essa questão, recomenda-se a leitura da obra Ensaios de Sociologia (WEBER, 1982).
A sociedade brasileira como sistema 93
a Rússia e a transformou em uma das principais potências industriais do século XX em poucas dé-
cadas –, as derrotas da Alemanha e do Japão na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) – que leva-
ram essas duas nações ao centro do tabuleiro do poder do século XXI –, o governo ditatorial (1973-
1990) de Augusto Pinochet (1915-2006) – que inseriu a economia do Chile entre as mais atrativas a
investidores internacionais na América do Sul –, entre outros, são exemplos de acontecimentos em
nações que viveram crises profundas e revolucionaram suas matrizes sistêmicas.
O Brasil, diferentemente desses e de outros casos análogos, é desafiado a romper com seu
paradigma sistêmico patrimonialista, obedecendo às regras e aos rituais de sua incipiente demo-
cracia e submetendo o processo de mudança aos avanços e recuos típicos do jogo tortuoso dos
conflitos políticos disputados dentro das instituições do Estado. O Estado patrimonialista, pai de
todas as organizações burocráticas da nação, é, ao mesmo tempo, alvo e palco da disputa entre os
defensores das mudanças e os beneficiados pela não mudança.
Fernando Henrique Cardoso (1931-) foi sucessor do governo de Itamar Franco. Tendo as-
sistido aos erros políticos de Collor e comandado a implantação do Plano Real como ministro da
Fazenda de Itamar Franco, FHC assumiu o poder munido da agenda programática de Collor e de
uma estratégia política oposta à do ex-presidente: gradualismo e avanços pelo caminho da menor
resistência, em vez do embate frontal.
Sob o governo de FHC aconteceram as reformas do capítulo (Título VIII) da Ordem
Econômica, da Constituição de 1998. Os monopólios estatais das telecomunicações, energia, na-
vegação de cabotagem, mineração e parcialmente do petróleo foram quebrados. Completou-se a
privatização do setor siderúrgico, de telefonia e de parte do setor energético; a economia abriu-se à
competição no mercado global. Contudo, a estratégia do caminho pela menor resistência produziu
tímidos avanços na reforma estrutural e modernização do Estado – e essa continua sendo a grande
vulnerabilidade do Brasil perante seus concorrentes.
O conflito político central do jogo do poder, travado no país desde o governo Collor, conti-
nua sendo a disputa dos defensores da mudança em direção à sociedade pós-industrial, contra os
defensores do Estado patrimonialista remanescente e, apesar de abalado, ainda muito poderoso.
Atividade
1. Na área de Ciências Humanas das universidades brasileiras, além de Raymundo Faoro, outros
intelectuais como José Murilo de Carvalho (1980, 1988, 1990), Sérgio Buarque de Holanda
(1969) e Simon Schwartzman (1975, 1982) desenvolveram pesquisas sobre a formação históri-
ca da nação brasileira, agregando contribuições importantes para a compreensão do fenômeno
do patrimonialismo em nossa cultura política. Conhecer a obra desses intelectuais é impres-
cindível para a compreensão da sociedade brasileira. Desse modo, pesquise sobre as obras
desses autores e elenque as principais temáticas abordadas.
12
As chances da democracia no Brasil
e nacional, convém destacar a existência de restrições políticas e legais à plena liberdade de parti-
cipação e competição pelo poder.
A história do Brasil conta com episódios de fraudes e golpes de Estado, praticados especial-
mente pelas oligarquias políticas que controlavam o poder regional e conferiam sustentação aos
sucessivos governos nacionais. Somente em 1946, com o fim da Segunda Guerra Mundial, talvez
influenciada pela participação da Rússia na derrota do nazismo e do fascismo, a Constituição então
proclamada permitiu a realização de eleições livres. Esse curto período democrático foi interrom-
pido pelo golpe militar de 1964, que privou o país de liberdades democráticas até 1985; o processo
de eleições presidenciais livres foi retomado somente em 1989.
Ao longo da história do país, as decisões políticas concentraram-se mais na esfera do Estado
do que da sociedade e as forças políticas à testa do governo tomavam as decisões sobre o destino
da nação de forma impositiva. As Forças Armadas tiveram participação decisiva na implantação
desse tipo de regime político, ainda que, em alguns casos, por meio de militares eleitos em pleitos
nos quais não havia plenas liberdades democráticas.
Durante a vigência dos períodos de autoritarismo ocorriam eleições, mas a disputa pelo voto
acontecia de maneira limitada e controlada pelas oligarquias regionais. Com o regime militar de
1964, os partidos políticos criados no período anterior foram extintos e substituídos por apenas
duas grandes agremiações: a Aliança Renovadora Nacional (Arena) – de situação – e o Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) – de oposição.
Nessa época, não havia plena liberdade de imprensa e o direito de organização era bastante
limitado. O direito de expressão de ideias contrárias ao regime era restrito e a transgressão era
punida com privação da liberdade e outras restrições a direitos individuais considerados essenciais
à vigência de regimes de tipo democrático liberal. A partir de década de 1980, tanto por razões de
natureza internacional, quanto pelo desgaste político dos governos militares, o Brasil e outros paí-
ses da América Latina passaram a experimentar a transição para a democracia.
Para Huntington (1994), de tempos em tempos, a partir do século XIX, o mundo moder-
no experimenta ondas intermitentes de transição de regimes não democráticos para democráti-
cos, intercaladas por ondas em sentido inverso. A transição para regimes de liberdade política na
América Latina nesse período integraria uma dessas ondas de democratização.
Schumpeter (1961) centra sua crítica à visão dos socialistas sobre a democracia no conceito
marxista da ditadura do proletariado. Segundo esse autor, desde 1916 a questão da relação entre so-
cialismo e democracia era vista de maneira óbvia pelos principais expoentes da ortodoxia socialista.
De acordo com a visão teórica marxista sobre a democracia, a propriedade privada sobre os meios
de produção é o ponto central que habilita a classe capitalista para explorar o trabalho e para impor
as diretrizes de seus interesses de classe sobre a gerência dos conflitos políticos da comunidade.
Com base nesse ponto de vista, o poder político da classe capitalista aparece como uma for-
ma particular de poder econômico. A inferência lógica daí decorrente é a de que não pode existir
democracia enquanto existir esse poder econômico (SCHUMPETER, 1961). A democracia, assim,
é meramente uma farsa e, por outro lado, a eliminação desse poder irá ao mesmo tempo eliminar a
“exploração do homem pelo homem”, impondo o que os socialistas definiam como a “lei do povo”
(SCHUMPETER, 1961, p. 361).
Schumpeter contesta esse ponto de vista que se incorporou à cultura política e à tradição
socialista ao longo dos anos, com base no argumento de que é impossível reduzir o poder indi-
vidual ou de grupos em termos unicamente econômicos. O socialismo, em tese, poderia ser o
ideal da democracia, mas o caminho pelo qual sua tese se aplicaria na prática não é muito claro
(SCHUMPETER, 1961).
As palavras revolução e ditadura aparecem com frequência nos escritos da teoria socialista,
mas os socialistas modernos nunca apresentaram objeções em aceitar o uso da violência como via
para o paraíso socialista. Schumpeter alerta para o fato de que, se Marx acreditasse na democracia
como sugerem alguns socialistas, seu conceito e o espaço destinado ao tema na sua teoria deveriam
ter crescido assim como a importância de observar os procedimentos democráticos no processo de
construção do socialismo (SCHUMPETER, 1961).
Sob esse ponto de vista, a democracia, como conceito e como regime político, não comporta
adjetivações tal como a expressão democracia burguesa, adotada pelos marxistas em detrimento da
democracia liberal. A democracia é um “método político, aplicado para definir a forma que uma
nação utiliza para chegar a uma decisão. Através desse método podemos nos habilitar a caracterizar,
através da indicação de quem e como essas decisões são tomadas” (SCHUMPETER, 1961, p. 295).
O autor, portanto, desvincula seu conceito de democracia de funções extrapolíticas, como a
obrigação de realizar a igualdade econômica. Para Schumpeter (1961, p. 328), “o método democrá-
tico é um sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o
poder de decidir mediante um luta competitiva pelos votos do eleitor”. Desse modo, esse conceito
permitiria distinguir o que vem a ser um governo democrático, em contraste com outros tipos dife-
rentes de governo. Assim, é a existência ou não de um determinado modus operandi o que permite
ao analista verificar se um determinado sistema é ou não democrático.
Essa definição atribui papel vital à liderança política nos processos de construção das decisões
coletivas, uma vez que os corpos coletivos atuam quase exclusivamente pela aceitação da liderança1,
1 Sobre isso, pesquisar autores ligados à Teoria das Elites na Ciência Política, tais como Grynszpan (1999), Michels
(1983), Bottomore (1964) e Charles Wright Mills (1980).
100 Sociedade e Contemporaneidade
mecanismo dominante em todas as ações coletivas e que confere um grau de realismo bastante supe-
rior à definição da teoria clássica. Dessa forma, a “manufatura das vontades”, aberração execrada por
Schumpeter, é absorvida por sua construção conceitual. Essa definição de democracia não ignora a
existência de vontades coletivas autênticas, mas as enquadra no papel que realmente desempenham.
Essas vontades, muitas vezes latentes durante anos, apesar de fortes, podem ser despertadas por
líderes que lhes conferem forma e rumo ao organizá-las e estimulá-las à ação.
Schumpeter reconhece que sua teoria apresenta dificuldades semelhantes ao conceito de
concorrência em economia (que nunca acontece de maneira perfeita, embora sempre esteja pre-
sente)2, com o qual sugere uma comparação útil. O autor restringe sua comparação à livre concor-
rência pelo voto livre. O remédio para isso é o método eleitoral como legítimo e único exequível
(ainda que passível de variações conforme o regime democrático em questão), por meio do qual se
desenvolve a luta competitiva, qualquer que venha a ser o tamanho da comunidade.
O conceito de Schumpeter contempla a relação subsistente entre democracia e liberdade
individual com base no pressuposto de que, reconhecido o fato de que o método democrático não
garante necessariamente maior liberdade individual do que qualquer outro método em circunstân-
cias semelhantes – pois nenhuma sociedade pode subsistir um regime de liberdade absoluta –, pelo
menos por questão de princípio, todos os indivíduos deveriam dispor de liberdade para concorrer
à liderança política, o que pressupõe a liberdade de expressão (liberdade de imprensa) para todos
em igual medida.
Por outro lado, é atribuída à função primária da democracia o papel do eleitorado de formar
o governo ou o corpo intermediário que irá formá-lo; sugere-se que se deva atribuir igual valor à
capacidade desse mesmo eleitorado para dissolvê-lo pela via institucional/legal. O eleitorado, dessa
forma, deve ter poder para instalar um governo, assim como para controlá-lo.
Finalmente, Schumpeter contesta a associação automática entre a “vontade da maioria” e a
“vontade do povo”. Segundo ele, a vontade da maioria é simplesmente a vontade da maioria. Essa
constatação simplista, além de óbvia, é insuficiente para o equacionamento de uma solução para
o problema da representação do povo, tentada por autores que teorizam sobre a representação
proporcional, mas não reconhecem essa ligação automática como válida. O princípio básico da
democracia significa que as rédeas do governo devem ser entregues àqueles que contam com maior
apoio do que outros indivíduos ou grupos concorrentes, o que não significa caracterizá-la como
vontade do povo, dada a existência de minorias (SCHUMPETER, 1961).
Absorvendo e ampliando o conceito de Schumpeter, o cientista político Robert Dahl (1977)
propõe um novo conceito de democracia, que ele define como poliarquia, equacionando o proble-
ma da democratização como um processo progressivo de ampliação da competição e da participa-
ção política. As condições de competição pelo voto e o equilíbrio das forças que disputam o poder
no sistema – governo e oposição, maioria e minoria – são fundamentais também.
2 A teoria da concorrência imperfeita caracteriza situações de competição em economias de mercado nas quais
não se apresentam condições de concorrência perfeita, isto é, em que existe pelo menos uma empresa ou consumidor
com poder suficiente para determinar o preço de mercado. Situações de concorrência imperfeita caracterizam-se, por
exemplo, em casos de formação de monopólios, oligopólios e cartéis. A aplicação desse conceito ao mercado político
corresponde a situações em que uma força política dispõe de condições de predomínio exclusivo sobre o acesso ao
poder de Estado, ainda que sob ocorrência de eleições livres.
As chances da democracia no Brasil 101
e com grandes carências infraestruturais. Sob essas circunstâncias, o papel dos atores políticos
(partidos, líderes, instituições da sociedade, mídia etc.) revelou-se importante lastro para garantir
a continuidade do processo de transição para a democracia, especialmente no caso do Brasil.
Dessa forma, pode-se admitir que, enquanto os processos de modernização econômica e
social ampliam as condições por meio das quais a decisão de migrar do autoritarismo para demo-
cracia pode ser uma escolha, caberia à vontade política das elites da sociedade agir para a concreti-
zação da transição. Contribui para o sucesso dessa empreitada também a existência de uma cultura
política difundida na base da sociedade, por meio da qual os cidadãos conferem legitimidade ao
processo, seja pela participação, seja pela defesa de valores morais condizentes com um regime de
liberdades e respeito aos direitos individuais.
Aqui, ergue-se um enorme ponto de interrogação sobre o destino político do regime demo-
crático no Brasil. A permissividade que parcelas expressivas da sociedade brasileira apresentam em
relação às práticas controvertidas do ponto de vista ético e moral na vida pública e privada constitui
um traço marcante da cultura política nacional, tanto no que diz respeito ao povo quanto às elites.
Conclui-se, desse modo, que a preservação dos valores libertários e democráticos na sociedade
brasileira carece de alicerces consistentes no comportamento individual e coletivo de uma parcela ex-
pressiva de cidadãos. Além das dimensões política, normativa e institucional, seria preciso introduzir
mudanças na cultura política nacional para conferir sustentabilidade ao funcionamento da democracia,
por meio de um incremento no capital social acumulado pela sociedade (FUKUYAMA, 1996).
Por capital social entende-se o conjunto de práticas sociais, normas, sistemas de participação
e associativismo que estimulam condutas cooperativas e o desenvolvimento de relações de con-
fiança entre os membros da sociedade. Assim, quanto mais difundida for a cultura da confiança de
todos os cidadãos uns com os outros, para além das práticas de favorecimento e privilégios troca-
dos entre os círculos de relação familiar ou de compadrio, maior será o capital social acumulado e
melhores serão as condições para a viabilização dos regimes democráticos.
Curiosamente, os pesquisadores que desenvolveram a formulação desse conceito consta-
taram que as sociedades nas quais o acúmulo de capital social é mais expressivo são também as
mais prósperas e desenvolvidas do ponto de vista econômico e social. Talvez tenhamos aqui uma
explicação inusitada para as mazelas sociais históricas da nação. Isto é, a pobreza da maioria da
população estaria associada ao parco capital social acumulado por um povo habituado à cultura
do “jeitinho brasileiro”.
Atividades
1. Faça a leitura do prefácio da obra Poliarquia (1977), de Robert Dahl, no qual você en-
contrará uma síntese da teoria da democracia elabora pelo cientista político Fernando
Limongi (1958-).
104 Sociedade e Contemporaneidade
2. Leia a obra O Estado e a revolução (1983), de Lenin – líder da Revolução Russa de 1917. Nela
você encontra a visão do autor sobre o conceito marxista de ditadura do proletariado.
3. Acesse sites de partidos políticos brasileiros e pesquise sobre seus programas. Procure textos
sobre as concepções de democracia por eles defendidas e busque conexões com os pensa-
mentos teóricos dos autores aqui estudados.
Nos sites de alguns dos partidos, você encontrará indicações bibliográficas, resenhas e extra-
tos de livros sobre esses assuntos.
Gabarito
2. A criminalidade e a corrupção são dois exemplos de doenças sociais, segundo esse ponto de vista.
2. O fator desencadeador da segunda onda foi o uso combinado do trabalho especializado na linha
de montagem com sistemas mecânicos de produção. Esse novo sistema de produção de riqueza
substituiu o trabalho artesanal, ocasionando as mudanças estruturais que transformaram a so-
ciedade da época.
3 A sociedade agrícola
1. Muito embora diferentes civilizações tenham existido no longo período de cerca de 10.000 anos
da primeira onda, em todas elas a base do sistema produtivo era o método de produção artesanal
e a agricultura tradicional. Permanecendo em todas essas sociedades o mesmo sistema de produ-
ção, subsistiram as estruturas sociais.
2. Os quatros princípios são: a ideia de democracia; a noção de igualdade dos cidadãos perante à lei;
a noção de direito estabelecido em leis escritas e o princípio da separação entre religião e Estado
derivada do monoteísmo e da existência da Igreja como instituição distinta do Estado.
3. O sistema feudal baseava-se numa estrutura de poder dos proprietários de terras sobre seus feu-
dos e no fato de que, dessa forma, o território fragmentava-se com cada senhor feudal definindo
a lei, a moeda, o dialeto e as unidades de medida. Essa falta de padronização dessas referências
dificultava o comércio e a expansão do capitalismo.
106 Sociedade e contemporaneidade
4 A sociedade industrial
1. Conforme Toffler, é a descoberta de novas tecnologias de produção de riqueza que impulsiona as
transformações estruturais das sociedades. Assim foi com a descoberta da agricultura, que permitiu
ao homem sair da pré-história, a descoberta das máquinas e da linha de montagem, que gerou o sur-
gimento da Revolução Industrial, e a invenção do avião a jato, da informática e das telecomunicações,
que deu origem à terceira onda.
2. Num sistema baseado no trabalho agrícola pelo método artesanal, requer-se muito trabalho braçal,
fator que deu origem à família tradicional, com várias gerações vivendo sob o mesmo teto e com a
valorização dos mais velhos, que detinham o conhecimento transmitido verbalmente entre gerações.
A Revolução Industrial e o trabalho nas fábricas exigiram o encolhimento e a mobilidade das famílias,
sendo o pai operário o provedor econômico do lar, tendo poder sobre o núcleo familiar. As novas
tecnologias da terceira onda segmentaram a produção e o consumo, fragmentaram a sociedade e per-
mitiram que o trabalho se libertasse das fábricas. Essas mudanças estão mudando o modelo da família
e o sistema de crenças e valores da sociedade contemporânea.
3. Segundo o enfoque de Toffler, os sistema produtivo, a sociedade e a economia de livre mercado mu-
dam e evoluem mais rapidamente do que os sistemas de regras e instituições sociais e políticas. Esse
descompasso explicaria as crises políticas e institucionais típicas dos períodos de transição estrutural
das sociedades.
5 A história da globalização
1. A resposta para essa questão depende de cada referencial bibliográfico que será pesquisado, pois os
teóricos, especialmente os historiadores, tendem a desenvolver enfoques próprios que subdividem
e explicam os períodos históricos e as transições de modo específico e distinto dos demais autores.
A questão central aqui está em identificar e diferenciar o enfoque de Toffler dos demais, já que esse
autor foi quem desenvolveu o enfoque das ondas civilizatórias, que divide os períodos históricos em
três, tomando como critério a matriz produtiva de cada período.
2. Antes da existência desse sistema complexo e que produz grande quantidade de informação simbólica
que circula em tempo de real por toda a superfície do planeta, os fatores de referência que influencia-
vam o psiquismo social e individual eram poucos e simples (família, comunidade, limites geográfi-
cos). Com essas novas tecnologias, indivíduos e sociedades passam a ser influenciados por uma carga
infinitamente maior e mais complexa de informações referenciais, dado que se trata de um sistema
de comunicação interligado globalmente por aparatos tecnológicos cujo funcionamento se baseia na
circulação de informações e símbolos.
3. A formação dos Estados nacionais decorreu da necessidade de superar os limites impostos pelas es-
truturas territoriais dos feudos (leis, moeda, dialetos, unidades de medida e fronteiras territoriais) que
fragmentavam o território e o sistema econômico impondo obstáculos à expansão comercial.
Gabarito 107
2. Sugere-se ao aluno sublinhar os trechos considerados mais importantes dos textos e, depois, transpor
de forma sintética os trechos sublinhados, para fichas de leitura que facilitem uma compreensão sin-
tética dos conteúdos.
3. O objetivo dessa tarefa é enriquecer o seu ponto de vista, permitindo a comparação entre suas sínte-
ses e a dos colegas. Não há uma reposta padrão para essa questão, dado que a configuração final das
comparações será específica de cada um, ao sintetizar os conteúdos e proceder as comparações.
7 A sociedade pós-industrial
Não há reposta certa ou errada para esse exercício. O objetivo aqui é oferecer ao aluno uma ferramen-
ta de autoanálise sobre seu perfil mais ou menos empreendedor de modo a que avalie suas caracterís-
ticas pessoais diante das exigências do mercado profissional na era tecnológica.
8 Identidades em transformação
1. Seguem links de referência para você pesquisar, sempre lembrando que é recomendável não se limi-
tar a eles. Ao fazer sua pesquisa, você deve recorrer apenas a fontes reconhecidas academicamente.
Fontes como Wikipédia, por exemplo, não são academicamente reconhecidas.
• <http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2015/09/o-que-e-realidade-virtual-
entenda-melhor-como-funciona-a-tecnologia.html>. Acesso em: 25 jul. 2018.
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