Sines
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TÍTULO
Sines, História e Património, o Porto e o Mar Actas
AUTOR:
Arquivo Municipal de Sines
ISBN:
978-972-8261-19-1
Câmara Municipal de Sines, Novembro de 2017
DESIGN E
PAGINAÇÃO
Ricardo Lychnos
CAPA 4
Ricardo Lychnos
PARCEIROS
> Direção Regional de Cultura do Alentejo,
> Centro de História da Universidade de Lisboa,
> Centro de História d’Aquém e d’Além Mar (CHAM)
da Universidade Nova de Lisboa,
> Centro de Interdisciplinar de História, Cultura e So-
ciedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora,
> Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Es-
paço e Memória (CITCEM) da Universidade do Porto,
> Centro de Estudos da População da Economia e Socie-
dade (CEPESE),
> Escola Secundária Poeta Al Berto (Sines).
ÍNDICE
6> Apresentação, pelo Presidente da Câmara Municipal de
Sines
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Diariamente subo ao farol que se ergue no alto das falésias, ao anoitecer. Iso-
lo-me do mundo; e, neste isolamento, amaldiçoo por vezes a vida – enquanto a
luz se acende, adquire intensidade, e varre a fúria do oceano.
RESUMO
SUMMARY
Palavras-chave
Lagos, rota da escravatura, primeira globalização, arqueologia social.
Key words
Lagos, slave route, first globalization, social archeology
AS FONTES CARTOGRÁFICAS
AS FONTES DOCUMENTAIS
O REGISTO ARQUEOLÓGICO
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As condições naturais do porto de Lagos terão condicionado a organização
do primeiro núcleo urbano na colina de Santa Maria, provido de uma pequena
enseada colocada ao abrigo das marés e das fortes tempestades de SW, tal e
como confirmaram os estudos geoarqueológicos (Artega e Barragán, 2010:
99).
O estudo do núcleo urbano medieval-moderno implicou em primeiro
lugar o levantamento georreferenciado da Cerca Velha, tanto dos troços
e torreões conservados em alçado como das partes mascaradas pelas
construções e/ou preservadas sob a cota de solo atual, identificadas através
do registo arqueológico. A conjugação deste levantamento com o registo
fotográfico convencional permitiu a sintetização dos dados em maquetas
virtuais que facilitam a comunicação dos dados históricos (Carlos Loureiro
in Manteigas, 2015: 12 e 13).
Não temos evidências arqueológicas do cais associado ao núcleo urbano
medieval mas se considerarmos que entre os séculos XVI e XX o cais se
localizou invariavelmente no mesmo local podemos inferir que ali terá
funcionado, nos finais da Idade Média, a área portuária.
A poente do núcleo urbano, fora de muralhas, localizava-se a lixeira urbana
de Lagos em uso entre os séculos XV e XVII. As escavações arqueológicas
desenvolvidas entre 2007 e 2009 identificaram restos antropológicos em
diferentes momentos e fases da formação do monturo, cuja investigação
permitiu a sua correspondência com os escravos de procedência africana
reportados nas fontes documentais e comprovando-as pela primeira vez
(Ferreira et al., 2008: 441-446; Neves, Almeida e Ferreira, 2010).
Atendendo aos ventos dominantes em Lagos, a escolha da localização
para a lixeira fez-se garantindo o bem-estar dos moradores, preservando-os
dos maus cheiros. A sua localização foi ainda coincidente com a de outros
equipamentos igualmente incomodativos à vista e ao olfato, tais como a
olaria e a gafaria com o respetivo cemitério que ali se localizava.
De entre os depósitos orgânicos da lixeira foram exumados 158 indivíduos,
sendo que o registo mais antigo corresponde aos meados do século XV,
segundo datação por AMS 2σ de 1420-1480 cal d.C. O conjunto osteológico
pertence a uma população natural depositada sem cuidado algum, mas
com algumas exceções que manifestam uma colocação propositada do
cadáver, seja em posição fetal, em decúbito lateral ou em decúbito dorsal.
E nalguns casos os indivíduos possuíam espólio associado. À exceção de
um enterramento duplo (mãe e filho), todas as deposições são individuais
(Almeida, ed., 2012: 60; Neves, Almeida e Ferreira, 2011: 39 e 43).
Existe ainda na cidade um outro edifício, o denominado “mercado de
escravos”, cujo piso inferior, que inclui uma loggia, consta na planta de Lagos
levantada por Miguel de Arruda, em meados do século XVI. Sabe-se que, 214
com o estabelecimento da sede do Governo Militar do Algarve em Lagos,
funcionou nesse edifício a vedoria dos quarteis. O edifício foi ampliado
no século XVII com um piso superior, onde funcionou uma repartição da
alfândega até inícios de 2000. Foi precisamente este edifício, com a sua
anacrónica designação, consagrada por uma tradição que remonta somente
ao século XIX, que preservou a memória da presença de escravos em Lagos,
testemunhado pelos cronistas do Infante e confirmada pela realidade da
lixeira, cuja existência era até há pouco tempo totalmente ignorada.
Fig. 1
Núcleo Museológico
Rota da Escravatura.
Museu Municipal
Dr. José Formosinho
(Lagos) [foto: José Vi-
cente|Agência Calipo]
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Fig. 2
Núcleo Museológico
Rota da Escravatura.
Museu Municipal
Dr. José Formosinho
(Lagos) [foto: José Vi-
cente|Agência Calipo]
Fig. 3
Reconstituição do
núcleo urbano medie-
val muralhado e da sua
relação com a Baía de
Lagos [desenho: Car-
los Loureiro|CMLagos]
Simultaneamente pretende-se valorizar os lugares urbanos da memória
africana, disponibilizando-se o guia: «Lagos na Rota da Escravatura» que
permite ao visitante percorrer e conhecer a cidade e identificar o edificado
relacionável com a vila à época henriquina e a presença nela de escravos. O
guia inclui a reconstituição do Núcleo Primitivo e a sua relação com o mar
o que facilita a interpretação topográfica de alguns dos pontos de visita,
alterados pelo urbanismo, nomeadamente do recinto fortificado e da sua
relação com a Baía de Lagos, da praia onde teve lugar a primeira grande
venda de escravos e da Porta da Vila que serviu de marco ao improvisado
mercado.
O guia também remete para a rejeição dos africanos, considerados seres
inferiores, aspeto que está nas origens do racismo contemporâneo, ao relegá-
los aos trabalhos que exigem força física, trabalhos menores ou trabalhos
sujos que os senhores de pleno direito não fariam. Assim como para a
integração progressiva dos africanos na sociedade de Lagos, participando
dos ofícios religiosos e das irmandades como a da Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos, sediada na Igreja Paroquial de São Sebastião. Entidades
que funcionaram também noutras cidades algarvias, por exemplo na Igreja
de São Pedro de Faro, o que confirma que a população escrava foi uma
realidade na sociedade algarvia dos séculos XV a XVIII.
217 A escravatura histórica e contemporânea é lembrada e analisada, valendo
aqui a pena destacar outras iniciativas da sociedade local da Lagos, entre as
quais o Projeto Roots desenvolvido pelo Laboratório de Atividades Criativas
(LAC) que tem a sua sede em Lagos é que congrega uma série de artistas
visuais e performativos e que lançou este projeto das raízes precisamente
para a partir desta realidade histórica da presença de escravos africanos em
Lagos, construir arte, desenvolver uma presença mais contemporânea desta
memória. Este projeto em residência inclui também as “Conexões Roots”
como espaço de debate que pretende discutir hoje aquilo que significou
a escravatura no âmbito do modo de produção capitalista e a persistência
desse tipo de exploração até aos dias de hoje.
BIBLIOGRAFIA
Ferreira et al.[Ferreira, M., Diogo, M., Costa, C., Faria, F., Fernandes, T.],
(2008) – Um edifício, uma planta, um enterramento, as fontes... uma gafaria
em Lagos), «Xelb», Silves, 10, 2010, pp. 431-449.
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