Livro Corpos Dissidentes

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Apresentação

Luiz Lopes

Después, y quizá sólo después,


puede comenzar el proyecto de una
esperanza concreta.

José Esteban Muñoz


Durante o segundo semestre de 2020, ofertei uma disciplina
no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do
CEFET-MG. Mesmo diante de tantos desafios que o isolamento so-
cial impunha a todos, conseguimos que as tardes de sextas fossem

um pouco mais esperançosas ao lermos e discutirmos textos teóricos
que nos faziam pensar os corpos dissidentes, abjetos e como esses
corpos continuam resistindo às normas. Além dos textos teóricos, a
disciplina foi uma oportunidade de vivermos e entrarmos em conta-
to com obras literárias, fotografias, filmes e outras formas artísticas,
que de algum modo encenam também a sua maneira um pensamento
queer. Este livro é o resultado dos trabalhos finais desta disciplina.
Alessandra Hypolita Valle Silva Lopes abre o livro com o arti-
go “A pele em que habitam os monstros transgêneros” no qual ana-
lisa O silêncio dos inocentes. Silva Lopes parte da questão da mons-
truosidade para pensar esses corpos que são vistos como abjetos,
dissidentes ou que muitas vezes sequer são reconhecidos, vistos,
pensados como importantes.
No artigo “A resistência, o discurso e o engano do eu”, Bruna
Fernandes Barros parte das discussões sobre o relato de si mesmo
para defender que tal operação é um modo de resistência. A autora
parte de uma discussão inicial de alguns linguistas para, em segui-
da, entrar no terreno mais específico da teoria queer, sobretudo,
por meio das contribuições de Judith Butler.
Diogo da Costa Rufatto assina o artigo “Linguagem de gêne-
ro e desafio queer” que também parte da reflexão sobre a lingua-
gem para pensar os desafios e obstáculos do pensamento queer
que se inicia de algum modo pela própria linguagem. Nesse artigo,
o autor se vale de um outro grande pensador do queer, Jack Hal-
berstam e seu famoso livro A arte queer do fracasso.
Outra contribuição é o artigo de Fábio Garcia Ribeiro, “Bixa
Travesty: Linn da Quebrada, as insurgências do corpo e reflexões
sobre a identidade de gênero”. Neste artigo, o autor discute as dis-
sidências dos corpos negros por meio da arte de Linn da Quebrada.
Além das dissidências, Ribeiro demonstra como a arte de Linn está
associada a uma insurgência do corpo, a uma fissura que toda arte
e pensamento queer produz dentro das normas.
Na sequência, com “Cu: o centro do mundo”, Fernando Antô-
nio Siqueira Ferreira efetua uma leitura da poesia de Waldo Mota
por meio do aporte teórico de Sáez e Carroscosa e seu Pelo cu: po-
líticas anais. A poesia de Mota passa a ser vista não apenas como
uma escrita radical e erótica, mas como uma forma de afirmação do
ser penetrável, da vadiagem e de uma ética “bixa”.
Gustavo Henrique Sousa Assis escreve um artigo, intitulado
“Tudo sobre minha mãe e o queer: algumas notas”. Nesse artigo,
o autor se debruça sobre um dos filmes mais importantes do acla-
mado diretor Pedro Almodóvar. Assis explica como o pensamen-
to queer surge se contrapondo, em alguma medida, ao movimento
homossexual nos anos 1960. Depois desse primeiro movimento de
contextualização, o autor faz uma leitura do filme Tudo sobre mi-
nha mãe associando-o às formas de pensamento do queer.
Já em “Torto Arado: resistência negra e corpo feminino”, Jo-
arle Magalhães Soares efetua uma leitura crítica de um dos roman-
ces mais aclamados do contexto contemporâneo da literatura bra-
sileira. O feminino e a discussão do racismo ganham lugar no texto
desse autor que demonstra como as normas atravessam a sociedade
brasileira para além das questões de gênero.

Em “Sexo e política em tempos de impeachment: as ques-
tões queer em trechos do documentário Excelentíssimos”, Juliano
Vasconcelos Magalhaes Tavares empreende uma leitura de um do-
cumentário importante na cena brasileira, focando seus esforços
interpretativos em momentos nos quais as questões de gênero e
sexualidade dissidentes aparecem como pontos nevrálgicos para o
entendimento da política brasileira contemporânea.
Luan dos Santos Silva em “Escapar de todas as épocas: o olhar
para a vulnerabilidade em Michel Laub” faz um giro importante ao
ler um dos romances de Laub por meio da reflexão sobre a Aids e a
perspectiva da vulnerabilidade. Pensar o queer é, de alguma manei-
ra, se voltar também para a história do vírus do Hiv e de como essa
doença marca de modo incontornável a comunidade Lgbtqia+.
Lucas Diego Gonçalves da Costa, autor de “Um conto de ne-
nhuma cidade: pôneis, cores e violência na comunidade desterrito-
rializada” produz um texto que nos faz pensar no tema da violên-
cia e como este se relaciona às práticas e ao pensamento queer.
Aqui Butler passa a dialogar com Deleuze, sobretudo, como modo
de operar a partir de uma crítica profunda às identidades fixas.
Em “As dobradiças do tempo”, Lucia Santiago, volta ao texto
clássico de Virginia Woolf, Orlando. Por meio de um diálogo com
Guacira Louro e Judith Butler, Santiago demonstra como uma das
linhas de força do romance dos anos 1920 é efetuar aquilo que o
queer tanto deseja ainda nos dias de hoje, a saber, efetuar um en-
frentamento aos binarismos e às normas que querem nos fazer
acreditar numa identidade fechada e definitiva. Além d´“As dobra-
diças do tempo”, Lucia Santiago assina o artigo visual “Inventário
florístico para Orlando” no qual, por meio de imagens, pensa de
outro modo o texto e as linhas de força de Orlando.
Luiz Lopes responde por outro artigo “Noll: literatura, cor-
po e pensamento queer”, no qual efetua uma leitura do romance
Acenos e afagos, de João Gilberto Noll. Partindo do diálogo entre
Noll e Foucault e, posteriormente, trazendo algumas reflexões de
Butler, Lopes mostra como esse romance do escritor brasileiro traz
para cena um corpo dissidente e como uma de suas linhas de força
é o pensamento queer.
O artigo assinado por Marcílio Miguel Oliveira é “Tomboy:
a construção de um corpo queer”. Oliveira efetua uma leitura do
filme por meio da reflexão em torno do corpo queer, se valendo
de um suporte teórico da teoria queer bem como de algumas refle-
xões que partem de Nietzsche e se acercam da filosofia da diferen-
ça para pensar os corpos abjetos.
Mariana Ferreira V. da Silva escreve “Ressignificação cine-
matográfica do fracasso em corpos periféricos: uma análise do
filme Temporada de André Novais Oliveira”. Silva volta à temá-
tica do queer associado ao fracasso para pensar um filme da cena
contemporânea e periférica no Brasil, tendo como um dos focos a
constatação de uma crise instalada no cinema a partir do contexto
político atual, mas sem se esquecer dos movimentos também de
resistência.
“Usando a máscara: Yukio Mishima e a arte queer do fracas-
so”, de Miguel Fernandes Pereira é mais um artigo que elege como
suporte teórico as associações entre queer e fracasso, queer e o
antissocial, por vezes perigosas. Nesse artigo, Pereira empreende
uma leitura do clássico romance de Mishima, mas agora em diálogo
com a noção de fracasso, para tentar evidenciar uma certa tensão
entre a vida do artista e o texto, que por vezes, estariam em polos
diametralmente opostos.
Fechando as contribuições, Tiago Cruvinel assina o artigo
“Ensaio sobre a sexualidade da criança-viada” no qual faz uma con-
textualização do termo criança-viada no Brasil para, na sequência,
por meio de Butler e Preciado, efetuar uma crítica de como os co-
pos das crianças dissidentes são capturados por um discurso hete-
ronormativo e LGBTfóbico, um discurso mortífero que não defende
a infância, mas a mortifica.
Ao lançar um novo olhar sobre cada um desses textos, sinto
que aquelas tardes de discussões renderam muitos frutos. Foram
bons encontros que permitiram que cada pessoa pudesse pensar
contra e para além das normas e sobre o que mortifica nossos cor-
pos. Esses textos que aqui se reúnem servem agora como um teste-
munho do esforço intelectual de todas essas pessoas, que a partir
de lugares enunciativos muitos diferentes, se abriram para a dife-
rença, para pensar a diferença e para afirmar o pensamento queer
como um dos muitos modos de dizer sim àquilo que nos faz outros,
nossa esperança e nossa estranheza. Que ninguém as tire de nós.
Boa leitura!
Sumário
A pele em que habitam os
monstros transgêneros / 13

A resistência, o discurso
e o engano do eu / 28

Linguagem de gênero e
desafio queer / 38

Bixa travesty: Linn da


Quebrada, as insurgências
do corpo e reflexões sobre a
identidade de gênero / 50
Cu: o centro do
mundo / 59

Tudo sobre a minha mãe e


o queer: algumas notas / 71

Torto Arado: resistência


negra e corpo feminino / 82

Sexo e política em tempos


de impeachment: as
questões queer em trechos
do documentário
Excelentíssimos / 91
Escapar de todas as
épocas: o olhar para
a vulnerabilidade em
Michel Laub / 105

Um conto de nenhuma
cidade: pôneis, cores e
violência na comunidade
desterritorializada / 115

Inventário florístico para


Orlando
+
As dobradiças
do tempo / 128

Noll: literatura, corpo e


pensamento queer / 138
Tomboy: a construção de
um corpo queer / 151

Ressignificação
cinematográfica do
fracasso em corpos
periféricos: uma análise do
filme Temporada de André
Novais Oliveira / 164

Usando a máscara:
Yukio Mishima e a arte
queer do fracasso / 175

Ensaio sobre a sexualidade


da criança-viada / 189
Alessandra
Hypolita V.
Silva Lopes
A pele em
que habitam
os monstros
transgêneros
O queer não é uma estru-
tura singular, mas uma co-
leção de engajamentos inte-
lectuais, o que significa que
todos os campos do estudo
poderiam analisar um obje-
to usando essa ótica. Na
verdade, a teoria queer parte do pressuposto que a identidade não é fixa e não
define quem nós somos. O estigma que a sociedade impõe à comunidade LGB-
TQIA+[1] aponta a diferença e a anormalidade em suas proximidades, congre-
gando uma discriminação extrema, que é quase uma regra cercada de bullying
e discriminação. Pensar a heterossexualidade como regime de controle faz
conceber o discurso como campo das relações de poder instanciadas na socie-
dade (FOUCAULT, 1979). As identidades são construídas a partir do contexto
social à qual se vinculam e, no pensamento de Judith Butler (2019), o elemen-
to transgênero não é uma aberração social, mas uma variação da identidade
baseada na performatividade da ação. Pensando em sua atuação no meio am-
biente e estrutura social: “os gêneros não podem ser verdadeiros nem falsos,
reais nem aparentes, originais nem derivados. Como portadores críveis desses
atributos, contudo, eles também podem se tornar completa e radicalmente
incríveis” (BUTLER, 2019, p. 201).
Segundo Berenice Bento (1966), a transexualidade é um desdobramento
inevitável de uma ordem de gênero que estabelece a inteligibilidade dos gê-
neros no corpo. Tansin Spargo (1999) afirma sobre a obra de Foucault que “o
queer pode funcionar como um substantivo, um adjetivo ou um verbo, mas em
cada caso é definido contra o normal”. Uma análise dessas narrativas não-nor-
mativas, que nos apontem para estudo de gênero, tem como objetivo cruzar as
fronteiras disciplinares em aspectos teóricos e metodológicos ao estabelecer
diálogos entre ciência, literatura e arte. Em definição sobre o que é queer:

Em inglês, o termo “queer” pode ter função de substantivo,


adjetivo ou verbo, mas em todos os casos se define em opo-
sição ao “normal”, ou à normalização. A teoria queer não
é um arcabouço conceitual ou metodológico único ou siste-
mático, e sim um acervo de engajamentos intelectuais com
as relações entre sexo, gênero e desejo sexual. Se a teoria
queer é uma escola de pensamento, ela tem uma visão
profundamente não ortodoxa de disciplina. O termo descre-
ve uma gama diversificada de práticas e prioridades críticas:
interpretações da representação do desejo entre pessoas do
mesmo sexo em textos literários, filmes, músicas e imagens;
análises das relações de poder sociais e políticas da sexua-
lidade; críticas do sistema sexo-gênero; estudos sobre iden-
tificação transexual e transgênero sobre sadomasoquismo e
sobre desejos transgressivos (SPARGO, 2017, p. 13).

A teoria queer não é uma sistemática conceitual ou estrutura metodo-


lógica, mas “uma coleção de engajamentos intelectuais com as relações entre
sexo, gênero e desejo sexual” (Ibidem, 2017, p. 9). A partir dessa citação, vê-se
claramente que a definição de transgênero pode ser amplamente discutida
em obras literárias, filmes, musicais e tantas outras manifestações artísticas.
O apoderamento perspectiva queer pode proporcionar formas de “considerar
o impensável, o que é proibido pensar, em vez de simplesmente considerar o
pensável, o que é permitido pensar” (LOURO apud SILVA, 2010, p. 107). Assim,
a teoria queer evidencia as produções artísticas e discursivas ao conceitualizá- | 14
-las, além de realizar um trabalho crítico de desconstrução dos discursos dos
próprios pesquisadores de gênero e sexualidade, dando voz aos silêncios.
Como explica Guacira Lopes Louro (2004), os teóricos desse campo
constituem um agrupamento divergente. O termo queer representa uma
apropriação de uma palavra normalmente usada para ofender e que, ao ser
utilizada, torna-se resistente. Judith Butler (2019) levanta questões acerca do
status de força e oposição, e variabilidade dentro do campo do gênero, que,
segundo seu entender, é performativo. O queer recusa a existência do sujei-
to como pressuposto, é transitivo, múltiplo e avesso à assimilação. A teoria
pretende realizar a desconstrução, defendendo indeterminação de todas as
identidades sexuadas e generificadas.
“Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico,
raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorati-
va com que são designados homens e mulheres homossexuais” (LOURO apud
BUTLER, 1999, p. 546). O sistema excludente que vivemos em sociedade é
baseado em raça, classe, gênero, sexualidade, habilidade e tantos outros fato-
res. O transgênero, em sua maioria, sofre discriminação e assédio, e é o próprio
epítome de seu fracasso em encarnar normas sociais de heterossexualidade,
feminilidade e masculinidade. Nesse cerne, através da representação da pes-
soa transexual como um monstro, a mídia de massa ajuda a controlar e moni-
torar os matizes sexuais de gênero. Para que um livro de suspense ou terror
funcione, é necessário que haja um grau de repulsa contra o protagonista ou
assassino. No entanto, também é preciso haver uma explicação sobre os moti-
vos do assassino cometer delitos. O mais perturbador é que a lógica do assas-
sino transgênero está muitas vezes ligada ao signo do patriarcado. Seu status
como gênero pode inicialmente suscitar algum grau de simpatia e é, então,
rapidamente transformado em um status de monstro transgênero.
O corpo social dominante constrói a transexualidade como inerente-
mente monstruosa. Por consequência, a plateia registra o corpo transexual
como um corpo não natural – ele é o produto de uma mudança proporcionada
pela ciência. É tal qual a carne rasgada e costurada que, ligada de forma ci-
rúrgica forma um corpo monstruoso. Podemos pensar numa conexão entre o
transexual e o monstro personagem do livro Frankenstein, de Mary Shelley[2],
publicado pela primeira vez em 1818, que marca a diferença desse corpo hor-
rível, enorme e monstruoso. O romance se tornou tão famoso, pesquisado e
comentado, que a audiência evoca não o jovem cientista Victor Frankenstein,
mas a sua criação monstruosa. Frankenstein, ao dar a sua criatura uma audi-
ência, abriu a moldura do romance e o monstro esboçou o que Barthes (1970.
p. 95-96) chamaria de um “contrato narrativo” entre narrador e narrado.
O monstro é um poderoso aliado do que Foucault (1990, pág.47-48) cha-
mou de “a sociedade panóptica”[3], na qual “comportamentos polimorfos fo-
ram, realmente, extraídos do corpo dos homens, dos seus prazeres mediante
múltiplos dispositivos de poder, foram solicitados, instalados, isolados, inten-
sificados, incorporados”. Nesse cerne, todo monstro é uma materialização me- | 15
tafórica dos desejos, medos e ansiedades de um lugar e de uma época, como o
monstro de peles mortas de Mary Shelley (1818) em Frankenstein: “é verdade,
seremos monstros, isolados do mundo todo, mas por esse motivo seremos mais
apegados um ao outro. Nossas vidas não serão felizes, mas serão inofensivas e
livres da angústia que agora sinto”. Como afirma Peter Brooks (1995, p.106):

Um monstro também pode ser aquele que foge à definição


de gênero. Nesse sentido, Frankenstein seria uma versão
mais radical desse corpo considerável de literatura romântica
e “decadente” - como Mademoiselle de Maupin de Théophile
Gautier, Fragoletta de Henri de Latouche, Sarrazine de Bal-
zac, Monsieur Vénus de Rachilde - que usa crossdressing e
hermafroditismo para criar situações de ambiguidade sexu-
al que questiona papéis de gênero socialmente definidos e
transgride a lei da castração que define a diferença sexual[4].

Segundo COHEN (2000, p. 28), “O monstro sempre escapa porque ele


não se presta à categorização fácil”. O monstro é aquele que questiona todos
os nossos códigos culturais, inclusive a própria linguagem, e nessa vertente
podemos compreender a persistente vida após a morte da criação monstruosa
de Mary Shelley. Nesse sentido, podemos inferir que, uma vez que uma vez
criado um monstro, quaisquer que sejam as indefinições da ordem de sua rea-
lidade, é impossível se livrar dele, “os monstros despertam uma ambivalência
afetiva, uma espécie de repulsa na atração” e o monstruoso está associado a
elementos enigmáticos, que se manifestam atravessados pelas metáforas e
associações:

Vampiros, enterro, morte: enterre o cadáver onde a estrada


se bifurca, de modo que quando ele se erguer do túmulo não
saberá que caminho tomar. Crave uma estaca em seu cora-
ção: ele ficará pregado ao chão no ponto de bifurcação, ele
assombrará aquele lugar que leva a muitos outros lugares,
aquele ponto de indecisão. Decapite o cadáver, de forma que,
acéfalo, ele não se reconheça como sujeito, mas apenas como
puro corpo (COHEN, 2000, 24).

Segundo Jacques Derrida (1974, p. 143), a diferença gera aquilo que ela
proíbe “tornando possível a própria coisa que ela torna impossível”. Nesse
sentido, o monstro transgênero é um estereótipo recorrente comumente vis-
to em dramas e suspenses psicológicos, pois monstros trazem como protago-
nistas, pessoas reais que podem viver ao lado, os assassinos – monstros reais.
Já para Cohen “o monstro é a diferença feita carne, um constructo da alteri-
dade que habita entre nós.” (2000, p.23-60).
Gilmore (2006) afirma que “os monstros incorporam tudo o que é peri-
goso e horrível na imaginação humana”[5]. O estereótipo do monstro transgê-
nero nasceu com a sociedade dominante homofóbica e começou a ser difundi-
do nos anos 50, resultante da publicidade em torno de Ed Gein[6], que usava | 16
os corpos de suas vítimas e fazia roupas com a pele arrancada de seus corpos.
Há rumores nunca confirmados de que ele era transexual. A sociedade temia
que a homossexualidade existisse em todos os lugares e representasse uma
ameaça. Tal fato é aparente na representação midiática de Ed Gein como efe-
minado, um travesti ou transexual. A partir daí, Ed Gein foi ainda transforma-
do em personagem para a versão cinematográfica de Alfred Hitchcock, com o
aclamado filme Psycho[7]. Outros escritores, como Thomas Harris, mineraram
ainda mais a história de Ed Gein para sugerirem uma ligação entre o comporta-
mento psicótico e o sofrimento de gênero. Essa ligação não se baseia em fatos
empíricos ou mesmo numa tradução fiel da vida de Gein e seus delitos, mas em
preconceitos e doutrinação cultural.
A associação cultural, cercada de homofobia e transfobia, persiste, pois
a monstruosidade transgênera é uma ameaça à manutenção do patriarcado,
da reprodução heterossexual e da família nuclear - produzida através da ri-
gorosa regulamentação de gênero e sexualidade. A aderência ao gênero e à
normalidade sexual é mantida através de punições que podem variar desde
uma leve repressão até violência terrorista e assassinato. Visto através do
prisma do paradigma foucaultiano, esses atos de disciplinamento e punição
são geralmente marcados pelas diretrizes de poder, através do consentimento
implícito das massas. A monstruosidade transgênera é também um fenômeno
de repulsa da sociedade, de acordo com o pensamento de Julia Kristeva (1985,
p. 116): “O mal deslocado para o sujeito, não deixará de atormentá-lo a partir
de dentro, não mais como uma substância poluente ou contaminante, mas
como o que não pode ser erradicado”[8]. Podemos assim, pensar na abjeção
como um meio de separar o humano do não-humano, perturbando a identida-
de do próprio sujeito, não respeitando os limites e as regras. A ameaça do real
é o que nos atrai para o signo do monstruoso e acaba nos devorando, pois ela
é lado disforme, aquele sem máscaras ou amarras do corpo social.
Butler, em toda sua construção teórica, desvela seu interesse pelos cor-
pos que escapam à matriz heterossexual e que, conseguinte, ficam fora da
agnição de humano e constituem, então, o arbítrio do abjeto:

O “abjeto” designa aquilo que foi expelido do corpo, descar-


tado como excremento, tornado literalmente “Outro”. Pare-
ce uma expulsão de elementos estranhos, mas é precisamen-
te através dessa expulsão que o estranho se estabelece. A
construção do “não eu” como abjeto estabelece as fronteiras
do corpo, que são também os primeiros contornos do sujeito
(BUTLER, 2003, p. 190-191).

Nessa seara, o monstro transgênero é produzido dentro de um funcio-


nalismo de uma ficção ameaçadora, pois a imagem desse abjeto é uma lição
de supremacia entre gêneros normativos. Ed Gein não foi o progenitor do
monstro transgênero. O Norman Bates de Robert Bloch em Psycho e os muitos
imitadores que se seguiram foram os progenitores. Esses personagens surgi- | 17
ram da criatividade da mente humana. Monstros psicopatas são temidos por
muitos. Ser assassinado violentamente, por exemplo, é um medo manifesto
de muitas pessoas, particularmente quando envolve perseguição ou tortura.
Quando se trata de gênero e sexualidade, temos um campo minado de medos
e ansiedades, frequentemente invocados no reino do slasher[9].
Dada à prevalência da transfobia na sociedade, os monstros criados pela
imaginação e ficção, acentuam os limites do desconhecido. Para Patrícia Mac-
Cormack em The Queer Ethics of Monstrosity (2012, p.260):

Os monstros emergem na ciência, na medicina, criminologia,


e psicologia predeterminados por genes, cromossomos, here-
ditariedade, e outras razões autenticadas por uma fantasia
de fenómenos que precede os discursos que os descrevem.
Isto tem visto corpos reais considerados monstros e tratados
como aqueles que devem ser ou curados ou ostracizados,
aqueles que merecem simpatia ou extracção do corpus so-
cial “saudável”. Para estudos históricos, como para todos os
minoritários, este atual sistema de teratologia deve ser re-
cordado; no entanto, uma ética queer muda a pretensão da
ciência para a verdade nos monstros como algo que necessi-
ta a serem estudados e descritos a monstros abstractos, que
exigem imaginação e renegociação de si próprio precisamen-
te porque não podem ser estudados ou conhecidos[10].

O corpo monstruoso, portanto, converte-se em um corpo que busca


nada mais que a libertação, e que pode ser narrado a partir de outros corpos
narrativos, outras vozes, outras abjeções. Como afirma Cohen (2000, p. 25):
“O corpo do monstro é um corpo cultural”, é uma projeção, então, o monstro
existe apenas para interpretado: o monstrum é, etimologicamente, “aquele
que revela”, “aquele que adverte”, “um glifo em busca de um hierofante”. Ele
afirma que: “vivemos numa época de monstros”:

[...] Cada vez que o túmulo se abre e o inquieto adormeci-


do põe-se em marcha (“vem dos mortos, / vem de volta para
anunciar a todos vocês”), a mensagem proclamada é trans-
formada pelo ar que dá ao seu locutor uma nova vida. Os
monstros devem ser analisados no interior da intrincada ma-
triz de relações (sociais, culturais e líterohistóricas) que os
geram (COHEN, 2000, p. 26).

Frequentemente, transgêneros são vítimas da violência, assassinados


em um ritmo alarmante mundo afora. Enquanto um cidadão heterossexual
tem uma chance de 1 em 18.000 de ser assassinado, para um transexual esta
estatística salta para 1 em 12. Em um dos levantamentos destes crimes feito
em 2015, pelo Trans Murder Monitoring, da ONG Transgender Europe[11], de
janeiro de 2008 a dezembro de 2014, foram 1356 mortes em 23 países da Amé-
rica Central e do Sul, 155 na Ásia, 112 na América do Norte, 94 em 14 países
europeus, 9 em 4 países africanos e 5 em 4 países da Oceania. Neste período, | 18
o Brasil contabilizou 689 mortes, contra 194 no México e 108 nos Estados Uni-
dos, os maiores em números absolutos[12]. Isso significa que há mais violência
física usada com os transgêneros do que é necessário para produzir efetiva-
mente a sua morte. Há um nível quase maníaco de ódio e a violência se torna
simbólica: é sobre matar tudo que a pessoa representa:

“Lésbicas, homossexuais, bissexuais e pessoas transgêne-


ros são mais propensas a experimentam intolerância, dis-
criminação, assédio, e ameaça de violência devido a sua
orientação sexual, do que a maioria que se identifica como
heterossexuais”.

Como aponta Gordene MacKenzie (1966), o “maníaco homicida que visa


as minorias de gênero é quase sempre um branco, um homem heterossexual”.
Entretanto, dentro de uma visão de mundo patriarcal, a antítese é criada nos
trailers psicológicos. O transgênero é lançado não como vítima, mas como viti-
mizador. Enquanto na sociedade, a transgressão sofrida pela pessoa transexual
é a que deve ser violentamente restringida. Na ficção, ocorre uma inversão da
realidade e as pessoas transgêneras são representadas como violentas, perpe-
tuando uma violência discursiva que é visitada sobre os corpos vulneráveis de
pessoas transexuais ao redor do mundo, se tornando alvo favorito da mídia.
A prevalência do ódio e da violência dirigida contra as variantes de gê-
nero na cultura midiática está mais interessada em retratar o mito do socio-
pata transgênero e a literatura “[...] longe de ser uma atividade marginal na
nossa cultura [...] representa a última codificação de nossas crises e dos mais
íntimos e sérios apocalipses” (KRISTEVA, 1985, p. 17). No romance de suspense
psicológico O Silêncio dos Inocentes[14], de Thomas Harris, publicado origi-
nalmente em 15 de julho de 1988, o autor discute sobre a personalidade do
assassino transgênero - Buffalo Bill, usando a teoria queer. Ele apontou, em
seu personagem, sintomas que categorizam um transgênero, e o livro é, sem
dúvidas, repleto de nuances que trabalham a complexidade da psique huma-
na, abordando aspectos como os traços psicóticos da personalidade do serial
killer e o reflexo dos traumas de sua infância no desenvolvimento e suas con-
sequências na vida adulta.
Considerado um clássico do terror psicológico, O Silêncio dos Inocentes
vai muito além da narrativa de suspense e terror, convidando o leitor a refletir
sobre a natureza humana e suas peculiaridades, apresentando personagens
com perfis psicológicos complexos e bem trabalhados. Cinco mulheres são
brutalmente assassinadas e seus corpos são encontrados em localidades for-
tuitas nos Estados Unidos. Para chegar até ao criminoso, intitulado de Buffalo
Bill, a jovem agente do FBI - Clarice Starling é designada para as investigações
do caso. Como parte da investigação, ela é escolhida para visitar o assassino
Hannibal Lecter, a fim de obter informações a respeito do caso. A detetive age
guiada por experiências de seu passado, como a morte do pai por um assaltan- | 19
te e seu insucesso em salvar as ovelhas que teriam as peles retiradas. Esses
eventos estão relacionados com o contexto de sua vida adulta, e com sua
atuação no caso Buffalo Bill - onde as vítimas tinham o mesmo propósito das
ovelhas. A solução de seus conflitos do passado é presentificada e vivida na
cena que finda o caso, quando Clarice atira, matando o serial killer, fazendo
justiça pelas vítimas numa analogia às ovelhas e ao seu pai:

— Você ainda acorda algumas vezes, não? Acorda no escu-


ro com as ovelhas balindo?
— Às vezes.
— Você pensa que se pegasse Buffalo Bill, se conseguis-
se salvar Catherine, poderia fazer as ovelhas pararem de
balir, você pensa que elas também seriam salvas e você
não acordaria de novo no escuro para ouvir seus lamentos,
Clarice? (HARRIS, 2002, p. 161).

Buffalo Bill nunca obteve atenção de sua família, nunca teve amigos,
e desde criança ele pensava que a mãe não o amava nem se preocupava com
ele, somente porque ele era um menino. Ele sofreu violência por parte de
seu pai e sua mãe não deu atenção a ele. A mãe era modelo, mas perdeu uma
competição, o que a fez afundar em depressão e consumir drogas e álcool. Ela
esperava uma menina, para que seu bebê pudesse ser modelo como ela. Por
conta de toda essa problemática, ela rejeita Buffalo. Ele cresce e personifi-
ca um personagem excessivamente maquiado, vestido com roupas femininas,
que sente desconforto com sua imagem:

Depois de se enxaguar pela primeira vez, Gumb[15] aplicou


Friction des Bains, esfregando-a no peito e nas nádegas e
usando uma esponja nas partes que não gostava de tocar.
Suas pernas estavam cobertas de pêlos, mas ele decidiu
deixá-las assim mesmo. Gumb esfregou-se até ficar rosado
e aplicou um bom emoliente para amaciar a pele. Seu es-
pelho de corpo inteiro tinha uma cortina para protegê-lo,
estendida em uma barra à sua frente. Gumb usou a esponja
para ajeitar o pênis e os testículos entre as pernas. Afas-
tou a cortina para um lado e ficou de pé em frente ao es-
pelho, assumindo uma pose com um quadril mais alto que o
outro, a despeito do desconforto que isso causava em suas
partes íntimas (HARRIS, 2002, p. 99).

De acordo com Foucault (1979), se o sexo for reprimido, ou seja, conde-


nado à proibição, isso pode marcar a inexistência do sujeito, por conseguinte,
o silêncio e o apagamento de toda uma existência. O idioma de Buffalo Bill
se coloca, até certo ponto, fora do alcance do poder, mas ele perturba a lei
estabelecida e de alguma forma, antecipa a liberdade que se aproxima com a
retirada da pele de suas vítimas. Ele pratica o crossdressing[16] e quer fazer a
cirurgia para mudar sua identidade, por não se sentir confortável com seu gê-
nero masculino. Nas passagens que mostram seu esconderijo, percebemos que | 20
ele é, na verdade, um transexual, ou que ao menos se enxerga dessa forma, e
que o sequestro seguido de assassinato das mulheres sempre teve como pro-
pósito usar a derme para intenções estéticas, de modo que ele conseguisse se
sentir na “pele” de uma mulher. No livro em uma citação sobre os corpos das
vítimas, há uma referência explícita ao monstro de Mary Shelley:

[...] Starling tinha encontrado os macabros restos na ga-


ragem através de um “laço sinistro com um homem que
as autoridades tinham estigmatizado como um monstro...!
Ficara claro que a WPIK tinha uma fonte de informações
no hospital.
— NOIVA DE FRANKENSTEIN!!! — Vociferava o Nacional
Tattler de suas prateleiras nos supermercados (HARRIS,
2002, p. 51).

Podemos inferir que o discurso do Dr. Hannibal Lecter sobre Buffalo Bill,
baseia-se na percepção de que o a homossexualidade é uma doença e de que
“todos os gays são pervertidos” (BOURDIEU, 2007, p. 143). A ambivalência
afetiva é marcada na narrativa e quando Clarice é enviada para entrevistá-lo,
percebemos a repulsa e a atração em um diálogo de ambos, onde o psiquiatra
afirma:

— Você pensou por um momento pelo menos, que estava


inventando aquilo? Não, se o tivesse inventado, não lhe
doeria. Estávamos falando sobre transexuais. Você disse
que violência e um comportamento destruidor não são da-
dos estatísticos do transexualismo. É verdade. Lembra-se
do que dissemos sobre a raiva ser expressada como luxúria
e o lúpus pressentido como urticária? Billy não é um tran-
sexual, mas pensa que é e tenta ser. Ele já tentou ser uma
porção de coisas, acredito (HARRIS, 2007, p. 120).

As crisálidas de mariposa, alojadas dentro da boca das vítimas, simbo-


lizavam a transição pretendida pelo assassino e concretizada com a retirada
da derme das vítimas. Esse item torna-se um dos padrões observados em cada
uma delas, o que marca a necessidade de Buffalo de se tranformar em uma
mulher:

— O significado da crisálida é mudança: verme em borbo-


leta ou mariposa, Billy pensa que deseja transformar-se.
Está fazendo um traje de moça usando moças de verda-
de[17]. Daí as vítimas terem que ser corpulentas — ele pre-
cisa de coisas que caibam nele. O número de vítimas sugere
que ele pode ver a coisa como uma série de mudas (HAR-
RIS, 2007, p. 118).

Buffalo Bill é um sujeito fragmentado, solitário, sem voz ativa, mas se-
gundo o próprio Dr. Hanibbal Lecter, ele não nasceu um monstro. Sua história | 21
de vida, sua identidade e expressão de gênero o levaram a um comportamen-
to popularmente denominado de psicopatia[18]. Embora a referência de Gein
citada anteriormente tenha sido importante para a criação do estereótipo do
monstro transgênero, essa não seria suficiente para perpetuar e sustentar um
mito cultural tão colossal. O corpo monstruoso não é representável, ele faz
parte de uma multidão de diferenças, que são apontadas como “anormais”:

Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferen-


ças, uma transversalidade de relações de poder, uma di-
versidade de potências de vida. Essas diferenças não são
“representáveis” porque são “monstruosas” e colocam em
questão, por esse motivo, os regimes de representação
política, mas também os sistemas de produção de saberes
científicos dos “normais” (PRECIADO, 2011, p. 18).

O monstro tal como imaginado na cultura popular está desde sempre,


marcado pelo hibridismo, caracterizado em uma mistura de componentes hu-
manos e animais, como o personagem Frankenstein. Halberstam (1995) afirma
que estes monstros do período gótico em diante, e antes do advento do perí-
odo pós-moderno, estavam mais preocupados com violações de fronteiras en-
volvendo raça e espécies. Referindo-se ao monstruoso Buffalo transgênero
de O Silêncio dos Inocentes, ele afirma:

O monstro do século dezenove é marcado pela raça ou es-


pécie, enquanto Buffalo Bill parece ser marcado pelo gê-
nero. Se medirmos um trabalho de pele um contra o outro,
podemos ler as transições entre vários sistemas significan-
tes de identidade (HALBERSTAM, 1995, p. 134)[19].

Uma obra literária como a de Thomas Harris, que desnuda o monstro


transgênero, propõe uma revisão sobre as ideologias e os caminhos em que
os valores patriarcais circulam. Apesar de décadas dos movimentos sociais,
feministas e queer, as ideologias continuam sendo golpeadas por um ataque
literal e metafórico de obras ficcionais a serviço do masculinismo, heteros-
sexualidade e gênero-normatividade. O monstro transgênero não emerge do
vácuo em Bufallo BiIl, mas vem à tona levado à insanidade e à violência brutal,
precedido por experiências de vida e construções sociais. Bill se torna o outro
buscando a sobrevivência e, tal como a Imago[20], ele transforma-se:

— Uma lagarta transforma-se em popa dentro de uma cri-


sálida. Então emerge, sai de dentro de seu aposento secre-
to de mudança como uma bela imago. Você sabe o que é
uma imago, Clarice?
— Um inseto adulto, provido de asas.
— E o que mais?
Ela sacudiu a cabeça negativamente.
— É um termo da psicanálise. Imago é uma imagem dos pais | 22
enterrada no inconsciente desde a infância e cercada de
infantil afeto[21]. A palavra vem das imagens de seus an-
cestrais feitas de cera que os romanos antigos carregavam
em procissões fúnebres (HARRIS, 2007, p.118).

De vítima a vitimizador, Bill se torna o assassino levado à loucura por


circunstâncias que se desmancham na armadura de códigos hegemônicos de
sexo, gênero, sexualidade e cultura. As representações do modelo do monstro
transgênero o ligam à violência criminosa, particularmente às matanças em
série com transgressão de gênero. O Silêncio dos Inocentes nos faz refletir so-
bre gênero e diferença sexual. O que se vê é uma junção de modelos mentais
pré-estabelecidos e códigos interpretativos, em uma paisagem assombrada por
narrativas onde a estranheza e a diferença tornam-se as encarnações do risco
e da violência. Ao passo que o monstro transgênero revela pouco sobre as pes-
soas transexuais, ele revela a frágil psique dos homens heterossexuais-sexo-
-normativos. E, para que o patriarcado funcione, os verdadeiros vilões devem
ser rendidos de forma invisível e a culpa transferida para um grupo sem poder.
Sob a máscara do psicopata, vemos um retrato da abjeção, da anormalidade, de
reversão da realidade e do horror. A pele em que habitam os monstros trans-
gêneros é construída através da carnificina de uma guerra de gênero, imposta
pelas raízes de uma sociedade transfóbica.

Notas
1.
A sigla LGBTQIA+, com base nas definições da Aliança Nacional LGBTIA, as letras LGB, referem-
-se à orientação sexual da pessoa, ou seja, as formas de se relacionar afetiva e/ou sexualmente
com outras pessoas, e TQIA+, diz respeito a identidade de gênero, ou seja, como a pessoa se
identifica, e vai além do gênero feminino ou masculino.

2.
Frankenstein ou o Prometeu Moderno é um romance de terror gótico com inspirações do mo-
vimento romântico, de autoria de Mary Shelley, escritora britânica nascida em Londres. É con-
siderada a primeira obra de ficção científica da história. O romance relata a história de Victor
Frankenstein, um estudante de ciências naturais que constrói um monstro em seu laboratório.

3.
Foucault utilizaria o termo “panóptico” em sua obra Vigiar e Punir (1975), para tratar da socie-
dade disciplinar. Desde então e até o início do século XXI, novas tecnologias de comunicação
e informação permitiriam novas formas de vigilância, por vezes dissimuladas, a ponto de não
serem facilmente percebidas pelos indivíduos, ou naturalizadas.

4.
A monster may also be that which eludes gender definition. In this sense, Frankenstein would
be a more radical version of that considerable body of Romantic and “Decadent” literature --
| 23
such as Théophile Gautier’s Mademoiselle de Maupin, Henri de Latouche’s Fragoletta, Balzac’s
Sarrasine, Rachilde’s Monsieur Vénus -- that uses crossdressing and hermaphroditism to create
situations of sexual ambiguity that call into question socially defined gender roles and trans-
gress the law of castration that defines sexual difference (Tradução minha).

5.
“The mind needs monsters. Monsters embody all that is dangerous and horrible in the human
imagination” (Tradução minha).

6.
Ed Gein foi um assassino em série e ladrão de lápides americano. Seus crimes, cometidos em
sua cidade natal de Plainfield, Wisconsin, ganharam muita notoriedade após autoridades des-
cobrirem que Gein exumou corpos de suas lápides e fabricou troféus e lembranças a partir dos
ossos e pele.

7.
Psycho é um thriller de terror psicológico americano de 1960, produzido e dirigido por Alfred
Hitchcock. O roteiro, escrito por Joseph Stefano, foi baseado no romance homônimo, publicado
em 1959 por Robert Bloch. Foi indicado a quatro Oscars.

8.
For evil, thus displaced into the subject, will not cease tormenting him from within, no longer as
a polluting or defiling substance, but as the ineradicable (tradução minha).

9.
O nome slasher foi criado porque o princípio básico do filme é um assassino em série com uma
máscara ou fantasia que vai coletando vítimas, até ser revelada sua identidade misteriosa pelo
protagonista que acaba matando o vilão. Embora o termo seja por vezes utilizado coloquialmente
como um termo genérico, ele é quase uma regra quando se trata de filmes de terror psicológico.

10.
Monsters emerge in science, medicine, criminology, and psychology as predetermined by genes,
chromosomes, congenital destiny, and other reasons authenticated by a fantasy of phenome-
na that precedes the discourses that describe them. This has seen real bodies deemed monsters
and addressed as those who must be either cured or ostracized, those who deserve sympathy or
extraction from the “healthy” social corpus. For historical studies, as with all minoritarians, this
actual system of teratology must be remembered; however, a queer ethics shifts science’s claim
to truth in monsters as something that needs to be studied and described to abstract monsters,
who demand imagination and renegotiation of self precisely because they cannot be studied or
known (Tradução minha).

11.
Transgender Europe (TGEU) é uma rede de diferentes organizações que trabalham para combater
a discriminação contra pessoas trans e apoiar os seus direitos. Foi fundada em 2005 em Viena du-
rante o 1º Conselho Europeu de Transgêneros e atualmente é uma ONG atuante na causa.

12.
Disponível em <<https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/01/09/brasil-lide-
ra-ranking-de-mortes-de-travestis-e-trans-um-e-morto-a-cada-48h.htm >> Acesso em 08
de maio de 2021.

13.
Disponível em <<https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/01/09/brasil-lide-
ra-ranking-de-mortes-de-travestis-e-trans-um-e-morto-a-cada-48h.htm >> Acesso em 08
de maio de 2021.

14.
O título do livro The Silence of the Lambs, foi traduzido para a edição brasileira como O Silêncio
dos Inocentes, trocando a palavra do original Lambs (Cordeiros).
| 24
15.
Jarne Gumb é o verdadeiro nome de Buffalo Bill, homem branco, 34 anos, 1,83m, 95 quilos, cabelos
castanhos, olhos azuis.

16.
Transformismo, ou a forma mais usada hoje, do inglês: cross-dressing é um termo que se refere
ao ato de alguém possuir uma expressão de género (roupas ou acessórios) associados ao género
oposto, por qualquer uma de muitas razões, desde vivenciar uma faceta feminina (no caso dos
homens) ou masculina (no caso das mulheres), motivos profissionais, para obter gratificação se-
xual, ou outras. Quem desenvolve essa prática é chamado de Transformista ou Crossdresser, ou
resumidamente conhecidos como Cd.

17.
Grifos meus.

18.
A psicopatia é um conceito psicológico de significado controverso. No entanto, a dificuldade em
especificá-lo e delimitá-lo não impediu que a psicopatia se estabelecesse como um rótulo útil para
designar certos quadros comportamentais e afetivos, tanto nas áreas médica e psicológica, quanto
no âmbito jurídico e até mesmo entre o público leigo (Hare & Neumann, 2008).

19.
The nineteenth-century monster is marked by racial or species violation while Buffalo Bill seems
to be all gender. If we measure one skin job against the other, we can read transitions between
various signifying systems of identity. The switch involving these signifying systems of identity
(Tradução minha).

20.
Termo criado por Carl Jung em 1912 e depois usado por Freud e outros psicanalistas. Imago de-
signa uma imagem inconsciente de objeto, realizada e construída em idades precoces e que fica
investida pulsionalmente.

21.
Grifos meus.

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| 25
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| 26
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ções pós-seculares (Coleção Argos, 2). Posfácio de Richard Miskolci, Tradução de
Heci Regina Candiani. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

Alessandra Hypolita Valle Silva Lopes é mestranda em Estudos de Linguagens


pelo Programa de Pós-graduação do CEFET-MG.

| 27
Bruna
Fernandes
Barros
A resistência, o
discurso e o
engano do eu
Neste ensaio, busco de-
monstrar a relação entre o
desenvolvimento do eu e do
outro/mundo, e como o re-
conhecimento da imperma-
nência de si por meio do – ou
da impossibilidade do –
relato de si mesmo pode ser associado a uma forma de resistência, que nomeio
como resistência discursiva. Considero relevante um estudo considerando as
limitações do fechamento da identidade, que podem ser encontradas em inú-
meros grandes autores, como Judith Butler (2015), da qual trago o conceito
de relato de si. No entanto, reconhecer as limitações identitárias não é neces-
sariamente rogar por sua eliminação, da mesma forma que compreender as li-
mitações da linguagem não significa buscar sua abolição. Entender que o eu
escapa a qualquer definição é uma forma de trabalhar com ele, para além dele.
Não buscar definir a si mesmo completamente oferece abertura para si e para
o mundo.
A fim de que esse tema seja aprofundado é fundamental situar o con-
texto atual, um mundo profundamente desigual, dominado por corporações,
não pessoas, onde vidas valem muito pouco e a morte é uma solução aceitável
para a manutenção da ordem e da riqueza. Como apoio desse posicionamento,
os autores Han (2018) e Mbembe (2018). De início, é preciso apresentar o que
considero ser a possibilidade e a consequência de todas as nossas práticas, a
linguagem e o discurso.

Quem sou eu na linguagem

Saussure, na sua clássica obra Curso de linguística geral (1975), abordou, en-
tre outros temas, a relatividade da linguagem. Para o autor, “é o ponto de vista
que cria o objeto” (SAUSSURE, 1975, p. 15). Apesar dessa afirmação se apoiar sobre
questões estruturais da língua, podemos também recolocá-la sob uma perspecti-
va discursiva, compreendendo que a prática da linguagem também se apoia sobre
subjetividades, culturas, cenários diversos. Nesta visão, entender que o objeto se
forma pelo observador é também compreender que ele está em constante mu-
dança sem, na verdade, nunca ter sido algo em si mesmo. Visão esta que pode ser
transplantada para as noções do eu. Ao observar a mim mesma, quem sou? Existe
algo que pode ser definido como eu?
De Benveniste (1991) a Bakhtin (2010; 2012), em suas diferentes abordagens,
a relatividade do eu é estudada e teorizada. O primeiro traz a dêixis como amostra
da subjetividade da linguagem. O eu e o ele, por exemplo, são sempre momentâne-
os, apoiam-se no contexto, na situação de comunicação, nos envolvidos no cenário.
Já Bakhtin (2010; 2012) vai além da estrutura linguística abordando o discurso e a
prática da linguagem. O conceito de dialogismo se baseia exatamente na multipli-
cidade enunciativa: quando eu falo, não apenas eu estou narrando, mas também
todos aqueles que me antecederam, que de certa forma falaram minha fala, es-
creveram meu texto juntamente comigo. Eu não sou a origem do que digo, então
como poderia ser a própria origem do eu?

| 29
Onde houver um “eu” que profira ou fale e, dessa forma,
produza um efeito no discurso, há primeiramente um dis-
curso que o precede e o habilita, um discurso que forma na
linguagem a trajetória obrigatória de sua vontade. Assim,
não há nenhum “eu” que permaneça por trás do discurso e
execute seu desejo ou sua vontade por meio do discurso. Ao
contrário, o “eu” apenas vem à existência ao ser chamado,
nomeado ou interpelado, para usar um termo althusseriano,
e essa constituição discursiva é anterior ao “eu”; é a invoca-
ção transitiva do “eu” (BUTLER, 2019, p. 371).

É lógico compreender que necessariamente o que chamo de eu não se ori-


gina em mim mesma, assim como observar que não há rigidez na constituição de
quem somos. Existe fluidez na existência de seres vivos e do mundo que criamos,
tudo está em contínua mudança, a impermanência, ironicamente, é a única cons-
tante. No entanto, nossa criação do mundo mostra como repetidamente buscamos
reafirmar o contrário. Buscamos rotular, fechar, delimitar, controlar compulsiva-
mente. Mas por ser essa tarefa impossível, vivemos repetidamente a frustração de
não poder controlar o incontrolável.
Por outro lado, a linguagem não precisa atuar como um instrumento de
controle e fechamento, pode operar um movimento libertador ao se fundir a uma
resistência em prol da existência. Essa existência libertadora pode surgir ao uti-
lizarmos a linguagem como ferramenta, mas não nos restringirmos a ela, nem a
tomamos como verdade em si mesma.
Resistência é um conceito que pode carregar em si certa rigidez. Na psicaná-
lise, nomeia-se resistência a recusa do sujeito à mudança, a de fato entrar em aná-
lise. No entanto, se utilizarmos a resistência no sentido mais radical, de oposição à
raiz do problema comum, à norma que se movimenta continuamente no sentido de
restringir, controlar e submeter sujeitos, ela pode ser libertadora, por assim dizer.

Sobre resistência discursiva

Para Foucault (1979), a resistência, assim como o poder, não possui um único
ponto focal, mas se manifesta em diferentes esferas. Sua força pode possuir in-
tensidades diferentes em locais distintos, mas a resistência não seria uma grande
massa que se concentra e se unifica, estaria presente em todos os pontos onde há
poder.
Discurso é compreendido, nesse ensaio, não apenas como um processo de
nomeação e criação de sentido, mas como um movimento que se manifesta na
significação como prática social. Os saberes perpassam ideias de mundo e no-
ções de verdade, assim são construídas tribos, comunidades e até países. Dentro
de uma ideia em comum se formam as sociedades e individualidades, desde o
conceito mais raso, como definição territorial, até ideologias elaboradas, como
capitalismo ou socialismo. Na prática discursiva são consolidadas as diferentes | 30
faces da humanidade, não se consegue sair do discurso para criá-lo ou recriá-lo,
é dentro dele e por ele que as transformações acontecem, sentidos são prova-
dos e refutados.
Quando abordo o conceito de resistência discursiva, falo exatamente sobre
esse movimento de significação que não simplesmente paira no mundo das ideias,
mas atravessa o cotidiano, a vivência e as ações do sujeito. Resistência discursiva
pode consistir no movimento consciente pelo sentido no cotidiano, buscar ressig-
nificar sua própria existência e daqueles subalternizados, opor-se à dominação de
ideias opressoras, limitadoras, atuar criticamente sobre si e sobre o mundo.
Resistir discursivamente também pode ser lido como um retorno àquilo que
nunca foi, um retorno ao sem nome, sem definição, dentro da linguagem e, ao mes-
mo tempo, extrapolar palavras e significados. Permitir a significação fluida, que
não se fixa, ou seja, permitir que a realidade simplesmente se manifeste sem a res-
tringir a uma visão única pode ser uma grande revolução.

O paradoxo da liberdade e a opressão hegemônica

Para que exista resistência é fundamental que se compreenda a que se re-


siste. As estruturas de poder são baseadas principalmente no apagamento de sua
origem. Como combater aquilo que não existe ou do qual não se tem consciência
da existência? Se o capitalismo forneceu a legitimação completa da acumulação
e exploração humana e ambiental para esse fim, o neoliberalismo velou sua ori-
gem ao oferecer uma perspectiva individualista para questões coletivas. A partir
do viés neoliberal, a pobreza e a riqueza são méritos individuais, assim como todas
as questões simbólicas que culminam na extrema pobreza e na legitimação da vio-
lência, inclusive – ou principalmente – pelo Estado.

O sujeito do desempenho, que se julga livre, é na realidade


um servo: é um servo absoluto, na medida em que, sem um
senhor, explora voluntariamente a si mesmo. Nenhum se-
nhor o obriga a trabalhar. O sujeito absolutiza a vida nua e
trabalha. A vida nua e o trabalho são dois lados da mesma
moeda: a saúde representa o ideal da vida nua. A esse ser-
vo neoliberal a soberania é estranha, ou melhor, a liberdade
daquele senhor que, segundo a dialética hegeliana servo-
-senhor, não trabalha e apenas goza (HAN, 2018, p. 10).


Ao relacionar a riqueza e as possibilidades humanas a um esforço indivi-
dual, a racionalidade neoliberal resguarda em alguma medida, mesmo que tem-
porariamente, suas falhas e contradições e, a partir disso, perdura. A partir da
individualização dos seres não apenas é mantida a exploração, mas a descone-
xão completa da realidade e da necessidade de cooperação coletiva. Dissolve-
| 31
-se então a noção de comunidade, tão relevante para conquistas sociais popu-
lares, e embasa-se um Estado que funciona a favor apenas da manutenção do
poder e concentração de riquezas.
Controlar o sujeito a partir da lógica da liberdade individual é extremamen-
te violento por si só, mas para um poder neoliberal não é o bastante. Tal racio-
nalidade autoriza a vida ao mesmo tempo em que legitima determinadas mortes.
Mbembe (2016) traz o conceito de necropolítica relacionado a esse fenômeno.
Para o autor, a política funciona como “o trabalho de morte” e a soberania se afir-
mariam como “o direito de matar” (MBEMBE, 2016, p. 128). Partindo da noção de
biopoder de Foucault, Mbembe disserta sobre como as criações simbólicas institu-
cionais cooperam na criação de vidas supostamente descartáveis, que podem ser
lidas no racismo, machismo, classismo, entre outras formas institucionalizadas de
discriminação e opressão.

Com efeito, em termos foucaultianos, racismo é acima de


tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do bio-
poder, “aquele velho direito soberano de morte”. Na econo-
mia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição
de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado.
Segundo Foucault, essa é “a condição para a aceitabilidade
do fazer morrer” (MBEMBE, 2016, p. 128).

A regulação da morte feita pelo Estado, assim como a racionalização neoli-


beral, tem sua origem apagada, é um ato amplamente normalizado pelos poderes
médicos, jurídicos, pedagógicos. Este é um processo tão enraizado a ponto de se
ignorar, por exemplo, que em cinco anos 100 crianças foram baleadas na região me-
tropolitana do Rio de Janeiro[1]. Ou ainda, que mais de 400 mil pessoas morreram
no Brasil, entre março de 2020 e maio de 2021, devido a ações ou inações do Esta-
do relacionadas à pandemia do Covid-19. Digo ignorar porque, apesar de protestos
pontuais, tais mortes são no mínimo toleradas em troca de uma normalidade ine-
xistente, de uma recompensa que nunca chega. Por sequer uma morte causada por
negligência estatal em um país que valorizasse a vida, tudo deveria parar. Então,
por que não paramos? Porque estamos inertes em meio ao caos genocida?
Foucault (1970/1996) oferece um caminho para a compreensão de tamanho
descaso por determinadas vidas. O autor estrutura uma base para orientar como se
constrói um discurso hegemônico, que se baseia em sistemas de exclusão direcionan-
do o que deve ou não ser aceito socialmente. O sistema de exclusão se constitui em:
o que deve ou não ser dito, também podemos ler como a regra do tabu; quem pode
ou não falar, que Foucault remete ao confinamento daquele considerado louco; e a
vontade de verdade, que determina o que deve ser considerado legítimo. É impor-
tante não considerar esse processo como individual, são sistemas estruturados nos
pontos de maior poder na sociedade, como judicial, político formal, pedagógico. A
hegemonia de um discurso deve perpassar diferentes pontos da sociedade.
A partir desse desenho traçado por Foucault (1970/1996), é possível con- | 32
duzir certas observações. Os sistemas de exclusão se retroalimentam, de certa
maneira, a partir do que e de quem fala que algo se torna ou não verdade. Ao
considerarmos o tabu, por exemplo, essa é uma forma de dominação na qual o
poder do questionamento é retirado. O que não é falado, não é pensado, não é
questionado, mantem-se inalterado. Na questão de limitação de quem está au-
torizado a falar, é estipulado também o que pode ser falado, que seria somente
o que é transmitido por quem se autoriza. Por fim, a vontade de verdade repre-
senta uma compulsão pelo fato, mas tal verdade é sustentada por aqueles que
podem falar e pelo que pode ser dito.
Ao associarmos os sistemas de exclusão do discurso às questões estruturais
de opressão, como racismo e machismo, não é complexo compreender a dificulda-
de de se romper naturalizações opressoras. O oprimido não está autorizado a falar,
apenas quando diz o que é amplamente aceito. No entanto, o discurso não é uma
via única, é dialético, é fluido. Por mais que estruturas opressoras de poder atuem,
algo sempre foge e pode se transformar. Pode-se aqui compreender o lugar da re-
sistência discursiva.

O esgotamento da liberdade e de si

Quando falamos de liberdade na atualidade, rapidamente nos deparamos


com aspectos individualistas. Em tempos de pandemia do Covid-19, a expressão da
minha liberdade, como escolher usar máscara ou frequentar aglomerações, pode
significar mortes. O debate sobre o alcance da minha liberdade e a do outro, assim
como o zelo pela coletividade, se tornam mais frequentes, mas algo se perde. Não
há apenas minha liberdade, como algo descolado da realidade social, exceto por
um viés genocida neoliberal.

(...) ser livre significa originalmente estar com amigos. Li-


berdade (Freiheit) e amigo (Freund) possuem a mesma raiz
indo-europeia. Fundamentalmente, a liberdade é uma pala-
vra relacional. Só nos sentimos realmente livres em um re-
lacionamento bem-sucedido, em um feliz <<estar juntos>>.
O isolamento total para o qual conduz o regime neoliberal
não nos torna livres de fato. Assim, nos dias de hoje, coloca-
-se a pergunta: para escapar à fatídica dialética da liberdade
que a transforma em coerção, não deveríamos redefinir ou
reinventar a liberdade? (HAN, 2018, p. 10).

A discussão sobre resistência passa também pelo questionamento de


como resistir e para que fim. A revolução sem norte, invariavelmente, tem como
destino uma forma diferente com o mesmo conteúdo anterior. A habilidade ne-
oliberal de separação não funciona apenas com o fim de fortalecer o sistema,
| 33
mas de impedir sua transformação. Aquele que pensa em si mesmo e nas vanta-
gens para si não possui laços, nas palavras de Han (2018, p.10): “O sujeito liberal
como empreendedor de si mesmo é incapaz de se relacionar livre de qualquer
propósito.”.
A fim de sonhar um mundo diferente é necessária uma transformação indi-
vidual que o extrapole, o que seria uma redundância, pois qualquer transformação
pessoal supera o sujeito em si. Seria difícil descrever um ponto claro em que um
indivíduo termina, o mundo começa, ou outro ser ter início. Possivelmente, o pon-
to de vista apenas cria o objeto porque, em determinado nível, não há separação
entre eles. Tal fato pode nos fazer questionar, inclusive, a própria noção de cria-
ção como um ato que necessita de uma origem. Aquele que observa e o que é ob-
servado existem como são naquele momento, não deixam de existir no momento
seguinte, mas também ambos já não são os mesmos. Então como afirmar que um
criou o outro? E como afirmar que este não foi o caso se a significação de um se
apoia na visão do outro? Podemos retornar aqui ao dilema do eu.
Em Relatar a si mesmo (2015), Butler disserta sobre como narrar a si mesmo
pode atuar como uma forma de catarse transformadora, no sentido de compreen-
der, no próprio movimento narrativo, que não há fechamento na descrição de si. Na
verdade, pode não existir uma descrição que de fato se aproxime do que seria tido
como a realidade do eu. A autora afirma: “(...) enquanto estou engajada em uma
atividade reflexiva, pensando sobre mim mesma e me reconstruindo, também es-
tou falando contigo e assim elaborando uma relação com um outro na linguagem.”
(BUTLER, 2015, p. 69).
Butler também traz a imposição social de definir, de forma fixa, a si mesmo
como uma forma de violência ética, que passa por todos os âmbitos da sociedade.
Desde a rigidez do nome, do gênero, do sexo, até as características, qualidades, de-
feitos, e tudo mais o que é atribuído a nós ou por nós. Todos os aspectos da nossa
existência são fixados e controlados, em algum nível, por leis judiciais ou morais.
Tais regras estão tão internalizadas que geralmente não são questionadas e, se
são, causam grande horror social, como o questionamento da heterossexualidade
como natural ou do gênero intrinsicamente relacionado ao sexo.

Se a identidade que dizemos ser não nos captura e marca


imediatamente um excesso e uma opacidade que estão fora
das categorias da identidade, qualquer esforço de “fazer um
relato de si mesmo” terá de fracassar para que chegue per-
to de ser verdade. Quando pedimos para conhecer o outro,
ou pedimos para que o outro diga, final ou definitivamen-
te, quem é, é importante não esperar nunca uma resposta
satisfatória. Quando não buscamos a satisfação e deixa-
mos que a pergunta permaneça aberta e perdure, deixamos
o outro viver, pois a vida pode ser entendida exatamente
como aquilo que excede qualquer relato que dela possamos
dar. (BUTLER, 2015, p. 59).

| 34
Tal constatação se refere à ideia da busca pelo controle do significado, in-
clusive do significado do eu e do outro, quando na verdade esse significado talvez
inexista, ou ao menos seja impossível de se expressar nos limites da linguagem.
Portanto, uma forma de resistência primária, radical, talvez seja a completa recusa
por rotular a si e ao mundo, ou se fixar completamente. Tal recusa possivelmente
culminaria no reconhecimento da não fixidez do que chamamos de eu, o que po-
deria surgir num processo de tentativa de autorrelato. Esse movimento é falho,
impossível de se atingir, e no reconhecimento da incapacidade de se descrever ou
definir pode morar a abertura necessária para resistir a todo fechamento.
Esse movimento de recriação de si e do outro é contínuo, nas práticas mais
sutis, como a forma de se pedir algo a um conhecido ou desconhecido, ou nas mais
elaboradas, como na prática da clínica psicanalítica. Tal transformação de si mes-
mo ocorre na mesma proporção com o mundo. Nesse sentido, o que separaria o eu
do mundo em que habita? Ou do outro a qual se refere, seja esse outro um ser, um
objeto ou o inconsciente?

O mundo é “inconsertável”

Ao analisar nossa atual conjuntura, em um governo com tendências fascis-


tas, uma pandemia evitável que matou milhões ao redor do mundo, a expressiva
desigualdade social e a crescente destruição do meio ambiente, surge a sensação
de que não há nada a ser feito. Mesmo com as inúmeras transformações no decor-
rer de décadas, existe uma aparente circularidade nas evoluções humanas, evolu-
ções no sentido de transformações mais do que crescimento necessariamente.
Ao observar as estruturas discursivas, como fiz por meio de Foucault, com o
apoio de autores como Butler, Mbembe e Han, é fácil identificar um viés negativo
na forma como o ser humano conduziu e conduz sua existência ao se relacionar
com o mundo a sua volta. Sim, ninguém está necessariamente refém do discurso e
das práticas, é possível fugir à interpelação em algum nível, mas, de maneira geral,
essa fuga da visão dualista e opressiva não parece ter tido sucesso até então.
Então retornamos à resistência discursiva, é possível resistir. Seres de todos
os tipos resistem todos os dias. Resistem a si mesmos, resistem ao caos, resistem à
destruição humana, resistem ao acaso, resistem porque precisam resistir. Mas resis-
tem em direção a que? Muitos de nós resistem porque é necessário, a fim de culti-
var a sobrevivência, não necessariamente porque vislumbram uma mudança, uma
transformação sonhada. O sonho também foi cooptado pelo capital, mas sonhar
talvez seja o primeiro passo de uma resistência na discursividade. Quando sonha-
mos um mundo diferente vamos em direção a sua possibilidade. O que mais seria
necessário para a materialização do que a possibilidade nutrida coletivamente?
A verdade da racionalidade neoliberal não pode ser a única e, em diferen-
tes níveis, ela é fragmentada todos os dias, nenhum discurso se retroalimenta por
| 35
completo. Na construção do significado da verdade, algo sempre se perde porque,
de fato, aquilo nunca foi. Nessa brecha do sentido mora a liberdade da significação,
mas a brecha precisa levar a algo ou logo é esquecida. O sonho coletivo de mundo
deve ser pautado sobre o que foi perdido, incluindo as relações, a relação com to-
dos os seres, com o mundo interno, com a natureza. E talvez o cultivo das relações
esteja no reconhecimento de que a separação é uma grande ilusão. A comunidade
se sustenta, não há eu que não esteja contido no nós.
A construção do mundo ou do outro e a noção do eu parecem estar intrin-
secamente relacionadas, não são o mesmo, mas também não estão separados.
Ambos são em alguma medida, mas também se modificam constantemente, o que
talvez possa indicar que não eram de fato. A aparente complexidade na constitui-
ção do eu e do outro esconde a sutileza do ser sem necessariamente ser algo. Se
retornarmos a mais sutil forma de existir e, nesse caso, também resistir, poderíamos
finalmente nos reconhecer na compreensão do não rótulo, da impermanência.
Não há nada que possa ser consertado no mundo, nada de fato precisa de
uma interferência. Na verdade, parece que a interferência humana na natureza das
coisas tem causado muito mais problemas do que soluções. Tal afirmação não é
uma recusa à tecnologia, à civilização ou à humanidade, é um reconhecimento do
poder destrutivo da estrutura atual. O mundo não precisa ser consertado, mas nós
precisamos nos re-conhecer, uma ação que, possivelmente, não terá fim. Resistir às
opressões é resistir à significação de tudo o que oprime, inclusive à delimitação de
si mesmo. Compreender a nossa não-origem como ‘eu’ é também desmistificar a
verdade que nos foi contada milhões de vezes e ser capaz de sonhar uma realidade
diferente.

Notas
1.
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-29/100-criancas-baleadas-em-cinco-anos-de-
-guerra-contra-a-infancia-no-rio-de-janeiro.html

Referências

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lo: Martins Fontes, 2010.

BAKHTIN, Mihail M. Marxismo e filosofia da linguagem.13. ed. Trad. M. Lahud;


| 36
Y. F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 2012.

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

_____ Corpos que importam: os limites discursivos do“sexo”. São Paulo: Croco-
dilo, 2019.

BENVENISTE, Emilè. Problemas de Lingüística Geral I. 3 ed. São Paulo: Pontes,


1991.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. São


Paulo: Ed. Graal, 1979.

____ A Ordem do Discurso. Aula inaugural no College de France. Pronunciada


em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São
Paulo: Loyola: 1996.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de po-


der. Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte: yiné, 2018.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, políti-


ca de morte. Traduzido por Renata Santini. Arte e ensaios - Revista do PPGAV/
EBA/UFRJ, n. 32 (2016). p. 122-151. Rio de janeiro, 2016.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. Cultrix: São Paulo, 1975.

Bruna Fernandes Barros é Doutoranda em Estudos de Linguagens pelo Progra-


ma de Pós-graduação do CEFET-MG. Bolsista do CEFET-MG. Mestre em Teoria
Literária e Crítica da Cultura na UFSJ. Pesquisa com foco em Estudos da Mulher
na abordagem da Análise do Discurso.
| 37
Diogo
da Costa
Rufatto
Linguagem
de gênero e
desafio queer
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

(Caetano Veloso)

Considerações iniciais
Aurora – este significante
remete, para os falantes da | 14
língua portuguesa, ao nascer do sol todas as manhãs. Mas também pode reme-
ter àqueles nascidos no século passado, principalmente à princesa da Disney no
filme A Bela Adormecida. Trazemos esse exemplo apenas com a intenção de
relembrar que uma coisa pode ser ela mesma e outras ao mesmo tempo. Apro-
veitamos para recordar que a grande tragédia da narrativa antes mencionada
é o sono profundo em que Aurora cai ao espetar o dedo no fuso de uma roca.
Uma roca é um objeto já antigo, há muito em desuso, mas que servia para
fiar. Longas horas costumavam passar as mulheres, sobretudo, pedalando e fian-
do, transformando fibras em fios, que depois se transformariam em tecidos.
Os tecidos, por sua vez, eram tingidos, cortados e costurados até vira-
rem vestes; as mesmas vestes que eram – e ainda são – usadas para cobrir a
nudez de um corpo, encobrir diferenças sexuais tidas como vergonhas por di-
versas sociedades. Mas também para que fossem lidas em perspectivas também
construídas por sociedades. No catolicismo, por exemplo, a cor dos paramentos
eclesiásticos indica a hierarquia que o sacerdote exerce na Igreja.
Fiar, na mitologia grega, também indica o destino dos seres humanos, o
que era feito pelas moiras, tantas vezes reproduzidas em nossa literatura.
Outro destino para os fios é o bordado ou a tapeçaria. Nesta, verdadeiras
narrativas visuais podem ser confeccionadas com a paciência e a destreza de
mãos ágeis e habilidosas. Esse é um motivo magistralmente trabalhado pela
grande dama da nossa literatura, Lygia Fagundes Telles, no conto “A caçada”.
Nele, um homem se vê diante de uma antiga e gasta tapeçaria; e, no mais ele-
gante estilo de tensão máxima, mas sem ruptura da autora, já não sabe mais se
está defronte àquela construção imagética ou dela faz parte; se, dentro dela, é
o caçador, ou a caça; se é sujeito ou objeto; se faz ou é feito; se é “eu” ou “nós”.
A flecha, diz a velha dona do estabelecimento, seria apenas obra de traças, es-
tes serezinhos minúsculos que expõem o segredo do tear. Mas fere o coração,
seja do personagem, seja do corpo que também detém as mãos de cuja destreza
artesanal nossos sentidos desfrutam, pois o que vemos é o resultado de muito
trabalho, de muito esforço para que cada fio, cada palavra fique no lugar certo.
O avesso disso é um emaranhado de nós – o que é verdade também para o bor-
dado, embora digam que a pessoa que melhor borda é aquela que sabe fazer o
avesso perfeito.
Contudo, também pode ocorrer que o avesso do pano seja exibido. É o
caso do pintor argentino Luis Felipe Noé em sua incursão pelo caos. A exposi-
ção Mirada prospectiva, de curadoria de Cecilia Ivanchevich, que foi exibida no
Museo Nacional de Bellas Artes, em Buenos Aires, de 11 de julho a 11 de setem-
bro de 2017, traz algumas obras em que o artista rompe com a ilusão de que o
objeto artístico sempre existiu, que está dado, que não é uma construção. Ele
vira algumas telas ao avesso, extrapola os limites das molduras, mostra o que
está oculto e que também faz parte de uma obra. É o caso do quadro “Concier-
to pânico”, que pode ser visto no catálogo da exposição (MIRADA, 2017, p. 11).
Se levarmos essa construção para o texto, temos a noção de que fiar é
preparar as palavras para que uma narrativa seja tecida, e é comum que tam- | 39
bém se escondam os mecanismos dessa construção. Na literatura, de modo ge-
ral, quem escreve faz um esforço para que a narrativa seja crível. Um fio nar-
rativo aborda a vida de uma determinada personagem, passa por seus conflitos
e resoluções. Não interessa muito se é fantástico ou não, o importante é ser
verossímil e esconder esse esforço. A história de Jesus Cristo, por exemplo,
é contada e recontada há mais de dois milênios, e quem se diz cristão pactua
em acreditar que aquilo que está nos evangelhos é verdade. Quando José Sa-
ramago, porém, escreve O Evangelho segundo Jesus Cristo, ele faz outro tipo
de esforço. O modo de narrar leva à percepção que aquilo ali é uma ficção,
uma invenção, uma construção. Saramago parodia a sacralidade daquele que
talvez seja o mais famoso personagem da literatura ocidental fazendo uso de
uma metanarrativa, invertendo os valores cristãos de verdade única, absoluta
e divina – dogmática. O bordado dessa obra não apresenta um avesso assim tão
irretocável – Jesus Cristo não está dado; ele foi construído. Essa constatação
introduz um jogo de poder na e pela linguagem, pois, como comenta Sant’Anna
(2003, p. 28, grifo nosso), “do lado da ideologia dominante, a paráfrase é uma
continuidade. Do lado da contra-ideologia, a paródia é uma descontinuidade”.
Em relação à nossa vida, também somos construção. Para Butler (2020, p.
55, grifos da autora):

Se a noção de uma substância permanente é uma constru-


ção fictícia, produzida pela ordenação compulsória de atri-
butos em sequências de gênero coerentes, então o gênero
como substância, a viabilidade de homem e mulher como
substantivos, se vê questionado pelo jogo dissonante de
atributos que não se conformam aos modelos sequenciais
ou causais da inteligibilidade.

O gênero traz marcas muito bem “bordadas” em nossos corpos, porque,


de modo geral, sequer percebemos que são construções. Performar, no jogo da
cisgeneridade, é parafrasear, uma vez que “na paráfrase não há tensão entre os
dois jogadores, é como se estivessem jogando o mesmo jogo, do mesmo lado”
(SANT’ANNA, 2003, p. 30). A inteligibilidade de gênero, na sociedade da hete-
ronormatividade ideal, supostamente engendra o avesso perfeito. Mas basta
consultar a definição de “suposição” em um dicionário, para percebermos que
aí há problemas.

Você me enganou direitinho

O ativista e homem trans Lam Matos participou do episódio 11 da primei-


ra temporada do programa TransMissão, apresentado por Linn da Quebrada
e Jup do Bairro. Durante a conversa, ele conta já ter tido relações sociais de
trabalho em que alguém o conhece, primeiramente, como homem, portanto o
trata no masculino, reproduzindo as marcas de gênero da língua portuguesa. | 40
Por algum motivo, essa pessoa fica sabendo que Lam é um homem trans e logo
passa a tratá-lo no feminino. Não fará parte da argumentação essa questão
da diferenciação de gênero na língua; queremos chamar a atenção a uma frase
relatada por Lam: “Você me enganou direitinho”. Na entrevista, o incômodo
se transforma em humor, em deboche, e ele brinca com a questão de a pessoa
interlocutora dirigir-se ao seu órgão sexual (buceta), por isso a concordância se
daria no gênero feminino; mas que a conversa não prosseguiria, dado que o re-
ferido órgão não responderia.
Refletindo sobre essa questão do “enganar”, surgem as perguntas: como
se daria esse “engano”? Haveria uma intenção da pessoa trans em “enganar”
alguém performando um gênero diferente daquele que lhe foi atribuído ao nas-
cer? Para Butler (2019, p. 39-41):

Então, em primeiro lugar e acima de tudo, dizer que o gênero


é performativo é dizer que ele é um certo tipo de represen-
tação; o “aparecimento” do gênero é frequentemente con-
fundido com um sinal de sua verdade interna ou inerente; o
gênero é induzido por normas obrigatórias que exigem que
nos tornemos um gênero ou outro (geralmente dentro de
um enquadramento estritamente binário); a reprodução do
gênero é, portanto, sempre uma negociação com o poder; e,
por fim, não existe gênero sem essa reprodução das normas
que no curso de suas repetidas representações corre o risco
de desfazer ou refazer as normas de maneiras inesperadas,
abrindo a possibilidade de reconstruir a realidade de gênero
de acordo com novas orientações.

Se tomarmos como possibilidade que uma pessoa “engana” alguém quan-


do performatiza seu gênero, tendo ou não intenção, como ela o faz? É neces-
sário que haja um código, marcas construídas e interpretadas socialmente, nor-
mas padronizadas para que isso aconteça. É necessário haver uma linguagem[1]
que chamaremos de linguagem de gênero. Essa linguagem contemplaria, por
exemplo, desde menino veste azul, menina veste rosa, até comportamentos de
dominação e passividade. Poderia ser uma marca de gênero a reprodução de que
apenas meninas bordam, tecem, fazem tricô e crochê, enquanto aos homens
reserva-se o mundo da construção dos textos, das ideias, da razão. Poderia ser
a paráfrase dos “modos de menina”, que reiteram a delicadeza como traço ine-
rente ao feminino, ao passo que nem sequer ouvimos falar de “modos de meni-
no”, uma vez que seriam o padrão já estabelecido como verdade absoluta, ou
seja, prescindem de esforço, de nomeação; mesmo assim, nessa paráfrase de gê-
nero, está o famigerado discurso de que homem não chora. Poderia também ser
o código tácito lido nos pátios escolares, onde é comum ver meninos andando
confiantes, de braços e pernas afastados, ocupando o espaço que lhes convém,
enquanto meninas andam abraçadas, juntas, como que estabelecendo parcerias
para se defender. Poderia ser a separação nas aulas de educação física: meninos
jogam futebol; meninas, vôlei.
E por falar em futebol, essa construção tão frágil e mentirosa da mascu- | 41
linidade é abordada por Marcos Marciano no texto Homem com bolas. O autor
faz uma comparação entre dois ícones do futebol (e da masculinidade): Pelé e
Maradona. Este último é considerado muito macho, homem com H, inclusive
pela própria iteração de alguns comportamentos que podem entrar nessa lin-
guagem de gênero e muito contribuem para a inteligibilidade de gênero de for-
ma binária: espalhar filhos pelo mundo, abusar de substâncias tóxicas, proferir
opiniões políticas fortes e, é claro, alcançar sucesso, muito sucesso em termos
profissionais, em termos de gols (até com a mão!). Também acumular capital,
pois, como comenta Halberstam (2020, p. 20): “Defendo que sucesso, em uma
sociedade heteronormativa e capitalista, equipara-se facilmente a formas es-
pecíficas de maturidade reprodutiva combinada com acúmulo de riqueza”.
Pelé, entretanto, é com frequência ridicularizado em sua própria terra,
sendo tratado no feminino, em publicações na internet, por ter alegado proble-
mas de saúde para não participar da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos
no Rio de Janeiro e por ter arrastado, por anos, o processo de reconhecimento
de uma filha, por exemplo. Esses seriam comportamentos falhos, fracos; logo,
femininos (seguindo a lógica binária dessa linguagem de gênero).
É claro que não podemos deixar de mencionar o componente de racia-
lização que modifica todo o espectro das luzes jogadas para uma análise da
questão. Mais uma vez, porém, é um esforço que escapa das lentes deste texto.
Marciano relata como se deu seu acesso ao futebol da turma do bairro: ele teria
que aguentar socos dos demais. Assim, provaria ter bolas (leia-se, ser homem).
Na parte 2, lemos como a virilidade dominante é código para a validação da
masculinidade pelos pares, como a hierarquia do gênero masculino se baseia e
se calca no falo – o que também comenta Lam Matos no já citado programa.
A parte 3 do texto “Homem com bolas” termina com Marciano (2019c, [s. p.])
concluindo que:

[…] não existem homens no imaginário machista. Existem,


sim, esses desesperados correndo atrás de um totem impos-
sível, grande, veiúdo e incansável. Arremedos de corpos, ar-
rogantes e hipócritas, covardes e mentirosos. Coitados que
dominam a partir da misoginia, que disseminam a ideia de
que homens pensam em sexo a cada dois minutos e estão
sempre preparados, mas que mulheres não pensam e não
fazem. Soldados desesperados e tristes de um exército que
rabisca mulheres para retroalimentarem um desprezo sem
sentido. Desesperados e tristes, cheios de fobia da coisa não
homem, mas não têm um isso de humanidade para compre-
ender que não são melhores que ninguém. Não veem que
ser homem significa mais do que provar a todo instante e a
todo custo que você consegue ter ereções.

Diante desse apanhado de marcas, códigos e normas, dessa linguagem de


gênero cuja origem seria um transbordamento para este texto, mas que são pro-
duzidos e reproduzidos, arremedados e parafraseados, iterados e reiterados com
| 42
veemência por vezes nociva, perguntamos: será que não “enganamos” todos nós,
trans ou cisgêneros, no dia a dia quando fazemos uso performativo da nossa fic-
ção de gênero? Ou, nas palavras de Butler (2019, p. 37): “Se o gênero vem a nós
em um primeiro momento como uma norma de outra pessoa, ele reside em nós
como uma fantasia ao mesmo tempo formada pelos outros e parte da nossa for-
mação”. Essas normas de gênero estão tão encalacradas nos nossos modos de
agir, que é como se essa agência fosse o bordado de avesso perfeito, ou seja, to-
dos os fios em seus devidos lugares e muito bem “enosados” e ocultados.

Não fio, nem desfio – desafio

Nos primórdios do YouTube, quando tudo ainda era mato, para usar a ex-
pressão debochada dos que não são nativos da internet, foi publicado o vídeo A
drag a gozar. Trata-se de uma paródia da canção popular A velha a fiar, em que
uma velha está fiando e diferentes criaturas passam a perturbá-la, ao que parece,
infinitamente. Na versão parodiada, a drag[2] está em seu lugar e diferentes “iden-
tidades” (usamos aspas para evidenciar que não se trata, em sentido estrito, de
identidades, nós mesmos refutaríamos tal afirmação, mas não queremos de modo
algum chamar de estereótipos), de pessoas-tipo, de construtos de um determinado
grupo social em dado recorte temporal, vêm lhe bolinar. São elas o Bofe Escândalo,
a Monette Fashion, a Bichinha Pão com Ovo, a Amiga Moderninha, a Bolachona, o
S@r@dão da Internet, a Elza Truqueira, o Michê do Boa Noite Cinderela, a Barbie,
a Bill do Armário, o Padre Fervido, o Ursão Carinhoso e o Tesão Inflável. Mas, di-
ferente da velha, a drag, em um certo momento, interrompe o fluxo dizendo: “Ai
meu cu”. Enquanto a velha parece fiar para sempre e são as moiras que decidem
quando cortar o fio do destino, ou Penélope tece durante o dia e desmancha o que
fez à noite para postergar um acontecimento que lhe é inevitável, a drag recusa,
nega, desautoriza. Não fia, nem desfia; desafia.
Mas como? No vídeo, ela o faz com um instrumento que fura – um alfinete,
já que o próximo da fila é um objeto inflável e, sem ar, fica destituído. Na “vida
real” (mais uma vez entre aspas porque não se trata de vida real, em que a perfor-
matividade de gênero se manifesta, mas de uma performance de gênero, em que
há uma espécie de roteiro tácito, no qual estão previstos início, meio e fim; talvez
seja melhor dizer na “vida fictícia”), a drag interrompe a reprodução quando paro-
dia, acabando com o limite entre original e cópia; e “a paródia, por estar do lado do
novo e do diferente, é sempre inauguradora de um novo paradigma. De avanço em
avanço, ela constrói a evolução de um discurso, de uma linguagem, sintagmatica-
mente” (SANT’ANNA, 2003, p. 27). Com a licença do teórico recém-citado, a no-
ção de sintagma talvez não seja uma boa amarração para este texto, uma vez que
a drag não segue o fio nem o arrebenta, o que ela faz é um desafio, é perturbação
da ordem preestabelecida, a exposição do avesso da linguagem de gênero – que de
perfeito não tem nada. Nesse sentido, ela se aproxima da metanarrativa; portanto,
seria lícito afirmar que a arte drag faz uso da metalinguagem de gênero? | 43
Vejamos o que acontece no clipe Tchau, de Gaby Amarantos featuring
Jaloo. A letra da canção aborda um dos chamados amores de carnaval, daque-
les passageiros, um “amor de pica”, ou seja, algo do sexo em primeira instância.
O questionamento é: “será que a gente vinga?”. Trata-se de uma relação que
parecia normal, até que as farsas são reveladas. Não seria isto o que fazem as
normas de gênero: fazer parecer com que pertençamos ao gênero masculino ou
feminino, até que sejam reveladas as farsas, as construções, o avesso do pano?
Em termos visuais, logo de cara já somos apresentados a cores berrantes,
exacerbadas. Fazem parte dos corpos perucas, próteses, tecnologias ciborgues
e postiças (HARAWAY, 2009), sem que haja a preocupação de esconder essa
construção. É o que costuma aparecer nas performances de drag queens. As
drags exacerbam a performatividade de gênero, tornando ridículas as suas mar-
cas. Elas expõem o gênero pelo próprio gênero. Ora, quando uma narrativa ex-
põe a própria narrativa, a isso chamamos de metanarrativa, como fez Saramago
em O evangelho segundo Jesus Cristo. Desse modo, torna-se lícito afirmar que
a arte drag se vale da metalinguagem do gênero, uma vez que faz uso das pró-
prias marcas de gênero para expor, comentar, questionar essa construção e,
“atingindo a paródia, liberta-se do código e do sistema estabelecendo novos
padrões de relações das unidades” (SANT’ANNA, 2003, p. 28).
Retomando a análise do vídeo, os gêneros masculino e feminino podem
até estar marcados e explicitados em quase todas as personagens, mas o são
por meio de marcas exageradas. Inclusive, há uma pessoa com três seios, o que
é popularmente chamado de “treta” (três tetas), prenunciando o que está para
acontecer. O seio é uma marca historicamente atribuída ao gênero feminino e
ali se encontra, três vezes marcado, em um corpo que muito provavelmente foi
designado como do gênero masculino no nascimento, dado que se vale de um
adereço no pescoço provavelmente para esconder o pomo-de-adão, parte do
corpo atribuída a esse o gênero, e também pela visível falta de gordura epidér-
mica, pela “pele solta sobre o músculo” (HOMEM, 2013, [s. p.]).
Em relação ao “homem” do clipe, podemos dizer que sua virilidade au-
mentada é uma marca de gênero, além da posse de uma caminhonete, que pode
ser lida como uma extensão do falo.
A narrativa não é linear, fazendo uso de uma volta no tempo para mos-
trar outro aspecto da história, outro enquadramento. Há uma personagem com
gênero não explicitamente marcado, talvez o único código visualmente inteli-
gível seja a presença de um pouco de barba malfeita. Essa personagem repete a
história da primeira com o “macho”, mas por outro viés. Há uma simultaneidade
de fios, tão sintéticos quanto a mais extravagante peruca, que se encaminham
para um grandessíssimo “não”.
O desfecho não se dá pela resolução de conflitos, mas pela total ruptura
com a narrativa. Alguém envenenou a bebida e, quando a palavra “tchau” é
cantada pela segunda vez, todas as pessoas ali envolvidas começam a tossir,
passar mal e morrem. A hipérbole da negação vai ao encontro do que diz Hal-
berstam (2020, p. 144): “Esse ethos específico de resignação ao fracasso, essa | 44
falta de progresso, essa forma específica de escuridão, essa negatividade toda
[...], tudo isso pode ser chamado de estética queer”. Tom Zé, ainda que não se
enquadre na estética queer, nos dá pistas sobre o que seria isso: “Eu tô te expli-
cando pra te confundir / Eu tô confundindo pra te esclarecer”. E, quando olha-
mos pelas lentes dos eixos parafrásico e parodístico, propostos por Sant’Anna
(2003, p. 32-33):

São formas de conhecer o mundo. Por isso posso penetrar


livremente em comparações até místicas e teológicas, para
dizer que a paráfrase pretende ser a linguagem do Paraíso.
Por quê? Porque ela é supostamente a linguagem do homem
antes da queda, quando tudo era igual e indiferenciado. Já
a paródia é um ruído, a tentação, a quebra da norma. Ética e
misticamente a paródia só poderia estar do lado demoníaco
e do Inferno. Marca a expulsão da linguagem de seu espaço
celeste. Instaura o conflito. Mais ainda: é um trabalho hu-
mano, um esforço de condenados pensando o discurso ce-
lestial paterno.

É o que faz Lil Nas X no clipe de Montero (Call Me By Your Name). Se é


que é possível estabelecer um fio narrativo, embora já se tenha argumentado
aqui pelo desafio, a personagem do clipe se encontra inicialmente no Paraíso bí-
blico (façamos aqui parênteses para expor que todas as personagens são inter-
pretadas por Lil Nas X, ou seja, ele assume todas as formas). Porém, a serpente
surge para perturbar o sossego, insinuando-se uma relação sexual íntima entre
os dois. A seguir, o cenário é o de um julgamento, parecido com um tribunal
grego, com deuses do Olimpo em uma fotografia e figurino que lembram o fil-
me Maria Antonieta, de Sofia Coppola. Há uma citação talvez do Coliseu, cla-
mando por uma condenação que entretenha a multidão. A seguir, parece que o
personagem foi absolvido de suas culpas, pois está ascendendo e há um anjo à
sua espera. Contudo, vemos subir um poste – um falo – ao qual a personagem
se agarra e desce numa performance hipersensual de pole dance. Por opção, a
personagem passa por diversos círculos até aterrissar no inferno, dirigindo-se
ao trono do “famosérrimo” anjo caído, Lúcifer. Ainda no sentido de negação,
ele não entra em embate, mas faz outra sensualíssima lap dance no colo do
próprio Diabo, que, seduzido, se deixa enganar e acaba sendo destronado.
O rapper nos apresenta ele próprio travestido de signos que não conse-
guimos definir como marcas de um gênero ou de outro. Se, como já vimos, as co-
res azul e rosa são códigos para indicar masculino e feminino, quem são as três
personagens presentes no clipe por volta de 1’16’’? Duas delas portam perucas
azuis, outra, uma cor-de-rosa. Uma delas está com vestido, mas azul; os códigos
tradicionais de gênero são ali desmanchados, não é possível saber a que gênero
pertenceriam aqueles sujeitos. Voltando ao começo: que gênero performatiza
a serpente?
Não há dúvidas de que se trata de arte queer e de que ali estão retrata-
dos sujeitos queer. Como diz Halberstam (2020, p. 55): “As pessoas queer não | 45
são representadas como singulares, mas sim como um conjunto de tecnologias
de resistência que incluem coletividade e imaginação e um tipo de compromis-
so situacionista que surpreende e choca”. Lil Nas X também parodia o mito de
Adão e Eva, debocha da figura dos deuses, satiriza a oposição entre bem e mal,
Céu e Inferno. Para isso, ele se vale da estética queer, da escolha por formas
não hegemônicas e não reprodutivas, inclusive manifestando que deseja Shoot
a child in your mouth while I’m ridin’ (Lançar um filho na sua boca enquanto
cavalgo, em tradução livre). Semente que não cai em terreno fértil, não vinga.
Esse ser do vídeo tem consciência das mentiras, das farsas, das construções, e
acaba proferindo as palavras: I don’t care if you lyin’ (Não tô nem aí se você está
mentindo, em tradução livre).

Considerações finais

Começamos pela aurora e terminamos na dita escuridão infernal. Rom-


pemos tratados, traímos ritos. Tentando fazer laço – ou aliança – com Ney
Matogrosso e seu sangue latino, assumimos pecados. Invertemos, revertemos,
subvertemos a moral sexual.
Nosso trajeto nunca foi linear, mas foi alinhavado por pontos diversos,
quiçá soltos, sem que se fixasse uma imagem definitiva. Usamos a alegoria do
fio e as noções de paráfrase e paródia para argumentar que códigos e marcas
constituem uma linguagem de gênero e que dissidentes do binarismo masculi-
no/feminino se valem de uma metalinguagem de gênero para expor a farsa, a
construção social, a inteligibilidade do gênero na nossa sociedade. Por vezes, te-
cemos comentários sobre a nossa própria construção do texto, num movimento
de uma “linguagem que fala sobre outra linguagem” (SANT’ANNA, 2003, p. 8).
Para interromper estas tranças ainda sem formar um penteado, no ema-
ranhado de nós da sociedade, quem parodia ousa exercer autoria, ousa romper
com o contínuo e fazer história ao manifestar um eu. Brincando com a noção
de sucessão, terminemos este texto com palavras de Tom Veloso em parceria
com Hiran Santos e Matheus Gonçalves, já que o abrimos com palavras do pai
daquele, Caetano Veloso: “Se ficou com gosto de quero mais / É que ainda não
acabou”.

Notas
1.
Entendemos linguagem como aquilo que foi marcado em um suporte físico para seja possível ler
algo, ou seja, para que aconteça a atualização da virtualidade de um código construído previa-
mente e compartilhado por dado grupo social em determinado intervalo de tempo cronológico.
| 46
2.
Thália Bombinha. É possível conhecer mais seu trabalho em seu perfil no Instagram: https://
www.instagram.com/thaliabombinha/.

Referências

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de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

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| 47
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ponível em: https://blogprisma.com.br/homens-com-bolas-parte-3-de-3/. Aces-
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SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. 7. ed. São Paulo:
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SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia


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TELLES, Lygia Fagundes. A caçada. In: TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios. Rio
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TRANSMISSÃO. Entrevistadoras: Linn da Quebrada e Jup do Bairro. Convidado:


Lam Matos. Temporada 1, episódio 11. Brasil: Globoplay, 21 ago. 2019. 1 vídeo
(12 min). Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/8699055/. Acesso em: 7
maio 2021.

| 48
Diogo da Costa Ruffato é licenciado em Letras pela Universidade de Passo Fun-
do (RS). Especialista em tradução do inglês pela Universidade Estácio de Sá e em
escrita criativa pela PUC-Minas. Publicou O livro Fúcsia – da linguagem tripar-
tida e Exercícios de ser e não ser, pela editora Urutau, e Do pó e sua sátira Do
pau pelo selo Leme da editora Impressões de Minas.

| 49
Fábio
Garcia
Ribeiro
Bixa travesty:
Linn da Quebrada,
as insurgências do
corpo e reflexões
sobre a identidade
de gênero
“Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:


Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.”

(Lisboa, fevereiro de 1914)


Mário de Sá Carneiro
Introdução: “bixa” preta

Onde habitam as insurgências de um corpo? Dentro deste sistema de po-


der que limita, regula, oprime e molda o sujeito em normatividades, onde será
que um corpo pode provar a sua própria desestabilização? Como um corpo mer-
gulha em suas múltiplas identidades para provar o seu próprio desejo, conhecer
a sua própria sexualidade, entender o caleidoscópio que se forma toda vez que
ele tenta inutilmente se definir?
A questão dos gêneros moldados ou reduzidos ao binarismo é uma das
feridas sociais que abalam corpos que não estão confortáveis diante de sua
anatomia ou de sua sexualidade. Fomentar uma reflexão acerca desse tema
é ferramenta para ofertar um pouco de entendimento às vidas dissidentes do
gênero e entender a própria compreensão de coexistir.
Há um poder que vocifera quando corpos marginalizados buscam o seu
direito de aparecer e viver. Esse poder regulatório quer esconder debaixo dos
tapetes sociais a sua própria hipocrisia, a hipocrisia do desejo e daquilo que foge
às normas patriarcais e machistas.
Dentro das teorias políticas pós- identitárias, o estudo queer é utilizado
como forma de refletir e explorar como os processos de gênero precisam ser rei-
terados e questionados em suas materializações. No livro Um corpo estranho, a
autora brasileira Guacira Lopes Louro busca um entendimento da definição am-
pla do que é ser queer: “colocar-se contra a normalização – venha ela de onde
vier”. “Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou
tolerada, e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturba-
dora” (LOURO, 2004, p.38-39).
Faz-se necessário refletir sobre a nossa relação de coexistência. Dian-
te das subjetividades, todo o processo de auto-observação se torna relevante
para a vivência social. A busca do sujeito pelo seu reconhecimento percorre
inevitavelmente o reconhecimento do outro. As interpelações acerca das iden-
tidades de gênero podem nos oferecer um pouco de lucidez quando voltamos o
olhar para o direito de aparecimento de corpos que rompem essas barreiras do
binarismo e das normalizações que oprimem vidas e ditam, de maneira tacanha,
como devemos ou não viver.
Pretendo buscar entendimentos, neste texto, sobre como esses seres
dissidentes tomam o seu corpo como arma para reinvidicarem o direito de ser,
aparecer e viver. Por isso, utilizarei como estranhamento - aqui como sinônimo
de inconformidade com situações de repúdio - o documentário Bixa travesty,
da cantora, compositora, atriz, ativista social e performer Linn da Quebrada e
passearei por teorias de estudiosos da teoria queer.

| 51
Bixa travesty: o corpo como arma

A artista Linn da Quebrada é Lina Pereira, uma transexual em constante


processo de mutação, que nasceu na periferia de São Paulo, em 1990. Linn fi-
cou conhecida em 2016, ao lançar o vídeo Enviadescer na plataforma digital You
Tube. A partir desse feito, o sucesso veio para a artista de modo progressivo.
Atualmente, possui um programa televisivo junto com a artista Jup do Bairro no
Canal Brasil, intitulado Transmissão, além de ter participado da minissérie global
Segunda chamada, dos filmes Corpo elétrico, Vale night, Sequestro relâmpago e
do documentário Meu corpo é político.
Criada pela tia até a adolescência, Lina já foi evangélica e sentiu no corpo
as marcas da exclusão ao ser desassociada da igreja Testemunha de Jeová pelo
fato de não se moldar às normas, situação que não causa nenhuma surpresa, vis-
to a relação desconfortável de algumas instituições religiosas com as manifesta-
ções divergentes dos corpos.

Eu fui expulsa da igreja (ela foi desassociada)


Porque uma podre maçã deixa as outras contaminada
Eu tinha tudo pra der certo e dei até o cu fazer bico
Hoje, meu corpo, minhas regras
Meus roteiros, minhas pregas
Sou eu mesmo quem fabrico (A lenda – canção)

Mesmo com toda a culpa religiosa que insiste em sufocar e ditar o que
pode ou não ser feito ou pensado, Lina assumiu a sua transexualidade e hoje é
uma Bixa travesty, título que dá nome ao documentário produzido por Claudia
Priscilla e Kiko Goifman.
O filme, estreado em 2018 no festival de Berlim, foi vencedor do prêmio
Teddy Award na categoria documentário - competição dedicada ao cinema de
temática LGBTI+. Em uma abordagem temática, que mescla cenas da vida priva-
da e pública, Linn da Quebrada desconstrói questões de gênero, raça e classe e
utiliza o seu corpo como arma para buscar o direito de não ser homem, nem mu-
lher, e sim, uma trava feminina.
É válido salientar aqui a força dada ao título do filme Bixa travesty. A for-
ma não normativa (usa-se as letras X e Y no lugar de CH e I) brinca com os cro-
mossomos genéticos e ao mesmo tempo é utilizada para designar esse nome que
é dado a quem ocupa um “lugar que é feminino, mas que tem também um lugar
de bicha” (Bixa travesty, 2018, 14:50’). Cultivar esse espaço do feminino é algo
que se deseja enquanto bicha travesti, senhora de seu corpo, de sua sexualidade
e desejo. Para Linn, em uma cena inicial do filme, enquanto conversa na cozinha
com a sua mãe e duas amigas, uma delas a cantora Liniker, é político as travestis
pretas, brancas, gays, sapatões serem felizes e amadas. Acreditar no corpo e na
existência é fator de amor próprio. | 52
“Eu gosto mesmo é das bichas, das que são afeminadas, das que mostram muito
a pele, rebolam, saem maquiadas”

O funk nacional é um estilo musical que muitas vezes trouxe em sua


linguagem discursos machistas e objetificações da mulher. Linn da Quebrada
afirma, em uma das cenas de Bixa travesty, que se apropriou desse discurso
machista que aponta o dedo, que nomeia coisas, objetos e pessoas para criar a
sua própria obra.
Por que não romper com esse discurso machista do funk e/ou se apropriar
dele para as reivindicações do corpo trans? Linn da Quebrada encara o seu cor-
po como uma arma política para o direito de viver. Ao transformar-se em ou-
tras, Linn provoca e evoca essa insurgência do corpo, essa pluralidade identitária
como território para o pertencimento.
O corpo utilizado como espaço geográfico que transmuta, estranha, trans-
forma, é palco para que a artista quebre barreiras de gênero, sexualidade e dese-
jo. A arqueologia do corpo é mapeada de forma a trazer à tona significações de
corporeidade e formas diversas de vida.

Todas essas quebradas fazem e fizeram parte de mim. En-


tão, eu acho que tem essa questão geográfica, mas acho
que eu penso o meu próprio corpo como esse território ge-
ográfico, como esse território a ser explorado, como essas
quebradas; ainda pensando o corpo como essa arqueologia
mesmo, como esse processo de escavação, de descobertas,
de territórios, de rachaduras que se fazem, de terremotos
que modificam com as coisas, que transformam, que me fa-
zem outra, mesmo (BIXA TRAVESTY, 2018, 35:00’).

Linn da Quebrada utiliza o seu discurso para se representar e reivindicar


direitos, mas também fala em nome de mulheres trans, lésbicas, travestis, gays,
ciborgues e tantos outros gêneros que se formam através do território geográ-
fico que é seu por direito: o corpo – esse elemento que precisa ser mapeado e
questionado para que vidas não-vivíveis se tornem reconhecidas.
Utilizar o corpo para reivindicar espaços, para compor protagonismos, para
exercer direitos, para compor subjetividades... Ser o que há de feminino, masculi-
no e também fugir às normas e binarismos.
Paul Beatriz Preciado chama esse processo de encruzilhada, “porque ela é
o único lugar que existe. Não existem margens opostas. Estamos todos na encru-
zilhada.” (PRECIADO, 2019, p.30).
Judith Butler, em sua obra Problemas de gênero, afirma que o “O próprio
sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis ou permanen-
tes” (BUTLER, 2019, p.18). Ora, essa representação política do corpo não pode ser
resumida a um simples binarismo. As identidades podem ser reconstruídas atra-
vés de subversões dessas estruturas de poder.
| 53

“A minha pele preta é meu manto de coragem, impulsiona o movi-
mento”

Linn da Quebrada utiliza a performance do palco e a voz para nos mostrar


que o gênero pode se rebelar e exigir o direito de existir. Através da dramatização
musical que Linn envolve o seu público. Em meio a roupas justas que mostram as
curvas de seu corpo e maquiagem carregada, Linn estimula o movimento corpo-
ral para provocar cenas sexualizadas. Ela compartilha o palco com outra artista
trans, Jup do Bairro, e é esse um de seus territórios de aparecimentos e protestos.
Durante a apresentação da música A lenda, aos 4:52’ do documentário,
podemos assistir a um furacão no palco, que rebola, provoca e estimula reflexões
acerca dos versos:

Eu tô bonita?
Tá engraçada
Eu não tô bunita?
tá engraçada
Me arrumei tanto pra ser aplaudida
mas até agora só deram risada (A lenda)

Pode-se perceber pelos versos que, muitas vezes, travestis, trans e sujeitos
queers são palco para o escárnio de uma sociedade desigual, que não compreen-
de a liberdade do desejo e das manifestações identitárias. Quando Linn clama a
sua vaidade e beleza, ela fala em nome de todas aquelas pessoas excluídas de
seu direito de aparecer, de transitar por ruas sem sofrer abusos psicológicos e/ou
físicos, ela evoca um espaço de pertencimento social democrático.
Diante da plateia, Linn da Quebrada está abarcando corpos marginaliza-
dos e promovendo para si e para os fãs o direito de aparecer, de utilizar a sua
performance para o reconhecimento.
Judith Butler, em Corpos em alianças e a política das ruas nos fala sobre
essa necessidade de agrupamento de vidas precárias para o direito de aparecer:

Podemos encarar essas manifestações de massa como


uma rejeição coletiva da precariedade induzida social e
economicamente. Mais do que isso, entretanto, o que ve-
mos quando os corpos se reúnem em assembleia nas ruas,
praças ou em outros locais públicos é o exercício – que se
pode chamar de performativo – do direito de aparecer, uma
demanda corporal por um conjunto de vidas mais vivíveis
(BUTLER, 2015, p.31).

Quando essa plateia se une à artista em comunhão, temos muito mais


que um evento musical, há um manifesto político de expressões de identidades,
há resistências que se juntam para lutar pelo exercício da liberdade de existir, | 54
de viver. É o que Butler chama de política das alianças (2015, p.77), quando
pessoas se unem, cada uma com a sua singularidade em um gesto generalizado
para lutar contra a precariedade.

“Ela tem cara de mulher, ela tem corpo de mulher, ela tem jeito, tem bunda, tem
peito e o pau de mulher!”

Nos 24:30’ do documentário, Linn e Jup do Bairro estão dentro de uma


sauna em uma conversa que sugere reflexões relevantes para a ação de corpos
não-binários. Linn aborda a questão que, durante alguns anos atrás, a questão de
gênero estava muito ligada ao processo de feminilização do corpo. Muitas mu-
lheres trans estavam ligadas aos implantes de silicones e hormônios, depilações e
trejeitos femininos e, atualmente, essa barreira tem sido rompida. Pode-se pensar
nas questões de travestilidade, masculinidade e feminilidade sem a efetuação de
transformação apenas do sujeito masculino/feminino ou feminino/masculino.
A artista Jup do Bairro, nessa mesma conversa, contesta a validação do
corpo como existência. Jup se abre diante do processo de algumas pessoas não
a reconhecerem como ela é, quem ela é... Tornar-se uma figura mitologicamente
engraçada é um desconforto, visto que as pessoas aproximam dela não de forma
afetiva, mas sim, apenas pelo seu lado andrógino e caricato. Diante dessas posi-
ções, pode-se refletir sobre como as estruturas de poder, mesmo diante de insur-
gências, ainda atuam sobre determinados corpos.
Sexo e gênero possuem significações diversas, visto que um gênero mas-
culino não necessariamente precisa vir de um corpo visto como masculino, nem
um gênero feminino precisa ser encaixado em um corpo visto como o de mulher.
Sabemos que entre o sexo biológico e os construtos sociais de gênero existem di-
ferenciações e, em última instância, que o próprio sexo biológico nada mais é que
uma construção cultural. Segundo Butler (2003, p.26) “o gênero é culturalmente
construído: consequentemente, não é o resultado causal do sexo nem tampouco
tão aparentemente fixo quanto o sexo.”
Para uma pessoa se identificar com o seu gênero, é necessário que essa
identificação encontre afetividade. Um gênero não se limita apenas às corpori-
ficações biológicas e sim, identifica-se com questões de personalidade, valores,
individualidades, desejos, personalidade. Deve-se levar em conta as percepções
de determinado sujeito acerca de sua subjetividade, das construções identitárias
e escolhas que esse sujeito faz, das perfomatividades que esse sujeito se reitera
para se compor.
Podemos entender, diante disso, que existem diversas possibilidades de gê-
nero, que ultrapassam o masculino e feminino, como citado por Butler (2003, p.26).

Se o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo


sexuado, não se pode dizer que ele decorra de um sexo des-
ta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico, a distinção
sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre cor-
pos sexuados e gêneros culturalmente construídos. Supondo | 55
por um momento a estabilidade do sexo binário, não decorre
daí que a construção de “homens” se aplique exclusivamen-
te a corpos masculinos, ou que o termo “mulheres” interpre-
te apenas corpos femininos. Além disso, mesmo que os corpos
pareçam não problematicamente binários em sua morfologia e
constituição (ao que será questionado), não há razão para su-
por que os gêneros devam ser permanecer em número de dois.

Se o gênero é um construto social, os gêneros fluidos (designação para


pessoas que passeiam entre o neutro, o masculino e o feminino de forma variável)
também devem encontrar espaços de representação dentro das relações e exis-
tências sociais para o seu pertencimento. Isso é salientado aos 37:20’ do filme, na
seguinte fala de Linn:

Eu acho que eu sou a trava que tem medo do escuro. Acho


que é disso que eu tenho medo. Tenho medo do escuro, te-
nho medo de ficar sozinha ou medo de não pertencer. Eu acho
que pelo medo de não pertencer eu acabei inventando um lu-
gar para mim mesma, para que eu pertencesse, pelo menos, a
mim. Já que não tem um lugar onde me cabe, então que eu
inventasse esse espaço, um espaço que me coubesse, mas que
também é temporário. Não quer dizer que vou caber aqui para
sempre. Logo, eu acho que vou precisar ir para outros lugares
(BIXA TRAVESTY, 2018, 37:20’).

“Linn da quebrada vem dos cacos de um espelho que antes refletia um homem”

Aos 47 minutos de documentário, Linn está revendo fotos e vídeos do ar-


quivo de sua amiga Núbia. Em uma cena que ilustra uma intimidade de amigas, as
duas reveem momentos vividos em grupo. Ali estão imagens e cenas que contam
histórias, relatam a trajetória da amizade e da própria transformação de Lino em
Linn da Quebrada. Podemos passear os olhos por nus da artista, como a cena em
que Linn tenta introduzir o pênis em uma bolha de sabão ou o momento em que
ela explora o seu ânus (esse vídeo acabou resultando em uma foto que ilustra o
seu disco Pajubá, de 2017, dentre outras).
Através desse arquivo podemos também visualizar a época em que Linn
sofreu com um câncer nos testículos, em 2014, aos 24 anos. As cenas, embora
gravadas com material amador, representam o artístico e toda a reprodução de
um corpo doente que resiste, utilizando a arte como ferramenta para romper
a tristeza, o tédio e suportar o momento. No processo de perda dos cabelos e
das internações hospitalares, uma das cenas que chamam a atenção é o relato
reproduzido:

O câncer, ele de certa forma sou eu, ele é parte de mim.


São células em mim que não querem morrer e que continu-
am a crescer, e daí me fez tanto pensar metaforicamente
e concretamente, mas me trazer mais concretamente para
o corpo, do que há em mim que não quer morrer. E a quem | 56
pertence esse corpo doente? Os médicos e as médicas, o
hospital passa a ter um controle, uma disciplina, um poder
sobre o meu corpo, a decidir sobre o meu corpo, sobre o meu
tratamento, a decidir qual é o estado de saúde que eu devo
atender, em que eu devo estar. As pessoas que estão próxi-
mas a mim também passam a ter um pouco mais de controle
e a querer decidir sobre o meu corpo, sobre quais melhores
decisões devo tomar (BIXA TRAVESTY, 2018, 50:00’).

O câncer desistiu de tomar o controle do corpo dessa mulher depois de


seis meses de quimioterapia, pois sempre há resistência e a sujeição também é
uma forma de produzir. Foi ali, nos quartos de um hospital oncológico, que Linn
começou a compor para se fazer ouvir e para se sentir viva... Foi ali que Linn criou
resistência e ressignificou em seu corpo, em seus desejos e anseios; foi ali que ela
transformou a sua fragilidade em potência. Em 2017, estava curada da doença.

“E que amanhã, amanhã seja diferente para elas”

Nos últimos minutos do documentário, a câmera foca o discurso de Linn da


Quebrada, que aconselha, de forma espetacular, que será sempre o seu próprio
transtorno, que apesar de receber o mínimo de afeto e de reconhecimento de
uma vida vivível, não será classificada dentro de patologias de gênero. Linn afir-
ma que continuará sendo o transtorno para as teses daqueles que insistem ainda
em classificá-la e que continuará o seu processo de transmutação, pois sua vida
sempre está em obra, e que por muito tempo será um transtorno para aqueles
que teimam enquadrá-la em normas.

Considerações finais

O desenvolvimento do presente trabalho teve por finalidade refletir sobre


como os corpos dissidentes do gênero buscam, em seu cotidiano, ser reconheci-
dos dentro de seus processos performativos.
Através do olhar de Linn da Quebrada, pode-se constatar que a resistência
dos corpos, mesmo apesar de inseridos dentro de um sistema de poder, mesmo
que subvertidos dentro desse mesmo sistema, podem ser um armas para colocar
sob os holofotes as questões de gênero.
Empoderar-se diante das diversidades e pluralidades identitárias e cor-
porais é fator relevante para o exercício da perfomatividade. Inserir-se em um
mundo que insiste em rotular, oprimir e normatizar de maneira que subverta, re-
formule onde barreiras são quebradas são papéis primordiais para a nossa própria
condição de seres em constante transformação.
Através do exercício performático de Linn da Quebrada, pode-se pensar
em como os “exilados” do gênero utilizam o seu discurso para estar e pertencer
a um mundo que é seu por direito.
| 57
Referências

BIXA TRAVESTY. Direção: Claudia Priscilla e Kiko Goifman. Produ-


ção: Evelyn Mab e Kiko Goifman. Intérprete: Linn da Quebrada, Jup
do Bairro. Roteiro: Claudia Priscilla, Kiko Goifman e Linn da Quebra-
da. Fotografia de Karla Meneghetti. Gravação de Caetano Brenga
Bitencourt, Fábio Braga, Kiko Goifman, Nu Abe. São Paulo: Arteplex,
2019. DVD.

LOPES LOURO, Guacira. Um corpo estranho: Ensaios sobre sexuali-


dade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 89 p.

PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: Crônicas da traves-


sia. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da


identidade. 18. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para


uma teoria performativa de assembleia. 4. ed. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2019.

QUEBRADA, Linn da. Pajubá. São Paulo: YB Music, 2017.

Fábio Garcia Ribeiro é graduado em Letras pelo Centro Universitário UNISEB.


Pós-graduando em revisão de textos pela PUC-Minas.
| 58
Fernando
Antônio
Siqueira
Ferreira
Cu: o centro do
mundo
Adentrando a caverna
sagrada

O livro Pelo cu: políticas


anais, escrito pelos auto-
res Javier Sáez e Sejo Car-
rascosa (2016), traz | 25
um bom panorama para adentrar nessa caverna sagrada, portadora de mistérios
mil que é o cu. Segundo os autores, a mulher é construída socialmente como um
ser penetrável, “deve procriar, satisfazer o homem, ser passiva, humilde, dócil,
boa mãe, reduzir a sexualidade à sua vagina” (2016, p.30), que é concebida como
o buraco, o lugar a ser penetrado. Por esta lógica, o homem que por ventura for
penetrado, é equiparado a esse estatuto inferior de mulher, logo, “se o homem
penetrado desfruta com isso, é alguém que o busca, deseja, valoriza... então o
castigo e a desonra social são totais” (2016, p. 32), ou seja, um “homem” pene-
trado agride sua própria virilidade, se rebaixa ao feminino, perde seu “status
superior”, pois um homem deve ser impenetrável. Sendo assim, não existe um
homem que, depois de utilizar seu cu passivamente, devém “mulher”. O que
existe primeiro são cus, penetráveis ou não penetráveis e, em função disso, o cu
“produz” o sujeito mulher e o sujeito homem.
Seguindo pelas pregas vertiginosas do cu, no ano de dois mil e quatorze,
o então deputado, Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil em 2021, desa-
fortunadamente, disse em uma entrevista à TV Câmara sobre a criminalização
da homofobia, “Não é porque faz sexo pelo órgão excretor que tem de fazer
uma lei para ele”[1], uma ofensiva endereçada a esses sujeitos, às bichas que
querem ter seus direitos civis por meio do cu.
Um gel lubrificante[2], muito conhecido por ser usado nas relações anais,
traz em suas indicações de uso “para te ajudar a sentir mais conforto e prazer,
é indicado em casos de falta de lubrificação vaginal decorrentes de problemas
hormonais ou uso de medicamentos e também para trazer novas sensações em
suas relações”. Incrivelmente, em nenhum momento, a palavra anal é citada,
mesmo que grande parte dos clientes da marca sejam as bichas. Talvez, com
muito esforço e imaginação, pode-se compreender, nas entrelinhas deixadas
pelas palavras “novas sensações”, alguma referência ao coito anal.
Segundo o relatório do Grupo Gay da Bahia[3], umas das maiores organi-
zações para os direitos LGBTQIA+ do país, no Brasil, a cada 19 horas, uma pessoa
gay, lésbica, trans ou travesti é assassinada. Uma amarga realidade para um país
que se vende como o berço da diversidade, mas poderia ser também, o país da
hipocrisia, como suscita Trevisan sobre certas relações homossexuais mantidas
no “sigilo”.

(...) grande parte de nossos banheiros públicos (masculinos),


onde os machos ostentam entre si fartas ereções (e iniciati-
vas libidinosas) tão fáceis e fartas quanto sua mesma capa-
cidade em fora dali vangloriar-se de suas conquistas femi-
ninas”, uma realidade muito bem conhecido pelas “bixas” e
pelos “machos” do Brasil, esse país que se diz “impenetrável
(TREVISAN, 2018, p.40).

O que esses três fatos trazem à tona é a ratificação de uma praga de di-
mensões bíblicas que há muito assola estas terras: o ódio lgbtbófico, herança de
uma colonização cristã que sempre abominou o sexo fora dos fins da procriação, | 60
ainda mais o sexo entre pessoas de sexualidades dissidentes. Muito dessa perse-
guição tem um alvo, há muito estabelecido, o cu: esse buraco, considerado por
grande parte da sociedade, como merecedor de desprezo, medo, fascinação, ódio
e muito desejo. Segundo Saez e Carrascosa, o cu é “o grande lugar da injúria, do
insulto”, é o que se pode perceber em várias expressões de nossa linguagem coti-
diana, assim como na expressão suscitada pelo ignóbil deputado. Na penetração
anal, o “sujeito passivo está no centro da linguagem, do discurso social, como o
abjeto, o horrível, o mal, o pior” (CARRASCOSA e SAEZ, 2016, p. 27).
Mesmo que o sexo anal e toda a gama de prazeres anais não sejam um
atributo somente das bichas, é somente a elas relegado o peso de sustentar
a prática de “tamanho pecado”, ainda mais porque se deliciam e buscam essa
prática. Saez e Carrascosa (2016, p. 29) nos trazem uma explicação bem interes-
sante a respeito dessa afirmação.

Muitos homens hetero penetram analmente suas mulheres


(de repente este ato já não é tão asqueroso, mas preferem
não falar dele); muitas mulheres penetram em seus maridos
(disso se fala ainda menos); muitos homens penetram outros
homens em praias, parques, banheiros, saunas, e pelo fato
de serem ativos, não se consideram gays, nem bichas, nem
sodomitas, nem homossexuais: bichas são os penetrados.

Uma cultura fundada por alicerces patriarcais, criadora de cus impenetrá-


veis, forjou e alimentou o ódio contra aqueles que praticavam o “crime contra
natura” ou o “pecado nefando”, ambas designações de crimes que eram julga-
das na inquisição, Trevisan traz o seguinte relato da denúncia de um rapaz, fei-
ta, é claro, sob forte coerção, ao Santo Ofício, contra um sacerdote, no século
XVI. A riqueza de detalhes do relato e sua minuciosa descrição denotam uma
grande curiosidade sobre o ato do pecado. Poderia até ser facilmente confun-
dida com um conto erótico:

(...) se deitou com a barriga para baixo e disse a ele confes-


sante que se pusesse em cima dele, e assim o fez e dormiu
com o dito clérigo carnalmente por detrás, consumando o
pecado da sodomia, metendo seu membro viril desonesto
pelo vaso traseiro do clérigo como um homem faz com uma
mulher pelo vaso natural por diante, e este pecado consu-
mou tendo polução (TREVISAN, 2018, p. 143).

O “pecado nefando” de outras épocas, pelas palavras do então deputado,


continua de alguma forma a vigorar, pois através de suas palavras, o sexo anal
torna-se sujo. Ao associá-lo à excreção, configura-se uma outra forma de dizer
“pecado nefando” ou “crime contra natura”; tornar os corpos bichas em corpos
abjetos. O comentário é uma agressão, uma forma de punição aos sujeitos que
desejam ser penetrados, àqueles que abdicam de sua virilidade, que praticam
este sexo “contra natureza”, porque esses sujeitos borram certas fronteiras ex- | 61
tremamente delimitadas pela heteronormatividade. Ao mesmo tempo em que
há negação de uma experiência dita “suja”, o sexo anal, há afirmação de uma
outra dentro da ordem, o “sexo limpo”, o sexo dentro da heteronormatividade.
A autora Judith Butler, ao dialogar com a Mary Douglas, traz o conceito de po-
luição. Quando se quebra, destrói, expande certos limites do corpo socialmente
hegemônico, segundo Douglas, “a poluição é um tipo de perigo” que costuma
acontecer onde há “fronteiras da estrutura, cósmicas ou sociais” muito bem
definidas. Conforme a autora, a “pessoa poluidora” está sempre errada, pois ul-
trapassou alguma fronteira. Nesse sentido, a homossexualidade já se apresenta
com um “status poluído”.

(...) as ideias sobre separar, purificar, demarcar e punir as


transgressões tem a função principal de impor um siste-
ma a uma experiência intrinsecamente desordenada. So-
mente pela exageração da diferença entre dentro e fora,
acima e abaixo, masculino e feminino, com e contra é que
se cria uma aparência de ordem (BUTLER apud DOUGLAS,
2003, p. 188).

Sendo assim, a autora sugere que todos os sistemas sociais são vulnerá-
veis em suas margens e que todas as margens, em função disso, são considera-
das perigosas. A homossexualidade, essa prática que cria corpos penetráveis,
guarda em si quase que uma vocação para borrar e atacar essas frágeis frontei-
ras, e dessa forma, acaba sustentando a alcunha de incivilizada e antinatural.
Enquanto o coito, com a finalidade de procriação, confere aos que o praticam
um status natural, aproximando os indivíduos a Deus (sendo Deus visto como a
heteronormatividade, um sistema de conduta sagrado que deve ser respeitado
e replicado). “Deus, portanto, criou os seres humanos à sua imagem, à imagem
de Deus os criou: macho e fêmea os criou” (Gênesis 1:27). O coito anal traz à
tona a figura do Diabo, aproximando quem os pratica a esta figura lasciva e mis-
teriosa. Trevisan nos explica o sexo “contra a natureza”, sendo aquele em que
o esperma masculino não é despejado no “vaso natural da mulher”. Por essa
perspectiva, a sodomia, seria um pecado gravíssimo, por trazer à procriação o
máximo de desordem possível. O pecado era tão grave que não se prescrevia.

Como se tratava de um desvio ditado diretamente pelo


demônio, a Igreja e a Inquisição associavam sua prática
com a bruxaria e as heresias dos cátaros e templários. Em
suas confissões aos verdugos inquisitoriais, muitas bruxas
confirmavam o pressuposto eclesiástico de que o demônio
preferia possuí-las pelo ânus, sendo também essa a forma
de relação sexual predileta durante as orgias do Sabbat
(TREVISAN, 2018, p.118).

Sendo Deus o senhor da ordem, um modelo de normalidade, das relações


que se dizem naturais, logo seria o Demônio o senhor do caos, pai das relações | 62
desviantes, da anormalidade e dos coitos “antinaturais”. No entanto, ao ir um
pouco além desse pobre maniqueísmo cristão e compulsoriamente heteronor-
mativo, não estariam as bruxas, nos seus ritos e suas orgias, praticando um ato
sagrado? Nesse sentido, a poesia de Waldo Motta nos arrebata para um lugar
em que práticas marginais também são consideradas sagradas; onde o cu, o “ór-
gão excretor”, essa caverna sagrada, também pode ser a morada de Deus.

Ó Deus serpentecostal/ que habitai os montes gêmeos,/ e


fizestes do meu cu/ o trono do vosso reino,/ santo, san-
to, santo espírito/ que, em amor, nos forjais,/ felai-me com
vossas línguas,/ atiçai-me o vosso fogo,/ dai-me as graças
do gozo/ das delícias que guardais/ no paraíso do corpo
(MOTTA, 2008, p.75).

Waldo Motta, homem, negro e bicha, talvez por um acaso ou por obra de
um anjo torto, ironicamente nascido em um estado chamado de Espírito Santo,
através de seus versos manifesta, de forma radical, a religião. O poeta eleva,
em júbilo, as práticas e os corpos marginalizados a um status divino, prestan-
do-lhes honrarias e criando rituais com as palavras dignas dos livros sagrados e
dos cultos eclesiásticos. Os poemas de Waldo se equipararam a orações, preces
e salmos, não se ajoelham ao que o status quo profere como sagrado e dig-
no de reverência. Motta não modela o status desses corpos marginais para se
adaptarem a um sagrado normatizado, no qual possam ser aceitos. Ele amplia o
conceito de sagrado ou talvez restitui seu verdadeiro significado tornando, em
essência, esses corpos “abjetos” em sujeitos sagrados.

Religião/ A poesia é a minha/ sacrossanta escritura,/ cru-


zada evangélica/ que deflagro deste púlpito./ Só ela me
salvará/ da goela do abismo./ Já não digo como ponte/ que
me religue/ a algum distante céu,/ mas como pinguela mes-
mo,/ elo entre alheios eus (MOTTA, 2008, p.53).

O poeta, que passou por uma via crucis de inúmeras segregações durante
a vida, “abençoado” por suas vivências marginais, adotou a postura, segundo
Trevisan (2018, p.259), de um “profeta-bicha”. Ouvindo o chamado dos céus, o
poeta “fustigava os fariseus da sexualidade”, como se vê nos versos

Ai, varões soberbos e perversos, / que me ofendeis buscan-


do nas mulheres/ o que em mulher nenhuma encontrareis.
/ [...] Circuncidai-vos para o Senhor, / que aprecia a nudez
do varão/ e há muito aguarda o vosso amor. / [...] Tirai o
prepúcio de vossos corações (TREVISAN apud WALDO,
2018, p. 259).

Waldo, talvez seguindo seu chamado profético ou até mimetizando o | 63


modus operandi de alguns líderes religiosos, gostava de proferir seus ver-
sos em público, assumindo, de certa forma, a figura de um pastor subversi-
vo. Sem medo de parecer profano, o poeta, segundo Trevisan (2018, p. 258),
“trabalhava com inversões e deslocamentos de sentido. Ousou abordar o
sagrado a partir da desmunhecação e do obsceno, instaurando um tom de
ambiguidade” em seus versos.
Segundo o relato de Erly Vieira[4], em uma dessas ocasiões em que o
poeta se apresentava, ele se enunciou da seguinte maneira: “Meu nome é Edi-
-valdo Motta. Edi, pra quem não sabe, em gíria gay, significa (...)”. Então, Waldo
calmamente explicou aos atenciosos ouvintes o significado de Edi, uma gíria
gay para designar essa parte tão temida, desejada e cheia de mistérios do corpo
humano, o ânus. Ao inserir o Edi em sua apresentação, o místico poeta inverte
as questões colocando na frente, em seu frontispício, em um lugar de nobreza,
uma parte do corpo que sempre foi atacada, fustigada e interditada. Nesse sen-
tido, a obra do poeta se encontra com a filosofia de Preciado, na qual o ânus
tem “um lugar especial e à maneira militante - é produtora de utopias”. Em um
dos manifestos do filósofo, “os trabalhadores do ânus são os novos proletários
de uma possível revolução contrassexual”. Conforme o filósofo, o ânus carrega
em si três atributos que lhe conferem um poder contrassexual.

Um: o ânus é o centro erógeno universal situado além dos


limites anatômicos impostos pela diferença sexual, onde
os papéis e os registros aparecem como universalmente
reversíveis (quem não tem um ânus?). Dois: o ânus é uma
zona primordial de passividade, um centro produtor de ex-
citação e de prazer que não figura na lista de pontos pres-
critos como orgásticos. Três: o ânus constitui um espaço
de trabalho tecnológico; é uma fábrica de reelaboração do
corpo contrassexual pós-humano. O trabalho do ânus não
é destinado à reprodução nem está baseado numa relação
romântica. Ele gera benefícios que não podem ser medidos
dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o sis-
tema tradicional da representação sexo/gênero vai à mer-
da (COLLING e LEOPOLDO apud PRECIADO, 2016, p.15).

O profeta bicha mergulhou nas entranhas do corpo para criar uma cos-
movisão sagrada de práticas de amor pouco ortodoxas e marginalizadas, se-
gundo as palavras de Trevisan (2018, p 259) “(...) inventar uma poesia terminal,
relacionada com as entranhas e o cóccix - ou região anal, por ele considerada
epicentro de todos fenômenos sagrados e pedra fundamental do nosso corpo.”
Nas palavras do próprio poeta, o cu é “lugarzinho por onde/ o espírito entra nos
ossos, é neste lugar terrível/ a casa do Deus dos deuses/ e a entrada dos céus”.
Assim, Waldo suscita o orgulho passivo de que nos falam Saez e Carrascosa e
propõe algo que encontra a ética anal de Paco Vidarte, “que vai negar o poder,
uma política do buraco que cansou da troca desigual dos discursos marcados”
(COLLING e LEOPOLDO, 2016, p.16).
Para além de negar o poder e criar uma política do buraco, Motta cria | 64
uma espécie de religião do buraco, o “cucentrismo”, na qual o ânus se torna um
portal onde as bichas, segundo Berçaco (2008, p. 93).

é a língua, a fala, o verbo. O verbo, como nos ensina a Bíblia


se fez carne (homem) e habitou entre nós. O ânus, sinôni-
mo de fala, de poesia, de palavra, é o meio, o veículo que
leva o homem a Deus, portanto é intermediário entre o ho-
mem e o ser Supremo.

Portanto, o cu passa a ser o lugar por onde os sujeitos “abjetos” podem


chegar aos céus, uma passagem por onde estes seres “poluidores” possam aden-
trar em um território sagrado onde suas práticas deixam de ser “sujas” para se
tornarem sagradas, “desfrutando as gostosuras/ da arvore da vida eterna, / en-
tre suspiros e cânticos/ de louvor ao nosso Deus” (MOTTA, 2008, p.73).
O poeta místico, ao enobrecer certas partes marginais do corpo, adota
em suas narrativas certas simbologias de duplo sentido, nas quais a serpente
acaba se aproximando das narrativas de algumas tradições sagradas, como o
Yoga, uma forma de ascese vinda Índia. Nesta prática, há um Chakra, um centro
energético sagrado do corpo humano chamado Muladhara, presente na base
da coluna vertebral entre o ânus e os órgãos genitais, que é o local de morada
da Kundalini. Nas palavras de Eleade (1996, p. 202) “Enrolada oito vezes (tal
como uma serpente) ao redor de si mesma, brilhante como o relâmpago, dorme
kundalini, obstruindo com a boca (ou cabeça) a abertura do linga (falo). Kunda-
lini fecha dessa maneira o brahmadvara (porta de Brahman)”. Entenda-se por
Brahman um poder criador, uma das três divindades supremas do hinduísmo ao
lado de Shiva e Vishnu. Então, trata-se de uma serpente adormecida que mora
próxima ao ânus, lugar que guarda o poder de um deus, uma grande simbologia
digna dos versos de Motta.
Ao eleger o cu como um portal sagrado por onde se vislumbra todo o po-
der das divindades, o poeta contesta o ideal de grande parte das religiões que
elegeram as partes superiores do corpo como belas e sagradas, nas quais a cabeça
seria a morada do espírito santo. “Ó Deus serpentecostal/ que habitai os montes
gêmeos, / e fizestes do meu cu/ o trono do vosso reino, / santo, santo, santo es-
pírito/ que, em amor, nos forjais (...).” A visão do cu como um território sagrado
aproxima os versos do poeta ao conceito de corpo grotesco proposto por Bakhtin
(2008, p.23), um corpo que não está separado do mundo, um corpo que não se
coloca como isolado, perfeito ou acabado, “mas ultrapassa-se a si mesmo, fran-
queia seus próprios limites”. Este corpo tem sua ênfase nas partes em que se abre
ao mundo exterior, se mostra como penetrável, ou seja, “onde o mundo penetra
nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios, protuberân-
cias, ramificações e excrescências”. Neste sentido, o cu tão proferido pelo poeta
se torna seu arauto, lugar de anunciação de muitas benesses do mundo.
O cu, na obra do poeta, não só se faz morada de Deus e origem da vida, | 65
mas também um lugar por onde se domina uma espécie de parte heroica capaz
de enfrentar ou receber grandes monstros. Dependendo do ponto de vista, um
receptáculo possível de tragar um grande um demônio, como a serpente bíblica
chamada Leviatan.

Seu sopro faz o carvão pegar fogo, e da sua boca saltam


chamas. /Tanta força reside em seu pescoço que o terror
vai adiante dele./ As dobras da sua carne são fortemente
unidas; são tão firmes que não se movem./ Seu peito é duro
como pedra, rijo como a pedra inferior do moinho. /Quando
ele se ergue, os poderosos se apavoram; fogem com medo
dos seus golpes (Jó 41:21-25).

A grande e terrível serpente, em seus versos, uma clara alusão ao phalo,


é domada pelo cu, um ser que pode também ser comparado a kundalini do hin-
duísmo. O coito anal ganha sentidos bíblicos e o orifício torna-se capaz de do-
minar o maior e mais terrível monstro aquático, temido pelos maiores senhores
da terra e até pelos deuses, esses sujeitos impenetráveis. “Pelo rabo/ Fisguei/ O
Leviatan”. Além da alusão ao sexo anal, é possível vislumbrar, através desses
versos, a alma do trabalho do poeta. Através do cu, o poeta aceita o caos tra-
zido pela serpente gigantesca, não a teme, mas a recebe com prazer, aceita o
caos, se regozija e cria através deste caos.

Taberna culu dei

De acordo com o dicionário, a palavra tabernáculo significa “Nos primór-


dios nômades do povo judeu, templo em forma de tenda, transportável” (BU-
ARQUE DE HOLANDA, 2008, p. 761). Logo, em uma livre tradução, Tabernácu-
lo Dei significaria o templo de Deus ou o lugar onde a divindade faz sua morada.
Porém, no modo como Motta divide as palavras, Taberna Culu Dei leva o leitor
a outro lugar, onde o cu se faz a morada dos Deuses. Em outras palavras, se
torna o próprio centro do mundo de onde emana toda energia vital capaz de
animar todas as coisas. Além disso, Waldo tira o carácter sério de tabernáculo,
o templo sagrado, e o transforma em taberna, um ambiente de prazer e diver-
timentos. Taberna Culu Dei se apresenta quase como uma oração, um cântico
que celebra a penetração anal.
As palavras de louvor no poema são inspiradas por versículos bíblicos,
que criam uma composição digna de ser entoada em cultos religiosos, mas com
um grande, porém: essas entoações sacras se referem aos prazeres do concú-
bito anal no qual a simbologia do fogo, muitas vezes utilizada na bíblia para
queimar e punir, traz seu tom erótico, fruto do prazer anal capaz de elevar, de
forma ardente, seus praticantes aos céus. “Vim para lançar fogo à Terra (...)”,
assim se inicia o poema.
O cu, este lugar portador de prodígios, morada de divindades, o buraco | 66
guloso capaz de sugar até o monstruoso Leviatan, na cosmovisão homoeró-
tica do poeta torna-se o que nas pesquisas do mitólogo Campbell é nomeado
como o “centro do mundo” e na obra de Eliade com o “axis mundi”. Um lugar
de abertura e intenso fluxo de vida que é representado, em forma física, como
“circulação da substância alimentar”, em sua forma dinâmica como um “jorro
de energia” e na forma espiritual, a que mais interessa a esta pesquisa, uma
“manifestação da graça”; em outras palavras, na obra de Motta, o ato de ser
enrabado. De acordo com Campbell, essas variedades se manifestam alter-
nando-se entre si, representando “três graus de condensação de uma mesma
força vital”.

Uma colheita abundante é o sinal da graça de Deus; a graça


de Deus é o alimento do espírito; o resplandecente raio é
o precursor da chuva fertilizante e, ao mesmo tempo, ma-
nifestação da energia liberada por Deus. Graça, substância
alimentar, energia: esses elementos se precipitam sobre o
mundo vivo e, sempre que falham, a vida se decompõe em
morte (CAMPBELL, 2007, p.44).

O que na boca de tantos dogmáticos ganha contornos de morte e ver-


gonha, pelas palavras de Waldo, se reinventa em contornos de vida, em ciclos
de graça, “Claro, claro/ É pelo talo/ Que começa/ O fruto/ A vida/ Medra/ Do
rabo”. O centro do mudo, o ponto pelo qual o mundo gira, um lugar onde, se-
gundo Campbell, brota a “árvore da vida, isto é, o próprio universo, cresce nesse
ponto” é o “ponto umbilical” por onde viajam as energias da eternidade, um
território de “contínua criação”, o ponto de onde brota a própria vida que resi-
de em cada uma das coisas.
Outra simbologia que aparece muito em textos sagrados, como a Bíblia
com seu Monte Sinai, é a “montanha cósmica, com a cidade dos deuses, tal como
um lírio de luz, no seu topo; em suas depressões, estão as cidades dos demônios,
iluminadas por pedras preciosas” (CAMPBELL, 2007, p.46).
No trecho seguinte, com uma nítida alusão aos prazeres de uma cópula
anal, o poeta traz, em seus versos, elementos fálicos como “árvore da vida” ou
“montanha santa” que estão entrelaçados com alguns elementos anais, como
“tabernáculo supremo”, ou “esconderijo do altíssimo”, para formar quase que
uma oração que narra, em tom sagrado, “entre suspiros e cânticos”, os prazeres
de ser penetrado pelo cu.

Desejo ser hóspede cativo/ deste tabernáculo supremo,/


habitar na montanha santa,/ descansando em justa paz/
no esconderijo do altíssimo,/ desfrutando as gostosuras/
da árvore da vida eterna,/ entre suspiros e cânticos/ de
louvor ao nosso Deus (MOTTA, 2008, p.73).

| 67
Waldo brinca com certos conceitos, como em “Desejo ser hospede ca-
tivo/ deste tabernáculo supremo”, versos que trazem a ideia dos esfíncteres
anais, músculos que têm a função de abrir o ânus, mas podem também prender,
manter cativos aqueles que por ventura lá se adentrem.

Desposando este rochedo/ podereis vencer a morte./ Mas


quem há de se abrigar/ neste fogo devorador?/ Quem po-
derá habitar/ nesta fogueira perpétua? Só quem se fizer
criança/ brincará no fojo do dragão/ e o criancião adentra-
rá/ a mão/ na forja serpentecostal (MOTTA, 2008, p.73).

O poeta, nos versos acima, através de sua composição com os versículos


bíblicos, elabora uma espécie de ascese pelo fogo, que pode ser interpretada,
em seu sentido estrito simbólico, como o usado em várias religiões ou também
como o fogo que arde dentro dos corpos, o tesão, o desejo erótico produzido
pelo enrabamento. O poeta usa a simbologia do falo como “rochedo” e do bu-
raco como “fojo do dragão” e “forja serpentecostal”, expressões evocadas para
criar o caminho da ascensão, juntamente com a simbologia da criança, enquan-
to pureza, inocência adicionada aos versos para dizer que aquele que entra pela
“forja” deverá ter a pureza de uma criança para despertar lá dentro a serpente
“serpentecostal” e assim se regojizar, ascender ao paraíso através do “roche-
do” que vai adentro.
TABERNA CULU DEI é um dos vários exemplos em que a ascese sacro
erótica e bicha de Waldo Motta se faz presente. Nos versos do poeta, o cu,
segundo Berçaco (2008, p. 93) “O ânus, sinônimo de fala, de poesia, de palavra,
é o meio, o veículo que leva o homem a Deus, portanto é intermediário entre
o homem e o ser Supremo” assim este mesmo lugar que é alvo de injúrias, ma-
ledicências e proibições, nos versos de Waldo se ressignifica, adquire um tom
sagrada e transformador.

No cu de Exu

“No cu/ de Exu[5]/ a luz.” Através do haicai, nos versos de Motta, a luz
brota do cu desta divindade intermediária entre os Deuses e a humanidade,
o senhor das encruzilhadas, um ser de muitas facetas, muitas vezes relegado
à marginalidade, inclusive associado ao demônio. Assim Waldo, pela força de
seus versos, segundo Berçaco (2008, p.25), vem desterritorializar “os cerebrais,
epistêmicos e culturais centros de poder” através de uma tática que batizou
de “cucentrismo”, na qual ele inverte “a referência transcendental de nossa
civilização logocêntrica” criando uma “policromia de vozes”, dando voz, lugar
e sacralidade a corpos abjetos e práticas dissidentes.
O profeta bicha traz para seus versos, versículos, cânticos e orações, algo
que vai além de um mero “orgulho passivo”. Waldo torna o ser penetrável em | 68
um ser sagrado, do qual a “vida medra/ do rabo”. Pela força de suas palavras é
possível estes seres “marginais” viverem “desfrutando as gostosuras/ da árvore
da vida eterna, / entre suspiros e cânticos” de prazer.
Que seus versos sacro eróticos, imbuídos de sua poética da vadiagem e
também da viadagem, possam adentrar profundamente nos recônditos deste
Brasil que se pretende “impenetrável”. Que os “varões soberbos e perversos”
desta noção possam tirar o prepúcio de seus corações para quitar-lhes a mu-
ralha de Jericó com que cobrem o próprio cu. Só assim poderemos “habitar na
montanha santa, / descansando em justa paz” nesta terra de Vera Cruz.

Notas

1.
https://congressoemfoco.uol.com.br/direitos-humanos/stf-deve-julgar-nesta-quarta-acao-
-para-criminalizar-a-homofobia-chamada-por-bolsonaro-de-palhacada

2.
https://www.onofre.com.br/ky-gel-lubrificante-flow-kit-com-3-unidades-5g-cada.html

3.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/05/ao-menos-uma-pessoa-e-morta-por-dia-
-no-brasil-por-homofobia-diz-relatorio.shtml

4.
http://www.overmundo.com.br/overblog/a-desbundada-poesia-erotico-mistica-de-waldo-
-motta

5.
Representante das potências contrárias ao homem. Os afro-baianos assimilam-no ao demô-
nio dos católicos; mas, o que é interessante, temem-no, respeitam-no (ambivalência), fazen-
do de objeto de culto. (CASCUDO, 2012, P.286).

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. A cultura


popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7 ed.
São Paulo: Hucitec, 2010.

BERÇACO, Ériton Bernardes. Exus, Cus e Ecos: a Poética Erótico-sagrada de


Waldo Motta. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2008.
| 69
BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Mini Aurélio - O Dicionário da Língua Portugue-
sa. 7ª ed. Curitiba: Positivo, 2008.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Tra-


dução por Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Tradução por Adail Ubirajara. São Paulo:
Pensamento, 2007.

CARRASCOSA, Sejo; SAEZ, Javier. Pelo Cu: Políticas Anais. Belo horizonte: Letra-
mento, 2016.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 12ª ed. São Paulo: Glo-
bal, 2012.

ELIADE, Mircea. Yoga - Imortalidade e Liberdade. São Paulo: Palas Athena. 1996.

MOTTA, Waldo. Transpaixão: coletânea. 2ª ed. Vitória: Edufes, 2008.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: A Homossexualidade no Brasil, da


Colônia à Atualidade. 4ºed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

Fernando Antônio Siqueira Ferreira é mestrando em Estudos de Linguagens


pelo Programa de Pós-graduação do CEFET-MG, na área de edição; bacharel
e licenciado em Artes visuais pela UFMG; ilustrador e autor independente.
Idealizador do ALMA - Ateliê de Livros Mal Criados e membro do grupo de es-
tudos e pesquisa LLEME (Leitura Literária, Edição e Ensino). É autor dos livros
Pequeno Livro de Malcriações para Crianças Bem Criadas e Figuras de Liberda-
de – Memórias de um Artista Viajante.

| 70
Gustavo
Henrique
Sousa Assis
Tudo sobre
minha mãe e o
queer: algumas
notas
“ [...] porque se é mais autêntica quanto mais se parece com o que
sonhou para si mesma.”

(Tudo sobre minha mãe)

Este trabalho consiste em


um ensaio sobre o filme de
Pedro Almodóvar, | 37
Todo sobre mi madre (no Brasil, Tudo sobre minha mãe), lançado na Espanha em
1999. Apoiado em alguns teóricos queer, a intenção é a de mostrar as multiplici-
dades presentes na obra. Para tanto, foram evidenciados os trabalhos de Judith
Butler e Paul B. Preciado, além de outros escritores queer, no intuito de “borbo-
letear” entre teoria e cinema.
Todo primeiro contato com o cinema de Pedro Almodóvar há de ser uma
experiência de deslocamento. Sua filmografia, composta por mais de 20 filmes,
é como uma grande narrativa inacabada. Este é um cineasta que não esgota uma
mesma história, uma mesma cor, um mesmo movimento. O filme Tudo sobre mi-
nha mãe é um dos mais aclamados do diretor, além de lhe render premiações
como Oscar, Cannes e Goya.
Em um primeiro momento, uma tentativa já falha de delinear o movimen-
to queer enquanto teoria e modo de vida, os escritos de Butler (2020) e Preciado
(2011) são discutidos. Em seguida, se desenham algumas notas sobre as persona-
gens principais de Tudo sobre minha mãe: Manuela, Agrado, Huma, Rosa e Lola.

Um bonde chamado queer

A afirmação (e, em alguns casos, o questionamento) de que corpos impor-


tam (BUTLER, 2020) nunca foi tão contundente. Não é mais possível pensar o su-
jeito sem colocar em xeque os lugares que ocupa. Gênero, sexo, sexualidade, raça,
poder e desejo entram em uma equação complexa necessária para tentar escla-
recer socialmente sujeitos e/ou grupos. Este é, sumariamente, o intuito da teoria
queer: compreender os corpos abjetos (queer) enquanto potências políticas.
Tal teoria é criada como um seguimento (ou ainda, como rizoma) do traba-
lho de alguns dos importantes filósofos pós-estruturalistas: Foucault, Derrida,
Deleuze. Sexualidade e poder, desconstrução e discurso, multiplicidades e devi-
res. Foucault estrutura sua teoria das estratégias de poder por meio de discur-
sos e controles. Derrida aponta para os binarismos operantes. Deleuze defende a
multiplicidade, em contraponto aos conceitos pivotantes de Eu e identidade.
Tendo como território crítico essa filosofia, a teoria queer, que nasce em
meados da segunda metade do século XX, se propõe a estudar o abjeto. Advin-
dos de diversas áreas e partindo dos Estudos Culturais, teóricos buscam a arti-
culação de conceitos e interpretações que abraçam o queer como uma potente
vivência política. A teoria queer não tem o formato convencional de estudo ou
escola, mas é fluida, “um acervo de engajamentos intelectuais com as relações
entre sexo, gênero e desejo sexual” (SPARGO, 2017, p. 13).
O surgimento desse pensamento vem em contraponto ao movimento ho-
mossexual dos anos 1960, que prezava pela normatização da vida homossexual,
pelo “orgulho gay” e o enquadramento aos padrões da vida heteronormativa.
O queer é uma crítica aos comportamentos binários e normativos da socieda-
de contemporânea. Unidos pelo estigma da abjeção, os movimentos feministas,
LGBTs e negros veem nessa teoria um modo de pensar a transversalidade de pro- | 72
blemáticas comuns (como o racismo, a LGBTfobia e o feminicídio), colocando em
xeque uma sociedade comandada por dispositivos de poder. Nesse sentido, é pos-
sível pensar o movimento queer como um “espírito iconoclasta de alguns mem-
bros dos movimentos sociais expresso na luta por desvincular a sexualidade da
reprodução, ressaltando a importância do prazer e a ampliação das possibilidades
relacionais” (MISKOLCI, 2012, p. 22).
A ressignificação de símbolos dogmatizados no viver contemporâneo é
necessária para a sobrevivência dessas mesmas singularidades julgadas como
anormais. A teoria queer compromete-se a criar e analisar táticas de vivência,
tais como contestar a linguagem binária, manusear xingamentos e usá-los como
força, além de experimentar modos de contornar a heteronormatividade exacer-
bada. Por exemplo, a palavra queer é um xingamento em inglês, o que em língua
portuguesa poderia significar algo como esquisito ou bicha (no Brasil, muitos te-
óricos propõem o termo cuir). Este termo, criado pelo regime heteronormativo
para diminuir e violentar verbalmente um grupo, retorna para o queer enquanto
potência de ressignificação e afirmação. Nesse sentido, Butler diz:

Se o termo queer deve ser um local de contestação coleti-


va, o ponto de partida para um conjunto de reflexões his-
tóricas e perspectivas futuras, ele terá que continuar a ser
o que é no presente: um termo que nunca foi plenamente
possuído, mas que é sempre e apenas apropriado, torcido,
estranhado [queered] por um uso anterior que se orienta
para propósitos políticos urgentes e expansivos (BUTLER,
2020, p. 377).

Assim, retomar a noção de queer e inverter seu significado causa uma de-
sordem nos princípios do próprio termo, tirando seu sentido de xingamento (usa-
do pela heteronormatividade) a um grupo. A heteronormatividade se instaura
pela heterossexualidade compulsória (termo empregado pela teórica feminista
Adrienne Rich em Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence, 1980),
sendo a projeção da heterossexualidade como um “dado natural”. Preciado, lei-
tor de Monique Wittig, aponta que a autora

chegou a descrever a heterossexualidade não como uma prá-


tica sexual, mas como um regime político que faz parte da
administração dos corpos e da gestão calculada da vida no
âmbito da biopolítica. Uma leitura cruzada de Wittig e de
Foucault teria permitido, desde o início dos anos 1980, dar
uma definição de heterossexualidade como tecnologia bio-
política, destinada a produzir corpos straight (PRECIADO,
2011, p. 12).

São visíveis os dispositivos da heteronormatividade branca instaurados


em instituições, no Estado e nos âmbitos da vida social e privada. Exemplo: uma
travesti é surrada e assassinada por um grupo de homens heterossexuais. Como | 73
numa espécie de cadeia alimentar, o “cidadão de bem” que se depara com essa
notícia cria suas próprias barreiras, compreendendo o ser travesti como “sujo” e
indesejável, e o opressor como sua meta, combatendo “o mal do mundo”. Não é
necessária uma pesquisa delongada para encontrar relatos e notícias que provam
tal comportamento: o movimento Black Lives Matter teve seu estopim em 2020
com o assassinato de George Floyd pela polícia americana, e as manifestações
foram taxadas rapidamente como terrorismo. Portanto, constata-se que essa he-
teronormatividade tem um rosto branco, masculino, estatal, rico, mas a heteros-
sexualidade só é possível por meio da diferença, por seu oposto – ou opostos.
Sendo assim, “em vez de ser uma tentativa de sair da oposição ou de invertê-la,
a teoria queer pode ser vista como uma investigação de como a oposição moldou
as hierarquias políticas e morais do saber e do poder” (SPARGO, 2017, p. 38).
Dando complexidade à ideia, Butler (2020) questiona o pressuposto da he-
terossexualidade como universalidade. Não há dúvidas (poucas vezes podemos
dizer isso) de que ela opere na normalização do gênero enquanto categoria na-
tural, ou seja, a ideia de sexo biológico, mas o próprio conceito (ou espaço) de
gênero é excessivo à ideia de uma matriz heterossexual. Butler ainda nos diz que

O gênero não é nem uma verdade puramente psíquica, con-


cebida como “interna” e “oculta”, nem é redutível a uma
aparência de superfície; pelo contrário, seu caráter flutuante
deve ser qualificado como um jogo entre a psique e a apa-
rência (em que esta última inclui o que aparece nas palavras).
Além disso, esse “jogo” é regulado por restrições heteros-
sexistas, embora, por essa mesma razão, não de todo redutí-
vel a elas (BUTLER, 2020, p. 387).

Encontrar-se em um gênero é um processo de descoberta. Por mais que


esteja ligado ao processo dogmático da produção de corpos straight (PRECIADO,
2011), esse processo não é redutível simplesmente a essa produção e às restrições
heterossexistas. Este é o momento de driblar tal “jogo”. Não se nasce homem ou
mulher, indo no sentido oposto do que se acredita, sendo que o gênero não se
refere somente ao “homem” e a “mulher”, mas a uma gama infinita de identifica-
ções de gênero, corporais, desejantes, sexuais.

O gênero não é o efeito de um sistema fechado de poder nem


uma ideia que recai sobre a matéria passiva, mas o nome do
conjunto de dispositivos sexopolíticos (da medicina à repre-
sentação pornográfica, passando pelas instituições familia-
res) que serão o objeto de uma reapropriação pelas minorias
sexuais. (PRECIADO, 2011, p. 14)

Pensando nos múltiplos aspectos do gênero e os problemas de identifi-


cação, podemos ainda dizer que identificações múltiplas, como transgêneros
não-binários, têm o poder de desestabilizar a produção de corpos queer norma- | 74
tizados (como as tentativas de encontrar cientificamente os indícios da homos-
sexualidade ou da transexualidade). Em termos deleuzianos, isso pode ser perce-
bido como criação de linhas de fuga, ou seja, sempre fazer fugir.
Um conceito importante para a obra de Butler, a performatividade é um dos
possíveis olhares para o gênero, entendendo-o como uma construção dos campos
sociais e teóricos. A autora mostra que o sexo biológico mantém uma carga signifi-
cativa do gênero desde os primeiros momentos da vida de um indivíduo, negando
a ele a reivindicação de ter um pênis e ser uma menina. O gênero se torna uma sig-
nificação do que o indivíduo é, o que representa e como se relacionará.
Butler (2020) constata tais fatos e os inverte, mostrando existências além
do binário masculino-feminino. A teoria da performatividade se encontra, por
exemplo, na performance de uma drag queen que mostra como a representação
do gênero está distante do gênero em si. Ao entender tais constatações, o con-
ceito de performatividade se mostra claro. Sua principal ideia é de que não existe
um gênero precedente à vivência social, pois todos são criados social e cultural-
mente. Performar e atravessar os gêneros é a prova de que o gênero não existe.
Ao imitar o gênero, mostra-se que o próprio gênero é uma estrutura imitativa e
repetitiva:

Se uma expressão performativa é provisoriamente bem-su-


cedida (e eu sugeriria que seu “êxito” é sempre e apenas pro-
visório), não é porque uma intenção tenha êxito em governar
a ação do discurso, mas apenas porque essa ação ecoa ações
anteriores, e acumula a força da autoridade com a repetição
ou a citação de um conjunto prévio de práticas autorizan-
tes. Isso significa, então, que uma expressão performativa
“obtém êxito” na medida em que ela conte com o apoio e
encubra as convenções constitutivas pelo qual é mobilizada.
Nesse sentido, nenhum termo ou declaração pode funcionar
performativamente sem a historicidade acumulada e dissi-
mulada de sua força (BUTLER, 2020, p. 375).

Para Preciado (2014), as inscrições e transformações corporais não são per-


formances teatrais, são fatores na vida de transexuais e transgêneros. O autor
cita o exemplo de Venus Xtravaganza (do filme Paris is burning), que se passou
por mulher, branca, americana (a questão da passabilidade) e foi morta devido a
isso. Ao questionar a teoria de Butler, Preciado diz que

ao acentuar a possibilidade de cruzar os limites dos gêneros


por meio de performances de gênero, [Butler] teria ignorado
tanto os processos corporais e, em especial, as transforma-
ções que acontecem nos corpos transgêneros e transexuais,
quanto as técnicas de estabilização do gênero e do sexo que
operam nos corpos heterossexuais (PRECIADO, 2014, p. 93).

Essa estabilização será chamada por Preciado (2011) de sexopolítica: a forma | 75


como o sistema heterocentrista e patriarcal cria uma massa de corpos straight, ou
seja, normalizados. Ao relegar o corpo em favor de um simples “teatro” (como a
experiência trans é muitas vezes lida, algo como “brincar de se vestir de mulher”),
a singularidade é subjugada pelo regime da sexopolítica. Não é uma questão de
ignorar a performatividade em favor dos corpos hormonal e cirurgicamente trans-
formados, mas sim de uma performatividade que acolha a construção desses cor-
pos como técnicas de supressão da ideia de sexo biológico e gênero estável. Como
veremos adiante, este é o caso de Agrado. A história da personagem é uma história
do corpo, um discurso a favor do amor a seu corpo. Assim,

O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder,


mas antes a potência mesma que torna possível a incorpora-
ção prostética dos gêneros. A sexopolítica torna-se não so-
mente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma
criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos
feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgê-
neros, chicanas, pós-coloniais... As minorias sexuais tornam-
-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão
torna-se queer (PRECIADO, 2011, p. 14).

Por mais utópico que pareça (pelo menos no Brasil de 2021), conseguimos
perceber nessa multidão a potência de ação política contra o regime sexopolítico.
Assim como a teoria queer precisou repensar a categoria de mulher (também com
um rosto: branco, cisgênero, heterossexual) como sujeito único do feminismo, a
multidão queer teria o poder de redesenhar o futuro dos grupos mais vulneráveis
socialmente.
Tomemos como exemplo a experiência trans. A patologização da transe-
xualidade surge como uma maneira de restringir a liberdade corpórea de traves-
tis, transexuais e transgêneros. Mesmo sendo um movimento histórico, no Brasil,
para que se tenha acesso à cirurgia de redesignação sexual e também por ser um
facilitador para a troca de documento, é necessário o diagnóstico de “transtorno
de identidade de gênero”.
Passar por toda essa triagem implica manter-se presente em “tratamento”
por alguns anos. Provar a veracidade trans para médicos cisgêneros (e seu discur-
so científico padronizado) é uma verdadeira contradição. A agressão contra esse
grupo se intensifica na medida que se entendem como trans. Além disso, a cate-
gorização se reflete no modo como serão entendidas socialmente e quais tipos
de interações e representações serão capazes de realizar. É necessário mudar-se
para Urano para sentir-se acolhido em uma casa, como diz Paul Preciado (2000).
Além disso, o processo de construção do corpo travesti é bombardeado
por referências midiáticas de baixa qualidade significativa. A construção da ima-
gem da travesti começa muito antes de sua descoberta, com a representação te-
levisiva e fílmica quase sempre ligada à caricatura, à vergonha de “assumir-se” ou
à extrema sexualização. Tudo isso envolto por discriminações diretas ou indire-
| 76
tas. Retira-se a imagem de uma mulher para dar lugar a um símbolo carregado de
estereótipos que se internalizam na própria experiência trans. Essas ações estão
encobertas por uma certa “agenda straight”, na esperança de desqualificar (ou
seja, matar) os corpos que não se enquadram e “deixar passar” aqueles corpos
que se rendem a esse regime. Segundo Preciado, a maior ferramenta usada politi-
camente contra esses corpos é a territorialização da sexualidade:

O corpo straight é o produto de uma divisão do trabalho da


carne, segundo a qual cada órgão é definido por sua função.
Uma sexualidade qualquer implica sempre uma territorializa-
ção precisa da boca, da vagina, do ânus. É assim que o pensa-
mento straight assegura o lugar estrutural entre a produção
da identidade de gênero e a produção de certos órgãos como
órgãos sexuais e reprodutores. Capitalismo sexual e sexo do
capitalismo. O sexo do vivente revela ser uma questão cen-
tral da política e da governabilidade (PRECIADO, 2011, p. 12).

Pois um corpo anormal não é governável e a potência de uma multidão de


corpos anormais, inaceitáveis, não é controlável. “Essa multiplicidade de anor-
mais é a potência que o Império Sexual se esforça em regular, controlar, norma-
lizar” (PRECIADO, 2011, p. 13). O autor nos lembra de duas coisas importantes: a
primeira é que o corpo não é passivo sob o biopoder. As tentativas não deixam de
existir, mas a experiência trans, homo, bi, queer é o lugar da desterritorialização
da heterossexualidade. Por mais que corpos se encolham para caber na caixinha
straight, para que “passem”, a experiência do gênero e da sexualidade continuam
vivas, o desejo continua vivo, aguardando o momento no qual todas essas amar-
ras (pelo menos na tentativa) explodirão. Preciado, ao discutir sobre a desterrito-
rialização, diz:

O corpo da multidão queer aparece no centro disso que cha-


mei, para retomar uma expressão de Deleuze, de um trabalho
de “desterritorialização” da heterossexualidade. Uma des-
territorialização que afeta tanto o espaço urbano (é preciso,
então, falar de desterritorialização do espaço majoritário, e
não do gueto) quanto o espaço corporal. Esse processo de
“desterritorialização” do corpo obriga a resistir aos proces-
sos do tornar-se “normal”. Que existam tecnologias precisas
de produção dos corpos “normais” ou de normalização dos
gêneros não resulta um determinismo nem uma impossibi-
lidade de ação política. Pelo contrário, porque porta em si
mesma, como fracasso ou resíduo, a história das tecnologias
de normalização dos corpos, a multidão queer tem também a
possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de
produção de subjetividade sexual (PRECIADO, 2011, p. 14).

E, ao deixar-se desterritorializar, ou seja, não se fixar em um território, é


possível a experimentação política de um corpo que, “como fracasso ou resíduo”,
se faça potente em sua singularidade. A segunda ideia que o autor nos lembra é a
de que “os corpos não são mais dóceis” (PRECIADO, 2011, p. 15). E não há exceção | 77
possível: travestis que injetaram silicone industrial, homossexuais desenhando o
abdômen com silicone, mulheres e homens cisgêneros fazendo cirurgias plásticas
para se parecerem com bonecos e desenhos, Orlan e suas performances-cirurgias
plásticas para se parecer com mulheres de obras da História da Arte, Olivier de
Sagazan e suas máscaras de barro criando corpos impossíveis, Agrado e sua histó-
ria como a história da construção de seu corpo (siliconado, cirúrgico, deformado
por causa de brigas). Retomamos a ideia de desterritorialização como criação de
potências e desvios da heterossexualidade. Essa desterritorialização é o que per-
mite a diferença se sobressair ao discurso da sexopolítica, não se deixar prender,
mas viver no próprio corpo o desejo, a diferença. Não uma diferença entre sexos,
gêneros, oposições binárias. Prezamos por uma diferença que esteja alinhada à
diversidade, aos desejos aberrantes e excessivos, aos pequenos poderes possíveis
e responsáveis, pois

Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferen-


ças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversi-
dade de potências de vida. Essas diferenças não são “repre-
sentáveis” porque são “monstruosas” e colocam em questão,
por esse motivo, os regimes de representação política, mas
também os sistemas de produção de saberes científicos dos
“normais” (PRECIADO, 2011, p. 18).

Tudo sobre Agrado, Huma, Manuela, Rosa e Lola

Tudo sobre minha mãe é um filme sobre encontros. Manuela, Agrado, Huma
e Rosa são mulheres que se encontram por meio do amor, da morte e da vida. Ma-
nuela é uma mãe. Agrado é a uma travesti prostituta e se torna assistente. Huma
é uma atriz apaixonada por Nina, atriz junkie e parceira de cena na peça Um bonde
chamado desejo. Rosa é uma freira que está grávida de uma travesti.
Todas são atravessadas por Lola (“Você não é uma pessoa, Lola. É uma epi-
demia.”, diz Manuela), mulher e travesti que teve um filho com Manuela e outro
com Rosa. Manuela perde seu filho em um acidente de carro após tentar conseguir
um autógrafo de Huma. Sai de Madrid rumo a Barcelona, se encontra com Agrado,
amiga de longa data e salva a amiga em uma briga. As duas se encontram com Rosa
para pedir emprego, mas acabam simplesmente se tornando amigas próximas.
O filme vai se desenrolando a partir disso, perpassando temas como morte,
sexualidade e amor de mãe, de amigas, de irmãs. A narrativa é contada do ponto
de vista dessas mulheres, sendo uma ode ao feminino e sua multiplicidade. Contra-
riando a ideia psicanalítica de uma mulher quase mítica e também na contramão do
feminismo conservador, Tudo sobre minha mãe enaltece os diferentes corpos pos-
síveis do feminino. Não há uma hierarquia entre prostituta, freira, atriz, enfermeira,
cozinheira, mas todas caminham juntas, escrevendo a história de suas vidas.
Almodóvar faz de seu filme um “museu” do feminino, enaltecendo Bet-
te Davis e Eve Harrington, protagonistas de All About Eve (em tradução lite- | 78
ral, Tudo sobre Eve, mas em português o título é A Malvada), Blanche DuBois e
Stella Kowalski, protagonistas de Um bonde chamado desejo, e também enalte-
cendo todas as atrizes, mulheres trans, mães. Essa ode é recorrente no trabalho
do diretor, mas em Tudo sobre minha mãe há uma certa virada. Aqui, se valoriza
o amor por um certo feminino queer, das “margens”.
Comecemos pensando algo sobre Lola. Mulher, travesti e pai, a persona-
gem é falada durante todo o filme. Rouba Agrado, sua amiga próxima, depois
engravida Rosa e foge. Manuela, ao sair de Madrid para Barcelona, vai encontrar
Lola para contar a história de seu filho, recém falecido (filho que Lola não sabia
da existência). Quando, no fim do filme, Lola volta para Barcelona na ocasião do
enterro de Rosa (que morreu parindo seu filho) e descobre a existência de seus
filhos, ela diz que sempre quis ser pai. Esse desejo tem o poder de descolar a ideia
de que gênero e sexualidade são sinônimos, sendo que as ideias são quase opos-
tas. Lola é uma mulher com pênis, o que não anula suas chances de paternidade
nem a exclui de um certo discurso patriarcal.
Manuela, ao contar sua história com Lola a Rosa, diz que Lola tem o pior de
um homem e o pior de uma mulher. A personagem então conta sobre a transição
de seu marido (ou já seria a esposa?), que foi trabalhar em Paris e voltou “com um
par de tetas maior que a dela”. Então, começa a se mostrar machista, reprimindo
a esposa ao vestir um short ou saia curta, ao mesmo tempo que se relacionava
sexualmente com “qualquer coisa que passava”. Manuela ainda diz: “Nós mu-
lheres fazemos de tudo para não ficarmos sozinhas. [...] [Nós mulheres somos]
um pouco lésbicas”. Tal paradoxo mostra esse corpo que se cria como straight.
A personagem se questiona: “Como é possível ser tão machista com aquele par
de peitos?”, mostrando também que a experiência de transição de gênero não
é necessariamente uma reviravolta do desejo e de comportamentos arraigados.
Para rever tais conceitos internalizados é necessário um movimento revolucio-
nário, que deve ser criado e colocado em prática. Esse é o caminho de Rosa: uma
freira que se apaixona por Lola, engravida e tem sua vida caída em pedaços. Lola,
soropositiva, contaminou a freira e seu filho. Mesmo assim, Rosa se mantém viva,
presente. Sua história não passa pelo ressentimento. O que se mostra são as do-
res carregadas das experiências vividas, mas essa dor é sempre o pretexto para
alguma resolução. A dor não paralisa.
Agrado talvez seja o ponto mais esperado e revolucionário do filme. A
personagem tem um ar refrescante, que se sente confortável em seu corpo e
em sua autenticidade. Seu nome foi dado por sempre querer agradar às pessoas,
tarefa que realiza de forma autêntica. Agrado é um corpo que se constrói com
a história da personagem, mas seu corpo é também sua própria história. Deve
sempre “estar gostosa” e “atenta aos últimos avanços tecnológicos de cirurgia e
cosmética”, afinal “uma mulher é seu cabelo, as unhas, uma boa boca para chu-
par ou fofocar”. Por isso mesmo ela não gosta das drag queens, que “confundi-
ram circo com travestismo”. Não devemos ler essa fala como algo da ordem do
ódio, mas perceber seu tom de auto conservação e uma certa “competição”. A
questão da performatividade na personagem de Agrado está alinhada àquilo que | 79
Butler e Preciado defendem, no sentido de uma constante reiteração do caráter
performático do gênero por meio de transformações corporais permanentes. Na
ocasião de Huma e Nina não poderem se apresentar no teatro por causa de brigas
do casal, Agrado sobe ao palco para contar sua história e entreter o público:

Cancelaram o espetáculo. Aos que quiserem será devolvido o


ingresso. Mas aos que não tiverem o que fazer e já estando no
teatro, é uma pena saírem. Se ficarem, eu irei diverti-los com
a história de minha vida. Adeus, sinto muito [aos que estão
saindo]. Se ficarem aborrecidos, ronquem, assim RRRRR. En-
tenderei, sem ter meus sentimentos feridos. Sinceramente.
Me chamam Agrado, porque toda a minha vida sempre tento
agradar aos outros. Além de agradável, sou muito autêntica.
Vejam que corpo. Feito à perfeição. Olhos amendoados: 80
mil. Nariz: 200 mil. Um desperdício, porque numa briga fiquei
assim [mostra o desvio no nariz]. Sei que me dá personalidade,
mas, se tivesse sabido, não teria mexido em nada. Continuan-
do. Seios: dois, porque não sou nenhum monstro. Setenta mil
cada, mas já estão amortizados. Silicone... – Onde? [Grita um
homem da plateia]. Lábios, testa, nas maçãs do rosto, quadris
e bunda. O litro custa 100 mil. Calculem vocês, pois eu perdi
a conta. Redução de mandíbula, 75 mil. Depilação completa
a laser, porque a mulher também veio do macaco, tanto ou
mais que o homem. Sessenta mil por sessão. Depende dos pe-
los de cada um. Em geral duas a quatro sessões. Mas se você
for uma diva flamenca, vai precisar de mais. Como eu estava
dizendo, custa muito ser autêntica, senhora. E, nessas coisas,
não se deve economizar, porque se é mais autêntica quanto
mais se parece com o que sonhou para si mesma.

O monólogo tem um caráter revolucionário, o que deixa a personagem


de Agrado ainda mais complexa. Aqui, desejo e corpo se alinham em favor de
um orgulho de si mesma, buscando a imagem que sonhou de si mesma. Porque
ser autêntica é seguir-se, sem as amarras sociais, políticas, de gênero (ou, pelo
menos, apesar disso). De fato, é usar essas amarras como parte da experiência
de transformação, como mote para a desterritorialização, para “como fracas-
so ou resíduo, [...] intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de
subjetividade sexual” (PRECIADO, 2011, p. 14). Ao fato de colocar seu corpo
diante da plateia e deixar-se chamar, Agrado desloca a história de seu discur-
so para a história de seu corpo enquanto sua singularidade.
Ademais, pode-se pensar em Tudo sobre minha mãe como uma fonte
inesgotável de (im)possíveis imagens e corpos do feminino, singularidades que
se tornam multiplicidades (não há exclusão de uma pela outra), da criação de
uma multidão queer feminina que preza pela diferença e pela união. Cinco
mulheres (cinco multidões, cinco singularidades) que homenageiam todas as
possibilidades de ser.

| 80
Referências

BUTLER, Judith. Corpos que importam: Os limites discursivos do “sexo”. São


Paulo: n-1 edições; Crocodilo Edições, 2019.

MISKOLCI, Richard. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte:


Autêntica, 2012.

PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos” anormais”. Revis-
ta Estudos Feministas, v. 19, n. 1, p. 11-20, 2011. Disponível em: https://periodicos.ufsc.
br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2011000100002 Acesso em 11/05/2021.

PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo: N-1 Edições, 2014.

PRECIADO, Paul. Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia. 1 ed. Rio de Ja-


neiro: Editora Zahar, 2020.

RICH, Adrienne. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. Routledge,


2007.

SPARGO, Tamsin. Foucault e a teoria queer: seguido de Ágape e êxtase: orientações


pós-seculares. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

Tudo sobre minha mãe. Direção: Pedro Almodóvar. Produção de Agustín Almodóvar.
Madrid: El Deseo, 1999.

Gustavo Henrique Sousa Assis é mestrando em Estudos de Linguagens pelo


Programa de Pós-graduação do CEFET-MG. Bacharel em Comunicação social
pela PUC-Minas. Participa do grupo de estudos Literatécnica no CEFET-MG.
Possui publicações sobre as relações entre cinema, literatura e teoria queer.

| 81
Joarle
Magalhães
Soares
Torto Arado:
resistência
negra e corpo
feminino

Reconhecer-se e tornar-
-se reconhecido para enten-
der a sociedade, o mundo e
seu funcionamento. A partir
desse entendimento, encon-
trar um lugar de identida-
de, de afirmação e também | 48
de resistência. Essa busca marca a vivência de muitos corpos constituídos por
uma vulnerabilidade social que está sempre em confronto com discursos de au-
torização condicionantes da formação do sujeito. Os problemas que caracteri-
zam essas questões, tão bem trabalhados pela filósofa americana Judith Butler,
são o ponto de partida para analisar, neste ensaio, como o romance Torto Arado,
de Itamar Vieira Júnior, contribui para aprofundar discussões sobre a precarieda-
de da vida de populações quilombolas, ligadas ao campo, que vivem no interior
do Brasil.
O escritor faz um retrato da relação do homem com a terra, a partir da voz
de três personagens femininas, apontando questões históricas, políticas e sociais
que envolvem o direito ao território. É possível analisar esse caminho narrativo
sob o viés de conceitos como corpo racializado, corpo feminino, precariedade,
vulnerabilidade, resistência e violência para que melhor se compreenda de que
maneira o romance expõe chagas desse sistema social rural brasileiro. Apesar
dos estudos de Judith Butler terem como objeto contextos sociais distintos, de
outros países, e ligados à temática queer, há neles contribuições teóricas que se
aplicam também à história contada por Itamar Vieira Júnior. A começar pelo re-
conhecimento de si mesmo.

A capacidade do sujeito de reconhecer e tornar-se reconhe-


cido é gerada por um discurso normativo cuja temporalidade
não é a mesma da perspectiva de primeira pessoa. Essa tem-
poralidade do discurso desorienta nossa própria perspectiva.
Portanto, segue-se que só podemos reconhecer e ser reco-
nhecidos sob a condição de sermos desorientados por algo
que não somos, sob a condição de experimentarmos uma
descentralização e “fracassar” na tentativa de alcançar nos-
sa identidade pessoal (BUTLER, 2017, p. 47).

Em Torto Arado, essa temporalidade do sujeito se reconhecer e tornar-se


reconhecido fica bem marcada na divisão do romance em três partes e na alter-
nância que ocorre entre as três narradoras, que relatam a história em primeira
pessoa. Cada uma a seu momento. Enquanto nas duas primeiras partes (Fio de
corte e Torto arado) ainda não há um reconhecimento profundo de si mesmo, o
que vai sendo construído aos poucos, na parte final (Rio de sangue), esse reco-
nhecimento chega fortalecendo as personagens e evidenciando a ancestralidade
que as constituem. Para entender de que maneira isso ocorre, é preciso, inicial-
mente, apresentar um resumo sobre o desenvolvimento do romance.
Bibiana e Belonísia são duas irmãs, com um ano de diferença na idade, que
nasceram no interior da Bahia, no sertão da Chapada Diamantina, onde vivem
com os pais e os irmãos na comunidade de Água Negra. A localidade é formada
por famílias de trabalhadores rurais descendentes, na sua maioria, dos africanos
escravizados no Brasil, na época da colônia. Os moradores vivem do que produ-
zem sob um regime de servidão. Devem fornecer grande parte do que colhem
aos donos da fazenda Caxangá, o território onde, há décadas, a comunidade se
estabeleceu. Também não podem construir casas de alvenaria e, por isso, moram | 83
em barracos de barro, pouco resistentes ao tempo. A história aborda a vida das
irmãs desde a infância até a maturidade. A narrativa começa no dia em que elas
provocam um acidente doméstico. Ao manusear uma faca antiga, guardada pela
avó Donana, em uma mala embaixo do colchão, ambas acabam se ferindo. Beloní-
sia tem a língua decepada e fica muda a partir de então. Esse episódio inicial liga
diversos acontecimentos anteriores e posteriores a ele, que culminam no ato de
resistência fruto da consciência política e de identidade que as irmãs e a comuni-
dade vão desenvolver.
O romance é narrado a partir da visão de Bibiana, Belonísia e do olhar
de uma terceira personagem, que não faz parte da família e também não é
humana, embora tenha uma existência ancestral. É Santa Rita Pescadeira, uma
entidade que se manifesta nas rodas de Jarê, uma crença mantida pela comu-
nidade. A primeira parte, Fio de corte, é apresentada sob o olhar de Bibiana,
enquanto a segunda, Torto arado, é narrada por Belonísia. As visões das irmãs
se complementam e unem os pedaços que constituem a história. No entanto,
na leitura da terceira parte, Rio de sangue, se descobrem pontos fundamentais
para entender essa construção. Pelo olhar de Santa Rita Pescadeira a história
de Bibiana e Belonísia encontra a “História com H maiúsculo”, como o próprio
autor da obra define[1].
Essa entidade ancestral mostra o caminho para entender como as irmãs
passam a perceber a própria identidade e de que forma os fatos revelados de-
finem os rumos da vivência das duas. São resultados da vulnerabilidade social
imposta aos corpos negros, aos corpos femininos, aos corpos dos trabalhadores
do campo.
A alteridade e a relação de poder que constituem o relato apresentado na
história ficam mais bem demarcadas quando a fazenda Caxangá passa a ter novos
donos, Salomão e Estela. A passagem que ilustra como essa relação se deu, logo
após a compra da fazenda, é descrita na ocasião em que o casal volta à Chapada
e vai à casa de Firmina, uma das moradoras de Água Negra.

Almoçaram na casa de Firmina numa das visitas à fazenda,


enquanto escolhiam o lugar para construir a casa-grande.
Firmina matou uma galinha para receber os novos donos de
Água Negra, fez um pequeno banquete com abóbora e quia-
bo, picadinho de palma e arroz. Ela se sentia apenas uma
inquilina, embora morasse ali havia mais de quarenta anos,
e apesar de o dono estar ali fazia tão pouco tempo, sentia
como se devesse favores por estar na terra alheia. Salomão
comeu o que lhe serviram. A mulher não tocou na comida,
dizia que tinha uma alimentação especial, agradeceu por
tudo, mas ficou claro que sentia nojo. Das casas em condi-
ções ruins, das roupas, da precariedade de não se ter água
encanada (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 210 e 211).

Em outro trecho, que trata dos planos de Salomão para as terras onde
Bibiana e Belonísia vivem, também é possível identificar traços que marcam a
vulnerabilidade de Água Negra diante do sistema territorial e social que molda | 84
os corpos dessa comunidade, por meio da marginalização e exclusão.

Aquela fazenda parecia ser a menina dos olhos do novo se-


nhor. Ele almejava se tornar um grande produtor de café,
sem saber se era possível o cultivo naquela terra. Depois
quis criar porcos. Por último, quis fazer de Água Negra um
santuário ecológico, extasiado que estava com a abundân-
cia de água e mata preservada, que resistiam à depredação
da Chapada. Em nenhum dos seus planos o povo de Água
Negra tinha lugar. Eram meros trabalhadores que deveriam
ser deslocados para dormitórios. Deveriam viver efetiva-
mente longe da fazenda, porque eram intrusos em proprie-
dade alheia (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 211).

Essa marginalização do povo de Água Negra é originária dos tempos da


escravidão e se relaciona à formação do eu de Bibiana e Belonísia antes mesmos
delas nascerem. Como afirma Butler (2017), é algo que existe antes mesmo do
nascimento e que se sustenta como ação da linguagem, do discurso que atraves-
sa o corpo racializado e que também o origina. Há uma construção que vai sendo
materializada e que vai moldando a origem desses corpos.
A terra também é determinante para a vivência das personagens e remete
à ancestralidade. Como a história é contada a partir da perspectiva das popula-
ções que vivem no campo, a natureza não está externa ao homem. A terra é um
corpo, o autor cria um sentimento de humanidade para que os personagens se
conectem ao ambiente. Aquele chão onde vivem, a natureza e o clima ganham
personalidade própria e moldam a forma como a comunidade se relaciona com o
mundo. Olham para a natureza quase como se fosse uma pessoa, o que fica la-
tente na relação de Belonísia com a roça. “A terra era seu tesouro, parte do seu
corpo, algo muito íntimo” (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 246).
Essa relação com a terra conduzirá os episódios de violência narrados em
Torto Arado. Como o reconhecimento desses corpos negros passa pela terra, a
relação dos moradores de Água Negra com a propriedade não se baseia apenas
em uma relação econômica, no sentido patrimonial. A luta pela terra é a busca
pelo direito à vida, pelo direito de existir. A luta é feita contra a precariedade da
vida e pelo direito de integridade corporal e autodeterminação, como bem pon-
tua Judith Butler.

Ao mesmo tempo, essencial para tantos movimentos polí-


ticos é a reivindicação de integridade corporal e autodeter-
minação. É importante afirmar que nossos corpos são, em
certo sentido, nossos, e que temos o direito de reivindicar
direitos de autonomia sobre eles. Essa afirmação é tão ver-
dadeira para as reivindicações de direitos de lésbicas e gays
à liberdade sexual quanto para as reivindicações do direito
de pessoas trans à autodeterminação, assim como para as
reivindicações de pessoas intersexuais de estarem livres de
intervenções médicas e psiquiátricas coercivas. Ela conti-
nua sendo verdadeira para que todas as reivindicações se-
jam livres de ataques racistas, físicos e verbais, assim como
a reivindicação do feminismo à liberdade reprodutiva, e | 85
também para aqueles cujos corpos trabalham sob coação,
econômica e política, sob condições de colonização e ocu-
pação (BUTLER, 2019, p. 45 e 46).

A busca pela autonomia está evidenciada no episódio do assassinato do


personagem Severo. O marido de Bibiana é quem vai iniciar a tomada de cons-
ciência política da comunidade e começar a reivindicar os direitos do povo de
Água Negra. Essa busca vai se caracterizar como parte de uma aspiração norma-
tiva com o propósito de maximizar a proteção e as liberdades da população qui-
lombola retratada na história. O uso da violência será a forma encontrada para
combater esse despertar pelo direito de existir. O assassinato de Severo funciona
como uma maneira de tornar invisível Água Negra e manter a comunidade em um
status de não existência.

Se a violência é cometida contra aqueles que são irreais, en-


tão, da perspectiva da violência, não há violação ou negação
dessas vidas, uma vez que elas já foram negadas. Mas elas
têm uma maneira estranha de permanecer animadas e assim
devem ser negadas novamente (e novamente). Elas não po-
dem ser passíveis de luto porque sempre estiveram perdidas
ou, melhor, nunca “foram”, e elas devem ser assassinadas, já
que aparentemente continuam a viver, teimosamente, nesse
estado de morte (BUTLER, 2019, p. 54).

O relato do que sucedeu após a morte de Severo reforça o que Butler diz
ser uma vida que não pode ser passível de luto. Dois trechos narrados por Santa
Rita Pescadeira traduzem esse sentimento vivido por Bibiana e pela comuni-
dade. No primeiro, transcrito a seguir, os moradores são obrigados a derrubar
o portão do cemitério para que Severo fosse sepultado junto a Zeca Chapéu
Grande, o pai das irmãs.

Fazia tempo que não enterravam ninguém na Viração. O


portão estava fechado por determinação de Salomão, o
dono que sucedeu a família Peixoto. Alguém se lembrou de
perguntar a Bibiana para onde ela queria que o corpo fos-
se levado. Queria que o marido fosse para a Viração, para
descer ao lado de Zeca Chapéu Grande. Os irmãos e Zezé
carregaram o corpo pelo caminho de terra. Belonísia seguiu
atrás unida aos sobrinhos. Hermelina caminhava amparada
por Servó e pelas filhas.
O pequeno portão estava cerrado com corrente e cadea-
do. Pararam a marcha para decidir o que fazer. Bibiana, que
passou quase todo o velório sem falar, pediu que o cemi-
tério da Viração fosse aberto, num tom de voz que muitos
não conseguiram escutar. Seguiram o que julgavam ter ou-
vido. Foram muitas as mãos agitadas sacudindo o portão
velho, como muitos antepassados haviam agitado o corpo
para fugir dos castigos e grilhões do cativeiro. O portão
tombou no chão como uma corrente se desfazendo no ar
(VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 208 e 209).
| 86
Enquanto, nesse primeiro trecho, a privação do direito ao luto se dá por
ordem de Salomão, o proprietário das terras, que não autoriza sequer o enterro
de Severo, no segundo a invibilização do corpo racializado passa a ser imposta
pelo descaso do poder público, ao não proceder com uma investigação para que
se descubra a real causa do assassinato.

Pareceu, durante um breve período, que as coisas haviam


mudado, talvez houvesse justiça para o que tinha ocorrido.
Iriam investigar a morte de um homem simples como inves-
tigariam a morte de um fazendeiro ou de qualquer homem
poderoso da cidade. Mas, algumas semanas depois, surgiu a
notícia de que o inquérito havia sido concluído. Que haviam
descoberto um plantio de maconha numa área próxima aos
marimbus. Que Severo havia sido morto numa disputa do
tráfico de drogas na região (VIEIRA JÚNIOR, 2019, p. 216).

A morte de Severo, assim como a de Zeca Chapéu Grande e até a de Tobias


(o homem com quem Belonísia viveu) são pontos estratégicos do enredo para que
a história seja contada pelo viés das três narradoras, de modo a evidenciar a força
feminina presente em cada uma delas. O corpo negro feminino é uma potência de
resistência no romance. O autor, Itamar Vieira Júnior, em entrevista ao programa
Roda Vida (TV Cultura), assinala essa intenção, ao responder uma pergunta sobre
o carisma das personagens.

Percebi que essa história precisava ser narrada pelas perso-


nagens mulheres. É um exercício que a gente faz de tentar
aproximar essa história da realidade. E essa foi a realidade
que eu encontrei no campo brasileiro nos últimos anos, de
encontrar mulheres que exercem essa posição de poder, de
liderança nas suas comunidades, nas suas famílias, no in-
terior do Nordeste, principalmente, que são os lugares por
onde eu caminho. E contar essa história, pra mim, de uma
comunidade que vive em situação de servidão, tributária
desse regime de escravidão, que parece nunca ter acabado
em nosso país, eu queria contar uma história que falasse
das personagens mais vulneráveis desse sistema. Porque
a gente tem ali os homens e as mulheres numa situação
de extrema vulnerabilidade, mas as mulheres também são
atravessadas pelo machismo, pelas forças do patriarcado.
Dentro desse contexto, com este grupo, elas estão numa
situação de maior vulnerabilidade ainda. E, paradoxalmen-
te, elas vêm exercendo essa posição de liderança, essa po-
sição de poder em suas comunidades. E como a literatura é
o terreno da liberdade, eu posso me deslocar para o lugar
que eu quero, que eu desejo, exercer essa alteridade. Não
foi nenhum obstáculo escrever essa narrativa a partir das
personagens femininas (VIEIRA JÚNIOR, 2021, Roda Viva).

Ao assumirem o protagonismo na família e na comunidade, Bibiana e Be-


lonísia também passam a expor as visões diferentes que têm do mundo. Enquanto
Bibiana sonha em ser professora e foge para a cidade para se formar, regressando
depois com uma família de muitos filhos, Belonísia é uma força da natureza, pri-
vada da maternidade e cuja única educação que lhe interessa são os ensinamen- | 87
tos do pai sobre a terra. Aos poucos, ambas desenvolvem uma consciência políti-
ca ao seu próprio modo. Bibiana se aproxima de sindicatos e movimentos sociais
para reivindicar seus direitos. Belonísia luta no campo, enfrentando a violência
machista e a ganância dos poderosos, ela não se vê dissociada da terra. Cada uma
é uma voz com maneiras distintas de olhar o mundo.
Esse olhar feminino marca, então, uma posição na história da comunidade
de Água Negra. O livro trata de permanências, mas na junção desses três cor-
pos femininos (Bibiana, Belonísia e Santa Rita Pescadora) o ato de resistência se
constitui. O ciclo de permanência no regime de servidão é quebrado pela morte
de Salomão, episódio revelado pela “encantada”. A personagem, por não ser hu-
mana, possui uma ampla visão que liga o passado ao presente e cria condições
de caminhos para o futuro, soando como a própria consciência social do leitor.
Santa Rita Pescadora se incorpora em Bibiana e Belonísia para que a comunidade
de Água Negra, com a misteriosa morte de Salomão (a onça), conseguisse resistir
à violência e, dessa forma, passasse a existir.

Meses depois, a notícia dos assassinatos trouxe funcio-


nários de órgãos públicos, que ouviram moradores num
processo de reintegração de posse. Aquela chegada foi
celebrada com alívio. Tudo permanecia incerto, não havia
prazos para a solução do problema, mas aquela movimen-
tação indicava que a existência de Água Negra já era um
fato. Não eram mais invisíveis, nem mesmo poderiam ser
ignorados (VIEIRA JÚNIOR, 2019. p. 527).

A resistência em Torto Arado pode ser encontrada também nas crenças do


povo. As noites de Jarê, comandadas por Zeca Chapéu Grande, eram uma mani-
festação pela qual a comunidade se afirmava, antes mesmo de iniciar a tomada
de sua consciência política, quando Severo e Bibiana voltaram da cidade grande
para Água Negra. A religião, praticada exclusivamente na Chapada Diamantina,
mescla referências da umbanda, do candomblé, do catolicismo, do xamanismo e
do espiritismo, sendo regida pelos encantados, entidades presentes no cotidiano
da comunidade, como a Santa Rita Pescadeira. Foi por meio da manifestação dela
que Zeca Chapéu Grande se tornou um líder espiritual da comunidade, capaz de
preparar remédios e realizar tratamentos para curar o povo. Também com a bên-
ção dos encantados, ele intermediava conflitos entre os trabalhadores. O Jarê
aparece como uma resistência espiritual, cultural e política muito antes das lutas
sindicais. Era a forma como a comunidade entendia o mundo e sua realidade.
Uma realidade formada pela profunda desigualdade brasileira forjada na
escravidão, a partir da escritura fundiária e de fenômenos como a seca do ser-
tão. Algo que ainda é possível encontrar nos rincões do Brasil. Esse cenário, que
também foi retratado há décadas em outros romances literários como O Quinze,
de Rachel de Queiroz, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, ainda persiste e inspi-
rou a história de Itamar Vieira Júnior. A ferramenta usada para rasgar a terra, o
torto arado, que dá nome ao livro, é um objeto que faz a ligação temporal dessa | 88
realidade que ainda persiste no século XXI. Usado por Belonísia e por seus ante-
passados na lida com a terra, ele atravessa o tempo para representar a herança
escravocrata de tantas desigualdades.
Esse simbolismo aparece também nas palavras não ditas por Belonísia
desde a infância, quando ficou muda. A faca mantida escondida por Donana
(furtada por ela tempos atrás da bolsa de um convidado ilustre da fazenda Ca-
xangá) é um símbolo de silenciamento. Ao perder a língua e, consequentemen-
te, a voz, Belonísia acaba falando pelas mulheres negras que são violentadas
(fisicamente e pelo preconceito) e esquecidas pelas políticas públicas do gover-
no. Ao mesmo tempo, no caminhar da história, a faca, que havia sido descartada
por Donana, é resgatada por Belonísia, nos pertences de Tobias, para dar voz a
ela novamente, tanto na busca pela sua identidade como mulher negra e traba-
lhadora do campo, como na emancipação de Água Negra, diante de Salomão e
do sistema de servidão que ele representava. A faca é o instrumento utilizado
no ato de resistência orquestrado por Bibiana, Belonísia e Santa Rita Pescadei-
ra. “Essa faca corta a vida das personagens muitas vezes, é um símbolo desse
duplo que são as irmãs, que se dividem para depois ser uma só”, explica o autor
em entrevista ao jornal El País[2]. As irmãs, que foram unidas na infância após o
acidente com a faca, acabaram se dividindo pelos rumos que a vida de cada uma
delas tomou, mas se unem novamente para materializar a tomada de consciên-
cia pelo direito à terra e, mais ainda, para encontrar e afirmar sua identidade, no
direito de existir como mulheres negras.

Notas
1.
Afirmação foi feita em entrevista para o canal no YouTube “Litera Tamy”, publicada em 9 de
out. de 2019 e disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=KRMOUcycaS0
(Acesso em 20 abr. 2021).

2.
Entrevista publicada em 3 de fev. 2021, disponível no endereço https://brasil.elpais.com/cultu-
ra/2020-12-02/tudo-em-torto-arado-ainda-e-presente-no-mundo-rural-brasileiro-ha-pessoas-
-em-condicoes-analogas-a-escravidao.html (Acesso em 21 abr. 2021).

Referências

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de


luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
| 89
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo
Horizonte: Autêntica, 2017.

BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência.


Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

ENTREVISTA COM ITAMAR VIEIRA JÚNIOR. Programa Roda Viva.


São Paulo: TV Cultura, 15 de fevereiro de 2021. Programa de TV.

VIEIRA JÚNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2019.

Joarle Magalhães Soares é jornalista vinculado ao Instituto Federal de Educa-


ção, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais. Mestre em Linguística. Especialista
em Criação e Produção em Rádio e TV. Doutorando pelo Programa de Pós-gra-
duação em Estudos de Linguagens do CEFET-MG. Pesquisador na área da aná-
lise do discurso e do telejornalismo.

| 90
Juliano
Vasconcelos
Magalhães
Tavares
Sexo e política em
tempos de impea-
chment: as questões
queer em trechos do
documentário
Excelentíssimos

Introdução
16.04.2016 – Por 367 vo-
tos a 137[1], a Câmara dos
Deputados aprova parecer
da Comissão Especial,
admitindo jurídica e politicamente a acusação, e autoriza, no Senado Federal,
a instauração do processo de impeachment contra a então presidenta Dilma
Rousseff.
Essa data foi explicitada no sentido de contextualizar o estudo. Em suma,
grande parte das filmagens de Excelentíssimos (2018)[2] foi realizada durante
o período pré-impeachment até a instauração do processo. Para a realização
deste artigo, foram identificados e analisados três trechos do filme que pos-
suem forte relação com o movimento queer que, segundo Louro (2001, p.546),
significa “colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier”, em es-
pecial a “heteronormatividade”.
Assim, o trabalho foi dividido em quatro seções: a primeira delas traz
uma discussão sobre questões relacionadas ao formato documentário, depois
são apresentadas características do filme Excelentíssimos. Posteriormente, são
trazidos aspectos teóricos relativos à política queer e são feitas análises relati-
vas aos trechos selecionados, bem como considerações finais.

1. Documentário: aspectos gerais

De acordo com Nichols (2005), qualquer filme pode ser considerado um


documentário[3], isso por que “mesmo a mais extravagante das ficções eviden-
cia a cultura que a produziu e reproduz a aparência das pessoas que fazem par-
te dela” (NICHOLS, 2005, p.26). No entanto, o autor divide o cinema da seguinte
forma: há dois tipos de filme, o primeiro deles envolve a satisfação dos desejos.
Normalmente, é chamado de ficção. Por outro lado, também existem os docu-
mentários de representação social, que geralmente não envolvem a ficção. Tal
material faz parte da realidade em que vivemos, ou mesmo daquilo que pode
vir a acontecer. “Esses filmes também transmitem verdades, se assim quiser-
mos. Precisamos avaliar suas reivindicações e afirmações, seus pontos de vista e
argumentos relativos ao mundo como o conhecemos, e decidir se merecem que
acreditemos neles. (NICHOLS, 2005, p.27).
O autor explica ainda que, no que diz respeito aos documentários, é
possível classificá-los em subgêneros, de cordo com seus traços característi-
cos, sendo divididos entre poéticos, expositivos, participativos, observativos,
reflexivos e performáticos. Isso não significa que esses aspectos determinem
a estrutura do filme como um todo, ou seja, que estejam presentes em todo o
documentário, mas sim que sejam a forma dominante na tela. (NICHOLS, 2005).
Como o objetivo deste estudo recai especificamente sobre o subgênero partici-
pativo, somente as características desse gênero serão explicitadas.
Ainda segundo Nichols (2005), assim como antropólogos que fazem tra-
balhos de campo, documentaristas também vivem em meio a outras pessoas,
participando das ações que estão ocorrendo. No entanto, há um detalhe impor-
tante: o documentarista continua interessado em comover, persuadir o público.
Essas informações muito dizem sobre o gênero participativo, no qual: | 92
o cineasta despe o manto do comentário com voz-over,[4]
afasta-se se da meditação poética, desce do lugar onde
pousou a mosquinha da parede e torna-se um ator social
(quase) como qualquer outro. (Quase como qualquer outro
porque o cineasta guarda para si a câmera e, com ela, um
certo nível de poder e controle potenciais sobre os aconte-
cimentos.)” (NICHOLS, 2005, p.154).

Para o autor, quando o cineasta entra na “cena”, o foco sai das generali-
zações trazidas por uma sequência de imagens sob uma determinada perspec-
tiva e vai para o encontro entre o cineasta e o tema apresentado. Assim, todos
que fazem parte daquele filme, inclusive o cineasta, estão envolvidos em uma
mesma “arena histórica”. “Como ‘cinema-verdade’, a ideia enfatiza que essa é a
verdade de um encontro em vez da verdade absoluta ou não manipulada” (NI-
CHOLS, 2005, p.155). No caso de Excelentíssimos, o cineasta-narrador se apre-
senta ao público logo no início da trama.
Outra característica do documentário, independentemente do subgêne-
ro, é o engajamento por meio da representação. Assim como representantes
eleitos pelo povo, “os documentaristas muitas vezes assumem o papel de re-
presentantes do público. Eles falam em favor dos interesses dos outros, tanto
dos sujeitos temas de seus filmes quanto da instituição ou agência que patro-
cina sua atividade cinematográfica” (NICHOLS, 2005, p.28). Em relação ao en-
gajamento, Deleuze (2005) afirma que, especialmente no Terceiro Mundo, o
cineasta está diante de um “público que falta”, referindo-se a fatores como
alienação ou analfabetismo. Portanto, é preciso que o cinema contribua para a
invenção de um povo. Então, “o povo que falta é um devir, ele se inventa, nas
favelas e nos campos, ou nos guetos, com novas condições de luta, para os quais
uma arte necessariamente política tem de contribuir” (DELEUZE, 2005, p. 260).

2. Sobre o filme

Como o próprio diretor Douglas Duarte afirma, Excelentíssimos tem esse


nome porque é a maneira como os parlamentares são designados, mas também
há uma ironia a esses representantes do povo. Afinal, segundo o próprio cineas-
ta, o fato de muitos desses parlamentares não perceberem que isso é uma ironia
diz muito acerca deles. Ainda de acordo com o diretor, “o filme quer, de certa
forma, intervir no debate político, esclarecer um pouco a ideia das pessoas e
tirá-las dessa falta de rumo que estamos vivendo”. (DOUGLAS, 2018). Duarte
conta ainda que, inicialmente, a ideia era construir um retrato do Congresso
Nacional, mas quando iniciou os planos para as filmagens, percebeu que seu
projeto teria que passar por uma mudança, pois já naquele momento, a questão
do impeachment de Dilma Rousseff era recorrente na Casa Legislativa (EXCE-
LENTÍSSIMOS..., 2018).
Para Escorel (2018a), isso gerou algumas lacunas no filme, afinal, há certa | 93
ambiguidade entre a proposta inicial de filmar os bastidores do Congresso, o
que está presente no título, e acompanhar o que estava acontecendo naquele
momento histórico para o país. Também não fica claro como o diretor já dedi-
ca certo tempo do documentário ao então pouco expressivo deputado federal
Jair Bolsonaro. Se a edição do filme foi finalizada em abril de 2018, como o en-
tão diretor teria previsto a ascensão de Bolsonaro à Presidência da República?
Fica a dúvida se algumas sequências do filme foram inclusas posteriormente
(ESCOREL, 2018a). Já para Haddad (2018), embora esse não seja o tema central
do filme, imagens como a do então deputado federal Jair Bolsonaro discur-
sando demonstram o fortalecimento da bancada conservadora do Congresso
Nacional a caminho das eleições de 2018.
De fato, os dois lados (direita e esquerda) são, em vários aspectos, apre-
sentados no filme. Sem dúvida, há uma variedade de exemplos de como o Bra-
sil estava dividido naquele momento, o que notadamente se reflete nos dias
atuais. Foram necessários meses de filmagens nas dependências da Câmara
dos Deputados (isso é citado no início do documentário). Não por acaso, os
trechos que serão analisados neste estudo, todos relativos à política queer,
foram captados justamente nessa fase do processo.
O filme foi lançado em circuito nacional no dia 22 de novembro de
2018, tendo feito parte de festivais como o Festival de Cinema de Brasília.
O trabalho foi desenvolvido a partir de uma coprodução da Esquina Filmes
com o Canal Curta![5]. Tanto o trailer[6] como o filme estão disponíveis no
YouTube. No caso da produção completa, é possível comprar ou alugar[7]. A
duração é de 152min.

3. Movimento Queer: o abraço na diferença

De acordo com Louro (2001, p.546), “queer pode ser traduzido por es-
tranho, ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se
constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres ho-
mossexuais”. Ainda segundo a autora, mesmo sendo utilizado pejorativamente,
movimentos homossexuais passaram a fazer uso do termo, imprimindo-lhe um
novo sentido: fazer oposição, contestar contra os mais diversos tipos de norma-
lização, em especial, a heteronormatividade. O que não quer dizer que a própria
estabilidade e normalização propostas pelo movimento homossexual dominante
também não sofram críticas do grupo. Afinal, ser “queer representa claramente
a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de
ação é muito mais transgressiva e perturbadora” (LOURO, 2001, p. 546). De ma-
neira mais enfática, Preciado afirma que:

a política de multidão queer não repousa sobre uma iden-


tidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição
pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre | 94
uma multiplicidade de corpos que se levantam contra
os regimes que os constroem como “normais” ou “anor-
mais”: são os drag kings, as gouines garous, as mulheres de
barba, os transbichas sem paus, os deficientes-ciborgues
(PRECIADO, 2011, p. 16).

Embora esse movimento tenha partido das ruas, um grupo bem diver-
sificado de intelectuais e estudiosos também passou a utilizar esse termo em
seus trabalhos e levar o assunto a uma perspectiva teórica. Louro (2001) aponta
vários deles: Michel Foucault, que tratou da multiplicação das sexualidades,
Jacques Derrida, que propõe a desconstrução de binarismos e Judith Butler,
que escreveu, por exemplo, sobre as relações entre sexo e gênero, as quais são
fundamentais para este estudo.
Para Butler (2019), a distinção entre sexo e gênero, originalmente con-
cebida para questionar aspectos biológicos, atende à tese de que o sexo não
tem relação com o gênero. O gênero seria culturalmente construído, o que
leva a concluir que um não é a causa do outro, um não reflete o outro e, por
fim, um não se restringe ao outro. Portanto, “supondo por um momento a
estabilidade do sexo binário, não decorre daí que a construção de ‘homens’
aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo ‘mulheres’ in-
terprete somente corpos femininos” (BUTLER, 2019, p.24). A autora vai além:
mesmo que em geral esse binarismo (no corpo humano) não traga problemas,
isso não significa que o número de gêneros tenha que estar limitado a dois.
Pelo contrário, “quando o status construído do gênero é teorizado como radi-
calmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutu-
ante” (BUTLER, 2019, p. 24, grifo meu).
No entanto, essa drástica ruptura também gera problemas. “Podemos re-
ferir-nos a um ‘dado’ sexo ou a um ‘dado’ gênero, sem primeiro investigar como
são dados o sexo e/ou gênero e por que meios? E o que é afinal? o ‘sexo’? [...]
Teria o sexo uma história?” (BUTLER, 2019, p. 25). Diante de perguntas que cer-
tamente até então poucos de nós havíamos nos feito, a autora dá respostas que
provocam reflexões: “talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão cul-
turalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo tenha sido o gê-
nero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente
nenhuma” (BUTLER, 2019, p. 25). Portanto, o gênero não pode ser visto como
uma simples inscrição cultural inserida em um sexo previamente determinado,
“ele é o meio discursivo/cultural pelo qual “natureza sexuada” ou ‘um sexo na-
tural’ é produzido e estabelecido [...]” (BUTLER, 2019, p. 25). Em um primeiro
momento, isso pode parecer não fazer nenhuma diferença no cenário social em
que vivemos, mas para a autora, essa construção cultural do gênero acabou
levando a “ruínas” que surgiram no debate contemporâneo. Afinal, passa-se “a
impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação
de que a biologia é o destino. Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna
o destino” (BUTLER, 2019, p. 26). E disso para as velhas controvérsias acerca das
questões sexuais não é um caminho longo, ou tudo é determinado a partir do | 95
sexo ou as pessoas são assim porque assim o decidiram e, ao menos para parte
da sociedade, nada disso é (e talvez nunca venha a ser) da ordem natural. É o
que trataremos agora.
De acordo com Emcke, a ideia de uma ideologia original ou ordem natural
diz respeito a uma suposta superioridade do “nós” que estaria atrelada à tradi-
ção familiar: “quando a sociedade era ‘pura’, quando todos supostamente com-
partilhavam os mesmos valores, quando as mesmas convenções prevaleciam,
nesse passado imaginado tudo era ‘mais verdadeiro’, ‘mais autêntico’, ‘mais cor-
reto’” (EMCKE, 2020, p.115). Em meio a isso, o presente nem sempre é visto
positivamente e as pessoas passam a ser enxergadas e valorizadas a partir dos
ideais originais. Além disso, todos os indivíduos (e corpos) que estão fora desse
tipo de vida são vistos como “antinaturais”, “doentes”, “indesejados”, algo que
não estava previsto na natureza. “Dependendo do contexto político ou ideo-
lógico, a crítica ao ‘antinatural’ ou ao ‘não original’ está associada à acusação
de ‘ocidentalização’, ‘degradação da verdadeira fé’, ‘doença da modernização’,
‘pecaminosidade’ ou ‘perversão’” (EMCKE, 2020, p. 115, grifo meu). É interes-
sante observar como esse discurso ganhou força no Brasil nos últimos anos. Os
trechos de Excelentíssimos que serão analisados foram captados em 2016 e já
demonstravam tal comportamento.
Posto isso, a autora se volta para a relação entre a naturalidade/origina-
lidade de um corpo com seu reconhecimento social e legal. Afinal, questiona
Emcke:

em uma era de ciborgues, das impressoras 3D, das inova-


ções biogenéticas e sintéticas, da medicina reprodutiva, do
Antropoceno, que tipo de conceito de naturalidade é esse
que ainda deveria existir e que se vincula a direitos legais?
Por que um corpo modificado ou indefinido deveria ter me-
nos dignidade, menos beleza ou menos reconhecimento?
(EMCKE, 2020, p. 118, grifo meu).

A autora atenta para o fato de que muitos de nós, independente do gêne-


ro ou sexualidade, não nos identificamos com certas características que temos.
No caso dos transexuais, isso é algo muito mais comum. Em verdade, “há uma
enorme variedade de pessoas trans, de experiências e práticas performativas
de apresentação e expressão de si mesmo” (EMCKE, 2020, p. 122), mas também
é verdade que muitas passam a se apresentar (fisicamente) como se sentem
internamente, dentro de um modelo masculino ou feminino. Mesmo assim, re-
petidamente são interpeladas por um nome com o qual não se identificam: “um
nome também sempre confirma uma existência social. A maneira como sou in-
terpelada também determina minha situação no mundo. Se me são constante-
mente relacionadas palavras pesadas ou ofensivas, isso desloca minha posição
social.” (EMCKE, 2020, p. 121).
Daí a importância de se conceder o direito básico dessas pessoas serem
reconhecidas legalmente por um novo nome, diferente de um nome de nas- | 96
cença com o qual não se identificam (e talvez nunca tenham se identificado),
independentemente de terem passado por tratamentos ou cirurgias de redesig-
nação sexual. No período em que as imagens de Excelentíssimos foram grava-
das, essa ação ainda não era permitida no Brasil, mas de alguma forma já fazia
parte das discussões em vários âmbitos da sociedade, inclusive na Câmara dos
Deputados, como veremos a seguir.

3.1 O queer em cena

Há três trechos no filme Excelentíssimos, de Douglas Duarte, que envol-


vem questões queer, uma delas ocorrida durante o período pré-impeachment
de Dilma Rousseff. Outras duas ocorreram durante a votação que instaurou o
processo em abril de 2016. Tratemos da primeira delas:

3.1.1 1º trecho: uma discussão que revela muitos preconceitos

O cineasta traz, no filme, uma sessão da CPI Funai e Incra[8] realizada às


vésperas do impeachment, com o objetivo de tomar o depoimento do então se-
cretário de Finanças e Administração da Confederação Nacional dos Trabalha-
dores na Agricultura (Contag), Aristides Veras dos Santos. Mas o que interessa
a este artigo é uma discussão que ocorre especificamente entre os deputados
federais Éder Mauro (PSD) e Érika Kokay (PT), durante a sessão. A discussão
acontece logo após a fala do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), que
ao lado se seu pai, o então deputado federal Jair Bolsonaro (sem partido), está
presente na sessão. Eduardo chega a pedir que se reserve um tempo de sua fala
para as palavras de Éder Mauro, mas o próprio Eduardo afirma que regimental-
mente não seria possível. Isso era o que Érika estava dizendo que poderia ser
feito (ela e outros deputados já haviam pedido “questão de ordem” algumas ve-
zes na sala, diante de perguntas feitas a Aristides que não faziam parte do ob-
jeto da CPI e que, portanto, iam contra o regimento daquela Casa Legislativa).
Com isso, Éder replica: “qual o problema, Érika, está com medo de quê? Você tá
como medo de quê?” (EXCELENTÍSSIMOS, 2018, 98min45) Ao que a deputada
responde: [...] “o senhor está no Parlamento e me respeite, me respeite!”. Ela
diz isso várias vezes. A resposta do deputado é imediata: “[...] quem é você para
me pedir respeito? Quem é você para me pedir respeito? Quem é você para me
pedir respeito, quando tem um projeto nesse parlamento para que crianças tro-
quem de sexo? Ou você não tem um projeto para isso? Criança trocar de sexo, é
uma vergonha para você [...]”. Nesse momento, os dois já estão frente a frente,
a uma certa distância, apontando o dedo incisivamente um para o outro, con-
forme figura 1, repetindo praticamente as mesmas palavras. Tal cena nos leva
a associar Kokay à Antígona, na reflexão de Butler (2014), na medida em que
ambas transgridem as normas de gênero e assumem posturas masculinas diante | 97
do poder. No caso de Antígona, esse poder é representado pelo rei Creonte[9].
Já no caso de Kokay, fica nítido, pelas cenas do filme, que ela é uma das únicas
mulheres dentro de um recinto lotado de homens que seguem o modelo hete-
ronormativo e, mais do que isso, ela é a única mulher que se pronuncia (e ainda
enfrenta um deles). É importante lembrar, ainda, que a Câmara dos Deputados
é uma das instâncias máximas do poder legislativo no país, sendo tradicional-
mente dominada por esses homens.

Figura 1 – Deputados discutindo (dedo em riste)

Fonte: Excelentíssimos (2018)

Além disso, embora o filme seja a representação de um cineasta diante


de uma realidade e, por essa razão, passou por várias edições, o debate acalo-
rado entre os dois deputados parece não ter sofrido cortes. O projeto ao qual
o deputado Éder Mauro se referia era o 5002/2013, de Érika junto ao então de-
putado federal Jean Wyllys (Psol) e previa que transexuais pudessem oficial-
mente mudar de nome, a partir dos 18 anos, sem autorização dos pais e sem a
necessidade de terem passado por diagnósticos ou qualquer tipo de tratamento
(cirúrgico ou não). O projeto também previa que, caso fossem menores de 18
anos, seria necessária autorização dos pais. Sem isso, o adolescente teria que
“recorrer à assistência da Defensoria Pública para autorização judicial, median-
te procedimento sumaríssimo [...]” (SILVEIRA, 2013). Ainda segundo a proposta,
as pessoas trans poderiam utilizar um nome social, sem a necessidade de alterar
os documentos em cartório, sendo que a aceitação do novo nome seria obriga-
tória em órgãos públicos e empresas em geral (SILVEIRA, 2013). Já em relação
ao sexo, a troca poderia ser feita pelo SUS após os 18 anos. A autorização dos
pais, antes dos 18 anos, também era um dos requisitos necessários. Se os pais | 98
não concordassem, o caso teria que ir à justiça, como inclusive já ocorria na-
quela época. Ou seja, as palavras do deputado, além de equivocadas, têm forte
relação com a suposta superioridade de um “nós” tratada por Emcke (2020).
Afinal, apenas por apoiar tal causa, Kokay não mereceria respeito do deputado
Éder Mauro (Quem é você para me pedir respeito?)?

3.1.2 2º trecho: a justificativa do “sim” na instauração do impeachment

Fato é que o desrespeito parece mesmo não estar ligado somente à figu-
ra da deputada. Se o problema fosse somente ela, certamente Mauro não teria
justificado seu voto em plena instauração do impeachment com as seguintes
palavras, “em nome do meu filho, Éder Mauro, filho de quatro anos e do Ro-
gério, que juntos com minha esposa formamos a família no Brasil que tanto
esses bandidos querem destruir com proposta de que criança troque de sexo e
aprenda sexo nas escolas com seis anos de idade [...], eu voto sim” (EXCELEN-
TÍSSIMOS, 2018, 120min52, grifo meu). É importante ressaltar que, nesse caso, o
discurso não ficou registrado apenas nas câmeras da equipe de Douglas Duarte,
mas em TVs de todo o Brasil.
Sem dúvida, a sua justificativa evidencia a seguinte divisão: de um lado,
aqueles que, de alguma forma, se consideram “mais corretos” por fazerem par-
te da tradicional família brasileira. Do outro lado, aqueles que não se inserem
nesse modelo, ou que de alguma forma, entendem esses novos modos de viver
a vida. Nas palavras de Mauro, são os “bandidos” que querem destruir a tra-
dicional família brasileira (como a dele). Então, sua contribuição é o “sim” ao
impeachment para livrar o país desse mal, lembrando que tanto Kokay como
Wyllys faziam parte de partidos esquerdistas naquele período. Nesse sentido,
vale lembrar Preciado:

a sexopolítica é uma das formas dominantes da ação bio-


política no capitalismo contemporâneo. Com ela, o sexo (os
órgãos chamados sexuais, as práticas sexuais e também os
códigos de masculinidade e de feminilidade, as identidades
sexuais normais e desviantes) entra no cálculo do poder, fa-
zendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de nor-
malização das identidades sexuais um agente de controle da
vida (PRECIADO, 2011, p.11, grifo meu).

Mas as palavras de Preciado não se atêm apenas a uma justificativa exibi-


da em um documentário. Vão muito além disso: embora tenha dado entrada na
Câmara dos Deputados em 2013, o projeto de lei nunca foi à votação naquela
Casa Legislativa, seguramente em razão de seu teor. Foi preciso que o Supremo
Tribunal Federal autorizasse que pessoas trans mudem de nome e sexo sem
necessidade de cirurgia[10], o que veio a ocorrer somente em 2018, cinco anos
depois da criação do projeto. | 99
3.1.3 3º trecho: o voto gay e a reação ao voto

A última sequência no filme que envolve a política queer é o voto do


então deputado federal Jean Wyllys, conhecido nacionalmente por ter parti-
cipado de um programa de televisão aberta e, nesse programa, ter se assumido
gay. Ao votar contra o impeachment, ele afirmou, entre outras palavras, que
“[...] quero dizer que estou constrangido por participar dessa farsa, dessa elei-
ção indireta [...]” e que seu voto seria “[...] em nome dos direitos da população
LGBT [...]” (EXCELENTÍSSIMOS, 2018, 127min18). A sequência mostra também
que sua fala gera forte reação de ambos os públicos que estavam acompanhan-
do a votação na Esplanada dos Ministérios. De um lado, brasileiros contrários ao
impeachment o aplaudem; do outro, parte dos favoráveis ao processo o atacam
com palavras como “veado”, “bichona”, como se a sexualidade de Wyllys tives-
se relação com um processo que definiria o futuro do país:

Figura 2 – Público em reação ao voto de Wyllys

Fonte: Excelentíssimos (2018)

As palavras pejorativas utilizadas para se referirem ao deputado tam-


bém revelam a suposta superioridade de um “nós”, como se o fato de Wyllys
ter uma sexualidade diferente da convencional o descredenciasse para atuar
como parlamentar e votar de acordo com suas próprias convicções. Esse fato
ainda é reforçado, pois apenas a questão da sexualidade se destacou fazendo
parte das discussões. Em relação a todos os outros deputados, tal questão
sequer é mencionada.

| 100
Considerações Finais

Como foi dito, o cinema-documentário é uma representação da realida-


de, que reflete fortemente o olhar do cineasta. Por isso, não foi intuito, nes-
te artigo, relacionar os personagens que aparecem nos trechos selecionados a
questões político-partidárias brasileiras. Logicamente, também não poderia ser
apagado o contexto em que as imagens foram captadas (lembrando que dos
três trechos selecionados, o conteúdo de dois deles foi transmitido em rede
nacional). Fato é que, após análise desses trechos, fica evidente a constata-
ção de como a questão sexual, segundo palavras de Preciado (2011), entra no
cálculo do poder. Em uma das maiores instâncias legislativas do país, a hetero-
normatividade impera e, mais do que isso, mesmo em tempos que muitas vezes
dizemos “modernos”, corpos dissidentes, sejam eles homossexuais ou pessoas
que apoiam causas transexuais – considerando apenas os exemplos do filme
– constantemente não têm voz. E quando isso acontece, acabam sendo alvo
de críticas abusivas somente por serem o que são e não se encaixarem em uma
suposta tradição familiar. Por isso, a importância de se incentivar pessoas queer,
ou que simpatizam com as causas queer, a adentrarem o meio político.

Notas
1.
https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/des-
taque-de-materias/impeachment-da-presidente-dilma.


2.
O autor deste artigo desenvolve estudos acerca de quatro filmes relacionados ao impeachment
da então presidente Dilma Rousseff, Democracia em Vertigem, Excelentíssimos, O muro e O pro-
cesso, sendo que o segundo envolve, em sua trama, questões relacionadas ao movimento queer.

3.
Há inúmeras definições relacionadas ao termo “documentário”. No entanto, nesse estudo, uti-
lizaremos a seguinte: “se o documentário fosse uma reprodução da realidade (...) teríamos sim-
plesmente a réplica ou cópia de algo já existente. Mas ele não é uma reprodução da realidade, é
uma representação do mundo em que vivemos. Representa uma determinada visão do mundo,
uma visão com a qual talvez nunca tenhamos deparado antes, mesmo que os aspectos do mun-
do nela representados nos sejam familiares (NICHOLS, 2005, p. 47).

4.
Voz alheia que se sobrepõe às imagens, recurso muito comum em documentários (LINS;
MESQUITA, 2008).

5.
O Curta! dedica-se às artes, cultura e humanidades. São assuntos do canal: música, cinema,
dança, teatro, artes visuais, história, filosofia, literatura, psicologia, política e sociedade. Docu-
mentários em curta, média e longa-metragens predominam na programação, que traz também
séries e cinema de ficção. (https://canalcurta.tv.br). | 101
6.
https://www.youtube.com/watch?v=Vt1ucindUYI.

7.
https://www.youtube.com/watch?v=YhQ4w8O0kMs.

8.
“A CPI Funai Incra foi criada em 11 de novembro de 2015 sem objeto definido, demonstrando
desde início a clara determinação política de atender a interesses da bancada ruralista. A meta
é única: desvalidar direitos de comunidades etnicamente diferenciadas constitucionais consti-
tuídos pela CF de 1988, criminalizando movimentos sociais e profissionais que atuam no cum-
primento de sua profissão” (COMITÊ QUILOMBOS, 2017).

9.
“Na trágica ficção do dramaturgo grego Sófocles, Antígona é filha de Édipo em sua relação
incestuosa com sua mãe, Jocasta. Juntos eles tiveram quatro filhos, entre eles Polinice e Eté-
ocles que matam um ao outro na disputa pelo trono de Tebas. Com a morte dos dois irmãos de
Antígona, o trono é tomado pelo tio Creonte, que decreta que o corpo de Polinice seja deixado
nu e desenterrado. Defendendo um enterro digno para seu amado irmão, Antígona rebela-se
declarando seu direito ao luto e enterrando o corpo de Polinice, contra a medida do rei Creonte
[....]” (VIEIRA, 2016, p. 461 - 462).

10.
https://www.conjur.com.br/2018-mar-01/stf-autoriza-trans-mudar-nome-cirurgia-ou-decisao-
-judicial

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sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8645918. Aces-
so em: 01 maio 2021.

| 103
Juliano Vasconcelos Magalhães Tavares é doutorando em Estudos de Lingua-
gens pelo Programa de Pós-graduação do CEFET-MG. Mestre pelo Programa de
Pós-graduação em Comunicação Social da PUC-Minas. Especialista em Produ-
ção de Mídia Eletrônica pelo UNI-BH e graduado em Comunicação Social, com
habilitação em Jornalismo, pela UNESP.

| 104
Luan
dos Santos
Silva
Escapar de
todas as épocas:
o olhar para a
vulnerabilidade
em Michel Laub

“Você pode escapar de uma época, mas não de todas as épocas


O tribunal da quinta-feira, Michel Laub

Em O tribunal da quin-
ta-feira, romance escrito
por Michel Laub e publicado em 2016, acompanhamos o narrador protagonista
José Victor.
Ele é, segundo suas próprias palavras, um homem branco, paulista, publici-
tário e com uma carreira bem sucedida. A narrativa propõe um convite a pensar
sobre o vírus da AIDS e o que viraliza na internet, exposição e vulnerabilidade.
Para além disso, a história de José Victor se embaralha com o percurso da pan-
demia da própria Síndrome da imunodeficiência adquirida. Há, desta forma, uma
tensão entre as incoerências e uma questão: até que ponto é possível atribuir al-
guma legitimidade para esse narrador que problematiza e brinca com sua própria
confiabilidade, a exemplo de Bentinho de Machado de Assis, um narrador distan-
te da imparcialidade.
Já no início da narrativa[1], José Victor reflete sobre todas as vezes em
que foi diagnosticado como infectado por diversos microrganismos e/ou por res-
posta biológicas e, sabendo assim que estava doente. Desta forma, aponta para
as outras tantas vezes em que não soube[2]. E, se a AIDS pode apresentar uma
longa janela imunológica, é pela janela da memória que José Victor se relembra
das brincadeiras de troca-troca e das primeiras experiências sexuais que, desde a
primeira vez, já foram um convite a se evitar o uso de preservativos e do contato
pele com pele. Para que se entenda o contexto desse jovem que se inicia na vida
sexual, é necessário recuar alguns passos, para 1961. Segundo Timerman e Ma-
galhães (2015, p. 79 – 81), com o surgimento das pílulas anticoncepcionais, ocor-
reram uma expressão corporal, a busca por liberdade sexual, a organização dos
movimentos feministas e o movimento negro. Nessa mesma esteira, os movimen-
tos de lutas pelos direitos homoafetivos. O sistema capitalista, como era de se
esperar, vendeu tudo que pôde se aproveitando do desejo de liberdade sexual[3].
Esse contexto, nas décadas de 60 e 70, propõe muita experimentação afetiva e
descoberta do corpo.
No romance, José Victor introduz ao leitor um grande amigo chamado
Walter que, segundo o narrador, são amigos de longa data e, por esse moti-
vo, se sentem à vontade para trocarem e-mails sobre fezes, sexo e mesmo
fazerem brincadeiras de humor duvidoso sobre o vírus do HIV que se alas-
trava pelo mundo. Se José Victor se percebia na heterossexualidade, Walter,
seu amigo, tem seu desejo expresso por uma bissexualidade. Apesar disso, os
e-mails que eles trocam têm, de ambos, piadas que reproduzem um discurso
em tom misógino e preconceituoso ao mesmo tempo que, em outros momen-
tos, são sensíveis à dor dos outros – em toda narrativa todos os personagens
possuem muitas camadas.
Estranhamente, o vírus do HIV tem muito em comum com essas men-
sagens que eles trocam. Para que se compreenda a relação, pensemos no ano
de 1981 em que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Los Angeles
identificou cinco jovens com um caso raro de Pneumonia. Os estudos iniciais
logo apontaram que aquela doença tinha ligação com o fato desses jovens se-
rem gays. Os termos “pneumonia gay”, “câncer gay” e “peste gay”[4] começam
a circular, tanto na comunidade médica quanto na linguagem popular. Análises | 106
constataram o contato sexual como, naquele momento, a causa responsável.
Já em 1982, haitianos fora de uma prática de contato sexual homoafetivo e
crianças que receberam transfusão de sangue apresentam os mesmos sinto-
mas da doença. Neste mesmo ano ocorre aqui no Brasil o primeiro caso. Mesmo
sendo comprovado por pesquisas que esse vírus não tinha uma ligação direta
com a comunidade gay, mas sim com o contato sexual sem uso de preservati-
vo, transfusão de sangue e contato com fluidos corporais, o preconceito nunca
abandonou esse grupo (TIMERMAN e MAGALHÃES, 2015). O vírus da AIDS,
semelhante a uma mensagem, a um post em uma rede social ou mesmo a um
vírus cibernético, se espalhou. E isso sem escolher destinatário, contudo a men-
sagem, o discurso e o preconceito foram junto[5].
Walter apresenta Teca a José Victor e, do lugar de quinta namorada, to-
das com contato sexual sem preservativo, ela se torna esposa[6]. O interesse do
narrador diminui na mesma proporção em que buscar algo fora do casamento
se torna uma opção. É o momento em que mais uma personagem é adicionada:
Dani, a estagiária ou redatora-júnior, com o corpo firme que seus vinte e poucos
anos lhe proporcionam. Com Dani, José Victor se sente à vontade com as estra-
nhezas de seus comportamentos sexuais, para vivenciar aventuras e fantasias
de dominação. Ela sempre responde com entusiasmo aos experimentos sexuais
que eles se propõem tentar. Dani, por ser de uma geração pós-coquetel, não tem
a dimensão dos riscos por um contato sexual desprotegido. Talvez tenha ouvido
falar, vagamente, das várias pessoas, incluindo as famosas, que morreram em de-
corrência da AIDS[7].
Uma das fantasias que José Victor tem é a de bater em Dani. Essa fantasia
ressoa um episódio vivido não por ele, mas por seu amigo Walter. De volta aos
anos oitenta, Walter e os amigos foram visitar a travesti do bairro e foi então
que “os amigos o seguraram e bateram nele com um pedaço de madeira. Eles
repetiram golpes na altura dos quadris e dos rins” (LAUB, 2016, p. 11). Ele assistiu
sem participar, pois algo em Walter já estava diante daquela dor. Faço menção ao
texto de Susan Sontag, Diante da dor dos outros, no qual a autora, ao pensar em
imagens da guerra e da barbárie discute, entre outros assuntos, o desgaste que as
imagens de horror causam, seja pelo uso excessivo, pela falta de reflexão sobre
essas imagens, pela banalização ou recorrência. Sontag, neste texto, ainda está
muito próxima do seu outro ensaio, Sobre fotografia. Assim, a autora tem como
ponto de partida imagens fotográficas, o que não nos impede de pensar sobre
como essas imagens de vulnerabilidade podem nos colocar diante da dor desse
outro (SONTAG, 2003).
Nesse mesmo sentido, em outro texto, Sontag apontará que essa rela-
ção entre sexualidade e barbárie foi potencializada pela AIDS, quando que afir-
ma que “a aids assinala um momento decisivo nas atitudes atuais em relação
às doenças e à medicina, bem como à sexualidade e às catástrofes” (SONTAG,
2007, S/N). Desta forma, a barbárie da AIDS e o preconceito endereçado a essa
comunidade dissidente foi exaurindo o poder de impacto, de luto e do valor
individual das pessoas que foram morrendo. Pois bem, no site da a Associação | 107
Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, há relatos de que eventos como
esse, presenciado por Walter, são recorrentes pois, segundo o site, nosso “país
passou do 55º lugar de 2018 para o 68º em 2019 no ranking de países seguros
para a população LGBT.” Isso indica um aumento vertiginoso de casos de vio-
lência contra travestis e transexuais que está, como podemos inquirir, ligado ao
discurso de ódio e ao ultraconservadorismo da extrema direita, visto que “nos
dois primeiros meses dos anos, entre 1/01 e 28/02/2020 (incluso ano bissexto em
2020), o Brasil apresentou aumento de 90% no número de casos de assassinatos
em relação ao mesmo período de 2019”[8]. Conforme o romance, o que Walter
observou como sendo uma “brincadeira” de espancar a travesti, realizada por
seus amigos, não é um ato isolado e muito menos restrito aos anos oitenta. Pos-
teriormente, Walter visita a travesti:

O travesti ainda lembrava de Walter, o único que não tinha


batido nele tanto tempo antes, o único dos meninos que ele
olhou nos olhos enquanto apanhava. Eu sabia que você era
como eu, o travesti disse. Essas coisas a gente sabe de cara, eu
soube quando você entrou na minha casa aquela vez. Mas se
você quer um conselho, meu bem, evite ocupar o posto de bi-
cha oficial de Bariri quando ele ficar vago (LAUB, 2016, p. 62).

A travesti relembra do olhar de Walter e reconhece um semelhante.


Aconselha, ainda, que Walter não se direcione ao trabalho nas ruas. O trabalho
de dissertação de Joao Felipe Zini Cavalcante de Oliveira intitulado “E travesti
trabalha?”: divisão transexual do trabalho e messianismo patronal aponta que
“Apesar de não haver dados oficiais, estima-se que 90% das travestis e transexu-
ais, em algum momento da sua vida, já se valeram da prostituição para subsistir”
(OLIVEIRA, 2019, p. 76). O estudo ainda aponta para a dificuldade de se inserir no
mercado de trabalho e a ausência de políticas públicas que empurram as travestis
para a prostituição. No romance, a travesti ainda acrescenta, na conversa com
Walter, que “este não é um lugar para nós. O mundo é tão maior que isso aqui. E
você tem tão pouco tempo, meu bem, por mais que tente negar. Nós nascemos
condenados a isso. Não pense que você vai escapar” (LAUB, 2016, p. 63). Confor-
me se pode perceber na narrativa, o impacto dessa conversa com a travesti não
muda o rumo das brincadeiras entre Walter e José Victor. Dentre os assuntos
que eles conversam em trocas de e-mail gostaria de gostariam de destacar dois.
Em primeiro lugar, as piadas que Walter faz ao descrever seus hábitos:

O problema de tomar café é que dá vontade de fumar, e aí


dá vontade de beber, e aí dá vontade de cheirar, e quando
cheiro sempre acabo dando o cu.

Ontem levei meu irmão burro para passear, ele estava com
vontade de engolir e desengolir as coisas [...] apresentei meu
tubo de engolir e desengolir a um lugar que ele apreciou
muito: a sauna Moustache’s (LAUB, 2016, p. 9 e 30).
| 108
Para ler essas mensagens, retomo aqui algo que discorri acima sobre o mo-
vimento de liberdade sexual impulsionado pela pílula anticoncepcional. Segundo
o os autores livro Histórias da AIDS, em decorrência desse processo de descoberta
sexual, surgiram várias saunas. Nesses lugares, os clientes pagavam um aluguel
de um armário, às vezes havia uma cama ou mesmo corredores mal iluminados
no qual os visitantes caminhavam se esbarrando e se conhecendo. Em meio aos
banhos de sauna, ocorria a socialização e o refúgio para que alguns dessem vazão
ao desejo em meio a uma sociedade que recriminava veementemente qualquer
manifestação homoafetiva. Algumas saunas contavam com salas de orgias nas
quais toda interação era feita por grupos que praticamente não se conheciam e
nem se quer se viam devido à falta de iluminação (TIMERMAN e MAGALHÃES,
2015, p. 81 e 82). Foram frequentadores de saunas similares a essa, os cinco jovens
gays, mencionados anteriormente, que apresentaram os primeiros sintomas da
AIDS, fato que deu início a todo o preconceito em relação a essa doença e à ideia
de que era específica da população gay como uma forma de um castigo[9]. Son-
tag acrescenta ainda que:

De fato, contrair aids equivale precisamente a descobrir


— ao menos na maioria dos casos até agora — que se faz
parte de um determinado “grupo de risco”, uma comunida-
de de párias. A doença expõe uma identidade que poderia
ter permanecido oculta dos vizinhos, colegas de trabalho,
familiares e amigos. Ao mesmo tempo, confirma uma iden-
tidade (SONTAG, 2007, S/N).

Essa noção de grupo de risco, ou de uma comunidade de pessoas que trou-


xeram toda essa peste para a humanidade, passa por alguns fatores. Num primei-
ro momento, a descoberta de que o sexo anal é mais propício para transmissão
da AIDS que o sexo vaginal. Apesar de ser uma prática mais comum entre os
homossexuais não é, de forma alguma, restrita a esse grupo (TIMERMAN e MA-
GALHÃES, 2015, p. 90 e 91). Além da própria descoberta da doença ter ocorri-
do entre membros da comunidade gay e toda questão de sexo anal, os números
apontam que hoje 80% dos casos de contaminação ocorrem, na verdade, entre
os heterossexuais (TIMERMAN e MAGALHÃES, 2015, p. 93). Contudo, apesar
de que com passar dos anos os homossexuais deixaram de figurar o grupo de
risco, ainda são considerados um comportamento de risco (TIMERMAN e MA-
GALHÃES, 2015, p. 91), uma nova nomenclatura para o mesmo preconceito, ou,
conforme afirma Sontag (2007, S/N) “as doenças que mais causam terror são as
consideradas não apenas letais, mas também desumanizadoras”.
Um segundo aspecto que consta entre as mensagens que ambos trocavam
diz respeito às piadas que José Victor fazia sobre transmitir a AIDS para sua nova
namorada e amante, Dani: “Alguma chance de, mesmo usando o anel do cadáver
eunuco no dedo anular esquerdo, ainda conseguir amar ao modo Cláudia Magno
e Sandra Brea de contaminação?” (LAUB, 2016, p. 66). E ainda: “Teca está viajan-
do. Estou pensando em convidar a vítima redatora-júnior para contrair a A.I.D.S/ | 109
S.I.D.A”?” (LAUB, 2016, p.94). Conforme lemos, ele refere a si mesmo como um
eunuco no casamento, usando um anel de cadáver, e usa duas vítimas da AIDS
em uma piada de extremo mal gosto sobre transmitir o vírus para sua amante. O
narrador tentará argumentar que a piada era tão absurda que, naturalmente, não
seria verdade. O Romance, em muitos momentos, propõe reflexões sobre o limite
do privado e do público, ao passo que essas mensagens são divulgadas por Teca
quando as descobre. A divulgação dessas mensagens nas redes sociais, como é de
se esperar, revela outros moralismos[10] e a reflexão é sempre retomada se uma
piada comum entre dois amigos tirada de contexto sai do controle – como um
vírus, como uma epidemia.
A tranquilidade do narrador, em todo o romance, reside no fato de que,
mesmo tendo sido atacado nas redes sociais, ele não é nem de perto considerado
um transmissor da doença. Segundo Sontag (2007, S/N), “todas as epidemias [...]
associadas à licenciosidade sexual, geram uma distinção entre os transmissores
potenciais da doença (de modo geral, os pobres e, nesta parte do mundo, as pes-
soas de pele mais escura) e aqueles que são definidos [...] como a ‘população em
geral’”. Conforme discorrido no início, José Victor é um homem, hétero, branco e
de classe média. No entanto, ele é inserido como vítima no grupo da “população
geral” e não no grupo de “comportamento de risco”.
Em meio a todas essas questões do vazamento das mensagens e do di-
vórcio de José Victor, Walter é oficialmente diagnosticado com o HIV, o que os
aproxima ainda mais. Algo recorrente no momento em que alguém se descobre
portador do HIV é a dúvida de para quem contar ou mesmo se contar para al-
guém. Sontag (2007, S/N) reflete que assim

como outras doenças que provocam sentimentos de vergonha,


a aids é muitas vezes ocultada, mas não do paciente. No caso
do câncer, a família freqüentemente não revelava o diagnósti-
co ao paciente; já com a aids, o mais comum é o paciente não
revelar o fato a seus familiares.

Muitas pessoas escondem de seus amigos e familiares e não iniciam o tra-


tamento. Desta forma, sem os medicamentos, podem acabar se deparando com
toda uma “uma variedade de sintomas que incapacitam, desfiguram e humi-
lham o paciente, tornando-o cada vez mais fraco, indefeso e incapaz de contro-
lar suas funções e atender a suas próprias necessidades básica” (SONTAG, 2007,
S/N). O tratamento não é dos mais fáceis, pois envolve uma série de remédios
que devem ser tomados de forma rigorosa, mas ao contrário da realidade an-
terior ao coquetel, em que não havia outra perspectiva além da morte, hoje
com esses cuidados é possível levar uma vida com tons de normalidade[11]. É
preciso ressaltar algumas conquistas que vão além do coquetel, naturalmente,
como por exemplo uma portaria que proíbe empresas de solicitar entre os pro-
cedimentos admissionais um exame de HIV. Em nenhum momento, na verdade,
nenhum órgão público ou privado pode demandar um exame desse caráter, só | 110
sendo feito na ocasião que parta da vontade e o consentimento do indivíduo
(TIMERMAN e MAGALHÃES, 2015, p. 70).
José Victor ainda reflete o quanto esse processo de tratamento revela
muitas amizades que aos poucos vão se afastando, que não se tem tantos ami-
gos assim “e os meses passam e as coisas boas e ruins seguem mais ou menos no
mesmo ritmo, as pessoas que surgem e vão embora da sua vida, as ilusões que to-
dos teremos uma hora ou outra pelos mesmos motivos” (LAUB, 2016, p. 91). José
Victor, de fato, apoia muito seu amigo Walter nesse momento de tratamento.
A grande reviravolta final do livro é a descoberta de um passado da ex-esposa,
Teca, o que deixa em dúvida se o narrador possui ou não o vírus do HIV[12]. Tal-
vez, tentar descobrir se o romance esclarece ou não essa dúvida seja um convite
para cair em uma especulação aos moldes da traição ou não de Capitu. Contudo,
o que penso que deve fruir desse texto seja se colocar diante da dor do outro,
pensar na vulnerabilidade destes corpos, entender a proteção como um ato de
sobreviver e, por fim, que não é possível escapar de todas as épocas, mas que é
possível propor uma luta por uma mudança via coletiva.

Notas
1.
LAUB, Michel. O tribunal da quinta-feira. 2016, p. 8 e 9.

2.
Em Histórias da AIDS, livro de Artur Timerman e Naiara Magalhães colhem uma série de
relatos sobre pacientes portadores do vírus do HIV e também se baseiam em uma série de
pesquisas para pensar através de questões da infectologia, da história e sociologia. Algo in-
teressante a se pensar nesse momento e que permeará o livro de Michel Laub é o fator de
desconhecimento a respeito de se portar ou não o vírus do HIV. Timerman e Magalhães aler-
tam que “se você já fez sexo sem camisinha alguma vez nos últimos anos, sem conhece o es-
tado sorológico de seu parceiro, é recomendável que faça o teste de HIV” TIMERMAN, Artur
& MAGALHÃES, Naiara. Histórias da AIDS. 2015, p. 93.

3.
Nesse contexto acontece o boom da Playboy e da indústria pornográfica. Cf. TIMERMAN, Ar-
tur & MAGALHÃES, Naiara. Histórias da AIDS. 2015, p. 79 a 81.
Sontag também aponta algo interessante nesse sentido quando assevera que “a ideologia do
capitalismo faz com que todos nós nos tornemos peritos em liberdade — na expansão ilimitada
das possibilidades. Praticamente tudo que se propõe é apresentado, acima de tudo ou adicio-
nalmente, como um aumento de liberdade. Não todas as liberdades, é claro.” SONTAG, Susan.
Doença como metáfora / AIDS e suas metáforas. 2007, S/N.
4.
“A “PESTE” É A PRINCIPAL METÁFORA através da qual a epidemia de aids é compreen-
dida.” e ainda “COMO ERA PREVISÍVEL, em se tratando de uma doença ainda não inteira-
mente conhecida, além de extremamente resistente a tratamentos, o advento desta nova e
terrível doença — nova ao menos enquanto epidemia — proporcionou uma excelente opor-
tunidade para a metaforização da moléstia. Estritamente falando, o termo aids — síndrome
de imunodeficiência adquirida — não designa uma doença, e sim um estado clínico, que tem
como conseqüência todo um espectro de doenças.” Cf. SONTAG, Susan. Doença como me-
| 111
táfora / AIDS e suas metáforas. 2007, S/N. O surgimento da AIDS propiciou toda metáfora
da doença como sendo mais que uma doença e sim uma peste. Sontag chama atenção que
na verdade a AIDS é um estado clínico de imunodeficiência causada pela ação do vírus. A
ideia de uma doença ou de uma peste serviu mais para o moralismo da sociedade nomear o
comportamento sexual como sintomático e manifestação de uma doença que eles atribuí-
ram meramente ao desejo do outro.

5.
“Foi muito antes da aids que William Burroughs afirmou, em tom de oráculo, e Laurie Anderson
repetiu, que “a linguagem é um vírus”.” Cf. SONTAG, Susan. Doença como metáfora / AIDS e
suas metáforas. 2007, S/N.

6.
Sontag retoma uma campanha com a seguinte afirmação: ““Assim, lembre-se de que quando
uma pessoa tem relações sexuais com um parceiro, não é só com esse parceiro que ela está
tendo relações, e sim com todas as outras pessoas que tiveram relações com esse parceiro nos
últimos dez anos”, afirmou, num pronunciamento cuidadosamente neutro quanto ao sexo das
pessoas envolvidas, o secretário da Saúde e Serviços Humanos, o dr. Otis R. Bowen, em 1987.”
Cf. SONTAG, Susan. Doença como metáfora / AIDS e suas metáforas. 2007, S/N.

7.
O narrador mesmo lembra alguns nomes: Rock Hudson, Lauro Corona, Freddie Mercury, Cazuza,
Caio Fernando Abreu, Hervé Guibert, Sandra Breá, Claudia Magno além, claro, de seus amigos.
Cf. LAUB, Michel. O tribunal da quinta-feira. 2016, p. 13, 14, 26, 33, 50 - 52.

8.
ANTRA BRASIL. Violência. Disponível em: https://antrabrasil.org/category/violencia/. Acesso
em 13 mai. 2021.
Ampliando esse debate, poderia me valer aqui de Judith Butler que em Corpos que importam
faz uma interessante reflexão a respeitos de quais corpos importam ou não e como opera esse
sistema de valoração. Conforme podemos ler: “aquilo que determina quais corpos importam
[matter], quais modos de vida contam como “vida”, quais vidas vale a pena proteger e salvar,
que vidas merecem ser enlutadas?” Cf. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites dis-
cursivos do “sexo”. 2019, p. 40
Desta forma, é importante pensar como a AIDS só tornou ainda mais evidente algo que antece-
de a epidemia: a morte de pessoas dissentes não foram sentidas da mesma forma, ao contrário,
foram estigmatizados e ainda mais empurrados às margens. Algo que ressoa no tempo em que
escrevo esse texto ao passo que os dados apresentados pelo ANTRA apontam para um cres-
cimento assustador de mortes e violências contra transexuais e travestis e o reconhecimento
das dores dessa comunidade é ignorado no âmbito de políticas públicas – corpos que realmente
importam menos.

9.
Sontag faz apontamentos muito interessantes a esse respeito: “A idéia de que a aids vem cas-
tigar comportamentos divergentes e a de que ela ameaça os inocentes não se contradizem em
absoluto. Tal é o poder, a eficácia extraordinária da metáfora da peste: ela permite que uma
doença seja encarada ao mesmo tempo como um castigo merecido por um grupo de “outros”
vulneráveis e como uma doença que potencialmente ameaça a todos.” SONTAG, Susan. Doença
como metáfora / AIDS e suas metáforas. 2007, S/N.
Ou seja, quando alguma pessoa homoafetiva era contaminada ela era vista em forma de um
castigo, por outro lado quando alguém dentro da heteronormatividade contraia a doença era
visto como uma espécie de um desmembramento ou um respingo dessa mesma doença que
permanece como sendo pertencente ao grupo de um “outro” gay. O discurso moralista investiu
toda energia que tinha para estigmatizar a AIDS como um castigo. A exemplo de “Jerry Falwell
[que] propõe o diagnóstico genérico de que “a aids é a condenação divina de uma sociedade que
não vive conforme os mandamentos de Deus”. O que causa espanto não é a epidemia de aids
estar sendo explorada desse modo, e sim o fato de que esse tipo de retórica bombástica tem
emanado apenas de um grupo tão previsível de fanáticos; o discurso oficial sobre a aids invaria-
velmente adverte contra a intolerância.” SONTAG, Susan. Doença como metáfora / AIDS e suas
metáforas. 2007, S/N.
A AIDS tornou menos velado o discurso da intolerância. Havia, desta forma, muitas pessoas,
médicos, religiosos não só na sociedade civil, mas também entre os governantes que não tinham
nenhum pudor em culpar a comunidade gay pelas mortes da AIDS.

| 112
10.
Como os discursos de um saudosismo da ditadura, da tolerância negativa (eu não tenho pre-
conceito desde que não se aproximem de mim), o religioso fanático pescando e se utilizando de
versículos para condenar com sua boca, mas escorado na bíblia, os que culparam a jovem reda-
tora como sendo ela a interesseira que quis abrir as pernas para um executivo como uma forma
de abrir oportunidades na carreira, a da pessoa que usa dessa situação para se mostrar melhor
moralmente, o intelectual que quer teorizar para demonstrar sua inteligência sobre o assunto
mesmo sem saber ao certo o que está acontecendo e, por fim, o discurso de lacração que, seme-
lhante ao ‘mitar’ tem a ideia de calar o diálogo. Isto quer dizer, “eu estou certo(a) e lacrei/selei
esse assunto e nada do que você disse vai mudar isso.” Conforme podemos perceber, a internet
enquanto seu potencial de viralização, em determinados casos, torna-se um ambiente propício
para esses pré-julgamentos dos quais a comunidade gay é um alvo muito visado. Cf. LAUB, Mi-
chel. O tribunal da quinta-feira. 2016, p. 69, 70, 99, 103 e 104.

11.
No livro Histórias da AIDS, mais especificamente a primeira parte com os capítulos 1 ao 7, Timer-
man e Naiara Magalhães colhem uma série de relatos de pessoas que seguem a rotina médica
de tratamento e conseguem tranquilamente terem outros relacionamentos. Nesse caso, com o
passar dos anos, a carga viral passa ser mínima no corpo do soropositivo e em alguns casos os
exames passam nem a detectar mais o vírus. Nesses casos vários médicos ainda recomendam
que não seja necessário um momento de contar que “eu sou soropositivo”. Isto porque, confor-
me venho ressaltando durante o trabalho, apesar da AIDS estar fora do radar por não ser uma
doença que seja muito comentada, nem tenhamos mais casos fatais recorrentes devido as faci-
litações médicas, o preconceito ainda é muito forte. Além disso, a associação com a comunidade
gay ainda é presente. É importante acrescentar ainda que além da importância da medicação
para os que estão em tratamento, de forma geral, é sempre indicado o uso do preservativo. Nes-
se sentido as mulheres são mais vulneráveis que os homens devido a mucosa vaginal feminina e
o homem possuir proteção com a pele. Neste mesmo trecho (p. 94-96) lemos que a tentativa de
não usar o preservativo é, majoritariamente, uma tentativa masculina. De modo que afetos que
usem preservativo estão se protegendo, reduzindo a quase zero qualquer chance de contami-
nação, tanto dos parceiros e até mesmo em caso de algum bebe que possa surgir desses afetos.
Cf. TIMERMAN, Artur & MAGALHÃES, Naiara. Histórias da AIDS. 2015.

12.
É preciso lembrar que, além da esposa, José Victor teve inúmeras relações sexuais sem o uso
de preservativo, mas vê nela um risco por ela ter tido contato com alguém da comunidade
gay no passado.

Referências

BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do


“sexo”. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

LAUB, Michel. O tribunal da quinta-feira. São Paulo: Companhia das


Letras, 2016.

OLIVEIRA, Joao Felipe Zini Cavalcante de. “E travesti trabalha?”: di-


visão transexual do trabalho e messianismo patronal. Belo Horizonte:
Universidade Federal de Minas Gerais, 2019.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução: Rubens Figuei-


redo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. | 113
—. Doença como metáfora / AIDS e suas metáforas. Tradução: Paulo
Henriques Britto e Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2007.

—. Sobre fotografia. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Compa-


nhia das Letras, 2004.

TIMERMAN, Artur & MAGALHÃES, Naiara. Histórias da AIDS. Belo


Horizonte: Autêntica, 2015.

Luan dos Santos Silva é doutorando em Literatura, Cultura e Tecnologias pelo


Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens do CEFET-MG. Pesquisa
poesia e filosofia com foco em Manoel de Barros.

| 114
Lucas Diego
Gonçalves
da Costa
Um conto de
nenhuma cidade:
pôneis, cores e
violência na
comunidade
desterritorializada
Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos, era a época
da sabedoria, era a época da tolice, era o tempo da crença,
era o tempo da incredulidade, era temporada da luz, era a
temporada das trevas, era a primavera da esperança, era o
inverno do desespero, tínhamos tudo perante nós, tínhamos
nada perante nós.

(Dickens)
O próprio sujeito não está no centro, ocupado pela máquina, mas na borda, sem identidade
fixa, sempre descentrado, concluído dos estados pelos quais passa.

(Deleuze & Guattari)

0. 0x2163697479

Não era nenhuma cidade. Não havia pessoas. Nenhum fluxo ou movimen-
to. Tampouco havia construções e vias, vizinhanças e parques. Entretanto havia
comunidades. Comunidades sem cidade, desterritorializadas. Comunidades sem
habitantes, sem as singularidades múltiplas e móveis em suas efêmeras organi-
zações, mas comunidades de dados, comunidades digitais. Compostas por bits e
elétrons que circundam a Terra na velocidade da luz, dão a volta ao mundo em
menos de 80 milésimos de segundo. Na verdade, o fazem em apenas 10 milésimos.
Se na cidade havia a possibilidade de um convívio holístico com o outro, as
comunidades digitais tendem a fazer de tudo para cerceá-lo. O convívio é apenas
circunstancial. Apenas na medida em que corrobora com uma identidade mono-
lítica que constitui a comunidade. Todo o restante é rechaçado. Dispensaram os
agenciamentos rizomáticos da vida, do acaso e da diferença para se aceitarem
como a instauração de um ideal daquilo que a comunidade deve ser: um tópico
(utópico?). Um assunto central-divino em torno do qual as discussões e comparti-
lhamentos se agrupam, enquanto todo o restante é negligenciado e apartado. O
que talvez fosse positivo, já que poderia potencializar questões dissidentes que
jamais teriam ressonância fora de suas bolhas. Mas é mais complicado. Sempre é.
Se é possível alguma existência de tamanho individualismo, desconectada das
multiplicidades que singularizam o ser, tal existência se dá nessas comunidades.
Não ocorre que as comunidades digitais tenham se coordenado a fim de
se tornarem tão especifistas, embora isso tenha ocorrido em alguma escala. O
aspecto unívoco das comunidades surge também pelas forças que as governam.
Elas não são governadas por autoridades locais, mas pelo Algoritmo. Assim, em
maiúsculo e no singular. Uma entidade incorpórea, sem voz e sem rosto, que co-
ordena as ações sutilmente, manipula as cordas por detrás da cena, de maneira
que preserve a sempre tênue sensação de liberdade, o que quer que isso repre-
sente. Funciona mais como um Grande Irmão do que como um rei. Não prende e
não pune, não agride. Apenas incentiva. E o faz com leves tapinhas nas costas,
tão leves que mal tocam a pele. Se confundem com o vento. Assim, quando al-
guém decide mudar de direção, clicar em uma coisa ao invés de outra, vai enten-
der como uma ação espontânea motivada apenas pelo seu próprio pensamento,
ou no máximo pelos seus impulsos inconscientes.
Todos sabem da existência do Algoritmo, contudo ninguém sabe ao certo
como ele opera, como aprende, como evolui e delibera. Só se sabe que é capaz de
interferir no caminhar das comunidades. Mas como todos se veem como senhores
de suas próprias decisões, como um refúgio da autonomia de pensar e agir, são in-
capazes de notar as ramificações do Algoritmo imperando em seus próprios likes. | 116
Mesmo este texto, o Algoritmo o conhece. Já o leu e releu milhares de ve-
zes. Conhece cada caractere inserido e removido, os trechos descartados, quais
contribuições foram feitas e quando elas ocorreram. Consegue deduzir, muitas
vezes com precisão assustadora, qual será a próxima palavra digitada partindo
somente da primeira letra. Ainda assim, o autor acredita em sua autonomia inte-
lectual quando seleciona os resultados retornados pelo Mecanismo de Busca.
Acontece que, não raro, o comportamento das comunidades digitais se
desdobra em práticas agressivas, violentas, que segregam, que rompem os limia-
res luminosos das telas e sangram o mundo. Curioso, já que o Algoritmo não agri-
de, nunca perpetra atos de violência. O que se dá, então, em comunidades que
ostensivamente se fazem violentas? E o que há em certas comunidades que, ape-
sar de ostentarem um tópico tão dissidente e problematizante, apresentam pen-
samentos tão autoritários? E por que Ele não haveria de sugerir, de incentivar, de
indicar, caminhos diferentes, talvez mais múltiplos e tolerantes, para o convívio
no tecido digital? Onde se sustentam essas contradições? E o que se passa com
aqueles admiradores de pôneis?

Suástica no arco-íris

As paisagens de traços coloridos e saturados de Equestria constroem um


mundo frugal e pueril. Os territórios dominados pela flora diversificada e o solo
descoberto de um universo que parece não conhecer os efeitos da industriali-
zação remetem a alguns clichês das histórias de fantasia medieval como a ma-
gia, poderes e castelos. Os personagens, a certo modo, são druidas, cuja força
mágica provém da sua proximidade com a natureza. Em simultâneo, o desenho
se distancia de outras características usuais em narrativas do gênero: não há
guerras, facções adversárias, conspirações, tramas da nobreza. Os dramas, ao
invés disso, concernem e são solucionados pelo poder da amizade. A amizade
é o que sustenta a magia deste mundo. A infantil mensagem de que os amigos
verdadeiros são capazes de vencer qualquer adversidade. Assim é My Little
Pony, um desenho animado, baseado em uma linha de brinquedos da década de
80, no qual os personagens são pôneis falantes e coloridos, que fogem dos es-
tabelecimentos normativos da performatividade de gênero. Segundo escreve
Butler (1993, p. 18), a crítica queer passa pelo questionamento dos termos pelos
quais a contemporaneidade se institui, termos pelos quais ela se firma sobre
uma historicidade e estabelece naturalizações. Partindo disso, podemos dizer
que My Little Pony é um desenho de pôneis queers resolvendo problemas pelo
poder supremo da amizade.
Nada demais, tratando-se de um desenho voltado para crianças. Contudo,
o que torna My Little Pony um desenho tão peculiar é algo exterior ao mundo
de Equestria. As comunidades digitais de MLP são uma zona de peculiar autori-
tarismo, amplamente utilizadas para a propagação de mensagens de uma direita
abertamente fascista, defensora de pautas nazistas e são terreno fértil para o re- | 117
crutamento de grupos supremacistas brancos. É difícil apontar ao certo as razões
pelas quais esse desenho em específico proporciona comunidades tão simpáticas
à alt-right[1]. Parece pouco provável que este efeito tenha alguma relação com o
desenho em si ou o seu conteúdo, mas há uma amálgama de agenciamentos que
contribui para que as comunidades de MLP reúnam características que as tornam
convidativas a homens brancos adultos desejosos em destilar seu ódio pelas di-
ferenças e se valer das imagens do desenho para advogar em prol da criação de
um estado nazista. É um fascismo que floresce à revelia da codificação queer dos
personagens, de uma ironia que faz regozijar os nazistas apreciadores dos pôneis.
Algumas dessas comunidades digitais sequer podem figurar nas redes so-
ciais mais tradicionais e populares, as postagens que veiculam e imagens que
compartilham transgridem as questionáveis e voláteis normas de uso destas pla-
taformas. Por isso, algumas comunidades se proliferam com maior capilaridade
nos redutos alternativos, aqueles com termos de usos mais brandos e políticas de
monitoramento de postagens mais permissivas. São redes cujos requisitos muito
se assemelham àqueles demandados pelas comunidades de extrema direita. Não
tratamos aqui daquelas comunidades presentes na nebulosa e folclórica deep
web, cuja existência confusa tanto fascina e apavora o imaginário do socius di-
gital, mas daquelas de redes mais tradicionais que funcionam em plena luz dos
populares mecanismos de busca.
É o caso do 4chan, uma rede social de moderação praticamente inexistente
comumente usada para a difusão de mensagens de ódio e intolerância por grupos
da extrema direita. Foi no 4chan que surgiu e se propagou a teoria da conspiração
conhecida como QAnon, que prega, entre uma vasta gama de outras coisas, a
existência de uma rede global de satanistas pedófilos que atua nos bastidores da
política e das classes artísticas. Segundo os seguidores do QAnon, Donald Trump
seria perseguido pela mídia devido ao fato de não compactuar com os satanistas,
pretender expô-los ao mundo e acabar com seu conluio. O episódio da invasão do
Capitólio, ocorrido em 6 de janeiro de 2021, foi protagonizado por diversos apoia-
dores do movimento, trajando uniformes e empunhando placas que alardeavam
ao grupo. No 4chan, postagens de qualquer natureza se propagam mediante a
inoperância da moderação da plataforma e se tornou um ponto de encontro de
comunidades nazifascistas. Ao fim e ao cabo, estes conteúdos colaboram com o
propósito central das plataformas que os hospedam: o lucro.
A extrema direita consegue se articular com notável destreza nestes re-
dutos digitais. Não se deve trivializar a miríade de aspectos que possibilitam ta-
manha influência dos grupos da direita digital pela internet, contudo, é preciso
apontar que, talvez mais do que uma concordância entre o ideário destes grupos
e aqueles das pessoas que mantêm estas plataformas, existe uma confluência
entre os interesses dos grupos de extrema direita e o lucro das plataformas que
hospedam as comunidades digitais.
Tais comunidades metamorfoseiam seus membros em relação a como con-
somem o tópico, isto é, o conteúdo monolítico do qual tratam. Nelas há uma
dimensão da interação que transforma o mero consumidor em produtor de con- | 118
teúdo. É a noção do prosumer, ou prosumidor, que produz ao mesmo passo que
consome e sua produção retroalimenta o interesse da comunidade. Isso amplia
o engajamento dos participantes na medida em que a comunidade participa ati-
vamente de uma construção digital da imagem do tópico. Nesse horizonte, MLP
ostenta sua faceta fascista. Os integrantes das comunidades criam persona-
gens, histórias e interagem a fim de reforçar muito mais do que a normatividade
e uma afirmação do status quo, mas promover o fascismo e o nazismo. Aryen-
ne, personagem criado pelos bronies, como são chamados os fãs de MLP, é um
exemplo. Um pônei branco de crinas douradas, suástica tatuada nas laterais do
lombo e que, às vezes, aparece trajando um vestuário reminiscente daqueles
usados pelas tropas do Terceiro Reich. Personagem de presença frequente nas
plataformas de discussão do desenho, onde são promovidos debates e progra-
mados eventos para os bronies.
Contudo, o nazismo não é unânime entre os fãs de MLP. Uma grande par-
cela da comunidade abomina estas práticas e não corrobora com os ideais supre-
macistas. Há quem apenas preze pela subversão promovida pelos pôneis, pela
apreciação de um desenho que em muito foge do estereótipo da mídia produzida
para o consumo adulto. Há um risco e uma provocação em se fascinar por pôneis
coloridos. Talvez a frivolidade e o verniz de alegria mostrados em MLP forne-
çam um escapismo catártico da negatividade e do cinismo que domina a cultura
popular produzida no capitalismo tardio. Tudo isso, porém, é recodificado pela
comunidade ao se valer destas imagens para contaminar os discursos e preencher
as páginas com o típico teor fascista. O supremacismo acaba por se adensar no
discurso da comunidade, que percebe qualquer enfrentamento ou discordância
interna como sendo um atentado contra a liberdade de expressão. O autoritaris-
mo fascista das comunidades digitais compreende que “só existem pessoas que
deveriam ser como nós e cujo crime é não o serem” (DELEUZE & GUATTARI 2012,
p. 51) e as estratégias da direita digital têm sido bastante eficientes nessa frente.
É preciso distinguir o que tratamos aqui como a direita digital, produto da
alt-right. Esta direita digital se destaca do modelo neoliberal como popularizado
desde os anos 80. O neoliberalismo defende uma ideia de individualismo rampan-
te, responsabilizando o indivíduo por todas as mazelas da sua própria vida e en-
xugando o papel do Estado como provedor das necessidades básicas, o que leva-
ria ao esfacelamento do chamado Estado de bem-estar social. Thatcher, uma das
grandes proponentes do movimento neoliberal, chegou a declarar que não existe
sociedade, apenas o indivíduo e a família[2]. Aquilo chamado aqui de direita di-
gital não parece compactuar com isso, ou ao menos não é isso o que sua militân-
cia prega enfaticamente. Esta direita reconhece o funcionamento de complexos
mecanismos sociais que regem a vida dos indivíduos e, mais do que isso, que tais
indivíduos estão alheios a esta máquina, ainda que operem por dentro dela. Es-
tes mecanismos sociais acabam por impossibilitar a prosperidade e a plenitude da
vida de certas pessoas, especialmente aqueles grupos de jovens homens brancos
e autointitulados heterossexuais de classe média, pessoas de uma geração que
sofrem com uma decadência vertiginosa nas possibilidades de mobilidade social e | 119
oportunidades de emprego. Território fértil para o recrutamento neofascista de
grupos da extrema direita, que dirão a esses jovens que eles têm o direito inato
de prosperar, mas este direito lhes é privado pela cultura do politicamente corre-
to, pela imigração, pelo assistencialismo, pela mídia liberal, pelo islamismo, pelos
judeus, enfim, por qualquer coisa que não convenha às pautas fascistas. Não ha-
vendo restado para eles, os brancos, lugar algum neste mundo, eles clamam pela
criação de um outro: um mundo de oportunidades para os brancos, da prevalência
dos valores judaico-cristãos, lugares onde eles não seriam desprezados por polí-
ticas afirmativas que favorecem apenas aqueles “geneticamente inferiores”. Isto
circunda o papel de atuação do Estado existente como sendo o de cerceamento
da potência daqueles que têm o direito inato à “superioridade”, Estado sem o
qual haveria um triunfo branco. A forma mais eficaz de atingir tal supremacia é
por meio da violência.
Com efeito, essa comunidade desterritorializada é uma ferramenta para a
reconquista da cidade. Produzir personagens, histórias e debates fascistas é um
passo na construção da cidade dos puros. My Little Pony e outros tópicos são
lâminas do canivete que vão cortar a Terra e dela arrancar os indesejados. Ir das
telas para o mundo, dos perfis anônimos para os corpos.
Como as comunidades digitais são usualmente construídas em torno de
aspectos individuais dos participantes, estimulam a alienação na medida em que
tendem a negligenciar quaisquer outros tópicos considerados paralelos àquele
ao qual a comunidade é voltada. Ocorre assim uma pretensa despolitização, um
esvaziamento dos assuntos da comunidade que devem ser tratados como puros,
desconexos dos socius. É um paradigma adornado por binarismos. Nele, existem
apenas duas raças: o branco e o político; dois gêneros: o masculino e o político;
duas orientações sexuais: hétero e político. Assim, o “político” se torna um subs-
tituto para a dissidência, a diferença, a não normatividade, e facilita o afastamen-
to daquilo que não se adequa à pauta supremacista.
Hoje chega a ser redundante apontar que esta negação alienante da pauta
política proporciona força ao status quo, que permanece inquestionado nas redes
na medida em que vangloriam os mais variados tópicos, todos destacados de suas
ramificações outras. Naturaliza-se assim certa normatividade, isto é, a percepção
de que o presente estado das coisas é o correto e natural e qualquer divergência
é uma tentativa de politização, problematização e cisão da comunidade. Tais dis-
tanciamentos da política são eficientes armas da extrema direita, que desmerece
a organização política e democrática como intrinsecamente corrupta e moral-
mente degradante, posto que tende à equalização dos direitos de indivíduos que
são moral, intelectual e geneticamente superiores. Como foi visto nos últimos
anos ao redor do mundo, a negação da política institucional foi uma estratégia
recorrentemente empregada por políticos de extrema direita, planeta afora, ob-
tendo consideráveis graus de sucesso. A promoção de candidatos como sendo ex-
teriores à política, ou antissistema, tornou-se uma alcunha para as vertentes de
uma “nova direita”. Com efeito, certas comunidades online se transformaram (ou
talvez apenas tenham se revelado) num palco prolífico para estas ideias, princi- | 120
palmente ao considerarmos que determinadas comunidades atraem pessoas que
se vangloriam de seus gostos e práticas precisamente como sendo antissistema.
Quão ousado e transgressor, afinal, é um homem adulto apreciador de um dese-
nho, feito para crianças, que trata da magia, companheirismo e amizade de pôneis
queer falantes, habitantes de um colorido universo ficcional, um universo que
tanto se distancia, estética e textualmente daquele usualmente veiculado em
mídias voltadas para homens adultos. Este fanatismo por MLP pode se aconche-
gar nos ombros da direita digital conforme procura afirmar-se como oposição ao
sistema, como sendo não político.
Tudo isso posto, se faz necessário, portanto, uma análise crítica mais aber-
ta, que seja capaz de tratar não apenas as patologias sociais em jogo no campo
digital, mas os agenciamentos que movem os afetos neste meio, os desdobra-
mentos políticos, as interseções tecnológicas e as intervenções do capital em
meio às organizações das comunidades digitais e das plataformas que as cercam.
Em outras palavras, fazer crítica e clínica das comunidades desterritorializadas e
seus devires violentos.
Félix Guattari, assim como Brecht, Umberto Eco e tantos outros, comenta
que o pensamento fascista é presença contínua na ordem democrática e não uma
contingência histórica. A respeito disso, Guattari comenta que

A micropolítica que fabricou Hitler nos concerne aqui e ago-


ra, no seio dos movimentos políticos sindicais, no seio dos gru-
pelhos, na vida familiar, escolar, etc, na medida em que novas
microcristalizações fascistizantes substituem-se às antigas, no
mesmo filo do maquinismo totalitário. Sob o pretexto de que
o papel do indivíduo na História seria desprezível, nos aconse-
lham a ficar de braços cruzados diante das gesticulações his-
téricas ou as manipulações paranoicas dos tiranos locais e dos
burocratas de toda espécie (GUATTARI, 1981, p. 183).

Ou seja, os pensamentos que possibilitaram a ascensão do fascismo (por


vezes chamado de fascismo histórico) continuam vigentes e se renovam. O
maquinismo totalitário continua a produzir corpos desejantes do nazismo, da
aniquilação do outro. Assim acontece nas comunidades digitais de MLP. Atua-
lizam e recriam fascismo em outras roupagens, para outras pessoas. Um nazis-
mo adaptado ao mundo contemporâneo e suas dobras digitais. O nazismo no
lombo de pôneis queers.
Embora as tendências supremacistas das comunidades de MLP sejam
conhecidas há quase uma década, elas se evidenciaram e ganharam espaço na
mídia por conta de um recente atentado terrorista ocorrido nos Estados Uni-
dos. Na ocasião, o atirador se suicidou após matar 8 pessoas. Minutos antes,
postou em uma página da comunidade brony declarando sua expectativa de
poder se encontrar com os personagens de My Little Pony após a sua mor-
te[3]. A cobertura do acontecido evidencia o sensacionalismo reacionário de
uma mídia que busca, em suas coberturas histriônicas, estabelecer relações
de causa e efeito entre observações feitas em suas reportagens e, com isso, | 121
confundem correlação com causalidade (bronies são terroristas? Terroristas
são bronies?) mesmo quando não há nem uma nem outra. Culpam a mídia e a
ficção pela violência. Culpam a violência pela ficção e pela mídia. E não se faz
o esforço a mais de ir além da representação simplista. Não aquele esforço de
buscar as origens, uma metafísica da história, mas o de perceber os processos
de construção de um desejo.
De alguma maneira, é nas comunidades digitais que se encontra o con-
vívio e a interação que não se encontra fora delas. Em um cenário de crescen-
te privação de direitos, dificuldades na aquisição de alguma autonomia eco-
nômica individual, da degradação generalizada das condições de vida que se
aprofunda ano após ano, as relações virtuais configuram um último reduto
da busca por algum senso de comunidade e pertencimento. Ao mesmo tem-
po, as plataformas digitais são também o motor econômico das corporações
mais valiosas do mundo e fonte elementar de renda dos maiores bilionários,
cuja geração de dados representa uma grande parcela dos rendimentos. Assim
se desenha um dos conflitos centrais das redes sociais e demais plataformas
digitais, um conflito que passa encoberto por conflitos que são mais óbvios,
aqueles que envolvem os textões, hashtags, likes, etc. O conflito em questão
ocorre entre um socius esvaziado que procura nas redes sociais agenciamen-
tos que não consegue encontrar fora delas e as intenções de engajamento e
renda das corporações que presidem as plataformas digitais. Assim, todas as
possibilidades de interação e construção de comunidade apenas se dão na me-
dida em que são capazes de produzir lucro, usualmente por meio da aglomera-
ção de dados. O que se estende, naturalmente, à produção, comercialização e
propagação de conteúdo sexual, uma outra esfera da atuação autoritária das
comunidades de MLP.
As mais variadas preferências e desejos sexuais podem ser, se não satis-
feitos, ao menos alimentados e atendidos pela vasta disponibilidade de con-
teúdo erótico e pornográfico presente na internet. É uma indústria elástica
e pouco regulada que tenta atender às demandas de pessoas cada vez mais
conectadas e solitárias enquanto fomenta a participação dos usuários. Embo-
ra aqui possa residir um devir revolucionário advindo do corpo, da imanência,
das liberações do desejo e soltura dos cercos morais, políticos e sociais que
atravancam o sexo e as imagens do sexo, tudo se torna muito mais complexo
ao levarmos em consideração os rizomas da tais redes, as dinâmicas da intera-
ção digital e os interesses capitalistas que pautam as decisões das empresas
que regem as plataformas nas quais operam tais comunidades. Isso se vê até
mesmo em relação a My Little Pony.
Uma faceta das comunidades de MLP é o interesse por furries, conteú-
do de teor fortemente erótico que envolve a sexualização de animais antro-
pomórficos, estilizados como personagens de desenhos adultos. Ainda que
alguns personagens sejam codificados como queer, misturando e confundin-
do as conhecidas noções normativas da performance de gênero, não deixam
qualquer espaço para uma diferenciação estética. Os músculos são despropor- | 122
cionalmente proeminentes, seios e glúteos são tão fartos e arredondados que
mal são contidos pelas pequenas vestimentas que as sustentam, esticadas
ao ponto de ruptura, não fossem as propriedades mágicas do tecido. Abdo-
mens lisos e delineados, planícies apenas maculadas pelos ocasionais aclives
de veias e nervos. Os furries encenam atos sexuais que realçam seus este-
reótipos físicos. Demonstram uma manifestação da dominação e submissão
sexual como forma de atestar a superioridade e a força dos melhores furries,
isto é, aqueles que mais se alinham às expectativas neofascistas. A porno-
grafia furry é, em certa medida, uma parcela do leque da direita digital para
tornar bélico um erotismo voltado majoritariamente para aqueles que são in-
tegrantes do seu público alvo. É a ironia da comunidade completando o ciclo.
Aprecia-se um desenho infantil devido à transgressão presente na frivolidade
e na inocência representadas para então se valer destas mesmas frivolidade e
inocência como esteiras de uma provocação sexual.
É preciso pesquisar e analisar adiante as curiosas relações entre estas co-
munidades e a direita digital e examinar os processos de construção de desejo
que aproximam estes conteúdos, e este erotismo, do pensamento nazifascista.
Contudo, o que já se pode perceber é a complacência das plataformas e dos
mecanismos de busca ao tratar do conteúdo fascista. E, como o cimento que
solidifica as matérias em contato, o que cumpre a função de unir os desejos
por interação no meio digital e os desejos de lucro é o chamado Algoritmo,
que identifica padrões de uso e navegação a fim de amplificar os potenciais de
acúmulo de capital. Isso é efetuado em todas as camadas da vida digital, das
preferências de compras, indicações de filmes, recomendações de comunidades,
sugestão de interações (“pessoas que talvez você conheça”), etc.
Logo, há uma indução, um direcionamento deliberado das ações onli-
ne, efetuado pelo Algoritmo. Assim, em maiúsculo e no singular. Como uma
entidade metafísica e distópica, um caricato vilão que, atuando nas sombras,
manipula as cordas a fim de cumprir os passos de um nefasto plano de incrível
complexidade, mas que, examinando em retrospecto, sempre fez sentido e
sempre esteve lá. Tal plano seria impossível, não fosse a capacidade ímpar de
previsão de que é dotado o Algoritmo, capaz de antever os passos de todos e
saber precisamente como as coisas se desenrolariam. Este Algoritmo monolí-
tico e supremo é uma imagem criada, ao menos em parte, por uma espécie de
obscurantismo digital, isto é, um amplo desconhecimento do funcionamento
técnico sobre as máquinas (tanto deleuzeana-guattarianas quanto computa-
cionais[4]) com as quais interagimos e trabalhamos. Entretanto, o todo pode-
roso Algoritmo não é individuo, o que quer dizer que é divisível, e seus quo-
cientes são séries de algoritmos que o compõem. Portanto, o Algoritmo são
algoritmos. A designação do Algoritmo singular adotada pelo debate público
se funda num paradigma metafísico reducionista e vil que dificulta a abstra-
ção e o pensamento acerca do abstruso mecanismo digital.
É muito mais didático resumir e culpabilizar o Algoritmo, contudo é pre-
ciso abordar as facetas que o compõem, as pequenas parcelas da ciência com- | 123
putacional edificadas ao longo de décadas e polidas pelas corporações para
maximizar a valia dos dados online. Tratar o Algoritmo como Ser é dar corpo
a um imaterial, a uma abstração de uma máquina da qual muito pouco se sabe.
Não que a computação, ou qualquer técnica, seja neutra. Dado que a
técnica computacional aparece e se populariza em um contexto capitalista (o
que Guattari chama de CMI, o capitalismo mundial integrado), a computação
é capitalista pelo menos no sentido de que apenas é criada e desenvolvida
enquanto for capaz de produzir lucro, e traz com isso todas as ramificações
de um produto capitalista. O computador é tão neutro quanto uma arma. A
afirmação de que é o uso que rompe a neutralidade do computador é tão vá-
lida quanto a afirmação de que armas não matam.
Desmistificar a unidade metafísica do Algoritmo seria levar em conta as
diversas veredas de uma espécie de autonomia do computador. Construções
ao longo de séries de algoritmos, de Inteligências Artificiais, do aprendizado
das máquinas (machine learning), da mineração de dados, e esse conglomerado
de programas que constituem a caixa preta dos servidores (agora comumente
tratados como nuvens, em mais um distanciamento do seu funcionamento
técnico).
Uma das peculiaridades do digital: é uma técnica que, talvez como ne-
nhuma outra, esconde as formas com que opera, como foi criada, como se de-
senvolve e as condições nas quais se produz. O digital esconde seus parafusos e
engrenagens, suas dobradiças, linhas de corte. Aliena a utilização de suas pla-
taformas de seu respectivo funcionamento e, com efeito, aliena os usuários.
Muito já foi falado a respeito de como os sistemas digitais, smartphones,
apps, redes sociais, etc, são projetados para induzir um engajamento compulsi-
vo, a conexão perpétua e a contínua produção de dados[5]. Contudo, ao fazê-
-lo, tais sistemas incentivam duas desconexões. Primeiro uma desconexão com
tudo aquilo que é exterior ao sistema em questão, e depois uma desconexão
com o funcionamento técnico destes sistemas e suas relações com o modelo de
negócio dos conglomerados digitais transvestidos de utilidade pública.
Nada de novo em adornar um produto como uma necessidade básica,
uma experiência, como algo maior do que a matéria que ele é, como tendo a
capacidade de alterar essencialmente a vida do consumidor. A diferença, en-
tretanto, é que o produto material mantém sua relação concreta e absoluta
com sua realidade capitalista pelo menos na medida em que precisa ser com-
prado, adquirido por meio da troca pelo dinheiro, possui séries de elementos
que o religam à sua produção industrial, ao passo que o produto das redes so-
ciais é difuso, ausente do plano de visão. Não há compra, não há a percepção
de troca, nada que remonte à transação capitalista habitual sob a perspectiva
do consumidor. Nisso as plataformas digitais conseguem ocultar suas existên-
cias enquanto produto, marca, ações nas bolsas de valores, indústria, corpora-
ção, colaborando ainda mais para um esvaziamento das percepções materiais
e políticas acerca do meio digital.
Se as comunidades digitais privam o convívio holístico com o outro, elas | 124
são, ao mesmo tempo, sintomas desta mesma privação. Ao passo que seg-
mentam a presença digital em grupos discretos, as redes fragmentam também
as multiplicidades, despejadas a conta gotas na pureza circunscrita por seus
temas. Não mais se lida com um outro, um corpo, uma voz, mas com parce-
las relativamente anônimas, com parcelas específicas às quais estão expos-
tas nas comunidades. O sentido estrito da “comunidade” é estendido ao seu
limite lógico. A comunidade aqui é uma reterritorialização perversa daquela
invocada pelas comunas, que pretendiam a partilha social de bens que seriam
pertencentes a todos, isto é, aos comuns. Nessas comunidades digitais não há
o que ser compartilhado além daquilo que lhes confere sua semelhança, re-
força seu propósito único de ser, nomeadamente o de segregar as pessoas em
bolhas facilmente caracterizáveis a fim de angariar o máximo de dados. Não
quer dizer que as comunidades apenas atraiam pessoas que estejam em pleno
acordo com as ideias ali veiculadas, mas que ostentam mecanismos de sujeição
e persuasão que buscam efetuar uma homogeneização de sua base de usuá-
rios, e que estes mecanismos possuem o respaldo do lucro. Mesmo que haja
potências latentes na construção dessas comunidades, há também o devir
canceroso para o qual se direcionam certas comunidades, ainda que em suas
concepções gozassem de potências minoritárias e dissidentes.
Enfim, as comunidades digitais não existem unicamente nos vácuos da
internet, mas possuem múltiplos desdobramentos e agenciamentos sobre os
problemas do mundo. Tais comunidades são possíveis e incentivadas graças
a confluências de fatores pertinentes à vida contemporânea. O isolamento
social, a cultura do individualismo levada a cabo pelas políticas neoliberais, a
piora geral das condições de vida, o desemprego e as dificuldades na aquisição
da autonomia financeira, a percepção da incapacidade em promover mudan-
ças efetivas em suas próprias vidas, são alguns dos aspectos que potenciali-
zam a criação de comunidades relativamente fechadas, apenas interessadas
em aspectos únicos que pautam suas formações. Tudo isso é catalisado por
um sistema capitalista adornado por séries de sistemas computacionais que
descobrem maneiras diversas de faturar em cima desta solidão, desta desgra-
ça, deste desemprego, dessa privação.
Daí a demanda por um letramento das redes, a difusão do conhecimento
técnico, dos meios pelos quais os dados adquirem seu valor, uma aproximação
qualitativa do “estar na rede” com as materialidades que tornam esta rede
possível e, mais do que isso, que a tornam possível no contexto capitalista.
Isso pode auxiliar na construção de uma consciência técnica e ética acerca da
utilização do digital, na desmistificação da tecnologia como metafísica, como
automática e neutra. Deve-se fazer ver os valores sociais, econômicos, políti-
cos e ambientais em jogo no panorama digital.

| 125
Notas

1.
Alt-right (alternative right) é um termo genérico e abrangente usado para designar ramifica-
ções da extrema direita que abrangem movimentos nacionalistas e supremacistas, caracteriza-
dos pela sua posição anti-sistema e negação da política tradicional, razão pela qual se nomeiam
como uma direita alternativa, e pelas estratégias de inserção no debate público por meio de
mecanismos digitais. Essa questão será melhor elaborada adiante.

2.
Em entrevista para a revista britânica Woman’s Own, Tatcher afirma: “There is no such thing
[as society]! There are individual men and women and there are families and no government
can do anything except through people and people look to themselves first.”. Disponível em
<https://www.margaretthatcher.org/document/106689> acesso 11/05/2021.

3.
FedEx shooter wrote about My Little Pony in suicide note. Matéria disponível em <https://
news.yahoo.com/fedex-shooter-wrote-little-pony-155109620.html> acesso em 11/05/2021.

4.
O conceito de máquina é elaborado ao longo da obra de Deleuze e Guattari. A máquina remete ao
funcionamento interconectado das coisas todas, máquinas de desejo, máquinas de máquinas. O pri-
meiro capítulo de “O Anti-Édipo” é aberto dizendo que “Há tão somente máquinas em toda parte,
e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões” (p. 11).

5.
The Great Hack (2019) e Terms and Conditions may Apply (2013) são documentários que co-
mentam a ausência da privacidade online e seus desdobramentos para as pessoas, com as con-
tribuições de governos e corporações.

Referências

BUTLER, Judith. Critically Queer. GLQ, Vol1. p 17-32. Duke Univer-


sity Press. 1993.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O Anti-Édipo: capitalismo e es-


quizofrenia 1. São Paulo: Editora 34. 2011.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esqui-


zofrenia 2, vol. 3. São Paulo: Editora 34. 2012.

DICKENS, Charles. A Tale of Two Cities. London: Penguin Books.


2000.
| 126
GUATTARI, Félix, Revolução Molecular: pulsações políticas do de-
sejo. São Paulo: Editora Brasiliense. 1981.

Lucas Diego Gonçalves da Costa é mestre e doutorando em Estudos de Lin-


guagens pelo CEFET-MG. Pesquisador de Literatura Cultura e Tecnologia, in-
teressado principalmente nos deslizamentos da filosofia e da literatura sobre o
campo digital e suas múltiplas ramificações. É professor dos cursos de Ciência
da Computação, Computação Gráfica e Jogos Digitais, da Universidade FUMEC.

| 127
Lucia
Santiago
As dobradiças
do tempo

Clark e Woolf
A leitura de Orlando, de
Virginia Woolf, era ensaia-
da desde que ganhei o livro
em 2016. Li um pouco, parei,
li mais um pouco, e em meio
ao cotidiano veloz, a leitura
não foi concluída. Retomada
para a disciplina[1], foi prazerosa e leve. Tenho pensado que, nos tempos em
que estamos vivendo, a arte tem nos ajudado a enfrentar os momentos mais
difíceis. A literatura tem sido o meu próprio salto de lucidez.
É admirável a habilidade de Woolf com a escrita: suas experiências com a
construção das narrativas, seus personagens e os desafios criados por ela pró-
pria para lidar com seus limites de escritora, de criadora.
Orlando é, para mim, uma linda experiência da escrita, uma montagem de
tempos diversos e a criação de uma personagem fascinante. Uma personagem
de alma, gênero e sexo livres. Um ser que “questiona outra forma de obscuri-
dade para remover a sua sombra do nosso horizonte” (SANTIAGO, 2015, p.281).
Seus gestos, sua sexualidade, seu corpo, suas transgressões e os saltos nos tem-
pos apontam para uma personagem que é capaz de romper as fronteiras dos
gestos, do corpo, da sexualidade e do próprio tempo.
Mais que apropriada é a afirmação de Silviano Santiago, no final do pos-
fácio do livro Orlando, quando ele afirma

que o corpo de Orlando se monta e se reinventa a cada dia, a


cada ano, a cada século, como a série de esculturas Bichos, de
Lygia Clark. No contato com as mãos do mundo, Orlando o ro-
mance, se monta e se reinventa por um delicado e sutil sistema
de dobradiças, que guardam as possibilidades infinitas do jogo
entre a flexibilidade e o rigor (SANTIAGO, 2015, p.284).

A obra de Lygia Clark não tem forma fixa, é multiplicável, não possui
lados, suas articulações geram movimento. Orlando, a personagem, não tem
gênero fixo, é um ser que vive em movimento apoiado no tempo, ou nas do-
bradiças do tempo, montando, desmontando, dobrando, desdobrando o próprio
espírito do tempo. Uma personagem que não morre, não envelhece e, quando
o leitor termina a leitura, Orlando tem apenas 36 anos. Além disso, a obra Or-
lando é uma belíssima declaração de amor de Woolf para a inglesa Vita Sack-
villle-West, com quem a escritora teve um romance e escreve o livro quando a
relação entre elas já havia acabado. E talvez, Orlando seja o espírito do tempo
em cada uma das épocas em que a narrativa acontece, um espírito em movimen-
to, em constante mudança, vivendo tudo o que é possível nas dobras do tempo
propostas por Virginia Woolf.

Orlando, um espírito do tempo

Orlando não é normal, nem natural; tampouco é homossexual,


andrógino ou gay, no sentido corriqueiro das palavras.

Silviano Santiago

| 132
No posfácio de Orlando, Silviano Santiago afirma que a personagem Or-
lando é queer. Ele pontua ainda que sua afirmação está baseada nas exposições
contemporâneas de Judith Halberstain, especificamente na obra Queer Tem-
porality and Postmodern Geographies (Temporalidade queer e geografias pós-
-modernas). Para Judith Halberstain, “o que, em parte, fez o ‘ser queer’ se impor
como forma de autodescrição, nos últimos anos, tem a ver com a maneira como
essa concepção torna acessíveis à época e ao espaço novas narrativas de vida
e relações alternativas” (HALBERSTAIN apud SANTIAGO, 2015, p.268). Ainda
conforme Santiago, Orlando vive em seu corpo tudo aquilo que se faz presente
entre o século XVI até os anos de 1920, podendo ser visto como um experimen-
to ficcional de Virginia Woolf (2015, p.268).
Em Teoria Queer – uma política pós-identitária para a educação, Guacira
Lopes Louro (2001, p. 541-553) desenvolve um argumento para criação de uma
pedagogia queer. Seu pensamento tem como suporte a luta entre as “minorias”
sexuais e os grupos conservadores. Vale ressaltar que as “minorias” vão além
da questão numérica e apontam para “maiorias silenciadas”. Para a autora, nos
dois últimos séculos, a sexualidade constituiu-se como uma questão, e os pro-
cessos de normatização dos corpos também foram ampliados. Mudanças que
provocam uma relação de tensão entre as políticas identitárias e as políticas
das diferenças. O embate é complexo e está em constante transformação. Não
há certezas, modelos ou fórmulas. Há novas práticas e novos sujeitos.
A partir destes apontamentos, a personagem Orlando pode ser com-
preendida como um sujeito queer, pois Orlando vive na fronteira da norma
vigente do sexo em cada uma das épocas apontadas na narrativa de Woolf. A
personagem é ambígua, múltipla e fluida, características importantes para a
teoria queer.

tal como o feminismo, a teoria queer efetua uma verdadeira


reviravolta epistemológica. A teoria queer quer nos fazer pen-
sar queer (homossexual, também é “diferente”) e não straight
(heterossexual, mas também “quadrado”): ela nos obrigada a
considerar o impensável, o que é proibido pensar, em vez de
simplesmente considerar o pensável, o que é permitido pensar.
(...) O queer se torna, assim, uma atitude epistemológica que
não se restringe à identidade e ao conhecimento sexuais, mas
se estende para o conhecimento e a identidade de modo ge-
ral. Pensar queer significa questionar, problematizar, contes-
tar, todas as formas bem-comportadas de conhecimento e de
identidade. A epistemologia queer e, neste sentido, perversa,
subversiva, impertinente, irreverente, profana, desrespeitosa
(SILVA apud LOURO, 2001, p. 550).

Pensando a partir das abordagens de Silviano Santiago e de Guacira


Lopes Louro, Orlando é um ser queer , pois a personagem, antes mesmo de
contestar aquilo que está vigente, ultrapassa as fronteiras, tornando-as
móveis de forma irreverente, impensada. Orlando não é heterossexual, não
é homossexual, não se encaixa em um único gênero. A personagem carrega
consigo duas possibilidades: o ser masculino e o ser feminino. | 133
Louro argumenta que,

Segundo alguns teóricos e teóricas queer é necessário em-


preender uma mudança epistemológica que efetivamente
rompa com a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia,
a classificação, a dominação e a exclusão. Uma abordagem
desconstrutiva permitiria compreender a heterossexuali-
dade e a homossexualidade como interdependentes, como
mutuamente necessárias e como integrantes de um mes-
mo quadro de referências. A afirmação da identidade im-
plica sempre a demarcação e a negação do seu oposto, que
é constituído como sua diferença. Esse ‘outro’ permanece,
contudo, indispensável. A identidade negada é constitutiva
do sujeito, fornece-lhe o limite e a coerência e, ao mesmo
tempo, assombra-o com a instabilidade. Numa ótica des-
construtiva, seria demonstrada a mútua implicação/consti-
tuição dos opostos e se passaria a questionar os processos
pelos quais uma forma de sexualidade (a heterossexualida-
de) acabou por se tornar a norma, ou, mais do que isso, pas-
sou a ser concebida como ‘natural’.” (LOURO, 2001, p.549).

A autora indica que, a partir dos anos de 1990, um grupo de intelectu-


ais passa a utilizar o termo queer para indicar as perspectivas teóricas de seus
trabalhos. Queer pode significar “estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro,
extraordinário” (LOURO, 2001, p.546). Orlando pode ser estranho, algumas ve-
zes ridículo, em outras excêntrico, mas com certeza é uma personagem raro e
extraordinário. A personagem desloca, descentra uma visão normatizada do
gênero, vivendo durante a narrativa possibilidades fluidas, explorando, recons-
truindo, reinventando, apreciando a transgressão das fronteiras da existência.
Bastante complexo é o tema identidade, pois é circundada por muitos
pensamentos da ordem do masculino, que já carrega em si uma certa universa-
lização das categorias: sujeito, liberdade, homem, mulher, corpo, gênero, sexo.
E ao mesmo tempo questões como cultura, história, fronteira, lugar, não lugar.
De um modo ou outro, tudo isto vai esparrar ou desaguar no discurso, ou seja,
na linguagem.
Para Judith Butler em Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade, especificamente no Capítulo I, “Sujeitos do sexo/gênero/desejo”

A matriz cultural por intermédio da qual a identidade de


gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “iden-
tidade” não possam “existir” – isto é aquelas em que o
gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas
do desejo não “decorrem” nem do “sexo” nem do “gêne-
ro”. Nesse contexto, “decorrer” seria uma relação política
de direito instituído pelas leis culturais que estabelecem
e regulam a forma e o significado da sexualidade. Ora, do
ponto de vista desse campo, certos tipos de “identidade
de gênero” aparecem ser meras falhas do desenvolvimen-
to ou impossibilidades lógicas, precisamente porque não se
conformarem às normas da inteligibilidade cultural. Entre-
tanto, sua persistência e proliferação criam oportunidades
críticas de expor limites e os objetivos reguladores desse
campo de inteligibilidade e, consequentemente, de disse-
minar, nos próprios termos dessa matriz de inteligibilida- | 134
de, matrizes rivais e subversivas de desordem do gênero
(BUTLER, 2019, p.39).

Orlando é uma personagem que apresenta a desordem do gênero. Orlan-


do é uma personagem que faz ver o gênero como performatividade, como cons-
trução cultural. A personagem atravessou o tempo, ou os tempos, ora vestida
de homem, ora vestida de mulher, “conhecia e os segredos, as vantagens e as
fraquezas dos dois gêneros” (LOURO, 2017, p.107). As roupas de Orlando po-
dem ser consideradas um item importante para a fluidez desta fronteira entre
um gênero e outro:

“uma vez que as roupas serviam para marcar ou indicar o


sexo, Orlando descobre que pode usar diferentes trajes e,
assim, se fazer passar ora por homem, ora por mulher. (...)
Manejando os modos e as roupas, Orlando desliza entre os
gêneros; faz acontecer os dois gêneros, operando com os
discursos que sobre eles circulavam. Todas essas mudanças
pareciam, então, se realizar sem maiores dificuldades e sem
culpa” (LOURO, 2017, p.108-109).

As roupas dizem muito sobre nós. A moda reflete tudo aquilo que consti-
tui uma sociedade, podendo incluir ou excluir o indivíduo, os comportamentos
sociais, culturais, econômicos e políticos de uma determinada época. Seu siste-
ma de mudanças é contínuo e se mantem vivo através de busca pela novida-
de, o que a faz, por muitas vezes, ser considerada frívola. “Da mesma forma, a
moda está integrada à construção e à comunicação das identidades sociais, aju-
dando a delinear a classe, a sexualidade, a idade e a etnia de quem a usa, além
de expressar as preferências culturais individuais” (MACKENZIE, 2010, p.6).
Por um lado, a moda pode contribuir para o diálogo sobre temas como
preconceitos contra as mulheres, mulheres e homens negros, os jovens, tra-
balhadores, comunidade LGBT+. Por outro, a moda pode repetir, influenciar,
conformar ou formatar aquilo que já é vigente. Por exemplo: na Grécia e
Roma antigas os saiotes eram usados por homens e mulheres, ao longo da
história da indumentária tornou-se uma roupa de mulher e, ainda nos dias de
hoje, a sociedade compreende a saia como uma roupa de mulher. Claro que
já é possível vermos homens usando saias na contemporaneidade, mas ainda
são poucos e o preconceito ainda é grande.
Na obra de Woolf, sua personagem Orlando usa com desenvoltura as
roupas como artifícios para a sua circulação entre os dois gêneros. Para Or-
lando, vestir um traje masculino ou um traje feminino era um ato conheci-
do, no sentido de compreensão dos modos vigentes de cada época em que
viveu, do comportamento de um homem ou de uma mulher. Ou melhor, de
como um homem ou uma mulher deveriam agir. As possibilidades abertas ao
ser um e outro enriquecem a vida de Orlando: “não é de surpreender que,
enquanto opunha um sexo ao outro e descobria que ora um, ora outro estava | 135
repleto de fraquezas as mais deploráveis não estando segura a qual perten-
cia” (WOOLF, 2015, p.106).
Orlando, durante o romance, “sentia a necessidade de algo ao qual pu-
desse fixar seu oscilante coração; o coração que lhe rasgava o lado do peito; o
coração que aprecia, todas as tardezinhas, a esta hora, quando saía para passe-
ar, ser invadido por aragens pungentes e amorosas” (WOOLF, 2015, p.15). Um
coração que, ao longo da narrativa, ainda busca por algo que fosse capaz de
fixar seu coração. Sua busca é continua ao longo das épocas em que vive e
é tão intensa, que seu corpo, através de mudanças físicas, criou um caminho
novo para experimentar a vida, o amor, o sexo, o tempo e, quem sabe, acal-
mar seu coração. Orlando era um espírito em movimento, não importa a época
em que estava vivendo. Um espírito capaz de montar, desmontar aquilo que
era convencional, vigente, tornando-se extraordinário. Orlando parece de fato
constitui-se de dobradiças, como a escultura de Lygia Clark, através das quais o
tempo se dobra sobre o próprio tempo, transformando-se em algo novo a cada
montagem e desmontagem.
A personagem desconstrói a imagem de gênero, os binarismos de gênero
ou a imagem desses binarismos, articula, de forma particular, uma identidade
nada convencional, rompe não apenas a barreira do tempo, mas as fronteiras
entre ser homem e ser mulher. Usufruiu das belezas de ser um e outro. Lança
mão de artifícios sociais para experimentar o desejo, o amor, o sexo e a vida.

Notas

1.
Corpos dissidentes: arte, literatura e política, ministrada pelo Professor Dr. Luiz Lopes no Cen-
tro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais

Referências

BUTLER, Judith. Sujeito do sexo/gênero/desejo. In: BUTLER, Judith.


Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. p. 15-50.
| 136
CLARK, Lygia. Bicho, 1960. Disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=lfitsC4m_dY. Acesso em 22 MAIO 2021.

CLARK, Lygia. O Bicho! Lygia Clark. Itaú Cultural. SP. 2012. Dispo-
nível em https://www.youtube.com/watch?v=K9ZIrXlPI6c. Acesso
em 22 MAIO 2021.

CLARK, Lygia. Lygia Clark and her “Abandonment” in MoMA. Dis-


ponível em https://www.youtube.com/watch?v=HZ4TXDlUwQc.
Acesso em 22 MAIO 2021.

LOURO, Guacira Lopes. Flor de açafrão: takes, cuts, close-ups. 1. e.


Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. (Argos, 3).

LOURO, GUACIRA LOPES. Teoria queer: uma política pós-identitária


para a educação. Rev. Estud. Fem. [online]. 2001, vol.9, n.2, pp.541-553.
Disponível em https://doi.org/10.1590/S0104-026X2001000200012.
Acesso 23 Maio 2021.

MACKENZIE, Mairi. Ismos: para entender a moda. Tradução Chris-


tiano Sensi. São Paulo: Globo, 2010.

WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Tradução e notas Tomaz


Tadeu. Posfácio Silviano Santiago. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015.

Lucia Santiago é doutoranda em Estudos de Linguagens pelo Programa de Pós-


-graduação do CEFET-MG. Mestre em Artes pelo Programa de Pós-graduação
da Escola de Belas Artes da UFMG. Bacharel em Desenho e Plástica pela UEMG.
Atualmente é professora do curso de Design de Moda da Escola de Belas Artes
da UFMG. Coordenadora do grupo de pesquisa Fios – processos e experiências
criativas. Autora dos livros Janelas para Veneza e As vestes da memória, am-
bos pela editora Atafona (no prelo).

| 137
Luiz
Lopes
Noll: literatura,
corpo e
pensamento
queer
Queer é a rejeição total ao regime do Normal.

Mary Nardini Gang

Em 2008, quando João


Gilberto Noll lançou Acenos
e afagos, o escritor não ape-
nas confirmava sua voz
altamente original na literatura do início do século 21, como operava um abalo
sísmico no campo da sua ficção. Dentre todos os seus escritos, esse romance ocu-
pa um lugar de destaque quando pensamos na literatura de Noll como uma pro-
dução muito interessada em pensar a partir do corpo e promover rupturas com os
binarismos a partir de “atos corporais subversivos” (BUTLER, 2019, p. 12).
A imagem do corpo como lugar do pensamento já aparece na abertura do
texto, um romance concebido por meio de um único parágrafo que se estende
por mais de 200 páginas num fluxo-pensamento que não quer ser interrompido.

Lutávamos no chão frio do corredor. Do consultório do den-


tista vinha o barulho incisivo da broca. E nós dois a lutar
deitados, às vezes rolando pela escada da portaria abaixo.
Crianças, trabalhávamos no avesso, para que as verdadeiras
intenções não fossem nem sequer sugeridas. Súbito, os dois
corpos pararam e ficaram ali, aguardando o quê? Nem nós
dois sabíamos com alguma limpidez. A impossibilidade de
uma intenção aberta produzia essa luta ardendo em vácuo.
O guri meu colega de escola estava nesse exato minuto me
prendendo. Seu corpo em cima do meu parecia tão forte que
eu teria que me render. O que sentiriam os rendidos? E as
consequências práticas, quais seriam? (NOLL, 2008, p. 07).

Essa imagem da abertura do romance, uma das mais belas da ficção de


Noll, mostra dois garotos que experimentam o mundo por meio do corpo. Tudo
que o leitor sabe sobre essa cena ocorre por meio das memórias sensoriais da-
quele que narra e de quem lê. Os sentidos são colocados em cena para que
sintamos juntos com os garotos o frio do chão, escutemos o barulho da broca e
possamos sentir também o peso de um corpo sobre o outro bem como a leveza
de uma descoberta do mundo que acontece pela inocência da construção de
um território para se habitar, território que se parece mais com um processo
de demolição de toda “fábula fundante” (BUTLER, 2019, p. 20) de gêneros e
sexualidades normalizados. Esse território é o campo do desejo. Os garotos se
rendem, não apenas um, mas os dois, ao desejo de seus corpos, ao impulso dessa
razão, aos sentidos e a uma forma de conhecer o mundo e a si próprios. Eles se
entregam ao desejo de seus corpos dissidentes.
Também, por meio desse trecho inicial, Noll nos apresenta um narrador
que, durante todo o resto do parágrafo, desse fluxo-romance, não deixará de
trabalhar sempre a favor de uma espécie de “labor libidinal” (NOLL, 2008, p. 21).
Esse trabalho em torno do desejo e da libido faz com que todo o texto seja uma
reflexão a partir e em torno do corpo. A literatura de Noll é uma escrita do pen-
samento e esse pensamento é sempre uma produção do corpo. Interessa, nesse
escritor, pensar a carne, os fluxos corporais, os afetos que nos atravessam, os
cheiros que exalam dos corpos e todas as suas secreções. Enfim, interessa dar
visibilidade para todas as produções do corpo e do fracasso da visão masculinis-
ta hegemônica. O que um corpo pode produzir? O texto de Noll parece sugerir
que nunca saberemos tudo o que um corpo pode produzir, mas podemos saber
algumas coisas, e essas coisas são o que interessa acompanhar. | 139
Michel Foucault escreveu um dos textos mais potentes sobre o corpo,
intitulado “O corpo utópico”. Nesse texto Foucault fala sobre a impossibili-
dade de escaparmos do nosso corpo. Tudo que sabemos ou produzimos, tudo
que sentimos ou pensamos sentir, tudo que nos atravessa e tudo que atraves-
samos, fazemo-lo por meio de nosso corpo. O corpo é, pois, esse lugar do qual
não posso fugir. Não podemos ir a outro lugar e deixarmos nosso corpo para
trás. O filósofo fala dessa dimensão a partir da obra de Proust Em busca do
tempo perdido.

Do lugar que Proust ocupa, docemente, ansiosamente, sem-


pre e a cada vez que desperta, deste lugar, se meus olhos
estiverem abertos, não posso mais escapar. Não que ele me
paralise – pois afinal, posso não apenas mover-me e remo-
ver-me, como posso “movê-lo”, removê-lo, mudá-lo de lo-
calização – apenas isto: não posso deslocar-me sem ele; não
posso deixá-lo lá onde ele está para ir-me a outro lugar. Pos-
so até ir ao fim do mundo, posso, de manhã, sob as cobertas,
encolher-me, fazer-me tão pequeno quanto possível, posso
deixar-me derreter na praia, sob o sol, e ele estará sempre
comigo onde eu estiver. Está aqui, irreparavelmente, jamais
em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o
que jamais se encontra sob outro céu, lugar absoluto, pe-
queno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito,
faço corpo. (FOUCAULT, 2013, p. 07).

Todas as utopias podem ser produzidas e imaginadas, meu corpo, contu-


do, é sempre o espaço da não-utopia. Ele é, a princípio, aquilo que está mais pre-
sente. É um pouco dessa lógica que vemos também no texto Acenos e afagos.
Ainda na abertura do romance é essa presença do corpo que se sublinha ao lei-
tor. Talvez seja por essa presença constante e, ao mesmo tempo em estado per-
manente de transformação, que possamos, como diz o narrador de Noll, se nos
ocuparmos de verdade com nossos corpos e seus desejos, nos transformarmos
em “amantes e peritos do corpo” (NOLL, 2008, p. 23). Mas o que seria ser um
amante e perito do corpo? Em Noll, num primeiro momento, seria se entregar
ao desejo de estar com outro homem, de romper com determinados processos
de normalização e mortificação do corpo. Quando o narrador de Acenos e afa-
gos fala sobre sua relação com o amigo engenheiro, ele sublinha a força desse
encontro dizendo que “seu corpo todo vira sedução” (NOLL, 2008, p. 23) e com-
pleta dizendo que queria morrer se o ato não vingasse (Cf. NOLL, 2008, p. 23).
Esse ato, contudo, está para além do encontro apenas com o amigo engenheiro,
ele deseja “estar fodendo com a carne do mundo inteiro” (NOLL, 2008, p.48).
Mas ser um perito do corpo é também perceber os movimentos desse
corpo que é sempre meu e alcançar ainda o movimento do próprio desejo que
em Noll se desloca constantemente. Ser perito e amante do corpo é, de algum
modo, entender que esse corpo é sempre algo em movimento, desterritorializa-
do, que não cessa de se deslocar. É por isso que o narrador não fala apenas de
seu desejo pelo colega engenheiro, mas dissemina sua narrativa para vários ou-
tros objetos de desejo, seja o segurança do shopping, que aparece em seguida, | 140
seja a mulher do dono do hotel ou ainda a cabra com a qual o narrador pratica
a zoofilia, assim como tantos outros personagens que se transformam no foco
provisório de desejo desse narrador desejante. Ao ir deslocando esse desejo por
objetos distintos, esse narrador também demonstra que está protelando qual-
quer imagem totalizadora de si mesmo.
Há em Noll e, de modo especial em Acenos e afagos, uma experiência que
vai em direção à diferença. A literatura é sempre uma experiência com o outro,
uma forma de visibilidade de algo que parecíamos não saber. Essa experiência
com o estranho, em Noll, ocorre pela presença do corpo, pela reflexão e pelo
pensamento que pode ser engendrado por essa “grande razão” como diria Niet-
zsche (2013, p. 55). Essa grande razão que é o corpo também pode ser entendida
como ferida. O saber que meu corpo me faz ter acesso é um saber que acontece
pela alegria, mas também pela dor. Todo corpo é uma grande ferida que foi pro-
duzida pelo contato com o mundo, um contato que, muitas vezes, é resvaloso.
Nesse sentido, Foucault afirma que:

No entanto, toda as manhãs, a mesma presença, a mesma


ferida; desenha-se aos meus olhos a inevitável imagem im-
posta pelo espelho: rosto magro, ombros arcados, olhar mío-
pe, sem cabelos, realmente nada belo. E é nessa desprezível
concha da minha cabeça, nesta gaiola de que não gosto, que
será preciso mostrar-me e caminhar; é através dessa grade
que será preciso falar, olhar, ser olhado; sob esta pele dete-
riorar-se. Meu corpo é lugar sem recurso ao qual estou con-
denado (FOUCAULT, 2013, P. 07 - 08).

A experiência de leitura de Acenos e afagos pode sugerir algo próximo


ao que Foucault diz ao afirmar ser o corpo uma ferida. A ferida como lugar de
maior sensibilidade, onde tudo ganha uma dimensão de pura intensidade. Tan-
to Foucault como Noll parecem escrever contra os cânones da racionalidade
para dizer com Nietzsche (2013, p. 58), os adoradores do além-mundo. O convite
desses autores é outro. Eles nos convidam a permanecermos fidos no corpo. É
afirmando os saberes do corpo que podemos lutar a boa luta, fazer a boa guer-
ra. A guerra que é travada contra a esperança de que os prazeres fiquem para
depois, que os corpos sejam normalizados e mortificados, a guerra que se faz
contra as ditaduras de um corpo adoecido, sem prazer, sem desejo, e culpado.
Em Foucault, e de modo similar em Noll, existe essa espécie de elogio do corpo
como prisão. Estamos condenados ao corpo, mas essa é a melhor condenação.
Estar condenado ao corpo é uma forma de alegria, quando descobrimos que
essa condenação pode ser uma afirmação absoluta no sentido de que queremos
nos mostrar tal como somos ou como podemos ser, já que esse corpo demonstra
sempre o fracasso de toda identidade fixa.
Talvez seja por isso que a imagem do espelho apareça em Foucault e
também de modo ressonante em Noll. Estamos diante de nosso corpo quando
vemos a nós mesmos no reflexo do espelho. Esse é um modo de estar diante de
nosso corpo, desse lugar cheio de recursos e ao mesmo tempo sem recurso. | 141
Serei sempre grato ao engenheiro. Grato também pela au-
têntica mulherzinha que haverei de ser, seguindo o marido
com devoção e obediência. A única coisa que ultrapassa o
meu tartamudear diário e de algum modo se refinava era
o sexo da noite. Isso sim servia ao coração de minhas ne-
cessidades. Ao sair do campo da libido, regressava ao tempo
lento, dormindo ou acordada, tempo que me inspirava para
a lembrança da infância em seus traços mais miúdos e secre-
tos, vergonhosos até, embora insignificantes. Nos meus ver-
des anos, à hora do banho, eu subia nu na borda da banheira
para me ver no espelho. Botava a mão fechada sobre o sexo,
tapava-o para me imaginar mulher. Se eu conseguia? Sim,
deste que minha mão ficasse no seu posto, ajudando-me as-
sim na súbita conversão (NOLL, 2008, p. 103-104).

A imagem do menino diante do espelho aponta para a vontade de deixar


o seu corpo para trás, ao menos esse corpo de menino, um desejo de ser outro
sendo si mesmo, de ser mulher, sendo homem, de estar nessa zona de indecidi-
bilidade. Ao narrar esse episódio, o narrador-personagem já é esse outro, agora
ele fala como a mulher que ele passou a ser. O desejo do narrador-personagem
de Noll quando criança é o de escapar desse corpo sendo capturado cada vez
mais por ele, já que estamos condenados desde sempre a não deixá-lo nunca
para trás. Se não podemos deixar nosso corpo para trás, podemos, por outro,
lado engendrar transformações nele. O que esse narrador parece fazer quando
ainda menino é querer atravessar um limite, limiar que está assinalado pelo pró-
prio lugar onde esse se coloca, numa borda, na borda da banheira, nesse limite
entre o fora e o dentro, entre ser e não ser, entre o homem e o animal, o macho
e a fêmea, o permanecer e o partir de um determinado lugar. A criança na borda
da banheira é a mesma criança que deseja “arrancar o seu corpo de seu espaço
próprio” e projetá-lo “num espaço outro” (FOUCAULT, 2013, p. 12).
Nesse sentido, a escrita de Noll lembra aquilo que Judith Butler declara
ainda no início de Problemas de gênero, a saber,

O gênero é uma complexidade cuja totalidade é permanen-


temente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer
conjuntura considerada. Uma coalizão aberta, portanto,
afirmaria identidades alternativamente instituídas e aban-
donadas, segundo as propostas em curso; tratar-se-á de
uma assembleia que permita múltiplas convergências e di-
vergências, sem obediência a um telos normativo e definidor
(BUTLER, 2019, P. 42).

As imagens do romance de Noll podem ser lidas como formas de rasura


dessa normatividade. Numa outra cena, agora quando o narrador-personagem
já atravessou sua própria morte e volta como mulher, podemos ver de novo a
transformação que tensiona com o ideal de identidade fixa. Nessa, parte o mo-
vimento ocorre pelo procedimento de maquiar o corpo.

| 142
Eu já era outro. Abri o armarinho e vi os artigos de maquia-
gem. Pus-me a trabalhar para fazer de mim uma mulher
próxima ao ideal. Parecia ter uma prática enorme com cos-
méticos. Em dez, quinze minutos possuiria um rosto para
pretendente nenhum botar defeito. Não me via então como
mulher acabada. Embora não apresentasse aquelas impure-
zas grosseiras de pele que uma parcela expressiva dos ho-
mens ostenta (NOLL, 2008, p. 96).

Mas o que ocorre nessas cenas é uma experiência queer, o deslocamen-


to de uma certeza por outro modo de aproximação de si mesmo, que se dá
pela dúvida, pela imaginação, pelo como se fosse próprio do campo da ficção,
mas, sobretudo, pelo acolhimento do estranho, daquilo que é entendido como
abjeto. O menino consegue, ao colocar a mão sobre seu sexo, efetuar uma
espécie de “pintura” em seu corpo. Do mesmo modo quando homem, ao se
maquiar, ele se torna mulher. Essa maquiagem permite uma fabulação de que
ele pode ser o outro, pode ser mulher, pode, ao menos, imaginar como seria se
ele fosse outro. Foucault fala desse gesto de maquiar os corpos, de desenhar
sobre eles, de tatuar, enfim, de lançarmos véus sobre os corpos de modo a
projetarmos nossos corpos em outros espaços tal como o narrador-persona-
gem de Noll faz, ao se colocar na borda de uma banheira, tampando seu sexo
e olhando sua imagem no espelho.

O corpo é também um grande ator utópico, quando se tra-


ta de máscaras, de maquiagem e de tatuagem. Mascarar-se,
maquia-se, tatuar-se não é exatamente, como se poderia
imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais
belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível: tatu-
ar-se, maquiar-se, mascar-se é sem dúvida algo muito dife-
rente, é fazer com que o corpo entre em comunicação com
poderes secretos e forças invisíveis (FOUCAULT, 2013, p. 12).

Para Foucault esses procedimentos de escrever outras camadas sobre o


corpo, de colocar sobre a pele outras superfícies que escondem e revelam ao
mesmo tempo, são maneiras de entrar em contato por meio do próprio corpo
com uma “potência do sagrado” e também com a “vivacidade do desejo” (FOU-
CAULT, 2013, p. 12). Pintar o próprio corpo, e cabe dizer que “pintar” aqui signifi-
ca efetuar qualquer intervenção que traz mais vida para o corpo do sujeito, que o
faz afirmar de modo irrestrito esse corpo ao qual cada um está condenado, signi-
fica também entrar em contato com forças que aumentam a nossa capacidade de
viver e asseverar a vida. Nesse sentido, o personagem de Noll, ao colocar a mão
sobre seu sexo, enquanto sai da banheira, entra em contato com uma força que
lhe permite viver seu desejo bem como entrar em contato com aquilo que há de
mais sagrado: seu corpo e as possibilidades que esse corpo encerra, a saber, ser e
deixar de ser.
A experiência de estranhamento em Acenos e afagos é exatamente essa
descoberta do corpo. Descoberta que se inicia na infância e que vai sendo apro- | 143
fundada com cada experimento do narrador-personagem. O narrador de Noll
chega a falar de uma experiência limite desse corpo que significa a experiência
da própria morte. Ele morre e ressuscita dessa morte, voltando agora como mu-
lher. Nesse ponto, Acenos e afagos lembra a narrativa de Memórias póstumas de
Brás Cubas. Tanto no romance de Noll como no de Machado de Assis, os narra-
dores que tudo falam, falam depois de uma experiência de vida-morte, a vida e a
morte não se opõem nessa experiência queer, não se trata nunca de uma lógica
do binário, mas desse indecidível que é matéria constitutiva da forma literária.

Quando cheguei em casa me olhei no espelho. Notei que


meu rosto vinha perdendo os pelos que compunha a bar-
ba. Eu estava virando mulher devagarzinho? Esperava que,
quando o destino a completasse, eu ainda não sofresse de
senilidade e pudesse reconhecê-la, fazendo-a soberana na
hospedaria do meu corpo. Não tinha encontrado ninguém
no matadouro, ficaria sem carne nos próximos dias. Não me
importava. Passaria a cultivar uma vida ascética, sem car-
ne, sem cosméticos, sem sexo fora do casamento nem nada.
Quando enfim o engenheiro voltasse, correria para encon-
trar o matadouro fantasma, tomara que agora povoado. Ti-
rei a roupa, sentei no chão em posição de lótus e morri para
o intervalo entre a partida dele e seu retorno. Os dias que eu
atravessasse nesse meio-tempo não poderiam ser relatados.
Apenas ocuparei a experiência lacunar. Entre ser homem
ou mulher fico com os dois. E que ninguém me siga. Acabei
ficando assim em posição de lótus por uma eternidade. Os
meus cabelos tinham crescido um palmo, apresentavam a
novidade do grisalho nas têmporas. Minha face mostrava-se
ainda mais despida dos fios de barba (NOLL, 2008, p. 122).

A imagem do narrador-personagem nesse momento, depois de sua mor-


te, quando ele paulatinamente vai rasurando as características presumidamen-
te de homem e coloca em destaque outras presumidamente de mulher, parece
ser interessante para pensar novamente numa experiência do corpo que ocorre
de novo no limite, na borda e no limiar. O romance de Noll nos coloca diante
da experiência lacunar, do silêncio e de uma experiência que não pode ser no-
meada ou atingida pelas palavras. Esse mesmo narrador fala de sua vontade
pelo indecidível. Entre ser homem ou ser mulher ele escolhe os dois. Nesse sen-
tido, a experiência do corpo nessa narrativa pode ser lida também como uma
afronta a um modelo da “heterossexualidade compulsória” (BUTLER, 2019, p.
201), trazendo para a cena literária uma “desordem de gênero” (2019, p. 44) nos
termos de Judith Butler. Talvez fosse possível assim, como foi realizado por
outros críticos de Noll, falar de um corpo queer em Acenos e afagos.
Mais que nomear esse corpo que aparece no texto de Noll, interessa-nos
pensar que esse corpo efetua uma série de deslocamentos não se deixando ser
capturado pelas lógicas da mortificação e justamente nessa não possibilidade de
assimilação está a presença de um pensamento queer que atravessa o romance.
Cada evento do qual esse corpo participa, ele o faz desejando maior potência e
alegria. É por isso que podemos afirmar que o corpo do narrador-personagem é
antes de tudo um corpo desejante, um corpo que afirma seu desejo de ser ho- | 144
mem e de ser mulher, de se encontrar com outros corpos, de ser homem e ser
animal, de ser vivo e ser morto. E mais que isso, esse mesmo corpo sabe que esses
pares não se excluem e é por isso que a experiência desse corpo revela sempre o
que poderia ser nomeado como uma experiência queer que significa se aproximar
dos espaços lacunares negando toda forma de binarismo e totalização.
O narrador de Noll chega a um saber que sucede pelas experiências de
seu corpo. Seu corpo é estranho. Não há nesse narrador nunca uma vontade de
obliterar o corpo por aquilo que Nietzsche disse ser “os desprezadores do cor-
po”. Foucault também recrimina esse desprezo pelo corpo em prol de uma ideia
de pureza que marca o pensamento ocidental.

Porém, a mais obstinada talvez, a mais possante dessas uto-


pias pelas quais apagamos a triste topologia do corpo, nos
é fornecida, desde os confins da história ocidental, pelo
grande mito da alma. A alma funciona no meu corpo de
maneira maravilhosa. Nele se aloja, certamente, mas sabe
bem dele escapar: escapa para ver as coisas através das ja-
nelas dos meus olhos, escapa para sonhar quando durmo,
para sobreviver quando morro. Minha alma é bela, é pura,
é branca; e, se meu corpo lamacento – de todo modo não
muito limpo – vier a sujá-la, haverá sempre uma virtude,
haverá uma potência, haverá mil gestos sagrados que a
restabelecerão na sua pureza primeira. Minha alma durará
muito tempo e mais que muito tempo, quando meu corpo
vier a apodrecer. Viva minha alma! É meu corpo luminoso,
purificado, virtuoso, ágil, móvel, tépido, viçoso; é meu cor-
po liso, castrado, arredondado como uma bolha de sabão
(FOUCAULT, 2013, p. 09).


Foucault sabe que todas essas utopias engendram uma espécie de desa-
parecimento do próprio corpo. O filósofo efetua uma crítica em relação ao pen-
samento ocidental que rebaixou o corpo como categoria do não pensamento.
Foucault, na esteira de Spinoza e Nietzsche, reivindica o corpo como categoria
do pensamento. De modo similar, a literatura de Noll também se volta contra
essa rasura do corpo e deseja a afirmação desse “corpo lamacento” e abjeto.
Tanto em Noll como em Foucault parece importante a declaração do corpo
como categoria do pensamento, como fio condutor de um modo de ver o mun-
do, de habitar os espaços e, sobretudo, como forma de pensar e agir contra as
lógicas de opressão e mortificação das diferenças, em outras palavras, por meio
de uma transgressão permanente que, para o narrador, é ócio e deleite.

Enquanto esperávamos viver ou não a saraivada colossal


entre o crime fardado lá e o crime à paisana aqui, íamos
trocando pequeninos ócios e deleites. Eu participava omis-
sa da atmosfera do tráfico, sem saber ao certo com que
lado a minha biografia rimava. Perguntava-me se o mundo
do tráfico não teria começado, para ele, lá no submarino
alemão. Ou até antes. E no mais, estava precisando encarar
em cheio uma ação de delinquência, sei lá, seja pegando no
proibido, ou me responsabilizando por um transporte mal- | 145
dito, ou ainda queimando arquivo. Ele e sua quadrilha,
quem sabe, quisessem manter ali a minha suposta inocên-
cia, como potencial, salvo-conduto para formular um trato
contra a polícia. Talvez eu entrasse agora e fosse lamber
o cu dele sempre rubro e ardente. Quando não vivamente
inflamado. O cheiro emanado dali era de mucosa constan-
temente reativada por fezes e pelo meu cacete e porra,
alcançando assim uma síntese bem ilustrativa da matéria
humana (NOLL, 2008, p. 139).

O fragmento acima sublinha bem aquilo que atravessa de ponta a pon-


ta Acenos e afagos, a saber, o corpo. Interessam a Noll os fluidos, os cheiros
e tudo aquilo que pode parecer o mais obsceno ou sujo para uma civilização
que reiteradamente despreza o corpo. A ficção de Noll é uma tentativa de
destruir, a golpes de martelo, toda essa lógica reativa em relação aos corpos
dissidentes. Nessa literatura, a experiência queer, ou seja, uma outra forma de
saber, ocorre por meio da aproximação do que o escritor diz ser matéria hu-
mana. Os sentidos são convocados constantemente e, por meio deles, se pode
ter acesso a uma determinada verdade que se inventa contra os processos de
normalização. Cabe ainda dizer que o próprio texto também pede uma apro-
ximação que ocorra pelo corpo, essa matéria humana, já que ele não pode ser
aprendido senão pela relação não binária entre logos e pathos. Muitos frag-
mentos são escritos para serem degustados, outros para serem ouvidos, ou-
tros para serem tocados e outros para serem vistos, outros ainda para serem
cheirados. Esses sentidos vão sendo convocados de forma a se tensionarem e
se intercambiarem na narrativa.
Jacques Rancière escreveu em O inconsciente estético que “o próprio
da arte é ser uma identidade de um procedimento consciente e de uma produ-
ção inconsciente, de uma ação voluntária e de um processo involuntário, em
suma, a identidade de um logos e de um pathos” (RANCIÈRE, 2009, p. 30). É
justamente por meio dessa identidade dupla ou tensional, nunca totalizadora
ou fechada em si mesma, que podemos compreender melhor o texto de Noll.
Há no romance algo de um saber que pode ser apreendido pelos encadeamen-
tos, pela racionalidade e por um aspecto progressivo da forma narrativa. Por
outro lado, existem outras formas de saber que aparecem justamente quando
outras modalidades de leitura são convocadas. Modalidades que escapam ao
progressivo, à racionalidade ou a qualquer tentativa de catalogação, reve-
lando a lógica queer dessa escrita. E nesse lugar de indecidíveis podemos ter
acesso a um outro saber que emana do texto de Noll e também a um não sa-
ber, lugar onde os afetos atravessam e nos atravessam.
Esse lugar dos afetos nos permite ter acesso ao que o narrador de Noll
diz ser a matéria humana. Foucault observa que o corpo é sempre o espaço
não-utópico, é essa presença constante da qual não se pode fugir. Mas tam-
bém declara que o corpo é utópico, ele sempre está em outro lugar. A maté-
ria humana é essa presença-ausência. Estar aqui e sempre em outro lugar ao
mesmo tempo. | 146
Meu corpo está, de fato, sempre em outro lugar, ligado a
todos os outros lugares do mundo. Pois é em torno dele
que as coisas estão dispostas, é em relação a ele – e em
relação a ele como em relação a um soberano – que há um
acima, um abaixo, uma direita, uma esquerda, um diante,
uma atrás, um próximo, um longínquo. O corpo é o ponto
zero do mundo, este pequeno fulcro utópico, a partir do
qual eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas em
seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das uto-
pias que imagino (FOUCAULT, 2013, p. 14).

Para Foucault, havemos de pensar o corpo como a não-utopia, presença


da qual não podemos e não devemos fugir, mas refletir sobre o corpo. Subli-
nha também o filósofo que, de algum modo, perceber o corpo, paradoxalmen-
te, é utópico, lugar que habitamos e a partir do qual podemos habitar outros
espaços. Em Acenos e afagos a reflexão parece ser próxima disso. O corpo do
narrador-narradora é esse lugar a partir do qual tudo acontece, mas também
o corpo é o espaço do qual sempre podemos escapar, escapar do corpo-ho-
mem para o corpo-mulher, do corpo-humano para o corpo-animal-vegetal,
do corpo-vivo para o corpo-morto, do corpo-identidade para o corpo-queer.
Podemos escapar sempre e voltar sempre porque em todo corpo há o espaço
para a não utopia e para a utopia. O romance de Noll também sugere que a
experiência queer, isso que acreditamos ser a própria literatura do escritor,
sua ficção, é um espaço da não-utopia e da utopia ao mesmo tempo.
Todo texto potente é o lugar da não utopia. Ao entrarmos num texto
com potência de vida, estamos presos àquele corpo textual do qual não po-
demos sair se quisermos olhar o mundo a partir dele. Em Acenos e afagos não
podemos sair do primeiro parágrafo, estamos atrelados a essa presença que
parece interminável. Por outro lado, é por meio desse parágrafo, que parece
nunca terminar, e que sempre se transforma, que os eventos vão se dissemi-
nando e podemos ir para muitos outros lugares. Esse parágrafo exige do leitor
que este pare de ler e volte ao mundo. Um parágrafo que só pode ser lido num
movimento de imersão e saída constante dele. É esse corpo não utópico e
utópico ao mesmo tempo que Noll apresenta aos seus leitores. Um parágrafo
que está presente no livro, mas que exige ser buscado também em outros es-
paços, já que determina, para ser lido, uma ida e volta a si mesmo e ao mundo.
Por fim, cabe pensar mais uma vez sobre a imagem do espelho, recorren-
te em Acenos e afagos e discorrer ainda sobre como, nesse romance, a imagem
do espelho se associa a do cadáver. Foucault diz que é graças ao espelho e
ao cadáver “que nosso corpo não é pura e simples utopia” (FOUCAULT, 2013,
p. 15). Nesses “espaços” do inacessível nosso corpo se torna não-utopia, mas
está ali, presente e, ao mesmo tempo, inacessível. O que parece interessante
observar é que em Noll esses espaços inacessíveis se tornam ao contrário, o
não-utópico por excelência, tanto aquilo que se projeta no espelho como o
próprio corpo-morto podem ser experimentados pelo narrador de Noll. Quan-
| 147
do criança, ele se vê no espelho como o sexo que ele devém. Do mesmo modo,
o cadáver dele não é o espaço que ele não pode habitar, mas justamente o
espaço a partir do qual ele ressurge para se enunciar de outro modo.
Como menino-menina, como humano-animal-vegetal, como vivo-mor-
to, como esse isto indecidível, narrador-narradora que expõe suas experiên-
cias queer, o que parece interessar ao personagem de Noll é efetuar uma fu-
são com o mundo todo, o que significa possuírem suas aventuras libidinais
um significado mais profundo do que apenas o que muitos poderiam pensar
ser um encontro vazio com outros corpos. Trata-se antes de uma exuberân-
cia de vida que ocorre pelas subversões dos limites de gênero e sexualidade.
Em Noll, o corpo é plenamente erótico. E talvez seja necessário lembrar que,
para Georges Bataille (2013, p. 35), o erotismo é “a aprovação da vida até na
morte”. O que perpassa a narrativa de Acenos e afagos é precisamente essa
aprovação do corpo, essa afirmação incondicional da vida e asseveração do
amor pelo mundo, pelo terreno, pelo mais frágil e efêmero: os corpos.
Nessa afirmação dos corpos o romance de Noll também afirma um corpo
utópico que é, na verdade, nada mais e nada menos que uma antiutopia. Como
afirma David Lapoujade (2016, e-book) em “Por uma utopia não utópica?” tal-
vez o que mais necessitamos no mundo contemporâneo sejam os “possíveis que
nos façam agir”. Cabe a cada um perceber quais são os encontros que possam
fazer seus corpos encontrarem modos mais potentes de estar, pensar e sentir.
Se é verdade que vivemos cada vez mais imersos num mundo de tristezas, mor-
tificações e crises, não devemos nem ser o otimista que lança seu olhar para
a esperança do futuro e nem o pessimista que volta seu olhar nostálgico para
o passado. Nem isso, nem aquilo. O indecidível aqui se decide pela responsabi-
lidade de nos atermos aos nossos corpos e pensarmos num presente no qual
possamos conhecer utopias locais. Noll conhece a utopia local da escrita. A
literatura é sempre um exercício dessa tomada de posição.
Ao escrever Acenos e afagos, Noll não se lança para o sonho de outro
mundo, mas encontra as possibilidades talhadas por este mundo. Para o escritor,
a possibilidade de alterar o mundo no sentido de rasurar tristezas é escrever,
sabendo que “todo verdadeiro acontecimento é um desabamento” (SAFATLE,
2016, e-book). A utopia de escrever, como toda utopia, “não tem a escolha se-
não o aqui e o agora. Ela deve ser uma espécie de antiutopia” (LAPOUJADE,
2016, e-book). É justamente essa antiutopia que caracteriza a ficção de Noll
que coloca os corpos desamparados no aqui e no agora, fazendo com que eles
experimentem possibilidades de alegrias. De modo similar ao escritor que pre-
cisa estar sempre no aqui e no agora para escrever, o personagem-narrador
de Noll também atua no presente. Escrever/viver é sempre alterar o presente,
posto que a alteração ocorre no momento mesmo em que se vive-escreve, ain-
da que a escritura-vida também, sabemos disso, seja um processo de desloca-
mento do passado e possibilidades de abertura para futuros inauditos.
O personagem de Noll vive e escreve o seu corpo queer. Ele faz de si
uma obra de arte. A partir dos seus encontros, ele vai produzindo um corpo | 148
que ama e adora encontrar outros corpos. Esse personagem de Acenos e afa-
gos sabe que um corpo pode muito, sobretudo se ele sabe amar e se ele ama
fazer amor. Nas palavras de Foucault:

Seria talvez necessário dizer também que fazer amor é


sentir o corpo refluir sobre si, é existir enfim, fora de toda
utopia, com toda densidade, entre as mãos do outro. Sob os
dedos do outro que nos percorrem, todas as partes invisí-
veis de nosso corpo põem-se a existir, contra os lábios do
outro os nossos se tornam sensíveis, diante de seus olhos
semicerrados, nosso rosto adquire uma certeza, existe um
olhar, enfim, para ver nossas pálpebras fechadas. O amor,
também ele, como o espelho e como a morte, sereniza a
utopia de nosso corpo, silencia-a, acalma-a, fecha-a como
se numa caixa, tranca-a e a sela. É por isso que ele é pa-
rente tão próximo do espelho e da ameaça da morte; e se,
apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam, ama-
mos tanto fazer amor, é porque no amor o corpo está aqui.
(FOUCAULT, 2013, p. 16).

Referências

BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismos e subversão da


identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo:


N-1 edições, 2013.

LAPOUJADE, David. Por uma utopia não utópica? In: NOVAES,


Adauto (org.). O novo espírito utópico. São Paulo: Edições SESC-SP,
2016. E-book.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos


e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

NOLL, João Gilberto. Acenos e afagos. Rio de Janeiro: Record, 2008.

RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: 34, 2009.

| 149
SAFATLE, Vladimir. Viver sem esperança é viver sem medo ou con-
tra a utopia. In: NOVAES, Adauto (org.). O novo espírito utópico. São
Paulo: Edições SESC-SP, 2016. E-book.

Luiz Lopes é Doutor em Literatura Comparada pela UFMG e mestre em Teoria


Literária pela mesma instituição. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens do CEFET-MG e membro dos grupos de estudo Atlas e
Mulheres na Edição. Possui publicações sobre as relações entre literatura, me-
mória e pensamento. Autor do livro Clarice Lispector: formas da alegria (edito-
ra Quixote).
| 150
Marcílio
Miguel
Oliveira
Tomboy: a
construção
de um corpo
queer

Para iniciar as reflexões
acerca de uma teoria queer,
é preciso partir do corpo e
assim tentar uma aproxima-
ção de algo que seja minima-
mente consistente para uma
experimentação textual. Naturalmente, o ser humano deve ser considerado em
suas idiossincrasias, seja o homem, seja a mulher, seja qualquer outra forma de
expressão corporal que possa ser imaginada e realizada, mas antes, deve ser
considerado o próprio corpo enquanto vontade de potência. Aprendemos isso
com Zaratustra e, por essa razão, seguimos insistindo em valorizar os corpos,
a “grande razão”, em lugar de uma razão superior, ou de uma exterioridade
além-mundo. Parto, portanto, para uma reflexão que deve ter como base de
referência o que disse o profeta de Nietzsche. E assim Zaratustra falava:

O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um


único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um
pastor. Instrumento do teu corpo é, também, a tua peque-
na razão, meu irmão, à qual chamas ‘espírito’, pequeno ins-
trumento e brinquedo da tua grande razão. […] — é o teu
corpo a sua grande razão, esta não diz eu, mas faz o eu. […]
Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria
(NIETZSCHE, 2005, p. 60 ).

O corpo, então, é essa “grande razão” que move o eu, que o produz, se-
gundo a própria multiplicidade do ser, com esse sentido único, o de querer re-
alizar-se, mais e mais, em potência; este que é atravessado pelo desejo, pelo
devir, pelos incessantes movimentos das forças em conflito que agem sobre os
seres. E aqui, a partir de uma consciência que valoriza as expressões dos corpos,
buscamos estabelecer um contato mais estreito entre a teoria queer, de Judith
Butler, e a produção cinematográfica de Céline Sciamma, o filme Tomboy, de
2011. A proposta da cineasta é aproximar a temática queer do universo infantil:
ao explorar a inocência das crianças, Sciamma consegue transmitir sinceridade
e, com isso, gerar empatia no expectador. Além disso, consegue expressar a
subjetividade de sua protagonista sem cair em generalizações; e aproximamo-
-nos do enredo do filme tendo em vista algumas das principais reflexões reali-
zadas por Butler, tais como as que tratam das questões de sexo e gênero, das
performances e das performatividades, todas elas tendo o corpo como referen-
cial para a compreensão da teoria queer.
Este trabalho pretende atravessar, sobretudo, a questão do gênero, pois
é a partir dele que os indivíduos vão se produzir socialmente. Segundo Butler,
“[...] ‘as pessoas’ só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformi-
dade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade de gênero” (BUTLER, 2003,
p. 37). Para que possamos nos aproximar um pouco mais do pensamento da au-
tora em relação ao problema de gênero, são necessárias algumas considerações.
A filósofa afirma que

O gênero é a contínua estilização de um corpo, um con-


junto de atos repetidos no interior de um quadro regulató-
rio altamente rígido e que se cristaliza ao longo do tempo
para produzir a aparência de uma substância, a aparência
| 152
de uma maneira natural de ser. Para ser bem sucedida, uma
genealogia política das ontologias de gênero deverá des-
construir a aparência substantiva do gênero em seus atos
constitutivos e localizar e explicar esses atos no interior
dos quadros compulsórios estabelecidos pelas várias for-
ças que policiam sua aparência social (BUTLER, 2003, p.33).

O gênero, assim, pode ser compreendido como uma fabricação fomenta-


da pelo contexto civilizatório que é altamente regulado. Para compreendê-lo, é
preciso compreender também os atos que o constituem, dentro de um contexto
que força a adaptação dos “sujeitos” a determinadas formas sociais. A partir des-
se ponto, já podemos nos aproximar da obra de Céline Sciamma, tendo em vista
essas primeiras considerações de Butler.
O filme Tomboy conta a estória de uma criança, por volta de seus dez anos,
que está atravessando um processo de autodescoberta. Laure, ou Mickäel, como
se apresenta às outras crianças, chega com sua família, pais (não nomeados) e
irmã caçula, Jeanne, à nova casa. Aos poucos começa a interagir com as demais
crianças da região, mantendo maior afinidade com Lisa, com quem começa a ex-
perimentar sua sexualidade. Vale ressaltar que existe, em um primeiro momento,
uma indefinição de gênero da personagem principal, sendo esta informação su-
gerida ao espectador um pouco adiante no enredo. Tal indefinição se configura
pelo modo como a personagem se apresenta: cabelos curtos, camiseta, bermudas
e tênis. Em momento específico, como mencionado, a protagonista toma para
si um novo nome, Mickäel. A partir disso vai experimentando e tentando cons-
truir outras possibilidades de ser; a criança observa e reproduz um papel social
diferente do habitual, baseada no modo de agir dos outros meninos, para inte-
grar-se ao grupo de crianças de maneira imperceptível. Ao longo do enredo, essa
integração vai se mostrando bem sucedida e Mickäel se torna parte integrante
daquele grupo, estando presente nas diversas atividades recreativas propostas.
Mas os eventos começam a mudar de direção quando a mãe da criança descobre
o que estava acontecendo e decide “retificar” o comportamento de Laure. Logo
as outras crianças também descobrem o que havia acontecido e terminam por
interpelar Mickäel.
É interessante perceber como as diferenças mais singulares dos corpos,
sobretudo no que diz respeito aos modos de existência preferidos por eles, co-
meçam a florescer em tão pouco tempo de idade. Laure, que é também Mickäel,
sente um desejo de experimentar outras maneiras de ser e decide abrir-se a essas
novas possibilidades de vida. Por consequência, cumpre um esforço de subverter
a rigidez de uma identidade ao buscar essas novas experiências, segundo as mul-
tiplicidades de sentidos que é o seu próprio corpo. Sem saber, despreza, em vir-
tude e em favor, da própria afirmação do ser, a normatividade corporal estabele-
cida, não somente a “heterossexualidade compulsória”, mas também a definição
de sexo em si, ambas ainda se mantendo profundamente enraizadas na sociedade
contemporânea, lugar situacional do enredo. Céline Sciamma consegue conduzir
toda essa trama de uma forma leve, construindo um território mais ou menos | 153
seguro a partir do qual a personagem vai conquistando outros novos territórios,
expandindo-se e tornando-se cada vez mais expressiva na estória, enquanto
potência de vida: no ambiente doméstico, nas interações com Jeanne e seus
país, até o encontro com Lisa e, posteriormente, com as demais crianças. Tal
trajetória vai abrindo-se em novas possibilidades, oferecendo-lhe oportunida-
des de estabelecer as diversas conexões sócias ofertadas pelo universo infantil.
Parece-nos que, ao longo de todo o desenvolvimento do enredo, o obje-
tivo não é determinar ou posicionar a personagem (o corpo) em um lugar pre-
ferencial, mesmo que este se manifeste em contraste com uma normatividade
social, ou com a própria biologia, favorecendo uma crítica comportamental, em
certa medida. Consideramos, com efeito, que essa indefinição seja parte fun-
damental da proposta de Sciamma. Isso quer dizer que a cineasta parece não
se importar com as explicações em relação ao sexo/gênero da criança, em ma-
terializar um corpo acabado, ou um que poderia ser um dia. Ao contrário, ela
deixa que as coisas sigam um fluxo despretensioso, acontecendo como elas re-
almente são, sem que o espectador sinta a necessidade de se posicionar, bus-
cando encontrar um enquadramento, uma normatização, possível para Laure/
Mickäel. Ou seja, ela promove o desdém à norma ou, ao menos, uma tentativa
de suspensão dela. Isso possibilita uma primeira aproximação aos estudos de Ju-
dith Butler, que compreende que a categorização do sexo, assim como o próprio
gênero, não é uma condição natural do ser, mas uma construção sociodiscursi-
va. Nas palavras da filósofa,

A categoria “sexo” é, desde o início, normativa; é o que


Foucault chamou de “ideal regulatório”. Nesse sentido,
então, “sexo” não só funciona como norma, mas também
é parte de uma prática regulatória que produz os corpos
que governa, ou seja, cuja força regulatória é evidenciada
como um tipo de poder produtivo, um poder de produzir
– demarcar, circular, diferenciar – os corpos que controla.
Assim, “sexo” é um ideal regulatório cuja materialização se
impõe e se realiza (ou fracassa em se realizar) por meio de
certas práticas altamente reguladas. Em outras palavras,
“sexo” é um constructo ideal forçosamente materializado
ao longo do tempo (BUTLER, 2000, p. 107).

A partir das considerações, pode-se observar que os corpos estão sub-


metidos à normatização de sexo, uma imposição regulamentar que exerce
grande influência produtiva sobre eles, que demarcam, circulam e diferenciam
suas possibilidades de existência; e uma vez que exista uma circunscrição, uma
estabilidade previsível, também haverá o controle desses corpos. Nesse caso,
os corpos serão o resultado dos processos de normatização que incidem sobre
eles. Isso pode conferir validade para pensar, tanto a categoria de sexo, quanto
a de gênero. O pensamento de Butler ajuda a construir uma proposta que torna
possível contrastar as duas posições. Segundo a autora:

| 154
Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o pró-
prio construto chamado ‘sexo’ seja tão culturalmente
construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre
tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo
e gênero revela-se absolutamente nenhuma. Se o sexo é,
ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz
sentido definir o gênero como a interpretação cultural do
sexo (BUTLER, 2003, p. 25).

Sendo assim, e levando em conta apenas essa breve aproximação, não


seria possível conceber uma distinção (ou o dualismo) entre sexo e gênero, man-
tendo-se o entendimento de que este seja construído socialmente, sendo ele
variável, e aquele seja inato, determinado biologicamente nos indivíduos, mes-
mo antes de seu nascimento. Em outras palavras, tanto o gênero quanto o sexo
são produtos resultantes dos processos de manutenção que regulam os con-
textos expressivos nos espaços socioculturais. Com esse pensamento, Butler
vai sinalizar para uma possibilidade de desconstrução dessas identidades rigida-
mente estabelecidas.
Retornando ao exemplo de Laure/Mickäel, não quer dizer que não exista,
propriamente, uma regulação que oriente, ou que busque fazê-lo, a determina-
ção do sexo/gênero da criança. Não é isso. O que se quer trazer à tona é esse es-
tado de suspensão apresentado ao espectador a partir da composição da obra:
em certa medida, existe a permissividade que deixa livre a expressão de Laure,
que pode escolher a maneira como se veste, por exemplo, a cor do quarto (azul),
sem ser interpelada por isso. Laure goza também de autonomia para sair e en-
contrar-se com as demais crianças, o que se expressa na cena em que a mãe
lhe presenteia com as chaves de casa. Sciamma não nos pressiona à escolha e,
com efeito, a história satisfaz-se sem que uma escolha precise ocorrer. Mesmo
quando Laure está em ambiente doméstico, interagindo com sua irmã caçula,
na maior parte das vezes, não se percebe a manifestação da violência regulató-
ria dos corpos. Ali existe, tão somente, uma singularidade, uma sinalização para
a livre manifestação da própria diferença. Em outras palavras, a personagem é
percebida e aceita tal como ela se apresenta, como uma florescência de vida.
Contudo, é importante ressaltar que uma afirmação dos corpos não pode estar
dissociada, também, de uma resistência à norma, esta que se empenha em es-
tratificar os corpos. Tampouco pode haver qualquer resistência sem que haja,
também, uma força que contribua para o apequenamento desses mesmos cor-
pos: uma vez que haja a necessidade de afirmação, em favor de si mesmos, os
corpos, certamente, estarão resistindo às forças de dominação. Nesse sentido,
a normatização de sexo/gênero cumprirá o papel de criar “sujeitos determina-
dos”, ditando, e sempre reafirmando, o que deve ser o sujeito mulher e o sujeito
homem, tanto em forma quanto em função (biológica e social), transformando
todo o restante, tudo aquilo que não está dentro das duas definições, em seres
abjetos. Tais processos de determinação é que vão extrair da própria multipli-
cidade da vida um ideal de humano, segundo a determinação compulsória da
dualidade de sexo/gênero. No contexto, Butler explica que: | 155
[...] essa matriz excludente, pela qual os sujeitos são for-
mados, requer a produção simultânea de um domínio de
seres abjetos, aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas
que formam o exterior constitutivo do domínio do sujeito.
O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “não-
-vivíveis” e “inabitáveis” da vida social que, não obstante,
são densamente povoadas por aqueles que não alcançam o
estatuto de sujeito, mas cujo viver sob o signo do “inabitá-
vel” é necessário para circunscrever o domínio do sujeito.
Essa zona de inabitabilidade vai constituir o limite que cir-
cunscreve o domínio do sujeito; ela constituirá esse lugar
de pavorosa identificação contra a qual – e em virtude da
qual – o domínio do sujeito circunscreverá sua própria rei-
vindicação por autonomia e vida (BUTLER, 2000, p. 155).

Assim, podemos compreender que o domínio dos sujeitos não pode pro-
duzir-se sem que haja, também, o domínio dos seres abjetos, sendo a própria
existência destes o ponto de partida para o surgimento daqueles, tendo em
vista uma seleção de idealidades fundantes da própria matriz social de indi-
víduos que se deseja produzir. Nesse sentido compreendemos que os seres
abjetos são, por excelência, a própria manifestação de uma diferença, na qual
a vida exerce sua potência mais afirmativa, e a modelagem do sujeito torna-se
uma prática que se propõe a frear os movimentos de expansão dos corpos que
se afirmam a partir da própria diferença. Pode-se tomar partido desses seres
abjetos segundo as considerações de Guacira Lopes Louro (2004), que ajuda a
compreender a efetividade desses corpos a partir da elevação do termo queer.
Segundo a autora,

Queer é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o su-


jeito da sexualidade desviante — homossexuais, bissexuais,
transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não deseja
ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é um jei-
to de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer
como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as
normas regulatórias da sociedade, que assume o descon-
forto da ambiguidade, do “entre lugares”, do indecidível.
Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, pro-
voca e fascina (LOURO, 2004, p. 7 - 8).

Há, portanto, uma apropriação do termo queer, juntamente com sua res-
significação, não mais como uma prática linguística a favor da degradação[1]
da vida, mas como elemento capaz de abranger as diferenças manifestadas pe-
los corpos abjetos no contexto expressivo social. Justamente a partir dessa
apropriação, pode-se avançar em expressividade, pois “queer adquire todo o
seu poder precisamente através da invocação reiterada que o relaciona com
acusações, patologias e insultos” (BUTLER, 2002, p. 58). Nesse sentido, a pala-
vra se desqualifica como função depreciativa dos corpos para se converter em
ação afirmativa em favor da vida, da criação do ser, segundo sua própria forma
de existir, em detrimento das circunscrições normativas que buscam produzir
corpos limitados pelos modos de existência instituídos pelos mecanismos de | 156
controle. Pode-se entender ainda que “a política queer [...] adota a etiqueta da
perversidade e faz uso da mesma para destacar a ‘norma’ daquilo que é ‘nor-
mal’, seja heterossexual ou homossexual. Queer não é tanto se rebelar contra
a condição marginal, mas desfrutá-la” (GAMSON, 2002, p. 151). É possível com-
pletar esse raciocínio com as considerações de Jagose:

De um modo geral, queer descreve aqueles gestos ou mo-


delos analíticos que dramatizam incoerências nas relações
alegadamente estáveis entre sexo biológico, gênero e
orientação sexual. Resistindo a esse modelo de estabilida-
de — que reivindica a heterossexualidade como sendo sua
origem, quando é, na verdade, o seu efeito — queer estabe-
lece a divergência entre sexo, gênero e desejo. [...] Seja uma
performance de travesti, ou uma desconstrução teórica, o
queer localiza e explora as incoerências nesses três termos
que estabilizam a heterossexualidade. Demonstrando a im-
possibilidade de qualquer sexualidade “natural”, ela ques-
tiona até mesmo termos, aparentemente, não problemáti-
cos como “homem” e “mulher” (JAGOSE, 1996, p. 3)[2].

O queer, então, presta-se a desestabilizar as coerências normativas de


sexo, gênero e orientação sexual. Explora essas incoerências e, ao mesmo tempo,
questiona a naturalidade da sexualidade, colocando em dúvida, até mesmo, as
determinações já normalizadas. Nesse sentido, Laure/Mickäel, até onde se pode
compreender, é um corpo queer em processo de desenvolvimento, de descober-
ta. A criança busca estabelecer contato com o meio social para construir e des-
frutar sua própria existência, experimentando e posicionando-se da maneira que
se sente mais confortável. Para Butler (2003), esse processo pode ser compreen-
dido como sendo manifestações dos “atos performativos de gênero”, uma vez
que eles se dão pela expressão social dos corpos que se produzem, reiterada-
mente, no tempo. Tais corpos se dispõem de forma desatrelados das identidades
rígidas, ditas naturais, que buscam determinar o ser a partir de uma inconcebível
anterioridade social. Butler deixa mais claro suas considerações, em relação às
definições e implicações da performatividades. Segundo a autora:

[...] o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra


de um sujeito tido como preexistente à obra. No desafio
de repensar as categorias do gênero fora da metafísica da
substância, é mister considerar a relevância da afirmação
de Nietzsche, em A genealogia da moral, de que “não há
‘ser’ por trás do fazer, do realizar e do tornar-se: o ‘faze-
dor’ é uma mera ficção acrescentada à obra — a obra é
tudo”. Numa aplicação que o próprio Nietzsche não teria
antecipado ou aprovado, nós confirmaríamos como coro-
lário: não há identidade de gênero por trás das expressões
de gênero; essa identidade é performativamente constituí-
da, pelas próprias “expressões” tidas como seus resultados
(BUTLER, 2003, p. 48).

| 157
Ou seja, o gênero só pode ser constituído a partir da performatividade,
produzindo-se por meio das expressões dos corpos; estes, por suas vezes, não
podem ser anteriores às suas expressões individuais, mas são um produto de
suas próprias expressões (re)afirmadas ao longo do próprio tecido social. Em
outras palavras:

[...] atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo


ou substância interna, mas o produzem na superfície do
corpo, por meio do jogo de ausências significantes, que
sugerem, mas nunca revelam, o princípio organizador da
identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações, en-
tendidos em termos gerais, são performativos, no sentido
de que a essência ou identidade que por outro lado preten-
dem expressar, são fabricações manufaturadas e sustenta-
das por signos corpóreos e outros meios discursivos. O fato
de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere
que ele não tem status ontológico separado dos vários
atos que constituem sua realidade (BUTLER, 2003, p. 194).

O que se percebe do corpo, segundo Butler, é “puramente” a expressão


(corporal e discursiva), e tudo o que ele expressa, torna-se o seu ser, sua forma
de vida preferencial, por assim dizer. Dessa maneira, é possível compreender
que nem o gênero, ou o próprio sexo, são o corpo em si. Trata-se, na verdade, de
um fabricar-se, performativamente, no mundo. Nesse sentido, Laure/Mickäel
busca se amplificar enquanto ser social dentro desse novo território infantil,
criando suas conexões e perfazendo-se em performatividades. Os desejos de
mudança da criança, ou de rompimento com o jugo de determinações sexuais
compulsórias, vão se intensificando e produzindo novas maneiras de adaptação
àquele novo ambiente de sociabilidade: Mickäel, a partir dos primeiros encon-
tros com as demais crianças, dedica-se a observar o comportamento dos meni-
nos do grupo, e logo passa a apropriar-se dele também. Nesse contexto, pode
ser observado algo que se aproxima de uma performatividade: ao observar os
meninos jogando futebol, começa a perceber seus modos de agir, expressões e
trejeitos: as cuspidas no chão, os modos de falar, os contatos físicos etc.
Em busca de uma legitimidade, Laure/Mickäel tenta, efetivamente, re-
produzir o gênero masculino (infantil), incorporando as expressões dos meninos
ao seu próprio repertório expressivo. Cabe, entretanto, saber se é, verdadeira-
mente, uma performatividade, pois podem ser percebidos alguns problemas a
se enfrentar. Primeiramente, é preciso pensar sobre o ato da imitação em si, e
nesse sentido, Butler (2020, não paginado) afirma que: “a performatividade não
é nem um jogo livre nem uma forma teatral de apresentação de si, tampouco
pode ser simplesmente equiparada a uma performance”. Aqui já já se percebe
um problema, pois já observamos a ação de um sujeito por traz das expressões
da criança: ao retornar ao enredo, podemos recuperar a cena em que Laure,
sozinha no banheiro, observa seu corpo no espelho, verificando suas formas
corporais para certificar-se de que poderia jogar futebol, sem camiseta, com
as outras crianças, em seguida reproduz (pratica) a ação de um dos meninos, as | 158
cuspidas observadas no último encontro, na pia do banheiro; na presença das
outras crianças, vai reproduzir esse comportamento, cuspindo também no chão
durante a partida de futebol. Em outro momento, após ser convidada por Lisa
para brincar com os amigos no lago, Laure/Mickäel, mais uma vez, busca adap-
tar-se à situação: transforma seu maiô em sunga e faz para si, de massinha de
modelar, um simulacro de órgão sexual masculino e se compraz, pelo êxito do
projeto, ao se olhar no espelho.
Nessas situações podem ser percebidos alguns posicionamentos em que
as ações deliberadas da personagem ganham consistência e realmente contri-
buem para uma integração social satisfatória com as demais crianças. Ao re-
fletirmos sobre todas essas circunstâncias, recuperamos, mais uma vez, o que
Butler (2020) afirma em relação à performatividade.

[...] a performatividade não pode ser entendida fora de um


processo de iterabilidade, uma repetição regulada e restri-
tiva de normas. E essa repetição não é realizada por um
sujeito; essa repetição é o que permite a um sujeito existir
como tal e o que constitui sua condição temporal (BUTLER,
2020, não paginado).

Em outras palavras, é preciso uma reiteração constante de expressões


de gênero para se cumprir uma performatividade, sem que tais expressões
sejam guiadas por um sujeito de maneira deliberada, reproduzindo-as segun-
do suas próprias conveniências expressivas. Resumidamente, pode-se compre-
ender que a performatividade é o poder reiterativo do discurso que é res-
ponsável pela materialização do sexo. E se, efetivamente, considerarmos a
teoria de Butler, podemos assumir um pequeno desvio de rota, em relação à
performatividade assumida por Laure/Mickäel, pois alguns “pré-requisitos”,
digamos assim, acabam não sendo atendidos. Mas, por outro lado, sabemos
da existência da inconformidade de sexo/gênero em relação aos desejos ma-
nifestados pela criança. Não se trata, portanto, de abandonar o conceito de
performatividade, mas de buscar uma melhor compreensão desse conceito.
É possível, por exemplo, fazer uma experimentação de raciocínio e dizer que
estamos diante de uma “imitação”, uma performance, em relação ao gênero,
guardadas as suas distinções, naturalmente.
Butler (2003 p. 195-198) discorre sobre a questão da performance tendo
como figura expressiva o drag[3], que estiliza, de maneira exagerada, as carac-
terísticas e estereótipos de sexo e gênero em seu personagem, sendo, o sexo e o
gênero, sempre opostos aos do próprio artista performativo. Para a filósofa, as
imitações de sexo/gênero, quando performados artisticamente, não excedem
os limites de uma paródia, pois não existe nelas qualquer intenção de sobrepor
o “gênero primeiro” em favor de outro. Ao contrário, o que ocorre é a substi-
tuição de uma “coerência heterossexual” pela “desnaturalização” de sexo e
de gênero, por meio de uma performance que denuncia sua própria distinção
(BUTLER, 2003, p. 196-197). Diante disso, parece fácil perceber que a perfor- | 159
mance não se aplica, necessariamente, ao “problema” de Laure/Mickäel; o que
a criança expressa não tem qualquer relação direta com a “paródia de gênero”,
mesmo que exista, em certa medida, uma “teatralidade clandestina” em suas
expressões. Entretanto, existe a intenção deliberada de realizar uma substitui-
ção de sexo/gênero, com o objetivo de ocultar (disfarçar) o corpo, sua anatomia,
das forças de intervenção que operam em favor de uma imposição normativa.
Tal imposição é assimilada, conservada, reiterada e disseminada ao longo
do tecido social. Os corpos, influenciados por essa imposição normativa, são
inscritos no “domínio do sujeito”, normatizados compulsoriamente, e, além dis-
so, tornam-se agentes de manutenção desse sistema de dominação. Isso pode
ser percebido nas próprias atitudes dos meninos do grupo, quando descobrem
que Mickäel, possivelmente, seria uma menina: eles o perseguem em busca de
esclarecimentos em relação à conformidade entre seu sexo e sua aparência ma-
nifestada e, nesse momento, Mickäel se torna um “ser abjeto”, dentro do con-
texto social; é o olhar das outras crianças que vai cumprir o papel de (des)es-
tratifica-la, deslocando, violentamente, esse “corpo estranho”, do “domínio do
sujeito”, para a marginalidade da indefinição, ou melhor, para a “inabitabilidade
da vida social”. Mas ao se metamorfosear em Mickäel, a protagonista parece
ter, em certa medida, consciência dos perigos de sua aventura. Ao menos sabia
que estava adentrando um território que não era autorizado a ela e, por essa
razão, precisava permanecer incólume em meio às outras crianças.
Compreende-se, portanto, que a protagonista precisará atravessar os
domínios da performatividade, readaptando-se a ela, e flertar com um tipo pe-
culiar de performance, justamente para manter-se oculta dos mecanismos de
controle social. Mickäel é essa nova expressão do corpo, ainda em desenvol-
vimento, buscando ser aceito pelas outras crianças, reinventando seu próprio
modo de ser, ao mesmo tempo em que tenta encobrir os rastros que denunciam
sua própria diferença. Mickäel é, também, o resultado de uma expressão infan-
til, um “gênero inventado”, mas antes é a manifestação de um desejo que sub-
verte as estruturas de um discurso instaurador e mantenedor de uma rigidez de
sexo/gênero e da dualidade (masculino e feminino) que, por sua vez, também é
uma invenção. Nesse mesmo sentido Butler explica que

Se a verdade interna do gênero é uma fabricação e se um


gênero verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita so-
bre a superfície dos corpos, então parece que os gêneros
não podem ser nem verdadeiros e nem falsos, mas são ape-
nas produzidos como efeitos de verdade de um discurso de
identidade primária e estável (BUTLER, 2003, p.195).

Ou seja, o gênero é uma invenção produzida pelos discursos hegemôni-


cos, como já mencionamos, sob os quais “uma verdade” se afirma e se impõe
sobre os corpos, ao longo do tecido social. Se ele é, de fato, inventado, não
pode ser uma invenção livre, marcada pela subjetivação; precisa estar alinha- | 160
do aos mecanismos de controle social, pois a desordem dificulta a manutenção
dos corpos. Em outras palavras, somente o discurso hegemônico pode decidir
os valores, os sexos/gêneros etc. Qualquer ação, expressão que se volte contra
tais ordenações compulsórias, torna-se uma afirmação, uma transvaloração dos
sentidos, dos valores, do corpo.
O caso de Laure ajuda numa reflexão sobre as implicações dos discur-
sos sobre os corpos; desde sua concepção eles são submetidos a uma defini-
ção compulsória de sexo/gênero, vestimentas, orientação sexual etc. O corpo
é “generificado”, mobilizado pelas expectativas sociais, antes mesmo de surgir
um desejo de querer ser. Laure/Mickäel, pela inconformidade, posiciona-se afir-
mativamente em relação ao mundo, subverte os ditames de uma normatividade
a partir das experiências de descoberta que vivencia. Além disso, a personagem
se mostra como uma indefinição intencional: corpo sem finalização, sempre em
processo de ser, mas não o sendo, estando aberto às possibilidades de vida. Mas
a cada avanço, a criança se expõe às forças de regulação dos corpos, precisando
se (re)configurar para driblá-las. Correndo o risco de tornar-se um ser abjeto,
circula pelos limites da suspeita, buscando sua legitimidade social. No entanto,
a partir desses desafios, a personagem se expande. Ela cria seus próprios meca-
nismos de ação utilizando-se de performances singulares e apropriando-se de
uma performatividade fabricada por ela mesma. Mickäel é a imposição do corpo
sobre um corpo outro, que é pré-fabricado (Laure), mas ambos fazem parte de
uma multiplicidade que é o próprio corpo, aquela “grande razão” explicada por
Zaratustra. Se os corpos se manifestam em multiplicidades, então é preciso que
eles, ocasionalmente, percam ou mudem seus sentidos para que possam adqui-
rir outros novos, e que estes possam ser revolucionários.

Notas

1.
Queer: strange, unusual, or not expected — Segundo o Cambridge Dictionary (dictionary.cam-
bridge.org).

2. Os artistas performáticos que personificam a figura do drag, tanto “queen”, quanto “king”,
não precisam, necessariamente, possuir orientação sexual específica. A relevância do persona-
gem está, justamente, na “expressão de gênero” exagerada.

| 161
Referências

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“sexo”. São Paulo: n-1 edições, 2020. E-book.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do


“sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedago-
gias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 151-
172.

BUTLER, Judith. Críticamente subversiva. In: JIMÉNEZ, Rafael M.


Mérida. Sexualidades transgresoras. Una antología de estudios que-
er. Barcelona: Icária editorial, 2002, p. 55-81.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da


identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

GAMSON, Joshua. Deben autodestruirse los movimientos identita-


rios? Un extraño dilema. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida. Sexualida-
des transgresoras. Una antologia de estudios queer. Barcelona: Icá-
ria editorial, 2002, p. 141 a 172.

JAGOSE, Annamarie. Queer Theory: An Introduction. New York:


New York UP, 1996.

LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho: ensaios sobre sexualidade


e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich. Dos desprezadores do corpo. In: Assim falou


Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 13. ed. Rio de Janei-
ro: Civilização Brasileira, 2005.

TOMBOY. Direção: Céline Sciamma. Produção: Bénédicte Couvreur.


França: Pyramide Distribution, 2011. Telecine.

| 162
Marcílio Miguel Oliveira é mestrando em Estudos de Linguagens pelo Progra-
ma de Pós-graduação do CEFET-MG e membro do grupo de estudos Literatéc-
nica Virtual.

| 163
Mariana
Ferreira
Valentin da
Silva
Ressignificação
cinematográfica
do fracasso em
corpos periféricos:
uma análise do fil-
me Temporada de
André Novais
Oliveira
São corpos poliglotas cheios de referência e
mais resistentes, né? Não há outra opção.

(GRACE, 2017)
A periferia e as salas de cinema

Ao longo da história do cinema, foi possível notar as grandes telas como


vitrines da representação artística da sociedade. No entanto, estudos nos úl-
timos anos se voltam cada vez mais para questionamentos sobre como essa
representação acontece, quando ela acontece e para quem ela acontece. O ma-
peamento do cinema brasileiro, nas últimas duas décadas, apresentado por Can-
dido et al. (2021), enfatiza que as produções nacionais têm promovido um perfil
de personagens que é majoritariamente branco, masculino, heterossexual e su-
destino. Os autores explicam que, apesar de ser um perfil brasileiro, é um perfil
que evidencia o país enraizado em sexismo, branquitude e preconceito regional.

A recente eleição de uma agenda de governo que contraria os


debates feministas e antirracistas reforça o caráter de urgên-
cia de mapear e questionar as severas assimetrias que consti-
tuem o Brasil como país – e que são explicitamente difundidas
e reforçadas nas salas de cinema (CANDIDO, 2021, p. 15).

É notável uma crise institucional que afeta o cinema brasileiro neste mo-
mento, especialmente em virtude das intervenções estimuladas pelo governo
de Jair Bolsonaro, Presidente da República em exercício, que sugerem “filtros”
para a seleção de projetos e alterações de políticas da Agência Nacional de
Cinema (ANCINE), como aponta Silva (2020). Em contraste, os últimos anos in-
dicavam mudanças promissoras do perfil representado nas narrativas cinema-
tográficas e do alcance da cultura audiovisual no Brasil.

As políticas de fomento ao cinema e ao audiovisual brasilei-


ros, com aportes estaduais e federais, foram responsáveis pelo
crescimento dos números de produções, de público, e de salas
exibidoras (cf. ANCINE, 2017). Por meio delas, alguns grupos e
sujeitos, muitas vezes marginalizados, inseriram-se no univer-
so estético do cinema (SILVA, 2020, p. 180).


Nesse sentido, é importante dar atenção às iniciativas artísticas que con-
trariam o padrão de produções cinematográficas e apresentam corpos dissiden-
tes em suas narrativas fílmicas. Uma dessas iniciativas brasileiras, que vem cada
vez mais conquistando reconhecimento internacional, é a Filmes de Plástico,
uma produtora mineira de Contagem, hoje sediada em Belo Horizonte, criada em
2009 e formada pelos diretores André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurílio
Martins e pelo produtor Thiago Macêdo Correia. Os fundadores se conheceram
na Escola Livre de Cinema de Belo Horizonte e criaram uma conexão quando
perceberam algo em comum: todos eram moradores da periferia de Contagem.
Em entrevista à Afronta!, série documental de Juliana Vicente para a Netflix,
André Novais Oliveira diz | 165
E tinha essa coisa de pensar... Por que todos os filmes são feitos
em Belo Horizonte? E são feitos numa Belo Horizonte que é
bem conhecida de novela, de lugares mais centrais. Ou de bair-
ros até de classe média alta. Então a gente vai fazer no bairro.
Foi um movimento natural das coisas. Vem na minha cabeça
(...) ter coisas do dia a dia da periferia. Muito que eu vivi, que
as pessoas vivem, e que às vezes parecem banais, mas pra mim
são muito ricas para serem olhadas (ANDRÉ, 2017).

A produtora contagense ficou conhecida por trabalhar com um elenco


composto principalmente por atores não profissionalizados, moradores das co-
munidades onde os filmes eram gravados, e, muitas vezes, esse grupo era for-
mado pelos familiares da equipe da Filmes de Plástico. O olhar dos corpos da
periferia é uma influência marcada nas obras dos cineastas. Além disso, André
Novais Oliveira e Gabriel Martins refletem a experiência do corpo negro em
seus filmes, como explica Oliveira:

Eu já tinha ido em alguns festivais, alguns festivais até inter-


nacionais. Tem essa coisa também de pensar como um homem
negro, de periferia e tal, de Contagem. Estar lá é uma coisa
que na verdade eu fico refletindo até hoje. Tem toda essa
questão racial também, né? De ter a coisa dos personagens
negros tratados com respeito, dentro dos filmes e tal. A coisa
da periferia ser tratada com respeito também (ANDRÉ, 2017).

Em seu episódio no Afronta!, Gabriel Martins afirma uma forte sensa-


ção de descoberta entre a nova geração mineira de cineastas negros, artistas
que finalmente podem filmar coisas que ainda não foram exibidas nas grandes
telas, “Não me interessa fazer um filme sobre um personagem branco ou um
homem branco em crise. Essa personagem pra mim já esteve em 99% dos fil-
mes. Eu quero fazer um personagem que talvez represente outras realidades”
(GABRIEL, 2017). Esse posicionamento dos diretores da produtora é espelhado
nas escolhas das narrativas que serão contadas, da equipe envolvida por trás
das câmeras e também nos rostos que darão vida às personagens.

A maioria da população passa por dificuldades financeiras, a


maioria da população é negra. A gente tem uma população
que, eu acredito, a maioria seja mulheres. Eu penso que hoje
representar personagens negros, narrativas negras, é uma
certa responsabilidade de uma certa renovação do olhar que
a gente tem. A história negou isso, então acho que agora
é importante e ponto. A gente não pode ser uma exceção
mais (GABRIEL, 2017).

As falas dos cineastas da Filmes de Plástico colocam em foco o poder da


resistência dos corpos dissidentes que ocupam espaços historicamente negados
às pessoas marginalizadas, colocadas não apenas em uma periferia urbana, mas
também cultural. Como a arte foi por muito tempo controlada pela elite, a pro- | 166
dução cinematográfica na periferia é um ato de resistência, de teimosia, de luta
por espaços culturais mais igualitários, explica André Novais Oliveira:

Na Filmes de Plástico, volta e meia, a gente conversa. Eu fa-


lei: ‘Cara, a gente é de periferia, a gente é pobre e a gente tá
no meio de uma coisa tão de elite. De certa forma, a gente
está aqui meio de teimosia. Mas ao mesmo tempo a gente
brinca com isso. Eu falei ‘Não, véi, a gente tem que estar
aqui.’. A gente tem que ter o negro retratado com o respeito
que ele merece (ANDRÉ, 2017).

O fracasso em Temporada

Lançado em 2018, Temporada é o segundo longa-metragem da Filmes


de Plástico e o primeiro dirigido e escrito por André Novais Oliveira, contando
com a parceria de Gabriel Martins, Maurilio Martins e Thiago Macêdo Correia
na produção. Nesse filme, a protagonista Juliana, vivida por Grace Passô, se
muda de Itaúna, interior de Minas Gerais, para a periferia de Contagem (figura
1), cidade da região metropolitana de Belo Horizonte. Após ser convocada por
um concurso público para atuar no combate a endemias no bairro Amazonas,
Juliana aluga um barracão na periferia e começa seu novo trabalho.

Figura 1: Juliana chega na rua de sua nova casa

Fonte: TEMPORADA, 2018.


No decorrer do filme, a protagonista conhece novas pessoas e vive situ-
ações inéditas que começam uma mudança em sua vida. Ao mesmo tempo em
que deve lidar com as transformações, ela enfrenta dificuldades no relaciona- | 167
mento com o marido que ainda está em Itaúna e deve se mudar para Contagem
em breve. Diversos pontos da narrativa se relacionam com a ideia de fracasso e,
a este trabalho, interessa a apresentação desses elementos.
Jack Halberstam (2011) propõe uma perspectiva artística queer que as-
socia o fracasso a práticas anticapitalistas, não conformidade, estilos de vida
não reprodutivos e crítica ao sistema. Essa abordagem é cara aos estudos que
contemplam corpos dissidentes, pois compreende que histórias liberais foram
solidificadas ao longo dos séculos por narrativas políticas de triunfo, desenvol-
vimento e sucesso, enquanto as histórias radicais contam com um passado me-
nos organizado que transmite legados de fracasso e solidão como consequência
de homofobia, racismo e xenofobia.
Ao explorar as correntes teóricas e os movimentos sociais que procu-
raram questionar o poder das elites, Halberstam ressalta a tendência desses
grupos de se colocarem numa posição de indivíduos iluminados, heróis que con-
seguem compreender melhor a opressão das massas. Perdendo seu foco nos
próprios processos de dominação, como é notável no feminismo branco, por
exemplo, esses grupos “se imaginam no espaço heroico de indivíduo que enten-
de melhor do que as massas oprimidas sobre as quais teoriza” (HALBERSTAM,
2011, posição 2533, tradução minha).
Com essas considerações em mente, Halberstam reúne contribuições de
teóricas como Babs, Spivak e Mahmood, afirmando que “os feminismos margi-
nais assumem a forma não de tornar-se, ser e fazer, mas de modos sombrios,
de desfazer, inadequar e violar” (HALBERSTAM, 2011, posição 117, tradução
minha). Dessa maneira, o autor destaca estudos feministas que recusam solu-
ções generalistas e posicionamentos heroicos, um feminismo que não se propõe
salvar os outros, mas que encontra propósito em seu próprio fracasso.

Assim como Babs, e também como Spivak e Mahmood,


proponho que feministas recusem as opções conforme são
oferecidas — liberdade em termos liberais ou morte — a
fim de pensar em um arquivo marginal de resistência, tal
que não utilize a linguagem de ação ou momentum, mas
como alternativa, que se expresse em termos de retirada,
recuso, passividade, inadequação, deixar de ser. Isso pode-
ria ser denominado feminismo anti social, uma forma de
feminismo que se preocupa com a negatividade e com a ne-
gação (HALBERSTAM, 2011, posição 2561).

Halberstam explica que não é possível fazer comparações simples en-


tre corpos ex-escravizados e minorias sexuais, mas nota que existe alguma
semelhança na maneira como corpos dissidentes produzem narrativas por um
caminho de dor e fracasso. Esses percursos são muito mais frequentes que
os caminhos de glória e libertação heroica, comuns nas narrativas masculinas
brancas heterossexuais. A partir dessa perspectiva, é possível observar que a
narrativa apresentada em Temporada, focada em uma mulher negra na peri-
feria, pode ter uma relação não óbvia, mas profunda com o fracasso. | 168
Primeiramente, na esfera do trabalho, a protagonista Juliana é convoca-
da por um concurso público depois de pensar que não seria mais chamada, pois
havia feito a prova há tanto tempo que acreditava não ser mais o edital válido.
Em conversa com os colegas de trabalho, o cargo de agente de combate a ende-
mias é diversas vezes colocado como um trabalho de fracasso, pois não há uma
boa remuneração e as pessoas ficam facilmente acomodadas com o serviço.
Russão, colega de Juliana, é assertivo com a amiga ao dizer que ela não deveria
ficar ali por muito tempo, não deveria seguir o exemplo do colega Hélio que
estava naquele emprego há quinze anos.
Com a mudança, Juliana também passou a morar em uma casa menor que
sua moradia anterior em Itaúna. A nova residência é um barracão que Juliana
aluga com a ajuda de sua prima e, mesmo assim, a protagonista enfrenta dificul-
dades para pagar o aluguel à locatária. Refletindo a ideia de algo temporário,
os cômodos da casa ainda são improvisados, repletos de caixas da mudança. A
cama, por exemplo, é um colchão no chão (figura 2), várias roupas ainda estão
empacotadas e o interior da casa é mal iluminado. Como explica Brooks (2006
apud HALBERSTAM, 2011), a escuridão pode ser usada como uma estratégia in-
terpretativa, “lançada de espaços sombrios, de experiências de dor ou de exclu-
são; escuridão é o terreno do fracassado e do miserável” (HALBERSTAM, 2011,
posição 2024), o que, nessa narrativa, evoca vários fantasmas que precisarão
ser enfrentados pela protagonista.

Figura 2: Juliana procura cobertores em caixas da mudança.

Fonte: TEMPORADA, 2018.

Um dos fantasmas do passado de Juliana é compartilhado com a prima


enquanto as duas bebem juntas à noite (figura 3). Pela primeira vez, Juliana con- | 169
ta a alguém a experiência traumática de sofrer um aborto espontâneo depois
de um acidente de carro. A protagonista confidencia que, quando descobriu
a gravidez, a única que teve, não esperava aquela gestação ou sentia certeza
sobre seus sentimentos com aquela notícia, ao contrário do marido, que estava
eufórico com a perspectiva de ter uma criança. O acidente impactou profunda-
mente Juliana, além de afetar a relação com o marido. Esses acontecimentos
estão diretamente relacionados à sociedade patriarcal e hetero reprodutiva na
qual, se uma mulher não cumpre seu “papel reprodutivo”, ela falhou.

Figura 3: Juliana conta à prima sobre seu acidente.

Fonte: TEMPORADA, 2018.



Como explica Halberstam, por muito tempo, a compreensão do que é ser
mulher estava intrinsecamente ligada a ser mãe, o que impactou gerações de
mulheres com o peso do fracasso imposto pela não maternidade. Esse impacto
parece refletir a aflição de Juliana ao ver que o marido parou de responder suas
mensagens e largou seu trabalho em Itaúna, desaparecendo completamente
sem deixar maiores explicações (figura 4). O sumiço do cônjuge de Juliana é
uma atitude normalizada pelo patriarcado, não causa estranhamento e, muitas
vezes, é até esperado que um homem deixe a família em meio a turbulências de
relações conjugais e extraconjugais, especialmente no contexto periférico. No
fim, à mulher é atribuída a responsabilidade pelo “fracasso” do lar.

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Figura 4: Juliana procura o marido em Itaúna.

Fonte: TEMPORADA, 2018.

A potência do tempo

Apesar da atmosfera de fracasso negativo construída ao longo da nar-


rativa fílmica, em Temporada, há uma virada sobre a perspectiva do fracasso
na vida de Juliana. Considerando que o fracasso do gênero pode significar uma
libertação da pressão de atingir os ideais para a mulher no patriarcado, não ter
sucesso nesse sentido pode proporcionar prazeres inesperados às mulheres.
Halberstam explica que a arte queer do fracasso pode conectar o ser queer com
uma negatividade que, em vez de rejeitar, “reivindica conceitos como vazio, fu-
tilidade, limitação, ineficiência, esterilidade, improdutividade” (HALBERSTAM,
2011, posição 2286, tradução minha).
A cena final de Temporada mostra uma mudança no olhar sombrio sobre a
vida de Juliana. Após passar o dia em uma cachoeira com os amigos, na volta para
casa, o carro deles estraga e é preciso empurrar o veículo para que saiam dali. É
possível inferir que, enquanto os amigos empurram o carro e Juliana assume a di-
reção, é construída uma relação com a vida da protagonista. A partir das mudan-
ças enfrentadas e com um “empurrão” dos amigos, Juliana consegue assumir o
controle da sua vida e administrar os fracassos que a integram. Enquanto Juliana
controla a direção, seu rosto reflete a luz do sol, há expressões mistas no rosto da
protagonista, mas, naquele momento, ela está iluminada (figura 5).

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Figura 5: Juliana dirige carro com problemas mecânicos.

Fonte: TEMPORADA, 2018.

Por fim, é interessante resgatar a fala da atriz Grace Passô para o seriado
Afronta!, no qual a atriz comenta a perspectiva única do corpo negro periférico
que é constituído por uma história de marginalização sistêmica.

É uma mistura tão profunda, é uma mistura de quem ex-


perimenta ou teve que experimentar tudo. E daí produziu
uma outra coisa que eu não sei o nome, que está em outro
tempo já. Que é exatamente o contrário dessa perspectiva
do colonizador, que é uma só, né? Que é de quem vem pra
matar e pegar. É uma perspectiva de quem está do outro
lado, é de quem recebeu o colonizador, sobreviveu a ele,
aprendeu a música dele, não deixou a sua morrer, se apai-
xonou pelo colonizador, cuspiu nele, está correndo atrás
pra cuidar do que aconteceu no passado, ao mesmo tempo
aqui no futuro sabe que está tudo junto. São corpos poli-
glotas cheios de referência e mais resistentes, né? Não há
outra opção (GRACE, 2017).

Como destaca Passô, as narrativas criadas por pessoas negras e periféri-


cas carregam uma experiência única que permite a produção de uma arte que
absorve o fracasso e o subverte, criando espaços de sobrevivência na negativi-
dade, na limitação. Temporada é um exemplo de como as mudanças ao longo do
tempo são reflexos da potência dos corpos dissidentes, corpos em resistência e
expansão. O filme revela a motivação dos integrantes da Filmes de Plástico, essas
histórias não podem ser raras, a potência da arte de corpos dissidentes deve ser
máxima.

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Referências

ANCINE. Uma nova política para o audiovisual: Agência Nacional


de Cinema, os primeiros 15 anos. Rio de Janeiro: Ministério da Cul-
tura, 2017. Disponível em: https://www.ancine.gov.br/sites/default/
files/livros/ANCINE%2015%20ANOS%20WEB%20FINAL_em%20
baixa2.pdf. Acesso em: 15 jan. 2020.

ANDRÉ Novais (Temporada 1, ep. 10). Afronta! [Seriado]. Direção:


Juliana Vicente. São Paulo: Preta Portê Filmes, 2017. 13 min, son.,
color. Disponível em: http://netflix.com/title/81331067. Acesso em:
16 abr. 2021.

CANDIDO, M. R. et al. Gênero e raça no cinema brasileiro. Revista


brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 36, n. 106, 2021. Disponí-
vel em: http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v36n106/1806-9053-rbc-
soc-36-106-e3610611.pdf. Acesso em: 12 maio 2021.

GABRIEL Martins (Temporada 1, ep. 5). Afronta! [Seriado]. Direção:


Juliana Vicente. São Paulo: Preta Portê Filmes, 2017. 12 min, son.,
color. Disponível em: http://netflix.com/title/81331067. Acesso em:
16 abr. 2021.

GRACE Passô (Temporada 1, ep. 12). Afronta! [Seriado]. Direção: Ju-


liana Vicente. São Paulo: Preta Portê Filmes, 2017. 13 min, son., co-
lor. Disponível em: http://netflix.com/title/81331067. Acesso em: 16
abr. 2021.

HALBERSTAM, Jack. The queer art of failure. Durham: Duke Uni-


versity Press Books, 2011.

SILVA, G. de A. B. da . Contagem como o coração do mundo, através


do olhar da produtora Filmes de Plástico . Aletria: Revista de Estudos
de Literatura, [S. l.], v. 30, n. 3, p. 179–200, 2020. DOI: 10.35699/2317-
2096.2020.25613. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.
php/aletria/article/view/25613. Acesso em: 10 maio 2021.

TEMPORADA. Direção: André Novais Oliveira. Produção: André No-


vais Oliveira, Gabriel Martins, Maurilio Martins e Thiago Macêdo
Correia. Contagem: Filmes de Plástico, 2017. 106 min, son. color. Dis-
ponível em: http://netflix.com/title/81042801. Acesso em: 16 abr.
2021.

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Mariana Ferreira Valentin da Silva é mestranda em Estudos de Linguagens pelo
Programa de Pós-graduação do CEFET-MG com bolsa DPPG-CEFET-MG. Possui
graduação em Letras (Tecnologias de Edição) pelo CEFET-MG (2018). Atual-
mente desenvolve pesquisa sobre as obras dos diretores Wim Wenders e Yasu-
jiro Ozu, sob orientação da Profa. Dra. Mírian Sousa Alves, na Linha I - Litera-
tura, Cultura e Tecnologia, do POSLING.

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Miguel
Fernandes
Pereira
Usando a
máscara:
Yukio Mishima
e a arte queer

do fracasso

1. Introdução
O objetivo deste ensaio é
evidenciar a ubiquidade do
queer cuja presença se
encontra no pensamento e produção artística até de indivíduos assumidamente
tradicionalistas e de extrema direita. Essa presença reflete a relação entre a ho-
mossexualidade, o sadomasoquismo, o fascismo e o conservadorismo. Mishima
é amplamente conhecido por sua tentativa de golpe de estado para restaurar a
autoridade do imperador do Japão e subsequentemente seu suicídio ritual por
meio do seppuku, sua defesa do código do bushido e tendências fascistas. O au-
tor também escrevia romances semi autobiográficos em que, frequentemente,
os protagonistas eram jovens gays que escondiam sua sexualidade para cumprir
um papel de gênero masculino imposto pela ideologia guerreira do Japão Im-
perial, anterior e durante a Segunda Guerrra mundial. Estes atributos aparen-
temente contraditórios de Yukio Mishima serão trabalhados no ensaio com a
finalidade de mostrar que o queer pode estar presente até em indivíduos que
pré datam o movimento ou fazem parte de ideologias que o rejeitam.
Pretende-se então realizar uma análise anacrônica de Confissões de uma
máscara (1974), identificando elementos pertencentes à teoria queer, como a
relação entre sexo, gênero e sexualidade, a performatividade de gênero, o sa-
domasoquismo e a identidade homossexual, em convívio com as posições de
extrema direita abraçadas por Mishima. Para tal, serão contrastados trechos do
romance com reflexões de autores como Jack Halberstan, Judith Butler, Guaci-
ra Lopes Louro e Paul Beatriz Preciado.

2. Mishima queer

Kimitake Hiraoka, que posteriormente usaria o nome Yukio Mishima, foi


um indivíduo complexo e contraditório. Por um lado, nacionalista, militarista e
conservador, fundador da milícia Tatenokai, tinha por objetivo restaurar a auto-
ridade do imperador do Japão, combatendo o modernismo, o comunismo e a de-
mocracia, ideias em ascensão no período do pós-guerra. Casado, pai de dois filhos.
Por outro lado, homossexual, escrevia abertamente sobre a homossexualidade e
foi frequentador da vida boêmia gay que, aos poucos, aparecia no Japão.
As experiências compartilhadas por Mishima em seus romances apresen-
tam semelhanças com a experiência gay do ocidente no início do século XX. Já
havia sido construído o rótulo de sujeito homossexual, mas ainda não haviam
surgido os movimentos identitários que reivindicavam a visibilidade e aceitação
LGBTQ+. Em relação à vivência queer ocidental, o artigo Teoria queer – uma po-
lítica pós-identitária para a educação (2001) mostra que:

A homossexualidade e o sujeito homossexual são inven-


ções do século XIX. Se antes as relações amorosas e sexu-
ais entre pessoas do mesmo sexo eram consideradas como
sodomia (uma atividade indesejável ou pecaminosa à qual
qualquer um poderia sucumbir), tudo mudaria a partir da
segunda metade daquele século: a prática passava a definir
um tipo especial de sujeito que viria a ser assim marcado
e reconhecido. Categorizado e nomeado como desvio da | 176
norma, seu destino só poderia ser o segredo ou a segrega-
ção – um lugar incômodo para permanecer. Ousando se ex-
por a todas as formas de violência e rejeição social, alguns
homens e mulheres contestam a sexualidade legitimada e
se arriscam a viver fora de seus limites. A ciência, a Justiça,
as igrejas, os grupos conservadores e os grupos emergen-
tes irão atribuir a esses sujeitos e a suas práticas distintos
sentidos. A homossexualidade, discursivamente produzida,
transforma-se em questão social relevante. A disputa cen-
tra-se fundamentalmente em seu significado moral. En-
quanto alguns assinalam o caráter desviante, a anormali-
dade ou a inferioridade do homossexual, outros proclamam
sua normalidade e naturalidade – mas todos parecem estar
de acordo de que se trata de um ‘tipo’ humano distintivo
(LOURO, 2001, p. 542).

A condição descrita por Guacira Lopes Louro no trecho se torna o con-


texto em que vivem Mishima e suas personagens, mesmo no período imperial
do Japão, na Segunda Guerra Mundial, resistente a influências ocidentais: “Es-
ses são os discursos mais expressivos que circulam nas sociedades ocidentais,
pelo menos até o início dos anos de 1970. O movimento de organização dos
grupos homossexuais é, ainda, tímido; suas associações e reuniões suportam,
quase sempre, a clandestinidade” (LOURO, 2001, p. 543). O movimento LGBT se
organizaria em países como os Estados Unidos, Brasil, e pelo processo de globa-
lização, no Japão também nos anos 70, período pouco após a morte de Mishima.
Além do deslocamento temporal e espacial em relação aos movimen-
tos queer ocidentais, em escritos como The way of the samurai e The defense
of culture, Mishima defende as tradições feudais do Japão Imperial, rejeita o
modernismo (apesar de escrever literatura moderna), denuncia a democracia.
Romantiza a prática do seppuku, em que um guerreiro, ao fracassar em determi-
nada missão, comete um suicídio ritual que consiste em abrir o ventre com sua
espada. Esta foi a maneira pela qual Mishima morreu. A relação entre o autor, o
fascismo e sua homossexualidade é complexa, como ocorre em outros casos de
homossexuais em movimentos fascistas. Segundo Halberstan:

Em algumas narrativas teóricas queer, por exemplo, a abje-


ção psíquica do homossexual deve encontrar um reconheci-
mento tardio de sua legitimidade. Em outros esforços aca-
dêmicos, o sujeito gay ou lésbico deve ser desenterrado dos
túmulos da história, deve ter um lugar apropriado garantido,
considerando-se os movimentos sociais, deve estar globali-
zado em um projeto baseado em direitos ou ver-se inscrito
em novos contratos sociais. Mas, na teoria queer mais re-
cente, os projetos positivistas comprometidos com a res-
tauração do sujeito gay à história e o resgate da identidade
gay de sua patologização foram substituídos pela ênfase no
potencial negativo do queer e na possibilidade de repensar
o sentido do político a partir do ser queer, exatamente por
meio do acolhimento das formulações de individualidade in-
coerente, solitária, derrotada e melancólica que ele coloca
em movimento (HALBERSTAN, 2020, p. 199-200).

| 177
Embora busque se construir e se afirmar como um sujeito hipermasculino e
heteronormativo por meio do bodybuilding, das artes marciais, do casamento, da
paternidade, do serviço militar e de ter sido engajado em movimentos políticos
tradicionalistas de extrema-direita, Mishima produz literatura queer algumas dé-
cadas antes da ascensão dos movimentos LGBT. Confissões de uma máscara dis-
cute o desejo homoerótico e homossexual, o sadomasoquismo, a condição de uma
sexualidade não assumida, do sentimento de diferença e exclusão, da performa-
tividade, de performar masculinidade e heterossexualidade diante da plateia que
é a sociedade. O autor faz isso de maneira poética, nuançada, franca. Apesar de
sua luta para se apresentar como exige a sociedade, ele mostra sua condição ao
mundo e busca, mesmo que por meio de uma personagem fictícia, a visibilidade.
E, ainda que concorde com as ideologias heteronormativas e patriarcais do Japão
Imperial, retrata o sofrimento de se adequar a um mundo incompatível. Mishima
faz publicações simultaneamente semelhantes e diferentes das que ganhariam
mais destaque no mundo ocidental a partir dos anos 70:

O movimento de organização dos grupos homossexuais é,


ainda, tímido; suas associações e reuniões suportam, quase
sempre, a clandestinidade. Aos poucos, especialmente em
países como os Estados Unidos e a Inglaterra, um aparato
cultural começa a surgir: revistas, artigos isolados em jornais,
panfletos, teatro, arte. No Brasil, por essa época, a homosse-
xualidade também começa a aparecer nas artes, na publici-
dade e no teatro. Alguns artistas apostam na ambigüidade
sexual, tornando-a sua marca e, desta forma, perturbando,
com suas performances, não apenas as platéias, mas toda
a sociedade. A partir de 1975, emerge o Movimento de Li-
bertação Homossexual no Brasil, do qual participam, entre
outros, intelectuais exilados/as durante a ditadura militar
e que traziam, de sua experiência no exterior, inquietações
políticas feministas, sexuais, ecológicas e raciais que então
circulavam internacionalmente (LOURO, 2001, P. 543).

O escritor, na solidão retratada em Confissões de uma máscara, não se


encontra em meio a uma multidão queer. Vale observar que Kochan é o único
personagem homossexual em todo o romance, uma gota queer em um oceano
heterossexual e heteronormativo, em processo de assimilação pelo seu meio.
Interessante é a comparação entre a condição da personagem de Mishima e uma
reflexão de Preciado:

O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder,


mas antes a potência mesma que torna possível a incorpo-
ração prostética dos gêneros. A sexopolítica torna-se não
somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de
uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movi-
mentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais,
transgêneros, chicanas, pós-coloniais... As minorias sexuais
tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome
multidão torna-se queer (PRECIADO, 2011, p. 14).

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Portanto, não se trata de um essencialismo maniqueísta em que o autor
seria um herói de vanguarda queer lutando contra as normas de gênero de sua
sociedade ou um traidor da causa queer. Mishima, enquanto indivíduo, promove
práticas fascistas e, como autor, flerta com dimensões queer. As duas posturas
não são mutuamente exclusivas, mas, como pontuado por Halberstan, possuem
uma relação complexa e nem sempre palatável ao discurso positivista ou ao
ativismo político:

Em uma historiografia desleal, a homossexualidade não


é tanto uma identidade que perpassa o tempo como uma
combinação mutável de relações entre política, Eros e po-
der. A fim de captar a complexidade dessas relações mu-
táveis, não podemos nos acomodar em conexões lineares
entre desejos radicais e políticas radicais, mas precisamos
estar preparados/as para os abalos provocados pelas co-
nexões politicamente problemáticas que a história lança
(HALBERSTAN, 2020, p. 199-228).

Tendo em vista o que foi discutido, propõe-se agora analisar a questão do gê-
nero na obra de Mishima.

3. A máscara e o gênero: construindo o menino e o homem.

O primeiro capítulo de Confissões de uma máscara narra a infância do


protagonista, sua primeira lembrança em que ele alega se recordar recém-nas-
cido observando a luz solar recaindo sobre sua bacia de banho, memória cuja
veracidade é contestada pelos adultos, na sua puberdade. O garoto se chama
Kochan, diminutivo de Kimitake, o nome oficial do autor. Yukio Mishima é um
pseudônimo utilizado para separar sua vida pessoal da artística. A escolha do
uso de seu próprio nome para a personagem, o pertencimento do livro ao gê-
nero bildungsroman e o fato de o romance estar estruturado como um relato
pessoal evidenciam um caráter de autoficção, em que o autor se baseia em sua
própria experiência de vida para falar de sua experiência como homossexual no
Japão Imperial da primeira metade do século XX. Neste recorte, predominam
as normas sociais rígidas que pairam sobre o jovem desde o seu nascimento.
Um parágrafo se destaca: “Meu cabelo foi meio claro por muito tempo, mas
passaram azeite de oliva nele até que ficasse preto” (MISHIMA, 1985, p. 16). Ou
seja, a própria cor natural do cabelo do protagonista precisava ser adequada às
expectativas dos adultos. No Japão, até hoje, é tabu ter o cabelo, natural ou
tingido, de outra cor que não seja o preto.
Na primeira parte do livro, o autor dá grande enfoque à construção de
sua identidade como menino. Ele foi criado predominantemente por mulheres:
suas companhias são sua avó e as criadas da família. Kochan passou sua infância
em pouco contato com homens. Estes ocasionalmente são soldados, trabalha-
dores braçais e, nestes encontros, surge um desejo homoerótico. Nestas raras | 179
experiências, o autor descreve o desabrochar de sua atração pelo sacrifício, por
jovens que devotam suas vidas ao serviço de forma perigosa ou degradante.
Há a seguinte descrição quando o garoto encontra um rapaz cuja ocupação era
esvaziar os penicos das famílias abastadas da região:

Tive o pressentimento, então, de que há no mundo um tipo


de desejo semelhante à dor aguda, pungente. Olhando
para o jovem sujo, fiquei sufocado pelo desejo, pensando:
“Quero me transformar nele”, “Quero ser ele”. Lembro-
-me claramente de que meu desejo tinha dois pontos de
enfoque. O primeiro eram as “puxa-coxas” azul-escuras, o
outro, sua ocupação. As calças justas delineavam nitida-
mente a metade inferior de seu corpo, que se movia com
agilidade e parecia vir diretamente na minha direção. Uma
adoração inexprimível por aquelas calças nasceu em mim.
Não compreendi por quê (MISHIMA, 1985, p. 8).

A postura aberta do narrador em relação a suas fantasias homossexuais


desde a infância denota uma posição queer em relação ao mundo, no sentido
arcaico e moderno da palavra. Ao longo do romance, Kochan é tanto um sujeito
homossexual quanto um sujeito desajustado em meio a uma sociedade militarista
com papeis estritos de gênero aos quais ele tenta se adequar sem sucesso. Esta
questão queer pode ser vista sendo vivenciada pelo personagem de Mishima:

Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, ex-


cêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se
constitui na forma pejorativa com que são designados ho-
mens e mulheres homossexuais. Um insulto que tem, para
usar o argumento de Judith Butler, a força de uma invoca-
ção sempre repetida, um insulto que ecoa e reitera os gritos
de muitos grupos homófobos, ao longo do tempo, e que,
por isso, adquire força, conferindo um lugar discriminado
e abjeto àqueles a quem é dirigido. Este termo, com toda
sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma
vertente dos movimentos homossexuais precisamente
para caracterizar sua perspectiva de oposição e de contes-
tação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a
normalização – venha ela de onde vier. Seu alvo mais ime-
diato de oposição é, certamente, a heteronormatividade
compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica
a normalização e a estabilidade propostas pela política de
identidade do movimento homossexual dominante. Queer
representa claramente a diferença que não quer ser assi-
milada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito
mais transgressiva e perturbadora (LOURO, 2001, p. 546).


No universo queer construído anacrônico e acidental por Mishima, sur-
ge a questão de gênero em uma passagem na qual o narrador, observando
as obras em um almanaque de arte renascentista pertencente ao seu pai, se
depara com um retrato de Joana D’arc montada em um cavalo, trajando ar-
madura e armas. Ao confundi-la com um homem, Kochan se sente imediata-
mente atraído por ela, como aos príncipes dos contos de fadas e aos heróis | 180
das revistas de aventuras. Porém, ao descobrir que se trata de uma mulher,
experimenta um sentimento de repulsa:

Senti como se um soco me tivesse prostrado por terra. A


pessoa que eu pensara fosse “ele” era “ela”. Se aquele belo
cavaleiro era uma mulher e não um homem, o que é que me
restava? (Até hoje sinto uma repugnância profundamente
enraizada e difícil de explicar por mulheres em trajes mas-
culinos.) (MISHIMA, 1985, p. 10-11).

Aqui, a repulsa pode ser associada não apenas à atração do jovem a homens
e à masculinidade em geral, mas também pode ser uma aversão à quebra dos
códigos de gênero enraizados em seu meio e a uma normatização de gênero/
sexo/desejo. O narrador é queer, mas averso a tipos de queer que perturbem
sua homossexualidade e adoração da hipermasculinidade. É perceptível uma
discussão sobre papeis de gênero:

Gêneros “inteligíveis”, são aqueles que, em certo sentido,


instituem e mantêm relações de coerência e continuidade
entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Em outras pa-
lavras, os espectros de descontinuidade e incoerência, eles
próprios só concebíveis em relação a normas existentes de
continuidade e coerência, são constantemente proibidos e
produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer li-
nhas causais ou expressivas de ligação entre sexo biológi-
co, o gênero culturalmente constituído e a “expressão” ou
“efeito” de ambos na manifestação do desejo sexual por
meio da prática sexual (BUTLER, 2003, p. 38).

Enquanto criança, Kochan experimentou a prática do crossdressing. Ain-


da leigo ao conjunto de normas sociais de gênero, o menino se divertia ao usar
roupas femininas em imitação a personalidades do teatro e do cinema. Ironica-
mente, considerando sua aversão a mulheres em trajes considerados masculi-
nos. Joana D’arc não pode usar armadura, mas Kochan pode se vestir de Cleó-
patra. Após ver uma apresentação de mágica da atriz Tenkatsu Shokyoukusai,
tenta se vestir como ela, usando as roupas e joias de sua mãe: “Assumi um ar
solene vestido desse modo, e precipitei-me para o quarto de minha avó. Incapaz
de conter meu riso e prazer frenéticos, corri pelo aposento gritando: — Sou
Tenkatsu! Eu, eu sou Tenkatsu!” (MISHIMA, 1985, p. 14).
Sendo confrontado com a reação de choque e vergonha de sua mãe e
avó diante de sua apresentação como Tenkatsu o protagonista narrador logo
aprende que o crossdressing é uma prática tabu, mas continua o fazendo clan-
destinamente: “Dessa vez, sentindo já um prazer total no mau procedimento,
escapei aos olhos de minha avó e meus pais e, com meus irmãos como cúmplices,
vesti-me como Cleópatra. O que estava eu esperando desse traje feminino?”
(MISHIMA, 1985, p. 15).
Kochan se vê rompendo os papéis de gênero e sexualidade, imitando as | 181
mulheres e desejando os homens, sobretudo os soldados, homens com grande
chance de morrerem tragicamente, jovens, em terras distantes. O narrador
faz a seguinte descrição de soldados marchando em formação na rua:

O cheiro do suor dos soldados — aquele odor como uma


brisa marinha, como o ar dourado da praia — metia-se pelas
minhas narinas e inebriavame. Esta, provavelmente, foi mi-
nha lembrança mais antiga de odores. Desnecessário dizer
que, naquela época, o odor não podia ter qualquer relação
direta com sensações sexuais, mas gradativa e tenazmente
despertava em mim um anseio apaixonado por coisas como
o destino dos soldados, a natureza trágica de seu apelo, as
terras distantes que veriam, as maneiras como morreriam...
(MISHIMA, 1985, p. 12).

Uma mudança ocorre na vida de Kochan quando ele é convidado à casa


de suas primas, onde é permitido, ao contrário da casa de sua avó, a agir de
maneira arruaceira como é o estereótipo do menino: “As coisas eram diferen-
tes quando eu visitava meus primos. Nesses dias, até eu era solicitado a ser
um menino, um macho.” (MISHIMA, 1985, p. 18). Com esta liberdade, também
intensifica-se a pressão para se masculinizar:

E naquela casa era tacitamente exigido que eu me compor-


tasse como um menino. A relutante máscara começara a
nascer. Mais ou menos nessa época eu estava começando a
compreender vagamente o mecanismo do fato de que aqui-
lo que as pessoas consideravam em mim como uma pose
era, na realidade, uma expressão da minha necessidade de
afirmar minha verdadeira natureza, e que era precisamente
o que as pessoas olhavam como meu verdadeiro eu que era
uma máscara (MISHIMA, 1972, p.19).

Aparece então pela primeira vez a figura da máscara, de sua masculini-


dade como atuação, performance. Apesar de performatividade e performan-
ce serem termos distintos no âmbito da teoria queer, a metáfora usada por
Mishima se assemelha à ideia do gênero como um fazer, em oposição a um ser,
uma essência inerente ao sujeito:

Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efei-


to de um núcleo ou substância interna, mas o produzem na
superfície do corpo, por meio do jogo de ausências signi-
ficantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio or-
ganizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e
atuações, entendidos em termos gerais, são performativos,
no sentido de que a essência ou identidade que por outro
lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas
e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discur-
sivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo perfor-
mativo sugere que ele não tem status ontológico separado.
(BUTLER, 2003, p. 194).

| 182
Temos de um escritor explicitamente contrário ao ideal da pós-modernida-
de uma visão acidentalmente pós-moderna, atravessada pelo discurso, seme-
lhante à paráfrase que Butler faz do pensamento de Wittig: Essa produção do
sexo como pré discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de
construção cultural que designamos por gênero. “Assim como deve a noção
de gênero ser reformulada, para abranger as relações de poder que produzem
o efeito de um sexo pré discursivo e ocultam, desse modo a própria operação
da produção discursiva?” (BUTLER, 2003, p. 25-26 ).
Kochan ao final do segmento inicial do romance se torna um menino,
aprendendo os códigos e significantes de fazer a masculinidade. Ele recebe
sua máscara e a veste, substituindo a performatividade feminina de Cleópatra
pela masculina do soldado, valorizando acima de tudo a juventude, a força
física, a abnegação e o sacrifício. A seguir, passaria pela puberdade e pelo co-
légio interno, na companhia apenas de meninos e homens.

4. A máscara e o armário

A segunda parte de Confissões de uma máscara lida com o despertar se-


xual do narrador e alter ego do autor. Em sua descrição da puberdade, ele conta
que recebeu um brinquedo que não sabia usar, que o atormentava ao invés de o
divertir. Este brinquedo seria seu pênis, que possuía preferências inexplicáveis.
Gostava de homens e violência: “A natureza de seus gostos fundia-se não ape-
nas com minhas recordações de infância, mas também com uma após a outra,
coisas como os corpos nus de rapazes vistos numa praia, no verão, as equipes de
natação vistas na Piscina Meiji, o moço moreno com quem uma de minhas pri-
mas se casou, e os valentes heróis de muitas estórias de aventuras. ” (MISHIMA,
1985, p. 24) e “O brinquedo, igualmente, levantou a cabeça em direção à morte
e a lagos de sangue e carne musculosa. Sangrentas cenas de duelo (...); figuras
de jovens samurais rasgando o ventre, ou de soldados baleados, de dentes cer-
rados e gotejando sangue por entre mãos que se agarravam a peitos cáquis”
(MISHIMA, 1985, p. 24).
Temos um vislumbre do universo interno das fantasias sexuais do garoto, em
que jovens belos e musculosos eram torturados, executados, canibalizados e/ou
forçados a lutar até a morte para sua diversão e prazer. Também conhecemos uma
imagem clássica que substituiria o “guerreiro” que foi revelado ser Joana D’arc.
São Sebastião, de expressão serena, seminu e amarrado a uma árvore, alvejado por
flechas. Contemplando a pintura, sente algo inusitado: “Naquele dia, no momento
em que olhei para a figura, todo o meu ser estremeceu com uma alegria pagã. Meu
sangue ferveu; meus rins dilataram-se como que em fúria. A parte monstruosa de
mim que estava a ponto de explodir despertou com ardor sem precedente, censu-
rando-me pela minha ignorância, palpitando indignadamente” (MISHIMA, 1985, p.
27). O próprio Mishima também tinha apreço por esta imagem, uma vez a recriando
em um ensaio fotográfico, assumindo o papel do santo martirizado. | 183
Outro objeto da afeição e desejo de Kochan é Omi, aluno repetente no
internato onde estudava. Mais velho que os outros, forte, com fama de valentão
e delinquente, o rapaz logo atrai a atenção do narrador. Omi se torna uma refe-
rência tanto de desejo quanto de mímese. Kochan quer ser como Omi, e o tem por
parâmetro de masculinidade. Também vemos a filosofia pessoal de Mishima, do
culto ao corpo e à ação, e desconfiança ao intelectual e a introspecção:

Com isso como base, o princípio de seleção entrou em ação e


completei uma estrutura sistemática de gostos e desgostos:
por causa dele, não posso amar uma pessoa intelectual; por
causa dele, não sou atraído por uma pessoa que use óculos;
por causa dele comecei a amar a força, uma impressão de
sangue copioso, a ignorância, os gestos rudes, a fala descui-
dada, e a selvagem melancolia inerente à carne de modo al-
gum maculada pelo intelecto... (MISHIMA, 1985, p. 42).

Esta atração ao homem hipermasculinizado é muito presente em movi-


mentos de extrema-direita e indivíduos que fazem parte, voluntariamente ou
não, de sociedades ou comunidades altamente regimentadas por gênero, pa-
triarcais e de ideologia guerreira. É possível também fazer uma comparação en-
tre os gostos de Kochan e a arte de Tom of Finland, desenhista gay que fazia
retratos eróticos de soldados (inclusive nazistas), operários, marinheiros, me-
cânicos, policiais e motoqueiros, figuras associadas pelo imaginário popular a
uma masculinidade rude e absoluta. É importante ressaltar que Tom of Finland,
conscrito do exército finlandês na Segunda Guerra mundial, lutou ao lado do
exército da Alemanha nazista, tendo experiências sexuais com soldados ale-
mães gays. Esta atração extremamente androfílica por homens rudes e muscu-
losos presente em algumas figuras de extrema-direita é comentada por Bersani,
citado por Halberstan:

Ainda que seja indiscutível o fato de que a sexualidade é


constantemente politizada, as maneiras pelas quais fazer
sexo politiza são altamente problemáticas. A política de
direita pode, por exemplo, surgir com bastante facilidade
de uma sentimentalização das forças armadas e dos ope-
rários que, por si só, consegue prolongar e sublimar uma
preferência sexual explícita por marinheiros e telefonistas
(BERSANI APUD HALBERSTAN, p. 201).

Por fim, na segunda parte do romance, o narrador se torna ainda mais


obcecado por manter a máscara, que na primeira infância se relutava a colocar.
Considera agora sua homossexualidade aberrante e quer não apenas expor ao
mundo uma fachada, mas se tornar a pessoa que finge ser, fazer a máscara se
tornar seu “verdadeiro rosto”:

| 184
Não estou pretendendo dizer que encarava aqueles meus
desejos, que se desviavam dos padrões aceitos, como nor-
mais e ortodoxos; tampouco que agisse sob a impressão er-
rônea de que meus amigos possuíam os mesmos desejos.
Bastante surpreendentemente, eu estava tão absorvido
por histórias de romance, que dedicava todos os meus be-
los devaneios a pensamentos sobre o amor entre homens e
donzelas, e a casamento, exatamente como se fosse uma
jovenzinha que não soubesse nada do mundo. Lancei meu
amor por Omi ao monturo dos enigmas abandonados, sem
nunca procurar entender profundamente seu significado.
Agora, quando escrevo a palavra “amor”, quando escrevo
“afeição”, minha intenção é totalmente diferente da com-
preensão que tinha das palavras naquele tempo. Nunca se-
quer sonhei que os desejos como os que sentira por Omi
pudessem ter uma conexão significativa com as realidades
da minha “vida” (MISHIMA, 1985, p. 52).

Kochan tenta descartar seu desejo por Omi, substituí-lo por uma mulher.
Decide nunca “sair do armário”: “Todo mundo diz que a vida é um palco. Mas
a maioria das pessoas não parece ficar obcecada com a ideia, menos ainda tão
cedo quanto eu. Pelo final da infância, eu já estava firmemente convencido de
que a coisa era assim e de que devia representar minha parte no palco sem nem
uma vez revelar meu verdadeiro eu.” (MISHIMA, 1985, p.65). De fato, a saída do
armário nunca foi uma opção para Kochan, uma vez que nunca foi mencionada
uma comunidade de pessoas como ele. Não é possível se assumir, pois não havia
um grupo que o acolhesse na época de sua adolescência:

Pouco a pouco constrói-se a ideia de uma comunidade ho-


mossexual. Conforme Spargo, ao final dos anos 70, a política
gay e lésbica abandonava o modelo que pretendia a liberta-
ção através da transformação do sistema e se encaminhava
para um modelo que poderia ser chamado de ‘étnico’. Gays
e lésbicas eram representados como “um grupo minoritário,
igual mas diferente”; um grupo que buscava alcançar igual-
dade de direitos no interior da ordem social existente. Afir-
mava-se, discursiva e praticamente, uma identidade homos-
sexual. (...) A afirmação da identidade supunha demarcar
suas fronteiras e implicava numa disputa quanto às formas
de representá-la. Imagens homofóbicas e personagens este-
reotipados exibidos na mídia e nos filmes são contrapostos
por representações ‘positivas’ de homossexuais. Reconhe-
cer-se nessa identidade é questão pessoal e política. O dile-
ma entre ‘assumir-se’ ou ‘permanecer enrustido’ (no armário
– closet) passa a ser considerado um divisor fundamental e
um elemento indispensável para a comunidade. Na constru-
ção da identidade, a comunidade funciona como o lugar da
acolhida e do suporte – uma espécie de lar. Portanto, have-
ria apenas uma resposta aceitável para o dilema (repetindo
uma frase de Spargo, to come home, of course, you first had
to ‘come out’): para fazer parte da comunidade homosse-
xual, seria indispensável, antes de tudo, que o indivíduo se
‘assumisse’, isto é, revelasse seu ‘segredo’, tornando pública
sua condição (LOURO, 2001, p. 543).

Agora adulto, iniciando uma graduação em direito por seu pai, se vê no


auge da Segunda Guerra Mundial. É rejeitado várias vezes pelo exército devido | 185
a seu físico frágil, o que ele vê como um empecilho a seu ideal de morrer jo-
vem de maneira trágica e brutal. Ao invés disso, é recrutado para trabalhar em
fábricas de equipamento militar, em meio a bombardeios. Acaba por conhecer
Sonoko, irmã mais nova de um amigo que fora convocado para lutar na guerra.
Tenta se apaixonar por ela, em um esforço que ele próprio considera fútil: “De-
cidira que podia amar uma garota sem sentir qualquer desejo. Essa foi provavel-
mente a empresa mais temerária desde o início da história humana.” (MISHIMA,
1972, p. 85). Kochan jamais conseguiria transformar Sonoko em um objeto de
desejo sexual como Omi, mas insiste em seu relacionamento com a jovem:

Minha ‘decisão’ acabou se tornando parte integral da mi-


nha natureza”, disse eu a mim mesmo. “Não é mais uma
decisão. Meu conhecimento de que estou disfarçado como
uma pessoa normal corroeu o que quer de normalidade que
eu possuísse originalmente, acabando por me fazer dizer
a mim mesmo, repetidas vezes, que também isso não era
mais que um simulacro de normalidade. Para falar de outra
maneira, estou me tornando o tipo de pessoa que não pode
acreditar em coisa alguma exceto na simulação. Mas se isso
é verdade, então querer considerar a atração de Sonoko
por mim como total simulação pode não ser mais que uma
máscara para esconder meu verdadeiro desejo de me acre-
ditar genuinamente apaixonado por ela. Assim, talvez eu
esteja me tornando o tipo de pessoa que é incapaz de agir
contrariamente à própria natureza, e talvez eu realmente
a ame ... (MISHIMA, 1972, p. 87).

O romance termina em fracasso. Kochan não consegue se tornar como


Omi, não consegue dar vazão a seus desejos sadomasoquistas, não consegue
ter uma morte trágica como os heróis dos contos de fadas e das histórias em
quadrinhos, não consegue viver como os soldados e trabalhadores braçais que
tanto admira. Não consegue se apaixonar ou ter desejo sexual por Sonoko, e
viver um romance heteronormativo com a garota. Triunfa apenas em seu uso
da máscara, em oferecer à plateia uma performance magistral.
Ironicamente, o autor conseguiria vencer em quase todos estes campos:
seria forte e musculoso como Omi, se casaria com uma mulher, frequentaria a
vida boêmia gay do Japão pós-guerra e morreria de seppuku após uma tenta-
tiva de golpe de estado. Só não conseguiu morrer na guerra. Foi o oposto do
seguinte: “(…) ainda que o homem gay possa ser um apoio para o estado pa-
triarcal enquanto está engajado na conexão entre homens e na formação de
uma comunidade gay, ele pode se tornar uma ameaça para o status quo político
quando recusa a maestria masculina, rejeita completamente as relações e acei-
ta o desaparecimento não suicida do sujeito” (HALBERSTAN, 2020, p. 204-205).
Mishima cumpriu seu papel até o desaparecimento literal do sujeito.

| 186
5. Conclusão

Foi feita neste ensaio uma análise do romance Confissões de uma más-
cara, de Yukio Mishima, apontando que, no livro, Mishima expressa abertamen-
te uma sexualidade considerada desviante e expõe a questão do gênero como
uma construção discursiva. Na primeira parte, o narrador aprende a ser menino,
ao invés de nascer menino, e, ao longo de todo o romance, utiliza uma “másca-
ra” metafórica e compara a performatividade do masculino com a performance
artística. Discute também suas fantasias homoeróticas e sadomasoquistas, o
que é tabu no contexto histórico de sua publicação.
Diante do exposto, podemos concluir, primeiramente, que o queer en-
quanto conceito vai além do movimento queer em si, aparecendo anacronica-
mente na produção artistico-literária que predata a pós-modernidade, por meio
de conceitos importantes à teoria queer, como a distinção sexo-gênero-sexu-
alidade, a visibilidade LGBT e outros. Chegamos também à conclusão de que a
análise queer não deve reduzir o sujeito a um herói a frente de seu tempo ou a
apenas uma vítima, mas um indivíduo que, como exposto por Halberstan, pode
ocupar diversas posições políticas e sociais, sendo possível que o sujeito possua
um “modo de vida” queer e pertença, em parte, a ideologias reacionárias. Mishi-
ma é um corpo estranho, queer de si mesmo e do mundo.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da


identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

HALBERSTAN, Jack. A arte queer do fracasso. Recife: Cepe, 2020.

LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária


para a educação. In: Hollanda, Heloisa Buarque de (org.). Pensamen-
to feminista hoje. Sexualidades no sul global. Rio de Janeiro: Bazar
do Tempo, 2020.

MISHIMA, Yukio. Confissões de uma máscara. Círculo do livro, 1985.

PRECIADO, Paul Beatriz. Multidões queer: notas sobre uma políti-


ca dos “anormais”. In: Hollanda, Heloisa Buarque de. (Org.). Pensa-
mento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2019.
| 187
Miguel Fernandes Pereira é bacharel em letras pelo CEFET-MG e professor de
língua inglesa no Ensino Fundamental. Estudioso da literatura e suas relações
com a política, identidade e causas sociais.

| 188
Tiago
Cruvinel
Ensaio sobre a
sexualidade da
criança-viada

Introdução
Recentemente, em maio
de 2021, o projeto intitulado
Criança Viada Show foi cen-
surado na cidade de Itajaí,
no Estado de Santa | 124
Catarina. O projeto tinha como objetivo falar sobre as memórias de infância e
os registros de cinco artistas homossexuais. A censura girou em torno da ex-
pressão “criança-viada” pois foi entendido que o projeto se dirigiria às crianças,
quando, na verdade, seria produzido para e por adultos.
O termo “criança-viada” surge no Brasil, por volta de 2012, pela figura
do ativista Iran Giusti, que criou uma página no Tumblr com imagens suas e de
outros colaboradores que celebravam a liberdade do comportamento infantil
fora do padrão heteronormativo, tais como meninos afeminados ou meninas
masculinizadas.
Não será feita aqui uma discussão sobre os motivos que levaram à censu-
ra do projeto, pois é evidente a homofobia atribuída ao grupo organizador do
Criança Viada Show, mas propõem-se aqui alguns questionamentos. É possível
uma criança ser viada? Se existe a criança-viada, em que momento ela se torna
uma? Pode-se pensar em sexualidade e práticas sexuais como coisas distintas
no que tange à infância? Pensar que uma criança possa ser viada é sexualizá-la?
A criança-viada seria uma identidade existente, e se for, deveria se apresentada
a outras crianças? O fato do espaço social e das práticas sociais não permitirem
a existência do corpo da criança-viada significa então que essa identidade não
existe? Paul Preciado (2019) autor de uma crônica importante, publicada em
2013, sobre a criança queer[1] não responde às perguntas aqui colocadas. A sua
preocupação girava mais em torno de tentar compreender quem defende os
direitos da criança queer, não só o direito de ser diferente, mas o direito de ser
considerada como subjetividade política irredutível a uma autodeterminação
sexual, gênero ou raça (Preciado, 2019).

Ninguém nasce gay: torna-se gay?

Judith Butler, no livro Problemas de gênero (2019), propõe uma reflexão


sobre a célebre frase de Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se
mulher”. Nesse sentido, Butler irá questionar que não há nada na obra de Beau-
voir “que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente uma fê-
mea” (2019, p.29) Além disso, Butler buscará compreender também se, quando
alguém se torna mulher, em que momento esse processo termina.
De maneira resumida, a teoria queer não irá negar que o sistema gênero
e sexo é um processo de construção social, mas tanto o gênero quanto o sexo
não são originários de nenhum caráter biológico, de nenhum estado natural dos
sujeitos. Além disso, o gênero e o sexo, para Butler (2019), surgem mediante
os atos performativos - que são ficcionais - no momento em que os indivíduos
fazem gênero. Nesse sentido, o processo nunca acaba, pois os indivíduos estão
sempre construindo gênero/sexo. Portanto, uma frase muito escutada, e que
nós homossexuais já usamos em nossa defesa, é que nós nascemos gays. Na
perspectiva da teoria queer isso não é verdade. Não se pode utilizar o fator bio-
lógico nem para afirmar a identidade homossexual, nem a heterossexual. | 190
O mesmo se daria na comparação de espécies animais distintas para justi-
ficar as relações homossexuais humanas. Não se pode partir do pressuposto de
que o conceito identitário que nós, humanos, desenvolvemos sobre a homosse-
xualidade nos dias de hoje, seja socialmente idêntico aos dos animais irracionais.
Ademais, a teoria queer acredita que a identidade parte de um ideal normativo
que acaba por sempre excluir alguém. Asad Haider (2019) também apresentará
as armadilhas que envolvem as políticas identitárias. Para ele, em diálogo com a
teoria da sujeição de Butler - que será apresentada a seguir - “nossa capacidade
de ação política através da identidade é exatamente o que nos prende ao Esta-
do, o que assegura nossa contínua sujeição” (HAIDER, 2019, p.35).
Entramos, portanto, em um dilema: se o sujeito não nasce nem homosse-
xual, nem heterossexual, como podemos dizer que uma criança possa ser via-
da? Este texto discutirá apenas as questões que envolvem as crianças que são
chamadas de afeminadas desde a infância, cuja sexualidade giraria em torno
de uma possível homossexualidade. Não discutirei o caso das crianças trans ou
crianças travestis, pois essas experiências não passaram pelo meu corpo e me
sentiria ocupando um espaço do qual pouco saberia falar.
Em primeira instância, o que se percebe é que a criança não nasce viada,
são os outros que dizem que ela é uma. São os outros (família, amigos, escolas,
Estado etc.) que exercem o seu poder coercitivo nomeando-a de viado a partir
da forma como o seu corpo se expressa, de modo que os atos performativos
contribuem com a formação desse sujeito. O processo de nomeação do sujeito
por um terceiro torna-se uma interrogação de si, uma autorreflexão sobre o que
é ser aquilo que se está sendo acusado de ser e sobre a qual não se tem consci-
ência de estar sendo. Dessa maneira, como se verá, é a partir dos processos de
sujeição e autorreflexão que uma criança torna-se uma criança-viada.

Teoria da sujeição em Butler

Para Butler, “‘sujeição’ significa tanto o processo de se tornar subordi-


nado pelo poder quanto o processo de se tornar um sujeito” (2017, p.4). Nessa
lógica, nós dependemos do poder para existir. Eu, por exemplo, para minis-
trar aulas, dependi do poder para me transformar em um docente. O Estado
precisou legitimar e regular a minha profissão antes mesmo da minha entrada
na universidade. Assim, esse poder surge de diversas formas mas, no campo
institucional, ele nos diz, no caso exemplificado, que é preciso ter um diploma
de licenciatura para ministrar aulas. Se a condição é ter um diploma para minis-
trar aula em uma instituição de ensino, dependemos, obrigatoriamente, de nos
sujeitarmos a todos os procedimentos impostos pelo poder para que a nossa
existência, a de ser professora ou professor, possa ser legitimada, socialmente
aceita e parte da nossa formação enquanto sujeitos.
Butler (2017) argumenta que estamos acostumados a pensar o poder
apenas como uma força que nos enfraquece, que interiorizamos e aceitamos. | 191
“O que essa descrição não diz, no entanto, é que ‘nós’ que aceitamos tais ter-
mos somos fundamentalmente dependentes deles para ‘nossa’ existência”
(BUTLER, 2017, p.4).
Ainda segundo Butler (2017, p.7), “o sujeito é formado por uma vontade
que se volta sobre si e assume uma forma reflexiva, então o sujeito é a modali-
dade de poder que se volta sobre si; o sujeito é o efeito do poder em recuo”. O
que quer dizer que, para que nós nos estabeleçamos como sujeitos, dependemos
das condições que produziram a nossa sujeição, pois não podemos ser sujeitos de
outra maneira. O sujeito, desse modo, é o resultado do conflito entre o poder que
nos sujeita e a nossa vontade, autorreflexiva, de ir para além do poder.
A criança, por exemplo, que deseja, fundamentalmente, de maneira au-
torreflexiva, não estudar mais, que perdeu completamente a vontade de à es-
cola por conta do bullying sofrido, não pode simplesmente não ir. Para ser um
sujeito criança, ela precisa estudar, visto que a Educação Básica é obrigatória
de forma constitucional. Nesse caso, se os familiares não exercem o poder
sobre ela, obrigando-a na continuação de seus estudos e, consequentemente,
seu processo de formação escolar caberá ao Estado na função de vigilância
da ordem. A criança, a partir dos 5 anos de idade que não está na escola não
existiria enquanto sujeito.
A criança obedece a seus familiares e vai à escola, pois ela “prefer[e]
existir na subordinação do que não existir” (Butler, 2017, p.8). É lógico que
ela pode ir à escola e, ainda assim, contestar o poder ao fingir que atravessou
o portão e depois ir para outro lugar; entrar na escola, mas pular o muro na
sequência. Entrar na sala de aula, mas fazer questão de mostrar para a turma
que está ali obrigada. Inúmeros são os exemplos que mostram que a crian-
ça submetida ao poder também estaria criando a sua própria existência. Em
outras palavras, ela estaria também no processo de autorreflexão sobre sua
existência na busca por sua liberdade. Muitas crianças aprendem a tolerar o
bullying, por exemplo, por saberem que não há como fugir daquela situação; a
única maneira é passar logo de ano e almejar um futuro melhor para si, dese-
jando que o tempo acabe logo com aquele sofrimento.
Essa subordinação e formação simultânea do sujeito, para Butler, assu-
mem “um valor psicanalítico específico quando consideramos que nenhum su-
jeito surge sem um apego apaixonado àqueles de quem ele depende funda-
mentalmente (mesmo que essa paixão seja ‘negativa’ no sentido psicanalítico)”
(BUTLER, 2017, p. 8). Assim, a criança inicialmente aprende que precisa conquis-
tar aqueles que têm o poder. Seja o leite materno considerado o primeiro poder.
A dependência torna a criança vulnerável à subordinação e à exploração,
dirá Butler (2017). O lado negativo disso é pensar que essa formação primária,
que a leva a desejar ser, esse desejo de sobrevivência, faz com que a criança se
submeta a situações horríveis.
É muito comum ver meninos e meninas sendo humilhadas e humilhados
por seus colegas e familiares e que não conseguem se desvincular desses gru-
pos. O apego apaixonado coloca o sujeito em uma situação de subordinação, | 192
“como condição do vir a ser do sujeito, a subordinação implica uma submissão
obrigatória” (BUTLER, 2017, p.8). Em outras palavras, a necessidade de ser acei-
to parte também da necessidade de existir enquanto sujeito.
Nesse sentido, pode-se pensar que muitas crianças, ao sofrerem bullying
pelo modo como os seus corpos andam e se comunicam, por exemplo, passam a
mudar seu comportamento, pois se elas continuarem a ser como são, deixariam
de existir enquanto sujeito para aquele grupo.
A atriz Josie Tohah, na época com 16 anos, ao receber um prêmio pelo
seu trabalho com a comunidade LGBT da Human Rights Campaign fez um de-
poimento que exemplifica essa questão:

Você é menino ou menina?”, um menino me perguntou no


recreio. Eu fiquei lá, sentindo que precisava me sentir ofen-
dido. Respondi, um pouco confuso: “- um menino”. Minha
vida toda desafiei a ideia de gênero. E depois de ser ques-
tionado no recreio comecei a me questionar a mim mesmo.
De que gênero eu sou? Nunca pensei duas vezes antes de
qualquer jogo ou vestir qualquer camiseta. Eu só fui eu
mesmo. Mas mesmo assim, comecei a crescer e, consequen-
temente, as crianças começaram a tirar sarro de mim. Lem-
bro de passar horas chorando antes de dormir. Perguntan-
do para minha mãe porque eu não podia usar essa camiseta
rosa para a escola. A resposta dela foi: “Não quero que
você seja machucado”. Todos nós enfrentamos rejeições
em nossas vidas. Rejeição por identidade de gênero, pela
orientação sexual, pela roupa que você quer usar na esco-
la, alguém, em algum lugar vai te rejeitar. Sabe, parece-me
estranho quando eu falo, mas quanto mais essas pessoas
me forçaram a esconder meu verdadeiro eu, mais isso me
permitiu me explorar, que em troca, me fez ser mais eu[2].

Como é possível observar no relato de Josie Tohan, é no momento do


bullying, principalmente na escola, que o sujeito descobre que há algo de erra-
do consigo. Ele percebe que é uma criança-viada, sem ao menos saber o que sig-
nifica ser viado. Descobre que, aparentemente, existem coisas que os homens
não podem fazer com outros homens, como se amarem. É como se a criança
recebesse um manual do comportamento humano tardiamente, uma vez que
parece que todas as outras crianças já sabem aquilo que não se pode ser. Se a
criança caminha ou fala de forma dita afeminada, por exemplo, ela já é conside-
rada uma criança-viada por aquelas outras crianças e/ou familiares. Seria então
a criança-viada sempre uma identificação de terceiros, não a performance de si?
O conceito de racialização já passou, ou ainda passa, pelo mesmo pro-
cesso. São os outros (que não são negros) que identificam a pessoa preta como
um defeito perante à norma. Djamila Ribeiro, na escola, passou a ser apontada
como um defeito por ser diferente, não branca, “fui forçada a entender o que
era racismo e a querer me adaptar para passar despercebida” (RIBEIRO, 2019, p.
12). Aqui também se trata de uma identificação de terceiros: ela não sabia o que
era ser preta e como ser preta era um problema para sociedade.
Alguém nasce preta ou preto? Não. Pela perspectiva da teoria queer, não | 193
há nada que seja fundamentalmente biológico do sujeito. O conceito de raça
foi criado para manter um regime de exploração dos povos não-brancos dian-
te da suposta superioridade das pessoas brancas. Hoje, sabemos que afirmar a
identidade preta é super importante para as crianças perceberem que não há
nada de errado com elas. Afirmar as suas raízes. Não há aqui a negação da iden-
tidade preta no mundo contemporâneo, mas sim a percepção que ela não surge
da natureza. A raça também é uma ficção nesse processo de construção social,
em que os povos originários não-brancos foram classificados, pelos regimes de
poder da época, como inferiores e não humanos, para serem explorados.
Desse modo, qualquer identidade será uma classificação de terceiros por
ela não existir na ordem da natureza. Assim, o sujeito preto irá performar um
gênero/sexo levando em consideração também os processos de sujeição da sua
raça. A reflexão sobre si e a destituição do poder (“desempoderamento”) fren-
te ao nosso corpo é um processo lento. A aceitação de si e do outro ocorre
mediante vários fatores e só poderá ocorrer se a família, a escola e colegas da
criança tiverem uma visão diferente da imposta pela cisheteronormatividade e
do padrão de beleza branco colonizador.
Uma vez que a criança passa a ser chamada por outras de criança-viada,
ou adjetivos similares, como viadinho, bichinha, de maneira constante, por não
corresponder ao padrão de masculinidade que se espera de um sujeito que foi
registrado no cartório como menino, os atos performativos de terceiros criam
o sujeito criança-viada. Por mais que ela não queira ser aquilo que ela aparenta
ser, que lute contra, a classificação já estará dada. O que não quer dizer que
essa criança é gay ou virá a ser gay no futuro, pois a sexualidade também é um
processo de construção.
Desse modo, aquilo entendido hoje como criança-viada se constitui em
uma espécie de deficiência, uma falta de algo de que se necessita, que é locali-
zado por outras crianças e adultos no seio familiar e na escola. São as práticas
corporais normativas (gestos, modos, atitudes coporais) que criam a noção de
criança-viada.
A escola, tal como é constituída hoje, não está preparada para entender
o corpo da criança viada, da que é ofendida de viadinho, bichinha, mulherzinha,
uma vez que ela parte do pressuposto da naturalidade dos corpos e da criança
universal, que será abordada a seguir. Assim, no momento em que as outras
crianças e os adultos nomeiam e exercem o poder coercitivo, essas formas de
poder atravessam o corpo da criança, constituindo, assim, para aquele corpo, a
realidade criança-viada.
Ser criança-viada, a partir de Judith Butler (2017), é um processo de su-
jeição (submeter e tornar-se sujeito) e não há uma idade certa em que isso irá
ocorrer ou quando pode ocorrer. O problema é que não há a positivação das ca-
racterísticas que constituem o corpo da criança-viada na infância. Pelo contrá-
rio, ser criança-viada torna-se uma característica negativa que precisa ser corri-
gida. A escola tradicional não exerce práticas de reconhecimento da diferença.
Isto porque, como diz Preciado (2019), sobre a sociedade conservadora francesa, | 194
ela tenta nos enganar ao dizer que está “protegendo o poder de educar seus
filhos segundo a norma sexual e de gênero, como supostos heterossexuais, con-
cedendo-se o direito de discriminar todas as formas de dissidência ou desvio”
(2019, p. 66). Essa realidade francesa se aplica da mesma forma no Brasil.

Sexualidade e sexo

Considerar uma criança afeminada é sexualizá-la?


Os discursos universalistas afirmam que criança é criança, ponto final. E
mais, que elas são assexuadas. A própria ideia de universalidade da criança já é
um erro por si só, pois não considera as diferenças que existem entre elas. Essa
é, inclusive, uma crítica que se faz à teoria de Piaget, uma vez que ele a desen-
volveu tendo a criança branca e europeia como modelo. Ao apontar que todas
as crianças se desenvolvem mediante determinados estágios específicos, as que
não conseguem alçar começam a ser patologizadas.
Na medida em que uma criança reconhece uma outra como criança viada
e passa a tratá-la de forma diferente, por ela se mostrar afeminada, seja via
bullying ou qualquer outro tipo de exclusão, evidencia-se, para o sujeito que
recebe a informação, que há algo naquele corpo que incomoda e que está fu-
gindo de algum tipo de norma. Ao não reconhecer as especificidades daquele
corpo e suas diferentes formas de se mostrar visível ao mundo, caímos no dis-
curso da universalização. Quando não sabemos lidar com a diferença, preferi-
mos acreditar que todas as crianças são iguais. Crianças viadas existem. Crian-
ças afeminadas existem. Dizer que uma criança é afeminada não é o mesmo que
sexualizá-la, é reconhecer que ela performa a si mesmo, de forma muitas vezes
inconsciente, fora do padrão de masculinidade imposto pela heteronormativi-
dade. Trata-se de uma forma inconsciente, pois ninguém quer ser diferente e
ser excluído, maltratado, violentado fisicamente etc.
Normalmente, os discursos universalistas, ao apagarem a sexualidade da
criança, buscam construir a ideia de que criança deve estudar e brincar e não se
preocupar com a sua própria identidade sexual, mas isso é impossível. As crian-
ças estão constantemente tendo que lidar com histórias que envolvem amor,
paixão, e amizades. No entanto, essas histórias são contadas, em sua maioria,
apenas pela perspectiva cisheteronormativa.
Falar que uma criança não tem sexualidade é arbitrário. O que não quer
dizer que devemos sexualizá-la. São coisas distintas. Pensar a formação da
criança, em termos de sexualidade, é desconstruir, por exemplo, a ideia de que
uma criança possa ver um beijo hétero na televisão, mas não possa ver um beijo
gay. Um príncipe pode salvar uma princesa do castelo, mas não pode salvar ou-
tro príncipe. Achar que a criança não tem sexualidade é o mesmo que dizer que
ela não tem desejos próprios. Sabe-se que crianças demonstram seus desejos
desde a mais tenra idade.
Em relação aos brinquedos, por exemplo, vemos as crianças construindo | 195
relações amorosas desde muito cedo a partir dos objetos que possuem gêneros
específicos. É claro que desejamos desconstruir a ideia de que existem determi-
nados brinquedos que são para meninas e outros para meninos. No entanto, no
meu caso, assim como para muitas crianças-viadas, os objetos ditos femininos
nos ajudaram a performar o nosso eu. Muitos de nós tínhamos pavor de jogar
futebol. Nós queríamos ficar brincando com as meninas de bonecas. Nesse sen-
tido, o objeto não deve ter gênero quando pensado em uma perspectiva cishe-
teronormativa. Contudo, quando pensamos em uma perspectiva gay ou trans,
por exemplo, montar, usar uma roupa feminina, dançar balé, tudo que é do uni-
verso dito feminino nos ajuda a performar o nosso sujeito e a ser feliz naqueles
atos performativos.

Considerações finais

Esse texto não tem por objetivo ser nenhum artigo científico sobre a se-
xualidade da criança. Isso exigiria um outro tipo de pesquisa. Trata-se de um ar-
tigo de opinião que transita entre um conceito que está no centro da discussão
recente e que atravessa a minha experiência pessoal, de sujeito que se identifi-
ca como tendo sido uma criança-viada.
Ser criança-viada não é um determinismo. Ela pode recusar esse demar-
cador a qualquer instante. No entanto, só é possível recusar uma vez que esse
determinismo já se instaurou, assim como acontece com o sistema sexo/gênero.
A condição de reação ao poder só surge quando o poder já nos demarcou. A par-
tir dessa instauração, dessa marca, dessa cicatriz, as crianças vão criar formas
de agir, interagir e negociar, tanto com a norma cisheteronormativa, quanto
com o marcador criança-viada. Cada vez mais vemos crianças e familiares con-
seguindo resistir às normas de gênero e propondo, ou exigindo, outros modos de
formação dos sujeitos nas escolas brasileiras.

Notas

1.
Termo esse que contemplaria a criança-viada, a criança-trans, a criança-travesti, isto é, todos os
corpos dissidentes à norma cisheteronormativo.

2.
Trechos do discurso disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0ZRKLHQ7YRU.
Acesso 22 maio. 2021. [Título do vídeo: Josie Totah Receives HRC Visibility Award].

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Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da


identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder. Teorias da sujeição. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de


hoje. São Paulo: Veneta, 2019.

PRECIADO, Paulo B. Um apartamento em Urano: crônicas da traves-


sia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2019.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Compa-


nhia das Letras, 2019, p.18.)

Tiago Cruvinel é professor de Artes do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG).


É mestre e doutor em Artes pela UnB. Possui dois pós-doutorados (EBA-UFMG,
2019 e ECA-USP, 2020). Ganhador do prêmio de Melhor Tese na área de Linguís-
tica, Letras e Artes - Prêmio UnB Tese do ano de 2017. Atualmente é professor
colaborador do Programa de Pós-Graduação em Artes - EBA-UFMG, do Mestra-
do Profissional em Artes (ProfArtes - UFMG) e realiza seu terceiro pós-douto-
rado no CEFET-MG.
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Conselho editorial:

Adriana Bicalho
Camila Rodrigues Moreira da Cruz
Claudia Cristina Maia
Edson José Carpintero Rezende
Giselle Safar
Marcelina das Graças de Almeida
Maria do Carmo Fernandes Nunes Rolla
Sebastião Brandão Miguel
Soraya Aparecida Alves Coppola
Wânia Maria Araújo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Corpos dissidentes : arte, literatura e


pensamento queer [livro eletrônico] /
Luiz Lopes, organizador.
Belo Horizonte : Atafona —
Casa Editorial dos Novos Autores, 2021.
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Vários autores.
Bibliografia
ISBN 978-65-86805-09-3

1. Arte 2. Corpo — Linguagem 3. Ensaios


brasileiros — Coletâneas 4. Literatura 5.
Pensamento 6. Teoria Queer I. Lopes, Luiz.

21-80890 CDD-080

Índices para catálogo sistemático:


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© Atafona, 2021

Organizador
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Editor
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Coeditora
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Projeto gráfico
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Capa e ilustração
Thiago Bonifácio
Revisão
André Meyerewicz
Revisão final
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Divulgação
Lucas M. R. Faria
Vinícius Gonzaga

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em


vigor no Brasil desde 1° de janeiro de 2009.

Este livro foi composto com as fontes Elgraine e Cyntho Pro, para a Atafona, em
dezembro de 2021.

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