Alomorfia Condicionada

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Alomorfia condicionada pela estrutura silábica

em Kanamari (família Katukina)


(Allomorphy conditioned by the syllable structure in Kanamari – Katukina family)

Priscila Hanako Ishy1


1
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
[email protected]

Abstract: The Kanamari language belongs to the language family Katukina and is spoken by
about 3000 people in the Southwest region of the Amazonas State in Brazil. This paper presents
some cases of variation of the first person possessive prefixes in the Kanamari language and proposes
an interpretation, based on the syllable structure of this language, for theses occurrences that
do not follow the general rule for this allomorphy. Through this analysis, we conclude that the
restriction to the general rule of the allomorphs occurs to benefit the phonological patterns of
this language.
Keywords: indigenous languages; morphophonology; Kanamari language; Katukina family.

Resumo: A língua Kanamari pertence à família linguística Katukina e é falada por cerca de
3000 pessoas na região sudoeste do estado do Amazonas. Este artigo apresenta alguns casos de
variações dos prefixos possessivos de primeira pessoa nessa língua e propõe uma interpretação,
com base na estrutura silábica do Kanamari, para ocorrências que não seguem a regra geral dessa
alomorfia. Por meio dessa análise, concluímos que a restrição à regra geral desses alomorfes
ocorre para favorecer os padrões fonológicos dessa língua.
Palavras-chave: línguas indígenas; morfofonologia; língua Kanamari; família Katukina.

Introdução

A etnia Kanamari encontra-se, primordialmente, na região sudoeste do estado do


Amazonas, com aldeias em territórios indígenas ao longo dos rios Japurá, Juruá, Xeruã,
Itucumã, Jutaí, Tarauaca, Itacoaí, Javari e Jandiatuba.1 Segundo dados do censo feito pela
Funasa em 2010, o número total de índios Kanamari é de 3.167 (FUNASA apud Costa,
2006). E, de acordo com o Instituto Socioambiental (2012), as terras indígenas (TI) em
que existem Kanamari são: Kanamari do Rio Juruá, com 496 habitantes; Maraã/Urubaxi
(região do Solimões), com 185 habitantes; Mawetek (região dos rios Juruá/ Jutaí/ Purus),
com 207 habitantes; Paraná do Paricá (região do Solimões), com 34 habitantes; Patauá
(região dos rios Tapajós/ Madeira), com 47 habitantes, e Vale do Javari.2
A língua Kanamari pertence à família linguística Katukina. Sobre essa família
existem três classificações: a de Loukotka (1968 apud DOS ANJOS, 2005), a de Rodrigues
(1986) e a reclassificação de Dos Anjos (2005). Rodrigues (1986) divide a família
Katukina em quatro línguas: Katukina do Biá, Tsomwuk Djapa, Kanamari e Katawixi.
Mais recentemente, Dos Anjos (2005; 2011) propõe uma reorganização da classificação

1 No rio Jandiatuba, encontra-se o grupo Tsomwuk Djapa, considerado por alguns estudiosos como uma
etnia diferente dos Kanamari. No entanto, consideramos que ambos fazem parte da mesma etnia.
2 Não foi especificado o número de habitantes Kanamari no TI Vale do Javari.

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dessa família, que seria composta por apenas duas línguas: Katawixi e Katukina-Kanamari
(composta pelas variedades Kanamari – incluindo o Tyohon dyapa – e pelo Katukina do
Biá). Segundo Aikhenvald (2012) a pequena família linguística Katukina está entre as
famílias da região amazônica menos conhecidas.
Este artigo apresenta parte de uma pesquisa de mestrado sobre a fonologia Kanamari
(ISHY, 2012), cujos dados foram coletados de falantes Kanamari da região do rio Juruá.
Exatamente pelos dados terem sido adquiridos somente nessa região, essa pesquisa diz
respeito apenas ao dialeto do Juruá, diferenciando-se, portanto, do trabalho de Dos Anjos
(2005; 2011), que trata principalmente da variedade Katukina do Biá. Sobre o dialeto
Kanamari, há um artigo de Silva et al. (1989), em que os autores apresentam uma descri-
ção fonética e fonológica, além de identificarem alguns processos fonológicos. Há tam-
bém alguns artigos de Groth (1977; 1985; 1988a; 1988b) que apresentam características
da sintaxe. E, mais recentemente, Stefan Dienst (2011, The Hans Rausing Endangered
Languages Project)3 realizou um projeto de documentação da língua e cultura Kanamari.
O objetivo neste artigo é propor uma interpretação para uma exceção à regra geral
dos alomorfes dos prefixos possessivos de primeira pessoa a partir da estrutura silábica
padrão em Kanamari. Primeiramente, mostraremos a estrutura. Em seguida, demonstra-
mos a regra geral dos alomorfes de prefixos possessivos e as ocorrências de exceção à
regra geral. Por último, apresentamos uma possível interpretação a esse desvio. A aná-
lise da estrutura silábica foi fundamentada na representação fonológica autossegmental
(CLEMENTS; HUME, 1995; GOLDSMITH, 1990, 1995; KENSTOWICKS, 1994).

Estrutura silábica da língua Kanamari

Com o propósito de demonstrar que a exceção à regra dos alomorfes de prefixos


possessivos de primeira pessoa ocorre para favorecer o padrão fonológico do Kanamari,
apresentamos inicialmente a estrutura silábica dessa língua. Em suma, a sílaba em Ka-
namari é formada por ataque e rima, que pode ser composta por núcleo simples, núcleo
longo ou núcleo simples e uma coda.
Em Kanamari, o ataque pode ou não ocorrer em uma sílaba e é constituído por
apenas um segmento. A maioria dos segmentos consonantais existentes na língua pode
aparecer em posição de ataque: /p/, /b/, /t/, /d/, /k/, /tʃ/, /dʒ/, /h/, /ɾ/, /m/, /n/, /ɲ/, /w/, /j/.
O único segmento que não ocorre em posição de ataque é a nasal velar [ŋ] representada
pelo arquifonema /N/.4 Os moldes silábicos em que ocorre ataque são CV (AN) e CVC
(ANCd).
Sinteticamente, podemos definir algumas restrições para o ataque na sílaba em
Kanamari:

3 Comunicação por meio de correio eletrônico.


4 Em Kanamari, as nasais [m], [n] e [ɲ] ocorrem apenas em início de sílaba, enquanto que [ŋ] nunca
ocorre nessa posição, somente em final de sílaba. Dessa forma, a nasal [ŋ] pode ser interpretada como um
arquifonema das nasais [m], [n] e [ɲ]. Nesse caso, os sons nasais são neutralizados em posição final de
sílaba quanto ao ponto de articulação, realizando-se foneticamente como velar. Assim, o arquifonema /N/
pode ser definido como uma unidade fonológica que não se especifica em relação ao ponto de articulação,
mas contém todos os traços compartilhados pelas nasais.

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a) o molde silábico composto por ataque sempre apresenta apenas um segmento
nessa posição;
b) /N/ nunca ocorre em posição de ataque;
c) /ɾ/ não ocorre em posição absoluta de ataque.

A seguir demonstramos a representação dos segmentos possíveis em posição de


ataque:
(1)

Quanto aos segmentos [j] e [w], em início de sílaba, vale ressaltar que estes po-
dem ser ambíguos em relação às vogais altas [i] e [u] (ou [o]) respectivamente. Por isso,
também procuramos interpretá-los por meio da estrutura silábica.
Em (2), apresentamos dados com os glides [j] e [w] em posição de ataque:

(2) [jaˈja] ‘tipo de sapo’

[jaː’nĩŋ] ‘brilhante’
[wah] ‘velha, avó’
[waː’nĩŋ] ‘vento’

Para analisar fonologicamente essas ocorrências, levamos em conta que, na língua


Kanamari, não é comum encontro de vogais tautossilábicas, principalmente compostas
por vogais não altas e, em contrapartida, o padrão silábico CV é frequente, sendo for-
mado por segmentos não ambíguos. Portanto, definimos a sequência de sons [ia], [io],
[iɯ], [ua], [ui] e [uɯ] como o molde silábico CV(C). Desse modo, os fones [i] e [u], em
início de sílaba, seguidos de vogais passam para a posição de ataque da sílaba, formando
o molde silábico CV.
Quanto ao núcleo simples, este é formado pelas vogais curtas da língua, o que
constitui uma posição na camada esqueletal. Conforme demonstra a representação em (3):

(3)

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Além das vogais breves, o núcleo simples pode ser formado por ditongos, inter-
pretados como leves, por isso seus dois segmentos compartilham a unidade X da camada
esqueletal. Esses ditongos são todos decrescentes, pois o glide (ou offglide) é posterior ao
núcleo vocálico. Assim, sua representação constitui-se da seguinte forma:
(4)

Os ditongos em Kanamari são realizados foneticamente pelas sequências [ai], [ao]


e [oi]. Essas sequências não são interpretadas fonologicamente como VC, pois conside-
ramos que, em posição de coda, ocorrem apenas os segmentos /N/, /k/ e /h/. Também não
analisamos como VV, já que não é comum sequências de vogais tautossilábicas nessa
língua. Assim, analisamos essa sequência de sons como ditongos /aʲ/, /aʷ/ e /uʲ/, interpre-
tados como V no molde silábico, podendo ser, opcionalmente, antecedidos por consoante
em posição de ataque e seguidos por coda.

(5) [pai.’ko] /paʲ.ku/ /CV.CV/ ‘avô; velho’


[dʒai.’kõŋ] /dʒaʲ.kuN/ /CV.CVC/ ‘traíra (peixe)’
[kai.’na] /kaʲ.na/ /CV.CV/ ‘macaco guariba’
[waog’dʒɪ] /waʷk.dʒi/ /CVC.CV/ ‘chegar’
[i’kaok˺] /i.kaʷk/ /V.CVC/ ‘chorar’
[ao’pɯ] /aʷ.pɯ/ /V.CV/ ‘filhote’
[nomoi] /nu.muʲ/ /CV.CV/ ‘tipo de peixe’
[koimaɾɯ] /kuʲ.ma.ɾɯ/ /CV.CV.CV/ ‘tipo de árvore’

O núcleo longo é composto pelas vogais longas existentes na língua, formado


por duas unidades X na camada esqueletal. E, após o núcleo longo, não há ocorrência de
consoante posterior tautossilábica, ou seja, em posição de coda.
(6)

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Esse fato de as sílabas formadas por vogais longas, compostas por duas unidades
X, não serem procedidas por coda corrobora para a interpretação de que os ditongos com-
põem apenas uma unidade X na camada estrutural, pois estes podem vir seguidos de uma
coda. Dessa forma, interpreta-se que possivelmente o sistema da língua não permita uma
sílaba composta por mais de duas moras, o que ocorreria se os ditongos não fossem leves.
Os exemplos em (7) demonstram as sílabas em que ocorrem vogais longas:

(7) [ˈwɯː] /wɯː/ /CVː/ ‘pirarucu’


[mɯːˈna] /mɯːna/ /CVː.CV/ ‘tipo de macaco pequeno’
[naː’tsi] /naː’tʃi/ /CVː.CV/ ‘milho’
[koː’na] /kuː’na/ /CVː.CV/ ‘urucum’
[piː’tsi] /piː’tʃi/ /CVː.CV/ ‘doce’
[waː’kak̚ ] /waː’kak/ /CVː.CVC/ ‘abacaxi’

Sobre os segmentos que ocorrem em coda, são eles : /N/, /k/, /h/. Todos esses apa-
recem tanto em coda interna como coda final:
(8)

Assim, os moldes silábicos aceitáveis na língua Kanamari são CV, CVC, VC, V,
CV: e V:.

(9) Moldes silábicos em Kanamari:


CV
[ba.ˈɾɪ] /ba.ɾi/ /CV.CV/ ‘banana’
[taka’ɾa] /taka’ɾa/ /CV.CV.CV/ ‘galinha’
[kɪɾɪ’pãŋ] /kiɾi’paN/ /CV.CV.CVC/ ‘batata doce’

CVC
[mok] /muk/ /CVC/ ‘anta’
[ɪh’nãŋ] /ih’naN/ /VC.CVC/ ‘morcego’
[wah’dak̚] /wah’dak/ /CVC.CVC/ ‘lago’

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VC
[ɪh.tõŋ] /ih.tuN/ /VC.CVC/ ‘ponte’
[ãŋʰ’pɪ] /aN’pi/ /VC.CV/ ‘beija-flor’
[ɪhpɪ’dʒi] /ihpi’dʒi/ /VC.CV.CV/ ‘tipo de macaco bem pequeno’

V
[o.ˈmãŋ] /u.maN/ /V.CVC/ ‘árvore’
[i’tʃo] /i’tʃu/ /V.CV/ ‘minha filha’
[a’ɲa] /a’ɲa/ /V.CV/ ‘tia’

CV:
[hiː.ˈtʃãŋ] /hiː.tʃaN/ /CV;.CVC/ ‘porco do mato’
[naː’tʃi] /naː’tʃi/ /CVː.CV/ ‘milho’
[koː’na] /kuː’na/ /CVː.CV/ ‘urucum’

V:
[oː.ˈkɪ] /uː.ki/ /V:.CV/ ‘jenipapo’

Como pode ser observado, não ocorrem moldes silábicos em que o núcleo longo
venha acompanhado de uma coda, como /.CV:C./ e /.V:C./. Como dito anteriormente, é
possível que essas restrições ocorram para evitar sílabas trimoraicas, o que corroboraria
para a interpretação de que os ditongos em Kanamari são leves, pois estes podem vir
acompanhados de coda.

Alomorfia de prefixos possessivos de primeira pessoa

Nesta seção, demonstramos alguns casos de alomorfia na língua Kanamari e tenta-


remos analisar fonologicamente algumas exceções à regra principal do uso desses alomorfes.
Alomorfes são variações fonológicas de um mesmo morfema, ou seja, apesar de esses
morfemas serem semelhantes e possuírem o mesmo significado ou função, não possuem
sons idênticos (LIEBER, 2009). Essa definição aplica-se aos alomorfes que funcionam
como pronomes possessivos presos de primeira e terceira pessoa do singular em Kanamari.
Esses alomorfes são os únicos dessa classe de morfemas formados por segmentos
vocálicos isolados em sua representação subjacente, respectivamente /i-/ e /a-/ e variam
em /hi-/ e /ha-/ conforme o ambiente fonológico. Alguns exemplos de ambientes em que
ocorrem os alomorfes {i-} e {a-} estão exemplificados a seguir:

(10) {i-} + {-paN} /i.paN/ [ɪˈpãŋ]


1SGPOSS braço ‘meu braço’

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(11) {a-} + {-paN} /a.paN/ [aˈpãŋ]
3SGPOSS braço ‘braço dele’
(12) { i -} {-ba} /i.ba/ [ɪˈba]
1SGPOSS mão ‘minha mão’
(13) {a-} {-ba} /a.ba/ [aˈba]
3SGPOSS mão ‘ mão dele’

Nota-se que esses alomorfes ocorrem sempre antecedentes a segmentos conso-


nantais. Para os contextos em que ocorrem os alomorfes {hi-} e {ha-}, porém, os segmentos
que seguem os alomorfes são todos vocálicos.

(14) {hi-} {-aN} /hi.aN/ [hɪˈãŋ]


1SGPOSS perna ‘minha perna’
(15) {ha-} {-aN} /ha.aN/ [haˈãŋ]
3SGPOSS perna ‘perna dele’
(16) {hi-} {-uh’pak} /hi.uh.pak/ [hɪohˈpak̚]
1SGPOSS nariz ‘meu nariz’
(17) {ha-} {-uh’pak} /ha.uh.pak/ [haohˈpak̚]
3SGPOSS nariz ‘nariz dele’

Exceção à regra geral de alomorfia

Há, porém, uma exceção à restrição do alomorfe {i-} anterior a um segmento


vocálico. Foram registrados alguns poucos dados em que o pronome de posse ocorre an-
terior a um morfema iniciado por uma vogal e, ainda assim, permanece representado por
apenas um segmento vocálico, sem a inserção da obstruinte /h/.

(18) {i-} + {-upɯ} /ju. ̍pɯ/ [joˈpɯ]


1SGPOSS filho ‘meu filho’

{i-} + {ama} /ja.̍ma/ [jaˈma]


1SG para ‘para mim’

Proposta de análise das ocorrências

Ao observarmos a estrutura silábica, percebemos que não houve a inserção de /h/,


pois esse recurso seria insuficiente na silabificação. O motivo para isso é que os morfemas
formam uma sílaba composta por um único segmento vocálico (V). E, nesses casos, se
houvesse a realização dos alomorfes {hi-} ou {ha-}, resultaria em um encontro vocálico
tautossilábico não existente nos padrões da língua.

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Por exemplo, teríamos as ocorrências de [hio.pɯ]* ou [hia.ma]*, que são agra-
maticais na língua. Além disso, em ambos os exemplos, na primeira sílaba, resultariam
as sequências [io] e [ia], que não são encontradas como ditongos em Kanamari. Como já
demonstrado anteriormente, os únicos ditongos encontrados na língua são /aj/, /aw/ e /oj/,
sendo todos ditongos decrescentes.
Nos exemplos agramaticais, os ditongos formados seriam /ja/ e /ju/, caracteriza-
dos por serem crescentes. Dessa forma, a exceção de optar por {i-} em lugar de {hi-} antes
dos morfemas iniciados em vogais, {-upɯ} e {-ama}, pode ser um recurso para evitar
formação de ditongos inexistentes nos padrões da língua Kanamari.
Em contrapartida, quando os morfemas permanecem em sua forma vocálica {i-},
passam à posição de ataque e formam uma sílaba do tipo CV junto com a vogal isolada
da primeira sílaba do morfema. Assim, temos:

(19) /ju. ̍pɯ/ /ja.’ma/


/CV.CV/ /CV.CV/

De acordo com Kenstowicz (1994), na interpretação gerativa, a silabicidade do


som é resultado de sua posição no constituinte silábico, não em relação às suas caracterís-
ticas estruturais. Por isso, quando os segmentos /i/ e /u/ ocorrem em posição de ataque na
sílaba, são interpretados como consoantes e, assim, carregam o traço [-silábico].
Em Kanamari, o segmento /j/ representa a vogal alta [i] com status de ataque. Essa
silabificação ocorre em casos de encontros vocálicos, decorrentes do morfema possessivo
preso {i-} com outro morfema que se inicie em vogal. Nesse processo, a vogal alta [i]
que representa o morfema de posse recebe o status de ataque e, portanto, possui o traço
[- silábico], o que a torna uma aproximante.
Esse processo de silabificação pode ser representado em (20):
(20)

Nesse esquema, nota-se que duas sílabas compostas por apenas um núcleo cada
uma unem-se e formam uma única sílaba composta por um ataque e um núcleo, sendo o
primeiro segmento [- silábico] representado por /j/.
Para essa alomorfia, propomos uma análise fundamentada na estrutura silábica da
língua, pois é notório que são utilizados recursos que evitem encontros vocálicos tautos-
silábicos e que essa língua possui uma tendência à sílaba universal CV. Por meio dessa

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análise, propomos que em Kanamari há uma preferência em manter os padrões silábicos
dessa língua; logo regras de alomorfia podem ser violadas para que se mantenha a estru-
tura silábica preferível.

Considerações finais

Este artigo descreveu algumas ocorrências percebidas dentre nossos dados que
fugiam à regra geral da alomorfia dos prefixos possessivos de primeira pessoa na língua
Kanamari e propôs uma possível interpretação para essas exceções com base na fonolo-
gia, principalmente na estrutura silábica. Ao que parece, a língua prefere optar por não
obedecer à regra dos alomorfes para poder seguir os padrões silábicos da língua. Dessa
forma, em casos que poderiam formar ditongos não existentes nos padrões dessa língua,
cria-se uma exceção à regra geral que permita manter a estrutura silábica comum.
Por meio dessa análise, procuramos demonstrar a importância da sílaba não apenas
nos estudos fonológicos, mas também morfológicos, e como essas áreas estão dependentes
uma da outra. Obviamente, os dados encontrados em que ocorrem as exceções à regra
ainda são poucos, o que evidencia a necessidade de maiores pesquisas. Entretanto, acre-
ditamos que essa análise inicial seja importante para pesquisas futuras, principalmente
quando diante de outros possíveis casos de alomorfia.

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