Cotidiano e Trabalho. Experiências Negras e Escravas em Taquara (1856-1888)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 263

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Ubiratã Ferreira Freitas

COTIDIANO E TRABALHO:
EXPERIÊNCIAS NEGRAS E ESCRAVAS EM TAQUARA (1856 – 1888)

Santa Maria, RS
2019
Ubiratã Ferreira Freitas

COTIDIANO E TRABALHO:
EXPERIÊNCIAS NEGRAS E ESCRAVAS EM TAQUARA (1856 – 1888)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como
requisito parcial para a obtenção do título de
Doutor em História.

Orientador: Prof. Dr. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

Santa Maria, RS
2019
Freitas, Ubiratã Ferreira
Cotidiano e Trabalho: experiências negras e escravas
em Taquara (1856 - 1888) / Ubiratã Ferreira Freitas. -
2019.
262 p.; 30 cm

Orientador: Dr. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa
Maria, Centro de Ciências Sociais e Humanas, Programa de
Pós-Graduação em História, RS, 2019

1. Colonização 2. Escravidão 3. Afro-brasileiros 4.


Sociedade. I. Santos, Dr. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos
II. Título.

Sistema de geração automática de ficha catalográfica da UFSM. Dados fornecidos


pelo autor(a). Sob supervisão da Direção da Divisão de Processos Técnicos da
Biblioteca Central. Bibliotecária responsável Paula Schoenfeldt Patta CRB 10/1728.
DEDICATÓRIA

Esta tese é dedicada a todos os africanos e afro-brasileiros que estiveram nas senzalas do
Brasil, em especial para os negros trabalhadores escravizados no Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana, município de Taquara, Rio Grande do Sul, que a partir de suas histórias
oportunizaram a construção de tal Tese.
AGRADECIMENTO

A construção deste estudo e formulação da Tese apresentada é fruto de uma longa


caminhada em busca de um ideal voltado para o desenvolvimento humano e pessoal. Pesquisar,
estudar, interpretar e valorizar as sociedades desfavorecidas de oportunidades é um tanto
desafiador, mas ao mesmo tempo gratificante no tocante a aprender, entender e constituir
valores a partir das análises, que, atribuídas à vida individual no passado, me fizeram refletir
sobre as verdadeiras necessidades que passamos até chegarmos a um bem comum. Assim, de
uma maneira geral e especial, tenho a agradecer:
- Aos meus queridos pais Ubirajara Oliveira de Freitas e Maria Geny Ferreira de
Freitas, que me deram a oportunidade de tê-los conhecido, além de me ensinarem que a vida
não é fácil, mas quando temos vontade de fazer algo, esse é alcançável; também por terem me
ensinado a ser correto com as outras pessoas, ser ético e olhar para frente. (In memoriam).
- À minha companheira Viviane Aparecida Barbosa Pessi, que sempre me motivou a
fazer tudo que tenho vontade, e por ter me mostrado que a vida é colorida quando realmente
olhamos para ela, também me mostrou que viver em comum acordo é gratificante quando nos
dispomos a ter desafios.
- À minha sogra D. Maria, que sempre ajudou em todos os momentos, vibrou a cada
vitória e apoiou em cada dificuldade que foi surgindo ao longo do caminho.
- À minha querida irmã Ana Elisa, que sempre esteve ao meu lado em todos os ‘nossos’
momentos difíceis, principalmente, nas nossas perdas familiares.
- Ao meu irmão Eduardo Ferreira de Freitas, que, mesmo se afastando do caminho da
felicidade, me ensinou a ter humildade (In memoriam).
- Aos professores da Universidade Federal de Santa Maria, por me darem essa
oportunidade de conviver no meio acadêmico.
- À minha querida prima, Prof.ª Me. Fátima Rejane Aires Florentino, que me ajudou
muito nas trocas de conversas e análises dos textos produzidos, sua ajuda foi crucial para o
desenvolvimento do texto final.
Enfim, a todos aqueles que fazem parte da minha vida e da minha História.

Obrigado.
Sou branco, quer dizer que tenho para mim a
beleza e a virtude, que nunca foram negras. Eu
sou da cor do dia...
Sou negro, realizo uma fusão com o mundo,
uma compreensão simpática com a terra, uma
perda do meu eu no centro do cosmos: o branco,
por mais inteligente que seja, não poderá
compreender Armstrong e os cânticos do
Congo. Se sou negro não por causa de uma
maldição, mas porque, tendo estendido minha
pele, pude captar todos os eflúvios cósmicos.
Eu sou verdadeiramente uma gota de sol sob a
terra...

(Frantz Fanon)
RESUMO

COTIDIANO E TRABALHO:
EXPERIÊNCIAS NEGRAS E ESCRAVAS EM TAQUARA (1856 – 1888)

AUTOR: Ubiratã Ferreira Freitas


ORIENTADOR: Dr. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

A presente tese inscrita na linha de Pesquisa Fronteira, Política e Sociedade, tem como tema
“Cotidiano e Trabalho: Experiências Negras e Escravas em Taquara (1856-1888)”, a seguinte
versa sobre a participação e presença do africano e afro-brasileiro na região do Vale do Rio dos
Sinos – Paranhana, onde se localizava a antiga Fazenda Mundo Novo, cujo trabalho e
exploração dos indivíduos escravizados teve grande importância para o desenvolvimento local
e produção para um largo comércio que se estabeleceu a partir de agricultores, criadores de
gado, comerciantes e atafoneiros, favorecendo o desenvolvimento econômico da região. A
análise desse fenômeno econômico nos permitiu perceber aspectos adversos da sociedade que
se desenvolveu. Também a tese apresenta a dinâmica da composição socioeconômica que
verificou a invisibilidade da população negra na região, como a exclusão social e também sua
trajetória como elemento de resistência, já que sua presença se manifesta na construção e
contribuição da formação do atual município de Taquara - RS, tendo esses indivíduos uma
parcela importante no trabalho e em diversos segmentos da sociedade da Fazenda Mundo Novo,
perpetrando, cada vez mais, as possibilidades de uma sociedade miscigenada, mas ao mesmo
tempo inferiorizada, dentro do contexto de colonização e formação social. Diante dos estudos
que foram produzidos ao longo dos últimos anos, destaca-se a contribuição da população negra
africana desde sua chegada ao Brasil. Assim, partindo dessa premissa, os afro-brasileiros
tiveram a associação de valores culturais africanos presentes, que fazem parte da cultura
nacional atual e sua consternação é clara em todos os sentidos. Para tais considerações
analisamos um corpo documental de fonte primária composto de inventário post mortem,
processo crime, livros eclesiásticos de batismo e casamento que viabilizou a importância da
desconstrução da invisibilidade negra, na composição da sociedade do município de Taquara-
RS, e junto com a colonização alemã, torna-se de suma importância para o reconhecimento das
raízes africanas no Rio Grande do Sul para valorizar esses trabalhadores. Assim, a presença
negra, a partir de 1856 até 1888, favoreceu o desenvolvimento desta tese, legitimando a
presença africana e afro-brasileira nas terras da antiga Fazenda Mundo Novo.

Palavras-chave: Colonização, Escravidão, Afro-brasileiro, Sociedade.


ABSTRACT

DAILY LIFE AND WORK:


BLACK AND SLAVE EXPERIENCES IN TAQUARA (1856-1888).

AUTHOR: Ubiratã Ferreira Freitas


ADVISOR: Dr. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

The present thesis inscribed in the Frontier, Political and Society Research line, has as its theme
"Daily and Labor: Black and Slave Experiences in Taquara (1856-1888)", the following is about
the participation and presence of African and Afro-Brazilian in the region of Vale do Rio dos
Sinos – Paranhana, where the former Fazenda Mundo Novo was located, whose work and
exploitation of enslaved individuals had great importance for local development and production
for a wide trade that was established from farmers, livestock farmers, traders and atafoneiros,
favoring the economic development of the region. The analysis of this economic phenomenon
allowed us to perceive adverse aspects of the society that developed. The thesis also presents
the dynamics of socioeconomic composition that verified the invisibility of the black population
in the region, such as social exclusion and also its trajectory as an element of resistance, since
its presence manifests itself in construction and contribution formation of the current
municipality of Taquara - RS, with these individuals having an important share at work and in
various segments of the Mundo Novo Farm society, increasingly perpetrating the possibilities
of a mixed society, but at the same time within the context of colonization and social formation.
In view of the studies that have been produced over the past few years, the contribution of the
Black African population has been highlighted since its arrival in Brazil. Thus, starting from
this premise, Afro-Brazilians had the association of African cultural values present, which are
part of the current national culture and their dismay is clear in every way. For such
considerations we analyzed a documental body of primary source composed of post mortem
inventory, crime process, ecclesiastical books of baptism and marriage that enabled the
importance of deconstruction of black invisibility, in the composition of the society of the
municipality of Taquara-RS, and together with German colonization, becomes of paramount
importance for the recognition of African roots in Rio Grande do Sul to value these workers.
Thus, the black presence, from 1856 until 1888, favored the development of this thesis,
legitimizing the African and Afro-Brazilian presence in the lands of the former Fazenda Mundo
Novo.

Keywords: colonization, slavery, African descent, society.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Mapa – Rio Grande do Sul – 1809, Localização do Vale do Rio dos Sinos ........... 67

Figura 2 - Mapa – Vale do Rio dos Sinos – Paranhana ............................................................ 68


LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Desenvolvimento Econômico de animais 1856 – 1888 ....................................... 111


Gráfico 2 – Animais de 1856 – 1888 ...................................................................................... 112
Gráfico 3 – 116 Inventários de 1856 – 1888 ........................................................................... 141
Gráfico 4 – Registros de Batismo 1859 – 1888 ....................................................................... 190
LISTA DE TABELAS

Tabela 01 – Relação de Bens: Animais e Armarinho – Antônio Borges 1835 ........................ 46


Tabela 02 – Relação de Bens: Escravos em Porto Alegre – Antônio Borges 1835 ................. 46
Tabela 03 – Animais da Sesmaria Mundo Novo ...................................................................... 48
Tabela 04 – Escravos Sesmaria Mundo Novo .......................................................................... 49
Tabela 05 – Formas de Registros da Terra .............................................................................. 69
Tabela 06 – Relação dos Animais Vacuns 1856 – 1869 ......................................................... 100
Tabela 07 – Relação dos Animais Vacuns 1870 – 1879 ......................................................... 101
Tabela 08 – Relação dos Animais Vacuns 1880 – 1888 ......................................................... 101
Tabela 09 – Relação dos Animais Equinos 1856 – 1869 ........................................................ 105
Tabela 10 – Relação dos Animais Equinos 1870 – 1879 ........................................................ 106
Tabela 11 – Relação dos Animais Equinos 1880 – 1888 ........................................................ 107
Tabela 12 – Relação dos Animais Muares 1856 – 1869 ......................................................... 108
Tabela 13 – Relação dos Animais Muares 1870 – 1879 ......................................................... 109
Tabela 14 – Relação dos Animais Muares 1880 – 1888 ......................................................... 109
Tabela 15 – Relação dos Animais Oviários 1856 – 1888 ........................................................ 110
Tabela 16 – Economia de Cativos 1856 – 1869 ...................................................................... 114
Tabela 17 – Preço Médio de Cativos por Ano ......................................................................... 115
Tabela 18 – Economia de Cativos 1870 – 1879 ...................................................................... 116
Tabela 19 – Preço Médio de Cativos por Ano 1870 – 1879 ................................................... 117
Tabela 20 – Economia de Cativos 1880 – 1887 ...................................................................... 119
Tabela 21 – Preço Médio de Cativos por Ano 1880 – 1887 ................................................... 121
Tabela 22 – Vale do Rio dos Sinos – Paranhana 1856 – 1888 ................................................ 145
Tabela 23 – Afro-brasileiros – Sexo – 1856 – 1888 ................................................................ 147
Tabela 24 – Crianças Masculinas e Femininas de 0 a 10 anos ................................................ 149
Tabela 25 – Jovens Masculinos e Femininos de 11 a 20 anos ................................................ 150
Tabela 26 – Adultos Masculinos e Femininos de 22 a 74 anos 1856 – 1888 .......................... 152
Tabela 27 – Classificação por Cor 1856 – 1888 ...................................................................... 154
Tabela 28 – Classificação Por Cor e Sexo 1856 – 1888 .......................................................... 156
Tabela 29 – Libertos, Forros e Contratos 1856 – 1888 ........................................................... 158
Tabela 30 – Escravos de João Luiz de Souza 1863 ................................................................. 165
Tabela 31 – Família Cativa da Escravaria de João Luiz de Souza 1863 ................................. 166
Tabela 32 – Escravos de Manoel Soares de Oliveira 1863 ..................................................... 167
Tabela 33 – Escravos de Paschoa Garcia do Espírito Santo 1865 ........................................... 168
Tabela 34 – Escravos de Antonio de Souza Bitencourt de Carvalho 1866 ........................... 169
Tabela 35 – Escravos de Bernardo Luiz de Souza 1869 ......................................................... 170
Tabela 36 – Escravos de Boaventura José dos Santos 1870 .................................................... 171
Tabela 37 – Possíveis Casais e Formação da Família Cativa de Boaventura J. Santos .......... 171
Tabela 38 – Escravos de Francisco de Paula Feijó 1874 ......................................................... 173
Tabela 39 – Escravos de Felipe Borges do Amaral 1876 ........................................................ 175
Tabela 40 – Projeção de Casal e Formação da Família Cativa 1876 ...................................... 176
Tabela 41 – Escravos de José Martins Pires 1882 ................................................................... 177
Tabela 42 – Filhos de Leonarda – Registro de Batismo 1856 – 1888 ..................................... 178
Tabela 43 – Escravos de Laurindo Cardoso de Aguiar 1883 .................................................. 180
Tabela 44 – Registros de Batismo 1859 – 1888 ...................................................................... 190
Tabela 45 – Indefinidos “Livres” Batizados 1862 – 1869 ....................................................... 191
Tabela 46 – Indefinidos “Livres” Batizados 1870 – 1879 ....................................................... 192
Tabela 47 – Indefinidos “Livres” Batizados 1880 – 1888 ....................................................... 193
Tabela 48 – Registro de Senhores Escravistas 1859 – 1888 ................................................... 195
Tabela 49 – Cativos Batizados 1859 – 1869 ........................................................................... 198
Tabela 50 – Cativos Batizados 1870 – 1879 ........................................................................... 199
Tabela 51 – Cativos Batizados 1880 – 1888 ........................................................................... 200
Tabela 52 – Mães e Pais Cativos com Classificação Social 1859 – 1888 ............................... 201
Tabela 53 – Porcentagem e Definições dos Pais das Crianças Batizadas ............................... 202
Tabela 54 –Condições das Mães dos Batizados 1859 – 1888 ................................................. 202
Tabela 55 – Condição dos Pais Homens dos Batizados 1859 – 1888 ..................................... 202
Tabela 56 – Mães e Pais Sem Classificação Étnica 1859 – 1888 ............................................ 203
Tabela 57 – Escravos de Franz Koch 1859 – 1888 ................................................................. 204
Tabela 58 – Padrinhos e Madrinhas Com Classificação 1859 – 1888 .................................... 208
Tabela 59 – Padrinhos e Madrinhas Afros 1859 – 1888 ......................................................... 209
Tabela 60 – Padrinhos e Madrinhas que Mais Batizaram ....................................................... 210
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 15
CAPÍTULO I – A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA FAZENDA MUNDO NOVO
(TAQUARA – RS) ..................................................................................................... 27
1 A OCUPAÇÃO DAS TERRAS DO VALE DO RIO DOS SINOS NO FINAL DO
SÉCULO XVIII E AO LONGO DO SÉCULO XIX ...............................................28
1.1 OUTROS CONCEITOS DE FRONTEIRA ................................................................ 35
1.1.1 A Fronteira Regional ................................................................................................ 39
1.2 A TERRA À MERCÊ DE QUEM OCUPASSE: ANTONIO BORGES DE ALMEIDA
LEÃES ....................................................................................................................... 41
1.2.1 Tristão José Monteiro: o incremento da frente de expansão no Vale do Rio dos
Sinos – Paranhana .................................................................................................... 52
1.2.2 Da colônia do Mundo Novo ao município de Taquara .......................................... 58
1.3 ALGUNS ASPECTOS DA COLONIZAÇÃO, OCUPAÇÃO E FORMAÇÃO DE
SÃO LEOPOLDO ...................................................................................................... 59
1.4 O AFRO-BRASILEIROS NA FAZENDA MUNDO NOVO ................................... 71
1.4.1 Discurso, manutenção e ação dominadora .............................................................. 78
1.4.2 Cotidiano: a fronteira entre o afro-brasileiro e uma sociedade de imigração
Europeia..................................................................................................................... 81
CAPÍTULO 2 – A OCUPAÇÃO DA ENCOSTA DA SERRA: COLONIZAÇÃO E
PRODUÇÃO .............................................................................................................. 88
2 A ECONOMIA AGROPECUÁRIA DE ABASTECIMENTO ............................. 89
2.1 PRODUÇÃO DE ANIMAIS VACUM – GADO E COMÉRCIO .............................. 99
2.2 PRODUÇÃO DE ANIMAIS EQUINOS – CAVALARES ....................................... 104
2.3 PRODUÇÃO DE ANIMAIS EQUUS – MUARES ................................................... 107
2.4 PRODUÇÃO DE ANIMAIS OVIÁRIOS – OVELHAS .......................................... 110
CAPÍTULO 3 – AS INVISIBILIDADES FRONTEIRIÇAS NAS RELAÇÕES
ÉTNICO-SOCIAIS ................................................................................................... 125
3 O QUE É SER ESCRAVO: CONCEITO E INTERPRETAÇÃO ...................... 126
3.1 INVENTÁRIOS, SENHORES E ESCRAVOS ......................................................... 137
3.2 COMÉRCIO DE ESCRAVOS: COTIDIANO LEGALIZADO E CLANDESTINO.153
3.3 CONTEXTO SOCIAL: FAMÍLIA, ASSIMILAÇÃO E COSTUMES ..................... 159
3.4 A FORMAÇÃO DA FAMÍLIA ESCRAVA E SEU DESENVOLVIMENTO NO
CATIVEIRO ............................................................................................................. 161
CAPÍTULO 4 – O BATISMO COMO TRAJETÓRIA E MEIO DE ASCENSÃO
SOCIAL NA FAZENDA MUNDO NOVO .............................................................. 183
4 ALGUMAS FRONTEIRAS ULTRAPASSADAS COM O COMPADRIO:
PROCESSO DE RELAÇÕES PRÓXIMAS ......................................................... 184
4.1 COMPADRIO: REGISTRO DE BATISMO DOS INDIVÍDUOS INDEFINIDOS . 187
4.2 COMPADRIO REGISTRO DE BATISMO DOS INDIVÍDUOS EM CATIVEIRO
................................................................................................................................... 194
4.3 PADRINHOS: RELAÇÕES SOCIAIS E ESPERANÇAS FUTURAS .................... 207
4.3.1 Padrinhos que mais batizaram no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana ............. 210
4.3.2 Madrinhas que mais batizaram no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana ............ 214
4.4 TRAJETÓRIA DOS AFRO-BRASILEIROS: A FRONTEIRA DO ESCRAVISMO
EM BUSCA DA EMANCIPAÇÃO .......................................................................... 221
4.4.1 Alforria uma relação de tensão ............................................................................... 230
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 236
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 243
FONTES MANUSCRITAS .................................................................................... 251
ANEXOS .................................................................................................................. 252
15

INTRODUÇÃO

Em um dos primeiros dias de aula deparei-me com alguns alunos negros que somente
respondiam a chamada em sala de aula. Perguntei para outros colegas quem eram esses alunos,
responderam que eram do chamado “Quilombo do Paredão”. Fiquei surpreso. Um quilombo
em uma colônia de alemães? Então pensei: o que seria migração? Esse é o ponto de partida para
esta tese, pois a partir dessa informação fui verificar como surgiu o quilombo e o que tinha de
bibliografia local sobre essa comunidade.
É sabido que o escravismo esteve presente durante os séculos que sucederam a
colonização do Brasil e, posteriormente, quando constituídos os impérios brasileiros. Dentro
desse cenário, a ocupação territorial no Rio Grande do Sul foi constante. A exploração e
exclusão das populações nativas que aqui viviam sofreram muitos abalos para efetivação e
favorecimento da constituição de uma sociedade voltada para a fixação na terra, para a produção
agrícola e criação de animais domésticos, além da manutenção da mão-de-obra escravizada de
trabalhadores negros.
Apresentar a região do Vale do Paranhana, localizado no Vale do Rio dos Sinos, a
nordeste da capital Porto Alegre, sendo uma importante área de terra que contribuiu para a
campanha de ocupação territorial, além de ter o incremento colonizatório de imigração alemã,
tornando essa região como uma continuidade da colonização de São Leopoldo, que é o marco
da colonização alemã no Rio Grande do Sul, foi um tanto desafiador para este pesquisador.1
A história contada oralmente na bibliografia local não contempla o trabalhador negro
escravizado, que foi inserido como elemento fundamental de mão-de-obra para o
desenvolvimento regional durante os anos que se sucederam ao desbravamento territorial
colonizatório do nosso locus de pesquisa. Já que o trabalhador escravizado não consta como
agente construtivo e de importância para essa região, é necessário dar voz a esses agentes,
retirando-os da invisibilidade em que foram inseridos e ressignificar a história do município de
Taquara, que é uma microrregião metropolitana de Porto Alegre e de São Leopoldo, com
importância econômica e de escoamento produtivo, que se liga tanto ao litoral norte quanto à
serra.

1
A utilização do termo “Vale do Paranhana”, se dá por que atualmente esse vale é considerado uma microrregião
do Vale do Rio dos Sinos, também, no decorrer do texto utilizaremos a nomenclatura “Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana” para melhor situar sua geografia, e em momentos oportunos para tal denominação também, usamos
para enfatizar para o leitor sua localização atual, mas é nesse Vale do Paranhana que se constitui a Fazendo do
Mundo Novo. Assim, buscamos apresentar a sua história e seu desenvolvimento regional, incrementando o afro-
brasileiro como objeto de nossa pesquisa.
16

A presença de negros escravizados, explorados e subjugados pela sociedade branca


local é fato que legitimamos pelas fontes utilizadas, mas é necessário perceber que essas pessoas
participaram do desenvolvimento econômico e comercial local, assim, é de suma importância
apontar que, através da documentação analisada, foi possível perceber sua capacidade de
estratégia política e de resistência sobre o escravismo que lhe foi imposto. Com a necessidade
de fazer valer a história local e a participação desses indivíduos escravizados, buscamos ampliar
o conhecimento sobre as relações entre negros e colonos europeus que fomentaram o
desenvolvimento regional na antiga Fazenda do Mundo Novo, atual região e cidade de Taquara,
no Rio Grande do Sul.
Procurando referências na bibliografia local sobre a possível presença de cativos nessa
antiga colônia, nos deparamos com três volumes referentes à colonização germânica na região,
com autoria do senhor Erni Engelmann, intitulado “A Saga dos Alemães” (2005). Em seu
volume II consta o título “A Participação dos Negros e Escravos na Colônia” e seguindo, em
seu primeiro parágrafo, o texto:

Os seguintes relatos mostram diferentes formas de tratamento recebidas pelos negros,


entre os colonos alemães, provando que preconceitos haviam, como ainda hoje, contra
os negros, em muitos casos, mas que o oposto também é verdade, pois, em muitas
famílias o tratamento que lhes era dado era o de um filho, de um irmão, e, não raro,
como uma das pessoas mais queridas naquele meio (ENGELMANN, Erni, 2005, p.
603). 2

Como já demonstrado em outras pesquisas realizadas sobre o escravismo no Rio


Grande do Sul, as relações entre cativos e senhores não foram tão amenas como cita Erni
Engelmann, já que no processo de ocupação das terras que ainda não eram ocupadas, a mão-
de-obra escravizada foi um dos elementos fundamentais para o desenvolvimento regional e
ocupacional, o cativo teve que trabalhar enfrentando as intempéries da realidade em que foi
inserido.
No decorrer da ocupação territorial em outras regiões, os colonos europeus que
adentraram na Capitania de São Pedro, atual Estado do Rio Grande do Sul, também
necessitaram de mão-de-obra escravizada para seu desenvolvimento, de suas plantações e
criações de animais. Nesse contexto, fomos movidos a saber como se constituiu o Quilombo do
Paredão no município Taquara.

2
ENGELMANN, Erni G. A Saga dos Alemães: do Hunsrück para Santa Maria do Mundo Novo. V. II. Igrejinha:
Editora Comunicação Impressa, 2005.
17

Em um livro chamado Lendas, Fatos e Pessoas da Taquara Velha do Mundo Novo


(1998), com a autoria do Dr. Alberto Martins, encontramos alguns fatos ou contos históricos
redigidos através da história oral, que retrata o cotidiano da sociedade desde a segunda metade
do século XIX ao início do século XX. Nas páginas desse livro, nos deparamos com alguns
fatos que realçam a presença cativa e as relações sociais sobre o escravismo na então Fazenda
do Mundo Novo.
Para visualizar a presença cativa na região do Vale do Paranhana ampliamos nosso
olhar em direção às fontes que possivelmente seriam apropriadas para legitimar a presença de
negros africanos e afro-brasileiros nessa região. Assim buscamos utilizar, em um primeiro
momento, os inventários post mortem para perceber o que esses inventários ofereciam para
legitimar a presença desses indivíduos escravizados nessa terra.
Essa análise foi fundamental, pois, a partir dessa fonte, tivemos a oportunidade de
fazer um levantamento do período de 1856 a 1888, onde obtivemos a soma de 405 cativos, em
116 inventários, além de muitos animais como: gado, cavalos e mulas que movimentaram a
economia local e a prática da agricultura. Com esse levantamento, as hipóteses da presença de
africanos e afro-brasileiros, na região, se concretizaram, sendo agora uma verdade. Esses
indivíduos negros africanos e afro-brasileiros estiveram trabalhando na região, sendo
explorados e se movimentando com mobilidade para encarar a vida em cativeiro, viabilizando
ampliar os estudos sobre a escravidão em uma colônia constituída de imigrantes europeus.
A partir dos inventários, outras possibilidades de fontes foram sendo agregadas, em
cada momento de análise, outros questionamentos foram surgindo: assim, passamos a utilizar
os Livros de Batismo como fonte para entender as relações sociais próximas. Nosso
levantamento chegou a 858 registros de batismos para o Vale Paranhana: com esses registros
foi possível formar um banco de dados que, relacionados, passaram a ser muito úteis; pois, a
partir da construção de tabelas por décadas, os números de cativos aumentaram
consideravelmente, chegando a 362 batismos de crianças em cativeiro, além de outras que
desconfiamos serem filhos de afro-brasileiros, mas não conseguimos provar.3
Com os registros de batismos podemos traçar um movimento entre os padrinhos que
mais se destacaram na pia batismal, questionando quais seriam os motivos que levaram essas
pessoas a serem convidadas para batizar os filhos do cativeiro. Visto que, em muitos casos, os

3
Muitas das palavras que aparecem no texto sem agrafia correta, com falta de acentos ou com letras não usuais na
atualidade foram retiradas dos textos das fontes primárias citadas anteriormente, assim buscamos preservar a grafia
da época e sua originalidade em que foram escritos os textos no período do século XIX.
18

conhecidos ou familiares dos próprios senhores foram os padrinhos e madrinhas, assim também
como os escravos e libertos que faziam parte desse processo.
Outra fonte utilizada foram os Processos Crimes. Nesses documentos buscamos
perceber como se moldaram as trajetórias desses trabalhadores que se envolveram em crimes e
quais foram suas penas pelos delitos. Em muitos casos, os réus morreram antes de ganharem a
sentença de culpados ou absolvidos, porém foi possível verificar como se movimentavam as
relações de sociabilidade, mobilidade e relacionamentos conturbados entre os envolvidos e a
sociedade local.
Encontrar elementos que possam ampliar o conhecimento de determinado estudo foi
nossa intenção de pesquisa, com isso centrar as fontes como ponto de partida, explorando seus
conteúdos, é também uma maneira de avaliar suas variáveis como legitimidade e
representatividade para nossa análise.
Segundo Eliane Mimesse Prado:

Para o bom andamento de uma pesquisa é necessário que o pesquisador tenha como
foco os modos como vai lidar com as fontes primárias. Dependendo do tipo de
aproximação que faça dessas fontes, o andamento de sua pesquisa corre o risco de
tomar os mais diversos rumos, e nem sempre os que foram propostos no início do
estudo (PRADO, 2010, p. 01). 4

A valorização do objeto de pesquisa também é a possibilidade de se encontrar


elementos importantes nas relações complexas que cada fonte carrega. Eliane Mimessi Prado
(2010) ainda faz referência a Michel de Certeau, quando esse diz “que uma leitura do passado,
por mais controlada que seja pela análise dos documentos, é sempre dirigida por uma leitura do
presente” (PRADO, 2010, p. 125). 5
Em muitas vezes a análise dos inventários post mortem e a quantidade de cativos que
constam nesses documentos não são as mesmas que se apresentam nos registros de matrícula
dos cativos, assim podendo variar bastante na exatidão dos números desses trabalhadores.
Porém, foi possível fazer um parâmetro/média para chegarmos a um percentual favorável de
utilização.
Essas fontes também descrevem os tipos de profissões que esses trabalhadores
privados de liberdade possuíam, assim defrontar as relações de trabalho e suas especificidades,
relacionando-as com a economia local, tornou possível percebermos que, em determinada

4
PRADO, Eliane Mimessi. A Importância das Fontes Documentais para a Pesquisas em História da Educação.
Inter Meio: revista do Programa de Pós-Graduação em Educação, Campo Grande, MS, v.16, n.31, p.124-133,
jan/jun. 2010.
5
Idem.
19

região ou estado, as características de produção definiam as profissões desses trabalhadores.


No nosso casso específico, as profissões que mais se destacaram foram: lavradores, cozinheiras,
costureiras, domésticas e campeiros.
Com esse cuidado, na utilização das fontes, é que construímos os capítulos desta tese
para retirar da invisibilidade esses trabalhadores, que tiveram suas vidas ceifadas pelo
escravismo, buscando elencar, através da presença do afro-brasileiro em uma sociedade com
bases no trabalho servil, que as relações cotidianas foram formadas com alicerces em um
discurso de exploração e relações políticas e sociais.
Silvia Petersen (1991), em análise de trabalhos com títulos que utilizam o vocábulo
cotidiano, verifica que esse termo é somente uma palavra, empregada em diversos artigos, sem
possuir um conceito específico dentro de sua complexidade, estando relacionada a uma
representação da realidade em que tudo o que diz respeito à vida do homem é cotidiano. Com
isso, a epistemologia da palavra vira senso comum segundo a autora. Dessa maneira refere um
conceito que busca definir o que se quer pesquisar em uma teorização do cotidiano.
Segundo Silvia Petersen:

O cotidiano é uma categoria que expressa para os autores um conjunto de relações e


práticas significativas para a explicação dos objetos que trabalham e desta forma,
possuem uma função de instrumental analítico. No desenvolver dos trabalhos tal
perspectiva está subjacente nas análises, mas isto não significa que neles se observe
um esforço mais profundo de teorização da cotidianidade, de indagar em que consiste,
afinal, a vida cotidiana (PETERSEN, 1991, p. 07).6

As relações cotidianas se estabelecem no interior da sociedade, a partir das esferas de


cotidianidade, que são produzidas pelos sujeitos ou grupos no meio social. Trata-se de um
processo que pertence, nesse caso, a família, tudo aquilo que se refere a um conceito de valor
ou que constitui valores predominantes em uma determinada sociedade e que reflete a
representação de segurança ao grupo ou ao sujeito social.
Assim, foi se constituindo as esferas sociais de cotidiano dentro da grande esfera que
é a sociedade, a partir da qual as manifestações subsequentes foram traduzindo uma realidade
que se transformou em cotidianidade, já que outros grupos, dentro do próprio grupo de sujeitos,
criaram suas representações e, com elas, formaram seu imaginário e sua vida diária, ou seja, o
cotidiano.
Com isso podemos perceber que, durante o processo dos grupos sociais e suas faixas
etárias, o cotidiano tornou-se uma luta de conceitos em que o indivíduo estava inserido e pode

6
PETERSEN, Silvia. Dilemas e Desafios da Historiografia Brasileira: a temática da vida cotidiana. Porto Alegre:
UFRGS, 1991.
20

incluir coletividade ou dispersão. Também é possível que se organize para promover uma
transformação de aspectos em que venha a enfatizar a identidade social.
Assim, o estudo sobre a presença afro-brasileiro na Fazenda Mundo Novo, com base
na vida cotidiana, está relacionado com a categoria escravista, em que a presença de cativos no
atual município de Taquara, no Rio Grande do Sul, teve importância no desenvolvimento
econômico, social e político da região.
Tanto os colonizadores portugueses, quanto os colonos alemães, utilizaram a mão-de-
obra cativa e, consequentemente, os sujeitos escravizados empregaram os meios de
sociabilidade e formação de laços solidários, em alguns momentos, para resistirem ao sistema
escravista colonial.
Outro elemento que faz jus ao cotidiano a ser apresentado é sobre a constituição da
família cativa, visto que, pelas porcentagens que surgiram nas fontes sobre o gênero, foi
possível vislumbrar os elementos que compõem as relações sociais familiares e as relações de
sociabilidade que caracterizaram, no escravismo, algumas formas de resistência ao sistema e
estratégias para manutenção familiar fora da senzala.
Robert Slenes faz uma analogia:

Um ‘galho de roseira seco’, para um velho trabalhador francês, poderia lembrar-lhe


‘a pátria (...) a mãe ou a noiva’, e confrontá-lo na hora do encontro com a morte. Já
‘nos cubículos dos negros, jamais vi uma flor: é que lá não existem nem esperanças
nem recordações’ (SLENES, 1999, p. 131). 7

É nesse contexto que nos foi ensinado, que devemos pensar que a esperança para um
escravizado nunca tivera existido, mas o cotidiano fez prevalecer o aprendizado e através dele
muitos desses cativos tiveram a oportunidade de se manifestar e resistir contra o sistema. Assim
foi possível verificar nas fontes utilizadas que o sistema escravista foi uma exploração que
vitimou centenas de pessoas não lhes dando a chance de se desenvolver em seu habitat natural,
fazendo com que fossem subjugadas ao máximo, além de sua importação para essas terras
longínquas da África.
A utilização dos Inventários post mortem, Livros de Casamentos, Livros de Batismo e
Processo Crime,8 como fonte de análise, nos auxiliou para legitimar a presença do africano e
afro-brasileiro na Fazenda Mundo Novo. Nossa análise de tese caracteriza-se como uma

7
SLENES, Robert. Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
8
A partir da análise dessas fontes primárias, utilizamos no decorrer do texto dessa tese, a grafia de palavras e
nomes próprios de acordo como foram escritos no decorrer do texto da fonte primária, assim em alguns casos,
algumas palavras não constam acentos e outras características de acordo a nova ortografia atual.
21

pesquisa quantitativa, visando perceber o número de cativos que cada senhor possuía, não
descartando outros elementos que as fontes nos proporcionaram, como relações econômicas,
relações cotidianas, relações sociais e as relações políticas que ocorreram no então futuro
município de Taquara, por volta de 1856 a 1888.
As fronteiras foram estabelecidas entre os agentes do escravismo, de um lado a
sociedade formada com bases em trabalho servil regional para a manutenção de subsistência e
comércio com outros centros e, do outro, os trabalhadores africanos e afro-brasileiros que
ajudaram, ou foram os que realmente trabalharam, para o desenvolvimento regional-comercial
e os que mais sofreram com as tais fronteiras estabelecidas, onde o não reconhecimento por sua
presença fez do imigrante europeu lusitano e germânico na região, serem reconhecidos como
os grandes construtores e desbravadores das terras que ainda não estavam ocupadas, e formando
então, a Fazenda Mundo Novo e, posteriormente, o município de Taquara.
Nossa metodologia foi analisar o que as fontes poderiam oferecer a partir dos seus
registros. Construímos um banco de dados que possibilitou formar um tipo de mapa de
elementos constituídos nessas fontes, algumas tabelas e gráficos para demonstrar e organizar
os elementos analisados. Com isso buscamos elaborar o texto que nos possibilitou elencar as
relações econômicas e sociais entre os agentes do escravismo, valorizando as relações entre
ambos e verificando as ‘maneiras’ como se desenrolaram essas relações dentro do sistema
escravista, assim valorizando a presença do afro-brasileiro e sua importância para o
desenvolvimento regional.
A pesquisa se desenvolveu a partir de palavras chaves, como escravidão, afro-
brasileiro, sociedade, relações políticas e relações sociais, entre senhores e cativos, na formação
social, econômica e política na cidade de Taquara, antiga Fazenda Mundo Novo, entre 1856 –
1888, no Rio Grande do Sul. Nossa análise parte dos inventários post mortem, sendo o mais
antigo documento encontrado para essa região, o inventário de João Ignácio Pereira com
datação de 1856 e também por estar dentro da década em que foi proibido o tráfico de escravos
para o Brasil, transformando o afro-brasileiro cativo em uma mercadoria mais valiosa no
comércio interno, que se estabeleceu pela falta de africanos.
Com a existência de uma vasta documentação de fonte primária, foi possível
estabelecer um mapeamento demográfico quantitativo, para percebermos a presença das
escravaturas, pois anteriormente à doação da Sesmaria a Antônio Borges de Almeida Leães em
1814, em Santa Cristina do Pinhal, já existia presença lusa na região, consequentemente,
senhores escravistas.
22

Levando em consideração esses fatores, o ano de 1856 é importante para demarcar o


período inicial da análise. Segundo Vinícius Pereira de Oliveira (2006), “Considerável parcela
da historiografia sobre a imigração e colonização alemã no Rio Grande do Sul transmite, com
maior ou menos ênfase, a ideia de que essas regiões se desenvolveram à parte da sociedade rio-
grandense” (OLIVEIRA, 2006, p. 51). 9
Esta tese está estruturada em quatro capítulos, sendo o primeiro capítulo uma
contextualização e formação histórica local geográfico do Vale do Rio dos Sinos e Paranhana,
mostrando como se constituiu a Fazenda Mundo Novo; quais os valores e conceitos de fronteira
que foram utilizados; aspectos da colonização de São Leopoldo, onde é o marco da colonização
teuta na região do Vale do Rio dos Sinos; quais os fatores que levaram Antônio Borges de
Almeida Leães requerer uma Sesmaria na Região e quais foram as ambições de Tristão José
Monteiro em comprar toda a sesmaria e lotear para os colonos imigrantes europeus a partir de
1846, além da presença de afro-brasileiros nas terras da futura colônia. Ainda, no primeiro
capítulo, como foram se consolidando as relações comercias, de trabalho e produção econômica
e a quantidade de trabalhadores escravizados na localidade Fazenda Mundo Novo.
No segundo capítulo buscamos averiguar como foi a ocupação da encosta da serra e a
economia que se estabeleceu, além do valor econômico dos africanos e afro-brasileiros
escravizados, também definimos quem eram esses senhores produtores, que mantinham em
suas terras as escravarias; como se desenvolveram as relações de produção e economia regional,
além de apresentar a criação de animais diversos com grande quantidade de animais vacuns,
cavalos e mulas em uma área sem um vínculo de exploração do uso da carne salgada, mas com
um potencial agropastoril voltado para a economia de subsistência e uma produção de
abastecimento comercial destinada, em grande aparte, ao tropeirismo, mas não foi dado ênfase
para esse evento por falta de fôlego na escrita.
No terceiro capítulo, a abordagem parte da presença do afro-brasileiro e as
invisibilidades fronteiriças nas relações étnico sociais e suas estratégias para driblar as
armadilhas do escravismo, também conceituamos o que é ser escravo, para verificar como o
desenvolvimento das escravarias e seus agentes estão, conceitualmente. Com isso, a intenção
está direcionada para uma análise das relações afetivas matrimoniais, relações cotidianas do
trabalho e as relações políticas com seus senhores, visando como esses afro-brasileiros
visionavam a liberdade através do casamento, em contrapartida, ao poder dos senhores.

9
OLIVEIRA, Vinícius Pereira de. De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino em terras
meridionais. Porto Alegre: EST Edições, 2006.
23

Para o quarto capítulo, o batismo como meio de ascensão social também viabilizou a
percepção da trajetória dos afro-brasileiros dentro das fronteiras do escravismo, essas relações
de compadrio ampliam as possibilidades para análises sobre os padrinhos que mais se
manifestaram nos registros, tanto dentro como fora da senzala. Também buscamos entender as
relações entre senhores, familiares que batizaram os filhos dos cativos e população livre que
esteve presente na pia batismal. Além dos batismos, a trajetória da alforria do preto Benedito
em um processo crime, nos mostra que a luta constante pela liberdade não foi algo passivo, mas
se fez valer dentro das estruturas institucionais que foram redigidas pela própria sociedade
escravista sobre o escravismo.
A metodologia teórica se volta para a utilização dos conceitos a serem abordados, por
também existir uma vasta bibliografia sobre o tema da pesquisa, foi viável uma abordagem mais
específica na tentativa de relacionar as fontes bibliográficas com a região da pesquisa, visto que
a bibliografia convencional não contempla favoravelmente o afro-brasileiro, assim, buscando
perceber, se para algumas regiões, os padrões de produção e manutenção do cativeiro tiveram
alguma diferenciação em comparativo. A intenção é retirar da invisibilidade os cativos de todo
um período histórico local, colocando-os em evidência e valorizando os desvalorizados nas
relações de trabalho e construção social.
Na possibilidade da reconstrução do processo histórico, principalmente das trajetórias
dos afro-brasileiros cativos que estiveram no Rio Grande do Sul durante o século XIX,
convenciona a oportunidade de analisar as permanências e transformações, que ao longo do
tempo apresentaram uma organização no trabalho e na vida escrava. A procura de preencher
uma lacuna histórica com a produção de uma pesquisa quantitativa, envolvendo os agentes que
possuem os meios produtivos e os sujeitos subalternos e explorados que fazem parte do modo
de produção escravista empregado na Fazenda Mundo Novo, tornou-se o nosso objeto de
análise.
É nesse contexto que buscamos valorizar, na história local, a presença dos afro-
brasileiros da Fazenda Mundo Novo, que no tempo passado, lutaram e se organizaram para se
manterem em uma regularidade que contribuiu para sua permanência no tempo histórico, assim
buscamos a valorização do sujeito escravizado, forro e livre no século XIX.
Paulo Moreira e Miqueias Mugge (2014) se utilizaram desse tempo histórico para
trazer à tona a presença afro-brasileira e africana na antiga colônia alemã de São Leopoldo, já
que a escravidão foi marcante na região e, progressivamente, ainda a sociedade não aceita tais
fatos. Nossa pesquisa também buscou legitimar que, no Vale do Paranhana, a presença do afro-
brasileiro teve sua representatividade. “A partir da percepção de lacunas historiográficas e
24

especialmente, do uso de fontes históricas e documentos muito diversos, pretendemos ajudar a


começar a completar esse vazio. Trata-se de uma tentativa de entender esquecimentos”
(MOREIRA E MUGGE, 2014, p. 11). 10
Na mesma sequência de investigação do entendimento desses “esquecimentos”, Eni
Orlandi (2008) descreve como se constrói o discurso de dominação e o esquecimento das
realidades existentes na relação dos povos que são subjugados ao detrimento de outros, assim
como na colonização da América, onde tudo que existia dos povos ameríndios passou a não ter
valor na visão ocidental europeia, foram deixados de lado para construir o Novo Mundo nos
moldes da exploração e manutenção das Coroas Ibéricas.
Segundo a autora:

O princípio talvez mais forte de construção do discurso colonial, que é o produto mais
eficaz do discurso das descobertas, é reconhecer apenas o cultural e des-conhecer
(apagar) o histórico, o político. Os efeitos de sentido que até hoje nos submetem ao
‘espírito’ de colônia são os que nos negam historicidade e nos apontam como seres-
culturais (singulares), a-históricos (ORLANDI, 2008, p. 19). 11

A autora remete sua análise para a conquista da América e como foi construído o
discurso de manutenção dessa conquista. Também podemos nos apropriar desse mesmo texto
para averiguar como foi edificado o discurso sobre a presença dos afro-brasileiros no Vale do
Paranhana, onde o que prevaleceu foi o ímpeto do colonizador imigrante europeu, sendo
‘esquecida’ a historicidade africana e afrodescendente, sua presença e trabalho na composição
econômica local.
A apreciação parte do recorte temporal de 1856 a 1888 e geográfico da antiga Fazenda
Mundo Novo, estabelecendo como ponto de partida para averiguar a presença afro-brasileira e
sua representatividade, assim como o termo regional local, buscando perceber que existiu um
estabelecimento de relacionamento entre senhores e cativos, mas prevalecendo, na
historiografia regional, somente a presença do imigrante europeu como o construtor da
sociedade que se formou a partir de sua presença na região do Vale do Rio dos Sinos -
Paranhana.
Cristiane Bortolli (2003) percebeu que deveria estabelecer um conceito para o termo
‘regional’, já que utilizaria, em sua análise e trabalho, a questão regional, assim, como em

10
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; MUGGE, Miquéias H. Histórias de Escravos e Senhores: em uma região de
imigração europeia. São Leopoldo: Oikos, 2014.
11
ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à vista – Discurso do Confronto: velho e novo mundo. 2ª ed. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2008.
25

Carneiro (2000), Love (1975), Felix (1996) e Maestri (2002),12 se conceitua a partir de áreas
geográficas que estabelecem características próprias, onde se incorporaram tipos de produção
econômica, relações sociais, relações políticas e a utilização da mão-de-obra escravizada.
“Partindo dessa concepção de região, o sujeito e suas ações sociais, econômicas e culturais em
determinado espaço são elementos definidores de uma região. [...], podendo revelar novos
aspectos não observados em análises mais amplas” (BORTOLLI, 2003, p. 39). 13
Essa autora ainda relata que os municípios estudados por ela – Cruz Alta e Palmeira
das Missões – possuíam semelhanças em sua construção, que comparado à região de nosso
estudo, no atual município de Taquara – antiga Fazenda Mundo Novo – não foi diferente.
Talvez o que mude seja o tipo de produção econômica, mas as relações de trabalho, exploração
e poder são idênticas, assim como em todo o processo econômico no Rio Grande do Sul no
século XIX.
Segundo Cristiane Bortolli:

No caso dos escravos negros na região do Planalto médio gaúcho, mais


especificamente nos municípios de Cruz Alta e Palmeira das Missões, esses formam
um grupo discriminado, excluído da sociedade agropastoril, mas que é parte integrante
das relações de bens dos seus proprietários, sendo destacados nos inventários. Os
negros integravam uma sociedade que regia por um modelo produtivo no qual a
utilização dos escravos era uma prática comum (BORTOLLI, 2003, p. 41). 14

As experiências históricas que compõem o espaço regional estão vinculadas a partir


dos conhecimentos de seus habitantes, dos grupos sociais que se estabeleceram na sociedade,
nas relações de poder que fomentaram a exploração do trabalho e no espaço físico onde essas
vivências se concretizaram. Assim, a valorização do afro-brasileiro deve estar no contexto da
diversidade regional produtora como se apresentam nos inventários.
Mas Helen Osório (2006) chama a atenção para o fato observado pelo pesquisador J.C.
Garavaglia (1999), que não podemos somente perceber as relações de poder através dos bens
desses senhores produtores, mas ampliar as possibilidades dentro de um contexto de elementos
que visualize esse poder.

12
Bibliografia utilizada pela autora.
13
BARTOLI, Cristiane de Quadros de. Vestígios do Passado: a escravidão no Planalto Médio gaúcho. Passo
Fundo: UPF, 2003.
14
Idem.
26

Segundo Helen Osório:

[...] a linha demarcatória entre os produtores deve ser buscada não no tipo de atividade
exercida, mas numa série de variáveis, entre elas, a posse de escravos, a propriedade
da terra, o uso de força de trabalho externa ao grupo doméstico e o controle de uma
quantidade maior ou menor de animais (OSÓRIO, 2006, p. 168). 15

Esses elementos citados estão de acordo com o que as fontes nos proporcionaram: uma
farta quantidade de cativos, animais diversos e posse da terra. Assim nossa tese se molda dentro
dos conceitos que são estabelecidos, não estando fora da realidade e do conceito regional,
visualizando as fronteiras que se estabeleceram dentro do regionalismo com a colonização
imigrante europeia que se fez presente nesse estudo.
Dentro dessas variáveis, que cita as autoras, no caso do regionalismo, um elemento
muito importante de se destacar é o cotidiano, já que determina uma luta de conceitos em que
o indivíduo cativo está inserido e que pode existir uma coletividade ou dispersão em suas
relações, também pode se organizar a partir da família cativa, para promover uma
transformação dos aspectos que enfatize uma possível identidade social. Esses aspectos podem
ser entendidos como fronteiras a serem ultrapassadas, já que o afro-brasileiros vive no cotidiano
de seu senhor, isso nos remete à possibilidade de perceber uma luta constante, pois está inserido
em outra realidade.
Pensando nas palavras de Jörnh Rüsen (2015), o tempo histórico é irreversível, ou seja,
quando em algum lugar as necessidades são diferentes de outros, não podemos dizer que essa
ou aquela sociedade é atrasada ou adiantada, pois a necessidade de algo faz emergir o
desenvolvimento para todos, assim poderíamos dizer que a “História é uma conexão temporal,
plena de eventos, entre passado e presente (com uma projeção para o futuro), que, por sua
representação sob a forma de narrativa, possui sentido e significado para a orientação da vida
prática atual” (RÜSEN, 2015, p. 52). 16
Frente ao exposto elaboramos nossa tese, valorizando a História e a presença dos afro-
brasileiros na Fazenda Mundo Novo, que no tempo passado, lutaram e se organizaram para se
manterem em uma regularidade que contribui para sua permanência no tempo histórico, assim
efetivamos a valorização do sujeito escravizado, forro e livre no século XIX na Fazenda Mundo
Novo, Taquara - RS.

15
OSÓRIO, Helen. Estrutura Agrária e Ocupacional. In: BOEIRA, Nelson, GOLIN, Tau. História do Rio Grande
do Sul – Colônia. v. I. Passo Fundo: Méritos, 2006.
16
RÜSEN, Jörn. Teoria da História: uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora UFPR, 2015.
27

CAPÍTULO
I

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA FAZENDA MUNDO NOVO


(TAQUARA – RS)
28

1 A OCUPAÇÃO DAS TERRAS DO VALE DO RIO DOS SINOS NO FINAL DO


SÉCULO XVIII E AO LONGO DO SÉCULO XIX.

O passado remete a um tempo onde as características se estabilizavam em diferentes


frentes, sendo elas físicas e naturais, entre o humano e a terra. Para isso, pensamos na mudança
da geografia local a partir da ocupação territorial e seus desdobramentos para ocupação e
sobrevivência que se moldam em uma terra inóspita para o europeu, mas já conhecida e ocupada
pelos nativos indígenas.
Ponderando como a tomada territorial modificando o meio natural, buscamos nos
situar no tempo para promover e perceber os acontecimentos da ocupação do atual Vale do
Paranhana, onde se localiza o município de Taquara, no Estado do Rio Grande do Sul, que é o
objeto de nossa pesquisa. Procuramos reconhecer o processo histórico de sua ocupação,
trabalho, produção e exploração do negro escravizado que se fez presente no processo da
colonização das terras ainda não ocupadas pela Coroa portuguesa.
Os desdobramentos dessa terra no período que se regulamenta entre o final do século
XVIII e durante todo o século XIX, permaneceram condicionados à política do governo central
português e, posteriormente, ao Império Brasileiro, que vai ampliar as vantagens para ocupação.
Com isso, esse recorte temporal entre séculos se caracteriza no processo de estabelecimento das
demarcações geográficas e fronteiras que vão se estabelecendo, já que pelo Tratado de
Tordesilhas (1494), essa porção territorial pertencia à Coroa Espanhola, e a necessidade de dar
continuidade à tomada territorial portuguesa e demarcação geográfica, favoreceu ampliar “essas
fronteiras”.
Os constantes embates entre portugueses e espanhóis, principalmente pelo controle da
Colônia de Sacramento (1680) e o Rio da Prata, levaram os portugueses a se arriscarem na
tentativa de também fazerem parte do comércio advindos dos Andes, visto que eram por esse
caminho que se escoavam as riquezas espanholas retiradas da América Latina. A presença de
comerciantes portugueses em Sacramento fazia parte do plano da Coroa lusa no sul da América;
forçando, em determinados momentos, os conflitos entre as coroas ibéricas. Estas geraram
embates que obrigaram a construção de uma fronteira que não esteve fixa, mas flexível, pois se
moldava de acordo com cada conflito e conquistas de territórios entre portugueses e espanhóis.
É nesse contexto de conflitos, guerras e conquistas, de perder e ganhar, que o Vale do
Rio dos Sinos se tornara importante na questão territorial. Entendemos que por essas bandas o
fluxo de tropas militares tornara-se comum, já que, tanto portugueses como espanhóis,
movimentaram-se por essas terras. Essa movimentação dos dois exércitos constituiu-se parte
29

responsável também pelo fluxo de pessoas civis que buscavam refúgios das guerras, tentando
uma nova oportunidade de vida.
Para a coroa portuguesa, foi uma excelente oportunidade, já que ampliaria a
demarcação e daria continuidade com o processo de expansão territorial. Assim se
estabeleceram novas fronteiras geográficas, e também se criaram outros padrões de fronteiras
espaciais, sociais e cotidianas.
Segundo Dóris Rejane:

Onde houvesse condições favoráveis à ocupação, ali estabeleciam-se aqueles que


fugiam dos conflitos num eterno recomeçar. Para exemplificar essa afirmação
encontramos no Censo de 1780-85, o nome de Francisco Martins Espanhol, a índia
Maria Salomé de nação Guarani viúva, e de João Paulo Ferreira, preto forro, de
Ignácio Antonio Dutra, ‘filho de casal’ (açorianos) e de José Ignácio dos Santos
casado com uma ‘filha de casal’. A diversidade de tipos humanos reflete a
dinamicidade dessa ocupação e sua antiguidade (FERNANDES, 2008, p. 26). 17

A geografia local ofereceu aos transeuntes, que passaram por essas terras, uma
possibilidade de reconstrução de suas vidas, outros se utilizaram das vastas matas e pastagens
em uma localização privilegiada amparada pela encosta da serra; assim, com água em
abundância e acesso para outras localidades da colônia, também, foram se formando lugarejos
que, posteriormente, passaram a fazer parte do Império Brasileiro. Igualmente favorecendo a
presença de homens e mulheres que decidiram permanecer nessa região, se afastando das
guerras que intermediavam, ora em combates, ora em momentos de paz.
Para o interesse da Coroa portuguesa era importante facilitar a posse da terra, já que
era caminho de deslocamento das tropas de exércitos para garantir a fronteira no sul do
Continente de São Pedro. Também podemos elencar o interesse ao abastecimento dos soldados,
além dos tropeiros que cruzavam com suas manadas de gado o Vale do Rio dos Sinos em
direção a São Paulo. Não se tem registros que regulamentavam o reconhecimento legal pela
posse da terra, também não foi encontrado algum documento que legitimasse essa região como
sendo uma região indígena, segundo Dóris Rejane Fernandes (2008). Os indígenas foram
gradativamente sendo expulsos ou mortos pelos colonos em diversos conflitos entre ambos.

17
FERNANDES, Dóris Rejane. Povoamento Pioneiro das Terras do Mundo Novo. In: BARROSO, Vera Lúcia
Maciel, SOBRINHO, Paulo Gilberto Mossmann. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST, 2008. O termo “filho de
casal”, utilizado nos documentos e na citação, tem por objetivo uma designação sobre a origem dos colonizadores,
sendo nesse caso, filhos dos casais açorianos que colonizaram o Rio Grande do Sul.
30

A região do Vale do Paranhana não pertencia a uma jurisdição administrativa nos


finais do século XVIII.18 Somente a partir do Tratado de Santo Ildefonso (1777) 19 é que vai ser
possível uma relativa paz entre as Coroas Ibéricas no sul da América, permitindo a ocupação e
produção agropecuária, o desenvolvimento ocupacional e, também, a ampliação e
regulamentação da terra para os colonos. Partindo desse momento, o Vale do Rio dos Sinos e,
posteriormente, o Vale do Paranhana, onde se localiza a Fazenda Mundo Novo, é que passa a
fazer parte do contexto de ocupação territorial das terras ainda não ocupadas. Assim,
passaremos a utilizar o termo Vale do Rio dos Sinos – Paranhana para delimitar a geografia de
nossa pesquisa.
Pedro Cevallos, vice-rei do Rio da Prata, com sua capital em Buenos Aires, se
empenhou na ofensiva contra os portugueses no sul da América para reaver territórios que
Carlos III, rei da Espanha, considerava usurpados pelos portugueses. Após ter tomado a Colônia
de Sacramento, e na sequência ter invadido o Continente de São Pedro, ocupou o forte de Santa
Tereza, o forte de São Miguel, a Vila de Rio Grande e a Guarda do Norte do canal da Lagoa
dos Patos, a reconquista foi interrompida por uma convenção assinada em 1763, que buscava
um acordo para delimitar a fronteira entre o Brasil e o Uruguai.
O pedido de Maria I, rainha de Portugal, ao rei Felipe III, formalizou uma trégua entre
as duas coroas, no que se referia à fronteira entre ambas as colônias na América do Sul. Essa
ação ocasionou gradativamente a formação de um tratado que regulamentava a fronteira,
deixando claro uma possibilidade flexível de avanço, por parte de Portugal, para movimentar a
sua demarcação territorial.
Assim foi assinada em 1777 o Tratado de Santo Ildefonso, que protegeu o Rio Grande
da investida de Pedro Cevallo, que pretendia, através da guerra, incorporar e reintegrar o
território sulino ao reino da Espanha. Com isso, a paz passou a fazer parte do cotidiano dos
soldados a partir do tratado. Já para os colonos e representantes da Coroa em toda a colônia
portuguesa, Santo Ildefonso representou a possibilidade de ampliar o plano de expansão
favorecendo a ocupação territorial no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, tornando-a mais
intensa.20

18
Idem
19
Sobre o Tratado de Santo Ildefonso ver GOLIN, Tau. A Fronteira: governos e movimentos espontâneos na
fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.
20
GOLIN, Tau. A Fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai
e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.
31

Segundo Nilo Bernardes:

Subindo, por exemplo, a ‘Encosta da Serra’ seja de Santo Antônio ou de Taquara a


São Francisco de Paula, seja de Venâncio Aires a Barros Cassal e Soledade, a
mudança se faz sempre segundo a mesma ordem de fatores. Desfila, a princípio, uma
paisagem variada: os vales profundos e as encostas íngremes, por diversas vezes
desdobradas em patamares, apresentam aqui e ali restos da mata primitiva,
entremeando capoeiras e numerosas culturas de diferentes tipos; a frequência das
pequenas habitações esparsas, pelo fundo dos vales ou pelas encostas, junto às trilhas
e caminhos vicinais, e o grande número de aglomerados rurais e urbanos atestam a
exigência de uma população densa, vivendo à base de pequenos estabelecimentos
agrícolas (BERNARDES, 1997, p. 41).21

Dóris Rejane (2003) refere que as paisagens22 acenam para a vida no campo, seu
desenvolvimento, sua transformação, que se relacionam pela necessidade da sobrevivência e
manutenção local. Essas paisagens auxiliam na construção das fronteiras que se assentam em
meio à relação entre o homem, a natureza e a terra, da ocupação e exploração das riquezas
naturais e da construção de poder decorrente da ação da tomada territorial ignorando os nativos.
A cada processo de ocupação fomentaram-se as balizas que formaram os pilares do
desenvolvimento, que deverá ocorrer durante esse emprego, com isso também se formam as
fronteiras. Estas se atrelam a uma relação de superioridade, poder, economia, e exclusão de
nativos ou homens pobres.
Eni Orlandi (2008) 23 percebe que as fronteiras erguidas partiram do primeiro contato
dos europeus com o continente americano, já que a imposição do poder foi legítima através da
construção do discurso empregado. Isso levou as comunidades nativas a serem exploradas,
desvalorizadas e dizimadas enquanto cultura existente e cultura imposta.
Se pensarmos sobre os tratados que se seguiram durante a divisão do mundo pelas
coroas ibéricas, podemos entender que tanto o Tratado de Tordesilhas (1494), o Tratado de
Madri (1750) e o Tratado de Santo Ildefonso (1777) foram imposições fronteiriças que
estabeleceram as ocupações e regulamentaram o conceito de uti possidetis para Espanha e
Portugal.

21
BERNARDES, Nilo. Bases Geográficas do Povoamento do Estado do Rio Grande do Sul. Ijuí: Ed. UNIJUÍ,
1997.
22
Segundo Francisco Carlos Teixeira, “A distinção entre paisagem física e paisagem cultural, como feita na
história, e que ainda prevalece na geografia, deve ceder espaço para uma nova visão, cuja ênfase recai nos
resultados da ação do homem sobre o meio ambiente”. Devemos entender a natureza, nesta visão, não mais como
um dado externo e imóvel, mas como produto de uma longa atividade humana: ‘a natureza virgem não é mais do
que um mito pela ideologia de civilizados sonhadores de um mundo diferente do seu’. TEIXEIRA, Francisco
Carlos. História das Paisagens. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História:
ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.203.
23
ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à Vista – Discurso do Confronto: velho e novo mundo. 2ª ed. Campinas:
Editora da Unicamp, 2008.
32

Outro elemento a ser entendido passa pela construção das fronteiras sulinas, essas
construídas através do militarismo, das guerras, e uma constante empreitada para definir onde
colocar os marcos da conquista e delimitar a área ocupada, definindo o que pertencia a Portugal
e à Espanha. Com isso o Tratado de Madri (1750) e, posteriormente, o Tratado de Santo
Ildefonso (1777) tornam-se importantes documentos que ressalvam as possibilidades e práticas
das doutrinas de fronteiras naturais e não mais naturais, onde se retorna ao ponto de partida
para estabelecerem as bases de uma geografia sulina com o Tratado de Badajós (1801), que
retoma a linha natural e define o que hoje é a fronteira oeste do RS.24
Essa ação remonta um olhar para o homem que vai se constituir a partir dessa fronteira
estabelecida pelo marco natural. Começando a descaracterizar a presença Espanhola e a
construção ao sul meridional da cultura rio-grandense, que vai se moldando e fazendo emergir
algumas denominações que ao longo do tempo se caracterizam como uma cultura local, ou
estabelece uma fronteira com particularidades e características diversificadas do resto da
colônia portuguesa e das fronteiras constituídas internamente com a ocupação da terra sulina.
Para entendermos a representatividade da fronteira, não podemos deixar de citar o
“Mito da Fronteira”, mesmo que esse já tenha sido superado em seu conceito, mas ainda remete
ao imaginário que se constitui na Europa em decorrência da terra encontrada, de outro
continente, de uma nova oportunidade como cita Lúcia Lippi Oliveira.

O mito da fronteira é, assim, um dos mitos nacionais criados na história americana


dos séculos XVII ao XX. A ideia de chegada à terra prometida, um Novo Mundo,
além da crença de ser o povo escolhido povoam o imaginário norte-americano. A
história deste povo é representada como a história de sucesso do homem branco,
anglo-saxão e protestante. Os excluídos desta ‘história oficial’ foram, durante muito
tempo, os índios e os negros já que não se encaixavam em nenhum dos papeis
honrosos desta trama. No final do século XIX, outros ‘excluídos’ fazem entrada no
cenário americano: são os operários imigrantes que participam da fantástica revolução
industrial americana após a Guerra Civil (OLIVEIRA apud MAGALHÃES, p. 32). 25

Esse contexto de ‘mito da fronteira’ serviu para o europeu legitimar sua presença na
ocupação territorial no Rio Grande do Sul. Logo, para os colonizados a visão é contrária, já que
seu território foi tomado como ‘empréstimo’ e não devolvido, de tal modo, essa invasão
deslocou as sociedades invadidas para fora da fronteira, colocando-as em uma situação
secundária. Portanto, é perceptível que a exclusão dos nativos indígenas teve um impacto

24
GOLIN, Tau. A Fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai
e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.
25
MAGALHÃES, Dóris Rejane Fernandes. Terras, Senhores, Homens Livres, Colonos e Escravos na Ocupação
da Fronteira no Vale do Sinos. Tese de Doutorado, Curso de Pós-Graduação em História – Unisinos, 2003.
33

considerável. Posteriormente, a inserção dos africanos, dentro desse processo, passou a ser vista
como uma participação ativa desse processo de ocupação das terras não habitadas.
Édouard Glissant (apud ABDALA JUN IOR, 2002, p. 16) entende as noções de cultura
como sendo historicamente construídas, de acordo com a oportunidade de povos colonizadores
em impor aos colonizados sua vontade de manter e constituir sua ocupação, expulsos ou
submissos ao seu poder. Surge, com isso, um conceito denominado de culturas atávicas, que
cognominaria em um tipo de filiação cultural territorial, já que essa ocupação foi tomada dos
povos nativos, além da inserção do elemento africano escravizado, formando assim, um
substrato e a realocação de culturas a partir da cultura do colonizador.
Abdala Junior alude:

As culturas atávicas [fronteiras], formadas há muito tempo, teriam uma determinada


gênese e uma filiação, que legitimariam – poderíamos acrescentar – em um
determinado território. São culturas, politizando a noção, que procuram se expandir e
sobrepor-se àquelas com que vieram a se deparar em seu curso histórico. Seria esse o
caso das culturas europeias e das orientações expansionistas, autoritárias e
dominadores que vieram a adotar durante o período colonial [grifo nosso] (ABDALA
JUNIOR, 2002, p. 16). 26

Na mesma linha de pensamento, a fronteira como uma amplitude e controle do espaço


se caracteriza para manter os subalternos à margem de um sistema de controle, violando as
possibilidades e avanços, no caso dos escravos, mantendo-os sob tutela de aprisionamento,
impedindo o vislumbre da liberdade. Com isso outros elementos se incorporam ao conceito de
fronteira, como ‘a fuga além fronteira’, assim “a História de fronteiras aqui contadas foca,
sobretudo, nas pessoas escravizadas que atravessavam entre fins do século XVIII e fins do XIX”
(GRINBERG, 2013, p. 09). 27
Para Tau Golin (2002), a fronteira é interpretada como uma faixa ou zona existente
nos dois lados da linha divisória e de difícil precisão, neste contexto, as fronteiras econômicas,
sociais, culturais e ambientais também se manifestam através de um limiar mais que uma
simples divisão. Podem ser menos perceptíveis ou pouco compreensíveis, mas fazem parte da
vida em comum, “[...], a fronteira é uma construção histórica, dinâmica, sendo muito melhor
definida como um espaço do que como uma linha” (GRINBERG, 2013, p. 09). 28

26
ABDALA JUNIOR, Benjamin. As Fronteiras Múltiplas, Identidades Plurais: um ensaio sobre mestiçagem e
hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC, 2002.
27
GRINBERG, Keila. As Fronteiras da Escravidão e da Liberdade no Sul da América. 1ª ed. Rio de Janeiro:
7Letras, 2013.
28
Idem.
34

Ainda na procura da definição do conceito de fronteira, Elsa Laurelli (apud GOLIN,


29
2002, p. 15-6) especifica a fronteira em três características: fronteira comum, quando as
especificidades econômicas são parecidas, além de uma mesma identidade étnica de ambos os
lados; fronteira ativa, onde as atividades se produzem diferentemente sendo mais complexas,
e podem promover um intercâmbio, já que nesse processo devem existir núcleos ou cidades
pares e fronteira de trânsito, onde existam apenas uma infraestrutura para locomoção e
transporte, e relações intercambiais.
“A ‘problemática da fronteira vai muito além de seus aspectos naturais e geográficos,
importando muito mais a complexidade dos fatores históricos que explicam a ocupação
econômica desse determinado espaço e as implicações políticas daí decorrentes’” (CORREA
apud GOLIN, p. 16).30 Também podemos verificar que as fronteiras são de uma complexidade
muito ampla, e destas se buscam um entendimento mais específico como: “As fronteiras são
‘realidades tangíveis, ou seja, como realidades efetivas e realidades do pensamento, são o
resultado de relações de poder’” (PINHEIRO apud GOLIN, p. 16). 31
Acreditamos que o grande desafio em relação ao conceito de fronteira está no processo
de construção de uma reflexão adequada em sua totalidade analítica, ou seja, dessa reflexão
deverão surgir parâmetros teóricos que dêem conta do entendimento e valorizem os tempos
históricos. Assim, desta relação à fronteira visualizada deve estimular a sua teoria, sendo
interpretada como um sentido formativo, de acordo com a região onde foi detectada a divisão,
o limítrofe, a separação em todos os sentidos, ou seja, a fronteira. “Embora as fronteiras sejam
uma abstração existente apenas nos mapas, ela era muito concreta para pessoas que as
transpunham” (GRINBERG, 2013, p. 09). 32
O conceito de fronteira vai muito além do imaginário popular. Essa divisão em partes
estabelece limites não só geográficos, mas limites de pensamentos intelectuais que buscam
ampliar uma lógica para o entendimento e o desenvolvimento de certa região, o limite de
oportunidade por falta de investimentos em setores primordiais de uma comunidade, o limite
de concepções e relações políticas que estabeleçam uma harmonia entre poderes e população.

29
GOLIN, Tau. A Fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai
e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.
30
Idem
31
Idem.
32
GRINBERG, Keila. As Fronteiras da Escravidão e da Liberdade no Sul da América. 1ª ed. Rio de Janeiro:
7Letras, 2013.
35

Desta maneira, “A fronteira é um lugar de conflito onde o ‘nós’ se dilacera, é bloqueado e


inviabilizado”. (MAGALHÃES, p. 38).33

1.1 OUTROS CONCEITOS DE FRONTEIRA.

Quando se fala em fronteira, o pensamento se lança em uma linha limítrofe ou


imaginária que divide regiões geográficas e que estabelece demarcações entre áreas terrestres,
definindo-se assim regiões, estados ou países, etc., mas também a mesma palavra fronteira pode
ser vista por outro ângulo, por outra ótica de abordagem, que possa determinar alguns conceitos
que variam de acordo com o olhar a ser utilizado.
Cada fronteira promove as suas categorias, seus conceitos que favorecem uma maior
compreensão do termo e sua aplicação no decorrer da história. Dentro desse aparato de
conceitos surgem as fronteiras econômicas, as fronteiras sociais, as fronteiras políticas, as
fronteiras étnicas, as fronteiras do pensamento humano e a fronteira manejada. O humano e
seus nuances tornam os conceitos mais importantes, já que são a partir do pensamento que se
constituem as fronteiras de um modo geral, e é através dele que se elevam as classificações
raciais e os preconceitos.
A necessidade de Portugal de se situar em decorrência do processo de modernização
forçosa e reagir a partir do desenvolvimento do capitalismo e da necessidade de ampliação das
divisas dos reinos católicos, quando chegados à América, tratou de visualizar um
desenvolvimento que se manifestou na busca da construção de um capital com base na
agricultura, incorporando novas áreas ainda não ocupadas e delimitando assim a fronteira e o
condicionamento do seu desenvolvimento.
Autores que se dedicaram a conceituar a fronteira na historiografia do Rio Grande do
Sul como Helen Osório, Paulo Afonso Zarth e Keila Grinberg, 34 entendem a fronteira como
um continuum:35 ou seja, mesmos que esses autores tenham trabalhado em momentos
específicos e períodos diferentes em suas historiografias, percebemos que a fronteira ainda se

33
MAGALHÃES, Dóris Rejane Fernandes. Terras, Senhores, Homens Livres, Colonos e Escravos na Ocupação
da Fronteira no Vale do Sinos. Tese de Doutorado, Curso de Pós-Graduação em História – Unisinos, 2003.
34
OSÓRIO, Helen. Estrutura Agrária e Ocupacional. In: BOEIRA, Nelson, GOLIN, Tau. v.1 Passo Fundo:
Editora Mérito, 2006. ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século
XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. GRINBERG, Keila. As Fronteiras da Escravidão e da Liberdade no Sul da América.
1ª ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.
35
Não estamos dizendo que esses autores tiveram o mesmo conceito em suas obras, mas que a fronteira está em
constante construção como em questões ideológicas, em pensamentos, em manifestações sociais, em processos de
exclusão, etc.
36

constitui num espaço de ocupação recente, já que esse termo se ampliou para outras questões
que envolvem processos de desenvolvimento social, econômico e político, mas, quanto ao
processo colonizatório, principalmente quando da produção dessa ocupação territorial, dos
rebanhos de animais e dos laços e relações sociais, que foram criadas e desenvolvidas na
construção do espaço, que ainda está acontecendo.
Essa construção vai se constituindo através da qualidade do solo para a produção e da
possibilidade de transportar os produtos, tanto via terrestre quanto fluvial. Desta maneira, o
desenvolvimento moderno, que Portugal necessitava, dependia da qualidade da terra que foi
ocupada.
Pensar a fronteira estabelecida entre as Coroas Ibéricas nas terras da América Latina
implica na imposição cultural, econômica e social, onde as mesmas características produtivas
vão se igualar e se complementar. “A fronteira surgiu como zona de contato entre a soberania
das duas metrópoles, que disputavam a parte sul da América. Nessa fronteira não existia ainda
a percepção do “eu” e do “outro”, era a grande continuidade do ‘nós’. (MAGALHÃES, 2003,
p. 42).36
Outro fator importante é a fronteira cultural como um dos pontos de partida para
elaborarmos um entendimento. A partir desse, percebemos inúmeros casos que se construíram
em um limiar de signos que reflete por gerações posteriores à sua construção. No caso do
trabalhador em cativeiro, o espaço limítrofe de ação, em muitos casos, desencadeou
dificuldades ainda maiores.
Para Sandra Pesavento (2006), o centro da discussão está na abordagem e no conceito
sobre fronteira. Dentro dessa proposta, as possibilidades de abordagem se fazem necessárias,
algumas comparações que partem do objeto para se pensar em uma história comparada,
buscando rever a construção cultural e o surgimento de outras culturas, como o hibridismo, a
mestiçagem, os valores estabelecidos, as invisibilidades e os elementos de dominação através
de poderes políticos, em vez de auxiliarem, excluem ainda mais os oprimidos do sistema.
Mariana Thompson Flores (2013), percebe a questão da fronteira como uma “fronteira
manejada”, ou seja, um local que era manipulável de acordo com as necessidades de cada
indivíduo ou grupos que buscavam tirar vantagens do contexto político, econômico ou social
em que se encontravam. Assim a fronteira manejada possuía os elementos que demonstram
como as relações entre a linha imaginária fronteiriça e a realidade se determinavam de acordo
com o sistema vigente em ambos os lados da fronteira, beneficiando ou punindo quem passava

36
MAGALHÃES, Dóris Rejane Fernandes. Terras, Senhores, Homens Livres, Colonos e Escravos na Ocupação
da Fronteira no Vale do Sinos. Tese de Doutorado, Curso de Pós-Graduação em História – Unisinos, 2003.
37

para o outro lado. A fronteira é um espaço, tanto geográfico como abstrato, que sobrevive das
relações conflitantes que compõem esses espaços, tanto nas questões divisórias como nas
relações entre pares diferentes, que comungam em sistemas diferentes, mas vivem o mesmo
espaço cotidiano.37
Viver em um espaço fronteiriço sempre se está em um momento de perceber que
parece que no outro lado as coisas se ajustam melhor, e é mais fácil do que a realidade. A
fronteira como mecanismo de produção de crimes, por exemplo, fica em muitas vezes encoberta
pelas legislações do outro lado; visto que encobriam tais delitos, não deixando proceder
corretamente as punições aos crimes praticados. Assim, tanto o contrabando quanto os crimes,
foram se moldando e se aproveitando do déficit da fiscalização fronteiriça (THOMPSON,
2013).

São notórias as diversas relações travadas através de fronteiras, contudo, é preciso ter
em conta que a fronteira é o lugar onde soberanias e leis diferentes se encontram, e
que essa dimensão institucional não pode ser suprimida. [...]. O limite político em si,
a linha por onde passava a fronteira, embora fosse abstrato, acabava por cumprir
função concreta nas vidas dos habitantes daquele espaço. Os fronteiriços sobre os
quais se desenvolveu essa pesquisa, pertencentes à região da fronteira sul do Brasil na
segunda metade do século XIX, demonstravam reconhecer o lugar por onde passava
a linha de fronteira e de ter a noção de que circular do seu lado, ou do outro lado,
acarretava diferentes ações e questões a serem levadas em conta (THOMPSON, p. 2,
2013). 38

É nesse contexto que a dominação vai se manifestando. Através do limite político em


si é que vai se utilizando de mecanismos que sancionam as relações fronteiriças. E assim o
poder vai se instalando, em detrimento do outro, mas regulamentado em comum acordo entre
quem pratica e quem sofre o crime e onde se esconde. Com isso outras fronteiras foram se
instalando e as relações de poder se ampliando como o escravismo, que causou as
invisibilidades tanto do índio quanto do negro que permaneceram ligadas a um discurso que
representou uma fronteira de dominação que marginalizava, excluía e silenciava, ou seja,
apagava o sujeito da sociedade sem dar oportunidade de inserção social.
Com isso, as fronteiras foram sendo estabelecidas dentro das sociedades. No caso do
Brasil, as fronteiras se constituem através do poder econômico e a exportação, e essa vai
estabelecer parâmetros fronteiriços em todos os sentidos, o de pensamento, exploração,

37
FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson. A Formulação da “Fronteira Manejada” Como Proposta
Teórica a Partir do Estudo de Crimes. Artigo apresentado no I Seminário Internacional “Brasil no Século XIX”,
novembro, 2013.
38
Idem.
38

alienação, subdesenvolvimento social e o silenciamento do cativo e ex-cativo, ou seja, uma


fronteira manejada.
Segundo Renata Oliveira, referendando a vida dos afro-brasileiros, descreve:

Eram pessoas que viviam e conviviam no mesmo espaço, que se cruzavam


frequentemente, que dividiam espaços de sociabilidade, que habitavam próximos ou
mesmo juntos, que dividiam espaços de trabalho, que partilhavam da miséria e da
fome, enfim, que possuíam uma gama de variáveis que os uniam e os aproximavam
enquanto populares, indiferente de cor ou etnia. Variáveis estas que eram manipuladas
pelos mesmos conforme os interesses em jogo e de acordo com aquilo que lhes parecia
mais conveniente. [...]. Era uma luta diária e constante por classificação social para
estas pessoas envolvidas. Eram lutas cotidianas (individuais ou em pequenos grupos)
por espaço, poder, por um lugar na sociedade, por demarcação de território, lutas por
trabalho, por reconhecimento social, [por existência humana] grifo nosso
(CARVALHO apud OLIVEIRA, 2007, p.91).39

Também é visível perceber que a fronteira se tornou uma relação de conquista de


espaço entre as Coroas Ibéricas, na região do Prata, em relação à Colônia do Sacramento, tanto
espanhóis quanto portugueses militarizaram a região para dar continuidade à ocupação e manter
o poder regional que fomentou a fronteira como linha divisória.
Algumas definições de fronteiras são produções que, analisadas, dão o sentido de
pioneirismo. Léo Wailbel (apud MAGALHÃES, 2003), entende que as zonas pioneiras no
Brasil tenham sido desenvolvidas com “a cultura do algodão no século XVIII, o
desenvolvimento da cultura do café, no século XIX, e áreas de colonização europeia, no sul.
Entende que a primeira frente pioneira do Sul foi a colonização iniciada em 1824 [São
Leopoldo] no rio Grande do Sul, [grifo nosso] [...]”. (MAGALHÃES, 2003, p. 43).40
Assim, podemos ampliar tais entendimentos sobre o conceito de fronteira para
fronteiras, já que o termo significa ‘limite’. Com isso esses limites tendem a bloquear as
possibilidades que constituem a formação dos elementos que geraram o desenvolvimento da
sociedade, da economia, da política, além das relações de poder e cotidiano no Vale do Rio dos
Sinos – Paranhana.

39
OLIVEIRA, Renata Saldanha. Cativos Julgados: experiências sociais escravas de autonomia, sobrevivência e
liberdade em Cachoeira do Sul na segunda metade do século XIX. Dissertação de Mestrado, 2011, UFSM.
40
Idem, a data de 1824 faz jus a fundação da Colônia de São Leopoldo e a imigração alemã no Vale do Rio dos
Sinos.
39

1.1.1 A Fronteira Regional.

A partir da necessidade de explicações pelo recorte temporal usado, o termo fronteira


regional pode ser utilizado para justificar a tentativa de esclarecer as relações de
desenvolvimento local e de transformações tecnológicas territoriais. A ocupação teve muito
mais que um punhado de colonos, e assim detectada uma intensiva produção econômica e
desenvolvimento comercial, daí o termo fronteira regional, que se elaborou dentro dos critérios
que foram expostos nas fontes, buscando o entendimento dessa região no seu limiar de expansão
comercial, o Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.
Essa dinâmica de produção e reprodução de ocupação territorial centra-se na luta pelo
direito de tomar posse da terra que ainda não estava ocupada, e com isso entende-se que as
fronteiras podem ser ‘abertas ou fechadas’, de acordo com cada particularidade, dentro dos
limites nacionais ou limites privados (nas fazendas), mas se percebe que tais fronteiras se
estabilizaram com a força, poder e prestígio. “A fronteira aberta é uma área com terras
disponíveis para apropriação ou a existência de ‘terras sem dono’ que permitem o
estabelecimento da atividade agrícola”. (MAGALHÃES, 2003, p. 43).41
Já a fronteira fechada se exemplifica como algo particular, onde efetivamente a terra
não está ocupada, mas é uma mercadoria com valor de compra e venda, ou seja, é uma terra
que, dependendo de sua importância, poderá ser negociada, mesmo que não tenha sido ocupada.
Em nosso caso, essa fronteira regional se estabeleceu pela ocupação regulamentada de
grupos concorrentes com titulares que já haviam se instalado de acordo com a estrutura de poder
governamental. Dessa maneira, pensando que no processo de ocupação territorial a fronteira
estabelecida já se manteve com a expulsão dos nativos da terra, outra fronteira começa a se
constituir, agora de uma maneira aberta, pois o desenvolvimento agropastoril – no nosso caso
específico da pesquisa –, visa uma produção econômica, também pela vantagem de um homem
ganhar e outro perder alguma coisa, nesse caso, pensando sobre o negro escravo, “gerando o
conservadorismo, isto é, a manutenção das propriedades e de produção de quem já as detém”.
(MAGALHÃES, 2003, p. 46).42
Também podemos entender que a fronteira não está limitada somente em questões
geográficas e econômicas. É um processo amplo e conflituoso, envolvendo elementos sociais.
Com isso volta-se para a ocupação das terras que originaram o município de Taquara, que
pertenciam ao Vale do Rio dos Sinos e que estão situadas dentro do Vale do Paranhana. Nesse

41
Idem, p. 43.
42
Idem, p.46.
40

contexto buscamos entender como se constituíram as relações fronteiriças que se estabeleceram


no processo ocupacional histórico e regional do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, para
valorizarmos as relações de trabalho e exploração que ocorreram no final do século XIX na
região.
Segundo Dóris Rejane:

Entendemos que a ocupação do vale dos sinos se faz através de frentes sucessivas e
múltiplas de ocupação, geradoras de conflitos, numa sucessão de pequenas vitórias e
novas etapas de avanço. São sucessivas frentes de expansão, revelando uma
dinamicidade distante da imagem construída de “vazio” espacial. Essa dinamicidade
se revela nas atividades econômicas desenvolvidas desde os finais do século XVIII e
nos grupos étnicos presentes no espaço. É nesse contexto que vemos e entendemos a
ocupação do Vale dos Sinos. (MAGALHÃES, 2003, p.48).43

Pensar na fronteira é pensar que aconteceu um deslocamento entre o processo de


ocupação e o processo de modernização empreendedora. Isso nos leva a refletir para uma
mudança social e, consequentemente, a formulação de novas concepções de vida, conceituando
a partir desse momento o pioneiro, como empreendedor, ao empresário autorizado pelo Império
a negociar o valor da terra com os novos desbravadores, nesse novo processo de ocupação e
produção no espaço territorial.
Com o aumento demográfico decorrente da possibilidade de obter terras, ampliar a
fronteira e consolidar a economia, também a chegada em grande número de imigrantes para
consolidar a posse da terra, mais as constantes aspirações concentradas no enriquecimento e no
status social para ampliar o território da colônia, fomentar uma produção econômica integrada,
de acordo com a região ocupada, fez surgirem atividades de alta lucratividade como: animais
de carga, alimentos, utensílios domésticos e rotas de escoamento comercial.
Em toda a colônia, o processo de ocupação passou a ser um caso desordenado, visto
que em muitos processos as pessoas, como pequenos lavradores e andarilhos, não tinham
condições de solicitar uma sesmaria no século XVIII, com isso a dificuldade de manter o
controle sobre as ocupações passou a se tornar um problema para a Coroa portuguesa.
A partir de 1795, o Conselho Ultramarino44 estabeleceu medidas para controlar o
problema, buscou organizar uma legislação que regulamentasse a distribuição das terras.
Primeiro passou a verificar as terras ocupadas e suas demarcações: porém, encontrou

43
Idem, p. 48.
44
Conselho Ultramarino foi um órgão criado por Portugal no ano de 1642, durante o governo de Felipe II, com
atribuições em áreas financeiras e administrativas, primeiro, da África portuguesa e da Índia portuguesa e, depois,
de todo ultramar, incluindo a colônia do Brasil. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12. ed. São Paulo: Editora da
EDUSP, 2007.
41

dificuldades em regulamentar, já que a Coroa ainda continuava a doar sesmarias, causando


alguns estranhamentos, pois, em muitas sesmarias doadas, a ocupação já se fazia presente, mas
não registrada. Nesses casos, muitos ocupantes se negavam a se retirar, pois o que mantinha
sua posse era a agricultura de subsistência, suas afinidades com a sua cultura criada e as relações
diretas com animais e a terra.45
Na busca por uma legislação reguladora da posse da terra, de 1822 a 1850, as tentativas
foram muitas, mas não tiveram resultados, “a posse era a única forma de aquisição de domínio
sobre as novas terras. Como a camada senhorial rural não tivesse interesse para o Estado
regulamentar a questão da terra, estava mantida a possibilidade de apossamento e escravidão”
(GUIMARÃES, 2003, p, 109). 46
Somente em 18 de setembro de 1850 foi promulgada a Lei nº 601, conhecida como
Lei de Terras, que traria em seu ‘bojo’ uma regulamentação que definiria a propriedade no
contexto onde os escravos deveriam ser trocados por terra, colocaria fim ao escravismo e abriria
as portas da modernidade nas questões do trabalho livre e desenvolvimento social, sendo esse
o processo de reformulação do império brasileiro rumo à modernidade. Um mês depois foi
assinada a Lei Euzébio de Queiroz, em 14 de outubro de 1850, que proibia o tráfico de escravos
da África para o Brasil, efetivando as medidas anteriores sobre a propriedade e colocando o fim
no processo escravocrata no Brasil, em 13 de maio de 1888, dando a liberdade a todos os que
estavam em cativeiro, mas, como sabemos, a distribuição das terras não chegou às mãos dos
afro-brasileiros como previa a lei.47

1.2 A TERRA À MERCÊ DE QUEM OCUPASSE: ANTÔNIO BORGES DE ALMEIDA


LEÃES.

A partir do final do século XVIII, com a queda da produção agrícola, a criação de gado
passou a ser a solução para a economia da campanha sulina, surgindo, então, as charqueadas.
Seu desenvolvimento vai se estabelecer a partir do início do século XIX, e se desenvolvendo
até a metade do mesmo período. O processo de ocupação territorial foi se aprimorando e a
necessidade de uma produção agrícola mais eficiente era imprescindível, pois o gado tornara-
se um produto muito lucrativo, mas a falta de alimentos era constante e a necessidade de uma

45
MAGALHÃES, Dóris Rejane Fernandes. Terras, Senhores, Homens Livres, Colonos e Escravos na Ocupação
da Fronteira no Vale do Sinos. Tese de Doutorado, Curso de Pós-Graduação em História – Unisinos, 2003.
46
Idem, p. 109.
47
Sobre as questões de Leis de terras, ver Marcia Motta. Nas Fronteiras do Poder: conflito e direito a terra no
Brasil do século XIX. 2ª ed. Rio de Janeiro: EDUFF, 2008.
42

ampliação na produção agrícola se apresentava pelo aumento demográfico do processo de


ocupação.
Assim, a ocupação das áreas em direção ao planalto gaúcho seria a saída para
estabilizar a economia agrária e também não agitaria os grandes latifundiários na necessidade
de compartilhar suas estâncias de criação de gado com a agricultura. 48 Desta maneira, se daria
a segunda parte do processo ocupacional das ‘terras ainda não ocupadas’ no Continente de São
Pedro e, com isso, outra frente de desenvolvimento agrícola e de criação para a subsistência
começaria com base na pequena propriedade e com novas levas de imigrantes para o Brasil.
Mas o problema esbarrava na mão-de-obra para efetivar o desenvolvimento da
agricultura, pois não seria mais o formato da grande propriedade, uma vez que precisava de um
novo modelo de produção, e não como o modelo já aplicado, no caso, de senhores grandes
latifundiários e muitos escravos. Esse formato não se adequava e não era viável para a nova
proposta de pequenos produtores, pois a manutenção se tornaria muito cara, tanto para a coroa
portuguesa, quanto para os colonos imigrantes. Mas o que poderia ser mais prudente para a
Coroa lusitana?
Uma retomada da imigração europeia seria a solução para ocupar as regiões ainda
desocupadas e isoladas; desta maneira, a organização da produção se daria com o pequeno
produtor, sendo ele o imigrante alemão e italiano, tendo como base a mão-de-obra e organização
familiar e a pequena propriedade, já que nos campos, as charqueadas tinham tomado conta.
Segundo Nilo Bernardes:

O Brasil precisava de novo tipo de colonos, pequenos proprietários livres que


cultivassem as terras de mata com o auxílio das respectivas famílias e que não
estivessem interessados nem no trabalho escravo, nem na criação de gado. O novo
colono deveria ser tanto um soldado, como um agricultor, para poder tanto defender
sua terra como cultivá-la. Onde poderia ser encontrado esse tipo de colono? Na
Europa, naturalmente; e especialmente na Europa Central, onde soldados
desengajados dos exércitos de Napoleão e camponeses pobres oprimidos estavam
prontos e emigrar para qualquer país do mundo (WAIBEL apud BERNARDES, 1997,
p. 67-68).49

Dentro desse procedimento de ocupação das terras ainda não ocupadas pela
administração portuguesa, em 1813, Antonio Borges de Almeida Leães fez um pedido ao

48
Ver as questões econômicas e agrárias em ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do
Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.
49
BERNARDES, Nilo. Bases Geográficas do Povoamento do Estado do Rio Grande do Sul. Ijuí: ED. UNIJUÍ,
1997.
43

governador da Capitania do Rio Grande do Sul, o General Dom Diogo de Souza, para adquirir
uma Sesmaria, ganhando o documento em 1814, e passou a ser chamada Fazenda Mundo Novo.
Como era de costume, os empreendimentos feitos pelos proprietários, para adquirir
terras ainda não ocupadas pela população branca, deveriam comprovar que possuíam posses,
essas deveriam ser bens materiais e monetários, assim como animais de criação e alguns
escravos, e também o tipo de produção econômica a ser produzida.
Assim, o pedido de posse de uma Sesmaria feito por Antonio Borges de Almeida Leães
a Dom Diogo de Souza, o então Governador da Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul,
se estabelece assim:

Auto de Justificação de Sesmaria, Antonio Borges de Almeida Leães. Anno de


nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e treze anos aos vinte e
cinco dias do mês de Novembro do dito anno, nesta Vila de Porto Alegre, em meu
Cartorio autorizo o requerimento e mais documentos a ele juntos, para as deligencias
de Sesmaria que pretende Antonio Borges de Almeida Leães na forma do despacho
do excelentíssimo General da Capitania de Trinta e um de Maio do presente anno de
mil oitocentos e treze, para constar faço este termo, eu Francisco Pedro de Miranda e
Castro que escrevo e assigno (AHRS, 1814, nº 373, cx.7).50

A lei de sesmarias foi criada pelo rei português, Dom Fernando I, em 1375, e integrava
um conjunto de medidas adotadas pelo governante com o intuito de combater uma aguda crise
de abastecimento por qual passava o reino português, condicionando o direito à terra a seu
efetivo cultivo, traço marcante do reino da efetividade, característica da civilização medieval.
Um dos objetivos da lei era constranger os “donos” de terra para cultivar e aumentar a produção.
Caso tal condição não fosse observada, a coroa tinha o direito de revogar a concessão e doar a
terra em sesmaria a outra pessoa que se comprometesse a cultivá-la em tempo pré-determinado
por lei.
Os sujeitos responsáveis pela aplicação da lei eram denominados sesmeiros, em
Portugal. Esses eram dois “homens-bons” escolhidos entre os membros do concelho
administrativo, equivalente às câmaras municipais da América portuguesa. Essa escolha
poderia ser uma indicação direta do rei ou realizada pela própria administração, porém estava
sujeita à aprovação real.
Era responsabilidade dos sesmeiros realizar a doação das terras ofertadas em sesmaria
para os pretendentes que possuíssem as qualidades necessárias para proceder ao cultivo da terra.
Ficava, também, ao seu cargo verificar se as terras estavam sendo cultivadas e, caso não
estivessem, deveriam notificar o beneficiário para que este aproveitasse suas terras no prazo de

50
Documento de Sesmaria de 1814 – Antonio Borges de Almeida Leães – AHRS.
44

um ano, sendo que o não cumprimento desse dever resultaria na revogação da doação. A
primitiva lei de Dom Fernando sofreu algumas transformações ao longo do tempo, porém, o
fundamento do cultivo permaneceu imutável e foi perpetuado, junto com a lei das sesmarias,
através das Ordenações do Reino.
Dessa maneira, entende-se por sesmaria uma concessão condicional de terras realizada
em nome do rei. Tal concessão garantia ao beneficiário o domínio útil da terra, porém este
domínio estava condicionado ao fundamento do cultivo que, se não observado, acarretaria a
anulação da doação que voltava ao domínio real e poderia ser concedida, novamente, em
sesmaria a um terceiro sesmeiro.
A opção pelo instituto jurídico das sesmarias, na América, não foi ao acaso. A coroa
portuguesa já o havia utilizado, com êxito, na colonização das ilhas atlânticas e do próprio
território português, no povoamento de regiões fronteiriças durante a guerra com Castela e, ao
se deparar com a tarefa de colonizar o território brasileiro, se valeu dessa experiência. Percebe-
se, desta maneira, as múltiplas facetas que a sesmaria assumiu na colônia. Além de atuar como
forma de acesso à terra e ao poder entre os colonos, o sistema contribuía para reforçar o poder
central, exercido pelo Estado.51
Para estabelecer uma economia, era preciso um tipo de produção e a mão-de-obra
cativa, já que a solução para o processo mais eficaz de produtividade dentro da futura Sesmaria
necessitava logo de seu desdobramento. A importância desses cativos para o desenvolvimento
da sesmaria foi fundamental para a construção da futura sociedade da cidade de Taquara que se
desenvolveu no decorrer dos anos, pois, até os dias atuais, os elementos africanos e afro-
brasileiros estão presentes dentro dessa sociedade, oriunda da antiga Sesmaria de Antonio
Borges de Almeida Leães.
No Vale do Rio dos Sinos - Paranhana, em fins do século XVIII, a ocupação territorial
se desenvolve em direção a Santo Antônio da Patrulha, já no início do século XIX. A ocupação
se intensifica, ampliando rumo à Aldeia dos Anjos, Itacolomy, Barro Vermelho, Faxinal do
Courita, Pinhal, Serra do Pinhal, Pinhal Costa da Serra e Rio dos Sinos e seus afluentes,
caracterizando o avanço ocupacional em direção a Porto Alegre.
Esse movimento tem por base a necessidade de demarcar o domínio português na
porção da encosta da serra. Para isso a vinda de pessoas de outras localidades do Rio Grande
do Sul, em decorrência conflituosa e guerras entre as coroas ibéricas, ou que foram expulsas de
seus lugares por fatores externos, favoreceram a ocupação do Vale do Rio dos Sinos –

51
DINIZ, Mônica. Sesmaria e Posse de Terras: política fundiária para assegurar a colonização brasileira. Artigo
publicado na Revista Histórica. São Paulo. ed. nº 2, junho 2005.
45

Paranhana, ampliando as possibilidades do processo de colonização. Podemos inferir que o


elemento primordial da ocupação passa pelo aparato estatal legitimando os fluxos. Para isso,
segue-se uma lógica da posse da terra, da sobrevivência e da pressão demográfica.
Segundo Fernandes:

Entre os primeiros ocupantes das terras temos, por exemplo, na ‘Serra do Pinhal’, João
Garcia, Miguel Dutra e Luciano Gomes; no caminho para o Pinhal, encontramos
Pedro Rodrigues Lima, Felisberto Pereira Dias, João Jose de Oliveira Guimaraes,
Capitão Custódio Ferreira de Oliveira Guimaraes, Capitão Joze de Azevedo Souza e
o Padre Joze Fernandes do Valle. Da Serra do Pinhal, seguindo para Santo Antônio
da Patrulha, localizamos Joaquim Francisco Terra, Antonio da Terra, Antonio da Silva
e Miguel Antonio Dutra. No ‘Pinhal Costa da Serra’, ocuparam terras Domingos Joze
Dias, Antônio Cabral de Mello, João Soares Lima, Diogo Pinto e Felisberto Dias
Pereira, na costa do rio dos Sinos, Antônio Borges de Almeida Leams (FERNADES,
2003, p. 28). 52

Todos os ocupantes territoriais caracterizam-se como lusos, açorianos, militares,


padres, comerciantes e homens comuns que diferenciaram o avanço da frente de expansão e
ocupação do espaço ainda não ocupado, e sendo esses lugares denominados e demarcados como
costa do rio dos Sinos e Pinhal da Serra, correspondentes na atualidade ao Vale do Paranhana.
Em uma análise ao inventário post mortem de Antonio Borges de Almeida Leães,
datado de 1829, encontramos uma variedade de bens. Decidimos compartilhar cada um desses
momentos descritivos averiguando cada propriedade e seus bens, para pensarmos a dimensão e
potencialidade da região e sua ocupação.
Antônio Borges de Almeida Leães,53 natural de Portugal, se estabeleceu em Porto
Alegre por volta de 1800. Exercia atividades comerciais e outros negócios. Consta que, em
1822, aos 65 anos casou-se com Libania Inocência Corrêa, teve cinco filhos e veio a falecer no
ano de 1829, por afogamento. Antônio Borges possuía uma loja de armarinho, com uma
variedade de mercadorias que iam de peças de fazenda, agulhas, rendas, linhos, lenços, chapéus,
etc. Também possuía uma propriedade na localidade de Belém Velho (atualmente um bairro de
Porto Alegre) onde possuía criações e escravos.

52
Idem, p. 28
53
O sobrenome “Leams” consta na bibliografia local. No documento de pedido de posse (sesmaria) datado de
26/11/1813, está como Antônio Borges de Almeida Leães e a partir desse documento passaremos a utilizar
convencionalmente essa nomenclatura como consta na sesmaria doada em 1814. Sesmaria de Antônio Borges de
Almeida Leães, nº 372, cx. 7, AHRS, Porto Alegre.
46

Tabela 01 - Relação de Bens: Animais e Armarinho – Antonio Borges 1835


Ano Quantidade Animais Valor Loja Valor
Produtos
1835 10 Reses xucras 32,60 155.955,90
Gerais
20 Reses mansas 261,20
4 Cavalos velhos 10,44
Total 34 304,24 155.955,90
Fonte: Inventário Post Mortem Antônio Borges de Almeida Leães, 1829 – APERS. Valores em libra.

Antonio Borges era um homem de posses que ambicionava expandir seus negócios,
visou ampliar sua fortuna com um pedido a sua Majestade, o Rei de Portugal, a concessão de
uma sesmaria na margem do rio dos Sinos. Seu pedido foi aceito e concedido pelo então
comandante das forças portuguesas na Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul, Dom
Diogo de Souza, tendo seus limites entre os rios dos Sinos, rio Santa Maria e rio Rolante.
Tempos mais tarde, em 1822, anexou-se uma ‘data’54 à sua sesmaria, aumentando seu limite
entre o rio Santa Maria e o arroio Tucanos.
Mas para tomar posse algumas concessões foram feitas, uma delas era que tinha que
possuir bens econômicos e alguns escravos para desenvolver a sesmaria. Isso não foi problema,
já que era um comerciante conhecido em Porto Alegre e possuía tais exigências como na tabela
02.

Tabela 02 – Relação de Bens: Escravos em Porto Alegre - Antonio Borges 1835


Ano Quant Escravos Idade Valor/libra Origem Observações
Nação da Quebrado nas duas
1835 1 Luis 46 anos 16,33
Costa virilhas
Nação da
1 Domingos 32 anos 40,82 Sem restrições
Costa
Nação da Aleijado dos pés,
1 Manoel 50 anos 3,26
Costa anda de muletas
Falta os calcanhares
1 Leocadia 42 anos 8,16 Nação
dos pés
1 Josefa 42 anos 24,49 Nação Sem restrições
Maria
1 18 anos 32,66 Nação Sem restrições
Rosa
1 Felipa 11 anos 16,33 Criola Erisipela no rosto
1 Sebastiana 9 anos 13,04 Criola Sem restrições
1 Olaia 7 anos 11,43 Parda Sem restrições
Total 9 153,48
Fonte: Inventário post mortem Antônio Borges de Almeida Leães, 1829 – APERS. Valores em libra.

54
Data – documento de posse da terra.
47

A quantidade de escravos era suficiente para tomar a posse da sesmaria, mas o que
chama a atenção são as deformações que alguns escravos de Antônio Borges possuíam. Luís,
de Nação da Costa (deve ser da Costa da África), com 46 anos, aparece no inventário como
“quebrado nas duas virilhas”, Manoel, de Nação da Costa, 50 anos, “aleijado dos pés e anda de
muletas” e a Leocadia, de Nação, 42 anos, diz o documento que “falta os calcanhares dos pés”.
Podemos pensar em maus tratos ou deformações naturais. Antônio Borges era violento
com seus cativos? Ou nasceram com essas deformidades? Ou ainda sofreram com maus tratos
e castigos de outros senhores, por alguma rebeldia e não aceitação do cativeiro? Ou mesmo,
acidentes de trabalho. Inferimos com mais ênfase na primeira hipótese, visto que no decorrer
do inventário os avaliadores descrevem grilhões, correntes, “três colares de ferro para pescoço
de negros no valor de mil e oitocentos réis”, “duas correntes de ferro para prender escravos no
valor de três mil e duzentos réis”, “uma algema de ferro grande no valor de oitocentos réis”. A
partir desses utensílios para o cativeiro podemos deduzir que as relações sociais entre senhor e
cativo não eram “amigáveis” como em outros casos.
As terras de Antônio Borges no início do século XIX eram conhecidas pelo nome de
Fazenda Rural do Pinhal, posteriormente, com o aumento territorial e, por gostar muito da
propriedade, passou a chamá-la de Fazenda Mundo Novo. Esta terra estava vinculada ao distrito
da freguesia da Aldeia dos Anjos.55
A Fazenda Mundo Novo era constituída de matos, roças, engenho, jogo de pedras de
moer, uma roda de ralar, prensa grande, alambique, senzala, atafona e um forno. Cultivavam-
se cana-de-açúcar, trigo, milho e mandioca. Era um estabelecimento agropecuário, com bases
em ferramentas, como: machados, enxadas, foices, serras, serrotes e animais, como reses de
cria, bois, cavalos e mulas, além da mão-de-obra escrava composta por homens e mulheres.
Na página 44 do inventário, os avaliadores começam a descrever os bens do finado
Antônio Borges em 1835. Nesse relato são descritos a localização geográfica da sesmaria
recebida, e a administração imperial de competência dessas terras, oferecendo a dimensão de
como eram perpetrados os ajuizamentos dos bens e valores estipulados pelos avaliadores
autorizados e juramentados pelo cartório de órfãos e seus representantes.

55
AGUIAR, Lacy Maria; CASADO, Irene Luciana. Taquara de Tristão José Monteiro. Porto Alegre: Palloti,
1986.
48

Segundo o documento dos avaliadores:

Nos abaixo assignado avaliadores eleitos pelo juízo de paz desta freguesia de Nossa
Senhora dos Anjos. Para avaliarmos as Fazenda Roural; denominada Mundo Novo; e
mais bens existentes na mesma pertencentes aos herdeiros do finado Antônio Borges
de Almeida Liaens; cita na costa do Rio do Cino distrito desta mesma freguesia, que
foram dadas avaliação pela inventariante, Libania Correia Leães, como abaixo se
declara (APERS, 1829, nº 974).56

A partir desse documento, os avaliadores começam a relacionar os bens de Antônio


Borges e suas propriedades. Percebemos que esse inventário se encontra ao todo que parece
dividido em partes e propriedades com seus respectivos pertences, sendo a primeira uma relação
dos bens que se situam em Porto Alegre (já citado acima); em segundo, a descrição dos
avaliadores e, logo adiante, a descrição das terras e suas características como:

Huma fazenda de matos e cultivados em que se acha o estabelecimento de moradia


que he uma sesmaria de três quartos de legoas de frente e duas legoas e hum quarto
de fundos, que achamos valer cada uma braça de terras a mil e quinhentos reis. Todas
importam a quantia de três contos trezentos e settenta e cinco mil reis (3.375:000).
Huma data anexa a mesma contendo meia legoa de frente e três quartos de fundo, e
são muito sertão dentre por isso com menos valor; que achamos valer cada uma braça
quinhentos reis e toda na importância de settesentos e cincoenta mil reis (APERS,
1829, Nº 974).57

A propriedade estava composta ainda de outras casas, de um engenho, um alambique


de cobre, um forno de cobre, uma “senzala de escravos arruinada” como dizem os avaliadores,
agricultura e animais de pastoreio, mulas, gado e cavalos.

Tabela 03 – Animais da Sesmaria Mundo Novo 1835


Ano Quantidade Animais Valor total
1835 80 Reses 41,80
6 Bois 6,27
2 Cavalos 1,30
2 Mulas 0,32
1 Égua 0,32
Total 91 50,01
Fonte: Inventário post mortem de Antônio Borges de Almeida Leães, 1829 – APERS. Valores em libra.

Podemos perceber uma quantidade expressiva de animais para o início da ocupação


territorial, também, aos poucos, o inventário nos deixa compreender como esse documento é

56
Inventário de Antônio Borges de Almeida Leães, 1829. 1º Cartório de Órfãos, nº 974, E 31 e/c – APERS.
57
Idem.
49

importante para a pesquisa. Essa fonte transmite a dimensão de uma realidade, que em tempos
difíceis, nos remete para a vida cotidiana dos desbravadores das terras não “ocupadas”, além da
precariedade do desenvolvimento local, pela densa vegetação, falta de estrutura adequada e
incentivo econômico da administração colonial, a tentativa e construção do um vínculo entre o
senhorio e a terra tornou-se válida pela insistência e oportunismo desses homens.

Tabela 04 – Escravos da Sesmaria Mundo Novo 1835


Ano Quantidade Escravos Idade Origem Valor
1835 1 Rafael 28 anos Cabinda 41,82
1 Manoel 35 anos Nação 41,82
1 João 40 anos N. Cange 16,33
1 Domingos 32 anos Monjolo 8,16
1 Maria 32 anos Cabilda 32,66
Total 5 140,79
Fonte: Inventário post mortem Antônio Borges de Almeida Leães, 1829 – APERS. Valores em libra.

Com a tabela 04, observamos os cativos pertencentes a Antônio Borges, que se


reportam à sesmaria recebida, que, posteriormente, vai dar origem à Fazenda Mundo Novo, e
teve um numerário de 963.219:000 (novecentos e sessenta e três contos e duzentos e dezenove
mil reis, já convertidos que refere 140,79 libras). Esse valor representa as posses de Antônio
Borges de Almeida Leães, um dos desbravadores que ocupou as terras tardiamente, que
originaram o Município de Taquara.
Em decorrência da morte de Antônio Borges de Almeida Leães em 1829, se iniciou o
processo de inventário post mortem, com término em 1845. A morosidade na conclusão da
relação dos bens do falecido foi em decorrência do processo revolucionário de (1835 a 1845),
e além da dificuldade de localização de herdeiros, avaliação de bens em lugares distantes e a
contestação da partilha pelos herdeiros e as dívidas. Isso levou a viúva Libania Corrêa Leães
propor a venda da Fazenda do Mundo Novo, tendo como comprador Tristão José Monteiro. A
partir do tempo que adquiriu as terras do finado Antônio Borges, no mesmo ano, Tristão José
Monteiro fundou a Colônia do Mundo Novo em 1846.
Ainda no sequente ano, São Leopoldo é elevado a município; e tanto Pinhal (Santa
Cristina do Pinhal) como a Colônia do Mundo Novo, passaram a fazer parte do novo município.
Com isso Pinhal passou a ser 2º distrito de São Leopoldo. Segundo o livro de Atas da Câmara
Municipal de São Leopoldo, formou-se o 2º Districto do Pinhal:
50

Limita-se este Districto desde a barra do arrôio do Butiá, seguindo o mesmo arrôio
até a sua cabeceira, e d’ali seguindo a Manoel Fialho, e d’ali a cabeceira do arrôio dos
Carvallos, ficando dentro destes limites, Domingos José Dias, e Francisco Maciel, e
seguindo a Joaquim Bernardes, e d’ali pela estrada que vai para a Serra pelo Mundo
Novo, seguindo pelo alto da Serra, até a cabeceira do Arrôio Grande ou da Bica, e por
este, até o lugar onde faz barra no Rio dos Sinos (MAGALHÃES, 2003, P. 157). 58

É grande a importância de Santa Cristina do Pinhal, na construção histórica de


ocupação territorial do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, pois transformou essa localidade
em ponto chave para se entender alguns dos movimentos que se sucederam sobre a
administração dessa região. Podemos averiguar que uma intensa relação de poder se estabeleceu
entre as administrações; decorrente no seguimento de frente de expansão e formadora de
fronteira, assim se percebe que inicialmente o lugarejo Pinhal pertence à Aldeia dos Anjos. Em
1846 torna-se distrito de São Leopoldo, em 1847 é criada no Pinhal a capela de Santa Cristina,
então já denominada Santa Cristina do Pinhal e elevada à freguesia, vinculada a Porto Alegre
no mesmo ano pela Lei Provincial nº 96 de 25 de novembro.59
Esse movimento de troca de administração pode ser levado em conta como estratégia
para formar as fronteiras de proteção, principalmente para a capital Porto Alegre e,
consequentemente, para Santo Antônio da Patrulha, visto que, para essa vila o movimento

58
Livro de Atas da Câmara Municipal de São Leopoldo em 1846 a 1849, p. 13. In: MAGALHÃES, Dóris Rejane
Fernandes. Terras, Senhores, Homens Livres, Colonos e Escravos na Ocupação da Fronteira no Vale dos Sinos.
Tese de Doutorado, Curso de Pós-Graduação em História – Unisinos, 2003.
59
Erni Engelmann, em sua obra A Saga dos Alemães (2005), faz um relato sobre a formação e desmembramento
de Santa Cristina do Pinhal. Nossa escolha foi utilizar a pesquisa da Professora Dóris Fernandes, já que acreditamos
serem os dados mais fidedignos, mas não podemos deixar de citar a obra do Sr. Erni Engelmann, visto que alguns
dados como datas, leis e artigos são iguais, outros se afastam.
“Santa Cristina do Pinhal – Freguesia, ex-distrito de São Leopoldo, ex-município e histórico território ao sul do
Rio dos Sinos, margem esquerda, e que se estende desde à foz do Arroio Butía até a divisa do município de Santo
Antônio da Patrulha, lado leste, e a de Gravataí, lado sul. Foi criado a Capela, em 25 de novembro de 1847 pela
lei provincial nº 95, como parte integrante do 2º distrito de São Leopoldo. Depois, pela lei provincial nº 152, de 7
de agosto de 1849, Santa Cristina passou a fazer parte do município de Gravataí (Aldeia dos Anjos), mas já em 22
de novembro de 1851, pela lei nº 221, e, segundo Ottavio de Faria, lei nº 404, de 18 de dezembro de 1857, foi
elevada à Freguesia, fazendo parte, novamente, do município de Porto Alegre. A 6 de maio de 1864, pela lei
provincial nº 577, foi reintegrado ao município de São Leopoldo como 6º distrito. Em 14 de julho de 1880, art. 3º
da Lei nº 1.251, Santa Cristina foi desligada da Comarca de São Leopoldo e elevado a município, recebendo como
distrito, além de Taquara do Mundo Novo, o território de São Francisco de Paula de Cima da Serra. A Câmara foi
instalada, no dia 8 de janeiro de 1881. Pelo ato nº 9 de 20 de janeiro de 1883, foi designado para sede da Comarca,
que foi instalada em 10 de fevereiro de 1883. Tendo o governo da província, em 15 de março, extinto o município
de São Francisco de Cima da Serra, lei 1.750, de 15 de março de 1889, anexou o 1º distrito desde a Taquara do
Mundo Novo, então, já município, e o 2º à Santa Cristina do Pinhal. Mas, esteve Santa Cristina, pouco tempo, na
posse desse território, pois já em 6 de dezembro do mesmo ano, o governo revogou, novamente, a lei de extinção
restabelecendo o município de São Francisco de Paula de Cima da Serra. Em 1892, foi então suprimido,
definitivamente, o município de Santa Cristina do Pinhal, ato nº 302, de 1º de setembro de 1892, tendo sido anexado
ao de Taquara do Mundo Novo, como 2º distrito, Santa Cristina foi oficialmente instituído 2º distrito de Taquara,
em 20 de maio de 1903, pela lei municipal nº 26. Hoje, é distrito de Parobé. É necessário mencionar que Santa
Cristina do Pinhal nunca pertenceu à Santa Maria do Mundo Novo. Atual município de Igrejinha [grifo nosso]”.
ENGELMANN, Erni. A Saga dos Alemães: do Hunsrück para Santa Maria do Mundo Novo. Igrejinha:
E.G.Engelmann, 2005.
51

comercial e transporte de gado era constante, já que o caminho de ligação com o centro do
império era por essa via. Em outro extremo já estava São Leopoldo, que desde sua fundação
(1824), se estruturou em um núcleo de produção industrial e de entreposto para abastecimento,
tanto para a capital, quanto para as futuras vilas que se desenvolviam.
A elevação de São Leopoldo de colônia para município, em 1846, deu início a um
processo administrativo vinculado à expansão e autonomia de outras áreas a serem exploradas
e que viabiliza uma produção independente, com isso também promoveu o afastamento
administrativo gradativamente de Santo Antônio da Patrulha, formando uma fronteira que
estabilizaria as bases produtivas que se desenvolveriam a partir de tais evoluções
administrativas vinculadas a São Leopoldo.
Por ser um local estratégico e de importância para a expansão do império brasileiro,
essa região, onde se localiza Santa Cristina do Pinhal, passou a pertencer a várias vilas como
possibilidade de ocupação territorial por diversos grupos, assim “ora Santa Cristina do Pinhal
pertenceu a Santo Antônio da Patrulha, ora a São Leopoldo, ora a Porto Alegre com registros
na Aldeia dos Anjos, ora a São Leopoldo”.
Segundo Dóris Fernandes:

A evolução administrativa de Santa Cristina do Pinhal, inicialmente vinculada à


Aldeia Nossa Senhora dos Anjos (Porto Alegre), passa a São Leopoldo e se estabelece
como segundo distrito do novo município com a denominação Pinhal. Com a criação,
no ano seguinte, da capela, uniram-se as denominações religiosa e administrativa para
denominar a localidade de Santa Cristina do Pinhal. A forma como esse distrito
evoluiu é característica de uma frente de expansão e seu estabelecimento uma
decorrência da mesma. A colônia do Mundo Novo é um empreendimento imobiliário,
no Distrito do Pinhal. Sua criação é um fator que revela o fechamento da frente de
expansão, inaugurando a frente pioneira (MAGALHÃES, 2003, p. 157). 60

No ano de 1857, Santa Cristina do Pinhal adveio de 2º Distrito para Freguesia,


desvinculando-se de São Leopoldo e passando a pertencer a Porto Alegre. Mas em 1864, em
virtude do art.1º da Lei nº 577, de 6 de maio, passou a ser o 6º distrito de São Leopoldo,
mantendo as divisas anteriores. Esse movimento de mudanças por administrações diferentes
facilita a compreensão de que a legitimação da posse da terra tem fundamentação pela
importância dada à região. Essa relação com vilas diferentes aponta interesses transitórios que
irão estabelecer o desenvolvimento regional, mas ao mesmo tempo abre as possibilidades de
fortalecimento da fronteira, tecendo uma proteção das possíveis invasões, já que existem
conflitos na região do Prata.

60
MAGALHÃES, Dóris Rejane Fernandes. Terras, Senhores, Homens Livres, Colonos e Escravos na Ocupação
da Fronteira no Vale dos Sinos. Tese de Doutorado, Curso de Pós-Graduação em História – Unisinos, 2003.
52

A partir de 1880, Santa Cristina do Pinhal passou à condição de Vila, sobrevindo a


formar, com São Francisco de Cima da Serra, a Comarca de Santa Cristina do Pinhal, a partir
do artigo 3º e seu inciso 1º, da Lei 1.251, 15 de julho. Com isso Santa Cristina do Pinhal passou
a um patamar de mais importância, estabelecendo uma administração que envolvia uma grande
área do Vale do Rio dos Sinos. “Santa Cristina do Pinhal prosperava. O seu porto, na época, era
muito movimentado e a produção agrícola da região era escoada através da navegação pelo rio
dos Sinos”61 (AGUIAR e CASADO, 1986, p. 17).62
Nos 23 anos que Santa Cristina do Pinhal permaneceu como freguesia teve diversas
administrações e as relações comerciais tiveram um desenvolvimento regional favorável. Com
isso podemos verificar que a partir da ‘calmaria das guerras’ e a predominância do processo
ocupacional, as relações comerciais se fizeram presentes e um grande contingente de animais
domésticos e de corte, plantações variadas de subsistência e utilização dos recursos naturais que
favoreceram o desenvolvimento local, chamando a atenção dos administradores de outras
localidades. Talvez possa ser esse o respaldo para Santa Cristina do Pinhal ser tão requisitada
e pertencer a Vilas e municípios diferentes até 1880.

1.2.1 Tristão José Monteiro: o encerramento da frente de expansão no Vale do


Rio dos Sinos – Paranhana.

Tristão José Monteiro63 nasceu em Porto Alegre no dia 06 de julho de 1816, filho de
José Monteiro da Silva e de Lucinda Leonarda da Conceição, natural da freguesia de Nossa
Senhora da Conceição do Arroio, atualmente Osório; sendo neto materno de Nicacia Rosa de
Jesus, natural de Rio Pardo.64
Em 1838, aos 21 anos, Tristão Monteiro ficou sitiado em sua residência em Porto
Alegre – o estado de sítio imposto a Porto Alegre é decorrente do conflito conhecido como
Revolução Farroupilha, 1835 – 1845 –, conhecida como chácara da Azenha, permaneceu preso

61
Sobre a navegação fluvial na República Velha no Rio Grande do Sul, ver REINHEIMER, Dalva N. A Navegação
Fluvial na República Velha Gaúcha. São Leopoldo: Oikos, 2010.
62
AGUIAR, Lacy Maria; CASADO, Irene Luciana. Taquara de Tristão José Monteiro. Porto Alegre: Palloti, 1986.
63
Empresário particular que comprou a Sesmaria de Antonio Borges onde hoje se localiza a cidade de Taquara-
RS.
64
Sobre a Nicacia Rosa de Jesus, é natural de Rio Pardo, e em pesquisa ainda superficial e com algumas evidências
de outros pesquisadores, já se sabe que Nicacia era uma escrava alforriada que veio para Conceição do Arroio,
serviu a um padre local que após sua morte deixou uma herança. Nicacia então casa-se com um tabelião que retira
de sua certidão o termo alforriado, dando-lhe o sobrenome Rosa de Jesus. Não esquecendo que ainda falta uma
pesquisa mais contundente para legitimar esse fato histórico.
53

por alguns meses sob os olhos dos republicanos farroupilhas que desconfiavam de sua lealdade.
Mais tarde foi despojado de sua residência por ondem do Coronel Davi Canabarro.65
Tristão Monteiro teve ajuda de Serafim Ferreira, que lhe cedeu uma casa no Bairro
Belém Velho, onde passou um bom tempo de sua vida até o término do sítio a Porto alegre.
Assim, sua vida começava a voltar à normalidade. Em 1841, Tristão Monteiro casou-se com
Anna Berwanger, natural da Alemanha, falecida em 23 de julho de 1866; era filha de José Pedro
Berwanger, chegados ao Brasil em 1829, com quatro filhos – João, Anna, Catarina e Margarida.
Em Porto Alegre, Tristão Monteiro dedicou-se ao comércio, recebendo a matrícula de
comerciante pelo Tribunal do Comércio da Corte do Rio de Janeiro. Assim Tristão Monteiro
passou a ter a oportunidade de dar quitações, fazer grandes negócios, comercializar com
estrangeiros. A partir dessas relações comerciais, se desenvolveu um processo de acumulação
de capital, enriquecimento e prestigio.
De 1838 a 1841, Tristão Monteiro atuou como secretário do Consulado dos Estados
Unidos da América, no Rio Grande do Sul, período, que em falta do Cônsul, assumiu essa
função também. Em 4 de novembro de 1841, Tristão Monteiro foi nomeado Vice-Cônsul dos
Estados Unidos em Porto Alegre, permanecendo no posto até 1865. Também fez parte da loja
maçônica e sociedade mercantil em Porto Alegre com Jorge Eggers, na firma Eggers, Monteiro
& Cia, dissolvida por escritura pública de 11 de setembro de 1846, lavrada no livro 56, do 2º
Notariado da Capital.
Em 20 de junho de 1845, depois de ouvidos os herdeiros de direito e a inventariante
Libania Corrêa Leães, viúva do finado Antônio Borges de Almeida Leães, se estabelecia a
negociação e venda da Fazenda do Mundo Novo para Tristão José Monteiro e Jorge Eggers e
todos os seus pertences, por nove contos de réis. Essas terras já se achavam medidas e
demarcadas judicialmente, como consta em seu documento de posse e em inventário do
falecido, tendo o casal possuído sempre as ditas terras que são as que formavam a Fazenda
denominada Mundo Novo, havendo nela casa de sobrado e vivenda, casas de engenho de
farinha, engenho de cana, senzala, arvoredo e tudo o mais que é relativo a um estabelecimento
rural.
No ano seguinte, em 04 de setembro de 1846, Jorge Eggers e sua mulher Margarida
Eggers venderam a Tristão Monteiro a parte que pertencia a eles na Fazenda Mundo Novo, mais
terras que haviam comprado de André Manique e sua mulher Catarina Elizabeth Ley pela

65
Davi Canabarro foi um dos líderes da Revolução Farroupilha.
54

quantia de cinco contos de réis. O final da sociedade entre José Tristão Monteiro e Jorge Eggers
se deu por causa de um relacionamento amoroso entre Tritão Monteiro e a esposa de Jorge
Eggers, Margarida Eggers, quando esse último fez uma viagem a Porto Alegre. 66 A partir do
término da sociedade, Tristão José Monteiro funda a Colônia do Mundo Novo em 1846, visando
ampliar seus negócios e desenvolvendo a região até chegar ao patamar de município.
Tristão Monteiro revelou qualidades de empreendedor inteligente, enfrentou
dificuldades naturais de um novo empreendimento colonial, já que em muitos relatos
bibliográficos locais, os conflitos com os nativos (bugres) foram constantes, hostilizando os
colonos germânicos que chegavam da Alemanha e adquiriam terras na Colônia Mundo Novo,
de Tristão Monteiro.
Segundo Aguiar e Casado:

É de tradição oral que, em 1849, os ‘bugres’, em constantes correrias, hostilizavam os


colonos, chegando mesmo, nessas arremetidas a expulsar alguns deles de suas terras.
[...] O terror apoderou-se dos colonos, com a invasão dos índios na Colônia do Mundo
Novo; em 8 de janeiro de 1852 assassinaram o colono alemão Pedro Wadepuhe e
raptaram sua esposa, sua filha casada e dois filhos menores, que somente foram
resgatados em março de 1853 (AGUIAR e CASADO, 1986, p. 19). 67

Tristão Monteiro mostrou-se habilidoso com essas relações conflituosas, buscou


resguardar os colonos, dando alguma proteção, como citam as autoras:

Tristão José Monteiro, pessoalmente é assistido por prepostos cuidadosamente


escolhidos, protegeu os colonos contra as investidas dos selvagens e foi então que
verdadeiramente teve impulso o povoamento da região com a abertura de picadas,
derrubadas de matos para o preparo e plantação das lavouras, a construção de casas
de pau-a-pique e de cabanas (AGUIAR e CASADO, 1986, p. 19). 68

Como podemos observar, Tristão José Monteiro foi um dos pioneiros no processo de
administração colonial particular. Seu empreendimento teve um papel de ampliação das
relações imperiais com alguns empreendedores. Ao mesmo tempo podemos verificar o
assentamento de colonos em uma área territorial que pertencia à Espanha e que manteve a
construção de uma fronteira, ou melhor, como diz Silmei Petiz em sua obra Buscando a
Liberdade (2006),69 uma fronteira em franco movimento, não somente para o oeste, mas uma

66
AGUIAR, Lacy Maria; CASADO, Irene Luciana. Taquara de Tristão José Monteiro. Porto Alegre: Palloti,
1986.
67
AGUIAR, Lacy Maria; CASADO, Irene Luciana. Taquara de Tristão José Monteiro. Porto Alegre: Palloti,
1986.
68
Idem.
69
PETIZ, Silmei de Sant’Ana. Buscando Liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para o além-
fronteira (1815-1851). Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2006.
55

fronteira zona, ou seja, que ocupava um território até então sem uma delimitação
regulamentada, à espera de uma ocupação.
Com o empreendimento colonial implantado por José Tristão Monteiro (1846), as
terras ocupadas tiveram uma atividade agrícola intensa, movimentando uma economia
crescente de subsistência em primeiro momento e, consequentemente, um aumento econômico
regional para a manutenção da capital da Província com sua produção agropastoril excedente.
Com a formação da Colônia do Mundo Novo, novos caminhos foram criados,
interligando localidades que até então não tinha uma comunicação favorável. Estradas foram
abertas de acordo com a ocupação dos colonos em locais ermos, abrindo picadas e viabilizando
uma inter-relação de comunicação e escoamento da produção, tanto agrícola como pastoril, dos
colonos em direção ao centro da Colônia através de caminhos abertos com a tomada territorial,
ampliando as possibilidades de progresso que fazem parte desta “frente pioneira”. 70 Por volta
de 1854, Tristão Monteiro declara a existência de 106 famílias e apresenta as atividades
realizadas na Colônia do Mundo Novo. Declara que todas essas famílias se dedicaram à lavoura,
como relata Dóris Fernandes:

Entre as profissões, expôs a existências de cinco negociantes, cinco marceneiros,


quatro carpinteiros, um pedreiro, três curtidores, três mestres de escolas, um
engenheiro e um valeiro. Entre as tecnologias, apontou para os engenhos, movidos à
água ou à tração animal: Movidos à água: três de moer grãos, dois de serrar madeiras
de lei, um de fazer azeite, um de farinha de mandioca. Movido por tração animal: três
engenhos de cana, uma atafona de farinha de mandioca e um de moer grãos
(FERNANDES, 2008, p. 36). 71

A produção agrícola nesse primeiro momento fica centrada nas lavouras de feijão,
milho, mandioca, arroz, centeio, batatas, amendoim, fumo, além da criação de animais diversos,
como: gado, cavalos, porcos, mulas, galinhas, ovelhas. A economia que se estabeleceu na
Colônia do Mundo Novo favoreceu o crescimento comercial em larga escala, passando ter
legitimidade pelo aumento produtivo e as relações comerciais que se estabeleceram, com isso
também se amplia a capacidade de enriquecimento de alguns ocupantes que se estabeleceram
por essas bandas.

70
Nesse período, o único caminho para se chegar até São Francisco de Cima da Serra era por Santo Antônio da
Patrulha, mas o empreendimento de Tristão Monteiro favoreceu a abertura de estradas que ligaram Taquara a São
Francisco de Cima da Serra, isso facilitou o escoamento da produção dessa região e todos que ocuparam esse
caminho até o rio dos Sinos, um meio de ligação entre a Colônia do Mundo Novo, São Leopoldo e Porto Alegre.
71
FERNANDES, Dóris Rejane. Povoamento Pioneiro das Terras do Mundo Novo. In: BARROSO, Vera Lúcia
Maciel, SOBRINHO, Paulo Gilberto Mossmann. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST, 2008.
56

Viabilizando ampliar a capacidade de produção e, consequentemente, requerer mais


mão-de-obra para o trabalho, demonstrando assim indícios para a compra de mão-de-obra
cativa na região, visto que a localização da Colônia do Mundo Novo favoreceu a ligação entre
os lugares mais distantes como São Francisco de Cima da Serra, Vacaria, Campos Novos e
Lages, também uma intensa comercialização entre esses locais, já que o Tropeirismo teve muita
importância nessa região.
Na questão comercial, a medição da terra se torna essencial para dar sentido ao
processo de ocupação do território. Nesse sentido podemos perceber que a dedicação aos
produtos mais rentáveis passou a nortear as bases econômicas para adquirir no mercado os
meios de subsistência que levaram os colonos a se especializar em diversos produtos.
Segundo Dóris Fernandes:

Quanto à produção industrial, o empresário [Tristão Monteiro] declara a existência de


um curtume, empregando dois operários, uma fábrica de arreios, utilizando quatro
operários, duas serrarias com oito empregados (cinco numa e três na outra), três
engenhos de moer, sendo um de azeite de amendoim sem declaração de trabalhadores
e quatro engenhos de moer cana. Monteiro declara seis casas de molhados por atacado
e três casas a varejo [grifo nosso] (FERNANDES, 2008, p. 38). 72

Ainda na questão administrativa da Colônia do Mundo Novo, o transporte e o


escoamento de toda a produção vai se estabelecer pelas águas do rio dos Sinos, que em sua
importância de deslocamento movimenta uma grande quantidade de barcos, lanchas, vapores,
além de interligar Santo Antônio da Patrulha à Santa Cristina do Pinhal, Taquara, São Leopoldo
e Porto Alegre.
A utilização do rio dos Sinos para o desenvolvimento regional colonial-imperial foi de
suma importância, visto que era um meio possível de deslocamento para outras regiões, com
isso a recém fundada Colônia de São Leopoldo (1824) vai se expandir e se tornar um lugar de
referência para os outros colonos que povoaram as margens do rio dos Sinos. Assim, Dalva
Reinheimer (2010) descreve que a utilização das águas do rio dos Sinos como transporte e
interligação entre São Leopoldo e núcleos coloniais favoreceram o desenvolvimento de várias
regiões, além da aproximação dessas localidades a Porto Alegre.
Segundo Reinheimer:

O rio dos Sinos não se destaca na hidrografia do Brasil, mas foi significativo no
contexto histórico e econômico-social do Rio Grande do Sul. A utilização do rio como
via de transporte deu as condições iniciais de desenvolvimento à colônia, e esta, em
poucas décadas, de 1824 a 1850, passou de uma base essencialmente agrícola para

72
Idem.
57

outras atividades, entre elas manufaturas, comércio e serviços e, através dessas


atividades, integrou-se na evolução do Rio Grande do Sul e do Brasil (REINHEIMER,
2010, p 36). 73

O início de todo esse processo fluvial no rio dos Sinos foi a entrega de um lote de terra
ao colono Ignaz Rasch, que ficava junto ao passo da Olaria, no porto das Telhas – atualmente
o centro de São Leopoldo –, esse porto era passagem obrigatória para as pessoas que
transitavam para o outro lado do rio, e formava uma passagem em períodos de seca em um
banco de areia que favorecia a travessia a pé. Assim, gradativamente, o rio dos Sinos vai se
moldando como principal meio de locomoção entre as terras ocupadas (que se tornaram
colônias) e São Leopoldo.
Com a colonização em franco desenvolvimento, o aumento de produtos agrícolas e
derivados como milho, feijão, mandioca, farinha de mandioca, aumentou o fluxo comercial
entre as regiões viabilizando um olhar mais atento para a questão da navegação e sua
importância. Ainda Dalva Reinheimer (2010) nos faz perceber a importância da navegação no
processo ocupacional territorial da frente pioneira de expansão quando refere:

Esse passo já fazia parte da velha estrada das tropas que vinham do Planalto Central
e se dirigiam para São Francisco de Paula de Cima da Serra. Mais abaixo, bifurcava-
se na zona onde posteriormente, em 1846, surgiu a colônia do Mundo Novo, hoje
município de Taquara (faziam parte da Colônia os atuais municípios de Canela,
Gramado, Três Coroas, Igrejinha e Parobé) (REINHEIMER, 2010, p. 37). 74

Joseph Hörmeyer (1986), em sua obra O Rio Grande do Sul de 1850, também faz
referência ao rio dos Sinos por sua importância no desenvolvimento local e regional, no caso
de São Leopoldo e suas colônias, referindo que:

O rio dos Sinos que, mais ou menos 15 léguas a montante, são navegáveis e
desemboca a três léguas de Porto Alegre. Nele fica a 14 léguas rio acima desde a
desembocadura do rio Santa Maria, a colônia particular de Mundo Novo, uma colônia
de importância crescente, em sua espécie o primeiro empreendimento particular nessa
região; [...] (HÖRMEYER, 1986, p. 29). 75

Por volta de 1860, o rio dos Sinos era apontado como um dos rios mais importantes da
província, já que a área de ocupação de seu espaço se encontrava em desenvolvimento
produtivo agrícola e de animais, demonstrando um potencial econômico estabilizado na região,

73
REINHEIMER, Dalva N. A Navegação Fluvial na República Velha Gaúcha. São Leopoldo: Oikos. 2010.
74
Idem.
75
HÖRMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850: descrição da província do Rio Grande do Sul no Brasil
meridional. Caxias do Sul: D.C Luzzatto Ed: EDUNI-SUL, 1986.
58

fomentado pela importância das exportações por suas águas, de produtos das colônias em
direção a Porto Alegre.
São Leopoldo já possuía uma navegação diária e regular para Porto Alegre, levando
carregamentos diversos e trazendo artigos e produtos necessários para abastecer as colônias, o
crescimento era necessário tanto das colônias, quanto da sede de São Leopoldo. A função do
rio dos Sinos no desenvolvimento regional foi de tamanha importância que não poderia deixar
de acrescentar esses comentários, ainda mais que Santa Cristina do Pinhal teve seu núcleo
habitacional às margens dessas águas, que levaram as riquezas produzidas por essas bandas.

1.2.2 Da colônia do Mundo Novo ao Município de Taquara.

Durante a política regional local, no Segundo Império, a luta girava em torno de dois
prestigiados políticos, sendo o líder do Partido Conservador, o Coronel João Martins e o
Coronel Francisco Alves dos Santos, líder do Partido Liberal. Com a morte do Cel. João Martins
em dezembro de 1880, seu genro, Coronel Francisco de Oliveira Neves, assumiu a liderança do
partido Conservador.
Esse movimento político vai transformar as relações sociais e econômicas, já que nesse
período o futuro município dava indícios de desenvolvimento comercial e expansão social.
Taquara não passava de incipiente colônia integrante do 2º distrito de Santa Cristina do Pinhal,
e sua ascensão a freguesia só vai ser verificada a partir de 1882, quando Taquara passa a ser
reconhecida como freguesia, pela Lei nº 1382 de 27 de maio 1882, com a denominação de
Taquara do Mundo Novo, com as divisas estabelecidas pelo rio dos Sinos, rio Santa Maria e
pelo rio da Ilha, até encontrar a estrada da Serra Velha, por esta até os campos de Cima da Serra
e daí às divisas atuais pelo mesmo campo.
O Decreto nº 8764, de 8 de novembro de 1882, elevou a 2ª entrância a comarca de
Santa Cristina do Pinhal, e o ato nº 9, de 20 de janeiro de 1883, designou para sede da Comarca
a vila do mesmo nome, marcada a respectiva instalação para 20 de fevereiro por ato nº 16 de
31 de janeiro do mesmo ano.
Em fins de julho de 1880, o desenvolvimento do povoamento de Taquara superava o
de Santa Cristina do Pinhal. O prestígio do Coronel Jorge Fleck, que assumira o Partido liberal,
com interesse político-administrativo, passou a mobilizar a comunidade para concretizar a
transferência da sede do município para Taquara.
59

O presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, o Desembargador


Henrique Pereira de Lucena, elevou a freguesia de Taquara do Mundo Novo à condição de Vila,
pela Lei 1.568 de 17 de abril de 1886, mantendo os mesmos limites anteriores assinalados pela
Lei nº 1.382 de 27 de maio 1882. Já no início da República do Brasil, o Vice-Presidente do
Estado, Vitorino Monteiro, em exercício da Presidência, instalou em 1º de setembro de 1892,
conforme Ato nº 301, a Comarca do Mundo Novo com sede na Vila de Taquara. Em Decreto
de nº 1404, de 10 de dezembro de 1908, Taquara foi elevada à categoria de Cidade.
O intrincado relacionamento que ocorreu no processo de ocupação das terras, que hoje
fazem parte do município de Taquara, tiveram em seu desenrolar uma série de acontecimentos
que ao longo do tempo histórico se fez valer das relações políticas que faziam parte do Império
Brasileiro e seus desdobramentos em relação à ocupação de territórios ainda em constantes
conflitos, com isso, nessa região não foi diferente, onde uma intensa movimentação foi
encontrada nos documentos de posse da terra redigidos e oficializados pelo Império Brasileiro.

1.3 ALGUNS ASPECTOS DA COLONIZAÇÃO, OCUPAÇÃO E FORMAÇÃO DE SÃO


LEOPOLDO.

A colonização de São Leopoldo, que é referida na bibliografia existente, cita que os


primeiros imigrantes germânicos que desembarcaram nas margens do rio dos Sinos, em 25 de
julho de 1824, deram início à ocupação colonial nessa região.76 Também como foi citado no
texto anteriormente, sobre a importância dessa cidade, vamos fazer uma breve apreciação a
respeito de como vai se estabelecer essa colônia com base no imigrante alemão e sua
importância ao Vale do Rio dos Sinos.
Com o desenvolvimento da pecuária e das charqueadas a partir de 1780, os açorianos
passaram a deixar de lado a agricultura extensiva, além de outros fatores, como a distribuição
de terras para agricultores e para sesmeiros, a praga ‘ferrugem’ que prejudicou o
desenvolvimento das lavouras de trigo e a concorrência da farinha de trigo norte-americana
levaram os colonos açorianos a repensarem sobre suas investidas nas lavouras trigais, também
com o não cumprimento das promessas feitas pelo governo português a esses colonos quando
de sua chegada ao sul da colônia Brasil.
Além disso, esse contexto desfavorável nas questões da agricultura, já que as grandes
fazendas se dedicaram exclusivamente à criação e abate do gado vacum, também da

76
MAUCH, Claudia. Os Alemães no Sul do Brasil. Canoas: Ed. Ulbra, 1994.
60

necessidade de uma indústria que produzissem itens de primeira necessidade para manutenção
dos navios, o governo português ofertou uma produção agrícola com o linho cânhamo para
viabilizar uma possível indústria manufatureira que ajudaria a movimentar a indústria naval na
colônia e sua economia.
Segundo Moacyr Flores:

Precisando de vedame e cordas para os navios, o governo português tentou


desenvolver a plantação de linho-cânhamo entre os agricultores. Mas o linho-cânhamo
produz um tecido rústico e requer muitas operações para sua manufatura, os
agricultores e tecelões preferiram o algodão, mais simples para plantar e fazer o fio
(FLORES, 1996, p. 62). 77

Para efetivar a produção manufatureira de cordas para os navios, o governo português


cria a Real Feitoria do Linho Cânhamo, a primeira feitoria na localidade de Canguçu, fundada
em 10 de outubro de 1783, com um inspetor e quatro feitores europeus (soldados), além de um
corpo administrativo e de 21 casais de escravos que foram enviados, pertencentes à Fazenda
Real de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, para o desenvolvimento da feitoria. Seu primeiro
inspetor foi o Pe. Francisco Xavier Prates.
Um ponto importante é: como sobreviveria essa pequena população na Real Feitoria?
Segundo Maximiliano M. Menz (2005), a economia da feitoria deveria ser dividida em dois
rendimentos: um externo, que necessitaria ser a plantação do cânhamo para o mercado, e o
outro, o interno, uma produção e cultivos de subsistência para a feitoria. Essa produção de
subsistência ficaria a cargo dos escravos. Esses tiveram a possibilidade de administrar a
produção local para seu sustento; com isso algumas vantagens foram se constituindo a seu
favor, já que os feitores não tinham experiências de como lidar como esses trabalhadores.78
Segundo Maximiliano M. Menz:

Os senhores podiam diminuir os custos mediante o uso de escravos na produção


de subsistência e nas obras de infraestrutura, o que colocava parte da produção da
plantation fora do mercado. Ademais, no tempo morto da plantação ou nas
conjunturas de fechamento do mercado atlântico, a economia “natural” poderia

77
FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. 5ª Ed. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1996.
78
Luiz de Vasconcelos, segundo inspetor da feitoria, já citava o que deveria ser feito em ofício para o Primeiro
Inspetor: procurará Vossa Mce. dirigir os trabalhos da Feitoria com uma distribuição proporcionada aos seus
diferentes serviçais. Estes dependem de sua inalterável disposição, regulada tanto para a lavoura principal do
cânhamo que deve fazer o fundo do rendimento externo da mesma Feitoria, como dos mantimentos que se
consomem com a subsistência de todos os indivíduos que devem ser a outra parte do seu rendimento interno,
poupando-se e evitando-se deste modo as despesas que a Fazenda Real precisamente deve fazer. AHRS, RFC, M–
único, Cópias de ofícios do Vice-rei, 27/07/1783. IN: MENZ, Maximiliano M. Os Escravos da Feitoria do Linho
Cânhamo: trabalho, conflito e negociação. Afro-Ásia, 32 (2005), 139-158.
61

tomar o lugar do cultivo principal e fornecer produtos agrícolas aos mercados


locais. Com alguma sorte, os escravos poderiam controlar o setor de subsistência
da fazenda, chegando mesmo a vender o excedente de suas fainas (MENZ, 2005,
p. 142). 79

Talvez seja esse o ponto que faltava para entendermos por que a feitoria de Canguçu
não deu certo. Em primeiro, a falta de experiência com os escravos; em segundo, abrindo a
possibilidade para os escravos serem os produtores de subsistência, além de possível controle
de mercadorias, já que poderia controlar essa produção. Assim, a má administração não
favoreceu tal desenvolvimento da feitoria, visto que seus feitores, que eram soldados e não
administradores, não sabiam lidar com as questões dos escravos, logo não daria certo tal
proposta, visto que a indisciplina era uma constante e os escravos se aproveitaram, através da
indisciplina provocada por seus pares, causando desavenças entre os cativos e seus feitores e a
administração da feitoria.
Nesse contexto, dois polos se organizaram: um, dos feitores, sem experiências com os
escravos e a terra; e o outro, os dos escravos, já acostumados com as dificuldades que a senzala
expressava. Assim, as relações entre as partes deveriam estar em constante conflito, mas, ao
mesmo tempo, também em constantes embates de negociações entre as partes.
Segundo Maximiliano M. Menz:

Assim, podemos resumir as forças para o conflito potencial da seguinte maneira: de


um lado temos os feitores, apoiados pelo Estado e pelo aparato repressivo da
sociedade escravista, mas com pouco conhecimento das coisas da terra. No polo
oposto temos os escravos, crioulos, organizados em famílias e com a experiência de
uma vida em comum, conhecedores do viver em colônias e do trato com as
autoridades lusitanas, juridicamente cativos, contudo, cativos d’El Rei (MENZ, 2005,
p. 144).80

Essa autonomia dos cativos foi a partir do desconhecimento por parte dos feitores
europeus, e seu administrador, que não soube como lidar com eles, assim, podemos dizer que:
embora fossem escravos, tiveram autonomia suficiente para produzir, comercializar e ofertar
relações econômicas e políticas em trâmite de relações de poder. A inexperiência dos
administradores, e a falta de uma economia convincente, causou a substituição do primeiro
Inspetor, o nomeado providenciou o fechamento da feitoria de Canguçu e a transferência para
perto de Porto Alegre, o Faxinal do Courita.

79
MENZ, Maximiliano M. Os Escravos da Feitoria do Linho Cânhamo: trabalho, conflito e negociação. Afro-
Ásia, 32 (2005), 139-158.
80
Idem.
62

Essa transferência pelo novo administrador, o Inspetor Antonio José Machado Moraes
Sarmento, teve o recebimento de mais um aporte de 41 escravos confiscados de contrabandistas,
aumentado o corpo de trabalhadores no novo local. Mas não deu muito certo, visto que alguns
políticos e juízes se aproveitaram e usaram os escravos da feitoria para seus serviços, não tendo
o cânhamo a mão-de-obra destinada para sua produção.
Já no Faxinal do Courita, a administração ampliou as construções da sede
administrativa, casas para os escravos e para os índios que já trabalhavam nesse lugarejo, além
de ir implementando o desenvolvimento local. Isso foi importante, pois os índios também
trabalhavam junto dos escravos negros nesse primeiro momento. Também foi construído um
quartel para os soldados, atafona e olaria, além do plantio de milho, feijão, mandioca e abóbora
para alimentação da mão-de-obra e soldados. A margem direita do rio dos Sinos foi destinada
para a criação do gado (FLORES,1996).
Todos esses itens citados nos dão condições de dizer que os escravos ditavam as regras
nas feitorias que foram implantadas, se aproveitaram da fragilidade das administrações e
aproveitando para se impor contra o sistema, ou seja: tratavam bem os senhores e tiravam
vantagens no trabalho forçado, sua produção em muitos casos, abasteciam os mercados locais,
até mesmo as casas desses senhores, assim se afastavam do serviço e ampliavam suas
negociações entre a senzala e a sociedade.
Mas algo deveria ser feito, uma reorganização era necessária, para isso, era vital
diminuir o poder dos escravos com a produção de suas roças; e assim ampliar a produção do
cânhamo e regulamentar o sábado como dia de feira. Assim, o governador interino do Rio
Grande do Sul, o Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, decretou que deveria ser coibido e
desterrados os escravos que eram insubordinados, buscando a disciplina para conter as
conquistas dos escravos, proibindo os castigos na feitoria e esses castigos seriam praticados
somente em Porto Alegre. Desta forma assim um novo administrador foi empossado para
promover grandes mudanças.
Mas essas mudanças não deram certo, pois os levantes eram constantes contra os
administradores. A unidade escrava estava formada, e causava um desequilíbrio na produção
do cânhamo na feitoria, visto que, com a retirada de terras e maus tratos, os escravos se
rebelavam, e isso foi um dos fatores que causou o fechamento da feitoria do Faxinal do Courita.
Nesse contexto, o surgimento de São Leopoldo vai ser viável a partir de 1824, já que
passou a compor outro momento do processo de imigração. Com o Bloqueio Continental de
Napoleão Bonaparte na Europa, e a vinda da Família Real para o Brasil em 1808, D. João
63

estabeleceu condições para a imigração estrangeira, com a finalidade de propiciar a implantação


de colônias agrícolas nas terras ainda não ocupadas no território brasileiro.
No início do século XIX as terras de fácil acesso já se encontravam sob o domínio de
sesmeiros ou com posseiros, além de militares que já tinham suas instalações nas terras da
campanha, terras estas conquistadas através de conflitos militares que fizeram parte da
construção da fronteira que estava em disputa na porção sul da colônia, restando as áreas
chamadas de sertões ou florestas devolutas. “Em 17.7.1822 a resolução governamental
extinguiu o sistema de sesmaria, finalizando uma etapa da colonização portuguesa” (FLORES,
1996, p. 83).81
Assim outro sistema de colonização já estava sendo tecido para ser adotado e dar
prosseguimento na ocupação territorial e, também por iniciativa governamental e sem a
participação dos grupos políticos ou militares da economia colonial. Esse intuito era propiciar
a imigração europeia como experimento e inovação em pequenas propriedades, sendo mais
específico, o imigrante alemão especializado e assalariado para substituir a mão-de-obra
escravizada que já dava indícios de seu fim por pressões da coroa inglesa, visto que, na Europa
o desenvolvimento industrial estava em pleno incremento.
O recrutamento dos imigrantes alemães na Europa foi feito por Jorge Antônio Von
Schaeffer, secretário da Imperatriz Leopoldina, e que deveria enviar para o Brasil 800 colonos
para dar início à nova etapa da colonização, assim, chegando ao Brasil 841 pessoas de origem
germânica no porto do Rio de Janeiro. Desse total, apenas 38 foram direcionados para a
província do Rio Grande do Sul (LANDO e BARROSO, 1980).82 José Feliciano Fernandes
Pinheiro, presidente da província, recebeu ordens do governo imperial para preparar lotes
coloniais na antiga Real Feitoria do Linho-Cânhamo, para receber os imigrantes alemães para
dar início à uma experiência de colonização.
Moacyr Flores cita que:

A 18.7.1824 chegaram a Porto Alegre os 38 imigrantes, recebidos festivamente pelas


autoridades. Depois de agasalhados e visitados por várias pessoas, subiram o rio dos
Sinos em lanchões, desembarcando no Passo a 25. 7. 1824. Estiveram arranchados na
sede da fracassada Feitoria do Linho-Cânhamo, enquanto aguardavam a morosa
medição dos lotes (FLORES, 1996, p. 84). 83

81
Idem.
82
LANDO, Aldair Marli; BARROSO, Eliane Cruxên. Capitalismo e Colonização: Os Alemães no Rio Grande do
Sul. In: DACANAL, José H; GONZAGA, Sergius. RS: Imigração & Colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1980.
83
FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. 5ª Ed. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1996.
64

A antiga Real Feitoria recebeu o nome de Colônia São Leopoldo, José Feliciano
Fernandes Pinheiro foi agraciado com o título de Visconde de São Leopoldo. A Colônia de São
Leopoldo foi dividida em lotes de 77 acres, ou 160 braças quadradas cada um, e era
administrada por um inspetor subordinado ao presidente da província. Os lotes também
receberam nomenclaturas de ‘prazo’, ‘data’ e ‘colônia’.
Esse movimento de reorganização produtiva e retomada da colonização através do
imigrante europeu teuto84 dirigida, modificou os sistemas de posse e exploração da terra a partir
de 1824, visto que com o aumento da densidade demográfica através do aglomerado de
‘minifúndios’, em contraposição às terras ocupadas na campanha e “seu deserto humano
(FLORES, 1996)” na área de exploração da pecuária ou monocultura comercializável, e tanto
nas vilas como nas colônias os objetivos foram alcançados no que diz respeito à ocupação e ao
povoamento, além da exploração da agricultura no Rio Grande do Sul.
Uma segunda leva de imigrantes que chegou ao decorrente ano de 1824, não tive a
mesma sorte dos imigrantes anteriores. Os problemas principais foram a não demarcação das
terras por parte do governo para serem ocupadas, levando os imigrantes a ficarem à sua própria
sorte. Outro fator posterior foi a promulgação da lei de 15 de dezembro de 1830, que não
autorizava despesas com imigração, assim o governo já passava a dever uma grande soma
monetária aos imigrantes através das promessas feitas na Europa para a colonização através de
seus agentes.
Um terceiro fator foi a Revolução Farroupilha (1835-1845). A guerra civil interrompeu
a imigração para a região, sendo retomado o processo migratório a partir de 1844, mas, com a
desordem governamental da província, os imigrantes tiveram que se deparar com outra
realidade, as terras situadas na encosta da serra, em pleno sertão.
Dentro dessa perspectiva ocupacional territorial, “expandiu-se São Leopoldo pela
encosta acima, e em torno dela surgiram outras colônias que, por sua vez, se infiltraram pelos
vales da encosta íngreme: Mundo Novo, Bom Princípio, Caí, etc.” (BERNARDES, 1997, p.
71),85 favorecendo a formação social destas regiões. Não obstante, beneficiou ao
empreendedorismo ousado de alguns empresários.
Segundo Dóris Rejane Fernandes:

A presença de um brasileiro que compra a área e abre um empreendimento imobiliário


é um dos resultantes da política nacional de entrega da colonização a particulares.

84
Teuto – Nativo ou habitante da Alemanha, teutônico, alemão. www.dicio.com.br.
85
Idem.
65

Desde 1830, os negócios da colonização estavam em mãos de particulares por que os


governos imperial e provincial não dispunham de capital para tal, cabendo à iniciativa
privada a continuidade e investimento na colonização (FERNANDES, 2008, p. 30). 86

A falta de medição e quantidade de terras a serem distribuídas aos imigrantes os


direcionaram para o Vale do Paranhana, em seu processo de ocupação, na formação das
colônias e ampliação da urbanização territorial local, formando um elo entre a importância de
São Leopoldo para a ocupação do vale do Rio dos Sinos, sabendo que o Vale do Paranhana faz
parte do Vale do Rio dos Sinos, e a necessidade de obtenção da terra para a sobrevivência dos
imigrantes teutos, beneficiando o desenvolvimento local regional da antiga Fazenda do Mundo
Novo que vai dar origem ao Vale do Paranhana.
Assim, o empreendimento de Tristão José Monteiro (1846) fez emergir uma sociedade
com bases na colonização alemã, composta por colônias de terras que eram vendidas a filhos
de imigrantes alemães instalados em São Leopoldo, desde 1824, e outros vindos da Alemanha
durante sua fundação.
Esse investimento está vinculado ao empresário particular, que participou da
ocupação, formação e colonização de terras, a partir de vendas de lotes e urbanização voltada
ao desenvolvimento local, estabelecendo uma relação comercial e uma estrutura social e
política entre os colonos e o empresário. Sendo Tristão José Monteiro o empreendedor que,
dividindo a fazenda Mundo Novo em lotes, também implantou um comércio que fornecesse
aos colonos os gêneros de primeira necessidade.
Essa implementação particular deu continuidade ao processo de ocupação Portuguesa;
com isso, na Fazenda Mundo Novo, e junto desse processo a presença do negro escravizado fez
parte da base social com o colonizador europeu. Assim, os traços dessa influência africana, que
mesmos invisíveis aos olhos da maioria da população, estão presentes e caracterizados na
sociedade que se formou durante o processo de ocupação da antiga Sesmaria do Mundo Novo.
Se na formação social o afro-brasileiro teve sua importância, nas relações de trabalho
não foi diferente. Esses sujeitos trabalharam na base produtiva de autoconsumo, já que nessa
região os senhores de escravos também predominaram e desenvolveram os meios para o
incremento regional.
Esses elementos, a falta de medição e quantidade de terras a serem distribuídas aos
imigrantes nos remetem para o Vale do Paranhana em seu processo de ocupação, na formação
das colônias e ampliação da urbanização territorial local, formando um elo entre a importância

86
FERNANDES, Dóris Rejane. Povoamento pioneiro das Terras do Mundo Novo. In: SOBRINHO, Paulo
Gilberto Mossmann; BARROSO, Véra Lucia Maciel. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST, 2008.
66

de São Leopoldo para a ocupação do vale do Rio dos Sinos (o Vale do Paranhana faz parte do
Vale dos Sinos) e a necessidade de obtenção da terra para a sobrevivência dos imigrantes teutos,
com isso favoreceu o desenvolvimento local regional da antiga Fazenda do Mundo Novo que
vai dar origem ao Vale do Paranhana.
O espaço territorial que compõe o Vale do Rio dos Sinos se situa e se estende entre a
Aldeia dos Anjos (Gravataí) e Santo Antônio da Patrulha; desse ponto para o norte, até São
Francisco de Paula de Cima da Serra, partindo daí até à Colônia de São Leopoldo.87
Apresentamos inicialmente considerações e localização sobre o Vale do Rio dos Sinos, já que
em nossa pesquisa o recorte espacial e temporal é de 1856 a 1888 e se localiza no município de
Taquara, que está inserida no contexto territorial no Vale do Paranhana, fazendo parte do Vale
do Rio dos Sinos e seu processo de ocupação lusa.
Por isso a importância de caracterizar suas fronteiras, delimitando os movimentos
migratórios que surgiram quando da ocupação da terra e do desenvolvimento regional. Dentro
deste contexto vamos utilizar a nomenclatura Vale do Rio dos Sinos – Paranhana para situarmos
a tese: “Cotidiano e Trabalho: Experiências Negras e Escravas em Taquara (1856 – 1888)”.

87
Aldeia dos Anjos corresponde à cidade de Gravataí, situada na área metropolitana de Porto Alegre. Teve sua
fundação para abrigar os índios missioneiros que foram realocados após a Guerra Guaranítica decorrente do
Tratado de Madri. Ver maiores detalhes em LANGER, Protásio Paulo. A Aldeia Nossa Senhora dos Anjos: a
resistência do Guarani-missioneiro no processo de dominação ao sistema luso (1762-1798). Porto Alegre: EST
Edições/Correio Riograndense, 1997.
67

Mapa 01 – Rio Grande do Sul – 1809, Localização do Vale do Rio dos Sinos.88

Genealogia.org <http://buratto.org/gens/gn_download.html>

88
Genealogia.org <http://buratto.org/gens/gn_download.html> Acesso em: 15 nov. 2018.
68

Mapa 02 – Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.

Fonte: Google Earth. 89

Na imagem buscamos remontar os lugares que faziam parte do Vale do Rio dos Sinos
no século XIX e posteriormente no século XX, o Vale do Paranhana, partindo de São Leopoldo
atualmente. Em primeiro momento, a ocupação colonial lusa se estrutura a partir de Santo
Antônio da Patrulha no século XIX, que fica denominada de margem do rio dos Sinos, assim
encontram-se o Distrito do Rio dos Sinos, Sapucaia, Aldeia dos Anjos (Gravataí), Itacolomy e
Pinhal.
Outros lugares são indicados a partir de alguns acidentes geográficos, como serra do
pinhal, margem do rio dos Sinos, rio Gravataí, morros do Itacolomy e de Sapucaia, morro da
Pedra, Morro do Pontal, Ribeirão Sapucaya, arroio dos Ferreiras, morro Grande, matos do
Itacolomy, campos de Sapucaia, rincão de Itacolomy, campestre Botiá, córrego do Herval e
arroio do Hilário.90 Todos esses lugares faziam parte do Vale do Rio dos Sinos, atualmente são
municípios que compõem a área metropolitana da capital Porto Alegre.
Para a ocupação legal da terra, o sistema jurídico português possuía três formas
regulamentadas de apropriação: a concessão régia de sesmarias, a concessão régia de datas de

89
Google Earth - https://earth.google.com/web/search/Vale+dos+sinos+RS – acesso 15 nov. 2018, 15:44 hs.
90
MAGALHÃES, Dóris Rejane Fernandes. Terras, Senhores, Homens Livres, Colonos e Escravos na Ocupação
da Fronteira no Vale do Sinos. Tese de Doutorado, Curso de Pós-Graduação em História – Unisinos, 2003.
69

terra, arrematação em praça pública de terras confiscadas pela Coroa. Para efetivar a posse da
terra, se deveria seguir um trâmite burocrático através de requerimento do interessado pela terra
ao governador da Capitania. Esse consultava, a princípio, a Câmara Municipal local para os
trâmites legais e posteriormente era concedida uma carta de sesmaria devidamente registrada
ao interessado para promover o desenvolvimento e a produção econômica da região territorial
doada.
A forma legal mais comum de acesso à terra no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana,
no final do século XVIII, foi a concessão de Data, e denominava a quantia de terra que era
auferida pelo interessado, e assim reconhece a ocupação territorial com o dever de
desenvolvimento e produção econômica legitimando a doação e a ocupação.
Seguem, na tabela 1, as denominações de registros de posse da terra que foram
utilizadas para doação territorial no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana durante o final do
século XVIII e início do século XIX.

Tabela 05 – Formas de Registros da Terra


Século XVIII Século XIX

Forma de doação Quantidade % Quantidade %

Data 12 36,3 2 4,8

Sesmaria 4 12,2 3 7,3

Terra 2 6,1 9 21,9

Terreno 96 18,2 3 7,3

Outros 9 27,2 24 58,5

Total 123 100 41 100

Fonte: Registro da Provedoria da Fazenda Real, F- 1244, 1245, 1246, 1247, 1248, 1249, 1250, AHRS.91

Podemos levar em conta que, durante o final do século XVIII, a ocupação teve um
maior desenvolvimento, visto que começavam a surgir movimentos para o desmembramento
do Brasil de Portugal, já para o início e no decorrer do século XIX, com a independência do
Brasil (1822), as doações de terras foram reduzidas.

91
MAGALHÃES, Dóris Rejane Fernandes. Terras, Senhores, Homens Livres, Colonos e Escravos na Ocupação
da Fronteira no Vale do Sinos. Tese de Doutorado, Curso de Pós-Graduação em História – Unisinos, 2003, p. 55.
Observação: No que refere o século XIX são somente as duas primeiras décadas desse século.
70

Segundo Dóris Rejane:

Observamos que o período de ocupação registrado ocorre nos últimos oito anos, de
1790 a 1798, num total de 32 registros de terras. A localização das terras avança pelas
margens dos rios: das margens do rio Gravataí para leste; das margens do rio dos Sinos
para o norte e leste. Em 1794, ocorreu o registro de terras em direção a Santo Antônio
da Patrulha (Aldeia Velha) e, em 1798, foi registrada, pela primeira vez, uma área
‘atrás da Serra do Pinhal’. (MAGALHÃES, 2003, p. 57). 92

Algumas denominações de lugares que já foram citados anteriormente como Pinhal,


Serra do Pinhal e Morro da Pedra. São localidades que fazem parte do atual município de
Taquara, com isso o primeiro registro de ocupação se encontra a partir de 1798, reconhecendo
as ocupações territoriais que aparecem nos levantamentos documentais segundo Dóris Rejane
(MAGALHÃES, 2003), como em uma ‘Concessão de posse de terra’, sendo o interessado
denominado em uma terminologia como ‘casado com família’.
Nesse contexto de doações de terras e, posteriormente, aumentando a procura por
terras, matos e terrenos, chegamos a Antônio Borges de Almeida Leães, que vai requerer, junto
ao governo colonial em 1813, o direito à uma sesmaria, ganhando sua posse em 1814.
O espaço de ocupação territorial que compõe o Vale do Rio dos Sinos – Paranhana
não pertencia à Coroa portuguesa pelo Tratado de Tordesilhas (1494). Essas terras eram da
Espanha, e em decorrência do desejo português em participar do comércio platino, por onde
escoavam as riquezas vindas da América espanhola, além da facilidade de trânsito durante o
domínio espanhol – União Ibérica, quando o rei da Espanha tornou-se rei de Portugal durante
o período de 1580 a 1640 – essa região passou a ser um corredor de pessoas comuns e militares
em direção ao Rio da Prata, assim se busca entender como vai se constituindo a ocupação e a
adequação à política central administrativa na construção da fronteira a ser estabelecida nessa
região.
Por ser uma região rica em mata com árvores diversas para a produção madeireira no
final do século XVIII e uma vegetação vasta e propícia para criação de animais, a ocupação foi
se estabelecendo e se moldando de acordo com os períodos de paz nas guerras entre portugueses
e espanhóis pela demarcação fronteiriça e posse da terra, com isso a ocupação territorial tornou-
se constante para efetivar a retenção e posse da terra.
Uma característica desse processo é a ocupação com construções de casas, galpões,
árvores frutíferas, criação de animais, moradias de favor, criação de gado, possuidores de
escravos e famílias que se apropriavam e ocupavam os espaços geográficos desocupados, visto

92
Idem, p. 57.
71

que a terra, nesse final de século XVIII, ainda não tinha um valor específico monetário, mas era
importante obtê-la.
A estabilidade e a possibilidade de expandir negócios também levaram comerciantes
da capital, Porto Alegre, a se interessarem pela região no início do século XIX, já que poderiam
investir e alargar seus negócios adquirindo terras na região, promovendo criação de animais,
ou puramente para aumentar seus bens.
Segundo Dóris Rejane Fernandes, a paz entre as coroas ibéricas favoreceu a ocupação:
“Assim surgiram as fazendas do Mundo Novo, da Conceição do Funil, de Santa Cruz, dos
Fialho, do Padre Tomé, do Rio da Ilha. A paz relativa permitiu que comerciantes aplicassem
dinheiro em terras e que posteriormente seriam solicitadas à Coroa portuguesa” (FERNADES,
2008, p. 28). 93 Nesse cenário vai se formar a localidade que receberá a nome de Santa Cristina
do Pinhal, modificando o processo de ocupação territorial legitimado pela Igreja, caracterizando
seu início incipiente, sua emancipação e, posteriormente, a sua dissolução.
Com essa composição de fatos, o processo de ocupação territorial foi implantado pela
administração portuguesa nas terras do continente de São Pedro, com as frequentes guerras com
a coroa espanhola por uma delimitação de fronteira, favoreceu ao “homem branco europeu” a
denominação como o grande colonizador dos campos da campanha sulina e da encosta da serra,
mas o afro-brasileiro também esteve presente nesse processo.

1.4 O AFRO-BRASILEIRO NA FAZENDA MUNDO NOVO.

A importância de desconstruir a invisibilidade que foi atribuída aos afro-brasileiros na


sociedade brasileira é justamente a ação que buscamos verificar para valorizar os trabalhadores
cativos que estiveram em solo rio-grandense, no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.
Trabalhadores que foram explorados e que tentaram preservar, de uma maneira ou de outra, sua
cultura e identidade através de formas e modos de resistências ao sistema
imposto,94contribuindo para o desenvolvimento da colônia portuguesa em um primeiro
momento e, posteriormente, continuaram a ser oprimidos pelo Império Brasileiro.

93
FERNABDES, Dóris Rejane. Povoamento Pioneiro das Terras do Mundo Novo. In: BARROSO, Vera Lúcia
Maciel, SOBRINHO, Paulo Gilberto Mossmann. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST, 2008.
94
ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à Vista – Discurso do confronto: velho e novo mundo. 2ª ed. Campinas: Editora
da Unicamp, 2008, p.19.
72

A fundação da Colônia do Sacramento, em 1680, e a inserção de africanos


escravizados, no sul da América Latina, conduzidos por portugueses em terras espanholas,
aproveitando os conflitos entre as Coroas Ibéricas, acarretou na integração de indivíduos
africanos escravizados, pelo sul do território de São Pedro, com as terras que futuramente
seriam o atual Estado do Rio Grande do Sul, inserindo-os em todo o processo de ocupação
territorial do sul da colônia e império brasileiro que se estendeu durante os séculos XVII, XVIII
e XIX.
Assim, alguns dos primeiros trabalhos elaborados sobre a presença desses indivíduos
em solo gaúcho procuraram verificar como foi sua inserção e sua expansão nas relações de
trabalho e sua sociabilidade com seus senhores. O africano escravo que foi trazido para o
trabalho forçado ao sul do Brasil, quando aqui chegou, veio como um dos bens de seu senhor.
A partir disso, as relações próximas e sociais passaram por diversas modificações de controle e
exploração.95
Partindo dessa premissa, a importância da influência africana na concepção de
formação social nas terras sulinas vai além das relações de trabalho, visto que a sua inserção
nos pequenos grupos de cativeiros favoreceu um relacionamento mais próximo com seus
senhores, já que, no Rio Grande de São Pedro, predominam as pequenas escravarias dos
primeiros colonos açorianos que chegaram para trabalhar na lida do campo.96
Consequentemente, esses cativos foram os contatos sociais e as relações de sociabilidade desses
colonos que ocuparam as planícies e campos sulinos nesse primeiro momento.
O trabalho forçado e o convívio com seus senhores, que favoreceram as relações
sociais entre as partes (senhores e escravos), viabilizou e incorporou as influências e elementos
culturais de ambos os agentes. Para os africanos e seus descendentes esses elementos culturais
foram se aprimorando, isso se deu também pelos senhores escravocratas. Ou seja, houve uma
absorção entre culturas diferentes como a europeia e a africana. “Desde sua introdução em
nosso estado, o negro, de diversas formas manifestou consciência de sua situação de oprimido,

95
MAESTRI, Mário Filho. O Escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravo gaúcho. Caxias
do Sul: EDUCS, 1984.
96
CORRÊA, André do Nascimento. Estrutura de Posse de Escravos em Caçapava (1821-1850): primeiras notas
de pesquisa. XI Encontro Estadual de História: história, memória e patrimônio. 23 a 27 julho de 2012.
Universidade Federal de Rio Grande (FURG) – Rio Grande – RS – Brasil. ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao
Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. OSÓRIO, Helen. Estrutura Agrária
e Ocupacional. In: BOEIRA, Nelson, GOLIN, Tau. História do Rio Grande do Sul – Colônia. v. I. Passo Fundo:
Méritos, 2006.
73

buscando, através de poucos meios de que dispunha sua libertação, e posteriormente, sua
afirmação como cidadão livre” (BAKOS e BERNARD, 1998, p.9).97
Com isso, buscamos estabelecer uma relação de importância das raízes africanas e
afro-brasileiras na região, onde se configura o Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, com um
olhar atento ao contexto histórico, além de deixar clara a presença do afro-brasileiro ligado ao
trabalho, exploração, maus tratos, e inferiorização social e também através da invisibilidade,
principalmente, como construtor social de sua história ao lado dos colonos portugueses e
alemães, que constituíram o município de Taquara-RS. Assim, desde o princípio do
desenvolvimento dessa cidade e, consequentemente, da sociedade com base portuguesa, que se
formou da Sesmaria de Antonio Borges de Almeida Leães (1814), essas terras passaram a ser
conhecidas como Fazenda Mundo Novo.98
A presença do afro-brasileiro na Fazenda Mundo Novo legitima sua importância na
formação da sociedade, no município de Taquara, e sua permanência em cativeiro nos dá o
entendimento de seu comparecimento como mão-de-obra explorada. Sua importância para o
desenvolvimento produtivo e econômico foi fundamental dentro da sociedade brasileira, assim
fica cada vez mais evidenciada, como fator determinante, sua participação na construção de
uma sociedade que ainda o classifica como inferior.
Diante dos estudos que já foram produzidos ao longo dos últimos anos, vimos que a
contribuição da população afro-brasileira converge para uma sociedade que sofreu uma mistura
de elementos culturais diversos, desde sua chegada à colônia portuguesa no Brasil, quando
raptados de suas origens africanas. Diante disso, a legitimação da presença do afro-brasileiro
na composição da sociedade da cidade de Taquara, junto com a colonização europeia
portuguesa e depois com o colono alemão, é de suma importância para o reconhecimento e
valorização das raízes africanas e afro-brasileiras no Rio Grande do Sul.
A ideia de que uma cultura pode conquistar outra, parte do princípio de uma
inferiorização cultural, não sendo levados em conta os processos de desenvolvimento natural
de uma sociedade, com isso a cultura dominada passa a utilizar as representações culturais do
dominante. No nosso caso, há uma tentativa de aniquilação da cultura africana, mas essa foi
preservada com as manifestações de resistência dentro do próprio cativeiro.

97
BAKOS, Margaret M, BERND Zilá. O negro, consciência e trabalho. 2. ed. Porto Alegre: Ed. da Universidade
UFRGS, 1998.
98
FRANZEM, Darlei Eduardo, et al. “Taquara: no túnel do tempo”. In. SOBRINHO, Paulo Gilberto Mossmann;
BARROSO, Véra Lucia Maciel. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST, 2008, p. 113.
74

Para Peter Burke:

A ideia que encontros culturais levam a um tipo de mistura cultural é uma posição
intermediária entre duas visões do passado que podem ser criticadas como
superficiais. Por um lado, há a alegação de que uma cultura ou uma tradição cultural
pode permanecer ‘pura’. Por outro, temos a afirmativa de que uma única cultura [...]
“pode conquistar as outras por completo” (BURKE, 2003, p. 112). 99

Perceber os movimentos sociais no passado implica em abranger o entendimento sobre


a importância que compõe a vida cotidiana na História, analisar seus movimentos e as
transformações que ocorreram na esfera social e econômica torna-se um desafio na
multiplicidade de possibilidades a serem analisadas. A compreensão de como a sociedade se
constitui e se desenvolve na colônia e, posteriormente, no império brasileiro, está vinculada às
ações de produção econômica, que somente a partir dos sujeitos históricos é que se percebe seu
interior social e, assim, pode-se verificar e arriscar compreender os protagonistas e construtores
dessa sociedade, pois estão vinculados à uma visão que nos remete diretamente para dentro das
suas realidades cotidianas. Os afro-brasileiros e colonos europeus lusos e teutos foram os que
formaram a sociedade do município de Taquara – RS, durante o século XIX, mas somente os
europeus tiveram um lugar apropriado, destacando-se na história local.
Desta maneira, esse movimento social emerge de uma complexa relação entre sujeitos
cativos e senhores poderosos, que regulavam suas relações de poder dentro de uma estrutura
administrativa, política e econômica, no contexto do Segundo Império Brasileiro, determinando
toda a estrutura da sociedade brasileira, especificamente, a do Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana.
Nessa relação na qual se conjura tensões antagônicas comunitárias, onde se acredita
que já esteja pré-estabelecida a formação das relações sociais, criando uma sociabilidade que
condicione o estabelecimento de laços afetivos e sociais, mesmo que seja forçado um
relacionamento mais contundente, como no caso de relações de trabalho livre ou cativo,
imagina-se que tenha uma homogeneidade em sua construção, mas, na verdade, são relações e
tensões que não se completam; pelo contrário, vivem em constantes articulações e conflitos.
Cristiane de Quadros de Bortolli (2003), em um estudo sobre a escravidão no planalto
médio gaúcho, particularmente no município de Cruz Alta – RS, constata a presença de
africanos e afro-brasileiros cativos naquelas bandas. Como na Fazenda Mundo Novo, a
ocupação territorial parte de possessões de sesmarias, junto delas, em sua estrutura de

99
. BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.
75

desenvolvimento, eram concentrados, além de animais, os cativos e, com o seu trabalho,


favoreceram o desenvolvimento da sesmaria. “Já quando se iniciou a instalação das estâncias
pelos donos [recebedores da terra] das sesmarias, constata-se que esses tinham grandes
quantidades de bois e muitos escravos [grifo nosso]” (BORTOLLI, 2003, p.62).100
No mesmo estudo, a autora retrata um alto número de cativos em Cruz Alta, chegando
a 4019 em 1858; já no distrito de Palmeira das Missões, o número de cativos chega a 499. Esses
dados se equiparam á colônia onde se situa a Fazenda Mundo Novo, onde a quantidade de
africanos e afro-brasileiros prevalece com número equivalente a 405 escravos nos inventários
e 362 nos livros de batismo, somando um total de 767 cativos para a colônia – esses números
de batismos não se repetem nos registros de inventários –, distribuídos em grandes, médias e
pequenas escravarias com características bem semelhantes às já utilizadas por Cristiane Q.
Bortolli, que trabalhou com os inventários post mortem como fonte para sua pesquisa como
destaca:

Os dados selecionados revelam o cotidiano dos escravos, bem como as atividades que
mais realizavam e o tratamento que recebiam. Pode-se afirmar que, nos inventários da
região estudada, as atividades mais realizadas pelos escravos eram as de lavradores,
campeiros, roceiros e atividades domésticas; quanto às mulheres, em sua maioria,
eram cozinheiras e costureiras (BORTOLLI, 2003, p. 64). 101

Ana Regina Falkembach Simão (2002), em estudo sobre o cativo de ganho em Pelotas
– RS, faz referência no braço cativo, que esteve presente em todos os setores, com isso sua
importância se dá para entendermos como se desenvolveram as ocupações territoriais e a
economia colonial implantada pela coroa portuguesa e preservada pelos dois impérios do Brasil.
No caso de Pelotas, a charqueada foi o grande mote de desenvolvimento econômico
com base de mão-de-obra cativa, elevando a importância do africano e afro-brasileiro na
construção da sociedade sulina. Segundo ainda a mesma autora, “o escravo faz parte da vida
socioeconômica sulina desde sua formação até a abolição da escravatura. O cativo foi
responsável por grande parte das riquezas produzidas nas fazendas, nas charqueadas, nas
olarias, nos campos e nas cidades” (SIMÃO, 2002, p. 41).102
Desta maneira, podemos inferir que, em todas as comunidades estudadas por diferentes
autores, surgiram movimentos para desvelar a invisibilidade em prol das necessidades da

100
BORTOLLI, Cristiane de Quadro de. Vestígios do Passado: a escravidão no Planalto Médio Gaúcho. Passo
Fundo: Editora UPF, 2003.
101
Idem.
102
SIMÃO, Ana Regina Falkembach. Resistência e Acomodação: a escravidão urbana em Pelotas – RS (1812-
1850). Passo Fundo: Editora UPF, 2002.
76

valorização do sujeito afro-brasileiro em estabelecer relações sociais, onde esse agente teve
uma grande gama de importância no desenvolvimento econômico, social e cultural da região
sulina, já que sua influência está vinculada ao cotidiano da sociedade colonial e imperial do
Brasil. Frente ao exposto, constatamos que a presença do afro-brasileiro foi muito mais
importante do que somente viver em cativeiro e ser explorado.
Benjamim Abdala Junior refere o poeta africano Léopold Senghor em sua obra, que
possui um pensamento da valorização das raízes africanas, seguindo a mesma linha de
pensamento, “[...] na perspectiva do movimento da negritude ligado às reivindicações dos
negros de todo o mundo, que o sentimento é negro e a razão é branca” (ABDALA JUNIOR,
2002, p. 49).103 Nesse sentido, o sentimento africano de sua raiz está perpetuado às necessidades
que os mesmos enfrentaram para se manterem ativos dentro da realidade que foi apresentada,
ou seja, a escravidão e a desqualificação étnica imposta pelo europeu.
Assim, se vincular às sociedades onde foram inseridos era uma possibilidade de
preservar sua cultura, resistindo e fazendo prevalecer sua permanência e existência como
trabalhadores não reconhecidos socialmente. “O exercício da hegemonia não se faz apenas com
coerção, mas, sobretudo com a circulação de ideias, que têm atores determinados, que se situam
em determinados territórios” (ABDALA JUNIOR, 2002, p. 50).104
No estudo que Bernardes (1997) realizou sobre o aumento da população nas terras
concedidas à colonização alemã em São Leopoldo, em 1824, vimos que a necessidade de mais
espaço levou os colonos à busca de novas terras, assim, favoreceu a ocupação das encostas, “o
povoamento foi se afastando da margem do Rio dos Sinos e progredindo em busca dos
primeiros patamares da encosta, embrenhando-se na mata espessa e nela abrindo clareiras”
(BERNARDES, 1997, p. 70).105
Com o desenvolvimento regional através da ocupação territorial do Vale do Rio dos
Sinos - Paranhana, o lugarejo denominado Pinhal e outras localidades, como Santa Cristina do
Pinhal, apresentaram nos documentos, de fonte primária, os afro-brasileiros, que já andavam
por essas bandas anteriormente à Sesmaria de Antonio Borges de Almeida Leães (1814), pois
o lugarejo Pinhal teve sua ocupação por portugueses e, com esses, o afro-brasileiro foi inserido
como trabalhador cativo na região.

103
ABDALA JUNIOR, Benjamim. Fronteiras Múltiplas, Identidades Plurais: um ensaio sobre a mestiçagem e
hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.
104
Idem
105
BERNARDES, Nilo. Bases Geográficas do Povoamento do Estado do Rio Grande do Sul. Ijuí: ED. UNIJUÍ,
1997.
77

Segundo Dóris Rejane Fernandes:

Os lugares são denominados de acordo com a vegetação: Pinhal, Pinhalzinho, Pinhal


Grande, do Pinheiro. [...] A ocupação com casas, paiol, roças, arvoredo frutífero,
criação de animais era a forma de comprovar a posse. A moradia de favor era comum,
pois a terra não tinha quase valor, e os possuidores de diversas cabeças de gado, de
escravos e com família, eram moradores em terra de outrem (FERNANDES, 2008, p.
27). 106

Esse primeiro movimento de colonização teve importante participação na formação


econômica, social e política dessa comunidade. Sendo de suma importância reconhecer que o
sistema de ocupação se dava incluso a uma estrutura escravista, assim o indivíduo africano e
afro-brasileiro esteve dentro das senzalas nessa região, mas também estiveram como sujeitos
construtores de sua história, preservando sua cultura e formando laços de solidariedades e
sociabilidade diante da conjuntura de imposição sócio-econômica-cultural europeia. Desta
maneira, buscamos valorizar esses indivíduos junto com o colono português, visto que já eram
explorados nessas terras anteriormente ao colono teuto.
Com esse movimento de busca de terras para ampliar a colonização alemã, já citado
no capítulo anterior, com o empreendimento de José Tristão Monteiro a partir de 1845,
vendendo lotes e colônias de terras para os colonos que estavam em busca de espaço, surge um
novo modelo de tomada de terras não ocupadas, a partir do empreendimento particular que
efetiva essa ocupação territorial e consolida em uma nova etapa de ocupação ao emprego
territorial, ao mesmo tempo, favorecendo e fortificando as bases do Império Brasileiro e tendo
como base a produção de subsistência, evitando assim uma possível investida de ocupação por
outra Coroa.
Ao indagar que o afro-brasileiro teve importância na construção da sociedade do Vale
do Paranhana junto com o colono europeu alemão, nossa intenção é sempre remetida para a
tentativa de retirar da invisibilidade as questões ainda muito conservadoras nessa sociedade.
Não encerrando aqui a discussão, mas possibilitando novas abordagens sobre o tema. A
presença africana na colônia alemã é fato, e muito antes da chegada dos colonos teutos, já se
utilizava o cativo como mão-de-obra para o desenvolvimento regional.
O negro escravizado já estava sendo usado como trabalhador pelos portugueses, isso
acarretou, no decorrer do tempo, na construção de uma sociedade mista e se desenvolveu com
relações cotidianas diversas. Assim, a representatividade do afro-brasileiro se vincula a uma

106
FERNANDES, Dóris Rejane. Povoamento pioneiro das Terras do Mundo Novo. In. SOBRINHO, Paulo
Gilberto Mossmann; BARROSO, Véra Lucia Maciel. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST, 2008.
78

relação de trabalho e, consequentemente, de uma sociabilidade de importância e relevância para


manutenção e preservação dos bens do colonizador, mas também buscando sua
representatividade e preservação cultural.
Tanto o afro-brasileiro quanto o colonizador tiveram grande importância para o
desenvolvimento das regiões onde ocuparam, mas a ‘inexistência’ de um reconhecimento e o
descaso com os descendentes africanos, os colocaram para a margem da sociedade. Com isso,
há a valorização do imigrante europeu – tanto o luso (português) quanto o teuto (alemão) e o
italiano –, esse é tido como o grande “desbravador” das terras ainda não ocupadas na parte sul
do Império Brasileiro e levou os créditos por desenvolver e organizar uma sociedade, que se
alargou com base no trabalho servil e não permitiu que os trabalhadores cativos fossem vistos,
pela sociedade atual do Rio Grande do Sul e, principalmente, onde se localiza a Fazenda Mundo
Novo, como pertinentes para o desenvolvimento da região do Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana.
Como podemos constatar, a influência do afro-brasileiro na sociedade de Taquara-RS
foi intensa e teve sua participação presencialmente muito maior do que se pensava, tendo sua
representatividade como valor para manter a cultura africana dentro da sociedade atual e
afastando-o da invisibilidade.
Com base nas análises até aqui realizadas podemos elencar uma série de elementos
que foram percebidos através das fontes primárias – inventários post mortem, em primeiro
momento e, posteriormente, os livros de batismos –, tendo, nas proporções da presença do afro-
brasileiro, uma ampla visualização numérica de cativos na região e as possíveis relações
políticas, econômicas e de sociabilidade, que se tramaram durante o período de 1856 a 1888.

1.4.1 Discurso, manutenção e ação dominadora.

O discurso que foi construído para assegurar o domínio e a manutenção das


disposições legais de valores e superioridade do colonizador europeu português ou teuto vem
ao encontro da realidade que foi estritamente voltada para a concepção de uma instituição
formalmente estabelecida intrinsecamente, prevalecendo um discurso de valor e submissão às
verdades que foram determinadas dentro dessa instituição, ou seja, a concepção de
desbravamento e trabalho digno legitimado para elevar o homem desbravador e colonizador a
um patamar já pré-estabelecido e inferiorizando os que não pertenciam à mesma instituição,
sendo a Coroa Portuguesa no Brasil colônia e o Império Brasileiro.
79

A relação de poder é bem definida quando pensamos em força, militarismo, coerção,


imposição e outras denominações que o poder exerce na sociedade. O Estado é o instrumento
que executa as práticas de poder, dentro de ações governamentais de todo o aparato estatal. A
política defronta-se com o poder em uma perspectiva, que nas relações sociais essa conjuntura
tem um lugar que pode ser exercido conforme a necessidade social ou individual de cada
sociedade, em seu tempo ou espaço.
Ou seja, nas profundezas das relações sociais podem existir elementos que não são
percebidos, mas estão transcorrendo e seguem uma trajetória linear, coerente e refletida na
realidade, ou seja, no cotidiano. O poder exercido das relações micro para relações macro, nos
deixam perceber uma construção do homem afro-brasileiro que busca definir sua situação
dentro do quadro social onde se encontra, adquire o conhecimento necessário para obter uma
política de relacionamento, que possa expressar sua vontade e os antagonismos perpetuados do
cativeiro, visando assim as relações político-sociais.
O fator disciplinar é também um ponto de tamanha importância, pois deste formaram-
se indivíduos que, pelo fator econômico e político, descaracterizou-se o homem, tornando-o um
ser ‘útil e dócil’. Essa forma de análise do poder disciplinar e individual transforma o poder em
um mecanismo que constrói toda uma personalidade mais elaborada do uso do poder, ou seja,
a disciplina forma um indivíduo que se transforma em um elemento composto de um saber em
um ser antagônico, pois, tendo normas disciplinares, segue-a e põe em prática, no seu cotidiano
e em sua resistência a tais emancipações.
Segundo Clóvis Moura:

A história do negro no Brasil confunde-se e identifica-se com a formação da própria


nação brasileira e acompanha a sua evolução histórica e social. Trazido como
imigrante forçado e, mais do que isso, como escravo, o negro africano e os seus
descendentes contribuíram com todos aqueles ingredientes que dinamizaram o
trabalho durante quase quatro séculos de escravidão. Em todas as áreas do Brasil eles
contribuíram a nossa economia em desenvolvimento, mas, por outro lado, foram
sumariamente excluídos da divisão dessa riqueza (MOURA, 1992, p 7).107

Essa evolução histórica a que se refere Clóvis Moura pode ser entendida como a
cotidianidade em que o afro-brasileiro cativo enfrentou em sua realidade social dentro do Brasil.
O cotidiano possui uma complexidade de elementos que se manifesta à vida diária, essa se
refere como a sociedade se manifestou dentro do processo social e seu desenvolvimento.

107
MOURA, Clóvis. História do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1992.
80

Segundo Agnes Heller (1989), as circunstâncias levam o homem a produzir a história,


a sua história. Dentro desse movimento, se estabelecem relações e situações humanas
mediatizadas pelas coisas. “Não se deve jamais entender a ‘circunstância’ como totalidade de
objetos mortos, nem mesmo de meios de produção; a ‘circunstância’ é a unidade de forças
produtivas, estrutura social e formas de pensamento, [...]” (HELLER, 1989, p. 1).108 O homem
tem o objetivo de transmitir e construir sua estrutura social, assim no entendimento dessa
estrutura, cabe à realidade de cada indivíduo formar a sua estratificação dentro da sociedade.
Incluso nessa proposta, o problema é perceber qual a funcionalidade da história no
contexto de “finalidade objetiva” onde vão se estabelecer as relações de substância, ou seja,
perceber se a história e a substância da sociedade estão em harmonia, pois, nesse sentido, o
homem é essa substância, e a história, sua origem.
Nesse caso, a legitimidade de uma espécie de representação do que foi transmitido
como algo verdadeiro, como, por exemplo: o casamento praticado nos moldes da ordem
religiosa católica. Essa constituição matrimonial foi praticada também pelos afro-brasileiros
cativos, legitimando o casamento e formação da família escrava.
Esse seria o reconhecimento dos fatores onde as relações políticas foram empregadas
de acordo com as práticas de relações existentes, já que a dominação imposta exercia um poder
sobre os dominados, que necessitavam emergir com um reconhecimento de existência, nesse
conjunto a família é a origem e a história. O tempo histórico é irreversível, ou seja, quando em
algum lugar as necessidades são diferentes de outros lugares, não podemos dizer que essa ou
aquela sociedade é atrasada ou adiantada, pois a necessidade de algo faz surgir o
desenvolvimento.
É neste contexto que buscamos encontrar na história o tempo presente no passado, pois
as relações e comparações do tempo passado podem esclarecer o descobrimento de elementos
que poderiam contribuir para a valorização do homem negro no cativeiro durante o século XIX.
O que se decompõe não é o tempo, mas o ritmo das alterações das estruturas sociais, já que a
década de oitenta desse século possuía as estruturas de produção em processo de remodelação.
O cotidiano é uma luta de conceitos em que o indivíduo está inserido e pode existir
uma coletividade ou dispersão, também pode organizar-se para promover uma transformação
de aspectos em que venha enfatizar uma identidade social. Em um aspecto de dominação, o
dominado não tem a possibilidade de exercer sua identidade social, pois se encontra dentro de
uma esfera em outra realidade, que é a vida cotidiana de cada senhor.

108
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
81

A aceitação, muitas vezes revoltada pelo cativeiro, entra em um estágio de assimilação


que pode tornar-se um grande elemento na busca do momento certo para fazer valer sua vontade
dentro de um quadro social inverso à sua realidade, sendo esse elemento a cotidianidade, em
que fará emergir um cativo com elementos legitimados e com um novo valor construído em sua
realidade, formando a sua própria esfera cotidiana, o seu cotidiano social, que nesse caso é o
cativeiro.

1.4.2 Cotidiano: a fronteira entre os afro-brasileiros em uma sociedade de


imigração europeia.

O contato com o ‘novo’ espaço territorial – antiga Sesmaria de Antonio Borges de


Almeida Leães, 1814 –, foi marcado, no primeiro momento, pelo relacionamento confliotuoso
com os nativos da região, onde em vários momentos os conflitos tiveram consequências sérias
para os colonizadores. No decorrer do tempo, a efetivação de ocupação do território foi se
legitimando com ações mais contundentes e represivas aos nativos, até a sua extinção nos anos
seguintes.
O movimento de ocupação do espaço geográfico proporcionou um choque cultural
entre os colonos europeus e os nativos que já ocupavam as terras ‘não’ ocupadas pelos europeus.
Nesse sentido, a imposição da cultura europeia em subordinar a cultura nativa seria uma
consequência ‘natural’, visto que a imposição cultural está centrada no desenvolvimento e
conceito do que é cultura para o homem europeu, e o que significa cultura para o nativo, e como
era visto essa cultura nativa pelo europeu.
Segundo Cuche:

Dizer que mesmo os grupos socialmente dominados não são desprovidos de recursos
culturais próprios, e sobretudo da capacidade de reinterpretar as produções culturais
que lhes são impostas em maior ou menor grau, não significa, no entanto, voltar à
afirmação que todos os grupos são iguais e que suas culturas são equivalentes.
(CUCHE, 1999, p. 144-145).109

Nesse sentido, devemos nos voltar um pouco para a Europa, para entendermos os
valores culturais que se estabeleceram em relação ao homem europeu, natureza, e espaço, já
que, dependendo do pensamento elaborado pelos teóricos iluministas do século XVIII, em
busca de uma definição do que é cultura. Nada mais justo que tentar exemplificar como chegou

109
CUCHE, Denys. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 1999.
82

esse colono europeu português, ou o teuto, pelas terras sulinas e o que carregava na bagagem
como sentido de cultura.
O discurso construído pelo europeu para justificar e legitimar o conceito de cultura
fundamenta-se na superioridade étnica, na capacidade de modificar seu meio e explorar as
sociedades ditas “atrasadas” que constituem espaços já ocupados. Mas também podemos
verificar que, em determinado tempo e local, o desenvolvimento do discurso sofre alterações e
com isso vai modificando o conceito de cultura até chegar a outro entendimento conceitual.
A fronteira como elemento novo pode estabelecer bases para uma ampla situação de
análise, assim os estudos de casos, que fecundam as possibilidades de um entender melhor sobre
as origens epistemológicas dos grupos étnicos, ultrapassam o simples sentido de fronteira
geográfica e se estende pela construção cultural e de identidade nas bases dessa aculturação,
visto que, existem culturas dentro de culturas, cotidianos dentro de cotidianos.
Norberto Bobbio (1989),110 na questão da fronteira, descreve que esse pensamento se
estrutura na forma do Estado, onde a fundamentação de fronteira, que vai se estabelecer e
legitimar, se caracteriza pelo circunstância e suas aplicabilidades para explorar, manipular ou
meramente tirar vantagens quanto à ocupação territorial.
Na História, que constitui a vida de africanos e afro-brasileiros na sociedade branca,
analisar o cotidiano na história regional é um passo importante para examinarmos o
comportamento desses indivíduos que estiveram por longos séculos atrelados a um sistema que
lhes tirou a chance de ‘viver’ sua humanidade plena. A partir da introdução do africano
escravizado no Brasil, esses sujeitos passaram a conviver com outro momento de sua realidade,
com uma imposição ao cativeiro por longos séculos. Nessa concepção, o africano ou afro-
brasileiro fez parte de uma sociedade que estabeleceu critérios eficazes para dificultar sua
permanência, manutenção e existência no Novo Mundo.
Pensando um pouco mais sobre a questão da ocupação do espaço físico e analisando
as relações humanas que se estabeleceram em um tempo histórico, buscamos confrontar a
imposição cultural através de um discurso de inferioridade ao africano e afro-brasileiro que
esteve ocupando o espaço geográfico com seus senhores na Fazenda Mundo Novo.
Em primeiro momento como sujeito cativo, pertencente a uma elite que estabeleceu
parâmetros de privação desses sujeitos para não deixar usufruir de sua liberdade. Em segundo,
verificou-se quais os elementos que favoreceriam as relações entre cativos e senhores durante
o cativeiro.

110
BOBBIO, Norberto. Estado, gobierno y sociedad: por una teoria general de la politica. Santillan. - Mexico:
FCE, 1989.
83

Michel Foucault destaca o discurso da seguinte maneira:

O sujeito fundante, com efeito, está encarregado de animar diretamente, com suas
intenções, as formas vazias da língua; é ele que, atravessando a espessura ou a inércia
das coisas vazias, reaprende, na intuição, o sentido que aí se encontra depositado, é
igualmente que, para além do tempo, funda horizontes de significações que a história
não terá senão de explicar em seguida, e onde as proposições, as ciências, os conjuntos
dedutivos encontrarão, afinal, seu fundamento. Na sua relação com o sentido, o sujeito
fundador dispõe de signos, marcas, traços, letras. Mas, para manifestá-los, não precisa
passar pela instância singular do discurso. (FOUCAULT, 2005, p. 47).111

Essa linha tangível de pensamento vai constituir um novo paradigma para os que
viveram no cativeiro, visto que para o colonizador suas características já estão predefinidas.
Assim o cativo passa a perceber que não é somente o cativeiro que o impede pela busca da
liberdade, mas também a fronteira social e cultural a ser ultrapassada, já que a relação entre
esses sujeitos construíram a nossa sociedade atual, e não se tem dúvidas de que o afro-brasileiro
teve sua participação muito mais efetiva que coadjuvante na construção da sociedade brasileira.
No processo de emancipações, a partir das possibilidades da abolição do escravismo,
os africanos e afro-brasileiros, que estavam em cativeiro, passaram a conviver diretamente no
dia-a-dia “das sociedades brancas efetivamente”, seu engajamento pela liberdade e a utilização
das leis abolicionistas favoreceram o entendimento do contexto em que viviam, visto que esses
estavam inseridos na sociedade, mesmo que paralelamente, buscando os meios para sua
sobrevivência através da “liberdade”.
Ainda não muito longe da chibata ou do pelourinho, também teve a percepção de que
sua participação mais ativa nos movimentos de resistências era possível, e, a partir da
observação do “seu novo cotidiano”, também foi visto por outra ótica, já que aprendeu que as
leis criadas os favoreciam com a pressão dos abolicionistas. Assim, em muitas vezes, resistindo
aos mandos dos feitores e senhores que já não tinham mais o poder e controle sobre certas
escravarias, como cita Walter Fraga (2014) o ocorrido no Recôncavo Baiano, onde cativos
fugiam dos engenhos e buscavam nas autoridades proteção e regulamentação da aplicabilidade
das leis que eram a seu favor:

No fim da década de 1870, os escravos perceberam que muitas autoridades judiciais


se estavam posicionando claramente em favor de suas demandas, impedindo a venda
para outras províncias dos que tinham pecúlio, concedendo alforrias aos que não eram
resgatados nas cadeias públicas e decidindo o valor das alforrias por valores mais
baixos do que os pretendidos pelos senhores. A partir da década de 1870
intensificaram-se as fugas de escravos dos engenhos para Salvador, com o objetivo de

111
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 12 ed. 2005.
84

acionar as autoridades judiciais nas contendas com seus senhores (FRAGA, 2014, p.
47). 112

Nesse contexto, também Renata Saldanha Oliveira (2013) define que as relações
cotidianas entre senhores, negros livres e escravos, se manifestaram de acordo com as
possibilidades que cada contexto que se apresentou para esses sujeitos, ou seja, a fronteira social
que foi erguida durante o cativeiro fortificou-se no pós-abolição, já que as classificações de
inferioridade, que se forjaram durante o escravismo, permaneceram durante muito tempo na
sociedade brasileira, e ainda predominam os resquícios desse pensamento nos dias atuais. “[...],
a herança africana forneceu elementos culturais no qual se articularam esperanças e recordações
e a partir do qual os escravos elaboraram seus projetos de vida” (OLIVEIRA, 2013 p. 34).113
Imaginar como esses sujeitos puderam pensar a elaboração de seus projetos, e analisar
que primeiro deveríamos ajuizar-nos nas dificuldades de se manterem vivos, e posteriormente,
idealizar um ‘futuro’ dentro da sociedade. Contudo, seria um tanto presunçoso imaginar que
tudo discorreria com naturalidade e tranquilidade no rearranjo social quando estabelecida a
“liberdade”, já que as fronteiras, em sentido estrito, estavam bem balizadas.
O espaço fronteiriço entre o cativeiro, a sociedade e a liberdade, era mais agudo visto
que no processo da utilização dos meios legais, outros fatores faziam esbarrar nessa nova
realidade que era a liberdade, com isso se eleva a uma multiplicidade de fatores que se anexam
em um passado marcado na exploração, vinculando-se que ainda não era reconhecido como
homem livre.
A ideia é que a história tome outra dimensão, deixe de ser narrada pela sociedade
branca em uma maneira de imposição e comece a ser descrita pelo sujeito comum, o que sofreu
as penalidades do cativeiro, que saía da invisibilidade e se tornou histórico no contexto social.
Sandra Pesavento (2006) nos chama a atenção para outra questão a ser pensada, a da
mestiçagem, que ela desconfigura a formação tradicional étnica e transcende a realidade que se
apresenta. Por mais tradicional que seja a formação étnica de uma localidade, os elementos
primeiros da construção cultural local já não são encontrados na maioria da população, pois as
misturas de componentes representativos de outras etnias se fazem presente, formando a
mestiçagem e com isso a fronteira limítrofe se desfaz e surge a fronteira miscigenada.

112
FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 2ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
113
OLIVEIRA, Renata Saldanha. Cativos Julgados: experiências sociais escravas de autonomia, sobrevivência e
liberdade em Cachoeira do Sul na segunda metade do século XIX. Disertação de Mestrado, 2011, UFSM.
85

Segundo Sandra Pesavento:

Esta mescla e mistura que elabora uma maneira de ser específica nos remete ao
conceito da mestiçagem. A mestiçagem, visualizada sob o enfoque do biológico e
carregada de preconceitos, já foi, em outro século, fator de estigma e hierarquização
dos povos. Hoje, a mestiçagem racial e étnica é a realidade da Europa, esta Europa
que está a construir um mercado unificado e uma comunidade transnacional, mas na
qual pululam micro identidades a reivindicar formas de ser e valores específicos,
muito peculiares (PESAVENTO, 2006, p. 04).114

Assim, o entendimento sobre o objeto não quer dizer que se chegue a um resultado
imediato, mas que devemos perceber atentamente que a escrita e seu sentido podem trazer um
elemento novo dentro da composição de compreensão sobre uma nova abordagem desse objeto
e, com isso, verificarmos que a vida cotidiana se desmembra em variáveis complexas de redes
de solidariedade. Segundo Mignolo:

la cognición de un objeto o acontecimiento, tal como se manifiesta en el discurso, que


expresa tal acto cognitivo. Sabemos al respecto, que la cognición de um objeto o de
un acontecimiento, no resulta únicamente de las informaciones que se «extraen» de
tal objeto sino también (y quizás fundamentalmente), resultan de lo que sabemos antes
de enfrentamos con el objeto. (MIGNOLO, 1982, p.61).115

O pensamento de como analisar o objeto parte do pressuposto de um discurso e essa


análise se propõe a verificar para quem o discurso sobre a “liberdade” foi construído, e o que
isso representou para o africano e afro-brasileiro dentro da sociedade colonizadora. Assim, no
processo de escrita dos documentos históricos se encontram crônicas e textos que destacam o
que é mais importante a partir da visão e contexto da produção discursiva, também favorecendo
um elemento que se deve partir de um ponto de análise, nesse caso a fronteira e o afro-brasileiro
passam a ser o objeto.
Walter Mignolo (2008)116 manifesta que a modernidade é construída a partir de um
discurso que se detém de uma opressividade e se manifesta de acordo com as relações que ainda
exercem a colonização dentro das estruturas sociais existentes e descendentes do ocidentalismo
capitalista. Podemos pensar o espaço fronteiriço como aculturação, que eleva a uma
multiplicidade de fatores, que se anexam em um passado arrojado na exploração e vinculação

114
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronterias Culturais em um Mundo Planetário - paradoxos da (s) identidade
(s) sul-latino-americana (s). Porto Alegre: UFRGS, 2006.
115
MIGNOLO, Walter. Cartas, crónicas y relaciones del descubrimiento y la conquista. Madrid: Ediciones
Catedra, 1982.
116
MIGNOLO, Walter. Pensamiento Decolonial, Desprendimento y Apertura: La Pequeña História. Tabula Rasa.
Bogotá - Colombia, No.8: 243-281, enero-junio 2008.
86

de um hibridismo (miscigenação), que ainda não é reconhecido como puro, mas como impuro,
mestiço.
Em todas as esferas sociais, e sendo mais específico no trabalho braçal, os cativos
tiveram muitas dificuldades em enfrentar as barreiras fronteiriças que se estabeleceram, “sobre
as relações entre fazendeiros e trabalhadores negros nos últimos meses de escravidão e nos
primeiros anos depois da abolição, mostra que a “rebeldia” dos escravos na década de 1880
deixou os fazendeiros ressentidos, aumentando seu desprezo e ódio por negros” (MONSMA,
2007, p. 115).117
Ainda nessa mesma linha de desvalorização do afro-brasileiro ex-cativo, no final do
escravismo, as dificuldades enfrentadas eram patenteadas nas relações entre esses e antigos
senhores, já que ambos necessitavam um do outro em casos específicos e que remetem a
conflitos, alguns, como no recôncavo baiano, onde muitos cativos fugiam para outros engenhos
por acharem melhores condições de trabalho, mesmo sabendo que ainda estavam em cativeiro.
Segundo Karl Monsma:

Fazendeiros e autoridades locais também mostravam forte tendência de classificar


negros autônomos, sem patrões, como “vagabundos”, e tentavam forçá-los a
empregar-se sob a ameaça de recrutamento para o serviço militar. Nas interações face
a face, fazendeiros e administradores de fazendas se irritavam com qualquer sinal de
desacato dos negros, recorrendo rapidamente à violência para rebaixá-los e humilhá-
los, tendência que manifestavam menos nos conflitos com trabalhadores [livres]
imigrantes. Grifo nosso (MONSMA, 2007, p. 115).118

Nessa ótica as esferas sociais se estabelecem, isso reflete diretamente no conceito que
Agnes Heller (1989) define como cotidianidade, ou esferas do cotidiano e suas particularidades,
além do que, o cotidiano nas fazendas em relação aos cativos era de um jeito, já com sua suposta
liberdade, essa relação mudava.
Esse cotidiano que amplia as possibilidades de relações sociais e ao mesmo tempo
barra os sujeitos dentro das relações próximas, também aproxima e ao mesmo tempo explora
pela necessidade, subjuga a capacidade de produção e ainda massacra pela desvalorização do
trabalho. O imigrante europeu teve todas as vantagens sobre o grande contingente de africanos,
visto que o processo de desterritorialização, da diáspora transatlântica e a escravização foi de
um grande impacto para as populações nativas da África. Essas diferenciações de realidades

117
MONSMA, Karl. Identidades, desigualdade e conflito: imigrantes e negros em um município do interior
paulista, 1888-1914. Notas de pesquisa. Revista Unisinos, 2007.
118
Idem.
87

formaram as fronteiras que ultrapassaram todas as expectativas, principalmente para o africano


e afro-brasileiro, em muitos casos os conflitos entre cativos e senhores tornaram-se frequentes.
Marilena Chauí (2001)119 traz o conceito de Semióforo no qual distingue o início ou o
final, a causa ou efeito sobre alguma coisa, início de uma construção ou ainda a fundação de
algo, que, transpondo o tempo, vai dando sentido e se reciclando para o desenvolvimento e
manutenção, exemplo disso podemos mencionar o discurso construído a partir de 1500, na
chegada dos europeus na América, como o da inferiorização tanto do índio quanto o africano.
Nesse último, a sua existência trasncendeu e se apresenta como um saldo de mercadoria de uma
colonização que não foi mais utilizada, já para o índio sua aniquilação em amplos sentidos
silenciou-o de tal maneira que sabemos muito pouco a seu respeito.120 Mas, nesse caso
específico, o que interessa é o conceito de semióforo.
Os conteúdos se formam de acordo com as necessidades, já que em sua maioria, o
entendimento deve ser de simples compreensão, mas complexo em sua textura. Cada objeto de
estudo só tem um sentido quando se consegue perceber que ele existe em suas verdades
implícitas e explicitas através de conceitos estabelecidos das análises e resgatados do silêncio
em sua existência, uma vez que somente através da conceitualização do objeto podemos
estabelecer sua importância.
As relações entre cativos africanos e afro-brasileiros com colononizadores portuguses
e teutos no século XIX nos dão uma suposta dimensão de como o sujeito em cativeiro
sobreviveu dentro da Fazenda Mundo Novo. Mas ainda nos deixa com muitas dúvidas sobre a
presença desses sujeitos estigmatizados pela cor da pele, vivendo com a opressão em um
processo escravocrata de mais de dois séculos, mas resistindo para manter as bases e
preservação cultural de sua ancestralidade, que transcendeu as fronteiras impostas pela
sociedade imperial, em um momento de transição que começou a mudar os rumos do cativeiro
no final do sistema escravocrata no Brasil.

119
CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2001.
120
ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra À Vista – Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. Campinas: Unicamp,
2008.
88

CAPÍTULO
II

A OCUPAÇÃO DA ENCOSTA DA SERRA: COLONIZAÇÃO E


PRODUÇÃO.
89

2 A ECONOMIA AGROPECUÁRIA DE ABASTECIMENTO.

A economia colonial que se instalou na Capitania do Rio Grande de São Pedro a partir
do século XVIII funda-se em primeiro momento com os paulistas no comércio do gado121
vacum e o comércio de muares para abastecimento e transporte na exploração das Minas Gerais.
Já na segunda metade do mesmo século, começa a se desenvolver o incremento da agricultura
com a chegada dos colonos açorianos nas terras de São Pedro, incentivando a produção de trigo
em um primeiro movimento, e a pecuária posteriormente, patrocinando a manutenção da
produção agropastoril e mantendo a fronteira constituída a partir das lutas travadas com os
espanhóis durante o processo de ocupação da porção sul meridional da América Latina,
favorecendo o desenvolvimento da região sul da colônia portuguesa.
Essa produção embrionária nesse momento, uma vez que deu conta da necessidade
que a colônia precisava, ampliando a diversidade produtiva da região e favorecendo o
fornecimento de homens ao exército para as lutas futuras que visavam à construção e
manutenção da fronteira, trouxe a exploração da terra e do gado vacum, o elemento de
entendimento que somente o couro do gado seria utilizado para exportação – tanto dentro da
colônia, como para a Europa –, e sua carne apodreceria nos campos da campanha sulina. Esse
viés proporcionou o surgimento de outro produto que começa a se mostrar atraente para a
economia colonial, dando diferente patamar e importância ao Continente de São Pedro, o
charque.
Esse novo produto vai abrir as portas para uma implantação econômica que, por quase
todo o século XIX, se tornará o principal produto de São Pedro do Rio Grande do Sul,
favorecendo o enriquecimento de grandes latifundiários, e promovendo a manutenção e fixação
da fronteira como delimitação favorável para ampliação dos lucros com a carne salgada,
exportando o produto e explorando a mão-de-obra cativa africana e afro-brasileira, como sendo
primordial para o abastecimento e desenvolvimento das zonas charqueadoras que se
constituíram no sul da Capitania sulina.

121
“Gado” produto da pecuária, também termo utilizado como conjunto de animais, especialmente bovinos,
criados no campo para serviços agrícolas e consumo doméstico ou para fins industriais ou comerciais. Rebanho,
armento, vara, fato. Gado grosso, equinos, bovinos. Gado miúdo, porcos, cabras, carneiros. Por gado entende-se o
conjunto de animais que foram domesticados pelo homem para aumentar a sua produção, serviços agrícolas,
consumo doméstico, comercial ou industrial: a sua criação pode ser dividida em 'criação de gado intensiva' e
'criação de gado extensiva'. BORBA, Francisco S. Dicionário Unesp do Português Contemporâneo. Curitiba: Piá,
2011, p. 660.
90

Segundo Caio Prado Junior:

O recrutamento dos colonos se faz, sobretudo nas ilhas dos que sempre contribuíram
um viveiro demográfico e braços com excesso de produções que o exíguo território
do arquipélago não comportava. Foram escolhidos de preferência camponeses que
emigravam em grupos familiares, o que também é quase único na colonização do
Brasil. Por todos esses motivos, constitui-se nos pontos assinalados um tipo de
organização singular entre nós. A propriedade fundiária é muito subdividida, o
trabalho escravo é raro, quase inexistente, a produção é etnicamente homogênea.
Nenhum predomínio de grupos ou castas, nenhuma hierarquia marcada de classes
sociais. Trata-se em suma de comunidades cujo paralelo encontramos apenas, na
América, em suas regiões temperadas, e foge inteiramente às normas da colonização
tropical, formando uma ilha nesse Brasil de grandes domínios escravocratas e seus
derivados. Uma ilha muito pequena, aliás, e sem importância apreciável no conjunto
da colônia. Mesmo computando apenas este setor meridional de que nos ocupamos,
seu papel é reduzido; o que contará nele são as grandes fazendas de gado do interior,
as estâncias (PRADO JUNIOR, 2004, p. 96). 122

Percebemos que nesse primeiro momento de ocupação do solo sulino, os açorianos


tiveram sua importância a ser muito destacada, já que ainda a fronteira estava em um
movimento ondulatório não muito definida, que a qualquer momento poderia ser ultrapassada
e ter seu limite reformulado pelos espanhóis. Essa fronteira não possuía a estabilidade que
posteriormente, com a chegada dos açorianos, passou a ter.
Vejamos que, a partir da fundação da Vila de Rio Grande (1737) e, posteriormente, no
ano de 1752, quando colocado o primeiro “marco divisório” entre as coroas portuguesa e
espanhola, e no ano seguinte, a construção do Forte Jesus Maria José, que dará início ao
desenvolvimento e fundação da Vila Rio Pardo, começando a demarcar a fronteira Oeste do
Continente de São Pedro, acirrando a ocupação territorial entre as Coroas Ibéricas e dando
início a mudanças geografias, sociais e econômicas na porção sul com a chegada dos primeiros
colonos açorianos. Mas para entendermos a importância dos açorianos em terras sulinas, vamos
verificar como foi a saída desses indivíduos das ilhas atlânticas e sua jornada além-mar até as
terras tão distantes na América.
Em primeiro, devemos entender que as ilhas atlânticas (possessões portuguesas) não
estavam desligadas da realidade e do processo de colonização do reino português, visto que
essa população dava suporte à conquista do arquipélago dos Açores como um todo. Em
segundo, a importância dessa população das ilhas vai se efetivar como “uma gente” para
colonizar e fortificar a fronteira entre as coroas ibéricas na porção sul meridional da América,
uma vez que, a fronteira entre os dois reinos estava sendo construída e a necessidade de povoar
a região era urgente. Assim, dois momentos são fundamentais para entendermos a vinda dos

122
PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004.
91

açorianos para a colônia no sul do Brasil, um deles era a defesa do litoral sul da América, o
outro o povoamento da Colônia do Sacramento, fundada em 1680: assim, o processo migratório
se constitui entre os “dos casais” e as levas de recrutas.
Segundo Cibele Caroline da Rosa e Luís Fernando da Silva Laroque:

[...], a imagem das terras brasileiras recorrente nas ilhas era povoada da possibilidade
de enriquecimento rápido e fácil. Elas eram divulgadas, principalmente, a partir de
tripulantes que desembarcavam nas ilhas. Neste sentido, as imagens de uma possível
prosperidade e ainda as más condições de vida que os habitantes do arquipélago
enfrentavam colaboraram para pedidos de transferência de gentes das ilhas para o
meridional brasileiro. Esta miséria era advinda, principalmente, dos cataclismos
(ROSA e LAROQUE, 2018, p. 107).123

Fatores climáticos sísmicos afetaram as ilhas, isso acarretou uma desestruturação na


produção agrícola dessas populações açoritas, a miséria e a falta de oportunidades fizeram com
que pedidos fossem enviados ao reino, principamnete para ajuda alimentícia. Isso viabilizou
que, na emergência e necessidade de população na colônia americana, fosse uma saída para
efetivar de uma vez a legitimação da posse da terra que anteriormente era da Espanha, com isso
a ideia inicial da adminsitração – Conselho Ultramarino –, foi fazer um recrutamento de casais
entre 40 anos para homens e 30 anos para mulheres, para se deslocarem para colonizar as novas
terras.
Segundo José Damião Rodrigues:

Foi pois perante a necessidade de garantir a projecção da soberania portuguesa nas


regiões sul-brasileiras que a monarquia joanina recorreu à presença de contingentes
militares e à fixação de casais ilhéus, política, de resto, que a coroa portuguesa tinha
já praticado no século XVII em relação ao Maranhão e ao Pará. Com efeito, no século
XVIII, e apesar das ordens régias em contrário — publicadas em 1709, 1711, 1713,
1720 e 1744 —, a emigração portuguesa para o Brasil aumentou e contou com o
contributo das gentes insulanas (RODRIGUES, 2010, p. 19). 124

O autor já descreve que anteriormente no século XVII, essa prática de utilização de


casais açorianos para colonização foi usada no norte da colônia Brasil (Maranhão e Pará), então
para o sul era uma questão de tempo o mesmo processo. Com os abalos sísmicos naturuais, a
necessidade de ocupação territorial, o aumento de produção e manutenção da terra, a falta de

123
ROSA, Cibele Caroline da; LAROQUE, Luís Fernando da Silva. Quando Migrar é Necessário: açorianos
povoam o continente de Rio Grande de São Pedro (Meados do século XVIII). Revista Destaques Acadêmicos,
Lajeado, v. 10, n. 2, 2018.
124
RODRIGUES, José Damião. Da periferia insular às fronteiras do império: colonos e recrutas dos Açores no
povoamento da América. Anos 90, Porto Alegre, v. 17, n. 32, p. 17-43, dez. 2010.
92

mão-de-obra para tal operação, e principalmente a miséria dessas pessoas nas ilhas, favoreceu
a vinda dos açoritas para o Rio Grande de São Pedro.
A pobreza das Ilhas portuguesas que faziam parte do arquipélago dos Açores era tanta
que, quando da oportunidade de ir embora para outras terras surgia, a população buscava fazer
parte desse contexto de expansão territorial, assim a conquista portuguesa foi se efetivando aos
poucos e graças a essa gente que vivia em extrema pobreza. Assim, a partir de 1750 com o
tratado de Madrid, passaram a chegar os açorianos para colonizar as terras desocupadas na
porção sul meridional.
Segundo José Damião Rodrigues:

Deste modo, para as populações de mais parcos recursos, a emigração surgia como
uma forma de fuga a estas situações. Ora, nesses anos, Portugal negociava com a
Espanha os limites entre os territórios sul-americanos de ambas as monarquias,
processo que conduziria à assinatura do Tratado de Madrid, em 1750, pelo que o
projecto dos açorianos se revelava de grande utilidade, respondendo aos objectivos
estratégicos da coroa portuguesa. Iniciou-se então um período de grande intensidade
emigratória que se estendeu ao longo de vários anos [...] (RODRIGUES, 2010, p.
26).125

Existe todo um aparato de fatos que resulta na vinda dos casais açorianos para o Brasil.
Em primeiro, as forças da natureza que favoreceram para que as populações saíssem das ilhas
que passaram pelos problemas sísmicos. Em segundo, para a Coroa seria o momento de povoar
toda a costa sul atlântica para não ser ocupada por outros reinos europeus, assim, a colonização
vai avançando em direção à Colônia do Sacramento, e adentrando no Rio Grande de São Pedro.
Mesmo com a proibição de 1720,126 a Coroa Portuguesa continuou a retirada de casais dos
Açores para colonizar a porção sul do Brasil, assim, dentro desse contexto, o primeiro
contingente de casais partiu em outubro de 1747, aportando no território brasileiro em janeiro
do ano seguinte, dando início à colonização da região de Rio Pardo e outras localidades.
A continuidade emigratória para o Brasil já não era mais para povoar a região inóspita,
mas para proteger as levas fronteiriças que eram conquistadas, ou as que já foram legitimadas
pelo Tratado de Madrid em 1750. Podemos notar que o grande número de habitantes nas ilhas
era de suma grandeza. Assim, tornava-se um excedente de pessoas, que poderiam ocupar as
lacunas que o exército português em solo da colônia possuía, ficava viável mandar mais gente

125
Idem.
126
Lei de 20 de março de 1720, promulgada pelo Reino Português que proibia a saída de ilhéus para a colônia,
mas mesmo assim o processo aconteceu pela necessidade e estratégia de manter e defender as fronteiras
meridionais e setentrionais na porção sul da América portuguesa.
93

para compor essas vagas e facilitar a colonização, visto que, essas levas seguintes eram de
homens solteiros para compor o exército, ou seja, muitos poderiam procriar favorecendo a total
ocupação territorial, constituindo assim a segunda menção de emigração, ou seja, o
recrutamento.127
Cleusa M. G. Graebin (2006) informa que os açorianos tiveram que se adaptar com a
realidade que lhes foi oferecida para a ocupação territorial: “O cenário habitual da vida
cotidiana dos açorianos foi constituído pelos arranchamentos nos diversos locais para onde
eram transportados pelas autoridades coloniais, [...]” (GRAEBIN, 2006, p. 223).128
Outra questão retratada, na obra dessa autora, é o casamento. Em 4 de abril de 1752,
com uma provisão régia que regulamentava uma idade mínima para o casamento, a Igreja
passou a permitir que rapazes de 14 anos e meninas de 12 anos contraíssem matrimônio para
gozarem dos privilégios oferecidos pela Coroa. Isso tudo acontecia devido à necessidade de
ocupar as terras ainda não ocupadas. Também, as relações consensuais, cada vez mais, eram
punidas pela Igreja, com isso, os amasiamentos dos cativos passaram a ser criticados pela Igreja,
que levava em consideração a necessidade de se formar um núcleo familiar cativo abençoado
por Deus.
O cotidiano que frequentemente se formara com os açorianos, serviu de base para o
modelo de família cativa, já que em muitos casos, a família açoriana tinha contato apenas com
os membros familiares e alguns cativos nos confins das terras de São Pedro. Ora, se o modelo
de vida que se constitui como referência para o cativo é o tipo de vida dos senhores, então seu
cotidiano está relacionado em costumes “comuns”.129
Segundo Cleusa Maria Gomes Graebin,

O clima que se configurou o viver dos açorianos foi pleno de instabilidade e de


provisoriedade. Ao sabor das circunstâncias, da mobilidade no espaço e das
vicissitudes, os açorianos precisavam inventar e reinventar arranjos familiares e
relações interpessoais no seu cotidiano, improvisando novas formas de viver, a fim de
suportar melhor as situações de risco (GRAEBIN, 2006, p. 203).130

127
Para saber mais sobre a vinda dos açorianos ao RS: Scott, Ana Sílvia Volpi, BERUTE, Gabriel Santos. “Gentes
das Ilhas: repensando a migração do Arquipélago dos Açores para a capitania do Rio Grande de São Pedro no
século XVII” In: Gentes das Ilhas. São Lepoldo: Oikos, 2014. HAMEISTER, Marta Daison. O Continente do Rio
Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (C.1727-C.1763). Rio
de Janeiro, UFRJ [Dissertação de Mestrado], 2002.
128
GRAEBIN. Cleusa Maria Gomes. Vida Cotidiana dos Açorianos pelas Freguesias e Caminhos. In: BOEIRA,
Nelson; GOLIN, Tau. História do Rio Grande do Sul – Colônia. v. I. Passo Fundo: Méritos, 2006.
129
No decorrer do texto falaremos e ampliaremos mais sobre a formação da família escrava.
130
Idem.
94

Com isso entendemos que o cotidiano dos casais açorianos que preencheram e
constituíram a ocupação territorial, e mantiveram as fronteiras em franco desenvolvimento,
também produziam a partir da agricultura a economia em desenvolvimento, e o trigo o produto
de importância até meados de 1780, decaindo sua produção no final do século XVIII e se
extinguindo por volta de 1814, quando entra em colapso a produção do trigo.
Segundo Freitas:

As duzentas famílias – em sua maioria açoriana –, localizadas em Rio Pardo,


trouxeram consigo a compreensão de como deveria ser a estrutura social, econômica,
política e religiosa mais adequada (portuguesa). Na parte econômica, o trigo foi o
produto principal das terras sulinas. As famílias açorianas empregaram novas técnicas
agrícolas no plantio, chegando a um status de exportação em torno de 290 mil
alqueires anuais, [...] (FREITAS, 2019, p. 35). 131

É sabido que fatores levaram à extinção das produções de trigo na Capitania de São
Pedro. Podemos descrever algumas considerações, visto que uma das características que mais
se destaca é a praga conhecida como ferrugem, mas também outros fatores fizeram parte desse
processo de decadência da produção do trigo. O solo onde a produção se desenvolvia era tido
como arenoso, e isso pode ser um dos fatores da ferrugem. Outro fator é a importação de trigo
dos Estados Unidos, que favorecia a Fazenda Real e o não investimento aos colonos açorianos
produtores do grão.
Também, na exportação, Portugal proíbe a compra do trigo sulino, em virtude de não
valorizar o que era produzido pelos produtores portugueses. Todos esses fatores foram levados
em conta, causando um desânimo na produção da triticultura e refletindo na economia sul-rio-
grandense no início do século XIX, levou ao abandono dessa produção. 132
Outro ponto, na visão de Caio Prado Junior (2004), é a questão do trabalhador
escravizado africano. Para os colonos açorianos que não tiveram investimentos necessários em
grandes proporções é conhecido que se aventuraram pelas paragens sulinas e tiveram sucessos
com o trigo, também se tornaram senhores escravocratas. Estando claro que em muitos casos,
os colonos açorianos mais pobres não tiveram a mesma sorte, já que um cativo era caro para
comprar. Mas no decorrer do final do século XVIII, aparecem nos registros de inventários post
mortem de Rio Pardo cativos como ‘bens semoventes’.

131
FREITAS, Ubiratã F. A Fronteira é Logo Ali, Mas Permaneci Escravo. 2ª ed. Curitiba: Brazil Publishing,
2019.
132
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
95

Fernando Henrique Cardoso (1977), refere que o escravo negro foi usado em pouca
escala, mas sua presença era constante com os desbravadores e suas investidas no Sul, então a
compra de cativos por parte dos colonos açorianos era só uma questão de tempo e dinheiro.
“[...], sempre que a exportação de trigo permitia lucros, havia tendência para acrescer os campos
e utilizar mão-de-obra escrava. Noutros termos, processava-se a ampliação do capital através
do reinvestimento dos lucros”.133
No inventário de José Duarte de 1783, de Rio Pardo, verificamos um pequeno
incremento de desenvolvimento econômico a partir da agropecuária, tendo esse colono
português 05 burros, 28 bestas de marca, 25 éguas de cria de bestas, 12 cavalos, além de 04
escravos de nomes: de Joana, crioula de 30 anos; Joaquim, Angola de 27 anos; José, Angola de
20 anos e Tereza, Angola de 40 anos. Assim, podemos demarcar a importância dos colonos
açorianos dentro da composição econômica no desenvolvimento da Capitania de São Pedro e
da utilização da mão-de-obra cativa. 134
Também podemos averiguar que a inércia por parte dos colonos açorianos não foi a
não utilização de mão-de-obra cativa, mas aguardar a oportunidade de tê-la, visto que a presença
africana cativa já estava inserida no Continente de São Pedro, “Isso significa que houve negros
escravos desde a primeira metade do século XVIII, no início do processo de formação do Rio
Grande, basta lembrar a composição da Frota de João Magalhães (1725), [...]”(CARDOSO,
1977, p. 48).135
Acreditamos que os colonos açorianos tiveram muita importância no processo
colonial, discordando assim de Caio Prado, ou melhor dizendo, na concepção do termo colônia
e sua economia, já que estabilizaram e mantiveram a fronteira Oeste, viabilizando a ampliação
de novas investidas dos espanhóis. Também encontramos em Rio Pardo algumas charqueadas
que deram origem à essa prática que, durante o século XIX, tornou o charque o produto
principal da economia sulina e a sua extinção na década de 80 do mesmo século.
Ainda Caio Prado Junior cita que, a partir de tréguas entre as coroas ibéricas (1777),
passou-se a ter um longo período de paz até a década de trinta do século XIX, onde o conflito
entre sulinos e Império declaram guerra – Revolução Farroupilha (1835-1845) –, pelos baixos
preços do charque, o autor ainda destaca:

133
Idem, p. 59.
134
Inventário post mortem de José Duarte, Rio Pardo, 1783. Estante 007.0249, Comarca de Santa Catarina,
intervalo – 20-31, datas: 01/01/1783 A 31/12/1786. APERS.
135
João Magalhães saiu de Laguna em 1725 com uma expedição para reconhecimento das terras sulinas, e se
possível fundar uma vila, sua investida chegou até a barra de Rio Grande, e posteriormente, em 1737 fundou-se a
Vila de Rio Grande. Ver mais em MAESTRI, Mário. O Escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese
do escravismo gaúcho. Caxias do Sul: EDUCS, 1984.
96

[...] quando se assina a paz entre os contendores, um longo período de tréguas que irá
até as novas hostilidades dos primeiros anos do século XIX. Estabelecem-se então as
primeiras estâncias regulares, sobretudo na fronteira, onde mercê das guerras se
concentra a população constituída a princípio quase exclusivamente de militares e
guerrilheiros. Distribuem-se ai propriedades a granel: queria-se consolidar a posse
portuguesa, garantida até então unicamente pelas armas (PRADO JUNIOS, 2004,
p.96).136

Outro fator que chama a atenção na economia gaúcha do século XIX é a estância, a
produtora do charque que levará o Rio Grande a um patamar de soberania colonial no sul
meridional. Com a decadência do trigo e a implementação das estâncias charqueadoras, grandes
áreas de terras e a produção de gado vacum a perder de vista, a produção do charque passou a
necessitar de um aumento da mão-de-obra escravizada, causando um impacto econômico tanto
na produção charqueadora quanto na valorização do cativo.
Isso leva a uma economia capitalizada que gera, nas transformações e relações de
trabalho, uma mudança de comportamento social. O antigo produtor de trigo vira dono de
estância. “O novo período da economia rio-grandense foi, pois, o do gaúcho, do tropeiro, do
militar, do antigo colono do administrador colonial – frequentemente uns e outros tipos sociais
representados pelo mesmo homem – que se tornou estancieiro”. 137
Essa calmaria, entre o final do século XVIII até a década de trinta do século XIX,
favoreceu a ocupação e desenvolvimento de outras áreas de terras na Capitania de São Pedro,
já que havia necessidade de uma produção local mais específica e que demarcasse uma fronteira
limítrofe entre portugueses (brasileiros) e espanhóis nas terras ainda não exploradas e ocupadas,
com isso, favoreceu a ocupação do Vale do Rio dos Sinos com a fundação de São Leopoldo,
em 1824. Para Marcos J. Tramontini “[...] a preocupação maior da metrópole era com a
ocupação, defesa e expansão territorial nessa região fronteiriça” (TRAMONTINI, 1994, p.
55).138
Partindo do pressuposto apresentado e o processo de ocupação do Vale do Rio dos
Sinos, e posteriormente o Vale do Paranhana, uma economia local também se formou e se
desenvolveu com características similares, tanto como a qual que se ampliou em todo o Rio

136
PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004.
137
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
138
TRAMONTINI, Marcos J. A Questão da Terra na Fase Pioneira da Colonização. In: MAUCH, Cláudia. Os
Alemães no Sul do Brasil. Canoas: Ed. Ulbra, 1994.
Vale a ressalva que o termo ocupação está relacionado com a posse da terra pelos europeus. É sabido que nessas
terras já viviam os nativos (índios) de várias tribos que ocupavam o Rio Grande do Sul antes dos espanhóis e
portugueses.
97

Grande de São Pedro. Assim, a importância e continuidade da produção do gado, de muares e


cavalos foi intensa junto com uma agricultura de subsistência de alguns produtos e, também a
produção de farinha de mandioca em larga escala regional, abastecendo Santo Antônio da
Patrulha, São Leopoldo e Porto Alegre.
Na análise dos inventários post mortem de 1856 a 1888, foram encontrados uma grande
quantidade de animais que movimentaram a economia local crescente, notabilizando assim a
fixação na terra no contexto de ‘fronteira aberta e apropriação’, 139
fomentando uma
capitalização crescente dos produtores, além da utilização da mão-de-obra cativa africana e
crioula.
Notamos que a produção agropecuária também predominou na região do Vale do Rio
dos Sinos – Paranhana, principalmente a do gado, sendo uma característica da colonização em
todo o Brasil. Não deixando de referenciar que a produção do gado se caracterizou muito mais
no Rio Grande de São Pedro, com as charqueadas pela abundância do gado selvagem, solto no
campo e a constituição das grandes fazendas que produziam e vendiam esse gado para as
propriedades charqueadoras da região sul e centro-oeste do Brasil.
Já no nosso caso, por nossa pesquisa estar em um limite temporal e geográfico mais
afastado e distante das charqueadas (1856 – 1888), e, por ser o Vale do Rio dos Sinos um
caminho do Tropeirismo, acreditamos que essa produção seja destinada ao comércio de
exportação em direção a São Paulo pelos tropeiros, dando a possibilidade de ampliação
econômica para a região e seus produtores.
Nesse contexto, de produção pecuarista e produção agrícola, notamos que o pequeno
proprietário se deteve mais na agricultura, já os grandes proprietários participaram com mais
efetividade na pecuária. Em primeira instância para a subsistência e, posteriormente, a
comercialização do excedente, mantendo uma produção mais centrada na mandioca como fonte
de matéria-prima para as atafonas nas grandes propriedades,140 “[...], a pecuária e a pequena
agricultura ali praticadas contaram, desde os primórdios da colonização luso-brasileira, com
escravos africanos e crioulos, os quais migraram junto com seus senhores para aquela fronteira”
(MATHEUS, 2016, p. 131). 141

139
MATHEUS, Marcelo Santos. A produção da diferença: escravidão e desigualdade social ao sul do Império
brasileiro (Bagé, c. 1820-1870). 2016. 418 f. Tese (Doutorado em História), Instituto de História, Universidade
Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em História Social. Rio de Janeiro, 2016.
140
A atafona pertencia, normalmente, a um grande latifundiário, esse beneficiava a mandioca transformando-a em
farinha comercializável, aumentando assim, as possibilidades dos pequenos produtores, de se manter e conseguir
uma renda para auxiliar nas despesas e também ampliar a compra de gado ou terra, além de fornecer o produto
para a capital, Porto Alegre.
141
Idem.
98

Decidimos desmembrar a análise por décadas, onde podemos perceber como foi se
instalando e desenvolvendo a produção econômica regional. Assim, estabelecemos alguns
parâmetros para deixarmos mais claro e perceptível a compreensão do desenvolvimento
econômico regional no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, buscando também dar ênfase para
a agricultura em particular, já que a historiografia mais tradicional remete quase sempre para
as grandes lavouras e estâncias criadoras de gado no Rio Grande do Sul.
Observamos que, em grande escala, as questões agrícolas referentes ao início do século
XIX são quase sempre ligadas à subsistência e aos colonos e pouco é mencionado quem produz
tais produtos. É sabido que nas grandes fazendas existia uma produção mínima de grãos para
consumo com mão-de-obra escrava, mas também o pequeno proprietário produzia um
excedente que era vendido ou trocado por gêneros de primeira necessidade. Na região que
examinamos, a mandioca teve um potencial comercial elevado e o pequeno produtor utilizou
as atafonas para industrializar seus produtos. Com isso inferimos que as relações comerciais
foram além do grande centro, também acontecem ou aconteceram entre o grande fazendeiro
local e o pequeno produtor com seu excedente.
Segundo Paulo Zarth:

O fenômeno do descaso pela agricultura de subsistência fora dos núcleos coloniais é


decorrência do fato de não aparecer nas fontes globalizantes normalmente consultadas
pelos autores. Esse fato é agravado quando se lê, nos relatórios de presidentes de
província, da década de 1840/50, que a agricultura era alvo de severa crítica e
apresentada como praticamente inexistente (ZARTH, 2002, p. 35). 142

Com esse intuito, buscamos quantificar os animais que aparecem nos inventários post
mortem, visando dar a dimensão da produção pecuarista que se contabilizou e fomentou a
efetivação e ocupação territorial. No segundo momento, verificamos a produção agrícola que
estabilizou a subsistência ocupacional e a agricultura colonial germânica que foi reconhecida
como sendo o ponto de partida para o desenvolvimento agrícola do Rio Grande do Sul (ZARTH,
2002.).
Nossa análise parte de 116 inventários post mortem entre 1856 e 1888, esses
demonstram em sua divisão de bens (bens de raiz) o que esses inventariados possuíam,
deixando claro que fizeram parte do processo ocupacional territorial do Vale do Rio dos Sinos
– Paranhana. Além de poder verificar os bens dessas pessoas, também conseguimos visualizar
um parâmetro do desenvolvimento econômico que se estabeleceu por essa localidade. Não

142
ZARTH, Paulo A. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.
99

obstante, nesse primeiro momento vamos demonstrar o processo evolutivo da criação do gado
vacum na região, com isso tentamos entender como essa região processou sua economia.

2.1 PRODUÇÃO DE ANIMAIS VACUM – GADO E COMÉRCIO.

Como é sabido, o Rio Grande do Sul, durante o século XVIII e XIX, teve um
incremento da utilização do gado vacum em seu desenvolvimento em sua totalidade, por isso
essa prática em regiões, que foram ocupadas tardiamente, também partiu dessa premissa
econômica que visava em primeiro momento, a subsistência e, posteriormente, a
comercialização, ainda mais por ser o Vale do Rio dos Sinos – Paranhana o caminho dos
tropeiros. Também outros animais foram criados e comercializados nessas paragens como
cavalos, mulas, ovelhas e outros.
Dividimos nossa amostra em quatro períodos do desenvolvimento da produção animal
nessa região. Primeiro, elaboramos um entendimento da importância do gado vacum a partir de
1856 – o inventário mais antigo até aqui encontrado –, e chegando a 1869, na primeira amostra.
Posteriormente, analisamos os anos subsequentes de 1870 a 1879, e findando a amostragem do
gado vacum a partir de 1880 a 1888, quando já se percebe um aumento desses animais em larga
escala.
A segunda amostragem se utiliza da mesma divisão temporal, porém com animais
equinos (cavalares), que representam um montante que favoreceu ao pequeno produtor uma
produção representativa, como veremos mais adiante. No terceiro momento da amostragem,
vamos registrar a importância da produção de muares (mulas), visto que essas possuem um
elemento a mais na comercialização por sua aplicação no transporte, e, posteriormente, o quarto
elemento, os animais oviários e outros animais indefinidos que foram comercializados na
Fazenda Mundo Novo.
Na tabela 6, podemos verificar como vai se desenhando o aumento da produção da
pecuária na região. A partir de 1856 até 1869 encontramos um total de 2.736 cabeças de gado
vacum que gerou um montante de £2.745,02 libras esterlinas. A partir desses números é
possível verificar um aumento considerável nessa produção, que se distribui entre rezes,
novilhos e bois.
100

Tabela 06 – Relação dos Animais Vacuns 1856 – 1869


Valor Valor Valor Total Total
Ano Inventários Reses Novilhos Bois
libra libra libra gado libra
1856 1 75 120,33 75 120,33
1861 1 40 42,48 40 42,48
1863 1 350 226,60 10 9,06 9 12,23 369 247,89
1864 1 100 78,84 2 0,66 102 88,50
1865 4 746 1.380,65 12 25,84 758 1.406,49
1866 2 522 318,12 3 2,01 19 72,17 544 392,30
1868 4 411 204,82 48 33,98 10 10,62 469 249,42
1869 1 350 150,33 20 36,01 9 11,27 379 197,61
Total 15 2.594 2.531,17 81 81,06 61 132,79 2736 2.745,02
Fonte: Inventários post mortem, 1856 – 1888 – APERS. Valores em libra.

Em decorrência, entre os anos de 1856 a 1869, tivemos um aumento de produção de


gado vacum relativamente considerável durante o período de treze anos, em 1863 chegou a uma
produção de 369 animais, para os anos seguintes, o ano de 1865 chegou a 746 animais. Assim,
percebemos um desenvolvimento da economia local ligada ao gado, isso nos consente a
possibilidade de compreender o potencial produtivo regional. Esse aumento da produtividade
está relacionado a boas pastagens, clima e vegetação, além da diferenciação entre grandes e
pequenos produtores, sendo que muitos desses produtores possuíam grandes porções de terra e
alguns, parcas terras, e muitos iam além da produção do gado, ampliando sua economia através
de uma diversificação da produção, intercalando o pastoreio e a agricultura nesse processo e
chegando em um total desse período de 2.594 reses.
A partir da tabela 07, tivemos uma variação nas quantidades entre os anos que se
sucederam. Por exemplo, em 1870 teve uma produção de 865 reses; em 1874, chegou a 1.171
reses, em 1875, tivemos 916 reses e em 1876, chegamos a 2.998 reses. Os anos que não foram
citados, tiveram variações que podem estar relacionadas à falta de documentação para análise.
Assim possivelmente esses números deveriam aumentar consideravelmente até 1879. Mesmo
assim chegamos a um montante de £6.097,78 libras esterlinas.
Isso acontece por não encontrarmos uma quantidade maior de inventários em uma
sequência anual, alterando as quantidades de animais encontrados por anos e por unidade de
inventário. Como se percebe, não teve um aumento percentual favorável, mas se analisarmos
os valores referentes ao número total de animais, comparando com os anos anteriores entre
1851 a 1879, verificamos um aumento produtivo pelo montante de valores entre os anos
subsequentes.
101

Tabela 07 – Relação dos Animais Vacuns 1870 – 1879


Valor Valor Valor Total Total
Ano Inventários Reses Novilhos Bois
libra libra libra gado libra
1870 1 865 625,68 62 26,92 927 652,60
1871 2 12 20,74 3 1,82 8 20,24 23 42,80
1872 1 5 8,09 7 8,30 4 12,14 16 28,53
1873 4 56 68,77 3 3,58 10 23,74 69 96,09
1874 6 1171 1.111,42 84 150,23 12 22,43 213 1.284,08
1875 4 916 705,63 42 71,38 6 10,20 964 787,21
1876 5 2998 2.019,78 56 86,43 3054 2.106,21
1877 3 753 773,57 2 3,26 20 38,35 775 815,18
1879 5 272 280,65 2 4,43 274 285,08
Total 31 7048 5.614,33 141 238,57 180 244,88 7369 6.097,78
Fonte: Inventários post mortem, 1851 – 1888 – APERS. Valores em libra.

Somando as tabelas 06 e 07 e seus referentes totais monetários de animais vacuns,


chegamos ao montante de £8.842,80 libras esterlinas, embora tenha uma porcentagem negativa
entre alguns anos desse período para estabelecer um crescimento de produção do gado, através
do aumento dos valores encontrados, podemos afirmar um crescimento econômico
significativo, um aumento na produção de animais considerando o período de 1856 a 1879,
admitindo que a criação de gado foi extensiva e constante no Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana.

Tabela 08 – Relação dos Animais Vacuns 1880 – 1888


Valor Valor Valor Total Total
Ano Inventários Reses Novilhos Bois
libra libra libra Gado libra
1880 10 1796 1.165,79 16 24,42 25 54,66 1837 1.244,87
1881 5 301 170,77 7 15,27 308 186,04
1882 8 508 492,94 10 16,87 30 46,45 548 556,26
1883 8 1275 909,50 124 206,20 1399 1.115,70
1884 12 459 400,00 5 6,00 49 94,72 513 500,72
1885 8 2091 1.714,79 127 176,02 31 46,66 2249 1.937,47
1886 5 2315 1,781,57 2 177,16 29 45,90 2346 2.004,63
1887 9 412 263,94 4 8,58 416 272,52
1888 4 43 57,64 2 2,52 5 15,75 50 75,91
Total 69 9200 6.956,94 162 402,99 304 534,19 9666 7.894,12
Fonte: Inventários post mortem, 1856 – 1888 – APERS. Valores em libra.

Na tabela 08, verificamos que a partir de 1880, o aumento produtivo do gado foi maior
que os anos anteriores (tabela 6 e 7), somando o total de reses desse período chegamos a um
montante de 9.200 cabeças de reses, quase ultrapassando o valor total de reses das duas tabelas
anterior apresentadas. Isso significa que mesmo finalizando o período com um percentual mais
baixo que os anos anteriores, o aumento da criação de gado entre 1880 a 1888 em valores
102

numerários foi de £7.894,12 libras esterlinas, elevando a produtividade em toda a análise.


Assim, nos anos, entre 1851 a 1888, esse período chegou ao montante de 19.771 cabeças de
gado vacum em sua totalidade, tendo como valor total do montante £16.736,92 libras esterlinas.
No inventário de 1876, Amandio José de Araujo 143 aparece como um proprietário de
rezes, além de duas léguas de campos nos potreiros de Cima da Serra. Amandio Araujo é um
dos maiores produtores de gado vacum da região do Vale do Rio dos Sinos, possuindo 1.530
cabeças de gado e mão-de-obra de sete escravos. Isso significa a importância da criação de
animais na região e a presença da escravidão para fomentar a economia local.
Em outro inventário, Olivério Pedro de Morais, de 1886,144 localizamos uma grande
quantidade de animais, equivalente aos bens de maior valor, onde se encontra o gado vacum
chegando a 1.834 cabeças entre reses e bois, além de cinquenta e quatro éguas xucras, quarenta
e sete cavalos, dezesseis potros, trinta e sete mulas e dois escravos. Olivério Pedroso é dono da
Fazenda São José, e possui campos em outras fazendas (arrendamentos), também produz uma
pequena agricultura para subsistência. Provavelmente deve possuir mais escravos, mas não foi
localizado.
Por termos encontrado somente dois escravos para esse senhor, talvez a mão-de-obra
utilizada pudesse ser de pessoas livres que trocariam a moradia pelo trabalho, ou eram peões
livres que trabalhavam por dia ou tarefa, além também de escravos de outros senhores
trabalhando por jornadas diárias, “Essa combinação de trabalhadores escravos e livres era a
estrutura, por excelência, das grandes estâncias do Rio Grande do Sul e das áreas vizinhas, do
Vice-Reinado do Prata, ao longo do período colonial” (FARINATTI, 2007, p. 309).145
Quando Farinatti se refere a “trabalhadores livres”, está verificando as relações entre
trabalhadores que nasceram livres em comparação aos escravos, e que já eram juridicamente
livres, mas dependentes dos senhores para sua manutenção, pois eram desprovidos para o
acesso aos meios de produção, ou seja, esses trabalhadores livres estavam vinculados na lida
do campo e no manuseio das criações de animais, e talvez muitos já eram ex-escravos dos
próprios senhores, prevalecendo assim, a questão do “ser livre”.
Nesse contexto podemos verificar que esses trabalhadores livres faziam parte das
relações próximas desses proprietários das fazendas, pois os trabalhadores escravizados, em

143
Inventário de Amandio José de Araujo, 1876. Autos nº 53; Maço nº 03, Estante 152 – APERS.
144
Inventário de Olivério Pedro de Morais, 1886. Autos nº 236; Maço nº 11, Estante 39 E – APERS.
145
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira
Sul do Brasil (1825-1865). Tese (Doutorado em História), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade
Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em História Social. Rio de Janeiro, 2007.
103

muitas vezes não davam conta de todo o trabalho, assim era necessário a contratação de peões
temporários ou permanentes.
Segundo Farinatti.

No que se refere aos trabalhadores estáveis, ao lado daqueles quatro cativos, o


Brigadeiro Ortiz buscava contar com, pelo menos, mais um trabalhador fixo ao longo
de todo o ano, tarefa desempenhada pelo preto forro Manoel nos dois primeiros anos
e pelo piá Antônio, em 1853 (FARINATTI, 2007, p. 310).146

No inventário de Olivério Pedro de Morais (citado acima), verificamos que sua


produção econômica se detém na criação de animais, compra de campos e arrendamentos,
possivelmente, fornecesse esses animais ao comércio de São Leopoldo e talvez ao
Tropeirismo147 para serem vendidos em outras regiões. A partir do ano de 1870, as fontes
demonstram um aumento em grande escala na produção de animais vacum, demonstrando o
potencial da região em seu desenvolvimento econômico, também entendemos que para essa
movimentação desses animais, a mão-de-obra era extremamente necessária, assim por não
aparecer no inventário além de dois cativos já mencionados, possivelmente outros trabalhadores
livres eram contratados por tempo determinado ou efetivos anualmente para dar conta da lida
no campo.
Verificando as tabelas 6, 7 e 8, mas somente o caso dos bois, percebemos uma
progressão de 61, 180 e 304 bois. Esses animais, além de serem para trabalho de arar a terra,
também foram utilizados para o transporte e outros serviços como na tração das atafonas, isso
nos leva a crer que teve um aumento de produtividade, principalmente na produção agrícola e
de farinha de mandioca para abastecimento.
Os anos de 1874 e 1876, deixam claro que a produção de animais esteve em constante
crescimento, demonstrando que a criação do gado vacum era um bom negócio para os
produtores da região. Isso acarreta o entendimento sobre a questão da produção desses animais
para manter a matéria-prima (couros) dos curtumes em São Leopoldo e o artesanato local e
arredores, além do Tropeirismo e o deslocamento de uma parte dessa produção em direção a
São Paulo.
A soma do gado entre 1856 e 1879 chegou a quantidade de 10.105 cabeças de gado
em 23 anos, isso é um aumento considerável para a região, visto que sua ocupação foi tardia
devido aos frequentes conflitos pela posse da terra. A partir do ano de 1880, 1883, 1885 e 1886

146
Idem.
147
Ver mais sobre Tropeirismo em GIL, T. L. Coisas do Caminho: tropeiros e seus negócios do Viamão à
Sorocaba. Rio de janeiro (RJ): tese de doutorado, PPGHIS/UFRJ, 2009.
104

tivemos uma significativa atividade produtiva, mas verifica-se que a quantidade em números
de animais não teve um aumento avassalador, mas o que difere é que o preço foi
substancialmente se modificando no decorrer dos anos, em decorrência do desenvolvimento
econômico imperial. Assim, a quantidade de gado entre 1856 a 1888, fecha em 19.771 animais.
A partir dessa amostra (tabela 8) podemos entender que a região que hoje comporta a
microrregião conhecida como ‘Vale do Paranhana’, onde se localiza a cidade de Taquara, no
estado do Rio Grande do Sul, teve sua economia entre 1856 a 1888 em franco desenvolvimento,
mesmo que ainda não fossem computados os outros animais que provavelmente venham
aumentar o valor econômico e a quantidade de animais, deixando claro que a potencialidade
regional foi de suma importância para o desenvolvimento local como para o Império Brasileiro.

2.2 PRODUÇÃO DE ANIMAIS EQUINOS – CAVALARES.

Dando continuidade, em outra amostragem, podemos verificar no mesmo período de


análise, 1856 a 1888, uma produção de equinos: esses deveriam servir para o deslocamento,
abastecimento do exército e para o trabalho. O que percebemos é que entre os produtores
pecuaristas da região do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, muitos não se obtiveram
exclusivamente da criação ligada ao gado, essa diversificação também pode ser entendida pelas
condições dos pequenos proprietários.
Ou seja, em muitos casos as terras ocupadas não eram totalmente planas, não elevando
seu valor, e talvez, essas terras sejam consideradas irregulares, não obtendo um preço mais
acessível aos investidores mais ricos, assim possibilitando a compra ou a posse pelo pequeno
produtor (colono) a partir da lei de Terras de 1850.
Já na questão da produção de animais, podemos pensar que pelo custo em comparação,
entre uma cabeça de gado e um cavalo, esse último tornaria sua produção mais acessível por ter
seu valor unitário mais prosaico em comparação a uma rês, sendo assim, ficando mais acessível
aos pequenos produtores a manutenção dos equinos.
Na tabela 09, buscamos perceber a quantidade de animais cavalares que fizeram parte
da economia regional no período de análise. Utilizamos o mesmo método anterior para fazer
um comparativo entre as amostras, destacando as quantidades, porcentagens e valores unitários
e em conjunto, visando dar um entendimento que as relações econômicas foram intensas com
variedade de animais e valores unitários diferentes, suscitando uma estratificação entre os
105

proprietários de terras e o colono unitário, e com isso buscarmos salientar a importância da


região para o desenvolvimento regional local.

Tabela 09 – Relação dos Animais Equinos 1856 - 1869


Valor Valor Valor Total Total
Ano Cavalos Éguas Potros
libra libra libra animais libras
1856 15 16,04 60 34,38 15 17,19 90 67,61
1861 14 15,39 34 7,22 8 3,71 56 26,32
1863 34 33,31 50 11,33 84 44,64
1864 19 21,12 24 5,33 8 3,55 51 30,00
1865 61 52,62 151 19,79 29 13,65 241 86,06
1866 32 36,89 40 83,16 7 2,62 79 122,67
1868 30 26,90 63 10,62 1 0,21 94 37,73
1869 14 10,96 20 3,13 34 14,09
Total 219 213,23 442 174,96 68 40,93 729 429.12
Fonte: Inventários post mortem, 1851 – 1888 – APERS. Valores em libra.

Como podemos notar os valores que aparecem nos inventários post mortem, sobre os
animais deixados como herança nos dá um esclarecimento de que as evidências sobre o custo
do gado vacum em comparação ao de um animal cavalar é maior, com isto os investimentos no
gado tiveram maiores retornos, além dos grandes proprietários levarem vantagens por
possuírem maiores quantidades de terras e maiores rebanhos, gerando uma economia
sustentável no fornecimento desses animais.
Podemos relacionar que a quantidade de 2.736 animais vacum, encontradas no período
de 1856 a 1869, atingem um valor de £2.745,02 libras esterlinas, sendo o preço médio de cada
animal em torno de £1,00 libra. Para os equinos no mesmo período, encontramos 729 animais
com um valor de £429,12 libras, chegando à média por unidade de £0,58 libras esterlinas.
Isso chega a uma diferença de quase 50% de valores entre o gado vacum e os cavalares,
já para os muares no mesmo período, encontramos uma quantidade de 310 animais com o valor
total de £287,56 libras, com um custo médio por animal que chega a £0,92 libras. Em
comparativo com o gado vacum e os cavalares, os muares – que vão ser melhor apresentados
no decorrer do texto –, aparecem com o valor unitário que pode ser considerado maior que os
outros animais, visto que sua função e criação determinam a sua aplicação e uso. Isso vai se
estabelecer nos anos subsequentes, aumentando gradativamente essa produção e seu valor de
mercado como veremos mais adiante.
Levando em conta as proporções de quantidades e porcentagens estabelecidas nas
tabelas acima, embora que, para os equinos, obtivemos variações percentuais no ano de 1865,
em comparação a 1856, um aumento significativo na produção de equinos. Também
106

percebemos que confrontando as outras tabelas desses animais houve um crescimento,


utilizando o comparativo a partir dos valores e quantidades encontradas. Com isso, acreditamos
que um dos fatores para desenvolver esse tipo de criação e alguns muares, pode ser o valor
unitário mais barato desses animais, ao invés da criação do gado, sendo um elemento ‘limitador’
que remete o pequeno produtor para outros tipos de criação como também as ovelhas.

Tabela 10 – Relação dos Animais Equinos 1870 – 1879


Valor Valor Valor Total Total
Ano Cavalo Égua Potros
libra libra libra Equino libra
1870 40 37,92 50 9,48 7 4,64 97 52,04
1871 10 10,12 10 10,12
1872 2 2,22 2 0,80 2 0,80 6 3,82
1873 10 8,51 10 1,90 5 2,68 25 13,09
1874 65 93,02 63 37,25 3 3,08 131 133,35
1875 53 112,16 146 33,08 20 18,12 219 163,36
1876 165 214,59 355 96,23 107 58,81 627 369,63
1877 16 19,17 47 8,46 1 1,02 64 28,65
1879 9 10,64 25 8,87 6 4,43 40 23,94
Total 370 508,35 698 196,07 151 93,58 1219 798,00
Fonte: Inventários post mortem, 1851 – 1888 – APERS. Valores em libra.

Comparando a tabela 09 com a tabela 10, podemos verificar um total de 1.948 animais
equinos (cavalos, éguas, potros), que representando um aumento dessa produção de animais
entre os anos de 1856 a 1879, ampliando a economia local e deixando perceber a variação entre
a produção de animais que ocorreu no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana. Essa produção tende
a crescer em proporções e valores, visto que o deslocamento e transporte, a manutenção do
exército e além da lida direta com o gado, era através do cavalo toda a mobilidade, daí a
importância desses animais.
A partir do ano de 1865 tivemos um aumento substancial na produção de animais
equinos chegando a 241 animais, posteriormente, nos anos seguintes alguns períodos de
oscilação na produção tendo variações percentuais, mas mantendo o processo produtivo. Para
o ano de 1876, uma elevação substancial que chegou a 627 animais entre (cavalos, éguas,
potros). Se compararmos o total dessa produção entre as duas tabelas (9 e 10), chegamos a um
incremento de 490 animais cavalares, do segundo período em relação ao primeiro período
(tabela 9 e 10).
107

Tabela 11 – Relação dos Animais Equinos 1880 - 1888


Valor Valor Valor Total Total
Ano Cavalo Égua Potros
libra libra libra equinos libras
1880 94 138,61 82 40,88 13 7,82 190 233,81
1881 39 61,28 82 40,88 20 24,19 141 126,35
1882 38 62,67 95 37,56 1 0,70 134 100,90
1883 55 67,39 122 93,52 3 2,68 180 163,59
1884 79 87,94 110 59,03 10 7,12 191 154,09
1885 77 79,31 169 65,06 15 8,24 258 152,61
1886 74 70,06 275 31,00 16 12,63 365 113,69
1887 25 41,61 23 10,63 1 1,16 49 53,40
1888 41 46,62 50 23,88 12 6,93 103 77,43
Total 522 655,49 1008 448,91 91 71,47 1.611 1.175,87
Fonte: Inventários post mortem, 1851 – 1888 – APERS. Valores em libra.

No decorrer dos anos a criação de animais cavalares teve um aumento significativo


para o período e para o Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, visto que com a ocupação da terra
consolidada, com o estabelecimento da agricultura e a pecuária em desenvolvimento, a criação
de animais era algo que daria continuidade desde a ocupação colonial do Rio Grande do Sul,
portanto, a produção agropecuária viabilizou a subsistência além de movimentar a economia
local, regional e imperial, ao enriquecimento e prestígio desses produtores. Comparando às
décadas de 1870 até 1888, tivemos um aumento de 392 animais na produção de equinos.
Ao somar as tabelas 09, 10 e 11, chegamos a uma quantidade de 3.559 animais equinos
que representam um crescimento em 32 anos analisados, comparados ao montante de 19.771
vacuns entre 1856 a 1888. Com isso prevalecendo o preço médio de um animal cavalar em
torno de £0,67 (libra), somando o total de £2.402,99 libras esterlinas que movimentaram a
economia local, aumentando as possibilidades produtivas, principalmente a do pequeno
produtor que participou ativamente da economia regional imperial.

2.3 PRODUÇAÕ DE ANIMAIS EQUUS – MUARES.

Dando continuidade na explanação econômica de animais, chegamos na família dos


muares Equus. 148 A criação de muares chama atenção para suas quantidades e valores, já que
eram utilizados para o transporte de cargas, além de serem animais de porte pequeno e médio,
tinham total equilíbrio e andavam por lugares inóspitos ou trilhas. Sua utilização e produção,

148
Burro é o nome dado ao filhote macho do cruzamento entre o jumento, também chamado de asno ou jegue
(Equus asinus), com a égua, ou cavalo fêmea (Equus caballus). Quando se trata de uma fêmea resultante desse
cruzamento, falamos em mula, que pertence à família dos Equidae e do gênero Equus.
https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/biologia/burro.htm. Acesso em 28/07/2018.
108

no Rio Grande do Sul, já aparecem desde o século XVII com os Jesuítas. Os produtores desses
animais se tornaram fornecedores que lucraram muito com esse comércio, além do que,
posteriormente, a descoberta de metais e pedras preciosas nas Minas Gerais favoreceu o
comércio desses animais. Por seu uso ter sido intenso, foi dedicado um espaço para tais animais,
que fizeram parte do processo econômico já estabelecido no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.

Tabela 12 – Relação dos Animais Muares 1856 – 1869


Valor Mula Valor Mula Valor Valor Valor Total
Ano Mula Burro Besta Total
libra Carga libra Xucra libra libra libra libra
1856 10 22,92 10 3,44 20 26,36
1861 3 5,09 2 29,73 12 11,47 7 10,83 24 57,12
1863 95 72,06 95 72,06
1864 4 4,44 4 2,22 6 2,22 14 8,88
1865 23 17,71 7 7,29 3 2,29 17 7,08 50 34,37
1866 8 2,21 30 24,19 38 26,40
1868 22 20,59 3 4,24 11 6,23 36 31,06
1869 17 21,29 16 10,02 33 31,31
Total 79 92,04 12 41,26 43 29,94 34 20,99 142 103,33 310 287,56
Fonte: Inventários post mortem, 1851 – 1888 – APERS. Valores em libra.

Somados os períodos da tabela 12, temos um total de 310 animais, que chegam a um
montante de £287,56 libras. Se compararmos os animais equinos que somam no mesmo período
729 animais com os 310 muares, chegamos a uma diferença 419 animais, o que favorece a
produção equina. Esses números demonstram que mesmo tendo uma produção menor de
muares, o valor unitário de um muar é superior à de um cavalar, chegando o muar ao custo de
£0,92 libras esterlinas, enquanto o cavalar custa no mesmo período £0,58 libras esterlinas, entre
1856 a 1869.
Esses números são somente uma base para percebermos como foram se estabelecendo
as relações econômicas e suas características dentro do processo de ocupações e utilização da
terra do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana. Os resultados em outras proporções serão expostos
no final dessa amostragem, buscando dar a dimensão da economia animal local.
109

Tabela 13 – Relação dos Animais Muares 1870-1879


Valor Mula Valor Mula Valor Valor Valor Total
Ano Mula Burro Besta Total
libra Carga libra Xucra libra libra libra libra
1870 25 35,55 10 8,53 35 44,08
1871 4 4,85 4 4,85
1873 10 13,44 22 28,67 32 42,11
1874 49 92,57 1 1,64 6 12,34 56 106,55
1875 10 18,12 3 4,08 48 108,76 61 130,95
1876 104 194,35 27 14,22 14 17,70 24 36,67 169 262,94
1877 14 23,46 14 23,46
1879 13 17,38 1 2,83 14 21,21
Total 219 381,60 22 28,67 48 43,70 18 23,41 78 157,77 385 635,15
Fonte: Inventários post mortem, 1851 – 1888 – APERS. Valores em libra.

Na tabela 13, que compreendem os anos de 1870 a 1879, o ano de maior produção de
muares foi 1876, com produção de 169 animais, decaindo nos anos seguintes, embora fechando
esse período com uma quantidade declinante na produção de muares, se percebe um aumento
numerário em valores monetários chegando a £635,15 libras esterlinas, tendo uma diferença de
£347,59 libras esterlinas a mais em comparação com a tabela 12.

Tabela 14 – Relação dos Animais Muares 1880-1888


Valor Mula Valor Mula Valor Valor Valor Total
Ano Mula Burro Besta Total
libra Carga libra Xucra libra libra libra libra
1880 93 139,18 54 80,51 2 1,90 149 221,59
1881 32 86,53 3 3,17 2 5,30 37 95,00
1882 19 33,75 7 15,38 4 2,63 9 6,85 39 58,61
1883 47 75,89 3 5,37 2 4,29 52 85,55
1884 18 23,59 2 2,57 20 26,16
1885 68 107,03 17 18,17 7 1,38 4 6,16 96 132,74
1886 2 186 4 2,24 6 4,10
1887 83 160,19 83 160,19
1888 13 23,52 13 23,52
Total 373 649,68 54 80,51 34 45,85 19 14,85 15 17,30 495 807,46
Fonte: Inventários post mortem, 1851 – 1888 – APERS. Valores em libra.

Na tabela 14, que compreende os anos de 1880 a 1888, podemos perceber um aumento
significativo no ano de 1880 em comparação aos anos anteriores com um aumento na produção
muar com 495 animais no total dos anos compreendidos, além do um valor total do período de
£807,46 libras esterlinas, com um custo médio unitário de £1,63 libras. Em comparativo,
somente entre muares e equinos do mesmo período, não sendo computados todos os animais
que fazem parte desses dois grupos, chegamos a um valor unitário de um equino de £1,37 libra
110

esterlina, a diferença é de £0,26 libras a mais para os muares. Assim, então, chegamos a um
total de 1.190 animais muares com um valor de £1.730,17 libras.
A valorização dos animais muares nesta amostra, onde aparecem com valores
superiores à dos outros animais, depende muito das quantidades encontradas nos inventários.
Assim, os números demonstram que cada inventário possui sua caraterística única, especificada
pelos tabeliões e avaliadores dos bens dos inventariados.

2.4 PRODUÇÃO DE ANIMAIS OVIÁRIOS – OVELHAS.

Para finalizar a economia a partir dos animais, fizemos uma amostragem sobre animais
oviários. Esses computam ovelhas que também fazem parte da criação pecuária da região,
atendendo as necessidades de subsistência e venda desses animais, assim como o gado vacum,
equinos e muares.
A amostra construída, conforme a tabela 15, também está dentro do mesmo método
apresentado anteriormente, buscamos estabelecer um padrão de compreensão formando uma
única amostra que compreende o período de 1856 a 1888, mas, para essa tabela partimos de
1863, e chegamos a um total de 847 animais. O montante monetário refere £95,33 libras
esterlinas sobre a produção de oviários.

Tabela 15 – Relação dos Animais Oviários 1856 – 1888


Ano Ovelhas Valor libras
1863 55 6,23
1870 30 2,27
1872 6 0,60
1875 170 19,26
1876 153 19,07
1880 90 10,50
1883 180 16,11
1884 12 1,02
1886 40 3,10
1887 15 2,05
1888 96 15,12
Total 847 95,33
Fonte: Inventários post mortem, 1851 – 1888 – APERS. Valores em libra.

Esse montante de 847 animais oviários custa o preço unitário £0,11 libras. Nossa
pesquisa não se finda exclusivamente na economia da criação de animais, mas também na
111

agricultura, principalmente em gêneros de subsistência, na produção de farinha de mandioca e


talvez uma produção de lã, visto que era necessário por causa do frio que assola a região no
inverno.149 Assim, podemos diversificar a produção local e valorizar ainda mais a mão-de-obra
escrava cativa que foi importante para esse desenvolvimento produtivo local. Com a soma de
todos os animais encontrados chegamos a um patamar de uma produção em desenvolvimento
econômico significativo.

Gráfico - 01

Desenvolvimento econômico de animais 1856 a 1888


30000
20000
10000
0
19.771 - vacuns 3.559 - cavalares 1.190 - muares 847 - ovínios Total de 25.367
animais

Fonte: Inventários post mortem, 1851 – 1888 – APERS.

A partir desse gráfico podemos desmembrar um pouco mais sobre a produção e


manutenção de animais que fomentaram a economia local. As quantidades de animais
favoreceram estabelecer alguns valores representativos sobre o custo unitário de cada animal
dentro de sua característica. Exemplo disso, podemos abranger a quantidade que representa o
gado vacum para a região, ficando em torno de 19.771 cabeças de gado vacum, representando
um valor de £16.736,92 libras esterlinas, tendo um preço médio unitário de £0,84 libras.
Sobre os animais equinos, tivemos um total de 3.559 animais com valor estimado de
£2.402,99 libras esterlinas, tendo como preço médio unitário o valor de £0,67 libras. Já os
animais muares aparecem em menor quantidade, mas representam uma economia mais
evidenciada para o período, sendo a quantidade de 1.190 animais muares, com um valor
aproximado de £1.730,17 libras esterlinas, representando um valor unitário de £1,45 libras. Para
os oviários aparecem 847 animais, com um valor de £116,23 libras esterlinas, sendo o valor
unitário de £0,11 libras. Assim, fechando um montante econômico de £20.965,41 libras
esterlinas como economia do período de 1856 a 1888, somente com os animais.

149
NEVES, H. A. P. A criação de ovinos e o comércio de lã no Rio Grande do Sul (1851-1889). BIBLOS - Revista
do Instituto de Ciências Humanas e da Informação, v. 4, p. 55-61, 1992. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/23455>. Acesso em: 07 jan. 2020.
112

Com o levantamento feito a partir dos inventários post mortem entre 1856 a 1888,
percebemos que os animais tiveram sua importância em grande escala na economia da Fazenda
Mundo Novo, e os valores unitários representam como foi se desenhando a economia local, o
maior valor unitário foi dos muares. Isso significa que sua produção era de importância para o
comércio local e de exportação para o Império, já que eram esses animais que carregavam as
riquezas produzidas em todo o processo ocupacional desde a Colônia ao Império.
Não pretendemos aqui classificar o comércio muar como sendo o mais lucrativo e
importante, mas colocá-lo nesse momento como sendo de suma importância e necessária sua
produção para o transporte de mercadorias em longas distâncias. As quantidades encontradas
não se equiparam com as mesmas do gado vacum, com isso podemos prever que o comércio
muar foi durante muito tempo exercido por seu valor econômico e produzido pelos pequenos
proprietários rurais em sua maioria.

Gráfico - 02
Animais de 1856 a 1888
5% 3%
19.771 - vacuns
14%
3.559 - cavalares

1.190 - muares

847 - ovínios
78% Total de 25.367 animais

Fonte: Inventários post mortem, 1851 – 1888 – APERS.

Diante da realidade que se expressa nas questões econômicas da região do Vale do Rio
dos Sinos – Paranhana, entre 1856 a 1888, e compreendendo que a quantidade de animais
encontrados valoriza nossa pesquisa, o gráfico acima nos mostra algumas proporções que
legitima nossa análise. Com a incorporação do gado vacum, como agente gestor do setor
econômico nessas terras, chegamos a um total de quase 20 mil cabeças desses animais,
representando 78% da produção pecuarista da região, sendo seguido com 14% da criação de
animais cavalares, 5% de animais muares e 3% de animais ovinos, que fizeram parte da
economia imperial brasileira, estando situados na Fazenda Mundo Novo, no Vale do Rio dos
Sinos – Paranhana.
Isso nos remete a pensar como foi utilizada a mão-de-obra escravizada dentro desse
processo de produção, embora que o negro escravo tivesse trabalhado em diversas frentes, é
evidenciado que sua participação nesse contexto de produção foi em proporções altas, visto que
113

os inventários deixam transparecer esses indivíduos como bens desses senhores produtores,
junto com seus animais, com isso valorizamos ainda mais a presença cativa no Vale do Rio dos
Sinos – Paranhana.
Um processo econômico só acontece quando existe a participação humana para
conduzir, direcionar e promover sua estrutura de produção e administrativa, que designa um
valor a ser estabelecido ao produto produzido. Dentro desse contexto econômico, não podemos
deixar de citar a mão-de-obra utilizada como motor produtivo do desenvolvimento de uma
determinada região. A utilização do negro em cativeiro tem grande expressão local, a
quantidade de africanos e afro-brasileiros escravizados no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana
no período de 1856 a 1888 foi de grande rotatividade, cativos sendo utilizados em várias frentes,
tanto na agricultura como na lida com os animais comercializáveis.
Segundo Marcelo Matheus, “a migração de luso-brasileiros para uma fronteira agrária
aberta, assentada na apropriação de terras, nas quais foi empregada, fundamentalmente, a mão-
de-obra cativa. Na campanha sul-riograndense [e no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana] não
foi diferente [grifo nosso] (MATHEUS. 2016. p, 131). 150
Assim, como em todo o Rio Grande do Sul, a empreitada de ocupação territorial por
portugueses acarretou também a incorporação de mão-de-obra escravizada, e essa favoreceu o
enriquecimento local colonial e o regional imperial, mantendo as bases da produção
agropecuarista em todos os lugares de ocupação territorial.
A partir dos 116 inventários post mortem localizados para esse período de pesquisa,
além da quantidade de animais encontrados, grandes propriedades com campos de pastagens e
roças, encontramos um montante de 405 cativos, isso significa que a economia local beneficiou
os latifundiários, possibilitando a compra de cativos para o trabalho e aumentando suas
fortunas.
Também podemos mencionar que, além do favorecimento que a região proporcionava
por ser uma rota de Tropeirismo, as facilidades de acesso pelo rio dos Sinos e fatores climáticos
possibilitaram a produção local se desenvolver, patrocinando, com isso, o abastecimento de
outros centros regionais como Santo Antônio da Patrulha e Porto Alegre. Assim, a utilização
de mão-de-obra era necessária e a incorporação do africano escravizado também passou a ser
“um algo comum”, começando a fazer parte do cotidiano desses ocupantes portugueses e
germânicos nessas terras.

150
MATHEUS, Marcelo Santos. A produção da diferença: escravidão e desigualdade social ao sul do Império
brasileiro (Bagé, c. 1820-1870). 2016. 418 f. Tese (Doutorado em História), Instituto de História, Universidade
Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em História Social. Rio de Janeiro, 2016.
114

Para melhor exposição do movimento e distribuição de cativos na região do Vale do


Rio dos Sinos – Paranhana, elaboramos algumas tabelas em períodos de tempo, visando dar um
melhor entendimento sobre como foi se moldando o processo da utilização da mão-de-obra
cativa na região, os valores pagos por cada escravo e sua distribuição por ano. Ou seja,
utilizamos os inventários em um modelo serial que estabelece certos padrões de análises,
visando perceber o crescimento econômico dos cativos como mercadorias, pois assim eram
tratados na época, estabelecemos as tabelas em períodos de tempo (1856 a 1869, 1870 a 1879
e 1880 a 1887), compreendendo o período entre 1856 a 1888.
A partir da tabela 16, buscamos demonstrar o período entre 1856 a 1869, informando
a quantidade de cativos e seus respectivos valores numerários e monetários como aparecem nos
inventários, deixando claro que esses valores econômicos tiveram grande influência na
concepção de posse e poder da terra (sendo valores em réis), mas buscamos aproximar esses
números aos nossos dias convertendo-os para libra esterlina, consequentemente, podemos
converter para o valor do Real (R$) visando um comparativo com a atualidade (depois de inserir
índice inflacionário da economia global), para percebermos como a economia vai se
estabilizando e se moldando durante o tempo histórico.

Tabela 16 – Economia de Cativos 1856 - 1869


Quantidade Valor em
Ano Inventários Valor em Réis
de cativos libra
1856 1 4 1.850:000 212,01
1861 1 4 2.500:000 265,50
1863 2 20 9.730:000 1.102,40
1864 1 1 400:000 44,48
1865 3 19 6.782:000 706,68
1866 2 14 8.200:000 826,56
1868 4 5 4.000:000 283,20
1869 1 12 3.800:000 297,54
Total 15 79 37.262:000 3.738,37
Fonte: Inventários Post Mortem 1856 a 1869 – APERS. Valores em réis e libra.

Para essa primeira tabela sobre os cativos apresentamos como entrada na região 79
indivíduos escravizados entre 1856 a 1869, e, esses somam um montante de £3.738,37 libras
esterlinas no total do período. Nos anos de 1863, 1865, 1866 e 1869, tivemos uma amostra em
maior quantidade, tendo uma variação no preço final de cada cativo de acordo com a variação
115

do valor do pence inglês para os anos expostos.151 A partir desses montantes podemos verificar
a média do custo de cada cativo para cada ano utilizado, por exemplo: para o período
exemplificado, o custo unitário de uma cativo era de £47,32 libras esterlinas que na conversão
para o real atual, o custo ficaria em torno de R$232,34 reais,152 mas para não ficar redundante
esse entendimento vamos dar continuidade ao nosso juízo buscando perceber o que se
diferencia entre os bens arrolados nos inventários e legitimando a utilização de cativos como
mão-de-obra.
Nossa análise tem por objetivo, a partir dos inventariados, apresentar a presença do
negro escravizado na região, e isso se justifica pela legitimação da utilização de mão-de-obra
cativa. Assim, podemos verificar que o montante de valores utilizados na compra de mão de
obra escravizada fez parte do desenvolvimento econômico dessa região, onde, para esse período
temporal, que foi estabelecido com a quantidade de 79 cativos e um montante de £3.738,37
libras esterlinas, é possível construir uma amostra que referencia os valores unitários de cada
cativo por ano significando assim, a facilidade de converter em outra moeda o custo médio de
um escravizado nesse período como exemplificado na tabela 17 abaixo, no período de 1856 a
1869.

Tabela 17 – Preço Médio de Cativos Por Ano 1856 A 1869


Quantidade de Valor em Preço Médio
Ano Inventários
cativos libra em libras
1856 1 4 212,01 53,00
1861 1 4 265,50 66,37
1863 2 20 1.102,40 55,27
1864 1 1 44,48 44,48
1865 3 19 706,68 37,19
1866 2 14 826,56 59,04
1868 4 5 283,20 56,64
1869 1 12 297,54 24,75
Total 15 79 3.738,37 47,32
Fonte: Inventários Post Mortem 1856 a 1869 – APERS. Valores em libras.

Como podemos constatar, para os anos de 1856 a 1869 temos um valor médio de
£47,32 libras para cada cativo, que somam um total de 79 indivíduos. Somando os rebanhos
desses senhores, chegamos a um montante de 3.646 animais diversos, distribuídos para esses

151
MATTOSO, Katia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil: Séculos XVI-XIX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. A
autora fez um levantamento sobre o valor do pence inglês para cada ano, servindo como índice referencial para
calcular e converter valores em réis para libra partindo de 1808 a 1889, colocando referências de valores para
cada ano, assim quando se utiliza tais valores podemos transformar os valores de réis para libras, esse referencial
se encontra na página 275 de sua obra.
152
Valor de uma libra em 24/11/18, R$ 4,91 - https://www.melhorcambio.com/libra-hoje - acesso em 24/11/2018.
116

cativos (claro que temos que levar em conta as proporções, mas essa hipótese é meramente uma
ilustração que reflete a importância dos cativos como trabalhadores e mercadorias, para a época,
com valores estimados), teríamos uma média de 46,15 animais para cada cativo cuidar. Nos
anos seguintes, a tendência é aumentar essas proporções.
Com o desenvolvimento da região, também foi se ampliando as necessidades
produtivas. Com isso, igualmente, se ampliou a necessidade de mão-de-obra para suplantar as
exigências demográficas que, consequentemente, exige mais produtividade, assim o incremento
do cativo africano e afro-brasileiro fez parte desse processo. Na tabela 18, buscamos perceber
esse aumento em comparação aos anos anteriores já expostos.

Tabela 18 – Economia de Cativos 1870 - 1879


Ano Inventários Quantidade Valor em réis Valor em Libra
1870 1 14 6.514:000 617,52
1871 2 2 1.400:000 141,68
1872 1 3 1.850:000 187,22
1873 4 12 8.250:000 924,00
1874 6 32 12.340:00 1.269,78
1875 4 13 4.900:000 555,17
1876 5 37 15.217:00 1.603,87
1877 3 11 4.950:000 504,90
1879 5 8 2.750:000 243,92
Total 31 132 58.171:000 6.048,06
Fonte: Inventários Post Mortem 1870 a 1879 – APERS. Valores em réis e libra.

Na tabela 18 podemos verificar que aumentou a entrada de cativos no Vale do Rio dos
Sinos – Paranhana. O ano de 1876 é o ano recordista para essa amostra, aqui podemos verificar
que esse aumento também tem por base o poder de aquisição desses senhores, assim, tentamos
verificar o que motivou essas aquisições para esse período, que em comparação à outra amostra
(Tabela 17) teve um aumento de 67,08% de cativos.
Francisco de Paula Feijó, 1874, possuía uma fazenda e onze escravos, mais uma
sesmaria de campo, sua produção estava baseada na criação de gado e agricultura,
principalmente a mandioca, que era processada, consumida e comercializada nas redondezas e
cidades vizinhas, como Santo Antônio da Patrulha e Porto Alegre. Belmira Pacheco de
Andrade, 1874, era possuidora de seis cativos, além de campos em dois lugares diferentes, sua
produção também se baseava na criação de animais e roças de subsistência. José de Freitas
117

Noronha, 1874, era pai de oito filhos, possuía uma sesmaria de campos com matos e sua
produção também se dedicava as criação de animais e agricultura de subsistência.153
Como podemos perceber, esses três inventários somam 32 cativos, além dos animais
de criação, que eram a base da produção local, a agricultura também fazia parte desse processo,
assim a necessidade de mão-de-obra era visível, e o cativo foi o grande produtor dessas riquezas
que se estabeleceram, inteirando um movimento de desenvolvimento e exploração. Ou seja, o
desenvolvimento para seus senhores através de seu trabalho compulsório e vivendo em
cativeiro, além da exploração de todos os elementos possíveis, partindo da privação da
liberdade e o não reconhecimento da bibliografia local, como sendo esses trabalhadores,
também os desbravadores e ‘heróis’ desse processo de legitimação de fronteira e
desenvolvimento econômico no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, junto com os colonizadores
portugueses e germânicos.
Para os anos de 1870 a 1879, chegamos a um montante de 132 cativos com um preço
médio por cativo de £45,81 libras esterlinas. Em relação aos valores totais, percebemos um
aumento em comparação com a tabela 17, que soma o valor de £3.738,37 libras esterlinas e a
tabela 19, soma o valor de £6.048,06 libras esterlinas. Chegamos a 61,78% de aumento
econômico somente com a compra de cativos para o trabalho.

Tabela 19 – Preço Médio de Cativos Por Ano 1870 A 1879


Preço Médio
Ano Inventários Quantidade Valor/libra
em libra
1870 1 14 617,52 44,10
1871 2 2 141,68 70,84
1872 1 3 187,22 62,40
1873 4 12 924,00 77,00
1874 6 32 1.269,78 40,52
1875 4 13 555,17 42,74
1876 5 37 1.603,87 43,34
1877 3 11 504,90 45,90
1879 5 8 243,92 30,49
Total 31 132 6.048,06 45,81
Fonte: Inventários Post Mortem 1870 a 1879 – APERS. Valores em libras.

A quantidade de animais desse período soma 9.531 animais diversos, com isso
podemos pensar na necessidade de mão-de-obra para dar conta de todo o trabalho, visto que

153
Inventário Francisco de Paula Feijo – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 41, maço 2, est 39 e/c, 1874 – APERS.
Inventário Belmira Pacheco de Andrade – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 39, maço 2, est 152, 1874 – APERS.
Inventário José de Freitas Noronha – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 45, maço 3, est 152, 1874 – APERS.
118

tivemos um aumento de animais em 161,4 % em comparação com o período anterior (tabela


17). Também aumentou a quantidade de cativos chegando a 132 indivíduos no total, sendo a
diferença de 53 cativos a mais em comparação com o período anterior, com isso podemos
pensar em uma média de 72,2 animais aos cuidados de um cativo.154
Gradativamente o comércio vai se expandindo de acordo com a necessidade local e
regional, ampliando o poder dos que conseguiram se tornar latifundiários, fazendeiros ou
comerciantes. Aumentando, assim, as necessidades de produção, que ao mesmo tempo ampliam
as necessidades de mão de obra, com isso, o cativeiro vai se reformulando, tornando-se uma
maneira de exploração e enriquecimento da elite local que se formou desde as primeiras
ocupações estabelecidas na região.
Como anteriormente, citamos alguns dos senhores latifundiários que fizeram parte
desse processo de desenvolvimento econômico, social e político, também buscaram valorizar a
empreitada de cada indivíduo que teve a coragem de encarar os confins e sertões que se
apresentavam “desocupados”, visto que nesse processo a expulsão dos nativos foi intensa.
Boaventura José dos Santos, 1870, possuía catorze cativos, campos, casas de moradia
e galpões. Seu rebanho era composto por 1.089 animais diversos, ou seja, era um grande
latifundiário e produtor, deveria ter outros negócios que não foram contabilizados no inventário.
Ana Maria Assumpção, 1873, possuía cinco escravos, além de um rebanho considerável com
mais de setenta cabeças de animais, entre gado vacum, cavalos e mulas, também possuía um
campo e casa de moradia. Francisco de Paula Feijó, 1874, possuía 11 escravos, além de uma
sesmaria de campo, o mesmo era dono de uma fazenda, cuja finalidade era a agricultura, talvez
se dedicasse à plantação de mandioca e produção de farinha para comercializar.155
Felipe Borges do Amaral, 1876, era dono da fazenda do Capão do Alto, essa era
composta por roças, campos de criação e campos de invernada, além de matos. Também possuía
outra fazenda de criação com campos e matos na margem esquerda do Rio Pelotas, em Lages,
Santa Catarina, com a denominação de Fazenda de Pelotas, e outra denominada de Cajurú,
também em Lages (SC) e 18 cativos que constam na fazenda Capão do Alto, além de uma
grande quantidade de animais.
Os senhores escravistas selecionados, até o momento, possuíam uma quantidade maior
de cativos em referência aos outros senhores, e fazem parte do somatório da tabela 19, onde
constam os números por anos, visto que é um somatório de cativos de vários senhores, assim a

154
Os valores apresentados estão computados nas tabelas elaboradas a partir das análises dos inventários post
mortem que foram analisados. Os mesmos encontram-se no Arquivo Público de Porto Alegre – APERS.
155
O documento de Francisco de Paula Feijó está ilegível em algumas partes.
119

exposição é uma ilustração para percebermos como se constituíram as riquezas apresentadas.


Também podemos verificar que alguns senhores investiram no Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana, e isso nos deu a entender que a região foi, e ainda é, importante dentro desse
contexto de fronteira, pois sua localização facilita as rotas para o litoral, serra ou campanha.

Tabela 20 – Economia de Cativos 1880 - 1887


Ano Inventários Quantidade Valor em réis Valor em
libra
1880 10 41 18.750:000 1.788.75
1881 5 20 9.450:000 834,43
1882 8 42 13.220:00 1.160,28
1883 8 26 4.715:000 421,99
1884 12 19 3.000:000 257,40
1885 8 21 8300:000 639,10
1886 5 13 5.455:000 422,76
1887 9 12 5.145:000 480,02
Total 65 194 68.035:000 4.215,98
Fonte: Inventários Post Mortem 1880 a 1887 – APERS. Valores em réis e libras.

Na tabela 20, podemos notar que houve um aumento de cativos durante 1880 a 1887,
chegando a 194 indivíduos em cativeiro. Isso denota que com o aumento da produção, também
a necessidade de mão-de-obra aumentou, o que acarretou, cada vez mais, no enriquecimento
desses senhores. Como se percebe, o ano de 1882 aparece com quarenta e dois cativos em
comparação para 1880 que possuí 41, mas no preço individual sofre diferença de valores, visto
que já estavam bem adiantadas as questões de emancipações abolicionistas.156
Como foi apresentado aqui, também vamos citar alguns dos senhores que compuseram
esse período da tabela 20, visando perceber quem eram esses investidores e proprietários que
movimentaram a economia local e que, de alguma maneira, estabilizaram as bases da sociedade
que se formou, também foram mentores da inserção do cativo como mão-de-obra na região.
Francisco Pacheco de Paula Machado, 1880, possuía a fazenda do Ilheos, recebida de
herança de seus pais, tinha oito cativos e muitos campos e matos na localidade de Pinhal e
também na Serra Geral, próximo da linha Santa Maria, que nos remete para uma produção de
animais de cria e transporte, favorecendo a manutenção do Tropeirismo e outros negócios.157

156
Ver mais sobre emancipações abolicionistas em FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de
escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. COSTA, Emília
Viotti da. Da Senzala à Colônia. 5ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
157
Inventário de Francisco Pacheco de Paula Machado – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 9, maço 1, est 39 e, 1880
– APERS.
120

José Ignácio da Silva Ourives, 1880, era dono da Fazenda da Taipa que se constituía
de muitos campos além de sete escravos, animais domésticos e gado vacum, sua economia está
relacionada com a criação de animais, visto que possuía campos para desenvolver a pecuária.158
Nesse mesmo contexto, o senhor Manoel Silveira de Aguiar, 1880, possuía campos e matos
arrendados na fazenda Capão do Alto, também oito escravos e criação de animais diversos.
Constituía uma parte da elite local, já que suas posses, além de serem físicas, também eram
humanas e isso corroborava para certo status social.159
José Martins Pires, 1882,160 era um grande escravista da região, possuía vinte e dois
cativos, sendo a maior escravaria encontrada nos documentos até o momento. Era dono da
Fazenda Morro do Leão, com uma área de 6.054,840 metros quadrados de terra de matos e
pinheiros e cultivados, fazia divisa ao sul com a fazenda Conceição do Funil. Possuía ainda
uma atafona com depósito para a farinha, um engenho, também era proprietário de uma casa
no bairro Bom Fim em Porto Alegre. Podemos pensar que José Martins Pires era um grande
comerciante de farinha de mandioca, sua criação de animais estava voltada mais para
subsistência que para o comércio, seus cativos trabalhavam na roça e na produção de farinha,
assim, esse senhor se tornou o maior escravocrata da região na nossa pesquisa.
Como podemos perceber, a importância da mão-de-obra cativa local foi de grande
valia e determinante para o desenvolvimento regional, a economia passou diretamente pelo
africano e afro-brasileiro, seu trabalho tem uma importância que deve ser retirado da
invisibilidade, valorizado e contextualizado historicamente para fazer parte da historiografia
como mais um desbravador das terras ainda não ocupadas, mesmo que sua permanência nelas
tenha sido forçosa, privada ou acorrentada a um sistema que descaracterizava sua existência.
Essa valorização deve constar nas páginas da história como sendo o cativo um agente construtor
de sua história, de sua realidade, que fomentou a economia e o enriquecimento da sociedade
que se constituiu durante o século XIX no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.
Para fomentar a curiosidade dos valores que cada cativo custava durante o século XIX,
na região onde se localiza o Vale do Rio dos Sinos - Paranhana, elaboramos uma amostra que
visa auxiliar na dimensão da posse de um cativo. A tabela 21, está formatada dentro de um
custo médio para cada indivíduo, que somados fecham com os valores expostos.

158
Inventário de José Ignácio da Silva Ourives – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 10, maço 1, est 39 e, 1880 –
APERS.
159
Inventários de Manoel Silveira de Aguiar – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 11, maço 1, est. 39 e, 1880 –
APERS.
160
Inventário de José Martins Pires – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 115, maço 6, est 39 e, 1882 – APERS.
121

Tabela 21 – Preço Médio de Cativos Por Ano 1880 - 1887


Valor em Preço Médio
Ano Inventário Quantidade
Libras em libra
1880 10 41 1.788.75 43,62
1881 5 20 834,43 41,72
1882 8 42 1.160,28 27,62
1883 8 26 421,99 16,19
1884 12 19 257,40 13,54
1885 8 21 639,10 30,43
1886 5 13 422,76 32,52
1887 9 12 480,02 40,00
Total 65 194 4.215,98 21,73
Fonte: Inventários Post Mortem 1880 a 1887 – APERS. Valores em libras.

Ao direcionarmos a análise para o final do escravismo no Brasil, percebemos na tabela


acima, comparando com a (tabela 17), que somam 79 cativos e a (tabela 19) que somam 132
cativos, um aumento de 53 escravos entre 1856 a 1879. Já comparando as (tabelas 19 e 21)
entre 1879 a 1887, podemos perceber uma diferença aumentada para 62 cativos dentro dessa
concepção econômica.
Isso não quer dizer que ao final do processo de abolição aumentou a compra e venda
de escravos, pelo contrário, é uma evidência por existir mais documentos que comprovaram a
existência de cativos na região, assim podemos computá-los para entendermos como foi ativo
esse comércio no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, mais específico na Fazenda Mundo Novo,
Taquara-RS.
Para os 194 cativos apresentados entre 1880 a 1887 chegamos a um montante de
£4.215,98 libras esterlinas, que nos permite obter um preço médio do custo de um cativo para
esse período, que chega a £21,73 libras esterlinas a unidade, que é equivalente a R$106,69 reais.
Comparando com a tabela 17, onde o custo médio de um cativo era de £47,32 libras esterlinas
a unidade, e que é equivalente a R$232,34 reais, em comparação com a tabela 19, onde o custo
médio era de £45,81 libras a unidade, que equivale a R$ 224,92,17 reais, e a tabela 21, que o
custo médio caiu para £21,73 libras esterlinas – não esquecendo que esse valor decaiu por causa
do fim do escravismo em 1888 – mesmo assim, para a tabela 21, o valor total de cativos foi
significante em vista do desenvolvimento econômico da região; totalizando um montante do
valor dos cativos em £14.002,41 libras esterlinas, nos três períodos.
Por ser uma região colonizada por imigrantes germânicos, produtora de animais
vacuns e cavalares, além de uma agricultura favorável ao comércio, a pergunta que podemos
pensar é: como eram feitas as relações de compra e venda de cativos na região do Vale do Rio
122

dos Sinos – Paranhana? A partir das amostras que nos propiciaram um panorama por décadas
da presença dos africanos e afro-brasileiros, além dos valores dos cativos, podemos perceber
um grande fluxo dessas “mercadorias” durante 1856 a 1888.
Em um momento em que estamos caminhando para o final do escravismo no Brasil, e
que a população escravizada diminuía em função do tráfico intraprovincial, no Vale do Rio dos
Sinos – Paranhana o escravismo ainda é constante e apontam para a manutenção, mantendo as
escravarias um certo “crescimento de escravizados”. Mesmo que a lei de 1850 (Eusébio de
Queiroz) e, posteriormente, a lei do Ventre Livre, 1871, tenha ditado que o escravismo chegava
ao seu fim, que a elite do Rio Grande do Sul estava fadada a perder suas “peças” de
trabalhadores, o escravismo se mantinha na região. “Enquanto a primeira Lei anunciava que a
diminuição da mão-de-obra nas próximas décadas seria questão de tempo, a segunda deu a
certeza de que este processo se aceleraria cada vez mais” (VARGAS, 2013, p. 222).161
Verificando o Censo de 1872, encontramos 366 escravos entre homens e mulheres, em
comparação com nossa pesquisa, que durante o período exposto encontramos 405 escravos
entre homens e mulheres, a diferença é de 39 escravos. Aqui não estão computados os escravos
encontrados nos batismos, somente o que foi pesquisado nos inventários post mortem, assim,
nosso número de escravos em comparação ao Censo Imperial aumenta consideravelmente como
veremos mais adiante.162
Segundo Jonas Vargas:

No entanto, o número de escravos contidos no censo geral de 1872 estava longe de


corresponder à realidade. Num artigo clássico, Robert Slenes apontou que a população
cativa sul-rio-grandense foi bastante subestimada. Analisando dados extraídos dos
registros de matrículas dos cativos, anexos aos Relatórios da Diretoria Geral de
Estatística do Império, Slenes verificou que, em 1873, o Rio Grande do Sul possuía
83.370 escravos e não os 67.791 arrolados no censo. Portanto, até este ano, o número
de cativos na província teria aumentado e não diminuído, como se acreditava
(VARGAS, 2013, p. 223). 163

161
VARGAS, Jonas Moreira. Pelas Margens do Atlântico: um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a
partir das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas, Rio Grande do Sul (século XIX). Tese (Doutorado
em História), Instituto de História. Universidade Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em
História Social. Rio de Janeiro, 2013.
162
CENSO DE 1872 liv25477_v11_rs. Recenciamento Demográfico Imperial. Disponível em
http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo. Acesso 28/09/2017.
163
VARGAS, Jonas Moreira. Pelas Margens do Atlântico: um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a
partir das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas, Rio Grande do Sul (século XIX). Tese (Doutorado
em História), Instituto de História. Universidade Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em
História Social. Rio de Janeiro, 2013.
123

Assim nossa suposição estava certa, o Censo de 1871 referente a Santa Cristina do
Pinhal, que representa a região de estudo, apresenta uma inferioridade de escravos que
encontramos nas fontes, com isso nossa pesquisa se legitima ampliando o entendimento de que
até o final do escravismo em 1888, a exploração foi intensa na região e que a desvalorização
dos afro-brasileiros esteve presente até as últimas horas de conseguir a liberdade.164
Essa intensa movimentação econômica coloca a Fazenda Mundo Novo como uma
região onde o escravismo foi muito ativo, caracterizando e legitimando o sistema escravista e
o poder econômico da sociedade que se constituiu.
Segundo Katia Mattoso:

A estrutura dos primórdios desse tráfico de escravos é pouco conhecida, no entanto


dois modelos poderiam explicá-la: o negro, trazido por um mercador, vendido em
nome de um terceiro que organizou o envio da África; ou então, o negro é diretamente
importado pelos produtores agrícolas que, como já dissemos, desde 1558 haviam
obtido o direito de se aprovisionar de mão-de-obra escrava à condição de não
importar, cada um deles, mãos que 120 cativos por ano, número bastante elevado e de
difícil controle (MATTOSO, 2016, p.77). 165

Podemos fazer referência à obra de Vinícius Pereira de Oliveira De Manoel Congo a


Manoel de Paula 2006, quando cita a chegada de um navio negreiro encalhado na costa de
Tramandaí por volta de 1860. Manoel Congo nos dá a hipótese de que a comercialização desses
africanos tenha acontecido entre os donos de terras da região. Assim as características se
assemelham às propostas da citação, podendo ser refletida na aquisição de cativos por
latifundiários, fazendeiros e produtores em geral, na região da Fazenda Mundo Novo.
Dentro desse contexto, as vendas de cativos poderiam ser feitas por venda pública ou
privada. Acreditamos que, nesse caso, estas vendas eram privadas, onde uma negociação se
concretizava de acordo a necessidade da mão-de-obra. Com isso também se estabeleciam as
relações sociais entre os compradores e seus respectivos vendedores, ou aluguéis de mão-de-
obra para determinada atividade.
A partir de tudo que foi mostrado até aqui, entre os inventariados, suas produções e
poder local, afirmamos que o escravismo foi intenso da região do Vale do Rio dos Sinos –

164
Ver mais sobre o tráfico intraprovincial em: ARAUJO, Thiago Leitão. Desafiando a escravidão: fugitivos e
insurgentes negros e a política da liberdade nas fronteiras do Rio da Prata (Brasil e Uruguai, 1842-1865). Tese
(Doutorado em História), Instituto de Filosofia e Ciências Humana. Universidade Estadual de Campinas –
Programa de Pós-Graduação em História Social. São Paulo, 2016. FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins
Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese (Doutorado em
História), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós-
Graduação em História Social. Rio de Janeiro, 2007.
165
MATTOSO, Katia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil: séculos XVI-XIX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
124

Paranhana, favorecendo o desenvolvimento regional com base em uma economia agrícola e de


criação de animais diversos tendo em sua concepção orgânica econômica a mão-de-obra
explorada escravizada.
125

CAPÍTULO
III

AS INVISIBILIDADES FRONTEIRIÇAS NAS RELAÇÕES ÉTNICO-


SOCIAIS
126

3 O QUE É SER ESCRAVO: CONCEITO E INTERPRETAÇÃO.

Para entendermos como se constituem as relações étnico-raciais-sociais e suas


fronteiras edificadas durante os períodos históricos, acreditamos que devemos tentar perceber
e interpretar o conceito, natureza e significado da palavra escravidão. Muitos historiadores já
conceituaram esse termo em diversos textos, mas em muitos o sentido literal e conceitual da
palavra foi se alternando, perdendo seu lócus central, que deveria ter por base o sentido da
utilização da expressão de exploração do homem sobre outro homem, ou talvez, outro sentido,
já que em cada sociedade as relações entre humanos são diferentes em diversos lugares pelo
mundo, de acordo com o contexto das diversas sociedades e suas culturas.
Se pensarmos em termos de “exploração” no decorrer da história, veremos que em
muitos casos, a exploração foi consentida de acordo com a necessidade contextual da vida
social, grupal, aldeã ou, meramente, o homem se submeteu ou foi submetido a uma situação,
em que lhe foi imposto um tipo de exploração para sua sobrevivência natural. Assim, o termo
escravidão poderia ser distorcido para a modernidade como um elemento que coloca o homem
em um estado de dependência contra sua vontade.
Claro que não podemos ser reducionistas ao ponto de dizer que a escravidão é um
momento de submissão humana a uma determinada situação em que nós nos encontramos, mas
podemos tentar elucidar que a escravidão fez parte de um contexto de determinadas sociedades
que se estabeleceram no decorrer do tempo, causando assim uma situação onde os mais fortes
e algozes submeteram os mais ‘fracos’ aos seus domínios, exercendo o poder pela força e
exigindo o trabalho forçado sem remuneração, em muitos casos para quitar dívidas, ou
transformando o homem em uma propriedade.
Também podemos verificar que os conceitos utilizados para definir o termo
“propriedade”, remetem, por exemplo, a escravidão para uma questão econômica, mas vamos
tentar ampliar um pouco o termo, para apontarmos uma compreensão sobre o homem escravo,
já que desde a origem das sociedades humanas, a exploração fez parte de seu contexto. Com
isso os conceitos que foram se formando durante a história da humanidade, referente à questão
do homem escravo e do termo escravidão, vai se diluindo e desenvolvendo imagens que
refletem algo velado dentro da sociedade; assim as definições do termo vão moldando seu
conceito básico em outros tempos.
O historiador francês, Olivier Pétré-Grenouilleau (2009), coloca que, em sua grande
maioria, os pesquisadores, que abordam o tema da escravidão, recusam-se a conceituá-la de
maneira a desassociá-la da questão da economia, já que sua construção conceitual sempre esteve
127

envolta com relações comerciais de compra e venda. Para outros, seria inteiramente diluível na
economia e consistiria em compor uma das três etapas na história da exploração do homem
entre o fim da sociedade primitiva, a sociedade igualitária e início da sociedade individualista,
segundo Olivier Pétré-Grenouilleau.
Se pensarmos a escravidão somente em uma questão econômica estaríamos reduzindo
e plastificando a capacidade de conceituar o que realmente significa ser escravo. Em uma
questão macro de produção com mão-de-obra escravizada, a percepção da quantidade dos
escravos que não trabalhavam, ou que se negavam a fazer o serviço, ou até mesmo os que
fugiam, faz parte de um percentual de pessoas que, em muitas vezes, não são aptas para o
trabalho, em alguns casos podemos contabilizar crianças e idosos.
Nas pequenas propriedades, onde pequenos grupos de escravos viviam, não podemos
reduzir o termo escravo à economia somente, visto que se seu senhor dependesse
exclusivamente do serviço cativo, ambos passariam necessidades em todos os sentidos.
Segundo Olivier Pétré-Grenouilleau, citando Adam Smith: “[...], a escravidão não poderia ser
explicada unicamente (nem mesmo principalmente) por argumentos econômicos. Para
compreendermos a existência da escravidão, teríamos de nos remeter às paixões mais extremas
do homem e à sua vontade de dominar” (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009, p. 17).166
Como se sabe, em muitos casos, escravos alforriados passaram a ser senhores
escravagistas, poderíamos dizer que em situação oposta à liberdade, foi criada uma imagem a
partir do entendimento de que a escravidão ofereceria uma ascensão social e prestígio, mesmo
que já estivessem presenciadas tais brutalidades dentro do sistema escravocrata, mesmo assim,
a deturpação do termo se refaz através das possibilidades econômicas, ou seja, o termo fica
reduzido novamente à economia.
Pensando nesse contexto de liberdade, essa não se justificava para os escravos, visto
que não eram eles que conseguiam a liberdade, mas seu senhor é que decidia, e os cativos
estavam literalmente nas mãos desses homens que poderiam, ou não, escrever um documento
dizendo que os trabalhadores escravizados eram “livres”. Interessante pensar que o escravo
nunca foi livre, mesmo posteriormente à abolição, pois foi das mãos da princesa Isabel que foi
assinado o documento que dizia que os escravos estavam livres, assim até a atualidade, os
africanos, afro-brasileiros e seus descendentes ainda sofrem com essa situação sobre “ser
Livre”, com isso podemos dizer que a escravidão é muito mais ampla em sua estrutura que
imaginamos quando menosprezamos o que é ser escravo.

166
PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, Olivier. A História da Escravidão. São Paulo: Boitempo, 2009.
128

Segundo Paul E. Levejoy:

Todas as sociedades impõem muitas restrições aos indivíduos, mas mesmo


reconhecendo isso ainda podemos entender os escravos como pessoas particularmente
coagidas. No contexto das sociedades escravocratas, a liberdade envolvia uma posição
reconhecida numa casta, numa classe dirigente, num grupo de parentesco ou em
algum tipo de instituição. Uma tal identificação incluía um conjunto de direitos e
obrigações que variavam consideravelmente de acordo com a situação, mas ainda
eram distintos daqueles dos escravos, que tecnicamente não tinham direitos, apenas
obrigações. O ato de emancipação, quando existia, transmitia um reconhecimento de
que escravo e homem livre eram opostos. A emancipação demonstrava
dramaticamente que o poder estava nas mãos dos homens livres, não dos escravos
(LOVEJOY, 2002, p. 31). 167

Se o escravizado se torna “livre”, mas a liberdade foi dada pelo homem livre, o termo
escravo, novamente, faz sentido, via a imagem criada por ele próprio, no caso estar sujeito ao
outro para ficar livre, já que o conceito de escravo transcende a antiguidade histórica, pois são
determinantes os conceitos sobre o escravismo. Em cada sociedade o conceito muda em
detrimento da necessidade ou função que cada sujeito restrito de liberdade ocupava na
sociedade. Assim se pensarmos em grandes impérios, como os Persa ou Babilônico, teremos
conceitos diferentes sobre o termo escravo e ainda, se considerarmos os gregos e romanos,
outros conceitos contextualizados por essas sociedades se farão presentes.
Definir um conceito categórico sobre o que é ser escravo também passa por
argumentos que se situam através das legitimações que geram exploração e subjuga a
capacidade humana de interpretar sua vida, assim em muitos casos mundo afora, o termo
escravo teve diversos conceitos reducionistas que colocaram a capacidade do homem e a sua
razão à prova sobre a privação da liberdade, também em comum acordo a vontade natural da
sobrevivência, visto que o poder de poucos não pode ser comparado às necessidades de muitos.
Todos os escravagistas europeus foram iguais? Dependendo da necessidade de se
encontrar um conceito que nos favoreçam condições de entendermos o que é ser escravo, seria
interessante verificarmos se os europeus, em um sentido literal, foram, ou melhor, utilizaram o
mesmo sistema de escravização em todas as colônias no mundo, visto que o contexto que se
apresentou durante a colonização também levou a determinar quais métodos de escravidão
deveriam ser aplicados. Por exemplo, a escravização do índio pelo europeu teve algumas
características diferentes da escravização africana?

167
LOVEJOY, Paul E. A Escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002. Ver também: MEILLASOUX, Claude. Antropologia da Escravidão: o ventre de ferro e dinheiro.
Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
129

Se pensarmos nas tribos africanas que escravizavam aldeias nativas inteiras e


negociavam com os europeus na costa da África, poderíamos conceituar que o africano tinha o
mesmo entendimento sobre o escravismo praticado pelos europeus? Os tipos de escravização
foram diferentes em detrimento de quem escravizou, e o sentido muda para quem foi
escravizado? Assim sobre o conceito do que é ser escravo ainda fica dúbio, a pergunta acima
se refere sobre uma determinação que envolve uma grande quantidade de emoções, valores,
restrições e principalmente a privação da liberdade, classificar o escravismo é uma pretensão e
tentativa de ampliar a discussão sobre o tema, já que o termo escravidão se dilui em definições
e conceitos básicos no decorrer do tempo.
Segundo Oliver Pétré-Grenouilleau:

Como se supunha que os europeus tinham ‘inventado’ o capitalismo considerou-se


que o sistema escravagista implantado por eles nas Américas fora determinado
unicamente por razões econômicas. Por outro lado, atribuiu-se à África pré-colonial
tudo que valorizasse e envolverem-se os laços do parentesco, às vezes transformando
a escravidão nesse continente em puro assunto de família (PÉTRÉ-
GRENOUILLEAU, 2009, p. 21). 168

Nesse contexto, a escravização africana se conceitua dentro de uma estrutura de


relações de poder entre as sociedades que se distingue dentro do continente africano, com isso,
o conceito deixa de ser entendido por mera questão econômica e passa a ser um contexto de
relações étnicas-culturais. Para o europeu, uma oportunidade para o desenvolvimento comercial
em detrimento da expansão territorial e exploração capitalista de acumulação e
desenvolvimento comercial.
A partir desse entendimento, poderíamos visualizar dentro de um sistema escravista,
como cita Olivier Pétré-Grenouilleau, quando refere sobre os ‘espelhos deformantes’, a
distinção dos tipos de escravidão e ao mesmo tempo a generalização do termo escravo
doméstico e operário. No ponto de vista de percepções através de imagens (ASSMANN,
2001)169, essa generalização caracterizou-se por muito tempo, em determinados locais do
Brasil, um escravismo ameno, por ser compreendido que o deslocamento de cativos, de algum
tipo de trabalho forçado para um trabalho doméstico, caracterizava uma possibilidade de
diminuir seus esforços laborais, sendo um anacronismo esse pensamento, visto que a partir de
agora esse indivíduo estava mais perto dos olhos de seu dono.

168
Idem.
169
ASSMANN, Aleida. Espaços da Memória: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Ed.
Unicamp, 2011.
130

Partindo dessa premissa, chegamos a um entendimento de que não se pode pensar em


um escravismo linear, mas buscar perceber que dentro do sistema escravista, uma grande
diversidade de ações caracteriza uma escravidão com condições de vida para os escravos
diferentes em momentos e sociedades específicas, deixando claro que quando se fala em
escravidão, a dificuldade de se conceituar um sentido estrito sobre o que é ser escravo, amplia-
se em uma complexidade de relações políticas, sociais e econômicas que ultrapassam uma
mesma relação de exploração, ou seja, o sistema escravista é ondulatório em seu
desenvolvimento.
A escravidão, na visão grega, é definida como um ‘mal necessário’ para justificar o
pensamento político e social. Para o abolicionista, as justificativas se concentravam a partir do
progresso para acabar com o escravismo, assim a única maneira de saber sobre o que é ser
escravo, talvez se resuma na hipótese do entendimento do que as fontes carregam em seus
textos, com algumas particularidades, como perceber os movimentos das resistências que foram
praticadas, as relações de sociabilidade, os maus tratos desumanos que caracterizam o outro
como estranho. Talvez possa ser esse o entendimento do que é ser escravo, ‘o estranho’ dentro
de um contexto que não faz parte de sua natureza, de sua realidade ou da realidade do outro.
No momento em que o homem é colocado no cativeiro passa a ser o ‘estranho’ dentro
da sociedade escravista, ele próprio também passa a se reconhecer como o outro, o forasteiro,
o excluído, já que em virtude da privação da liberdade, sua realidade e perspectiva se estreita
em uma conjuntura de fatores que o leva a pensar como sobreviver sendo o estranho. “A
escravidão era sempre um sofrimento porque forçosamente significava o rompimento de
relações familiares e sociais, a intrusão num mundo novo e a ausência de liberdade [...]”
(PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009, p. 36). 170
A partir desse contexto que se originam os modelos de resistência, unidade,
preservações culturais e sociabilidade que passam a fazer parte do processo de composição da
vida em cativeiro, justificando o termo ‘estranho’ a partir da ressignificação do que é ser privado
da liberdade. As relações que se sucederam entre o escravagista e o raptado de seu habitat, nos
leva a pensar nas relações de sociabilidade humanizadas por sentimentos comuns entre os
cativos, isso quer dizer que em alguns casos decorram justificativas e ações como os alforriados
que possuíram escravos, já que o que foi apresentado nas senzalas das grandes fazendas era
uma realidade de quem mandava e quem obedecia forçosamente e essa emancipação muitas
vezes findava na escravização do outro pelo estranho, que a partir desse momento deixa de ser

170
Idem.
131

estranho e passa ser o ex-cativo alforriado, dono de si próprio e também um senhor de escravo,
dando a entender que agora também faz parte do meio social e está inserido em outro lugar na
sociedade.
Assim, nessa tentativa de elaborar um conceito palpável sobre o que significa a
escravidão, já sabemos que ela não é algo natural, mas está de acordo com as necessidades –
no caso do processo de colonização do Brasil –, da Coroa portuguesa. Sabemos que a escravidão
é um movimento de exclusão, exploração contínua e usurpação da liberdade do homem, no
nosso caso específico, o homem africano. Dentro de toda essa investida de conceituar o que é
o termo escravidão, chegamos no que diz, Olivier Pétré-Grenouilleau:

Agora sabemos o que a escravidão não é. Ela não é ‘natural’. Também não é
inteiramente diluível na economia e na ideia de exploração. Más condições de vida
não bastam para transformar alguém em escravo. A escravidão não corresponde a um
sistema de produção determinado. Os escravos trabalhavam nas minas, foram
preceptores dos filhos de seus ‘senhores’, cocheiros e cozinheiros. Houve escravos
tanto na economia antiga como na época medieval, no capitalismo comercial e na
época Industrial. E ainda hoje, no nosso mundo dito pós-industrial, existe escravidão.
Afinal, o que reafirma essa ideia de escravidão? É possível definir a escravidão?
Talvez, mas desde que se recorra a um pequeno número de fatores – e não a um só –
e se aceite a ideia de que às vezes esses fatores se combinam de maneiras diferentes,
em função do lugar e da época (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009, p. 38-39). 171

É esse tempo e lugar que buscamos valorizar no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana,
na tentativa de elucidar o sentido de escravidão nessa região, visualizando as relações entre
senhores e escravos que se consumaram durante nossa pesquisa e análise, já que tivemos uma
colonização portuguesa, e, conseguinte, a colonização alemã. Em nosso entendimento, achamos
que sucedeu um choque de culturas nas relações sociais entre portugueses proprietários de
escravos, os próprios escravos e os colonos alemães quando passaram a ser senhores
escravagistas.
Se pensarmos o cativo como ‘estranho’ na sociedade em que foi inserido, também
avaliando que, na grande maioria desses, muitos já tinham se habituado aos modos portugueses,
e quando das relações entre os colonos alemães, esse ‘estranho’ passou a ser ainda mais
invisível dentro da sociedade, com outra cultura, outros costumes, outros senhores, a estranheza
passou a fazer, ainda mais, parte desse contexto para os escravos, a adaptação entre senhores
foi ainda mais dificultosa. Esta estranheza centra-se na inserção do grupo social ao qual esse
indivíduo vai fazer parte e se adaptar ou não, causando conflitos futuros.

171
Idem.
132

São tantas as tentativas de entender o escravismo que, muitas vezes, os conceitos


chegam a distorcer os fatos, por exemplo, poderíamos dizer que em um processo de resistência
ao escravismo, onde as vantagens adquiridas por algum grupo de cativos dentro do sistema
escravista poderia ser um tipo de “liberdade condicionada”, ou melhor, condicionamento para
uma superexploração através da alienação e da afetividade de lado a lado das relações de
sociabilidade. Isso seria válido, mas não velado.
Também possamos entender que a resistência dos escravizados possa ser um
‘renascimento’ através da razão em busca da efetivação do bem comum e inserção social pelo
meio de sua própria construção e ação que venha prevalecer sua existência como homem, dando
sentido e identidade no contexto cotidiano em que vive. Esse possível ‘renascimento’ poderia
ser a família no cativeiro como elemento fundamental da preservação de seus laços culturais,
afetivos, políticos e sociais entre seus pares. Nesse sentido, o escravo não deixa de ser um
homem e também não somente um escravo, do contrário não teria utilidade para o senhor. Sua
resistência está vinculada à sua desumanização, e isso é o que buscamos visualizar no Vale do
Rio dos Sinos – Paranhana.
Segundo Clude Meillassoux:

No termo do direito, o escravo é descrito como um objeto de propriedade [...]. Mas


do ponto de vista da exploração, a assimilação de um ser humano a um objeto ou
mesmo a um animal é uma ficção contraditória e insustentável. Se na prática o escravo
fosse tratado como tal, a escravidão não teria nenhuma superioridade sobre o uso de
instrumentos materiais ou a criação de animais. Na prática, os escravos não são
utilizados como objetos ou animais [...]. Em todas as tarefas - mesmo no transporte
de carga - e por menos que sejam, apela-se para a razão do escravo, e sua
produtividade ou utilidade aumenta na proporção do recurso que se faz a sua
inteligência (MEILLASSOUX apud PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009, P. 45). 172

Contudo, o escravo não deixa de ser escravo, mas ele é um homem útil para o senhor,
somente o que muda é sua condição nas questões de conquistas, ocupações territoriais, no
trabalho diário, nas relações sexuais extraconjugais e principalmente na comercialização e
poder econômico local e regional. Para o senhor, o reconhecimento do homem com o poder
sobre o outro homem, o valor da superioridade humana sobre o humano, isso fica explícito nas
relações de poder de compra, no poder de barganha e nas tentativas de resistência cativa.
Verificando o direito constitucional estabelecido durante a colonização e,
posteriormente, o império brasileiro, nos deparamos com alguns fatos relevantes de serem
apresentados, visto que a escravização no Brasil estava regulamentada dentro dos preceitos

172
Idem
133

legais vinculados às ordenações Reais implantadas nas colônias portuguesas em todo o mundo.
“A escravidão, muitas vezes, é enxergada apenas como um fenômeno fático, percebido sob
nuances sociológicos ou relações econômicas, que simplesmente existia no Brasil do século
XIX e que foi extinto por meio da Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888” (CAMPELLO, 2010,
p. 12).173 Isso não se resume apenas em uma escravização de pessoas africanas no Brasil
chegando ao seu final em 1888, ela se define como severa e cruel quando está regulamentada
constitucionalmente em leis que vigoraram durante o escravismo brasileiro.
Por isso, talvez, seja difícil de encontrarmos um conceito sobre o que é o escravismo.
Em todos os lugares e sociedades a escravidão se fez presente, com especificidades únicas para
cada lugar, com definições próprias de acordo com o contexto sócio-histórico-cultural, também
com particularidades que se somaram em detrimento da privação da liberdade; com isso, tais
elementos formam “conceitos diversos” sobre o tema.
André Campello (2010) analisando como foram se constituindo as ideias liberais no
Brasil para a construção da Constituição de 1824, onde busca exemplificar como se instituiam
as leis que favoreceram e legitimaram o escravismo no Império Brasileiro. É importante
perceber que a Independência do Brasil não rompeu as bases do reino português, cujo
entendimento liberal do trabalho forçado, da exclusão e da inserção social dos escravizados
causou uma contradição e feito contrário à proposta de Independência.174
Como a Independência não foi um processo com a participação popular e sim apoiada
pela elite comercial e canavieira, sua efetividade não deu a principal resposta aos que mais
precisavam. O escravismo não foi rompido, com isso não houve uma independência, mas uma
acomodação de interesses e uma divisão do reino português, ficando um estrangeiro no
comando da antiga colônia, agora um novo país, com um Imperador Português.
O texto da Carta Magna de 1824 foi tão atroz ao ponto de classificar e rejeitar as
questões escravistas nos termos da liberdade constitucionalizada, através das medidas legais
que foram tomadas sobre (o livre-arbítrio - alforrias) a população liberta e da população que
esteve mantida em cativeiro. O ponto central sobre esse tema declara espontaneamente uma
população de africanos e afro-brasileiros, majoritariamente excluída do meio social como diz o
artigo 94 da constituição de 1824:

173
CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. A Escravidão no Império do Brasil: perspectivas jurídicas.
André Emmanuel Batista Barreto Campello – 1. ed. ISBN 978-0-557-67298-1. 2010.
174
Para o entendimento das discussões entre liberalismo e escravidão ver: SCHWARCZ, Roberto. As Ideias Estão
Fora do Lugar. CEBRAP, 3: Jan 1973. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As Ideias Estão Fora do Lugar.
Caderno de Debate, São Paulo – Brasiliense, 1976.
134

Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros
dos Conselhos de Província todos, os que podem votar na Assembléia Parochial.
Exceptuam-se: I. Os que não tiverem de renda liquida anual duzentos mil réis por
bens de raiz, indústria, comercio ou emprego. II. Os Libertos (CAMPELLO, 2010, p.
20). 175

Nesse caso específico, a Charta Imperial já define outro modo de ‘separação’ social,
sendo esse vetando o direito da inserção dos libertos alforriados a fazerem parte do meio social
brasileiro, com isso poderíamos pensar que estes libertos não tiveram a chance de realmente
estarem em um patamar social aceito pela população branca, tornando-se cada vez mais
‘estranho’ na sociedade brasileira. Assim, a própria legislação reduz o liberto a um cidadão de
segunda classe como consta no Art. 94, §2º.
Há contradição no texto da Charta Imperial, no Art. 179, XIV, dizendo que todo o
cidadão tem o direito de fazer parte dos processos de preenchimento aos cargos públicos, já
que, se o liberto era livre, seria um cidadão e por isso não poderia ser vetada a sua participação
a esses cargos, mas algumas restrições foram expostas: “‘XIV. Todo o cidadão pode ser
admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja
dos seus talentos, e virtudes’” (CAMPELLO, 2010, p. 19).176 Um empecilho fica explicito no
texto: “talentos e virtudes”.
Se o africano e afro-brasileiro foi restringido de cultuar a liberdade em terra estranha,
mesmo quando conseguiu a liberdade foi rejeitado pelo meio social, como seria admitido a sua
capacidade de ser reconhecido em seus talentos e virtudes, se o próprio texto da Carta Magana
não faz menção à sua valorização, pelo contrário, exclui as possibilidades do reconhecimento
desses indivíduos como seres humanos e os classifica como segunda classe de humanos? Fica
difícil compor um conceito que refere o significado do termo escravidão.
Mas essas ações de regulamentar e colocar o afrodescendente americano em segundo
lugar no meio social não está vinculado exclusivamente ao Brasil, mas em todas as possessões
coloniais no Continente Americano. Um código que foi amplo e politicamente utilizado nas
colônias americanas, francesas e inglesas foi o “Código Negro”, esse demarcava uma forte
segregação que definia os direitos de brancos e negros nessas regiões.
Não podemos deixar de citar que esse Código Negro não era restrito somente aos
negros, mas também buscava regulamentar as relações entre os senhores e a Coroa, já que os

175
CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. A Escravidão no Império do Brasil: perspectivas jurídicas.
André Emmanuel Batista Barreto Campello – 1. ed. ISBN 978-0-557-67298-1. 2010. O texto da citação está escrito
de acordo com a grafia do documento.
176
Idem.
135

senhores não poderiam ter poderes ilimitados dentro do Absolutismo colonial, e no nosso caso,
agora Império Brasileiro, que ao mesmo tempo dava poder para as relações econômicas e
protegia o tráfico negreiro, além das relações religiosas que legitimavam todas as ações
aplicadas.
Outro fator amparado pelo Código Negro foi o aumento populacional colonial com
maior número de escravizados para uma parcela branca, com isso justificou-se a superioridade
branca e inferioridade negra classificada pela cor da pele, pela condição social e por sua
“incapacidade” produtiva intelectual. Contudo, a igreja restaurou, a partir desse código, a
formação e preservação da família, que viria a ser uma forma de resistir ao sistema por parte
dos africanos e afrodescendentes na América.
A base desses documentos reguladores está centrada no Direito Romano, esse também
serviu de base para Constituição de 1824, que trazia em seu texto a relação do status libertatis,
ou status do liberto que poderia ser revogado caso houvesse ingratidão do alforriado contra seu
alforriador, ou seja, os libertos no Brasil ainda estavam vinculados aos seus senhores, as suas
ações quando obtida a liberdade, alienados a um sistema complexo que os afastavam, em todos
os sentidos, do quadro social em toda a América.
Essa talvez seja a dificuldade de se montar um conceito para o termo escravidão,
acreditamos que somente será possível formarmos parâmetros de entendimento, dando
visibilidade a esses “estranhos”, pela complexidade que é a escravidão em todos os sentidos e
como foi sendo desenvolvida desde a antiguidade. Há uma grande necessidade de se retirar da
invisibilidade esses atores que de alguma forma estiveram vinculados ao sistema escravista, já
que a escravidão fez e ainda faz parte da sociedade mundial como um todo, colocando os
desfavorecidos em um mesmo patamar de inferioridade e exploração pelos países
desenvolvidos, mas que tiveram importância no desenvolvimento mundial com sua mão-de-
obra empregada forçosamente através de seus raptos da África em direção à Europa e América.
Dentro desse contexto, nossa intenção é traçar uma linha de pensamento que nos mova
em direção às fronteiras que foram construídas para dificultar a inserção do africano e afro-
brasileiro no meio social, como cidadão livre e com prerrogativas justificadas ao seu direito de
liberdade. Ao longo dos séculos, houve tantos tipos de escravidão, e com ela muitas pessoas
foram sucumbidas pelo poder exercido sobre elas, mas tudo não aconteceu de bom grado,
muitas fronteiras foram ultrapassadas, muitos caminhos foram abertos para as futuras gerações
de escravizados e libertos durante os anos de escravidão.
Em todo o continente americano e africano, o escravismo transformou e programou
uma vastidão de desumanização, transformando pessoas raptadas, em grande quantidade, em
136

mercadorias. Estas vislumbravam um comércio cada vez mais promissor para os traficantes,
para o enriquecimento dos grandes latifundiários e, também, para além de quem pudesse pagar
para obter um escravo.
Primeiro, por ser um negócio regulamentado pelas coroas escravistas e a possibilidade
de cada vez mais ampliar as divisas do mercantilismo, esses traficantes também tiveram
importante papel no processo da escravidão, pensando que o lucro de seu negócio deriva da
manutenção e preservação de suas mercadorias, visto que as perdas (casos de morte das peças
na travessia) eram tidas como prejuízos, sendo igual à qualquer manufatura, além da perda da
credibilidade perante seus compradores.
Em segundo, os consumidores dessas “mercadorias” também fomentaram o comércio
marítimo com suas produções de exportação e desenvolvimento interno na construção de vilas
e cidades com a utilização da mão-de-obra cativa, além dos que compravam um escravo para
adquirir status social, em meio à sociedade que cada vez mais se desenvolvia fundando sua base
no escravismo.
No território americano as marcas dessa utilização do cativeiro não se apagaram com
as medidas tomadas no processo de abolição que, ainda na atualidade, o não reconhecimento
dessa inferiorização, criada nos séculos passados, refletem nas dificuldades de entender como
foi construído um sistema complexo, de privação da liberdade que alienou e submeteu os
africanos a viveram em cativeiro, mesmo contra sua vontade e transcendeu para seus
descendentes essas amarras difíceis de serem rompidas para vislumbrar uma real liberdade.
Assim, na necessidade de ampliar os estudos sobre tais elementos construtivos e
representativos da valorização do africano e seus descendentes é que buscamos perceber como
as fronteiras da vida cotidiana foram ultrapassadas, nas relações de cativos e senhores, do
cativeiro e liberdade em locais onde o escravismo se fez presente, além de tentar averiguar as
estratégias que foram utilizadas para dar suporte ou talvez amenizar as questões impostas nas
senzalas e nas relações de trabalhos forçosos em todo seu âmbito de exploração.
No processo de valorização da memória de africanos e afro-brasileiros vividos nas
paragens sulinas, as fronteiras que foram ultrapassadas, as rejeições e os modos exploratórios,
as desclassificações por serem negros e escravos, são algumas das evidências que sabemos
sobre os maus tratos que a população escravizada no Brasil sofreu, sendo assim, nosso
entendimento para o escravismo se estabelece nos modelos ou tipo de resistências que foram
elaboradas contra o sistema escravista por parte dos que estavam em cativeiro.
137

3.1 INVENTÁRIOS, SENHORES E ESCRAVOS.

Na ocupação das terras do Vale do Rio dos Sinos, além de São Leopoldo, em 1824,
em direção ao norte e ao leste, desde o século XVIII, já se encontram registros de deslocamentos
e ocupações de humanos nesses caminhos que levavam até Santo Antônio da Patrulha. No início
do século XIX, já se tem uma vasta rede de lugares com denominações e espaços geográficos
demarcados, seguindo da Aldeia dos Anjos (Gravataí) em direção a Itacolomy, Barro
Vermelho, Pinhal, Pinhal Costa da Serra e outros.
Com a venda da Fazenda Mundo Novo para Tristão José Monteiro (1846), foi fundada
a Colônia do Mundo Novo, localizada no lugarejo conhecido como Pinhal. Um ano depois da
fundação da Colônia Mundo Novo (1847), foi erguida a Capela de Santa Cristina do Pinhal,
ampliando o processo de ocupação e denominando esse lugar como Santa Cristina do Pinhal.
Assim, quando São Leopoldo se eleva à categoria de município, em 1846, as terras que hoje
formam o Vale do Paranhana e toda a região até a encosta da serra, passaram a pertencer a São
Leopoldo, ficando Santa Cristina do Pinhal como segundo distrito.
Em 1857, Santa Cristina do Pinhal é elevada a freguesia, desvinculando-se de São
Leopoldo e passando a pertencer a Porto Alegre com o registro de pertencimento à Aldeia dos
Anjos, como demonstra Dóris Rejane Fernandes:

Esses dados mostram mudanças administrativas: ora Santa Cristina pertence a Santo
Antônio da Patrulha, ora pertence a São Leopoldo, ora Porto Alegre. [...] este
‘movimento administrativo’, pertencendo de uma vila para a outra é típico da frente
de expansão, que está a abrir caminhos, permitindo a ocupação desse espaço por
outros grupos humanos. Cabe lembrar que esse espaço foi conquistado aos índios e
espanhóis, e que os nomes anteriormente indicados são de lusos/açorianos que, desde
os finais do século XVIII, estão ocupando terras. O pertencimento [de Santa Cristina
do Pinhal] a vilas diferentes, além de mostrar os vínculos, revelar movimentos por
proximidade e núcleos de atração, apontam os interesses transitórios estabelecidos.
[grifo nosso] (FERNANDES, 2008, p. 29-30).177

Por esse motivo que, no Censo Demográfico Imperial de 1872, aparece, para a região
da Fazendo Mundo Novo, Santa Cristina. No documento do Censo diz: “Quadro Geral da
População da Parochia de Santa Cristina do Pinhal”. Assim consta no documento, que declara
a densidade demográfica da Fazenda Mundo Novo.
Pelo exposto, a partir dos inventários post mortem, foi possível verificar que a
participação e presença africana e afro-brasileira aparecem com um número expressivo para a

177
FERNANDES, Dóris Rejane. Povoamento pioneiro das Terras do Mundo Novo. In: SOBRINHO, Paulo
Gilberto Mossmann; BARROSO, Véra Lucia Maciel. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST, 2008
138

região, deflagrando assim a curiosidade de saber como viveram essas pessoas em cativeiro,
privadas da sua liberdade nessas terras e, como se mantiveram as relações entre seus senhores
e seu cotidiano de labuta.
O trabalho de Renato Leite Marcondes (2002), que busca perceber, através da
propriedade de escravos, o crescimento vegetativo em Batatais no interior paulista, em 1875,
demonstra um levantamento demográfico partindo dos inventários post mortem, nesse
levantamento percebe-se que “[...] a vila de Batatais ainda apresentava como principal atividade
a criação de gado, conforme pudemos apurar com base nos inventários de proprietários
presentes na Classificação e nas informações do Almanak para a Província de São Paulo para
o ano de 1872” (MARCONDES, 2002, p. 03).178
Com isso, as escravarias, que Renato Leite encontrou em seu trabalho, apresentam
quase as mesmas caraterísticas e proporções da Fazenda Mundo Novo, ou seja, cativos
distribuídos em pequenas propriedades, dependendo do tipo de economia, para determinar a
quantidade de mão-de-obra utilizada, sendo ela livre ou cativa, assim demonstrando que tanto
em Batatais como na Fazenda Mundo Novo as especificidades eram parecidas e se
equiparavam.
O estudo realizado por Olgário Paulo Vogt e Roberto Radünz (2013)179, com o uso
adequado da análise feita nos inventários, contendo o cuidado necessário, transmite importantes
informações em suas páginas, como aspectos da vida cotidiana, da vida econômica, da vida
social e cultural de determinada sociedade. Avaliando “quantitativa” e “qualitativamente” os
bens materiais dos inventariados, e relacioná-los a uma escala de valor no tempo passado,
significa que a leitura foi perceptiva e interpretada para validar a análise.
Dessa maneira, nossa intenção, nesse primeiro momento, é demonstrar como foi
possível traçar uma metodologia para verificarmos quantos senhores possuíam bens diversos e
cativos. Com isso, conseguimos verificar também a presença de africanos e afro-brasileiros
trazidos para a região de Santa Cristina do Pinhal antes do período de análise 1856 – 1888, no
caso, utilizamos o inventário post mortem de Antonio Borges de Almeida Leães de 1829, que
demonstra a quantidade de escravos que foram inseridos em sua sesmaria num total de cinco
escravos já citados na tabela 5. Assim, no decorrer do texto, nossa análise se desenvolve nessa

178
MARCONDES, Renato Leite. A Propriedade Escrava e a Hipótese de Crescimento Vegetativo em Batatais: a
classificação dos escravos (1875). Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos
Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.
179
VOGT, Olgário Paulo, RADÜNZ, Roberto. Do Presente ao Passado: inventários post mortem e o ensino de
história. Revista Latino-Americana de História. Vol. 2, nº. 6 – agosto de 2013 – Edição Especial PPGH-
UNISINOS.
139

complexa relação entre sociedade livre e sociedade privada da liberdade, visto que nosso corpo
documental se funda a partir do período de 1856, sendo essa data a mais antiga encontrada até
esse momento, findando em 1888.
Sidney Chalhoub retrata, em sua obra A Força da Escravidão (2012), como foi
reestruturado o escravismo no Brasil Império, posteriormente a mineração em Minas Gerais,
no final século XVIII e início do século XIX, em consequência dos processos de emancipação
de colônia de Portugal para Império do Brasil. Ainda no mesmo caminho, o autor nos coloca as
improbabilidades da efetivação da lei de 1831, que proibia a entrada de africanos livres no
Brasil, mas novas pendengas judiciais foram lavradas, ocasionando o fortalecimento do tráfico
de africanos escravizados e introduzidos ilegalmente no Império Brasileiro.
Como refere Chalhoub:

Na década de 1820, o café ainda era o terceiro item de exportação do país, atrás do
açúcar e do algodão. Em outras palavras, a reestruturação do escravismo no Brasil
após a decadência da atividade mineradora antecedeu a expansão da cafeicultura ao
longo do Vale do Paraíba fluminense e paulistas. De acordo com as estimativas mais
recentes, em todo o período de tráfico negreiro para o Brasil, desde meados do século
XVI até 1850, chegaram ao país mais de 4,8 milhões de africanos escravizados; no
primeiro quartel do século XIX (1801-25), entraram 10.127,62 africanos; no segundo
quartel (1826-50), 10.419,64, e outros 6.800 vieram após a nova lei de proibição do
tráfico de 1850. A aritmética dos dados revela que mais de 42% das importações de
africanos para o Brasil em três séculos de tráfico negreiro aconteceram apenas na
primeira metade do século XIX (CHALHOUB, 2012, p. 35).180

Dentro desse contexto, nossa pesquisa mostra que, no Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana, mais específico, na Fazenda Mundo Novo, a presença de africanos e afro-brasileiros
estão contabilizados nesses números citados por Chalhoub, já que a antiga Sesmaria de Antonio
Borges foi concedida em 1814, e para tal era necessário a presença de cativos como requisito
para concessão da terra. Com isso, a probabilidade de inserção de africanos ilegais na região
também deve ser levada em conta, visto que nos inventários constam africanos contabilizados
nos bens dos senhores possuidores de escravarias e talvez muitos desses sejam alocados
clandestinamente.
José Martins Pires, citado anteriormente, possuiu vinte e dois cativos entre homens,
mulheres e crianças, seus cativos estão alistados na relação de matrícula de número 119, de
1872; quando a obrigatoriedade desse registro é a partir de 1872. Sua escravaria altera entre as

180
CHALHOUB, Sidney. A Força da Escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. 1ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
140

idades de 03 meses a 56 anos, sendo composta de 15 cativos do sexo masculino e 7 do sexo


feminino.
Essa desproporção entre sexos se relaciona pelo nascimento de mais meninos que
meninas. Um dos pontos de análise que podemos observar nessa escravaria é a possibilidade de
formação da família em cativeiro, já que temos mulheres e homens com a mesma faixa etária
de idades e as crianças com idades variadas. José Martins Pires é o senhor que mais possui
cativos na Fazenda Mundo Novo, sendo 22 no total, fincando 7 cativos registrados como
africanos.
Isso nos leva a crer que José Martins também possa ter se aproveitado do contrabando
de africanos, que vinham sendo inseridos ilegalmente nas terras da Província de São Pedro do
Sul, direcionados para Santa Cristina do Pinhal e que, possivelmente, alguns desses africanos
tenham participado do desembarque na praia de Tramandaí, por volta de 1852.181
Dentre os inventários que foram coletados para análise, o senhor José Martins é um
dos que mais possuía terras. Acreditamos que sua escravaria era utilizada como mão-de-obra
para a produção agrícola, já que não possuía grande quantidade de animais, conforme
mencionado anteriormente. Se a agricultura era sua produção, esperamos que essa se centrasse
na produção de farinha de mandioca para abastecimento da região, ampliando o comércio para
Santo Antônio da Patrulha e supostamente também para a capital Porto Alegre, como cita Dóris
R. Fernandes:

A produção dessas terras servia para abastecer Porto Alegre e Santo Antônio da
Patrulha. Sempre que era necessário, a produção era destinada às tropas militares para
seu reabastecimento. Encontramos entre seus rebanhos criados, além de vacuns,
cavalares e muares, que seriam utilizados pelos militares e tropeiros (FERNANDES,
2008, p. 27). 182

Em outro inventário, de Boaventura José dos Santos, de 1870, foi verificado que esse
senhor possuía 14 escravos e animais, como gado vacum, cavalares e muares em grande
quantidade. Esse senhor diferencia-se de José Martins, pois sua produção está voltada para a
criação de animais, portanto, a mão-de-obra utilizada na lida com os animalejos foi a afro-
brasileira cativa. Em seus bens de raiz, constam alguns campos, casas, galpões e talvez seja por
essa razão que seria mais eficaz a produção animal que a produção agrícola, por possuir uma

181
Ver OLIVEIRA, Vinícius Pereira de. De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino em terras
meridionais. Porto Alegre: EST Edições, 2006.
182
FERNANDES, Dóris Rejane. Povoamento pioneiro das Terras do Mundo Novo. In: SOBRINHO, Paulo
Gilberto Mossmann; BARROSO, Véra Lucia Maciel. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST, 2008.
141

pastagem em abundância. Claro que não podemos descartar a agricultura de subsistência, essa
era comum nas fazendas, colônias e nas residências em sua maioria.
Esse pequeno comparativo apresentado serve para percebermos quão diversificadas
foram as tarefas e relações de trabalho que os africanos e afro-brasileiros enfrentaram na
Fazenda Mundo Novo, isso quer dizer que a presença cativa teve uma importância muito maior
do que se imagina no desenvolvimento regional, aumentando a capacidade de produção e,
consequentemente, o enriquecimento dos senhores escravistas.
Para se chegar a essas suposições a coleta dos 116 inventários no Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (APERS), foi de suma importância. A partir
desses documentos, foi possível formular um cenário preliminar de observações que viabilizou
estabelecer algumas categorias de análises, como: gênero, idade, valor monetário de cada
cativo, relações de trabalho, relações cotidianas diárias e familiares, tanto entre cativos como
entre seus senhores, visando atribuir aos afro-brasileiros sua importância no desenvolvimento
regional e marcando sua presença efetiva na região.

Gráfico 03

116 Inventários de 1856 a 1888

22%
116 Inventários
405 Cativos
78%

Fonte: Inventários post mortem – Arquivo Público, RS- PAERS.

No gráfico 03 encontramos o total dos inventários post mortem que fazem parte da
nossa observação, como fonte primária. Através destes documentos, conseguimos averiguar os
bens de algumas pessoas que viveram na região do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana que
analisamos para dar suporte no desenrolar de nossa proposta de efetivação da presença afro-
brasileira nessa microrregião.
São 116 senhores inventariados que utilizaremos como percentual para representar
22% dos homens brancos, que eram donos de terras e escravos na região. O percentual de que
78% representa a quantidade de cativos que trabalharam para esses senhores, ou seja, aqui já
podemos defender a tese de que a presença e exploração dos africanos e afro-brasileiros na
região já estão legitimadas, mas esses números tiveram um crescente aumento no desenrolar da
142

nossa análise com a utilização de outros documentos de fonte primária que ao longo do texto
vamos exemplificando de acordo com a necessidade metodológica.
Dentro dessa totalidade, averiguamos quantos inventariados possuíam escravos. Dos
116 inventários, que representam 100%, 31 deles não possuíam cativos ou agregados, ou seja,
não aparecem nesses documentos e nem há indícios que já tivessem tido algum escravo, o que
representa 26% dos inventários. Sobram, então, 85 inventários possuidores de 405 cativos,
representando 74% dos 100% dos inventários. Comparamos então com o recenseamento do
Império Brasileiro de 1872,183 em Santa Cristina do Pinhal, que possuía uma população de
6.014 habitantes, nos leva a crer na importância da presença dos afro-brasileiros nessas terras,
em comparação com a população local.
Para a população de 6.014 habitantes, se pegarmos os 85 senhores, que constam nos
inventários, temos 1% desses habitantes e, levando em conta os 405 escravizados, chegamos a
6% do total de habitantes que viviam em Santa Cristina do Pinhal, mas já sabemos que esse
percentual era maior do que constam nos inventários e, mais adiante, utilizamos os livros de
batismo, mostrando que gradualmente esses números apresentados até aqui aumentaram.
Com essa linha de pensamento verificamos que a presença cativa na região foi muito
significativa pela sua necessidade, uma vez que a economia descrita nos inventários, em relação
à ocupação territorial, demonstra uma grande criação de animais como gado vacum, muares e
cavalares; portanto, a lida no campo consiste em ter um cuidado com esses animais,
necessitando de uma quantidade de mão-de-obra para manuseio.
Assim, foi possível constatar a representatividade e a presença afro-brasileira presentes
nos inventários. Na análise das fontes coletadas, foi possível perceber que as senzalas estavam
distribuídas em pequenas escravarias que, em média, possuíam até cinco escravos, distribuídos
entre poucos senhores.
O número de 405 cativos, distribuídos entre homens, mulheres e crianças, exemplifica
a dimensão da utilização da mão-de-obra afro-brasileira em cativeiro na região. Os cativos
estavam fadados a um sistema de exclusão social e humana, assim os diversos senhores
escravistas promoveram e ampliaram os procedimentos de expansão e ocupação territorial,
além de efetivarem o empreendimento de desenvolvimento e exploração econômica do império
no sul do Brasil.
É importante ressaltar que a maioria dos senhores que aparecem nos inventários são
portugueses ou descendentes deles, mas isso não exclui que colonos alemães não tivessem seus

183
CENSO DE 1872 liv25477_v11_rs. Recenciamento Demográfico Imperial. Disponível em
http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo. Acesso 28/09/2017.
143

cativos na região. Esse contingente de sujeitos forçados ao trabalho escravo nos põe à luz do
conhecimento que, mesmo numa relação subalterna, mantiveram sua representatividade, por
meio de seus costumes, seus contos, suas histórias, suas lendas, seus vícios, seus utensílios
usados no dia a dia e sua cultura, numa estrutura adversa, pré-estabelecida, que podemos
classificar como seu cotidiano.
Incluso nesse contexto, Agnes Heller (1989) trabalha com o conceito de cotidiano no
decorrer da história. A autora relata que, dentro de uma realidade social, existem outras
realidades que complementam uma totalidade de elementos que se constituem em valores e
representações, cuja finalidade é oferecer sentido à vida de cada sujeito. Assim, o cotidiano se
subdivide em esferas de cotidianidade para produzir o simbólico.
Segundo a autora:

O decurso da história é o processo de construção dos valores, ou da degenerescência


e o caso deste ou daquele valor. Assim, por exemplo, o nascimento das esferas
‘produção’ ou ‘moral’ é o aparecimento de um valor; mas o nascimento de uma
determinada produção ou de uma determinada moral já implica no movimento
ondulatório de construção e desintegração. (HELLER, 1989, p. 04). 184

Dentro desse “cotidiano” criado pelos sujeitos escravizados, existem situações que
geram outros costumes e tradições que permanecem restritos a pequenos grupos que fazem
parte do cotidiano social, criando atitudes e costumes paralelos de representações que, em um
primeiro momento, não interferem diretamente no cotidiano social dominante, mas se fazem
presentes em sua totalidade sociocultural no decorrer do tempo.
Nas análises dos inventários post-mortem, foi possível verificar também que a
estrutura das escravarias, que predominaram na Fazenda Mundo Novo, logo se apresenta em
pequenos e médios plantéis, diferentemente do que acontecia na região sul do Estado do Rio
Grande do Sul, onde se concentravam grande número de cativos nas charqueadas,
caracterizando grandes escravarias.
Dessa maneira, as relações entre cativos e senhores, na Fazenda Mundo Novo, nos
leva a crer que tenham sido mais amenas em relação ao sul do Estado, por conta das relações
de proximidade entre os sujeitos que transitaram nessa região, desenvolvendo os laços de
solidariedade e afetividade, que formaram às “esferas cotidianas” dentro da sociedade local,
porém, não esquecendo que a base do sistema escravista está centrada na exploração do

184
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
144

indivíduo escravizado, assim outros mecanismos de exploração foram implementados e


alienaram esses cativos a seus senhores.
Tais relações cotidianas podem ser melhores visualizadas, possivelmente, nas
pequenas escravarias, visto que, as relações próximas eram mais constantes, tanto entre os
cativos como entre os senhores, seus familiares e seus subordinados, mas eram vistos como
escravos. É nesse contexto que buscamos visualizar o movimento e a presença do afro-brasileiro
na região, não somente como um subordinado, mas também com sua produção e resistência nas
fronteiras do cativeiro com a liberdade, onde a exploração foi constante.
Na História local, há um relato sobre determinado fato de afetividade entre a senhora
de Franz Koch185 e seus negros escravos, deixando clara as relações de sociabilidade entre
alguns dos colonizadores teutos e cativos. Relata-se que os cativos tinham um tamanho ódio
por seu senhor, mas o respeitavam por conta de sua violência e castigos praticados, esse senhor
era muito agressivo com seus subordinados no cativeiro, já dona Catharina mantinha relações
de proximidade e era mais afetuosa com os cativos, como relata Erni Engelmann:

Sua esposa, ao contrário, era benquista e amada pelos negros que tratavam,
carinhosamente, por ‘Mutter’ (mãe), já que todos os negros, escravos da família Koch,
falavam somente alemão. Essa amabilidade de dona Catharina provavelmente levou-
a à morte, pois conta que, certo dia, ao retornar para casa de uma viagem a São
Leopoldo, Franz flagrou-a fritando peixes para os negros, pois estes sabiam pescá-los,
mas não sabiam prepará-los como só ela sabia fazer. Tomado de uma fúria louca ao
ver sua esposa cozinhando para simples escravos negros, bateu nela com o boçal de
seu cavalo, que estava desencilhado, causando-lhe graves ferimentos internos no
ventre, o que a levou à morte, após muito sofrimento, quatro dias depois, em 20 de
julho de 1875 (ENGELMANN, 2005, p. 607). 186

As relações de sociabilidade entre colonizadores lusos e teutos com africanos e afro-


brasileiros foram uma constante tensão entre ambos. Como vimos acima, as relações de
proximidade entre senhores e familiares com seus cativos tiveram enlaces que no próprio relato
pode-se verificar os desígnios existentes. A boa relação com dona Catharina favoreceu aos
cativos o pedido de ajuda no preparo do alimento, isso “não afetava” a relação entre senhora e
cativo, mas para seu senhor Franz Koch sim, era um ultraje sua esposa cozinhar para negros
escravos.

185
No terceiro capítulo será melhor explicado sobre Franz Koch, por aparecer, em um livro de batismo da igreja
evangélica, os seus escravos batizados, assim a citação apresentada tem validade no livro encontrado, legitimando
a bibliografia local.
186
ENGELMANN, Erni G. A Sagra dos Alemães: do Hunsrück para Santa Maria do Mundo Novo. V. II. Igrejinha:
Editora Comunicação Impressa, 2005.
145

Essa violência à humanidade dos cativos e não aceitar essas relações próximas é o que
realça as fronteiras do escravismo. As questões de exploração, além da violência aplicada
demonstram como foi mantida a população escrava sob controle e até, nos dias atuais, seus
descendentes afro-brasileiros ainda sofrem as mesmas violências e privações, guardado as
devidas proporções. A fronteira construída com o escravismo está balizada e fortificada nessas
relações de desumanidade e exploração com a violência de inferioridade e invisibilidade sobre
esses indivíduos homens, mulheres e crianças negras.
Para ampliar esse entendimento e interpretação sobre possíveis relações de
sociabilidade, apresentamos a tabela 22, a fim de visualizar como se constituíram as escravarias
na Fazenda Mundo Novo. Dividimos as escravarias por quantidades de cativos, assim num total
de 85 inventários que possuíam escravos, abordamos a partir das quantidades de cativos que
cada inventário continha, ficando então do seguinte modo: os inventários que possuíam entre
11 a 22 cativos representam um total de 08 senhores, que somados chegam ao percentual de
10% sobre o total encontrado, o que deixa claro que o poder local estava centralizado nas mãos
desses senhores.
Outro contingente de cativos equivale a 18 inventariados, que analisados, nos
apresentam as escravarias compostas entre 06 a 09 cativos, representando 21% do total dos
inventários com escravos. Podemos perceber que esses senhores faziam parte de outra esfera
da sociedade, suas propriedades não eram de grande porte, mas mantinham uma produção tanto
de bens de consumo como de animais, e com excedente para comercialização.
O outro contingente do inventariado mostra 59 senhores, que possuíam entre 01 a 05
escravos, representando 69% do total dos inventários com escravos. Esses senhores eram uma
parcela da população menos favorecida economicamente dentro da sociedade que se constituía.
Dos 116 inventários que foram analisados, 31 não possuíam escravos e representavam 26% do
total de inventários, assim a população cativa, encontrada por meio dos inventários, fica restrita
nos 85 inventariados e se apresenta com 74% dos documentos, onde aparecem os cativos sobre
o total de 116 inventários, citados anteriormente.

Tabela 22 – Vale do Rio dos Sinos – Paranhana 1856-1888


Escravarias Escravos %
8 De 11 a 22 10
18 De 6 a 9 21
59 De 1 a 5 69
85 inventários
Fonte: Inventários post mortem de 1856 a 1888 – APERS
146

É fácil perceber o poder econômico da região e como este se distribuía entre os


senhores da Fazenda Mundo Novo, tendo nas menores propriedades a porcentagem maior dos
cativos, legitimando o cativeiro com características dos pequenos produtores e validando a
potencialidade econômica da região.
A distribuição, entre os senhores, dos 405 cativos africanos e afro-brasileiros
encontrados, tendo sua potencialidade caracterizada entre médias e pequenas escravarias, nos
remete a pensar sobre as relações próximas que possivelmente se entrelaçaram. Nos pequenos
e médios plantéis, as relações de proximidade se apresentam com maior frequência pela
presença do senhor junto na lida diária em muitos casos.187 Já nas grandes concentrações de
cativos nas fazendas, essa relação é interrompida pelos capatazes que fortificaram a fronteira
entre o senhor e o cativo.
Analisando as possibilidades nesse contexto cotidiano de relações próximas,
verificamos que o organismo familiar se caracteriza com mais evidência, já que em pequenos
plantéis, as relações de afetividade tornaram-se mais comuns pela proximidade dos sujeitos,
constituindo-se dentro de uma esfera cotidiana de costumes que visava manter a tradição
cultural herdada de seus antepassados, tanto dos colonizadores como dos afro-brasileiros, que
poderiam ser vistas como forma de resistência ao sistema imposto, no caso o escravismo.
Dentro dessa conformidade, percebemos as questões cotidianas como uma complexa
atividade de relações sociais e políticas que se estabeleceram em detrimento das situações em
que os sujeitos são inseridos e se constituem. Os cativos somente se unem em matrimônio com
a permissão do seu senhor, com essa ação aumentam as possibilidades de resistência,
consequentemente, as chances de liberdade, já que muitos passaram a cultivar e preservar sua
cultura no seio social familiar, na senzala.
Para o senhor, as vantagens do matrimônio aparecem com a ‘paz nas senzalas’, visto
que tal prática ameniza os anseios e caracteriza uma inserção social controlada, ampliando
também seus plantéis com crianças, frutos dessas relações afetivas entre cativos.
Michel de Certeau avalia que:

De um lado, a análise mostra que a relação (sempre social) determina seus termos, e
não o inverso, e que cada individualidade é o lugar onde atua uma pluralidade
incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais. De outro
lado, e, sobretudo, a questão tratada se refere a modos de operação ou esquemas de
ação e não diretamente ao sujeito que é o seu autor ou seu veículo (CERTEAU, 1998,
p. 37).188

187
MAESTRI, Mário. Uma Breve História do Rio Grande do Sul: da pré-história aos dias atuais. Passo Fundo:
Editora UPF, 2006.
188
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
147

Assim, as relações de sociabilidade, que determinaram os termos estabelecidos entre


as partes, se procederam. As incoerências serão deixadas de lado, viabilizando possibilidades
de se encarar um escravismo ‘diferente’, como exemplo disso, a família cativa fora da senzala,
com “privilégios” de manutenção – mesmo sendo fantasiosa para o cativeiro – de seus meios
de sobrevivência e uma suposta liberdade de ações. Também Michel de Certeau alerta para o
sistema que se amplia na dominação, ou seja, nos “modos de operação” que julgam serem
viáveis para manterem o capital (o cativo) em atividade, pelo maior tempo possível, sem tensões
dentro dos plantéis.
As abordagens e variações das análises dos inventários nos mostram uma quantidade
de homens e mulheres, africanos e afro-brasileiros, que presenciaram e participaram do
desenvolvimento da região da Fazenda Mundo Novo, viabilizando a construção da família
escrava e seu desenvolvimento como um dos fatores da sua forte presença como demostramos
na tabela 23.

Tabela 23 – Afro-brasileiros – Sexo – 1856 – 1888.


Gênero Quantidade %
Homens 206 51
Mulheres 197 49
Sem Identificação 2 0
Total 405
Fonte: Inventários post mortem de 1856 a 1888 – APERS.

O contingente populacional cativo nessa região, a partir dos inventários, se constituiu


em 405 pessoas em cativeiro, distribuídas da seguinte maneira: 38% são de pessoas adultas,
17% são de pessoas jovens e mais 17% são crianças, restando 28% de pessoas sem uma
descrição sobre sua condição, assim, somando a população adulta e jovem, chegamos a 55% de
cativos em processo de produção de algum bem de consumo por parte de seus senhores.
Podemos dizer que, é a partir desses percentuais que se estabeleciam as relações intersociais
entre seus senhores e alguns libertos, além de estarem em seu tempo hábil de produção, também
estão distribuídos entre os jovens que trabalharam junto de seus pais, ou que foram comprados
de outros lugares para fazerem parte das escravarias, mas, talvez, a manutenção das pequenas
escravarias ficasse a cargo das crianças, que faziam parte do processo de manutenção dos
cativeiros.
Dentro dos 55%, encontramos uma faixa etária crítica da vida produtiva dos que estão
em cativeiro, mais ou menos 10% já são considerados envelhecidos para o trabalho, não mais
produziam para o senhor o valor investido, além de muitos casos, encontrarem-se cativos
148

violentados por castigos e à mercê da própria sorte, vivendo somente com a esperança de um
dia serem livres, esses são os idosos do escravismo.
Então, inferimos que um cativo possuia 60% de vida útil, da fase jovem para a adulta,
produzindo para seu senhor e sendo explorado. Isso acarretou dissabores que foram utilizados
na tentativa de amenizar sua situação dentro do sistema, o que justifica a utilização do emprego
do termo “maturação”, acreditando-se que nesse processo de amadurecimento forçado é que o
cativo começa a perceber que é possível tentar uma resistência. Assim, os elementos que
constituíram a famíla em cativeiro somente vão dar sentido quando adquirir percepção e
experiência.
Como podemos entender, a partir da tabela 23, as porcentagens quase se equiparam
em relações ao gênero entre afro-brasileiros e africanos cativos viabiliza, com isso, a formação
da família escrava que se aproxima da ideia de formação social, visto que eram viáveis as
relações afetivas entre o cativo e seus senhores pela proximidade entre ambos, já que
predominavam as pequenas escravarias, que, em muitos casos, eram compostas por casais e
filhos.
Assim, verificamos que as relações afetivas matrimoniais, que se estabeleceram entre
cativos, geraram frutos que estão relacionados nos inventários post-mortem analisados. Esses
frutos representam uma parcela do contingente aprisionado e escravizado, visto como
manutenção do sistema pelos senhores.
A análise se deparou com um contingente de crianças, que, pela metodologia aplicada
nessa apreciação, foi situado a idade de 0 a 10 anos para as crianças e de 11 a 20 anos de idade
para os jovens. Também buscamos estabelecer um limite de idade para classificar os cativos
em situação de produtividade, já que essa era a fase em que se iniciava a vida produtiva de um
escravo, utilizado como mão-de-obra em diversas frentes de trabalho para o senhor, assim as
fontes nos permitem conhecer o potencial econômico desses senhores escravistas inventariados,
que estão registrados nesses documentos post mortem.
Para elucidar um pouco melhor, fizemos um levantamento dessas crianças, percebendo
a quantidade e complexidade do escravismo na região da Fazenda Mundo Novo. Visualizamos
um percentual elevado para esse trabalho, visto que sobre os 116 inventários, somente 34
documentos possuíam crianças, assim construímos uma tabela onde se buscou verificar, através
das idades desses cativos infantis, uma referência entre gênero.
149

Tabela 24 – Crianças Masculinas e Femininas de 0 a 10 Anos


Idade Feminino Masculino Total
02 a 06 meses 01 03 04
01 ano 02 04 06
02 anos 01 03 04
03 anos 02 05 07
04 anos 02 03 05
05 anos 04 01 05
06 anos 02 06 08
07 anos 08 02 10
08 anos 02 04 06
09 anos 05 04 09
10 anos 03 03 06
Total Geral 32 38 70
Fonte: Inventários post mortem, 1856 – 1888 – APERS.

Com a tabela 24 alcançamos um montante de crianças cativas, entre elas, 32 são do


sexo feminino e representam 46%, enquanto as outras 38 crianças eram do sexo masculino,
representados por 54% do total das 70 crianças encontradas em 34 inventários. A pouca
diferença, em comparação ao gênero, concretiza que o sexo feminino tinha um valor menor de
mercado em comparação aos do sexo masculino, mesmo que não apresentando um número
superior em seu contingente, o sexo masculino mantinha seus preços mais altos que as do sexo
feminino.189
A presença africana e afro-brasileira na Fazenda Mundo Novo vai se fortificando e nos
deixando perceber a importância desse montante de trabalhadores que estiveram nessas terras.
O seu trabalho foi importante para o desenvolvimento regional, ampliando as relações
econômicas e convivendo com uma realidade social não agradável para sua permanência.
Nesse contexto, ampliamos esse entendimento no qual foi possível perceber que os
percentuais que foram apresentados – 54% de crianças masculinas e 46% de crianças femininas
–, ficaram prevalecendo um percentual maior para o sexo masculino, tendo pouca diferença
entre o gênero, podemos visualizar mais para o futuro e ousar a dizer que esses números
viabilizavam o matrimônio entre cativos, já que essa possibilidade é visível quando comparados
os sexos sobre os 34 inventários pertencentes aos 116 inventários.
Para aprimorar o entendimento e considerar melhor nossa proposta, foi criada uma
tabela, verificando as quantidades de sexo feminino e masculino na faixa etária entre 11 a 20
anos de idade, com isso se chegou a um entendimento da importância e manutenção do
escravismo na região, visto que as proporções são amplas para a quantidade de fontes

189
Utilizaremos para essa amostra o termo criança de 0 a 10 anos, sabemos que para efeito mais contundente em
outras obras o mesmo termo vai de 0 a 7 anos.
150

analisadas, desta maneira podemos quantificar a tabela 25 para avaliar a importância da mulher
negra nesse contexto.

Tabela 25 - Jovens Masculinos e Femininos de 11 a 20 anos


Idade Masculino Feminino Total
11 anos 2 4 6
12 anos 7 7 14
13 anos 1 9 10
14 anos 4 3 7
15 anos 3 2 5
16 anos 3 3 5
18 anos 3 1 4
19 anos 4 2 6
20 anos 3 7 10
Total 30 38 67
Fonte: Inventários post mortem, 1856 – 1888 – APERS.

A tabela 25 mostra as idades por sexo atribuído a cada indivíduo. Entre os jovens de
11 a 20 anos, pode-se observar um aumento de 10% em comparação com a tabela 24, já que o
sexo feminino prevaleceu com um percentual de 56% contra 44% do sexo masculino nessa
faixa etária dos cativos, os números femininos superam os masculinos, podemos notar um
equilíbrio de natalidade. Quando comparamos as duas tabelas (24 e 25), chegamos à quantia de
70 mulheres para 68 homens, chegando ao percentual de 51% para as mulheres e 49% para os
homens, assim tendo uma diferença entre sexos de apenas 1%.
Esses percentuais nos possibilitaram fundamentar a importância das mulheres negras
afro-brasileiras no escravismo, na fazenda Mundo Novo, que, na faixa etária de 0 a 20 anos de
idade, que equivalem às futuras mantenedoras das famílias cativas que vão se formar ao longo
do escravismo na região, nesse período de análise, nos oferecendo ênfase para valorizar a
importância do afro-brasileiro no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, no Estado do Rio Grande
do Sul.
A partir desses dados, podemos considerar que as relações econômicas, na região de
Taquara, estavam em franco desenvolvimento no século XIX. A economia gerada propiciava
um aumento do cativeiro, também estabelecia as relações sociais entre senhores e cativos, já
que, em muitos casos, as alforrias foram doadas pelos senhores ou pagas pelos próprios
indivíduos escravizados.
Podemos perceber que as relações políticas e de sociabilidade desmembraram um
cotidiano familiar, representado na ‘possibilidade de trabalho’ e no desenvolvimento de uma
‘possível’ renda desses afro-brasileiros, a partir da formação familiar dentro do sistema de
151

cativeiro. A viabilidade da formação da família cativa trouxe um relacionamento mais próximo


entre os agentes do sistema, formando laços de solidariedades que remetem ao passado de seus
ancestrais, visto que com a hibridização das culturas africanas não é possível uma cobrança de
manutenção contínua dessa cultura, mas com a formação da família em cativeiro será possível
preservar a memória coletiva em prol da manutenção da memória individual, que deverá ser
preservada e repassada oralmente para as gerações futuras.
Aleida Assmann (2011) utiliza o conceito da reconstrução da memória a partir das
relações presentes e de suas experiências de um processo de transformações e ressignificações.
“A recordação procede basicamente de forma reconstrutiva: sempre começa do presente e
avança inevitavelmente para um deslocamento, uma deformação, uma distorção, uma
revalorização e uma renovação do que foi lembrado até o momento da sua recuperação”
(ASSMANN, 2011, p. 33-34).190
A utilização da palavra como poder de transformar e alterar as leis, modificando as
relações sociais de modo que a força do poder perca o seu significado e se transforme em
elemento de reconhecimento, nos remete ao processo de assimilação e recordação do
sofrimento passado nas senzalas, através da memória traumática, a partir das relações e das
medidas coercitivas que foram empregadas no cotidiano escravista, acarretou no fato de que
gerações futuras fossem pré-determinadas a serem colocadas à margem da sociedade.
Com isso a utilização de um discurso como a memória oral fez-se presente, uma vez
que a instituição (escravismo) oportunizou a manifestação discursiva, como a formação
familiar, legitimando a resistência aos aspectos sociais adversos à realidade do indivíduo em
cativeiro. Assim, o discurso vai-se moldando em outra realidade, o cotidiano, que se situa no
interior das estruturas internas, que compõem a sociedade em sua totalidade.
Eni Orlandi (2008) centra sua análise sobre o discurso com base na linguagem, que é
estabelecida entre o sujeito construtivo e representativo dessa elocução. “[...] a análise de
discurso mostra que o sujeito e a significação não são transparentes e apontam para uma relação
problemática das ciências sociais com o político, na medida em que estas supõem essa
transparência da linguagem” (ORLANDI, 2008, p. 32).191
A partir dessa perspectiva, verificam-se as possibilidades de preservação da memória
coletiva por meio da família e da linguagem. Pode-se dizer que, dentro do cotidiano social

190
ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas:
Editora da Unicamp, 2011.
191
ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra á Vista – Discurso do confronto: velho e novo mundo. 2ª ed. Campinas:
Editora da Unicamp, 2008.
152

estabelecido pelo escravismo, houve outro cotidiano, a do afro-brasileiro cativo, acentuando-


se, assim, a esfera de cotidianidade pertencente à grande esfera social branca dos senhores.192
Em outra análise dos documentos de inventários, foi possível visualizar os cativos em
condições adultas, entre as idades de 21 e 74 anos de vida. Também mostra que a vida útil de
um escravizado está relacionada à sua condição e ao tipo de trabalho em que foi inserido. Nas
charqueadas, por exemplo, as relações de trabalho eram inóspitas para os negros escravizados.
Em média os escravos morriam cedo, pela alta intensidade do trabalho. Estes sujeitos
trabalhavam exaustivamente. Já no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana verificamos que as
relações de trabalho também eram intensas, mas o contexto de produção era outro, por isso,
talvez, uma maior longevidade.
As fontes deixam claro as funções dos cativos nessa região. A maioria deles trabalhava
na roça e uma parcela menor atuava no comércio da cidade. Assim, a vida útil de um cativo no
Vale do Rio dos Sinos – Paranhana era longa em comparação com outras regiões do Brasil, ou
dentro do próprio Rio Grande do Sul, onde as condições de vida adversas eram mais intensas e
os castigos mais comuns. A tabela 26 nos dá um panorama de homens e mulheres que estiveram
em cativeiro nessa região.

Tabela 26 – Adultos Masculinos e Femininos de 22 a 74 anos – 1856 a 1888.


Idade Masculino Feminino Total Idade Masculino Feminino Total
22 anos 5 3 8 41 anos 0 1 1
23 anos 2 2 4 42 anos 1 1 2
24 anos 4 5 9 43 anos 1 0 1
25 anos 5 1 6 44 anos 1 2 3
26 anos 3 3 6 45 anos 1 0 1
27 anos 1 2 3 46 anos 3 3 6
28 anos 3 1 4 47 anos 3 0 3
29 anos 1 1 2 48 anos 1 0 1
30 anos 8 15 23 49 anos 1 1 2
31 anos 1 1 2 50 anos 5 5 10
32 anos 2 3 5 51 anos 0 1 1
33 anos 2 0 2 52 anos 0 1 1
34 anos 0 4 4 56 anos 1 0 1
35 anos 3 1 4 60 anos 8 2 10
36 anos 3 0 3 65 anos 1 0 1
37 anos 0 1 1 69 anos 1 0 1
38 anos 4 3 7 70 anos 0 1 1
40 anos 7 6 13 74 anos 1 0 1
Total 54 52 106 Total 29 18 47
Fonte: Inventários post mortem de 1856 a 1888 – APERS.

192
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
153

Essa porção de cativos adultos entre 22 a 74 anos faz parte dos 85 inventários e são
referentes ao sexo masculino e feminino. Essa tabela nos dá um panorama dos escravos adultos
que compuseram as escravarias nessa região. Optamos em descrever esses indivíduos a partir
de suas idades, assim utilizando a terminologia de ‘grupos por idade’ para apresentar melhor a
interpretação da tabela 26.
Pensando como ‘vida produtiva adulta’ desses indivíduos, acreditamos que se
justifique entre os 22 até 40 anos, posteriormente a essas idades, nos leva a crer que as
esperanças pela liberdade começam a entrar em um declínio, talvez por uma possível
‘acomodação’ e duração do tempo em cativeiro, levando o cativo a entender melhor sua
condição; assim, possivelmente, esses sujeitos poderiam resistir de maneiras díspares nas etapas
de idades diferentes, ou seja, uma maturidade e assimilação de sua real condição em cativeiro,
mas não um conformismo.
Na primeira parte da tabela 26 encontramos 106 cativos de ambos os sexos, com idade
de 22 a 40 anos. Podemos perceber grupos de diferentes idades, mas somente com uma
diferença de 2% entre os sexos. Entendemos que ao longo do cativeiro, em cada faixa etária, o
cotidiano de homens e mulheres tiveram momentos que determinaram sua indignação sobre sua
condição, com isso os indivíduos se movimentaram para resistirem através da prática da fuga,
suicídio ou com a formação da família cativa. Também podemos elencar a tentativa de manter
um ‘bom relacionamento’ com seus senhores para não sofrerem as punições do escravismo no
pelourinho. Entendemos essas ações como estratégias de resistência ao cativeiro.
Os cativos, em média com 30 anos, somam 23 indivíduos. Esse grupo, por idade, é o
de maior número na tabela 26, seguido com os que possuíam a idade de 40 anos, que somados
chega a 13 indivíduos. Posteriormente, temos os indivíduos com 50 e 60 anos, que chegam a
10 sujeitos para cada idade. Na grande maioria esses sujeitos se encontram entre as pequenas
escravarias, favorecendo o percentual de união estável, já que em quase todos os inventariados
aparecem um casal e uma criança, configurando assim a possibilidade da formação da família
cativa.

3.2 COMÉRCIO DE ESCRAVOS: COTIDIANO LEGALIZADO E CLANDESTINO.

Outros dados interessantes se referem às questões de classificação de cor e etnias.


Essas não fugiram à regra do sistema, denominando a sua procedência e seu estado dentro do
Vale do Rio dos Sinos – Paranhana; também foi verificado e relacionado o comércio ativo de
154

africanos e afro-brasileiros na região. O tráfico negreiro também teve ativa parcela, exercendo
influência para fornecer mão-de-obra cativa aos senhores da Fazenda Mundo Novo. Logo, a
tabela 27 corrobora para percebermos a etnia e a ‘cor’, realçando esse movimento migratório
forçado.

Tabela 27 – Classificação por Cor – 1856 – 1888


Definição Quantidade %
Negro 1 0,2
Mulatos 31 8
Criolos 29 8
Pretos 123 30
Pardos 76 18
África/Nação 23 6
Cabra 5 1
Fula 1 0,2
Sem cor 116 29
Total 405
Fonte: Inventários post mortem de 1856 a 1888 – APERS.

Buscamos conferir as classificações sociais através da cor da pele que predominou no


Vale do Rio dos Sinos – Paranhana. A partir dos 405 cativos que constam nos inventários,
podemos perceber as classificações por definições específicas como consta nos documentos.
Assim chegamos a uma análise quantitativa: o termo ‘negro’ apresentou um percentual de 0,2%
em comparação ao total encontrado, para o termo ‘mulatos’, encontramos um percentual de 8%,
já os ‘crioulos’ chegamos a 8% e ‘pretos’ somam-se 30%, para os ‘pardos” temos 18%, ‘África,
africanos e nação’ chegamos a 6%, ‘cabra’ 1%, ‘fula’ 0,2% e os ‘sem cor’ 29%.
Em nossas fontes aparecem escravos com termo África, africano e nação, mas não
foram encontrados possíveis registros vindos direto da África para o Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana. Entendemos que essas pessoas possam ter sido compradas de outras regiões, como
São Francisco de Cima da Serra (atual São Francisco de Paula), pois existem notícias de um
carregamento de escravos que naufragou na costa do litoral norte em 1852, próximo a
Tramandaí, que pertencia à Conceição do Arroio (Osório) e que uma parcela dessa carga foi
vendida a senhores de São Francisco (OLIVEIRA, 2006).193
Desconfiamos que, possivelmente, desse carregamento de escravos, possam também
fazer parte alguns senhores compradores do Vale do Rio dos Sinos - Paranhana, visto que para

193
OLIVEIRA, Vinicius Pereira de. De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino em terras
meridionais. Porto Alegre: Edições EST, 2006.
155

chegar a São Francisco de Paula, uma das rotas traçadas era a passagem obrigatória pela
Fazenda Mundo Novo, com isso as relações comerciais eram frequentes entre os serranos e os
taquarenses (WEIMER, 2008).194
Vinicius P. de Oliveira afirma que:

Diferentemente do tráfico para o Rio Grande do Sul verificado para o período anterior
à 1850 que, ao que parece, tinha o porto do Rio de Janeiro [...] como intermediário,
os indícios levam a crer que o navio que naufragou na instável costa sulina em 1852
vinha da costa africana. Nos depoimentos prestados à Justiça em princípio da década
de 1860, Manoel Congo [...] afirmou ter vindo para o Brasil da Costa da África em
um navio que encalhara em Tramandaí há onze anos. Disse, ainda, ter sido
desembarcado junto com muitos outros africanos (OLIVEIRA, 2006, p.34). 195

A região colonizada por portugueses e, posteriormente, pelos colonos alemães nos dão
a certeza de que esses imigrantes também utilizaram e participaram ativamente do comércio
escravista na região196. A economia estava baseada na produção agrícola e pastoril e, pelo
volume econômico que aparecem nos inventários, entendemos que não foram somente os
colonos que trabalharam na terra, mas em sua maioria, e não somente em casos específicos, o
agregado afro-brasileiro fez parte do cotidiano do colono teuto (alemão) também, em uma
escala muito mais ampla que se imagina.
Na busca de documentos que legitimem a exploração do negro pelo alemão, vamos
utilizar uma passagem da obra de Erni Hengelmann (2005) como referência para analisarmos a
afirmação de que um colono alemão, chamado Friedrich Wilke, comprou quatro colônias de
terra coberta por uma densa floresta virgem, rica em madeira nobre. Com isso construiu uma
serraria e comprou dois cativos, ensinou o trabalho e viajou para a Europa deixando seus dois
serviçais cuidando de seus bens. Isso remete à possibilidade da utilização, com frequência, do
negro pelo alemão. “Pôs os dois escravos como auxiliares na serraria, ensinando-lhes todos os
segredos do ofício, tratando-os como verdadeiros aprendizes e homens livres. Era conhecido
como o único patrão onde os escravos faziam as refeições em sua mesa e dormiam dentro de
sua casa” (ENGELMANN, 2005, p. 613). 197

194
WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os Nomes da liberdade. Ex-escravos na serra gaúcha no pós-abolição. São
Leopoldo: Oikos, 2008.
195
São Francisco de Cima da Serra pertenceu a Taquara do Mundo Novo, assim nossa tese se legitima. OLIVEIRA,
Vinicius Pereira de. De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino em terras meridionais. Porto
Alegre: Edições EST, 2006.
196
Franz Koch Livro de Batismo de 1859. Esse senhor alemão era dono de 5 escravos.
197
ENGELMANN, Erni G. A Sagra dos Alemães: do Hunsrück para Santa Maria do Mundo Novo. V. II. Igrejinha:
Comunicação Impressa, 2005.
156

Esse pequeno relato romanceado, mas útil para formarmos uma imagem das relações
próximas, viabiliza que as relações afetivas e sociais se formaram entre senhores e cativos, mas
também consta o caso de maus tratos pelos senhores colonos alemães, como Franz Koch já
citado. Os relatos são diversos, sobre o colono teuto utilizar mão-de-obra cativa, Paulo Moreira
e Miquéias Mugge (2014), com o trabalho sobre a escravidão em São Leopoldo, nos
presenteiam com vários relatos sobre esse tema. “Os imigrantes europeus – no caso
especificamente os alemães – que se deslocavam para o Brasil no século XIX, conheceram
intimamente a escravidão negra. Muitos deles, inclusive, possuíam cativos, e os alugaram, os
açorianos, os venderam, os alforriaram” (MOREIRA E MUGGI, 2014, p. 16).198
Ao verificar a presença cativa no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, consideramos as
possibilidades de um comércio muito ativo dentro dessa realidade colonial, tendo o colono
alemão sua participação comercial escravista, que representa a presença afro-brasileiro na
região. Classificando esses indivíduos por gênero, nesse caso, nossa tentativa é perceber
quantos africanos estiveram na Fazenda Mundo Novo, mas as fontes somente nos mostraram
23 indivíduos africanos, que somados representam 6% de estrangeiros africanos na região
descritos pelas fontes (inventários). Na tabela 28, tentamos elucidar as questões de cor e gênero.

Tabela 28 – Classificação por Cor e Sexo – 1856-1888


Denominação Masculino % Feminino % S/clas.
Negro 1 0,2 0 0
Mulatos 16 4 15 4
Crioulos 15 4 14 4
Pretos 58 14 65 16
Pardos 42 10 34 8
África/Nação 18 4 5 1
Cabra 2 0,5 3 0,7
Fula 1 0,2 0 0
Sem Classificação 116
Total 153 136 116 = 405
Fonte: Inventários post mortem de 1856 a 1888 – APERS.

Dividimos entre masculino e feminino com mesmas características de classificação


para verificarmos como se comportava a presença afro-brasileira no Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana, assim podemos perceber que entre o grupo de ‘negros’ somente um indivíduo
masculino foi coletado que representa quase 0%, e nenhum feminino. Já para o grupo dos

198
MOREIRA, Paulo R, MUGGE, Miquéias H. Histórias de Escravos e Senhores Em Uma Região de Imigração
Europeia. São Leopoldo: Oikos, 2014.
157

‘mulatos’ e ‘crioulos’, indivíduos masculinos representam 4% e femininos 4%. Nesses grupos


não tivemos uma disparidade quanto ao sexo.
Para o grupo dos ‘pretos’, os masculinos representam 14% e femininos 16%, a
diferença está em 2% a mais para o sexo feminino. Para os ‘pardos’, os masculinos ficaram em
torno de 10% e femininos 8%, assim invertendo a diferença de 2% para os masculinos. O grupo
de ‘africanos/nação’ entre sexo somam 23 indivíduos, assim o sexo masculino teve 18
indivíduos, com 78% contra 5 femininos, com 22% do sexo feminino no grupo, ou seja,
predominou mais africanos do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.
O grupo ‘cabras’, somam 5 indivíduos sendo 2 masculinos que representam 40% entre
sexo, e 3 femininos que mostra 60% no grupo. Para o grupo ‘fula’ somente um indivíduo
masculino foi encontrado e representa 0,2% do montante. Mas a grande quantidade sem alguma
denominação de classificação soma 116 indivíduos de ambos os sexos, para esses não
colocamos as porcentagens, mas são 29% do total.199 Como se percebe, as porcentagens quase
se equiparam, fomentando a miscigenação. As fontes apresentam diversos elementos que
demonstram dados para elaborarmos um entendimento da relação cotidiana dos cativos com a
sociedade branca.
Outro dado que chama nossa atenção são os afro-brasileiros libertos. Esses transitavam
por uma fronteira entre a escravidão e a liberdade. Nos 116 inventários que analisamos, foi
possível verificar, em 08 inventários, afro-brasileiros que estavam em condições de libertos,
forro e contratos por tempo determinado em troca da liberdade. Esses elementos tornam-se
fundamentais às pretensões de mudança de paradigma sobre a escravidão, os libertos tinham
uma função muito maior, visto que transitavam em busca de efetivar sua liberdade, ou seja, em
sua maioria estavam do lado de fora da escravidão, mas isso acarretava uma responsabilidade
maior, já que em várias situações buscavam ajudar quem estava em cativeiro, ou seja, eram os
resistentes de fora para dentro da senzala.200

199
Sobre os termos ‘cabra’ e ‘fula’ utilizado como classificação nominal na tabela 28 ver ALMEIDA, Mayara
Aparecida Ribeiro de et al. Um cabra de cor ou um cabra da mãe: dinâmicas de sentido para “cabra” entre os
séculos XVI e XIX. Filol. Linguíst. Port., São Paulo, v. 19, n. 1, p. 143-161, jan./jun. 2017
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v19i1p143-161. ALABRÉN, Gabriel. Liberdades negras nas paragens
do Sul: alforria e inserção social de libertos em Porto Alegre, 1800-1835. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.
200
COSTA, Emília Viotti da. Abolição. 8ª ed. São Paulo: UNESP, 2008.
158

Tabela 29 – Libertos, Forro e Contratos – 1856-1888


Ano Senhor Cativo Condição Ano Senhor Cativo Cond.
Francisco Joaquim
1874 Maria Liberta 1886 Joaquina Forra
de Paula José
Francisca
1874 Margaria Liberta 1887 José Liberto
Bernardina
1874 Maria Liberta Prudencio Liberto
José
1882 Martins Thiago Liberto Albino Liberto
Pires
Laurindo
1883 Florinda Liberta Francisca Liberta
Cardoso
Mariana Liberta Leodada Liberta
Filisberto
1885 Gabriel Contrato Delfina Liberta
Gil
Adão Contrato Raquel Liberta
Inácio Malaquia Ponciano
1886 Contrato 1887 Antonia Liberta
Martins s Machado
Miguel Contrato
Celestino Contrato
Faustina Contrato
Justina Contrato
Fonte: Inventários post mortem de 1856 a 1888 – APERS.

De um contingente de 405 cativos, 22 eram classificados de acordo com a sua condição


social (libertos e contratos) e representam 5% do total. Dentro desse dado apresentado, se
subdividem em 3% os que são libertos e o restante, 2%, denominados como contratados –
normalmente esse contrato era por tempo determinado quando negociada a carta de alforria –,
que também já podem ser considerados ‘livres’, pois apresentam um contrato de trabalho
estabelecido com o senhor. Somente a escrava Joaquina aparece como forra na tabela 29.
Os contratados podem ser entendidos como libertos condicionalmente,
compreendendo uma prática utilizada pelos senhores para continuar ainda explorando seus
cativos, de modo que, em muitos casos, mesmo pagando pela liberdade, somente depois da
morte do senhor é que o cativo ganhava a total liberdade. Se constituíram em pequenas
escravarias, onde a média era de 1 a 5 cativos por senhor. As relações de sobrevivência dentro
do sistema escravista começavam a ser traçadas, pois notamos que esse era o processo de
‘maturação’ do indivíduo afro-brasileiro dentro das senzalas.
159

3.3 CONTEXTO SOCIAL: FAMÍLIA, ASSIMILAÇÃO E COSTUMES.

A vida cotidiana está relacionada aos costumes, ao modo de vida e aos ritos. Com isso,
o homem se preocupa em manter o que aprendeu e assimilar o que vai se apresentando como
diferente, dominando e se apropriando do novo. Dessa forma, a estrutura que compõe a
sociedade torna-se muito ampla para definir o cotidiano como algo rígido.
Pelo contrário, é muito mais flexível do que se imagina, por isso a nossa tentativa de
formular um conceito sobre a vida passada, sobre como ela foi vivida e como se estabeleceram
as relações entre os sujeitos e suas tramas, torna-se um tanto difícil, por motivos das hipóteses
que compreendem cada movimento social e sua edificação.
Conforme Del Priori:

A evidência mesma de uma “vida cotidiana” se constitui um mecanismo de


dicotomização da realidade social. De um lado, temos uma esfera onde se produzem
bens e uma atividade produtiva, um lugar de acumulação e, por isso mesmo, de
transformação. Aí localizado, encontramos o campo onde se articula o futuro de uma
formação social, onde se concentra tudo o que diz respeito à História. De outro lado,
temos uma esfera de “reprodução”, ou seja, de repetição do existente, um espaço de
práticas que regeneram formas, sem, contudo, modifica-lás nem individualizá-las. Um
lugar de conservação, de permanências culturais e de rituais “privado” da História
(DEL PRIORI, 1997, p. 257).201

Para Del Priori (1997), os sujeitos da primeira esfera social são os que detêm o poder
e a produção, já os da segunda esfera de cotidianidade são os que estão à margem de um sistema
e se encontram desprovidos de ação sobre as mudanças sociais, mas podem se manifestar
quando incluídos em movimentos coletivos, nesse caso, para os cativos, com a possibilidade do
casamento. A vida cotidiana dos afro-brasileiros em cativeiro transforma-se em um núcleo de
possibilidades para a liberdade e a coletividade, configurado à resistência ao sistema escravista,
tendo como um elemento representativo a família cativa, constituída em um modelo implantado
pelo seu senhor.
Wlamyra Albuquerque (2009) defende que, na segunda metade oitocentista, a
singularidade das relações do final do escravismo estavam direcionadas ainda à sacralização, à
subordinação e sujeição do indivíduo negro. Ainda em seu final, as relações se alteraram ainda
mais para manter o afro-brasileiro em segunda ou terceira esfera cotidiana.202

201
DEL PRIORI, Mary. História do Cotidiano e da Vida Privada. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAIFAS,
Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
202
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da Dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
160

Percebemos que as mudanças dos comportamentos sociais transformaram a vida


comum em vida privada. Essa fica restrita a quem interessa, no caso, a família que se constituiu,
preservando as origens culturais étnicas e assimilando as novas realidades que se
complementam com a possibilidade de mudança dentro da vida cotidiana.
A existência dos cativos está ligada à compreensão do contexto social em que foram
inseridos. Homens e mulheres africanos e afro-brasileiros, pertencentes a grandes escravarias,
possuem uma vida diferente dos cativos que pertecem a pequenos plantéis. As relações de
sociabilidade desses últimos são mais próximas e, por isso, viabilizam algumas vantagens.
A vida cotidiana é recheada de muitas surpresas que se avolumam, sobretudo, quando
se tenta examiná-las em uma linha temporal do passado, em que a existência de um cotidiano
torna-se capaz de resultar num entendimento do movimento social e das relações entre sujeitos
em lados opostos.
Walter Fraga (2014), em seu trabalho, utiliza os inventários post mortem para
relacionar o número de cativos que estiveram presentes no Recôncavo Baiano, trabalhando nos
engenhos e nos canaviais no final do escravismo na Bahia, entre 1870 a 1882. Seu relato traz
uma série de fatos que deixam claro os tipos das relações que aconteceram entre senhores e
cativos, como o conhecimento das mudanças políticas que se transformou sobre o cativeiro, a
formação da família cativa, a apropriação de costumes, como as roças que os cativos cultivavam
para sua subsistência e que mantinham nas propriedades dos senhores, as relações políticas que
surgiam pela falta de mão-de-obra, que já dava indícios que o cativeiro logo seria extinto e
também pela implantação da Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de setembro de 1871,
sendo essa um divisor de águas entre as relações senhoriais e cativeiros.
Segundo Walter Fraga:

Para entender o comportamento de escravos e senhores, é preciso levar em


consideração os debates políticos que estavam em curso no Brasil em relação à
abolição do escravismo. A partir da década de 1870, o governo imperial vinha
sinalizando com várias iniciativas para promover a substituição gradual do trabalho
escravo (FRAGA, 2014, p. 44).203

Dentro dessa particularidade, estão bem evidentes as relações políticas, algo que se
expressa com uma finalidade de desejo ou com um sentimento interno que venha compor as
relações de afetividade e necessidade de estar formando um todo, que desenha uma relação com
vínculos estáveis e com intenções direcionadas, como a liberdade.

203
FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 2ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
161

Por ser 1870 um período de transição na maneira de olhar o escravismo, as fugas, no


recôncavo baiano, aumentaram em grande número nos engenhos, os cativos em fuga se
direcionavam para as cidades em busca da liberdade dentro da lei, ou seja, as relações e laços
que se formaram no cativeiro, somado ao movimento abolicionista expandindo e a Lei do
Ventre Livre, aumentaram as chances para liberdade, já que isso abriu espaço para a legalidade
de vários direitos adquiridos pelo costume, que, no caso, seriam as roças cultivadas pelos
cativos, além do registro de matrícula, que, a partir de 1872, passou a ser obrigatório aos
senhores.
Desta maneira, as relações sociais que se compuseram para toda a sociedade brasileira,
em todas as regiões do Império Brasileiro, vêm se distinguindo por práticas sociais aplicadas,
sendo essas relações alternáveis conforme o uso e manuseio em ‘seus propósitos’, usadas como
escopos diferentes e com atores iguais, mas em contextos desiguais, onde o que muda são as
questões de produção econômica e exploração humana, mas sendo o africano e afro-brasileiro
o ponto central de exploração.
Assim, pensar que esses indivíduos foram alheios às suas realidades é não aceitar que
uma das saídas para a liberdade foi tentar formar as relações sociais e políticas com seus
senhores, em busca de algumas vantagens, nesse processo de exploração dentro das escravarias,
seria um erro grave, visto que as relações próximas favoreceram as relações políticas e
legitimaram a permanência desses indivíduos em cativeiro, como consta nas fontes do Vale do
Rio dos Sinos – Paranhana.

3.4 A FORMAÇÃO DA FAMÍLIA ESCRAVA E SEU DESENVOLVIMENTO NO


CATIVEIRO.

Pensar a formação da família cativa é ao mesmo tempo recolher os fragmentos dos


antecedentes a uma realidade, isso significa que, anteriormente ao que se conhece, já se tinha
algo que não estava de acordo com o que seria concretizado. Assim reformular os conceitos e
entendimentos para pensar como fazer a análise de um determinado conjunto de acontecimentos
é um tanto trabalhoso, por somente termos que afligir com hipóteses que levariam a uma
construção do passado de determinadas sociedades, que no caso seria a formação familiar de
dentro para fora e não ao contrário como se costuma fazer.204

204
LEVI, Giovanni. Reflexões sobre família e parentela. In: VERDRAME, Maíra Ines; KARSBURG, Alexandre;
WEBER, Beatriz; FARINATTI, Luis Augusto. Micro-história, trajetórias e imigração. São Leopoldo: Oikos,
2015.
162

O que se entende por família, na concepção social no Brasil, parte do princípio de um


modelo pré-estabelecido trazido pelos europeus portugueses que aqui adentraram e
constituíram as bases da sociedade que conhecemos atualmente desde sua formação em 1500.
Os valores empregados, a partir do modelo da família europeia, resultaram em uma complexa
relação de poder em determinado tempo e, posteriormente, abriu-se a uma realidade da
sociedade que se desenvolveu no passar dos anos de colonização e, mais tarde, nos dois
Impérios Brasileiros.
Nos anos iniciais da colonização, a família centrava-se em um formato de
concentração de poder nas mãos do provedor da família, ou seja, o dono da casa que,
consequentemente, passou a determinar como se deveria viver no Novo Mundo (América
Colonial), visto que ele era o chefe da família, formando assim a constituição da centralização
do poder no pai, surgindo então, a Família Patriarcal.205
Esse modelo de um patriarcado se estabelece a partir da concentração de vários
agregados familiares, ou não, formulando o poder familiar local, desta maneira, esse poder vai
se estender aos parentes mais próximos que deveriam fazer parte dessa família, morando todos
juntos e respeitando o senhor. Esse indivíduo regulamentava no seu modo de ver a realidade,
como sua família deveria agir, pensar e sobreviver nesse novo contexto de elaboração de
ocupação territorial.
Todos os dependentes da família patriarcal são submetidos aos mandos do patriarca,
esse tem o poder, por base, de manter a ordem e dar proteção aos seus agregados. Esses eram,
muitas vezes, além de seus parentes, negros livres e alforriados, brancos pobres ou negros que
viviam na dependência tutelar da família e considerados como membros da comunidade
familiar.
Katia Mattoso destaca que

O chefe da casa era o pai de todos e o escravo, como todos os membros da família,
devia se persuadir que era ‘filho’ da casa, menos privilegiado que os outros, mas,
mesmo assim, filho. A família era assim o campo de experiência no qual o escravo
deveria aprender a viver a sua vida de eterna criança, pois era a família brasileira que
lhe ensinaria como se comportar em relação aos outros escravos, aos alforriados e aos
livres (MATTOSO, 2016, p. 150).206

205
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 51ª ed. São Paulo: Global, 2006. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12. ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2007.
206
MATTOSO, Katia M. de Queiros. Ser Escravo no Brasil: séculos XVI-XIX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. Ver
também: MARCONI, Maria de Andrade. Antropologia: uma introdução. 4ª. ed. São Paulo: Atlas, 1998.
JACINTO, Cristiane Pinheiro Santos. Relações de Intimidade: desvendando modos de organização familiar de
sujeitos escravizados em São Luiz no século XIX. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-
163

Aqui estão estabelecidas as regras familiares onde, com sua inserção, os africanos
deveriam aprender sempre a conviver com a nova realidade em que se encontravam, por isso
se sentiam ‘estranhos’, pois para essa sociedade, essas pessoas eram boçais, sem conhecimentos
específicos e quando passam a fazer parte da família brasileira patriarcal, passam também a ser
considerados aptos para serem utilizados no trabalho e desenvolvimento econômico desse ‘pai’
que mantém o poder sobre toda a família.
Todas as bases da família patriarcal ou nuclear estão centradas na relação constituída
pelo ‘casamento’, esse sim deve ser levado em conta para entendermos as constituições
familiares, sendo o casamento o ponto inicial para centrar a ideia de família, claro, na visão
ocidental de uma família nuclear, mas anteriormente a esse conceito, a família patriarcal
consolidada e legitimada pelo casamento se fez presente no centro da sociedade colonial e,
posteriormente, a construção da família nuclear que vai se estabelecer e concretizar em toda
colônia e, posteriormente, nos Impérios Brasileiro. 207
Para o Rio Grande do Sul, a presença do colonizador português na fundação da Vila
de Rio Grande, em 1737, fez surgir o elemento familiar nos moldes europeus, visto que a
fronteira geográfica, que se estabelecia, tinha do outro lado, no caso a coroa espanhola, os
mesmos valores europeus sobre essas questões conceituais de família.
Assim outros elementos culturais, como o de africanos e indígenas, também foram
incorporados junto com os elementos culturais europeus e esse aprendizado dos ditos “boçais”
passou a fazer parte do cotidiano local, permitindo a formação da família escrava em sua
totalidade para o Rio Grande de São Pedro.
Robert Slenes (1999), Manolo Florentino e José Roberto Góes (2017), além de Sheila
de Castro Faria (1997), Katia Mattoso (2016) e outros tantos pesquisadores, sobre a formação
da família escrava, estabeleceram as bases dos estudos que conhecemos a partir da década de
80 do século XX. Com essa base teórica, elaboramos alguns apontamentos para a formação da
família escrava no Rio Grande do Sul.
Partimos da formação da fronteira Oeste, Rio Pardo, cujas as empreitadas dos
portugueses contra os espanhóis, no final do século XVIII e início do século XIX, resultaram
na ocupação territorial e constituição de Rio Pardo. Utilizamos um recorte temporal que se

Graduação em Ciências Sociais. São Luiz: Universidade Federal do Maranhão, 2005. LOTT, Mirian Moura.
Casamento e Relações Afetivas Entre Escravos: Vila Rica: Séculos XVIII e XIX. Curitiba: Anais da V Jornada
Setecentista, 2003.
207
FREITAS, Ubiratã Ferreira. A Fronteira é Logo Ali, Mas Permaneci Escravo. 2ª ed. Curitiba: Brazil Publishing,
2019.
164

estabelecia entre 1780 a 1820, cuja constituição da sociedade rio-pardense se firmou em uma
economia centrada a partir desse período, em primeiro momento, na mão-de-obra dos colonos
açorianos e posteriormente com a mão-de-obra escrava.
Nesse conjunto, a formação da família escrava, nessa fronteira em construção, estava
centrada em relações políticas e de sociabilidade entre senhores e escravos, visto que a fronteira
estava perto e as possibilidades se apresentavam como promissoras para a liberdade, mas a
família prendia esses indivíduos escravizados e mantinha-os em uma superexploração através
da alienação nos seus senhores, com isso outros elementos fizeram parte da autonomia desses
sujeitos, como o compadrio e a formação de laços de solidariedade como resistência a essa
realidade.
Nosso caso específico, para o Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, buscamos
compreender como a formação da família escrava se efetivou, já que também se fez presente,
dando margens para reprodução endógena e as relações de sociabilidade e resistência da prática
do escravismo na região. Outro elemento é o Compadrio que vai elencar e legitimar a formação
familiar através das relações estabelecidas pela política, potencialidade social e a solidariedade,
além das relações econômicas e que será mais abrangente no outro capítulo.
Robert Slenes afirma:

Afinal, é difícil acreditar que uma política de casamentos forçados, sem base alguma
nos desejos dos trabalhadores, pudesse ser eficaz; ao invés de promover a reprodução,
a disciplina e a (aparente) submissão, uma tal política teria efeitos contrários. A
hipótese mais provável, portanto, é a de que o interesse dos donos no casamento
escravo tenha se traduzido numa política de encorajar os cativos a procurarem uniões
formais, deixando a escolha aos casais, mas reservando ao senhor o direito
‘paternalista’ de sugerir, persuadir, pressionar, e finalmente aprovar ou vetar os nomes
escolhidos (SLENES, 1999, p. 95). 208

Nesse contexto vamos analisar os inventários post mortem que possuem mais de oito
cativos em suas escravarias, buscando demonstrar que as relações próximas favoreceram uniões
estáveis e de solidariedade entre os sujeitos envolvidos e sua aplicação para manutenção da
resistência em cativeiro. Desta maneira perceber que a importância da fonte primária para
legitimar a presença escrava no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, nos leva a destacar esses
inventários que possuem maior quantidade de cativos em suas escravarias, assim, nossa
intenção é caracterizar o número de senhores inventariados em cada ano e seus cativos para
verificar as relações endógenas e formação familiar em cativeiro, já que esses inventários

208
SLENES, Robert. Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
165

representam o poder econômico local e com isso podemos abranger quem eram esses senhores
e o que possuíam de bens. Assim, vamos tentar verificar se realmente a família cativa se fez
presente como pensamos e como se deram as relações de sociabilidade e políticas aplicadas
pelos senhores.
Analisaremos, em primeiro, o inventário de João Luiz de Souza de 1863,209 nele
constam onze cativos entre adultos e crianças, possivelmente tenhamos aqui um grupo familiar
com bases consanguíneas, estando dentro de um padrão, onde se encontram parentes próximos.
Nesse documento encontramos arrolados a seus bens 11 cativos com idades de três meses a
cinquenta anos, também, campos em sua propriedade e outros campos arrendados em outros
lugares, além de uma quantidade de animais de criação de gado, cavalos, mulas e ovelhas.
Podemos inferir que muitos dos proprietários de terras por essas bandas eram possuidores de
outros negócios e, já que buscavam ter uma produção em larga escala, utilizavam mão-de-obra
escravizada como referido na tabela 30.

Tabela 30 – Escravos de João Luiz de Souza - 1863


Nome Cor Idade
Domingos Nação 50 anos
Anna Mulata 40 anos
Januario Mulato 26 anos
Evaristo Mulato 18 anos
Pedro Criolo 14 anos
Roberta Criola 15 anos
Angelica Mulata 09 anos
Florinda Mulata 07 anos
Maria Parda 05 anos
Claudiana Mulata 03 anos
Luiza Mulata 03 meses
Fonte: Inventário post mortem 1863, APERS.

Diante de uma suposição, podemos montar duas relações familiares, no caso, famílias
constituídas de pais, irmãos, tios e avós. Poderíamos dizer que Domingos nação e Anna mulata
formam a família primária, que seguida pelos filhos Evaristo, Pedro, Roberta, Angélica,
Florinda, Maria e Claudiana legitimariam a família cativa. De outro modo, temos ainda Januário
mulato e Roberta criola que formariam uma segunda família, tendo como filha desta união,
Luiza mulata, com três meses. Essa escravaria ficaria então configurada da seguinte maneira
segundo a tabela 31:

209
Inventário: João Luiz de Souza. Cartório de Órfãos, Taquara, nº 04, maço 01, est 152, 1863 – APERS.
166

Tabela 31 – Família Cativa da Escravaria de João Luiz de Souza 1863


Família primária Filhos
Evaristo Mulato 18 anos
Pedro Criolo 14 anos
Domingos nação Roberta Criola 15 anos
Anna mulata Angélica Mulata 09 anos
Florinda Mulata 07 anos
Maria Parda 05 anos
Claudiana Mulata 03 anos
Família secundária
Januário mulato
Roberta criola Luiza Mulata 03 meses
Fonte: Inventário post mortem 1863, APERS.

Se nossa suposição estiver correta, podemos verificar que a família apresentada se


acomoda dentro de um padrão estabelecido por outros historiadores. Exemplo disso é a análise
de que Roberta é filha de Anna e Domingos, sendo Januário, genro do casal. Além disso, Luiza
é filha de Roberta com Januário, assim, Domingos e Anna são avós de Luiza e seus outros filhos
são tios da menina e Januário é cunhado dos mesmos, configurando parentesco de primeiro
grau.
As análises que foram feitas por Manolo Florentino e José Roberto Gois (2017),
quando utilizaram os inventários para verificar as relações familiares nas escravarias
fluminenses, chegaram à conclusão de que com os inventários seria possível mapear o
rastreamento de famílias primárias consanguíneas ou matrimoniais, para tal efetivação deveria
cruzar as informações com outros registros como os batismos.210
Nesse caso, fizemos esse cruzamento com livros de casamentos e batismos e não
encontramos registros que legitimassem essas afirmações expostas nas tabelas anteriores, mas
achamos necessário exemplificar, que nessa escravaria de João Luiz de Souza, a família cativa
teve sua formação, visto que pelas evidências da disposição da escravaria tudo indica que as
relações afetivas foram consumadas com a produção endógena nesse contexto.
Giovanni Levi afirma que,

Todavia, as fontes existem. Talvez não prontas, mesmo assim enormemente


abundantes e capilarmente difusas: são essas, antes de tudo, os documentos
produzidos pelos notários e tabeliães. A dificuldade de se usar esse tipo de fonte de
dimensão monstruosa é, com certeza, notável: as famílias, as suas relações, requerem
indagações nominativas longas e exasperantes, que mesmo assim merecem ser

210
FLORENTINO, Manolo. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, C. 1790-C.
1850. São Paulo: Unesp, 2017.
167

realizadas, pelo menos para sair do círculo vicioso que ainda vincula grande parte das
pesquisas sobre a família [...] (LEVI, Giovanni, 2015, 13). 211

Manoel Soares de Oliveira de 1863,212 possui a Fazenda dos Morrinhos, composta por
campos e matos, além de uma grande quantidade de criação de gado, cavalares e muares,
possuía 09 cativos entre nove e trinta anos de idade, também consta ter uma residência em Porto
Alegre. Assim, percebermos a importância desses trabalhadores e podemos chegar à algumas
conclusões sobre quem eram esses senhores. Conclusões preliminares, mostram que eram
representantes de uma camada mais abastada da sociedade, e podendo somente estar investindo
em novos negócios, mas também fizeram parte do desenvolvimento local regional e a ocupação
territorial.

Tabela 32 – Escravos de Manoel Soares de Oliveira - 1863


Nomes Idade Nomes Idade
Serafim 30 anos Antonia 10 anos
Thereza 30 anos Clara 12 anos
Raquel 30 anos Paulino 09 anos
Justina 27 anos
Maria 24 anos
Fortunato X
Fonte: Inventário post mortem 1863, APERS.

Segunda a tabela 32, é possível verificar vestígios da formação familiar cativa, além
de relações próximas de afetividade entre os cativos. Seria possível exemplificar dois casais,
ou seja, Serafim e Tereza formariam um casal e Fortunato, que não consta sua idade, então
poderia ser outro casal com Raquel, Justina ou Maria. As crianças estariam distribuídas entre
esses casais.
Outro inventariado foi o de Paschoa Garcia do Espírito Santo de 1865, um senhor de
escravos que possuía dezesseis cativos. Sua escravaria estava formada a partir das idades entre
dois aos setenta anos, composta por sete homens e nove mulheres, já incluídas as crianças de
ambos os sexos.
Para esse senhor, utilizamos a mesma lógica de abordagem anterior de formação
familiar cativa, visto que por falta de mais fontes também utilizaremos, uma suposição de tais

211
LEVI, Giovanni. Reflexões sobre família e parentela. In: VERDRAME, Maíra Ines; KARSBURG, Alexandre;
WEBER, Beatriz; FARINATTI, Luis Augusto. Micro-história, trajetórias e imigração. São Leopoldo: Oikos,
2015.
212
Inventário: Manoel Soares de Oliveira. Cartório de Órfãos, Taquara, nº 05, maço 01, est 39, 1863 – APERS.
168

elementos constitutivos do cativeiro dentro do inventário dessa escravaria para sua apresentação
e compreensão sobre as relações próximas no cativeiro. Assim ficaria então essa escravaria
segundo a tabela 33:

Tabela 33 – Escravos de Paschoa Garcia do Espírito Santo - 1865


Nome Cor Idade
Maria X X
Maria Bhaia Criola 30 anos
Jacob Criolo 30 anos
Manoel Pardo 20 anos
Gertrudes Criola 08 anos
Joaquim Pardo 06 anos
Nicolau Pardo 03 anos
João X 50 anos
Gertrudes Preta 70 anos
Laurinda Parda 30 anos
Evaristo X 49 anos
Manoela X 13 anos
Jezuina X 11 anos
Maria Rita X 09 anos
Maria X 07 anos
Manoel Pardo 02 anos
Fonte: Inventário post mortem 1865, APERS.

A partir da tabela 33, podemos inferir que, pela quantidade de cativos dessa escravaria,
três casais dariam conta de formar os laços de solidariedade familiares, mas não podemos deixar
de citar Gertrudes (70 anos) como a matriarca. Não temos condições de afirmar se alguns desses
cativos são filhos de Gertrudes, se tivéssemos documentação para afirmar tal situação, essa
escravaria se caracterizaria como matrifocal, além dos outros casais que fomentaram o
desenvolvimento familiar.
A nossa interpretação centra-se em João e Maria, que eram pais de Manoel, Manoela
e Jezuina. Também seria possível a união de Evaristo e Laurinda que geraram Maria Rita,
Gertrudes e Maria. Outro casal possível seria Maria Bahia e Jacob, pais de Joaquim, Nicolau e
Manoel.
Nessa lógica que foi explicitada, teríamos relações parentais e possivelmente, teríamos
alguns filhos de Gertrudes, visto que, por relações consanguíneas, aproximaria o parentesco
entre os cativos, assim, gradativamente, estamos fortificando e legitimando que a formação da
família escrava teve grande desenvolvimento no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.
169

Antonio de Souza Bitencourt Carvalho, 1866,213 possui uma olaria e forno, sua
escravaria está formada com 09 cativos com idades de 06 a 60 anos. Seus cativos atuam
diretamente na produção de tijolos e alguma produção de subsistência, mas em determinados
períodos, buscam produzir somente tijolos, abastecendo o mercado interno da região.

Tabela 34 – Escravos de Antonio de Souza Bitencourt Carvalho - 1866


Nomes Cor Idade
Adão Criolo 60 anos
Francisco Criolo 60 anos
Mariano Mulato 32 anos
Vantuir Criolo 30 anos
Serafim Criolo 28 anos
Felomena Criola 24 anos
Benito Criolo 22 anos
Leonor Criola 12 anos
Eva Criola 06 anos
Fonte: Inventário post mortem 1865, APERS.

A escravaria de Antonio Bitencourt tem uma caraterística diferente das anteriores,


visto que esse senhor possuía uma indústria que lidava com barro e a necessidade de mão-de-
obra adulta predomina, assim podemos dizer que esse senhor era um empresário local,
diferenciando-se das demais que mantinha uma produção agrícola com mais ênfase.
O inventário de Bernardo Luís de Souza, de 1869, possui doze escravos, sendo
distribuídos da seguinte maneira: Faustino com quarenta anos é o único homem adulto dessa
escravaria, os outros são crianças de quatro a seis meses. O que chama atenção é que as
mulheres possuem idades reprodutivas, como Maria com quarenta e quatro anos e que
possivelmente formava um casal com Faustino, as outras mulheres adultas possuem trinta e
quatro e trinta e dois anos.
As crianças são a maioria dessa escravaria, somam-se oito, três meninas e cinco
meninos. Poderíamos pensar que essas crianças seriam distribuídas entre Maria, Florisbela e
Gracia, pois em muitos casos mulheres escravas tinham seus filhos sem ter um parceiro efetivo,
também podemos pensar que Faustino mantinha relações íntimas com essas mulheres, mas
possivelmente conflitos seriam constantes perante essas relações, ou algumas dessas mulheres

213
Inventário: Antonio de Souza Bitencourt Carvalho, Cartório de Órfãos, Taquara, nº 12, maço 01, est 152, 1866
– APERS.
170

poderiam já ter falecido, mas não constam essas informações no inventário de Bernardo Luís
de Souza.

Tabela 35 – Escravos de Bernardo Luiz de Souza – 1869


Nome Cor Idade
Maria Criola 44 anos
Faustino X 40 anos
Florisbela X 34 anos
Gracia X 32 anos
Brandenia X 12 anos
Marcelina X 08 anos
Lucia X 05 anos
José Mulato 04 anos
Rafael Criolo 03 anos
Antonio Mulato 02 anos
Pedro X 01 anos
Raymundo X 06 meses
Fonte: Inventário post mortem 1869, APERS.

O senhor Boaventura José dos Santos, em seu inventário de 1870, possuiu quatorze
cativos com idades variadas, sendo o mais velho com sessenta anos e o mais novo com seis
anos. As idades dos adultos partem dos vinte e quatro anos acima e os mais jovens, quatorze
abaixo. Podemos caracterizar essa escravaria como sendo de cativos mais velhos e, a partir
disso, arquitetar, que a construção da família escrava se centra em relações horizontais e
verticais, visto que podemos montar um panorama imaginário com a consanguinidade entre
casais, formando parentesco próximo.
Assim apresentamos as relações próximas dessa escravaria, sendo novamente
enfatizado como uma ilustração, para percebermos como se formou as relações familiares dos
cativos no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.
171

Tabela 36 – Escravos de Boaventura José dos Santos – 1870


Nome Cor Idade
Gonçalo X 60 anos
Pedro X 60 anos
Francisca X 60 anos
Constancia X 50 anos
Manoel X 40 anos
Ephigenia X 38 anos
Maria X 30 anos
Francisco X 29 anos
Domingos X 26 anos
Igegível X 24 anos
Constança X 14 anos
Narciza X 13 anos
Justina X 11 anos
Albino X 06 anos
Fonte: Inventário post mortem 1870, APERS.

A partir dessa amostragem, podemos imaginar que dois casais foram os progenitores
que deram início e ampliaram as possibilidades de uma possível relação familiar a partir de seus
filhos, como exemplificado na tabela a seguir:

Tabela 37 – Possíveis Casais e Formação da Família Cativa de Boaventura J. Santos


Casal Filhos Casal Filhos
Gonçalo 60 anos Manoel 40 anos Manoel 40 anos Constança 14 anos
Francisca 60 anos Maria 30 anos Ephigenia 38 anos Narciza 13 anos
Ilegível 24 anos

Casal Filhos Casal Filhos


Pedro 60 anos Ephigenia 38 anos Maria 30 anos Justina 11 anos
Constancia 50 anos Francisco 29 anos Francisco 29 anos Albino 06 anos
Domingos 26 anos
Fonte: Inventário post mortem 1870, APERS.

Esses cincos inventários analisados não deixaram rastros nos registros de batismo e
livros de casamentos para serem seguidos, somente nos inventários. Porém, achamos
convincente apresentá-los, pois essas escravarias são as maiores da região até aqui encontradas,
a partir dos inventários post mortem. Deixando claro que essas análises não se esgotam aqui,
mas viabilizam um olhar mais atento para a região em questão, legitimando que a escravidão
se fez presente em detrimento da ocupação territorial e o desenvolvimento econômico já
apresentado, mesmos assim, nossa intenção é verificar, registrar e retirar da invisibilidade todas
essas questões pertinentes.
172

Manolo Florentino, em sua obra “A Paz das Senzalas (2017)”, nos esclarece, com sua
abordagem aos inventários do agro fluminense, que sua pesquisa esbarrou nas dificuldades de
perceber o parentesco dos indivíduos escravizados naquele lugar, pelas dificuldades de não
estar registrado o parentesco entre cativos, assim impedindo uma abordagem mais contundente
ao documento:

Assim, por não se ter neles o escopo completo dos parentes (avós, tios, padrinhos,
madrinhas etc.), os inventários por si só não permitem, em princípio, mapear-se
através do nome as fronteiras das famílias, isto é, avaliar até que grau ou graus
parentais se estendem as práticas de nomeação e, pois, a verdadeira fronteira do sentir-
se família por parte de um escravo (FLORENTINO, 2017, p. 68).214

Esse é nosso sentimento sobre nossas fontes até aqui apresentadas. Algumas estão
incompletas, como as citadas anteriormente. E na busca de novos elementos que ampliasse a
discussão sobre a formação familiar no cativeiro é nossa intenção, mas o importante é poder
pensar dentro de uma lógica de que homens e mulheres em cativeiro tiveram suas relações
afetivas, com certo grau de intimidade, não esvaziando vagamente essas interpretações, pois
existem as crianças, e delas as uniões se fizeram presentes mesmo sendo uniões instáveis ou
estáveis.
Passaremos agora para os outros inventários que faltam para completar a efetivação e
legitimação da construção da família escrava no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, visto que,
a partir de agora, os registros trazem consigo maiores informações e que dão credibilidade a
nossas hipóteses até aqui apresentadas.
Francisco de Paula Feijó foi um senhor de escravos e, em seu inventário post mortem,
com data de 1874, nos apresenta sua escravaria que possuía onze escravos distribuídos por
idades entre cinco a quarenta e sete anos de vida. Este inventário carrega em suas informações
que são importantes para ampliar nossa análise. Pois nele aparece a filiação dos cativos, a
condição dos mesmos, cor, idade, condição das mães e outros elementos importantes para
legitimar a família cativa nessa região. Também essa fonte é única em elementos que somam a
intenção de encontrar veracidade na constituição da família em cativeiro, não encontrando em
outros registros algo a mais para ser apresentado.

214
Idem.
173

Tabela 38 – Escravos de Francisco de Paula Feijó – 1874


Nome Cor Idade Condição Filiação Profissão Condição/mãe
Silvano Negro 47 anos Solteiro Escrava Maria Campeiro Liberta
Feliciano Pardo 47 anos Solteiro Escrava Margarida Campeiro Liberta
Maria Parda 42 anos Solteiro Escrava Euralia Cozinheira Liber/herdeiros
Inocencia Preta 37 anos Solteiro Escrava Micaela Cozinheira
Narciza Parda/Mulata 23 anos Solteiro Escrava Maria Costureira
Damasia Parda 14 anos Solteiro Escrava Inocencia Serv/Domest
Custódia Parda 07 anos Solteiro Escrava Inocencia Nenhuma
Antonio Preto 06 anos Solteiro Escrava Inocencia Nenhuma Não batizado
Manoel Pardo 06 anos Solteiro Escrava Narciza Nenhuma
José Pardo 03 anos Solteiro Escrava Narciza Nenhuma
Anna Preta 05 anos Solteiro Escrava Inocencia Nenhuma
Fonte: Inventário post mortem 1870, APERS.

Como podemos perceber na tabela acima, as informações são diversas, possibilitando


elencar, em nossa interpretação, outras abordagens. Notemos que a escrava Inocencia, preta de
37 anos e solteira, trabalha como serviçal e é filha da escrava Micaela, que é cozinheira, deu à
luz a quatro crianças, sendo Damasia, parda com 14 anos, Custódia, parda com 07 anos,
Antonio, pardo com idade de 06 anos e não batizado, além de Anna, preta com 05 anos de idade.
Maria, parda com 42 anos, escrava e filha de Euralia, é cozinheira e liberta pelos
herdeiros de seu senhor, é a mãe de Narciza, escrava, parda/mulata com 23 anos, solteira.
Narciza é costureira e mãe de Manoel, pardo com 06 anos, e José, pardo com 03 anos de idade.
Além de outras informações, como Silvano, negro com 47 anos, campeiro e solteiro, filho de
Maria liberta e Feliciano, pardo com 47 anos, campeiro e solteiro, filho de Margarida, liberta.
Silvano e Feliciano são os homens adultos que compõem essa escravaria e possivelmente são
os pais e avós dessas crianças citadas.
Verificando os livros de batismo, em 1874, Inocencia Maria da Silva batiza sua filha
Anna, sendo padrinhos Balthazar Jose Bernardes e Emília Candida Bernardes. Pode ser uma
coincidência, o nome da mãe e da filha que constam no inventário como escravas, pois no
registro batismal não consta o cativeiro. Pode ser também que Inocencia tenha ganhado a
liberdade, daí a dúvida se é a mesma pessoa, visto que não consta o nome do senhor e não temos
outro documento comprobatório.
Ainda nesse inventário verificamos os cativos Silvano e Maria, observando um registro
de batismo de 1881, um casal batizando Alberto, filho de Sara, escrava de Maria José
174

Figueiredo, e sendo padrinhos Silvano e Maria Rosa. No nosso entendimento fica subtendido
que sejam as mesmas pessoas, pois sabemos que muitos dos escrivães não colocavam todas as
informações corretas nos registros.
Como podemos apreciar, as relações internas na escravaria de Francisco de Paula Feijo
se consumam em relações familiares balizadas e caracterizadas como relações familiares
matrifocal, onde se manifestam com a formação nuclear social através das mãe, mas isso não
quer dizer que os pais não se fizeram presentes, pois temos Silvano e Feliciano como homens
adultos, mas não temos registro de casamento desses indivíduos, assim eles poderiam ter se
relacionado com as mulheres adultas dessa escravaria e serem os pais das crianças.
Manolo Florentino (2017) vai citar que eram mais propensas as constituições
familiares das escravarias para os escravos que possuíam uma profissão, ou seja, aqueles cativos
domésticos estavam com mais vantagens de constituírem um núcleo familiar do que os cativos
que viviam na roça. Para esse autor, com base em relatos de Gilberto Freyre, em sua obra Casa
Grande e Senzala (2006), a formação da família cativa centra-se em uma hierarquia dentro do
sistema escravista.
Manolo Florentino Afirma que:

Uma vez inseridos como profissionais na morada senhorial, os cativos encontrarão


elementos pedagógicos (práticas, conhecimento, educação) para que entre eles se
estabeleçam laços mais condizentes com as morais religiosas e laicas. Assim, e por
oposição aos do eito, os escravos domésticos, poderão até se alfabetizar, mas deles se
exigirá serem sempre batizados. Eles também verão aumentar sua autonomia na
escola dos futuros cônjuges, aos quais se ligarão de acordo com os preceitos
eclesiásticos aceitos, com as famílias que a partir daí surgirem não estando tão sujeitas
à separação (FLORENTINO, 2017, p. 90). 215

A escravaria de Francisco de Paula Feijó possui todos os elementos que Manolo


Florentino fala na citação destacada, além de três gerações de cativos, a hierarquia social está
estabelecida com os componentes citados. Assim como nas escravarias a seguir, essa estrutura
hierárquica cada vez fica mais visível e fortificada pela formação familiar em cativeiro.
O inventário de Felipe Borges do Amaral, de 1876, soma uma escravaria de dezoito
escravos com idade de cinco a sessenta anos, predominando os indivíduos masculinos.
Podemos verificar e elencar, nas informações desse documento, uma série de elementos que
determinam as possíveis relações que se constituíram a partir da filiação e de sua organização
disponível.

215
Idem.
175

Nessa escravaria consta um africano, Joaquim, 60 anos, oriundo da África, sendo essa
a única informação desse cativo. Outros cativos que aparecem são José, mulato, 35 anos,
campeiro de Santa Catarina e Andressa, parda, 42 anos, costureira de São Pedro, mãe de seis
filhos, Rosaura, Clara, Tristão, Elisia, Rufina e Maria, mulata, 5 anos, de Santa Catarina cujo o
pai deve ser José.
Nessa relação encontramos um ponto fora do comum, Maria chama a atenção por ser
natural de Santa Catarina. Averiguamos em nosso banco de dados e não encontramos indícios
para afirmar uma relação estável entre Andressa e José, mas talvez possa ter acontecido um
envolvimento entre ambos, mas o que se sabe é que Maria de cinco anos é natural de Santa
Catarina e filha de Andressa, e que José também é de Santa Catarina, assim, possivelmente
Maria recebeu essa denominação geográfica de naturalidade como referência ao pai.
Suspeitamos que Andressa e José sejam cônjuges.

Tabela 39 – Escravos de Felipe Borges do Amaral - 1876


Nome Cor Idade Natural Filiação Ocupação
Joaquim Africano 60 África - -
Albino Pardo 40 S. Pedro Não Não
Antonio Mulato 40 S. Pedro - Campeiro
Andresa Parda 42 S. Pedro Lourença Costureira
Apolinário - 35 S.Pedro - Campeiro
José Mulato 35 S. Catarina - Campeiro
Affonso pardo/mulato? 29 S. Pedro Lourença Campeiro
Diogo Preto 25 S. Pedro Maria Campeiro
Sipriano Mulato 22 S. Pedro Lourença Campeiro
Serafim pardo/criolo? 22 S. Pedro - Campeiro
Rosaura Parda 19 S. Pedro Andresa Costureira
Clara Mulata 14 S. Pedro Andresa Costureira
Tristão Pardo 15 S. Pedro Andresa Camperio
Elisia Mulata 13 S. Pedro Andresa Costureira
Justina Preta 9 S. Pedro Albino -
Rufina Preta 7 S. Pedro Andresa -
Maria Mulata 5 S. Catarina Andresa -
Camilo - - - - -
Fonte: Inventário post mortem 1876, APERS.

A tabela 39 se apresenta com diversos elementos além dos tradicionais já


exemplificado nas outras tabelas. Agora aparecem a localidade da natureza dos cativos e as
profissões de cada um deles, assim, mais uma vez a estrutura social familiar, que falava Manolo
Florentino (2017), se apresenta com mais informações que anteriormente, fortificando a certeza
de que a família em cativeiro esteve presente na região de estudo. Com isso podemos
exemplificar como vai se constituir a possível família composta por Andresa e José.
176

Na tabela 40, fizemos uma projeção da possibilidade da escravaria de Felipe Borges


do Amaral para apresentar a família escrava. Também não podemos comprovar essa união
legitimada pelo casamento na igreja, mas tudo leva a crer que, mesmo sem esse registro, o fato
foi consumado.

Tabela 40 – Projeção de Casal e Formação da Família Cativa - 1876


Casal Filhos Cor Idade Localidade Profissão
Andresa Parda 42 anos S. Pedro Costureira
Rosaura Parda 19 anos S. Pedro Costureira
Clara Mulata 14 anos S. Pedro Costureira
Tristão Pardo 15 anos S. Pedro Campeiro
Elisia Mulata 13 anos S. Pedro Costureira
Rufina Preta 7 anos S. Pedro
José Mulata 35 anos S. Catarina Campeiro
Maria mulata 5 anos S. Catarina
Fonte: Inventário post mortem 1876, APERS.

Assim podemos definir, a partir do inventário de Felipe Borges do Amaral, que


Andresa e José comungaram da mesma cama e na sequência tiveram Maria. Também
acreditamos que os outros filhos de Andresa sejam de outra relação conjugal. Assim, ficando
definido que, mesmo sem o registro de casamento, as relações afetivas familiares estão
presentes nessa escravaria.
Segundo Katia Mattoso,

Nas classes médias e baixas o casamento não era realizado e somente as classes
dominantes consideravam o casamento católico uma exigência social. Toleradas pela
Igreja brasileira, brancos e negros estabeleceram famílias “naturais”, o casamento
livre ou concubinato era a sorte de quase toda a população branca ou negra, e as
crianças nascidas dessas uniões eram numerosas: [...](MATTOSO, 2016, p. 150).216

Talvez pela distância ou dificuldades de locomoção, essa união entre Andresa e Albino
não tenha se consumado perante a igreja, mas não descartamos a ideia de que as uniões estáveis
com base no concubinato sejam uma prática que, em muitos casos, a Igreja tolerou. Mas
também não encontramos registro em livros de casamentos. Talvez tais livros possam ter sido
extraviados no decorrer do tempo.
Se para as classes desfavorecidas a Igreja fazia vista grossa, então dentro das
escravarias as uniões familiares naturais foram consequência e necessidade para esses cativos.
A procriação foi voluntária e, ao mesmo tempo, viabilizou a manutenção dessas escravarias. O

216
MATTOSO, Katia M. de Queiros. Ser Escravo no Brasil: séculos XVI-XIX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
177

que causou, assim, a ampliação da economia de seus senhores, fato que também deve ser
considerado, pois para os senhores significava o aumento de seu capital, já que as crianças que
nasciam nas senzalas pertenciam a esses escravistas.
José Martins Pires, 1882, possui a maior escravaria encontrada nos inventários. Esse
senhor possuía vinte e dois cativos com idades de 03 a 56 anos de vida. Também há a
característica de sete escravos africanos. Outros elementos, além dos citados, são visíveis e
possíveis de legitimar a família escrava no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.

Tabela 41 – Escravos de José Martins Pires – 1882


Nome Cor Idade E. Civil Natural Filiação Profissão
Tiago Preto 56 anos Solteiro África - Lavrador
Paulo Preto 50 anos Solteiro África - Lavrador
Guilherme Preto 46 anos Solteiro África - Lavrador
Abraão Preto 44 anos Solteiro África - Lavrador
Jacob Preto 43 anos Solteiro África - Lavrador
Izaque Preto 38 anos Solteiro África - Lavrador
Marianna Preta 38 anos Solteiro África - Lavadeira
Cazario Preto 31 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Leonarda Lavrador
Estanislau Preto 27 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Leonarda Lavrador
Josefa Preta 26 anos Solteiro Dest/Provin Desconhecida Cozinheira
Maurício Preto 22 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Leonarda Lavrador
Norberto Preto 19 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Leonarda Lavrador
Chistina Preta 16 ano Solteiro Dest/Provin Escr/Leonarda Costureira
Henriqueta Parda 16 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Esperança Costureira
Maria Preta 15 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Esperança Costureira
Rafaela Preta 13 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Leonarda Costureira
S/N Parda 13 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Esperança Costureira
Adriano Pardo 10 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Esperança Nenhuma
Lonardo Pardo 08 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Esperança Nenhuma
Antonio Pardo 07 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Esperança Nenhuma
Affonso Preto 05 anos Solteiro - Escr/Josefa Nenhuma
João Preto 03 anos Solteiro Dest/Provin Escr/Josefa Nenhuma
Fonte: Inventário post mortem 1882, APERS.

Esse inventário nos proporciona várias interpretações; em primeiro, o escravo Tiago,


solteiro e africano que está com 56 anos, mas em 1876 foi libertado, era lavrador e deve ter
permanecido assim, pois como vivia no campo já estava acostumado com esse tipo de trabalho.
Marianna, africana, 38, solteira, lavadeira, foi vendida a Felippe Leopoldo em 23 de maio de
1874. Não encontramos registros de Tiago e Marianna em outros documentos, assim ficamos
questionando sobre como e porquê Tiago ganhou a sua liberdade. Provavelmente por sua
conduta com esse senhor ou por ter comprado a manumissão de sua liberdade. Já Marianna não
178

sabemos sobre seu destino, pois não temos o inventário de Felippe Leopoldo, que foi citado
como comprador.
Podemos notar na tabela 41, que a partir da filiação desses cativos também permanece
a característica matrifocal, como são os casos de Leonarda e Esperança. Leonarda aparece no
inventário de José Martins Pires como mãe de Cezario, Estanislau, Josefa, Maurício, Norberto,
Christina e Rafaela, mas não consta como sendo propriedade desse senhor. Já nos registros de
batismo aparece uma Leonarda, que pensamos ser a mesma genitora desses indivíduos de José
Martins Pires, sendo senhores de Leonarda, membro da família Maciel, assim fizemos o
levantamento e chegamos a uma amostra que identifica a importância de Leonarda na
concepção e manutenção do escravismo na região:

Tabela 42 – Filhos de Leonarda – Registro de Batismo 1856 - 1888


Ano Batizado Senhor Padrinho Madrinha Observações
Adão e Vicente Ferreira Filisberta M.
1868 Antonio S. e Silva São Gêmeos
Eva Maciel Conceição
Inocencio Claudiana Ele, Bento Silveira Dias,
1871 Margarida Serafim escravo
Ferreira Maciel Escrava Ela do senhor Inocencio
Ele, Blenio Antonio
Inocencio Claudiana
1873 Carolina Felipe escravo Maciel, Ela do senhor
Ferreira Maciel Escrava
Inocencio F. Maciel
José M. de Claudiana Escravos de Antonio
1874 Claudiana Elias escravo
Morais Escrava Maciel
José M. de Perpetua
1876 Napoleão Ilegível escravo Ele, Antonio José Martins
Morais Martins
José M. de Prudencia
1878 Joaquim Estevão escravo Mesmo Senhor
Morais Escrava
Inocencio Inocencio Ferreira Bernandina de
1880 Bertalina
Ferreira Maciel Maciel Oliveira
José M. de Inocencio Ferreira Bernardina G.
1882 Bertholina
Morais Maciel dos Santos
Contrato José M. Antonio Francisco Bernardina de
1884 Claudiana Leonarda liberta
de Morais Maciel Oliveira
Fonte: Livros de Batismo 1856-1888, APERS.

Novamente reafirmamos a importância das fontes primárias como elemento de registro


admirável para tentarmos traçar esse tecido social, que elevou a importância do escravismo para
o grande construtor do aparato colonial e imperial com base na exploração humana africana.
Justificando a importância desses indivíduos na construção de sua própria identidade através
das possibilidades que foram surgindo dentro das senzalas e formando os laços de solidariedade
familiares através das relações próximas afetivas.
Esperança é mãe de Henriqueta, Maria, (Ilegível), Adriano, Leonardo e Antonio
(tabela 41), assim como Leonarda, tem importância na escravaria de José Martins Pires, mas
não aparece como sua escrava. Esperança aparece como madrinha de Afonso, filho de Josefa,
179

escrava de José Martins Pires, nos registros de batismos de 1867 e 1882, sendo o padrinho, José
Pereira, ambos libertos. Assim vamos tecendo as relações próximas, mesmo sendo mãe de
alguns cativos de José Martins Pires, Esperança também é ponto fundamental como madrinha
de cativos, isso aproxima as possíveis relações entre cativos e libertos para uma possível
inserção social para esses afilhados.
Não esquecendo que Christina é escrava de José Martins Pires e filha de Leonarda, e
que também teve filhos. Ela é mãe de Bernarda, batizada em 1872, sendo padrinho o escravo
Estanislau, pertencente ao mesmo senhor, e madrinha Damiana Martins, possivelmente familiar
de José Martins, mas esse registro não consta no inventário de 1882.
Christina também teve outro filho, Pedro, batizado em 1876, sendo padrinhos,
Estanislau e Maria Preta, ambos escravos de José Martins Pires, além disso, é filha de Leonarda.
Temos ainda Josefa que, em 1867, batizou Afonso, ambos escravos de José Martins Pires, tendo
como padrinhos os supracitados José Pereira e Esperança, ambos libertos. Já em 1872, Josefa
batizou Francisco, sendo padrinho Fernando Pires Correia e Eva, escrava de Maria Joaquina da
Silva.
Josefa ainda batizaria, em 1876, Francisca, tendo como padrinhos, Manoel Caetano e
Maria, ele escravo de Domingos de Souza Martins e ela de José Martins Pires. Em 1878, Josefa
batizava também Maria, não constam os padrinhos, mas essa criança era neta de Bonifacia,
escrava do mesmo senhor, José Martins Pires, possivelmente Bonifacia era a mãe do pai de
Maria, fomentando assim a legitimação da constituição do núcleo familiar e as relações
próximas de compadrio.
Ainda temos um último batismo de um escravo da esposa de José Martins Pires, a
Dona Emilia Martins que, em 1883, levou, aos santos óleos, o inocente Pedro, filho de Albania,
sua escrava e tendo, como padrinhos, os escravos de sua propriedade, Maurício e Maria, assim
findando essa exemplificação e as relações possíveis dentre esses agentes promovedores do
escravismo e seus agregados involuntários resistentes à vida em cativeiro.
Ainda nos registros de batismo, encontramos mais alguns elementos dessa escravaria,
como as relações próximas entre senhores sendo padrinhos dos cativos, escravos batizando as
crianças e familiares desse senhor fazendo parte desse processo. No inventário descrito, ainda
encontramos a descrição de que Christina, Rafaela e Afonso foram doados ao filho de José
Martins Pires, Daniel Rangel Martins em 30 de abril de 1881.
Afonso, batizado em 1867, filho de Josefa, escrava de José Martins Pires, sendo
padrinhos, José Pereira e Esperança, ambos libertos. A partir desse relato e sobre Leonarda,
Andresa, Christina, Josefa, Afonso, Rafaela, e outros tantos cativos que compuseram as
180

escravarias no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, afirmamos que cada vez mais legítima a
nossa intenção de retirar da invisibilidade esses indivíduos e suas manifestações sociais que
foram sendo constituídas e apresentadas como resistência e valorização de sua vida em
cativeiro, com isso, em tese, reafirmamos a presença de africanos e afro-brasileiros na região
que estudamos.
Mas ainda temos mais uma escravaria para ampliar nossa perspectiva da presença de
afro-brasileiros na região do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, elencando todo o estado de
verificação e presença do negro escravizado nesse período de ocupação territorial e formação
de fronteiras colonizadoras presentes, em primeiro, com os portugueses e posteriormente com
os colonos alemães.
Laurindo Cardoso de Aguiar foi inventariado em 1883, nesse documento encontramos
quatorze indivíduos em cativeiro, sendo eles com idades entre cinco a sessenta e cinco anos de
vida. Constatamos que dois escravos eram africanos, e que prevalecia o gênero masculino e
profissões voltadas ao campo, além de todos os envolvidos serem solteiros, sem uma
identificação da família constituída e registrada, mas, como anteriormente, a filiação de cada
cativo pode nos levar a suposições verdadeiras de formação da família escrava, assim, dessa
última escravaria, apresentamos a tabela abaixo.

Tabela 43 – Escravos de Laurindo Cardoso de Aguiar - 1883


Nome Cor Idade Condição Origem Filiação Profissão
Baltazar Preto 65 anos Solteiro Africano Ignorado X
Belchior Preto 60 anos Solteiro Africano Ignorado Campeiro
Adão Preto 36 anos Solteiro Dest/Provin Filh/escr/??? Campeiro
Antonio Pardo 30 anos Solteiro Dest/Provin Filho/escr/Florinda Campeiro
Affonso Pardo 22 anos Solteiro Dest/Provin Filho/escr/Mariana Campeiro
Francisco Pardo 18 anos Solteiro Dest/Provin Filho/escr/Mariana Campeiro
Luiz Pardo 16 anos Solteiro Dest/Provin Filho/escr/Mariana Campeiro
Maria Parda 13 anos Solteiro Dest/Provin Filh/Nasaria Costureira
Maria Preta 10 anos Solteiro Dest/Provin Filh/escr/Ignacia Cozinheira
Narcizo Pardo 10 anos Solteiro Dest/Provin Filho/escr/Mariana Campeiro
João Pardo 08 anos Solteiro Dest/Provin Filho/escr/Mariana Nenhuma
Nicolau Pardo 5 anos Solteiro Dest/Provin Filh/Nasaria Doméstica
Andre X X X X X X
Maria
X X X X X X
Madalena
Fonte: Livros de Batismo 1856-1888, APERS
181

Nessa escravaria não encontramos os registros de batismo, mas podemos fazer um


panorama das relações possíveis que se formaram, visto que, a partir da filiação desses escravos,
percebemos que Mariana foi a mãe que mais teve filhos, acompanhada por Nasaria, Florinda e
Ignacia, todas mães de cativos. Prevalecendo a constituição da família matrifocal, como nas
outras escravarias apresentadas.
Assim, a família cativa esteve presente dentro das escravarias no Vale do Rio dos Sinos
– Paranhana por meio de classificações a partir da profissão dos cativos ou pela necessidade de
se relacionarem. Também percebemos que para os cativos a formação da família esteve mais
atrelada às necessidades sexuais e afetivas do que como uma consciência de formação social,
pois esses elementos familiares somente terão sentido a partir do nascimento dos filhos e, com
isso, passam a incorporar os valores sociais de seus senhores. “É portanto em meio a essa
possibilidade de reconhecimento social da existência humana do escravo que, deduzimos, se
inclua a própria viabilidade do estabelecimento de relações familiares mais estáveis entre os
cativos” (FLORENTINO, 2017, P. 91).217
Para fechar todas essas informações e legitimar a formação social familiar,
encontramos um assentamento de casamento, de 1880. Sendo que é o único que está registrado
nos livros de casamentos da Igreja Católica, utilizado como fonte, nos moldes que se predomina
o registro de casamento de escravos em outras regiões do Brasil.
Aqui um registro de casamento de 1880:

Aos dias onze do mês de janeiro de mil oitocentos e oitenta depois as denominações
de estado não tendo apresentado impedimento nenhum se receberam com matrimonio
Hortencio escravo de Rodrigo José Inacio, e Joaquina escrava de Manoel Vilas Boas
pos palaorei de presente na Igreja Matriz desta Freguesia de Santa Christina do Pinhal
e na presença das testemunhas abaixo assignada. E por conter ex: Assignadas
testemunhas: Felisberto F. da Silva. Lucia escrava de Tristão José Monteiro Filho.
Laurindo José da silva. (Livro de Casamentos de Santa Christina do Pinhal, 1876 a
1888). 218

Existem outros tantos registros de casamentos, mas as descrições não nos dão uma
pista que sejam de escravos. As descrições aparecem muito como filho natural somente, sem
uma descrição sobre a mãe ou o pai da criança, mas casado com o termo ‘legítimas’. Isso leva
a crer na hipótese das relações além da cor, já que não demonstra tal registro específico, mas
mesmo assim a formação da família escrava é verdadeira por essas bandas, a consanguinidade
também aparece com frequência em 2º e 3º grau.

217
FLORENTINO, Manolo. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, C. 1790-C.
1850. São Paulo: Unesp, 2017.
218
Livro de Casamentos de Santa Christina do Pinhal, 1876 a 1888, p. 20. Cúria Metropolitana de Porto Alegre.
182

Geovanni Levi afirma que

Fica claro que as relações significativas excedem o parentesco; redes de clientela e


proteção, redes de amizade e de reciprocidade, redes de crédito e de troca são
elementos essenciais em jogo e frequentemente sobrepostos de maneira múltipla com
os laços de consanguinidade e afinidade (LEVI, 2015, p.18).219

Tudo que foi exposto se encontra nos inventários, livros de casamentos e batismo com
um panorama bem abrangente, mas nossa intenção fica na questão de efetivar a presença de
africanos e afro-brasileiros como grandes construtores de suas trajetórias junto com os colonos,
que por aqui desenvolveram a região, não excluindo esse trabalho, mas incorporando e
valorizando esses trabalhadores descendentes de africanos explorados e privados da liberdade.
Entender o conceito de família é um tanto difícil, assim buscar esses elementos podem
causar surpresas, pois, em muitas vezes, as estruturas que conhecemos e os modelos aplicados
estão, na verdade, em constantes adaptações por fatores externos que levaram às modificações
exigentes quando, dentro de uma situação ao extremo, como no caso dos escravos, que por um
fator externo, o sistema escravista, e naturalmente por necessidades específicas humanas,
constituíram famílias. Porém, o modelo familiar que conhecemos foi empregado a partir do
contexto europeu, mas, para o africano escravizado, essas relações próximas já vinham de sua
ancestralidade e somente fortificou-se a partir desses fatores externos que foram empregados e
exigidos pela Igreja, como mentora espiritual e social.220

219
LEVI, Giovanni. Reflexões sobre família e parentela. In: VERDRAME, Maíra Ines; KARSBURG, Alexandre;
WEBER, Beatriz; FARINATTI, Luis Augusto. Micro-história, trajetórias e imigração. São Leopoldo: Oikos,
2015.
220
Idem, p. 23-24.
183

CAPÍTULO
IV

O BATISMO COMO TRAJETÓRIA E MEIO DE ASCENSÃO SOCIAL


NA FAZENDA MUNDO NOVO.
184

4 ALGUMAS FRONTEIRAS ULTRAPASSADAS COM O COMPADRIO:


PROCESSO DE RELAÇÕES PRÓXIMAS.

A fronteira construída entre a sociedade branca europeia e os nativos africanos se


distingue pela exploração e exclusão da realidade em que viviam esses indivíduos, da vida
cotidiana em seu habitat, com seus familiares e comunidade em geral. A partir de seu rapto da
África para as senzalas na América, o futuro cativo foi forçosamente obrigado a romper com
tudo que conhecia e vivia, levando-o a um desconhecido destino, a uma suposta nova vida, sem
uma perspectiva de sobreviver dentro das condições em que foi inserido, enfim, jogado dentro
do cativeiro.
A partir dessa nova realidade, uma possível reorganização conceitual de viver em
sociedade para o africano, que foi jogado no desconhecido, seria criar vínculos de solidariedade
durante as primeiras relações com o cativeiro – desde sua captura, passando pela travessia,
chegando a seu destino, como mercadoria e relacionando-se com sua nova vida, a senzala –,
isso podemos entender como uma fronteira construída contra a sua vontade e também o
desfecho de sua trajetória para sua liberdade.
Segundo Katia Mattoso:

É possível imaginar que durante os dias de cativeiro angustiante, o cativo fizesse


amizade, mesmo que timidamente, com os companheiros de infortúnio. Se o acaso
fizesse com que um companheiro de cativeiro ou de travessia fosse reencontrado na
mesma mina ou na mesma plantação ou ainda no mesmo centro urbano, ligações
duradouras poderiam se estabelecer. Essa amizade representava para o escravo um
primeiro passo para uma forma de inserção social, mesmo que fosse fraca. Aquele que
era encontrado nas primeiras horas de cativeiro dava-se o nome de amigo malembo
(MATTOSO, 2016, p. 127).221

Uma das tentativas de resistir ao novo contexto de sobrevivência, por parte do cativo,
poderia ser percebida através da amizade, como um processo da gênese de sua resistência nessa
trajetória, que ressalta um movimento inicial para um longo período de lutas contra a privação
da liberdade e exploração. A fronteira está construída nesse exemplo e, a partir desse momento,
devemos tentar perceber como vão se movimentar os sujeitos que fizeram parte desse contexto
histórico, e como vão se moldando e construindo as outras fronteiras que surgirão e quais as
trajetórias e resistências a serem utilizadas dentro das relações sociais bem especificadas entre
escravismo, trabalho e sociedade.

221
MATTOSO, Katia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil: séculos XVI-XIX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
185

Nas relações de produção e trabalho, o Vale do Rio dos Sinos – Paranhana apresenta
a pecuária em desenvolvimento e uma agricultura de subsistência em sua maioria, com uma
produção comercializável de farinha de mandioca e extração de madeira. A estrutura social que
se apresenta está fortificada economicamente com bases latifundiárias e rebanhos de animais
vacuns e cavalares, destacando-se assim uma estratificação social que se utilizava da mão-de-
obra cativa em larga escala em várias frentes.
Para essa análise, nosso valor a ser utilizado se estreita com o cruzamento das fontes
primárias, como os inventários post mortem e os assentamentos de batismo, onde aparecem
alguns elementos que demarcam as relações de sociabilidades, relações afetivas, relações
econômicas e possíveis resistências que construíram as hierarquias sociais que se estabilizaram.
Segundo Hameister:

Os registros paroquiais foram e são documentos excelentes para esse tipo de estudo.
São ponto de apoio de investigações que se utilizam de registros compra e venda de
terras, inventários, testamentos e, não raras vezes, são os únicos documentos
disponíveis que permitem essa sorte de estudo, principalmente quando o período não
é coberto pelos registros civis de nascimento, casamento e óbito (HAMEISTER, 2011,
p. 3).222

Os registros batismais frequentemente são utilizados para também demonstrar a


demografia local, a economia e as relações que regeram as hierarquias sociais. Para a Igreja, o
batismo é a legitimação de mais um fiel ao sistema religioso e controle de massa, para o
historiador é um documento que eleva as relações de sociabilidade que se mantiveram entre os
sujeitos em determinado tempo vivido.
A relação entre os padrinhos e os escravos se constituía através da realidade dos
padrinhos, ou seja, se eram escravos e casados já estavam também batizados, e assim foram
incorporados como padrinhos, para os africanos chegados há pouco no Brasil, isso não fazia
diferença, pois seriam explorados do mesmo jeito. Com isso, tornava-se mais fácil a inserção
dos escravos “boçais”, visto que seriam batizados, já os ladinos poderiam levar esses
apadrinhados aos movimentos internos das senzalas, descrevendo e ensinando a língua e os
costumes local para dentro da sociedade constituída onde esses indivíduos eram inseridos.
Conforme Hameister (2011):

O zelo dos párocos, em se tratando do rito de iniciação do batizando no mundo cristão,


era o de oferecer-lhes preceptores também cristãos, capazes de lhes instruir na língua,

222
HAMEISTER, Martha Daisson. O Uso dos Registros Batismais para o estudo de Hierarquias Sociais no
Período de vigência da Escravidão. 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 11 a 13 maio de
2011, UFRGS, Porto Alegre, RS.
186

nos costumes e na fé católica. Se os padrinhos são casados, certamente são batizados,


pois o matrimônio é sacramento que não pode prescindir do anterior batismo. Se
casados na Santa Madre Igreja, viviam de acordo com um mínimo de normas e de
aceitação da fé católica, possivelmente participando de missas oficializadas, fazendo
confissões ao menos uma vez por ano, durante a desobriga pascal (HAMEISTER,
2011, p. 11).223

Em uma estratégia da senzala era possível verificar que, quando um padrinho era
convidado para batizar uma criança, as intenções eram muito mais amplas, pois esse poderia
dar uma possibilidade de colocação para essa criança quando longe da senzala, também uma
relação futura de empreendimento, a longo ou curto prazo, moldando as relações de
sociabilidade entre os pares e afetividade construída através da possibilidade de fomentar uma
outra relação de sobrevivência dentro do sistema social. Assim corremos o risco de que as
relações de compadrio são muito mais complexas do que pensamos.
Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, o batismo era,
para o cristão, a “porta de entrada” na Igreja Católica e a oportunidade da salvação da alma.
Quem não o recebesse ficava impedido de alcançar os demais sacramentos. A celebração da
cerimônia requeria que “Matrizes, Capelas filiais, Ermidas e Oratórios” estivessem aparelhados
com pia batismal “decente, água natural, santos óleos e paramentos das quatro cores”.
O sacramento deveria ser ministrado pelo pároco, ou por outro eclesiástico, desde que
tivesse a devida licença. Porém, quando o batizando corria risco de vida, o ato religioso também
podia ser administrado em casa, pela parteira licenciada ou por qualquer outra pessoa, desde
que houvesse a intenção de fazê-lo segundo os princípios da Igreja, proferindo as palavras: “Eu
te baptizo em nome do Padre, e do Filho, e do Espírito Santo”.224
Segundo Venâncio, Sousa e Pereira,

O sacramento implicava a constituição de laços com uma nova família espiritual, que
influenciava diretamente a carnal. Era usual, no momento do batismo, o pároco fazer
algumas perguntas aos padrinhos, que as respondiam em alto e bom tom,
transformando-os em fiadores públicos daqueles por quem respondiam. Tal
compromisso significava privilégios e deveres de ambas as partes, os quais eram
reconhecidos através da obediência, fidelidade e reverência do afilhado, em
contrapartida às múltiplas responsabilidades dos padrinhos (VENÂNCIO etal, 2006,
p. 276). 225

223
Idem.
224
VENÂNCIO, Renato Pinto; SOUSA, Maria José Ferro de; PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. Compadre
Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo,
v. 26, nº 52, p. 273-294 – 2006.
225
Idem.
187

As normativas da igreja deixam claro que somente pode batizar quem estaria dentro
das regras estabelecidas, isso quer dizer, ser católico independentemente de sua condição social.
Ou seja, a prioridade deve constar no catolicismo, a inserção social poderia interferir, mas não
poderia ser inferior ao batizando, isso leva a crer que as relações de compadrio entre cativos,
senhores, livres, indicados por um senhor ou convidados, estavam dentro das relações
estabelecidas pela lei vigente da Igreja.

4.1 COMPADRIO: REGISTRO DE BATISMO DOS INDIVÍDUOS ‘INDEFINIDOS’

O cuidado que se deve ter com as percepções do enredo e emaranhado das construções
e trajetórias dos sujeitos é que elas não estão isoladas, mas intrincadas entre vários agentes
construtores das realidades sociais, ou seja, não podemos somente visualizar os cativos nesse
contexto da escravidão, também outros atores que compõem a complexidade do escravismo se
fazem presentes, como o apadrinhamento dos inocentes nascidos nas senzalas. “Isso tudo quer
dizer: é imprescindível trazer outros sujeitos ao enredo de nosso texto, mostrar que havia
indivíduos que atuavam de modo similar [as trajetórias] [...]” grifo nosso (KARSBURGUER,
2015, p. 36).226
Um exemplo claro dessas percepções, em relação às trajetórias dos cativos no Vale do
Rio dos Sinos – Paranhana, são as relações de compadrio que se apresentaram em grande
número e repetidamente com os mesmos padrinhos em condições sociais diferentes, mas com
o mesmo intuito de formar laços de solidariedades que legitimassem as possíveis oportunidades
rumo à liberdade. Essa foi uma das estratégias para a manutenção da sobrevivência, no meio
social em que esses indivíduos foram inseridos; mas para funcionar tal elemento, é necessário
procurar entender como se formaram as relações próximas, e se transformando em relação de
sociabilidades fortes, com laços que se estruturaram antes mesmo dos ‘santos óleos nas cabeças
dos inocentes’, ou seja, o batismo por pessoas próximas, mesmo que sejam escravos, libertos,
pessoas da sociedade e senhores escravistas.
Como a escravidão foi reincorporada pelo Império a partir da Constituição de 1824,
onde no pós-independência as mudanças desejadas não surtiram os efeitos que deveriam, já que
não estabeleceram as regras da nova ordem jurídica, um rearranjo foi necessário, com isso
também, a reorganização da sociedade teve fortes elementos que constituíram as bases da

226
KARSBURG, Alexandre. A Micro-história e o método da microanálise na construção de trajetórias. In.
VENDRAME, Maria Inez, etal. Micro-história, trajetórias e imigração. São Leopoldo: Oikos, 2015.
188

sociedade e sua hierarquização dentro de um contexto regulamentado pela nova ordem


administrativa imperial. Assim outras estratégias foram se formando e fortificando as relações
entre os pares dos mesmos meios sociais, ou com algumas expressões de meios sociais
diferentes.
Assim, segundo Farinatti,

Não há nada mais emblemático dessa situação do que a permanência tácita da


escravidão sob a nova ordem legal. Contudo, diversos estudos tem mostrado que,
junto e para além da questão do cativeiro, outras formas de hierarquização se faziam
presentes nos valores dos sujeitos que constituíam a sociedade do novo país. Os
critérios eram variados: cor da pele e proximidade com a escravidão, ocupação de
postos nas milícias ou na guarda nacional, apelativos que indicavam distinção social
(como dona para as mulheres), ou o fato de se registrar o nome de algumas pessoas
acompanhado do sobrenome e outras não. De tudo isso, cabe registrar a percepção de
que, mais do que institucionalmente, essas formas de hierarquização eram construídas
e transformadas socialmente. Ainda que essa constatação pareça um tanto óbvia, resta
muito por estudar no que se refere às formas como elas ocorriam nas variadas
configurações sociais existentes no Brasil do Oitocentos. Da mesma forma, cabe
estudar como as fontes geradoras de hierarquização social se vinculavam a processos
como a reiteração da escravidão e a construção do Estado nos variados rincões do
Brasil (FARINATTI, 2011, p. 1).227

Como diz na citação Farinatti, devemos estudar e perceber como as fontes podem nos
fazer entender as hierarquias que foram criadas dentro do contexto social, que se formou a partir
de 1824, e sua normativa para manter os privilégios que, anteriormente, já preestabeleciam as
bases da colonização, que, no caso, é o sistema escravocrata. Dito isto, dentro desse contexto
de regulamentação administrativa, documentos foram sendo produzidos para tais
regulamentações, desta maneira, atualmente podemos contar com os registros de batismos
como fonte primária do período imperial.
Os assentamentos de batismo nos possibilitaram um olhar diferenciado sobre os
processos constitutivos de formação social hierarquizada em proporções macro ou
regionalizadas, ampliando o campo demográfico regional e as mazelas que se estabeleceram no
contexto de desenvolvimento e esclarecimento dos modelos que foram implantados para
prevalecer a ocupação territorial, hierarquização social e econômica em determinado espaço
temporal de certa localidade de estudo, como, no nosso caso específico, olhar para dentro de
uma região única temporalmente entre 1856 a 1888, onde o número de relações escravistas se
efetivaram em grandes proporções.

227
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Relações Parentais de Escravos, Libertos e indígenas na Fronteira
Meridional (1817-1844): primeiras notas de pesquisa. 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,
11 a 13 maio de 2011, UFRGS, Porto Alegre, RS.
189

Conforme Farinatti:

Por sua vez, a decisão de investigar a partir de um único local não implica em
desconhecer o fato de que os laços e trajetórias dos sujeitos que ali viviam
ultrapassava, em diversos sentidos, os imprecisos limites daquela jurisdição
eclesiástica. Essa escolha se deu por questões metodológicas. Ela ajuda a viabilizar a
reconstrução de redes de relações sociais e de trajetórias pessoais e familiares
(FARINATTI, 2011, p. 2).228

Dentro do intuito de analisar as possíveis hierarquias que se formaram no Vale do Rio


dos Sinos – Paranhana, partimos para a análise de oitocentos e cinquenta e oito (858) registros
de batismos, no período de 1859 a 1888, tendo uma grande parcela de cativos e pessoas sem
uma denominação específica. Nessa análise os batizados se dividem em 481 registros
encontrados, que consideramos como “livres” e que denominamos como “indefinidos”,229 por
não terem uma definição especifica para sua condição social. Os outros registros somam 362
escravos, aparecendo as definições e condições desses indivíduos, além de uma subdivisão que
vai limitar as fronteiras entre esses sujeitos como livres, libertos, forros, além de mais 15
sujeitos registrados sem quaisquer especificidades de sua condição para que possamos saber
onde poderiam se enquadrar no corpo social.
Se pensarmos na estrutura metodológica que estamos utilizando, concluímos que
formamos padrões de análises que servem de base para estabelecermos o método que
utilizamos, apresentando os resultados que se seguirão ao longo do texto, o que nos leva a inferir
que sejam esses os padrões que Luís Farinatti (2011) refere em seu texto.230
Neste contexto, apresentamos, na tabela abaixo, três padrões que estabelecemos para
dar sentido à nossa pesquisa, ou seja, em nossa metodologia classificamos e separamos cada
registro de batismo de acordo com suas características específicas, para formarem, na
totalidade, três categorias que se estabelecem em uma padronização de entendimento:

228
Idem.
229
O termo “Indefinidos” será utilizado por falta de uma denominação que classifique esses indivíduos no contexto
do escravismo, supomos que muitos são de origem afrodescendente, mas não podemos afirmar já que não constam
nos registros de batismo tais dados, assim, para não cometermos enganos, vamos utilizar para esse número de
indivíduos batizados a nomenclatura de Indefinidos.
230
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Relações Parentais de Escravos, Libertos e indígenas na Fronteira
Meridional (1817-1844): primeiras notas de pesquisa. 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,
11 a 13 maio de 2011, UFRGS, Porto Alegre, RS.
190

Tabela 44 – Registro de Batismos 1859 – 1888


Indefinidos 481
Escravos 362
S/denominação 15
Registros 858
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.

O Universo do escravismo, nas regiões ocupadas do Rio Grande do Sul, se caracteriza


por pequenas e médias escravarias, isso significa que o escravismo se ramificou até os confins
dos ‘sertões’, levando o modelo de exploração sobre o homem negro para todos os sentidos.
Com uma infinidade de informações desses registros, tentamos traçar alguns caminhos que nos
levassem a um entendimento de como essas relações de compadrio se formaram e como se
estabilizaram semelhanças por tais padrinhos que fizeram parte desse processo. O trabalho para
se chagar a algumas suposições foi exaustivo. A cada análise das planilhas, novos elementos
vislumbravam outra percepção dessas relações.
Do total de 858 registros, 56% representam os batismos denominados de indefinidos,
ou seja, nesses arquivos temos alguns vestígios que possivelmente muitos são de ex-cativos,
visto que, na maioria das vezes, aparecem as profissões das mães. Já 42% representam os 362
registros de cativos batizados, onde constam seus senhores, sobrando, desse total, 2%, que se
referem aos registros sem denominação específica.

Gráfico – 04

Registro de Batismos 1859-1888

1000

500 858
481 362
15
0
858 - Registros 481 - 362 - Escravos 15 -
Indefinidos S/denominação

Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.

A partir desse gráfico, vamos expandir o entendimento sobre cada um dos itens que
compõem os elementos que aparecem no gráfico, fracionando as possibilidades e vislumbrando
trazer novos elementos para, assim, legitimar nossa proposta da presente tese, já que a
efetivação e comprovação da existência da escravidão, no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana,
já está consolidada pelos documentos de inventários post mortem, apresentados em capítulo
191

anterior; porém, com os registros de batismo podemos elencar outras possibilidades que foram
utilizadas pelos sujeitos em cativeiro para ampliar suas probabilidades e trajetórias rumo à
liberdade.
Dos 858 registros analisados, encontramos 481 indivíduos, que usaremos a
nomenclatura de ‘indefinidos’ já citado anteriormente, para distinguir das outras análises que
foram feitas. Esses representam 56% do total de registros, assim vamos dividir esses registros
por décadas, sendo a primeira a ser analisada a de 1863 até 1869, a segunda análise, de 1870 a
1879, e a terceira análise, de 1880 a 1888, findando a observação para uma melhor
compreensão, já que assinalamos perceber as quantidades de registros e frequência dos
batismos como oportunidade de relacionamento social para os que viviam em cativeiro.

Tabela 45 – Indefinidos “Livres” Batizados 1862 – 1869


Ano Quantidade Masculino Feminino Outros
1862 1 1
1863 2 1 1
1864 3 1 2
1865 9 5 4
1866 7 4 3
1867 2 1 1
1868 1 Ilegítimo
1869 1 1 Incógnito
Total 26 13 12
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.

Na primeira parcial dos registros indefinidos encontramos 26 indivíduos entre 1862 e


1869 que foram batizados e estão divididos em 13 indivíduos masculinos, que representam 50%
dessa porção e 12 indivíduos femininos, que somam 46%, incluído ali um indivíduo ilegítimo;
e mais e outro incógnito.
Para os anos seguintes, primeiramente, analisando à década de 1870 a 1879, tivemos
um aumento significante de registros de batismo em comparação a década anterior. Verificando
as tabelas 45 e 46, percebemos um aumento desses registros, que subiram de 26, da década
passada, para 185 registros, a partir de 1870 a 1879, que apresentamos abaixo. A diferença é de
611% de incremento em comparação à quantidade anterior de 26 registros dos anos anteriores,
que representam 12% em seu total de 211.
192

Tabela 46 – Indefinidos “Livres” Batizados 1870 – 1879


Ano Quantidade Masculino Feminino
1870 3 3
1871 12 7 5
1872 22 10 12
1873 15 7 8
1874 23 12 11
1875 25 12 13
1876 17 8 9
1877 22 15 7
1878 28 14 14
1879 18 10 8
Total 185 98 87
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863

Também podemos verificar as porcentagens entre o gênero masculino nesses dois


períodos, que avançam de 1862 a 1879, 50%, no período inicial, de masculinos, para 53% na
década seguinte. Invertendo para o gênero feminino, temos primeiro 46% em 1869 e 47% para
1879. Essa diferença entre os sexos se deve pela falta de documentação do período percentual,
anterior, ou falha, e o aumento de registros nos anos seguintes. Também podemos levar em
conta a Lei do Ventre Livre, de 1871, que viabilizou um aumento de registros para legitimar a
liberdade dessas crianças, pelo menos perante a lei, pois sabemos que na prática foi bem
diferente.
Se compararmos os dois períodos, onde os indivíduos masculinos somam 13
indivíduos, em 1869, com os 98 indivíduos masculinos, em 1879, chegamos a um percentual
de 611% de aumento entre as décadas analisadas. Já para os femininos, no mesmo período,
obtemos de 12 indivíduos em 1869, e chegamos a 87% um crescimento de 625% no segundo
período, findo em 1879.
Para o final do escravismo, que compreende entre 1880 a 1888, encontramos um
número considerado de registros de batismos, que somados, chega a 270 registros, assim
divididos entre gênero masculino, que somam 146 indivíduos, representados por 54% e
feminino, que somados, determinam 123 indivíduos, representados por 46%.
193

Tabela 47 – Indefinidos “Livres” Batizados 1880 a 1888


Ano Quantidade Masculino Feminino
1880 38 23 14
1881 28 12 16
1882 26 16 10
1883 29 15 14
1884 22 11 11
1885 46 21 25
1886 24 15 9
1887 32 18 14
1888 25 15 10
Total 270 146 123
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.

Na tabela 47, apresentamos os anos finais do escravismo e o aumento dos registros de


batismo, visto que essa oportunidade de formar laços sociais e, posteriormente, de afetividade
daria a esses indivíduos uma oportunidade de conquistar um lugar ao sol no pós-abolição. Tais
conquistas valorizam a resistência e a busca do reconhecimento dentro da sociedade, mesmo
que esse modelo implantado pela Igreja na colonização portuguesa seja um modo de controle
social, mesmo assim, para os que viveram em cativeiro, foi um passo em direção à reabilitação
e preservação dos ‘modos familiares’, regimentados e utilizados pelas leis constituídas pela
administração portuguesa, pela Igreja Católica e, depois, pelo Império brasileiro.
Para essa amostragem temos um índice a partir dos 270 indivíduos registrados, onde
54% representam os indivíduos masculinos e 46% para os indivíduos femininos. Esse aumento
considerável também pode ser relacionado com o fim do escravismo, e a incorporação de vez
dos preceitos religiosos para inserção social. Agora não se tem mais a obrigatoriedade imposta
pelos senhores ao batizado de seus cativos, mas a necessidade de fazer parte da sociedade por
meio do registro batismal, como documento e aceitação social.231
Relacionando as décadas de 1870 com a de 1880, no total dos indivíduos, temos um
aumento percentual de 46% para a década de 1880 em comparação à década anterior.
Fragmentando para o gênero masculino, obtemos um percentual de acréscimo de 49% em
relação à década de 1870. Para o gênero feminino, em comparação às duas décadas
exemplificadas, obtivemos um aumento de 41% em relação à década de 1870; ou seja, houve
um maior crescimento de batismos de meninos do que de meninas durante esse período
apresentado.

231
Poderíamos dizer que essa necessidade do batismo era o que já se previa no decorrer do tempo ao final do
século XIX, o processo de branqueamento já se mostrava presente, e a busca dessa inserção na sociedade por parte
da população afrodescendente já se manifestava por esse reconhecimento.
194

Como utilizamos o termo de ‘registros de batismo indefinidos’, onde buscamos


apresentar esses registros dos indivíduos onde não constam características que possam nos dizer
a qual grupo social venham pertencer, essa análise se finda, em um primeiro momento, através
da apresentação das tabelas e das porcentagens por períodos, mas isso não significa que as
probabilidades interpretativas já se esgotaram, visto que um dos elementos fundamentais dessa
relação do ‘apadrinhamento’ são os padrinhos que compuseram o quadro de registros e se
ligaram aos laços afetivos, políticos e sociais entre a sociedade livre e o cativeiro, formando
assim as bases da hierarquia que se constituíram na sociedade.
As relações sociais entre os iguais tiveram ‘tipos’ de harmonia e solidariedade por
alguns sujeitos que se relacionaram, ou alguns tipos de serviços prestados em um determinado
tempo, ou ainda uma maneira de agraciar e legitimar uma amizade. Por vezes, esse
apadrinhamento ficou restrito a familiares, no caso endógeno, para dentro da sociedade familiar;
em outras, usa-se o apadrinhamento para fora, ou seja, exógeno, para dar prestígio social.

4.2 COMPADRIO: REGISTROS DE BATISMO DOS INDIVÍDUOS EM CATIVEIRO.

Como dividimos os 858 registros de batismo em registros indefinidos e registros de


batismo em cativeiro, passamos agora a apresentar o movimento de registros dos escravizados
no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, para melhorar o entendimento da importância desses
indivíduos e presença no desenvolvimento regional local.
Como já foi anteriormente descrito, desse total de batismos, vamos apresentar os 362
indivíduos que nasceram em cativeiro a partir desse momento e também, como já foi exibido
anteriormente, dividimos esses registros por décadas, sendo a primeira a ser considerada a partir
de 1859 a 1869, a segunda análise de 1870 a 1879, e a terceira apreciação de 1880 a 1888,
buscando dar mais ênfase para os indivíduos em cativeiro.
É importante destacar que, nos registros de batismos, podemos elencar uma quantidade
maior de senhores escravistas; muitos não aparecem nos registros inventariados, assim, isso nos
dá um olhar mais atento para as questões sociais e de vultos econômicos, não excluindo cada
senhor que teve um ou mais escravos, isto é, podemos verificar que os senhores inventariados
eram possuidores de grandes patrimônios e isso prevalecem as relações de poder entre esses
agentes.
A sociedade que se formou e se projetou nas relações de poder na porção sul do Brasil,
ficando restrito a uma pequena parcela da sociedade elitizada sulina em sua totalidade, detentora
195

desse poder. O negro escravo também fez parte da construção do atual município de Taquara-
RS, onde os grandes latifundiários mantiveram suas escravarias e seu poder centralizado,
consequentemente, com a chegada dos colonos imigrantes, podemos elencar que esses também
começaram a fazer parte desse poder local através de suas posses.
Mas não ficamos atrelados somente a grandes proprietários de cativos. Percebemos
que o escravismo foi muito mais além do que uma grande escravaria. O cidadão “comum”, que
teve como comprar um escravo, também fez parte desse processo de privação da liberdade
dentro do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.
Fazendo um comparativo entre os registros de Inventários e Batismos, temos 116
inventários e somente 84 senhores que possuíam escravos, estando distribuídos entre 17
senhoras e 67 senhores. Para os batismos, dos 858 registros, obtivemos 158 senhores,
distribuídos entre 72 senhoras e 86 senhores, formando uma única base de senhores escravistas
da região, chegamos a um montante de 242 donos de escravos entre masculinos e femininos na
região onde se localiza Taquara-RS.

Tabela 48 - Registro de Senhores Escravistas 1859 - 1888


Documentos Feminino Masculino Total
Inventários 17 67 84
Batismo 72 86 158
Total 89 153 242
Fonte: Inventários e Batismos Igreja 1859 e 1888.

É dentro desse contexto que apresentamos as tabelas abaixo, buscando exemplificar


como foram distribuídas as relações de batismo por décadas e, com isso, vislumbrar as possíveis
relações que se formaram a partir desse conjunto de hipóteses de relacionamentos, entre os
senhores e afro-brasileiros em cativeiro, já que somados chegamos a 762 escravizados no Vale
do Rio dos Sinos – Paranhana. As evidências apontam também para a valorização desses
trabalhadores negros na região e não somente como coadjuvantes do processo de ocupação
territorial e desvalorização de sua permanência na região.
Por isso a necessidade de expor tais argumentos, somados às evidências de sua
presença legitimada como mão-de-obra através das fontes, viabiliza retirá-los da invisibilidade
que os cercam. Dando oportunidade de reconhecimento sobre sua capacidade de produção em
cativeiro e, posteriormente, obtenção de sua liberdade, que podemos tentar definir como outro
processo de estudo para verificação de teorias de inferioridade e exclusão regional.
196

O trabalho apresentado por Marcelo Mateus e Luís Farinatti (2016), sobre a utilização
dos registros de batismos, demonstra que a quantidade de escravos, que não aparecem nos
inventários, é muito maior do que esses documentos nos deixam ver, ou seja, se levarmos em
conta que muitos proprietários não faziam inventários, o número de escravos era bem maior do
que já sabemos.
Todavia, com a utilização dos livros de batismos, outras possibilidades surgiram, já
que esses registros, além de dar pistas sobre as relações de sociabilidade, também podem ser
úteis para contabilizar os números de cativos que não constam inventariados, assim, pode ser
outra fonte que venha a somar as quantidades de escravizados e legitimar ainda mais a presença
africana e do afro-brasileiro no sul do Brasil que constam nos inventários.
Segundo Matheus e Farinatti:

Por óbvio, não negamos a questão que boa parte destes cativos existentes nos batismos
são os próprios batizados o que, ligado ao fato que a mortalidade infantil era alta,
serve de alerta para relativizarmos os números. Contudo, os estudos a partir dos
inventários post-mortem também contabilizam crianças recém nascidas ou com um,
dois ou três anos – apesar de que, no caso dos inventários que trazem a idade dos
escravos, o pesquisador pode isolar apenas aqueles em idade produtiva e, com isso,
realizar análises mais refinadas (MATHEUS e FARINATII, 2016, p 8).232

Nesse caso específico, que citam os autores, não podemos nos basear nas quantidades
de cativos batizados, sem percebermos os senhores que fazem parte desse processo, pois, quase
sempre, são os mesmos indivíduos e isso pode nos levar a enganos quando somada a sua
totalidade, pois, essa ‘relativização’ pode acarretar e pôr em cheque todo o trabalho e,
consequentemente, a perda da credibilidade da pesquisa.
No caso do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, buscamos verificar quais cativos
batizados se repetiam nos inventários. Para nossa surpresa, somente 16 cativos foram de
senhores que apareceram como inventariados; assim, a parcela maior teve outro olhar para tal,
pois aumentou consideravelmente a presença de afro-brasileiros na região no período de estudo,
que não constavam nos inventários, diferentemente da análise de Matheus e Farinatti, que, em
sua percepção, muitos se repetiam nos registros.
Ressaltam-se números expressivos para batismos que possuíam padrinhos que não
faziam parte dos laços sociais dos senhores, portanto de outras escravarias e também padrinhos
que fazem parte da família senhorial; logo, as relações de compadrio foram um elemento crucial

232
MATHEUS, Marcelo Santos; FARINATTI, Luís Augusto. Registros de batismo e inventários post mortem
como fontes para o estudo da estrutura de posse de escravos no sul do Brasil (século XIX): possibilidades e limites.
Revista: Estudios Históricos – CDHRPyB- Año VIII - Julio 2016 - Nº 16 – ISSN: 1688 – 5317. Uruguay.
197

para os cativos, já que poderiam batizar seus filhos com padrinhos livres ou escravos de outras
fazendas.
Segundo Levi,

Nas estratégias de sobrevivência ou de poder, os padrinhos de batismo (mais do que


os compadres de casamento) nos indicam complexas redes de aliança, selecionando e
privilegiando cadeias já construídas ou criando novas. Cadeias horizontais entre
amigos e parentes do mesmo grau, ou verticais conforme as clientelas, e isso também
quando os padrinhos perderam o espaço que detinham originalmente nas estruturas
familiares, sugerindo uma contraposição entre parentesco de sangue e parentesco
espiritual (LEVI, 2015, p. 18).233

Também, os mesmos autores referem que os batismos retiram da invisibilidade


senhores que muitas vezes passam despercebidos por não serem contabilizados, visto que as
análises foram somente nos inventários. “Neste contexto, confirma-se que há uma enorme gama
de pequenos senhores que aparece nos batismos, mas são invisíveis quando se estuda a
disseminação da posse escrava somente através dos inventários (MATHEUS e FARINATTI,
2106, p. 9)”.234
Se analisarmos as quantidades desses batismos, podemos avaliar que, em sua maioria,
a pequena escravaria predominou, ou seja, 68% dos registros com um batizado somando 108
senhores, para os 22 senhores que batizaram dois cativos, a porcentagem é de 14%, assim,
diminuem-se gradativamente as quantidades de senhores, mas aumentam os registros. Para 18
batizados, temos 6 senhores com três cativos cada um, representando 4% do total. Assim,
gradualmente, temos 5% para 8 senhores, com 32 registros, 4% com 5 senhores, com 30
registros; 2% referem-se a 3 senhores e 21 registros; 1% para 2 senhores e 18 registros; 1% para
um senhor com 13 registros e 1% com 23 registros e um senhor.
Dentro desses apontamentos, encontramos dois senhores, que possuem as maiores
quantidades de batizados, somando-os, representam 2% do total de registros, os restantes se
subdividem, formando pequenos grupos de senhores e cativos. Acreditamos que também as
relações de sociabilidade e relações afetivas possam ter se manifestado, mas apenas, depois da
apresentação dos padrinhos, podemos certificar que essas relações possam ter acontecido com
frequência e representatividade.
Esse apadrinhamento vertical centra-se na necessidade de formar laços que
vislumbrem uma codificação de futuro para o desenvolvimento social e econômico das

233
LEVI, Giovanni. Reflexões sobre família e parentela. In: VERDRAME, Maíra Ines; KARSBURG, Alexandre;
WEBER, Beatriz; FARINATTI, Luís Augusto. Micro-história, trajetórias e imigração. São Leopoldo: Oikos,
2015.
234
Idem.
198

sociedades desfavorecidas, no caso, as famílias escravas, que se consumaram dentro das


escravarias e buscaram legitimar o apadrinhamento para possíveis variantes para liberdade
adquirida, mantendo assim acesa a chama da esperança de reconhecimento social e futuro
econômico para a vida.
O Vale do Rio dos Sinos – Paranhana é uma região menor do que as analisadas por
Matheus e Farinatti (Bagé e Alegrete), mas nossos números quase se equivalem, pois a
predominância de pequenos proprietários com escravos aparece e se legitima, como é o caso
do colono alemão supracitado, Franz Koch. Além de termos dois senhores com nove cativos,
um senhor com 13 cativos e um senhor com 24 cativos.
Nos parece que os padrões que se estabelecem quando se trabalha com essas fontes de
registros de batismos, são comumente relacionáveis com outras regiões, assim, um modelo que
fomenta a possibilidade de visualizar as relações entre livres, cativos e senhores, onde os laços
de solidariedade se manifestam em prol da organização familiar e grupos que se organizam com
o intuito de dar significado do que é essa relação de compadrio e convívio social (FARINATTI,
2011).235
Abaixo buscamos apresentar a distribuição dos cativos batizados por períodos anuais,
visando demonstrar como foi se formando um aumento gradativo dos indivíduos batizados,
mesmo que em alguns casos, não tivemos informações em quantidade para descrever melhor
esses subsídios contidos na tabela.

Tabela 49 – Cativos Batizados 1859 – 1869


Quantidade
Ano Masculino Feminino Criolos(as)
batizados
1859 1 1
1863 1 1
1864 7 4 3
1865 7 3 4
1866 11 5 6
1867 11 5 6 1
1868 18 8 10
1869 16 7 9
Total 72 34 38 1
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.

A tabela 49 nos apresenta 72 indivíduos batizados, tendo um aumento de registros


entre os anos de 1867 e 1868. Do montante dos indivíduos apresentados, temos uma

235
FARINATTI, Luís Augusto. Os compadres de Estêvão e Benedita: hierarquia social, compadrio e escravidão
na fronteira meridional do Brasil (1821-1845). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São
Paulo, julho 2011
199

porcentagem de 53% para o gênero feminino e 47% para o masculino, sendo que nos primeiros
anos dessa amostra não temos registros femininos.
Em comparação com a tabela 45 (indefinidos), a representação por porcentagem se
iguala com 100%, quase invertendo as porcentagens, ficam 46% para o gênero feminino e 50%
para o masculino. Somando as porcentagens das duas tabelas, os registros femininos e os
masculinos. Isso demonstra que o aumento demográfico local estava em franco
desenvolvimento para esse período e somente dois indivíduos foram identificados como
criolos(as).
Esses números mudam consideravelmente na tabela 50; os 153 batizados estão
distribuídos em 75 indivíduos masculinos, representando 47% dos que aparecem nos registros
dessa década, ainda, desse total, representando o sexo feminino, 79 mulheres somam 51%. Já
os classificados pelo tom da pele se manifestam em 44 pardos, chegando a 28% em comparação
as tabelas e as pessoas livres, que são 22 e representam 17%. Já pensando nos que chegaram à
pia batismal, a lei do ventre livre de 1871 foi efetivada para libertar as crianças nascidas a partir
desse ano. Seguido de 29 pessoas que somam 19% dos que são considerados pretos (as).

Tabela 50 – Cativos Batizados 1870 – 1879


Quant. Preto Pardo Mulato
Ano Masc Femin Liberto/livre Outr/Injeitado
batismos (a) (a) (a)
1870 18 9 9
1871 19 11 8 2 2
1872 19 11 8 7 7 4
1873 18 8 10 5 9
1874 6 3 3 3 3
1875 12 4 8 3 7 1
1876 14 7 7 7 5
1877 23 9 14 4 10 1 9 1
1878 11 7 4 1 5
1879 14 6 8 1
Total 154 75 79 29 44 1 22 1
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.

A tabela 51 nos direciona rumo ao final do escravismo, diminuindo a quantidade de


registros batismais que somam 138, mas algumas porcentagens se diferenciam
substancialmente, como é o caso do sexo feminino, que se estabelece com 75 mulheres que
representa 54% da soma total, significando que teve mais mulheres sendo batizadas nessa
década, assim, teve um aumento demográfico em comparação ao sexo masculino, que está
representado com 63 indivíduos, que atingem 46% do Total. São 192 mulheres e 171 homens
totalizando 363 indivíduos.
200

Somando as tabelas 49 e 50 com a tabela 51, podemos verificar que os números tendem
a aumentar sobre a questão do sexo feminino, assim, tivemos um percentual de batismos
femininos que chega a 53%, de 1859 a 1888, contra 47% do sexo masculino no mesmo período.
Isso significa um aumento demográfico considerável para a sociedade e batismos. Também, na
questão da cor da pele – principalmente no processo de miscigenação e sua complexidade –, as
diferenças aumentam, por exemplo, de 1880 até 1888 obtivemos o número de 40 indivíduos
pardos que significa 29% do total de 138. Os restantes se distribuem em 27 pretos, que somam
20%; com contratos de liberdade são 19 indivíduos, somando 13%, e 56 indivíduos em condição
de livre ou liberto, representando 40%.
Com a porcentagem de 29% dos pardos, também verificando na tabela 50, percebemos
que o processo endógeno foi em grande escala. As porcentagens comparadas entre pretos
somam 20%, que aumentaram suas relações com os mesmos do seu grupo no período anterior
(19%).

Tabela 51 – Cativos Batizados 1880 – 1888


Preto
Ano Quant Masculino Feminino Pardo (a) Contrato Livres
(a)
1880 20 10 10
1881 19 9 10
1882 25 7 18 1 3 6
1883 9 4 5 2 4 1
1884 21 8 13 11 9 7 8
1885 4 3 1 4 3 3
1886 17 11 6 2 9 9 15
1887 11 6 5 3 7 11
1888 12 5 7 8 4 12
Total 138 63 75 27 40 19 56
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.

Como visto, percorremos os registros de batismos para afirmar que o número de


escravos é uma porção considerável e, a partir desse levantamento, comprovamos que a
presença africana e afro-brasileira na região do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana teve uma
grande quantidade de trabalhadores. Isso já está comprovado, mas buscamos verificar como as
relações entre esses cativos e a sociedade local se estabeleceu. Não menos importante é entender
o movimento das famílias que constituíram as bases sociais aqui apresentadas através dos
batismos.
A porção de pais que batizaram suas crianças cativas também são relevantes. Temos
um percentual alto de mães e pouquíssimos pais, pois as dificuldades de saber quem era o pai
dentro do escravismo foi e ainda é um problema, visto que não podemos traçar um mapa
201

demográfico a partir de casais. Ainda se tem muito pouca condição para isso, por falta de
registros nos documentos de época, assim podemos somente deduzir o que aconteceu. Tão
somente os registros poderiam traçar um panorama para uma argumentação mais relevante,
mas, ainda dentro desse esforço, encontramos elementos que nos mostraram um percentual alto
de mães cativas que batizaram seus filhos com o consentimento de seus senhores.
Neste caso, encontramos informações acentuadas que legitimam nossa pesquisa
quando nos deparamos com os registros de batismos. Neles podemos verificar a quantidade de
mães e suas classificações dentro do sistema escravista, bem como sua condição no cativeiro
ou fora dele, levando nas entranhas da vida social as denominações que repousam em larga
escala como inferiorização.

Tabela 52 – Mães e Pais Cativos com Classificação Social 1859 -1888


Feminino Masculino Total
Escravos 204 5 209
Liberta 34 1 35
Livre 38 15 53
Forra 1 1
Nação 1 1
Incógnito 13 13
Total 291 21 312
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.

Encontramos um total de 312 indivíduos, entre homens e mulheres, com condições


sociais diferentes e analisaremos os casos separadamente, conforme a exposição das tabelas.
Os pais escravos representam 67% desse total, predominando o sexo feminino como único
representante legal da criança batizada, visto que em sua maioria não aparecem casais formais
como pais dessas crianças. Já para os homens e mulheres libertos, que representam 11%,
podemos perceber que em certos momentos as negociações pela liberdade foram tratadas entre
senhores e cativos. Ainda assim temos 1% em quase representa em uma cativa forra.
Para os livres, com a soma de 17%, favorecem as condições de ampliar as redes de
solidariedade, também pensando como ganharam a liberdade e como lidaram para sobreviver,
visto que, pelos seus nomes, podemos dizer que eram cativos e “formaram alguns casais”. Para
os incógnitos, a porcentagem é de 4%; esses no geral são os indivíduos que não aparecem com
nenhuma especificidade sobre sua condição.
202

Tabela 53 - Porcentagem e definições dos pais das crianças batizadas


Escravos Libertos Livres Forros Nação Incógnitos
Quant 209 35 53 1 1 13
% 67% 11% 17% 0,5% 0,5% 4%
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.

Dentro desse processo, passamos a analisar os casos específicos, com suas quantidades
e porcentagens para cada sujeito e classificação, que denomina e determina a condição social a
partir da tabela 52, que compreende 312 indivíduos envolvidos nas questões de batismo. Com
isso, damos início à análise com as mulheres e suas condições sociais, sendo um total de 291
mães em condições diferentes, sobre 312 indivíduos.
As mães escravas (tabela 52) somam 204 mulheres, que representam 70% do total de
291 mães em condições adversas, ampliando as bases da resistência ao sistema e envolvendo
outros atores. As mães livres somam 34 libertas, que atingem 12% do valor total exposto. As
mães forras e nação somam duas na classificação e fecham em 0,6%, e as mães que não
aparecem seus nomes e assim denominadas de ‘incógnitas’ representam 4,4% do total das
mulheres que batizaram seus filhos no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana. E sobraram 13%
para as mulheres livres.

Tabela 54 – Condições das Mães dos Batizados 1859 a 1888


Escrava/o Liberta/o Forra/o Nação Incógnito
Quantidade 204 34 1 1 13
Feminino
% 81% 13% 0,5% 0,5% 5%
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.

É importante ressaltar que nos registros de batismo, no caso dos cativos, os pais dessas
crianças aparecem muito pouco: o número encontrado foi de 21 indivíduos com denominações
de classificação social, que somam 24% para os pais escravos, 71% para os pais livres e 5%
para os pais libertos. Todos os dados referentes a tabela 52.

Tabela 55 – Condições dos Pais Homens dos Batizados 1859 a 1888


Escrava/o Liberta/o Livres
Quantidade 5 1 15
% 24% 5% 71%
Fonte: Livros de Batismos Igreja Evangélica 1859 e Igreja Católica 1863.
203

Esses números tendem a crescer quando feitas as análises individuais, evidenciadas


mais adiante nesse trabalho. Também se verifica quais são as relações entre esses sujeitos e
seus senhores, visto que temos escravos, livres e libertos. Podemos traçar um entendimento de
como se formaram as relações de sociabilidade para dar suporte à sua condição de chegar à
liberdade, assim, o Vale do Rio dos Sinos – Paranhana vai se ampliando nas questões de como
esses afro-brasileiros passaram a conviver com sua realidade de cativeiro e liberdade.

Tabela 56 – Mães e Pais Cativos Sem Classificação Étnica 1859 -1888


Mães Pais Total
Sem/Definição 429 2 431
Solteiras 13 13
Domesticas 26 26
Lavadeiras 9 9
Costureiras 3 3
Lavrador 3 3
Total 480 5 485
Fonte: Livros de Batismos Igreja Católica 1863 e Igreja Evangélica 1859.

Nos registros analisados, encontramos 485 batismos que não deixaram pistas da
procedência étnica dos pais, somente as classificações sociais de trabalho, isso representa que
88,5% das mães não possuem definições sobre sua condição. Vimos que 2,7% representam
mães solteiras, já as mães domésticas somam 5,4%; mães lavadeiras somam 2%; mães
costureiras, 0,7%, e pais lavradores, 0,7%, fechando o total de 485 batismos e seus respectivos
pais, que não possuem uma especificação sobre quem são ou de onde vieram.
A importância dos registros de batismos nos leva para questões que possam esclarecer
como essas relações de sociabilidade se transformaram, gerando significados para os afro-
brasileiros, senhores e padrinhos. Nos levando a pensar o porquê dessas pessoas batizarem
negros escravizados, visto que eram considerados inferiores dentro da sociedade branca. No
entanto, através desses registros chegamos a uma resposta, por meio da análise do registro de
batismo dos escravos do senhor Franz Koch 1859, colono na região.
Não temos dúvidas que, mesmo em alguns casos, como o senhor Franz Koch, que
possuía 16 escravos – somados as crianças batizadas e seus pais e padrinhos –, se valeu de
solidariedade e pela sua fé religiosa para batizar seus cativos, embora fizesse parte da
comunidade evangélica, usurpava ao máximo seus trabalhadores, pois eram vistos, em sua
concepção, como mercadorias móveis que deveriam ser controladas para não causarem
204

problemas na comunidade onde é hoje o município de Igrejinha, dentro do Vale do Rio do Sinos
- Paranhana.
Na bibliografia local aparece uma descrição na obra de Erni Engelmann (2005), já
citada em outro capítulo, onde afirma que Franz Koch maltratava seus escravos, era agressivo
e que não suportava vê-los como pessoas, mas como animais a serem domesticados. Mesmo
assim a força da religiosidade imperava de tal maneira como representação para este senhor em
sua construção social, que favoreceu para os cativos o batismo, significando para os mesmos
outro sentido mais forte que os maus tratos aplicados, dando assim, a esses indivíduos, uma
possibilidade de relacionar-se com outros membros da sociedade local e viabilizando algum
processo de possibilidade à resistência sobre suas vidas em prol da liberdade.

Tabela 57 – Escravos de Franz Koch – 1859 a 1878


Femininos Masculinos Condição Total
Crianças 2 3 Escravos e ventre livre 5
Pais 4 3 Escravos 7
Padrinhos 2 2 Escravos 4
Total 8 8 16
Fonte: Livro de Registro 1,2,3 e Caderno 1 e 2-Batismos, part-1,1859-1890-Igreja Evangélica
de Igrejinha – RS.

Franz Koch possuía 16 cativos, como mostra a tabela acima, poderia ser mais uma
escravaria no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana; todavia, o que chamou nossa atenção foi que
nos livros de Registros da Igreja Evangélica, esse é o único registro de batismo de negros
escravizados nos arquivos disponíveis. Embora tratasse seus escravos com desprezo, buscou
colocá-los dentro de uma organização religiosa, manteve a doutrina evangélica e a crença de
que as pessoas sem o batismo vagariam pelo mundo sem direção e longe do poder de Deus.
Nas análises gerais dos registros, percebe-se que para os escravizados não lhes eram
atribuídos ‘sobrenomes’, somente a definição de um prenome próprio. Mas os cativos de Franz
Koch nos dão um outro exemplo de como as relações vão se formando, buscando estabelecer
certos coeficientes que regulamentam características diferentes dos demais registros.
Exemplo disso são esses cativos relacionados que utilizam nomes e prenomes,
definindo como uma escravaria se difere das demais na região do Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana. Para exemplo disso temos a escrava batizada em 1870, Maria Lina Romann, filha
de Manoel Romann e Kantina Anton, tendo, como padrinhos, Johannes Müller e Magdalena
Müller.
205

O sobrenome de seu pai, Manoel Romann, deve ter sido “adquirido” através de
relações próximas de algum senhor e comprado por Franz Koch. Se não tivesse a especificação
de escravo, passaria despercebido como mais um registro de batismo e não como sendo um
afro-brasileiro que esteve presente na ocupação e construção da região. Além de dar outro
aspecto ao nome completo de sua filha, também denota que a conquista de Manoel deve ter sido
uma luta constante para ser registrado com um sobrenome.
No mesmo registro encontramos também o batismo de Hermann Peter, em 1878, filho
de Ismael e Candinha e aparece com prenome e sobrenome, mas aqui nesse caso, já podemos
analisar como sendo uma homenagem ou referência de agradecimento pelo batismo, visto que
seus padrinhos eram Peter Sander e Hermine Sander. Para esse mesmo casal de escravos, Ismael
e Candinha, também se destaca o seu filho Heinrich que foi batizado em 1873 pelos padrinhos
Heinrich Werb e Margaretha Werb, sendo ambos escravos.
Nos casos citados, ambos os filhos de Manoel Romann e Kantina Anton, Ismael e
Candinha, encontramos as relações de sociabilidade, já que, em forma de homenagem, os filhos
dos casais utilizaram o prenome de seus padrinhos ou sobrenome dos pais, mesmo que um
padrinho seja escravo (Heinrich Werb). Fortificam-se as relações sociais e políticas e de
solidariedade, visando formularem condições para a vida em liberdade e facilitando as
oportunidades pelo apadrinhamento.
Mesmo tendo características diferentes entre os padrinhos, ambos admitem abranger
que as tentativas de resistência ao sistema escravista já estavam sendo constituídas
anteriormente a esses batismos, pois as mesmas condições de utilizarem o sobrenome de algum
membro da sociedade ou mesmo de seu senhor nos deixam perceber que as relações entre
senhores e cativos já vinham sendo construídas anteriormente por meio de “relações solidárias
ou boas relações sociais” na sociedade alemã colonizadora do Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana.
Chegamos ao entendimento que esses batismos, de Maria Lina Romann e Hermann
Peter, possam ter sido diferenciados para a vida futura dessas crianças, visto que, ser
apadrinhado e acrescido de um sobrenome, a representação para ser incluso na sociedade com
um pouco mais de facilidade que os demais, foi um dos elementos constitutivos que nortearam
a resistência. Claro, não sendo anacrônico e sabendo que a inserção dos negros na sociedade
branca não foi assim tão branda, percebemos que foram fortificados os laços de solidariedade
entre esses sujeitos.
Há outro caso no mesmo registro que nos faz repensar as diferentes formas de
resistência ao escravismo e sociabilidade através dos laços de solidariedade. E, de como é
206

importante que os cativos tenham o sobrenome e a oportunidade de colocar em seu registro. O


caso da escrava Margaretha, 1873, filha de Cantinha e Imanuel, ambos escravos, porém com
um diferencial sobre seus padrinhos, sendo Adam Wilbert e Margaretha Wilbert, também
ambos escravos. Se não tivesse a especificação de que esses padrinhos eram escravos, logo
passaria despercebido do mesmo modo, visto que o sobrenome alemão deixaria claro que eram
colonos.
Segundo Farinatti:

Havia aqueles que tinham apenas seu nome grafado. Outros, tinham registrado o que
nos parece hoje dois nomes (e.g., Maria Francisca, Manoel Antônio), ainda que o
segundo prenome pudesse funcionar como um sobrenome, já que, por vezes, podia
ser transferido aos filhos. A seguir, temos os que tinham registrado nome e sobrenome.
Por fim, havia os que, antes do nome completo, traziam algum sinal de distinção
social, como o apelativo dona para as mulheres e os postos de oficiais do exército
(mais raros), de milícias (até c. 1831) ou da guarda nacional (a partir de 1831) para os
homens (FARINATTI, 2011, p. 9-10).236

Dando continuidade à análise sobre esses registros, somente prenomes, como


Venancio, não foi possível verificar mais detalhes, já que consta em seu registro “filho de
escrava”. Com Margaretha e Henrich, já expostos, podemos perceber que os cativos de Franz
Koch tiveram algumas chances de conseguirem um sobrenome, mesmo que seus padrinhos não
tivessem a liberdade, puderam repassar sua vantagem de mais um nome em seu registro, além
dos padrinhos Johannes Müller e Magdalena Müller, todos os citados eram escravos desse
senhor que, embora sendo maltratados, tiveram a oportunidade de serem batizados e adquirirem
um sobrenome.
Esse caso nos fez refletir e questionar sobre a utilização de um ‘prenome mais
sobrenome’, tornando-se assim difícil de encontrar afro-brasileiros que não tiveram a
especificação que classificasse sua condição, perfazendo e sendo um elemento diferenciado nos
registros de batismos da Igreja Evangélica em comparação com os registros de batismos da
Igreja Católica.
Chegamos a uma conclusão prévia de que muitos escravos batizados nas Igrejas
Evangélicas do Rio Grande do Sul não tiveram suas características sociais especificadas
corretamente, dificultando a identificação de mais alguns indivíduos africanos e afro-brasileiros
escravizados, que aumentaria, substancialmente, a quantidade e as suas condições sociais
dentro do processo de ocupação territorial.

236
FARINATTI, Luís Augusto. Os compadres de Estêvão e Benedita: hierarquia social, compadrio e escravidão
na fronteira meridional do Brasil (1821-1845). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São
Paulo, julho 2011.
207

4.3 PADRINHOS: RELAÇÕES SOCIAIS E ESPERANÇAS FUTURAS.

Dentro do apadrinhamento e relações sociais dos cativos, também foi elencado o


levantamento da quantidade de padrinhos desses registros de batismo, buscando quantificar e
perceber como eram tecidas as teias de solidariedade e sociabilidade, além das relações afetivas,
que compuseram a trama político-social da região de pesquisa. Com as análises chegamos a
valores significativos para o período de 1859 a 1888, formando um total de padrinhos e
madrinhas de mil quatrocentos e noventa pessoas (1.490), com definições sociais diferentes
entre si e algumas sem definições.
Os vínculos estabelecidos, o prestígio para o padrinho, a representação e poder em um
meio social se solidificam a partir da necessidade de representação social. Por que tal escravo
batiza tantas crianças? Isso chama a atenção não só dos historiadores, mas também da sociedade
local. Esse elemento vai ter o respaldo social por motivos de bons relacionamentos anteriores
com seu(s) senhor(es) dentro da sociedade, ou por entender que essa atitude pudesse validar
alguma vantagem futura, por isso adquiriu prestígio para batizar.
Para o padrinho, o poder adquirido sobre seus compadres e coirmãos de cativeiro, seria
também uma maneira de legitimar as possibilidades de aproximar familiares, ou até mesmo a
sua própria prole, da realidade em que se encontrava, assim poderia transitar por todas as arestas
da sociedade. A quantidade de vezes que tais padrinhos estiveram em pias batismais poderia
modificar ou designar a sua permanência em uma determinada esfera da sociedade. por
exemplo, pela cor da pele, essa inserção, em outro patamar, poderia levar esses padrinhos a
outras vantagens sociais.
A partir da análise dos 1.490 padrinhos e madrinhas, verificamos que eles estão
distribuídos da seguinte maneira: são 112 padrinhos e 118 madrinhas escravos encontrados. Já
para os afro-brasileiros libertos, encontramos um total de 12 do gênero masculino e 11
feminino, ainda nessa mesma linha para os indivíduos livres, achamos 6 pessoas do gênero
masculino e 6 pessoas do gênero feminino como padrinhos e madrinhas. Já para os padrinhos
solteiros, a soma é de 39 padrinhos e 36 madrinhas, mais 5 viúvas, 3 militares e 2 indivíduos
sem padrinhos, além de 1.140 sem denominação nos registros e sem definição de gênero, além
de não deixarem pistas das quantidades e diferenças entre padrinhos, somente os registros que
batizaram seus afilhados.
208

Tabela 58 - Padrinhos e Madrinhas 1859 – 1888


Padrinhos Masculinos Femininos Total %
Escravos 112 118 230 15
Libertos 12 11 23 2
Livres 6 6 12 1
Solteiros 39 36 75 5
Viúvas 5 5 0,3
Militares 3 3 0,2
Sem/padrin 2 0,1
Sem/denomi 1140 76,4
Total 1490
Fonte: Livros de Batismos Igreja Católica 1863 e Igreja Evangélica 1859.

Esses parâmetros de socialização centram-se de acordo com as práticas sociais que


foram estabelecidas durante o processo de ocupação regional. Com isso, as viabilidades de
ampliar as relações sociais também aumentaram as possibilidades de relações afetivas e
relações políticas, que mantiveram a estabilidade social e as possíveis manifestações de
resistência nas fronteiras de inferiorização que se estabeleceram entre cativos e a sociedade
branca.
Vimos que as relações de compadrio foram fatores de grande importância para a
manutenção do sistema social afro-brasileiro. Através desse processo, muitas relações do
cativeiro se viabilizaram para o fortalecimento da resistência e permanência em luta contra o
sistema escravista, também pensando como manutenção social que manteve as relações de
sociabilidade entre tais senhores e seus agregados em cativeiro.
Não obstante essas relações muitas vezes estiveram centradas em parcelas de
conquistas, como o prestígio social e prestígio econômico, as relações de proximidades com
outros fatores exigiam um patamar de maior representatividade nesse meio, além da busca da
fidelidade de ambas as partes envolvidas. Assim, todo o processo de compadrio se caracterizou
em uma complexidade de relações centradas na posição social em que cada membro se
encontrava.
Renato Pinto Venâncio (2006), em seu trabalho sobre o compadrio em Vila Rica no
final do século XVIII, utiliza as fontes batismais para eleger as relações que se formaram na
elite local. Segundo esse autor, um dos elementos primordiais que se formou nessa localidade
foi a noção da ‘amizade desigual’, ou seja, o compadrio formou a base da organização social,
mesmo que muitos atores não pertenciam ao mesmo grupo de origem, causando vínculos
intensos e laços de parentesco entre os pares diversos.
209

Assim, Venâncio et al destacam:

[...], na sociedade da época, a noção de ‘prestígio’ vinculava-se à capacidade de dispor


de recursos (fossem eles pessoais ou do aparelho de Estado), gerando assim uma
‘economia de favores’, de dom e contra-dom; em outras palavras, de reciprocidade
social envolvendo desiguais. Ao benfeitor cabia conceder e ao beneficiado cabia ser
fiel, não sendo esse gesto visto como um desvio da ‘norma’, mas sim como sua
corporificação (VENÂNCIO et al. 2006, p. 274).237

Dentro dessa concepção de ‘economia de favores’, nossa pesquisa se desenvolve, entre


contexto de lealdade e reciprocidade social. Dos 230 padrinhos escravos 51% são do sexo
feminino e 49% são de sexo masculino, já os libertos somam 23, onde encontramos 12
indivíduos masculinos, que representam 52% e 11 de sexo feminino, com 48% do total, já os
livres somam 12 padrinhos, sendo 6 masculinos e 6 femininos, sendo 50% para cada lado. Os
solteiros somam 75 padrinhos, sendo 52% de sexo masculino, num total de 39 indivíduos, já os
36 femininos representam 48%. O restante já está descrito na tabela 58.

Tabela 59 – Padrinhos e Madrinhas 1859-1888


Padrinhos Masculinos % Feminino % Total
Escravos 112 49% 118 51% 230
Libertos 12 51% 11 48% 23
Livres 6 50% 6 50% 12
Solteiros 39 52% 36 48% 75
Fonte: Livros de Batismos Igreja Católica 1863 e Igreja Evangélica 1859.

Dentro dessas relações e porcentagens, temos os padrinhos e madrinhas que mais


batizaram. A partir de agora vamos analisar quem são esses padrinhos e quantas vezes as
relações de compadrio se estabeleceram entre os mesmos indivíduos e quais relações se
formaram com esses padrinhos. Foram indicações dos senhores ou por ocuparem um patamar
melhor dentro da sociedade?
O levantamento que fizemos nos deu um número de batismos com padrinhos repetidos
em grande proporção para a região do Vale do Rio dos Sinos – Paranhana. Obtivemos 73
registros que se repetem os padrinhos e madrinhas, sendo o sexo feminino mais afeiçoado a
batizar do que o masculino.
Para os padrinhos, são somados 31 batismos, divididos por vezes que chegaram à pia
batismal, ou seja, dos 73 registros totalizados, 42% são padrinhos. 64,5% representam os 20

237
VENÂNCIO, Renato Pinto; SOUSA, Maria José Ferro de; PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. Compadre
Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo,
v. 26, nº 52, p. 273-294 – 2006.
210

padrinhos que aparecem três vezes nos registros, já os 7 padrinhos que chegaram para batizar
quatro vezes à pia batismal representam 22,5%. Para um (01) padrinho que teve a chance de
batizar cinco vezes, chegamos a 3,5%, e os outros dois que batizaram 6 vezes, representando
6%, restando somente um padrinho que batizou sete vezes, chegando a 3,5% do total dos 31
registros.

Tabela 60 – Padrinhos e Madrinhas que Mais Batizaram


Masculino Quantidade Feminino Quantidade
20 3 vezes 22 3 vezes
7 4 vezes 9 4 vezes
1 5 vezes 6 5 vezes
2 6 vezes 1 6 vezes
1 7 vezes 1 7 vezes
1 8 vezes
1 12 vezes
1 20 vezes
31 42
Fonte: Livros de Batismos Igreja Católica 1863 e Igreja Evangélica 1859.

As relações de compadrio são verdadeiras teias de relacionamentos que se


configuraram de forma que fosse possível uma possibilidade de inserção social, muitas vezes,
direcionadas aos padrinhos para manter o controle dos senhores, outras vezes, a partir de
relacionamentos que surgiram dentro da própria senzala, assim as configurações de batismo
vão se estabelecendo e tais eventos selecionam aos cativos, ex-cativos ou livres que vão batizar
os filhos do escravismo.

4.3.1 Padrinhos que mais batizaram no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.

Vamos elencar um pouco a descrição dos padrinhos que mais batizaram no Vale do
Rio dos Sinos – Paranhana, como é o caso de João Gonçalves de Oliveira e Rosa Gonçalves de
Lima, que estiveram presentes na pia batismal durante o período de 1875 a 1885. Os batismos,
para esse casal, se caracterizam por poucas informações descritas nos registros; no entanto,
acreditamos que as crianças sejam filhos de escravos e livres, em virtude de fazerem parte de
cinco registros. Entendemos que sua representatividade no meio social para os cativos se dava
por sua influência e a possibilidade de inserção na sociedade, pois, pelo contrário, não teriam
batizado cinco crianças.
211

Balthazar José Bernardes era um senhor de escravos e também apadrinhou algumas


crianças a partir dos anos de 1874 até 1887. Em 05 de setembro de 1873, o padre Antonio
Guedes de Assis e Emilia Candida Bernardes batizaram Hildefonso, ventre livre, filho de
Guilhermina Candida, escrava de Balthazar J. Bernardes. O mesmo senhor batizou Emiliana
em 02 de fevereiro de 1884, filha de Maria, escrava de João Pires Silveira.
Em outros dois registros, Balthazar J. Bernardes aparece na pia batismal derramando
o santo óleo nas frontes de Brasiliano, filho de Mariana liberta, e de Julia, filha de Justina liberta,
ambas com contrato, o primeiro em 1886 e a segunda em 1887, somando-se seis registros no
total de batismos.
As relações de solidariedade, afetividade e sociais estão muito implícitas dentro do
compadrio, além dos padrinhos serem um elo social civil, a igreja tem importância em manter
tais atividades e o controle social. Na complexidade dessas relações, até mesmos padres
batizavam crianças afro-brasileiras como é o caso citado acima de Hildefonso ‘ventre livre’,
filho de uma escrava de Balthazar J. Bernardes.
Em sua análise Martha Daisson Hameister analisa o compadrio na Vila do Rio Grande
através dos registros de batismo produzidos durante o século XIX, onde percebeu: “Nos
registros de batismos que analisei para a Vila do Rio Grande, ainda que pudessem admitir
pessoa de idade abaixo da normatizada para batizar uma criança, ou mesmo padres ordenados
como padrinhos, não encontrei registro algum de pessoa não-cristã como padrinho de alguém
(HAMEISTER, 2011, p. 8).238
Notamos que é uma prática, mesmo que seja em poucas proporções, que um pároco
batizasse uma criança. Mas dentro das normativas da Igreja somente pessoas cristãs poderiam
chegar a tal ato. Mas o que levou o padre Antonio Guedes de Assis batizar Hildefonso? Não
esquecendo que a madrinha era a esposa do senhor, se considerarmos, isso poderia ser uma
troca de favores entre senhor e igreja, ou a falta de uma indicação de um padrinho com mais
prestígio social, ou somente relações solidárias. Mas o que fica é a complexidade do compadrio
que se fez presente e a construção hierárquica que vai se estabilizando nesses processos de
relações próximas.
Francisco Alves dos Santos e Generosa dos Santos batizaram João, em 1866, filho de
Maria, escrava de Clara Ignacia de Jesus. Padrinhos também de Marinila, em 1868, filha de
Joaquim e Maria José, preta criola, ambos livres. O mesmo padrinho batizou, com Maria

238
HAMEISTER, Martha Daisson. O Uso dos Registros Batismais para o estudo de Hierarquias Sociais no
Período de vigência da Escravidão. 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 11 a 13 maio de
2011, UFRGS, Porto Alegre, RS.
212

Angélica Santos, João, em 1870, filho de Prudência Maria, assim também Maria Angélica em
1884, filha de Balbina Manique. Francisco A. dos Santos ainda tinha batizado, em 1878, com
Maria Joaquina da Conceição, Maria, filha de Anna Maria Gertrudes.
Francisco Alves dos Santos ainda possibilitou que Rafael liberto e Tito, seu escravo,
batizassem Perceverando em 1868, filho de Maria criola, escrava de Clara Ignacia de Jesus,
deixando claro as relações próximas e de sociabilidade entre senhores, livres e escravos. Para
esse senhor e padrinho somam-se também seis registros.
A construção da hierarquia social demonstra que, mesmo estando em grupos sociais
diferentes, as estruturas se estabilizam em um contato direto de relações naturais, ainda que não
haja um parâmetro de valor social, naturalmente as circunstâncias de afeições, solidariedades,
e respeito mútuo se fazem presentes entre os agentes envolvidos dentro da composição das
relações próximas existentes entre esses pares. Assim essa construção vai se estabilizando entre
ambos os grupos e indivíduos.
Farinatti chama a atenção para essas questões de formação de hierarquias:

Ao invés disso, o compadrio se apresenta como uma situação variável de acordo com
circunstâncias e conjunturas específicas. Isso, porém, não quer dizer que tenha tido
caráter aleatório e que o casuísmo seria uma boa descrição para essas práticas. Não há
dúvidas de que se tratava de uma oportunidade importante para o estabelecimento ou
ritualização de relações significativas para os escravos e para seus senhores
(FARINATTI, 2011, p. 15).239

José Alves dos Santos é um militar com patente de major, foi o padrinho que mais
batizou no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana. Até o momento, encontramos sete registros
onde consta o nome desse militar, talvez por ocupar um cargo dentro da sociedade possa se
fazer valer a afeição entre seus pares, com isso também viabilizou alguns batismos que lhe
renderam uma atividade afetiva por parte dos pais dos batizandos e aumentando seu prestígio e
reconhecimento como cidadão.
José Alves dos Santos e Maria Francisca dos Santos batizaram Onofre, em 1879, filho
de Candida Manique de Jesus. Com Mariana Velloso, José Alves batizou a menina Matilda, em
1864, filha da escrava Eva, pertencente a Bento Pereira Dias, e também, com a madrinha Maria
Francisca dos Santos, batizou a menina Maria Francisca, em 1881, filha de Maria B,
(incompleto).

239
FARINATTI, Luis Augusto. Os compadres de Estêvão e Benedita: hierarquia social, compadrio e escravidão
na fronteira meridional do Brasil (1821-1845). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São
Paulo, julho 2011.
213

Por ser requisitado para apadrinhamento, ou indicado através de suas relações sociais,
José Alves dos Santos e Anna Bernardina da Silva, batizaram Maria, em 1882, filha de João
José e Francisca Amélia. Concretizando, além disso, o batismo; com Vicentina Francisca
Fernandes, o da criança Francisca, em 1884, filha de Rosalina Silveira dos Santos que
trabalhava em serviços domésticos. Maria Angelica dos Santos e José Alves realizaram o
batismo de Haldimira, em 1885, filha de Leonor Maria de Oliveira e, em companhia de Maria
José de Oliveira, batizou Jordelino, em 1888, filho de Poliana Rosa de Jesus.
Nos trabalhos de Farinatti (2011), Cunha (2013), Soares (2010), Matheus e Farinatti
(2016), Hameister (2011), Venâncio (2006), Soares (2010), aparecem as relações de militares
fazendo parte do compadrio e sua representatividade na vida social. A procura por esses
indivíduos está centrada pelo poder e representação que essa patente pode elencar para uma
pessoa comum dentro das questões de apadrinhamento e visibilidade no meio social. Como no
caso do major José Alves dos Santos, no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, que batizou
crianças escravas e livres com diversas madrinhas.240
Nesse contexto geral, essa mescla de batismos, com diferentes padrinhos e madrinhas,
demonstra o emaranhado das relações sociais que se estabeleceram na região. São diversos os
casos dessas relações que mantiveram as esperanças de um movimento ondulatório para os
cativos percorrerem as fronteiras do reconhecimento como indivíduos aptos para levarem suas
vidas de acordo com sua realidade, em primeiro, os cativeiros, em segundo, o apadrinhamento
e, consequentemente, seu desenvolvimento social sem restrições na grande cadeia de relações
sociais.

240
FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Relações Parentais de Escravos, Libertos e indígenas na Fronteira
Meridional (1817-1844): primeiras notas de pesquisa. 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,
11 a 13 maio de 2011, UFRGS, Porto Alegre, RS.
FARINATTI, Luis Augusto. Os compadres de Estêvão e Benedita: hierarquia social, compadrio e escravidão na
fronteira meridional do Brasil (1821-1845). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São
Paulo, julho 2011.
CUNHA, Joceneide. Entre Padrinhos e Compadres: os africanos nos livros de batismos em Sergipe (1785-1835).
XXVII Simpósio Nacional de História – HNPUH. Natal, 22-26 de julho, 2013.
MATHEUS, Marcelo Santos; FARINATTI, Luís Augusto. Registros de batismo e inventários post mortem como
fontes para o estudo da estrutura de posse de escravos no sul do Brasil (século XIX): possibilidades e limites.
Revista: Estudios Históricos – CDHRPyB- Año VIII - Julio 2016 - Nº 16 – ISSN: 1688 – 5317. Uruguay.
HAMEISTER, Martha Daisson. O Uso dos Registros Batismais para o estudo de Hierarquias Sociais no Período
de vigência da Escravidão. 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 11 a 13 maio de 2011,
UFRGS, Porto Alegre, RS.
VENÂNCIO, Renato Pinto; SOUSA, Maria José Ferro de; PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. Compadre
Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo,
v. 26, nº 52, p. 273-294 – 2006.
SOARES, Carlos Eugenio Líbano. “Instruído na Fé, Batizado em Pé”: batismo de africanos na Sé da Bahia na
1ª metade do século XVIII, 1734-1742. Revista: Afro-Ásia, 39 – 2010, 79-113.
214

4.3.2 Madrinhas que mais batizaram no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana.

A partir de agora daremos ênfase para as madrinhas que, somadas as que mais
batizaram, chegam a 42, representando 58% em comparativo com os padrinhos, isso quer dizer
que as mulheres foram mais solicitadas para apadrinhar que os homens, já que os mesmos
atingiram somente 42% do apadrinhamento.
Essa diferença entre o gênero de apadrinhamento pode ser considerada pela
proximidade das mães com as madrinhas e, consequentemente, as madrinhas se aproximando
dos padrinhos, mesmos que fossem indicações senhoriais. Essa aproximação pode ter
acontecido e transformado as relações de sociabilidade em relações de proximidade e
solidariedade.
Como apresentado na tabela 60, as madrinhas representam 42 mulheres, que se
dispuseram a batizar os filhos da “sociedade”, essas estão distribuídas de acordo como as vezes
que estiveram na pia batismal. Nesse contexto, 22 madrinhas chegaram até a igreja com seus
afilhados pelo menos três vezes, representando 52% das madrinhas que aparecem na tabela 60.
Das madrinhas que batizaram quatro vezes, somam-se 09 mulheres, que representam 21,5%
nos registros.
Há as madrinhas que conseguiram participar mais ativamente na aplicação dos santos
óleos na cabeça das crianças e tiveram sua participação por mais de uma vez nesse processo de
encaminhar os inocentes à vida religiosa, como por exemplo, 06 madrinhas que batizaram cinco
crianças cada, sendo representada por 14%. As madrinhas que batizaram entre 6 a 7 crianças
aparecem com 2,5% de representatividade, sendo uma madrinha batizando seis crianças e outra
batizando sete inocentes.
As mulheres que conseguiram elevar as vezes que estiveram à beira da pia batismal,
alcançando a marca de oito a treze vezes, somam 2,5% das que conseguiram batizar seus
afilhados, com isso obtivemos um maior número de representação social por parte dessas
mulheres que fizeram pares com homens, que muitas vezes eram somente contornos figurativos
nesse contexto do cativeiro.
Exemplo desse processo é Anna Maria da Conceição que, junto de Manoel Caetano
dos Santos, batizou Camillo, em 1870, filho de Maria Angelica e em 1872, Damazia, filha de
Maria Silva das dores. Além de batizar os inocentes, Anna Maria da Conceição também se
apresentou como protetora de Manoel, em 1872, sendo ele filho de Belmira M. da Conceição e
tendo como padrinho Joaquim P. Bueno.
215

A representação dessa madrinha é muito substancial para entender as relações


próximas que se formaram através dos laços solidários, que cada vez mais se fortificavam em
prol de um lugar na sociedade. Anna Maria não somente batizava, também tinha poder de
representar ou proteger inocentes. Além de ter essas representatividades, tinha suas próprias
necessidades de relações de proximidade. Juvencio é neto de Anna Maria da Conceição, filho
de Eva Maria da Conceição e seus padrinhos foram Desiderio Duarte de Oliveira e Maria
Justina de Souza em 1878.
Anna Maria da Conceição batizou crianças com diversos padrinhos, como Joaquim
Santana de Souza, batizando Hortência, em 1880, e, com Prudêncio G. da Silva, foi batizado o
inocente Feliz, em 1882, ambos filhos de mães incógnitas. Também, com Juciano Garcia da
Silva, batizou Rita, em 1884, filha de Constância Fausta de Lucena que trabalhava em serviços
domésticos. Manoel José C. também esteve na pia batismal com Anna Maria da Conceição,
batizando Manoel em 1885, filho de Maria Bernarda da Conceição.
Nesse registro aparece que os padrinhos são solteiros, mais um indicativo da
representatividade de Anna Maria como uma mulher que teve importância para aglutinar
responsabilidades sociais. Além de ser mãe de Santina, que foi batizada em 1887, sendo seus
padrinhos João Aleijo da Silva e Alexandrina Rodrigues da Silva.
Para Soares,

O padrinho e a madrinha sempre eram escolhidos como alguém hierarquicamente


acima do cativo, sabendo que o africano recém-desembarcado era o piso mais baixo
daquela sociedade, mesmo que o padrinho fosse também um escravo. Mas os
padrinhos, ao mesmo tempo que serviam para a “integração” daquele africano na nova
ordem escravista, também podiam proporcionar alguma proteção ou interlocução, o
que explica a proibição de senhores serem padrinhos de seus cativos, seguida à risca
na Bahia. A frase de Schwartz sintetiza bem: “Se o vínculo do apadrinhamento era
uma relação espiritual de proteção, o vínculo senhor-escravo era uma relação
assimétrica de propriedade. Onde um representa socorro, o outro significa
subserviência” (SOARES, 2010, p. 81).241

Pensando na sobrevivência dos que estavam nas escravarias, as questões do


apadrinhamento se tornam fundamentais para a esperança de uma outra realidade. Assim,
podemos perceber a importância desses padrinhos para cada criança ou adulto batizado, isto é,
a importância da escolha desses padrinhos para sua vida futura, como é o caso da madrinha
Anna Maria da Conceição, que foi uma das madrinhas que mais batizou crianças e que consta
nos livros de assentamento batismal.

241
SOARES, Carlos Eugenio Líbano. “Instruído na Fé, Batizado em Pé”: batismo de africanos na Sé da Bahia
na 1ª metade do século XVIII, 1734-1742. Revista: Afro-Ásia, 39 – 2010, 79-113.
216

Percebe-se que havia um padrão dessas madrinhas em batizarem tantas crianças.


Muitos que convidavam madrinhas repetidas poderia ser por conta da origem africana, ou ainda
por manter certos costumes que igualariam seus antepassados em questões culturais e
representações futuras para novas gerações que buscassem uma chance de sobreviver no pós-
escravismo.242
Soares (2010), em sua pesquisa, encontra 130 madrinhas forras, isso representa um
alto índice sobre os padrinhos, perfazendo um caminho que somente as mulheres conheciam
por já terem a experiência do cativeiro e saber a importância dessa relação do batismo para seus
filhos, com isso ampliar as redes de solidariedade era um mecanismo de suma importância para
prevalecer a oportunidade social, assim, sabemos que no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana
não foi muito diferente do que na Bahia.
Maria Joaquina da Conceição é outra madrinha com expressão nesse contexto de
relacionamento social e prática dos santos óleos. Junto com padrinhos diversos, sua participação
nas relações de compadrio é importante para as relações entre indivíduos. Com a participação
de Xavier Dias, Maria Joaquina da Conceição batizou Maria em 1865, filha de Eufrazia, criola,
preta liberta.
Ainda Maria Joaquina da Conceição e Boaventtura da Costa Souza são pais de Maria,
batizada em 1872 e, foram padrinhos, José Martins Pires e Emilia Martins Cidade. Esse
padrinho é um dos maiores senhores de escravos da região do Vale do Rio dos Sinos –
Paranhana e, dentro desse contexto, as relações entre esse senhor e Maria Joaquina são de
relações próximas, que ampliam as redes de solidariedade e possibilidade de ascensão social
futura para a menina Maria. Ainda, no mesmo ano de 1872, Maria Joaquina da Conceição
apresenta seu outro filho, João, ao batismo, sendo padrinhos Daniel Domingos Dias e Eufrazia
Maria da Gloria.
A representação de Maria Joaquina da Conceição nesse meio social é um leque de
possibilidades e arranjos de relações diversas, sua presença forma um elo entre a sociedade
escravista e sociedade livre. Ela amplia sua rede de solidariedade e transita entre senhores de
escravos, livres e cativos e com isso é requisitada para apadrinhar diversas crianças, exemplo
disso é o caso do registro de 1873, apontando que, junto de Boaventtura da Costa Souza, batizou
João, filho de Juliana, escrava de Generosa Maria dos Santos. Como já citado anteriormente,
Francisco Alves dos Santos Filho foi um padrinho que percorreu o emaranhado de

242
Idem.
217

relacionamentos de compadrio que, junto com Maria Joaquina da Conceição, batizou Maria em
1878, mãe não mencionada.
Citando os padrinhos que estiveram na pia batismal com Maria Joaquina da Conceição,
Boaventtura da Costa Souza é um dos que mais batizaram, aparece por diversas vezes em datas
diferentes, como é o caso do batismo de Maria Albertina, em 1879, filha de Balbina Maria da
Conceição. Também, com o padrinho Balbino Pereira dos Santos, batizou Rosalina em 1881,
filha de Emilia L. Moraes. Maria Joaquina da Conceição além de madrinha e mãe é também
avó de Manoel, filho de Anna da Silva, seus padrinhos foram João Ignacio e Nossa Senhora da
Conceição, em 1882. Boaventtura da Costa Souza e Maria Joaquina também batizaram Affonso
em 1883, filho de Narciza, escrava de Joaquim Paz de Oliveira.
Ainda, Maria Joaquina da Conceição e Bibiano Pereira dos Santos batizaram João em
1884, filho de Leonor Maria da Conceição, lavadeira. Com Prudencio S. da Silva, batizou
Antonio em 1887, filho de Leodata, liberta por contrato com João Paz de Oliveira. Também
nesse mesmo registro, encontramos o batismo de outra criança da mesma filiação, porém o que
muda são os padrinhos, nesse assentamento, foi batizada Hamasia, em 1887, sendo os
padrinhos, Bazilio José Dias e Joana, todos pretos libertos. Finalizando sua participação nos
registros, Maria Joaquina da Conceição chegou à pia batismal para dar os santos óleos para seu
filho Gabriel Fernandes em 1888, batizado por José Ignacio de Lima e Justina Antonia da
Conceição, livre segundo a lei de 13 de maio de 1888.
Esse caminho, que Maria Joaquina da Conceição percorreu dentro da sociedade
escravocrata no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, demonstra a mobilidade das relações entre
senhores e cativos e ex-cativos, sendo muito mais amplas que a inércia de relações estanques e
que a busca por essa mobilidade social estava muito presente nas intenções dos envolvidos,
visando a autonomia de uma vida livre e com possibilidades de desenvolvimento individual e
coletiva para os que estavam do outro lado da sociedade branca.
As características para essas mulheres fazerem parte desse processo batismal são
diversas, mas centradas nas relações, principalmente em sua condição social, de hierarquia
dentro da visão de quem estava em cativeiro ou estava sem oportunidade ainda para se
relacionar em grupos pré-estabelecidos, ou classificados pela tonalidade da pele ou ainda a
condição adquirida por sua própria conta.
Nesse caso, Soares (2010) atenta para a importância das mulheres como madrinhas em
sua pesquisa:
218

Tanto entre forros como entre escravos, as mulheres eram mais numerosas do que os
homens, o que indica que estamos lidando com territórios políticos que não bastam
ser mapeados numericamente. Escravas e libertas eram mais convocadas que suas
contrapartes masculinas para proteger seus “iguais” recém-tragados pelas malhas do
tráfico atlântico (SOARES, 2010, p. 90).243

Essas relações políticas, que constam na citação, poderiam ser entendidas como bons
relacionamentos entre senhores e senhoras escravistas, que designaram tarefas às escravas, e
essas davam produtividade e adquiriam sua independência emocional e autonomia. Assim
tornaram-se representantes de toda uma legião de ‘mulheres-madrinhas’ durante todo período
de falta de oportunidades, no seio de uma sociedade estritamente racista e preconceituosa, mas
ao mesmo tempo se mantiveram firmes e constantes, sendo reconhecidas em moldes de
competência e responsabilidade de manter a unidade cultural e pessoal dessas crianças
batizadas.
Maria da Conceição é mais uma dessas mulheres, como consta nos registros de
batismos, além de ser uma senhora de escravos e, mesmo não constando mais nenhuma
informação que possa defini-la como negra, alforriada ou branca, nos permite imaginar que sua
presença nesses documentos possa nos dar uma pista de sua importância social.
O que temos é sua permissão para que batizassem Bernardo em 1869, filho de Joanna,
escrava, sua madrinha foi Joaquina Resende de Morais. Em 1870, Maria da Conceição batizou
Affonso, filho de Eufrazia criola, escrava de Vicente Fernandes do Amaral, sendo Ventura da
Costa Souza o padrinho. Também permitiu batizar Francisco em 1872, filho de Joanna, sua
escrava, foram os padrinhos Luiz Martins Gonçalves e Maria Antonia dos Santos. Além de ter
participado, com Leonor e Ventura Belmiro de Souza, no batismo de Sebastião em 1873, filho
de Maria, escrava de Maria do Nascimento da Cruz.
Maria da Conceição e Júlio Mendes da Silva batizaram Maria em 1875, filha de
Prudencia Maria de Oliveira. Além de também favorecer e fortalecer suas relações, ofereceu
seu filho, Bernardino, em 1875, ao batismo, sendo os padrinhos, Jacob Frederico da Silva e
Philomena Ignacia da Silva.
Acreditamos que a partir desse registro, Maria da conceição já não seja mais ‘a mesma
pessoa’, pois as características sobre sua condição começam a dar indícios que é outra pessoa.
Essa Maria da Conceição aparecer como mãe de Antonio batizado em 1876, e sendo os
padrinhos, Generoso Antonio de Souza e Maria Joaquina Fernandes, mas também batizou com

243
Idem.
219

João da Cruz, Adriano em 1876, filho de Albina, escrava de Joana Maria de Oliveira, onde
consta no registro que ambos eram livres.
Assim, outros processos estão se formando na compreensão das relações afetivas
sociais, pois Maria da Conceição ofereceu seu filho, Francisco, ao batismo em 1877, sendo os
padrinhos, Albino Joaquim Silveira e Joaquina M. de Jesus. Também Maria da Conceição e
Pedro Gomes da Costa aparecem como avós de Adelino, filho de Maria Lucinda da Conceição,
sendo os padrinhos, Manoel Gomes da Costa e Laurinda Maria da Conceição, além de ser
madrinha de Leopoldina Maria, em 1879, filha de Maria José dos Anjos, sendo que seu par no
batismo foi Leonardo Felipe de Oliveira.
Neste outro registro, Maria da Conceição (liberta) e Francisco são pais de Maria
Francisca, que foi batizada em 1879, sendo os padrinhos, Ignacio Antonio Alves e Delphina
Maria do Espírito Santo. Com João Silveira de Oliveira, batizou Prudencio em 1879, filho de
Augusta. Nesse outro registro, Maria da Conceição e Laurindo Gomes de Deus aparecem como
pais de Avelino, que foi batizado em 1880, apadrinhados por Manoel Rodrigues de Athaide e
Catarina de Rodrigues de Athaide.
O nome de Maria da Conceição se desloca por dentro dos registros de batismo, junto
com Inocêncio J. de Ávila, batiza Guilhermina em 1882, filha de Maria, escrava de Francisca
da Conceição. Novamente nos deparamos com a mesma pessoa formando par com outro
homem, Maria da Conceição e José dos Santos (livres) são pais de Maria que foi batizada em
1882, sendo os padrinhos, Antonio Joaquim de Oliveira e Serafina de Oliveira.
Maria da Conceição e Fermino Gomes da Costa batizaram Francisco em 1886, filho
de Maria Francisca da Conceição, liberta por contrato com Justino Paz de Oliveira. A
representação do nome de ‘Conceição’ nos possibilita imaginar que teve uma grande
importância para quem estava em situação vulnerável social, pois é a madrinha mais requisitada
da região, como ainda podemos perceber através de outros registros.
Maria da Conceição é mãe de Carolina e foi batizada em 1886, sendo os padrinhos,
Marçal da Rocha e Antonio dos Santos, solteiros. Também foi mãe de Jovelina, que foi batizada
em 1888, sendo os padrinhos Antonio Candido Alves e Maria Ignácia, ambos solteiros. Maria
Ignácia era mãe de José, batizado em 1888, apadrinhado por Bonifácio Paulino e Luiza Rosa.
Anna Maria da Conceição, Maria Joaquina da Conceição e Maria da Conceição, pelo
que constam nos registros de batismo, foram as madrinhas que mais batizaram por essas bandas,
sua representação no meio social teve uma repercussão na ordem, como foi descrita acima. O
emaranhado de batismos e padrinhos, como João Gonçalves de Oliveira, Balthazar José
Bernardes, Francisco Alves dos Santos e José Alves dos Santos, que também fizeram parte de
220

grupo seleto que mais batizou crianças na região, nos direciona para a dimensão e importância
dos que fizeram parte desse complexo social.
Embora, nos livros de batismo, tenhamos algumas informações incorretas por falta de
um modelo de registro, visto que muitos párocos não se detinham a tais recomendações, ainda
mais se fossem batizados de escravos ou seus descendentes, não quer dizer que não podemos
ter uma base de entendimento desses documentos, pois, relacionando tais elementos, podemos
chegar a certezas e verdades sobre esses sujeitos que participaram ativamente desse processo
na pia batismal.244
As relações de sociabilidade entre senhores e escravos estavam voltadas para a
participação desses indivíduos escravizados em um modo de inserção na realidade de uma
sociedade escravocrata. Para isso, a figura da igreja era fundamental e, para o escravo, uma
maneira de se refugiar e perceber quais eram suas reais chances de locomoção dentro do quadro
da sociedade.
Para Katia Mattoso,

Embora em mundos opostos, homens livres e homens escravos mantinham entre si


estreita dependência. Ser escravo no Brasil era suplantar as condições desses mundos
ao mesmo tempo em que as tensões do grupo dos escravos. Algumas formas da vida
passada eram abandonadas, mas quando o escravo tinha sucesso, a nova vida
acrescentava outras riquezas que eram liberadoras, pois traziam em si novos modos
de pensamento e notadamente novas ligações afetivas (MATTOSO, 2016, p. 148).245

Essas ligações afetivas são as relações de compadrio que se estabeleceram entre


senhores e escravos, escravos e forros, forros e livres, escravos e livres, etc. Cada relação era
uma vantagem para os escravos passarem a ter a sua “liberdade” e foi utilizada com frequência
pelos sujeitos na busca de legitimidade, visto que, trazidos da África, seus filhos não tiveram a
possibilidade de vivenciar suas raízes, assim passaram a não existir no modo físico e só no
cultural. Porém, o que prevaleceu foram as relações afetivas que se tornaram realmente
presentes nesse mundo de ideias e necessidades básicas.
Assim, uma das saídas foi o incremento dos laços afetivos a partir dos “santos óleos”,
que legitimava a vida através da crença, mesmo que não se convertesse realmente, no caso de
alguns escravos, mas que passou a viver de acordo com as legislações civis e religiosas dentro
do quadro social estipulado, empregado e constituído para um controle socioeconômico. Assim
as relações de compadrio se fizeram fortalecer entre seus respectivos atores na busca de uma

244
CUNHA, Joceneide. Entre Padrinhos e Compadres: os africanos nos livros de batismos em Sergipe (1785-
1835). XXVII Simpósio Nacional de História – HNPUH. Natal, 22-26 de julho, 2013.
245
MATTOSO, Katia M. de Queiros. Ser Escravo no Brasil: séculos XVI-XIX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
221

legitimação e poder do controle social, econômico e populacional descrito como inferiores, mas
registrados nos moldes da sociedade vigente no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana entre 1856
e 1888.

4.4 TRAJETÓRIA DOS AFRODESCENDETES: A FRONTEIRA DO ESCRAVISMO EM


BUSCA DA EMANCIPAÇÃO.

Nos utilizando da bibliografia literária, que conta um pouco da História local da cidade
de Taquara e seu desenvolvimento econômico e social, chegamos a Alberto Martins, um médico
natural da cidade, que escreveu a obra Lendas, Fatos e Pessoas da Taquara Velha do Mundo
Novo (1998). Nessa obra conta que havia um escravo do Cel. Inácio Fialho, conhecido como
Negro Omuro, africano, que desembarcou em Salvador na Bahia, vindo da Costa do Marfim.
Foi comprado por um proprietário de terras da Província de São Pedro. Causou rebeliões entre
escravos, foi preso e arrematado pelo Cel. Inácio Fialho, que era atafoneiro e produtor de farinha
de mandioca. Logo Omuro passou a ser reconhecido pelo coronel por sua presteza no trabalho
e virilidade, tornando-se, no decorrer do tempo, o homem de confiança de Inácio Fialho.246
Mas o que não era para acontecer, era o envolvimento da filha do Coronel com Omuro,
isso decretou a sua sentença, que foi a castração e a morte. Porém, através desse relato, podemos
observar que não era somente mais um envolvimento de um escravo com uma mulher branca,
mas sim com a família de seu senhor. Também podemos observar, na citação abaixo, que a
religiosidade se faz presente no contexto descrito como identidade cultural e preservação de
costumes africano, como expõe Alberto Martins:

Amarrado a um angico frontal à senzala Omuro esvaía-se em sangue diante de todos


os outros escravos. Pediu perdão a Alá pois sentia que a morte dele se aproximava.
Negro atrevido gritava o Cel. Inácio limpando a afiada faca nas embarradas botas!
Confiava em ti como se fora da própria família. Caminhou em direção à casa e atirou
aos cachorros a genitália do africano. A emasculação fora o castigo por ter
engravidado a única filha do rico atafoneiro da Fazenda Fialho. (MARTINS, 1998, p.
17).247

Mas como podemos relacionar o Negro Omuro com a sociedade de Taquara? Em


primeiro, isso legitima a presença cativa, que em grande quantidade, foi importante por essas
bandas para a economia e produção, visto que o Cel. Inácio era produtor de farinha e escravista.

246
MARTINS, Alberto. Lendas, Fatos e Pessoas da Taquara Velha do Mundo Novo. Taquara: Encosta da Serra,
1998.
247
Idem.
222

Outra questão é que, através desse texto, podemos saber que alguns africanos em cativeiro, em
Taquara, eram muçulmanos e cultuavam sua religiosidade escondidos, já que a religião do
império era o catolicismo e essa restringia as crenças africanas; também podemos saber a sua
localização de origem na África, Costa do Marfim.
Contudo, um fato que chamou a atenção e nos fez pensar sobre a importância do afro-
brasileiro e sua trajetória na sociedade taquarense, é o relato de um acontecimento que envolve
um político da região, que parece ser descendente de um negro, cativo da família Rangel. Esse
fato está na obra literária de Erni Guilherme Engelmann, “A saga dos Alemães” (2005), que
retrata a chegada dos colonos alemães à Fazenda Mundo Novo.
Erni G. Engelmann afirma que,

Segundo contava José Alexandre Hack, meses depois da morte de Antônio, nasceu
seu filho, que deixou as marcas de sua negritude na família Rangel, passando-as
depois para os “Santos”, que é o sobrenome da mãe de Alexandre, a qual se casaria,
mais tarde, com um alemão de sobrenome Hack. Dessa miscigenação, contava ele,
nasceu um alemão, com feições de negro, que era o próprio José Alexandre Hack
(ENGELMANN, 2005, p. 621).248

Em ambas as obras de Erni Engelmann e Alberto Martins, a mesma história se repete.


Tanto na família Fialho e Rangel, o negro Omuro ou Antônio é a mesma pessoa, o que importa
é o que está relacionado. Em primeiro, se percebe algumas boas relações entre senhor e escravo,
e, posteriormente, a violação da confiança. Em segundo, é que esse fato transcendeu o tempo,
passando o registro da memória oral para uma obra escrita; com isso, auxiliando a preservação
da presença e trajetória de africanos e afro-brasileiros na região, valorizando o entendimento da
influência africana em sua totalidade mesmo, que, talvez, não fosse essa a intenção.
Essa citação refere bem à miscigenação que envolveu os descendentes africanos em
relação aos colonizadores e seus senhores. Essa mistura está exposta na sociedade atual, pois
demonstra que as relações pessoais se estenderam muito além das senzalas. Também demostra
a importância da valorização das origens de cada indivíduo, valorizando a cultura e preservando
a identidade africana.
As relações de sociabilidade, entre cativos e ‘senhores’ colonizadores, se apresentam
com uma frequência muito intensa, pois na bibliografia existente, sobre a história da região de
Taquara, aparecem colonos imigrantes possuidores de cativos com algumas relações próximas,
que são apresentadas, e outras não tão próximas assim, onde os maus tratos também fazem

248
ENGELMANN, Erni G. A Sagra dos Alemães: do Hunsrück para Santa Maria do Mundo Novo. V. II. Igrejinha:
Editora Comunicação Impressa, 2005.
223

parte, que alguns fatores de reciprocidade são expostos nas fontes e bibliografia até aqui
analisadas.
Erni G. Engelmann (2005) faz menção a um colonizador teuto, Franz Cristhian Koch
– já citado anteriormente nos batismos –, um dos primeiros alemães a fixar residência na
Fazenda Mundo Novo. Esse colono possuía cativos e era tido como um mau senhor, pois
maltratava e era extremamente rude e violento com seus subalternos, até mesmo com sua
família e esposa.
Segundo Engelmann,

Não era comum os colonos alemães terem escravos, até porque a Europa toda se
posicionava contrária ao tráfico de escravos, já naquela época. Mas Franz Koch foi
uma destas exceções, tendo trazido junto com ele, para o Mundo Novo, alguns negros
escravos, entre eles um de extrema confiança e servilidade de nome Manuel, que em
alemão era chamado de “Monevel” (ENGELMANN, 2005, p. 607).249

No início da citação, percebe-se uma preocupação em relação às questões do


escravismo, já que, dentro do contexto europeu, não era tolerado o homem ser cativo 250 e, nas
relações de trabalho dos europeus, predominavam o salário como fonte de renda. Mas quando
os colonos chegaram às terras inóspitas, longínquas e sem uma estrutura do governo imperial
para receber o imigrante europeu teuto, a realidade foi apresentada de outra maneira, assim a
necessidade de mão-de-obra era essencial para o desenvolvimento da colônia de terra adquirida,
com isso a relação com o escravismo, vigente no Brasil, passou a ser uma realidade cotidiana.
Em vários momentos dos textos analisados, as relações de sociabilidade entre afro-
brasileiros e colonos são fortificadas e se manifestam em determinadas situações, como o que
senhor que ensinou o ofício a seus cativos em uma serraria e, mais tarde, os mesmos é quem
ficaram tomando conta dos negócios do senhor Friedrich Wilk, que voltou para a Alemanha.

[...], um imigrante alemão de nome Friedrich Wilk adquiriu terras no Rio da Ilha.
Adquirira quatro colônias de terra cobertas de maciça mata virgem, rica em madeira
de lei de todas as espécies. Foi isso que motivou Wilk a construir uma serraria, para
explorar essa grande riqueza florestal. Logo depois, comprou dois escravos, de nomes
Tomás e Matias. Pôs os dois escravos como auxiliares na serraria, ensinando-lhes

249
Idem.
250
1883, o senador Ribeiro da Luz se manifesta dizendo que não sabe qual foi a lei que autorizou a escravidão.
Como jurista e conhecedor das leis, refere que, se os índios são escravizados, devem ser libertados, em seu lugar
cita que os negros foram introduzidos para o cativeiro, isso ele não concorda, visto que não conhece nenhuma lei
que regulamente a escravidão do Brasil. Podemos perceber as influências do processo abolicionista em
manifestação como um regulamento jurídico. CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. A Escravidão no
Império do Brasil: perspectivas jurídicas. André Emmanuel Batista Barreto Campello – 1. ed. ISBN 978-0-557-
67298-1. 2010, p. 29.
224

todos os segredos do ofício, tratando-os como verdadeiros aprendizes e homens livres.


Era conhecido como o único patrão onde os escravos faziam as refeições em sua mesa
e dormiam dentro de sua casa (ENGELMANN, 2005, p. 612-613).251

As relações de sociabilidade entre senhores e cativos, em todo o Rio Grande do Sul,


apresentaram características diferentes e conflituosas em alguns casos. Porém, o que se percebe
são relações políticas e sociais que contribuíram para algumas compensações no processo de
exclusão das sociedades afro-brasileiras, que, em vários momentos, se utilizaram dessas
relações e atitudes de bom relacionamento para resistirem ao sistema escravista.
Como vimos, as relações entre escravos e colonizadores são de extrema importância
para se perceber as trajetórias que esses indivíduos escravizados buscaram ultrapassar. As
fronteiras levantadas em suas trajetórias de vida fizeram sua presença constar na história local.
Mesmo que em uma bibliografia literária conta algo, ainda que romanceado, possivelmente
verídico, pois não sabemos as fontes utilizadas para construção desses textos, assim, buscou-se
relativizar tais acontecimentos para, a partir de agora, vislumbrar um outro momento real, do
escravismo.
Para isso relatamos o processo de um crime de 1860, onde o forro Mariano e sua
concubina mataram Maria Ricarda, como conta no processo abaixo:

Mariano, preto, forro e sua concubina, nome ignorado, escrava de Maria Ricarda, foi
assassinada pelos denunciados com uma pancada na cabeça com uma mão de pilão,
cuja pancada a fez sucumbir imediatamente, deixando depois logo a casa de que
resultou a morte da referida Maria Ricarda e tudo mais que lhe existia, salvando-se
apenas uma criança, com que a mesma viúva vivia, ignorando esta promotoria se era
parente sua (APERS, 1860, nº 497). 252

Como podemos notar, Mariano era forro, tinha ganhado a sua liberdade, - não tivemos
outro documento para verificar quem era o seu senhor e como conseguiu sua carta de liberdade
- aconteceu um assassinato e Mariano está inserido nele. Qual seria a causa desse ato de
violência e o motivo da participação da escrava de Maria Ricarda nessa ocorrência?
Sob a luz de nossa análise inferimos que o processo instaurado não chegou a um
veredito, somente manifestou que Mariano e sua concubina sofreriam a pena por
‘desobediência’ e que se encontravam fugidos, não sabendo do seu paradeiro, mas trazendo
alguns elementos, com o qual podemos traçar um caminho para tentar entender a motivação do
crime contra Maria Ricarda.

251
ENGELMANN, Erni G. A Saga dos Alemães: do Hunsrück para Santa Maria do Mundo Novo. V. II. Igrejinha:
Editora Comunicação Impressa, 2005.
252
Processo Crime. A justiça o Preto Mariano e outros. Nº 497. Maço 18. Estante 152, 1860 – APERS.
225

A testemunha Manoel Rodrigues Ribeiro, solteiro com 28 anos, cita uma escrava,
Leonarda, que pode ter participado da morte de Maria Ricarda dos Reis. O testemunho não é
claro sobre esse fato, mas pode ter acontecido algo entre a falecida e essa escrava, que
suponhamos seja a concubina de Mariano. O depoente lembra ainda que a Leonarda foi vendida
à Fazenda Vacaria e o comprador foi José Maria do Sacramento. Infelizmente não encontramos
o inventário desse senhor.
Ainda, o depoente se refere que “respondeu que poderia ter sido humilhada a escrava”,
o que nos leva a crer que a escrava já tinha dito isso como motivação do crime, ainda cita que
a seu ver, Maria Ricarda negociava com um tal de Fagundes, mas não tem mais nenhuma
referência ou informação sobre esse último indivíduo.
Em nenhuma vez o preto Mariano é citado pelo depoente e, tampouco, nos outros
depoimentos das testemunhas seguintes. O Capitão José Ferreira C. da Luz não cita Mariano
em uma correspondência que envia para o juiz da comarca de Santo Antonio da Patrulha, onde,
já predetermina, esse processo não terá uma sentença, por terem os acusados desaparecido e
relata os fatos acontecidos sobre a morte de Maria Ricarda.

Remeto a Vª. Sª. os papeis inclusos para mandalos juntar ao processo instaurado
contra os réus que matárão a uma mulher em Cima da Serra, onde queimarão-lhe a
caza, sendo notavel que os interrogatorios feitos aos escravos e a um familiar de Maria
Ricarda, desapareceram, o que revela concluida da parte de quem quer que seja, como
verá Vª. Sª. dos referidos papeis. Dos esclarecimentos que exigi do escrivão de Cima
da Serra, nada pode descobrir, acrescendo ter falecido o subdelegado que sustentava
a remeça de tais peças: será bom cre-se descobrir as preditas peças para bem da justiça.
Capitão José Ferreira C. da Luz, delegado de polícia de Santo Antonio da Patrulha
(APERS, 1860, p. 10, nº 497).253

O Capitão José Ferreira relata que, após os interrogatórios, os mesmos desapareceram,


quando menciona “Cima da Serra”, referindo-se a São Francisco de Paula de Cima da Serra,
que responde judicialmente a Santo Antonio da Patrulha.254 Também o Capitão José Ferreira
diz que “[...] o subdelegado sustentava a remeça de tais peças [...]” (APERS, 1860, nº 497),255
acreditamos que essas peças são Mariano e sua concubina, pois ainda realça que deviriam
descobrir “as preditas peças” para se fazer justiça sobre a morte de Maria Ricarda.

253
Processo Crime. A justiça o Preto Mariano e outros. Nº 497. Maço 18. Estante 152, 1860 – APERS.
254
Em 14 de julho de 1880, art. 3º da Lei nº 1.251, Santa Cristina foi desligada da Comarca de São Leopoldo e
elevado a município, recebendo como distrito, além de Taquara do Mundo Novo, o território de São Francisco de
Paula de Cima da serra. Tendo o governo da província, em 15 de março, extinto o município de São Francisco de
Cima da Serra, lei 1.750, de 15 de março de 1889, anexou o 1º distrito desde a Taquara do Mundo Novo.
255
Processo Crime. A justiça o Preto Mariano e outros. Nº 497. Maço 18. Estante 152, 1860 – APERS.
226

Outra testemunha disse ao juiz que, no dia 31 de julho de 1858, “entre as 22 e 23 horas
fora chamado ele e os outros senhores”, citados na página 12 do processo, pelos escravos da
casa, sendo estes Anna negra e um negrinho. Podemos perceber que a senhora Maria Ricarda
tinha uma escravaria com mais de um cativo que fazia parte de seus bens. Posteriormente a esse
testemunho foi apresentado pelo escrivão, competente a esse processo: “os escravos de Maria
Ricarda dos Reis, que provocarão o incêndio na caza da mesma. Todos para indagação
policiaes, com pena de desobediencia no caso de faltarem, além do mais em que pela lei
passarão incorrer [...]” (APERS, 1860, nº 497).256
Já o testemunho de Antonio Florencio da Costa relata que “a preta conta que Justino a
mandou-se para Vacaria, ignorando a quem e que preto são sobre para onde foi[...]” (APERS,
1860, p. 25, nº 497),257 essa preta é Maria, escrava que foi comprada por Antonio Florencio da
Costa. Já Justino, não obtivemos informações de quem seja, imaginamos que talvez possa ser
escravo de Maria Ricarda e possivelmente tenha algum envolvimento na sua morte, mas não
temos notícia para confirmar tais hipóteses sobre Justino.
Em nota, o escrivão do cartório realça que “o réu Mariano preto forro e sua concubina
onde habitarem e forem encontrados para de mesmo processar, aquelles com pena de
desobediência e estes com pena de reclusão para funcionar nesse processo [...]” APERS, 1860,
p. 25, nº 497).258 Somente nessa citação aparece novamente o nome de Mariano, e mais adiante,
em outra correspondência, o mesmo escrivão relata que ambos os réus já estão falecidos.
O escrivão José Rodrigues de Oliveira afirma:

Empenho-me informar a Vª. Sª, que é igualmente sabido neste municipio são falecidos
a muitos annos o preto Mariano e sua concubina, assim tido ao conhecimento de V.ª
Sª, para deliberar. Vila de São Francisco de Paula de Cima da Serra, 11 de fevereiro
de 1885. Escrivão José Rodrigues de Oliveira (APERS, 1860, p. 32, nº 497).259

Por conta do falecimento dos réus, não foi dado o prosseguimento do processo, assim
não podemos saber quais seriam as medidas tomadas pelo crime acontecido, assim fica a
dúvida: porque Mariano é citado nesse processo se nenhuma das testemunhas o acusou
formalmente? Concluímos que o processo está incompleto e o texto da testemunha de acusação
não consta acusação testemunhal contra Mariano, ficando este somente citado no processo sem
comprovação de sua culpa, tornando difícil reconstituir essa trajetória sobre o preto Mariano,

256
Processo Crime. A justiça o Preto Mariano e outros. Nº 497. Maço 18. Estante 152, 1860 – APERS.
257
Idem.
258
Idem.
259
Idem.
227

ainda mais que o mesmo era forro e não tivemos acesso à sua carta de alforria para saber quem
lhe deu a liberdade.
Seria possível que o relacionamento proibido com sua concubina e o fato de Maria
Ricarda a ter vendida a Antonio Florencio motivou Mariano a cometer o crime? Uma resposta
ainda sem uma verdade estabelecida. O que se sabe é que Mariano foi acusado e teve um
desenrolar de um processo investigativo sem uma sentença específica, provando que Mariano
é o autor da morte de Maria Ricarda dos Reis, mas a importância desse preto forro se acende
em como obteve sua manumissão. Será que Mariano era um ex-cativo de Maria Ricarda?
Questões que ainda não obtivemos respostas concretas por falta de documentação sobre essa
trajetória, mas sabemos que ela aconteceu.
Outro processo crime que analisamos é o do preto Manoel, de 1869,260 que foi acusado
de roubo na casa do alferes Affonso P. de Oliveira. Manoel era escravo de Manoel Jacinto
Fogaça que não sabia que Manoel roubava, como é apresentado no processo:

Em 18 de junho de 1869 foi acusado o preto Manoel de roubo na casa do alferes


Affonso P. de Oliveira [...], foi um mandado de prisão contra o dito escravo, que tendo
avido do cartorio de Santo Antonio da Patrulha, indicado em outros crimes também
de roubo que cometeu, pela delegacia outro termo (APERS, 1869, p. 4, nº 499).261

Manoel já era incidente no crime de roubo, anteriormente, registrado na delegacia de


Santo Antonio da Patrulha. Esse cotidiano de crimes é comum na vida desses indivíduos que
buscavam, de todas as maneiras, a liberdade. Suas ações muitas vezes envolviam outros
escravos que mantinham relações próximas, como é o caso do escravo de Constantino José
Gomes dos Santos, que, sendo aliciado por Manoel, participara de um possível roubo em uma
casa, mas não diretamente, estava junto de Manoel e não tivera cometido o ato como descreve
o processo.

Começo a participar a Vª. Sª que no dia 30 para amanhecer para o dia 31, apareceo na
minha caza o pardo do Sr Fogaça, domingo quando me levantei chamei por meu
escravo [mas] não me respondeo, as duas [h]oras mais ou menos apareceo com o
cavallo do dito mulato criado, ivarias vezes que lhe tinha cobrado o meu escravo, que
o dito pardo lhe tinha forçado para ir com ele, dirigiuse a caza do Sr Antonio Pereira
Soares chegando na beira do campo: o dito mulato deixou o mesmo escravo coidando
dos cavallos e foi a pé cambiar a caza para saber o que encontrar [grifo nosso]
(APERS, 1869, p. 5, nº 499).262

260
Processo Crime. A justiça o Preto Manoel, escravo de Manoel Jacinto Fogaça. Nº 499. Maço 18. Estante 152,
1869 – APERS.
261
Idem, p. 4
262
Idem, p. 5
228

O pardo seria Manoel, que convidou o escravo de Constantino José, o mulato, e


cobrado por sua falta, disse ao seu senhor que foi forçado pelo ‘dito pardo’ a ir junto ‘cambiar’
(olhar) a casa de Antonio Pereira, a fim de praticar o roubo e ao mesmo tempo, envolvendo o
mulato de Constantino, mas o mesmo escapou e voltou para casa do seu senhor.

Neça fuga o mesmo escravo escapouse e veio para caza, [já] o pardo deça vereda
encontrou com a tia Candinha, perguntou o seu marido está em caza, ella respondeo
esta e retirou-se, foi aparecer em caza do Sr. Laurindo Ijnacio Cardoso, não estando
elle axou duas crianças, teve todo o dia e no outro dia retorna em um cavallo enciado
da mesma caza e todo isso [...] mandei alias de três homens vieram sem, mandei em
caza do Sr Laurindo elles xegaram a pouco [e] o dito pardo tinha se retirado, ainda foi
visto muito perto do meu potreiro cambiações da tarde não (APERS, 1869, nº 499).263

O que nos deixa claro é que o pardo Manoel era conhecido na redondeza e, pelo visto,
tinha livre acesso às casas em geral. Tia Candinha respondeu naturalmente a Manoel, mas pela
forma que o texto se realça, Manoel foi em outra direção, para a casa do Sr Laurindo e teve
contato com as crianças, permanecendo por longo período e retornando com um cavalo desse
senhor. A partir desse momento começa uma busca por Manoel, visto, pela última vez, próximo
à casa do Sr. Constantino.
O texto deixa claro que Manoel tinha livre acesso às propriedades dessa localidade.
Sua mobilidade era tranquila e a sua vida cotidiana era bem ativa, pois envolvia relações
próximas entre senhores e cativos. Sua persuasão, ao cativo de Constantino, deixa perceber que
tinha certo poder sobre os demais, talvez por ter um bom discurso (ladino).
Um mandado de prisão foi expedido, além de uma testemunha ter acusado o pardo
Manoel de roubo. Assim foi preso e levado para a cadeia de Santo Antonio da Patrulha, de
onde, posteriormente, fugiu para o município de Vacaria. Ali foi assassinado depois de onze
anos, ficando Manoel Jacinto Fogaça, seu senhor, responsável pela indenização às vítimas que
foram roubadas, pagando-as em 1883.
Em outra análise encontramos o processo crime do Pardo Raphael, de 1882, que era
escravo de Oliveira Pedrozo de Moraes e foi acusado de roubo de uma vaca de Manoel Adolpho
Pacheco, o pardo Sebastião, escravo desse senhor, saindo a fim de encontrar nos campos a tal
novilha, viu o pardo Raphael correndo atrás de uma vaca, depois de o mesmo ter-lhe prestado
serviço na fazenda.
Essa trajetória nos leva a crer que Raphael era um possível escravo de ganho e que,
talvez, por dificuldades, pensou em roubar para saciar sua fome, pois, como aparece nos autos,

263
Idem.
229

o pardo Raphael foi visto “comento” a dita vaca em um campo. Porém, anteriormente a esse
fato, o pardo Raphael já transitava pelos campos desse senhor, visando esse crime. Seu senhor
não sabia desse fato e foi surpreendido quando Raphael foi acusado do crime de roubo, sem
que o mesmo soubesse sua origem, assim o delegado de polícia Manole Rodrigues da Silva
descreve:

[...] que chegando ao meu conhecimento que no dia 22 do corrente o pardo de nome
Raphael, escravo de Oliveira Pedrozo de Moraes. Em consentimento do referente
encaminhar em seus campos uma novilha, cujo esse foi aprendido, e que procede a
[...] corpo de delito do dito inquérito policial [...] (APERS, 1882, nº 2526).264

O pardo Raphael foi detido para esclarecimento sobre o animal e foi levado para o
campo do seu senhor para averiguação do fato. Mas Sebastião foi testemunha de que esse roubo
aconteceu, visto que, posteriormente, prestando-lhe serviço, viu o dito pardo correndo para
pegar a vaca no campo de seu senhor.
Outro escravo de Manoel Adolpho Pacheco, que também saiu para averiguar onde
estava a dita rês, testemunhou contra o pardo Raphael, dizendo que, junto com Sebastião, tinha
visto o tal pardo tentando pegar a dita vaca e, consequentemente, comendo-a nos campos do
senhor Oliveira Pedrozo de Moraes, que não tinha conhecimento desse fato.
O delegado de polícia, Manoel Rodrigues da Silva, enviou uma correspondência ao
oficial de justiça dizendo o seguinte requerimento:

Mando a qualquer official de justiça deste juízo a quem está apresentado indo por mim
assignado que em cumprimento do requerimento as testemunhas João Antonio da
Rosa, Joaquim de Souza e os pretos forros Sebastião e Jeronimo nesta villa no dia
vinte do corrente, no lugar constam afim de por mim como testemunha no inquérito
requerido pelo mesmo [...] pelo efeito [roubo] de uma rez da propriedade do mesmo
praticado por um escravo de Oliveira Pedrozo de Morais, de nome Raphael sob pena
de desobediência. Cumpra-se São Francisco de Paula de Cima da Serra, 26 de maio
de 1882 eu Manoel Rodrigues da Silva (APERS, 1882, nº 2526).265

O pardo Raphael foi preso com a acusação de roubo de uma vaca, sendo sua pena
aplicada por desobediência e assim registrado. Não temos mais informações sobre Raphael,
mas deduzimos que tenha se aventurado ao roubo para ser preso, visto que, com nossa
interpretação, possivelmente Raphael poderia ser um escravo de ganho e as práticas de serviços
pesados o levou a cometer tal crime, se isentando do trabalho por um determinado tempo, não
precisando cumprir tais serviços.

264
Inquérito Policial. A Justiça Pública. O Pardo Raphael. Nº 2526, Maço 55, Estante 153, 1882 – APERS.
265
Idem.
230

As trajetórias de cativos dentro da escravidão são diversas e complexas, muitos não


tiveram a oportunidade de conhecer outros ambientes, somente as realidades que foram
apresentadas em cativeiro, muitas vezes nem conheciam outros lugares, além das propriedades
de seus senhores, quando muito, transitavam por algumas cidades ou vilas, levando ou
carregando as bagagens junto de seus senhores, com isso essas trajetórias muitas vezes foram
ilusórias. As fontes históricas nos brindam com as trajetórias desses indivíduos que sofreram
para encarar um sistema, que somente os fizeram serem explorados, ao máximo, nas suas
existências.
Segundo Chalhoub:

Com efeito, um pouco de intimidade com os arquivos da escravidão revela de chofre


ao pesquisador que ele está lidando com uma realidade social extremamente violenta:
são encontros cotidianos com negros espancados e suplicados, com mães que têm seus
filhos vendidos a outros senhores, com cativos que são ludibriados em seus constantes
esforços para a obtenção da liberdade, com escravos que tentam a fuga na esperança
de conseguirem retornar à sua terra natal. As histórias são muitas e seria preciso uma
dose inacreditável de insensibilidade e anestesia mental para não perceber aí muito
sofrimento (CHALHOUB, 2009, p. 35). 266

Essa intimidade, que Sidney Chalhoub fala, são os sofrimentos descritos


implicitamente nos textos produzidos pelos juízes, escrivães, delegados e autoridades que
regulamentaram o escravismo como modo de apropriação, exploração e manejo autoritário
sobre o homem negro. Assim, a reprodução textual contida nos documentos, em geral, sobre a
escravidão é uma descrição de todo o sofrimento que não deve ser negligenciado e muito menos
esquecido desse período da história do Brasil. Nossa intenção, como já referido anteriormente,
é retirar da invisibilidade esses indivíduos descendentes de africanos que estiveram na
construção da sociedade, que se constituiu no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, visto que
essa invisibilidade, existente na região, assola e amplia o preconceito contido até os dias atuais.

4.4.1 Alforria: uma relação de tensão.

João Martins Phileseno, em 23 de agosto de 1884, concedia liberdade a todos os seus


escravos, entre eles, Benedito, mas com uma cláusula que o mesmo deveria ficar sujeito ao

266
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
231

trabalho durante seis anos e ainda estipulando, no mesmo documento de liberdade, o valor de
duzentos mil reis por cada ano de trabalho.
Depois de um ano de trabalho, Benedito propõe a João Martins pagar duzentos e
cinquenta e oito mil reis por sua liberdade total, sem vínculo aos futuros anos de trabalho, já
que o processo abolicionista estava em pleno desenvolvimento e, logo adiante, aconteceria o
final do escravismo, em 1888.
Em 01 de maio de 1885 o juiz de direito da comarca de Santa Cristina do Pinhal267
abre um processo de agravo em favor de João Martins Phileseno, contra uma ação de liberdade
do escravo preto Benedito.
Como João Martins não aceitou o valor proposto, o curador de Benedito entrou com
um pedido de depósito em seu nome, onde Benedito ficaria sob sua responsabilidade até o final
do processo, isentando-o dos serviços que deveria prestar a João Martins como consta na carta
de liberdade.
O processo foi avaliado pelo juiz da comarca de Santa Cristina do Pinhal e, percebendo
que Benedito estava sendo superexplorado, um Auto de Depósito e Entrega foi acionado e
enviado à casa de João Martins Phileseno, onde os oficiais de justiça (avaliadores) levaram
Benedito e entregaram a seu depositário João Nepomuceno de Bezerra Cavalcante, que passou
a ter total responsabilidade por Benedito.
João Martins foi acusado de prender e explorar um homem livre, sendo que ele próprio
tinha dado a liberdade ao seu cativo Benedito com a restrição de seis anos de serviços, assim,
pelas condições que foi encontrado o liberto, os avaliadores justificaram o Auto de Depósito.
O fator importante é perceber o discurso que se enquadra nesse processo de mudança
que está acontecendo no Brasil. O final do escravismo nos possibilita uma avaliação em vários
ângulos, já que afeta diretamente a economia exportadora e infla o rompimento da elite
produtora com a monarquia imperial.
Segundo Walter Fraga (2014), as possibilidades que a Lei do Ventre Livre, de 1871,
trouxe, ao contexto do escravismo, um aumento das chances de equiparação legal entre os
agentes que fizeram parte desse processo. Embora o contrato de liberdade, a alforria, entre
cativos e senhores, fosse sempre prevalecer a vontade do senhor, muitos cativos entraram com
recursos judiciais para interromper o período de superexploração que ainda deveriam cumprir
com a carta de alforria. “A grande inovação introduzida pela lei foi permitir ao escravo acionar

267
Santa Cristina era um distrito de São Leopoldo, atualmente é um bairro do município de Taquara, que era a
Fazenda do Mundo Novo, se emancipando somente em 1886.
232

a Justiça por meio de ações de liberdade em caso de recusa dos senhores em conceder alforria
com a apresentação do pecúlio” (FRAGA, 2014, p. 45).268
João Martins recorreu ao Supremo Tribunal para garantir seu direito sobre a
propriedade, dominus, e rever as condições da carta de alforria. Como se percebe, as
dificuldades enfrentadas por Benedito em obter sua liberdade foram muitas, em cada instância
jurídica se ampliava a utilização de leis para fazer valer o direito à liberdade e o direito à
propriedade.
O direito está com base na lei da Carta Imperial de 1824, no artigo 163, em consoantes
aplicações das Ordenações Filipinas, sobre o direito de propriedade, dominus. “[...], com
aplicação subsidiária, nos termos do título LXIX, do Livro III, das Ordenações e sob as
limitações conferidas pela lei da boa razão, a Lei de 18 de agosto de 1769” (RIBAS apud
CAMPELLO, 2010, p. 32).269
Segundo André Campello,

A dominica potestas dos Romanos, constando de dous elementos – o dominium e a


potestas, impunha ao escravo duplo subjeição ao senhor, e o considerava ao mesmo
tempo como cousa e como pessoa. Esta instituição não despessoalizava, pois,
inteiramente o escravo, nem poderia elle sel-o, pois que a sua incapacidade era
subjeita a restrições. À proporção, porém, que o direito estricto se foi approximando
do racional, foi-se restrigindo a dominica potestas, e parallellamente alargando a
capacidade dos escravos, esta instituição reconhecida como opposta á natureza, e a
liberdade como faculdade natural. Entre nós também os direitos do senhor sobre o
escravo constituem domínio e poder, em relação ao domínio o escravo é cousa, em
relação ao poder é pessoa (RIBAS apud CAMPELLO, 2010, p. 43-44).270

Esse processo é mais um entre tantos que decorreram durante meados da década de
80, do século XIX. A constante luta pela liberdade nos dá uma dimensão de que os cativos não
foram coniventes com o cativeiro, os processos de busca da liberdade nos proporcionam uma
visão mais ampla das estratégias utilizadas para se fazer valer das leis imperiais em comum
acordo pela valorização do humano, pela perspectiva de inserção social e reconhecimento como
produtor de seu trabalho e sua história.
Em um discurso em defesa de Benedito, o curador João Nepomuceno Bezerra
Cavalcante diz:

268
FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 2ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
269
CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. A Escravidão no Império do Brasil: perspectivas jurídicas –
1. ed. 2010.
270
Idem.
233

A propriedade do homem sobre o homem não se funda na razão e no direito, ao


contrário é a mais monstruosa violação dos preceitos da razão e do direito, porque o
direito, primeiro do homem e a propriedade de si mesmo ou a liberdade. A propriedade
do homem sobre o homem, como bem qualificou alguém, é uma exageração sacrilégia
do direito da propriedade.271

Esse processo de Agravo Judicial foi movido pelo preto Benedito, lutando pela sua
liberdade, ocorrido na Fazenda Mundo Novo contra o agravante João Martins Phileseno em
1885. Esse documento demonstra que o sistema escravista vigente no Brasil Império dificultava
ao máximo o acesso à liberdade dos cativos nas décadas finais do escravismo, sendo
superexplorado, de maneira a aliená-los ainda mais no processo da realidade de mudança da
senzala para a sociedade livre do cativeiro. Esse documento se relaciona com o movimento
abolicionista do escravismo e nos relata que a luta dos cativos em busca da liberdade esteve
presente na Fazenda Mundo Novo.
Cristiane de Quadros Bortolli (2003) faz referência à população local de Cruz Alta e
Palmeira das Missões, de que as questões abolicionistas na região, no Estado do Rio Grande do
Sul foram divididas em categorias específicas, como as coletivas e individuais. Também relata
que na visão da população local, com base na colonização italiana ou alemã, não houve um
escravismo acirrado e violento. Seria mais ameno para os poucos escravos que foram
introduzidos nessas regiões e predominando, de acordo, às boas relações entre senhores e
cativos.272 “Mas a ideia que perpassa na memória dos habitantes de Cruz Alta e Palmeira da
Missões é de que aqui existiram poucos escravos, além de que os que havia mantinham relações
amigáveis com seus senhores; não teriam existido movimentos abolicionistas nessa região”
(BORTOLLI, 2003, p. 88).273
Os discursos utilizados dentro dos processos judiciais podem favorecer o
entendimento de que em todas as regiões, ou localidades mais longínquas que fossem, onde o
escravismo se fez presente, a luta pela liberdade dos cativos foi intensa e os mecanismos
adotados para manter os cativos atrelados aos senhores também foram variadas. “[...] a abolição
não pode ser reduzida a um ato de brancos, mas foi uma luta constante por parte dos escravos”.
(BORTOLLI, 2003, p. 89).274 Ainda, Cristiane de Quadros Bortolli descreve que:

271
Processo - Aggravo de Intrumento Santa Cristina do Pinhal 1886, João Martins Phileseno aggravante, Benedito
aggravado. APERS.
272
Sobre a colonização Italiana e afro-brasileira em Caxias do Sul ver: Lucas Carreganato. A Outra Face: a
presença afrodescendentes em Caxias do Sul. Caxias do Sul: Maneco Liv. E Ed., 2010.
273
BORTOLLI, Cristiane de Quadros de. Vestígios do Passado: a escravidão no Planalto Médio gaúcho. Passo
Fundo: UPF, 2003.
274
Idem.
234

O Rio Grande do Sul, pressionado pelos demais estados onde se iniciavam os grandes
movimentos abolicionistas, adotou a política de manutenção por contrato, já utilizada
em outras províncias, mantendo, assim, o contrato sobre a força de trabalho não paga
durante um período específico de tempo (BORTOLLI, 2003, p. 89). 275

Esse trâmite de mudanças, que se desenvolveu nas relações entre senhores, cativos,
libertos, abolicionistas e sociedade, viabilizou uma condição com base em leis criadas para
coibir a entrada de africanos no Brasil, no caso, a lei de 1831.
Flavio Gomes (2005), salienta que, nas décadas de 1860 e 70, eram muitas as petições
de sociedades beneficentes ou associações de negros que chegavam aos conselheiros, pedindo
suas legalizações e com isso desenvolvia-se um suporte aos ex-cativos para dar continuidade
ao processo abolicionista que estava em vigência.276
Sidney Chalhoub (1990) aponta para 1888 com três pontos interessantes,
desenvolvendo um entendimento sobre como foi a abolição em seu desdobramento, sendo o
primeiro ponto um tanto perigoso, visto que a primazia da valorização da propriedade privada
– ideias liberais – deveria ser respeitada; contudo, analisada de maneira a se concretizar o
processo de liberdade para os cativos.
A segunda seria “o ato de alforriar”, sendo ele uso exclusivo dos senhores, sem a
interferência do Estado. E terceira, a luta dos próprios escravos tentando resistir e adquirir sua
liberdade através dos meios legais e efetivar sua relação social com a sociedade.277 No segundo
e terceiro ponto, podemos relacionar o caso de Benedito, que, sendo alforriado, mas alienado
ainda a João Martins, foi buscar nos meios legais sua liberdade, visto que queria pagar por sua
liberdade mas não foi aceita por João Martins Phileceno .
Esse movimento de busca da liberdade emerge de uma complexa relação entre sujeitos
ativos em esferas sociais diferentes no cotidiano. O africano ou afro-brasileiro, cativo ou liberto,
alforriado ou livre, necessitava de um amparo emergencial da sociedade para sanar suas
necessidades de sobrevivência, onde as adversidades e marcas do cativeiro pesam contra sua
manutenção de sobrevivência.
Para o imigrante europeu, que tinha o dever de ocupar e se desenvolver na terra que
ainda não era explorada, a tarefa era um empreendimento que viabilizava frutos dentro da

275
Idem.
276
GOMES, Flavio dos Santos. Negros e Política (1888-1937). Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
277
CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
235

proposta, principalmente, econômica estabelecida pelo Império e, posteriormente, pela


República.
Desta maneira, as representações do processo das relações sociais se manifestaram de
acordo com a estrutura de comunidade em formação, na qual surgiu a sociabilidade com traços
afetivos e convívio cotidiano e, em alguns casos, relações humanizadas, pois através desses
relacionamentos foi possível detectar as condições para que se constituíssem laços sociais mais
próximos, mesmo que sejam situados em um relacionamento mais contundente, como no caso
das relações de trabalho forçado.
Percebemos que em todas as comunidades que compõem a sociedade brasileira
surgiram movimentos em prol da necessidade da valorização dos sujeitos descendentes de
africanos, que, em algum momento, visou estabelecer relações sociais, sendo que esse agente
cativo, liberto, alforriado ou o livre, teve uma grande gama de importância no desenvolvimento
social e cultural brasileiro, pois sua influência está vinculada ao cotidiano da sociedade.
Assim, criar vínculos através das sociedades onde foram inseridos era uma
possibilidade de preservar sua cultura e se manterem vivos, resistindo e fazendo prevalecer sua
existência; com isso as relações cotidianas se fazem presentes no processo de assimilação
socialcultural como necessárias para a sobrevivência em uma sociedade branca.
236

CONCLUSÃO.

De acordo com o que foi apresentado até este momento, podemos salientar que o
processo de ocupação territorial que se estendeu no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana,
possibilitou um tráfego intenso de pessoas e um comércio ativo, visto que os assentamentos das
famílias e a necessidade de produtos para sua manutenção favoreceram a ampliação das rotas
comerciais cada vez mais utilizadas, isso também viabilizou o aumento da produção de gêneros
de subsistência, que se desenvolvia e ampliava a demografia local.
Não podemos deixar de destacar a importância da presença do africano e afro-
brasileiro, que trabalhou dentro desse processo de ocupação e economia. Sua permanência,
resistência e trabalho foi de suma importância para o desenvolvimento regional, já que, ao lado
do colonizador, mesmo em estado de privação da liberdade, seu braço foi o motor gerador das
riquezas que se estabeleceram e formaram o comércio regional, as construções e principalmente
a permanência até os dias atuais de sua cultura, fazendo parte da sociedade local.
Outro fator desse processo foi a qualidade da terra, dos campos e a quantidade de matas
que favorecia a extração de madeira, o que possibilitou uma grande produção de animais que
se desenvolveram, facilitando o enriquecimento desses ocupantes e dando início à formação da
sociedade do município de Taquara.
Não esquecendo a importância da agropecuária como elemento desenvolvedor
regional, além da utilização da mão-de-obra cativa, que favoreceram o enriquecimento de
algumas famílias, que se assentaram por essas bandas. Assim foi se constituindo o surgimento
de elite agrária local com base no trabalho escravo.
A presença dos africanos e afro-brasileiros na Fazenda Mundo Novo é fato legitimado
e afirmamos que, nessa região, o escravismo teve a mesma intensidade que no restante do Brasil
escravocrata. Dizer que esses trabalhadores tiveram uma escravidão amena e com
relacionamentos que extrapolaram as bases do escravismo é um tanto anacrônico, mas também
não condiz com algumas realidades em que esses cativos foram inseridos. Com isso, não
podemos generalizar tudo que se lê, já que temos indícios, e somente indícios, de que, em alguns
casos, o contato e as relações dos cativos com os colonos teutos foram mais amenas e outras
nem tanto assim.
As relações cotidianas que se construíram durante a presença de cativos e seus
senhores tiveram, em alguns casos, indivíduos que se utilizaram dessas relações para tirar
vantagens dentro das escravarias, outros não tiveram a mesma sorte. A mobilidade de muitos
cativos manteve a esperança da liberdade, mas com um certo distanciamento. Entender e
237

compartilhar as possibilidades dessas relações era também resistir e aproveitar o momento em


que se encontrava a década de oitenta, do século XIX, para tais manifestações, visto que o
movimento abolicionista estava forte em todo o Império.
Como vimos, nos discursos formados, as recordações absorvidas pela memória
retratam um cotidiano até a atualidade, construído como fator de inferioridade para os afro-
brasileiros, além de colocar ‘nas sombras’ a vida no cativeiro, descaracterizando sua presença
e trabalho e excluindo, da história local, sua marca na sociedade, formada na Fazenda Mundo
Novo.
Se hoje existe um quilombo em Taquara ( O Quilombo do Paredão) é porque essas
pessoas são descendentes dos cativos que resistiram ao processo escravista e, também, pela
constituição da família escrava dentro das escravarias na região. Essas transmitiram a seus
filhos os conhecimentos e técnicas de sobreviver em meio à adversidade local, demonstrando
que a família foi uma das soluções para amenizar sua permanência em cativeiro e um dos
elementos de resistência em busca da liberdade, além de preservar sua cultura, religiosidade e
costumes oriundos da África.
Outro fator importante são as fronteiras erguidas para impedir que cativos e seus
descendentes ultrapassassem a linha imaginária e se integrassem na sociedade. Visto que as
barreiras fronteiriças eram estabelecidas através dos discursos de inferioridade, excluindo
assim, mesmo que livre do cativeiro, a possibilidade de um rearranjo da vida em liberdade. Com
isso, a criminalidade foi, em muitos casos, a saída para a sobrevivência à margem do sistema
que dominou, explorou e excluiu esses indivíduos, trabalhadores negros.
Essas afirmações somente tiveram valor quando analisadas a partir das fontes que
foram estabelecidas para a elaboração desta tese. Os inventários post mortem declaram as bases
de uma sociedade que se estabeleceu através da ocupação territorial e exploração do outro, da
ampliação das relações econômicas, do comércio exercido através da agricultura, pecuária e do
aumento do poder propício desses fatores.
Para isso a mão-de-obra africana e afro-brasileira, foi utilizada exaustivamente na
região e não podemos deixar de exaltar, referenciar e retirar da invisibilidade as ações, a
resistência e a história dessa gente que viveu em cativeiro. Assim, registrar a História e a
presença desses afro-brasileiros na Fazenda Mundo Novo, entre 1856 - 1888, valorizando e
ampliando o entendimento sobre o escravismo no Rio Grande do Sul, foi um desafio que gerou
uma análise profunda de todas as possibilidades apresentadas.
O lugarejo conhecido como Pinhal, posteriormente, Santa Cristina do Pinhal é o início
da ocupação da região por portugueses. O afro-brasileiro foi inserido como escravo na região e
238

desta maneira, ao lado do colono alemão, teve importante participação na formação social,
econômica e política nessa comunidade, sendo de suma importância reconhecer o indivíduo
africano e afro-brasileiro como sujeito construtor de sua história, buscando preservar sua cultura
e formando laços sociais dentro da conjuntura de uma imposição sociocultural europeia, nesse
caso, os portugueses, em todo o Brasil, especificamente, na Fazenda Mundo Novo, hoje, a
cidade de Taquara.
O homem afro-brasileiro, como objeto de pesquisa da presente tese e seu cotidiano
como referência e fundamentação na contribuição da formação da sociedade do atual município
de Taquara, teve sua parcela de subsídios e permanência como sujeito ativo em diversos
segmentos da sociedade e fez, cada vez mais, surgir a possibilidade de conviver em sociedade,
mesmo que fosse visto através da inferioridade, pois foi levado a acreditar que não tinha valores
a serem preservados, mas detém os gêneses da africanidade como representação e formação de
um sujeito proativo no contexto de colonização e desenvolvimento social.
A importância do reconhecimento da africanidade no Brasil está cada vez mais
evidenciada como fator que determina sua participação na construção de uma sociedade que o
menospreza e classifica o afro-brasileiro como inferior. Desta maneira, as pesquisas, já
produzidas e difundidas ao longo dos últimos anos, demonstram que a população negra, oriunda
da África, sofreu desde a sua chegada à Colônia Brasil.
A escravidão desvaneceu a sociedade africana e seus descendentes que viveram na
colônia e Império brasileiro. O resgate e valorização do afro-brasileiro é um dever um tanto
difícil dentro do processo social na atualidade. Devemos ampliar as possibilidades que
envolvam a valorização do afro-brasileiro como ser social e, principalmente, a valorização dos
elementos étnicos culturais. Esse desafio foi imposto ao próprio descendente africano, pois a
resistência social esteve cada vez mais impelindo o indivíduo negro dentro do “branqueamento”
da sociedade como um todo.
Desse modo, o processo de identificação, presença e representação do afro-brasileiro
na Fazenda Mundo Novo teve, como ponto principal, a procura de elementos para desconstruir
a ideia da inexistência de cativos no Vale do Rio dos Sinos – Paranhana, visando legitimar essa
população excluída, sem visibilidade e oportunidade de escolha de seu destino, mas construtora
de sua história, como refere José de Souza Martins, em sua obra A Sociedade do Homem
Simples, “os homens fazem sua própria História, mas não a fazem como querem e sim sob as
circunstâncias que encontram, legadas e transmitidas pelo passado” (MARTINS, 2008, p.
239

53).278 É esse passado que deve ser retirado da invisibilidade e colocado em evidência para
valorização do homem negro, que por tantas vezes foi e ainda é excluído na sociedade.
Também é necessário perceber o afro-brasileiro como agente ativo e sujeito
participante na construção social; pois, em todo o Brasil Colônia e Império, o trabalho braçal
passou pela mão-de-obra cativa em diversas áreas de produtividade econômica e urbana, nas
vilas que se formaram, nas cidades, nas fazendas e em todos os setores onde foi imposta a
escravidão.
Na História e no cotidiano de sujeitos específicos – senhores e cativos –, que
construíram a nossa sociedade atual, se percebe uma participação muito mais efetiva que
coadjuvante na construção “das sociedades” nos diversos “Brasis", pois, a partir da introdução
do escravismo, os africanos e afro-brasileiros passaram a conviver diretamente no dia a dia das
sociedades que estavam inseridos, buscando os meios para sobreviver no cativeiro e visando a
“liberdade”, mas bem perto da chibata e do pelourinho.
A escravidão africana é decorrência da ambição do homem europeu em busca do
capitalismo e exploração das populações em minoria; assim, as desigualdades se tornaram um
parâmetro para análises dentro das relações sociais do tempo histórico do cotidiano, onde as
manifestações de resistência da cotidianidade se apresentam como necessário para tirar da
obscuridade as relações sociais e culturais do afro-brasileiro no Brasil.
A “invisibilidade”, que foi criada para os descendentes africanos, vai se produzindo a
partir do não reconhecimento do seu trabalho, visto somente como uma mercadoria e não como
produtor de sua história. “Nesse Estado [cativo], o negro chega a ter uma participação. De
segunda classe, é verdade, mas tem uma participação, à margem [da sociedade]” grifo nosso
(ORLANDI, 2008, p. 66).279
Partindo da necessidade de mão-de-obra, visando dar ênfase para o desenvolvimento
econômico e social, a exclusão das classes desfavorecidas foi marcada pelo preconceito e
racismo. Nesse contexto, o afro-brasileiro ficou à mercê das dificuldades de manutenção social
e familiar, da falta do reconhecimento de sua mão-de-obra e, principalmente, a desvalorização
e o preconceito sofrido pela cor da pele, que os levou a uma privação de sua liberdade.
A partir da metade do século XIX, os movimentos escravistas dentro das colônias
acrescentaram um outro entender ao escravismo: começam os processos abolicionistas. Com

278
MARTINS, José de Souza. A Sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala.
2. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
279
ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à Vista Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. 2ª Ed. Campinas:
Unicamp, 2008.
240

isso, o cotidiano também sofreu alterações em sua formação, já que possibilitava ampliar a
vontade pela liberdade.
A sociedade, em geral, de Taquara – Vale do Paranhana, hoje não acredita que o
escravismo, nessas bandas, teve tanto impacto como na região nordeste, centro-oeste ou no
restante do sul do Brasil. O escravismo não é reconhecido como um ato de exploração ou maus-
tratos, pelos colonos teutos, contra a população africana e afro-brasileira, mas como uma
consequência da realidade colonial e imperial, já que muitos colonos não possuíam cativos.
A riqueza, que as fontes nos possibilitam perceber, está nos muitos detalhes dos cativos
e nas probabilidades, podendo contribuir para exemplificar as relações sociais. Segundo as
análises, tais fontes carregam um peso das vidas passadas de pessoas que viabilizaram uma
possível volta ao momento histórico para assistir, de dentro de uma esfera de tempo, os tabeliões
redigindo esses inventários, colocando o máximo possível de informações, para o período, a
fim de que se pudesse compreender o presente no passado.
Assim, mediante ao estudo das fontes primárias e bibliográficas, fica visível e possível
perceber os diversos aspectos da vida cotidiana da sociedade que deu origem ao município de
Taquara em sua totalidade. Para isso, refletimos sobre a idade dos cativos que fizeram parte do
desenvolvimento dessa sociedade e sobre a quantidade de crianças, jovens, adultos e idosos,
que compuseram o cativeiro para encontrar elementos que pudessem dar credibilidade à nossa
tese de que realmente existiu escravidão nessa localidade.
Também, as fontes forneceram o valor de cada cativo e suas características, mostrando
probabilidades de valores mais altos para os cativos masculinos, que tinham maiores destrezas
em seus afazeres, ou pelo porte físico, mas, em muitos casos, as mulheres também recebiam
valores diferenciados por suas habilidades.
Esses resultados das análises, transpostos para exposição, servem para referendar a
legitimação do cotidiano e sua cotidianidade social afro-brasileira. Assim, a relação diária dos
cativos, dentro do escravismo, pode elucidar algumas questões ainda dúbias para o
entendimento de resquícios que os afro-brasileiros carregam em suas vidas sobre o cativeiro e
a exploração a que foram expostos.
As análises desenvolvidas estão em acordo com a Dimensão de uma História Política
e Social, com um Domínio da História Regional, visando a valorização e presença desses afro-
brasileiros em uma região de ocupação lusa e, posteriormente, com o colono teuto alemão.
A importância da pesquisa a partir da metade do século XIX, 1856 até o final do
escravismo em 1888, visa a valorização de mais um capítulo sobre os afro-brasileiros no Rio
Grande do Sul. Sua resistência, seus laços afetivos, sua cultura, as relações políticas e sociais,
241

que se concretizaram entre os sujeitos cativos e os senhores lusitanos e teutos, valorizaram,


principalmente, a construção das relações e resistência dos africanos e afro-brasileiros dentro
da Fazenda Mundo Novo, atual município de Taquara/RS.
A importância do afro-brasileiros na composição e formação da sociedade brasileira
está estabelecida a partir da chegada de um grande número de cativos trazidos para as terras da
Colônia Brasil. Tal ação favoreceu o incremento da presença africana como referência para a
formação da sociedade, que foi criada em lugares remotos e de ocupação de terras,
principalmente pelos portugueses, pois foi estabelecida a concepção ocidental de exploração,
traçando assim uma fronteira de inferioridade para os africanos em comparação ao ocidental.
A partir desses elementos, os objetivos que se sucederam foram expostos no decorrer
da nossa tese, que aproximou um entendimento sobre o sujeito escravizado que se manteve
dentro da colonização europeia e sua representação como agente construtivo de sua história,
entendemos assim, que o afro-brasileiro cativo ou livre buscou sua efetivação como construtor,
através de seu trabalho, tentando ultrapassar as fronteiras balizadas pelos obstáculos de
resignação, preconceitos, rejeição e formação social.
No contexto geral do escravismo na Fazenda Mundo Novo, enfatizamos a existência
de um cotidiano com características pouco diferentes das que foram apresentadas em outros
trabalhos. Podemos observar as relações de afetividade, algumas valorizações e
reconhecimentos por aproximações cotidianas, que, nesse entendimento, se percebe a existência
de uma sociedade diferenciada, no que diz respeito ao convívio direto dos senhores com o cativo
– em alguns casos –, mas não podemos ser ingênuos e anacrônicos, já que o escravismo foi,
durante muitos séculos, um movimento de exploração ao máximo, sob pena de desvalorizar e
caracterizar um cativeiro ameno e circunstancial a uma docilidade, como foi exemplificado na
historiografia do RS em outros períodos.
Na possibilidade de reconstrução da trama do processo histórico da vida dos afro-
brasileiros em cativeiro, no Rio Grande do Sul, buscamos examinar o cotidiano e as relações
sociais e suas transformações, ao longo do tempo histórico, por meio de diferentes variáveis,
relacionadas em estruturas sociais, que apresentaram uma organização no trabalho desses afro-
brasileiros, localizando-os dentro de uma esfera de cotidianidade, relacionada com outra esfera,
do mesmo sentido, que se localiza na sociedade branca da Fazenda Mundo Novo.
Para viabilizar o essencial de uma análise bem-sucedida, dos agentes que possuíam os
meios produtivos e os sujeitos subalternos e explorados, que fizeram parte do modo de
produção, instalado no processo de industrialização e urbanização das cidades brasileiras, vale
lembrar que buscamos verificar as relações dos cativos com seus senhores em um processo de
242

ocupação territorial, o desenvolvimento da produção de subsistência e comercializável e as


relações políticas econômicas com a exploração da mão-de-obra afro-brasileira. Assim visando,
em todos os momentos de análise para construção da tese, retirar da invisibilidade esses
trabalhadores escravizados, presentes na Fazenda Mundo Novo – Vale do Paranhana – Rio
Grande do Sul, Brasil.

⃰ ⃰ ⃰ ⃰ ⃰
243

REFERÊNCIAS

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural.


Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

ABDALA JUNIOR, Benjamin. As Fronteiras Múltiplas, Identidades Plurais: um ensaio sobre


mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC, 2002.

AGUIAR, Lacy Maria; CASADO, Irene Luciana. Taquara de Tristão José Monteiro. Porto
Alegre: Palloti, 1986.

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da Dissimulação: abolição e cidadania negra no


Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

APARICIO, Fernando Molina. España no era tan diferente: Regionalismo e identidad nacional
en el País Vasco (1868-1898), In: La Construcción de la Identidad Regional en Europa y
España (siglos XIX y XX). Xosé Manuel Núñez Seixas ed. 2006.

AZEVEDO, Marcos A. SMANIOTTO, Elaine. In: REINHEIMER, Dalva...[et al.].


Caminhando Pela Cidade: apropriações históricas de Taquara em seus 125 anos. Porto
Alegre: Evangraf, 2011.

ARAUJO, Thiago Leitão. Desafiando a escravidão: fugitivos e insurgentes negros e a política


da liberdade nas fronteiras do Rio da Prata (Brasil e Uruguai, 1842-1865). Tese (Doutorado
em História), Instituto de Filosofia e Ciências Humana. Universidade Estadual de Campinas –
Programa de Pós-Graduação em História Social. São Paulo, 2016.

BERND, Zilá; BAKOS, Margaret M. O negro, consciência e trabalho. 2. ed. Porto Alegre: Ed.
da Universidade UFRGS, 1998.

BERNARDES, Nilo. Bases Geográficas do Povoamento do Estado do Rio Grande do Sul. Ijuí:
Ed. UNIJUÍ, 1997.

BORTOLLI, Cristiane de Quadros de. Vestígios do Passado: a escravidão no Planalto Médio


gaúcho. Passo Fundo: UPF, 2003

BOBBIO, Norberto. Estado, gobierno y sociedad: por una teoria general de la polftica.
Santillan. - Mexico: FCE, 1989.

BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.

CENSO DE 1872 liv25477_v11_rs. Recenciamento Demográfico Imperial. Disponível em


http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo. Acesso 28/09/2017.

CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.


244

CEREAU, Sandra, et al. O Olhar Multidisciplinar Sobre a Efetividade da Proteção do


Património Cultural. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2001.

CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

_____. A Força da Escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. 1ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.

CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. A Escravidão no Império do Brasil:


perspectivas jurídicas – 1. ed. ISBN 978-0-557-67298-1. 2010.

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na


sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

CARDOSO, Ciro F. O Escravo ou Camponês? O protocampesinato negro nas américas. São


Paulo: Brasiliense, 1987.

CARREGANATO, Lucas. A Outra Face: a presença afro-descendentes em Caxias do Sul.


Caxias do Sul: Maneco Liv. E Ed., 2010.

COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 5ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

CORRÊA, André do Nascimento. Estrutura de Posse de Escravos em Caçapava (1821-1850):


primeiras notas de pesquisa. XI Encontro Estadual de História: história, memória e patrimônio.
23 a 27 julho de 2012. Universidade Federal de Rio Grande (FURG) – Rio Grande – RS –
Brasil.

CUCHE, Denys. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 1999.

CUNHA, Joceneide. Entre Padrinhos e Compadres: os africanos nos livros de batismos em


Sergipe (1785-1835). XXVII Simpósio Nacional de História – HNPUH. Natal, 22-26 de julho,
2013.

DEL PRIORI, Mary. História do Cotidiano e da Vida Privada. In: CARDOSO, Ciro Flamarion
S.; VAIFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.

DINIZ, Mônica. Sesmaria e Posse de Terras: política fundiária para assegurar a colonização
brasileira. Artigo publicado na Revista Histórica. São Paulo. ed. nº 2, junho 2005.

DUCLOS, Jean-Claude. Antropologia y Patrimonio. Barcelona: Editora Ariel S.A. 1997.

ENGELMANN, Erni G. A Saga dos Alemães: do Hunsrück para Santa Maria do Mundo Novo.
V. II. Igrejinha: Editora Comunicação Impressa, 2005.
245

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2007.

FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária
na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese (Doutorado em História), Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em
História Social. Rio de Janeiro, 2007.

_____. Construção de séries e micro-análise: notas sobre o tratamento de fontes para a história
social. Revista Anos 90, Porto Alegre, v. 15 n. 28, p. 57-72, jul. 2008.

_____. Relações Parentais de Escravos, Libertos e indígenas na Fronteira Meridional (1817-


1844): primeiras notas de pesquisa. 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,
11 a 13 maio de 2011, UFRGS, Porto Alegre, RS.

_____. Os compadres de Estêvão e Benedita: hierarquia social, compadrio e escravidão na


fronteira meridional do Brasil (1821-1845). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História –
ANPUH• São Paulo, julho 2011.

FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. 5ª Ed. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1996.

FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson. A Formulação da “Fronteira Manejada”


Como Proposta Teórica a Partir do Estudo de Crimes. Artigo apresentado no I Seminário
Internacional “Brasil no Século XIX”, novembro, 2013.

FERNANDES, Dóris Rejane. Povoamento Pioneiro das Terras do Mundo Novo. In:
BARROSO, Vera Lúcia Maciel, SOBRINHO, Paulo Gilberto Mossmann. Raízes de Taquara.
Porto Alegre: EST, 2008.

_____. Povoamento pioneiro das Terras do Mundo Novo. In: SOBRINHO, Paulo Gilberto
Mossmann; BARROSO, Véra Lucia Maciel. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST, 2008.

FERRER, Francisca Carla Santos. Entre a Liberdade e a Escravidão na Fronteira Meridional


do Brasil: estratégias e resistência dos escravos na cidade de Jaguarão entre 1865 a 1888. São
Paulo, Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, 2011.

FREITAS, Ubiratã Ferreira. A Fronteira é Logo Ali, Mas Permaneci Escravo. Curitiba: Editora
Prismas, 2017.

FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-


1910). 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

FRANZEM, Darlei Eduardo, et al. “Taquara: no túnel do tempo”. In. SOBRINHO, Paulo
Gilberto Mossmann; BARROSO, Véra Lucia Maciel. Raízes de Taquara. Porto Alegre: EST,
2008, p. 113.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da


economia patriarcal. 51ª ed. São Paulo: Global, 2006.
246

FLORENTINO, Manolo. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de
Janeiro, C. 1790-C. 1850. São Paulo: Unesp, 2017.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 12 ed. 2005.

GIL, T. L. Coisas do Caminho: tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba. Rio de Janeiro
(RJ): tese de doutorado, PPGHIS/UFRJ, 2009.

GOMES, Flavio dos Santos. Negros e Política (1888-1937). Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

GOLIN, Tau. A Fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil
com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.

GRAEBIN. Cleusa Maria Gomes. Vida Cotidiana dos Açorianos pelas Freguesias e Caminhos.
In: BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau. História do Rio Grande do Sul – Colônia. v. I. Passo
Fundo: Méritos, 2006.

GRINBERG, Keila. As Fronteiras da Escravidão e da Liberdade no Sul da América. 1ª ed. Rio


de Janeiro: 7Letras, 2013.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. A República de 1889: utopia de branco, medo de preto
(a liberdade é negra; a igualdade, branca e a fraternidade, mestiça). Revista: Relações Raciais
e Ações Afirmativas, 2011.

GUTERRES, Letícia Batistella Silveira. Para Além das Fontes: Im/possibilidades de laços
familiares entre livres, libertos e escravos (Santa Maria – 1844-1882). Porto Alegre,
Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2005.

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

HÖRMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850: descrição da província do Rio Grande
do Sul no Brasil meridional. Caxias do Sul: D.C Luzzatto Ed: EDUNI-SUL, 1986.

HAMEISTER, Martha Daisson. O Uso dos Registros Batismais para o estudo de Hierarquias
Sociais no Período de vigência da Escravidão. 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, 11 a 13 maio de 2011, UFRGS, Porto Alegre, RS.

JACINTO, Cristiane Pinheiro Santos. Relações de Intimidade: desvendando modos de


organização familiar de sujeitos escravizados em São Luiz no século XIX. Maranhão,
Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Maranhão, 2005.

JOHNSON, James Weldon. Auto Biografia de um ex-negro. Porto Alegre: 8Inverso, 2010.

LANDO, Aldair Marli; BARROSO, Eliane Cruxên. Capitalismo e Colonização: Os Alemães


no Rio Grande do Sul. In: DACANAL, José H; GONZAGA, Sergius. RS: Imigração &
Colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.

LANGER, Protásio Paulo. A Aldeia Nossa Senhora dos Anjos: a resistência do Guarani-
missioneiro no processo de dominação ao sistema luso (1762-1798). Porto Alegre: EST
Edições/Correio Riograndense, 1997.
247

LEVI, Giovanni. Reflexões sobre família e parentela. In: VERDRAME, Maíra Ines;
KARSBURG, Alexandre; WEBER, Beatriz; FARINATTI, Luis Augusto. Micro história,
trajetórias e imigração. São Leopoldo: Oikos, 2015.

Livro de Atas da Câmara Municipal de São Leopoldo em 1846 a 1849, p. 13. In:
MAGALHÃES, Dóris Rejane Fernandes. Terras, Senhores, Homens Livres, Colonos e
Escravos na Ocupação da Fronteira no Vale do Rio dos Sinos. Tese de Doutorado, Curso de
Pós-Graduação em História – Unisinos, 2003.

LIMA, Jocemar Paulo de. República Velha. Recorte temporal histórico (1889 – 1920). TCC
apresentado na FACCAT – Faculdades Reunidas. Taquara, 2008.

LOUREIRO, Stefânie Arca Garrido. Identidade Étnica em Re-construção: a ressignificação da


identidade étnica de adolescentes negros em dinâmica de grupo na perspectiva existencial
humanista. Belo Horizonte: O lutador, 2004.

KARSBURG, Alexandre. A micro-história e o método da microanálise na construção de


trajetórias. In. VENDRAME, Maria Inez, et al. Micro-história, trajetórias e imigração. São
Leopoldo: Oikos, 2015.

MARTINS, José de Souza. A Sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na


modernidade anômala. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008.

MARTINS, Alberto E. Lendas, Fatos e Pessoas da Taquara Velha do Mundo Novo. Taquara:
LB Brasil Comunicação Ltda. 1998.

MARCONDES, Renato Leite. A Propriedade Escrava e a Hipótese de Crescimento Vegetativo


em Batatais: a classificação dos escravos (1875). Trabalho apresentado no XIII Encontro da
Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
de 4 a 8 de novembro de 2002.

MATHEUS, Marcelo Santos; FARINATTI, Luís Augusto. Registros de batismo e inventários


post mortem como fontes para o estudo da estrutura de posse de escravos no sul do Brasil
(século XIX): possibilidades e limites. Revista: Estudios Históricos – CDHRPyB- Año VIII -
Julio 2016 - Nº 16 – ISSN: 1688 – 5317. Uruguay.

_____. A produção da diferença: escravidão e desigualdade social ao sul do Império brasileiro


(Bagé, c. 1820-1870). 2016. 418 f. Tese (Doutorado em História), Instituto de História,
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em História Social. Rio
de Janeiro, 2016.

MATTOSO, Katia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil: Séculos XVI-XIX. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2016.

MAUCH, Claudia. Os Alemães no Sul do Brasil. Canoas: Ed. Ulbra, 1994.

MAGALHÃES, Dóris Rejane Fernandes. Terras, Senhores, Homens Livres, Colonos e


Escravos na Ocupação da Fronteira no Vale dos Sinos. Tese de Doutorado, Curso de Pós-
Graduação em História – Unisinos, 2003.
248

MAESTRI, Mário. Uma Breve História do Rio Grande do Sul: da pré-história aos dias atuais.
Passo Fundo: Editora UPF, 2006.

_____. O Escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho.


Caxias do Sul: EDUCS, 1984.

MENZ, Maximiliano M. Os Escravos da Feitoria do Linho Cânhamo: trabalho, conflito e


negociação. Afro-Ásia, 32 (2005), 139-158.

MOREIRA, Paulo Roberto Staudt, MUGGE, Miquéias Henrique. Histórias de Escravos e


Senhores Em Uma Região de Imigração Europeia. São Leopoldo: Oikos, 2014.

_____. Justiçando o Cativeiro: a cultura de resistência escrava. In: BOEIRA, Nelson, GOLIN,
Tau. História do Rio Grande do Sul – Império. v. II. Passo Fundo: Méritos, 2006.

MOURA, Clóvis. História do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1992.

MIGNOLO, Walter. Espacios Geograficos y localizaciones Epistemologicas: la ratio entre la


ocalización geografica y la subalternización de conocimentos. Autores: Walter D. Mignolo
Estudios: revista de investigaciones literarias, ISSN 0798-958X, Nº 11, 1998, págs. 11-32
http://www.javeriana.edu.co/pensar/Rev34.html.

_____. Cartas, crónicas y relaciones del descubrimiento y la conquista. Madrid: Ediciones


Catedra, 1982.

_____. Pensamiento Decolonial, Desprendimento y Apertura: La Pequeña História. Tabula


Rasa. Bogotá - Colombia, No.8: 243-281, enero-junio 2008.

MONSMA, Karl. Identidades, desigualdade e conflito: imigrantes e negros em um município


do interior paulista, 1888-1914. Notas de pesquisa. Revista Unisinos, 2007.

NEVES, H. A. P. A criação de ovinos e o comércio de lã no Rio Grande do Sul (1851-1889).


BIBLOS - Revista do Instituto de Ciências Humanas e da Informação, v. 4, p. 55-61, 1992.
Disponível em: <http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/23455>. Acesso em: 07 jan. 2020.

OSÓRIO, Helen. Estrutura Agrária e Ocupacional. In: BOEIRA, Nelson, GOLIN, Tau. v.1
Passo Fundo: Editora Mérito, 2006.

OLIVEIRA, Vinicius Pereira de. De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino
em terras meridionais. Porto Alegre: Edições EST, 2006.

OLIVEIRA, Renata Saldanha. Cativos Julgados: experiências sociais escravas de autonomia,


sobrevivência e liberdade em Cachoeira do Sul na segunda metade do século XIX. Dissertação
de Mestrado, 2011, UFSM.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à Vista – Discurso do Confronto: velho e novo mundo. 2 ed.
Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
249

PETIZ, Silmei de Sant’Ana. Buscando Liberdade: as fugas de escravos da província de São


Pedro para o além-fronteira (1815-1851). Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo,
2006.

PETERSEN, Silvia. Dilemas e Desafios da Historiografia Brasileira: a temática da vida


cotidiana. Porto Alegre: UFRGS, 1991.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras Culturais em um Mundo Planetário - paradoxos da


(s) identidade (s) sul-latino-americana (s). Porto Alegre: UFRGS, 2006.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Malungos na Escola: questões sobre culturas


afrodescendentes e educação. São Paulo: Paulinas, 2007.

PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004.

PRADO, Eliane Mimessi. A Importância das Fontes Documentais para as Pesquisas em


História da Educação. InterMeio: revista do Programa de Pós-Graduação em Educação, Campo
Grande, MS, v.16, n.31, p.124-133, jan./jun. 2010.

PRATS, LIorenç. Concepto y Gestión del. Patrimonio Local. Cuad. antropol. soc. n.21 Buenos
Aires ene./jul. 2005.

PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, Olivier. A História da Escravidão. São Paulo: Boitempo, 2009.

REINHEIMER, Dalva N. A Navegação Fluvial na República Velha Gaúcha. São Leopoldo:


Oikos, 2010.

RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no
pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

RODRIGUES, José Damião. Da periferia insular às fronteiras do império: colonos e recrutas


dos Açores no povoamento da América. Anos 90, Porto Alegre, v. 17, n. 32, p. 17-43, dez. 2010.

ROSA, Cibele Caroline da; LAROQUE, Luís Fernando da Silva. Quando Migrar é Necessário:
açorianos povoam o continente de Rio Grande de São Pedro (Meados do século XVIII). Revista
Destaques Acadêmicos, Lajeado, v. 10, n. 2, 2018.

SANTOS, José Antônio dos. Prisioneiros da História: Trajetórias Intelectuais na Imprensa


Negra Meridional. Porto Alegre: [Tese de Doutorado], 2011.

SCOVAZZI, Tulio. A Definição de Patrimônio Cultural Intangível. In: CEREAU, Sandra, et


al. O Olhar Multidisciplinar Sobre a Efetividade da Proteção do Património Cultural. Belo
Horizonte: Fórum, 2011

SLENES, Robert. Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família


escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

SIMÃO, Ana Regina Falkembach. Resistência e Acomodação: a escravidão urbana em


Pelotas, RS (1821-1820). Passo Fundo: UPF, 2002.
250

SOBRINHO, Paulo Gilberto Mossmann; BARROSO, Véra Lucia Maciel. Raízes de Taquara.
Porto Alegre: EST, 2008.

SOARES, Carlos Eugenio Líbano. “Instruído na Fé, Batizado em Pé”: batismo de africanos
na Sé da Bahia na 1ª metade do século XVIII, 1734-1742. Revista: Afro-Ásia, 39 – 2010, 79-
113.

SOARES, Inês Virgínia Prado; QUINALHA, Renan Honório. Lugares da Memória. In:
SILVEIRA, Oliveira. Pêlo Escuro. Porto Alegre, edição do autor, 1977.

TEIXEIRA, Francisco Carlos. História das Paisagens. In: CARDOSO, Ciro Flamarion,
VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997, p.203.

TRAMONTINI, Marcos J. A Questão da Terra na Fase Pioneira da Colonização. In: MAUCH,


Cláudia. Os Alemães no Sul do Brasil. Canoas: Ed. Ulbra, 1994.

VARGAS, Jonas Moreira. Pelas Margens do Atlântico: um estudo sobre elites locais e
regionais no Brasil a partir das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas, Rio Grande
do Sul (século XIX). Tese (Doutorado em História), Instituto de História. Universidade Federal
do Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em História Social. Rio de Janeiro, 2013.

VENÂNCIO, Renato Pinto; SOUSA, Maria José Ferro de; PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves.
Compadre Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, p. 273-294 – 2006.

VOGT, Olgário Paulo, RADÜNZ, Roberto. Do Presente ao Passado: inventários post mortem
e o ensino de história. Revista Latino-Americana de História. Vol. 2, nº. 6 –Agosto de 2013 –
Edição Especial PPGH-UNISINOS.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Os Nomes da liberdade. Ex-escravos na serra gaúcha no pós-


abolição. São Leopoldo: Oikos, 2008.

WAGNER, Benno. Volta às Raízes. Curitiba: Editora Rocha, 19--. (Biliografia incompleta,
faltando o ano de publicação).

ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX.
Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.
251

Fonte Manuscrita Utilizadas no Corpo do Texto

APERGS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Livros de Inventários post-
mortem – 1861 – 1888.

ARQUIDIOCESE DE PORTO ALEGRE – Cúria Metropolitana: Livro de Casamentos de


Santa Cristina do Pinhal 1865, 1876 e 1888.

AHRS – Arquivo Histórico do RS. Sesmaria de Antonio Borges de Almeida Leães, 1813.

Inventário: Antonio Borges de Almeida Leães, 1829. 1º Cartório de Órfãos, nº 974, E 31 e/c –
APERS.

Inventário: José Duarte, Rio Pardo, 1783. Estante 007.0249, Comarca de Santa Catarina,
intervalo – 20-31, datas: 01/01/1783 A 31/12/1786. APERS.

Inventário: Amandio José de Araujo, 1876. Autos nº 53; Maço nº 03, Estante 152 – APERS.

Inventário: Olivério Pedro de Morais, 1886. Autos nº 236; Maço nº 11, Estante 39 E – APERS.

Inventário: João luiz de Souza. Cartório de Órfãos, Taquara, nº 04, maço 01, est 152, 1863 –
APERS.

Inventário: Manoel Soares de Oliveira. Cartório de Órfãos, Taquara, nº 05, maço 01, est 39,
1863 – APERS.

Inventário: Camilo José Martins, Cartório de Órfãos, Taquara, nº 07, maço 01, est 152, 1865 –
APERS.

Inventário: Manoel Silveira da Rosa, Cartório de Órfãos, Taquara, nº 09, maço, 01, est 39 e/c,
1865 – APERS.

Inventário: Paschoa Garcia do Espírito Santos, Cartório de Órfãos, Taquara, nº 11, maço 01, est
39 e/c, 1865 – APERS.

Inventário: Antonio de Souza Bitencourt Carvalho, Cartório de Órfãos, Taquara, nº 12, maço
01, est 152, 1866 – APERS.

Inventário: Ignácio Gomes dos Santos, Cartório de Órfãos, Taquara, nº 13, maço 01, est 152,
1866 – APERS.

Inventário: Bernardo Luiz de Souza, Cartório de Órfãos, Taquara, nº 19, maço 01, est 152, 1869
– APERS.

Inventário Francisco de Paula Feijo – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 41, maço 2, est 39 e/c,
1874 – APERS.

Inventário Belmira Pacheco de Andrade – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 39, maço 2, est 152,
1874 – APERS.
252

Inventário José de Freitas Noronha – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 45, maço 3, est 152, 1874
– APERS.

Inventário de Francisco Pacheco de Paula Machado – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 9, maço


1, est 39 e, 1880 – APERS.

Inventário de José Ignácio da Silva Ourives – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 10, maço 1, est
39 e, 1880 – APERS.

Inventários de Manoel Silveira de Aguiar – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 11, maço 1, est. 39
e, 1880 – APERS.

Inventário de José Martins Pires – Cartório de Órfãos, Taquara, nº 115, maço 6, est 39 e, 1882
– APERS.

Genealogia.org <http://buratto.org/gens/gn_download.html> Acesso em: 15 nov. 2018.

Google Earth - https://earth.google.com/web/search/Vale+dos+sinos+RS – acesso 15 nov.


2018, 15:44 hs.

https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/biologia/burro.htm. Acesso em 28/07/2018.

Valor de uma libra em R$ 4,91 - https://www.melhorcambio.com/libra-hoje - acesso em


24/11/2018.

ANEXOS

Instrumentos de Pesquisa – Fonte Primária Utilizada

Documentos de Fonte Primária


Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

Sesmaria de Antonio Borges de Almeida Leães, 1814.

Cúria Metropolitana de Porto Alegre.

Livros de Casamentos de Santa Cristina do Pinhal e Taquara

Santa Cristina. Casamentos. Livro 1. 13/05/1865 – 08/07/1876.


Santa Cristina. Casamentos. Livro 2. 17/07/1876 – 24/06/1888.
Taquara. Casamentos. Livro 1. 05/02/1888 – 22/07/1907.

APERGS - Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.

Requerimentos de Autuação
253

Requerimento de autuação processual – avaliação de bens de Felipe Jacob Kordorfer – Vila


de Bom Jesus do Mundo Novo, 14/08/1888.

Processo Crime
Inquérito policial de Maria Delphina Rangel, Taquara 23/06/1887.
Inquérito policial do pardo Rafael, Taquara 26/05/1883.
Inquérito de Agravo para João Martins, Taquara 28/05/1885.

INVENTÁRIOS POST MORTEM – LISTA COMPLETA 1856 a 1888


Inventário, Ano 1856 / Autos n.1/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. João Ignacio Pereira – Inventariado. José Borges do Amaral e Castro - Inventariante.

Inventário, Ano 1861/ Autos n.3/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Gertrudes Maria da Conceição – Inventariado. Ovídio da Silva Ramos –
Inventariante.

Inventário, Ano 1863/ Autos n.4/Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. João Luiz de Souza – Inventariado. Belmira Pacheco de Souza – Inventariante.

Inventário, Ano 1863/ Autos n.5/ Maço n.1/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Manoel Soares de Oliveira – Inventariado. Anna Soares de Morais – Inventariante.

Inventário, Ano 1864/ Autos n.6/ Maço n.1/ Estante 39. Taquara - Cartório de Orphãos e
Ausente. João José Pereira – Inventariado. Maria Alexandrina da Anunciação – Inventariante.

Inventário, Ano 1865/ Autos n.7/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Camilo José Martins – Inventariado. Maria Rosa da Conceição – Inventariante.

Inventário, Ano 1865/ Autos n.9/ Maço n.1/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Manoel Silveira da Rosa – Inventariado. Nisena Maria do Espírito Santo –
Inventariante.

Inventário, Ano 1865/ Autos n.11/ Maço n.1/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Paschoa Garcia do Espírito Santo – Inventariado. João da Silva Cordova –
Inventariante.

Inventário, Ano 1866/ Autos n.12/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara - Cartório de Orphãos e
Ausente. Antonio de Souza Bittencurt Carvalho – Inventariado. Antonio de Souza Filho –
Inventariante.

Inventário, Ano 1866/ Autos n.13/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Ignacio Gomes dos Santos – Inventariado. Maria Carlota Gomes Pires –
Inventariante.

Inventário, Ano 1868/ Autos n.15/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Francisco Xavier da Luz Neto – Inventariado. Maria Francisca de Castilho –
Inventariante.
254

Inventário, Ano 1868/ Autos n.16/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Justino Antonio de Souza – Inventariado. Joanna Joaquina de Oliveira –
Inventariante.

Inventário, Ano de 1868/ Autos n.17/ Maço n.1/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Luiz Henrique do Amaral – Inventariado. Francisco Pacheco de Paula Machado –
Inventariante.

Inventário, Ano 1868/ Autos n.13/ Maço n.1/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Manoel Francisco de Candida – Inventariado. Arminda de Cordova – Inventariante.

Inventário, Ano 1869/ Autos n.19/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Bernardo Luiz de Souza – Inventariado. Maria Candida Pacheco – Inventariante.

Inventário, Ano 1870/ Autos n.22/ Maço n.2/ Estante 152. Taquara - Cartório de Orphãos e
Ausente. Boaventura José dos Santos – Inventariado. Maria Ignacia dos Santos –
Inventariante.

Inventario, Ano 1871/ Autos n.26/ Maço n.2/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Flora Maciel dos Santos – Inventariado. Ignacio José dos Santos – Inventariante.

Inventário, Ano 1871/ Autos n.27/ Maço n.2/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. José Antonio Alves – Inventariado. Generosa Antonia de Jesus – Inventariante.

Inventário, Ano 1872/ Autos n.33/ Maço n.2/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Pedro Diehl – Inventariado. Maria Catharina Dielhl.

Inventário, Ano 1873/ Autos n.34/ Maço n.2/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Anna Maria da Assumpção – Inventariada. Ovídeo da Silva Ramos – Inventariante.

Inventário, Ano 1873/ Autos n.35/ Maço n.2/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Antonio de Souza Filho – Inventariado. Maria Victória de Souza – Inventariante.

Inventário, Ano 1873/ Autos n.38/ Maço n.2/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Maria Joaquina da Silva – Inventariada. Victorino Ignacio da Silva – Inventariante.

Inventário, Ano 1873/ Autos n.37/ Maço n.2/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Joaquina Constança da Silva – Inventariado. Constantino Francisco Teixeira –
Inventariante.

Inventário, Ano 1874/ Autos n.43/ Maço n.3/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Hilário Gonçalves Padilha – Inventariado. Maria Antonia da Anunciação –
Inventariante.

Inventário, Ano 1874/ Autos n.48/ Maço n.3/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. João Baptista de Lucena – Inventariado. Anna Candida de Lucena – Inventariante.

Inventário, Ano 1874/ Autos n.39/ Maço n.2/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Belmira Pacheco de Andrade – Inventariado. Zeferino Vargas de Andrade –
Inventariante.
255

Inventário, Ano 1874/ Autos n.41/ Maço n.2/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Francisco de Paula Feijó – Inventariado. Maria Antonia Feijó – Inventariante.

Inventário, Ano 1874/ Autos n.47/ Maço n.2/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Jacob Horn – Inventariado. Maria Ignacia Pacheco Horn – Inventariante.

Inventário, Ano 1874/ Autos n.45/ Maço n.3/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. José de Freitas Noronha – Inventariado. Narciza de Freitas Noronha – Inventariante.

Inventário, Ano 1875/ Autos n.58/ Maço n.3/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Manoel Domingues Boeira – Inventariado. Anna Justina dos Reis Boeira –
Inventariante.

Inventário, Ano 1875/ Autos n.50/ Maço n.3/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Bernardino José da Silva – Inventariado. Anna Moreira da Silva – Inventariante.

Inventário, Ano 1875/ Autos n.52/ Maço n.3/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. José Victorino Pereira – Inventariado. Maria Francisca da Conceição –
Inventariante.

Inventário, Ano 1875 / Autos n.2


/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível. José Marcelino de Freitas –
Inventariado. Felicidade Maria Antunes - Inventariante.

Inventário, Ano 1876/ Autos n.59/ Maço n.3/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Maria Constança da Conceição – Inventariado. Serafin José Gonçalves –
Inventariante.

Inventário, Ano 1876/ Autos n.53/ Maço n.2/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Amandio José de Araujo – Inventariado. Alexandrina de Araujo Reis –
Inventariante.

Inventário, Ano 1876/ Autos n.55/ Maço n.3/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. José Soares de Barros – Inventariado. Francisco de Oliveira Fogaça – Inventariante.

Inventário, Ano 1876/ Autos n.56/ Maço n.3/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Justiniano Pacheco de Paula Machado – Inventariado. Manoel Adopho Pacheco –
Inventariante.

Inventário, Ano 1876 / Autos n.3/ Maço n.1/ Estante 129. Taquara – Cartório do Cível. Felippe
Borges do Amaral e Castro e f/m. Maria do Nascimento Amaral – Inventariado. Oliveiro
da Silva Esteves – Inventariante.

Inventário, Ano 1877/ Autos n.62/ Maço n.3/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. João Ignacio Rodrigues – Inventariado. Prudencia Bello de Almeida – Inventariante.

Inventário, Ano 1877/ Autos n.61/ Maço n.3/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. João Fay – Inventariado. Maria José Fay – Inventariante.
256

Inventário, Ano 1877/ Autos n./ Maço n./ Estante. Taquara – Cartório de Orphãos e Ausente.
Hamel Antonio da Silva – Inventariado. – Inventariante.

Inventário, Ano 1878 / Autos n.4/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível. Maria
Santa Ferreira - Inventariado. Celso Baptista de Almeida Soares – Inventariante.

Inventário, Ano 1879/ Autos n.86/ Maço n.5/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e–
Inventariado. Ilegível – Inventariante.

Inventário, Ano 1879/ Autos n.90/ Maço n.5/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Laurindo Rodrigues da Silva – Inventariado. Esmeria Pacífica de Deus –
Inventariante.

Inventário, Ano 1879 / Autos n.5/ Maço n.1/ Estante 152 39 e/c. Taquara – Cartório do Cível.
Evaristo Telles da Silva – Inventariado. Manoel Marques da Silva Pires - Inventariante.

Inventário, Ano 1879/ Autos n.88/ Maço n.5/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. João Soares de Oliveira – Inventariado. Anna maria Soares Fontella – Inventariante.

Inventário, Ano 1879/ Autos n.93/ Maço n.129/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Tristão José Monteiro Filho – Inventariado. Carolina Monteiro – Inventariante.

Inventário, Ano 1880/ Autos n.95/ Maço n.5/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Belmira Pacheco de Souza – Inventariado. Honório Pacheco da Silva Pauleta –
Inventariante.

Inventário, Ano 1880 / Autos n.9/ Maço n.1/ Estante 152 39 e/c. Taquara - Cartório do Cível.
Francisco Pacheco de Paula Machado – Inventariado. Manoel Baptista Lisbôa Bittencourt –
Inventariante.

Inventário, Ano 1880/ Autos n.96/ Maço n.5/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. João Ferreira de Castilhos – Inventariado. Carlos Ferreira de Castilhos –
Inventariante.

Inventário, Ano 1880/ Autos n.94/ Maço n.5/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Manoel Antonio Terres – Inventariado. Anna Maria da Silva – Inventariante.

Inventário, Ano 1880 / Autos n.8/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Francisco Bernardes dos Santos – Inventariado. Maria Santa de Jesus – Inventariante.

Inventário, Ano 1880 / Autos n.6/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Francisco de Assis Chagas – Inventariado. Anna Soares de Oliveira Chagas – Inventariante.

Inventário, Ano 1880 / Autos n.7/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Francisco Pires da Silva – Inventariado. Theodora do Amaral Pires – Inventariante.

Inventário, Ano 1880 / Autos n.10/ Maço n.1/ Estante 152 39 e/c. Taquara – Cartório do Cível.
José Ignacio da Silva Ourives – Inventariado. José Ignacio da Silva Ourives Filho –
Inventariante.
257

Inventário, Ano 1880 / Autos n.11/ Estante 152 39 e/c. Taquara – Cartório do Cível. Manoel
Silveira de Aguiar – Inventariado. Florencia Aurora da Silva – Inventariante.

Inventário, Ano 1880 / Autos n.12/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara - Cartório do Cível. Rosa
Maria Velho – Inventariado. José Joaquim Velho Neto – Inventariante.

Inventário, Ano 1881/ Autos n.102/ Maço n.5/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Antonio Pacheco dos Reis – Inventariado. Felisberto Pacheco dos Reis –
Inventariante.

Inventário, Ano 1881/ Autos n.108/ Maço n.5/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Manoel Henrique do Amaral – Inventariado. Manoel Adolpho Pacheco –
Inventariante.

Inventário, Ano 1881 / Autos n.13/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível. Anna
Candida de Lucena – Inventariado. Boaventura P. dos Reis Machado – Inventariante.

Inventário, Ano 1881 / Autos n.14/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível. João
Cardoso Christino – Inventariado. Anna Cardoso dos Santos – Inventariante.

Inventário, Ano 1881 / Autos n.15/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Serafim Antonio da Silva– Inventariado. Maria José Pereira da Silva – Inventariante.

Inventário, Ano 1882/ Autos n.115/ Maço n.6/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. José Martins Pires – Inventariado. Emilia Cidade Martins – Inventariante.

Inventário, Ano 1882/ Autos n.114/ Maço n./ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Joaquim de Souza Carvalho – Inventariado. Maria Bernardina de Souza –
Inventariante.

Inventário, Ano 1882 / Autos n.16/ Maço n.1/ Estante 152 39 e/c. Taquara – Cartório do Cível.
Manoel Marinho de Moura – Inventariado. Lucinda Soares do Amaral – Inventariante.

Inventário, Ano 1882/ Autos n.121/ Maço n.6/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Theodoro de Oliveira Pinto – Inventariado. Robelia Pacheco de Assumpção –
Inventariante.

Inventário, Ano 1882/ Autos n.110/ Maço n.6/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Amalia Pinheiro de Lucena – Inventariado. Marcilio Baptista de Lucena –
Inventariante.

Inventário, Ano 1882/ Autos n.109/ Maço n.6/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Anna Maria Fontella – Inventariado. Antonio Prudente Soares – Inventariante.

Inventário, Ano 1882/ Autos n.113/ Maço n.6/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Filisberto Castilhos dos Reis – Inventariado. Roberta Ferreira de Castilhos –
Inventariante.
258

Inventário, Ano 1882/ Autos n.119/ Maço n.6/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Joaquim Pereira Soares – Inventariado. Manoel Joaquim de Oliveria –
Inventariante.

Inventário, Ano 1883/ Autos n.122/ Maço n.6/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Anna Maria de Jesus– Inventariado. Antonio Francisco Cardoso – Inventariante.

Inventário, Ano 1883/ Autos n.144/ Maço n.4/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. João de Souza Pituva – Inventariado. Manoel de Souza Pituva – Inventariante.

Inventário, Ano 1883/ Autos n.146/ Maço n.7/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Joaquim Ignacio da Silva – Inventariado. Maria Candida do Amaral –
Inventariante.

Inventário, Ano 1883/ Autos n.150/ Maço n.7/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Laurindo Cardo de Aguiar – Inventariado. Maria Virginia Ferreira de Aguiar –
Inventariante.

Inventário, Ano 1883/ Autos n.159/ Maço n.8/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Maria Antonia dos Reis – Inventariado. – Inventariante.

Inventário, Ano 1883/ Autos n.154/ Maço n.8/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Maria Ignacia de Jesus – Inventariado. Zeferino Gomes dos Santos – Inventariante.

Inventário, Ano 1883/ Autos n.162/ Maço n.8/ Estante 129. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Pedro Bispo Barboza – Inventariado. Amancio Bispo Barboza – Inventariante.

Inventário, Ano 1883 / Autos n.17/ Maço n.1/ Estante 152 39 e/c. Taquara – Cartório do Cível.
Maria Francisca de Moraes – Inventariado. Antonio Manoel Velho – Inventariante

Inventário, Ano 1884/ Autos n.178/ Maço n.9/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Felicidade Ignacia dos Santos – Inventariado. Andre Manique – Inventariante.

Inventário, Ano 1884/ Autos n.169/ Maço n.8/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Antonio Manoel Brandão – Inventariado. Miguel Antonio Dutra Neto –
Inventariante.

Inventário, Ano 1884/ Autos n./ Maço n./ Estante. Taquara – Cartório de Orphãos e Ausente.
Boaventura José Velho – Inventariado. Henriqueta pires Velho – Inventariante.

Inventário, Ano 1884/ Autos n.177/ Maço n.9/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Felisberto de Paula Soares – Inventariado. Emilia Baptista do Nascimento –
Inventariante.

Inventário, Ano 1884/ Autos n.176/ Maço n.9/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Fermiana Maria da Conceição – Inventariado. Joaquim Pires Carveira –
Inventariante.

Inventário, Ano 1884/ Autos n.183/ Maço n.9/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Innocente Ferreira Maciel – Inventariado. Clarinda de Avila Maciel – Inventariante.
259

Inventário, Ano 1884/ Autos n.188/ Maço n.9/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. João Nunes de Vargas – Inventariado. Maria Silveira Gomes – Inventariante.

Inventário, Ano 1884/ Autos n.191/ Maço n.9/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Paulo José Teixeira – Inventariado. Agueda Torquato do Amaral – Inventariante.

Inventário, Ano 1884 / Autos n.18/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Francisco Alves da Silveira e f/m Anna Florisbella da Silveira – Inventariado. Cezario José
Alves Machado – Inventariante

Inventário, Ano 1884/ Autos n.184/ Maço n.9/ Estante 184. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. José Ferreira dos Santos – Inventariado. Galdina Rodrigues da Silva – Inventariante.

Inventário, Ano 1884 / Autos n.19/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Senhorinha Antonia de Oliveira – Inventariado. Francisco Antonio de Oliveira –
Inventariante

Inventário, Ano 1884 / Autos n.20/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Severiano Pedro Garcia – Inventariado. Prudencia Maria Thomazina – Inventariante

Inventário, Ano 1885/ Autos n.196/ Maço n.9/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Esmerilda Pacheco Horn – Inventariado. Christiano Horn – Inventariante.

Inventário, Ano 1885/ Autos n.198/ Maço n.9/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Felisberto Francisco Gil – Inventariado. Maria José dos Reis – Inventariante.

Inventário, Ano 1885/ Autos n.203/ Maço n.9/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Jacob Hoffmann – Inventariado. Maria Dorothéa Hoffmann – Inventariante.

Inventário, Ano 1885/ Autos n.217/ Maço n.10/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Rosa Osorio Marques – Inventariado. José Marques da Rosa – Inventariante.

Inventário, Ano 1885 / Autos n.21/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Antonio Pereira Soares - Inventariado. Antonio Pereira Soares Filho – Inventariante

Inventário, Ano 1885 / Autos n.22/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível. João
Cardoso de Aguiar e f/m Anna Feijó de Aguiar - Inventariado. João Baptista Feijó –
Inventariante.

Inventário, Ano 1885/ Autos n.204/ Maço n.9/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. José Antonio de Oliveira – Inventariado. Maximiana Raiz de O.liveira –
Inventariante.

Inventário, Ano 1885 / Autos n.23/ Maço n.1/ Estante 152 39 e/c. Taquara – Cartório do Cível.
Maria Elisabetha Schnveitzer Inventariado. Jorge Fleck s/mulher e outros – Inventariantes

Inventário, Ano 1886/ Autos n.232/ Maço n.10/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Joaquim José Pereira – Inventariado. Francisca Manoela dos Passo – Inventariante.
260

Inventário, Ano 1886 / Autos n.24/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Clariana Bella de Almeida - Inventariado. Felisberto Antonio de Almeida – Inventariante

Inventário, Ano 1886/ Autos n.25/ Maço n.1/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Ignacio Martins Jaques – Inventariado. Maria Joaquina de Jesus – Inventariante.

Inventário, Ano 1886/ Autos n.231/ Maço n.10/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. João Antonio Alves – Inventariado. Marcelina Alves da Trindade – Inventariante.

Inventário, Ano 1886/ Autos n.236/ Maço n.11/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Oliverio Pedroso de Morais – Inventariado. José de Moais Pedrodo – Inventariante.

Inventário, Ano 1887/ Autos n.256/ Maço n.11/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Moyses Pedro de Moraes – Inventariado. Castorina Martins de Moraes –
Inventariante.

Inventário, Ano 1887/ Autos n.244/ Maço n.11/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Francisca Bernardina de Oliveira – Inventariado. João Paz de Oliveria –
Inventariante.

Inventário, Ano 1887 / Autos n.27/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Gaspar Schirmer e f/m - Inventariado. Anna Catharina Schirmer – Inventariante

Inventário, Ano 1887/ Autos n.245/ Maço n.11/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Henriqueta do Amaral – Inventariado. Manoel Adolpho Pacheco – Inventariante.

Inventário, Ano 1887/ Autos n.249/ Maço n.11/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. João Ferreira de Castilhos Sobrinho – Inventariado. Maria Francisca de Castilhos
– Inventariante.

Inventário, Ano 1887/ Autos n.28/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório de Orphãos e
Ausente. Lucio José Rodrigues – Inventariado. Benta Maria do Espírito Santo – Inventariante.

Inventário, Ano 1881/ Autos n.102/ Maço n.5/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. – Inventariado. – Inventariante.

Inventário, Ano 1887/ Autos n.257/ Maço n.11/ Estante 39 e/c. Taquara – Cartório de Orphãos
e Ausente. Ponciano José Machado – Inventariado. Alorino Machado de Lucena –
Inventariante.

Inventário, Ano 1887 / Autos n.29/ Maço n.1/ Estante 152 39 e/c. Taquara – Cartório do Cível.
Valentim Wagner - Inventariado. Maria Felisbena Wagner – Inventariante

Inventário, Ano 1887 / Autos n.30/ Maço n.1/ Estante 152 39 e/c. Taquara – Cartório do Cível.
Zeferino José dos Santos - Inventariado. João José dos Santos – Inventariante

Inventário, Ano 1888 / Autos n.31/ Maço n.1/ Estante 152 39 e/c. Taquara – Cartório do Cível.
Clemencia Bernardina da Silva - Inventariado. Francisco Ignacio de Carvalho – Inventariante
261

Inventário, Ano 1888 / Autos n.34/ Maço n.1/ Estante 152 129 e/c. Taquara – Cartório do
Cível. Felippe Wagner e sua mulher - Inventariado. Elisabetha Wagner – Inventariante.

Inventário, Ano 1888 / Autos n.32/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Firmino Pereira Constante - Inventariado. Belcina Maria Constante – Inventariante

Inventário, Ano 1888 / Autos n.33/ Maço n.1/ Estante 152. Taquara – Cartório do Cível.
Frederico Pedro Jung - Inventariado. Elisabetha Jung – Inventariante

Você também pode gostar