O Cinema de Atracoes

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU

EM COMUNICAÇÃO E LINGUAGENS

LOANA OGIBOSKI

O CINEMA DE ATRAÇÕES DE GEORGES MÉLIÈS E


O ESPETÁCULO DIGITAL DE MARTIN SCORSESE

CURITIBA
2015
LOANA OGIBOSKI

O CINEMA DE ATRAÇÕES DE GEORGES MÉLIÈS E


O ESPETÁCULO DIGITAL DE MARTIN SCORSESE

Dissertação de Mestrado, apresentado ao Programa de


Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da
Universidade Tuiuti do Paraná.
Orientadora: Professora Drª. Denise Azevedo Duarte
Guimarães

CURITIBA
2015
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte
Biblioteca “Sydnei Antonio Rangel Santos”
Universidade Tuiuti do Paraná

O34 Ogiboski, Loana.


O cinema de atrações de Georges Méliès e o espetáculo digital de
Martin Scorsese/ Loana Ogiboski; orientadora Profª. drª. Denise
Azevedo Duarte Guimarães.
142f.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, 2015.

1. Primeiro cinema. 2. Cinema de atrações. 3. Georges Méliès.


4.Cinema digital. 5. A invenção de Hugo Cabret. I. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Linguagens/ Mestrado em Comunicação e Linguagens. II. Título.

CDD – 791.437
OGIBOSKI, Loana.

Dissertação apresentada à Universidade Tuiuti do Paraná para a obtenção do Título de Mestre


em Comunicação em Linguagens – Linha de Estudos de Cinema e Audiovisual.

Qualificada em: 6 de outubro de 2014

Defendida em: 23 de março de 2015

Banca Examinadora

Profª. Drª Denise Azevedo Duarte Guimarães – Instituição: Universidade Tuiuti do


Paraná(UTP)
Orientadora

Profª. Drª. Denize Correa Araujo – Instituição: Universidade Tuiuti do Paraná (UTP)
Professora Convidada do Programa

Prof. Dr. Eduardo Baggio – Instituição: Faculdade de Artes do Paraná - FAP


Professor Convidado Externo
TERMO DE APROVAÇÃO
LOANA OGIBOSKI

O CINEMA DE ATRAÇÕES DE GEORGES MÉLIÈS E


O ESPETÁCULO DIGITAL DE MARTIN SCORSESE

Esta dissertação foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Mestre em Comunicação
e Linguagens, na área de concentração: Estudos de Cinema e Audiovisual, do Programa de
Pós-graduação Strictu Sensu da
Universidade Tuiuti do Paraná.

Curitiba, 23 de março de 2015.

Programa de Pós-graduação Strictu Sensu


Universidade Tuiuti do Paraná

Orientadora: Profª. Drª Denise Azevedo Duarte Guimarães


AGRADECIMENTOS

À Deus e a meus pais, sem os quais não poderia ter realizado esse projeto.
Em especial, à minha querida orientadora, e agora amiga, Denise Azevedo Duarte
Guimarães, sem a qual, com certeza, não teria cumprido minha missão. Vários obstáculos
poderiam ter sido desculpa para um fracasso, mas ela me ‘adotou’, mesmo sem tempo para
uma nova orientação. Não há adjetivos suficientes para descrevê-la. Sempre com tempo,
disposição, educação, carinho, despertou em mim uma pesquisadora que, cada dia mais, se
interessa pelo cinema. Denise, meu muito obrigada! Você é como uma fada madrinha dos
filmes da Disney.
Um agradecimento especial também à banca, os professores doutores Denize Correa
Araújo e Eduardo Baggio, integrantes da banca de qualificação e agora, da defesa, que
prontamente aceitaram os convites mas, principalmente, pelas sugestões e contribuições, que
foram muito importantes para a finalização desta dissertação.
Agradeço também aos professores do Programa, por dividirem conosco seus
conhecimentos e, por estarem dispostos, mesmo sem tempo, a nos auxliar, nem que fosse
através de uma conversa informal.
A cada colega da Turma de 2013 e em especial às colegas que se transformaram em
amigas: Geny, com toda sua candura; Cristiane, com seu bom humor, organização e
onipresença e, Maria Rita (Rita de Cássia), que além de amiga, se mostrou uma verdadeira
mestre, me ensinando a ser uma acadêmica. Além, é claro, de Francisco, Vivi, Odil, Ândrea,
Ana Johann e Patrick.
Ao meu querido marido, amigo, companheiro, Sandro Palhano, por entender todas as
renuncias que tivemos que fazer para concretizar esse meu sonho. Ao meu filho Txai, pela
paciência em me auxiliar nas edições de filmes e me ensinar como entender os computadores.
Junior e Eliane, pela amizade incondicional.
.
“Ao longo de seus 100 anos ‘oficiais’ de história, o cinema,
como qualquer outra arte, acumulou um repertório
extraordinário de experiências, nem todas elas legitimadas
pela chancela dos historiadores e muitas delas relegadas ao
esquecimento.” Arlindo Machado
RESUMO

O final do século XIX marca o surgimento do cinema e o início da era da predominância da


imagem. Esta dissertação analisa a importância do cinema mudo, especialmente do Primeiro
Cinema, definido por Costa (2008), como aquele realizado entre 1894 e 1908, cujas
características como 'plano geral' e 'câmera parada' são determinantes para sua composição
visual, cujas descobertas e inovações estão sendo retomadas e renovadas no cinema digital.
Pouco estudados, pela falta de material que se perdeu com o tempo, os primeiros filmes
constituem um cardápio extraordinário das primeiras experiências na história do cinema
mundial, ainda que atualmente, se tenha conhecimento apenas de cerca vinte por cento de
tudo que foi produzido naquele período. Partindo dessa premissa, este estudo pretende
mostrar como Georges Méliès marcou os primeiros anos do cinema mundial, principalmente
pelo fato de ser considerado 'pai da ficção científica' em um tempo em que não havia recursos
tecnológicos capazes de representar/reproduzir eventos fictícios de um futuro distópico.
Méliès praticava o ‘cinema de atrações’, um tipo de filme que estimula a curiosidade visual
sendo, muitas vezes, um espetáculo em si mesmo. Este trabalho busca, ainda, analisar o
processo criativo das obras deste artista/cineasta/cientista francês, refletindo sobre as
limitações do cinema do início do Século XX em contraponto ao cinema contemporâneo,
ressaltando a importância desses primeiros experimentos para as tecnologias da atualidade.
Para enriquecer essa pesquisa foram analisadas algumas obras de Méliès, cotejando-as com o
filme A Invenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsese, de 2011, que utiliza amplamente
recursos digitais na sua produção. O embasamento teórico para a pesquisa parte dos conceitos
desenvolvidos por: Machado (2011), Manovich (2001), Sadoul (1983), Xavier (1996/2012),
além das contribuições de Costa (2008) e Gunning (1996/2006), entre outros estudiosos.

PALAVRAS-CHAVE: Primeiro Cinema. Cinema de Atrações. Georges Méliès. Cinema


Digital, A invenção de Hugo Cabret.
ABSTRACT

The end of the XIX century marks the appearance of the cinema and the beginning of the era
where image started to be predominant. This dissertation analyses the relevance of the silent
movies, especially the Early Cinema, defined by Costa (2008), as the one produced from 1894
to 1908, whose characteristics such as ‘general view’ and ‘still camera’ are determinant for its
visual composition, whose discoveries and innovations are being used again and renewed in
digital movies. Being little studied, because of the lack of material which has been lost over
the years, the first movies make an extraordinary asset of the first experiments in the history
of the world cinema, yet until now, only around twenty percent of all that was produced in
that period is actually known. Starting from this premise, this study intends to show how
important Georges Méliès was during the first years of the world cinema, mainly by the fact
that he is considered ‘the father of the science fiction’ in a period when there was no
technological resources able to represent/reproduce fictitious events of a dystopian future.
Méliès produced the ‘entertainment movies’ a kind of film that arouses visual curiosity being,
many times, the main attraction per se. This study is meant, still, to analyze the creative
process of this artist/moviemaker Frenchman’s works, discussing the limitations of the tools
in the movie making process in the beginning of the XX century comparing it to the
contemporary movies, highlighting the importance that the first experiments have had on the
current technologies. To enrich this research, some works of Méliès were analyzed,
comparing them with Martin Scorsese’s 2011 The Invention of Hugo Cabret, who uses digital
resources widely to produce it. The theoretical basis for this research starts from the concepts
developed by: Machado (2011), Manovich (2001), Sadoul (1983), Xavier (1996/2012),
besides the contributions provided by Costa (2008) and Gunning (1996/2006), among others.

KEY WORDS: Early Movies. Cinema of attraction. Georges Méliès. Digital cinema, Hugo.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 001 – EXPERIÊNCIA DE MUYBRIDGE ..................................................26

FIGURA 002 – KINESTOCÓPIO DE EDISON ........................................................27

FIGURA 003 – FRAME DO FILME A CHEGADA DO TREM À ESTAÇÃO.............30

FIGURA 004 – FRAME DO FILME O REGADOR REGADO ..................................34

FIGURA 005– FRAME DO FILME O BEIJO ............................................................47

FIGURA 006 – FRAME DO FILME WHAT HAPPENED ON 23RD STREET .........48

FIGURA 007 – FRAME DO FILME O PECADO MORA AO LADO ........................48

FIGURA 008 – FRAME DO FILME THE CORBETT-FITZSIMMONS FIGHT.........51

FIGURA 009 – FRAME DO FILME GRANDMA’S READIND GLASS ....................53

FIGURA 010 – FRAME DO FILME THE LITTLE DOCTOR ...................................53

FIGURA 011 – FRAME DO FILME THE SICK KITTEN ......................................... 53

FIGURA 012 – FRAME DO FILME THE GREAT TRAIN ROBBERY ..................54

FIGURA 013 – FRAME DO FILME GOODFELLAS ..............................................54

FIGURA 014 – ESTÚDIO STAR FILM ...................................................................58

FIGURA 015– MÉLIÈS E SEUS SKETCHERS .........................................................58

FIGURA 016 – FRAME DE A DAMA DESAPARECIDA ...........................................60

FIGURA 017– FRAME DE A DAMA DESAPARECIDA .......................................... 60

FIGURA 018 – FRAME DE A DAMA DESAPARECIDA ......................................... 60

FIGURA 019 – FRAME DE A DAMA DESAPARECIDA ......................................... 60

FIGURA 020– FRAME DE AFTER DE BALL .......................................................... 61


FIGURA 021 – FRAME DE A TENTAÇÃO DE SANTO ANTONIO ..........................61

FIGURA 022 – FRAME DO FILME L’HOMME A TÊTE EM CAOUTCHOUC ......61

FIGURA 023 - FRAME DE A MANSÃO DO DIABO .................................................65

FIGURA 024 – FRAME DE A VIAGEM À LUA ........................................................68

FIGURA 025 – FRAME DE A VIAGEM À LUA .........................................................69

FIGURA 026 – FRAME DE A VIAGEM À LUA .........................................................69

FIGURA 027– FRAME DE A VIAGEM À LUA .......................................................70

FIGURA 028 – FRAME DE A VIAGEM À LUA .........................................................70

FIGURA 029 – FRAME DE A VIAGEM À LUA .........................................................70

FIGURA 030 – FRAME DO FILME MOULIN ROUGE ...........................................72

FIGURA 031 – CLIP DO TONIGHT, TONIGHT .......................................................73

FIGURA 032 – CLIP DO TONIGHT, TONIGHT .......................................................73

FIGURA 033 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................75

FIGURA 034 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................75

FIGURA 035 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................82

FIGURA 036 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................82

FIGURA 037 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................82

FIGURA 038 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET .............................82

FIGURA 039 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................82

FIGURA 040 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................82

FIGURA 041– FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET...............................83

FIGURA 042 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................83


FIGURA 043 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET..............................89

FIGURA 044 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................89

FIGURA 045 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................90

FIGURA 046 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................92

FIGURA 047 – FRAME DO MAKING OFF A INVENÇÃO DE HUGO CABRET....92

FIGURA 048 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................93

FIGURA 049 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................93

FIGURA 050 – FRAME DO FILME TEMPOS MODERNOS ..................................93

FIGURA 051– FRAME DO MAKING OFF A INVENÇÃO DE HUGO CABRET....95

FIGURA 052 – FRAME DO FILME THE HOUSE OF MISTERY ...........................95

FIGURA 053 – FRAME DO MAKING OFF A INVENÇÃO DE HUGO CABRET....95

FIGURA 054 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................95

FIGURA 055 – FRAME DO MAKING OFF A INVENÇÃO DE HUGO CABRET....95

FIGURA 056 – FRAME DO DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET.......................95

FIGURA 057 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................96

FIGURA 058 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................96

FIGURA 059 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................96

FIGURA 060 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ............................97

FIGURA 061– FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET .............................97

FIGURA 062 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET..............................97

FIGURA 063 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET..............................98

FIGURA 064 – JAMES JOYCE .................................................................................98


FIGURA 065 – SALVADOR DALI ...........................................................................98

FIGURA 066 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................105

FIGURA 067 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................105

FIGURA 068 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................106

FIGURA 069 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................106

FIGURA 070 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................106

FIGURA 071– FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ...........................106

FIGURA 072 –. FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET...........................106

FIGURA 073 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................106

FIGURA 074 – FRAME DO FILME O HOMEM MOSCA .....................................107

FIGURA 075 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................107

FIGURA 076 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................108

FIGURA 077 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................108

FIGURA 078 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................108

FIGURA 079 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................108

FIGURA 080 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................108

FIGURA 081– FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ...........................108

FIGURA 082 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................109

FIGURA 083 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................109

FIGURA 084 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ...........................110

FIGURA 085 – FRAME DO FILME THE HOUSE OF MISTERY .........................110

FIGURA 086 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................111


FIGURA 087 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................111

FIGURA 088 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................111

FIGURA 089 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................112

FIGURA 090 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................112

FIGURA 091– FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ...........................112

FIGURA 092 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................113

FIGURA 093 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................113

FIGURA 094 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................114

FIGURA 095 –.FRAME DE METROPOLIS ............................................................114

FIGURA 096 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................115

FIGURA 097 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................115

FIGURA 098 – LOJA DE MÈLIÈS NA ESTAÇÃO DE MONTPARNASSE..........116

FIGURA 099– FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ...........................116

FIGURA 100 – ACIDENTE DE TREM NA ESTAÇÃO DE MONTPARNASSE ..117

FIGURA 101– FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ...........................117

FIGURA 102 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................118

FIGURA 103 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................119

FIGURA 104 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................119

FIGURA 105 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................119

FIGURA 106 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................120

FIGURA 107 – FRAME DE TEMPOS MODERNOS ..............................................120

FIGURA 108 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................122


FIGURA 109 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ........................122

FIGURA 110 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ........................122

FIGURA 111 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ..........................122

FIGURA 112 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ........................123

FIGURA 113 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ........................123

FIGURA 114 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET .........................123

FIGURA 115 – FRAME MAKING OFF A INVENÇÃO DE HUGO CABRET .....124

FIGURA 116 – FRAME MAKING OFF A INVENÇÃO DE HUGO CABRET.......124

FIGURA 117 – FRAME DE A INVENÇÃO DE HUGO CABRET ........................125

FIGURA 118 – FRAME DO FILME LE ROYAUME DES TÉES........................125


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................017
1.ARQUEOLOGIA DO CINEMA .........................................................................021
1.1.CINEMA ANTES DO CINEMA................................................................ 021
1.2. PRIMEIRO CINEMA................................................................................ 032
1.3. LUGARES INÍQUOS COM ESPETÁCULOS SUSPEITOS .................038
2. A IMPORTANCIA DAS PRIMEIRAS PRODUÇÕES.....................................045
2.1. MÉLIÈS: PIONEIRO E VISIONÁRIO....................................................055
2.2. LE VOYAGE DANS LA LUNE.................................................................066
3. A INVENÇÃO DE HUGO CABRET..................................................................074
3.1. O PRIMEIRO CINEMA NO CINEMA CONTEMPORÂNEO ............077
3.2. CINEMA DE ATRAÇÕES ......................................................................084
3.3. OUTRAS APROXIMAÇÃOES.................................................................097
3.4.INTERTEXTUALIDADE...........................................................................102
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................131
FILMOGRAFIA .......................................................................................................137
17

INTRODUÇÃO

Esta dissertação pretende analisar a importância do cinema mudo1 ou silencioso,


especialmente o Primeiro Cinema, definido pela pesquisadora Flávia Cesarino Costa (2008),
como aquele realizado entre 1894 e 1908 e, dentro desse contexto, situar as obras de Georges
Méliès, pioneiro e visionário dos primeiros anos do cinema mundial.
O objetivo central da dissertação é suscitar reflexões acerca do problema de pesquisa
que norteia a investigação: de que modo e com que meios o cinema atual conserva as marcas
de suas origens devidamente reconfiguradas pelas novas tecnologias?
Cabe salientar que “o surgimento do cinema no final do século XIX marcou o início
de uma era da predominância da imagem” (COSTA, 2005, p. 18). Pouco estudados, até
mesmo pela precariedade ou inexistência de material para pesquisa, cuja grande parte se
perdeu com o tempo, os primeiros filmes se constituem em um cardápio extraordinário das
primeiras experiências na história do cinema mundial. Entretanto, é pertinente ressaltar que,
não foi necessário aguardar pelos filmes de fantasia de Georges Méliès (1861-1938) para
despertar o imaginário do público/espectador. As próprias imagens em movimento eram
responsáveis por isso, mesmo mostrando cenas triviais e perfeitamente reconhecíveis da vida
quotidiana. O cinema em si – as imagens em movimento – já se constituíam, nelas mesmas,
uma atração.
A escolha do tema cinema mudo e, em especial, a primeira década do cinema,
justifica-se por lançar um novo olhar sobre a história da cinematografia, apresentando um
estudo sobre algumas das produções de Méliès daquele período, de forma a suscitar e
contribuir para novas pesquisas. Mesmo sendo ‘mudas’, as primeiras produções já carregavam
em seu cerne uma linguagem capaz de se fazer entender, simplesmente através das imagens
em movimento.
Infelizmente, a maioria da produção das primeiras décadas foi destruída, seja pela falta
de conservação ou, até mesmo, para reaproveitamento do material físico, lembrando-se,
evidentemente, a falta de consciência que, no futuro, essas primeiras experimentações
poderiam vir a ser marcos na história do cinema.

1
De acordo com Jacques Aumont, em sua obra Dicionário Teórico e Crítico de Cinema (2003), o cinema mudo
é apenas uma época do cinema, que acabou por volta de 1930 e, cuja terminologia só começou a ser usada
depois da invenção do cinema falado.
18

Partindo da premissa que muitos filmes da atualidade buscam suas referências nas
primeiras produções fílmicas, nosso argumento se propõe a atestar que o cinema
contemporâneo faz uma espécie de releitura das primeiras experimentações cinematográficas,
demonstrando assim a importância e relevância do cinema mudo. De início, investiga-se de
que forma o cineasta Georges Méliès marcou os primeiros anos do cinema mundial,
principalmente pelo fato dele ser considerado ‘pai da ficção científica’, em um tempo em que
não havia recursos tecnológicos capazes de representar/reproduzir eventos fictícios de um
futuro distópico.
Além disso, demonstra-se em que medida e com quais procedimentos as produções de
Méliès influenciaram grande parte da cinematografia do século XX, sem esquecer do processo
criativo de suas obras, refletindo sobre a sua genialidade em uma época de limitações
tecnológicas. Desta forma, realiza-se um entrecruzamento de dados que propõe, no presente,
uma reelaboração de experimentos do passado, ou seja: uma volta às primeiras
experimentações através da obra criativa e autoral de Méliès, imbricando-se com o filme
contemporâneo A Invenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsese, de 2011, cuja obra é uma
homenagem não só a Méliès como também ao cinema mudo de maneira geral.
Esta dissertação, portanto, aborda especificamente, dois extremos da história do
cinema: o cinema mudo e o primeiro cinema e o cinema da era digital, aquele iniciado na
década de 1990 e que continua a se desenvolver na atualidade.
O processo de investigação para essa pesquisa está embasado nos conhecimentos e
obras dos seguintes teóricos: Arlindo Machado (2000/2011), que nos dá um panorama geral
sobre as experiências que culminaram com a invenção da máquina de fazer cinema – o
chamado pré-cinema; Flávia Cesarino Costa (2008), que fundamenta essa pesquisa a partir do
trabalho que desenvolveu sobre o Primeiro Cinema; Tom Gunning (1996/2006/2012) que
esclarece os conceitos sobre o ‘cinema de atrações’ e, Ismail Xavier (1983/1996/2003/
2009/2012), com suas contribuições sobre ‘teatro filmado’ e como foram produzidos os
primeiros filmes. O autor Lev Manovich (2001) foi o teórico de base quando nos referirmos,
no corpo desta dissertação, ao cinema digital.
Foi realizada também uma análise de texto visual das principais produções fílmicas de
Georges Méliès, entre elas a Viagem à Lua, de 1902, e também a produção digital, em 3D: A
invenção de Hugo Cabret, de 2011, de Martin Scorsese. Assim propõe-se demonstrar como
cada obra foi idealizada, segundo os recursos tecnológicos e de linguagem disponíveis na
época em que foram realizadas. Vale destacar aqui que, sempre que foi necessário, algumas
cenas (tanto das produções de Méliès quanto de Scorsese) foram explicadas, comentadas,
19

analisadas e contextualizadas, para permitir uma visão mais ampla do que é proposto nessa
pesquisa: a confirmação da hipótese de que o pensar-fazer cinema mudo está, de forma sutil,
presente no cinema contemporâneo. Busca-se ainda, através do uso das imagens - frames -
ampliar o repertório iconográfico e despertar o interesse em pesquisas mais aprofundadas
nessa inter-relação e intertextualidade entre esses dois cinemas.
A estruturação deste estudo investigativo inicia-se pelo resgate histórico, desde o
chamado ‘pré-cinema’, chegando ao ‘cinema propriamente dito’ em termos de equipamentos
e linguagem cinematográfica, abordando as primeiras experiências, invenções e descobertas
(intencionais ou não) dos recursos como ‘movimentos de câmera’, ‘closes’, ‘travellings’ e
‘efeitos especiais’; bem como a releitura - visual e tecnológica - proporcionada pelo cinema
contemporâneo digital. Assim, a escrita desta dissertação subdivide-se em três capítulos.
O capítulo 1 trata da arqueologia do cinema, onde foi realizado um breve
levantamento das experiências que culminaram com a invenção da câmera cinematográfica e
do cinema como expressão de arte, com linguagem própria. Tratou do Primeiro Cinema, tão
marcado pela experimentação e invenção de novos equipamentos, novas linguagens, criação
de maneiras diferentes de filmar, entre outras inovações, bem como das experimentações
antes da sistematização da gramática fílmica consagrada por D.W. Griffith.
No capítulo 2 enfatiza-se a importância das primeiras produções, em uma retrospectiva
história e técnica do cinema de atrações. Tenta-se mostrar que o cinema, nos termos que
conhecemos hoje, já estava ali presente nas suas primeiras exibições, através de diferentes
recursos de filmagens, como o uso de diferentes ângulos, close, etc, até mesmo no ‘pensar
cinema’ por meio da preparação das cenas para a filmagem, em uma espécie de ‘decupagem’.
Além disso, aborda-se os pioneiros e visionários dessa primeira fase, homens e mulheres que,
através de tentativas, erros e acertos, contribuíram para a consolidação do invento que
marcou o século XX. Ainda neste capítulo, dá-se ênfase às obras de Georges Méliès,
realizador do Primeiro Cinema, cuja cinematografia merece atenção pela sua qualidade e
diversidade. Um artista/cineasta/cientista situado à frente de seu tempo e que marcou, em
definitivo, uma maneira de fazer cinema, para além do simples registro documentário.
Destaque especial foi atribuído ao filme Viagem à Lua, marco histórico da cinematografia
mundial.
No capítulo 3 aborda-se as novas tecnologias e como elas estão influenciando o modo
atual de fazer cinema, repensando até que ponto temos um cinema realmente novo, quando
parece que essas ‘novas produções’ na verdade seriam releituras daquele Primeiro Cinema do
início do século XX, do ‘cinema de atrações’ onde, segundo Gunning (1996), o importante
20

era ‘encantar o público’. Trata-se, nesse capítulo, especificamente, da produção de Martin


Scorsese, A invenção de Hugo Cabret, na tentativa de demonstrar quando/onde o cinema
mudo e o Primeiro Cinema estão presentes e colidem nesta produção de 2011, através da
intertextualidade/referências entre os dois produtos audiovisuais e, desta forma, conduz-se a
investigação para a sua conclusão.
Dessa maneira, espera-se, com esta investigação, contribuir para o resgate histórico
das primeiras experimentações, assim como enfatizar a sua atual importância para o cinema
mundial, além de tentar aguçar o interesse pela produção da sua primeira década, cujo volume
conservado é, infelizmente, muito pequeno.
Como o cinema é uma arte relativamente nova, se comparada, por exemplo, com a
literatura, e está em constante transformação, esta dissertação se constitui em mais uma
iniciativa no campo da pesquisa sobre o diálogo entre o cinema mudo e o cinema
contemporâneo.
21

1. ARQUEOLOGIA DO CINEMA

1.1. O CINEMA ANTES DO CINEMA

Estudar cinema é também estudar história e quando nele pensamos, o associamos logo
à invenção aos irmãos Lumière; mas a conversão do cinema em espetáculo, em
entretenimento, é, em grande parte, mérito de Georges Méliès. Se é verdade que toda obra de
arte traz consigo as marcas de seu tempo, não podemos simplificar essa questão, ainda mais
quando temos referências como Méliès e Edwin Porter, que foram muito além dos recursos
técnicos e tecnológicos disponíveis no seu tempo. Tanto que Emmanuelle Toulet (1988, p. 91)
conta que, já em 1903, Porter “realiza dois filmes que os historiadores consideram decisivos
para a evolução da linguagem cinematográfica: The Life of an American Fireman e The Great
Train Robbery”.
Christian Metz costumava dizer que cinema é assunto amplo, para o qual há mais de
uma via de acesso:

[...] enquanto fato antropológico, o cinema apresenta uma certa variedade de


contornos, de figuras e de estruturas estáveis, que merecem ser estudadas
diretamente. Vemos a todo momento fato fílmico ser considerado, na sua
realidade mais geral, como coisa natural e óbvia: e no entanto ainda há muita
coisa por dizer a respeito. (METZ, 1972, p. 16)

Gunning conta que os primeiros filmes retratavam as curiosidades do começo da vida


moderna e que o cinema é “o primeiro século de história capturada pelos filmes” (GUNNING,
1996, p. 24). Georges Sadoul complementa, ao informar que os primeiros filmes eram uma
espécie de ‘álbum de família’ onde os irmãos Lumière apresentavam “o quadro de um sólido
êxito na vida e os seus espectadores se veem na tela tais como são ou desejariam ser”
(SADOUL, 1963, p. 20).
Como atualmente vivemos em uma quase completa imersão tecnológica, onde como já
previa McLuhan, em 1964 (primeira versão), com sua obra Os meios de comunicação como
extensões do homem, parece-nos difícil imaginar um mundo sem tecnologia e sem imediato
acesso a ela. Assim, muitas vezes, nos parece difícil entender algumas das primeiras
produções fílmicas, dos séculos XIX e XX, cuja estética, falta de som e cor, muitas vezes nos
remete a algo bem primitivo. Este termo, inclusive, não cabe, de maneira alguma,
22

especialmente porque o cinema contemporâneo renova a cada dia as experimentações do


Primeiro Cinema.
Sob o olhar da contemporaneidade, aliada ao avanço tecnológico, a montagem fílmica
aparece com maior fluidez e naturalidade, o que não acontecia no início do século XX, pois o
público era outro. Talvez seja esse o motivo de ser muito mais fácil para nós, hoje, perceber
os cortes e montagens nos primeiros experimentos desta arte. Xavier comprova essa
afirmação quando diz que “aos nossos olhos, essa reação tão esquemática do
protagonista/espectador soa elementar e ingênua, pois atesta uma força moral disciplinadora
alheia ao nosso saber sobre a história dos espetáculos” (XAVIER, 2012, p. 69). O teórico
continua afirmando que:

[...] hoje, é praticamente impossível recuperar vivamente aquele momento,


nós que crescemos saturados de imagens e nos movemos num mundo em
que o que era antes promessa de revolução se faz agora dado banal do
cotidiano, experimentação reiterada. (XAVIER, 2012, p. 37)

Sergei Eisenstein, em seu livro O sentido do filme (2002, p. 21), por outro lado,
explica que, no processo da lembrança, existem dois estágios fundamentais: o primeiro é a
reunião da imagem, enquanto o segundo consiste no resultado dessa reunião e seu significado
na memória.
Brinquedos ópticos, sombras, shows e truques visuais já existiam há muito e, portanto,
cientistas, fabricantes e inventores dedicaram tempo ao estudo do fenômeno visual, onde uma
série de imagens estáticas, quando colocadas em movimento, criam sensação de movimento.
Esse conceito ficou conhecido como ‘persistência da visão’ e foi observado pela primeira vez
pelo médico inglês Peter Mark Roget, em 1824, sendo determinante para o desenvolvimento
do cinema. A descoberta e aperfeiçoamento de tecnologias e invenções mecânicas
relacionadas ao movimento e à visão foram desenvolvidas no início e no final do século XIX,
sendo consideradas precursoras do nascimento da indústria cinematográfica.
O estudioso da história do cinema, Gunning (1996, p. 26), conta que, quando o cinema
apareceu, era muitas vezes chamado de ‘fotografias animadas’, pois parecia acrescentar um
‘algo mais’ de movimento vital à imagem anteriormente captada estaticamente. Embora essa
‘animação’ tenha sido proporcionada pelas invenções de Thomas Edison, Louis e Auguste
Lumière, Skladanowsky, George Eastman, W.K.L. Dickson, Louis Le Prince, R.W. Paul,
Georges Méliès, Francis Doublier, G. A. Smith, William Friese-Greene, Thomas Ince e
muitos outros, no final do século XIX, também ligava o cinema a um grande número de
tecnologias que trabalhavam com manipulação de imagens, que já eram populares no início
23

daquele século. “A busca das ‘fotografias animadas’ ao longo do século revela a imbricação
do cinema nas novas experiências de tecnologia, tempo e representação visual” (GUNNING,
1996, p. 26).
O autor (1996, p.26) questiona a tentativa de se traçar uma ‘arqueologia do cinema’
principalmente porque essa tentativa pode assumir uma aparência ordeira, quando essas
diversas linhas são entrelaçadas teleologicamente para culminar na invenção do cinema. Ele
continua contando que uma teoria histórica pode encontrar a ‘fonte do cinema’ na cena de
sombras exibida na caverna de Platão, mas que a gênese histórica do jogo de luz deriva da
preocupação renascentista com o poder mágico das imagens e das descobertas dos processos
de luz e visão.
Já no século XVI, Giovanni dela Porta testava o que poderíamos chamar de ‘primeiras
técnicas pré-cinematográficas’, com a invenção dos ‘teatros de luz’. Athanasius Kircher, no
século seguinte, experimentava as ‘projeções criptológicas’, sem falar da ‘lanterna mágica’ de
Christian Huygens, Robert Hooke, Johannes Zahn, Samuel Rhanaeus, Petrus van
Musschenbroek e Edme-Gilles Guyot. Mais tarde, no século XVIII, Robert Barker inventava
o ‘panorama’ e Nicéphore Nièpce e Louis Daguerre, a fotografia, em 1827, mas a pintura já
existia há pelo menos 150 séculos.
A fascinação do homem pela imagem data da pré-história. Machado (2011, p. 16)
explica que “nossos antepassados iam às cavernas para fazer sessões de cinema e assistir a
elas”. Cientistas que se dedicam a estudar os primeiros períodos da pré-história descobriram
nas cavernas de Altamira, Lascaux ou Font-de-Gaume, imagens gravadas em relevo nas
rochas e seus sulcos pintados em cores vivas. O interessante dessas pinturas é que à medida
que o observador se desloca diante das figuras desenhadas nas paredes das cavernas, elas
também parecem se movimentar.
Machado complementa, explicando que, paradoxalmente, os poucos cientistas que
contribuíram substancialmente para avanços na área não estavam preocupados e, muitas
vezes, não entendiam como seus estudos poderiam contribuir para avanços na captação de
imagem em movimento. Etienne-Jules Marey, por exemplo, inventor do cronofotógrafo 2 e do
fuzil fotográfico3, ancestrais da câmera cinematográfica, nunca entendeu exatamente para que

2
Primeiro aparelho inventado para registro do movimento, formado por um disco com furos que gira diante de
uma placa sensível, registrando uma imagem a cada passagem de um furo. Esse aparelho proporcionou a
descrição de um movimento, uma vez que, o mesmo negativo era exposto à luz registrando cada uma das etapas
do deslocamento.
3
Instrumento capaz de registrar fotograficamente 12 imagens por segundo.
24

poderia servir a síntese do movimento por meio do aparelho projetor. O autor conta que, como
ele estava apenas interessado na análise dos movimentos dos seres vivos, para estudá-los,
precisava decompor esses movimentos e congelá-los numa sequência de registros, “recompô-
los novamente numa tela, para fazer a imagem do animal ‘se mover’, era para ele uma total
idiotice” (MACHADO, 2011, p.17). A cronofotografia inspiraria, mais tarde, a arte moderna,
seja através dos futuristas, que davam ênfase às belezas do movimento e da velocidade, seja
através do dadaísmo, cuja influência pode ser observada na obra de Marcel Duchamp.
A lanterna mágica4 tem sua origem na tradição da Mágica Natural, derivada da
interseção das antigas tradições ocultas, do novo espírito da Renascença recente e do
Iluminismo nascente. Um bom exemplo disso é a obra Magie naturalis sive de miraculis
rerum naturalium, de Giambatista Porta, publicada em 1589, que dizia que o reino da mágica
natural incluía desde poderes mágicos das imagens, descrição da influência do Cosmo em
nosso planeta, até experimentos químicos e óticos, assim como oferecia um plano para um
teatro ótico, usando a câmera escura para criar um entretenimento visual variado e móvel,
cujos efeitos mágicos derivam exclusivamente da lei da ótica. Em 1833, David Brewster – ele
próprio inventor de dois importantes dispositivos visuais: o caleidoscópio e o estetoscópio –
abandonou qualquer referência às influências celestiais ou imagens mágicas e explicou
cientificamente como acontecem as ilusões de ótica.
Porém, a imagem em movimento continuava a encantar, e, as diversões óticas, cujos
processos de produção pudessem ser racionalmente explicáveis, mantinham um poderoso
‘efeito de mistério’. Gunning conta que talvez tenha sido esse o motivo que levou Christian
Huygens, o inventor da lanterna mágica, em 1659, a não querer ter seu nome associado a ela e
não ter promovido exibições públicas de seu invento.
A ‘lanterna mágica’ logo espalhou-se pelo mundo como um dispositivo de
entretenimento e instrução. Com um modesto início no final do século XVII, tornou-se uma
forma de diversão pública e doméstica, altamente comercializada no século XIX. Interessante
lembrar que, embora tenha se tornado um brinquedo ótico bastante popular, não perdeu sua
‘aura’ de ligação com o sobrenatural, tanto que, Pierre Petit, um dos primeiros exibidores
públicos da lanterna mágica, a chamava de ‘lanterna do medo’.
A partir daí começaram a surgir formas mais elaboradas de entretenimento visual
usando a lanterna mágica. Uma delas, a ‘fantasmagoria’, de Philidor e Robertson, invocava o

4
Primeiro instrumento de projeção que usava luz artificial e uma lente, sendo portanto o primeiro ancestral do
cinema. (GUNNING, 1996, p. 28)
25

sobrenatural projetando imagens de espíritos dos mortos em misteriosos ambientes da Paris


do final do século XVIII. Com um dispositivo técnico, através de um sistema de espelhos, o
público tinha acesso às imagens reproduzidas de rostos ou corpos humanos no espaço diante
de si, muitas vezes suspensos no ar. Os estranhos cenários, os efeitos sonoros e a iluminação
intimista, criavam um ambiente misterioso que invocava mundos paralelos ou irreais. Embora
os efeitos ópticos gerados nos espetáculos da fantasmagoria fossem racionalmente e
cientificamente explicáveis, o medo, o assombro e o fascínio que provocavam no público
tornava as apresentações eventos bastante procurados. Vale salientar que esse tipo de
entretenimento só poderia ter surgido na época do Iluminismo, como explica Machado,
quando antigos conceitos sagrados puderam servir de entretenimento sem que houvesse a
sanção do Estado.
O autor (2011, p. 31) continua explicando que, além da ‘projeção de imagens’ servir
como uma espécie de ancestral do cinema, havia também muitos dispositivos que tentavam
dotar as imagens de uma certa semelhança com objetos animados, variando da
tridimensionalidade aos efeitos da transformação e do movimento. É o que o Diorama de
Daguerre se propunha a fazer, combinando as artes perspectivas tradicionais com o controle
da luz, desenvolvido na tradição da lanterna mágica. O resultado dessa experiência era mais
ou menos assim: as pinturas de Daguerre (que eram estrategicamente colocadas no fundo de
um palco de teatro, por exemplo) feitas com materiais transparentes e apresentadas em
ambientes escurecidos e iluminados por trás, davam ao público a impressão de estar vendo
uma paisagem real, quando na verdade tratava-se de uma pintura. A iluminação da pintura,
manipulada por trás da tela, podia inclusive trabalhar diferentes tonalidades de luz e sombras,
conseguindo até o efeito da transformação de uma luz diurna para uma noturna.
Mais tarde, a invenção da fotografia, que também deriva de outros dispositivos óticos
do século XIX, vai compartilhar da obsessão do homem pelas imagens realçadas pelo excesso
de realismo, como esclarece Machado (2011, p. 33). Gunning conta que isso é demonstrado
no estereoscópio5, uma das mais populares formas de fotografia do século XIX. Ele salienta
ainda que a fotografia que levou diretamente ao cinema, difere dos daguerreótipos e de outras
formas de retratos fotográficos realizados no século XIX; isso porque, o longo tempo de
exposição necessário para sua revelação acabava sendo ultrapassada pelo compasso acelerado
da vida moderna; além disso, a fotografia, naquela época, restringia-se a assuntos imóveis.

5
Dispositivo ótico que dá às fotografias feitas por ele (conhecidas como estereografias) uma ilusão de
tridimensionalidade, criando imagens com a aparência de relevo e recuo. (GUNNING, 1996, p. 33)
26

Assim, o cinema nasceu de várias inovações que vão desde o domínio fotográfico até a
síntese das imagens em movimento, cuja ‘domesticação da visão’ começou com a invenção
de jogos ópticos. Dentre esses jogos ópticos inventados estão o ‘taumatrópio’ (1820/1825,
William Fitton), o ‘fenascistoscópio’ (1829, Josep Antoine Ferdinand Plateau), o ‘zootropo’
(1834, Wil George Horner) e o ‘praxinoscópio’ (1877, Emily Reynaud). Todas essas
experiências com imagens em movimentos podem ser encontradas detalhadamente no livro de
Machado, Pré-cinema e pós-cinemas (2011). Além disso, o filme Film before film (O filme
antes do filme), de Werner Nekes, 1986, faz um resumo visual de todas essas experiências, e
pode ser visualizado no Youtube6.

Figura 1 – Sequência de um cavalo galopando, por Muybridge


Fonte: (Google imagens - recorte da autora)7

Em 1876, Eadweard Muybridge (1830-1904 – figura 01) fez uma experiência 8


colocando, primeiro 12 e, depois 24 câmeras fotográficas ao longo de um hipódromo e tirou

6
Youtube, site de compartilhamento de vídeos, cujo acesso é livre para qualquer usuário com conexão à internet.
O termo vem do Inglês ‘you’ (você) e ‘tube’ (tubo, canal), que pode ser livremente traduzido como ‘canal feito
por você’. No Youtube, além da possibilidade de adicionar e assistir vídeos, há, também, espaço para adicionar
comentários sobre a produção visualizada. Também está disponível no referido site grande quantidade de filmes
que podem ser assistidos na íntegra.
7
<https://www.pt.wikipedia.org/wiki/ficheiro:muybridge_horse_junping.jpg>
8
Tudo começou em 1872, quando o ex-governador da Califórnia Leland Stanford afirmou que todos os quatro
cascos de um cavalo deixam a terra ao mesmo tempo durante um galope. Para provar cientificamente que isso
realmente acontecia, Stanford contratou Muybridge, que desenvolveu um esquema para captação instantânea de
imagens, envolvendo fórmulas químicas para o processamento fotográfico e um disparador elétrico, que ficava
fora da câmera fotográfica. Em 1878, Muybridge produziu a série de fotos The Horse in Motion provando que o
Stanford afirmara anos antes.
27

várias fotos da passagem de um cavalo. O fotógrafo inglês ficou bastante conhecido por seus
experimentos com o uso de múltiplas câmeras para captar o movimento, além de ser inventor
do ‘zoopraxiscópio’, um dispositivo que projetava retratos de movimentos, que mais tarde
seria o precursor da película de celuloide, que é usada até hoje. Ele e o astrônomo Janssen
registraram, em movimentos sucessivos, a passagem de Vênus diante do Sol.
William Kennedy Laurie Dickson foi quem inventou a ’tira de celuloide’ contendo
uma sequência de imagens, que seria a base para a fotografia e projeção de imagens em
movimento. Em 1884, o industrial George Eastman, de Nova York, inventou o ‘filme de
rolo’. Na mesma década, em 1891, o inventor Thomas Edison, de Nova Jersey, e seu
assistente Dickson, inventaram o ‘cinetoscópio’ – uma caixa movida a eletricidade, que
continha a película inventada por Dickson, mas com funções limitadas (não projetava o
filme). As temáticas eram as lutas de boxe, números cômicos envolvendo pessoas ou animais
amestrados, exibições de bailarinas, cenas eróticas ou sobre a paixão de Cristo. A primeira
exibição pública desse invento aconteceu em 22 de maio de 1891, em Nova Jersey, onde 147
pessoas puderam observar, individualmente, a “figura de um homem, uma maravilhosa
fotografia. Ele fazia reverências, sorria, acenava com as mãos e tirava o chapéu com graça e
naturalidade perfeitas. Todos os movimentos eram perfeitos”, conforme descrição feita pelo
jornal New York Sun, naquela data. Criador ou simplesmente patenteador de vários inventos
ligados à técnica e à ciência, Edison esteve na vanguarda da comercialização da ilusão do
movimento, procurando lucrar com a nova atração.

Figura 2 – Kinetoscópio de Thomas Edison


Fonte: (Google imagens - recorte da autora)9

9
<http://winterluna.blogspot.com.br/2012/06/linha-do-tempo-1-1895-1919.htm>
28

Os norte-americanos, evidentemente, creditam a Edison a invenção do cinema, fato


contestado pela maioria dos autores, principalmente pelo fato dessa atividade cinematográfica
proporcionada por Edison ter sido individual, e não coletiva, através da projeção, como
demonstraram os irmãos Lumière. Além disso, o tamanho e o peso do invento (figura 2)
contribuíram para o insucesso da sua descoberta. Curioso lembrar que, em 1894 (apenas um
ano antes do nascimento oficial do cinema), o cinematógrafo de Edison – o Kinetoscópio –
fazia sua primeira exibição fora do território americano, na Inglaterra.
Baseados na invenção de Edison, os irmãos Lumière, Auguste e Louis, inventaram o
cinematógrafo – aparelho portátil, espécie de ‘três em um’ – máquina de filmar, de revelar e
projetar. Machado (2011, p. 17) explica que a maioria das pessoas que contribuíram de
alguma forma para o sucesso do ‘cinematógrafo’ eram, em sua maioria, curiosos, bricoleurs,
ilusionistas profissionais e oportunistas em busca de algum negócio.
Embora a data que marca o surgimento oficial do cinema seja 1895, muito antes,
curiosos e estudiosos já se engajavam na arte de surpreender através de projeções de luz e
imagens em movimento. Machado explica que, embora a projeção de imagens animadas
realizada pelos irmãos Lumière, em Paris, seja considerada, por boa parte dos historiadores,
como o ‘marco de nascimento do cinema’, essa data é, de acordo com ele, arbitrária. Isso
porque os irmãos Max e Emile Skladanowsky, na Alemanha e, Jean Acme Leroy, nos Estados
Unidos, já realizavam projeções públicas de filmes muito antes dos irmãos Lumière exibirem
a chegada do trem na estação de La Ciotat; sem falar de George Eastman, W. K. L. Dickson,
Thomas Edison e muitos outros que também estavam dedicando tempo e dinheiro a essa área.
Na apresentação do livro de Costa, O primeiro cinema, Machado diz que:

Quanto mais os historiadores se afundam na história do cinema, na tentativa


de desenterrar o primeiro ancestral, mais eles são remetidos para trás, até os
mitos e ritos dos primórdios. Qualquer marco cronológico que eles possam
eleger como inaugural será sempre arbitrário, pois o desejo e a procura do
cinema são tão velhos quanto a civilização de que somos filhos. (COSTA,
2008, p. 10)

Uma das histórias ‘não oficiais’ conta que, no final da década de 1880, na Inglaterra,
Louis Le Prince10 havia patenteado uma máquina do tamanho de uma geladeira e filmado a

10
Le Prince é pouco conhecido e sua história é marcada por um mistério. Em 16 de setembro de 1890 ele
embarca com seus rolos de filmes e seu aparato técnico rumo a Paris onde encontraria com M. Mobisson, então
secretário do Paris Ópera. Ele nunca desembarcou na capital francesa nem tão pouco foram encontrados seus
equipamentos e filmes, apesar das buscas e investigações da polícia.
29

ponte de Leeds. Embora 1895, como já vimos, seja uma data importante para a história do
cinema, Celso Sabadin conta que vários autores consideram o francês Le Prince como o
primeiro cineasta da história. Dois fragmentos de filmes a ele atribuídos foram descobertos e
ambos teriam sido produzidos em 1888. O primeiro mostrava os jardins do sogro de Le
Prince, em Roundhav, Leeds, na Inglaterra e, o segundo, imagens em cima de uma ponte na
cidade industrial, também em Leeds. Mark Cousins (2013, p. 17) lembra que essas imagens
foram mostradas em máquinas em que apenas uma pessoa podia assistir por vez.
Historiadores ingleses gostam bastante dessa versão por dois motivos: atribui a invenção do
cinema a um francês e remete essa descoberta ao território britânico.
Já Fernão Pessoa Ramos acredita que os irmãos Lumière e seus operadores talvez
tenham sido os primeiros cineastas pois:

[...] exploravam com incrível agilidade as potencialidades estéticas da


imagem-câmera produtora de imagem móvel e inaugurando um padrão
imagético: movimento em profundidade de campo, primeiros planos, entrada
e saída de campo e, mais do que tudo, um enquadramento refinado.
(RAMOS, 1996, p. 143)

Machado complementa dizendo que, na verdade “o cinema foi ‘inventado’ mais ou


menos às cegas, na base do método empírico de tentativa e erro, pois, desde os seus primeiros
protótipos experimentais, ele esteve apoiado num suporte teórico equivocado” (MACHADO,
2011, p 20).
Registros antigos fazem crer que Thomas Edison, o então já famoso inventor da
lâmpada elétrica, teria conseguido colocar imagens em movimento através de um filme
perfurado de celuloide, em 1887. Sabadin conta que Edison “teria abandonado a sua invenção
por acreditar que ninguém demonstraria interesse em um filme mudo” (SABADIN, 2000, p.
35).
George Eastman teve a ideia de furar a borda do filme com o intuito de mantê-lo preso
corretamente na câmera, uma vez que o grande problema dessa invenção (a câmera) era que
uma fita de filme não podia mover-se continuamente diante da lente aberta da câmera. Era
preciso parar, ser exposta à luz por uma fração de segundo, depois avançar e repetir essa ação
várias vezes. Os irmãos Lumière, que vinham de uma família de fotógrafos, perceberam que
as máquinas de costura funcionavam de maneira similar e adaptaram a tecnologia. Eles
fizeram uma caixa menor que a de Le Prince até que sua invenção, o cinematógrafo, pudesse
registrar e projetar imagens. Outro problema era como assegurar que os ‘puxões’ rápidos não
arrebentassem o filme. A solução para esse problema quem encontrou foram Otway e Gray
30

Latham, em seu projetor eidoloscópio, quando uma laçada frouxa de filme era carregada na
câmera e no projetor, permitindo que o filme funcionasse como um elástico enquanto
acelerava e parava continuamente, sem se romper.

Figura 3 – primeira apresentação pública de cinema, Lumière, 1895


Fonte: (frame de A chegada do trem à estação - recorte da autora)

Em 28 de dezembro de 1895, no registro da chegada do trem à estação de La Ciotat


(figura 03), a câmera foi colocada perto dos trilhos, de modo que o trem aumentava
gradativamente de tamanho conforme se aproximava, até dar a impressão que atravessaria a
tela e invadiria a sala. Machado conta que os irmãos Lumière posicionaram sua câmera em
um eixo oblíquo em relação ao deslocamento do trem, de forma a observar o movimento em
termos de profundidade e não de lateralidade. Quanto a isso, Noel Burch afirma que “a atitude
de Lumière frente a seus temas, este enquadramento que oferece geralmente um amplo espaço
para o desenvolvimento da ação em todas as direções, aonde podemos perceber uma atitude
quase científica” (BURCH, 1999, p 35). Com isso, Burch encontra uma certa semelhança
entre a chegada do trem à estação com as experiências de Muybridge e Marey, visto que os
Lumière tinham a preocupação de escolher um bom enquadramento para captar um instante
da realidade, sem a preocupação de controlar aquele momento.
Mas na famosa cena, não é o trem, a princípio, que chama a atenção, e sim um
carregador de boné e bigode, que puxa um carrinho de transporte de mercadorias e bagagens e
que caminha em direção à câmera. Essa imagem do operário ocupando momentaneamente o
centro do enquadramento, portanto chamando a atenção do espectador para ele, marca o
contraste entre dois tempos, duas novas tecnologias: o trem e o cinematógrafo. Rapidamente
essa exibição foi levada para outros países e os filmes dos irmãos Lumière “eram
considerados uma novidade de elite [...], não algo para as massas” (COUSINS, 2013, p. 24).
31

A invenção dos irmãos Lumière, o cinematógrafo, à primeira vista, pouco diferia dos
demais sistemas de filmagem desenvolvidos até aquele momento. Uma das vantagens do
cinematógrafo em relação à invenção de Edison, por exemplo, era seu peso: apenas 4,5 quilos.
Além disso, a mesma caixa de madeira era, ao mesmo tempo, filmadora, copiadora e
projetora. Sabadin conta que “comercialmente, tratava-se de um verdadeiro achado, pois
permitia que uma única pessoa filmasse, revelasse e projetasse os filmes, o que facilitou sua
rápida difusão ao redor de todo planeta” (SABADIN, 2000, p. 48). As exibições eram
realizadas com equipamento dos irmãos Lumière, que também alugavam os projetores. Os
operadores dos irmãos Lumière foram os responsáveis pelos avanços dos tripés, que eram
usados para dar uma maior estabilidade à câmera, mas os primeiros movimentos foram
realizados colocando a câmera em um veículo que se deslocava.
Outra pessoa importante nesse período foi o engenheiro Robert William Paul que, já
em meados de 1890 começou a produzir câmeras ‘ao estilo’ de Edison e Lumière, e vendia os
equipamentos ao invés de alugá-los.
Cousins analisa as primeiras descobertas e experimentações e comenta que qualquer
que seja o seu modo de sonhar ideias, os cineastas raramente o faziam em isolamento: eles
observavam o trabalho uns dos outros e aprendiam como lidar com as cenas a partir do que
existia anteriormente. “O cinema está sempre avançando, tornando-se mais complexo,
desenvolvendo-se a partir do passado” (COUSINS, 2013, p. 11). Assim, o cinematógrafo
serviu como uma espécie de consolidação do conhecimento científico, oferecendo ao púbico a
oportunidade de constatar - ver - a representação do real. Germain Lacasse (2006, p. 187)
poetiza dizendo que a palavra ‘trem’ pode, hoje, ser invocada em nossas mentes através de
palavras e imagens, mas graças à câmera e projetor, ela pode ser copiada e mostrada.
Desse modo, podemos afirmar que todas essas descobertas só vêm comprovar que a
invenção do cinema não é mérito de apenas um homem. Quando ficou evidente que o cinema
poderia se tornar um fenômeno mundial e lucrativo, muitos desses pioneiros tentaram obter os
direitos autorais de suas invenções.
32

1.2. O PRIMEIRO CINEMA

Para discutir cinema hoje é preciso estudar e entender as primeiras experimentações


que foram realizadas no período do Primeiro Cinema e até mesmo antes dele. Costa (2005, p.
34) classifica como sendo Primeiro Cinema, as produções realizadas entre 1894 até 1908, e
que apresentam características comuns em termos de produção e exibição. Essas produções do
início da ‘era do cinema’ ainda possuem uma segunda fase, posterior a 1908 e que se estende
até 1915, período em que começam a surgir as primeiras formas de narratividade do cinema.
Estudioso do Primeiro Cinema - ‘Early Cinema’ -, Gunning costuma dizer que “the
potential of the new art not lie in ‘imitating the movements of the nature’ or in ‘the mistaken
path’ or its resemblance to theater. Its unique power was a ‘matter of making images seen”11
(GUNNING, 2006, p. 381).
Depois de inventada a máquina capaz de captar imagens em movimento e projetá-las
para um grande número de pessoas, talvez a primeira grande dificuldade técnica da época
tenha sido a incapacidade inicial de se criar uma continuidade das ações por meio de planos
sucessivos, já que, até mesmo os irmãos Lumière não acreditavam que o cinema se
consolidaria como uma expressiva forma de arte. Costa explica que “os pioneiros do cinema,
como são normalmente designados os primeiros homens que fizeram cinema, não estavam
tentando descobrir as regras da linguagem do cinema, mas experimentando em direção
desconhecida” (COSTA, 2008, p.91).
O cinema estava inventado enquanto técnica, mas não enquanto linguagem; assim, era
tecnicamente possível registrar imagens em movimento e exibi-las para o mundo inteiro, mas
ainda não havia sido descoberta uma linguagem específica para essa nova descoberta. Em
seus primeiros meses, o cinematógrafo valia mais pela novidade técnica que era do que pelo
conteúdo que apresentava.
O Primeiro Cinema reflete a percepção diante das características do início do século
XX como velocidade, aceleração, industrialização, evolução dos transportes, sofisticação dos
meios de comunicação, entre outros. Assim, como no início a câmera não experimentava
nenhum tipo de movimento, os primeiros filmes eram puramente demonstrativos e geralmente
mostravam pessoas, carros, trens, bondes ou até mesmo animais passando diante das lentes.
As primeiras produções eram extremamente simples, bastante curtas e rápidas, a maioria

11
“o potencial da nova arte não se encontra na 'imitação dos movimentos da natureza’ ou no seu ‘caminho
errado’ ou na sua semelhança com o teatro. Seu poder único era uma ‘questão de fazer imagens serem vistas’.
(livre tradução da autora)
33

rodada em um único plano, quando a câmera estava quase sempre imóvel, não por uma
impossibilidade técnica ou mecânica, como lembra Sabadin (2000, p. 57), mas simplesmente
porque ninguém ainda havia pensado na possibilidade de movimentar o cinematógrafo de seu
eixo.
Gunning comenta ainda que os primeiros filmes retratavam as curiosidades do começo
da vida moderna e “o primeiro século de história capturada pelos filmes” (GUNNING, 1996,
p. 24, p.26). Nessa mesma época, na Europa, já estavam sendo produzidos outros tipos de
filmes como aqueles que mostravam números de magia, gags burlescas, encenações de
canções populares e contos de fada. O Primeiro Cinema pode ser caracterizado por dois tipos
de produções: o cinema documentário - ‘cinema de mostração’, aqui entendido como aquele
que registra do dia-a-dia da sociedade da época -, como o cinema dos Irmãos Lumière
mostrando a saída de pessoas/operários de uma fábrica, ou então Thomas Edison filmando um
beijo; e, o ‘cinema de atrações’ de Georges Méliès, onde predominavam os truques de magias
que encantavam as plateias. Tais filmes trouxeram para o cinema os princípios da encenação
teatral, da ilusão mágica, da temporalidade própria das narrativas teatrais e literárias.
Devemos levar em conta que o cinema documentário do início do século não tem a conotação
de filme documentário praticada hoje, embora muitos historiadores considerem os
experimentos dos irmãos Lumière, que simplesmente captavam imagens registrando cenas da
vida cotidiana, como sendo ‘precursores’ do filme documental.
O termo documentário era empregado, no Primeiro Cinema, como sinônimo de
atualidades, em oposição ao termo ficção, daquele mesmo período. Essas atualidades eram
registros de eventos que ocorriam na sociedade da época e não eram, necessariamente,
registros realizados in loco. Naquele tempo, registros de fatos reais, ficções, reconstruções e
até mesmo encenações se misturavam e eram vistos de forma indistinta, portanto, as
atualidades (documentários do Primeiro Cinema) eram registros de fatos reais, mas também
reconstruções de assuntos relevantes, que não podiam ser filmados ao vivo.
A principal função das primeiras imagens em movimento era justamente a de registrar
a realidade, muito bem difundida pelas exibições dos irmãos Lumière. Com o passar dos anos,
começou-se a observar a criação de uma linguagem cinematográfica, de um novo código de
imagens, quando o espectador também desenvolveu papel importante nesse processo, na
medida em que teve que aprender a entender o que as imagens em movimento queriam dizer.
Assim, a linguagem do cinema passou a ser compreendida a partir da repetição de seu uso,
visto que, no início, as técnicas de veiculação de imagens eram desconhecidas do público.
Eisenstein complementa contando que os espectadores logo foram ‘domesticados’ para olhar
34

o mesmo assunto de diferentes pontos de vista: de perto, de longe, pela lateral, por trás, entre
outras maneiras . Nesse contexto, o conjunto de imagens visualizadas deixa de ser um efeito
espacial para se tornar uma prática comum de decompor e recompor ações. Outra
consequência dessa nova linguagem foi o surgimento do chamado ‘mundo diegético’ que,
segundo Eisenstein, é um mundo ilusório de filme, onde tudo é ficção com a montagem. O
termo diegese é usado para designar o ambiente autônomo da ficção, o mundo da história que
está sendo contada. “Diegese é o processo pelo qual o trabalho de narração constrói um
enredo que deslancha de forma aparentemente automática, como se fosse real, mas numa
dimensão espaço-temporal que não inclui o espectador” (COSTA, 2008, p. 32).
As primeiras produções eram extremamente similares umas das outras. Dominada a
técnica de captação de imagens, aos poucos começaram a ser produzidos alguns ‘filmetes’
contendo ideias simples, ou ensaiando contar breves histórias. Um bom exemplo do início
dessa transformação é a adaptação de um conhecido cartum veiculado nos jornais da época
que foi transformado em ação filmada – L’Arroseur Arrosé (O regador regado, Louis
Lumière, 1895 – Figura 04), onde um garoto pisa em uma mangueira de jardim, represando a
água, para depois soltá-la de uma vez no rosto do jardineiro.

Figura 4 – comédia como atração


Fonte: (frame de O regador regado, Lumière, 1895 - recorte da autora)

Como o cinema ainda era uma novidade, era preciso cativar e cultivar um público e,
para tanto, a literatura auxiliou, e muito, na propagação dessa nova tecnologia, na medida em
que muitas das produções realizadas nos primeiros anos do cinema foram adaptações de obras
literárias. Não demorou muito para o cinema colocar nas telas uma grande obra literária.
Embora oficialmente o cinema tenha nascido em 1895, já em 1902, Georges Méliès produzia
Viagem à Lua, adaptação do romance homônimo de Jules Verne.
35

Em seus primeiros anos de exibição, a ligação do cinema com o teatro era bastante
intensa, tanto no que diz respeito à representação espacial do teatro em si, quanto à
apresentação dos atores. A câmera era fixa e ressaltava o ponto de vista do espectador,
posicionada em frente à cena, mostrando tudo que estava no ‘palco’, o que hoje chamamos de
‘plano geral’. Como os enquadramentos e hierarquizações dentro do quadro ainda não eram
conhecidos, nem praticados conscientemente, muitas situações captadas em cada tomada eram
confusas e, muitas vezes, pareciam desconexas.
As primeiras produções cinematográficas eram bastante curtas e esgotavam toda a
ação num único plano. Nessa primeira fase do cinema não havia movimentos de panorâmicas
para acompanhar os atores, por isso os quadros de filmagens (cenários) eram bem
delimitados, como se estivessem justificando porque a câmera não podia acompanhar o
movimento do protagonista e figurantes, que deixavam seus lugares quando saiam de cena.
Outro detalhe interessante é o fato dos atores direcionarem o olhar para a câmera, deixando
claro que sabiam da presença do espectador (aqui representado por ela, a câmera), numa clara
ruptura do espaço diegético. Seus gestos eram exagerados e quase sempre ficava evidente a
cumplicidade do ator com a plateia, como por exemplo Per le trou de serru, de 1901, da
Pathé Films, onde um faxineiro olha pelo buraco das fechaduras e compartilha com o público,
através de mímicas, o que está vendo.
Podemos também comprovar essa cumplicidade no final do filme After the Ball (figura
20), de Méliès, realizado em 1897, quando a criada, ao terminar de ajudar no banho da sua
patroa, dá uma olhada para a câmera antes de sair de cena, confirmando que se trata de uma
encenação, que a câmera está ali presente. Neste filme, Méliès se serve também de ‘efeitos
especiais’ quando utiliza cinzas ao invés de água na representação do banho de Jeanne d’Alcy
(mais à frente vamos saber mais detalhes sobre essa atriz). Além disso, Méliès já havia
‘descoberto’ que, água real era ‘invisível’ diante das câmeras e, portanto, teve que usar algo
que pudesse ser visto pelos espectadores, sendo derramado sobre o corpo de d’Alcy. Outro
detalhe interessante dessa produção, considerada talvez o primeiro filme adulto da história do
cinema, era que a atriz não ficava de fato nua, durante o banho. Ela usava uma vestimenta que
imitava a cor da pele. Mesmo assim, esse filme era comercializado como entretenimento para
as despedidas de solteiro e encontros exclusivamente masculinos.
Hugo Munsterberg complementa: “A influência exercida pelos movimentos dos atores
torna-se ainda mais relevante na tela, uma vez que, na falta das palavras, toda atenção passa a
convergir para a expressão do rosto e das mãos” (MUNSTERBERG, 1983, p. 30-31). Ainda
segundo o autor, o cinema tem outra vantagem sobre o teatro: a facilidade de escolher atores
36

com físico e rosto adequados ao papel e, portanto, naturalmente propensos à expressão


desejada. O cinema, por dispensar a fala, pode recrutar atores no meio de qualquer grupo de
pessoas. “O cinema nasceu da imitação servil do teatro e só muito lentamente foi descobrindo
os seus próprios métodos artísticos” (MUNSTENBERG, 1983, p. 54). Prova disso eram as
entradas e saídas laterais dos atores, como no teatro. As características desses primeiros filmes
eram a frontalidade, a imobilidade da câmera e a constante repetição dos mesmos
enquadramentos. À medida que a tecnologia avançava, os diretores começaram a produzir
filmes mais longos, muitas vezes recorrendo à literatura em busca de inspiração.
Machado (2011, p. 76) identifica como específico o sistema de representação desse
período, que deriva especialmente das formas populares de cultura da Idade Média e não tanto
das formas artísticas mais eruditas como teatro, ópera ou literatura dos séculos XVIII e XIX.
Não é à toa que muitos teóricos chamam os filmes produzidos nos primeiros anos do cinema
de ‘teatro filmado’. Ninguém melhor que Méliès soube dar sentido ao termo teatro filmado.
Xavier acredita que a relação do cinema com o teatro é um processo de continuidade e
que “o cinema narrativo sempre traz o teatro dentro de si, atualiza gêneros dramáticos,
envolve mise-en-scène” (XAVIER, 2003, p. 59).
Essa tendência foi teorizada por André Bazin, quando fez a comparação entre o
‘quadro da pintura’ e o ‘quadro do cinema’. “O quadro é centrípeto, a tela é centrifuga”
(BAZIN, 1960, p.128). Para Xavier (2012, p. 22), com essa inovação, o desenvolvimento do
movimento, a câmera podia agora ‘andar’ além do quadro fixo e se posicionar em diferentes
lugares direcionando o olhar do espectador. “[...] o movimento da câmera reforça a impressão
de que há um mundo do lado de lá, que existe, independentemente da câmera em continuidade
ao espaço da imagem percebida” (XAVIER, 2012, p. 22). O ângulo de visão era centralizado,
devido ao uso exclusivo de câmeras fixas, como atesta Machado:

A câmera em geral não se movia; ela estava sempre fixa e a uma certa
distância da cena, de modo a abraça-la por inteiro, num recorte que hoje
chamaríamos de ‘plano geral’. Seu eixo ótico era frontal, perpendicular ao
cenário, correspondendo ao ponto de vista cativo de um espectador sentado
mais ou menos no meio de uma sala de teatro [...]. As entradas e as saídas
dos atores eram laterais, como no teatro. Também como no teatro, era o
deslocamento do ator para dentro ou para fora do cenário que compunha o
quadro e não os movimentos da câmera. (MACHADO, 2011, p. 88)

Deste modo, pode-se perceber nitidamente o que queria dizer ‘teatro filmado’ que,
como explica Machado (2011, p. 76), não há decupagem das cenas – estas se apresentam em
visão frontal, com os atores aparecendo quase que de corpo inteiro e gesticulando como se
estivessem representando no teatro. Na verdade, o cinema dos primórdios ia buscar nos
37

espetáculos populares não apenas a inspiração e os modelos de representação, mas até mesmo
os seus figurantes.
Costa (2008, p. 107) concorda que o caracterizava o Primeiro Cinema era o fato de
tudo ser colocado, de forma simultânea, dentro do quadro e o que chama a atenção para essa
experiência é justamente os filmes terem sido mercadorias incompletas, que dependiam de
performances ao vivo e podiam envolver, neste sentido, grande margem de improvisação e
imprevisibilidade. Assim, podemos dizer que o Primeiro Cinema é experimental, marginal,
anárquico, minoritário e atípico.
Quando o cinema aprendeu a seguir o fluxo da ação de um espaço para o outro,
liberando os filmes para enfatizar o movimento, começam a acontecer as primeiras mudanças
do cinema. Talvez a maior diferença entre essas duas expressões de arte – teatro e cinema –
seja a configuração da cena que, no cinema, possibilita diversos e diferentes enquadramentos,
enquanto que, no teatro, como explica Sadoul, só temos o ponto de vista do espectador, “do
‘cavalheiro da plateia’, que vê o cenário por inteiro, desde a abóbada até a rampa” (SADOUL,
1986, p.31). Essa mobilidade dos pontos de vista, proporcionada pela câmera
cinematográfica, veio a acrescentar e diferenciar o cinema do teatro. “Dada essa primazia do
visual, a diferença vem da técnica: o que o tableau teatral sugere pela configuração visível da
cena, o cinema pode oferecer, com maior controle, mediante enquadramentos variados”
(XAVIER, 2003, p. 66).
Podemos dizer que o Primeiro Cinema termina a partir do momento em que as
histórias começaram a ficar cada vez mais complexas, tornando problemática a
simultaneidade de ações e informações no mesmo quadro. Note aqui que já existiam exceções
como os filmes de Méliès e de Porter, bastante elaborados, bem diferentes das primeiras
imagens cinematográficas “consideradas ‘confusas’ demais para um público viciado no
discurso linear e organizado do teatro e do romance romântico/realista” (MACHADO, 2011,
p. 87) .
Além disso, o público começava a ficar mais exigente, o que acabou obrigando os
cineastas a buscar linearização, codificação e homogeneização da linguagem, quando
começaram a ser produzidos filmes mais longos. Sabadin explica que a produção desse tipo
de filme atendia não somente uma necessidade estética e artística dos cineastas, como também
a própria exigência do público. A partir de 1912, a indústria cinematográfica passa a produzir
filmes para a classe média; assim, a cada ano a produção aumentava consideravelmente. A
título de ilustração, informa-se que a produção fílmica em 1912 foi de dois longa-metragens;
em 1913 foi de 12 longas; em 1915 foi de 419 longas e em 1916 foram produzidos 677
38

filmes. Entre 1912 e 1927, só nos Estados Unidos, foram produzidos 9.045 longa-metragens.
Essa produção em massa exigiu uma outra mudança de hábito: a construção de salas
específicas para exibição de filmes, uma tendência mundial, não apenas norte-americana.

1.3.LUGARES INÍQUOS COM ESPETÁCULOS SUSPEITOS

Logo após a invenção da máquina de fazer cinema, as primeiras exibições não tinham
um local próprio para serem mostradas. As primeiras salas de cinema, nos termos em que
conhecemos hoje, datam de década de 1910. No início, ainda uma novidade, o cinema era
visto num mundo extraoficial, embora legalizado, que se baseava nos princípios do riso e do
prazer. Machado (2011) chama esses locais de ‘lugares iníquos com espetáculos suspeitos’ e,
com o crescimento do capitalismo e a ascensão das ideologias protestantes, começava a ficar
cada vez mais difícil esses espetáculos populares conviverem com a cultura ‘respeitável’ da
época.
Entretanto, em pouco tempo o cinema já era um espetáculo com um público bastante
representativo e, embora ainda não possuísse um local próprio para ser exibido, não era
‘politicamente correto’ simplesmente exercer repressão sobre esses espetáculos considerados
‘vulgares’. Assim, Machado explica que “optou-se pelo seu confinamento em guetos, em
geral situados nas periferias, próximos aos cordões industriais, onde a diversão suspeita
misturava-se facilmente com prostituição e a marginalidade” (MACHADO, 2011, p. 74).
Segundo Machado (2011, p. 73) o Primeiro Cinema reunia diversas modalidades de
espetáculos derivadas de formas populares de cultura, como o circo, o carnaval, a magia , a
prestidigitação12, a pantomima , entre outras. Sendo assim, o cinema, no início, era uma
atividade marginal, uma espécie de coadjuvante, como tudo que pertencia à cultura popular
daquela época. Costa (2008, p. 17) comenta ainda que, no princípio, o cinema era uma
atividade artesanal, cuja exibição era apenas mais uma atração nas feiras e se misturava a
outras formas de diversão, muitas vezes até mais importantes e rentáveis.
Por um certo período de tempo, os filmes eram exibidos como curiosidades ou formas
de entretenimento, nos intervalos das apresentações ao vivo em circos, feiras e carroças de
mambembes. Essa espécie de difusão do cinema era bastante comum em áreas suburbanas e

12
Também conhecido como ilusionismo, é arte performática cujo objetivo principal é entreter o público dando a
impressão que algo impossível ou sobrenatural aconteceu.
39

rurais. Costa explica que “as primeiras imagens fotográficas em movimento surgiram, assim,
num contexto totalmente diferente das salas escuras, limpas e comportadas em que os cinemas
se transformariam depois” (COSTA, 2008, p. 17).

Os primeiros filmes, portanto, tinham herdado essa característica de serem


atrações autônomas, que se encaixavam facilmente nas mais diferentes
programações. Os filmes, em sua ampla maioria feitos em uma única
tomada, eram pouco integrados a uma eventual cadeia narrativa.” (COSTA,
2005, p. 43)

Para a autora, os primeiros filmes “revelavam uma intensa energia, feita de


experimentação, referências intertextuais e uma convivência intrigante de preconceitos e
estereótipos de todo tipo com uma evidente ausência de moralismo” (COSTA, 2008, p. 19).
Ela explica ainda que os filmes exibidos nas feiras eram aqueles que reproduziam paisagens
externas e ações do cotidiano quase que exclusivamente de caráter documentário, como cenas
urbanas, multidões, desfiles de autoridades, pessoas trabalhando e se divertindo, entre outras
cotidianidades. Os primeiros filmes produzidos para cinema não eram considerados como
diversão sofisticada e muito menos encarados como formas narrativas construídas segundo o
modelo das artes nobres da época.
Aliás, essas feiras a que se refere Costa, eram os espaços que as indústrias
(fabricantes, comerciantes e cientistas) tinham para mostrar ao mundo seus novos produtos,
serviços e invenções. Daí a importância dessas exposições para a própria história do cinema,
uma vez que corporificam o habitat cultural e social desse Primeiro Cinema. “As feiras deste
período funcionavam como um mostruário espetacular das maravilhas tecnológicas que o
novo século prometia” (COSTA, 2008, p. 29).
Além das feiras, temos que levar em consideração as especificidades da maneira pela
qual esse Primeiro Cinema era exibido nos grandes centros urbanos industrializados, quando a
exibição de filmes era realizada em casas de espetáculos de variedades 13, local onde também
podia se comer, beber e dançar. Esses locais eram chamados de vaudevilles14, que, segundo
Costa, tinham surgido a partir de teatros de variedades e tinham uma conotação
13
Essas casas de espetáculos de variedades eram conhecidas na Inglaterra como music-halls, como cafe-
concerts na França e vaudevilles ou smoking concerts nos Estados Unidos.
14
Gênero de entretenimento originário a partir dos teatros de variedades que em geral funcionava anexos aos
salões de curiosidades, a partir da década de 1880. A cada anoitecer uma infinidade de apresentações eram
levadas ao palco, sem nenhum relacionamento entre eles: desde peças musicais, shows de acrobacia até
apresentações de personalidades da época e também exibição de filmes.
40

exclusivamente erótica, funcionando anexo aos chamados ‘salões de curiosidades’, onde eram
exibidas bizarrices como mulheres barbadas, anões e outras aberrações. Machado (2011, p.
75) confirma que, nesse período, o cinema era apenas uma das atrações entre as tantas
oferecidas pelos vaudevilles, mas nunca uma atração exclusiva, nem mesmo a principal. E
continua explicando que a própria duração dos filmes – que variava de alguns segundos a não
mais que cinco minutos – impedia que se pensasse em sessões exclusivas. Quando foram
criados, os vaudevilles eram frequentados basicamente por um público masculino de classe
baixa, onde eram servidas bebidas alcoólicas e onde esse público buscava diversão muito
além do que podia ser conferido nas telas. Machado continua:

Quando num primeiro momento, a venda de álcool era ainda tolerada nesses
locais e a prostituição florescia ao seu redor, não era difícil que uma visita a
uma dessas casas se transformasse em uma bebedeira, quebra-quebra ou
aventura sexual. (MACHADO, 2011, p. 74)

Especificamente nos Estados Unidos, o público do Primeiro Cinema era constituído


principalmente pela população proletária que trabalhava nos cinturões industriais,
predominantemente masculina. Uma outra característica desse público era o fato dele ser
formado por imigrantes e, como o cinema era mudo, não se constituía um obstáculo ao
entendimento da atração. Machado conta que o período inicial da formação da indústria
cinematográfica norte-americana coincide com a chegada de imigrantes ao país, “com
estrangeiros afluindo à América do Norte num ritmo superior a um milhão de pessoas por
ano” (MACHADO, 2011, p. 75). O autor conta ainda que o governo americano e algumas
instituições privadas usavam os intervalos das sessões para orientar os recém-chegados ao
país sobre religião, alcoolismo, moral familiar e até mesmo como se comportar em caso de
rebeliões nas fábricas.
Nos Estados Unidos, os primeiros vaudevilles ficaram conhecidos como penny arcade
– assim chamados porque sua entrada custava apenas um pêni (um centavo de dólar) – local
onde era oferecido ao público frequentador uma grande variedade de máquinas de jogos e o
‘quinetoscópio’ de Edison, aparelho que exibia um filme para apenas uma única pessoa, pois
tinha visor individual.
Mais tarde, os vaudevilles americanos passaram a se chamar nickelodeons – mais uma
vez o nome faz referência ao valor a ser pago como entrada, agora um níquel (cinco centavos
de dólar). Machado conta que o valor cobrado pelo ingresso ainda era bastante baixo para que
pudesse funcionar como um mecanismo de seleção; portanto, o público dos nickelodeons, nos
41

seus primeiros anos continuava sendo o mesmo. Além do valor do ingresso, agora as salas de
exibição começavam a sofrer transformações, embora continuassem sujas, pouco confortáveis
e sem condições de segurança, como comenta Machado (2011). Esses locais também eram
conhecidos por ‘poeiras’, uma vez que funcionavam em armazéns improvisados.
Os nickelodeons ganharam importância à medida em que os filmes começaram a
tornar-se narrativos, quando as produções ficaram mais longas, já com uma preocupação de
envolver o público. Machado (2011) explica que os filmes que consideramos mais típicos do
primeiro período eram compostos de uma série de quadros autônomos, que correspondiam
‘mais ou menos’ aos ‘atos’ do cinema, separados uns dos outros por intertítulos, que
explicavam a cena seguinte. Philip Kemp (2011), em seu livro Tudo sobre Cinema,
complementa contando que, embora os intertítulos substituíssem os diálogos, eram as
imagens que conduziam de fato a narrativa e capturavam as emoções. Nem todas as
produções do Primeiro Cinema tinham intertítulos ou letreiros, como por exemplo as
produções de Méliès, cujas imagens e truques dispensaram a interferência de explicações,
pois eram obras acabadas cujo intuito era maravilhar e surpreender o público.

Os intertítulos, é preciso dizer, constituíam um recurso praticamente inútil


nos primeiros anos, pois o público dos vaudevilles, na sua maioria
esmagadora, era analfabeto. Os intertítulos só vão ganhar sentido no corpo
do filme muito mais tarde, quando o cinema começar realmente a cobiçar o
teatro, ocasião em que permitirão colocar diálogos na boca dos atores.
(MACHADO, 2011, p. 90)

Mesmo com intertítulos, era muito comum as sessões terem a presença de um


‘explicador’15, que esclarecia o sentido da história através da sequência das imagens. Costa
(2008, p. 55) explica que havia outra maneira do público entender o filme que não fosse
através do explicador. De acordo com ela, a compreensão desses filmes acontecia
naturalmente se o assunto tratado fosse previamente conhecido desse espectador, ou ainda, se
a narrativa fosse tão simples a ponto de ser entendida pelo público sem ajuda externa. Caso
contrário, como alerta Machado, cabia ao comentador (explicador) colocar ordem no caos do
primeiro cinema, tornar ‘legível’ a um público ilustrado o quadro ‘confuso’ do filme,
orientando o olho para os pontos importantes da imagem no desenvolvimento da narrativa.

15
A figura do explicador já aparecia nas primeiras experiências com imagens com a lanterna mágica. Naquela
época era uma espécie de show com cunho educacional, mas era frequentemente visto como uma atração em
apresentações de Robertson, por exemplo. (LACASSE, 2006, p. 184). Também eram chamados de comentadores
ou conferencistas, em francês boni-menteur e em inglês de lecturer.
42

“Como here! Come here! Ladies and gentlemen, come to see the most surprising and
exciting fairground attraction, the cinematograph16.” Lacasse (2006, p. 181), em seu texto
The Lecturer and the attraction, conta que os explicadores ficavam “ invited passers-by to
come to experience a ‘state of shock17.’ Ele diz que a expressão ‘state of shock’ (estado de
choque) é bastante apropriada pois é uma espécie de retrato do primeiro espectador de
cinema, em 1895.
Lacasse (2006, p. 181) afirma que o explicador era a ‘prova da atração’ (proof of
attraction), mas também a ‘voz da atração’ (voice of attraction). Pela boca dos explicadores, o
cinematógrafo falava e essa nova e virtual experiência atraia o espectador durante toda
duração da exibição – eles apresentavam, explicavam e comentavam a atração. “The lecturer
stimulates and praises the entertainment and the attraction by introducing them to soften the
shock, but then amplifies the surprise18” (LACASSE, 2006, p. 182). O autor chama a atenção
para o fato do explicar ter o poder de ‘manipular’ sua audiência, uma vez que essa era sua
própria audiência.
A ‘era dos explicadores’ acabou no momento em que o cinema se tornou um
fenômeno conhecido, aceito e legitimizado. Lacasse (2006, p. 187) diz que, após seu
desaparecimento – a figura do explicador –, as atrações continuaram, mas agora mais
integradas como uma prática mais familiar, uma vez que, com a domesticação das imagens
pelo público, o processo de entendimento dos filmes se tornou inconsciente e implícito.
Salas de exibição de filmes, no formato que temos hoje, é um fenômeno bastante
recente. Entre 1908 e 1912 já se começava a sentir as transformações do cinema como um
todo, desde o conforto das salas de exibição até o aparato técnico e temático dos filmes.
Xavier informa que, por volta de 1908, já existiam nos Estados Unidos entre oito e dez mil
salas, que provocaram o aumento brutal da demanda por uma programação mais
diversificada. Não é por acaso que naquele período foram registrados dois marcos importantes
para a história do cinema norte-americano: a produção do primeiro longa-metragem19 e a
inauguração do primeiro ‘cinema’20 propriamente dito, naquele país.

16
“Venham! Venham! Senhoras e senhores, venham ver a atração de feira mais surpreendente e emocionante, o
cinematógrafo’!” (livre tradução da autora)
17
“convidando os pedestres a experimentar um ‘estado de choque’’’. (livre tradução da autora)
18
“O explicador estimula e elogia o entretenimento e a atração, introduzindo-os para amenizar o choque, mas,
em seguida, ampliava a surpresa”. (livre tradução da autora)
19
Considerando a definição da Cinemateca Francesa segundo a qual longa-metragem é um filme comercial de
mais de 60 minutos de duração, o primeiro longa americano foi Oliver Twist, produzido por H. A. Spanuth, cuja
43

A experiência do cinema também tornou necessária a aprendizagem do espectador,


uma espécie de ‘automação do olhar’ para esse novo código que acabava de surgir. Béla
Balázs (1983, p. 87) conta que esse processo não aconteceu automaticamente e que o
espectador, através da associação de ideias, consciente ou imaginada, teve que ser educado
para processar e começar a construir um repertório. Costa explica que o público do Primeiro
Cinema não entendia todos os filmes produzidos e portanto “uma forma de resolver este
problema foi a tentativa de se aperfeiçoar o uso da montagem para representar, na linearidade
dos filmes, a simultaneidade de duas ações afastadas” (COSTA, 2008, p. 64). E continua:

O cinema teria, aos poucos, superado as limitações iniciais e se transformado


em arte ao encontrar os elementos específicos de sua linguagem. Tal
especificidade estaria justamente ligada à questão narrativa e à instituição da
montagem como instrumento fundamental para o cinema narrativo.
(COSTA, 2008, p. 72)

Na metade da primeira década do século XX, o Primeiro Cinema começa a passar por
uma transformação: de um lado o público começava a ficar mais exigente e, do outro, os
produtores passaram a se preocupar em desenvolver uma linguagem própria – a narrativa
cinematográfica. O público começava agora a ser domesticado pelas formas de representação
e exibição dos filmes, a desenvolver uma forma de percepção diferenciada, uma maneira de
entender a narrativa.
Mas os historiadores do cinema consideram que a linguagem do cinema só acontece
depois do uso do corte; assim, a montagem é, sem dúvida, muito importante na construção
desse mundo ilusório. Essa relação invisível entre uma cena e outra é que criou um
vocabulário próprio do filme, – a linguagem cinematográfica –, e fez com que o público, com
o passar do tempo, passasse a preencher e entender automaticamente as lacunas entre os
tempos das cenas. Carrière revela que a justaposição de imagens aguçou, nos espectadores, a
necessidade do uso do raciocínio para dar ordenamento lógico das ideias. Ele cita como
exemplo:

estreia foi em primeiro de junho de 1912. A Vitagraph já havia produzido, em 1909, Lês Miserables e The Life
of Moses, longas de quatro e cinco rolos, mas que foram exibidos em capítulos e em dias separados.
20
O Regent Plaza de Nova York foi o primeiro edifício norte-americano projetado e construído para se utilizado
na exibição de filmes. (SABADIN, 2000, p. 99)
44

Um homem, num quarto fechado se aproxima de uma janela e olha para fora.
Outra imagem, outra tomada, sucede a primeira. Aparece a rua, onde vemos
dois personagens – a mulher do homem e o amante dela por exemplo. Para
nós, atualmente, a simples justaposição dessas duas imagens, naquela ordem,
e até na ordem inversa (começando na rua), nos revela, claramente, sem que
precisemos raciocinar, que o homem viu, pela janela; a mulher e o amante na
rua. Nós sabemos; nós o vimos no ato de ver. Interpretamos, corretamente e
sem esforço, essas imagens justapostas, essa linguagem. Nem percebemos
mais essa conexão elementar, automática, reflexiva; como uma espécie de
sentido extra. Essa capacidade já faz parte do nosso sistema de percepção.
(CARRIÈRE, 1995, p.15)

Xavier (2012, p.32) conta que todas essas evoluções em termos de decupagem não
surgiram da noite para o dia, mas foram fruto de acúmulos de experiências em diferentes e
diversos filmes do início do século XX. André Gaudreault concorda com Xavier, e mais,
afirma que: “tracking shots, close-ups, parallel editing and other fundamental devices of film
language had not waited for David Wark Griffith to make theirs
appearance21”(GAUDREAULT, 2006, p. 85).

21
“plano sequência, close-ups, montagem paralela e outros dispositivos fundamentais da linguagem
cinematográfica não esperaram por David Wark Griffith para serem descobertos”. (livre tradução da autora)
45

2. A IMPORTÂNCIA DAS PRIMEIRAS PRODUÇÕES

“Nenhuma outra invenção foi capaz de abreviar distâncias,


como o cinema. Distâncias entre as décadas, entre as culturas e,
acima de tudo, entre a imaginação e a realidade.”
Luís Buñuel

Eisenstein (1898-1948), no prefácio do seu livro A Forma do Filme escreve que:

O cinema, sem dúvida, é a mais internacional das artes. Não apenas porque
as plateias de todo mundo veem filmes produzidos pelos mais diferentes
países e pelos mais diferentes pontos de vista. Mas particularmente porque o
filme, com suas ricas potencialidades técnicas e sua abundante invenção
criativa, permite estabelecer um contrato internacional com ideias
contemporâneas. (EISENSTEIN, 2002, p. 11)

O cinema, desprovido de fala, já havia desenvolvido uma forma de narração visual tão
sutil e expressiva quanto às palavras; além disso, complementa Munsterberg, enquanto “o
teatro só pode mostrar os acontecimentos reais em sua sequência normal; o cinema pode fazer
a ponte para o futuro ou para o passado” (MUNSTERBERG, 1983, p. 38).
Segundo Laurent Jullier (2009, p. 74), o cinema dos primórdios é até hoje mal
interpretado; muitas vezes sendo estereotipado como produção ingênua e até mesmo
primitiva, a começar pela própria terminologia de cinema mudo ou silencioso. Ao contrário
do que se acredita, o Primeiro Cinema não era mudo; pelo contrário, nas projeções ouviam-se
sons diversos: pianistas ou orquestras inteiras tocando ao vivo e, em alguns casos, havia ainda
os animadores que explicavam os filmes e também a conversa da plateia. Não se pode
esquecer que estamos falando do começo do século XX e, na maior parte do tempo, o cinema
representava o que se podia obter de mais adaptado às necessidades artísticas daquela época.
Jullier revela ainda que o espectador contemporâneo pode até considerar fora de moda ou
ultrapassado o aspecto visual dos primeiros filmes, mas isso não significa que eram produções
de pouca qualidade; tal produção “não revela nenhum ‘erro’, mas sim escolhas estéticas que
agradavam antigamente”. (JULLIER, 2009, p. 74)
Paradoxalmente, um dos principais fatores da rápida universalização do cinema foi
justamente sua grande limitação: a ausência da fala. Na época dos filmes ditos mudos, a
ausência de barreiras de linguagem (devido à grande ênfase na expressão corporal que é uma
linguagem universal) assegurou que o nascimento do cinema fosse realmente um fenômeno
de grande alcance e que os filmes da primeira década pudessem ser mostrados em diferentes
países e também em outros continentes. Foi o que aconteceu com os filmes de Méliès,
46

exibidos não só na Europa como nos Estados Unidos, uma vez que as primeiras produções
eram atrações por si só e não tinham o compromisso com a narrativa.
Lacasse afirma que: “The silent cinema has often been presented as a symbol of
modernity because it was considered as a ‘universal language 22” (LACASSE, 2006, p. 188).
Portanto, o silêncio nunca foi uma limitação para o cinema. Balázs (1983, p. 82) concorda e
afirma que uma das pré-condições da popularidade internacional dos filmes reside na
compreensão universal da expressão facial e do gesto, o que acabou contribuindo para que “as
pessoas se tornassem fisicamente acostumadas umas com as outras, e quase criou um tipo
humano internacional” (BALÁZS, 1983, p. 83). Criaram-se efeitos que logo se tornaram
‘sinais de convenção’, uma espécie de ‘código universal’. Isso aconteceu, em grande medida,
pelo fato de que as leis do mercado cinematográfico permitiam apenas gestos e expressões
faciais universalmente compreensíveis.
Na época do cinema mudo, apenas os filmes de maior prestígio tinham trilha sonora,
especialmente encomendadas a compositores. Os filmes eram enviados para locais de
exibição na sua forma silenciosa, juntamente com as partituras; ficava a cargo do cinema
contratar músicos para executar ao vivo a música apropriada para cada exibição.
Foram centenas as produções na primeira década da história do cinema; mas muito
desse material foi perdido devido à falta de conservação adequada e até mesmo pela
desimportância que esse material sofria por parte dos produtores daquela época. Muitos filmes
foram derretidos para recuperação de um dos seus principais componentes, o nitrato de prata,
bastante valioso naquela época. O material visual daquele período que temos disponível
atualmente é de pouca qualidade de conservação; mesmo assim é de suma importância para a
história do cinema mundial. Muito desse material está disponível online e é de domínio
público.
Como já comentamos, as primeiras produções cinematográficas eram praticamente de
caráter documental que mostravam cenas cotidianas simples ou trucagens visuais, mas outros
gêneros cinematográficos surgiram logo em seguida. Méliès assistiu a apresentação dos
irmãos Lumière e, inspirado pela tecnologia utilizada, começou a produzir filmes de fantasia,
terror e ficção científica. No início, praticamente tudo que era produzido, era filmado em
plano geral ou primeiro plano (do peito para cima). O filme Le Baiser der May Irvin et John
C. Rice (O beijo de May Irvin e John C. Rice, Edison, 1896 – figura 05) além de ser um bom

22
“O cinema mudo foi frequentemente apresentado como um símbolo de modernidade porque foi considerado
como uma linguagem universal.” (livre tradução da autora)
47

exemplo de primeiro plano (não foi o primeiro da história do cinema), obteve grande êxito e,
como disse Sadoul “o seu erotismo ingênuo anunciava a conclusão de mil outros filmes com
um final feliz” (SADOUL, 1963, p. 19).

Figura 5 – cenas do cotidiano – marca registrada no futuro


Fonte: (frame de O beijo de May Irvin e John C. Rice, Edison, 1896 - recorte da autora)

Voltando ao caráter documentário dos primeiros filmes, vale lembrar uma das
primeiras produções de Edwin Porter, filmado em Nova York, em 1901, What happened on
Twenty-Third Street (figura 6), cuja cena mostra uma mulher que passa por um túnel de vento
e tem sua saia levantada pelo ar que sai de uma tubulação de ventilação do metrô. A cena em
si não precisava de explicação – uma das características dessas primeiras produções –, bastava
apenas ver para entender o que ela estava dizendo – o cinema de atrações de Gunning.
Embora a cena dure apenas alguns segundos foi eternizada em 1955 por Marilyn Monroe no
filme O pecado mora ao lado (The seven year itch – Figura 7), releitura que Billy Wilder fez
do filme de Porter.
Ainda sobre a primeira exibição pública de cinema, A chegada do trem à estação
(figura 03), Sadoul explica que todas as tomadas usadas naquela filmagem são atualmente
empregadas no cinema, desde o plano geral, mostrando o trem surgindo no horizonte até o
primeiro plano, com o trem já bem próximo. Como a câmera ainda não se deslocava, os
objetos e personagens é que se aproximavam ou se afastavam dela continuamente. “E essa
perpétua variação do ponto de vista permite obter do filme toda uma série de imagens tão
diferentes quanto os planos sucessivos de uma montagem moderna” (SADOUL, 1963, p. 22).
48

Já nessa primeira produção podemos notar a profundidade de campo, mostrada em toda a


extensão fotografada pela câmera; assim, podemos ver a estação vazia; depois um ponto preto
que se transforma no trem e que aumenta rapidamente de tamanho à medida que se aproxima
do público; pessoas descendo e subindo no trem e, até mesmo detalhes das feições das
pessoas que passam em frente à câmera.

Figura 6 – cenas do cotidiano – Figura 7 – referência clássica -


cinema de mostração cinema de atração na década de 1950
Fonte: (frame de What happened on Third Fonte: (frame de O pecado mora ao lado,
Street, Edwin Porter, 1901- recorte da autora) Billy Wilder, 1955 - recorte da autora)

Não demorou muito e começaram a ser produzidos filmes sobre viagens, comédia,
ação, guerra, perseguição, faroeste e animação, entre outros gêneros. Para se ter uma ideia da
produção no início do século XX, Costa afirma que a maioria dos filmes de ficção era
composta de comédias e “em 1903 elas representavam 30% dos filmes norte-americanos”
(COSTA, 2010, p. 48). Trata-se do gênero mais complexo do Primeiro Cinema e abrangia
desde o ‘cinema de atrações’ com piadas encenadas, assim como os besmirching films –
definidos por Gunning, como aqueles onde as pessoas acabavam molhadas e sujas, até filmes
mais elaborados, como os de perseguição, que muitas vezes eram mal entendidos e exigiam
uma maior contextualização com múltiplos cenários, mais e diversos enquadramentos, um
pouco de edição e, sobretudo, uma boa noção espaçio-temporal para desenvolver com
coerência a ação durante o filme.
Até 1910, quase todos os gêneros que reconhecemos hoje já tinham se estabelecido,
embora alguns de forma primitiva. Pode-se dizer que, até 1914 os principais
desenvolvimentos técnicos já haviam sido inventados.
Costa (2010, p. 48) esclarece que o gênero aparentemente dominante (em número de
filmes feitos) até 1903 era o da narrativa de um plano só. Mas, entre 1903 e 1906, o cinema
teve muitas produções de filmes de perseguição, as primeiras formas de narrativas. Esses
49

filmes, como explica Costa, compunham-se de um quadro inicial, em que acontecia uma ação
que gerava algum tipo de perseguição e, de quadros subsequentes nos quais a perseguição se
desenrolava e terminava. Eram portanto produções mais longas e que começavam a explorar o
universo ‘além dos estúdios’.
A autora continua, afirmando que “ao contrário do que se pode pensar quando se toma
o cinema narrativo clássico como referência, os movimentos de câmera e o uso da
profundidade de campo estão presentes desde o início do cinema.” (COSTA, 2008, p. 155)
Assim como também vários outros recursos/dispositivos: panorâmicas, travellings, elipses,
fusões, closes, tomadas subjetivas – com função mais espetacular do que narrativa –, já
estavam presentes no Primeiro Cinema.
O mesmo pode-se dizer a respeito das principais técnicas cinematográficas: os
cineastas não levaram muito tempo para descobrir os variados truques de câmeras. Entre 1903
e 1918, muitas técnicas que ajudaram a contar a história do cinema se estabeleceram: edição
de continuidade, câmera lenta, imagem acelerada, quadros congelados, montagem paralela,
iluminação expressiva e, a atuação mais sutil, edição de campo/contracampo.
Responsável por reunir todas as inovações do cinema desde suas primeiras exibições,
David C. Griffith23 foi o primeiro a usar essas inovações de maneira sistematizada. Nascia
então a decupagem clássica – principal característica do cinema norte-americano –, assim
entendida como um conjunto de procedimentos que têm por objetivo diminuir, ou até mesmo
eliminar, a descontinuidade na produção de um filme. A descontinuidade podia ser
‘mascarada’ através da montagem, quando era possível eliminar cenas que não ‘deram certo’,
unir e organizar as cenas em sequência. A decupagem veio garantir que a ação transcorresse
sem interrupções, permitindo uma narrativa mais suave e próxima do natural.
Xavier (2012, p. 70) comenta que Griffith é conhecido como o cineasta que instituiu o
sistema de representação que reinou por cerca de 40 anos. “Do ponto de vista da linguagem,
ele é sem dúvida um dos maiores arquitetos do ‘específico fílmico’ (montagem, close up),
ironicamente na medida em que propôs a emular o teatro” (XAVIER, 2012, p. 70). Foi o
cineasta russo Lev Kulechov, nos anos de 1920, o primeiro a aprofundar estudos sobre o
23
Entre 1908 e 1913, Griffith dirigiu aproximadamente 450 filmes, a maioria de apenas um rolo, além de
supervisionar a produção de centenas de outros. Mais que quantidade, seus filmes já demonstravam o domínio
do que seria, mais tarde, conhecido como linguagem cinematográfica, com mudanças nos ângulos das câmeras,
ações paralelas, edição, closes e outros recursos, que se não foram inventados por ele, tiveram Griffith como
realizador. É considerado o pai de Hollywood. Griffith foi também um dos pioneiros na ideia de aproveitar o sol
da Califórnia, não interrompendo as gravações durante o inverno da costa leste. “Foi um dos responsáveis diretos
pela criação e mitificação de Hollywood.” (SABADIN, 2000, p. 86)
50

cinema norte-americano, estabelecendo, então, um dos conceitos mais consagrados da teoria


cinematográfica: o específico fílmico é a montagem. Entretanto, foi seu discípulo, Pudovkin,
quem elaborou um esquema lógico simples, mostrando como funcionava o cinema clássico,
com suas regras de coerência espacial. Xavier explica que Pudovkin via a montagem como a
‘organização do olhar’ pela qual o cineasta “assimila o comportamento da câmera ao de um
observador privilegiado, capaz de escolher seus pontos de vista com poderes inacessíveis ao
ser humano em condições reais” (XAVIER, 1983, p.21).
Eisenstein afirma que a montagem é um componente tão indispensável da produção
cinematográfica quanto qualquer outro elemento eficaz no cinema. E continua: “a própria
natureza da montagem funciona como um dos recursos mais coerentes e práticos para a
narração naturalística do conteúdo de um filme” (EISENSTEIN, 2002, p. 18). É claro que
todas essas evoluções em termos de decupagem não surgiram da noite para o dia, foram frutos
de acúmulos de experiências em diferentes e diversos filmes do início do século XX, como
atesta Ismail Xavier:

O que caracteriza a decupagem clássica é seu caráter de sistema


cuidadosamente elaborado, de repertório lentamente sedimentado na
evolução histórica, de modo a resultar num aparato de procedimentos
precisamente adotados para extrair o máximo de efeitos da montagem e ao
mesmo tempo torná-la invisível. (XAVIER, 2012, p. 32)

Como previsto, a chegada do som sincrônico traria uma reviravolta na história do


cinema. Só não podemos esquecer que as primeiras experiências com som foram iniciadas na
‘era muda’. Outro avanço tecnológico, além do som, foi a cor. Nos primeiros anos do cinema,
era usado um processo de pintura manual, onde as imagens dos filmes tinham que ser pintadas
uma a uma, processo esse bastante caro e trabalhoso que, portanto, foi logo abandonado.
Percebendo o potencial criativo da nova técnica da cor, o cinema usou de todos os
expedientes oferecidos pelas demais artes, como fotografia e teatro, para inovar para além do
processo de pintura sobre a película; tentava-se de tudo para conseguir ‘filmes coloridos’.
Outro processo usado naquela época foi o ‘kinemacolor’, que utilizava duas cores
(verde e vermelho) na gravação e projeção de imagens. Um equipamento com essa finalidade
foi desenvolvido pelo inglês George Albert Smith, em 1906. Em seguida, a Tecnicolor
Motion Picture Corporation lança o tecnicolor, em 1915, processo que usava dois negativos
coloridos (também o verde e o vermelho) colados ou impressos juntos para filmar. Tal
processo foi usado até final da década de 50.
51

Embora tivessem sido produzidos filmes como Annabelle Butterfly Dance (1895),
Serpentine Dance (1896), filmes que se enquadram na categoria de ‘cinema de atrações’ de
Gunning, também foram produzidos filmes como The Corbett-Fitzsimmons Fight, 1897
(figura 08) que mostrava uma luta de boxe que aconteceu em Nevada, Estados Unidos,
gravada por Enoch Rector no formato de widescreen, que demoraria ainda cerca de cinco
décadas para se tornar popular. Para realizar essa filmagem, Rector inventou uma câmera
específica para rodar um filme de 63 mm de largura. Note-se que, na época, a maioria dos
filmes tinha 35 mm. Como havia pouca edição, a filmagem foi realizada com câmera parada
(característica do Primeiro Cinema), portanto bastante diferente da luta mostrada por Martin
Scorsese em “Touro Indomável” (1980) quando a luta pode ser vista por vários ângulos.

Figura 8 – um dos primeiros filmes em widescreen


Fonte: (frame de The Corbett-Fitzsimmons Fight, de Enrico Rector, 1897- recorte da autora)

O intervalo de tempo que vai das primeiras projeções até a consolidação do cinema
como forma narrativa autossuficiente é, de acordo com Costa (2008, p. 31), bastante pequeno,
mas crucial e engloba um conjunto de rápidas e importantes transformações que determinam a
maneira de se fazer e consumir filmes. De acordo com a autora:

O primeiro cinema é sobretudo um processo de transformação –


transformação que é visível na evolução técnica dos aparelhos e na
qualidade das películas, na rápida transição de uma atividade artesanal e
quase circense para uma estrutura industrial de produção e consumo, na
incorporação de parcelas crescentes do público. E, paralelamente, o
primeiro cinema inclui também as transformações formais na linguagem
que este contexto propicia. (COSTA, 2005, p. 35-36)

O francês Alexandre Promio, cinegrafista dos irmãos Lumière, descobriu, por acaso, o
que viria a ser uma importante ferramenta para os cineastas, a ‘dolly’ ou travelling, uma
52

espécie de plataforma sobre rodas em que a câmera é montada para que possa se mover
suavemente. Essa novidade foi usada mais tarde na produção de Cabiria (Giovanni Pastrone,
Itália, 1913) e Intolerância (Griffith, Estados Unidos, 1916). A descoberta aconteceu
enquanto Promio trabalhava, filmando a cidade de Veneza, e teve a ideia de fazer uma tomada
enquanto navegava de gôndola. O resultado foi surpreendente para a época: a câmera,
colocada dentro de uma gôndola em movimento, registrou imagens inéditas das ruas, ‘se
movimentando’ diante das lentes. Barry Salt (1994, p. 32) explica que, as primeiras câmeras
eram presas diretamente a um rudimentar tripé ou de outra sustentação qualquer e que, a
descoberta de Promio contribuiu, do ponto de vista técnico, para o desenvolvimento do tripé e
dos suportes para viabilizar os movimentos de câmera.
Começam assim a surgir as narrativas nas obras do ilusionista Georges Méliès e
também nas produções de Edwin Porter, o primeiro a realizar uma obra com narrativa linear,
em 1903.
O fotógrafo George Albert Smith foi uma peça importante nos primeiros anos do
cinema. Ele cobriu parte de um de seus cenários com veludo preto e fez a filmagem de um
plano. Rebobinou o filme e tornou a expô-lo, incluindo a imagem de um fantasma que parecia
flutuar pelo cenário original. Foi também um dos primeiros a filmar uma ação e projetá-la em
reverso, movimento esse que ficou conhecido como phantom ride (movimento fantasma) –
cuja experiência visual era obtida colocando a câmera em frente de um trem em movimento,
dando a impressão de se estar flutuando no ar. Dois filmes contemporâneos tornaram famoso
o recurso do phantom ride: Shoah (1985) e Titanic (1997).
Smith também foi um dos pioneiros a usar o close-up em Grandma’s Reading Glass
(1900) que mostra um neto usando os óculos da avó para explorar o ambiente ao seu redor. Os
primeiros close-ups do cinema mostravam os personagens dos filmes observando algo através
de buracos de fechaduras ou lentes (figura 9), mas em 1901, no filme The Little Doctor
(figura 10), regravado dois anos mais tarde como The Sick Kitten, o close up (figura 11) foi
usado com outra função: a de mostrar ao público um elemento da história com mais detalhes.
O close-up, segundo Balázs, não só ampliou como também aprofundou nossa visão da vida.
“Na época do cinema mudo, o close-up não apenas revelou coisas novas, como também nos
devolveu o significado das velhas” (BALÁZS, 1983, p. 90). Nas narrativas contemporâneas o
close-up já está incorporado no nosso repertório e até mesmo as crianças sabem que o detalhe
mostrado será importante para o curso da ação, logo adiante.
53

Figura 9 – primeiros close-ups no cinema - voyer


Fonte: (frame de Grandma’s Reading Glass, 1900 - recorte da autora)

Figura 10– sem identificação das expressões faciais Figura 11– recorte plano geral para close do gato
Fonte: (frame de The Little Doctor - recorte da autora) Fonte: (frame de The sick kitten - recorte da autora)

O jovem americano Edwin Porter estreou no cinema em 1896 mas, já em 1903,


realizou dois filmes que os historiadores do cinema consideram decisivos para a evolução da
linguagem cinematográfica: The Life of an American Fireman (A vida de um bombeiro
americano) e The Great Train Robbery (O grande roubo de trem), sendo este último
considerado o primeiro filme americano a ter uma narrativa e o primeiro faroeste da história
do cinema.
54

Figura 12 e 13– The great train robbery (1903) referenciado em Goodfellas (1990)
Fonte figura 12: (frame de The great train robbery - recorte da autora)
Fonte figura 13: (frame de Goodfellas - recorte da autora)

As técnicas de filmagem usadas por Porter – tomadas de cenas fora dos estúdios,
movimentos de câmera, montagem paralela e o formato faroeste (‘Far West na concepção de
Sadoul) –, em The Great Train Robbery, de certa maneira, inauguraram o cinema moderno.
Com seus 11 minutos de duração e 14 sequências de um plano só, o filme possui a narrativa
com ritmo e suspense, uma prévia do que seria mais tarde denominado ‘narrativa clássica’,
com enredo com início, meio e fim, guardando ainda, no final (figura 12), a cumplicidade do
público, que é apanhado de surpresa ao ser ‘descoberto’ como testemunha de toda a ação. Em
1990, Martin Scorsese, diretor de Os bons companheiros (Goodfellas), faz referência a essa
mesma cena (figura 13), como explica Cousins:

[...] Tommy (Joe Pesci), que aponta uma arma diretamente para a câmera e
atira. Bum. Fim. Essa foi uma referência direta a O grande roubo de trem
(1903), em que um pistoleiro (Georges Barnes) é enquadrado em cabeça e
ombros, centralizado, e atira em direção à câmera. Pesci foi filmado
exatamente da mesma maneira. (COUSINS, 2013, p.449)

Outra novidade nessa produção, e que talvez tenha causado estranhamento no público
da época, foi o corte do plano da narrativa, na altura do joelho dos personagens, que mais
tarde ficou conhecido como ‘plano americano’. Tal estranhamento deve ter sido semelhante
ao que as imagens da ‘chegada do trem à estação’ causaram no público na primeira exibição
pública de cinema. Nessa produção, Porter começou a se preocupar em tornar mais visíveis e
legíveis as fisionomias dos personagens de seus filmes, uma vez que nos planos gerais, o
55

espectador, muitas vezes, não conseguia distinguir os protagonistas dos bandidos,


principalmente quando ambos corriam em seus cavalos, nas cenas externas. Cousins conta
como Porter resolveu essa questão:

Para remediar esse problema, ele ‘retratou’ um dos bandidos num


enquadramento bastante próximo, a fim de permitir à audiência ‘conhecê-
lo’: esse seria um dos exemplos mais remotos de ‘primeiro plano’ aplicados
à estrutura narrativa e de rompimento com o quadro aberto inspirado no
proscênio teatral. (COUSINS, 2013, p. 91)

Costa (2008) conta que Jean Mitry considera The Great Train Robbery como sendo a
primeira história contada em termos cinematográficos: “Ele ensinou a todos os iniciantes de
então o que era um filme e como um filme deveria ser feito. Foi modelo, o filme-tipo e assim
permaneceu até que Griffith desenvolvesse os princípios da montagem, dos quais ele [Porter]
foi a expressão inicial”. (MITRY apud COSTA, 2008, p. 77, inserção nossa)
Já para realizar Life of an American Fireman (A vida de um bombeiro americano)
Porter utiliza uma narrativa contínua e montagem paralela, a qual leva o espectador a
começar a perceber que o cinema estava aprendendo a seguir o fluxo da ação de um espaço
para o outro, o que mais tarde possibilitou filmagens com sequências de perseguições.
Por meio de imaginação, inovações, experimentações, tentativas e erros, o cinema
estava sendo descoberto e ampliado por curiosos, dispostos a correr riscos, e isso torna essa
primeira fase do cinema tão importante. Costa define como marco do fim do Primeiro Cinema
o instante em que começa a se generalizar uma nova forma de percepção: “no momento em
que ela começa a se materializar em linguagem codificada e massificada” (COSTA, 2010, p.
59). Assim, continua, o filme como produto industrializado de massa, só pode se generalizar
depois de um período de aculturação, quando a compreensão uniforme das imagens se tornou
prioridade e o cinema deixou de ser atividade marginal e passou a ser uma atração exclusiva.

2.1. MÉLIÈS: PIONEIRO E VISIONÁRIO

Marie-George-Jean-Méliès nasceu em 8 de dezembro de 1861, em Paris, um artista


multimídia por definição: caricaturista, prestidigitador e ilusionista. Na sua carreira como
mágico, a qual se torna praticamente inseparável da carreira de cineasta, Méliès tinha como
inspiradores Robert Houdin, John Nevil Maskelyne, David Devant (ou Bualtier de Kolta) e
Georges Feydeau.
56

Desde criança manifestou vocação pelas artes, principalmente pelo desenho e mágica.
Em 1884, então com 21 anos, tornou-se mágico amador e em 1886 comprou o Teatro Robert-
Houdin, onde apresentava números de magia como se fossem apresentações de teatro. Méliès
dava grande importância ao espaço cênico, tanto que construía cenários que contextualizavam
as mais diversas situações, explorando toda a ‘mise-en-scène’ de suas apresentações.
É claro que a grande novidade do final do século XIX não poderia lhe passar
despercebida e Méliès participou da primeira sessão dos irmãos Lumière em Paris, em 28 de
dezembro de 1895 (figura 3). Encantado com as possibilidades técnicas e artísticas do novo
invento – o cinematógrafo –, adquire um aparelho e logo começa a produzir seus próprios
filmes. A filmografia de Méliès inclui 555 filmes, sendo que em mais de 300 deles trabalhou
como ator também. A fase de maior produção fílmica de Méliès acontece entre 1902 e 1913.
Embora seja considerado um visionário e inovador, Sadoul conta que:

[...] nada é original nos oitenta primeiros filmes que Méliès realiza em 1896,
nem mesmo os números de prestidigitação, em filmes sem trucagens: antes
dele, Lumière filmara o ilusionista Tewey, e Démeny filmara o
prestidigitador Reynaly. (SADOUL, 1983, p. 28)

Atualmente menos de quinze por cento de sua obra está conservada, cerca de 80
filmes. Muitos dos seus filmes foram destruídos pelo próprio Méliès em um ataque de fúria.
Méliès ajudou a construir as bases para a narrativa cinematográfica ficcional mágica e
onírica, transformando o cinema, que no seu início era apenas uma curiosidade científica e um
aparato de mero registro factual, em um meio de criação pura, autoral. Convém relembrar que
cinematógrafo foi criado com intuito técnico e científico; assim, os primeiros filmes foram
puramente documentais. A câmera tinha função de captar a imagem, gravá-la numa película
para ser exibida posteriormente. Méliès explorou todas as possibilidades do cinematógrafo
subvertendo as funções para a qual foi criado.
Ele utilizava uma espécie de roteiro com desenhos de produções e storyboards para
projetar cenas de seus filmes; cuidava pessoalmente dos detalhes da sua cenografia e construía
máquinas para realizar os truques que possibilitariam produzir filmes com mágicas
cinematográficas, além de participar ativamente na construção e pintura dos sets de filmagem
e ensaio dos atores. Assim, tornou-se o primeiro diretor da história do cinema. Sadoul (1983,
p. 29) conta que Méliès foi também “o primeiro a adaptar ao cinema as maquetes (já em uso
nos teatros ou circos), e as filmagens através de um aquário.”
57

Ao fixar a câmera frente ao palco do seu estúdio, Méliès limitava o ponto de vista de
seus espectadores a uma determinada área, tal como numa pintura ou fotografia. Desse modo
substituía o olhar presente desse público pelo olhar da câmera, permitindo-se assim recorrer
às paradas e cortes que ela proporcionava. É nesse plano fixo que Méliès recorre a cenários
que fazem alusão a uma estética teatral, ao que Xavier chamava de teatro filmado. No cinema
de Méliès, a autonomia do plano valoriza a performance como atração, como afirmava
Gunning. Com o plano fixo, as ilusões e efeitos criados por ele ficavam mais visíveis e
‘acreditáveis’. Para montar seus cenários, Méliès se preocupava com a representação da
terceira dimensão numa tela fixa para que o espectador tivesse a ilusão de profundidade de
campo.
Embora Méliès seja considerado o criador dos efeitos especiais, sua primeira produção
cinematográfica foi um documentário – Une partie de cartes (Um jogo de cartas, 1896). A
partir de então começou a usar o cinema para criar mundos imaginários, de fantasia,
transformando a fotografia animada em um meio de expressão artística. Méliès sem dúvida
soube explorar a linguagem cinematográfica, a partir do instante que descobriu como
manipular as imagens em movimento, estabelecendo um diálogo com o espectador. O crítico
de cinema Amir Labaki, quando se refere à Méliès, diz que provavelmente ele não foi o
primeiro a fazer truques com a câmera e muito menos o único a apostar na relação cinema-
magia: “mas foi o mais marcante e original” (LABAKI, 1996, p. 369).
Já em 1897, Méliès descobre que as trucagens usadas em suas exibições públicas
poderiam e seriam usadas com maestria no cinema. Nesse mesmo ano, construiu seu primeiro
estúdio, a Star Film (figura 14), um barracão todo de vidro, numa tentativa de controlar a
iluminação de suas produções e colocar em prática uma série de truques que vinha praticando
no teatro e, que agora, iria usar no cinema. O ator e diretor Charles Chaplin o chamava de ‘o
alquimista da luz’. Graças a sua perspicácia, percebeu que o cinema era local ideal para a
magia e, que muitas das ilusões e truques praticados no cinema, jamais poderiam ser
reproduzidos num palco.
58

Figura 14– Star Film, pensado para Figura 15– detalhe para os sketchers
aproveitar, ao máximo, a luz natural desenhados pelo próprio Méliès
Fonte: (Google imagens – recorte da autora)24 Fonte: (Google imagens – recorte da autora)25

Méliès adaptou seu estúdio com tudo que havia de mais moderno na época, equipado
com uma série de funcionalidades como cenários, que poderiam facilmente ser movidos e
transportados de lugar, camarins para seus atores, inclusive com câmeras no teto, filmando o
chão como se fosse uma parede vertical. Junto com o estúdio, foi criada a primeira empresa
cinematográfica da Europa, com o mesmo nome, onde foram desenvolvidos e aperfeiçoados
diferentes tipos de trucagens, permitindo aparições, desaparecimentos, sobreposições de
imagens, metamorfoses, transições por dissolução (fade-in e fade-out) e substituições em
movimentos, além da manipulação gráfica da imagem e utilização de ilusões de ótica. Foi
considerado o criador do stop-motion26, técnica de animação quadro a quadro, que permite
criar a ilusão de movimento de objetos inanimados.
As experimentações continuavam a acontecer em todo o mundo. Assim foram
descobertos os planos – trecho de ação visualmente registrada –, depois foram introduzidos os
cortes – o que estamos vendo desaparece e de repente é substituído por algo diferente –.
Toulet (1988, p. 61) conta que Méliès viveu essa experiência quando estava filmando em
Paris e sua câmera parou e voltou a funcionar logo depois. Quando ele viu o resultado da
‘pane’ de sua câmera, percebeu que como nenhum filme havia sido exposto durante a
interrupção da gravação, os bondes apareceram mais para frente e algumas pessoas sumiram.

24
<http://www.weirdwildrealm.com/f-melies6.html>
25
<http://gmelies.blogspot.com.br/2009/10/teste.html>
26
Processo que consiste em filmar apenas um quadro, depois move-se o objeto em questão, fotografar-se
novamente, e assim sucessivamente, dando a ilusão de movimento. Esta técnica usa o mesmo princípio da
animação tradicional, a única diferença é que em vez de se desenhar cada quadro, no cinema digital temos
objetos tridimensionais que são fotografados e movidos quadro a quadro.
59

Um bloqueio do aparelho de que me servia no início (aparelho rudimentar,


no qual a película se estragava ou ficava presa com frequência e recusava
avançar) produziu um efeito inesperado, um dia em que fotografava
prosaicamente a praça da Ópera: foi necessário um minuto para desbloquear
a película e por o aparelho em funcionamento. Durante esse minuto, os
peões, autocarros, carros tinham mudado de lugar, evidentemente. Ao
projectar o filme, colado no ponto onde tinha acontecido a ruptura, vi
subitamente um autocarro Madeleine-Bastille transformado em carro
funerário e homens transformados em mulheres. O truque por substituição,
dito truque por paragem, estava encontrado, e dois dias mais tarde eu
executava as primeiras metamorfoses de homem para mulher e os primeiros
desaparecimentos súbitos que tiveram, no início, um muito grande sucesso 27.
(Méliès apud SADOUL, 1985, p. 214)

Essa descoberta pode ser vista mais tarde no filme Escamotage d’une dame chez
Robert-Houdin (A dama desaparecida, 1896), quando “não são necessários nem alçapões nem
armaduras, nem fios invisíveis, nem jornal de borracha, basta parar a manivela enquanto a
senhora sai [...]. Um esqueleto substitui a mulher na cadeira... nova parada... a mulher
reaparece.” (TOULET, 1988, p. 62). Toulet refere-se à recriação do famoso truque de magia
de Bualtier de Kolta, que Méliès adaptou para o cinema, onde uma mulher desaparecia
misteriosamente. A atriz era Jeanane d’Alcy, que trabalhava no teatro, e cuja transferência
para o cinema foi inevitável, tornando-se a atriz principal de grande parte dos filmes de
Méliès. Pouco depois de estrear no cinema ela e Méliès se casaram.
O filme mostra uma dama se preparando para sentar em uma cadeira (figura 16) e em
seguida sendo coberta por um lençol. Em seguida Méliès imobiliza (congela) a imagem e o
operador da câmera para de filmar (figura 17). A dama sai debaixo do lençol, mesmo assim é
possível observar um pedaço do vestido deixado descoberto acidentalmente por Méliès. A
câmera recomeça a filmar. A dama desaparece (figura 18), surgindo segundos depois (figura
19). Esse truque aparentemente simples serviu para libertar o cinema do tempo real e
promoveu uma ruptura na narrativa na medida em que produziu, no espectador, um efeito de
surpresa, de mistério, lembrando mais uma vez que praticamente todas as produções dos
primeiros anos do cinema são realizadas com câmera parada. Note ainda que, a maioria das
produções de Méliès traduz o que Xavier chamava de teatro filmado onde a ‘encenação’ tinha
seu espaço delimitado para acontecer: o cinema se apoderou do ponto de vista do espectador

27
Excerto de um texto escrito por Méliès provavelmente durante o Verão de 1906, publicado no mesmo ano ou
no início do ano seguinte no Annuaire Général et International de la Photographie, citado por Georges Sadoul
(1985) em Lumière et Méliès.
60

de teatro para apresentar um espetáculo que se inicia e termina de forma bastante rápida. É
também o que Gunning denomina de ‘cinema das atrações’, onde o importante era chamar e
prender a atenção da plateia. Assim podemos dizer que esse Primeiro Cinema é sincrético, na
medida em que funde elementos culturais diferentes, misturando ficção e realidade.

Figuras 16 a 19 – adaptação para cinema da peça de Bualtier de Kolta


Fonte: (frame de A dama desparecida, 1896 - recorte da autora)

Outra característica do Primeiro Cinema, bastante presente nos trabalhos de Méliès, é


o constante olhar do(s) ator(es) diretamente para a câmera. Não se trata de um ‘erro’, mas sim
da necessidade de manter esse contato visual com o público ao longo do filme de modo a
assegurar sua atenção em uma nova forma de entretenimento em plena expansão, uma vez que
cinema era apenas um tipo de espetáculo, entre tantos outros disponíveis nas feiras do início
do século XX.
A partir desse filme (A dama desaparecida, 1896), estava descoberto o truque por
substituição e, desde então, Méliès começou a produzir filmes de metamorfoses (obtidas por
sobreposição brusca de cenários), de múltiplas aparições e desaparições, cabeças cortadas,
desdobramentos de personagens ao ponto de conseguir colocar em um mesmo cenário dez
61

‘clones’ contracenando com ele e os desaparecimentos súbitos que tanto encantaram o público
da época.

Figura 20– primeiro filme adulto do cinema Figura 21– filme de cunho religioso
Fonte: (frame de After de Ball - recorte da autora) Fonte: (frame de A tentação de Santo Antonio –
recorte da autora)

A sobreposição de imagens é um dos efeitos especiais mais antigos do cinema. Méliès


já utilizava a sobreposição em seus filmes a partir de 1898. Em Un homme de têtes (1898) ele
multiplica sua cabeça e produz um coral com elas. A sobreposição de imagens feitas em um
plano frontal e de extremo plongée28 dá a impressão que as cabeças de Méliès (além de
diretor, ele era o ator do filme) estão realmente se equilibrando no ar. Antes dele, a
possibilidade de um personagem contracenar com uma cópia idêntica sua, só seria possível de
ser reproduzida com um irmão gêmeo.

Figura 22– duplicação e alteração de tamanho


Fonte: (frame de L’homme a téte em caoutchouc – recorte da autora)

28
Nome dado ao ângulo em que a câmera está com a lente voltada para o chão, como se estivesse vendo o objeto
sob o ponto de vista de uma pessoa mais alta.
62

Méliès criou um mundo de paisagens fantásticas com cenários teatrais gigantes,


manipulados de forma engenhosa, onde usava efeitos especiais misturando trucagens visuais e
técnicas de animação. As mudanças de dimensão, associadas à humanização de animais, são
outras características de seus filmes. No filme Évocation spirite, de 1899, um sapo
humanizado surge com uma dimensão maior que o normal. Em Voyage de Gulliver à Lilliput
et chez les géants, de 1902, o diretor trabalha durante todo filme a alteração de escala do
personagem Gulliver. Em La chrysalide et le papillon d’or, de 1900-1901, surge uma lagarta
gigante e uma mulher com asas de borboleta (figura 81), e, em Conte de la grand-mére et rêve
de l’enfan”, de 1908, recria um universo infantil através dos brinquedos que ganham vida.
Realizou o primeiro filme religioso Le tentation de Saint-Antoine, 1898, (figura 21), além de
filmes sobre Jesus Cristo e também históricos como Jeanne d’ Arc. Ainda em 1902, Méliès
se antecipa em 50 anos aos chamados filmes “B” norte-americanos, realizando L’Homme-
Mouche, onde um homem comum se transforma em mosca.
Em 1901, ele já havia lançado L’homme a téte em caoutchouc (figura 22), onde
bombeia um fole expandindo sua própria cabeça que repousa sobre uma mesa – no filme
podemos observar sua expressão de surpresa ao ter sua cabeça inflada. A duplicação de um
personagem era realizada através de um recurso simples, mas bem executado, de dupla
exposição consecutiva. Nela, a cena era filmada do início até o fim, com uma área da imagem
não sendo exposta (provavelmente com o uso de uma máscara em frente à lente). No caso
deste filme, tinha uma parede escura atrás da cabeça que seria inflada. O filme era rebobinado
e exposto novamente, desta vez, expondo apenas a parte que havia sido bloqueada antes. A
soma das duas exposições proporcionaria uma imagem única para quem o estava assistindo.
Também não podemos esquecer After de Ball (figura 20), de 1897, talvez o primeiro
filme adulto do cinema, que mostrava uma mulher tomando banho. Para Gaudreault,

Méliès did not just introduce the theater into the cinema, he also, and quite
effectively, introduced the cinematograph into the theater, if only into the
Robert Houdin theater! And this inversion of things makes all the difference.
Because the arrival of the cinematograph in Méliès world extended a firmly
established practice29. (GAUDREAULT, 2006. p. 91)

29
“Méliès não apenas introduziu o teatro para o cinema, como também, e de forma bastante eficaz, apresentou o
cinematógrafo para o teatro, mesmo que apenas para o teatro Robert Houdin! E essa inversão das coisas fez toda
a diferença. Porque a chegada do cinematógrafo ao mundo de Méliès estendeu uma prática firmemente
estabelecida.” (livre tradução da autora)
63

Gaudreault diz ainda que Jacques Deslandes entendeu perfeitamente isso quando
escreveu “Méliès was not a pioneer of the cinema, he was the last man to work in fairy
theater30” (DESLANDES apud GAUDREAULT, 2006. p. 91).
Machado (2011) conta que nas obras de Méliès podemos identificar, entre as formas
pré e pós-cinematográficas, traços de continuidade ou de coincidência. O caso mais gritante,
segundo ele é que:

[...] a obra de Georges Méliès, que antecipa em quase 100 anos o uso de
inserções de imagens no quadro, a permanente metamorfose das figuras e
toda a iconografia híbrida e múltipla que hoje celebramos nos filmes e
vídeos de autores absolutamente contemporâneos como Nam June Paik,
Zbigniew Rybczynski e Peter Greenaway. (MACHADO, 2011, p. 10)

O cinema das atrações praticado por Méliès era, de certa maneira usado, em sua
maioria, como uma técnica meramente auxiliar, para incrementar as atrações das feiras,
bastante comuns no início do século. O termo ‘cinema das atrações’ – the cinema of
attractions31 - foi criado por Gunning (2006, p. 382) para retratar a habilidade do cinema de
mostrar alguma coisa. Ele próprio conta que, tomou emprestado de Eisenstein o termo
‘atração’ que propunha um tipo de cinema baseado na ‘montagem das atrações’ e sua
tentativa de encontrar um novo modelo ou modo de análise para o teatro.

Nor should we ever forget that in the earliest years of exhibition the cinema
itself was an attraction. Early audiences went to exhibitions to see machines
demonstrated (the newest technological wonder, following in the wake of
such widely exhibited machines and marvels as X-ray or, earlier, the
phonograph) rather than to view films32. (GUNNING, 2006, p. 282)

O autor continua resumindo o que seria o cinema das atrações: “The cinema of
attraction directly solicits spector attention, inciting visual curiosity and supplying pleasure

30
“Méliès não foi o pioneiro do cinema, ele foi o último homem a trabalhar em teatro de fadas” (livre tradução
da autora)
31
Expressões comumente encontradas em livros de língua estrangeira: ‘the cinema for early times’, ‘the first
cinema’, ‘le cinema des premiers temps’ e ‘le cinema des origines’.
32
“Também não devemos esquecer que, nos primeiros anos de exposição, o próprio cinema foi uma atração. Os
primeiros espectadores foram para exposições/feiras para ver as máquinas demonstrarem (a mais nova maravilha
tecnológica, seguindo na esteira de tais máquinas amplamente expostas e maravilhas como raios-X, ou, antes, o
fonógrafo), em vez de para ver filmes.” (livre tradução da autora)
64

through na exciting spectacle – a unique event, whether fictional or documentary, that is of


interest in itself33 (GUNNING, 2006, p. 384).
Retomando os ensinamentos de Xavier com relação à definição de teatro filmado,
ninguém melhor que Méliès conseguiu traduzir para o cinema essa espécie de estética do
teatro filmado, criando o espetáculo cinematográfico. Enquanto os irmãos Lumière se
preocupavam como cinema de mostração, Méliès foi o primeiro a direcionar o novo invento
rumo à fantasia e ao fantástico, transformando simples fotografias animadas em meio de
expressão artística, usando aquilo que ele dominava como ninguém: truques e efeitos
especiais. Metz lembra que:

Uma obra fantástica só é fantástica se convencer (senão é apenas ridícula) e


a eficácia do irrealismo no cinema provém do fato de que o irreal aparece
como atualizado e apresenta-se aos olhos com a aparência de um
acontecimento, e não como uma ilustração aceitável de um processo
extraordinário que tivesse simplesmente sido inventado. Os assuntos de
filme podem ser classificados em “realistas” e “irrealistas”, como queira,
mas o poder atualizador do veículo fílmico é comum aos dois “gêneros”,
garantindo ao primeiro sua força de familiaridade tão agradável à
afetividade, e ao segundo seu poder de desnorteio tão estimulante para a
imaginação. (METZ, 1972, p. 17-18)

Méliès prezava a autonomia visual do plano único, tanto que evitava ao máximo cortes
e interrupções em suas cenas artificialmente planejadas. Ele costumava usar de maneira
sistemática a montagem em planos múltiplos, que eram mantidos em regime de independência
uns dos outros. Isso quer dizer que em vez de recortar a ação dos personagens em partes inter-
relacionadas, Méliès se preocupava em apresentar uma mesma ação em sua totalidade,
mudando completamente o cenário a cada novo plano. Como trabalhava tendo em mente o
cinema como teatro filmado, o enquadramento da câmera era sempre do mesmo ponto de
vista e, o espaço da filmagem, era praticamente o espaço cênico. Assim, verificamos em suas
obras fílmicas, uma grande preocupação na organização da narrativa que se propunha a
realizar, deixando pouco ou nenhum espaço para a edição, tal como veio a ser conhecida a
partir da década de 1910.
Quando falamos em montagem, nos reportando a Méliès, estamos nos referindo à
escolha estética que ele realizava, quando procurava reproduzir para o espectador a

33
“O cinema de atração solicita diretamente a atenção do espectador, incitando a curiosidade visual e fornecendo
prazer através de um espetáculo emocionante - um evento único, seja de ficção ou documentário, que é de
interesse em si mesmo.” (livre tradução da autora)
65

experiência de estar diante de um palco de teatro. Além disso, ele planejava minuciosamente
todo o roteiro de filmagem, numa espécie de pré-montagem de imagens.
Surgem então os filmes de terror, como Le manoir du diable (A mansão do diabo,
1896) e as férries, os contos de fadas, como Cendrillon (Cinderela, 1899). Em Cinderela já
podemos verificar efeitos de montagem quando ela (a Cinderela), estando na cozinha, surge
em meio a um baile e depois vai para outro lugar, provavelmente a sala da casa onde morava.
É possível ainda ver fusões de imagens, múltiplas aparições e desaparições, sobreposição
brusca de cenários, animais se transformando em pessoas e outros truques. Sadoul explica
que, a transformação da abóbora em carruagem foi realizada sem o auxílio de um alçapão, por
meio do truque de substituição.

Figura 23– efeito de cortar/colar


Fonte: (frame de Le manoir du diable , 1896 – recorte da autora)

Em A mansão do diabo (figura 23), é o próprio Méliès quem interpreta o personagem


principal, o diabo, que atormenta um cavaleiro que entra na casa dele. Nesse curta-metragem
de apenas três minutos, Méliès demonstra sua arte de ‘cortar e colar’, criando a ilusão do
morcego sendo transformado em diabo durante todo o filme. Esse curta provavelmente abriu
precedente para um campo que ganharia muita força na década de 1920, quando o cinema
expressionista alicerçou o estilo horror com os clássicos O Gabinete do Dr. Caligari (1920) e
Nosferatu (1921), entre outros.
Contrariamente ao cinema dos irmãos Lumière, que tinha como objetivo mostrar o
cotidiano ao/no mundo, criando o filme documentário; Méliès, com sua câmera fixa colocada
em um cenário teatral, trouxe para o cinema os princípios da encenação teatral, criando o
cinema de atrações, de entretenimento.
66

Isso não quer dizer que Méliès não dava importância ao documentário; pelo contrário,
em 1898 ele produziu uma versão cinematográfica de um grave acidente marítimo,
L’Explosion du Cuirrassé ‘Maine’ em Rade de La Havane, cuja “atração maior era uma vista
submarina filmada através de um aquário onde nadavam peixes e flutuavam algas”
(SADOUL, 1983, p. 33). Nascia nessa produção, quase que por acaso, a ideia da
reconstituição, recurso amplamente difundido hoje nas produções cinematográficas e
televisivas, que contam com a tecnologia digital para sua produção.
Entretanto, a carreira de Méliès não foi só de sucessos. O declínio do seu cinema
começa quando, em 1908, Thomas Edison funda a MPPC – Motion Pictures Patentes
Company, formada pela Vitagraph, Essanay, Kalem, Selig, Lubin, Pathé, George Klein,
Biograph, incluindo a Star Film, cujo principal objetivo era monopolizar o cinema mundial.
Uma das obrigações contratuais entre Méliès e a MPPC, também conhecida como Truste, foi
o compromisso de produzir 68 filmes durante um ano, o que acabou fazendo com que Méliès
começasse a se repetir, desgastando sua fórmula de cinema fantástico. Mas foi o início da
Primeira Guerra Mundial, além das dívidas que acumulou, que fizeram com que Méliès
parasse definitivamente de produzir filmes, permanecendo no ostracismo por décadas. Quanto
à sua produção, muitos dos filmes foram queimados durante a Guerra pelo próprio exército
francês para transformar em matéria-prima e produzir, entre outras coisas, saltos para sapatos.

2.2. LE VOYAGE DANS LA LUNE

“O cinema não tem fronteiras nem limites.


É um fluxo constante de sonho.”
Orson Welles

Dos mais de 550 filmes produzidos por Méliès – acredita-se que apenas 80 foram
conservados. O mais conhecido e também talvez o mais imitado é Le Voyage dans La Lune
(Viagem à Lua)34, de 1902, um dos grandes ícones visuais do século XX, onde através de uma
sucessão de planos frenéticos realiza uma expedição à Lua. O filme, de apenas 14 minutos, é
o antecessor de Flash Gordon (1936), 2001: uma odisseia no espaço (1968) e Guerra nas

34
A corrida espacial foi vencida pelos americanos e Neil Armstrong foi o primeiro a pisar em solo lunar, em 20
de julho de 1969. Antes disso, em 1957, os soviéticos lançaram o Sputnik I, o primeiro veículo a deixar a
atmosfera terrestre, mas foi somente em 1961, que uma nave tripulada deixava a órbita da Terra. O soviético
Yuri Gagarin foi o pioneiro.
67

Estrelas (1977), entre outras produções do gênero. Com Viagem à Lua, Méliès começa a usar
definitivamente as técnicas de sobreposição, fusão e montagem em suas obras - as convenções
que influenciariam o gênero de filme de ficção científica35.
Como a ideia original da ficção científica era contar histórias baseadas em uma visão
de futuro possível, numa espécie de liberdade de imaginação, mas com os pés na realidade,
esse gênero, com o passar do tempo, passou a contar uma infinidade de histórias não tão
preocupadas com o embasamento científico para suas especulações. Assim a ficção científica
está até hoje, muitas vezes, muito mais próxima da fantasia do que da ciência.
Vale ressaltar que anteriormente a Méliès e ao advento do cinema, muitos escritores já
tinham se aventurado a escrever sobre uma possível viagem do homem à Lua, ajudando a
construir o imaginário coletivo sobre o assunto. Numa breve contextualização podemos citar
Cyrano de Bergerac que em 1657 escreveu Histoire comique des Estats et empires de la Lune
(História cômica dos Estados e Impérios da Lua) e Histoire comique des Estats et empires du
Soleil (História cômica dos Estados e Impérios do Sol), em 1662. Cerca de dois séculos mais
tarde o tema da viagem à Lua é recorrente na obra de outro francês, o escritor Jules Verne em
De la Terre a la Lune, em 1865, quando embarca três homens a bordo de uma cápsula em
direção à Lua. No livro de Verne os homens não desembarcam na Lua.
Importante notar que todas as projeções, ainda que imaginárias, tanto de Bergerac,
como de Verne e Méliès sobre o assunto, não tinham embasamento científico nenhum, muito
menos recursos técnicos e equipamentos que possibilitassem realizar tal expedição. Ou seja,
tanto as obras literárias como a cinematográfica basearam-se, essencialmente, na imaginação
criativa de seus idealizadores.
Ao realizar A Viagem à Lua, Méliès transformou a própria sala escura do cinema na
cápsula a bordo da qual transporta o público juntamente com seus astronautas em direção ao
espaço, cujas fronteiras espaciais e temporais seriam estabelecidas pela imaginação de cada
um. Imaginação essa que foi construída ao longo dos anos pela indústria do cinema e pelos
recursos tecnológicos disponíveis em cada época. Esses recursos, no tempo de Méliès, não
iam além da montagem de cenários em papelão, ou do uso de truques de ilusionismo, assim
como da câmera fixa filmando cenas mudas em preto e branco, mas permeadas de muita
imaginação e criatividade.

35
A ficção-científica é um gênero que tradicionalmente utiliza os aspectos visuais de forma a causar impacto e
seduzir o espectador. A denominação de ficção científica foi empregada pela primeira vez no campo literário, na
década de 1920, pelo americano Hugo Gernsback, editor da revista Amazing Stories. Essa terminologia (antes
era chamada de scientifiction e Science fiction) não era usada na época de Bergerac, Verne e Méliès.
68

Retomando o filme A viagem à Lua, as primeiras imagens indicam que tanto a


ambientação e instalação cenográfica foram inspiradas na obra de Jules Verne: o presidente
do Instituto de Astronomia (interpretado pelo próprio Méliès) apresenta aos colegas seu
projeto para a realização de uma viagem à Lua (figura 26). Depois de muita discussão, o
projeto é aprovado e quatro dos presentes, liderados por Méliès, começam a organização da
expedição.

Figura 24– o ‘quadro confuso’


Fonte: (frame de Le Voyage dans la Lune, 1902- recorte da autora)

Ainda com relação à figura 24, nela podemos observar o que Xavier (2012) e
Machado (2011) constumavam chamar de ‘quadro confuso’, caracterizado por quadros
autônomos com cenas (atos) que continham toda a encenação, filmados de maneira a abranger
toda a ação, no que costumamos chamar hoje de ‘plano geral’. No quadro confuso, as ações
aconteciam de forma simultânea, tornando o processo de legibilidade difícil, principalmente
para os espectadores acostumados com a linearidade típica da literatura da época. Sadoul
complementa explicando que os filmes de Méliès eram compostos de quadros, não de
sequências, e que cada quadro era um exato quadro de teatro, não comportando nunca uma
mudança de ponto vista. A câmera era fixa, com perspectiva frontal. Sadoul (1963, p. 31)
costumava chamar esse ponto de vista como o do ‘cavalheiro da plateia’, pois correspondia à
visão que o espectador tinha se estivesse sentado mais ou menos no centro de um teatro.
Como a câmera era fixa, a composição e movimentação da cena era realizada pelos atores,
que entravam e saiam pelas laterais. O ‘quadro confuso’ só deixa de existir no cinema a partir
do momento da domesticação da linguagem e da alfabetização do público.
69

Outro bom exemplo de ‘quadro confuso’ pode ser encontrado nas Paixões, encenações
da vida de Cristo, produzidas por meio de quadros, como no ritual da Via Sacra. Machado
explica que as Paixões resumem tudo aquilo que viria a se tornar marca do Primeiro Cinema.
O autor conta ainda que as Paixões seguiam o formato dos espetáculos de vaudevilles e que
não eram considerados como filmes, mas como um conjunto de filmes, onde cada quadro
poderia ser vendido separadamente sem uma ideia de unidade narrativa.

Figura 25– cena mais famosa do filme: Figura 26– inversão de perspectiva – agora
foguete no olho da Lua a Terra é observada da Lua
Fonte figuras 23 e 24: (frames de Le Voyage dans la Lune, 1902 - recorte da autora)

Talvez a cena mais marcante e emblemática do filme seja a que mostra um foguete no
olho da Lua (figura 25), principalmente na cena seguinte quando, pela primeira vez no
cinema, é invertida uma perpectiva familiar, ou seja, os astronautas que aterrissaram na Lua
observam a Terra (figura 26). Para direcionar o olhar do espectador para essa inversão, os
astronautas apontam na direção do planeta Terra e fazem uma reverência a ele, tirando seus
chapéus. Como já sabemos, na obra de Verne, os astronautas não chegam a aterrisar na Lua,
problema não enfrentado pela expedição de Méliès, que não encontra dificulade nenhuma em
se aproximar da Lua, cuja fisionomia (detalhe para close-up da face da Lua – figura 25)
expressa perplexidade com a chegada dos visitantes, que lhe entram pelo olho. A partir desse
momento, o filme assume seu lado fantástico, numa espécie de apresentação circense com
bailarinas suspenas em estrelas, cogumelos gigantes e os habitantes daquele mundo (figura
27). Sadoul (1983, p. 35) complementa afirmando que “o êxito de Voyage dans la Lune
assinalou a vitória da encenação sobre a realização lumeriana ‘ao ar livre’”.
70

Figura 27– os habitantes da Lua


Fonte: (frame de Le Voyage dans la Lune, 1902 – recorte da autora)

Em Viagem à Lua, Méliès usou a técnica de dupla exposição do filme para obter
efeitos especiais. Há duas versões dessa produção: uma preto e branca e outra colorida à mão,
diretamente no negativo do filme, técnica utilizada pelo diretor também em outros trabalhos.
Ao longo do filme, a câmera fixa registra, uma após uma, as sequências da história,
minuciosamente planejadas no palco do teatro Robert Houdin e, a cada sequência, é montado
novo cenário, fazendo-se uso de trucagens e dos recortes possíveis. Apesar da câmera ser fixa,
eventualmente alguns elementos cênicos são sutilmente deslocados para criar a ilusão de que
o ângulo de visão do espectador desloca-se no espaço. Os personagens (atores) entram e saem
pelas laterais, ou ainda por algum alçapão aberto no chão do palco, mais uma vez nos
remetendo ao teatro filmado.

Figura 28– tentativa de volta à Terra Figura 29– o mundo submarino


Fonte das figuras 26 e 17: (frame de Le Voyage dans la Lune, 1902 – recorte da autora)
71

Continuando a exploração da lua, os astronautas são capturados pelos seus habitantes e


levados diante de seu líder. Quando conseguem fugir, são seguidos por eles até que chegam à
cápsula onde entram, com exceção de um deles, que fica do lado de fora, tentando puxar a
cápsula de um precipício, para que ela ‘caia’ de volta para a Terra (figura 28). O quinto
astronauta retorna à Terra pendurado na cápsula, assim como um dos habitantes da Lua. A
cápsula cai ao mar e então a ‘câmera de Méliès’ submerge junto com ela (re)criando imagens
de um outro mundo desconhecido – o submarino (figura 29), de onde são resgatados por um
navio.
Há na internet cópias de Viagem à Lua colorizada, pois como já foi comentado aqui,
Méliès fez duas versões dessa obra, uma preta e branca e outra colorida. Não restam dúvidas
que Méliès inaugurou um imaginário tecnológico que foi desenvolvido na indústria do cinema
e que perdura até hoje. Essa capacidade em explorar e criar novos imaginários tornou única a
sua obra.
Talvez seja por isso que muitas de suas produções e, especialmente, Viagem à Lua,
seja até hoje referenciada em muitas obras contemporâneas. A invenção de Hugo Cabret não
é o único filme a homenagear Méliès. Em 1952 , Georges Franju fez o curta-metragem Le
Grand Méliès, protagonizado por André Méliès, filho do cineasta, e em 1956, a abertura do
filme A volta ao mundo em 80 dias usou trechos de Viagem à Lua.
Há também referência à Viagem à Lua em Moulin Rouge (Baz Luhrmann, 2001)
quando a lua de Méliès (figura 30) aparece cantando ópera ao fundo da cena para o par
romântico do filme. Vale também lembrar que pouco antes da lua aparecer, quando o casal
está cantando I will always love you (Eu sempre vou te amar), há uma grande explosão que dá
início aos efeitos especiais, que vão até a lua cantante e terminam em Toulousse. Robert Stam
comenta em seu livro Introdução à teoria do cinema que:

A questão é combinar referências às mais diversas fontes possíveis em um


jogo lúdico, cujo narcisismo é exaltado não por velhas e desusadas
identificações secundárias com as personagens, mas pela ostentação cultural
possibilitada pelo reconhecimento das referências. (STAM, 2011, p. 333)
72

Figura 30 – Lua de Méliès no filme de Baz Luhrmann


Fonte: (frame de Moulin Rouge, 2001 – recorte da autora)

Na década de 1990, no auge dos videoclipes, a banda norte-americana Smashing


Punpkins produziu um clipe chamado Tonight, Tonight36 (1996), no qual através de
criatividade conta uma história tendo como pano de fundo o filme Viagem à Lua e Viagem
extraordinária, de Méliès. No clipe, um casal entra em uma espécie de Zeppelin (não em
uma nave espacial) e segue rumo ao espaço. O veículo voador passa pela mesma lua de
Viagem à Lua (figura 31) e o casal salta em sua superfície, onde conhece os mesmos
alienígenas espaciais (habitantes da Lua) do filme de Méliès. A personagem mulher bate em
alguns alienígenas com seu guarda-chuva e eles desaparecem em meio a uma fumaça (como
nos efeitos criados por Méliès), mesmo assim são presos por outros alienígenas. Quando
conseguem se libertar, fogem em um foguete similar ao da Viagem à Lua e caem no mar,
assim como no filme de 1902. Lá eles exploram o fundo do oceano até que são resgatados em
um barco. O tributo ao pai dos efeitos especiais ainda é prestado quando aparecem sereias de
outro filme dele e ainda na gravação de seu nome – S.S. Méliès – no casco do navio do clipe
(figura 32).
O clipe foi filmado no estilo dos filmes mudos com direito a cenários e efeitos
especiais simples. É justamente essa simplicidade na produção do clipe que se constitui uma

36
Clipe dirigido por Jonathan Dayton e Valerie Faris e estrelado por Tom Kenny e Jill Talley.
73

viagem ao tempo do cinema de atrações do início do século XX, quando o surreal e o


experimentalismo estavam em seu auge.

Figura 31– Lua de Méliès no clip de 1996 Figura 32: confirmação da referência
Fonte das figuras 31 e 32: (frame do clip Tonight, tonight – recorte da autora)

Unindo música, imagem, grafismos, efeitos visuais e sonoros e movimentos de


câmera, o videoclipe é um gênero aberto para experimentações. Talvez seja por isso que esse
tipo de produção ganhou tanto espaço na televisão e agora na internet. Os planos têm curta
duração, com cortes e sobreposições de imagens que dão o efeito de colagem ao representar a
letra da música. De acordo com Machado, “é como se o videoclipe contasse uma história à
maneira do cinema: lá estão personagens, cenários e fragmentos de uma possível ação”
(MACHADO, 2000, p.161).
A grande questão aqui é como podemos classificar as referências às obras do passado
nas produções contemporâneas. Deixando de lado a associação da palavra paródia a algo
ridículo e cômico e partindo do pressuposto que etimologicamente paródia significa ‘canto
paralelo’ Linda Hutcheon (1985, p. 54) em seu livro Uma Teoria da Paródia define paródia
como sendo um recurso que recria um texto, propondo um novo texto a partir do primeiro e
obedecendo a um processo de desconstrução. A autora explica que, a paródia mantém uma
relação íntima entre o texto base e o parodiado, tornando vivas as obras do passado, uma vez
que ao serem parodiadas estão recebendo uma nova interpretação, mas em um contexto
diferente. Dessa forma e, no caso do videoclipe da banda norte-americana, podemos dizer que
o videoclipe pode ser estudado sob o ponto de vista de um texto-paródia, à medida que
funciona como uma homenagem às obras de Méliès. Veremos mais à frente uma análise
detalhada da questão da intertextualidade. Com relação à paródia, deixamos aqui caminho
aberto para um estudo mais aprofundado da questão, uma vez que esse não é objeto desta
pesquisa.
74

3. A INVENÇÃO DE HUGO CABRET

“A história que estou prestes a contar se passa em 1931, sob os telhados de


Paris. Aqui, você conhecerá um menino chamado Hugo Cabret, que, certa
vez, muito tempo atrás, descobriu um misterioso desenho que mudou sua
vida para sempre. Mas antes de virar a página, quero que você se imagine
sentado no escuro, como no início de um filme. Na tela, o sol logo vai
nascer, e você será levado em zoom até uma estação de trem no meio da
cidade. Atravessará correndo as portas de um saguão lotado. Vai avistar um
menino no meio da multidão e ele começará a se mover pela estação. Siga-o
porque este é Hugo Cabret. Está cheio de segredos na cabeça, esperando
que sua história comece.” Brian Selnick

A invenção de Hugo Cabret (Hugo, EUA, 2011) é um filme de aventura e mistério,


baseado no livro homônimo de Brian Selnick, escrito em 2007. Dirigido por Martin
Scorsese37 (Taxi Driver, Touro Indomável, Gangues de Nova York), o roteiro é de John Logan
(Gladiador, O último Samurai, O Aviador, Rango), a fotografia de Robert Richardson (Wall
Street – Poder e Cobiça, Kill Bill 1 e 2, Bastardos Inglórios) e foi coproduzido por Graham
King’s GK Films e Johnny Depp.
Misturando elementos das histórias em quadrinhos, cinema e literatura, livro e filme
unem duas histórias: a do personagem fictício chamado Hugo, um menino órfão que precisa
lidar com a morte do pai e o mistério envolvendo um autômato (robô) deixado por ele e, um
personagem da vida real, o cineasta Georges Méliès.
A obra literária oferece a seus leitores além do texto em si, uma outra história ilustrada
com 284 imagens, desenhos a lápis e carvão. Composto por cerca de 500 páginas, possui
páginas inteiras exclusivamente visuais, num design gráfico que mescla as cores preta e
branca, remetendo ao cinema daquela época.
O filme se passa na Paris da década de 1930. Hugo é um garoto que perdeu seu pai
num incêndio e foi levado para morar na Estação de Montparnasse por seu tio Claude, que
desaparece depois de um tempo e é encontrado morto mais tarde. Claude era o responsável
pela manutenção dos relógios da estação e depois de seu desaparecimento, Hugo continua
com sua missão de permanecer invisível aos olhos de todos, mantendo os relógios
funcionando para encobrir a ausência do tio, enquanto sobrevive roubando comida e pequenas

37
Admirador confesso dos primeiros anos do cinema, Scorsese fundou nos Estados Unidos a organização The
Film Foundation, investindo junto com outros colegas, como Clint Eastwood, na recuperação de negativos e
películas antigas, num processo de revalorização muito semelhante do que aconteceu na vida do artista francês.
75

peças que usa para consertar um autômato, temendo que o inspetor da estação o descubra e o
encaminhe a um orfanato.
O garoto observa a vida do alto da torre do relógio da estação. De lá vê a dona de um
café sendo cortejada por um senhor, que não consegue se aproximar dela por causa do seu
cachorro. Vê o inspetor da estação, um ex-combatente ferido na guerra, fazendo sua
costumeira ronda, juntamente com seu cão Doberman chamado Maximiliano, e também o
dono de uma loja de brinquedos. Este se faz de adormecido e deixa um ratinho de corda sobre
o balcão da loja, pois sabe que Hugo é um pequeno ladrão que, vez por outra, pega peças de
corda de sua loja. A ‘isca’ funciona e o senhor consegue prendê-lo, ameaça chamar o inspetor
e o faz esvaziar seus bolsos, onde encontra várias peças (porcas, roldanas) e um pequeno
caderno de anotações. Nesse caderno constam instruções de como consertar o autômato que
foi deixado no museu onde o pai de Hugo trabalhava e ainda um flip card (figuras 33 e 34)
com o rosto de um robô.
Conforme o dono da loja vai folheando as páginas do caderno flip card de Hugo,
observa o rosto do autômato se movimentando – uma referência ao cinema enquanto ‘imagem
em movimento’–, fica triste e fala: “– Fantasmas...” Ele toma o caderno do garoto e ameaça
queimá-lo. Hugo chora desesperadamente pois além daquele caderno, um relógio de bolso e o
próprio autômato são as únicas lembranças materiais deixadas por seu pai.

Figuras 33 e 34– flip card - animação


Fonte das figuras 33 e 34: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Por meio de um flashback ficamos sabendo como Hugo perdeu o pai e como o tio
alcoólatra o leva para morar com ele na estação. Ao reencontrar o dono da loja de brinquedos,
Hugo recebe um lenço com cinzas, deduz que é seu caderno queimado e chora de tristeza.
Então, o comerciante faz uma proposta ao menino: que ele trabalhe lá consertando objetos e
brinquedos como forma de pagamento pelos seus reiterados pequenos furtos. Hugo aceita a
proposta e, ao sair do local, encontra a sobrinha do dono da loja, Isabele, que revela que o
76

caderno não foi queimado e que seu tio ficou muito atormentado com as anotações nele
contidas. Durante seu tempo livre, Hugo continua tentando consertar o autômato e, quando
pensa ter concluído o trabalho, percebe que está faltando uma parte: uma chave em forma de
coração.
Isabele vive com os tios, depois que seus pais faleceram, e dedica boa parte de seu
tempo aos livros. Logo, ela e Hugo tornam-se amigos e Hugo leva a menina para assistir um
primeiro filme na vida – O homem mosca – mas são colocados para fora bem na metade da
exibição.
Mais tarde, quando mostra à amiga o autômato, Hugo fica surpreso ao descobrir que
Isabele tem um colar com chave em forma de coração, a parte que faltava a seu autômato.
Com a chave consegue fazer com que o autômato comece a funcionar e desenhe uma cena
emblemática do filme Uma viagem à Lua, de 1902, de Georges Méliès. Quando o autômato
escreve a assinatura finalizando o desenho, Isabele reconhece o nome do tio.
Eles levam o desenho e mostram para a tia de Isabele, que se recusa a falar sobre o
assunto. Nesse momento, seu tio chega em casa e a tia obriga as crianças a se esconderem em
um dos quartos. Enquanto tentam se manter em silêncio, descobrem um compartimento
secreto no armário do quarto. Interessante notar que o mistério sobre quem é o tio de Isabele
só é descoberto quando as crianças encontram, dentro do armário, um baú com vários
desenhos de filmes de Méliès. O barulho no quarto atrai Méliès, que, ao deparar-se com seus
antigos trabalhos, fica transtornado.
O dono da livraria da estação, senhor Labiche, é quem recomenda a Biblioteca
Nacional do Cinema como local onde eles podem conseguir informações sobre o desenho do
autômato, na seção de história do cinema. Lá eles encontram e desvendam a vida profissional
de Méliès e conhecem o autor do livro que estão pesquisando, o professor René Tabard. Os
dois chegam até a discutir com ele, que afirma que Méliès faleceu durante a Primeira Guerra
Mundial.
Assim, em instantes, o livro torna-se ‘vivo’ e o professor leva os amigos até uma sala
da biblioteca onde guarda um pequeno acervo com tudo que conseguiu reunir sobre o
cineasta, inclusive uma única cópia do filme Uma viagem à Lua. Os dois não acreditam no
que estão vendo e resolvem levar o professor Tabard para passar o filme na casa dos Méliès.
Há um pequeno mal-estar com a chegada dos três, mas Tabard reconhece e apela para a
vaidade da esposa de Méliès, tia Jeanne, ao falar sobre sua importância como atriz do cinema
mudo. Assim ela aceita assistir ao filme, enquanto o marido descansa no quarto ao lado.
77

Ao final da exibição todos percebem a presença de Méliès que também assistiu ao


filme e se emocionou: “Eu reconheceria em qualquer lugar o som de um projetor de filmes”.
O filme o fez relembrar os bons tempos vividos e, não somente os momentos de crise, onde
teve que se desfazer de tudo que tinha.
Tempos depois é realizado um festival de cinema onde são apresentados mais de 80
filmes recuperados e restaurados de Méliès, que sobe ao palco emocionado com a
homenagem e agradece Hugo por tudo que ele fez. Após o festival, numa festa na casa de
Méliès, Isabele começa a escrever um livro sobre a história de Hugo Cabret. O filme termina
com uma cena do autômato sozinho num dos quartos da casa.

3.1. O PRIMEIRO CINEMA NO CINEMA CONTEMPORÂNEO

A partir de agora vamos tentar mostrar como acontece um diálogo entre o filme A
invenção de Hugo Cabret – obra contemporânea digital em 3D – e diversas outras obras, não
só do Primeiro Cinema como também do Cinema Mudo de maneira geral, todos aludidos ou
implicitados na diegese fílmica.
Explorar novos usos de mídias anteriores com recursos digitais tem sido uma boa
opção para o cinema. O surgimento e a evolução de novas possibilidades tecnológicas são
sempre acompanhadas de um processo de adaptação aos meios em si e ao uso que se faz dos
mesmos, ocorrendo muitas vezes a apropriação da linguagem, do estilo e de características de
uma mídia por outra. Machado explica que, em toda sua recente história, o cinema, como
qualquer outra arte, “acumulou um repertório extraordinário de experiências, nem todas elas
legitimadas pela chancela dos historiadores e muitas delas relegadas ao esquecimento”
(MACHADO, 2011, p. 141).
Isso acontece porque quando novas mídias (vamos aqui considerar o cinema digital
como uma nova mídia) são introduzidas, elas coexistem e interagem com as mídias antigas,
que não são abandonadas. A mídia é, de acordo com Peter Burke e Asa Briggs (2004, p. 17),
um sistema em contínua mudança, com diversos elementos desempenhando papéis de maior
ou menor destaque. McLuhan, em 1964, já atentava para isso, quando dizia que o conteúdo de
um meio é sempre outro meio. Segundo o autor, a ‘mensagem’ de qualquer meio é a mudança
de padrão que ele introduz na sociedade, acelerando ou ampliando os processos já existentes.
Jay David Bolter e Richard Grusin retomam em parte esta ideia de McLuhan,
afirmando que o autor provavelmente não estava falando de uma simples apropriação, mas de
78

um tipo mais complexo de empréstimo, no qual uma mídia é incorporada ou é representada


em outra – fenômeno definido pelos autores como ‘remediação’. Com a remediação, a nova
mídia tenta absorver a forma mais antiga inteiramente, de maneira a minimizar as
descontinuidades entre ambas. Os autores esclarecem também que o ato de remediação
garante à mídia mais antiga não ser totalmente anulada pela outra; pelo contrário, o novo meio
permanece dependente do mais antigo. E continuam:

The contemporary entertainment industry calls such borrowing


‘repurposing’: to take a ‘property’ from one medium and reuse it in another.
With reuse comes a necessary redefinition, but there may be no conscious
interplay between media. The interplay happens, if at all, only for the reader
or viewer who happens to know both versions and can compare them.
(BOLTER & GRUSIN, 1998, p. 44)38

Para estes autores (1998, p. 45), esta é uma característica típica da mídia digital,
relembrando que introduzir uma nova mídia não significa apenas inventar novo hardware e
software, mas sim se apropriar das outras mídias existentes, pois, com a introdução de um
novo meio, os usos dos anteriores são redefinidos. Não que antes das tecnologias digitais não
houvesse esta apropriação, porém, a digitalização de áudio e vídeo contribuiu, de certa forma,
para o agrupamento de todos os sistemas de comunicação existentes. Assim, a remediação
auxilia na familiarização de uma nova mídia, recorrendo às linguagens já conhecidas das
mídias anteriores, em uma espécie de reformulação de seus conteúdos e das maneiras como as
informações são produzidas e consumidas, a fim de ampliarem os serviços de comunicação e
entretenimento.
A composição digital e o uso de efeitos especiais são hoje uma espécie de padrão em
filmes de Hollywood, como afirmam Bolter e Grusin, especialmente nas produções do gênero
de ação e aventura. Eles explicam que, na maioria dos casos, o objetivo da remediação é
fazer com que essas intervenções eletrônicas pareçam ser transparentes. Como exemplo, eles
citam as acrobacias e efeitos especiais, que devem parecer ‘normais’ aos olhos dos
espectadores, como se as câmeras estivessem capturando imagens que estão acontecendo
realmente.
No filme de Scorsese, A invenção de Hugo Cabret, a remediação acontece quando,
através da mise-en-scène e da tecnologia 3D, cria, com auxílio da tecnologia digital, a
38
“A indústria de entretenimento contemporâneo chama esse empréstimo de ‘reaproveitamento’: para tirar uma
‘propriedade’ de um meio e reutilizá-lo em outro. Com a reutilização vem uma redefinição necessária, mas pode
não haver interação consciente entre as mídias. A interação acontece, se não em tudo, somente para o leitor ou
espectador que passa a conhecer as duas versões e pode compará-los.” (livre tradução da autora)
79

atmosfera dos primeiros filmes, seja através do uso de fumaça e vapor, e até mesmo da poeira
na Estação de Montparnasse, assim como o som ambiente, propagandas e recriação de
espaços que não existem mais, como a Paris do início do século passado e também o estúdio
de Méliès, além, é claro, do uso de cenas em preto e branco de clássicos do cinema mudo,
muitas dessas, fragmentos de obras originais.
Os autores explicam ainda que, na remediação, no caso específico do cinema, é
comum um filme tomar emprestado de outro algumas imagens, conceitos, cenários, maneiras
de interpretar, o que pode fazer a última obra parecer familiar aos olhos do público. Mais à
frente vamos falar sobre repertório e assim tentar esclarecer melhor esse assunto. Muitos
autores, inclusive Bolter e Grusin, acreditam que a remediação é uma das maneiras para a
compreensão das mídias anteriores.
Através do conceito de remediação de Bolter e Grusin podemos também comprovar
uma das hipóteses desta pesquisa: a de que o cinema mudo (Primeiro Cinema) está presente
no cinema contemporâneo, isso porque, de acordo com os autores, as mídias estão
continuamente comentando, remodelando, reabilitando, reproduzindo e substituindo as
anteriores, ou seja, umas precisam das outras.
Com relação à remediação, Machado (2011, p. 10) conta ainda que, quanto mais
estudava as formas e procedimentos das atuais mídias eletrônicas e digitais, “mais claramente
podia verificar que grande parte desses recursos retomava, recuperava e fazia ecoar atitudes
retóricas e tecnológicas já antes experimentadas nas formas pré-cinematográficas e no cinema
dos primeiros tempos.”

Um bom exemplo é Georges Méliès, cujas produções antecipam em cem


anos o uso de figuras fantásticas e uma vasta iconografia híbrida e de
vanguarda que constatamos atualmente nas produções de autores
contemporâneos como Peter Greenaway. (MACHADO, 2011, p. 10)

Outro fator que evidencia a remediação é o surgimento de uma grande quantidade de


inovações tecnológicas em um curto espaço de tempo. Se antes essa transição – de uma mídia
para outra – era feita gradativamente, com intervalo de anos, possibilitando a adaptação
gradativa das novas técnicas às realidades sociais existentes, hoje vivenciamos essa
experiência – a convergência das mídias – num período bem mais reduzido, quase que
simultâneo, como afirma Wilson Dizard Jr., em seu livro A nova mídia: a comunicação de
massas na era da informação.
Vinícius Andrade Pereira, por sua vez, em seu artigo Tendências das Tecnologias
Digitais: da fala às mídias digitais, atenta para o fato de que a evolução de diferentes
80

tecnologias nem sempre representa ruptura, mas sim continuidade e aprimoramento cognitivo
e subjetivo de um determinado modelo cultural para um vindouro, como já haviam escrito
sobre o assunto os teóricos Machado (2011) e Xavier (2012). “De fato, quando se observa a
evolução das tecnologias comunicacionais compreende-se que cada nova etapa tecnológica se
apropria da anterior estendendo-a, tomando-a como conteúdo e, em parte, aperfeiçoando-a”
(PEREIRA, 2004, p. 142).
No livro The languages of new media, Manovich também aborda uma aproximação
entre o cinema digital e as primeiras experimentações pré-cinematográficas. Para ele, o
cinema é a principal matriz das novas mídias e sua definição tem que ser realizada dentro de
uma perspectiva histórica, sem esquecer suas possíveis continuidades e rupturas com as
experiências passadas. Uma das ideias defendidas pelo autor diz respeito justamente ao
retorno do cinema digital às práticas pré-cinematográficas do final do século XIX e início do
século XX. Segundo ele, o cinema contemporâneo, elaborado sob a influência da cultura
digital, abriria mão da centralidade das imagens captadas pelas câmeras, como acontecia no
início do cinema, e se entregaria novamente aos processos de construção da realidade
imagética, adotando certos princípios que poderiam ser visualizados já no primeiro cinema.
Essa relação podemos verificar comparando o trabalho dos profissionais de informática, que
criam objetos e a própria realidade virtual através das interfaces de vários softwares e
hardwares que, de alguma forma, guardam semelhanças com aquelas técnicas utilizadas pelos
artistas que desenhavam à mão as imagens a serem projetadas em seus aparatos ópticos,
séculos atrás.

The privileged role played by the manual construction of images in digital


cinema is one example of a larger trend – the return of pro-cinematic moving-
image techniques. Although marginalized by the twentieth-century institution
of live-action, narrative cinema, which relegated them to the realms of
animation and special effects, these techniques are reemerging as the
foundation of digital filmmaking. What was once supplemental to cinema
becomes its norm; what at the periphery comes into the center. Computer
media return to us the repressed of the cinema. (MANOVICH, 2001, p. 308)39

39
O papel privilegiado da construção manual das imagens no cinema digital é exemplo de uma tendência maior
– o retorno das técnicas pré-cinemáticas da imagem em movimento. Embora marginalizadas pela instituição da
‘ação ao vivo’ no século XX e pela narrativa cinematográfica, que as relegou ao terreno da animação e dos
efeitos especiais, estas técnicas estão reemergindo na fundação da filmagem digital, o que foi outrora
suplementar ao cinema torna-se sua norma, o que estava na sua periferia passa ao centro. As mídias
computadorizadas nos trazem de volta o reprimido do cinema. (livre tradução da autora)
81

Assim podemos dizer que, o cinema atual está revelando um novo paradigma estético
e técnico através do qual percebemos a ‘reinvenção’ do Primeiro Cinema. Nesse sentido,
Machado tem a dizer:

Devemos, portanto, considerar o cinema não como um modo de expressão


fossilizado, paralisado na configuração que lhe deram Lumière, Griffith e
seus contemporâneos, mas como um sistema dinâmico, que reage às
contingências de sua história e se transforma em conformidade com os novos
desafios que lhe lança a sociedade. Como tal, ele vive hoje um dos
momentos de maior vitalidade de sua história, momento esse que podemos
caracterizar como o de sua radical reinvenção. A transformação por que
passa hoje o cinema afeta todos os aspectos de sua manifestação, da
elaboração da imagem aos modos de produção e distribuição, da semiose à
economia. (MACHADO, 2011, p. 194)

A invenção de Hugo Cabret resgata o passado do cinema em seu enredo e, da mesma


forma, se apresenta como resultado da evolução do cinema desde suas primeiras
experimentações. O cinema de hoje é mostrado já na abertura do filme, através da tecnologia
da terceira dimensão, do som perfeito, da renovação das imagens e da infinidade de tomadas e
movimentos de câmera, além de um trabalho de pós-produção impecável. Graças à tecnologia
digital foi possível recriar, por exemplo, a Paris da década de 1930 (figura 35 e 37). Cenários
e objetos podem ser criados digitalmente através da técnica de composite, que consiste na
manipulação digital de fotografias, no sentido de dar-lhes a forma adequada ao projeto visual
do filme.
Logo no início do filme, somos apresentados ao universo que envolve a estação
através de travellings e plongées, com seus labirintos e personagens – o inspetor, a florista, o
livreiro, músicos, passageiros chegando e viajando. Essa apresentação do local e personagens
funciona, como no Primeiro Cinema, como uma espécie de direcionamento do olhar, onde
era preciso mostrar tudo detalhadamente a ele, daí as cenas mais longas. Com as câmeras
mostrando cenas de pessoas interagindo, o público recebe uma série de informações visuais
sobre o local e os personagens principais e coadjuvantes da trama. O filme baseia-se
fortemente nas imagens, em vez de palavras (diálogos), para contar a história.
Se nos primeiros anos do século passado o cinema era caracterizado como sendo de
mostração, em que mostrar/apresentar algo era mais importante que narrar, podemos dizer que
a era digital do cinema está vivenciando um momento semelhante, onde uma única cena é
capaz de reter nossa atenção por um longo período, funcionando como uma atração por si só.
82

Figuras 35 a 40 – um travelling nos leva à estação de Montparnasse


Fonte das figuras 35 a 40: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Um bom exemplo disso, no filme de Scorsese, são os longos planos gerais da estação
de Montparnasse, onde o local é apresentado e cada uma das cenas funciona como uma
atração, pela riqueza de detalhes. Inicia a apresentação do local um plano geral da cidade de
Paris e mostra a Torre Eifell, à noite (figura 35). Já de dia (figura 36), um travelling nos
aproxima do local, do lado onde chegam as locomotivas (figura 38). Como é inverno e está
nevando, o branco da neve toma conta dos telhados (figuras 35 a 37). À medida que o
travelling nos aproxima de Montaparnasse, outros fatores diegéticos começam a ser
incorporados ao enredo do filme, entre eles o som das locomotivas a todo vapor, as conversas
e ruídos típicos do cotidiano de uma estação. A câmera ‘pega carona’ em um trem que está
chegando (figura 38) e então entramos nela nos movendo entre duas plataformas (figura 39).
Interessante é que, ao passarmos (nós ‘somos a câmera’ nesse primeiro momento) não
83

precisamos desviar de nenhum passageiro que circula pela estação, eles simplesmente passam
por nós, pela frente, de lado, por trás. Continuamos nos movendo pela estação até que uma
cortina de fumaça vinda de um dos trens toma a tela. Quando a fumaça dispersa, estamos no
saguão (figura 40).
Hugo acompanha tudo de seu esconderijo (muitas vezes sua visão é delimitada por
uma janela, um buraco), como alguém que está fora do quadro, assim como os espectadores
acompanhavam os filmes mudos. Em vários momentos temos a visão da cena sob a
perspectiva dos personagens – câmera subjetiva (figuras 41 e 42), quando assumimos a visão
de Hugo, que não será dominante durante o filme, havendo tomadas em que veremos as coisas
‘pelos olhos’ de outros personagens, como os de Isabelle, por exemplo, e, até mesmo, de
Maximiliano, o cão do inspetor.

Figura 41 – relógio como janela Figura 42 – câmera subjetiva – olhar de Hugo


Fonte das figuras 41 e 42: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

O desejo de chocar e espantar o público é uma característica presente tanto nas


produções cinematográficas do início do século passado como nas contemporâneas. E é neste
contexto que as novas tecnologias parecem se encaminhar em direção a uma nova forma de
experiência cinematográfica, que exige novos modos de olhar, de pensar e de experimentar.
84

3.2. O CINEMA DE ATRAÇÕES

Já se passou mais de um século desde que o ‘pai dos efeitos especiais’ descobriu e
usou seus truques para encantar suas plateias. Esses truques continuam até hoje no cinema
digital 3D. A Invenção de Hugo Cabret alia a trucagem de Méliès à tecnologia que o sucedeu.
Nesse contexto, o filme de Scorsese pode ser descrito, porque não, como uma espécie de
‘cinema contemporâneo de atrações’.
Uma das primeiras experiências de imagens em movimento reproduziu a chegada de
um trem a uma estação. Essa novidade, apresentada pelos irmãos Lumière, em 1895, pegou de
surpresa um grupo de pessoas que havia se reunido em um café, em Paris, como tantas outras
vezes antes daquela data. Aquelas pessoas estavam lá, curiosas, para saber do que se tratava o
cinematógrafo e também para ‘ver’ o alarido causado pela nova invenção. Não se podia falar
ainda de cinema enquanto linguagem artística, mas como tecnologia. Para o pesquisador Jean
Claude Bernardet (2006), o cinema só passa a evoluir como linguagem quando abandona a
função de apenas documentar a realidade e se assume como herdeiro dos folhetins do século
XIX, passando a ser um instrumento para contar histórias, o que ocorrerá em 1915, com o
filme Nascimento de uma nação, do diretor americano D.W.Griffith.
Gunning sugere que o trem foi a grande atração da noite. Não o objeto em si – o trem
–, ou o que ele representava já à época – um símbolo da modernidade –, mas, as imagens
projetadas na tela: as imagens em movimento. Explica ainda (1997, p. 129) que o ‘choque’
que aquelas imagens causaram naqueles espectadores deve ser entendido como a excitação de
assistir a novidade da reprodução mecânica do movimento e, que a reação da plateia não foi
de terror, mas de prazer, face às capacidades ilusionistas do cinema. Mais de um século
depois daquele primeiro encontro, aquelas imagens e a reação da plateia podem nos parecer
distantes da nossa realidade. Mas, será mesmo?
Não estarão as novas tecnologias, os novos espaços e materiais/equipamentos
cinematográficos ‘revivendo’ em nós, hoje, a mesma sensação das primeiras exibições de
cinema? O cinema digital, em 3D, não nos causa espanto similar ao experimentado pelos
espectadores dos irmãos Lumière?
De maneira geral, podemos dizer que as primeiras experiências no final do século XIX
e o cinema digital, a partir da década de 1990, de alguma forma, têm suas particularidades e
aproximações, principalmente o intuito de surpreender, fascinar e aguçar os sentidos dos
espectadores. O professor de Cinema Bruce Isaacs, autor do livro The Orientation of Future
Cinema: Technology, Aesthetics, Spectacle, afirma que “the technology that once gave life to
85

moving images, and arrested the world's attention with its seemingly magical properties, its
equally present in the material of current cinematic life”40 (ISAACS, 2013, p. 6).
Sugerimos aqui algumas possíveis aproximações entre o Primeiro Cinema e o Cinema
Contemporâneo. A primeira delas talvez seja o que Gunning chama de ‘cinema de atrações’41,
cujas imagens estimulam a curiosidade visual e despertam ou criam excitação, espanto e
assombro. E isso era possível, no final do século XIX, com a novidade tecnológica capaz
captar e projetar imagens em movimento - o cinematógrafo.
No cinema contemporâneo, os recursos digitais assumem essa função, na medida em
que as imagens projetadas na tela, tridimensionais, aguçam nossa vontade de nelas tocar (nas
imagens), ainda mais quando algumas dessas imagens saem da tela e invadem nosso espaço, o
da plateia. Em ambas as épocas, as imagens projetadas são algo inusitado, fascinante e
poderoso. A atração do cinema digital se constitui na velocidade dos movimentos das
câmeras, na edição e pós-produção das imagens coletadas, nos choques de cores e nos efeitos
especiais. Como escreveu Gaudreault (2006, p. 95), que trabalhou com Gunning no
desenvolvimento do conceito, a atração está lá, diante do espectador, para ser vista. Enquanto
modo de exibição, o cinema de atrações, do Primeiro Cinema e do Cinema Contemporâneo,
não está ligado a nenhum gênero em particular e percorre, igualmente, tanto a ficção como a
não-ficção. Este tipo de cinema atrai o público para o espetáculo de sua tecnologia, como
aconteceu nas primeiras exibições do cinema.
A própria etimologia da palavra francesa spectaculaire nos remete aos idos da década
de 1770, no campo do teatro, para a palavra spectaculeux. Esse termo indica um excedente de
espetáculo, um excesso, uma ostentação, um sinal de espetáculo como um aparato, como
explica o professor de História do Cinema, Dick Tomasovic. “And, indeed, it is this
exhibitionist and megalomaniac determination that characterized, about two centuries later,

40
Mas a tecnologia que uma vez deu vida às imagens em movimento , e prendeu a atenção do mundo com suas
propriedades aparentemente mágicas, está igualmente presente no material cinematográfico atual. (livre
tradução da autora)
41
O conceito de ‘cinema de atrações’ foi sugerido por Gunning em 1984 como forma de repensar as
interpretações sobre a história do cinema e sua relação com a narrativa. Segundo o autor, o cinema de atrações
tornou-se subterrâneo, mas não desapareceu após a hegemonia do cinema narrativo. Ele é ainda perceptível,
enquanto modo de exibição, em diferentes gêneros narrativos (como o musical ou o filme de ação). No entanto, o
seu reaparecimento é mais notório no ‘cinema de efeitos’ da Nova Hollywood, desde meados dos anos 1970,
facilitado pelo desenvolvimento paralelo dos blockbusters e dos multiplexes.
86

the films of Steven Spielberg and George Lucas, unbetable filmakers of the spectacular”42
(TOMASOVIC, 2006, p. 311).
Tomasovic conta que, de alguma forma, os principais cineastas da atualidade (como
James Cameron, Peter Jackson, Sam Raimi, Geoge Lucas e Steven Speilberg) “they are the
heirs, distant but real, of Georges Méliès´s cinema”43 (TOMASOVIC, 2006, p. 309).
A discussão aqui não diz respeito se os estudiosos da área concordam ou não com a
proposição de que o cinema contemporâneo resgata, de alguma forma, o cinema de atração
definido por Gunning, mesmo porque os teóricos do cinema possuem diferentes definições e
noções sobre o assunto. Nessa pesquisa, vamos nos ater aos conceitos de Gunning. De acordo
com Tomasovic (2006, p. 310-311), Gunning afirma que as atrações constituem um modo
visual de endereço para o espectador não só do Primeiro Cinema, mas também em outros
períodos da história do cinema.
Ao contrário do cinema narrativo, o cinema de atrações, argumenta Gunning, está
mais interessado em ‘mostrar’ do que em ‘contar’. Trata-se de um cinema que insiste nos
efeitos de espetáculo, de choque, e, na produção de sensações fortes. Assim podemos dizer
que o cinema de atrações pode ser caracterizado como um cinema exibicionista, no sentido
em que, para produzir os seus efeitos, ele precisa interpelar diretamente o espectador, como
explica Teresa Rizzo (2008) em seu artigo Youtube: the new cinema of attractions.
As imagens iniciais do filme de Scorsese são uma demonstração de como, a partir da
década de 1990, aquele mundo de imagens analógicas, marcadas por suportes diferentes,
começou a ser suplantado por outro tipo de imagem: as digitais, que podem, inclusive, ser
produzidas independentemente de um objeto real captado. Paul Virilio (1994, p. 91) já
chamava essa fase do desenvolvimento da imagem, que se insinuava no final dos anos 80, de
‘lógica paradoxal’, pois marcaria o encerramento de uma lógica da representação pública, em
que necessitávamos de um referente para produzir uma imagem. Sendo a obra escrita em
1988, o autor ainda não tinha convivido, portanto, com o avanço da tecnologia de informática,
que permitiu o desenvolvimento de simuladores de imagens capazes de recriar tudo que se
imaginasse.

42
“E, de fato , é esta exibicionista e megalomaníaca determinação que caracterizou, cerca de dois séculos
depois, os filmes de Steven Spielberg e George Lucas, imbatíveis cineastas do espetacular”. (livre tradução da
autora)
43
“Eles são os herdeiros, distantes mas reais, do cinema de Georges Méliès”. (livre tradução da autora)
87

O uso do computador nos processos de finalização de filmes é hoje uma rotina. As


novas câmeras digitais vem provocando uma hibridação que não está mais apenas no
conteúdo, mas na própria técnica. Atualmente, com o sistema digital, é possível ver o
resultado na hora, para depois passá-lo para a película. Além disso, um filme produzido
digitalmente tem a vantagem de poder ser corrigido ou melhorado, ainda na hora da edição ou
pós-produção. O computador agora não é mais usado somente para resolver problemas da
filmagem, inserir efeitos especiais, ou então, para realizar correções de luz, cor, ou ainda
apagar um microfone que tenha aparecido em alguma cena, ou mesmo impedir que alguma
imagem indesejável apareça no fundo de um frame. As novas tecnologias são usadas até
mesmo para ‘corrigir’ interferências na atuação fisionômica dos atores, como ajustes em
expressões ruins ou inserção de lágrimas, por exemplo. Tudo é possível com ferramentas da
tecnologia digital.
Antes, no cinema, o ato de montar uma película (filme) referia-se efetivamente a uma
ação de cortar/colar o material captado para reordená-lo, como podemos observar na figura
114, onde Méliès corta a película com intuito de ‘criar’ um efeito. Com isso, o que sobrava
poderia, ou não, ser usado para substituir algum outro que se danificasse, ou para refazer
processos que não correspondessem ao que era pretendido pelo diretor. Agora, com a edição
digital, não há mais perda do material produzido, pois ele não se destrói com o uso, e ainda
pode ser copiado inúmeras vezes, sem perder a qualidade. Uma das vantagens desse novo
processo é a liberdade que os produtores têm, pois antes de finalizar seu material, podem
realizar vários testes para então escolher o que consideram ser o melhor. Assim, o
desenvolvimento da tecnologia digital e do computador transformou o modo de fazer cinema.
Não restam dúvidas que o cinema está em constante transformação, misturando
técnicas experimentais – hoje, com a ajuda de computadores e softwares - com técnicas
clássicas – do Primeiro Cinema. Esse novo formato, o digital, criado ainda no século XX,
possui características muito peculiares. Manovich chama esse novo formato de Nova Mídia, e
uma de suas particularidades, e talvez a mais importante, seja ao fato de que, praticamente,
todos os formatos de linguagem possam ser traduzidos/convertidos para o digital.
Manovich define Nova Mídia como a convergência de duas trajetórias históricas
paralelas: a tecnologia computacional e a tecnologia mediática. Isso quer dizer que o
cruzamento digital entre o computador, desenvolvido para realizar cálculos de dados
numéricos, e as mídias, que permitem o arquivo de imagens, sons, textos sob diferentes
formas, é, resumidamente, o cruzamento entre dados numéricos e arquivos. Isso quer dizer,
como explica Lucia Santaella (2004) que, a revolução possibilitada pelas tecnologias digitais
88

tem seu principal ponto de partida na computação e na possibilidade de converter qualquer


informação (texto, som, imagem, vídeo) em uma linguagem universal. Através da
digitalização e da compressão de dados que ela permite, todas as mídias podem ser traduzidas,
manipuladas, armazenadas, reproduzidas e distribuídas digitalmente, produzindo o fenômeno
que vem sendo chamado de ‘convergência de mídias’.
O fenômeno da convergência das mídias está bastante presente no nosso dia a dia.
Henry Jenkins, autor do livro A cultura da convergência, nos oferece uma alternativa para
entender o momento atual, um momento onde as velhas e as novas mídias colidem, se
cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras
imprevisíveis. Para Jenkins, vivemos uma transição, uma reconfiguração que vem quebrando
paradigmas que profetizavam o fim de uma mídia com o advento de outra, como exemplo o
fim da TV com o advento da internet, ou do cinema com o advento do vídeo. Ele chama esse
pensamento de ‘paradigma da revolução digital’, sendo que o “paradigma da convergência
presume que novas e antigas mídias irão interagir de formas cada vez mais complexas”
(JENKINS, 2008, p. 30-31).
Em seu livro The Language of New Media (2001), Manovich esclarece que embora
algumas características desse novo formato midiático deixem o novo processo com maior
fluidez, essas características não são regras fechadas e sim tendências que podem ser
seguidas. A maior vantagem do digital é que esse novo sistema trouxe a unificação dos
formatos em um único – o digital. O autor argumenta também que a constante presença da
ação dos softwares permite que as novas mídias ampliem sua capacidade de influenciar outros
meios:

[...] computer media revolution affects all stages of communication,


including acquisition, manipulation, storage, and distribution; it also affects
all types of media – text, still images, moving images, sound, and spatial
constructions. (MANOVICH, 2001, p. 19)44

Como já vimos, os primeiros minutos de A invenção de Hugo Cabret são bastante


marcantes, por vários aspectos. Um deles é que o filme começa despertando primeiro nossos
ouvidos: o som de um trem e de um mecanismo não especificado antecedem o surgimento da
imagem, numa composição extradiegética. A imagem então aparece e ocupa toda a tela. Num

44
[...] a revolução midiática computacional afeta todos os estágios da comunicação, incluindo a aquisição,
manipulação, arquivamento e distribuição, afetando também todos os tipos de mídias – textos, imagens fixas,
imagens em movimento, sons e constrições espaciais. (livre tradução da autora)
89

plano detalhe aparece uma complexa engrenagem, que aos poucos vai se transformando em
Paris, que aparece em um plano geral. Tanto as engrenagens como a cidade têm a mesma
tonalidade dourada. O som é um elemento importante nas produções contemporâneas, e serve,
como mais um elemento de atração, sendo muita vezes, mais importante em determinadas
cenas.
Outro som extradiegético bastante marcante no filme é o provocado pelos saltos de
sapatos femininos que ecoam pela estação. Ele faz Méliès lembrar que teve que vender seus
filmes e que eles foram derretidos para fazer, entre outras coisas, saltos de sapatos. Na cena de
perseguição do início do filme (figuras 60 a 62) a música extradiegética também se faz
presente, no momento em que o inspetor, todo atrapalhado, pisa em um dos instrumentos
musicais e, depois de livrar-se dele, ordena que continuem. Nesse instante a música
extradiegética (a mesma música que estava sendo tocada antes da parada) começa a tocar
novamente, como se nada tivesse acontecido e, sem que os músicos tivessem se reorganizado
para voltar a tocar.
A imagem inicial do filme (figura 43) compara o funcionamento de uma cidade como
Paris (figura 44) com a complexidade de um mecanismo dos relógios de corda, sendo
também, a primeira relação com a tecnologia. Os travellings – engrenagem se transformando
em Paris (figuras 44 e 45), e as fusões entre a chegada de trens e os trens que passam na tela
3D, criam um efeito de realidade a ponto de surpreender o público da sala escura e fazer com
que ele reaja com as imagens tridimensionais. É bom lembrar que, a sobreposição de imagens
é um dos efeitos especiais mais antigos e que ainda é utilizado com bastante frequência.
Méliès já utilizava a sobreposição no início do século passado.

Figuras 43 e 44– engrenagem se transforma na cidade – sobreposição/transformação


Fonte das figuras 43 e 44: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)
90

Figuras 45– uma agitada Paris surge por fusão, a partir das engrenagens
Fonte: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

A chegada da tecnologia digital é considerada por muitos estudiosos como o terceiro


marco da história do cinema, além do som e da cor. Mas, assim como em épocas anteriores,
muitos cineastas resistiram à nova tecnologia, como Chaplin resistiu ao som, por exemplo.
Com isso, a realização de filmes convencionais pode até se tornar uma ‘opção meramente
estética’ e não mais uma limitação técnica, como podemos verificar com as produções em
preto e branco de Alfred Hitchcock na década de 1960, ou ainda nos filmes mudos, como o
premiado O artista, de Michel Hazanavicius, de 2011.
As imagens geradas por computador somam-se, no cinema, aos vídeos, simulações,
games, realidade virtual, para compor um novo espetáculo de variedades. O cinema digital em
3D proporciona também o que Janet Murray chama de imersão:

A experiência de ser transportado para um lugar primorosamente simulado


é prazerosa em si mesma, independentemente do conteúdo da fantasia.
Referimo-nos a essa experiência como imersão. ”Imersão” é um termo
metafórico derivado da experiência física de estar submerso na água.
Buscamos de uma experiência psicologicamente imersiva a mesma
impressão que obtemos num mergulho no oceano ou numa piscina: a
sensação de estarmos envolvidos por uma realidade completamente estranha,
tão diferente quanto a água e o ar, que se apodera de toda a nossa atenção, de
todo o nosso sistema sensorial. Gostamos de sair do nosso mundo familiar,
do sentido de vigilância que advém de estarmos nesse lugar novo e do
deleite que é aprendermos a nos movimentar dentro dele. [...] Mas um meio
participativo, a imersão implica aprender a nadar, a fazer coisas que o novo
ambiente torna possíveis. (MURRAY, 2003, p. 102)
91

É essa experiência de ‘imersão’ que vivenciamos nas salas escuras quando assistimos
um filme em 3D. Segundo Manovich (2001, p. 146), “ the fictional cinema, as we know it, is
based upon lying to a viewer45”, e, entre tantas possibilidades de se ‘mentir através de
imagens’, estão os efeitos especiais. A intenção de contar uma história através de uma
sequência de imagens pressupõe que haverá encenações, portanto a expressão ‘mentir para o
espectador’ não significa enganá-lo, mas mostrar a ele uma série de imagens que não são
necessariamente reais, ou próximas dela, e que as ações ali demonstradas não precisam
necessariamente ser verossímeis.
Com relação aos efeitos especiais, Mitch Mitchel (2004) e outros autores preferem o
uso da terminologia efeitos visuais:

“Visual effects” is a relatively new term and describes what used to be more
appropriately called “special photographic effects”. When “optical
printers” started to be used extensively in the field, the term “optical
effects” was adopted for short time; then, in the early days of television
when the signal went out live, it was called “ electronic”; with the use of
video post-production it became “video”, and then, finally, with the invasion
of computers, it was termed “digital” effects. During this ever-changing
background the term “special visual effects” and then simply “visual
effects” (VFX) was increasingly adopted to describe what has once been
called photographic effects. However, this term was no longer appropriate,
since frequently in their preparation a camera was no longer used.
(MITCHEL, 2004, p. 32)46

O surgimento de tecnologias de efeitos visuais permitiu o uso mais livre desses novos
elementos e em muitos casos, limitações físicas foram abolidas. Seguindo a terminologia de
Mitchel, os efeitos visuais podem ser usados em diversas situações. A primeira delas é quando
se pretende algo que não existe, como no caso da ficção científica, quando é preciso criar
seres imaginários ou alienígenas. Também é bastante comum usar efeitos especiais na
produção de cenas perigosas e humanamente impossíveis (figura 46). E, por último, quando
são usados efeitos visuais para ‘consertar’ coisas, como corrigir erros não intencionais que

45
“O cinema ficcional, como conhecemos, é baseado em mentir para o espectador.” (livre tradução da autora)
46
“Efeitos visuais” é um termo relativamente novo e descreve o que antes era chamado de “efeitos fotográficos
especiais”. Quando as “impressoras ópticas” começaram a ser usadas com maior frequência na produção de
audiovisuais, o termo “efeitos ópticos” foi adotado por um curto período de tempo; nos primeiros dias da
televisão, quando o sinal era enviado ao vivo, passou-se a usar a palavra “eletrônico”; com o uso do vídeo na
pós-produção o termo adotado foi “vídeo”; mais tarde, com a invasão dos computadores, “efeitos digitais”.
Durante este período de grandes mudanças o termo “efeitos visuais espaciais” e depois simplesmente “efeitos
visuais” tornou-se cada vez mais comum para descrever o que uma vez foi chamado de “efeitos fotográficos”.
Entretanto, este termo não é mais apropriado já que se tornou frequente a não utilização de câmeras fotográficas
em sua produção. (livre tradução da autora)
92

demandariam um custo muito alto para serem regravados, ou ainda, para descaracterizar ou
recriar um local.
Hoje é possível criar mundos completamente artificiais de forma realista, o que acaba
sendo uma contradição. O público sabe que aquelas imagens não são reais, no entanto aceita e
‘embarca’ nessa ideia. A maioria das cenas de atropelamentos e acidentes são criadas
virtualmente (figuras 46, 57, 59 e 101). Para diminuir custos, muitos elementos da cena são
inseridos digitalmente. Um bom exemplo é o caso das imagens de multidões: em vez de
contratar centenas de figurantes, se grava apenas com algumas pessoas e, as demais, são
replicadas diretamente no computador. Fumaça (figura 39), gotas de chuva e neve (figuras 35
a 38) também podem ser adicionadas posteriormente. Isso acontece porque surgem, a cada
dia, novos softwares, que possibilitam a manipulação de imagens facilitando a criação de
ambientes artificiais, e o realismo dessas imagens sintéticas acaba, muitas vezes, até por
dispensar a construção de ambientes físicos.

Figuras 46 e 47– efeitos especiais na simulação de uma ação real


Fonte figura 46: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)
Fonte figura 47: (frame do making off de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

No filme analisado, graças à tecnologia digital foi possível recriar, além da Paris dos
anos 30, o estúdio de cinema de Méliès, a Star Film (figuras 48 a 50) que já não existe mais,
senão em fotografias e alguns rolos de filmes preservados e, na memória daqueles que
viveram naquela época e que ainda estão vivos. Manovich explica melhor como isso
funciona:
93

A perfect example is the construction of a cinematic space. Traditional


fiction film transports us into a space – a room, a house, a city. Usually,
none of these exists ins reality. What exists are a few fragments carefully
constructed in a studio. Out of these disjointed fragments, a film synthesizes
the illusion of a coherent space. (MANOVICH, 2001, p. 146)47

Figuras 48 a 50 – ascensão e declínio do Star Film – recriado pelos computadores


Fonte das figuras 48 a 50: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Scorsese teve a preocupação de retratar o estúdio como se estivesse em sua plena


atividade, como ‘fábrica de sonhos’, mostrando mais uma vez o espírito inovador de Méliès
que, já nas suas primeiras produções estava atrás de um cinema fantástico de qualidade, tanto

47
Um exemplo perfeito é a construção de um espaço cinemático. Os filmes de ficção tradicionais nos
transportam para dentro de um espaço – um quarto, uma casa, uma cidade. Normalmente, nenhum destes existe
na realidade. O que existe são poucos fragmentos cuidadosamente construídos em estúdio. A partir destes
fragmentos desconexos, um filme sintetiza a ilusão de um espaço coerente. (livre tradução da autora)
94

que criou um espaço visando o melhor aproveitamento da luz natural. Além dos dias de
glória, através de uma sequência de pouco segundos, vemos o castelo de vidro de Méliès ruir,
através de sobreposições de imagens. “O tempo não foi gentil com filmes antigos”, diz Tabard
para Hugo e Isabele.
No início do século passado não havia o chroma key: os filmes eram todos
monocromáticos. A sobreposição realizada naquela época, no entanto, utilizava técnica
similar, mas com o fundo preto. Em todas essas imagens (figuras 46, 47, 51 a 56) podemos
procurar entender como foram realizadas essas e outras cenas do filme. O fundo verde
(chroma-key), na pós-produção, é preenchido com outras cenas, que podem ser gravadas ou
produzidas digitalmente. É o que podemos observar nas referidas figuras, quando verificamos
como essas cenas foram produzidas, como foram filmadas em estúdio (figuras 47, 51, 53 e
55) e o resultado delas, depois da edição ou pós-produção (figuras 46, 52, 54 e 56). É assim
também, que atores e objetos podem ser colocados em qualquer lugar. O chroma-key também
é usado, no cinema, para proporcionar encontros impossíveis como o aperto de mão entre o
personagem Forest Gump e o presidente Kennedy (que já estava morto quando o filme foi
realizado), no filme de mesmo nome, em 1994.
Na produção de Scorsese, comparando imagens do making off e do filme editado,
podemos constatar como foram realizadas algumas cenas de A invenção de Hugo Cabret.
Tomando como exemplo as figuras 53 e 54, verifica-se que a cena foi feita em estúdio e que o
cenário inicial incluía apenas a pequena ponte onde os dois amigos conversavam. Com a
utilização do chroma key, mais tarde, foram inseridas imagens da cidade e Paris ao fundo,
criando inclusive a ideia de profundidade de campo. Nessa cena, a primeira camada é
composta pelos dois amigos e a ponte. A cidade ao fundo forma uma segunda camada, assim
como a variação de luz e sombras, que podem ser controladas individualmente para se obter
um resultado mais perfeito.
O mesmo processo acontece nas figuras 55 e 56: filmagem em estúdio e só depois a
inclusão de imagens da estação com toda sua particularidade, ou seja, trens chegando e
saindo, dos passageiros na estação, recriação de Montparnasse dos anos 30 e clima criado
pelos sons e fumaças que dão à cena um ar de saudosismo.
95

Figuras 51 e 52 – bastidores reais e computação gráfica


Fonte da figura 51: (frame do making off de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)
Fonte figura 52: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Figuras 53 e 54 – criação de cenários que não existem mais


Fonte da figura 53: (frame do making off de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)
Fonte da figura 54: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Figuras 55 e 56 – criação de cenários que não existem mais


Fonte da figura 55: (frame do making off de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)
Fonteda figura 56: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)
96

Voltando ao que Gunning chamava de ‘cinema de atrações’, podemos dizer que


muitas cenas criadas por Scorsese “são uma atração por si só”. Uma delas acontece quando os
dois amigos discutem e se perdem entre os passageiros da estação. Isabele cai no chão (figura
57) e então podemos ‘ver’ as possibilidades criadas pelo cinema digital: numa sequência
vemos Isabele no chão e a estação lotada em horário de rush; em seguida, assumimos o ponto
de vista de Isabele, inclusive com a sensação de que as pessoas estão pisando em nós
(podemos ver a sola dos sapatos dos passageiros – figura 58), e então ela sendo pisoteada
(figura 59). Nesse instante acontece a mescla de imagens de Isabele e dos pés dos passageiros.

Figuras 57 a 59 – ‘efeito’ que permite ver a queda de Isabelle sob diferentes pontos de vista
Fonte das figuras 57 a 59: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

A produção das cenas das figuras 57 a 59 só foi possível graças ao que chamamos de
Computer Generated Imagery, CGI ou CG (computação gráfica como é conhecido no Brasil).
Hoje, a CG é parte integrante de boa parte dos efeitos visuais gerados para cinema e vídeo.
Os efeitos digitais substituíram quase que em sua totalidade os efeitos visuais da era
analógica.
A invenção de Hugo Cabret, objeto dessa pesquisa, também levanta a pergunta que o
próprio Manovich faz em seu livro The Language of New Media: o que é nova mídia? Ele
mesmo responde:

Live-action footage is now only raw material to be manipulated by hand –


animated, combined with 3D computer generated scenes, and painted over.
The final images are constructed manually for different elements, and all
the elements are either created entirely from scratch or modified by hand.
Now we can finally answer the question “What is digital cinema?” Digital
cinema is a particular case of animation that uses live-action footage as one
of its many elements. (MANOVICH, 2001, p. 302)48

48
A metragem de ação real agora é somente uma matéria prima que será manipulada à mão: combinada com
sequências 3D criadas por computador e pintada. As imagens finais se constroem manualmente a partir de
distintos elementos, que são todos, ou bem criados exclusivamente partindo do zero, ou modificados à mão.
Agora podemos por fim responder a pergunta: O que é cinema digital? O cinema digital é um caso particular da
animação, que utiliza metragem de ação real como um de seus múltiplos elementos. (livre tradução da autora)
97

Assim, temos a potência dos efeitos especiais utilizados em muitas produções


recentes, já presentes nas obras de Méliès, comprovando que esses efeitos não são fruto da
atualidade e que seu uso está presente no cinema desde o princípio. Apesar das sobreposições
realizadas pelo cinema digital terem mais precisão técnica que as dos filmes de Méliès, não
podemos considerá-las melhores ou piores, mesmo porque não temos como recriar as
condições tecnológicas e sociais existentes para sabermos como o público daquela época
recebia tais produções.
Tão importante quanto estudar as novas tecnologias no cinema é voltar nosso olhar
para as primeiras experimentações e conseguir lá identificar as bases do cinema
contemporâneo. Assim vamos poder comprovar que as experimentações com diferentes
tomadas, a descoberta dos movimentos de câmera, as aproximações, distanciamentos, os
detalhes, os efeitos especiais que foram descobertos, por acaso ou não, são usados no cinema
atual com naturalidade.

3.3. OUTRAS APROXIMAÇÕES

O filme de Scorsese também presta sua homenagem aos ‘filmes de perseguição’ do


início do século passado, quando mostra Hugo correndo pela estação tentando se livrar do
inspetor (figuras 60 a 63). Essa é uma cena recorrente em várias partes do filme. Costa
descreve tais filmes como aqueles que “compunham-se de um quadro inicial, em que
acontecia uma ação que gerava algum tipo de perseguição, e de quadros subsequentes em que
a perseguição se desenrolava e terminava” (COSTA, 2008, p. 49). Eram, portanto, filmes mais
longos que passaram a utilizar cenários naturais (como a estação, nesse caso) e cuja amplitude
podia conter as pequenas multidões que essas histórias envolviam.

Figuras 60 a 62– homenagem aos filmes de perseguição do Primeiro Cinema


Fonte das figuras 60 a 62: (frames de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)
98

Figuras 63 a 65– Hugo ‘encontra’ com James Joyce e Salvador Dali jovens
Fonte da figura 63: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)
Fonte da figura 64: (Google imagens49- recorte da autora)
Fonte da figura 65: (Google imagens50 - recorte da autora)
:

Nos filmes de perseguição do Primeiro Cinema, cada plano era uma verdadeira atração
(figuras 60 a 62), na medida em que cada plano mostrava o perseguido e o perseguidor tendo
que ultrapassar obstáculos variados, como explica Gunning. “A perseguição esboça uma
tentativa de construção de um espaço contínuo fictício. Mas essa construção não se completa,
fica apenas indicada”. (COSTA, 2008, p. 51). Na cena de perseguição do filme de Scorsese,
Hugo percorre uma boa parte da estação, entrando e saindo de vários locais e interagindo,
mesmo sem querer, com várias pessoas que estão no seu caminho. Temos ainda como bônus a
‘presença’ de outras duas importantes figuras relembradas por Scorsese: o escritor James
Joyce (1882-1941 - figura 64) e Salvador Dalí (1904-1989 – figura 65), retratados em uma
mesa em frente à cafeteria da estação (figura 63), enquanto Hugo foge do inspetor. O
roteirista John Logan e Scorsese tiveram o cuidado de fazer uma pesquisa detalhada para
realizar essa produção, assim, a ficção e realidade se encontram em vários momentos do
filme.

49
<http://www.poetryfoundation.org/bio/james-joyce>
50
<http://www.lefrancofile.com/wp-content/uploads/2013/05/portrait-of-salvador-dali-paris.jpg.png.jpeg>
99

Outra experiência visual, que surgiu durante o Primeiro Cinema, e que é largamente
usado hoje nas produções contemporâneas, é o panthom ride, idealizado em 1898, por Albert
Smith. Consistia em colocar uma câmera em frente a um objeto em movimento, um trem por
exemplo, e a partir daí mostrar as imagens de tudo que estava na frente ou ao lado daquele
objeto, dando a impressão de que o movimento daquela câmera parecia estar vindo de uma
força invisível. O termo panthom ride ou ‘passeio fantasma’ foi aplicado porque não havia
meios visíveis de propulsão e são considerados um dos primeiros tipos de imagens em
movimentos apresentados no cinema. Como a maioria dos filmes, antes dos passeios
fantasma, usavam câmeras fixas e as cenas eram desenvolvidas diante delas, esse novo ‘estilo
de filmar’ acabou popularizando a ideia de movimento, criado pelo próprio movimento da
câmera, e isso viria a se tornar uma das maneiras mais eficazes do cinema colocar o público
no lugar de um viajante. “Filmes com mais de um plano só começaram a aparecer no final da
década de 1890, e a combinação de Smith de plano interno e travelling foi uma das primeiras
tentativas do cinema de dizer ‘enquanto isso’” (COUSINS, 2013, p. 25).
A sensação visual proporcionada pelo phanton ride foi também bastante difundida nas
feiras do início do século XX, com as experiências do Panorama, Mareorama e o Cineorama.
Todas elas consistiam em um ambiente de simulação. Décadas mais tarde, Morton Leonard
Heilig resgata aquelas primeiras experiências e apresenta o Sensorama, em 1961, o que
descreve como o ‘cinema do futuro’. O Sensorama consistia em um dispositivo de
visualização 3D com imersão e interação dos cinco sentidos humanos. Depois dele, outras
experiências, como o cinema 180º e 360º, vêm sendo amplamente difundidas, não só nas
feiras do século XXI, como também em espaços menores, inclusive dentro de shoppings
centers, em exibições com público menor. Além disso, temos as experiências do ‘cinema
expandido’, definido por Gene Youngblood, como sendo um cinema com estética provocada
pela sensação sinestésica, de mente expandida, em um processo cerebral manifesto diante das
sensações dos outros sentidos, além da visão e audição, básicos para o cinema, no embate
com a obra expandida. Assim podemos dizer que tanto o cinema 180º e 360º, simuladores e
filmes 3D e 4D e o cinema expandido se assemelham aos pioneiros do Primeiro Cinema, que
já se mostravam capazes de criar instalações sofisticadas, somente com os recursos
disponíveis na época.
Manovich lembra que, nos dispositivos do final do século XIX e inicio do século XX,
as imagens eram criadas e animadas manualmente, ou através de truques, como fazia Méliès.
O autor conta que, os operadores da lanterna mágica ou das fantasmagorias, por exemplo,
moviam-se atrás das telas para projetar as imagens na frente dos espectadores. Aparelhos
100

como mutoscópio, zootrópio, vistascópio, quinetoscópio entre outros, eram frequentemente


utilizados em ambientes privados e o mecanismo de funcionamento deles exigiam, em vários
momentos, a ação manual de seus operadores. A base do seu funcionamento era o loop, que,
de acordo com a característica de cada dispositivo, permitia que uma ou mais sequências de
uma ação completa fossem repetidas seguidamente. Com o passar dos anos, com a expansão e
fixação do cinema no cenário mundial, estes instrumentos tornaram-se obsoletos. Quando o
regime visual do cinema se estabelece, a irregularidade, o acidente e o esforço humano que
proporcionava o movimento das imagens em exibição são substituídos pela uniformidade
proporcionada pela captação da imagem pela máquina de filmar.

Once the cinema was stabilized as a technology, it cut all references to its
origins in artifice. Everything that characterized moving pictures before the
twentieth century – the manual construction of images, loop actions, the
discrete nature of space and movement – was delegated to cinema’ bastard
relative, its suplement and shadow – animation. Twentieth- century
animation became a depository for nineteenth- century moving-image
techniques left behind by cinema. (MANOVICH, 2001, p.298)51

Para Manovich, na década de 1990, o cinema descobre-se novamente nas novas mídias
e todas as técnicas que foram marginalizadas durante o século XX, com a predominância das
filmagens da ação ao vivo, voltam novamente ao centro da prática cinematográfica. As
técnicas de construção manual e animação das imagens presentes no nascimento do cinema
reaparecem na fundação do cinema digital. Desta forma, o filme de George Lucas, por
exemplo, Stars Wars: Episode 1 – The Phantom Menace, que teve apenas 5% de sua
produção realizada em um set tradicional de filmagem e 95% do filme construído via
computador, serve como um bom exemplo para ilustrar o argumento do teórico russo sobre o
retorno das técnicas manuais de construção da imagem. O mesmo aconteceu com A invenção
de Hugo Cabret, obra que foi basicamente realizada através da composição de cenários em
3D.
Outro exemplo interessante nas produções contemporâneas em 3D é a reutilização de
tecnologias anteriores, como a velha técnica usual do loop, agora presente em design de
games e softwares como o Quick Time Player (programa que permite que computadores
pessoais reproduzam filmes), que transmitem a impressão de imersão e de movimento.

51
Quando o cinema foi estabelecido como uma tecnologia, ele cortou todas as referências a suas origens de
artifício. Tudo o que caracterizava as imagens em movimento antes do século XX – a construção manual das
imagens, os loops e o espaço de natureza discreta presente no movimento – foram delegadas ao parente bastardo
do cinema, o seu suplemento e sombra, a animação. No século XX, a animação tornou-se um depositário das
técnicas da imagem em movimento do século XIX deixadas de lado pelo cinema. (livre tradução da autora)
101

Segundo Manovich, a introdução do Quick Time, em 1991, pode ser comparada à criação do
kinetoscópio de Thomas Edison em 1892, já que ambos são usados para apresentar pequenos
loops e possibilitam uma visão individual de uma exibição de uma coleção (uma numa caixa
fechada e outra na tela do computador) e não a imagem para um público:

The introduction of Quick Time in 1991 can be compared to the introduction


of the Kinetoscope in 1892: Both were used to present short loops, both
featured images approximately two by three inches in size, both called for
private viewing rather than collective exhibition. The two technologies even
appear to play a similar cultural role. If in the early 1890s the public
patronized Kinetoscope parlors where peep-hole machines presented them
with the latest marvel – tiny, moving photographs arranged in short loops –
exactly a hundred years later, computer users were equally fascinated with
tiny Quick Time movies that turned a computer in a film projector, however
imperfect. (MANOVICH, 2001, p. 313)52

Outra característica importante é o contexto de exibição cinematográfica imposta por


estes dois momentos da história cinematográfica. Nas origens do cinema, os espectadores se
entregavam aos prazeres visuais, na maioria das vezes, em espaços públicos como panoramas,
dioramas, dispositivos similares e casas de espetáculos, nas quais se podia também comer,
beber e dançar. Os primeiros filmes eram exibidos nestes locais como atrações não exclusivas
e repartiam com outras mídias a atenção do público. “Este ambiente concorria diretamente
com o lugar simbólico da tela, desviando a atenção do espectador e solicitando-o
permanentemente” (MACHADO apud COSTA, 2008, p. 100). Nos dias de hoje, as salas de
cinema foram adaptadas para exibição de filmes em 3D. Além disso, temos ainda outras
tecnologias como a televisão, vídeo, internet e telefones móveis, dispositivos que tornam
móveis e fluidos os espaços de consumo das imagens. Embora esta diversificação nas formas
de consumir filmes tenha transformado nossa experiência fílmica, nem por isso extinguiu o
prazer de assistir um filme numa sala de cinema.
Além disso, o cinema contemporâneo está experimentando uma espécie de
dependência com as demais mídias, uma vez que boa parte das produções lança

52
A introdução do Quick Time, em 1991 pode ser comparada à introdução do Kinetoscópio em 1882: ambos
foram utilizados para apresentar circuitos curtos, caracterizados por imagens de aproximadamente dois
centímetros de tamanho, tanto para o espectador privado quanto para exposição coletiva. As duas tecnologias
desenvolvem até um papel semelhante culturalmente. No início dos anos de 1890, o público padrão dos salões do
Kinetoscópio onde estas máquinas foram apresentadas como uma última maravilha – pequenas imagens em
movimento dispostas em circuitos – exatamente cem anos depois, os utilizadores de computadores estão
fascinados com Quick Time que é uma mistura de computador e projetor cinematográfico, porém imperfeito.
(livre tradução da autora)
102

simultaneamente à produção fílmica, outros produtos como games. Nos seus primeiros anos,
o cinema era um espetáculo que não se sustentava sozinho, por ser uma atividade nova, ainda
desconhecida. Hoje, o cinema blockbuster parece vivenciar algo parecido, na medida em que
precisa das outras mídias para ter o retorno financeiro planejado. Em ambas as épocas, o
cinema não pode ser considerado uma atividade autônoma, mas por razões diferentes: a
primeira pela inovação e, a segunda, por questões financeiras.
Na atualidade, há uma tendência em se discutir o cinema digital, que aponta caminhos
para uma maior participação do público; isso nos faz voltar ao passado, na época do Primeiro
Cinema, com suas experimentações e que, hoje em dia, ocorrem com as novidades
tecnológicas.

3.4. INTERTEXTUALIDADE

Nesse item, especificamente, vamos tentar analisar e demonstrar algumas das


referências encontradas em A invenção de Hugo Cabret, obra rica em informações. É claro
que a identificação de muitas dessas referências vai estar intimamente ligada ao repertório
que cada pessoa possui. O autor explica ainda que, dessa forma, a intertextualidade cria ‘uma
ponte’ entre o filme e o banco de dados cultural já carregado pelo público. Se o espectador
não assistiu os outros filmes, não deixa de entender a história. Porém, se conhece, terá maior
domínio sobre a trama do filme em questão. Quanto mais referências possuir, maior
conhecimento terá do todo, da complexidade dos personagens em que foram inspirados
intelectualmente, das citações e da intertextualidade. Sobre o assunto, Samira Chalhub tem a
dizer que:

A variabilidade ou relatividade do repertório – que, grosso modo, podemos


conceituar como sendo ‘arquivo cultural’ de cada um de nós – implica uma
relação dialética entre repertório e informação. Se uma mensagem organiza-
se de modo a provocar reconhecimento de conceitos e formas já adquiridos
pelo receptor porque fazem parte do senso comum da cultura, o público se
amplia. (CHALHUB, 2001, p.15)

Mais uma vez aqui, esclarecemos que, embora falemos sobre o espectador, esse
também não é um trabalho sobre recepção, e tem o intuito único e exclusivo de demonstrar a
riqueza intertextual da obra analisada, comprovando através do cinema contemporâneo
103

digital, a importância do Cinema Mudo e do Primeiro Cinema, muito bem referenciados no


filme analisado.
Dentre os elementos que passam a compor ou alterar a linguagem cinematográfica
está a intertextualidade e ela funciona como um recurso capaz de acrescentar criatividade à
obra como também ampliar seus significados. A intertextualidade não é um recurso novo no
cinema, ou seja, esteve sempre presente, mas por motivos diferentes.
O termo foi criado por Julia Kristeva a partir de leituras da obra de Mikhail Bakhtin.
Filmes que retomam filmes, quadros que dialogam com livros, propagandas que se utilizam
de discursos de outros, todas essas referências são o que a autora definia como
intertextualidade: “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1974, p. 64).
Ingedore Koch afirma que a intertextualidade ocorre “quando, em um texto, está
inserido outro texto anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma
coletividade ou da memória discursiva dos interlocutores” (KOCH, 2007, p.17). Assim, o
intertexto geralmente parte de obras consideradas do conhecimento da maioria das pessoas e é
muito comum observarmos a intertextualidade no cinema, que se vale desse recurso. Embora
Koch se refira mais à intertextualidade em relação à literatura, quando afirma que para que o
intertexto se realize de fato no plano da produção, faz-se necessária também sua realização no
plano da leitura, podemos aplicar sua conceituação no campo do cinema, uma vez que é
possível identificar referências de obras passadas nas produções contemporâneas. Wilton
Garcia, em seu livro Introdução ao cinema intertextual de Peter Greenaway, concorda com
Koch e afirma que “a intertextualidade é uma infinita troca de sentidos entre a obra e os
espectadores” (GARCIA, 2000, p.31).
Apesar da palavra ‘intertexto’ remeter à ideia de texto escrito e estático, ela pode ser
aplicada a qualquer tipo de mídia como livros, pinturas, filmes, pois segundo Kristeva a
“noção de texto é muito vasta: pode referir-se a obras literárias, linguagens orais ou sistemas
simbólicos de natureza social ou inconsciente” (KRISTEVA apud ALÓS, 2006, p. 14).
Assim, tanto se caracteriza como processo de interação verbal, oral e escrito, quanto não
verbal, não esquecendo que o cinema pode ser entendido como uma ‘obra híbrida’, pois pode
reunir mais de um código, ou vários.
Gérard Genette, que estudou as teorias e obras de Bakhtin e Kristeva, propõe o termo
transtextualidade, ampliando o conceito de intertextualidade. Para o autor (1982, p. 8), a
transtextualidade e seus tipos são mais que uma categorização do texto, são aspectos da
textualidade.
104

Segundo o autor, existem cinco tipos de relações transtextuais estabelecidas pelo


autor: intertextualidade, paratextualidade, metatextualidade, hipertextualidade e
arquitextualidade. Ele deixa claro na sua obra Palimpsestes: la littérature au second degré
(1982), que estas classificações não são estanques, e que pode acontecer, por vezes, a invasão
de um tipo ao domínio do outro, mesmo porque estamos tratando de diálogos. Aponta
também a maneira como os textos devem ser estudados, não apenas em sua singularidade,
mas nas relações com outros textos.
O que nos interessa nessa pesquisa é a intertextualidade e, com relação a ela, Genette
afirma que intertextualidade é uma espécie de co-presença entre dois ou vários textos, ou
ainda, a presença efetiva de um texto em um outro. O que Kristeva chama de ‘absorção’,
Genette denomina de ‘co-presença’. Para Genette, são três as formas mais frequentes de
ocorrência intertextual:

[…] sa forme la plus explicite et la plus littérale, c’est la pratique


tradittionelle de la citation (avec guillemets, avec ou sans reference
precise); sous une forme moins explicite et moins canonique, celle du plagiat
[…]; sous forme encore moins explicite et moins littérale, celle de l’allusion
’est-à-dire d’un énoncé don't la pleine intelligence suppose la perception
d’un rapport entre lui et un autre auquel renvoie nécessairementtelle ou telle
de ses inflexions, autrement non recevable. (GENETTE, 1982, p. 8)53

Perceber tais ocorrências, assistindo A invenção de Hugo Cabret, nos leva a ir além do
‘puro entretenimento’ e, dependendo do repertório de cada um, é possível identificar as várias
referências e homenagens de Scorsese ao Cinema Mudo. Vamos procurar enumerar algumas
delas, cientes que corremos o risco de não possuir um repertório completo e acabado, mas em
contínuo desenvolvimento. Além disso, todos os elementos intertextuais que serão
apresentados e comentados separadamente, no desenvolvimento da narrativa de Scorsese, são
postos em diálogo constante, criando, de fato, um mosaico e citações, como vamos poder
verificar.

53
[...] sua forma mais explícita e mais literal é a prática da citação (com aspas, com ou sem referência precisa;
sua forma menos explícita e menos canônica é a do plágio [...]; sua forma ainda menos explícita e menos literal é
a alusão isto é, um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro, ao
qual necessariamente uma de suas inflexões remete. (livre tradução da autora)
105

Figuras 66 – livros como fábrica de sonhos Figuras 67 – homenagem ao cinema mudo


Fonte das figuras 66 e 67: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Edgar-Hunt (2013, p. 74), em seu livro A linguagem do cinema, conta que a forma
mais clara de citação é a apropriação de um texto por outro. “Esse ‘copia e cola’ de um
material é relativamente raro, mas bastante instrutivo”. É justamente isso que acontece
quando Isabele cita várias obras literárias e autores nas suas conversas com Hugo, entre eles o
poema Um aniversário, da poetisa Christina Rossetti e, David Copperfield, de Charles
Dickens. Mais à frente vamos mostrar outros exemplos quando os amigos estão pesquisando
sobre cinema na Biblioteca Nacional.
Na figura 66 vemos a obra literária de Alexandre Dumas, Robin Hood, momento em
que Hugo lembra do filme que assistiu com seu pai, estrelado por Douglas Fairbanks (ator do
cinema mudo conhecido pelos papéis de homem corajoso, valente e sedutor). Além de
produções cinematográficas que marcaram a primeira época do cinema, Scorsese faz questão
de lembrar de alguns de seus ‘astros’54.
Hugo associa sua ida ao cinema como algo especial, tanto que conta a Isabele que seu
pai sempre o levava ao cinema no dia de seu aniversário. Ele lembra do pai contando sobre o
primeiro filme que assistiu. Descreve a cena para Isabele: entrou numa sala escura e numa tela
branca viu um foguete voar para dentro do olho do homem da Lua. “É como ver os sonhos no
meio do dia!”, recorda da fala do pai.
A partir daí somos apresentados a um vasto ‘menu’ de sucessos do fim da era muda. Já
percebemos uma das homenagens de Scorsese ao cinema quando Hugo leva a amiga ao
cinema pela primeira vez – a fachada do prédio apresenta um Festival de Cinema Mudo
(figura 67). Pelos cartazes podemos perceber o anúncio dos filmes de Max Linder, Harrold
54
Somente após o desenvolvimento dos grandes estúdios surgiu o ‘star system’, um sistema de ‘fabricação’ de
estrelas que encantavam as plateias. Dentre as estrelas do cinema mudo podemos destacar, entre outros, Charles
Chaplin, Buster Keaton, Harold Lloyd, Laurel and Hardy, além é claro, de Douglas Fairbanks.
106

Lloyd, Douglas Fairbanks, o comediante Hal Roach, Charles Chaplin, Buster Keaton, Rodolfo
Valentino, entre outros ( figuras 68 a 73).

Figuras 68 a 73 – Scorsese lembra pioneiros, diretores e atores do cinema mudo


Fonte das figuras 68 a 73: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora):

Isabele conta a Hugo que nunca foi ao cinema, pois seu tio nunca permitiu. Então
Hugo tem a ideia de levar a amiga a uma sessão. Lá eles assistem a um filme em que um
homem se esconde fora de um prédio e fica agarrado aos ponteiros de um relógio no alto de
um edifício. É O homem mosca (figura 74), sucesso de 1923 com Harold Lloyd. Mais tarde,
Hugo protagoniza uma cena semelhante ao filme, como pode ser observado comparando as
figuras 74 e 75. Os dois são descobertos pelo lanterninha que os expulsa do cinema.
107

Figuras 74– aventura no cinema Figuras 75–Hugo em referência ao Homem Mosca


Fonte:(frame de O Homem Mosca Fonte: (frame de A Invenção de Hugo Cabret
- recorte da autora) - recorte da autora)

O filme de Scorsese também proporciona uma volta ao tempo, não através de


flashbacks, mas pela abertura da caixa de segredos de Méliès (figura 76). Nela encontram-se
alguns dos esboços do cineasta que, como já falamos, realizava pessoalmente e
incansavelmente, rascunhos de tudo que pretendia transpor para a tela. Na cena em que a
caixa cai das mãos de Isabele, os efeitos especiais digitais proporcionam uma sensação de
ruptura do tempo, onde os desenhos de Méliès flutuam e param no ar, revelando alguns de
seus esboços (figuras 77 a 81). Em alguns momentos vamos poder perceber através de uma
espécie de flip card – o mesmo efeito do início do filme quando Méliès pega o caderno de
Hugo e virando rapidamente as páginas tem o efeito do rosto do autômato em movimento
(figura 33 e 34). Nas duas últimas gravuras podemos acompanhar o dragão soltando fogo pela
boca (figura 80) e uma lagarta gigante se transformando numa mulher com asas de borboleta
colorida (citação da obra La chrysalide e le papillon d’or, de 1900/1901 - figura 81).
Tanto o flip card com o rosto do autômato quanto os do dragão e da lagarta/borboleta
nos remetem à descoberta de Méliès do stop motion, técnica onde um objeto manipulado
fisicamente parece mover-se por conta própria – um dos muitos truques usados pelo cineasta
no decorrer de sua carreira.
108

Figuras 76 a 81 – ‘voo’ dos desenhos de Méliès – volta ao passado


Fonte das figuras 76 a 81: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora):

Logo que vão para a Biblioteca Nacional do Cinema e pegam um livro de René
55
Tabard (figura 82), Hugo e Isabele tomam conhecimento da história do cinema, iniciando
com sua primeira exibição pública, em 1895 (figura 03 e 83). Podemos ver as imagens
recuperadas do trem chegando à estação e ainda observar a reação da plateia daquela primeira

55
Tanto no livro como no filme René Tabard é fã de Méliès. No filme ele é o autor do livro A invenção dos
sonhos: A História dos Primeiros Filmes, que Hugo e Isabele consultam. Tabard é, na vida real, o autor de La
vie avec les morts (A vida com os mortos), obra que propõe uma reflexão sobre a morte com base em
depoimentos de pessoas que se relacionaram com ‘fantasmas’. Considerando que o cineasta, na ficção, havia
morrido na Primeira Guerra, interessante a escolha de Scorsese de um especialista em ‘fantasmas’ para
redescobrir Méliès.
109

exibição: talvez o mesmo espanto que tivemos quando assistimos pela primeira vez a um
filme em 3D. “Ninguém nunca tinha visto nada parecido”, estava escrito no livro de Tabard.
A frase ecoou na memória de Hugo que lembra do quadro que está na livraria do senhor
Labiche. Mais uma vez aqui o intertexto em forma de citação de Genette.

Figuras 82 – início da descoberta do cinema Figuras 83 – viagem no tempo – as origens


Fonte das figuras 82 e 83: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora):

À medida que os amigos viram as páginas do livro de Tabard, são apresentados


trechos de obras que marcaram a história do cinema mudo: o primeiro filme dos irmãos
Lumière, La sortie des Usines (A saída da fábrica, Irmãos Lumière, 1895 – figura 91) e
outras produções como a luta The Corbett-Fitzsimmons Fight, de Enrico Rector, 1897, figura
08), O beijo de May Irvin e John C. Rice (Thomas Edison, 1896 – figura 5), The great train
robbery (Edwin Porter, 1903 - figura 12), Intolerância (D.W. Griffith, 1916), Caixa de
Pandora (Georg Wilhelm Pabst, 1928), A general (Buster Keaton, 1926), O gabinete do
doutor Caligari (Robert Wienne, 1920), O Garoto (Charles Chaplin, 1921), O ladrão de
Bagdá (Raol Walsh, 1924), e, evidentemente, A viagem à Lua (Méliès, 1902 – figura 25).
Essas cenas ‘reais’ e outras exibições de filmes originais, além de serem consideradas
citações de outras obras dentro da produção fílmica de Scorsese, podem ser entendidas
também, como exemplos de metaimagem/metalinguagem no cinema. ‘Assistir’ um filme (as
citações de outras obras cinematográficas) em outro filme (nesse caso em A invenção de Hugo
Cabret), por si só já configura metaimagem. Thomas Mitchel (1994) costuma chamar de
metaimagens as ‘imagens sobre imagens’. Winfried Nöth, por sua vez, se refere a essas
imagens como sendo auto-referenciais, ou seja, referem-se a elas mesmas, “são auto-
referenciais porque são representações representando a sua própria representação, isto é, elas
representam uma imagem do que elas representam” (NOTH, 2006, p. 310).
Chalhub explica que metalinguagem é nada mais que uma leitura relacional, uma ideia
de referências recíprocas de um sistema de signos – “mantém relações de pertença porque
110

implica num sistema de signos de um mesmo conjunto onde as referências apontam para si
próprias, e permite, também, estruturar explicativamente a descrição de um objeto”
(CHALHUB, 2005, p. 8).
Para conseguirmos perceber ‘algo novo no velho’ como afirma Siegfried Zielinski
(2002, p. 19), é necessário diversos olhares e movimentos através de nossos objetos, o que
nos permitirá identificar ‘o velho no novo’, identificando as correlações existentes entre o
primeiro cinema e o cinema contemporâneo. Erick Felinto em seu texto Cinema e tecnologias
digitais chama a atenção à tendência do cinema contemporâneo de realizar um certo retorno
aos modelos e procedimentos típicos do primeiro cinema: “dessa maneira, presencia-se o
paradoxo de encontrar o mais antigo no que deveria ser o mais novo” (FELINTO, 2008 p. 42).

Figura 84 e 85 – truques de mágica nas versões de 2011 e 1901


Fonte da figura 84: (frame de A Invenção de Hugo Cabret – recorte da autora)
Fonte da figura 85: (frame de The house of mystery - recorte da autora)

A invenção de Hugo Cabret faz menção a várias produções de Méliès: House of


mystery (L’antre des esprits - título original, figura 85) é uma delas. O filme de Scorsese cita
essa obra (figura 85) quando Méliès conta sua história para Hugo. Ele recorda que começou
como mágico e que tia Jeanne era sua assistente. Na figura 84 a vemos suspensa no ar, num
truque de mágica. A cena é uma referência ao filme de 1901, estrelado pela Jeanne d’ Alcy,
esposa de Méliès. A mesma cena é citada na produção de Sam Raimi, de 2013, Oz: mágico e
poderoso. Encontrar a existência de parte de um filme recente em um mais antigo está dentro
do conceito de Zielinski.
111

Figuras 86 a 88 – caracterização da época do filme. Destaque para cartaz original (centro)


Fonte das figuras 86 a 88: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

A contextualização do filme A Invenção de Hugo Cabret também é realizada através


de elementos intertextuais. Na obra literária, a história se passa em 1931, mas no filme essa
data fica subentendida pelos trajes de época muito bem pesquisados e por elementos
diegéticos como cartazes, músicas e a própria caracterização cenográfica. Logo nos primeiros
cinco minutos, já temos a primeira referência: um cartaz publicitário (figura 87) que nos dá
pistas da época em que a narrativa se desenvolve: início dos anos 30. Destaque também para
o cartaz da loja de brinquedos Bon Marché (figuras 86 e 87), um sofisticado centro de
compras de Paris, que serve também para a caracterização do ambiente, além de cartazes da
cantora Dora Madou (figura 88), que estão espalhados pela estação. De um dos lados da loja
de brinquedos de Méliès está um cartaz da “Exposition Coloniale Internacionale – Paris 1931
– Le Tour du Monde en un Jour” e, do outro, há um quadro de “Les Iles de L’ocean”, com
uma construção em ruínas (figura 98).
Somados aos efeitos 3D, a máquina (aqui representada pelos relógios da estação) e o
tempo (associado ao relógio) são elementos muito marcantes nessa obra, muitas vezes
surpreendendo e outras iludindo os espectadores, sendo, portanto, um dos
componentes/personagem do próprio filme. Além disso, o som e a luz têm papéis
preponderantes na produção de A invenção de Hugo Cabret. Um dos exemplos que podemos
citar, e que funciona como uma espécie de símbolo do espetáculo cinema, é como o som a e
luz do projetor são marcantes na cena em que um feixe de luz sai do dedo de Prometeu (figura
89) e se projeta na tela branca da sala escura do cinema (figura 90), como num ‘passe de
mágica’.
112

Figuras 89- pintura na biblioteca do cinema – analogia à criação do cinema


Fonte: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora):
:

Figuras 90– Isabele descobre a magia do cinema Figuras 91– A saída da fábrica, 1895, Irmãos Lumière
Fonte das figuras 90 e 91: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Scorsese presta uma homenagem ao cinema mudo e também ao universo dos livros e
bibliotecas como detentores da memória dos primeiros anos do cinema. A literatura está
presente na primeira parte do filme, seja na livraria do senhor Labiche (figura 92)
costumeiramente frequentado por Isabele, e também na Biblioteca Nacional do Cinema
(figura 93), mostradas detalhadamente através de longos planos gerais e mais abertos, cuja
profundidade de campo deixa os locais ainda mais amplos e grandiosos, quase sagrados. O
uso da cor e luz (contraste claro/escuro) reforça a tridimensionalidade e profundidade de
campo do filme, mantendo ar lúdico e fantástico. No caso específico da Biblioteca Nacional
do Cinema (figura 93), a grande quantidade de pilares ajuda a reforçar o feito de
113

profundidade. Ao longo do filme, os planos mais fechados são usados em diálogos ou para
expressar detalhes e emoções, como ocorre normalmente nos filmes convencionais.

Figura 92 – livraria da estação Figura 93 - Biblioteca Nacional do Cinema


Fonte das figuras 92 e 93: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Em uma de suas muitas conversas com Isabele, Hugo chega à conclusão que seu pai
deixou uma herança a ele a capacidade de consertar relógios e mecanismos de corda, caixas
de músicas, entre outras coisas. Hugo mostra então seu autômato à amiga. Ele acredita que
todo artefato mecânico e cada peça tem uma função e usa isso como exemplo para dizer que
toda pessoa tem uma função no mundo, uma vocação, um talento, um objetivo, o que, a
princípio ele mesmo não acredita.
Como bom cinéfilo, Scorsese se preocupou com detalhes durante todo o filme. Um
dos exemplos é o autômato (figura 94), peça fundamental nessa produção, que realmente
existe. Os autômatos foram criados entre 1768 e 1774 e desenham figuras como filme. Alguns
deles estão em exposição no Musée d’Art et D’Histoire, em Neuchatel, Suíça.
Fotos recuperadas de La Poupée Vivante levam a crer na intenção de Méliès de
produzir uma história de um boneco que ganha vida, como viria a acontecer diversas vezes no
cinema anos mais tarde. Logo em 1919 Ernst Lubitsch adapta para o cinema o conto de
Hoffmann em Die Puppe (The Doll), onde um autômato feminino causa discórdia entre os
homens. Vários outros filmes abordaram a temática dos autômatos, entre eles O Golem (1914
e 1920, Paul Wagener), Metrópolis (1926, Fritz Lang – figura 95), AI - inteligência artificial
(2001, Steven Spielberg), Eu, Robô (2004, Alex Proyas), entre outros. Para Gilles Lipovetsky
“a ciência high-tech abre, aos olhos dos tecnófilos, possibilidades múltiplas de existência. Os
filmes de antecipação, com sua promessa de máquinas e robôs, imaginam as formas mais
extraordinárias dessa existência” (LIPOVETSKY, 2009, p. 180 e 181).
114

Lipovestsky destaca ainda que, enquanto as primeiras produções “aprofundavam a


distância entre os extraterrestres e os humanos”, filmes mais recentes, a partir da década de
1980, como Blade Runner (1982) e Robocop (1987), por exemplo, “relatam o processo de
humanização de seres não humanos”, com “o devir humano de máquinas ou de quase
humanos capazes de compreender os sentimentos, de adquirir a consciência da humanidade e
dispostos a se sacrificar por ela” (LIPOVETSKY, 2009, p. 182).

Figura 94 – o autômato de Hugo Figura 95 - o autômato de Metrópolis


Fonte: (frame de A Invenção de Hugo Cabret-recorte da autora) Fonte:(frame de Metrópolis - recorte da autora)

Porém, o enfoque da inclusão do autômato no filme A Invenção de Hugo Cabret é


mais sentimental e pueril: é uma espécie de elo com seu pai já falecido. Hugo espera arrumar
o autômato, pois acredita que ele possui uma mensagem de seu pai. De uma família de
relojoeiros – profissão pioneira no desenvolvimento da automação através dos relógios-cuco –
pai e filho compartilhavam o projeto de fazer voltar à vida um antigo boneco autômato
abandonado num museu (mais tarde ficamos sabendo que foi o próprio Méliès quem o deixou
lá).
É o desenho feito pelo autômato – com a cena ícone do cinema mundial do foguete no
olho da lua (figura 96) – que desencadeia uma busca pela história do cinema e em descobrir
quem foi Georges Méliès (figura 97). Além disso, o desenho faz Hugo lembrar o primeiro
filme que seu pai assistiu: “É o filme que meu pai viu!”, confidencia Hugo a Isabele. É a
partir do desenho feito pelo autômato que a busca pelo resgate da história do cinema se faz
mais evidente.
115

Figura 96 – foguete no olho da Lua Figura 97 - detalhe para assinatura de Méliès


Fonte das figuras 96 e 97: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Interessante constatar como Scorsese, um americano, resgata o processo de criação do


cinema pelos franceses Auguste e Louis-Jean Lumière. Uma Viagem à Lua foi a consagração
de Méliès como cineasta, porém sua carreira não foi duradoura e já no início da década de
1910 ele entrou numa fase de ostracismo. É nesse período de esquecimentos que se passa A
Invenção de Hugo Cabret.

Depois de 1906, Méliès quis fazer concorrência à Pathé. Aumentou o


número de filmes cômicos e caiu na vulgaridade. [...] Os seus filmes eram
distribuídos em exclusividade pela Pathé e o seu aluguel deveria reembolsar
a quantia adiantada. Porém o fracasso dos filmes foi total. [...] Essa derrota
não se deve, contudo, exclusivamente às maquinações de um rival. Hoje, La
Conquête du Pôle triunfa nas retrospectivas cinematográficas porque
conservou intactas as qualidades primitivas de uma arte em sua infância.
Mas o filme é quase contemporâneo do Cabiria italiano, dos melhores Max
Linder, dos primeiros filmes de Chaplin, dos primeiros grandes filmes de
Griffith, dos quais parece estar distanciado por séculos inteiros. Para o
público de 1912 – excetuadas as crianças – os filmes de Méliès haviam-se
tornado obsoletos e quase incompreensíveis. (SADOUL, 1983, p. 58-59)

Scorsese não revela, no seu filme, como Méliès foi à falência, mas mostra como
milhares de horas de filmes foram destruídas pelo próprio autor, entre a desilusão financeira e
a perda do interesse pela fantasia causado pela eminência da I Grande Guerra Mundial,
conforme narra Sadoul.
116

Vendeu os seus negativos ao peso; suas obras-primas foram transformadas


em pentes e escovas de dente; esse homem, outrora rico, tornou-se, aos
sessenta anos, e durante muitos anos, arrendador de um quiosque de
brinquedos (figuras 98 e 99) instalado nos corredores cheios de correntes de
ar da estação de Montparnasse. Por volta de 1928, jornalistas o descobriram,
sagraram-no precursor e poeta. Organizaram uma solenidade para o
predecessor, condecoraram-no e o mandaram para um bem medíocre asilo
para velhos artistas, onde morreu, em 1938. (SADOUL, 1983, p. 59)

O diretor e sua equipe demonstraram uma grande preocupação na pesquisa para a


execução do filme, como pode ser comprovado em vários momentos, como na riqueza de
detalhes na reprodução da loja de brinquedos de Méliès na estação de Montparnasse (figura
99), na semelhança do ator Ben Kingsley com Méliès, de Helen McCrory com sua esposa
Jeanne d’Alcy56, entre outros personagens.

Figuras 98 e 99 – loja representada no filme retrata em detalhes o espaço real


Fonte da figura 98 (Google imagens57 - recorte da autora)
Fonte da figura 99 - (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Outro fato curioso, e que realmente aconteceu, é o acidente de trem58, mostrado como
um sonho de Hugo, mais um recurso proporcionado pelo cinema, como analisado por Metz:

56
Uma das primeiras atrizes de cinema da França, Charlotte Lucie Marie Adèle Stephanie Adrienne Faës (1865-
1956), ou Jeanne d’Alcy, foi a segunda esposa de Méliès e trabalhou com ele em filmes como Le Voyage dans la
Lune, Barbe-bleue, Jeanne d'Arc, Cendrillon, Cléopâtre, Faust et Marguerite e Le manoir du diable.
57
<http://www.pessegadoro.com/2012/09/melies-no-mis.html>
117

Uma obra fantástica só é fantástica se convencer (senão é apenas ridícula) e


a eficácia do irrealismo no cinema provêm do fato de que o irreal aparece
como atualizado e apresenta-se aos olhos com a aparência de um
acontecimento, e não como uma ilustração aceitável de algum processo
extraordinário que tivesse simplesmente sido inventado. Os assuntos de
filme podem ser classificados em ‘realistas’ e ‘irrealistas’, como queira, mas
o poder atualizador do veículo fílmico é comum aos dois ‘gêneros’,
garantindo ao primeiro a sua força de familiaridade tão agradável à
efetividade, e ao segundo seu poder de desnorteio tão estimulante para a
imaginação. (METZ, 1972, p. 17-18)

O acidente aconteceu em 1895 quando o maquinista não conseguiu frear ao chegar ao


interior da estação e bateu contra os bloqueios da linha, arrastando-os por cerca de 30 metros
no interior do local, se chocando depois contra a parede do prédio e saltando para fora da
estação, a uma distância de dez metros da Praça de Rennes, ficando apoiado pela parte da
frente da locomotiva, como pode ser comprovado pelas figuras 100 e 101: a primeira delas
mostra uma foto ‘real’ do acidente e a outra, da cena do filme A invenção de Hugo Cabret.

Figuras 100 e 101 – cena do sonho baseada em fotos originais da época do acidente
Fonte da figura 100: (Google imagens59 - recorte da autora)
Fonte da figura 101: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

O fato é mostrado através do sonho de Hugo, e o mesmo espanto demostrado pelas


pessoas que estão na estação no momento do acidente e pelo público que está nas salas de
exibição assistindo ao filme em 3D nos remete, talvez, ao estranhamento sentido pelos

58
O acidente aconteceu em 1895, no expresso Paris-Granville. Todos os passageiros e maquinista sobreviveram,
mas uma senhora que vendia jornais numa banca fora da estação faleceu devido aos ferimentos provocados pela
queda da parede.
59
<http://wp.clicrbs.com.br/almanaquegaucho/2012/01/20/a-caida-do-trem/?topo=13,1,1,,,13>
118

primeiros espectadores da exibição pública dos irmãos Lumière, em 1895. Sadoul (1983, p.
21) conta que, em L’Arrivée d’un Train, a locomotiva vinha do fundo da tela e avançava
sobre eles, “que se assustavam, temendo ser esmagados”.
Dentre as várias referências que Scorsese faz aos pioneiros do Primeiro Cinema,
podemos constatar também a ‘presença’ de Auguste Lumière – o homem que roda a manivela
do cinematógrafo (figura 102). Pouco antes de Méliès entrar para ver a novidade, ele passeia
pelas famosas feiras do final do século XIX, local que servia de entretenimento e divulgação
das novas tecnologias da época. Detalhe para primeira página do jornal exposto do lado
esquerdo, com destaque para a nova descoberta.

Figura 102 – Auguste Lumière “rodando” L’arrivée d’um train à la Ciotat


Fonte: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Além da direção do filme, Scorsese participa como personagem na produção,


caracterizado como fotógrafo na cena em que registra Méliès e Jeanne d'Alcy em frente ao
estúdio de vidro, o Star Film. Na cena podemos verificar um fotógrafo (Scorsese) realizando
seu trabalho: tirando fotos.
119

Figuras 103 e 104 – Scorsese caracterizado como fotógrafo – diretor enquanto personagem
Fonte das figuras 103 e 104: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

A invenção de Hugo Cabret é um filme altamente autoreferencial, como podemos


verificar no decorrer dessa pesquisa. Nöth explica que “há auto referência em uma imagem
toda vez que ela indica as circunstâncias sob as quais foi produzida (onde, quando, como)”
(NOTH, 2006, p. 315).

Figura 105 – mecanismo do relógio lembra um projetor de filmes


Fonte: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

O uso de metáforas também está presente nessa produção, especialmente quando há


elementos que sugerem a construção de outras imagens, como é o caso da figura 105, onde o
120

relógio do filme lembra uma máquina de projetar filmes – metáfora cinematográfica. Edgar-
Hunt explica que o significado metafórico estabelece uma relação entre duas coisas baseadas
na semelhança, compartilhando uma propriedade comum, que motiva a comparação. Muitas
vezes essas metáforas são explícitas, como quando é feita a justaposição de imagens através
da montagem de cenas, como nas figuras 43 e 44. Outras vezes são subliminares ou
implícitas, como na figura 105 onde a engrenagem do relógio lembra um projetor.
A questão homem/máquina é peça fundamental no filme, tanto que os ‘bastidores’ da
estação, com suas máquinas e engrenagens, chegam a ser personagens da ação. A figura 106
remete ainda, a uma outra imagem ícone do cinema mundial, produzida na mesma década em
que passa a história de Hugo: Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936 – figura 107). Vale
lembrar que a produção de Chaplin, embora muda, foi produzida em uma época onde o som já
estava incorporado nas produções cinematográficas, mas mesmo assim suas produções
representam o cinema mudo.
Em ambas as produções – Scorsese e Chaplin – a engrenagem é muito maior que os
personagens (seres humanos). Tanto Carlitos como Hugo vivem à margem da sociedade e
retratam os ‘tempos modernos’, porém de maneiras diferentes: Carlitos fica perturbado com o
ritmo alucinante da linha de produção devido à velocidade e repetição de suas funções, e age
mecanicamente como se fosse um robô. Hugo não fica louco, mas tem um pesadelo onde se
transforma em um autômato.

Figura 106 –desproporção entre homem/máquina Figura 107 – crítica à sociedade


Fonte: (frame de A Invenção de Hugo Cabret Fonte: (frame de Tempos Modernos
- recorte da autora) - recorte da autora)

Embora esse filme de Chaplin contenha outras metáforas ainda mais complexas (como
a comparação de um rebanho de ovelhas a um grupo de operários – crítica ao capitalismo) a
121

cena que nos interessa é a que mostra o protagonista como sendo uma das peças da
engrenagem da máquina da linha de produção de uma fábrica (figura 107) – crítica à forma
robotizada da sociedade moderna. A cena de Hugo dando corda no relógio (figura 106), assim
como muitas outras no filme, remete a Tempos Modernos: enquanto os relógios da estação
(engrenagem da linha de produção da fábrica) estiverem funcionando, através de um trabalho
mecânico diário, tudo está bem, tanto que uma das preocupações de Hugo é permanecer
invisível não deixando os relógios atrasarem, para não ser descoberto pelo inspetor.
Voltando ao filme A invenção de Hugo Cabret, uma das suas cenas mais marcantes é a
que mostra como Méliès fazia seus filmes, de modo semelhante ao teatro filmado. Trata-se de
um cena bastante longa onde parece que Scorsese fez questão de mostrar como o trabalho de
Méliès era apaixonado e até mesmo revolucionário para a época.
Retratar cinema dentro do próprio cinema não é novidade: nas figuras 108 a 114
Scorsese gasta um bom tempo mostrando como Méliès fazia seus filmes, detalhando seu
trabalho de composição de cenários, ensaio de atores, filmagem das cenas, direção de
fotografia, criação das trucagens e atuação. Em tais cenas especificamente, o filme de
Scorsese mostra Méliès fazendo cinema, tanto que na figura 108 podemos ver o próprio
Méliès filmando.
Nas cenas citadas, destacam-se também os cenários, muitas vezes aproveitados dos
espetáculos de magia ou construídos especialmente para aquela produção, porém
perfeitamente identificáveis, mantendo um ar artificial pois não existia o desejo e a
necessidade da verossimilhança. Méliès trabalhava seus cenários com telas fixas e móveis,
criando nos espectadores, a ilusão de profundidade de campo (figuras 109 a 113), numa
espécie de terceira dimensão, já naquela época.
Nas figuras 109 e 110 vemos os atores em cena, a composição do cenário e em off as
instruções de como a cena deveria ser realizada. Já na cena seguinte (figura 111), o diretor
Méliès aparece indicando onde aconteceria a pirotecnia. Nesse instante, ele comanda a
composição da cena pedindo para que os atores ficassem imóveis (figura 112) e, então, uma
pequena explosão com muita fumaça vai fazer desaparecer os esqueletos (figura 113) como
num passe de mágica. Na última cena dessa sequência, ficamos sabendo como Méliès
realizava seus truques de desaparecimento (figura 114). Ele realizava a montagem das cenas
recortando e colando os negativos para conseguir o efeito ‘truque de desaparecimento’
desejado. Processo semelhante é realizado atualmente através do recorte/cola nos softwares
utilizados na edição dos filmes e até mesmo na sua pós-produção.
122
123

Figuras 108 a 113 – Méliès dirigindo as cenas, ensaiando seus atores e usando seus truques
Fonte das figuras 108 a 113: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Figura 114 – detalhe mostra como Méliès realizava seus truques cinematográficos
Fonte: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

Destaque nesse flasback para a encenação, ou seja, a organização e o deslocamento


dos atores em cena, muito bem planejada por Méliès. Jacques Aumont (2008) aponta uma
diferença em relação à encenação do teatro, pois numa sala de espetáculos não era possível se
ter esse mesmo resultado, devido aos diferentes pontos de vista da plateia. Outra curiosidade
explorada nesse flasback foi o ensaio dos atores, realizado diversas vezes e exaustivamente
até se conseguir o efeito pretendido. Vale lembrar que os ensaios eram assim realizados pois a
filmagem era feita em uma única cena.
124

Scorsese mostra também como foram os bastidores da filmagem de O reino das Fadas
(figura 115), em 1903. Além de dar grande destaque ao seu estúdio de vidro, que como já
referido, foi pensado para aproveitar ao máximo a luz natural, o diretor ressalta o truque onde
usa um aquário gigante entre o palco e câmera para dar a impressão de que a filmagem
acontece no fundo do mar (figura 115). Na ilustração seguinte (figura 116 – frame do making
off do filme) podemos perceber a presença do diretor ‘in loco’, tendo o aquário gigante em
primeiro plano, Scorsese e o pessoal da produção num segundo plano e, bem ao fundo, o
palco montado para a gravação de O reino das Fadas. O mesmo recurso foi utilizado para
gravação de Deux cent mille lieues les mers (20 mil léguas submarinas, em 1907). No making
off de A invenção de Hugo Cabret, Scorsese demonstra o mesmo cuidado que Méliès, na
produção e supervisão do seu trabalho.

Figuras 115–filmagem através de um aquário Figuras 116– Scorsese no set de filmagem


Fonte das figuras 115 e 116: (frame do making off de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)

O filme O Reino das fadas (título original em francês Le Royaume des Fées – figuras
117 e 118) conta a história de uma princesa que é raptada por uma bruxa e levada para um
reino distante. Seu noivo (Méliès) faz de tudo para resgatá-la. Este, como muitos outros filmes
de Méliès, é uma adaptação do livro de Marie-Catherine le Jumel d’Aulnov.
125

Figuras 117 e 118 – filmagem através de um aquário e um mundo extraordinário


Fonte da figura 117: (frame de A Invenção de Hugo Cabret - recorte da autora)
Fonte da figura 118: (frame de Le Royaume des Fées - recorte da autora)

É durante as filmagens desse filme que o garoto Tabard conhece Méliès. A cena é
lembrada através de um flashback quando Isabele pergunta se ele quer conhecer seu tio. Então
Hugo lembra de Méliès falando: “Se você já imaginou de onde vem os seus sonhos, olhe em
volta. É aqui que eles são feitos.”
Atualmente, a indústria cinematográfica utiliza, de forma intensa, a intertextualidade,
com o propósito fundamental de ampliar a linguagem do cinema tradicional e oferecer ao
público uma diversidade de textos e de elementos significativos. Como pudemos perceber,
seus significados tiveram papel importante na construção do sentido da narrativa de Scorsese,
não foram escolhas arbitrárias. Fizeram parte da construção de uma rede semiótica que
apresentou e ofereceu um universo com amplas possibilidades de leitura e entretenimento.
126

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em seus mais de cem anos de existência, o cinema passou por incontáveis


transformações técnicas, estéticas, ideológicas, entre outras, e cada uma dessas mudanças
correspondeu a uma maneira diferente de fazer e pensar cinema.
Esta nova expressão de arte aconteceu justamente na época em que o mundo
vivenciava a plena vigência de uma cultura racionalista e de crença nas vantagens da
modernidade. Num curto espaço de tempo (entre 1850 e 1900), a sociedade, de modo geral
encontrava-se profundamente modificada pela Revolução Industrial, cujas invenções e
descobertas foram rapidamente incorporadas ao cotidiano das pessoas, mudando, sobretudo,
sua percepção de tempo e espaço: o aço substituiu o ferro; a energia elétrica o vapor; e
iniciou-se o desenvolvimento das máquinas automatizadas e dos transportes e comunicações.
A descoberta da eletricidade certamente transformou as percepções, assim como a invenção
de aparelhos ligados à captação e recriação de imagens em movimento também foi importante
para a modernidade.
O teatro, a fotografia e, mais recentemente, o cinema, sempre dialogaram,
comprovando a existência de intercâmbio entre as diferentes expressões de arte. Quanto a esse
aspecto, o cinema leva uma certa vantagem sobre a literatura, na medida em que não exclui,
como na literatura, os analfabetos, já que possui uma linguagem própria transmitida por meio
de imagens e sons.
Desde que foi institucionalizada uma data para o ‘nascimento’ do cinema, as imagens
em movimento encantam e intrigam as pessoas. Arbitrária ou não, a data de 28 de dezembro
de 1895, certamente é um marco na história. Embora esteja associada aos irmãos Lumière,
antes deles muitos outros, como os irmãos Max e Emile Skladanowsky, Jean Acme Leroy,
George Eastman, W. K. L. Dickson e Thomas Edison, entre tantos outros, já experimentavam
na área do cinema. Esses visionários, assim como Edwin Porter, George Albert Smith,
Alexandre Promio, Georges Méliès e David W. Griffith, com certeza, contribuíram, de
alguma forma, para a construção da linguagem cinematográfica. Assim sendo, o cinema não é
invenção de uma única pessoa, mas a soma de muitas experiências, bem ou mal sucedidas,
que com o decorrer do tempo acabaram sendo copiadas e incorporadas, e muitas delas
relegadas ao esquecimento, como bem lembra Arlindo Machado (2011).
Infelizmente, a inexistência à época, de uma política de direitos autorais, dificulta, até
hoje, a atribuição de certas descobertas a seus verdadeiros realizadores. Entretanto, isso não
127

impede que voltemos nosso olhar ao passado, como o fez Scorsese em seu filme (aqui
analisado), e resgatemos a história dos pioneiros dessa nova arte em construção.
Apresentado nas feiras do início do século XX como mais uma novidade tecnológica,
entre tantas outras, o cinematógrafo foi usado, nas suas primeiras exibições, para registrar as
cenas do cotidiano. Não demorou muito para que a genialidade de Georges Méliès logo
ultrapassasse as barreiras da criatividade e tornasse essa nova invenção em uma ‘fábrica de
sonhos’, muito bem exemplificada pela sua vasta filmografia, lamentavelmente incompleta
pela falta de conservação. Gunning (1996) observa que, atualmente, se tem conhecimento de
menos de vinte por cento de tudo que foi produzido na primeira década do cinema. Graças às
novas tecnologias, muito desse material foi recuperado, é de domínio público e está
disponível na internet.
Nesse sentido, podemos afirmar que Méliès instituiu o novo, ao criar os meios que
possibilitariam a criação do espetáculo cinematográfico. Sabemos que não foi o único, mas foi
um pioneiro, que fez do cinema, nos primórdios apenas uma novidade tecnológica, um meio
de criação autoral, onde o objetivo era encantar o público com suas obras ficcionais e repletas
de magia.
Antes de discorrer sobre Méliès, no primeiro capítulo dessa pesquisa, fizemos uma
abordagem geral das principais experiências que culminaram com a invenção do
cinematógrafo. Tentativas e erros marcaram a primeira década do cinema, importante também
por iniciar a construção da linguagem cinematográfica nos termos que conhecemos e
praticamos hoje. Por meio de imaginação, inovações e experimentações, o cinema estava
sendo descoberto e ampliado por curiosos dispostos a correr riscos.
O intervalo de tempo que vai das primeiras projeções até a consolidação do cinema
como forma narrativa autossuficiente é, de acordo com Flávia Cesarino Costa (2008), bastante
pequeno, mas crucial e engloba um conjunto de rápidas e importantes transformações que
determinam a maneira de fazer e consumir filmes. Logo após a difusão do cinematógrafo pelo
mundo, começaram a ser produzidos muitos filmes. Entre 1895 e 1908, a produção
cinematográfica mundial ficou conhecida como Primeiro Cinema, ou ‘cinema de atrações’
(GUNNING, 1996), cuja característica era espantar e maravilhar o espectador.
No segundo capítulo, comentamos sobre como esse Primeiro Cinema foi importante
na história do cinema mundial. Muito do que foi descoberto nesses primeiros anos é praticado
ainda hoje nas produções contemporâneas: panorâmicas, travellings, elipses, fusões, closes,
tomadas subjetivas, câmera lenta, imagem acelerada, quadros congelados e até mesmo
montagem paralela.
128

Destaque especial para Méliès, que soube inovar e tornar o cinema uma ‘máquina de
entretenimento’, com seus filmes de mágicas, truques, transformações, terror, comédia e, até
mesmo, ficção científica, se adiantando em mais de seis décadas à exploração do espaço e da
Lua, sem falar da exploração de outro mundo desconhecido: o do fundo do mar. Sadoul
(1983, p. 37) afirma que Méliès era um artista que, ao mesmo tempo, era produtor,
distribuidor, roteirista, realizador, cenógrafo, especialista em truques, figurinista e astro de
seus próprios filmes.
No terceiro e último capítulo, abordou-se o filme A invenção de Hugo Cabret,
produção contemporânea digital de 2011, na qual o diretor Martin Scorsese mostra a beleza e
o encanto das primeiras produções cinematográficas, além de enfatizar a importância de
Méliès para a criação de um ‘cinema de ficção’. Foi nesse capítulo que se pôde investigar o
diálogo existente entre a obra contemporânea digital em 3D e outras obras do cinema mudo,
especialmente do Primeiro Cinema, através do mosaico de informações criado por Scorsese.
Mark Cousins (2013, p. 449) conta que “a busca por novas emoções levou o mundo
do cinema a procurar no lugar mais inusitado: o passado.” Lev Manovich concorda e é mais
enfático ao dizer que o cinema contemporâneo está reinventando o Primeiro Cinema, quando
compara o cinetoscópio de Edison à tela do computador. Ele conta que se, no início da década
de 1890, o público que costumava frequentar as salas de cinetoscópio (com máquinas com
apenas um orifício de visualização) podia observar minúsculas fotografias em movimento,
ordenadas em loops breves, “exatamente cem anos depois, os usuários dos computadores
estavam igualmente fascinados com os minúsculos filmes em QuickTime que transformavam
o computador em projetor, por mais imperfeitos que fossem” (MANOVICH, 2005, p. 39).
Outro aspecto que chama a atenção nas produções digitais, e também em 3D, é o que
Gunning afirma caracterizar o Primeiro Cinema – o espetáculo visual, denominado por ele
como cinema de atrações. Dick Tomasovic (2006) diz que o cinema contemporâneo herdou
de Méliès um cinema que insiste no espetáculo das imagens, no show, na atração pelos
efeitos especiais.
A invenção de Hugo Cabret proporciona o prazer visual e o choque dos efeitos em
3D: da imagem invadindo o espaço da plateia - da engrenagem se transformando em Paris; ou
Hugo no autômato; ou ainda, do acidente na estação de Montparnasse, remetendo à exibição
dos irmãos Lumière, em 1895. Temos assim, revisitado, o verdadeiro cinema de atrações do
Primeiro Cinema com seus efeitos especiais, proporcionados agora, pelas novas tecnologias.
Tanto o cinema dos irmãos Lumière como de Méliès podem, e estão sendo
reinventados com as tecnologias digitais; isso que leva Manovich (2001) a considerar que a
129

história da imagem em movimento finalmente tornou-se um círculo completo, quando o


cinema, depois de ter nascido da animação, (algo que foi deixado de lado) e agora, com as
novas tecnologias, torna-se um ‘caso particular de animação’.
Adaptação de obra literária infanto-juvenil, o filme de Scorsese retrata também a
questão da ‘falta de memória artística’ do público que esquece dos seus ídolos do passado em
favor das inovações tecnológicas. O filme também foi aclamado pela crítica por introduzir as
obras do cineasta a uma nova geração de espectadores, que, se quiser, além da obra literária
de mesmo nome, conta justamente com novas tecnologias, como internet e principalmente o
Youtube, para se aprofundar em saber quem foi Georges Méliès. O filme de Scorsese faz
também um resgate da história de Méliès, desde suas primeiras experimentações, seu auge e
seu ostracismo, mostrando a importância de suas produções para o cinema contemporâneo.
O interessante na análise do filme A invenção de Hugo Cabret foi tentar identificar se
Scorsese usou as referências ao Cinema Mudo e ao Primeiro Cinema intencionalmente.
Particularmente, acredita-se que sim, que o diretor sabia exatamente o que estava fazendo e
escolheu, com esmero, o que referenciar, a começar pela homenagem que faz ao cinema mudo
e ao próprio cineasta francês.
Sadoul estava certo quando afirmou que “era Georges Méliès que estava destinado a
tonar-se o verdadeiro criador do espetáculo cinematográfico” (SADOUL, 1983, p.27). Assim,
nada traduz melhor quem foi o autor, diretor, ator, produtor e mágico do que a inscrição na
lápide de seu túmulo, confirmando as palavras do autor: “Georges Méliès, Createur du
Spetacle Cinématographique 1861 – 1938”60 .
Conhecer a obra de Méliès permite perceber como a cinematografia contemporânea
conserva significativas marcas de suas origens enquanto espetáculo visual, principalmente em
termos dos chamados ‘efeitos especiais’. Em suma, acredita-se ter encontrado,
paradoxalmente, procedimentos e modelos típicos do Primeiro Cinema no filme analisado, o
que permite identificar como os processos dialéticos do ‘velho no novo’ e do ‘novo no velho’
revelam-se presentes na história do cinema.
Por fim, muitos são os aspectos que podem, e devem, ser destacados em termos da
necessidade de um maior aprofundamento e de perspectivas futuras para o estudo aqui
apresentado.
Que esta dissertação possa servir de estímulo para novos pesquisadores, uma vez que o
cinema é uma ‘arte em construção’ onde sempre há espaço para nossos olhares! Assim,

60
“Georges Méliès, Criador do espetáculo cinematográfico. 1861 – 1938”.
130

acredito que, nesse longo caminho trilhado nos últimos dois anos, novas pesquisas já devem
estar em andamento; portanto, este trabalho de pesquisa deve ser considerado simplesmente,
um primeiro passo.
131

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