Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé (OCR)

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O Jarro de Néctar das Palavras

de Dilgo Khyentsé

NENENENENENEN

Comentário de
“Os Cem Conselhos para o Povo de Tingri”,
de Padampa Sangyé

Traduzido dotibetanopara o francês


por Matthieu Ricard
e o Comité de Traduction Padmakara

Traduzido dofrancês para o português por


Lucia Sweet-Lima
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé
Título em francês: Les Cent Conseils de Padampa Sangyé
O Monastério Shechen
Foto da capa: O Marthieu Ricard
Direitos reservados desta publicação à
Lórus po SABER EDITORA
Rua General Edmundo Gastão da Cunha, 26
Rio deJaneiro - RJ - 20541-090
Tel & Fax: o ** 21 2644-5286
wwwlotusdosaber.com — infoDlotusdosaber.com
Tradução: Lucia Sweet-Lima
Revisão: Maristela Leal Casati, Tomaz Lima e Leonardo Thierry
Capa: Luciana Mello e Monika Mayer
Projeto Gráfico: Lótus do Saber Editora
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVRO, RJ
D571j
Dilgo Khyentsé 1910-1991
Ojarrode néctardaspalavras de Dilgo Khyentsé: comentário de“Os
do
Cemconselhos para o povo de Tingri” de Padampa Sangyé / traduzido
ara de
tiberano para o francês por Marthieu Ricard e pelo Núcleo Padmak
Tradução, traduzido do francês para o português por Lucia Sweer-Lima.
— Rio deJaneiro : Lótus do Saber, 2009.
Tradução de: Les cents conseils de Padampa Sangyé
Título da capa: Os cem conselhos de Padampa Sangyé
ISBN 978-85-87546-22-7
1. Padampa Sangyé, “1717? - Ensinamentos. 2. Budismo - Doutrina.
3. Budismo - Tibete. 1. Padampa Sangyé, «11172. 11. Título. 11. Título: Os
cem conselhos de Padampa Sangyé.
08-1844. CDD: 294.342
CDD: 294.3
13.05.09 15.05.09 006608
. W Sumário W

Prefácio à edição brasileira.


Prefácio à edição francesa...........
Nota do tradutor à edição francesa ........
Notas . eemeseereee LI?

OS CEM CONSELHOS DE PADAMPA SANGYÉ


Introdução........
Homenagem ao Mestre sesta
1. A dificuldade de obrer uma existência humana ........
2. O melhor: consagrar-se ao dharma supremo.............29
Confiar-se às Três Jóias...mms 31
4. Desinteressar-se desta vida em favordas vidas futuras....31
5. Família: nem brigas nem críticas... 33
6. Bens materiais: não sejam avarentos.....
7: O corpo: não cuidemdele exageradamente............
8. Parentes e amigos: não se apeguem eles..........
9. Nãoter apego à terra natal... 39
to. Todososseres: nossos pais cuidadosos... uses 40
IR Nem um instante a perder para a morte... errors LO

12. O erro provém do mundoexterior.......... 41


13. O dharma nosguia após a Morte... mermo 42

no
Sumário

14. O karma:evitar as ações prejudiciais «43


15. Nadafazer em contraponto à hiperatividade ............u45
16. Tudo doar: nadaé indispensável. uu 45
17. Não somosimortais: preparação para a morte. .47
18, Devemosfazeras práticas espirituais agora...47
19. A despreocupaçãoé o pior dos males...
20. Nãoexiste ponte: prepare o barco.......... e 48
2º . À escolta do mestre contra os bandoleiros dos cinco
venenos. -49
22. O mestre é o refúgio infalível... ..50
23. Confiar no mestre espiritual........ememeseeseeseeseseeresmesa52
24. Generosidade imparcial comparada à avareza dorico ....53
25. O poderé a fonte deinfelicidade para todo: 54
26. Édificiloricoeo poderoso serem felizes......eresmmmmmuns4
27. O dharma é mais confiável do que os familiares e
AMIOS.eccrrermeeseererrarmaresemeerrarteesseerereriresserrererieseres 55
28. Não desperdice esta existência: comece imediatamente
a fazer as práticas espirituai: 56
29. Morrer quando você menosespera...57
30. Quem sabe quando vai morrer?.......eeeeseeseeeeeeeseeneeerm57
31. Nascemose morremossozinhos... ..58
32. À reflexão sobre a morte resolve muitos problemas........59
33. A morte se aproximairremediavelmente:
é preciso reagir 58
34. O corpo,a beleza e a saúde não duram para sempre....... 61
35. O corpo: umailusão traiçoeira ..seememesemememeeeeeeeereees 62
36. Os amigos sempre deixam os amigos 62
37. Ossegredos da produção de um espantalho mágico ......63

pe
Sumário

38. A mente é uma águia que precisa aprender a voar ..........64


39. Amor e compaixão por todososseresvivos...
40. O ódio: umaalucinação cármica.
41. Atos sagrados paraa purificação do corpo ..........
42. Recitações para purificar a palavra.
43. Devoção pelo mestre: purificação da mente..........
44. Teremos de nos separar do corpo material.
45. A simplicidade primordial é imutável.........
46. À natureza da mente é um tesouro inexaurível..............73
47. O recolhimento profundo contra os apetites
corriqueiros.........
48. A ambrosia da atenção ininterrupta .
49. A sabedoria da consciência desperta:
amiga inseparável...
so. Consciência desperta: além do nascimento e da morte...75
51. Nadapode obstruir a pontaria da consciência
desperta-vacuidade..
52. À ação espontânea que não adota nem rejeita nada.........78
53. Ausência de pensamentovigilante:
nem torpor, nem agitação.....
54. O fruto em quatro corposencontra-se
completo na mente...
55. Samsara e nirvana enraizados na mente, queéirreal.....80
56. O desejo e raiva não deixam rastro... 82
57. Corpo absoluto sem nascimento que não acredita
nem deixa de acreditar...
Sumário

60. O desejo e o ódio não têm realidade objetiva.................84


6. Comonuvens, os pensamentos aparecem
e desaparecem..... einipiaiesorema
62. A libertação espontâneaa nadase prende.......u. B6
63. Consciência despertairreal: experiências livres. ee BO
64. Realização: o sonho do mudo ..........
65. Realização: o primeiro prazer da virgem.....uuseB7
66. Vacuidade e luminosidade:a águae o reflexo dalua ......88
67. Aparência e vacuidade:o céu e o espaço vazio............. 88
68. Ausência de pensamento: espelho imparcial...89
69. Consciência desperta: espelhoe reflexo..........
70. Felicidade e vacuidade:o brilho do sol
ea brancurada neve...
71 O som é impalpável..........
72. Felicidadee sofrimento submetidosà
causalidade cármica..........
73: Libertação espontânea do samsarae do nirvana..
74. Projeções do espírito: gelo prontoa se derreter na água .94
75: Não procurar bloqueara ignorância. «95
76. O bem verdadeiro transcende o samsarae o nirvana.....96
77 O brilho natural dos cinco corpos ....... erreeseeneroo 96
78. A valiosa existência humana: uma ilha
de pedraspreciosas. um 97
79. O Grande Veículo: umajóia rara e mágica...98
80. O dharma nosdá abrigo e comida...
8. Pratiquem enquanto são jovens...
82. Emoção,antídotoe libertação ..........
83. A fé aumentaà evocação dos horrores do samsara..

“14.
Sumário

84. Vivero presente para não mais temer a morte............102


85. É preciso tirar proveito desta ocasião
rara e inigualável ......
86. Preguiça e indiferença: a vidaé tão breve...1O3
87. Tirar proveito: impossível conseguir
novamente a mesmaoportunidade ...............m..103
Osensinamentos também são raros...
Fazer as práticas e descobrir os defeitos ocultos
dentro de nós mesmos ...... ersseareos TO4
go. A fé se fortalece com o pensamento das
imperfeições inerentes ao samsara .....ue. 107
ol. Afastar-se das amizades que desorientam.......... arvesseu TO8
92. Procurar a companhia dos bons amigos......su108
93. Ser absolutamente honesto consigo mesmo................ 109
94. Vigilância e atenção para não subestimar a ignorân
cia. 110
95. Osantídotos para vencer os venenose iluminar-se.... ++ TH
96. Coragem e perseverança como armadura.
eelIZ
97. Desarmaras armadilhas dos maus hábitos...11
2
98. Invocar seu mestre até alcançara iluminação
...all
99. Depois das provações vem felicidade ......
100, Esclarecer as dúvidas .......u
OL, Praticar ininterruptamente......

CATÁLOGO DE LIVROS.
CATÁLOGO DE CDS ..s

“se
4 Notado tradutor à edição francesa A.

O presente texto foi comentado em 1987 por Sua Santidade


Dilgo Khyentsé Rimpocheno seu monastério de Shechen Tennyi
Dargyeling, no Nepal, para o bem do Lama Kynzang e outros
discípulos, a pedido de Konchog Tendzin (Matthieu Ricard).
Oscento e um conselhos aqui traduzidos, numerados de um
a cento e um, obedecem à escolha do próprio Dilgo Kbyentsé
Rimpoche, que fundamentou seu comentário em duas versões
do texto, que apresentam algumas variações quando compara-
das. A edição desta traduçãorefere-se ao comentário original.
As duas versões do texto são as seguintes:
1 rje btsun dam pa sangs reyaskyis ding ri par zhal chems su stsal pa
ding ri brgya rtsa ma, em cem estrofes: xilografia em doze lâminas
do monastério de Tingri Langkor (Tibete).
2. rgya gar gyi grub thob chen po dam pa rgya gar ram dampa sangs
reyas zhes pa't gsung mgur zhal gdamsding ri brgyad cu pa, em oiten-
taversos: p. 31/4-36/6, vol. 13 do gdams ngag mdzod de Jamgón
Kongtrul Lodrô Thaye.
O tradutor gostaria de agradecer a Patrick Carré, Carisse
Busquet, Sophie Landowski, Serge Bruna-Rosso e Anne Zon-
zon pela valiosa colaboração.

22»
mg Introdução

Aus de ouvirmos ou estudarmos um ensinamento espiri-


tual, é importante formularmoso voto dealcançara iluminação
para o bem de todososseres. Somentea prática espiritual permi-
te queeste voto seja cumprido e que o mundoseja libertado do
sofrimento e dasuacausaprincipal, a ignorância. Conscientes do
valore dararidade desses ensinamentos, deveríamosrecebê-los e
colocá-los em prática com a máxima atenção e com um estado de
espírito humildee altruísta.
Os Cem Conselhos para o povo de Tingri são o testamento es-
piritual do grande santo indiano Paramabuddha, mais conheci-
do pelo nometibetano de Padampa Sangyé'. Em uma de suas
vidas, pertencera ao círculo próximo do Buda, que profetizou
o renascimento futuro do discípulo para beneficiar um número
incontável de seres. Assim, ele renasceu como Padampa, o “Pai
Sublime”,
Grande erudito, estudou com centoe cinquenta mestres e co-
locou em prática seus ensinamentos, tornando-se um verdadei-
to tesouro de conhecimento espiritual. Um iogue perfeito, sua
realização interior foi revelada por visões e milagres. Por fim,
alcançou o corpo de diamante que transcende o nascimentoe a
morte.

PadampaSangyé foi quatro vezes ao Tibete, três vezes à Chi-


na e difundiu no País das Neves os ensinamentos da “Pacificação

“23º
Introdução

do Sofrimento"? umadasoito grandes tradições do budismoti-


berano,aindapraticada nosdias de hoje.
Padampaviveu por longo tempo no remoto Vale de Tingri,
nafronteira entre o Tibere e o Nepal. Quatro de seus inúmeros
discípulos eram-lhe especialmente queridos. Certo dia, um deles
chegou a Tingri depois de umalonga ausência. Comovido dever
o quanto seu mestre havia envelhecido, disse-lhe comtristeza:
“Ser sublime, sem dúvida alguma, quando deixar este mundo,
você seguirá de bearitude em beatitude, mas o queserá de nós,
pobre povo de Tingri? Em quem poderemos depositar nossa
confiança?”
Para Padampa, a morte consistia na passagem de um campo
búdico para outro. Para os discípulos, porém, sua morte signif-
caria nunca mais podercontemplar o seu rosto, nem ouvir a sua
voz. Este pensamento fez os olhos dos discípulos encherem-se
de lágrimas. Padampaescreveu, então, paraeles os “Cem Con-
selhos”.
“Dentro de umano”, ele disse um dia, “vocês encontrarão aqui
o cadáver de umvelho eremita indiano.”
Um anose passou e Padampa começou a apresentar sinais
de doença. Aos discípulos que demonstraram preocupação com
a sua saúde, respondeu de forma lacônica: "Minha mente está
doente”, Ao ver a perplexidade que suas palavras causaram, ex-
plicou o que sentia: “Minha mente fundiu-se inteiramente ao
mundo dos fenômenos”. A sua percepção da dualidade desapare-
cera. “Doençasfísicas podem ser curadas, masesta é incurável”,
disse ele com serenidade e senso de humor. Fixando os olhos no
céu,ele expirou.

“24º
Introdução

Eis aqui o testamento espiritual que ele nos legou no aspecto


de “tem conselhos” profundose claros, nos quais o praticante
sincero encontrará todas as instruções necessárias para prática
autêntica do dharma.
PadampaSangyé
Homenagem ao mestre!
Praticantes afortunadosreunidos em Tingri, ouçam!

Dadampa presta uma homenagema seu mestre espiritual, fonte


de todas as bênçãos e união de todos os budas do passado, do
presente e do futuro. Ele considera “afortunados” os habitantes
de Tingri, que, por desejaremardentemente estudar e praticar o |
dharma, souberam daràs suas vidas um significado verdadeiro. |

Assimcomo roupas usadas nunca mais serão novas,


O paciente terminal é incurável.

Como umaroupa se reduz a farrapos com o passar do tempo,


a vida se exaure a cada segundo, dia após dia. Não existe nada
nemninguém quepossa deter este processo inexorável. Partire-
mos sós e, deixando tudo para trás, deslizaremos para a morte
da mesmaformapela qual um pêloé retirado da manteiga”. No
momento da morte, nosso único auxílio é de ordemespiritual e
nossos únicos amigos são as boas ações quepraticamos.

Assim comoos rios correm para o mar,


Todososseres vivos terão de deixareste mundo:
Seu destino é um só. |)

Osrios desembocam no mar, e a morte é o desfecho da vida.


Nada é mais precioso do que um ensinamento espiritual capaz
de nos ajudar no momento da morte.
Homenagem ao Mestre

Aqui estão os conselhos daquele que,


Como um pássaro pousado num galho,
Alçará vôo em breve.

Deixamos nossasterras e nossos bens, que são ilusórios e com-


pletamente inúteis no momento da morte. Os budas e os mes-
tres, por sua vez, nos legam a expressão viva de sua sabedoria
sob a forma de ensinamentos. Oferecem aos que querem seguir
o caminhodalibertação uma fonte constante de inspiração. Ao
serem postos em prática, seus ensinamentosnos permitem alcan-
çar o mesmo grau derealizaçãoespiritual queeles possuem.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé
NCNENENNENHONHONONO

1. Se partirem desta vida de mãos vazias, Povo de Tingri,


Será difícil conseguirem uma nova existência humana.
Algumas pessoas acham que não é preciso ter pressa, pois não
faltarão oportunidades para encontrarem um mestre e pratica-
remo dharma. Este modode verascoisas nos leva a negligenciar
o dharma emfavor das preocupações mundanas. A morte, neste
caso, nada mais é do que um desfecho desprezível para umavida
inúril.
Naépocacerta, os lavradores iniciam o plantio imediatamen-
te e não adiam o trabalho para o dia seguinte. Da mesma for-
ma, quandoas condições favoráveis paraa prática do dharmase
encontram reunidas, é preciso direcionar a energia e começar a
fazeras práticas sem perda de tempo.

2. Consagrem seus pensamentos, palavrase atos ao dbarma


supremo,

Povo de Tingri: é o que há de melhor a fazer.

Nossos atos, palavras e pensamentos determinam nosso karma,


ou, em outras palavras, a felicidade e o sofrimento que nosesta-
rão reservados. Se o prato da balança dos nossosatos inclinar-se
para o lado negativo, softeremos nosestados inferiores de exis-
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

tência do samsara; se penderpara o lado positivo, poderemosnos


libertare alcançar o estado búdico em uma única vida. A escolha
é clara: precisamos renunciar às causas do sofrimentoe intensifi-
car nossos esforços para alcançar felicidade.
Se nascermos como um ser humano num lugar onde o bu-
dismo floresceu e encontrarmos um mestre espiritual realiza-
do, saberemos quecolocar em prática suas instruções nos tra-
rá imensos benefícios nesta vida e nas vidas futuras. Teremos
a consciência de queas distrações e as preocupações mundanas
nos mantêm prisioneiros no samsara, e sentiremos um desejo
intensodelibertar-nos. Estamos neste momento numa encruzi-
Ihada na qual um dos caminhos conduz à libertação e o outro,
aosreinos inferiores do samsara.

Um surra diz isso muito bem:

O corpo é o barco que nos conduzirá às praias da libertação;


O corpo é uma pedra amarrada ao nosso pescoço para que
afundemos nos abismos do samsara:
O corpo está a serviço tanto do vício quanto da virtude.

É, portanto, fundamental que tomemos a direção correta para


que nossosatos, palavras e pensamentos nos conduzam ao dhar-
ma. Às ações adquirem umaconotação positiva ou negativa de
acordo com intenção com que são praticadas, da mesma forma
queo cristal reflete a cor do suporte sobre o qual é colocado.
Quem está começando agora deveria consagrar toda a sua
energia para cultivar as tendências positivas e excluir os hábitos
negativos. O brâmane Upagupta, que viveu na época do Buda,
encontrou uma maneira de aguçar sua vigilância e medir o seu

“30
Dilgo Khyentsé

progresso. Todasas noites ele fazia dois montes, usando seixos


pretos para representar os maus pensamentos eas más ações

do dia e seixos brancos para cada pensamento ou ação meritó-


ria. No começo, os seixos pretos se empilhavam em quantidade
maior do queos brancos; porém,pouco a pouco, os dois montes
se igualaram,até que, por fim, graças ao seu esforço contínuo e
prolongado, Upagupta só empilhava seixos brancos.

3 Confiem sem restrições nas Três Jóias, Povo de Tingri,


E receberão inevitavelmente todas as bênçãos.

A confiança absoluta nas Três Jóias e no mestre espiritual que as


personifica evoca a imagem de umlago plácido de águaslímpidas
no quala lua das bênçãossereflete com nitidez. Fortalecidos por
tal confiança, que importância podemter as circunstâncias fa-
voráveis ou desfavoráveis? A mente impregnada da presença das
“Três Jóias é obrigatoriamente serena.

4 Desapeguem-se desta vida, Povo de Tingri, e preocupem-se


apenas com as suas existências futuras.
Esta é a meta mais elevada.

É inútil praticarmos o dharmadentro da perspectivaestreita des-


taexistência atual, só para gozarmosde boa saúdee para termos
uma vida longa e próspera. Deveríamos pensar no futuro, nas

nossasvidase nas vidas de todos os seres que estão porvit. Uma


ação é positiva ou negativa de acordo com intenção que a moti-
va, e não com o queela aparentaser. O dharmatem por finalida-
de alcançar o domínio da mentee a sua transformação.

“ge
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

Estamosfazendoas práticaspara o nossopróprio berrou para


o bem dos outros? Para respondera esta pergunta, precisamos
mergulhar no âmago dos nossos pensamentos. Comparados à
felicidadee ao sofrimento de um número infinito de seres, nossa
felicidade e nosso sofrimento tornam-se insignificantes. Todos
os seres desejam ser felizes, mas tentam encontrar a felicidade
por meio de ações negativas, que só podem trazer sofrimento.
Se as pessoastivessem a oportunidade de conhecero sentido
profundo do dharma, compreenderiam, como cegos que recu-
peram visão, que somente as ações positivas podem produzir
felicidade duradoura para elas mesmase para todososseres, nes-
ta vida e nas vidas futuras. De fato, se você mesmo ainda não
assimilou esta verdade, o seu desejo de ajudar os outros será in-
frutífero.
Devemos receber os ensinamentos e colocá-los em prática
com seguinte estado deespírito: “Será que depois de alcançar
a iluminação estarei pronto para difundir Os ensinamentosa to-
dos e conduzi-los ao caminho que leva ao estado búdico?” Seria
lamentável se pensássemos: “Se eu me tornar um sábio, receberei
todosostipos de presentes e todos metratarão com respeito”.
É necessário distinguir exatamente o que é conveniente ado-
tar ourejeitar paranoslibertarmosdocírculovicioso do samsara
e alcançarmosa iluminação.
A mente quese orienta pela virtude é naturalmente seguida
por seuscriados — a palavra e o corpo. Não adianta você se pros-
trar aos pés do mestre milhares de vezes, nem recitar milhões de
mantras, se continuar cheio de apegos, animosidade e ignorân-
cia. É a mesmacoisa que comer uma comidadeliciosa, mas enve-

“32.
Dilgo Khyentsé

nenada, Nãoé este o caminho do progresso para alcançarmos o


estado búdico, Mas, se pelo contrário, nossos pensamentos per-
manecerem puros em face de qualquer circunstância,até mesmo
as nossas ações mais insignificantes guardarão sua energia posi-
tiva até alcançarmosa iluminação:a gota de água quese dissolve
nooceanonão secará antes que o oceanointeiro também seque.

s. A família dura tão pouco quanto a multidão no mercado:


Não critiquem uns aos outros, Povo de Tingri, e parem de
brigar.

As famílias grandes são, com frequência,o teatro onde os apegos


« ódios provocam violência e ressentimentos. Por isso, devemos
procurarseratenciosos com todosos nossos parentes, conduzin-
do-os ao dharmapor nossa conduta amável.
Oslaços familiares são tão efêmeros quanto uma aglome-
ração de pessoas na praça do mercado. Porter alcançado uma
idade avançada, testemunhei ao longo da vida diversos proble-
mas entre marido e mulher, pais e lhos. Assim que o vento da
violência sopra numafamília, alguns de seus membros, como se
estivessempossuídos pelo demônio, chegam até a matar uns aos
outros ou a suicidar-se, Tudo começa comalguns pensamentos
de raiva ou apego.
Tendofeito esta reflexão, o que parecia um motivo irreconci-
liável para a briga não passa de um processo mental desprovido
de realidade concreta e susceptível de mudar a cada momento.
[É preciso perder a razão para brigar, pois as disputas sempre
trazem grandes sofrimentos para todos os envolvidos. Procura-
ríamos em vão encontrar a menor das qualidades positivas nesse

“33.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

tipo de energia. Por conseguinte, logo que um homem e uma


mulher se encontrem reunidos pelo karma, devem buscar a har-
moniaa cada instante.
Muitos mongesvivem nos monastérios. É essencialquese sin-
tam próximos uns dos outros, respeitem a disciplina e guardem
perfeito controle sobre si mesmos. As comunidades monásticas
harmoniosas constituem o próprio fundamento do dharma.
O mesmose aplica ao relacionamento do mestre com o discí-
pulo. Se os discípulos preservam a pureza doslaços sagrados que
os unem ao mestre, laços que se chamam samaya em sânscrito, o
mestre ficará contente e os discípulos não tropeçarão em obstá-
culo algum emseu caminho.
Muitos de nós cruzamos juntos o limiar do Veículo Ada-
mantino e recebemosiniciações do mesmo mestre, no coração
da mesma mandala. Nós nos tornamos irmãose irmãsespiri-
tuais. À discórdia entre nós é uma falta grave. Se, durante um
ritual Vajrayana, alguns dos participantes se desentenderem, a
cerimônia ficará inteiramente comprometida;seria, de certa for-
ma, comose umratotivesse caído numajarradeleite, tornando-
o impróprio para o consumo.

6. Os bens materiais possuem uma sedução ilusória,


Povo de Tingri:
Não apertem o nó da avareza.

Mesmo que fôssemos milionários, nos vestissemos como prín-


cipes e comêssemos comoreis, esses privilégios estão destinados
à impermanência. O nascimento conduz à morte. Existe algum
ser, um único que seja, que tenha escapado desta lei? Tudo o

“34.
Dilgo Khyentsé

que acumulamos termina porse esgotar, Não importa qualseja


o montante de bens que tenhamos conseguido amealhar, mais
cedo ou mais tarde será dilapidado. Todos aqueles que se reú-
nem acabam porse separar. Neste momento, cem milpessoasse
encontram reunidas, mas em breveelas se dispersarão. Toda su-
bida tem comoconsequência umadescida. Ninguém permanece
na mesmaposição eternamente.
Aquele que constrói uma fortuna poderepetir, comorgulho,
que é muito rico, masele faria bem em refletir até que ponto
sua riqueza está estabelecida na mentira, no logro, no sacrifício
«dos interesses do outro -— ações negativas que só podem produzir
sofrimento.
À riqueza em si não é umacoisa ruim, desde que tenha sido
adquirida honestamentee queseja utilizada para fins construti-
vos, Poderemos empregá-la para aliviar a pobreza, fazer oferen-
d às Três Jóias e manter a comunidade monástica.
Quem recebe a ajuda de benfeitores deveria, sem ganância,
tisaresse apoio com o único objetivo de prosseguir na suaprática
espiritual. Tanto o que doa quanto o que recebe os benefícios de-
vemestar, osdois, livres de apego e considerar seus “bens” como
se fossem presentesilusórios que receberam num sonho. Mesmo
que a riqueza e os méritos que você acumula ao usá-la com ge-
nerosidade não tenham de fato nenhumarealidade, ainda assim
poderão nos conduzir ao estado búdico, que se encontralivre do
apego aos fenômenos.
Se a avareza nos deixa de mãos presas e fecha a nossa mente,
será impossível para nós fazermos qualquer tipo de doação,e o
simples fato de observarmosa generosidade alheia nos será pe-

“35.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

noso. Teremoscriado,dessa forma, todasas condições propícias


a um nascimento no mundodos pretas, espíritos que são ininter-
ruptamente torturados pela sedee pela fome.
Na época do Buda morreu um monge que possuía umarica
escudela para donativos, à qual era bastante apegado. Antes
mesmo queseu corpofosse cremado, o monge renasceu na forma
de umaserpente venenosa que, mal acabara de nascer, deslizou
paraa escudela, enrodilhou-se dentro dela e, dilatando o pesco-
ço, silvou ameaçando dar um bote em quem se aproximasse, Este
incidente foi relatado ao Buda, que explicou quem era a serpente.
Depois, comalgumaspalavras de verdade”, exortou-a a não pen-
sar incessantemente em fazer o mal. O animal saiu imediata-
mente de dentro da escudela e fugiu paraa floresta. Entretanto,
seu apego e seu ressentimento eram tão fortes que, vomitando
fogo, ele morreue renasceu instantaneamente no fogodosinfer-
nos. Como no mesmoinstante o fogo dapira funerária foi aceso,
ostrês fogos queimaram ao mesmo tempoe o infeliz recebeu a
alcunha de “Aquele que Foi Três Vezes Queimado”.
Precisamos ser generosos e ajudar os necessitados, fazendo
tudo o que estiver ao nosso alcance. A oferenda de tormas de
águafeita pela manhãe a oferenda de fumaça de alimento feita
à noite aliviamos pretas das angústias da fome,principalmente se
forem realizadas com grande compaixão. A verdadeira generosi-
dadese fundamenta no amorao próximoe no desapego.

7. O corpo não passa de um saco de imundícies, Povo de


Tingri:
Para que enfeitá-lo e tratá-lo com cuidados excessivos?

-36*
Dilgo Khyentsé

“Eu sou a mais bela”, pensa uma jovem bonita. “Posso seduzir
quemeu quiser” Seu corpo, tão atraente, não passa decarne, san-
gue, linfa, ossos e secreções diversas. Nadaparticularmente exci-
tante! O corpo humanoparece um vaso de fina porcelanarepleto
de excrementos. Destampe-oe sentirá náuseas.
É umaperda de tempo dedicar tantos cuidados ao corpo e
alimentá-lo com delicadas iguarias, vesti-lo com roupas elegan-
tes e tentar fazê-lo parecer mais jovem! O corpo destina-se ao
cemitério e será cremado,enterrado ouservirá de pasto para os
abutres.
Impelidos porvás considerações, nósnos lançamos no mundo
dos negócios, entramos em concorrência com nossosadversários
e não hesitamos em mentir e enganara todos, acrescentando ao
peso dos nossosatos negativosa futilidade dos nossos objetivos.
Mesmovivendo com opulência, nunca estamossatisfeitos. Nos-
sa riqueza nuncaé grande o suficiente, nossa comida nuncaé boa
e suficiente e nossos prazeres nuncasão intensos o suficiente.
A partir do momento em que temos o que vestir para nos
proteger do frio e o que comer para manter esta existência tão
preciosa, por que desejamos tanta coisa supérflua? Nossos an-
cestrais espirituais se contentavam em ter o suficiente paraviver.
Eles não cobiçavam se paramentar com roupas luxuosas, nem se
alimentar com pratos caros e refinados. E caçoavam desmedida-
mente do conforto, da famae das conversas mundanas.
Noentanto, apesar de o corpo não merecer atenções espe-
ciais, ele pode, emcontrapartida, tornar-se uma ferramenta de
valorinestimável quandose trata depraticar o dharma.Estafer-
ramenta, infelizmente, só é posta à nossa disposição por tempo

37.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

limitado: esta vida. Devemos,então,utilizá-la com discernimen-


to e resolução, não para usufruirmos o máximo possível dos pra-
zeres e confortos corriqueiros, mas para fazermos da nossa vida
um instrumento que nos conduza à iluminação.
A fixação pelo corpo reforça o apego e as paixões. Precisa-
mos reconhecer que o corpo não passa de umailusão mágica.
Tenhamoso cuidado necessário para mantê-lo saudável e consa-
gremos nossasforças à prática espiritual. Assim, seremos umdia
semelhantes aos bodisatvas, que não sentem o menor apego ao
corpoe estão prontos para sacrificar os membros, os olhose até
mesmoa vida pelo bem dos outros.

8. Os parentes e amigos, Povo de Tingri, são ilusões ardilosas:


Cortem os laços do apego.

Ficamosfelizes só de olharmospara nossos familiares e amigos.


Se ouvimos nosso filho chorar, a inquierude nos oprime. Somos
dominadosinteiramente por sentimentos que dispersam a men-
te. Em vez de rezarmos para renascer numaterra de budas ou
como um eremita que pratique o dharma com todaa sincerida-
de, afeiçoamo-nosaos nossos próximos e tememos a morte deles
tanto quanto a nossa. Este sentimento, que nos atormenta até
exalarmos o último suspiro, nos impede de confrontrar a morte
com lucidez. Se temos a oportunidade de fazer um retiro solitá-
rio nas montanhas para nos consagrarmosà prática espiritual,
hesitamos:“Quem cuidará da minha família, dos meus negócios,
das minhas terras?”, e adiamosnossa ida para outra ocasião.
Para fortalecer nossa determinação, deveríamos considerar
o mundo à nossa volta, a família e os bens comose fossem um

38.
Dilgo Khyentsé

petáculo de mágica, desprovido de realidade, e imitarmos o má-


gico que o criou. Inteiramente conscienteda irrealidade das suas
criações, ele as aprecia, mas nãose apegaa elas.
A maioria de nós tem umavida familiar. Uma família pode
permanecer unida pela duração de umavida,às vezes por menos
tempo. Enquanto duraresta união efêmera, vamos nosesforçar
para viver em perfeita harmonia uns com os outros e praticar
o dharma tanto quanto possível. Voltemos a nossa mente dia
c noite para a compaixão e para fazer o bem. O simples ato de
curvar-nos em adoração, umabreve oração, uminstante de medi-
tação sobre a natureza da mente, são sementes de iluminação.
A união de marido e mulhere depais e filhos nesta vida tem
sua origem em ações passadase resulta de um karmarecíproco.
É preciso que façamos tudo para evitarmos brigas e vivermos
em paz. Se um dia acontecer de abraçarmos a vida monástica e
renunciarmosà nossa família, rezemos para que, assim que al-
cancemosa iluminação, nossos familiares e amigossejam os pri-
meiros discípulos que conduziremos ao caminho dalibertação.

9. A terra dos seus ancestrais, Povo de Tingri,


Nãopassa de um campo de nômades: não se apeguem ela.

Chamamosde “pátria” o país onde nascemos. Mas, na verdade,


nãoexiste um único lugar nosseis domínios do samsara que não
seja a nossa pátria, pois nascemose renascemos inúmeras vezes
emtodos eles. Da mesma maneira que os nômades levantam
acampamento a cada estação, nós mudamosde país a cada nas-
cimento. Por que deveríamoster mais apego a umaterra do que
a outra?

"39
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

10. Todos os seres dos seis mundosjá foram seus pais ejá cuida-
ram de vocês,
Povo de Tingri: não acreditem em “eu”e “meu”
Àsseis destinações constituem a pátriaa ser compartilhada com
todosos seres. Ao longo das nossas vidas, cada ser já foi nossa
mãe, nosso pai, nosso amigo ounosso inimigo. Seria, portan
to,
um desatino estabelecer, na conjuntura limitada desta vida atu-
al, umaseparação entre os amigos que queremos conservar e os
inimigos dos quais gostaríamos de noslivrar. A definição rígida
e transitória de quemé nosso amigo ou inimigo alimenta uma
torrente de apegos e animosidades que obscurecem a mente.
Deixemos de registrar na memória as ações negativas, supri-
mindo as noções de “eu” e “meu”e os sentimentos de atraçã
oe
repulsão que estas idéias provocam.

11. No dia em que nascemos começamos a morrer,


Povo de Tingri: não desperdicem um só instante.
Consideramos o nascimento de uma criança um dos aconte
ci-
mentos mais felizes da vida. Contudo, nada poderá deter sua
marcha implacável para a morte. Qualquer que seja o rumo que
a sua vida tome, nenhum deseus passos afastará da morte. Diz
o provérbio: “Quanto mais o sol cumpre a sua trajetória, mais a
sombra das montanhas se aproxima do poenre. Quanto mais a
vida avança, mais próxima se torna a morte”
Quando entra na adolescência, o jovem pensará,talvez, que
temtodo 6 tempo do mundo à sua disposição, Trata-se de um
grande engano. Ele estará cometendo umainsensatezse deixar

-40-
Dilgo Khyentsé

tudo para o dia seguinte, pois a hora da morte pode chegar a


qualquer momento. Cada respiração é mais um movimento em
direção à morte, assim como cada passo aproxima do fim o ani
mal queserá abatido.
Esta vida é umasó,enquantoasvidas futuras são incontáveis
e não devem ser sacrificadas nesta existência atual pela procura
do bem-estar ilusório. Se, dia após dia, negligenciamosa prática
espiritual, vamosnosarrepender amargamente no momento da
morte, mas então será tarde demais. Será que precisamos espe-
rar até o último instante para fazermos as práticas espirituais?
Devemos nos dedicar a elas imediatamente. A experiência que
isso nostrará é a única coisa que poderá nos ajudará no momen-
to da morte.

12. O erro nãofaz parte da realidade primordial e provém,


através dos sentidos, do mundo exterior,
Povo de Tingri: observem atentamente como ele opera.

Sea ignorância existisse realmente, não teríamos como eliminá-


la, assim como o carvão não embranquece quandoo lavamos. A
natureza búdica é fundamentalmente purae inalterável como o
ouro. À ignorância pode encobri-la temporariamente, como a
lama encobre uma pepita de ouro sem alterar o seu valor.
A ignorância forma-se espontaneamente, como uma nuvem
no céu. À nuvem nãoexistia em nenhum outro lugarantes e em
breve se dissipará. No momento,ela parece ser uma imponente
massa branca que empalidece o brilho do sol. Se voarmosna di-
reção dessa nuvem a atravessarmos, veremos que é intangível,
sol permaneceinalterável.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

A ignorância também é impalpável. Os véus que ela tece são


de natureza impermanente, efêmera e em nadaafetam reali-
dade primordial, nem fazem parte dela. A ignorância, mãe dos
desvios de condutae da ilusão, empurra osseres para o samsara,
que, apesar de sua aparente solidez, não possui um único áto-
moderealidade. Como nunca nasceu, não pode existir e, muito
menos, deixar de existir. No momento em que a percepção da
vacuidade dissipa os véus da ignorância, as qualidades naturais
doestado búdico se revelam. Dessa forma,logo que o vento em-
putra as nuvens para longe, o sol, que nunca deixou de brilhar,
aparece.

13. Consagrem a sua atenção inteiramente ao dharma sublime,


Povo de Tingri, pois ele os guiará após a morte.

Na florda idade, cheios de saúde e força, queremosviver inten-


samente. Com incansável entusiasmo, não poupamos esforços
para aumentar nossafortuna e nosso poder. Certas pessoas não
hesitam em menosprezarosinteresses alheios para alcançar seus
objetivos. No instante da nossa morte, compreenderemosa inu-
tilidade de todas essas atividades febris. Será, então, tarde de-
mais para voltarmosatrás.
A maior beleza não pôde seduzir a morte; a maior fortuna
não pôde suborná-la, a maior força não pôde obrigá-la a esperar
um só instante; os poderosos chefes de estado obedecem-lhe, os
generais são por ela desarmados, mesmo dispondo de um enor-
me arsenal.
Nada, a não ser a experiência espiritual que adquirimos ao
longo da vida, poderá nos ajudar no momento da morte.

“42.
Dilgo Khyentsé

Rápido! Façamosas práticas espirituais, antes que a velhice


nos príve das faculdadesfisicas e mentais. Deixemosparatrás a
confusão e as distrações pueris da vida para nos consagrarmos
à prática do dharma. Assim, quando a morte chegar, diremos
como o incomparável Gampopa: “Na melhor das hipóteses, rea-
lizaremosa natureza dascoisas, o corpo absoluto”,
“Numa hipótese intermediária, a certeza de renascermos
numaterra búdica nos encherá da mesmaalegria que sente uma
criança ao voltar para casa.”
“Napior das hipóteses, não sentiremos o menor arrependi-
mento, pois encontramos um mestreespiritual e praticamos seus
ensinamentos.”
Vamos nos preparar a partir de agora para que, no momento

da morte, possamosaplicar os ensinamentos que recebemos.

14. O cumprimento do karmaestá inteiramente sujeito às leis


da causalidade,
Povo de Tingri: evitem, portanto, as ações prejudiciais.

Se desaparecêssemos como a água ao ser absorvida pela terra


seca, ou como uma chamaque se apaga, poderíamosencarar a
morte de maneira leviana.
Porém,não é este o caso. Ao abandonarmos o corpo, con-
servamos nossa mente, que viaja pelo estado de transição entre
a morte e o renascimento, chamado bardo”. Nesse estado não
temos um corpo material e, por isso, não podemosusaros cin-
co sentidos da maneira habitual. Estamos privados de tudo. Tal
como um pêlo é extraído da manteiga", somosretirados da com-
panhia dos parentes e amigos.

“43.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

Uma única coisa nos acompanhará como uma sombra: a


soma das nossasações. Se as açõesnegativas predominarem,não
escaparemos dos tormentos dos reinos inferiores do samsara.
Caso contrário, renasceremos numestado deexistência superior
e poderemos prosseguir nossa caminhada rumoà libertação.
Nocaminhoestreito do bardo não podemosescolher o que
fazer nem demorar-nos. Não há escapatória. O karma nos em-
purra como uma pluma ao sabor do vento, enquanto somosle-
vados pelos mensageiros da morte. Não temos um instante de
descanso para nos recompor, nem liberdade paraficar ou partir.
Jogado a esmo, o corpo mental não nos obedece.
É fundamental termos a convicção de que o universo e os
seres obedecem às leis da causalidade. Milarepa explicou que,
graças à sua convicção da existência dasleis do karma,ele pôde
se dedicar à prática espiritual e alcançar a iluminação em uma
única vida. Cadaação produz inevitavelmente um resultado. Os
rastros dos nossosatos, positivose negativos, ficam gravados no
substrato da consciência. Só há uma maneira de apagarmos um
ato negativo: ou pelo sofrimento,que é a sua consequência natu-
ral, ou desfazendo-o com ajudade antídotos apropriados, antes
queseusefeitos funestos se manifestem.
O mestreespiritual nos explica que osatos positivose negari-
vos produzem consequências inevitáveis. Entendemos perfeita-
menteo queele diz, mas não acreditamos. Caso acreditássemos,
não ousaríamos cometer o menorato prejudicial e faríamostudo
para multiplicar nossas ações positivas, mesmo as mais insigni-
ficantes. Não é verdade que damosvalor a uma pepita de ouro,
mesmo queseja pequena?

“44:
Dilgo Khyentsé

15. Tudo o que podemos fazer, Povo de Tingri,


Ércomose estivesse sendofeito num sonho:
Pratiquem sobretudo o não-fazer.

Asatividades da vida se sucedem, umaapós a outra, comoas on-


das no mar. Osricos nunca têm dinheiro suficiente e os podero-
sos nunca têm poder suficiente. Reflitamos: a melhor maneira de
satisfazermosos nossos desejos e rerminarmosos nossos projetos
é renunciandoa eles.
Parao ser que alcançou a realização espiritual, as preocupa-
ções das pessoas comuns são como acontecimentos num sonho.
É comose um ancião contemplassebrincadeiras de crianças. Tal.
vez, ontem à noite, sonhamos que éramos um granderei. O que
sobrou do reino quando acordamos? O quevivenciamos quando
estamos acordados não é mais real do que um sonho. Para que
perseguir esses sonhos fugidios? Ao invés de nos apegarmos a
quimeras, deveríamos deixar nossa mente repousar em contem-
plação serena,livre das agitações mentais e distrações, até que a
realização da vacuidade nos impregnea ponto detornar-se uma
parte de nós.

16. Doem tudo aquilo a queestejam apegados,


Povo de Tingri: não há nada que seja imprescindível.

Pensemos em qualquer pessoa, em um objeto, em umasituação,


ou ainda na beleza, no poder, na riqueza, aos quais estejamos
bastante apegadose façamos umareflexãocriteriosa. Todasessas
coisas não são ilusórias? Logo que comecemosa perceberascoi-
sas desta maneira, nossos apegose desejos diminuirão e não ex-

“45.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

perimentaremos mais a mesmanecessidade premente de possuir.


Aqueles que não precisam de nadasãolivres e serenos.
Se, ao contrário, vivemos e morremos num estado de inten-
so apego,esta nossa existênciae as quevirão a seguir serão infe-
lizes. Quem morre tendo comoúnica preocupação o patrimônio
que deixará paratrás se tornará um espírito torturado pela ava-
reza, a vagar incessantemente em torno dos bensquelhe perten-
ceram.
No quese refere à alimentaçãoe ao vestuário, os grandessan-
tos em suas práticas espirituais contentavam-se em ter apenas
O necessário para se manterem vivos e protegidos do frio. Nin-
guém, porém, era mais rico do queeles, pois a riqueza pertence
aos que se contentam com o que têm.
Kharak Gomchung,quevivia numagruta no Tibete, foi um
deles. Uma moita de pilriteiro obstruíaa entrada da gruta e seus
espinhos prendiam a roupa do eremita, cadavez queele passava.
Com frequência ele sentia vontadede cortar o arbusto, mas ime-
diatamentea lembrança da mortesurgia em sua mente e Kharak
Gomchung pensava: “Quem sabe quando eu vou morrer? É me-
lhor consagrar à meditação o tempo que eu gastaria para arran-
car esta planta”.
Foi pelo poder da meditação que Kharak Gomchung se tor-
nou capaz de voar pelosarese realizar toda sorte de prodígios.
Quando o eremita morreu, a moita continuava lá. Portanto, se
os praticantes desta magnitude não se permitiam perder um só
instante, como ousaríamos nós, que temos tanto a fazer para
progredir no caminho espiritual, perder tempo com as mais cor-
riqueirasatividades?

-46+
Dilgo Khyentsé

17. Preparem-se desde agora para a grande partida, Povo de


e Tingri,
Pois não permanecerão para sempre neste mundo.

Já passou pela cabeça de todos nósa idéia de construir uma boa


casa, na qual pudéssemos morar por muitas décadas e que per-
dutasse por muitosséculos. Ou quem não pensou em enriquecer,
para nunca mais ter de se preocupar com dinheiro? Somos pos-
suídos pelo “demônio da eternidade”, que nos induz a acreditar
que tudo vai durar para sempre.
Pensamos em vão queas pessoas ouascoisas nos pertencem.
Que espetáculo deprimente nos oferecem aqueles que,cegos aos
tormentos que os esperam, morrem preocupados com osentes
queridos, o patrimônio que está sendo deixado e o testamento,
que não passa de um testemunho da soma dosseus apegos.
Queespetáculo reconfortante, em contrapartida, nos ofe-
recem os sábios que consideram que nada lhes pertence, nem
mesmo o corpo e muito menosos bense a casa. Para essesseres,
todas as coisas não passam de objetos ilusórios que lhes foram
emprestados durante um tempo determinado.
Umalonga viagem está à nossaespera nos seis domínios do
samsara. À semelhança do marinheiro, que planeja cuidadosa-
mente seu périplo ao redor do mundo, praticar o dharmaé a
melhor maneira de nos prepararmos para a viagem ainda mais
longínqua da morte e do renascimento.

18. Quando terminarem tudo o que têm afazer, Povo de Tingri,


Será tarde demais para as práticas espirituais:
Portanto, ao pensarem nelas, façam-nas imediatamente!

“42º
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

Muitosjovens raciocinam que todosos seus projetos serão con-


cluídos em dez ou vinte anose que, mais tarde, poderão praticar
o dharma com tranquilidade. Só queeles ignoram quea vida é
efêmera. Quantosjovens morrem de maneira imprevisível? Seria
uma grande presunçãoafirmar que umacoisa dessas não aconte-
cerá conosco. Além do mais, as atividades desta vida não acabam
nunca, comoas ondas sobrea superfície dolago.
Sea idéia de praticar o dharmaocorrer-lhe, não hesite. Não
deixe para tomaresta decisão amanhã. O momentocertoé agora.
O camponês semeia o grão quandoa terra está úmida e quente;
ele não espera até que a geadaa endureça. Logo quetiver encon-
trado um mestre espiritual e recebido suas instruções, você está
pronto para percorrer o caminho do despertar.

19. Os macacos só pensam em brincar entre as árvores,


Povo de Tingri, mas ofogo cercou a floresta.

Nocoração da floresta, os macacos pulam despreocupados de


galho em galho, brincam e comem frutas deliciosas. Não sabem
que o fogo os cercou e queestão prestesa ser queimadosvivos.
Divertem-se a orgulhoso, o poderoso e rico egoista, incons-
cientes das emboscadas que a morte lhes prepara. Vale mais a
pena,neste caso, refletir algunsinstantes sobre o que é realmente
importante no momento da mortee praticar o dharma — a única
maneira coerente de aproveitar a vida.

20. Não há vau nem ponte para atravessarmoso rio do nasci-


mento, da doença, da velhice e da morte:
Já prepararam o barco, Povo de Tingri?

“48:
Dilgo Khyentsé

O nascimento, a doença, a velhice e a morte são os quatro grandes


tormentos dosseres humanos. O nascimentoé o limiar davida e
o começo do sofrimento. A velhice logo alterará nossa saúde, de-
bilitará nossos sentidos, roubará nossos dentes e embranquecerá
nossos cabelos. A perda da memória nos tornairascíveis,e nin-
guém se dispõe a demonstrar consideração por velhos mal-hu-
morados, A ansiedade nos angustia: o que acontecerá com nossos
bens e nossos negócios se os filhos continuarem a negligenciá-
los? A doença tambémtraz sua carga de aflições. Para culminar,
humilhados e paralisados pela dor, somosobrigados a enfrentar
o medo da morte.
Essas quatro grandes provações formam um rio turbulento
que todos nós temosde atravessar. Não valerá a pena preparar
umbarco quenospermita chegar à outra margem?

21. Nos desfiladeiros estreitos do nascimento, da morte e do


bardo,
Os bandoleiros dos cinco venenos estão à espreita para em-
boscá-los, Povo de Tingri:
Que o seu mestre possa, então, escoltá-los.

Atravessar umaregião infestada de bandidos é uma experiência


assustadora e muito perigosa. Da mesmaforma, quem se esforça
paraalcançara iluminação deve estar preparado para enfrentar os
obstáculos mais terríveis: o ódio, o desejo, a confusão mental, o
orgulhoe a inveja. Mal você consegue se esquivar das armadilhas
colocadas pelos assaltantes do desejo e do apego, depara-se com
oódio pronto para atacá-lo na próxima encruzilhada. Ainda que
consiga escapar, defronta-se de súbito com o orgulho e a inveja.

“49:
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

Nenhum desses malfeitores hesitará um só instante em matar


qualquer chance que você tenha dealcançara libertação.
Nessas condições, é preciso que tenha umaescolta muito se-
gurapara protegê-lo, e quem poderá fornecê-la é o mestre espiri-
tual, Somente ele poderá instruí-lo para que possa chegar são e
salvo ao seu destino.
Comoo que está em jogo é muito importante, torna-se impe-
rativo começar a procurar um mestre qualificado. Umavez que o
encontre e nele conhe, é bom quesiga seus conselhos. Então, só
precisará aprender a fazer corretamente as práticas espirituais.
Se alcançar êxito nessas três etapas, seu progresso será rápido
e sem obstáculos. Graças ao mestre espiritual, o dharmaapre-
senta-se como uma bela mesa posta na praça do mercado cheia
de iguarias deliciosas. Não seria um contra-senso perder uma
oportunidade comoesta?
Ponha-se sob a proteção do mestre e terá umaprática para
quandoestiver envelhecendo,outra nocaso deficar doentee ain-
da umaoutra para quandoestiver no limiar da morte. Dessafor-
ma,estará preparado para enfrentar com confiança e equilíbrio
todos os acontecimentos da vida e da morte.

22. O mestre espiritualé o refúgio infalível, Povo de Tingri,


Tragam-no continuamente no topo da cabeça.

O mestre não deixa de abençoarseus discípulos um único instan-


te e nisso ele é comparável ao makara? das profundezas do mar,
que não largajamais o que traz entre os dentes. Se confiarmos em

nosso mestre, ele nos conduzirá à iluminação. Quanto maior for


nossa devoção porele, mais célere será nossa evolução espiritual.

“so:
Dilgo Khyentsé

E,se para nósele é a personificação do Buda, percorreremos nos-


so canfinho rapidamente e sem encontrar obstáculos.
Como podemos demonstrar nossa reverência ao mestre? Fa-
zendo-lhe doações ou, melhorainda,servindo-o decorpo, mente
e almae, principalmente, não deixando de colocar seus ensina-
mentos em prática.
Como obtemos as práticas? Primeiro recebemosas instru-
ções de um mestre qualificado e depois noscertificamos de que
entendemoso quesignificam,para então assimilá-las.
Como devemosfazer as práticas? Da mesma maneira que um
iaque faminto, que, ao comer um tufo de capim,já está de olho
no próximo. Deveríamos transbordarde alegriae arder de entu-
siasmo à simplesidéia de fazermos práticas, sem nos deixarmos
abater pela indolência ou apatia e sem jamais pensarmos que já
praticamoso suficiente. Quando praticamos um pouco, fazemos
algumas centenas de reverências e recitamos mantras milhares
de vezes, sentimos orgulho de nós mesmos, mas não hesitamos
em matar insetos e satisfazer nossos caprichos. Somos condes-
cendentes com nossosatos negativos, mesmo quesejam bastante
numerosos. E é dessa forma que nós nos enganamos redonda-
mente,

À orientação do mestre espiritual é tão necessária para nós


quanto a proteção dospais para umacriança. Sem a ajuda deles,
comoela aprenderiaa falar, a ler e a escrever?
É preciso trazer todasas nossas experiências de vida para o
âmbito da devoção ao mestre. A prática decorrente desse prin-
cípio fundamental não mais apresentará dificuldades. Se tudo
está correndo bem, consideremos nossa felicidade uma bênção

se
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

do mestre, mas não nos apeguemosa ela, pois não passa de um


sonho, uma ilusão. Se só encontramos sofrimentos, devemos
considerá-los também uma bênção do mestre.
Dessa forma, assim que formos acometidos por uma doença
qualquer, visualizemos o mestre no lugar do corpo emque você
sente dor, lembrando que a dor é uma excelente oportunidade
para purificarmos nossas más açõese nossaignorância — a fonte
de todosos sofrimentos. Tendo em mente o número infinito de
pessoas que, assim comonós, tambémsofrem,façamosesta ora-
ção: “Que a minha dor possa assimilar o sofrimento de todos!
Que todos sejam libertados do sofrimento!” Assim, a doença
nosensinaa ter compaixão.

23. Conduzidos pelo mestre, vocês irão aonde quiserem,


Povo de Tingri: retribuam oferecendo-lhe sua
devoçãoirrestrita.

Nosso mestre espiritual é comparável à terra que se mantém


firme sob nossos pés. Ele nos conduzirá à iluminação sem nos
desapontar. Voando pelos ares, o avião nos leva em poucas ho-
ras a lugares que jamais poderíamos alcançar a pé, mesmo que
caminhássemos durante meses. A bênção do mestre, que é uma
consequência da nossa devoçãoa ele, nos conduzirá rapidamente
à realização espiritual.
Dharma é umapalavra sânscrita que, entre outras acepções,
significa “aquilo quesustenta”, pois o dharmasustenta rmemen-
te quem ele se entrega com devoção, conduzindo-o à ilumina-
ção. Umapessoa queestá sendocarregadapela correnteza de um
rio pode ser içada por um braço forte e trazida para a margem.

“82.
Dilgo Khyentsé

Da mesma maneira, se entregarmos ao mestre a argola da nossa


confiariça, ele poderá, coma ajuda do gancho da sua compaixão,
resgatar-nos do ciclo de mortes e renascimentos.
Nenhum aluno, qualquer que seja o estágio em que se en-
contre nos ensinamentos do budismo, do Veículo Menoraté a
Grande Perfeição, pode prescindir dos conselhos de um mestre
espiritual autêntico. Depositar no mestre a nossa total confiança
é a melhor maneira de progredirmose evitarmososriscos de ex-
trávio e os obstáculos. A devoção é o preço que teremos de pagar
para fazermosa travessia para a iluminação.

24. Osricos costumam ser mesquinhos, Povo de Tingri:


Quea sua generosidadeseja isenta de parcialidade.

Diz-se, com justiça, que “o mais rico é o mais avarento”. À mes-


quinharia nos mergulhará na penúria e nos fará renascer no
mundo dos espíritos famintos. Melhor faríamos se, em vez de
acumularmosriquezas inúteis, as usássemos construtivamente,
para consolar quem se encontra na miséria, erguer monastérios
e stupas e fazer oferendas às TrêsJóias. Na verdade, quanto mais
generosos somos, mais prósperos nos tornamos. Nunca se viu
um homem caridoso quefosse pobre.
É preciso quesejamos generosose imparciais com os pobres,
doentes, idosos viajantes que chegam delonge,sem fazer distin-
ção entre o amigoe o inimigo,entre aquele de quem esperamos
algo em trocae aquele de quem não esperamos nada. Quando
você der algumacoisa,faça-o sem ostentação nem favoritismos,
e sem a expectativa deretribuição.

53.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

25. O poderé a fonte de todos os males,


Povo de Tingri: renunciem à ambição de poder.

Os reis e chefes de estado recorrem a um grande número deatos


negativos para assegurar a sua autoridade. O governante é res-
ponsável pelos delitos cometidos em seu nomee colherá sozinho
o fruro dessas ações. O comandante doexército também assumi-
rá o karmapor cada morte provocada pelosseus soldados.
O poder, afinal de contas, não tem nada de positivo se é
construído sobre tantas ações condenáveis. A sede de poder e
de dinheiro, a busca de umalto cargo ou de uma posição social
só atrairão sofrimentopara nóse para nossosfilhos,se transmi-
timosa eles esses princípios. A iluminação é o único estado do
qual nunca decairemos.

26. Os ricose os poderosos não sabem o queé a felicidade,


Povo de Tingri: compreendam isso.

Não há ninguém mais agitado e ansioso do que aquele que só


pensa em dinheiro. Comofará para construir a sua fortuna?E,
agora que já se tornou rico, comoconservará a sua fortuna? Ele
vive angustiado com medo dosladrões, dos concorrentes,de per-
der o emprego. No dia em quepor fim seu patrimônio lheescapa,
ele tem a impressão deestar amputado, mutilado,arruinado.
Esta é a angústia dos que vivem dia e noite em função dos
negócios e ficam extenuados de tanto perseguir o sucesso e ten-
tar evitar o fracasso. Desconfiam de todos e procuram sempre se
aproveitar dos subalternos, superar os superiores e eliminar os
parceiros. Não têm um minuto de tranquilidade. É uma grande

“sa.
Dilgo Khyentsé

alegria não termos poder nem posição social, nada a perder e


nada a'temer!
Não sobrecarregue a mente com pensamentos inúteis. Para
que remoer o passado ou tentar adivinhar o futuro? Faça com
que o fundamento da sua existência seja simplesmente viver o
momento presente em harmonia com o dharma. Seja o senhor
doseu destinoe faça as práticas espirituais.

27. No outro mundo vocês não terão nemfamília nem amigos,


Povo de Tingri: confiem apenas no dharma.

Umafarpa nos arranca um grito de dor, e um balde de água ge-


lada nos faz pular. Maseste corpo, tão importante para nós, em
breve será um cadáver. Não há para ele outro destino senão ser
cremado,enterrado, devorado peloscães ou dilacerado pelos abu-
tres. Quando deixamos este mundo,nossos pais, filhos, amigos,
criados, casas e riquezas ficam para trás. Nada nem ninguém
pode nos acompanhar. O vento do karma nos conduz como se
fôssemos uma plumae não temos mais a liberdade de escolher
para ondeir, nem deficar onde acharmos melhor.
Quem então poderá nos ajudar? Nosso mestre,as Três Jóias e
o dharmaque praticamos enquanto vivemos. Não percamosa fé:
eles têm o poder de libertar-nos dos tormentose do temor do es-
tado intermediário que precisaremosatravessar entre a morte e o
renascimento, assim como de nos conduzir às terras búdicas.
O dharma, que é infalível, começa na dificuldade, mas cul-
mina no êxtase, Caminha nadireção oposta à das coisas deste
mundo, que começam naalegriae na facilidade, mas terminam
no desgosto e na desilusão.

“55.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

Quantas provaçõese austeridades o reverendo Milarepapre-


cisou enfrentar! Foramelas, porém,que lhe permitiram alcançar
o estado de Detentor do Vajra (Vajradhara), a felicidade pura e
sem dualidade. Apesar deter vivido em cavernas solitárias, sua
glória resplandeceu até mesmo nosconfins do mundo.Ele tam-
bém precisou cruzaro portal da morte, mas hoje está sentado no
centro da mandala da Terra da Felicidade Pura.
Que diferença em relação àqueles que são importantesneste
mundo! Quando um chefe de estado ou um milionário célebre
morre, dizemos apenas quefaleceu e isso é tudo, da mesma ma-
neira que umavela apagou ou uma poça d'água evaporou.
Às qualidades que resultam da prática do dharma, em con-
trapartida, constituemo potencial espiritual para nossas vidas
futuras. A palavra dharma evoca também a idéia de “melho-
tar, “corrigir”: corrigir todas as nossas imperfeições para desen-
volvermosa perfeição. De que outra maneira poderíamos alcan-
çar a liberdade?

28. Pelos caminhos dadispersão, as possibilidades e as riquezas


das suas vidas humanas serão exauridas,
Povo de Tingri: tomem a firme decisão de começara fazer
as práticas espirituais imediatamente.

A mente muda a cada momento. À única coisa que permanece


imutável é o poderoso apego queela tem às coisas deste mundo.
Enquanto permanecemoshesitantese dispersivos, sem autocon-
trole interior, corremos risco de desperdiçar nossos dias com
futilidades. Se, no dia de hoje, deixarmosnossaprática para ama-
nhã, continuaremosa agir dessa maneira constantemente.

“56
Dilgo Khyentsé

Inspirado pela fé, o caçador Gompo Dorje disse a Milarepa:


“Eudécidi praticar o dharma, maspreciso primeiro ir para casa
despedir-me da minhafamília. Voltarei em seguida”. O eremita
interrompeu-o: “Decida-se agora! Se voltar para casa, sua famí-
lia fará de tudo para dissuadi-lo e você não retornará. Se quiser
praticar o dharma, comece imediatamente”.
Nãocaia nesse tipo de armadilha. Reúnatoda a sua energia
e, sempermitir objeções, comecea praticar!

29. A morte virá quando estiverem distraídos,


Povo de Tingri: comecem afazeras práticas agora.

Você pode estar semeandoa terra, cuidandodos negócios, plane-


jandose casar, como posso saber? Suavida diminui a cada passo
e você corre o risco de cait na atmadilha da morte. Não sobre-
carreguem a mente com preocupações banais e não adiem por
muito mais tempoa prática do dharma: se sentirem vontade de
fazeras práticas de dia, pratiquem dedia;se a vontade ocorrerà
noite, pratiquem denoite! Não importa qual seja o lugare a hora,
façamas práticas imediatamente!

30. O demônio da morte não tem hora para chegar,


Povo de Tingri: fiquem atentos.

Irreversível e repentina como um relâmpago, a morte bateà porta


sem avisar, não importam as circunstâncias. Por exemplo, nossa
saúde está ótima e saboreamos umafinarefeição com os amigos,
ou contemplamos umapaisagem admirável, sem saber que talvez
sejam esses os últimos momentos da nossa vida. Deixaremos os

“57.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

entes queridose as conversas interrompidas, a comida nospratos


consumida parcialmente,os projetos inacabados. Quantas pes-
soas não morrem cedo, vítimas de um acidente ou são assassi-
nadas? Algumas morrem de uma queda na montanha; outras,
envenenadas por um alimento contaminado ou por um medica-
mento errado;outras são mortalmenteferidas numa competição
e outras, ainda, morrem naguerra... À ameaça da morte está
sempre presente. Esteja semprevigilante, como um viajante que
cruza umaregião infestada de bandidos. O político ameaçado de
morte não descuidajamais da suavigilância — evita dormir duas
noites seguidas no mesmolugare está totalmente consciente da
iminência da morte. Sejamos como ele o tempo todo. À noite,
pensemosantes de adormecer: “Será que de manhã,talvez, um
cadáver será encontrado na minha cama?”

31. No dia da sua morte, ninguém poderá fazercoisa alguma


por vocês,
Povo de Tingri: contem apenas com vocês mesmos.

Osamigos e parentes que estão conosco no dia da nossa morte


não poderão mais nos ajudar, e menosainda nos acompanhar
umavez que atravessarmos o portal da morte. O homem mais
rico não poderá levar consigo o mais ínimo dosseus bens, e o
general mais poderoso ordenará em vão quesuastropas prendam
a morte. Como todos nós,terá de submeter-sea ela.
Nossa consciência abandonará este corpo transformado em
cadávere vagará pelo bardo. Lá, com um corpo mentale ilusório,
estaremos sós entre as sombras, nus, perdidos, desesperados e
sem saber o que fazer, nem para ondeir. As alucinações terrí-

“58.
Dilgo Khyentsé
veis que acometema maioria dos seres ultrapassam em horror
qualquer descrição possível. Ainda que não passem de projeções
mentais,essas visões parecem dotadas de umarealidade inegável
e poderosa.
Só poderemos contar então com nossos próprios recurs
os.
Nossa única ajuda, nossa única proteção será o dharmaque pra-
ticamos. Façamosagora tudoo queestiver ao nossoalcance para
obtê-lo. Mesmo em tempos de paz, as nações não se descuidam
da: possibilidade de umaeventual agressão estrangeira e estão
prontas para defender-se, Nós tambémdevemosestar vigilantes
e preparar-nos para a mortepela prática do dharma,
que éa eter-
na colheita, nosso abastecimento para as vidasfuturas, a fonte da
felicidade universal e a meta suprema.

32. Quandorefletimos sobre a morte, não temos mais neces-


sidade de nada,
Povo de Tingri: tenham sempre em mentea idéia da morte.

Quando a consciência da impermanência, da fragilidade da vida


e da ameaça da morte se enraíza na mente, não mais sentim
os
necessidade das coisas mundanas e triviais desta existência.
Tudo
o que desejamos é poderfazer as práticas espirituais em algum
lugar solitário. Olhe para o reverendo Milarepa: seu alimento
consistia de urtigas e sua roupa, de um xale de algodão.
No en-
tanro,ele alcançou em uma só vida o grau de Supremo Detentor
da Iluminação (Vidyadhara).
Por ourro lado,se não nos desvencilharmos dasnecessidades
inúteis, estaremos sempre querendo possuir mais do
que pre-
cisamos. Apesar de termos o que comer quando estam
os com

“59.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

fome,não nos seria desagradável saborear pratos cada vez mais


requintados; temos o que vestir e onde morar, mas adoraríamos
ter roupas melhores e uma casa maior e mais confortável. Nosso
companheiro ou nossa companheira são ótimos, mas como gos-
taríamos que fossem ainda mais bonitos... Todasessas coisas
comprovam que a iminência da morte caiu no esquecimento.
Se não acreditássemos piamente que nos perpetuaremos nes-
te mundo, por que faríamos planos para o futuro? Os grandes
praticantes do passado definiram-se como “iogues com o cora-
ção marcado pelo sinete da impermanência”. À insignificância
das preocupações mundanas revelava-se para eles em todaa sua
magnitude. Suas mentes voltavam-se inteiramente para o dhar-
ma. No caso deles, o dharma consistia em umavida frugal ins-
pirada naidéia da própria morte que, como eles sabiam,viria ao
seu encontro numagrutadeserta. Se bebermoso néctar da idéia
da morte, nossa compreensão será a mesma que à deles.
É claro que esses grandes praticantes estão mortos, pois a
morteé o destino detodos os seres, masagoraeles se encontram
nasterrascelestes, napresença dos budase dos bodisatvas, e não
nos mundos inferiores, rumo aos quais todos aqueles que só se
preocupam comos prazeres desta vida se precipitam.
Em resumo, a idéia da morte deveser a sentinela designada
para vigiar a disciplina da nossaprática espirituale não permitir
que nos dispersemos em aventuras ilusórias.

33. Como as sombras das montanhas se alongam no pôrdo sol,


o demônio da morte aproxima-se cada vez mais,
Povo de Tingri: apressem-se para escapar dele.
Dilgo Khyentsé

No crepúsculo o sol desce por trás dos cumes e a obscuridade


nãotatdaa nos envolver. A mesmacoisa acontece com a sombra
da morte no poente da nossa vida, com uma única diferença: a
morte não tem horacerta nem lugarpreciso para acontecer.
Desde o instante em que nascemosa vida avança para a mor-
te, mas ignoramos totalmente o momento em queeste encontro
ocorrerá.
Um criminoso foragido não tem uminstante de tranquili-
dade, Semprealerta, planeja mil maneirasde escapar do castigo
que o aguarda. Certamente não será encontrado desenhandoa
planta da sua futura casa.
Como você pode relaxar sabendo que a morte o ameaça a
cada instante? A única possibilidade de socorroestá na prática
do dharma, que transforma a morre em uma amiga.

34. A linda flor da manhã murchará ao anoitecer,


Povo de Tingris não considerem corpo.
À brisa do verão ondula as flores coloridas. O que restará uma
hora depois da tempestade ou depois de uma nevasca no inver-
no?
As florestas adornam-se de dourado no outono e de preto
no inverno. O corpo tambémenvelhecee se degradaa cadadia.
Nada podemosfazer paraevitar que isso aconteça.
Quanto mais o envelhecimento nos atormenta, mais in-
quietos ficamos. Deveríamos nos preocupar menos com a nossa
aparência física e procurarmos principalmente não desperdiçar
a vida. Pratiquemos o dharma: quanto maiorfora nossa dedica-
ção, maior será o nosso contentamento.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

35. Vivo, é um príncipe encantador;


Morto, é mais terrível do que as hordas de Mara [demônio],
Povo de Tingri: o corpo ilusório os atraiçoa.

Hoje temosorgulho donosso corpoe sentimos muito apreço por


ele. Nossos parentes e amigos, sorridentes, apertam a nossa mão
de maneira aferuosa e nos dirigem palavras agradáveis. No dia
em que morrermos, porém,nossa querida família se apressará em
livrar-se do nosso corpo. Quemgostaria de ficar com um cadáver
dentro de casa? No Tibete, por exemplo, seríamos colocados num
saco grandee levados para o cemitério para sermos desmembra-
dos pelos homense estraçalhadospelos abutres.
Não sabemos como fazer um bomuso dos nossos corpos.
Um artesão que toma algumas ferramentas emprestadas procu-
rarátirar o melhor proveito delas enquanto estiverem a seu dis-
por. Eu me pergunto por que não fazemosnossaspráticas nestes
breves instantes que tomamos emprestado da morte.

36. Ao concluírem suas compras, os visitantes do mercado se


dispersam quando a noitese aproxima.
Da mesma forma, Povo de Tingri, seus amigos se afastarão
de vocês, sem sombra de dúvida.

Umafesta é umacontecimento alegre: rimos, dançamos, conver-


samos e comemos comgosto as melhores iguarias. Mas todas as
festas terminam, e os convidados voltam para as suas casas. À
praça do mercado, fervilhando de gente o diainteiro,estará de-
serta à noite. As famílias se reúnem,felizes, mas cada um deseus
membrosterá deatravessar, sozinho,o portal da morte.

-62-
Dilgo Khyentsé

37. Este espantalho, criado por um passe de mágica, certamente


se desfará,
Povo de Tingri: comecem desdeagora a agir de acordo com
oslaços de causae efeito.

Os espantalhos que os camponeses colocam em suas plantações


para afugentar os pássaros e os animais selvagens duram uma
única estação. O vento e a chuva se encarregamde desmantelá-
los. Da mesma forma, a associação efêmera do nosso corpo com a
nossa mente, que não passa doefeito da ocorrência fortuita de di-
versas causas e condições, mais cedo ou mais tarde será desfeita.
Quandoa dissolução final se aproxima, o corpo e a mente
são atormentados pela doença e pela velhice. Torturados pelo
cansaço e pelas preocupações, não teremos mais tempo nem dis-
posição para fazer as práticas espirituais, por mais sincero que
seja nosso arrependimento de não as termos feito mais cedo. É
exatamente agora, no momento em que todas as condições favo-
ráveis estão reunidas, que devemos concentrar nossas energiase
praticar. Não é nosdias de feira que os comerciantes expõem as
suas mercadorias?
Nosso simples interesse pelo dharmanão nostrará nemco-
nhecimento nemsabedoria. Se continuarmosa adiaro estudo,a
reflexão e a meditação, chegará o momento em que não podere-
mos mais contar com nossas faculdades intelectuais e físicas, que
começarão a se debilitar, O mestre que nos guiava deixará este
mundo,e teremos desperdiçado a nossa oportunidade.
À maiorparte dos seres obedece às tendências negativas que
resultam deseusatos passados. As tendências positivas que nos
conduzem ao dharma são o privilégio de raras pessoas que se

63
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

dedicaram praticaratos positivos. Logo queas condições para a


prática do dharmaestejam favoráveis, precisamos seguir o exem-
plo dos camponesese trabalhar duro do alvorecer ao crespúscu-
lo. Eles sabemperfeitamente que o menor atraso pode significar
a perdadacolheita.
As pessoas comuns fazem um esforço extraordinário para
alcançarseus objetivos. Diz o ditado; “eles usam um chapéu de
estrelas e sapatos de gelo”, porque ficam até tarde danoite traba-
Ihandoe de madrugadajá estão de pé, Não deveríamos usar dez
mil vezes mais energia para alcançarmosa iluminação, o mais
importante objetivo de todos?

38. A águia da sua mente acabará por levantar vôo,


Povo de Tingri: comecem desde agora a ganharaltitude.

Comoa ave de rapina empanturrada abandonaa carcaça e voa


pata longe, quando chegara hora, nossa mente saciada destavida
se separará do nosso cadávere voará para o estado intermediário
do bardo. Para voar no céu além do samsara e do nitvanaé pre-
ciso recorrer às asas da vacuidade e da compaixão. A partir de
agora, vamos voar com essas asas sem temer o céu da vida que
está porvir.

39. Os seres dos seis reinos são seus pais zelosos,


Povo de Tingri: sintam poreles amore compaixão.

O número deseres ilimitado como o espaço, mas comoa noção


de infinitude escapa à nossa compreensão, preferimos nos limi-
tar às pessoas que conhecemos no nosso vale ou cidade. Temos

“64
Dilgo Khyentsé

alguns amigos de quem gostamos muito,alguns inimigos que de-


testamôse ignoramostodosos outros. Esta percepção distorcida
e limitada que temos das pessoas não pára de produzir apego
ou aversão, e assim acumulamos karma, a força que perpetua o
samsara.

Se fôssemos menoscegos e pudéssemos num relance vislum-


brar a sequência interminável das nossas vidas, verificaríamos
que não existe um único ser neste mundo que não tenha sido
nosso pai ou nossa mãe — não apenas uma, mas inúmeras vezes.
Este é o motivo pelo qual devemos imitar os mestres realizados
e cultivar o amor e a compaixão pottodos os seres. Deveríamos,
acima de tudo,desejar no fundo do nosso coração conduziresses
seres, nossas mães queridas, ao estado búdico, sem deixar nin-
guém para trás. O mérito que acumulamos ao fazer tal voto é
proporcional ao número deseres incluídos.
O fundamento paraisso é a bondade, como o Senhor Buda
lembrou aorei Prasenajit: “Granderei, vossas obrassão vastas e
numerosas. Querestejais sentado, de pé, à mesa ou em repouso,
possam vossosatos, leis, decisõese todasas vossasatividadesse-
tem inspirados na bondade.Isso trará benefícios imensos para
vossos súditos e méritos infinitos para vós”.
O que queremos dizer com “bondade”? Cuidar de nossos
pais comternura e dedicação é certamente umaprova de gene-
rosidade. Nossospais, porém,são apenasdois entre um número
ilimitado de seres. Ter um bomcoração é considerarmostodas as
pessoas — não apenas os amigos, mas também os inimigos e os
desconhecidos - comose fossem nossos própriospaise lutarmos
contra o ódio, o egoísmoe a indiferença.

65
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

Visualizemos uma pessoa pela qual sentimos profundaaver-


são como sendo a pessoa mais querida que conhecemos. E se
sentimos um apego egoísta por alguém que nos é próximo, de-
vemosconsiderar esse apego comoseestivesse acontecendo num
sonho, umailusão mágica desrituída derealidade.
A verdadeira generosidade consiste em querer o bem dos ou-
tros. Porém, o que “o bem dosoutros” significa? O oferecimento
de comida, roupas, casas ou afeto é certamente uma manifesta-
ção de bondade, mas é insuficiente. Precisamosajudar os seres
de modo bem mais amplo, o que só o dharmatorna possível.
Ao pronunciarmos o nomedos budas e dos bodisatvas em
cima de um formigueiro, por exemplo, damos a milhares de
formigas a oportunidade de não mais renascerem nos mundos
inferiores do samsara. Estamos prestando-lhes umaajuda real.
Impregnados de amor e compaixão, deveríamossentir constan-
temente o impulso de fazer o bem. Desta forma desenvolvere-
moscadavez mais a vontade de alcançar a iluminação para o
bem de todososseres.
Asações não podem ser julgadas apenas pelas aparências.
Tudo depende da nossaatitude interna. Algunsatos esperacu-
lares de altruísmo podem ser desmerecidos por sua motivação
egoísta como quando, por exemplo, esperamos receber reco-
nhecimento ou retribuição cármica. Em resumo, tenhamos em
mente que o caminho verdadeiro do Grande Veículo consiste em
praticar o amore a compaixão na expectativa de conduzir todos
os seres à libertação.
A mente da iluminação — bodhicitta — tem dois aspectos: o
absoluto e o relativo. A mente da iluminação absoluta é a reali-
Dilgo Khyentsé

zação da vacuidade; inacessível ao novato, ela amadurece lenta-


mentê como tempo. A mente da iluminaçãorelativa consiste em
conceber pensamentos amorosos e compassivos e colocá-los em
prática, O exercício sincero e perseverante da mente da ilumina-
ção relativa transforma aos poucos a mente para que ela possa
realizar a mente da iluminação absoluta.
Fortalecido pelarealização da vacuidade,o seriluminado não
raciocina mais de uma maneira comum, Ele não pensa: “Devo
socorrer este ser que me implora ajuda”, ou “aquele outro nãoestá
rezando”. Sua compaixão e a vacuidade da qualela se origina
são onipresentes e universais. Esta compaixão ignora a parciali-
dade, o apegoe a aversão. É comparável ao sol que se reflete na
águalímpida ou turva das poças, dos açudes, dos lagos. A grande
compaixão é o esplendor natural da vacuidade,livre de esforço,
conceitos e descrição.
A dedicação do Buda ao bem detodosos seres é infinita, Se
conseguirmos entender isso, saberemos que o sopro refrescante
dabrisa sobre umapessoa queestá ardendo em febre é um exem-
plo da compaixão do Buda.

40. O ódio aos inimigos é uma alucinação cármica do samsara,


Povo de Tingri, renunciem ao ódio e à agressividade.
Ossofrimentos que nossão causados sem motivo aparente, como
os que os chineses infligiram aostibetanos, por exemplo, resul-
tam simplesmente de padecimentos análogos que nós mesmos
causamos a outrosseres em umavida anterior. Ao respondermos
à violência com mais violência, só aumentamos cada vez mais o
sofrimento.
Os Cem Conselhos de PadampaSangyé

Setudoo que possuem for roubado,nãose inquietem,não fiquem


encolerizados, não se lamentem. Desprezema idéia de vingança
e ofereçam com alegria ao ladrão tudo o queele tomou de vocês.
Rezem para quea sua clemência contribuaparaa purificação das
suas próprias faltas. O amoré a única resposta para o ódio.
Kshantivadin, o “Adepto da Paciência”, era um eremita que
vivia nafloresta. Umbelo dia, o rei, acompanhado de suas espo-
sas e dacorte,saiu a passeio. Cansado de andar, Sua Majestade
adormeceu sobrea relva fresca enquanto suas rainhas continua-
ram a caminhar. Logo chegaram clareira onde Kshancivadin
amava sentar para meditar. Fascinadas pela beleza serena que
emanava do eremita, sentaram-se a seus pés formando umcír-
culo e pediram-lhe um ensinamento.
O rei acordou e não viu ninguém perto dele. Levantou-se
exasperadoe, furioso,foi procurar as rainhas. Ao encontrá-las
sentadas humildementee submissas aos pés do eremita, sua có-
lera aumentou consideravelmente.
— Quem é você? — perguntouaosábio.
— Aspessoas me chamam de Adepto da Paciência.
— Ah, ah! — fez o rei. — Você é chamado de Adepto da
Paciência. Muito bem! Vejamos comoé a sua paciência!
rei desembainhou o sabre e, com um arterrível, ameaçou o
eremita: — Se eu cortar um dos seus braços, você permanecerá
imperturbável?
— Sim — respondeu calmamente sábio.
Malele acabou defalar, o rei, com umgolpe da lâminaafiada,
cortou-lhe o braço direito, Fazendo-lhe a mesma pergunta, ao
receberresposta idêntica, decepou-lhe o braço esquerdo.

-68.
Dilgo Khyentsé
— Você continua impassível? — perguntouo rei finalmente.
— Mesmo queeucorte a sua cabeça?
— Sim — respondeuo sábio, que sabia que nada poderia
apaziguar a fúria do rei.
Noauge da raiva o reifez voar a cabeça de Kshantivadin com
um único golpe da lâmina cortante. Porém, em vez de sangue
,
dasartérias mutiladasjorrou leite e, da boca do sábio, cuja cabe-
ça estava caída sobre a relva um pouco mais longe, estas palavra
s
chegaram às orelhas dorei: — Seé verdade que eu não senti a
menorraiva de você, mas somente amor e compaixão, que
eu
possa me tornar um buda numavida futura e que você, o rei,
e
suas quinhentas esposas, se tornem os meus primeiros discípu
-
los.
Aocompreender subitamente que havia matado um santo, o
rei, tomado de desespero,caiu sobrea terra.
Imediatamente o eremita tornou-se o buda Shakyamuni e o
reie suas rainhas foram os quinhentosseres celestes queassisti-
ram ao seu primeiro sermão.

41. Às prostrações e circumambulações anulam os atos prejudi-


ciais do corpo,
Povo de Tingri, abandonem asatividades mundanas.
Se vocês trabalham freneticamente de manhã à noite, viajam
pelo mundo inteiro, cultivam as suasterrasé constroem
casas, na
melhor dashipóteses terão como recompensa de tantos esforços
conforto, dinheiro e outros prazeres efêmeros. Nada disso, no en-
tanto, trará felicidade duradoura, nem os ajudará a progredir no
caminhoda iluminação nesta vida ou nas próximas.

-69-
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

Associem todasas suasatividadesfísicas ao dharma e o me-


nor dosseus gestos — o simples ato de curvar-se em sinal de res-
peito ou caminhar em volta de um templo — terá um significado
profundo. O Budadisse que uma única prosternação feita com
devoção nos permite renascer como um grandereitantas vezes
quanto forem os grãos de poeira que existem sob o corpo de
quemse curva, da superfície da terraaté à grande base de ouro
do universo", e que os méritos acumulados dessa forma nunca
serão esgotados, mesmo depois de todos esses renascimentos
gloriosos.

42. A recitação e a fórmula do refúgio desfazem todos os véus


da palavra,
Povo de Tingri: renunciem às conversas banais.

“A boca é uma caixinha de surpresas”, diz o provérbio, 'a porta


de entrada de todos os erros e de todas as maldades”. Podemos
constatar, diariamente, que aquilo que saí da boca das pessoas
dominadas pelas emoções não passa de indiscrições, mentiras,
calúnias e críticas. Quando acabamos as nossas difamações,vi-
mos que só contamosdesgraças, guerras e imoralidades, o que só
serve pata acitrar os ânimos.
Em contrapartida, umabreve oração,as sílabas de um man-
tra, o nome das Três Jóias ou a fórmula do refúgio, Namo Bu-
ddbaya, Namo Dharmaya, Namah Sanghaya, pode nos livrar de
grandessofrimentos e nostrazer grandes benefícios. Qualquer
pessoa que. escute o nome de um buda, do Guru Padmasam-
bhava, por exemplo, ou o somde um mantraserálibertado dos
três grandes medos: o medo do discípulo do Pequeno Veículo,

“go:
Dilgo Khyentsé

O Hinayana, que se atemoriza diante da possibilidade de preci-


pitar-Se nos reinos inferiores do samsara; o medo do adepto do
Grande Veículo, o Mabayana, que teme sucumbir ao egoísmo, e
o medo do adepto do Veículo Adamantino, o Vajrayana, que se
atemoriza diante da possibilidade dese apegar à realidade dos
fenômenos.
O praticante do dharma, em particular, não deve jamais se
dedicar às conversas fúreis. Ele deve trazer sempre uma prece
noslábios ou ler em vozalta as sagradas escrituras, nas quais
estão expostas as verdades absolutas e relativas.

43. A devoçãosincera elimina os hábitos mentais,


Povo de Tingri: vizualizem seu mestre acima da sua cabeça.

Aquele que é atormentado pelo dinheiro é pelos bens materiais


está se preparando para renascer entre os espíritos torturados
pela fomee pela sede. Aquele que é obcecadopela família e entes
queridos só faz aumentar a angústia quesentirá com separação
camorte.

A devoção constante produz umasensação duradoura de se-


renidadee satisfação. A simples menção do nomedo nosso mes-
tre espiritual é o bastante para produzir uma mudança no nosso
campo de percepção. Visualizá-lo um breve instante acima da
nossacabeça dissipa todosos véusdailusão. Tal devoção é como
a argola que, ao se encaixar no gancho da compaixão, permitirá
ao mestre retirar-nos do samsara.
À iluminação, que é inerente à mente e porisso tão difícil
deserrevelada, surge da devoção ardorosa e da fusão da nossa
mente com a do mestre. Na verdade, meditar no nosso mestre

a
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

misericordioso ultrapassa em profundidade todasas outras prá-


ticas espirituais.

44. Vocês abandonarão a carnee os ossos recebidos quando


nasceram,
Povo de Tingri: não pensem que viverão para sempre.

Nosso corpo,feito de carnee ossos,está destinadoa ser enterra-


do, cremado,jogado norio, entregue aos abutres ou abandonado
para se decompor, Neste caso, de que adianta ser tão apegado ao
corpo? .
Entretanto, o corpo se transforma numa ferramenta muito
preciosa quando o usamospara praticar o dharma. Semesperar
queele se deteriore, vamosnos aproveitardele para avançarmos o
máximo possível no caminhoespiritual. Devemosevitar a qual-
quer preço desperdiçar seu potencial em futilidades ou, o queé
bempior, em másações.

45. Conquiste o país mais sublime, Povo de Tingri:


A eterna terra da simplicidade primordial,
pois ela é imutável.

Podemos comprar um terreno,limpá-lo, construir nele uma casa


e cultivá-lo, pensando que isso nostrará felicidade e satisfação
duradouras. Só queisso não é verdade.
A única terra de que temos realmente necessidade é aque-
la onde se encontra a fortaleza da simplicidade primordial, a
natureza supremae imutável de todas as coisas. Essa fortaleza
seráá conquistada
i pela meditaçãosolitária,
itaçã itári ao transporm: osas di-

“7
Dilgo Khyentsé
ferentes etapas do caminho que culmina na
Grande Perfeição.
Poderemos, então,nela permanecer durantees
tavida, depois da
morte e nas vidas futuras. Estejamos prontos
para praticar mil
atos de bravura para nos tornarmos mestres.

46. Deleitem-se com a riqueza mais gloriosa, Povo


de Tingri:
O tesouro da natureza da mente, queé inesgotável.
Quem,entre aqueles que acumulam uma imen
sa fortuna e um
número inestimável de bens, poderá guardá-l
os para sempre?
Existem tesouros, porém,quese renovam à medi
da que são dis-
tribuídos: a sabedoria, a compaixão,a fé, a generosi
dade,a cora-
gem. Estasjóias existem em grande quantida
de na própria natu-
reza da mente e não apresentam nenhuma das
insuficiências e
imperfeições do samsara.

47. Deliciem-se com o alimento mais sublime,


Povo de Tingri:
O sabor incomparável do recolhimento profundo
,
quefaz desapareceros sofrimentos da fome.
Tudo o que comemos, seja insípido ou delic
ioso, em pequena ou
gtande quantidade, transforma-se em excrementos.
O reverendo
Milarepa e outros grandes iogues viveram sem
comer durante
meses e mesmo assim não sentiram fome. Eless
e alimentavam
da sua contemplação, o samadhi.
Quando nos alimentamos da tranquilidade
mental da visão
penetrante, saboreamos serenidadenestav
ida e nas nossas vi-
das futuras, escapamos da fome da ignorânc
ia e nos tornamos
naturalmente inclinados à meditação.

pn
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

48. Bebam a mais sagrada das bebidas, Povo de Tingri:


A ambrosia da atenção, cujo fluxo nuncase interrompe.

Diferentemente de uma bebida comum, a ambrosia da atenção,


à nossadisposição a qualquer momento e em todos os lugares,
mataa sede de maneira duradoura.“Se você tem sede”, dizia Mi-
larepa, “beba o chá da atenção e da vigilância”.
Se pretendemos eliminar progressivamente os nossos defei-
tos e desenvolver nossas qualidades, quer estejamos andando ou
sentados, comendo ou descansando,precisamosestar atentos ao
nosso estado deespírito e conscientes da importância dos nossos
atos e das consequências queeles podem acarretar.
Esta prática nos permite enfrentar a morte com confiança.
Quandoas terríveis visões do bardo nos confrontarem, pensare-
mosinstantaneamente no nosso mestre e nas Três Jóias e esta-
remoslivres do medo. Devemos permanecer vigilantes durante
todo o processo da morte e do renascimentoe, agindo de acordo
com lei implacável de causa e efeito, continuaremos a avançar
no caminho.
Devemos estar atentos às nossas ações e às nossas práticas,
para que elasestejam de acordo com três preceitos essenciais:
planejar cada um de nossos atos fazendo o voto de que contri-
buam para o bem detodos osseres; praticar cada ato com con-
centração perfeita, livre dos conceitos de sujeito, objero e ação;
dedicar os méritos obtidos à iluminação de todos.
À noite, é bom examinarmoso quefizemos e o que pensamos
durante o dia. Precisamos reconhecer nossasfaltas, nossos atos
insensatos, retratá-los e dizer para nós mesmos que não pode-
mos nos comportar dessa maneira, uma vez que encontramos

“mo
Dilgo Khyentsé

um mestre espiritual e dele recebemos instruções. Quanto aos


atos positivos, dediquemos o seu méritoa todosos seres, formu-
lando o voto de agirmos a cadadia de maneira mais positiva.

49. Procurem a sabedoria sublime da consciência iluminada,


Povo de Tingri: vocês nunca maisse separarão.

Mais cedo ou mais tarde, seremos obrigados a separar-nos dos


amigos mais queridos. Contudo, temos uma amiga que nunca
nos abandonará, mesmoquea maioria dosseres ignore a suaexis-
tência: a natureza búdica. Começamos a nos aproximar dela ao
escutarmosos ensinamentos de um mestre; depois, fortalecemos
nossosvínculos à medida que cultivamosa tranquilidade mental
€ umavisão penetrante darealidade; por fim, descobrimos que
ela sempreesteve e sempre estará donossolado. Esta é a amizade
mais verdadeira quese podecultivar.

50. Procurem deixar a descendência mais sublime, Povo de


Tingri:
filho da consciência desperta, que nãoestá sujeito nem ao
nascimento nem à morte.

Quando umacriança nasce, seus pais ficam loucos de alegria. A


família aumentou, a linhagem está asseguradae, mais tarde, ha-
verá alguém paracuidar deles e das suas posses.
Mas, pensando bem, os pais acumularam sua fortuna às
custas de incontáveis atos negativos, e seus filhos continuarão
a administrar o patrimônio da mesma maneira. De acordo
com
asleis do karma, o mal queeles se fazem é recíproco. Os pais

“75.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

prejudicam os filhos ao incitá-los a prosperar com esses bens


manchados de negatividade, e os filhos prejudicam os pais ao
perpetuarem essa negarividade.
Além do mais, o poderoso apego que os pais sentem pelos
filhos geralmenteacarreta mais tormentosdoquealegrias. Qual
não será seu sofrimento se, por exemplo, o filho morrer antes
deles?
Nãoserá melhor começarmosa procurarnossofilho sublime
que se encontraperdido, a consciência desperta? Cegose confu-
sos, perdemos o seu rastro. Assim que tivermos a convicção de
têlo reencontrado, nosso filho sublime permanecerá para sem-
pre conosco e nem mesmo a morte poderá arrancá-lo de nós. É
ele quenos guiará até a fortaleza da natureza da mente, a união
da consciência iluminada coma vacuidade.

51. Que a lança da consciência iluminada possa ser


arremessada na vacuidade,
Povo de Tingri: nada obstrui a sua pontaria.

A nossavisão deve ser tão vasta e elevada como o céu. Quando


a consciência iluminada se manifesta no âmago da vacuidade da
mente, as emoções não maisa ofuscam e passam a adorná-la.
A realização inalterável desta visão, que não possui nasci-
mento, permanência ou fim, é acompanhada de uma consciência
iluminada que observa o movimento dos pensamentos da mes-
ma maneira que um homem idoso e pacífico observaa brinca-
deira das crianças. Os pensamentos confusos não podem afetar
a consciência iluminada, da mesma maneira que um sabre não
podeferir o céu.

76
Dilgo Khyentsé
A discípula Peldarbum disse a Milarepa:
* Minha mente meditou sobre o oceano
E sentiu-se livre;
Minha mente meditou sobre as ondas
E sentiu-se perturbada.
Ensina-me a meditar sobre as ondas.
O grande iogue respondeu:
As ondas são o movimento do oceano,
Deixe que elas se desfaçam no oceano sem ondas.
Os pensamentos são a brincadeira da consciência desperta:
nela surgem nela se dissipam. Se reconhecermos quea consci-
ência desperta é a própria fonte dos pensamentos, perceberemos
que os pensamentos nunca tiveramexistência, permanência ou
Am e, portanto, são incapazes de inquietar-nos.
Enquanto nossos pensamentos nos atormentarem, seremos
comoo cachorro quecorre para pegar cada gravero que jogamos
para ele. Se observarmos, porém,a consciência desperta que se
encontra na origem dos pensamentos, cada pensamento surgi-
rá e se dissipará na consciência desperta, sem acarretar novos
pensamentos. Dessa forma faremos comoo leão que, em vez de
correr atrás do graveto, se volta contra aquele que o lançou. A
um leão só se joga um graveto uma únicavez.
Para conquistarmos a fortaleza incriada da natureza da men-
te, precisamos nos reunir no seu âmagoe encontrar a origemdos
pensamentos. Caso contrário, um pensamento puxará um novo
pensamento, depois outro, e assim por diante. Nossa mente será
invadida pelas lembranças do passado, projeções do futuro e per-
deremos a consciência desperta doinstante presente.

“9º
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

As pessoas contam a história do devoto que, quando estava


dando aos pomboso arroz que havia ofertado no seu altar, subi-
tamente se lembrou dos inúmeros inimigos que tivera antes de
se consagrar ao dharma, “Se eu tivesse tantos soldados quanto
esses pombos queestão à minha porta,euteria esmagado meus
inimigos sem a menor dificuldade” Esse pensamento tomou
tal dimensão que, incapaz de controlar seu ódio, ele deixou seu
eremitério, reuniu um bando de mercenários e combateuseus
inimigos, perpetrando, assim, um número incalculável de mal-
dades. E tudo começou com um simples pensamento.
Se, em vez de darmos umaexistência material aos pensa-
mentos, reconhecêssemos sua vacuidade, cada pensamento que
surgisse e desaparecesse na mente tornaria ainda mais clara a
realização da vacuidade.

s2. No jogo indefectível das ações sem causa aparente,


Povo de Tingri, não há nada para aceitar, nem nada para
rejeitar.

Preservemos a simplicidade, Se estivermos vivendo um período


de felicidade, sucesso, abundância e outras condições favoráveis,
devemos considerar tudo umsonho, umailusão. Não nos ape-
guemosa essafase, Se formos acometidos por doenças, calúnias,
privações ou outras provaçõesfísicas e morais, não nos desenco-
rajemos. Exerçamos a nossa compaixão, formulando o desejo de
que os sofrimentos de todososseres se esgotem porintermédio
dos nossos sofrimentos. Não importam as circunstâncias, não
nos exaltemos nem nos desesperemos. Sejamoslivres, serenos e
imperturbáveis.
Dilgo Khyentsé
53. Na ausência de pensamentos, fiquem atento
s e não se dei-
e xem distrair,
Povo de Tingri: a sua meditação será livre do cansaço e da
agitação.

Quando, livre do passado e do futuro, a mente permanece des-


perta e clara, sem se deixar atrair por objetos externos, nem
se
Ocupar com construções mentais,ela se uniu à simplicidade
pri-
mordial. Nesseestado, a mão deferro da vigilânciaintensa não
é
mais necessária para imobilizarmos os pensamentos. Os mestre
s
ensinam que, de fato, “o estado búdico é a simplicidade natura
l
da mente”.
Umavez reconhecida essa simplicidade, devemos mantê-la
com a ajuda de um estado deespírito destituído de esforço. Ex-
perimentaremos, então, umaliberdade interiortão avassa
ladora
que não precisaremos bloquear os pensamentos, nem temer
que
eles prejudiquem a meditação.

54. Os quatrocorpos indivisíveis encontram-se completos na


sua mente,
Povo de Tingri: não tenham esperança nem dúvida quanto
aofruto.
O estado búdico pode parecer uma meta distante, quase
fora do
nossoalcance. A vacuidade natural da nossa mente não
é nada
mais do que o corpo absoluto do Buda; sua expressão lumin
o-
sa, seu corpo perfeitamente dotado;e a compaixão univer
sal que
dele emana, seucorpo de manifestação ou deaparição: a unida
de
intrínseca desses três corpos constitui o corpo essenc
ial. Esses
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

quatro corpos búdicos sempre estiveram presentes dentro de nós


Por desconhecermosisso, nós os vemos como um objetivo a al-
cançarfora de nós, e não dentro de nós.
“Minhameditaçãoestá correta? Quandofarei algum progres-
so? Nuncaatingirei o grau do meu mestre espiritual Dividida
pela esperançae pela dúvida, nossa mente nunca está em pe
Háos quepraticamde acordo com seus próprios capric e
intensamente num dia e nem um pouco no dia seguinte. Eles
se fixam nas experiências agradáveis que surgem no centro da
calma mental mas, quando não conseguem acalmar o fluxo dos
pensamentos, perdem interesse na meditação. Nãoé dessa ma-
neira que convémpraticarmos. o
Qualquer que seja nosso estado deespírito devemosse ater
a umaprática regular, diária, observando o morimento os pen
samentos e acompanhando-os à sua origem. Acimade tudo, não
devemos acreditar que conseguiremos imediatamente permane-
cer diae noite em plena concentração.
Quando começamos a meditar sobre a natureza da mente,
é preferível praticar por pouco tempo várias vezes ao dia. Com
perseverança, realizamos gradualmente a natureza da mente, e
essarealização se tornará cada vez mais estável. Os pensamen-
tos, então,
â nãoâ terão
â maisis o poder de atorm: entar ou submerer
quem quer queseja.

55. As raizes do samsara e do nirvana encontram-se na mente,


Povo de Tingri: a mente não possuiu realidade alguma.

É a nossa própria mente que nos desnorteia no ciclo das exis-


tências. Cegos à sua verdadeira
i natureza, nós
ó nos detemos n os

- Bo +
Dilgo Khyentsé

pensamentos, que nada mais


são do que a manifestação des
natureza, À consciência desper sa
ta se fixa em conceitos profun
mente arraigadostais como “eu” da-
, “o outro”, “desejável”, “repugnan
te"e muito mais. É assim que cri -
amoso samsara.
A prática das instruções do mes
tre derrete o gelo dessas fixa-
ções e a consciência desperta rec
obra sua fluidez natural, Quan-
do der rubamos uma árvore pela base, o
tronco, os galhos e
as fo-
Ihas caem junto. Da mesma for
ma, se cortamos os pensament
pela raiz, a confusão do samsar os
a se acaba.
Os fenômenos do samsara e
do nirvana parecem um arco-
íris, que, apesar de poderservist
o, permanece intangível, Ao re-
conhecermosa natureza ao mesm
o tempovazia e aparente dos
fenômenos , a mente estará livre da tirani
a da ilusão. Reconhecer
à natureza suprema da mente é
realizaro estado búdico; não
reconh ecê-la é se afundar na ignorânci
a, De qualquer maneira,
é a nossa mente,
e apenas a nossa
mente, que Nos aco
rrenta ou
liberta.
Isso nãosignifica que a mente
se deixe moldar como à argila,
que o ceramista transforma emform
asbonitas ou feias. Quando
9 mestre mostra ao discípulo
a natureza da mente, ele não
apontando o dedo para um obj está
eto concreto; quando o discíp
que procura a natureza da men ulo
te à encontra, ele não se depara
com uma entidade palpável. Reconhece
r à natureza da mente é
reconhecer a sua vacuidade.Isso
é tudo. Trata-se de uma realiz
ção que resulta da experiência a-
direra e individual e não podese
expressa em palavras. r
Quemespera que a realização seja
acompanhada de clarivi-
dên
cia, poderes miraculosos e Out
ras experiências extraordiná-
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

rias está enganandoa si próprio. Procurar a natureza intangível


da mente é o melhor que temosa fazer!

56. O desejo e o ódio não deixam rastro, assim como


os pássaros no céu,
Povo de Tingri: não se prendam às experiências.

De modogeral somos muito apegados à nossafamília, aos nossos


bense à nossa posição social; aqueles que nos causam algum mal
nos provocam um intenso ressentimento.
Desviemos nossa atenção dos objetos externos e examinemos
a mentequeos identifica comodesejáveis ou detestáveis. Consta-
taremosque o desejo e o ódio não têm forma nem cor, substância
ou localização.
Por que então cedemos com tamanha facilidade ao poder
dos nossos pensamentos? Porque não sabemos comolibertá-los.
Deixemos que surjam se desfaçam porsi mesmos. Eles passarão
pela nossa mente como ospássaros no céu, sem deixar o menor
vestígio. Este métodose aplica não somente ao apego e à cólera,
mastambém às experiências pessoais de meditação, como a fe-
licidade, a acuidade mental e a ausência de pensamentos. Essas
experiências resultam da perseverança nas práticas espirituais e
expressam o podercriativo da mente, da mesma maneira que
o atco-ris aparece quando os raios do sol incidem sobre uma
cortina de chuva.
É rão inútil apegar-se essas experiências quanto correr atrás
doarco-íris para vesti-lo como um casaco. Deixem queos pensa-
mentos apareçam e desapareçam, sem procurar exercer controle
sobre eles.
Dilgo Khyentsé

572. O corpo absoluto sem nascimento é comparável


aosol,
Povo de Tingri, cujo brilho não aumenta nem diminui.

A vacuidade,a natureza suprema do corpo absoluro,


não é sim-
plesmente o nada, Ela transborda do poder de conhecer
todas
as coisas. Esta faculdade é o aspecto luminoso, ou cognitivo,
do
corpo absoluto,que se manifesta espontaneamente. O
corpo ab-
soluto nãoé o resultado de causas e condições, e sim a
essência da
qual a mente seorigina.
Ao descobrirmosesta natureza primordial, que se assemelha
ao nascer dosol da sabedoria no términoda noite
da ignorância,
as trevas se dissipam instantaneamente. A claridade
do corpo
absolutonão é ora crescente, ora decrescente, comoa lua —
ela é
comoa luz imutáveldo sol.

58. O pensamento vaie volta como um ladrão numa


casa
vazia,
Povo de Tingri: não há nada a perder, nem nadaa ganha
r.
Convencidos da realidade do “eu” e dos pensamentos,
formamos
nosso karma, bom ou mau. Ao tomarmos consciênci
a de que os
Pensamentos nunca nascerame porisso não podem existi
r nem
deixar de existir, nós ostornamosinofensivos.
Tais pensamentos são comose fossem um ladrão
numa casa
vazia: o ladrão não tem nada a ganhare o dono, nada a perde
r.
Os pensamentoslibertados quando surgem não caus
am im-
pacto nem produzem efeito cármico. Não há nadaa
temer nos
pensamentosnegativos e nada a esperar dos
pensamentos posi-
tivos,
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

59. As sensações se desvanecem como desenhos sobre a água,


Povo de Tingri: são alucinações que não merecem ser leva-
das em consideração.

Somos naturalmente apegados ao prazere ao conforto, e as pro-


vações e os sofrimentos físicos nos perturbam profundamente.
Essas tendênciasinatas nos levam a pesquisar, cultivar e aumen-
tar tudo o que nosdá prazer — roupas confortáveis, comida re-
quintada, lugares agradáveis, bem-estarfísico — e a evitar ou des-
truir tudo o que nosaborrece.
Incessantes, mutáveis e desprovidas de substância, as sen-
sações são produzidas pela associação efêmera do corpo com a
mentee é absolutamenteinútil permitir que elas nos afetem. Em
vez de nos deixarmoslevar e enganar por nossas emoções, deixe-
mos queelas desapareçam à medida que surgem, comoas letras
escritas na água com o dedo.

60. O desejo e o ódio assemelham-se aos arco-íris,


Povo de Tingri: não há nada tangívelneles.

Algumasvezes o apegoe a aversão nos importunam a ponto de


sacrificarmos nossa vida para apaziguá-los. As guerras são um
exemplo perfeito disso. Nossos pensamentos podem parecer
reais e opressivos, porém, se examinarmos bem,eles são tão in-
consistentes quanto o arco-íris. É uma insensatez gastarmos o
nosso tempo tentando satisfazer esses impulsos. Aqueles que
têm sede de glórias, de poder, de cometer atos heróicos, de pra-
zerese de riquezassão tão pueris comoa criança quetenta pegar
umarco-íris,

“84:
Dilgo Khyentsé

Emtermospráticos, quando o desejo ou a cólera nos infla-


mafh, devemos examinar esses sentimentos minuciosam
ente e
reconhecer sua vacuidade fundamental e deixar que eles se des-
façam porconta própria. Façamos o mesmo como nosso
próxi-
moestado deespírito e comtodos os outros, Desta forma, sua
tirania acabará por dissipar-se.

61. Assim que os movimentos da mente se dissiparem como


as
nuvens no céu,
Povo de Tingri, a mente não precisará mais se submeter
a
qualquer desígnio.
Às nuvens que se acumulamna atmosferae que depois se
disper-
sam não afetam em nadaa natureza do céu. O céu não dimin
ui
nemaumenta: permanece imutável. À natureza da mente é
exata-
menteigual e não se altera com os pensamentos que surgem, nem
com os pensamentos que desaparecem.
À natureza da mente é a vacuidade, que se manifesta como
discernimento. Esses dois aspectos são essencialmente
um só.
São apenas imagens que evocamas diversas modalidade
s da
mente.É inútil nos apegarmos sucessivamente à noçãod
a vacui-
dade do discernimento comose fossem entidades independen
-
tes, À natureza última da mente está além dos conceitos,
defini-
çõese parcialidades.
A criança acha que poderia andar sobre as nuvens.
Masse
ela chegasse lá, não teria onde apoiar os pés. Os pensa
mentos
também aparentamter certa consistência, mas assim
que os exa-
minamos, não encontramos nada. É o que chamamosde
“visível
e vazio”.

85.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

62. Se não nos fixarmosneles, os pensamentos se libertam por


conta própria,
Povo de Tingri: eles são comoa brisa, que não se prende a
nenhum objeto.

O vento percorre o espaçoe voa sobre os continentes sem jamais


se deter. Ele atravessa o céu semdeixar rastro, Os pensamentos
deveriam atravessar nossa mente da mesma maneira, sem dei-
xar impressões cármicas nem alterara realização da simplicidade
fundamental.

63. A consciência desperta, assim comoo arco-íris, não éfeita


de matéria densa,
Povo de Tingri: as experiências espirituais não encontram
barreiras.

À consciência desperta, que é a mentelivre da ilusão, transcende


as noções de ser ou de não-ser. “Onde há apego, não há visão”
foram as palavras que Drakpa Gyaltsen ouviu da boca de Man-
jushri, o Buda da Sabedoria, durante umavisão. Não podemos
afirmar quea iluminação exista, pois nem mesmoos budas viram
algo similar. Também não podemos dizer que não exista, pois
dela emanam o samsara e o nirvana, Enquanto os conceitos de
ser e de não-ser prevalecerem,isso significa que não realizamosa
verdadeira natureza da mente.
O arco-íris brilha no espaço, mas não é em nadadiferente
do espaço;ele é, por assim dizer, uma manifestação. Da mes-
ma forma, as experiências que surgem durante a meditação não
possuem consistência. As boas experiências nos levam crer que

- 86 -
Dilgo Khyentsé

atingimos uma elevada realização, ao passo que


as más experi-
ências nos desencorajam. “Os arco-íris enganam
ascrianças e as
experiências iludem aqueles que praticam a meditação”
, costu-
ma-se dizer. Se não queremos ser induzidos ao erro,
não deve-
mosatribuir a menor importância às experiências.

(63) A realização do que é real é comparável ao


sonho do mudo,
Povode Tingri: não pode ser expressa com palavras.
Umapessoa muda pode lembrar-se nitidamente de
um boni-
to sonho, mas nunca poderá contá-lo. Da mesma manei
ra, não
temos palavras para descrever a natureza suprema da
mente, o
corpo absoluto do Buda, pois a mente, ou dharmakaya,
escapa a
qualquer definição. Digamosqueela exista: um exam
e revelaria
apenas a vacuidade; digamos queela não exista: como então
ex-
plicar suas múltiplas manifestações? A natureza últim
a da mente
remontaà verdade absoluta, que, desafiando qualquer
descrição,
não pode ser limitada pelo pensamento discursivo.

(ss)A realização é como o primeiro prazer de umajovem


donzela,
Povo de Tingri: é uma alegria que é impossível
deser descrita.
Nodespontardarealização, a mentese torna perfe
itamentelivre,
sem constrangimentos, repleta, vasta e serena, Mas
a realização
em si permaneceinexprimível como a alegria de umaad
olescente
naflor da vida.

87»
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

66. A vacuidade e a luminosidade são inseparáveis, como a


água e lua que se reflete na superfície da água,
Povo de Tingri: nada há que as prenda, nada há que as
bloqueie.

As percepções do samsara e do nirvana fazem parte doJogo es-


pontâneo do podercriativo da mente e são a reverberação da var
cuidade, A essência dessa radiância é a vacuidade, e a expressão
da vacuidade é essa radiância. Elas são indivisíveis.
Para que possamosentender melhor, tomemos o exemploda
lua que se reflete na água. Ela brilha intensamente na superfície
da água, mas não poderíamos apanhá-la. Ela está ao mesmo tem-
po próximae inatingível, Acontece a mesma coisa com a mente
cuja natureza não pode ser bloqueada e na qual a vacuidadeé
a luminosidade são indivisíveis: nada pode obstruí-la e ela não
pode obstruir coisa alguma, ao contrário de um objeto sólido
como, por exemplo,as rochas, cuja presença exclui a presença de
qualquer outro objeto no mesmolugar e ao mesmo tempo. Em
essência, a mente é imaterial e onipresente.

67. As aparências ea vacuidade são inseparáveis como o céueo


espaço vazio,
Povo de Tingri: a mente não tem centro nem periferia.

A mente, em sua manifestação, tem a faculdade de perceber as


formas,os sonse os outros fenômenos, além de experimentar o
prazer e a dor. Porém, o mundo das aparências não existe em
si mesmo. Se tentarmos analisá-lo, deparamo-nos apenas coma
vacuidade. Da mesma forma que o espaço físico vazio propor-

- 88.
Dilgo Khyentsé
ciona as dimensões em que universos podem
surgir, a vacuidade
essencial da mente permite queela possa
se expressar. O espaço
não tem limites e não possui centro nem perif
eria. A mente não
tem começo ou fim, nem no espaço, nem
no tempo.

68. À ausência de pensamentos torna a ment


e imperturbável,
Povo de Tingri: como um espelho,
ela se encontra livre de princípios teóricos.
Uma vez que reconhecemos natureza da
mente, não é mais ne-
cessário nos confinarmos à lembrança cons
ciente dessa natureza,
nemalterá-la de algum modo. Nesse esta
do não podemos dizer
que a mente medita, pois ela experimenta
um equilíbrio sereno.
Paraela todas as coisas são iguais e a ment
e nãose concentra nos
pormenores de umavisualização específica
, como por exemplo, a
forma de uma deidade. A mente não mais
poderá se obscurecer
com as distrações e a desordem quecarac
terizam seu estado co-
mum, Porque ela permanec
e continuamente esem
esforço na sua
própria natureza.
À consciência desperta não é afetada por
percepções agradá-
veis ou desagradáveis. Ela permanece simplesm
ente sendoo que
é, da mesma maneira que um espelho, que
nãose exalta com um
rosto bonito nemse deixa abalar pelafeiúr
a,e reflete com fide-
lidade qualquer imagem, sem quea natu
reza da imagempossa
afetá-lo. O ser iluminado percebe claramente
todos os fenôme-
nos, mas os fenômenos não podem afet
ar a sua realização da
natureza suprema.
Quando umaimagem sereflete no espelho, não
podemosdi-
zer queela faça parte do espelho, nem que
esteja em algumoutro

-89
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

lugar. Igualmente, as percepções dos fenômenos exteriores não


se encontram nem dentro da mente nem fora dela. Os fenôme-
nos, na verdade, não existem nem são inexistentes.
A realização da natureza suprema das coisas situa-se além
dos conceitos do ser ou do não-ser. É porisso que podemosler
nos textos do caminho do meio que “como eu não afirmo nada,
nada poderá me refutar”.

69. A consciência desperta e a vacuidade são inseparáveis como


o espelho e osreflexos,
Povo de Tingri: não há começo nem fim.

A vacuidade da mente não designa o nada e menos ainda um


estado de torpor, pois ela está naturalmente dotada de umacla-
ridade onisciente denominada “consciência desperta”, ou “pura
consciência” (rig-pa). Esses aspectos — vacuidade e despertar — são
absolutamente inseparáveis e essencialmente um só, comoo es-
pelhoe osreflexos.
Os pensamentos se manifestam no âmago da vacuidadee de-
saparecem da mesma maneira que um rosto aparece e some no

espelho: o rosto nãose introduziu no espelho para se manifestar


nele e, mesmo quando não se reflete mais, não é por isso que
deixa deexistir.
O espelho também não sofre modificação alguma. Antes de
nos dedicarmosàs práticas espirituais, estamos no estado “im-
puro” do samsara, no qual tudoé regido pela ignorância. Quan-
do iniciamos a caminhadaespiritual, passamos para umestado
em quea ignorância e o conhecimento se misturam. Nofim do
caminho espiritual, no momento da iluminação, somente a pura
Dilgo Khyentsé
consciência permanece. Porém, ao longo
da nossa caminhada,
aindá que aparentemente tenha havido uma
transformação, a
natureza da mente permanece inalterá
vel; ela não estava cor-
rompida no começo do caminho e nem
progrediu ao final, no
momento da realização.

70. À felicidade suprema e a vacuidad


e são inseparáveis como
a luz do sole a brancurada neve nos altos
cumes,
Povo de Tingri: como distinguir as duas
coisas?
No momento em que osraios de sol inci
dem no pico gelado de
uma montanha, a brancura da neve se
torna ainda mais extraor-
dinária. Mas quem é capaz de distinguir o
brilho dosol da bran-
cura da neve?
Reconhecer a vacuidade da mente ampl
ifica a felicidade su-
prema inerente a ela, a felicidade da libe
rdade perfeita, praze-
rosa e naturalmente desimpedida. Mas est
a formatão completa
de felicidade não deveria nunca ser tom
ada como algumacoisa
real a que podemos nos agarrar. À feli
cidade supremae o vazio
da mente são inseparáveis. O brilho da neve
sob o sol pode ser
deslumbrante, mas não é alguma cois
a concreta que possamos
pegar com as mãos,

71. As palavras enganosas são como o eco,


que desaparece sem
deixar vestígio,
Povo de Tingri: não há nada nossons que
possa ser retido.
Gostamosde ouvir elogios. Se alguém nosd
iz alguma coisa li-
Sonjeira, queremos ouvir mais, que
remos que o mundo inteiro
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

ouça. Mas quando somosalvo de críticas e rumores maliciosos,


fazemostudo ao nosso alcance para impedir que o quefoi dito a
nossorespeito seja ouvido por quem quer queseja.
Naverdade,elogiose críticas não passam de sons semsenti-
do que não merecem qualquer atenção. É tãoridículo orgulhar-
se ou ofender-se com um e outro quanto seria orgulhar-se ou
ofender-se como eco que reverbera numa caverna.

72. A felicidade e o sofrimento, como a caixa de ressonância e


as cordas que produzem a música do alaúde,
Povo de Tingri, resultam quandoas ações se sincronizam
comas condições requeridas.

Umpedaço de madeira nobre é transformado num alaúde, e as


cordas são instaladas de maneira que um som melodioso possa
ser produzido pelo instrumento. Se faltar qualquer um desses
elementos, o alaúde já não será capaz de produzir música. Da
mesma forma, não podemos esperar usufruir da felicidade sem
termosconstruído corretamente a base de onde ela poderá surgir.
A felicidade e o sofrimento resultam da completainteração das
nossas ações positivas e negativas.
Assim comoo domíniodaarte do alaúdeexigeestudoassíduo,
o domínio daarte dafelicidade requera prática constante e cor-
reta do dharma. Qualquer tentativa de alcançar o dharma com
a ânsia indisciplinada de resultados gratificantesterá resultados
tão insatisfatórios quanto tentativa improvisada de tocar mú-
sica num instrumento dedilhando desajeitadamente as cordas.
Considerados de uma perspectiva abrangente, a alegria e o
sofrimento não têm absolutamente nenhumarealidade concreta.

-92*
Dilgo Khyentsé

Ainda assim, em termos relativos, ambos dependem dasleis ine-


xoráveis de causa e efeito, da mesma maneira como a música deve
seguir as leis da harmonia.
Para utilizar outra imagem,assim como existem cogumelos
cuja aparência dá água na boca e que à primeira mordida reve-
lam um paladar delicioso, mas cujo veneno é mortal para quem
cometer a imprudência de comê-los, também a riqueza, a fama e
Os prazeres sensuais, quedeinício parecem tãoatraentes, termi-
narão em decepçãoe amargura. Por outro lado, assim como um
remédio de gosto muito amargo podeser a cura definitiva para
umadeterminada doença, tambéma prática espiritual - apesar
das dificuldades e provaçõesfísicas e mentais que pode acarre-
tar - conduz à felicidade supremae indestrutível, muito além de
qualquerresquício de sofrimento.
É, portanto, fundamental distinguir o que devemos adotar
do que devemos rejeitar - sem ambiguidade ou erro.

73. A liberação espontânea do samsara e do nirvana é como


uma brincadeira decriança,
Povo de Tingri: devemos manter a mente livre de qualquer
tipo de propósito.
Nossa peregrinação interminável pelo círculo de existências é o
resultado das emoções que perturbama nossa mente e nos con-
fundem. No enranto,se nos dispusermos a examinar a natureza
das emoções, veremos que elas não têm o menor vestígio de rea-
lidade. Só a vacuidadeexiste.
O verdadeiro nirvana inclui as qualidades inexprimíveis e in-
finitas da sabedoria primordial. São qualidades inatas da mente.

“93.
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

Nãoé precisoinventá-las ou criá-las. A realização espiritual não


faz nadaalém de revelá-las. E, em última análise, até mesmo es-
tas qualidades são apenas mais umaforma de vacuidade.
Tanto o samsara quantoo nitvanasão, portanto, formas de
vacuidade. Mas nenhum dosdois pode ser considerado “mau”ou
“bom”. Quandorealizamos a natureza da mente, somosliberta-
dosda necessidadede rejeitar o samsara para alcançar o nirvana.
Ao olhar para o mundo com a inocência e a simplicidade de uma
criança, cada umde nósse livra dos conceitos de beleza feiúra,
bem e mal,e com isto deixa de serpresa fácil paraas tendências
conflitantes geradaspelo desejoe pela aversão.
Quesentido pode haver emse atormentar comosaltos e bai-
xos da vida cotidiana, como umacriança que exulta defelicidade
quando constrói umcastelo deareia, mas chora quando ele des-
morona? Vejam só comoos seres imaturos se atiram aos próprios
tormentos como mariposas se atirando contra a chama de um
lampião: desejam sempre seapossar daquilo que mais cobiçam,
enquantose livram do quejá nãoosatrai. Nãoseria melhor pôr
de lado de umavez por todas o pesadofardo das quimeras e dos
apegos obsessivos?

74. A idéia quefazemos do mundo exterior deriva da mente,


Povo de Tingri: é preciso permitir que o gelo, que é sólido,
derreta e se tornelíquido.
Lagos e rios podem congelar no inverno e a água, tornar-se tão
sólida que homens, animais e pequenosveículos conseguem facil-
mente transitar na sua superfície. Com a chegada da primavera,
a terra e as águas se aquecem.É o degelo. O querestouentão da

“94.
Dilgo Khyentsé
solidez dogelo? A águaé sua
ve e Auida. O gelo é duro e cor
Não podemos dizer que são tante
idênticos. Mas também não
mos dizer que sãodiferentes. pode-
O gelo é apenas águasolidifi
à àgua não passade gelo der cada e
retido.
A mesma coisa acontece
com a nossa percepção do
exterior: quem se apegaà mundo
realidade dos fenômenos se
mentar pelo conflito entre deixa aror-
atração e aversão e se tor
do co na obc eca-
m as oito Preocupações mu
ndanas que fazem com
a mente congele, É preciso que
derreter o gelo dos nossos pró
conceitos para que possa fluir prios
a águasuavedaliberdade int
erior.
75. A ignorância possui
aforça da água turbulent
a de uma
nascente,
Povo de Tingri, que não pod
eser fechada ou estancada.
É inútil tentarmos bloquear
com a mão ou com uma pe
fluxo de uma fonte que jor dra o
ra num prado. Em alguns se
pressão da água ter gundos a
á vencido à tentativa de
obstruí-la, Acontece
a mesma coisa coma cre
nça limitada da realidade
fe nômenos, due temoscarrega do “eu” e dos
do conosco por um número
tável de vidas. Esta Srença ex incon-
erce um tamanho podersob
gue não conseg re nós
uimos noslivrar dela qu
ando tentamosrefreá-la.
O que precisamos fazer é
reconhecer claramente qu
fundamento. e ela não tem
Tudoo que foi dito aqui se
aplica aos pensam
entos. A mente
da pessoa que medira é inv
adida frequentemente po
tos fervilhantes. Se tentar r pensamen-
barrá-los com obstinação,
atrairá diversos distúrbio fracassará e
s mentais. Os pensamento
que medita te s qu ea pessoa
nta suprimir se voltam con
tra elaea impedem com

"95
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

mais força ainda de meditar. O essencial consiste em reconhecer


que os pensamentos nunca nasceram realmente e que, por isso,

não existem nemdeixam de existir. Se a meditação souberliber-


tar Os pensamentos no momento em que surgem, mesmo sendo
numerosos, eles não poderão atrapalhá-la. Os pensamentos não
deturpam a meditação,e a ausência de pensamentos não a me-
lhora. As cidades e os campos que passam diante dos olhos do
viajante confortavelmente sentado não diminuem a velocidade
dotrem, nemo tremos afeta emnada. Não existe interferência
entre eles. É desta forma que a pessoa que medita deve contem-
plar os pensamentosque passampela mente.

76. Quem se perde no samsara ou no nirvana cai nas mãos


do inimigo,
Povo de Tingri: a prática da virtude será o seu único
socorro,

Acreditar queé precisoa qualquer preçorejeitar o samsarae ob-


ter o nirvanda resulta, nos dois casos, de uma confusão causada
pela ignorância. Neutralizar esta confusão é capturar o general
que comanda,o exército inimigo, que então não demorará a se
render. No entanto, para capturá-lo precisamos de aliados: o
mestreespiritual e as ações virtuosas que purificarãoe desenvol-
verão nosso potencial paraatingirmosa perfeição.

77: Os cinco corpos brilham como umailha feita de ouro,


Povo de Tingri: não tenham esperança nem medo, não
sintam desejo nem ódio.

-96
Dilgo Khyentsé

O estado búdico compreende cinco “corpos” ou aspectos de ilu-


minação: o corpo manifestado, o corpo perfeitamente dotado, o
corpo absoluto, o corpoessencial e o corpo imutável e perfeito”.
Nãoadianta procurá-los fora de nós: eles e o nossoser, a nossa
mente, são inseparáveis.
Assimque constatamosa sua presença,a ilusão desaparece e
nãoprecisamos mais buscara iluminação. Se um navegadorche-
gar a umailha feita inteiramente de ouro, não achará um seixo
séquer, mesmo queprocure cuidadosamente. Precisamos desco-
brir que rodasas qualidades do Buda sempre existiram em nós.
De nada adianta nos inquietarmos com lentidão do nosso
progresso, nem nos desencorajarmos pensando que a iluminação
está fora do nosso alcance — ou quase — e que só acontecerá,tal-
vez, num futuro bem distante, Este tipo deatitudesó aumenta a
nossatensãoe ansiedade, o que nos impede de fazermos as prá-
ticas espirituais com a mente serena. Como dizia Milarepa, “não
fiquem ansiosos para alcançar a iluminação, mas pratiquem até
exalatemo último suspiro”, Descartando a esperança e o medo,
cultivemos a certeza absoluta de queo estado búdicoconsiste na
simplicidade primordial da consciência desperta. Experimenta-
remosentão a alegria perfeita, e todas as qualidades da ilumina-
ção florescerão sem esforço.

78. Livre e rica, a existência humanaé comparável a umailha


de tesouros,
Povo de Tingri: não retornem com as mãos vazias!

O explorador que descobre umailha repleta de tesouros e jóias


podecarregar seu navio de ouro, diamantes, safiras, rubis e es-

“97º
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

meraldas. A existência humana nos oferece uma oportunidade


igualmente preciosa, na verdade de valor muito maior, de estu-
darmos o dharma, refletirmos sobreele e colocá-lo em prática
para darmossentido à nossavida. Só teremos de escolher entre
os incontáveis ensinamentos do Pequeno Veículo, do GrandeVe-
ículo ou do Veículo Perfeito.
Agora podemos praticar o dharmae todas as condições são
favoráveis'!, Se não aproveitarmosesta oportunidade quenosé
claramente oferecida, seremos como o mendigo que encontra
umajóia, a aperta na mão, mas, tomando-a por um pedaço de
vidro, atira na poeira do chão. Porém,ainda há coisa pior. Se
temos perfeita consciência do valor da existência humana, des-
perdiçá-la em distrações e na busca de ambições vulgaresseria o
auge da ilusão. Emvãoo viajante terá singrado os maresà custa
deesforços inacrediráveis se ele retorna sem nadatrazer da ilha
de todosostesouros. Não vamos cometer um erro desses.

79. A tradição do Grande Veículo é comparável à jóia que


realiza os desejos,
Povo de Tingri: quantasdificuldades vocês teriam de enfren-
tar se tivessem de encontrá-la.
A pedra miraculosa, a jóia mágica denominada chintamani em
sânscrito, satisfaz todosos desejos, atende todas as preces e pode
acabar com a pobreza de umpaís inteiro. A prática do Grande
Veículo, que é capaz dealiviar o sofrimento de todos os seres,
pode ser comparadaa ela.
Encontramos um mestre espiritual nesta vida e recebemos
dele ensinamentosparaa prática espiritual. Este encontro, que

-98-
Dilgo Khyentsé

não ocorreu por acaso, é o resultado de uma


propensão à espiri-
fualidade quecultivamos em vidas passadas.
Ummestreespiritual qualificadoe seus ensiname
ntos são tão
raros e preciosos como o lótus azul, a for deno
minada udumvara,
cujos botões aparecem quando um Buda nasceneste
mundo, de-
sabrocham quando ele atinge a iluminação e murc
ham quando
ele abandona o corpo. O Buda Shakyamuni mani
festou-se no
nosso mundo e pôs em ação a roda dos ensiname
ntos, que per-
duram até hoje. Recebemosesses ensinamentos
de um mestre
verdadeiro e estamos prontos para colocá-los
em prática. Não
deveríamosficar maravilhados com a nossa boaso
rte e, sem per-
der um sóinstante nem nos dispersarmos fazen
docoisas inúteis,
concentrarmos todos os nossosesforços na prática
do dharma?

80. Nesta vida encontramos sempre o


que comer e vestir,
Povo de Tingri: que todos os seus desejos se dire
cionem à
prática do dharma.
Mesmoquea sua despensa e o seu guarda-roupa
estejam repletos,
você só é capaz de fazer uma refeição e usar
uma roupa de cada
vez. À verdade é que só precisamos de alimento
s que garantam
a nossa sobrevivência e roupas que nos protejam do
frio. Não há
motivo para preocupação: o Buda nos prom
eteu que ninguém
jamais vai encontraros ossos de um renuncia
nte que tenha mor-
tidode fome ou de frio. Nãohesite emfazer a
sua práti ca espiri-
tual sobo pretexto de que nãoterá o que come
r, o quevestir ou
um teto sobre a cabeça. Que fique bem claro: prati
car o dharmaé
o melhor uso que se podefazer da vida.

“99 -
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

81. Pratiquem a austeridade enquanto jovens, Povo de Tingri,


Pois na velhice o corpo não o permitirá.

Devemosaproveitar ajuventude para praticar o dharma. É a épo-


ca em que nossas faculdades intelectuais necessárias ao estudo,
meditação e reflexão estão no auge. Além disso, é quando temos
a energia física para suportar os rigores do treinamento espiri-
tual. Se nesta época da vida você praticar com todo o empenho
possível, quando estiver mais velho a sua prática terá adquirido
estabilidade suficiente para continuar Auindo sem esforço. Mas
se deixar o tempo passar, seus olhos ficarão cansados, sua audição
já não será a mesma,você vaiperder a memória, qualqueresforço
fará com quefique cansado e você estará doente,Será tarde de-
mais para começara praticar o dharma. Faça o melhor proveito
da suajuventude e nãose arrependa quandoestiver mais velho.

82. Quando as emoções aflorarem, usem antídotos que possam


combatê-las, Povo de Tingri:
Permitam que os conceitos permaneçam livres
na sua própria natureza.

O mercador que atravessa uma floresta infestada de assaltantes


mantém a arma sempre ao alcance da mão. O viajante que per-
corre umaregião devastada pela peste carrega com ele um es-
toque de remédios. Da mesma forma, vivendo sob a constante
ameaça de emoções comoa ira, o desejo, o orgulho,a inveja e
tantas outras, devemosestar sempre prontos para enfrentar cada
umadelas com antídoto apropriado. A constante vigilância é
o sinal pelo qual reconhecemos o verdadeiro praticante. De que

* 100 *
Dilgo Khyentsé

adianta praticar quandotudovai bem,se sucumbimosaos golpes


da primeira emoção que nos atinge?
O verdadeiro praticante podeser reconhecido pela maneira
como reage às situações difíceis capazes de provocar emoções
latentes. Aquele que é capaz de reagir imediatamente (e com
o antídoto correto) não terá nenhum problema em superar os
obstáculos. Especialmente se souber transcender osconceitos de
sujeito e objeto, todos os seus pensamentos vão se libertar da
mesma maneira como,ao se desenrolar, umaserpente desata os
nós no seu próprio corpo, sem qualqueresforço ou ajuda.
Quando rastreamos os pensamentos e conceitos até a sua
origem,reconhecemosa sua verdadeira essência, ouseja, a im-
possibilidade de separar a vacuidade do conhecimento transcen-
dente.

83. Pensem de vez em quando no sofrimento inerente


ao samsara,
Povo de Tingri, e a suafé se tornará maisforte.

Haverá sempre períodos conturbados em que o nosso esforço


esmorece, nossos desejos ficam mais exaltadose a nossa insatis-
fação nosleva a querer coisas que sejam sempre diferentes ou
melhores do queas quejá temos. Nesses momentos, quando não
conseguimos nos concentrar na prática espiritual, devemos re-
fletir sobre o grande sofrimento que existe no samsara. Ter em
mente queo ciclo das existências é permeado pela dor pode ser
um excelente meio de reavivara sua fé e reafirmara sua confiança
nos ensinamentos.

“101 *
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

84. Por enquanto, tenham coragem e sejam firmes,


Povo de Tingri: depois da morte, esta postura os guiará pelo
caminho a ser percorrido.

O líder de um exército poderoso, bem treinadoe dotado de mui-


ta munição,observa imperturbável o avanço dastropas inimigas.
Da mesma maneira, o praticante que alcançou na sua prática
umaestabilidade inabalável permanece calmodiante da morte. É
no presente quese adquireesta estabilidade.
Um viajante previdente prepara-se para a viagem reunindo
tudo aquilo de quevaiprecisar:víveres, dinheiro, medicamentos,
mapas e umabússola. Mais cedo ou mais tarde, cada um denós
terá de embarcar na longa jornada das vidas futuras, Portanto,
o melhora fazer é começarmos agoraa nos prepararsob a tute-
la de ummestre, pondo suas instruções emprática com todo o
cuidado.

85.) Se vocês não são livres hoje, quando serão?


Povo de Tingri: a oportunidade só se apresenta uma vez a
cada cem.

Comfrequência ouvimos alguém dizer: “Eu gostaria muito de


praticar o dharma, mas no momento é impossível. Antes, tenho
de cuidar da minha família e garantir o futuro”. Masé agora, en-
quanto ainda temos uma existência humana, que temos a opor-
tunidade,a liberdade e a motivação para praticar o dharma. Por
que, então, deixar para mais tarde? Comoter certeza de que as
condições serão melhores nas próximas vidas? Nada impede que
sejamos vítimas do sofrimento e da servidão provenientes dos

+ 102 *
Dilgo Khyentsé

níveis inferiores. Ao permitir que os dias, meses e anos passem


despercebidamente, estamos desperdiçando a oportunidade de
nos libertarmosdocírculovicioso do samsara.
Quando somos convidados para um banquete, devemos acei-
tar, enquanto podemos. O relógio de dharma já bateu meio-dia.
Temosde aproveitar enquanto é tempo.

86. A vida é efêmera como o orvalho no gramado,


Povo de Tingri: não cedam mais à preguiça e à indiferença.
À vidaé frágil como umagotade orvalho na ponta de uma pe-
quenafolha de grama, que a primeira brisa da manhã pode levar
embora. O desejo sincero de praticar o dharma e à intenção de
começar o quanto antes não são suficientes. Não espere passiva-
mente que o vento da morte leve embora os seus planosantes que
você possa realizá-los. No momento emquea idéia brotarna sua
mente, comecea praticar sem hesitação.
Osprincipiantes têm a mente volúvel, vulnerável às emoções,
comoa vegetação na encosta dos morros, que se dobra à força
dos ventos.

87. Se derem um passo em falso agora, Povo de Tingri,


Será difícil obterem de novo umaexistência bumana.

O menor passo emfalso do habitante das montanhas que se


equilibra sobre a rocha escorregadia à beira de um precipício
pode custar-lhe a vida. Passamosa vidainteira à beira do abismo
dosníveis inferiores. O risco que corremos é maior do que o de
qualquer habitante da montanha. Se cairmos, será virtualmente

“103 -
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

impossível voltar à encosta que conduz ao melhor da condição


humana, Só a prática do dharma poderá nos proporcionar a se-
gurança de que precisamos.

88. Os ensinamentos do Buda, Povo de Tingri, são como o sol


Que no momento brilha através das nuvens.

Os ensinamentos do Buda não estão eternamente disponíveis.


Quando declina o mérito dos seres que vivem numdetermina-
do período, os ensinamentos também declinam. Naverdade, es-
tamosagora no limiar de umaidade das trevas,a “era das cinco
degenerescências”, em que, embora ainda brilhe,o sol do dharma
está prestesa se escondera oeste, atrás das montanhasdo poente.
De tempos em tempos, poderá ainda brilhar, da mesma maneira
que o sol do final datarde, que aparece fugidio sempre que surge
um espaçoentre as nuvens. Estes momentos fugazes serão a nos-
sa única chance, Ao cair a noite, terá início umaidade das trevas
em que nem mesmoo nome dastrêsjóias será conhecido.
Não podemosesperar até nos sentirmos prontos para adotar
e seguir os ensinamentos Se continuamos a vagar pelo emara-
nhado do samsara, é porque nas nossas vidas passadas nunca
chegamosa conhecer o conteúdo dos ensinamentos do Buda, ou
os ignoramos. Masse agora entrarmosno caminho do dharma,
ele será o nosso esteio conformeevoluirmos, passando progressi-
vamente para níveis cada vez mais elevados.

89. Vocês falam com muita eloquência, Povo de Tingri,


mas não fazem aspráticas:
O problema, evidentemente, está em vocês próprios.

“104 *
Dilgo Khyentsé

Há quem fale com eloquência sobre o dharma semter tido


qualquer experiência pessoal e verdadeira no assunto. Enquanto
transbordam de belas palavras, continuam ardendo no fogo dos
cinco venenos.Para ensinar alguma coisa, é preciso ter assimilado
O que se pretende ensinar. A chamaintensa e brilhante de uma
única lamparina é capaz de acender cem outras, mas a chama
tênue de um pavio fino mal consegue se manter acesa,
Podemoster recebido muitos ensinamentos e saber, em teo-
ria, comoevitar os obstáculos e progredir. Mas se não aplicar-
mos à nós mesmos o que aprendemos, todo o conhecimento acu-
mulado permanecerá tãoestéril quanto a fortuna de um homem
tico que, de tão avarento,se priva de comida e acaba morrendo
de inanição.
Se quisermos realmente progredir, temos de abrir os olhos
para os nossos defeitos, como se estivéssemos examinando
a
nossa mente num espelho. É rolo quem se tem em alta conta,
vê apenasos defeitos dos outros e interpreta as próprias falhas
como grandes qualidades, pois, comabsolutacerteza,está se im-
pedindo de progredir. De acordo com os mestres kadampas, o
melhor ensinamento é aquele que expõe as nossas falhas mais
secretas. Quando desmascaramos um ladrão de quem ninguém
suspeitava, colocamos umponto final nassuas atividades.
Cada um precisa aprendera reconhecer osseus defeitos mais
graves: desejo, ira, ciúme, orgulho falta de discernimento.
É
preciso estar sempre conscientedeles e neutralizá-los no momen-
to em quese manifestarem. Nuncadeixe de vigiar as suas emo-
ções, como um rei que temepela suavida e, noitee dia, manté
m
a guarda vigilante. Os mestres kadampascostumavam dizer:

“105 +
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

Empunharei a espada da vigilância no portal da minha


mente,
Quando as emoções ameaçarem, eu também as ameaçarei.
Só quandoelas diminuírem a intensidadedo seu ataque,
eu relaxarei as minhas defesas.

Se não nos mantemos vigilantes quando estamos sob a pressão


das emoções, facilmente podemosperder a noção do queé essen-
cial ao dharmae passara vida inteira mentindo para nós mesmos,
tentandonosconvencer de que estamospraticando corretamen-
te. À prática equivocada do dharma pode conduzir aosníveis in-
feriores de existência.
Umbelíssimo afresco representando o esplendor dos rei-
noscelestiais não faz com que aqueles que o contemplam sejam
transportados para o paraíso. A simples leitura de umareceita
médica nunca curou ninguém. Imitar o comportamento de um
praticante do dharma não conduz ninguémà libertação. Tingir
um tecido de maneira negligenteé perda de tempo. À tintura não
vai permanecere o trabalhoterá sido inútil. Da mesmaforma,é
inútil praticar o dharma sem queele penetre o nosso ser. Quem
negligencia o seu aperfeiçoamento pessoal deturpa o seu poten-
cial de alcançara felicidade. Ninguém podepercorrer o caminho
no lugar de outra pessoa. Cada umdeve cuidar do seu próprio
progresso. Evidentemente, é impossível eliminar todos os nossos
defeitos de umavez. Só um Buda é perfeito. Mas podemos nos
purificar pouco a pouco, comoa lua, que emerge lentamente de
trás das nuvens.
Nenhumcrime é tão grave que não possa ser reparado: An-
gulimala, um assassino serial, “o homem do colar dos dedos

* 106 *
Dilgo Khyentsé

decepados”, cometeu novecentos e noventa e nove crimes, mas


tornou-se um arhat quando, ao encontrar o Buda, purifi
cou-se
dos seus pecados pela força da fé. Qualquer qualidade pode
ser
desenvolvida, se houver esforço suficiente para isso, Porém, sem
fé e empenho em aperfeiçoar-se, ninguém alcançará result
ado al-
gum, nem queo próprio Buda lhe apareça em pessoa.
Nosso primeiro pensamento pela manhã, logo ao acorda
r,
deve ser a consagração do dia que começa ao bem-estare
à felici-
dade de todosos seres vivos. Para tanto, é preciso pôr em
prática
da melhor maneira possível os ensinamentos do dharma.
À noi-
te, devemos examinartudo o que fizemos, dissemose pensa
mos
durante o dia, O que fizemos de positivo deveser dedicadoa
to-
dosos seres vivos, com a promessa de fazermos ainda
melhor no
dia seguinte. O quefoi negativo deveser reconhecido, com a pro-
messa de repararmos todos oserros. Se proceder desta forma
,o
praticante superior progredirá a cada dia; o praticante
interme-
diário, a cada mês; eo praticante menos capaz,
a cada ano.

90. A fé pode ser enfraquecida pelas circunstâncias,


Povo de Tingri: quando isto acontecer, devemos pensar nas
imperfeições inerentes ao samsara.
É fácil manter a fé na presença dos mestres enquanto
escutamos
Os seus ensinamentos. Mas a mente é volúvel, Estafé recém
-nasci-
da e aindafrágil pode facilmentetornar-se vítima das circu
nstân-
cias, no caso, por exemplo, de frequentarmos más compa
nhias.
A falta defé estagnaráa nossa práticaespiritual, A fé preci
sa
portanto ser alimentada. A melhor maneira de alimentar
e cul.
tivar a fé é contemplar a bondade,a compaixãoe a perfe
ição dos

“107 +
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

mestres e do dharma, comparandoestas qualidadesàs terríveis


imperfeições do samsara e ao círculo de mortes e renascimen-
tos.
Se pudéssemos acumular todasas lágrimas que derramamos
durante as nossas vidas passadas, elas formariam um imenso
oceano. Se pudéssemos empilhar todos os corpos quejá tivemos,
incluindo os nossos corposdeinsetos,eles formariam umapilha
mais imponente do que a mais alta montanha. Essas imagens
podem nos ajudar a assimilar melhoras aberrações inerentes ao
samsara. E,se continuarmosa sentiratração pelas prerensas ale-
grias desse círculo vicioso, é porque somos, purae simplesmente,
cegos. Precisamosaceitar que estamos encarcerados no samsara
e lutar incessantemente para escapar do que é, acima de tudo,
umaprisão terrível.

91. As más companhias têm o poderdelevá-los a agir errado,


Povo de Tingri: é preciso evitar as amizades negativas.

A mente é como um pedaço de cristal transparente que assume a


cor do fundo sobre o qualfoi colocado. Estamossujeitosa refle-
tir as qualidadese os defeitos dos bons e dos maus amigos com
quem convivemos. Se nos juntarmos a quem é perverso, egoísta,
rancoroso,intolerante, dissoluto ou arrogante, seremos afetados
porseus defeitos. Melhorseria ficarmoslongedesse tipo degente.

92. As boas companhias fortalecem as qualidades positivas,


Povo de Tingri: procurem conviver com amigos que sejam
pessoas de bem.

+ 108 +
Dilgo Khyentsé

Sempre que possível, devemos viver junto aos mestres espiri-


tuais, pois eles são como um jardim de sabedoria, com plantas
medicinais. Junto a um mestre realizado, rapidamente alcança-
mosa iluminação.Junto a um mestre erudito, adquirimos gran-
des conhecimentos. Junto a um mestre de meditação, a aurora
da experiência espiritual despontará na nossa mente, Junto a um
bodisatva, nossa compaixão se expandirá como, em contato com
o sândalo, a madeira comum fica pouco a pouco impregnada do
seu perfume.

93. A mentira e a desonestidade não enganam apenas aos


outros, mas a vocês também,
Povo de Tingri: tomem a sua própria consciência por
testemunha.

Milarepa dizia:"Nãoter nadaa reprovar em si mesmo é o maior


sinal da pureza dos nossos propósitos”. A consciência é a nossa
melhortestemunha,pois ela conhece melhor do que ninguém as
nossas intenções, boas ou más, assim como os atos que pratica-
mos. Aquele que, de boa fé, pode dizer “fiz o melhor que pude”
tem a mente serenae satisfeita.
Devemosjulgar as nossas falhas e não as dos outros. Só um
Buda conhece as motivações mais profundas de cada um. Exa-
minemosas nossas próprias falhas para descobrir se estamos re-
almente vivendo de acordo com o dharma. É inútil termos uma
conduta externa aparentemente irrepreensível e, internamente,
permanecermosem total contradição com o dharma. A devoção
movida pelo sentimentalismo, o respeito pela forma exterior, a
compaixão superficial e a renúncia afetada não são atributos de

- 109 *
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

um verdadeiro praticante. Como fogo dessa lenha, o praticante


autêntico nunca vai conseguir se aquecer.

Menosprezar a ignorância é a pior das falhas,


Povo de Tingri: estejam semprevigilantes e atentos!

À ignorânciaé a causa principal de vagarmospelo samsara. Todo


ser vivo, até mesmoo inseto mais minúsculo, tem a natureza do
Buda, assim como todo grão de gergelim está saturado de óleo.
Mas quando as pessoas ignoram a sua verdadeira natureza, as
formas mais variadas de obscuridade entram em ação causando
sofrimento.
À ignorância tema particularidade de nos fazer crer narea-
lidade do ego e dos fenômenos, o quetraz consigo o apego e a
aversão, assim como as emoções dolorosas quese originam des-
ses dois venenos principais. É dessa formaqueo caos do samsara
se instala. Ancorada na nossa mente, a ignorância nos consome
como um demônio que só traz ruína e degradação. No seu tra-
tado “O Caminhopara a Iluminação $, Shantideva nos mostra
como,ao longo deincontáveis vidas, as paixões nos têm prejudi-
cado impiedosamente. Portanto, o desejo e o ódio são os inimi-
gos que devemos execrar, emsubstituição aos inimigosna acep-
ção comum do termo.
Nosso inimigo, por pior queseja, não poderá nos fazer mal
além dessavida — ele próprio é umavítimadas suas paixões - en-
quanto que as emoções negativas nos tiranizam desde tempos
imemoriais e são muito mais terríveis; elas não param de nos
empurrar para agirmos de formaerrada, provocando em decor-
rência grandes sofrimentos. Agora que, graças ao mestre, conse-

“Io
Dilgo Khyentsé

guimosidentificar nosso único e genuíno inimigo, devemos de-


sembainhara espada do conhecimento transcendente e decapitar
o demônio dacrençanarealidade do ego e dos fenômenos!

9s. Se não se apegarem aos três ou cinco venenos, vocês estarão


próximos à sua meta,
Povo de Tingri: é preciso ter os antídotos sempre prontos na
mente.

À maior parte do tempo, nossa mentefica à mercê doscinco ve-


nenos: desejo, ódio, ignorância, ciúme e orgulho. Vejam como
o ódio faz com que as pessoas se matem, os povos entrem em
guerra e as nações se exterminem com bombas. Enquanto der-
moslivre curso às nossas paixões, elas nos dominarão. Mas, no
momento em queas analisamos comcuidadoe rastreamosa sua
origem,elas se extinguem, pois na verdade são como as pesadas
nuvens que aparecem no céu pouco antes de uma tempestade:
ameaçadoras quando vistas de fora, mas sem nenhuma consis-
tência interior. Na verdade, as emoções negativas só têm o poder
que damosa elas. Em vez de sermos sempre indulgentes, deve-
tíamoslivrar-nos delas para sempre. Assim, teríamos a liberação
ao nosso alcance.
Para ter sucesso, é preciso muita determinação. Docontrário,
as instruções do mestre não serão de grande auxílio e a prática
não terá resultado algum. O mestre pode nos guiaraté a ilumi-
nação, mas não pode nos lançara ela comose estivesse jogando
umapedraparao alto. Ele nos mostra o caminho, mas cabe a nós
seguir em frente. Considerando-se que as nossas emoções são
dotadas de um poderavassalador, é preciso confrontá-las com

sa
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

antídotos igualmente poderosos. Para livrar-se de umaárvore


envenenada, é preciso arrancá-la pela raiz. A simples poda de
alguns ramosnãoé suficiente. Da mesma maneira, a não ser que
sejamarrancadas pela raiz, as emoções ressurgirão mais vigoro-
sas do que nunca,

96. Só o que é preciso para alcançar o estado de Buda é um


pouco de coragem,
Povo de Tingri: vistam a armadura da perseverança.

À perseverançaé a força viva da prática espiritual. Shakyamuni


alcançouo estado de Budadepois de perseverar durantetrês kal-
pas incalculáveis, tendo renascido setenta e uma vezes como um
grande rei disposto a tudosacrificar para receber os ensinamen-
tos do dharma.O fruto do mérito adquirido poressesesforços é
o poder extraordinário da sua benção.
Foi também pelo esforço constante que Jetsun Milarepa, o
arquétipo do praticante espiritual, e todos os outros grandes
mestres realizadosalcançaram a iluminação. Umpraticante sem
perseverança é como um rei sem guarda-costas. Torna-se um
alvo fácil para os inimigos: a preguiça e as emoções negativas.
Estamos sempre a umpasso de perder a batalha pelaliberação.
Porisso vocês devemse apressar em vestir a armadura da perse-
verançae enfrentar a batalha contra a indolência.

97. Os maus hábitos são como velhos conhecidos que


estão sempre reaparecendo,
Povo de Tingri: não perpetuem o passado.

car
Dilgo Khyentsé

Os maus hábitos são fortese traiçoeiros. Fortes, porestarem


enraizados em inúmeras vidas passadas, e traiçoeiros porque
,
encobertos por umaaparência sedutora, têm o poder de nosle-
var à perdição.
Osbons hábitos, aocontrário, são fracose tímidos, pois esta-
mosainda no início da prática espiritual, Graças à bondade do
mestre, os primeiros indícios de fé, entusiasmo e perseverança
começarama brotar na nossa mente. São, porém, vulneráveis à
inclemência das circunstâncias externas. Como um jovem inex-
periente enfrentando um mercenário exímio nasartes marciais,
os bonshábitos não têm comoenfrentar os maus hábitos, Temos
a propensão de perpetuar o passado e de acumular bens,favore-
cer quem nosinteressa, tentar derrotar os concorrentes e assim
por diante, exatamente como os nossos antepassados. Continu-
amos enredados ematividades infindáveis e sem sentido,
Se descuidarmos da vigilância e sucumbirmos aos maus há-
bitos, mesmo tendo recebido todasas instruçõesnecessárias para
alcançara liberação, partiremos para a próximavida atormenta-
dos e de mãosvazias, como um mercador desatento que vende
por um valor irrisório um objeto de valor inestimável e comisto
vai à falência. Só através do treinamento constante conseguire-
mos adquirir na nossa prática a estabilidade quenos tornará ca-
pazes de enfrentaras nossas tendências negativas com confiança
e coragem. Devemos romper como passadoe consagrar-nos ao
que verdadeiramente importa: a prática espiritual.

98. Sefalta força à sua percepção espiritual, invoquem o mestre,


Povo de Tingri, e vocês alcançarãoa realização.

“a
Os CemConselhos de Padampa Sangyé

Àsvezes nos sentimos desencorajados: “nossa prática não se es-


tabilizará nunca”, pensamos.“Ela não é eficaz. Nada funciona” E
começamos a nos perguntar se o nosso progresso não seria mais
rápido se adotássemos algumaoutra prática. Durante esses mo-
mentos de dúvida e hesitação, se brotar em nós uma profunda e
terna devoção pelo mestte, os obstáculos se dissolverão e a nos-
sa prática será fortalecida. Fé e devoção inabaláveis atuam como
umalente que concentra o poder dos raios do sol, tornando-os
capazes de transformar em chamas um montede folhassecas.
O verdadeiro progresso no caminhoespiritual é o resultado
da benção do nosso guru, que, por sua vez, é uma resposta à
nossa devoção. Muitos dos grandes mestres do passado alcança-
ram realização através da devoção a seus gurus. Conta-se, por
exemplo, queera tão grande a devoção que alguns discípulos de
Gampopatinham pelo mestre queeles realizaram a natureza da
mente simplesmente contemplando a montanha Dagla Gampo,
onde o mestre viveu.

99. Se aspiramàfelicidade nas vidas futuras, aceitem as prova-


ções do presente,
Povo de Tingri, e estarão a um passodoestado búdico.

Quem podesaber qualserá o nosso próximoestado de existên-


cia? No presente suportamos mala fome, a sede, o calor e o frio.
Estas, porém, podemserdificuldades menoresse comparadas aos
sofrimentos quetalvez tenhamosde enfrentar em vidas futuras.
Preparem-se desde agora para alcançarem a felicidade imutável
inerente à liberação pela prática do dharma. Se decidirmos ig-
notar completamenteas vidas futuras — ou até mesmose duvi-

“na
Dilgo Khyentsé

darmosque haja outros estados deexistência além do presente,


e*o nosso únicointeresse for o sucesso em assuntos mundanos,
desperdiçaremos nossa energia negligenciando o potencial tão
precioso contido na existência humana. O estado búdico não
está longe se nos consagrarmosa realizá-lo, poisele está dentro
de nós. O estado búdico está aquie agora,no frescor do momen-
to presente, no despertar que faz parte da natureza de todos os
seres.

Aquele que, tendo muiro dinheiro, usa o que tem comoca-


pital de giro para fazer bons investimentos aumentaa sua for-
tuna. Aquele que, sendo avarento, agarra-se obsessivamente ao
dinheiro, dele não tira nenhumproveito e arrisca-se a perder o
que tem. O estado búdico é a nossa riqueza natural. Cabe a nós
transformá-la numa grande fortuna,

100. Sou apenas um velho mestre indiano que logo partirá,


Povo de Tingri: se vocês têm dúvidas, temos de esclarecê-las
imediatamente.
Padampa, o velho acharya da Índia, lembra seus discípulos de
que seus diasestão contados. Vocês também deveriam aproveitar
o efêmero encontro do mestre com o discípulo para receber ins-
truçõese esclarecer todas as dúvidas.

101. Eu próprio tenho praticado ininterruptamente,


Povo de Tingri: vocês deveriam seguir o meu exemplo.
Tendo abandonado todas as atividades mundanas, Padampa
Sangyé alcançou as realizações ordinárias e extraordinárias do

“as +
Os Cem Conselhos de Padampa Sangyé

Veículo Adamantino. Realizou a natureza absoluta da mente,


tornando-se capaz de beneficiar um número incalculável de seres.
Ele transcendeu todas as formas de distração e ilusão. Os cem
conselhos que acabamos deversão a expressão dasuarealização
interior. Se o que estamos buscando é a transformação espiri-
tual, devemos ter como modeloas vidas dos santos do passado.
Se seguirmos o exemplo de Padampa Sangyé, não há dúvida de
que alcançaremoso seunível de realização. Mas tudo depende de
nossos esforços: queesta aspiração tome conta da nossa mente.

Aqui terminam os Cem Conselhos ao Povo de Tingri, o testa-


mentoespiritual de Padampa Sangyé.

"6
+ Notas

1 Pa dampa sangs rgyas, ?-1117).


2. Os ensinamentos da “Pacificação do Sofrimento” (zhi byed)
foram introduzidos no Tibete por Padampa Sangyé e fun-
damentam-se no conhecimento transcendente (prajnapara-
mita), que dissipa a ignorância, a única causa do sofrimento.
Associadas a esses ensinamentos estão as práticas do chô
(gcod), introduzidas no Tibete pela grande ioguine Machik
Labdrôn (ma gcig lab sgron, 1055-1153). O termogod significa
“cortar”, Esta prática propõe-se cortara crença narealidade
do egoe dos fenômenose eliminartodas as formas de apego.
Um dosaspectos desta prárica consiste em visualizar nosso
corpo como uma oferenda aos quatros “convidados” (imgron
po bzhi): 1) as Três Jóias, os budas e bodisatvas, que merecem
toda a nossafé e respeito; 2) os protetores da doutrina, do-
tados de qualidades excepcionais; 3) todos os seres vivos que
merecem especialmente nossa compaixão; 4) os espíritos e
forças negativas com os quais contraífmos dívidas cármicas.
Os nômadestibetanos guardam a manteiga em sacosde pele
de carneiroe porissoalguns pélos são encontrados na man-
teiga. Quando um desses pêlos é puxado, nãotraz consigo
nenhumresíduo de manteiga.
C£. Patrul Rimpoche, Le Chemin de la Grande Perfection, Pad-
malkara, 1997, p. 74.

-n7:
Notas

5. As'palavras de verdade”são formulações concisas e poderosas


dos fundamentos do budismo. Vejamos alguns exemplos:
Abstendo-se de cometer o menorato nocivo,
Pratiquem a virtude comperfeição,
Dominem completamente a mente:
Este é o ensinamento do Buda.
Como umaestrela, umaalucinação, a chama de uma lamparina,
Umailusão, uma gota de orvalho, uma bolha de ar,
Um sonho, um relâmpago, uma nuvem,
Consideremo mundo dos fenômenos.
Todasas coisas são transitórias,
Toda paixãoé sofrimento,
Todofenômenoé vazio, desprovido de realidade,
Somente o nirvana transcende o sofrimento.

A “oferenda de tormas de água” (chy gtor) e a “oferenda de


fumaça de alimento” (gsur) são apresentadas aos quatro con-
vidados (ver a nota 2). Feitas com amore compaixão,estas
oferendas aliviam especialmente os sofrimentos causados
aos pretas pela fome e pela sede que os atormentam conti-
nuamênte.

A oferenda de tormas de água consiste de água pura


misturada com leite e punhadosdefarinha. A oferenda de
fumaça de alimento é feita jogando sobre as brasas a fari-
nha misturada aos “três alimentos brancos”(leite, manteiga
e queijo), aos “três alimentos doces (açúcar, mel e melado) e
também substâncias sagradas. Essas oferendas são acompa-
nhadas de umavisualização do Buda da Compaixão, Ava-

*8 +
Notas

lokiteshvara, sob a forma de Kasarpani,e na recitação do seu


mantra, Om mani padme bum brih.
A palavra bardo significa “estado detransição” é designa nor-
malmente o período que separa a morte do renascimento.
Mais precisamente, são seis bardos:
1.0 bardo do nascimentoe davida (skye gnas bar do),
2.0 bardo da concentração meditariva (bsam gtan bar do),
3.0 bardo do sonho (rmi lam bar do),
4.0 bardodoinstante da morte (chi kha bar do),
5.0 bardoda realidade absoluta (chos nyid bardo),
6.0 bardo da busca por umanovaexistência (sridpabar do).
Cf supra, nota 3.
O makara (chu srin) é umaespécie de monstro marinho cuja
forma evoca um crocodilo gigante.
Lit.“apliquem seus dez dedos sobre o seu tórax”: gesto que
indica, no Tibete, umaprofundareflexão.
Segundo a cosmologia budista, o Monte Meru,assim como
Os quatro continentes, os oito subcontinentes e os sete ocea-
nos queo circundam, apóiam-se sobre umabase de ouro.
Às oito preocupações mundanas são o ganho a perda, o
prazere a dor, o elogio e crítica, a famae a obscuridade.
13. Cf a estrofe 54 e o comentário.
Ostrês kayas, ou corpos,são aspectos ou dimensões da na-
tureza búdica, que podem ser considerados como um,dois,
três, quatro ou cinco corpos. O corpo único é o estado bú-
dico. Os dois kayas são o dharmakaya, ou corpo absoluto, e o
rupakaya ou corpo da forma. Ostrês kayas são o dharmakaya,
ou corpo absoluto,o sambhogakaya, ou corpo perfeitamente

“no
Notas

dotado,e o nirmanakaya, ou corpo manifesto, Essestrês úl-


timos correspondem à mente,fala e corpo de um budae ex-
pressam-se na formadascinco sabedorias.
14. À existência humana podeser desperdiçada com preocupa-
ções pueris ou consagrada ao progresso em direção à ilu-
minação. Só pode ser qualificada de “preciosa” a existência
humana que oferece a liberdade e as condições necessárias
para a prática do dharma. Para avançarmos rumoà ilumi-
nação, é preciso possuir as oito liberdades: não ter nascido
nosinfernos, no mundodospretas,noreino animal,entre os
bárbaros, entre os deuses da longavida, entre os homensdos
caminhoserrados, em uma idade obscura em que nenhum
buda apareceu, ou como um deficiente mental, incapaz de
compreendero significado do dharma.
É necessário, ainda, reunir as dez condições favoráveis à
prática do dharma- as dez riquezas”: cinco riquezas intrín-
secas, que dependem de nós,e cinco riquezas 'extrínsecas”,
que dependemdefatores externos. Ascinco riquezas intrín-
secas são: possuit uma existência humana,ter nascido num
lugar onde existe o dharma,possuir todasas suas faculdades
físicas e mentais, não agir em oposição ao dharmae confiar
nos seres dignos de confiança, As cinco riquezas extrínse-
cas são as seguintes: um buda apareceu na nossa era e ex-
pôs o dharma; seus ensinamentos permanecem são postos
em prática; e por fim, existe um mestre espiritual para nos
guiar.
A"idade das cinco degenerescências"(dus snyigs ma Inga bdo)
corresponde ao sânscrito kaliyuga. É a era dos refugos, na

120 +
Notas

qual só restam as ruínas das perfeições da Idade do Ouro.


Essa era sombria é caracterizada porcinco degenerescências
particulares: a degenerescência da duração davida, do meio
ambiente, do pensamentofilosófico, das apridõesdos serese
da suaresistência às emoções negativas.
16. La Marche vers PÉveil (Bodbicharyavatara) é a obra do bodisatva
Shantideva, que viveu na Índia no século virr. Estetexto
foi amplamente divulgado na Índiae no Tibete. Nele, Shan-
tideva explica como despertamos o espírito da iluminação
(bodhicitta). Também expõe e ilustra a prática das primeiras
cinco virtudes rranscendentes(generosidade, disciplina, pa-
ciência, corageme concentração), que põemem ação a mente
dailuminação. Nocapítulo nono, dedicado ao conhecimen-
to transcendente, ele trata dosfrutos da prática: a realização
do estado búdico. E, no décimo capítulo, ele dedica todos
os seus méritos à iluminação de todos os seres sencientes.
Tradução francesa: Padmakara, 2" ed. 1992; comentário de
Sua Santidade o Dalai Lama, Comme un éclair céchire la nuit
(Albin Michel, 1992, pelosoito primeiros capítulos e o capí-
tulo final(x). Encontraremos dois comentáriostibetanos do
capítulo nono em Comprendre la Vacuité, Padmalara, 1993.

"rs

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