Livro Corpos Dissidentes
Livro Corpos Dissidentes
Livro Corpos Dissidentes
Luiz Lopes
Durante o segundo semestre de 2020, ofertei uma disciplina
no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do
CEFET-MG. Mesmo diante de tantos desafios que o isolamento so-
cial impunha a todos, conseguimos que as tardes de sextas fossem
um pouco mais esperançosas ao lermos e discutirmos textos teóricos
que nos faziam pensar os corpos dissidentes, abjetos e como esses
corpos continuam resistindo às normas. Além dos textos teóricos, a
disciplina foi uma oportunidade de vivermos e entrarmos em conta-
to com obras literárias, fotografias, filmes e outras formas artísticas,
que de algum modo encenam também a sua maneira um pensamento
queer. Este livro é o resultado dos trabalhos finais desta disciplina.
Alessandra Hypolita Valle Silva Lopes abre o livro com o arti-
go “A pele em que habitam os monstros transgêneros” no qual ana-
lisa O silêncio dos inocentes. Silva Lopes parte da questão da mons-
truosidade para pensar esses corpos que são vistos como abjetos,
dissidentes ou que muitas vezes sequer são reconhecidos, vistos,
pensados como importantes.
No artigo “A resistência, o discurso e o engano do eu”, Bruna
Fernandes Barros parte das discussões sobre o relato de si mesmo
para defender que tal operação é um modo de resistência. A autora
parte de uma discussão inicial de alguns linguistas para, em segui-
da, entrar no terreno mais específico da teoria queer, sobretudo,
por meio das contribuições de Judith Butler.
Diogo da Costa Rufatto assina o artigo “Linguagem de gêne-
ro e desafio queer” que também parte da reflexão sobre a lingua-
gem para pensar os desafios e obstáculos do pensamento queer
que se inicia de algum modo pela própria linguagem. Nesse artigo,
o autor se vale de um outro grande pensador do queer, Jack Hal-
berstam e seu famoso livro A arte queer do fracasso.
Outra contribuição é o artigo de Fábio Garcia Ribeiro, “Bixa
Travesty: Linn da Quebrada, as insurgências do corpo e reflexões
sobre a identidade de gênero”. Neste artigo, o autor discute as dis-
sidências dos corpos negros por meio da arte de Linn da Quebrada.
Além das dissidências, Ribeiro demonstra como a arte de Linn está
associada a uma insurgência do corpo, a uma fissura que toda arte
e pensamento queer produz dentro das normas.
Na sequência, com “Cu: o centro do mundo”, Fernando Antô-
nio Siqueira Ferreira efetua uma leitura da poesia de Waldo Mota
por meio do aporte teórico de Sáez e Carroscosa e seu Pelo cu: po-
líticas anais. A poesia de Mota passa a ser vista não apenas como
uma escrita radical e erótica, mas como uma forma de afirmação do
ser penetrável, da vadiagem e de uma ética “bixa”.
Gustavo Henrique Sousa Assis escreve um artigo, intitulado
“Tudo sobre minha mãe e o queer: algumas notas”. Nesse artigo,
o autor se debruça sobre um dos filmes mais importantes do acla-
mado diretor Pedro Almodóvar. Assis explica como o pensamen-
to queer surge se contrapondo, em alguma medida, ao movimento
homossexual nos anos 1960. Depois desse primeiro movimento de
contextualização, o autor faz uma leitura do filme Tudo sobre mi-
nha mãe associando-o às formas de pensamento do queer.
Já em “Torto Arado: resistência negra e corpo feminino”, Jo-
arle Magalhães Soares efetua uma leitura crítica de um dos roman-
ces mais aclamados do contexto contemporâneo da literatura bra-
sileira. O feminino e a discussão do racismo ganham lugar no texto
desse autor que demonstra como as normas atravessam a sociedade
brasileira para além das questões de gênero.
Em “Sexo e política em tempos de impeachment: as ques-
tões queer em trechos do documentário Excelentíssimos”, Juliano
Vasconcelos Magalhaes Tavares empreende uma leitura de um do-
cumentário importante na cena brasileira, focando seus esforços
interpretativos em momentos nos quais as questões de gênero e
sexualidade dissidentes aparecem como pontos nevrálgicos para o
entendimento da política brasileira contemporânea.
Luan dos Santos Silva em “Escapar de todas as épocas: o olhar
para a vulnerabilidade em Michel Laub” faz um giro importante ao
ler um dos romances de Laub por meio da reflexão sobre a Aids e a
perspectiva da vulnerabilidade. Pensar o queer é, de alguma manei-
ra, se voltar também para a história do vírus do Hiv e de como essa
doença marca de modo incontornável a comunidade Lgbtqia+.
Lucas Diego Gonçalves da Costa, autor de “Um conto de ne-
nhuma cidade: pôneis, cores e violência na comunidade desterrito-
rializada” produz um texto que nos faz pensar no tema da violên-
cia e como este se relaciona às práticas e ao pensamento queer.
Aqui Butler passa a dialogar com Deleuze, sobretudo, como modo
de operar a partir de uma crítica profunda às identidades fixas.
Em “As dobradiças do tempo”, Lucia Santiago, volta ao texto
clássico de Virginia Woolf, Orlando. Por meio de um diálogo com
Guacira Louro e Judith Butler, Santiago demonstra como uma das
linhas de força do romance dos anos 1920 é efetuar aquilo que o
queer tanto deseja ainda nos dias de hoje, a saber, efetuar um en-
frentamento aos binarismos e às normas que querem nos fazer
acreditar numa identidade fechada e definitiva. Além d´“As dobra-
diças do tempo”, Lucia Santiago assina o artigo visual “Inventário
florístico para Orlando” no qual, por meio de imagens, pensa de
outro modo o texto e as linhas de força de Orlando.
Luiz Lopes responde por outro artigo “Noll: literatura, cor-
po e pensamento queer”, no qual efetua uma leitura do romance
Acenos e afagos, de João Gilberto Noll. Partindo do diálogo entre
Noll e Foucault e, posteriormente, trazendo algumas reflexões de
Butler, Lopes mostra como esse romance do escritor brasileiro traz
para cena um corpo dissidente e como uma de suas linhas de força
é o pensamento queer.
O artigo assinado por Marcílio Miguel Oliveira é “Tomboy:
a construção de um corpo queer”. Oliveira efetua uma leitura do
filme por meio da reflexão em torno do corpo queer, se valendo
de um suporte teórico da teoria queer bem como de algumas refle-
xões que partem de Nietzsche e se acercam da filosofia da diferen-
ça para pensar os corpos abjetos.
Mariana Ferreira V. da Silva escreve “Ressignificação cine-
matográfica do fracasso em corpos periféricos: uma análise do
filme Temporada de André Novais Oliveira”. Silva volta à temá-
tica do queer associado ao fracasso para pensar um filme da cena
contemporânea e periférica no Brasil, tendo como um dos focos a
constatação de uma crise instalada no cinema a partir do contexto
político atual, mas sem se esquecer dos movimentos também de
resistência.
“Usando a máscara: Yukio Mishima e a arte queer do fracas-
so”, de Miguel Fernandes Pereira é mais um artigo que elege como
suporte teórico as associações entre queer e fracasso, queer e o
antissocial, por vezes perigosas. Nesse artigo, Pereira empreende
uma leitura do clássico romance de Mishima, mas agora em diálogo
com a noção de fracasso, para tentar evidenciar uma certa tensão
entre a vida do artista e o texto, que por vezes, estariam em polos
diametralmente opostos.
Fechando as contribuições, Tiago Cruvinel assina o artigo
“Ensaio sobre a sexualidade da criança-viada” no qual faz uma con-
textualização do termo criança-viada no Brasil para, na sequência,
por meio de Butler e Preciado, efetuar uma crítica de como os co-
pos das crianças dissidentes são capturados por um discurso hete-
ronormativo e LGBTfóbico, um discurso mortífero que não defende
a infância, mas a mortifica.
Ao lançar um novo olhar sobre cada um desses textos, sinto
que aquelas tardes de discussões renderam muitos frutos. Foram
bons encontros que permitiram que cada pessoa pudesse pensar
contra e para além das normas e sobre o que mortifica nossos cor-
pos. Esses textos que aqui se reúnem servem agora como um teste-
munho do esforço intelectual de todas essas pessoas, que a partir
de lugares enunciativos muitos diferentes, se abriram para a dife-
rença, para pensar a diferença e para afirmar o pensamento queer
como um dos muitos modos de dizer sim àquilo que nos faz outros,
nossa esperança e nossa estranheza. Que ninguém as tire de nós.
Boa leitura!
Sumário
A pele em que habitam os
monstros transgêneros / 13
A resistência, o discurso
e o engano do eu / 28
Linguagem de gênero e
desafio queer / 38
Um conto de nenhuma
cidade: pôneis, cores e
violência na comunidade
desterritorializada / 115
Ressignificação
cinematográfica do
fracasso em corpos
periféricos: uma análise do
filme Temporada de André
Novais Oliveira / 164
Usando a máscara:
Yukio Mishima e a arte
queer do fracasso / 175
Segundo Jacques Derrida (1974, p. 143), a diferença gera aquilo que ela
proíbe “tornando possível a própria coisa que ela torna impossível”. Nesse
sentido, o monstro transgênero é um estereótipo recorrente comumente vis-
to em dramas e suspenses psicológicos, pois monstros trazem como protago-
nistas, pessoas reais que podem viver ao lado, os assassinos – monstros reais.
Já para Cohen “o monstro é a diferença feita carne, um constructo da alteri-
dade que habita entre nós.” (2000, p.23-60).
Gilmore (2006) afirma que “os monstros incorporam tudo o que é peri-
goso e horrível na imaginação humana”[5]. O estereótipo do monstro transgê-
nero nasceu com a sociedade dominante homofóbica e começou a ser difundi-
do nos anos 50, resultante da publicidade em torno de Ed Gein[6], que usava | 16
os corpos de suas vítimas e fazia roupas com a pele arrancada de seus corpos.
Há rumores nunca confirmados de que ele era transexual. A sociedade temia
que a homossexualidade existisse em todos os lugares e representasse uma
ameaça. Tal fato é aparente na representação midiática de Ed Gein como efe-
minado, um travesti ou transexual. A partir daí, Ed Gein foi ainda transforma-
do em personagem para a versão cinematográfica de Alfred Hitchcock, com o
aclamado filme Psycho[7]. Outros escritores, como Thomas Harris, mineraram
ainda mais a história de Ed Gein para sugerirem uma ligação entre o comporta-
mento psicótico e o sofrimento de gênero. Essa ligação não se baseia em fatos
empíricos ou mesmo numa tradução fiel da vida de Gein e seus delitos, mas em
preconceitos e doutrinação cultural.
A associação cultural, cercada de homofobia e transfobia, persiste, pois
a monstruosidade transgênera é uma ameaça à manutenção do patriarcado,
da reprodução heterossexual e da família nuclear - produzida através da ri-
gorosa regulamentação de gênero e sexualidade. A aderência ao gênero e à
normalidade sexual é mantida através de punições que podem variar desde
uma leve repressão até violência terrorista e assassinato. Visto através do
prisma do paradigma foucaultiano, esses atos de disciplinamento e punição
são geralmente marcados pelas diretrizes de poder, através do consentimento
implícito das massas. A monstruosidade transgênera é também um fenômeno
de repulsa da sociedade, de acordo com o pensamento de Julia Kristeva (1985,
p. 116): “O mal deslocado para o sujeito, não deixará de atormentá-lo a partir
de dentro, não mais como uma substância poluente ou contaminante, mas
como o que não pode ser erradicado”[8]. Podemos assim, pensar na abjeção
como um meio de separar o humano do não-humano, perturbando a identida-
de do próprio sujeito, não respeitando os limites e as regras. A ameaça do real
é o que nos atrai para o signo do monstruoso e acaba nos devorando, pois ela
é lado disforme, aquele sem máscaras ou amarras do corpo social.
Butler, em toda sua construção teórica, desvela seu interesse pelos cor-
pos que escapam à matriz heterossexual e que, conseguinte, ficam fora da
agnição de humano e constituem, então, o arbítrio do abjeto:
Buffalo Bill nunca obteve atenção de sua família, nunca teve amigos,
e desde criança ele pensava que a mãe não o amava nem se preocupava com
ele, somente porque ele era um menino. Ele sofreu violência por parte de
seu pai e sua mãe não deu atenção a ele. A mãe era modelo, mas perdeu uma
competição, o que a fez afundar em depressão e consumir drogas e álcool. Ela
esperava uma menina, para que seu bebê pudesse ser modelo como ela. Por
conta de toda essa problemática, ela rejeita Buffalo. Ele cresce e personifi-
ca um personagem excessivamente maquiado, vestido com roupas femininas,
que sente desconforto com sua imagem:
Podemos inferir que o discurso do Dr. Hannibal Lecter sobre Buffalo Bill,
baseia-se na percepção de que o a homossexualidade é uma doença e de que
“todos os gays são pervertidos” (BOURDIEU, 2007, p. 143). A ambivalência
afetiva é marcada na narrativa e quando Clarice é enviada para entrevistá-lo,
percebemos a repulsa e a atração em um diálogo de ambos, onde o psiquiatra
afirma:
Buffalo Bill é um sujeito fragmentado, solitário, sem voz ativa, mas se-
gundo o próprio Dr. Hanibbal Lecter, ele não nasceu um monstro. Sua história | 21
de vida, sua identidade e expressão de gênero o levaram a um comportamen-
to popularmente denominado de psicopatia[18]. Embora a referência de Gein
citada anteriormente tenha sido importante para a criação do estereótipo do
monstro transgênero, essa não seria suficiente para perpetuar e sustentar um
mito cultural tão colossal. O corpo monstruoso não é representável, ele faz
parte de uma multidão de diferenças, que são apontadas como “anormais”:
Notas
1.
A sigla LGBTQIA+, com base nas definições da Aliança Nacional LGBTIA, as letras LGB, referem-
-se à orientação sexual da pessoa, ou seja, as formas de se relacionar afetiva e/ou sexualmente
com outras pessoas, e TQIA+, diz respeito a identidade de gênero, ou seja, como a pessoa se
identifica, e vai além do gênero feminino ou masculino.
2.
Frankenstein ou o Prometeu Moderno é um romance de terror gótico com inspirações do mo-
vimento romântico, de autoria de Mary Shelley, escritora britânica nascida em Londres. É con-
siderada a primeira obra de ficção científica da história. O romance relata a história de Victor
Frankenstein, um estudante de ciências naturais que constrói um monstro em seu laboratório.
3.
Foucault utilizaria o termo “panóptico” em sua obra Vigiar e Punir (1975), para tratar da socie-
dade disciplinar. Desde então e até o início do século XXI, novas tecnologias de comunicação
e informação permitiriam novas formas de vigilância, por vezes dissimuladas, a ponto de não
serem facilmente percebidas pelos indivíduos, ou naturalizadas.
4.
A monster may also be that which eludes gender definition. In this sense, Frankenstein would
be a more radical version of that considerable body of Romantic and “Decadent” literature --
| 23
such as Théophile Gautier’s Mademoiselle de Maupin, Henri de Latouche’s Fragoletta, Balzac’s
Sarrasine, Rachilde’s Monsieur Vénus -- that uses crossdressing and hermaphroditism to create
situations of sexual ambiguity that call into question socially defined gender roles and trans-
gress the law of castration that defines sexual difference (Tradução minha).
5.
“The mind needs monsters. Monsters embody all that is dangerous and horrible in the human
imagination” (Tradução minha).
6.
Ed Gein foi um assassino em série e ladrão de lápides americano. Seus crimes, cometidos em
sua cidade natal de Plainfield, Wisconsin, ganharam muita notoriedade após autoridades des-
cobrirem que Gein exumou corpos de suas lápides e fabricou troféus e lembranças a partir dos
ossos e pele.
7.
Psycho é um thriller de terror psicológico americano de 1960, produzido e dirigido por Alfred
Hitchcock. O roteiro, escrito por Joseph Stefano, foi baseado no romance homônimo, publicado
em 1959 por Robert Bloch. Foi indicado a quatro Oscars.
8.
For evil, thus displaced into the subject, will not cease tormenting him from within, no longer as
a polluting or defiling substance, but as the ineradicable (tradução minha).
9.
O nome slasher foi criado porque o princípio básico do filme é um assassino em série com uma
máscara ou fantasia que vai coletando vítimas, até ser revelada sua identidade misteriosa pelo
protagonista que acaba matando o vilão. Embora o termo seja por vezes utilizado coloquialmente
como um termo genérico, ele é quase uma regra quando se trata de filmes de terror psicológico.
10.
Monsters emerge in science, medicine, criminology, and psychology as predetermined by genes,
chromosomes, congenital destiny, and other reasons authenticated by a fantasy of phenome-
na that precedes the discourses that describe them. This has seen real bodies deemed monsters
and addressed as those who must be either cured or ostracized, those who deserve sympathy or
extraction from the “healthy” social corpus. For historical studies, as with all minoritarians, this
actual system of teratology must be remembered; however, a queer ethics shifts science’s claim
to truth in monsters as something that needs to be studied and described to abstract monsters,
who demand imagination and renegotiation of self precisely because they cannot be studied or
known (Tradução minha).
11.
Transgender Europe (TGEU) é uma rede de diferentes organizações que trabalham para combater
a discriminação contra pessoas trans e apoiar os seus direitos. Foi fundada em 2005 em Viena du-
rante o 1º Conselho Europeu de Transgêneros e atualmente é uma ONG atuante na causa.
12.
Disponível em <<https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/01/09/brasil-lide-
ra-ranking-de-mortes-de-travestis-e-trans-um-e-morto-a-cada-48h.htm >> Acesso em 08
de maio de 2021.
13.
Disponível em <<https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/01/09/brasil-lide-
ra-ranking-de-mortes-de-travestis-e-trans-um-e-morto-a-cada-48h.htm >> Acesso em 08
de maio de 2021.
14.
O título do livro The Silence of the Lambs, foi traduzido para a edição brasileira como O Silêncio
dos Inocentes, trocando a palavra do original Lambs (Cordeiros).
| 24
15.
Jarne Gumb é o verdadeiro nome de Buffalo Bill, homem branco, 34 anos, 1,83m, 95 quilos, cabelos
castanhos, olhos azuis.
16.
Transformismo, ou a forma mais usada hoje, do inglês: cross-dressing é um termo que se refere
ao ato de alguém possuir uma expressão de género (roupas ou acessórios) associados ao género
oposto, por qualquer uma de muitas razões, desde vivenciar uma faceta feminina (no caso dos
homens) ou masculina (no caso das mulheres), motivos profissionais, para obter gratificação se-
xual, ou outras. Quem desenvolve essa prática é chamado de Transformista ou Crossdresser, ou
resumidamente conhecidos como Cd.
17.
Grifos meus.
18.
A psicopatia é um conceito psicológico de significado controverso. No entanto, a dificuldade em
especificá-lo e delimitá-lo não impediu que a psicopatia se estabelecesse como um rótulo útil para
designar certos quadros comportamentais e afetivos, tanto nas áreas médica e psicológica, quanto
no âmbito jurídico e até mesmo entre o público leigo (Hare & Neumann, 2008).
19.
The nineteenth-century monster is marked by racial or species violation while Buffalo Bill seems
to be all gender. If we measure one skin job against the other, we can read transitions between
various signifying systems of identity. The switch involving these signifying systems of identity
(Tradução minha).
20.
Termo criado por Carl Jung em 1912 e depois usado por Freud e outros psicanalistas. Imago de-
signa uma imagem inconsciente de objeto, realizada e construída em idades precoces e que fica
investida pulsionalmente.
21.
Grifos meus.
Referências
DEMME,Jonathan_disponível_em:<<https://www.telecineplay.com.br/fil-
me/O_Silencio_Dos_Inocentes_9439>> Acesso: 03 de maio de 2020.
GILMORE, David. Monsters: evil beings, mythical beasts, and all manner of ima-
ginary terror. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2003.
HALBERSTAM, Judith. Skin Shows: Gothic horror and the technology of mons-
ters. Durham, NC: Duke University Press, 1995.
HARRIS, Thomas. O silêncio dos inocentes. Thomas Harris; tradução 12ª ed. de
Antônio Gonçalves Penna. 12ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
LOURO, Guacira Lopes. Cinema e sexualidade. Rio Grande do Sul, Revista Educa-
ção & Realidade, 2008.
PRECIADO, Beatriz. Multidões Queer: notas para uma política dos anormais”
Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 11-20. disponível em:<< https://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000100002 >>.
Acesso em 27 de abril de 2021.
| 26
SCHECHTER, Harold. Deviant: True Story of Ed Gein, the Original Psycho (En-
glish Edition) eBook Kindle, Harold Schechter (2010) disponível em: << https://
amzn.to/31NBJkF>>. Acesso em 27 de abril de 2021.
| 27
Bruna
Fernandes
Barros
A resistência, o
discurso e o
engano do eu
Neste ensaio, busco de-
monstrar a relação entre o
desenvolvimento do eu e do
outro/mundo, e como o re-
conhecimento da imperma-
nência de si por meio do – ou
da impossibilidade do –
relato de si mesmo pode ser associado a uma forma de resistência, que nomeio
como resistência discursiva. Considero relevante um estudo considerando as
limitações do fechamento da identidade, que podem ser encontradas em inú-
meros grandes autores, como Judith Butler (2015), da qual trago o conceito
de relato de si. No entanto, reconhecer as limitações identitárias não é neces-
sariamente rogar por sua eliminação, da mesma forma que compreender as li-
mitações da linguagem não significa buscar sua abolição. Entender que o eu
escapa a qualquer definição é uma forma de trabalhar com ele, para além dele.
Não buscar definir a si mesmo completamente oferece abertura para si e para
o mundo.
A fim de que esse tema seja aprofundado é fundamental situar o con-
texto atual, um mundo profundamente desigual, dominado por corporações,
não pessoas, onde vidas valem muito pouco e a morte é uma solução aceitável
para a manutenção da ordem e da riqueza. Como apoio desse posicionamento,
os autores Han (2018) e Mbembe (2018). De início, é preciso apresentar o que
considero ser a possibilidade e a consequência de todas as nossas práticas, a
linguagem e o discurso.
Saussure, na sua clássica obra Curso de linguística geral (1975), abordou, en-
tre outros temas, a relatividade da linguagem. Para o autor, “é o ponto de vista
que cria o objeto” (SAUSSURE, 1975, p. 15). Apesar dessa afirmação se apoiar sobre
questões estruturais da língua, podemos também recolocá-la sob uma perspecti-
va discursiva, compreendendo que a prática da linguagem também se apoia sobre
subjetividades, culturas, cenários diversos. Nesta visão, entender que o objeto se
forma pelo observador é também compreender que ele está em constante mu-
dança sem, na verdade, nunca ter sido algo em si mesmo. Visão esta que pode ser
transplantada para as noções do eu. Ao observar a mim mesma, quem sou? Existe
algo que pode ser definido como eu?
De Benveniste (1991) a Bakhtin (2010; 2012), em suas diferentes abordagens,
a relatividade do eu é estudada e teorizada. O primeiro traz a dêixis como amostra
da subjetividade da linguagem. O eu e o ele, por exemplo, são sempre momentâne-
os, apoiam-se no contexto, na situação de comunicação, nos envolvidos no cenário.
Já Bakhtin (2010; 2012) vai além da estrutura linguística abordando o discurso e a
prática da linguagem. O conceito de dialogismo se baseia exatamente na multipli-
cidade enunciativa: quando eu falo, não apenas eu estou narrando, mas também
todos aqueles que me antecederam, que de certa forma falaram minha fala, es-
creveram meu texto juntamente comigo. Eu não sou a origem do que digo, então
como poderia ser a própria origem do eu?
| 29
Onde houver um “eu” que profira ou fale e, dessa forma,
produza um efeito no discurso, há primeiramente um dis-
curso que o precede e o habilita, um discurso que forma na
linguagem a trajetória obrigatória de sua vontade. Assim,
não há nenhum “eu” que permaneça por trás do discurso e
execute seu desejo ou sua vontade por meio do discurso. Ao
contrário, o “eu” apenas vem à existência ao ser chamado,
nomeado ou interpelado, para usar um termo althusseriano,
e essa constituição discursiva é anterior ao “eu”; é a invoca-
ção transitiva do “eu” (BUTLER, 2019, p. 371).
Para Foucault (1979), a resistência, assim como o poder, não possui um único
ponto focal, mas se manifesta em diferentes esferas. Sua força pode possuir in-
tensidades diferentes em locais distintos, mas a resistência não seria uma grande
massa que se concentra e se unifica, estaria presente em todos os pontos onde há
poder.
Discurso é compreendido, nesse ensaio, não apenas como um processo de
nomeação e criação de sentido, mas como um movimento que se manifesta na
significação como prática social. Os saberes perpassam ideias de mundo e no-
ções de verdade, assim são construídas tribos, comunidades e até países. Dentro
de uma ideia em comum se formam as sociedades e individualidades, desde o
conceito mais raso, como definição territorial, até ideologias elaboradas, como
capitalismo ou socialismo. Na prática discursiva são consolidadas as diferentes | 30
faces da humanidade, não se consegue sair do discurso para criá-lo ou recriá-lo,
é dentro dele e por ele que as transformações acontecem, sentidos são prova-
dos e refutados.
Quando abordo o conceito de resistência discursiva, falo exatamente sobre
esse movimento de significação que não simplesmente paira no mundo das ideias,
mas atravessa o cotidiano, a vivência e as ações do sujeito. Resistência discursiva
pode consistir no movimento consciente pelo sentido no cotidiano, buscar ressig-
nificar sua própria existência e daqueles subalternizados, opor-se à dominação de
ideias opressoras, limitadoras, atuar criticamente sobre si e sobre o mundo.
Resistir discursivamente também pode ser lido como um retorno àquilo que
nunca foi, um retorno ao sem nome, sem definição, dentro da linguagem e, ao mes-
mo tempo, extrapolar palavras e significados. Permitir a significação fluida, que
não se fixa, ou seja, permitir que a realidade simplesmente se manifeste sem a res-
tringir a uma visão única pode ser uma grande revolução.
Ao relacionar a riqueza e as possibilidades humanas a um esforço indivi-
dual, a racionalidade neoliberal resguarda em alguma medida, mesmo que tem-
porariamente, suas falhas e contradições e, a partir disso, perdura. A partir da
individualização dos seres não apenas é mantida a exploração, mas a descone-
xão completa da realidade e da necessidade de cooperação coletiva. Dissolve-
| 31
-se então a noção de comunidade, tão relevante para conquistas sociais popu-
lares, e embasa-se um Estado que funciona a favor apenas da manutenção do
poder e concentração de riquezas.
Controlar o sujeito a partir da lógica da liberdade individual é extremamen-
te violento por si só, mas para um poder neoliberal não é o bastante. Tal racio-
nalidade autoriza a vida ao mesmo tempo em que legitima determinadas mortes.
Mbembe (2016) traz o conceito de necropolítica relacionado a esse fenômeno.
Para o autor, a política funciona como “o trabalho de morte” e a soberania se afir-
mariam como “o direito de matar” (MBEMBE, 2016, p. 128). Partindo da noção de
biopoder de Foucault, Mbembe disserta sobre como as criações simbólicas institu-
cionais cooperam na criação de vidas supostamente descartáveis, que podem ser
lidas no racismo, machismo, classismo, entre outras formas institucionalizadas de
discriminação e opressão.
O esgotamento da liberdade e de si
| 34
Tal constatação se refere à ideia da busca pelo controle do significado, in-
clusive do significado do eu e do outro, quando na verdade esse significado talvez
inexista, ou ao menos seja impossível de se expressar nos limites da linguagem.
Portanto, uma forma de resistência primária, radical, talvez seja a completa recusa
por rotular a si e ao mundo, ou se fixar completamente. Tal recusa possivelmente
culminaria no reconhecimento da não fixidez do que chamamos de eu, o que po-
deria surgir num processo de tentativa de autorrelato. Esse movimento é falho,
impossível de se atingir, e no reconhecimento da incapacidade de se descrever ou
definir pode morar a abertura necessária para resistir a todo fechamento.
Esse movimento de recriação de si e do outro é contínuo, nas práticas mais
sutis, como a forma de se pedir algo a um conhecido ou desconhecido, ou nas mais
elaboradas, como na prática da clínica psicanalítica. Tal transformação de si mes-
mo ocorre na mesma proporção com o mundo. Nesse sentido, o que separaria o eu
do mundo em que habita? Ou do outro a qual se refere, seja esse outro um ser, um
objeto ou o inconsciente?
O mundo é “inconsertável”
Notas
1.
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-29/100-criancas-baleadas-em-cinco-anos-de-
-guerra-contra-a-infancia-no-rio-de-janeiro.html
Referências
BAKHTIN, Mihail M. Estética da criação verbal. 5. ed. Trad. P. Bezerra. São Pau-
lo: Martins Fontes, 2010.
_____ Corpos que importam: os limites discursivos do“sexo”. São Paulo: Croco-
dilo, 2019.
(Caetano Veloso)
Considerações iniciais
Aurora – este significante
remete, para os falantes da | 14
língua portuguesa, ao nascer do sol todas as manhãs. Mas também pode reme-
ter àqueles nascidos no século passado, principalmente à princesa da Disney no
filme A Bela Adormecida. Trazemos esse exemplo apenas com a intenção de
relembrar que uma coisa pode ser ela mesma e outras ao mesmo tempo. Apro-
veitamos para recordar que a grande tragédia da narrativa antes mencionada
é o sono profundo em que Aurora cai ao espetar o dedo no fuso de uma roca.
Uma roca é um objeto já antigo, há muito em desuso, mas que servia para
fiar. Longas horas costumavam passar as mulheres, sobretudo, pedalando e fian-
do, transformando fibras em fios, que depois se transformariam em tecidos.
Os tecidos, por sua vez, eram tingidos, cortados e costurados até vira-
rem vestes; as mesmas vestes que eram – e ainda são – usadas para cobrir a
nudez de um corpo, encobrir diferenças sexuais tidas como vergonhas por di-
versas sociedades. Mas também para que fossem lidas em perspectivas também
construídas por sociedades. No catolicismo, por exemplo, a cor dos paramentos
eclesiásticos indica a hierarquia que o sacerdote exerce na Igreja.
Fiar, na mitologia grega, também indica o destino dos seres humanos, o
que era feito pelas moiras, tantas vezes reproduzidas em nossa literatura.
Outro destino para os fios é o bordado ou a tapeçaria. Nesta, verdadeiras
narrativas visuais podem ser confeccionadas com a paciência e a destreza de
mãos ágeis e habilidosas. Esse é um motivo magistralmente trabalhado pela
grande dama da nossa literatura, Lygia Fagundes Telles, no conto “A caçada”.
Nele, um homem se vê diante de uma antiga e gasta tapeçaria; e, no mais ele-
gante estilo de tensão máxima, mas sem ruptura da autora, já não sabe mais se
está defronte àquela construção imagética ou dela faz parte; se, dentro dela, é
o caçador, ou a caça; se é sujeito ou objeto; se faz ou é feito; se é “eu” ou “nós”.
A flecha, diz a velha dona do estabelecimento, seria apenas obra de traças, es-
tes serezinhos minúsculos que expõem o segredo do tear. Mas fere o coração,
seja do personagem, seja do corpo que também detém as mãos de cuja destreza
artesanal nossos sentidos desfrutam, pois o que vemos é o resultado de muito
trabalho, de muito esforço para que cada fio, cada palavra fique no lugar certo.
O avesso disso é um emaranhado de nós – o que é verdade também para o bor-
dado, embora digam que a pessoa que melhor borda é aquela que sabe fazer o
avesso perfeito.
Contudo, também pode ocorrer que o avesso do pano seja exibido. É o
caso do pintor argentino Luis Felipe Noé em sua incursão pelo caos. A exposi-
ção Mirada prospectiva, de curadoria de Cecilia Ivanchevich, que foi exibida no
Museo Nacional de Bellas Artes, em Buenos Aires, de 11 de julho a 11 de setem-
bro de 2017, traz algumas obras em que o artista rompe com a ilusão de que o
objeto artístico sempre existiu, que está dado, que não é uma construção. Ele
vira algumas telas ao avesso, extrapola os limites das molduras, mostra o que
está oculto e que também faz parte de uma obra. É o caso do quadro “Concier-
to pânico”, que pode ser visto no catálogo da exposição (MIRADA, 2017, p. 11).
Se levarmos essa construção para o texto, temos a noção de que fiar é
preparar as palavras para que uma narrativa seja tecida, e é comum que tam- | 39
bém se escondam os mecanismos dessa construção. Na literatura, de modo ge-
ral, quem escreve faz um esforço para que a narrativa seja crível. Um fio nar-
rativo aborda a vida de uma determinada personagem, passa por seus conflitos
e resoluções. Não interessa muito se é fantástico ou não, o importante é ser
verossímil e esconder esse esforço. A história de Jesus Cristo, por exemplo,
é contada e recontada há mais de dois milênios, e quem se diz cristão pactua
em acreditar que aquilo que está nos evangelhos é verdade. Quando José Sa-
ramago, porém, escreve O Evangelho segundo Jesus Cristo, ele faz outro tipo
de esforço. O modo de narrar leva à percepção que aquilo ali é uma ficção,
uma invenção, uma construção. Saramago parodia a sacralidade daquele que
talvez seja o mais famoso personagem da literatura ocidental fazendo uso de
uma metanarrativa, invertendo os valores cristãos de verdade única, absoluta
e divina – dogmática. O bordado dessa obra não apresenta um avesso assim tão
irretocável – Jesus Cristo não está dado; ele foi construído. Essa constatação
introduz um jogo de poder na e pela linguagem, pois, como comenta Sant’Anna
(2003, p. 28, grifo nosso), “do lado da ideologia dominante, a paráfrase é uma
continuidade. Do lado da contra-ideologia, a paródia é uma descontinuidade”.
Em relação à nossa vida, também somos construção. Para Butler (2020, p.
55, grifos da autora):
Nos primórdios do YouTube, quando tudo ainda era mato, para usar a ex-
pressão debochada dos que não são nativos da internet, foi publicado o vídeo A
drag a gozar. Trata-se de uma paródia da canção popular A velha a fiar, em que
uma velha está fiando e diferentes criaturas passam a perturbá-la, ao que parece,
infinitamente. Na versão parodiada, a drag[2] está em seu lugar e diferentes “iden-
tidades” (usamos aspas para evidenciar que não se trata, em sentido estrito, de
identidades, nós mesmos refutaríamos tal afirmação, mas não queremos de modo
algum chamar de estereótipos), de pessoas-tipo, de construtos de um determinado
grupo social em dado recorte temporal, vêm lhe bolinar. São elas o Bofe Escândalo,
a Monette Fashion, a Bichinha Pão com Ovo, a Amiga Moderninha, a Bolachona, o
S@r@dão da Internet, a Elza Truqueira, o Michê do Boa Noite Cinderela, a Barbie,
a Bill do Armário, o Padre Fervido, o Ursão Carinhoso e o Tesão Inflável. Mas, di-
ferente da velha, a drag, em um certo momento, interrompe o fluxo dizendo: “Ai
meu cu”. Enquanto a velha parece fiar para sempre e são as moiras que decidem
quando cortar o fio do destino, ou Penélope tece durante o dia e desmancha o que
fez à noite para postergar um acontecimento que lhe é inevitável, a drag recusa,
nega, desautoriza. Não fia, nem desfia; desafia.
Mas como? No vídeo, ela o faz com um instrumento que fura – um alfinete,
já que o próximo da fila é um objeto inflável e, sem ar, fica destituído. Na “vida
real” (mais uma vez entre aspas porque não se trata de vida real, em que a perfor-
matividade de gênero se manifesta, mas de uma performance de gênero, em que
há uma espécie de roteiro tácito, no qual estão previstos início, meio e fim; talvez
seja melhor dizer na “vida fictícia”), a drag interrompe a reprodução quando paro-
dia, acabando com o limite entre original e cópia; e “a paródia, por estar do lado do
novo e do diferente, é sempre inauguradora de um novo paradigma. De avanço em
avanço, ela constrói a evolução de um discurso, de uma linguagem, sintagmatica-
mente” (SANT’ANNA, 2003, p. 27). Com a licença do teórico recém-citado, a no-
ção de sintagma talvez não seja uma boa amarração para este texto, uma vez que
a drag não segue o fio nem o arrebenta, o que ela faz é um desafio, é perturbação
da ordem preestabelecida, a exposição do avesso da linguagem de gênero – que de
perfeito não tem nada. Nesse sentido, ela se aproxima da metanarrativa; portanto,
seria lícito afirmar que a arte drag faz uso da metalinguagem de gênero? | 43
Vejamos o que acontece no clipe Tchau, de Gaby Amarantos featuring
Jaloo. A letra da canção aborda um dos chamados amores de carnaval, daque-
les passageiros, um “amor de pica”, ou seja, algo do sexo em primeira instância.
O questionamento é: “será que a gente vinga?”. Trata-se de uma relação que
parecia normal, até que as farsas são reveladas. Não seria isto o que fazem as
normas de gênero: fazer parecer com que pertençamos ao gênero masculino ou
feminino, até que sejam reveladas as farsas, as construções, o avesso do pano?
Em termos visuais, logo de cara já somos apresentados a cores berrantes,
exacerbadas. Fazem parte dos corpos perucas, próteses, tecnologias ciborgues
e postiças (HARAWAY, 2009), sem que haja a preocupação de esconder essa
construção. É o que costuma aparecer nas performances de drag queens. As
drags exacerbam a performatividade de gênero, tornando ridículas as suas mar-
cas. Elas expõem o gênero pelo próprio gênero. Ora, quando uma narrativa ex-
põe a própria narrativa, a isso chamamos de metanarrativa, como fez Saramago
em O evangelho segundo Jesus Cristo. Desse modo, torna-se lícito afirmar que
a arte drag se vale da metalinguagem do gênero, uma vez que faz uso das pró-
prias marcas de gênero para expor, comentar, questionar essa construção e,
“atingindo a paródia, liberta-se do código e do sistema estabelecendo novos
padrões de relações das unidades” (SANT’ANNA, 2003, p. 28).
Retomando a análise do vídeo, os gêneros masculino e feminino podem
até estar marcados e explicitados em quase todas as personagens, mas o são
por meio de marcas exageradas. Inclusive, há uma pessoa com três seios, o que
é popularmente chamado de “treta” (três tetas), prenunciando o que está para
acontecer. O seio é uma marca historicamente atribuída ao gênero feminino e
ali se encontra, três vezes marcado, em um corpo que muito provavelmente foi
designado como do gênero masculino no nascimento, dado que se vale de um
adereço no pescoço provavelmente para esconder o pomo-de-adão, parte do
corpo atribuída a esse o gênero, e também pela visível falta de gordura epidér-
mica, pela “pele solta sobre o músculo” (HOMEM, 2013, [s. p.]).
Em relação ao “homem” do clipe, podemos dizer que sua virilidade au-
mentada é uma marca de gênero, além da posse de uma caminhonete, que pode
ser lida como uma extensão do falo.
A narrativa não é linear, fazendo uso de uma volta no tempo para mos-
trar outro aspecto da história, outro enquadramento. Há uma personagem com
gênero não explicitamente marcado, talvez o único código visualmente inteli-
gível seja a presença de um pouco de barba malfeita. Essa personagem repete a
história da primeira com o “macho”, mas por outro viés. Há uma simultaneidade
de fios, tão sintéticos quanto a mais extravagante peruca, que se encaminham
para um grandessíssimo “não”.
O desfecho não se dá pela resolução de conflitos, mas pela total ruptura
com a narrativa. Alguém envenenou a bebida e, quando a palavra “tchau” é
cantada pela segunda vez, todas as pessoas ali envolvidas começam a tossir,
passar mal e morrem. A hipérbole da negação vai ao encontro do que diz Hal-
berstam (2020, p. 144): “Esse ethos específico de resignação ao fracasso, essa | 44
falta de progresso, essa forma específica de escuridão, essa negatividade toda
[...], tudo isso pode ser chamado de estética queer”. Tom Zé, ainda que não se
enquadre na estética queer, nos dá pistas sobre o que seria isso: “Eu tô te expli-
cando pra te confundir / Eu tô confundindo pra te esclarecer”. E, quando olha-
mos pelas lentes dos eixos parafrásico e parodístico, propostos por Sant’Anna
(2003, p. 32-33):
Considerações finais
Notas
1.
Entendemos linguagem como aquilo que foi marcado em um suporte físico para seja possível ler
algo, ou seja, para que aconteça a atualização da virtualidade de um código construído previa-
mente e compartilhado por dado grupo social em determinado intervalo de tempo cronológico.
| 46
2.
Thália Bombinha. É possível conhecer mais seu trabalho em seu perfil no Instagram: https://
www.instagram.com/thaliabombinha/.
Referências
A DRAG a gozar. Brasil: Publicado pelo canal Kiko Cesar, 5 dez 2007. 1 vídeo (5
min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tAbXi9xpY-8. Aces-
so em: 7 maio 2021.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria
performativa de assembleia. 4. ed. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
GOSTO de quero mais. Intérpretes: Hiran e Tom Veloso. Composição: Hiran San-
tos, Matheus Gonçalves, Tom Veloso. In: GALINHEIRO. Intérprete: Hiran. [S. l.]:
Uns e Outros, 2020. 1 CD, faixa 3 (3 min).
MARCIANO, Marcos. Homem com bolas: Parte 1. Prisma, [s. l.], 1 jul. 2019a. Dis-
ponível em: https://blogprisma.com.br/homens-com-bolas-parte-um/. Acesso
em: 2 maio 2021.
MARCIANO, Marcos. Homem com bolas: Parte 2. Prisma, [s. l.], 4 jul. 2019b. Dis-
ponível em: https://blogprisma.com.br/homens-com-bolas-parte-2-de-3/. Aces-
so em: 2 maio 2021.
| 47
MARCIANO, Marcos. Homem com bolas: Parte 3. Prisma, [s. l.], 8 jul. 2019c. Dis-
ponível em: https://blogprisma.com.br/homens-com-bolas-parte-3-de-3/. Aces-
so em: 2 maio 2021.
SANGUE Latino. Intérprete: Secos & Molhados. Composição: João Ricardo; Pau-
linho Mendonça. In: A VOLTA de Secos & Molhados. Intérprete: Secos & Molha-
dos. [S. l.]: Warner Music, 1973. 1 CD, faixa 1 (2 min).
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. 7. ed. São Paulo:
Ática, 2003.
TCHAU. Intérprete: Gaby Amarantos featuring Jaloo. Brasil: Publicado pelo ca-
nal Gaby Amarantos, 25 fev. 2021. 1 vídeo (3 min). Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=N2S5j_nO3Xc. Acesso em: 7 maio 2021.
TELLES, Lygia Fagundes. A caçada. In: TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios. Rio
de Janeiro: Rocco, 1998.
TÔ. Intérprete: Tom Zé. Composição: Tom Zé; Elton Medeiros. In: ESTUDANDO
o Samba. Intérprete: Tom Zé. [S. l.]: Warner Music, 1976. 1 CD, faixa 4 (3 min).
| 48
Diogo da Costa Ruffato é licenciado em Letras pela Universidade de Passo Fun-
do (RS). Especialista em tradução do inglês pela Universidade Estácio de Sá e em
escrita criativa pela PUC-Minas. Publicou O livro Fúcsia – da linguagem tripar-
tida e Exercícios de ser e não ser, pela editora Urutau, e Do pó e sua sátira Do
pau pelo selo Leme da editora Impressões de Minas.
| 49
Fábio
Garcia
Ribeiro
Bixa travesty:
Linn da Quebrada,
as insurgências do
corpo e reflexões
sobre a identidade
de gênero
“Eu não sou eu nem sou o outro,
| 51
Bixa travesty: o corpo como arma
Mesmo com toda a culpa religiosa que insiste em sufocar e ditar o que
pode ou não ser feito ou pensado, Lina assumiu a sua transexualidade e hoje é
uma Bixa travesty, título que dá nome ao documentário produzido por Claudia
Priscilla e Kiko Goifman.
O filme, estreado em 2018 no festival de Berlim, foi vencedor do prêmio
Teddy Award na categoria documentário - competição dedicada ao cinema de
temática LGBTI+. Em uma abordagem temática, que mescla cenas da vida priva-
da e pública, Linn da Quebrada desconstrói questões de gênero, raça e classe e
utiliza o seu corpo como arma para buscar o direito de não ser homem, nem mu-
lher, e sim, uma trava feminina.
É válido salientar aqui a força dada ao título do filme Bixa travesty. A for-
ma não normativa (usa-se as letras X e Y no lugar de CH e I) brinca com os cro-
mossomos genéticos e ao mesmo tempo é utilizada para designar esse nome que
é dado a quem ocupa um “lugar que é feminino, mas que tem também um lugar
de bicha” (Bixa travesty, 2018, 14:50’). Cultivar esse espaço do feminino é algo
que se deseja enquanto bicha travesti, senhora de seu corpo, de sua sexualidade
e desejo. Para Linn, em uma cena inicial do filme, enquanto conversa na cozinha
com a sua mãe e duas amigas, uma delas a cantora Liniker, é político as travestis
pretas, brancas, gays, sapatões serem felizes e amadas. Acreditar no corpo e na
existência é fator de amor próprio. | 52
“Eu gosto mesmo é das bichas, das que são afeminadas, das que mostram muito
a pele, rebolam, saem maquiadas”
Eu tô bonita?
Tá engraçada
Eu não tô bunita?
tá engraçada
Me arrumei tanto pra ser aplaudida
mas até agora só deram risada (A lenda)
Pode-se perceber pelos versos que, muitas vezes, travestis, trans e sujeitos
queers são palco para o escárnio de uma sociedade desigual, que não compreen-
de a liberdade do desejo e das manifestações identitárias. Quando Linn clama a
sua vaidade e beleza, ela fala em nome de todas aquelas pessoas excluídas de
seu direito de aparecer, de transitar por ruas sem sofrer abusos psicológicos e/ou
físicos, ela evoca um espaço de pertencimento social democrático.
Diante da plateia, Linn da Quebrada está abarcando corpos marginaliza-
dos e promovendo para si e para os fãs o direito de aparecer, de utilizar a sua
performance para o reconhecimento.
Judith Butler, em Corpos em alianças e a política das ruas nos fala sobre
essa necessidade de agrupamento de vidas precárias para o direito de aparecer:
“Ela tem cara de mulher, ela tem corpo de mulher, ela tem jeito, tem bunda, tem
peito e o pau de mulher!”
“Linn da quebrada vem dos cacos de um espelho que antes refletia um homem”
Considerações finais
O que esses três fatos trazem à tona é a ratificação de uma praga de di-
mensões bíblicas que há muito assola estas terras: o ódio lgbtbófico, herança de
uma colonização cristã que sempre abominou o sexo fora dos fins da procriação, | 60
ainda mais o sexo entre pessoas de sexualidades dissidentes. Muito dessa perse-
guição tem um alvo, há muito estabelecido, o cu: esse buraco, considerado por
grande parte da sociedade, como merecedor de desprezo, medo, fascinação, ódio
e muito desejo. Segundo Saez e Carrascosa, o cu é “o grande lugar da injúria, do
insulto”, é o que se pode perceber em várias expressões de nossa linguagem coti-
diana, assim como na expressão suscitada pelo ignóbil deputado. Na penetração
anal, o “sujeito passivo está no centro da linguagem, do discurso social, como o
abjeto, o horrível, o mal, o pior” (CARRASCOSA e SAEZ, 2016, p. 27).
Mesmo que o sexo anal e toda a gama de prazeres anais não sejam um
atributo somente das bichas, é somente a elas relegado o peso de sustentar
a prática de “tamanho pecado”, ainda mais porque se deliciam e buscam essa
prática. Saez e Carrascosa (2016, p. 29) nos trazem uma explicação bem interes-
sante a respeito dessa afirmação.
Sendo assim, a autora sugere que todos os sistemas sociais são vulnerá-
veis em suas margens e que todas as margens, em função disso, são considera-
das perigosas. A homossexualidade, essa prática que cria corpos penetráveis,
guarda em si quase que uma vocação para borrar e atacar essas frágeis frontei-
ras, e dessa forma, acaba sustentando a alcunha de incivilizada e antinatural.
Enquanto o coito, com a finalidade de procriação, confere aos que o praticam
um status natural, aproximando os indivíduos a Deus (sendo Deus visto como a
heteronormatividade, um sistema de conduta sagrado que deve ser respeitado
e replicado). “Deus, portanto, criou os seres humanos à sua imagem, à imagem
de Deus os criou: macho e fêmea os criou” (Gênesis 1:27). O coito anal traz à
tona a figura do Diabo, aproximando quem os pratica a esta figura lasciva e mis-
teriosa. Trevisan nos explica o sexo “contra a natureza”, sendo aquele em que
o esperma masculino não é despejado no “vaso natural da mulher”. Por essa
perspectiva, a sodomia, seria um pecado gravíssimo, por trazer à procriação o
máximo de desordem possível. O pecado era tão grave que não se prescrevia.
Waldo Motta, homem, negro e bicha, talvez por um acaso ou por obra de
um anjo torto, ironicamente nascido em um estado chamado de Espírito Santo,
através de seus versos manifesta, de forma radical, a religião. O poeta eleva,
em júbilo, as práticas e os corpos marginalizados a um status divino, prestan-
do-lhes honrarias e criando rituais com as palavras dignas dos livros sagrados e
dos cultos eclesiásticos. Os poemas de Waldo se equipararam a orações, preces
e salmos, não se ajoelham ao que o status quo profere como sagrado e dig-
no de reverência. Motta não modela o status desses corpos marginais para se
adaptarem a um sagrado normatizado, no qual possam ser aceitos. Ele amplia o
conceito de sagrado ou talvez restitui seu verdadeiro significado tornando, em
essência, esses corpos “abjetos” em sujeitos sagrados.
O poeta, que passou por uma via crucis de inúmeras segregações durante
a vida, “abençoado” por suas vivências marginais, adotou a postura, segundo
Trevisan (2018, p.259), de um “profeta-bicha”. Ouvindo o chamado dos céus, o
poeta “fustigava os fariseus da sexualidade”, como se vê nos versos
O profeta bicha mergulhou nas entranhas do corpo para criar uma cos-
movisão sagrada de práticas de amor pouco ortodoxas e marginalizadas, se-
gundo as palavras de Trevisan (2018, p 259) “(...) inventar uma poesia terminal,
relacionada com as entranhas e o cóccix - ou região anal, por ele considerada
epicentro de todos fenômenos sagrados e pedra fundamental do nosso corpo.”
Nas palavras do próprio poeta, o cu é “lugarzinho por onde/ o espírito entra nos
ossos, é neste lugar terrível/ a casa do Deus dos deuses/ e a entrada dos céus”.
Assim, Waldo suscita o orgulho passivo de que nos falam Saez e Carrascosa e
propõe algo que encontra a ética anal de Paco Vidarte, “que vai negar o poder,
uma política do buraco que cansou da troca desigual dos discursos marcados”
(COLLING e LEOPOLDO, 2016, p.16).
Para além de negar o poder e criar uma política do buraco, Motta cria | 64
uma espécie de religião do buraco, o “cucentrismo”, na qual o ânus se torna um
portal onde as bichas, segundo Berçaco (2008, p. 93).
| 67
Waldo brinca com certos conceitos, como em “Desejo ser hospede ca-
tivo/ deste tabernáculo supremo”, versos que trazem a ideia dos esfíncteres
anais, músculos que têm a função de abrir o ânus, mas podem também prender,
manter cativos aqueles que por ventura lá se adentrem.
No cu de Exu
“No cu/ de Exu[5]/ a luz.” Através do haicai, nos versos de Motta, a luz
brota do cu desta divindade intermediária entre os Deuses e a humanidade,
o senhor das encruzilhadas, um ser de muitas facetas, muitas vezes relegado
à marginalidade, inclusive associado ao demônio. Assim Waldo, pela força de
seus versos, segundo Berçaco (2008, p.25), vem desterritorializar “os cerebrais,
epistêmicos e culturais centros de poder” através de uma tática que batizou
de “cucentrismo”, na qual ele inverte “a referência transcendental de nossa
civilização logocêntrica” criando uma “policromia de vozes”, dando voz, lugar
e sacralidade a corpos abjetos e práticas dissidentes.
O profeta bicha traz para seus versos, versículos, cânticos e orações, algo
que vai além de um mero “orgulho passivo”. Waldo torna o ser penetrável em | 68
um ser sagrado, do qual a “vida medra/ do rabo”. Pela força de suas palavras é
possível estes seres “marginais” viverem “desfrutando as gostosuras/ da árvore
da vida eterna, / entre suspiros e cânticos” de prazer.
Que seus versos sacro eróticos, imbuídos de sua poética da vadiagem e
também da viadagem, possam adentrar profundamente nos recônditos deste
Brasil que se pretende “impenetrável”. Que os “varões soberbos e perversos”
desta noção possam tirar o prepúcio de seus corações para quitar-lhes a mu-
ralha de Jericó com que cobrem o próprio cu. Só assim poderemos “habitar na
montanha santa, / descansando em justa paz” nesta terra de Vera Cruz.
Notas
1.
https://congressoemfoco.uol.com.br/direitos-humanos/stf-deve-julgar-nesta-quarta-acao-
-para-criminalizar-a-homofobia-chamada-por-bolsonaro-de-palhacada
2.
https://www.onofre.com.br/ky-gel-lubrificante-flow-kit-com-3-unidades-5g-cada.html
3.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/05/ao-menos-uma-pessoa-e-morta-por-dia-
-no-brasil-por-homofobia-diz-relatorio.shtml
4.
http://www.overmundo.com.br/overblog/a-desbundada-poesia-erotico-mistica-de-waldo-
-motta
5.
Representante das potências contrárias ao homem. Os afro-baianos assimilam-no ao demô-
nio dos católicos; mas, o que é interessante, temem-no, respeitam-no (ambivalência), fazen-
do de objeto de culto. (CASCUDO, 2012, P.286).
Referências
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Tradução por Adail Ubirajara. São Paulo:
Pensamento, 2007.
CARRASCOSA, Sejo; SAEZ, Javier. Pelo Cu: Políticas Anais. Belo horizonte: Letra-
mento, 2016.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 12ª ed. São Paulo: Glo-
bal, 2012.
ELIADE, Mircea. Yoga - Imortalidade e Liberdade. São Paulo: Palas Athena. 1996.
| 70
Gustavo
Henrique
Sousa Assis
Tudo sobre
minha mãe e o
queer: algumas
notas
“ [...] porque se é mais autêntica quanto mais se parece com o que
sonhou para si mesma.”
Assim, retomar a noção de queer e inverter seu significado causa uma de-
sordem nos princípios do próprio termo, tirando seu sentido de xingamento (usa-
do pela heteronormatividade) a um grupo. A heteronormatividade se instaura
pela heterossexualidade compulsória (termo empregado pela teórica feminista
Adrienne Rich em Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence, 1980),
sendo a projeção da heterossexualidade como um “dado natural”. Preciado, lei-
tor de Monique Wittig, aponta que a autora
Por mais utópico que pareça (pelo menos no Brasil de 2021), conseguimos
perceber nessa multidão a potência de ação política contra o regime sexopolítico.
Assim como a teoria queer precisou repensar a categoria de mulher (também com
um rosto: branco, cisgênero, heterossexual) como sujeito único do feminismo, a
multidão queer teria o poder de redesenhar o futuro dos grupos mais vulneráveis
socialmente.
Tomemos como exemplo a experiência trans. A patologização da transe-
xualidade surge como uma maneira de restringir a liberdade corpórea de traves-
tis, transexuais e transgêneros. Mesmo sendo um movimento histórico, no Brasil,
para que se tenha acesso à cirurgia de redesignação sexual e também por ser um
facilitador para a troca de documento, é necessário o diagnóstico de “transtorno
de identidade de gênero”.
Passar por toda essa triagem implica manter-se presente em “tratamento”
por alguns anos. Provar a veracidade trans para médicos cisgêneros (e seu discur-
so científico padronizado) é uma verdadeira contradição. A agressão contra esse
grupo se intensifica na medida que se entendem como trans. Além disso, a cate-
gorização se reflete no modo como serão entendidas socialmente e quais tipos
de interações e representações serão capazes de realizar. É necessário mudar-se
para Urano para sentir-se acolhido em uma casa, como diz Paul Preciado (2000).
Além disso, o processo de construção do corpo travesti é bombardeado
por referências midiáticas de baixa qualidade significativa. A construção da ima-
gem da travesti começa muito antes de sua descoberta, com a representação te-
levisiva e fílmica quase sempre ligada à caricatura, à vergonha de “assumir-se” ou
à extrema sexualização. Tudo isso envolto por discriminações diretas ou indire-
| 76
tas. Retira-se a imagem de uma mulher para dar lugar a um símbolo carregado de
estereótipos que se internalizam na própria experiência trans. Essas ações estão
encobertas por uma certa “agenda straight”, na esperança de desqualificar (ou
seja, matar) os corpos que não se enquadram e “deixar passar” aqueles corpos
que se rendem a esse regime. Segundo Preciado, a maior ferramenta usada politi-
camente contra esses corpos é a territorialização da sexualidade:
Tudo sobre minha mãe é um filme sobre encontros. Manuela, Agrado, Huma
e Rosa são mulheres que se encontram por meio do amor, da morte e da vida. Ma-
nuela é uma mãe. Agrado é a uma travesti prostituta e se torna assistente. Huma
é uma atriz apaixonada por Nina, atriz junkie e parceira de cena na peça Um bonde
chamado desejo. Rosa é uma freira que está grávida de uma travesti.
Todas são atravessadas por Lola (“Você não é uma pessoa, Lola. É uma epi-
demia.”, diz Manuela), mulher e travesti que teve um filho com Manuela e outro
com Rosa. Manuela perde seu filho em um acidente de carro após tentar conseguir
um autógrafo de Huma. Sai de Madrid rumo a Barcelona, se encontra com Agrado,
amiga de longa data e salva a amiga em uma briga. As duas se encontram com Rosa
para pedir emprego, mas acabam simplesmente se tornando amigas próximas.
O filme vai se desenrolando a partir disso, perpassando temas como morte,
sexualidade e amor de mãe, de amigas, de irmãs. A narrativa é contada do ponto
de vista dessas mulheres, sendo uma ode ao feminino e sua multiplicidade. Contra-
riando a ideia psicanalítica de uma mulher quase mítica e também na contramão do
feminismo conservador, Tudo sobre minha mãe enaltece os diferentes corpos pos-
síveis do feminino. Não há uma hierarquia entre prostituta, freira, atriz, enfermeira,
cozinheira, mas todas caminham juntas, escrevendo a história de suas vidas.
Almodóvar faz de seu filme um “museu” do feminino, enaltecendo Bet-
te Davis e Eve Harrington, protagonistas de All About Eve (em tradução lite- | 78
ral, Tudo sobre Eve, mas em português o título é A Malvada), Blanche DuBois e
Stella Kowalski, protagonistas de Um bonde chamado desejo, e também enalte-
cendo todas as atrizes, mulheres trans, mães. Essa ode é recorrente no trabalho
do diretor, mas em Tudo sobre minha mãe há uma certa virada. Aqui, se valoriza
o amor por um certo feminino queer, das “margens”.
Comecemos pensando algo sobre Lola. Mulher, travesti e pai, a persona-
gem é falada durante todo o filme. Rouba Agrado, sua amiga próxima, depois
engravida Rosa e foge. Manuela, ao sair de Madrid para Barcelona, vai encontrar
Lola para contar a história de seu filho, recém falecido (filho que Lola não sabia
da existência). Quando, no fim do filme, Lola volta para Barcelona na ocasião do
enterro de Rosa (que morreu parindo seu filho) e descobre a existência de seus
filhos, ela diz que sempre quis ser pai. Esse desejo tem o poder de descolar a ideia
de que gênero e sexualidade são sinônimos, sendo que as ideias são quase opos-
tas. Lola é uma mulher com pênis, o que não anula suas chances de paternidade
nem a exclui de um certo discurso patriarcal.
Manuela, ao contar sua história com Lola a Rosa, diz que Lola tem o pior de
um homem e o pior de uma mulher. A personagem então conta sobre a transição
de seu marido (ou já seria a esposa?), que foi trabalhar em Paris e voltou “com um
par de tetas maior que a dela”. Então, começa a se mostrar machista, reprimindo
a esposa ao vestir um short ou saia curta, ao mesmo tempo que se relacionava
sexualmente com “qualquer coisa que passava”. Manuela ainda diz: “Nós mu-
lheres fazemos de tudo para não ficarmos sozinhas. [...] [Nós mulheres somos]
um pouco lésbicas”. Tal paradoxo mostra esse corpo que se cria como straight.
A personagem se questiona: “Como é possível ser tão machista com aquele par
de peitos?”, mostrando também que a experiência de transição de gênero não
é necessariamente uma reviravolta do desejo e de comportamentos arraigados.
Para rever tais conceitos internalizados é necessário um movimento revolucio-
nário, que deve ser criado e colocado em prática. Esse é o caminho de Rosa: uma
freira que se apaixona por Lola, engravida e tem sua vida caída em pedaços. Lola,
soropositiva, contaminou a freira e seu filho. Mesmo assim, Rosa se mantém viva,
presente. Sua história não passa pelo ressentimento. O que se mostra são as do-
res carregadas das experiências vividas, mas essa dor é sempre o pretexto para
alguma resolução. A dor não paralisa.
Agrado talvez seja o ponto mais esperado e revolucionário do filme. A
personagem tem um ar refrescante, que se sente confortável em seu corpo e
em sua autenticidade. Seu nome foi dado por sempre querer agradar às pessoas,
tarefa que realiza de forma autêntica. Agrado é um corpo que se constrói com
a história da personagem, mas seu corpo é também sua própria história. Deve
sempre “estar gostosa” e “atenta aos últimos avanços tecnológicos de cirurgia e
cosmética”, afinal “uma mulher é seu cabelo, as unhas, uma boa boca para chu-
par ou fofocar”. Por isso mesmo ela não gosta das drag queens, que “confundi-
ram circo com travestismo”. Não devemos ler essa fala como algo da ordem do
ódio, mas perceber seu tom de auto conservação e uma certa “competição”. A
questão da performatividade na personagem de Agrado está alinhada àquilo que | 79
Butler e Preciado defendem, no sentido de uma constante reiteração do caráter
performático do gênero por meio de transformações corporais permanentes. Na
ocasião de Huma e Nina não poderem se apresentar no teatro por causa de brigas
do casal, Agrado sobe ao palco para contar sua história e entreter o público:
| 80
Referências
PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos” anormais”. Revis-
ta Estudos Feministas, v. 19, n. 1, p. 11-20, 2011. Disponível em: https://periodicos.ufsc.
br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2011000100002 Acesso em 11/05/2021.
Tudo sobre minha mãe. Direção: Pedro Almodóvar. Produção de Agustín Almodóvar.
Madrid: El Deseo, 1999.
| 81
Joarle
Magalhães
Soares
Torto Arado:
resistência
negra e corpo
feminino
Reconhecer-se e tornar-
-se reconhecido para enten-
der a sociedade, o mundo e
seu funcionamento. A partir
desse entendimento, encon-
trar um lugar de identida-
de, de afirmação e também | 48
de resistência. Essa busca marca a vivência de muitos corpos constituídos por
uma vulnerabilidade social que está sempre em confronto com discursos de au-
torização condicionantes da formação do sujeito. Os problemas que caracteri-
zam essas questões, tão bem trabalhados pela filósofa americana Judith Butler,
são o ponto de partida para analisar, neste ensaio, como o romance Torto Arado,
de Itamar Vieira Júnior, contribui para aprofundar discussões sobre a precarieda-
de da vida de populações quilombolas, ligadas ao campo, que vivem no interior
do Brasil.
O escritor faz um retrato da relação do homem com a terra, a partir da voz
de três personagens femininas, apontando questões históricas, políticas e sociais
que envolvem o direito ao território. É possível analisar esse caminho narrativo
sob o viés de conceitos como corpo racializado, corpo feminino, precariedade,
vulnerabilidade, resistência e violência para que melhor se compreenda de que
maneira o romance expõe chagas desse sistema social rural brasileiro. Apesar
dos estudos de Judith Butler terem como objeto contextos sociais distintos, de
outros países, e ligados à temática queer, há neles contribuições teóricas que se
aplicam também à história contada por Itamar Vieira Júnior. A começar pelo re-
conhecimento de si mesmo.
Em outro trecho, que trata dos planos de Salomão para as terras onde
Bibiana e Belonísia vivem, também é possível identificar traços que marcam a
vulnerabilidade de Água Negra diante do sistema territorial e social que molda | 84
os corpos dessa comunidade, por meio da marginalização e exclusão.
O relato do que sucedeu após a morte de Severo reforça o que Butler diz
ser uma vida que não pode ser passível de luto. Dois trechos narrados por Santa
Rita Pescadeira traduzem esse sentimento vivido por Bibiana e pela comuni-
dade. No primeiro, transcrito a seguir, os moradores são obrigados a derrubar
o portão do cemitério para que Severo fosse sepultado junto a Zeca Chapéu
Grande, o pai das irmãs.
Notas
1.
Afirmação foi feita em entrevista para o canal no YouTube “Litera Tamy”, publicada em 9 de
out. de 2019 e disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=KRMOUcycaS0
(Acesso em 20 abr. 2021).
2.
Entrevista publicada em 3 de fev. 2021, disponível no endereço https://brasil.elpais.com/cultu-
ra/2020-12-02/tudo-em-torto-arado-ainda-e-presente-no-mundo-rural-brasileiro-ha-pessoas-
-em-condicoes-analogas-a-escravidao.html (Acesso em 21 abr. 2021).
Referências
VIEIRA JÚNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2019.
| 90
Juliano
Vasconcelos
Magalhães
Tavares
Sexo e política em
tempos de impea-
chment: as questões
queer em trechos do
documentário
Excelentíssimos
Introdução
16.04.2016 – Por 367 vo-
tos a 137[1], a Câmara dos
Deputados aprova parecer
da Comissão Especial,
admitindo jurídica e politicamente a acusação, e autoriza, no Senado Federal,
a instauração do processo de impeachment contra a então presidenta Dilma
Rousseff.
Essa data foi explicitada no sentido de contextualizar o estudo. Em suma,
grande parte das filmagens de Excelentíssimos (2018)[2] foi realizada durante
o período pré-impeachment até a instauração do processo. Para a realização
deste artigo, foram identificados e analisados três trechos do filme que pos-
suem forte relação com o movimento queer que, segundo Louro (2001, p.546),
significa “colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier”, em es-
pecial a “heteronormatividade”.
Assim, o trabalho foi dividido em quatro seções: a primeira delas traz
uma discussão sobre questões relacionadas ao formato documentário, depois
são apresentadas características do filme Excelentíssimos. Posteriormente, são
trazidos aspectos teóricos relativos à política queer e são feitas análises relati-
vas aos trechos selecionados, bem como considerações finais.
Para o autor, quando o cineasta entra na “cena”, o foco sai das generali-
zações trazidas por uma sequência de imagens sob uma determinada perspec-
tiva e vai para o encontro entre o cineasta e o tema apresentado. Assim, todos
que fazem parte daquele filme, inclusive o cineasta, estão envolvidos em uma
mesma “arena histórica”. “Como ‘cinema-verdade’, a ideia enfatiza que essa é a
verdade de um encontro em vez da verdade absoluta ou não manipulada” (NI-
CHOLS, 2005, p.155). No caso de Excelentíssimos, o cineasta-narrador se apre-
senta ao público logo no início da trama.
Outra característica do documentário, independentemente do subgêne-
ro, é o engajamento por meio da representação. Assim como representantes
eleitos pelo povo, “os documentaristas muitas vezes assumem o papel de re-
presentantes do público. Eles falam em favor dos interesses dos outros, tanto
dos sujeitos temas de seus filmes quanto da instituição ou agência que patro-
cina sua atividade cinematográfica” (NICHOLS, 2005, p.28). Em relação ao en-
gajamento, Deleuze (2005) afirma que, especialmente no Terceiro Mundo, o
cineasta está diante de um “público que falta”, referindo-se a fatores como
alienação ou analfabetismo. Portanto, é preciso que o cinema contribua para a
invenção de um povo. Então, “o povo que falta é um devir, ele se inventa, nas
favelas e nos campos, ou nos guetos, com novas condições de luta, para os quais
uma arte necessariamente política tem de contribuir” (DELEUZE, 2005, p. 260).
2. Sobre o filme
De acordo com Louro (2001, p.546), “queer pode ser traduzido por es-
tranho, ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se
constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres ho-
mossexuais”. Ainda segundo a autora, mesmo sendo utilizado pejorativamente,
movimentos homossexuais passaram a fazer uso do termo, imprimindo-lhe um
novo sentido: fazer oposição, contestar contra os mais diversos tipos de norma-
lização, em especial, a heteronormatividade. O que não quer dizer que a própria
estabilidade e normalização propostas pelo movimento homossexual dominante
também não sofram críticas do grupo. Afinal, ser “queer representa claramente
a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de
ação é muito mais transgressiva e perturbadora” (LOURO, 2001, p. 546). De ma-
neira mais enfática, Preciado afirma que:
Embora esse movimento tenha partido das ruas, um grupo bem diver-
sificado de intelectuais e estudiosos também passou a utilizar esse termo em
seus trabalhos e levar o assunto a uma perspectiva teórica. Louro (2001) aponta
vários deles: Michel Foucault, que tratou da multiplicação das sexualidades,
Jacques Derrida, que propõe a desconstrução de binarismos e Judith Butler,
que escreveu, por exemplo, sobre as relações entre sexo e gênero, as quais são
fundamentais para este estudo.
Para Butler (2019), a distinção entre sexo e gênero, originalmente con-
cebida para questionar aspectos biológicos, atende à tese de que o sexo não
tem relação com o gênero. O gênero seria culturalmente construído, o que
leva a concluir que um não é a causa do outro, um não reflete o outro e, por
fim, um não se restringe ao outro. Portanto, “supondo por um momento a
estabilidade do sexo binário, não decorre daí que a construção de ‘homens’
aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo ‘mulheres’ in-
terprete somente corpos femininos” (BUTLER, 2019, p.24). A autora vai além:
mesmo que em geral esse binarismo (no corpo humano) não traga problemas,
isso não significa que o número de gêneros tenha que estar limitado a dois.
Pelo contrário, “quando o status construído do gênero é teorizado como radi-
calmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutu-
ante” (BUTLER, 2019, p. 24, grifo meu).
No entanto, essa drástica ruptura também gera problemas. “Podemos re-
ferir-nos a um ‘dado’ sexo ou a um ‘dado’ gênero, sem primeiro investigar como
são dados o sexo e/ou gênero e por que meios? E o que é afinal? o ‘sexo’? [...]
Teria o sexo uma história?” (BUTLER, 2019, p. 25). Diante de perguntas que cer-
tamente até então poucos de nós havíamos nos feito, a autora dá respostas que
provocam reflexões: “talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão cul-
turalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo tenha sido o gê-
nero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente
nenhuma” (BUTLER, 2019, p. 25). Portanto, o gênero não pode ser visto como
uma simples inscrição cultural inserida em um sexo previamente determinado,
“ele é o meio discursivo/cultural pelo qual “natureza sexuada” ou ‘um sexo na-
tural’ é produzido e estabelecido [...]” (BUTLER, 2019, p. 25). Em um primeiro
momento, isso pode parecer não fazer nenhuma diferença no cenário social em
que vivemos, mas para a autora, essa construção cultural do gênero acabou
levando a “ruínas” que surgiram no debate contemporâneo. Afinal, passa-se “a
impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação
de que a biologia é o destino. Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna
o destino” (BUTLER, 2019, p. 26). E disso para as velhas controvérsias acerca das
questões sexuais não é um caminho longo, ou tudo é determinado a partir do | 95
sexo ou as pessoas são assim porque assim o decidiram e, ao menos para parte
da sociedade, nada disso é (e talvez nunca venha a ser) da ordem natural. É o
que trataremos agora.
De acordo com Emcke, a ideia de uma ideologia original ou ordem natural
diz respeito a uma suposta superioridade do “nós” que estaria atrelada à tradi-
ção familiar: “quando a sociedade era ‘pura’, quando todos supostamente com-
partilhavam os mesmos valores, quando as mesmas convenções prevaleciam,
nesse passado imaginado tudo era ‘mais verdadeiro’, ‘mais autêntico’, ‘mais cor-
reto’” (EMCKE, 2020, p.115). Em meio a isso, o presente nem sempre é visto
positivamente e as pessoas passam a ser enxergadas e valorizadas a partir dos
ideais originais. Além disso, todos os indivíduos (e corpos) que estão fora desse
tipo de vida são vistos como “antinaturais”, “doentes”, “indesejados”, algo que
não estava previsto na natureza. “Dependendo do contexto político ou ideo-
lógico, a crítica ao ‘antinatural’ ou ao ‘não original’ está associada à acusação
de ‘ocidentalização’, ‘degradação da verdadeira fé’, ‘doença da modernização’,
‘pecaminosidade’ ou ‘perversão’” (EMCKE, 2020, p. 115, grifo meu). É interes-
sante observar como esse discurso ganhou força no Brasil nos últimos anos. Os
trechos de Excelentíssimos que serão analisados foram captados em 2016 e já
demonstravam tal comportamento.
Posto isso, a autora se volta para a relação entre a naturalidade/origina-
lidade de um corpo com seu reconhecimento social e legal. Afinal, questiona
Emcke:
Fato é que o desrespeito parece mesmo não estar ligado somente à figu-
ra da deputada. Se o problema fosse somente ela, certamente Mauro não teria
justificado seu voto em plena instauração do impeachment com as seguintes
palavras, “em nome do meu filho, Éder Mauro, filho de quatro anos e do Ro-
gério, que juntos com minha esposa formamos a família no Brasil que tanto
esses bandidos querem destruir com proposta de que criança troque de sexo e
aprenda sexo nas escolas com seis anos de idade [...], eu voto sim” (EXCELEN-
TÍSSIMOS, 2018, 120min52, grifo meu). É importante ressaltar que, nesse caso, o
discurso não ficou registrado apenas nas câmeras da equipe de Douglas Duarte,
mas em TVs de todo o Brasil.
Sem dúvida, a sua justificativa evidencia a seguinte divisão: de um lado,
aqueles que, de alguma forma, se consideram “mais corretos” por fazerem par-
te da tradicional família brasileira. Do outro lado, aqueles que não se inserem
nesse modelo, ou que de alguma forma, entendem esses novos modos de viver
a vida. Nas palavras de Mauro, são os “bandidos” que querem destruir a tra-
dicional família brasileira (como a dele). Então, sua contribuição é o “sim” ao
impeachment para livrar o país desse mal, lembrando que tanto Kokay como
Wyllys faziam parte de partidos esquerdistas naquele período. Nesse sentido,
vale lembrar Preciado:
| 100
Considerações Finais
Notas
1.
https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/des-
taque-de-materias/impeachment-da-presidente-dilma.
2.
O autor deste artigo desenvolve estudos acerca de quatro filmes relacionados ao impeachment
da então presidente Dilma Rousseff, Democracia em Vertigem, Excelentíssimos, O muro e O pro-
cesso, sendo que o segundo envolve, em sua trama, questões relacionadas ao movimento queer.
3.
Há inúmeras definições relacionadas ao termo “documentário”. No entanto, nesse estudo, uti-
lizaremos a seguinte: “se o documentário fosse uma reprodução da realidade (...) teríamos sim-
plesmente a réplica ou cópia de algo já existente. Mas ele não é uma reprodução da realidade, é
uma representação do mundo em que vivemos. Representa uma determinada visão do mundo,
uma visão com a qual talvez nunca tenhamos deparado antes, mesmo que os aspectos do mun-
do nela representados nos sejam familiares (NICHOLS, 2005, p. 47).
4.
Voz alheia que se sobrepõe às imagens, recurso muito comum em documentários (LINS;
MESQUITA, 2008).
5.
O Curta! dedica-se às artes, cultura e humanidades. São assuntos do canal: música, cinema,
dança, teatro, artes visuais, história, filosofia, literatura, psicologia, política e sociedade. Docu-
mentários em curta, média e longa-metragens predominam na programação, que traz também
séries e cinema de ficção. (https://canalcurta.tv.br). | 101
6.
https://www.youtube.com/watch?v=Vt1ucindUYI.
7.
https://www.youtube.com/watch?v=YhQ4w8O0kMs.
8.
“A CPI Funai Incra foi criada em 11 de novembro de 2015 sem objeto definido, demonstrando
desde início a clara determinação política de atender a interesses da bancada ruralista. A meta
é única: desvalidar direitos de comunidades etnicamente diferenciadas constitucionais consti-
tuídos pela CF de 1988, criminalizando movimentos sociais e profissionais que atuam no cum-
primento de sua profissão” (COMITÊ QUILOMBOS, 2017).
9.
“Na trágica ficção do dramaturgo grego Sófocles, Antígona é filha de Édipo em sua relação
incestuosa com sua mãe, Jocasta. Juntos eles tiveram quatro filhos, entre eles Polinice e Eté-
ocles que matam um ao outro na disputa pelo trono de Tebas. Com a morte dos dois irmãos de
Antígona, o trono é tomado pelo tio Creonte, que decreta que o corpo de Polinice seja deixado
nu e desenterrado. Defendendo um enterro digno para seu amado irmão, Antígona rebela-se
declarando seu direito ao luto e enterrando o corpo de Polinice, contra a medida do rei Creonte
[....]” (VIEIRA, 2016, p. 461 - 462).
10.
https://www.conjur.com.br/2018-mar-01/stf-autoriza-trans-mudar-nome-cirurgia-ou-decisao-
-judicial
Referências
| 103
Juliano Vasconcelos Magalhães Tavares é doutorando em Estudos de Lingua-
gens pelo Programa de Pós-graduação do CEFET-MG. Mestre pelo Programa de
Pós-graduação em Comunicação Social da PUC-Minas. Especialista em Produ-
ção de Mídia Eletrônica pelo UNI-BH e graduado em Comunicação Social, com
habilitação em Jornalismo, pela UNESP.
| 104
Luan
dos Santos
Silva
Escapar de
todas as épocas:
o olhar para a
vulnerabilidade
em Michel Laub
Em O tribunal da quin-
ta-feira, romance escrito
por Michel Laub e publicado em 2016, acompanhamos o narrador protagonista
José Victor.
Ele é, segundo suas próprias palavras, um homem branco, paulista, publici-
tário e com uma carreira bem sucedida. A narrativa propõe um convite a pensar
sobre o vírus da AIDS e o que viraliza na internet, exposição e vulnerabilidade.
Para além disso, a história de José Victor se embaralha com o percurso da pan-
demia da própria Síndrome da imunodeficiência adquirida. Há, desta forma, uma
tensão entre as incoerências e uma questão: até que ponto é possível atribuir al-
guma legitimidade para esse narrador que problematiza e brinca com sua própria
confiabilidade, a exemplo de Bentinho de Machado de Assis, um narrador distan-
te da imparcialidade.
Já no início da narrativa[1], José Victor reflete sobre todas as vezes em
que foi diagnosticado como infectado por diversos microrganismos e/ou por res-
posta biológicas e, sabendo assim que estava doente. Desta forma, aponta para
as outras tantas vezes em que não soube[2]. E, se a AIDS pode apresentar uma
longa janela imunológica, é pela janela da memória que José Victor se relembra
das brincadeiras de troca-troca e das primeiras experiências sexuais que, desde a
primeira vez, já foram um convite a se evitar o uso de preservativos e do contato
pele com pele. Para que se entenda o contexto desse jovem que se inicia na vida
sexual, é necessário recuar alguns passos, para 1961. Segundo Timerman e Ma-
galhães (2015, p. 79 – 81), com o surgimento das pílulas anticoncepcionais, ocor-
reram uma expressão corporal, a busca por liberdade sexual, a organização dos
movimentos feministas e o movimento negro. Nessa mesma esteira, os movimen-
tos de lutas pelos direitos homoafetivos. O sistema capitalista, como era de se
esperar, vendeu tudo que pôde se aproveitando do desejo de liberdade sexual[3].
Esse contexto, nas décadas de 60 e 70, propõe muita experimentação afetiva e
descoberta do corpo.
No romance, José Victor introduz ao leitor um grande amigo chamado
Walter que, segundo o narrador, são amigos de longa data e, por esse moti-
vo, se sentem à vontade para trocarem e-mails sobre fezes, sexo e mesmo
fazerem brincadeiras de humor duvidoso sobre o vírus do HIV que se alas-
trava pelo mundo. Se José Victor se percebia na heterossexualidade, Walter,
seu amigo, tem seu desejo expresso por uma bissexualidade. Apesar disso, os
e-mails que eles trocam têm, de ambos, piadas que reproduzem um discurso
em tom misógino e preconceituoso ao mesmo tempo que, em outros momen-
tos, são sensíveis à dor dos outros – em toda narrativa todos os personagens
possuem muitas camadas.
Estranhamente, o vírus do HIV tem muito em comum com essas men-
sagens que eles trocam. Para que se compreenda a relação, pensemos no ano
de 1981 em que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Los Angeles
identificou cinco jovens com um caso raro de Pneumonia. Os estudos iniciais
logo apontaram que aquela doença tinha ligação com o fato desses jovens se-
rem gays. Os termos “pneumonia gay”, “câncer gay” e “peste gay”[4] começam
a circular, tanto na comunidade médica quanto na linguagem popular. Análises | 106
constataram o contato sexual como, naquele momento, a causa responsável.
Já em 1982, haitianos fora de uma prática de contato sexual homoafetivo e
crianças que receberam transfusão de sangue apresentam os mesmos sinto-
mas da doença. Neste mesmo ano ocorre aqui no Brasil o primeiro caso. Mesmo
sendo comprovado por pesquisas que esse vírus não tinha uma ligação direta
com a comunidade gay, mas sim com o contato sexual sem uso de preservati-
vo, transfusão de sangue e contato com fluidos corporais, o preconceito nunca
abandonou esse grupo (TIMERMAN e MAGALHÃES, 2015). O vírus da AIDS,
semelhante a uma mensagem, a um post em uma rede social ou mesmo a um
vírus cibernético, se espalhou. E isso sem escolher destinatário, contudo a men-
sagem, o discurso e o preconceito foram junto[5].
Walter apresenta Teca a José Victor e, do lugar de quinta namorada, to-
das com contato sexual sem preservativo, ela se torna esposa[6]. O interesse do
narrador diminui na mesma proporção em que buscar algo fora do casamento
se torna uma opção. É o momento em que mais uma personagem é adicionada:
Dani, a estagiária ou redatora-júnior, com o corpo firme que seus vinte e poucos
anos lhe proporcionam. Com Dani, José Victor se sente à vontade com as estra-
nhezas de seus comportamentos sexuais, para vivenciar aventuras e fantasias
de dominação. Ela sempre responde com entusiasmo aos experimentos sexuais
que eles se propõem tentar. Dani, por ser de uma geração pós-coquetel, não tem
a dimensão dos riscos por um contato sexual desprotegido. Talvez tenha ouvido
falar, vagamente, das várias pessoas, incluindo as famosas, que morreram em de-
corrência da AIDS[7].
Uma das fantasias que José Victor tem é a de bater em Dani. Essa fantasia
ressoa um episódio vivido não por ele, mas por seu amigo Walter. De volta aos
anos oitenta, Walter e os amigos foram visitar a travesti do bairro e foi então
que “os amigos o seguraram e bateram nele com um pedaço de madeira. Eles
repetiram golpes na altura dos quadris e dos rins” (LAUB, 2016, p. 11). Ele assistiu
sem participar, pois algo em Walter já estava diante daquela dor. Faço menção ao
texto de Susan Sontag, Diante da dor dos outros, no qual a autora, ao pensar em
imagens da guerra e da barbárie discute, entre outros assuntos, o desgaste que as
imagens de horror causam, seja pelo uso excessivo, pela falta de reflexão sobre
essas imagens, pela banalização ou recorrência. Sontag, neste texto, ainda está
muito próxima do seu outro ensaio, Sobre fotografia. Assim, a autora tem como
ponto de partida imagens fotográficas, o que não nos impede de pensar sobre
como essas imagens de vulnerabilidade podem nos colocar diante da dor desse
outro (SONTAG, 2003).
Nesse mesmo sentido, em outro texto, Sontag apontará que essa rela-
ção entre sexualidade e barbárie foi potencializada pela AIDS, quando que afir-
ma que “a aids assinala um momento decisivo nas atitudes atuais em relação
às doenças e à medicina, bem como à sexualidade e às catástrofes” (SONTAG,
2007, S/N). Desta forma, a barbárie da AIDS e o preconceito endereçado a essa
comunidade dissidente foi exaurindo o poder de impacto, de luto e do valor
individual das pessoas que foram morrendo. Pois bem, no site da a Associação | 107
Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, há relatos de que eventos como
esse, presenciado por Walter, são recorrentes pois, segundo o site, nosso “país
passou do 55º lugar de 2018 para o 68º em 2019 no ranking de países seguros
para a população LGBT.” Isso indica um aumento vertiginoso de casos de vio-
lência contra travestis e transexuais que está, como podemos inquirir, ligado ao
discurso de ódio e ao ultraconservadorismo da extrema direita, visto que “nos
dois primeiros meses dos anos, entre 1/01 e 28/02/2020 (incluso ano bissexto em
2020), o Brasil apresentou aumento de 90% no número de casos de assassinatos
em relação ao mesmo período de 2019”[8]. Conforme o romance, o que Walter
observou como sendo uma “brincadeira” de espancar a travesti, realizada por
seus amigos, não é um ato isolado e muito menos restrito aos anos oitenta. Pos-
teriormente, Walter visita a travesti:
Ontem levei meu irmão burro para passear, ele estava com
vontade de engolir e desengolir as coisas [...] apresentei meu
tubo de engolir e desengolir a um lugar que ele apreciou
muito: a sauna Moustache’s (LAUB, 2016, p. 9 e 30).
| 108
Para ler essas mensagens, retomo aqui algo que discorri acima sobre o mo-
vimento de liberdade sexual impulsionado pela pílula anticoncepcional. Segundo
o os autores livro Histórias da AIDS, em decorrência desse processo de descoberta
sexual, surgiram várias saunas. Nesses lugares, os clientes pagavam um aluguel
de um armário, às vezes havia uma cama ou mesmo corredores mal iluminados
no qual os visitantes caminhavam se esbarrando e se conhecendo. Em meio aos
banhos de sauna, ocorria a socialização e o refúgio para que alguns dessem vazão
ao desejo em meio a uma sociedade que recriminava veementemente qualquer
manifestação homoafetiva. Algumas saunas contavam com salas de orgias nas
quais toda interação era feita por grupos que praticamente não se conheciam e
nem se quer se viam devido à falta de iluminação (TIMERMAN e MAGALHÃES,
2015, p. 81 e 82). Foram frequentadores de saunas similares a essa, os cinco jovens
gays, mencionados anteriormente, que apresentaram os primeiros sintomas da
AIDS, fato que deu início a todo o preconceito em relação a essa doença e à ideia
de que era específica da população gay como uma forma de um castigo[9]. Son-
tag acrescenta ainda que:
Notas
1.
LAUB, Michel. O tribunal da quinta-feira. 2016, p. 8 e 9.
2.
Em Histórias da AIDS, livro de Artur Timerman e Naiara Magalhães colhem uma série de
relatos sobre pacientes portadores do vírus do HIV e também se baseiam em uma série de
pesquisas para pensar através de questões da infectologia, da história e sociologia. Algo in-
teressante a se pensar nesse momento e que permeará o livro de Michel Laub é o fator de
desconhecimento a respeito de se portar ou não o vírus do HIV. Timerman e Magalhães aler-
tam que “se você já fez sexo sem camisinha alguma vez nos últimos anos, sem conhece o es-
tado sorológico de seu parceiro, é recomendável que faça o teste de HIV” TIMERMAN, Artur
& MAGALHÃES, Naiara. Histórias da AIDS. 2015, p. 93.
3.
Nesse contexto acontece o boom da Playboy e da indústria pornográfica. Cf. TIMERMAN, Ar-
tur & MAGALHÃES, Naiara. Histórias da AIDS. 2015, p. 79 a 81.
Sontag também aponta algo interessante nesse sentido quando assevera que “a ideologia do
capitalismo faz com que todos nós nos tornemos peritos em liberdade — na expansão ilimitada
das possibilidades. Praticamente tudo que se propõe é apresentado, acima de tudo ou adicio-
nalmente, como um aumento de liberdade. Não todas as liberdades, é claro.” SONTAG, Susan.
Doença como metáfora / AIDS e suas metáforas. 2007, S/N.
4.
“A “PESTE” É A PRINCIPAL METÁFORA através da qual a epidemia de aids é compreen-
dida.” e ainda “COMO ERA PREVISÍVEL, em se tratando de uma doença ainda não inteira-
mente conhecida, além de extremamente resistente a tratamentos, o advento desta nova e
terrível doença — nova ao menos enquanto epidemia — proporcionou uma excelente opor-
tunidade para a metaforização da moléstia. Estritamente falando, o termo aids — síndrome
de imunodeficiência adquirida — não designa uma doença, e sim um estado clínico, que tem
como conseqüência todo um espectro de doenças.” Cf. SONTAG, Susan. Doença como me-
| 111
táfora / AIDS e suas metáforas. 2007, S/N. O surgimento da AIDS propiciou toda metáfora
da doença como sendo mais que uma doença e sim uma peste. Sontag chama atenção que
na verdade a AIDS é um estado clínico de imunodeficiência causada pela ação do vírus. A
ideia de uma doença ou de uma peste serviu mais para o moralismo da sociedade nomear o
comportamento sexual como sintomático e manifestação de uma doença que eles atribuí-
ram meramente ao desejo do outro.
5.
“Foi muito antes da aids que William Burroughs afirmou, em tom de oráculo, e Laurie Anderson
repetiu, que “a linguagem é um vírus”.” Cf. SONTAG, Susan. Doença como metáfora / AIDS e
suas metáforas. 2007, S/N.
6.
Sontag retoma uma campanha com a seguinte afirmação: ““Assim, lembre-se de que quando
uma pessoa tem relações sexuais com um parceiro, não é só com esse parceiro que ela está
tendo relações, e sim com todas as outras pessoas que tiveram relações com esse parceiro nos
últimos dez anos”, afirmou, num pronunciamento cuidadosamente neutro quanto ao sexo das
pessoas envolvidas, o secretário da Saúde e Serviços Humanos, o dr. Otis R. Bowen, em 1987.”
Cf. SONTAG, Susan. Doença como metáfora / AIDS e suas metáforas. 2007, S/N.
7.
O narrador mesmo lembra alguns nomes: Rock Hudson, Lauro Corona, Freddie Mercury, Cazuza,
Caio Fernando Abreu, Hervé Guibert, Sandra Breá, Claudia Magno além, claro, de seus amigos.
Cf. LAUB, Michel. O tribunal da quinta-feira. 2016, p. 13, 14, 26, 33, 50 - 52.
8.
ANTRA BRASIL. Violência. Disponível em: https://antrabrasil.org/category/violencia/. Acesso
em 13 mai. 2021.
Ampliando esse debate, poderia me valer aqui de Judith Butler que em Corpos que importam
faz uma interessante reflexão a respeitos de quais corpos importam ou não e como opera esse
sistema de valoração. Conforme podemos ler: “aquilo que determina quais corpos importam
[matter], quais modos de vida contam como “vida”, quais vidas vale a pena proteger e salvar,
que vidas merecem ser enlutadas?” Cf. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites dis-
cursivos do “sexo”. 2019, p. 40
Desta forma, é importante pensar como a AIDS só tornou ainda mais evidente algo que antece-
de a epidemia: a morte de pessoas dissentes não foram sentidas da mesma forma, ao contrário,
foram estigmatizados e ainda mais empurrados às margens. Algo que ressoa no tempo em que
escrevo esse texto ao passo que os dados apresentados pelo ANTRA apontam para um cres-
cimento assustador de mortes e violências contra transexuais e travestis e o reconhecimento
das dores dessa comunidade é ignorado no âmbito de políticas públicas – corpos que realmente
importam menos.
9.
Sontag faz apontamentos muito interessantes a esse respeito: “A idéia de que a aids vem cas-
tigar comportamentos divergentes e a de que ela ameaça os inocentes não se contradizem em
absoluto. Tal é o poder, a eficácia extraordinária da metáfora da peste: ela permite que uma
doença seja encarada ao mesmo tempo como um castigo merecido por um grupo de “outros”
vulneráveis e como uma doença que potencialmente ameaça a todos.” SONTAG, Susan. Doença
como metáfora / AIDS e suas metáforas. 2007, S/N.
Ou seja, quando alguma pessoa homoafetiva era contaminada ela era vista em forma de um
castigo, por outro lado quando alguém dentro da heteronormatividade contraia a doença era
visto como uma espécie de um desmembramento ou um respingo dessa mesma doença que
permanece como sendo pertencente ao grupo de um “outro” gay. O discurso moralista investiu
toda energia que tinha para estigmatizar a AIDS como um castigo. A exemplo de “Jerry Falwell
[que] propõe o diagnóstico genérico de que “a aids é a condenação divina de uma sociedade que
não vive conforme os mandamentos de Deus”. O que causa espanto não é a epidemia de aids
estar sendo explorada desse modo, e sim o fato de que esse tipo de retórica bombástica tem
emanado apenas de um grupo tão previsível de fanáticos; o discurso oficial sobre a aids invaria-
velmente adverte contra a intolerância.” SONTAG, Susan. Doença como metáfora / AIDS e suas
metáforas. 2007, S/N.
A AIDS tornou menos velado o discurso da intolerância. Havia, desta forma, muitas pessoas,
médicos, religiosos não só na sociedade civil, mas também entre os governantes que não tinham
nenhum pudor em culpar a comunidade gay pelas mortes da AIDS.
| 112
10.
Como os discursos de um saudosismo da ditadura, da tolerância negativa (eu não tenho pre-
conceito desde que não se aproximem de mim), o religioso fanático pescando e se utilizando de
versículos para condenar com sua boca, mas escorado na bíblia, os que culparam a jovem reda-
tora como sendo ela a interesseira que quis abrir as pernas para um executivo como uma forma
de abrir oportunidades na carreira, a da pessoa que usa dessa situação para se mostrar melhor
moralmente, o intelectual que quer teorizar para demonstrar sua inteligência sobre o assunto
mesmo sem saber ao certo o que está acontecendo e, por fim, o discurso de lacração que, seme-
lhante ao ‘mitar’ tem a ideia de calar o diálogo. Isto quer dizer, “eu estou certo(a) e lacrei/selei
esse assunto e nada do que você disse vai mudar isso.” Conforme podemos perceber, a internet
enquanto seu potencial de viralização, em determinados casos, torna-se um ambiente propício
para esses pré-julgamentos dos quais a comunidade gay é um alvo muito visado. Cf. LAUB, Mi-
chel. O tribunal da quinta-feira. 2016, p. 69, 70, 99, 103 e 104.
11.
No livro Histórias da AIDS, mais especificamente a primeira parte com os capítulos 1 ao 7, Timer-
man e Naiara Magalhães colhem uma série de relatos de pessoas que seguem a rotina médica
de tratamento e conseguem tranquilamente terem outros relacionamentos. Nesse caso, com o
passar dos anos, a carga viral passa ser mínima no corpo do soropositivo e em alguns casos os
exames passam nem a detectar mais o vírus. Nesses casos vários médicos ainda recomendam
que não seja necessário um momento de contar que “eu sou soropositivo”. Isto porque, confor-
me venho ressaltando durante o trabalho, apesar da AIDS estar fora do radar por não ser uma
doença que seja muito comentada, nem tenhamos mais casos fatais recorrentes devido as faci-
litações médicas, o preconceito ainda é muito forte. Além disso, a associação com a comunidade
gay ainda é presente. É importante acrescentar ainda que além da importância da medicação
para os que estão em tratamento, de forma geral, é sempre indicado o uso do preservativo. Nes-
se sentido as mulheres são mais vulneráveis que os homens devido a mucosa vaginal feminina e
o homem possuir proteção com a pele. Neste mesmo trecho (p. 94-96) lemos que a tentativa de
não usar o preservativo é, majoritariamente, uma tentativa masculina. De modo que afetos que
usem preservativo estão se protegendo, reduzindo a quase zero qualquer chance de contami-
nação, tanto dos parceiros e até mesmo em caso de algum bebe que possa surgir desses afetos.
Cf. TIMERMAN, Artur & MAGALHÃES, Naiara. Histórias da AIDS. 2015.
12.
É preciso lembrar que, além da esposa, José Victor teve inúmeras relações sexuais sem o uso
de preservativo, mas vê nela um risco por ela ter tido contato com alguém da comunidade
gay no passado.
Referências
| 114
Lucas Diego
Gonçalves
da Costa
Um conto de
nenhuma cidade:
pôneis, cores e
violência na
comunidade
desterritorializada
Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos, era a época
da sabedoria, era a época da tolice, era o tempo da crença,
era o tempo da incredulidade, era temporada da luz, era a
temporada das trevas, era a primavera da esperança, era o
inverno do desespero, tínhamos tudo perante nós, tínhamos
nada perante nós.
(Dickens)
O próprio sujeito não está no centro, ocupado pela máquina, mas na borda, sem identidade
fixa, sempre descentrado, concluído dos estados pelos quais passa.
0. 0x2163697479
Não era nenhuma cidade. Não havia pessoas. Nenhum fluxo ou movimen-
to. Tampouco havia construções e vias, vizinhanças e parques. Entretanto havia
comunidades. Comunidades sem cidade, desterritorializadas. Comunidades sem
habitantes, sem as singularidades múltiplas e móveis em suas efêmeras organi-
zações, mas comunidades de dados, comunidades digitais. Compostas por bits e
elétrons que circundam a Terra na velocidade da luz, dão a volta ao mundo em
menos de 80 milésimos de segundo. Na verdade, o fazem em apenas 10 milésimos.
Se na cidade havia a possibilidade de um convívio holístico com o outro, as
comunidades digitais tendem a fazer de tudo para cerceá-lo. O convívio é apenas
circunstancial. Apenas na medida em que corrobora com uma identidade mono-
lítica que constitui a comunidade. Todo o restante é rechaçado. Dispensaram os
agenciamentos rizomáticos da vida, do acaso e da diferença para se aceitarem
como a instauração de um ideal daquilo que a comunidade deve ser: um tópico
(utópico?). Um assunto central-divino em torno do qual as discussões e comparti-
lhamentos se agrupam, enquanto todo o restante é negligenciado e apartado. O
que talvez fosse positivo, já que poderia potencializar questões dissidentes que
jamais teriam ressonância fora de suas bolhas. Mas é mais complicado. Sempre é.
Se é possível alguma existência de tamanho individualismo, desconectada das
multiplicidades que singularizam o ser, tal existência se dá nessas comunidades.
Não ocorre que as comunidades digitais tenham se coordenado a fim de
se tornarem tão especifistas, embora isso tenha ocorrido em alguma escala. O
aspecto unívoco das comunidades surge também pelas forças que as governam.
Elas não são governadas por autoridades locais, mas pelo Algoritmo. Assim, em
maiúsculo e no singular. Uma entidade incorpórea, sem voz e sem rosto, que co-
ordena as ações sutilmente, manipula as cordas por detrás da cena, de maneira
que preserve a sempre tênue sensação de liberdade, o que quer que isso repre-
sente. Funciona mais como um Grande Irmão do que como um rei. Não prende e
não pune, não agride. Apenas incentiva. E o faz com leves tapinhas nas costas,
tão leves que mal tocam a pele. Se confundem com o vento. Assim, quando al-
guém decide mudar de direção, clicar em uma coisa ao invés de outra, vai enten-
der como uma ação espontânea motivada apenas pelo seu próprio pensamento,
ou no máximo pelos seus impulsos inconscientes.
Todos sabem da existência do Algoritmo, contudo ninguém sabe ao certo
como ele opera, como aprende, como evolui e delibera. Só se sabe que é capaz de
interferir no caminhar das comunidades. Mas como todos se veem como senhores
de suas próprias decisões, como um refúgio da autonomia de pensar e agir, são in-
capazes de notar as ramificações do Algoritmo imperando em seus próprios likes. | 116
Mesmo este texto, o Algoritmo o conhece. Já o leu e releu milhares de ve-
zes. Conhece cada caractere inserido e removido, os trechos descartados, quais
contribuições foram feitas e quando elas ocorreram. Consegue deduzir, muitas
vezes com precisão assustadora, qual será a próxima palavra digitada partindo
somente da primeira letra. Ainda assim, o autor acredita em sua autonomia inte-
lectual quando seleciona os resultados retornados pelo Mecanismo de Busca.
Acontece que, não raro, o comportamento das comunidades digitais se
desdobra em práticas agressivas, violentas, que segregam, que rompem os limia-
res luminosos das telas e sangram o mundo. Curioso, já que o Algoritmo não agri-
de, nunca perpetra atos de violência. O que se dá, então, em comunidades que
ostensivamente se fazem violentas? E o que há em certas comunidades que, ape-
sar de ostentarem um tópico tão dissidente e problematizante, apresentam pen-
samentos tão autoritários? E por que Ele não haveria de sugerir, de incentivar, de
indicar, caminhos diferentes, talvez mais múltiplos e tolerantes, para o convívio
no tecido digital? Onde se sustentam essas contradições? E o que se passa com
aqueles admiradores de pôneis?
Suástica no arco-íris
| 125
Notas
1.
Alt-right (alternative right) é um termo genérico e abrangente usado para designar ramifica-
ções da extrema direita que abrangem movimentos nacionalistas e supremacistas, caracteriza-
dos pela sua posição anti-sistema e negação da política tradicional, razão pela qual se nomeiam
como uma direita alternativa, e pelas estratégias de inserção no debate público por meio de
mecanismos digitais. Essa questão será melhor elaborada adiante.
2.
Em entrevista para a revista britânica Woman’s Own, Tatcher afirma: “There is no such thing
[as society]! There are individual men and women and there are families and no government
can do anything except through people and people look to themselves first.”. Disponível em
<https://www.margaretthatcher.org/document/106689> acesso 11/05/2021.
3.
FedEx shooter wrote about My Little Pony in suicide note. Matéria disponível em <https://
news.yahoo.com/fedex-shooter-wrote-little-pony-155109620.html> acesso em 11/05/2021.
4.
O conceito de máquina é elaborado ao longo da obra de Deleuze e Guattari. A máquina remete ao
funcionamento interconectado das coisas todas, máquinas de desejo, máquinas de máquinas. O pri-
meiro capítulo de “O Anti-Édipo” é aberto dizendo que “Há tão somente máquinas em toda parte,
e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões” (p. 11).
5.
The Great Hack (2019) e Terms and Conditions may Apply (2013) são documentários que co-
mentam a ausência da privacidade online e seus desdobramentos para as pessoas, com as con-
tribuições de governos e corporações.
Referências
| 127
Lucia
Santiago
As dobradiças
do tempo
Clark e Woolf
A leitura de Orlando, de
Virginia Woolf, era ensaia-
da desde que ganhei o livro
em 2016. Li um pouco, parei,
li mais um pouco, e em meio
ao cotidiano veloz, a leitura
não foi concluída. Retomada
para a disciplina[1], foi prazerosa e leve. Tenho pensado que, nos tempos em
que estamos vivendo, a arte tem nos ajudado a enfrentar os momentos mais
difíceis. A literatura tem sido o meu próprio salto de lucidez.
É admirável a habilidade de Woolf com a escrita: suas experiências com a
construção das narrativas, seus personagens e os desafios criados por ela pró-
pria para lidar com seus limites de escritora, de criadora.
Orlando é, para mim, uma linda experiência da escrita, uma montagem de
tempos diversos e a criação de uma personagem fascinante. Uma personagem
de alma, gênero e sexo livres. Um ser que “questiona outra forma de obscuri-
dade para remover a sua sombra do nosso horizonte” (SANTIAGO, 2015, p.281).
Seus gestos, sua sexualidade, seu corpo, suas transgressões e os saltos nos tem-
pos apontam para uma personagem que é capaz de romper as fronteiras dos
gestos, do corpo, da sexualidade e do próprio tempo.
Mais que apropriada é a afirmação de Silviano Santiago, no final do pos-
fácio do livro Orlando, quando ele afirma
A obra de Lygia Clark não tem forma fixa, é multiplicável, não possui
lados, suas articulações geram movimento. Orlando, a personagem, não tem
gênero fixo, é um ser que vive em movimento apoiado no tempo, ou nas do-
bradiças do tempo, montando, desmontando, dobrando, desdobrando o próprio
espírito do tempo. Uma personagem que não morre, não envelhece e, quando
o leitor termina a leitura, Orlando tem apenas 36 anos. Além disso, a obra Or-
lando é uma belíssima declaração de amor de Woolf para a inglesa Vita Sack-
villle-West, com quem a escritora teve um romance e escreve o livro quando a
relação entre elas já havia acabado. E talvez, Orlando seja o espírito do tempo
em cada uma das épocas em que a narrativa acontece, um espírito em movimen-
to, em constante mudança, vivendo tudo o que é possível nas dobras do tempo
propostas por Virginia Woolf.
Silviano Santiago
| 132
No posfácio de Orlando, Silviano Santiago afirma que a personagem Or-
lando é queer. Ele pontua ainda que sua afirmação está baseada nas exposições
contemporâneas de Judith Halberstain, especificamente na obra Queer Tem-
porality and Postmodern Geographies (Temporalidade queer e geografias pós-
-modernas). Para Judith Halberstain, “o que, em parte, fez o ‘ser queer’ se impor
como forma de autodescrição, nos últimos anos, tem a ver com a maneira como
essa concepção torna acessíveis à época e ao espaço novas narrativas de vida
e relações alternativas” (HALBERSTAIN apud SANTIAGO, 2015, p.268). Ainda
conforme Santiago, Orlando vive em seu corpo tudo aquilo que se faz presente
entre o século XVI até os anos de 1920, podendo ser visto como um experimen-
to ficcional de Virginia Woolf (2015, p.268).
Em Teoria Queer – uma política pós-identitária para a educação, Guacira
Lopes Louro (2001, p. 541-553) desenvolve um argumento para criação de uma
pedagogia queer. Seu pensamento tem como suporte a luta entre as “minorias”
sexuais e os grupos conservadores. Vale ressaltar que as “minorias” vão além
da questão numérica e apontam para “maiorias silenciadas”. Para a autora, nos
dois últimos séculos, a sexualidade constituiu-se como uma questão, e os pro-
cessos de normatização dos corpos também foram ampliados. Mudanças que
provocam uma relação de tensão entre as políticas identitárias e as políticas
das diferenças. O embate é complexo e está em constante transformação. Não
há certezas, modelos ou fórmulas. Há novas práticas e novos sujeitos.
A partir destes apontamentos, a personagem Orlando pode ser com-
preendida como um sujeito queer, pois Orlando vive na fronteira da norma
vigente do sexo em cada uma das épocas apontadas na narrativa de Woolf. A
personagem é ambígua, múltipla e fluida, características importantes para a
teoria queer.
As roupas dizem muito sobre nós. A moda reflete tudo aquilo que consti-
tui uma sociedade, podendo incluir ou excluir o indivíduo, os comportamentos
sociais, culturais, econômicos e políticos de uma determinada época. Seu siste-
ma de mudanças é contínuo e se mantem vivo através de busca pela novida-
de, o que a faz, por muitas vezes, ser considerada frívola. “Da mesma forma, a
moda está integrada à construção e à comunicação das identidades sociais, aju-
dando a delinear a classe, a sexualidade, a idade e a etnia de quem a usa, além
de expressar as preferências culturais individuais” (MACKENZIE, 2010, p.6).
Por um lado, a moda pode contribuir para o diálogo sobre temas como
preconceitos contra as mulheres, mulheres e homens negros, os jovens, tra-
balhadores, comunidade LGBT+. Por outro, a moda pode repetir, influenciar,
conformar ou formatar aquilo que já é vigente. Por exemplo: na Grécia e
Roma antigas os saiotes eram usados por homens e mulheres, ao longo da
história da indumentária tornou-se uma roupa de mulher e, ainda nos dias de
hoje, a sociedade compreende a saia como uma roupa de mulher. Claro que
já é possível vermos homens usando saias na contemporaneidade, mas ainda
são poucos e o preconceito ainda é grande.
Na obra de Woolf, sua personagem Orlando usa com desenvoltura as
roupas como artifícios para a sua circulação entre os dois gêneros. Para Or-
lando, vestir um traje masculino ou um traje feminino era um ato conheci-
do, no sentido de compreensão dos modos vigentes de cada época em que
viveu, do comportamento de um homem ou de uma mulher. Ou melhor, de
como um homem ou uma mulher deveriam agir. As possibilidades abertas ao
ser um e outro enriquecem a vida de Orlando: “não é de surpreender que,
enquanto opunha um sexo ao outro e descobria que ora um, ora outro estava | 135
repleto de fraquezas as mais deploráveis não estando segura a qual perten-
cia” (WOOLF, 2015, p.106).
Orlando, durante o romance, “sentia a necessidade de algo ao qual pu-
desse fixar seu oscilante coração; o coração que lhe rasgava o lado do peito; o
coração que aprecia, todas as tardezinhas, a esta hora, quando saía para passe-
ar, ser invadido por aragens pungentes e amorosas” (WOOLF, 2015, p.15). Um
coração que, ao longo da narrativa, ainda busca por algo que fosse capaz de
fixar seu coração. Sua busca é continua ao longo das épocas em que vive e
é tão intensa, que seu corpo, através de mudanças físicas, criou um caminho
novo para experimentar a vida, o amor, o sexo, o tempo e, quem sabe, acal-
mar seu coração. Orlando era um espírito em movimento, não importa a época
em que estava vivendo. Um espírito capaz de montar, desmontar aquilo que
era convencional, vigente, tornando-se extraordinário. Orlando parece de fato
constitui-se de dobradiças, como a escultura de Lygia Clark, através das quais o
tempo se dobra sobre o próprio tempo, transformando-se em algo novo a cada
montagem e desmontagem.
A personagem desconstrói a imagem de gênero, os binarismos de gênero
ou a imagem desses binarismos, articula, de forma particular, uma identidade
nada convencional, rompe não apenas a barreira do tempo, mas as fronteiras
entre ser homem e ser mulher. Usufruiu das belezas de ser um e outro. Lança
mão de artifícios sociais para experimentar o desejo, o amor, o sexo e a vida.
Notas
1.
Corpos dissidentes: arte, literatura e política, ministrada pelo Professor Dr. Luiz Lopes no Cen-
tro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
Referências
CLARK, Lygia. O Bicho! Lygia Clark. Itaú Cultural. SP. 2012. Dispo-
nível em https://www.youtube.com/watch?v=K9ZIrXlPI6c. Acesso
em 22 MAIO 2021.
| 137
Luiz
Lopes
Noll: literatura,
corpo e
pensamento
queer
Queer é a rejeição total ao regime do Normal.
| 142
Eu já era outro. Abri o armarinho e vi os artigos de maquia-
gem. Pus-me a trabalhar para fazer de mim uma mulher
próxima ao ideal. Parecia ter uma prática enorme com cos-
méticos. Em dez, quinze minutos possuiria um rosto para
pretendente nenhum botar defeito. Não me via então como
mulher acabada. Embora não apresentasse aquelas impure-
zas grosseiras de pele que uma parcela expressiva dos ho-
mens ostenta (NOLL, 2008, p. 96).
Foucault sabe que todas essas utopias engendram uma espécie de desa-
parecimento do próprio corpo. O filósofo efetua uma crítica em relação ao pen-
samento ocidental que rebaixou o corpo como categoria do não pensamento.
Foucault, na esteira de Spinoza e Nietzsche, reivindica o corpo como categoria
do pensamento. De modo similar, a literatura de Noll também se volta contra
essa rasura do corpo e deseja a afirmação desse “corpo lamacento” e abjeto.
Tanto em Noll como em Foucault parece importante a declaração do corpo
como categoria do pensamento, como fio condutor de um modo de ver o mun-
do, de habitar os espaços e, sobretudo, como forma de pensar e agir contra as
lógicas de opressão e mortificação das diferenças, em outras palavras, por meio
de uma transgressão permanente que, para o narrador, é ócio e deleite.
Referências
| 149
SAFATLE, Vladimir. Viver sem esperança é viver sem medo ou con-
tra a utopia. In: NOVAES, Adauto (org.). O novo espírito utópico. São
Paulo: Edições SESC-SP, 2016. E-book.
O corpo, então, é essa “grande razão” que move o eu, que o produz, se-
gundo a própria multiplicidade do ser, com esse sentido único, o de querer re-
alizar-se, mais e mais, em potência; este que é atravessado pelo desejo, pelo
devir, pelos incessantes movimentos das forças em conflito que agem sobre os
seres. E aqui, a partir de uma consciência que valoriza as expressões dos corpos,
buscamos estabelecer um contato mais estreito entre a teoria queer, de Judith
Butler, e a produção cinematográfica de Céline Sciamma, o filme Tomboy, de
2011. A proposta da cineasta é aproximar a temática queer do universo infantil:
ao explorar a inocência das crianças, Sciamma consegue transmitir sinceridade
e, com isso, gerar empatia no expectador. Além disso, consegue expressar a
subjetividade de sua protagonista sem cair em generalizações; e aproximamo-
-nos do enredo do filme tendo em vista algumas das principais reflexões reali-
zadas por Butler, tais como as que tratam das questões de sexo e gênero, das
performances e das performatividades, todas elas tendo o corpo como referen-
cial para a compreensão da teoria queer.
Este trabalho pretende atravessar, sobretudo, a questão do gênero, pois
é a partir dele que os indivíduos vão se produzir socialmente. Segundo Butler,
“[...] ‘as pessoas’ só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformi-
dade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade de gênero” (BUTLER, 2003,
p. 37). Para que possamos nos aproximar um pouco mais do pensamento da au-
tora em relação ao problema de gênero, são necessárias algumas considerações.
A filósofa afirma que
| 154
Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o pró-
prio construto chamado ‘sexo’ seja tão culturalmente
construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre
tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo
e gênero revela-se absolutamente nenhuma. Se o sexo é,
ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz
sentido definir o gênero como a interpretação cultural do
sexo (BUTLER, 2003, p. 25).
Assim, podemos compreender que o domínio dos sujeitos não pode pro-
duzir-se sem que haja, também, o domínio dos seres abjetos, sendo a própria
existência destes o ponto de partida para o surgimento daqueles, tendo em
vista uma seleção de idealidades fundantes da própria matriz social de indi-
víduos que se deseja produzir. Nesse sentido compreendemos que os seres
abjetos são, por excelência, a própria manifestação de uma diferença, na qual
a vida exerce sua potência mais afirmativa, e a modelagem do sujeito torna-se
uma prática que se propõe a frear os movimentos de expansão dos corpos que
se afirmam a partir da própria diferença. Pode-se tomar partido desses seres
abjetos segundo as considerações de Guacira Lopes Louro (2004), que ajuda a
compreender a efetividade desses corpos a partir da elevação do termo queer.
Segundo a autora,
Há, portanto, uma apropriação do termo queer, juntamente com sua res-
significação, não mais como uma prática linguística a favor da degradação[1]
da vida, mas como elemento capaz de abranger as diferenças manifestadas pe-
los corpos abjetos no contexto expressivo social. Justamente a partir dessa
apropriação, pode-se avançar em expressividade, pois “queer adquire todo o
seu poder precisamente através da invocação reiterada que o relaciona com
acusações, patologias e insultos” (BUTLER, 2002, p. 58). Nesse sentido, a pala-
vra se desqualifica como função depreciativa dos corpos para se converter em
ação afirmativa em favor da vida, da criação do ser, segundo sua própria forma
de existir, em detrimento das circunscrições normativas que buscam produzir
corpos limitados pelos modos de existência instituídos pelos mecanismos de | 156
controle. Pode-se entender ainda que “a política queer [...] adota a etiqueta da
perversidade e faz uso da mesma para destacar a ‘norma’ daquilo que é ‘nor-
mal’, seja heterossexual ou homossexual. Queer não é tanto se rebelar contra
a condição marginal, mas desfrutá-la” (GAMSON, 2002, p. 151). É possível com-
pletar esse raciocínio com as considerações de Jagose:
| 157
Ou seja, o gênero só pode ser constituído a partir da performatividade,
produzindo-se por meio das expressões dos corpos; estes, por suas vezes, não
podem ser anteriores às suas expressões individuais, mas são um produto de
suas próprias expressões (re)afirmadas ao longo do próprio tecido social. Em
outras palavras:
Notas
1.
Queer: strange, unusual, or not expected — Segundo o Cambridge Dictionary (dictionary.cam-
bridge.org).
2. Os artistas performáticos que personificam a figura do drag, tanto “queen”, quanto “king”,
não precisam, necessariamente, possuir orientação sexual específica. A relevância do persona-
gem está, justamente, na “expressão de gênero” exagerada.
| 161
Referências
| 162
Marcílio Miguel Oliveira é mestrando em Estudos de Linguagens pelo Progra-
ma de Pós-graduação do CEFET-MG e membro do grupo de estudos Literatéc-
nica Virtual.
| 163
Mariana
Ferreira
Valentin da
Silva
Ressignificação
cinematográfica
do fracasso em
corpos periféricos:
uma análise do fil-
me Temporada de
André Novais
Oliveira
São corpos poliglotas cheios de referência e
mais resistentes, né? Não há outra opção.
(GRACE, 2017)
A periferia e as salas de cinema
É notável uma crise institucional que afeta o cinema brasileiro neste mo-
mento, especialmente em virtude das intervenções estimuladas pelo governo
de Jair Bolsonaro, Presidente da República em exercício, que sugerem “filtros”
para a seleção de projetos e alterações de políticas da Agência Nacional de
Cinema (ANCINE), como aponta Silva (2020). Em contraste, os últimos anos in-
dicavam mudanças promissoras do perfil representado nas narrativas cinema-
tográficas e do alcance da cultura audiovisual no Brasil.
Nesse sentido, é importante dar atenção às iniciativas artísticas que con-
trariam o padrão de produções cinematográficas e apresentam corpos dissiden-
tes em suas narrativas fílmicas. Uma dessas iniciativas brasileiras, que vem cada
vez mais conquistando reconhecimento internacional, é a Filmes de Plástico,
uma produtora mineira de Contagem, hoje sediada em Belo Horizonte, criada em
2009 e formada pelos diretores André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurílio
Martins e pelo produtor Thiago Macêdo Correia. Os fundadores se conheceram
na Escola Livre de Cinema de Belo Horizonte e criaram uma conexão quando
perceberam algo em comum: todos eram moradores da periferia de Contagem.
Em entrevista à Afronta!, série documental de Juliana Vicente para a Netflix,
André Novais Oliveira diz | 165
E tinha essa coisa de pensar... Por que todos os filmes são feitos
em Belo Horizonte? E são feitos numa Belo Horizonte que é
bem conhecida de novela, de lugares mais centrais. Ou de bair-
ros até de classe média alta. Então a gente vai fazer no bairro.
Foi um movimento natural das coisas. Vem na minha cabeça
(...) ter coisas do dia a dia da periferia. Muito que eu vivi, que
as pessoas vivem, e que às vezes parecem banais, mas pra mim
são muito ricas para serem olhadas (ANDRÉ, 2017).
O fracasso em Temporada
No decorrer do filme, a protagonista conhece novas pessoas e vive situ-
ações inéditas que começam uma mudança em sua vida. Ao mesmo tempo em
que deve lidar com as transformações, ela enfrenta dificuldades no relaciona- | 167
mento com o marido que ainda está em Itaúna e deve se mudar para Contagem
em breve. Diversos pontos da narrativa se relacionam com a ideia de fracasso e,
a este trabalho, interessa a apresentação desses elementos.
Jack Halberstam (2011) propõe uma perspectiva artística queer que as-
socia o fracasso a práticas anticapitalistas, não conformidade, estilos de vida
não reprodutivos e crítica ao sistema. Essa abordagem é cara aos estudos que
contemplam corpos dissidentes, pois compreende que histórias liberais foram
solidificadas ao longo dos séculos por narrativas políticas de triunfo, desenvol-
vimento e sucesso, enquanto as histórias radicais contam com um passado me-
nos organizado que transmite legados de fracasso e solidão como consequência
de homofobia, racismo e xenofobia.
Ao explorar as correntes teóricas e os movimentos sociais que procu-
raram questionar o poder das elites, Halberstam ressalta a tendência desses
grupos de se colocarem numa posição de indivíduos iluminados, heróis que con-
seguem compreender melhor a opressão das massas. Perdendo seu foco nos
próprios processos de dominação, como é notável no feminismo branco, por
exemplo, esses grupos “se imaginam no espaço heroico de indivíduo que enten-
de melhor do que as massas oprimidas sobre as quais teoriza” (HALBERSTAM,
2011, posição 2533, tradução minha).
Com essas considerações em mente, Halberstam reúne contribuições de
teóricas como Babs, Spivak e Mahmood, afirmando que “os feminismos margi-
nais assumem a forma não de tornar-se, ser e fazer, mas de modos sombrios,
de desfazer, inadequar e violar” (HALBERSTAM, 2011, posição 117, tradução
minha). Dessa maneira, o autor destaca estudos feministas que recusam solu-
ções generalistas e posicionamentos heroicos, um feminismo que não se propõe
salvar os outros, mas que encontra propósito em seu próprio fracasso.
| 170
Figura 4: Juliana procura o marido em Itaúna.
A potência do tempo
| 171
Figura 5: Juliana dirige carro com problemas mecânicos.
Por fim, é interessante resgatar a fala da atriz Grace Passô para o seriado
Afronta!, no qual a atriz comenta a perspectiva única do corpo negro periférico
que é constituído por uma história de marginalização sistêmica.
| 172
Referências
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Mariana Ferreira Valentin da Silva é mestranda em Estudos de Linguagens pelo
Programa de Pós-graduação do CEFET-MG com bolsa DPPG-CEFET-MG. Possui
graduação em Letras (Tecnologias de Edição) pelo CEFET-MG (2018). Atual-
mente desenvolve pesquisa sobre as obras dos diretores Wim Wenders e Yasu-
jiro Ozu, sob orientação da Profa. Dra. Mírian Sousa Alves, na Linha I - Litera-
tura, Cultura e Tecnologia, do POSLING.
| 174
Miguel
Fernandes
Pereira
Usando a
máscara:
Yukio Mishima
e a arte queer
do fracasso
1. Introdução
O objetivo deste ensaio é
evidenciar a ubiquidade do
queer cuja presença se
encontra no pensamento e produção artística até de indivíduos assumidamente
tradicionalistas e de extrema direita. Essa presença reflete a relação entre a ho-
mossexualidade, o sadomasoquismo, o fascismo e o conservadorismo. Mishima
é amplamente conhecido por sua tentativa de golpe de estado para restaurar a
autoridade do imperador do Japão e subsequentemente seu suicídio ritual por
meio do seppuku, sua defesa do código do bushido e tendências fascistas. O au-
tor também escrevia romances semi autobiográficos em que, frequentemente,
os protagonistas eram jovens gays que escondiam sua sexualidade para cumprir
um papel de gênero masculino imposto pela ideologia guerreira do Japão Im-
perial, anterior e durante a Segunda Guerrra mundial. Estes atributos aparen-
temente contraditórios de Yukio Mishima serão trabalhados no ensaio com a
finalidade de mostrar que o queer pode estar presente até em indivíduos que
pré datam o movimento ou fazem parte de ideologias que o rejeitam.
Pretende-se então realizar uma análise anacrônica de Confissões de uma
máscara (1974), identificando elementos pertencentes à teoria queer, como a
relação entre sexo, gênero e sexualidade, a performatividade de gênero, o sa-
domasoquismo e a identidade homossexual, em convívio com as posições de
extrema direita abraçadas por Mishima. Para tal, serão contrastados trechos do
romance com reflexões de autores como Jack Halberstan, Judith Butler, Guaci-
ra Lopes Louro e Paul Beatriz Preciado.
2. Mishima queer
| 177
Embora busque se construir e se afirmar como um sujeito hipermasculino e
heteronormativo por meio do bodybuilding, das artes marciais, do casamento, da
paternidade, do serviço militar e de ter sido engajado em movimentos políticos
tradicionalistas de extrema-direita, Mishima produz literatura queer algumas dé-
cadas antes da ascensão dos movimentos LGBT. Confissões de uma máscara dis-
cute o desejo homoerótico e homossexual, o sadomasoquismo, a condição de uma
sexualidade não assumida, do sentimento de diferença e exclusão, da performa-
tividade, de performar masculinidade e heterossexualidade diante da plateia que
é a sociedade. O autor faz isso de maneira poética, nuançada, franca. Apesar de
sua luta para se apresentar como exige a sociedade, ele mostra sua condição ao
mundo e busca, mesmo que por meio de uma personagem fictícia, a visibilidade.
E, ainda que concorde com as ideologias heteronormativas e patriarcais do Japão
Imperial, retrata o sofrimento de se adequar a um mundo incompatível. Mishima
faz publicações simultaneamente semelhantes e diferentes das que ganhariam
mais destaque no mundo ocidental a partir dos anos 70:
| 178
Portanto, não se trata de um essencialismo maniqueísta em que o autor
seria um herói de vanguarda queer lutando contra as normas de gênero de sua
sociedade ou um traidor da causa queer. Mishima, enquanto indivíduo, promove
práticas fascistas e, como autor, flerta com dimensões queer. As duas posturas
não são mutuamente exclusivas, mas, como pontuado por Halberstan, possuem
uma relação complexa e nem sempre palatável ao discurso positivista ou ao
ativismo político:
Tendo em vista o que foi discutido, propõe-se agora analisar a questão do gê-
nero na obra de Mishima.
No universo queer construído anacrônico e acidental por Mishima, sur-
ge a questão de gênero em uma passagem na qual o narrador, observando
as obras em um almanaque de arte renascentista pertencente ao seu pai, se
depara com um retrato de Joana D’arc montada em um cavalo, trajando ar-
madura e armas. Ao confundi-la com um homem, Kochan se sente imediata-
mente atraído por ela, como aos príncipes dos contos de fadas e aos heróis | 180
das revistas de aventuras. Porém, ao descobrir que se trata de uma mulher,
experimenta um sentimento de repulsa:
Aqui, a repulsa pode ser associada não apenas à atração do jovem a homens
e à masculinidade em geral, mas também pode ser uma aversão à quebra dos
códigos de gênero enraizados em seu meio e a uma normatização de gênero/
sexo/desejo. O narrador é queer, mas averso a tipos de queer que perturbem
sua homossexualidade e adoração da hipermasculinidade. É perceptível uma
discussão sobre papeis de gênero:
| 182
Temos de um escritor explicitamente contrário ao ideal da pós-modernida-
de uma visão acidentalmente pós-moderna, atravessada pelo discurso, seme-
lhante à paráfrase que Butler faz do pensamento de Wittig: Essa produção do
sexo como pré discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de
construção cultural que designamos por gênero. “Assim como deve a noção
de gênero ser reformulada, para abranger as relações de poder que produzem
o efeito de um sexo pré discursivo e ocultam, desse modo a própria operação
da produção discursiva?” (BUTLER, 2003, p. 25-26 ).
Kochan ao final do segmento inicial do romance se torna um menino,
aprendendo os códigos e significantes de fazer a masculinidade. Ele recebe
sua máscara e a veste, substituindo a performatividade feminina de Cleópatra
pela masculina do soldado, valorizando acima de tudo a juventude, a força
física, a abnegação e o sacrifício. A seguir, passaria pela puberdade e pelo co-
légio interno, na companhia apenas de meninos e homens.
4. A máscara e o armário
| 184
Não estou pretendendo dizer que encarava aqueles meus
desejos, que se desviavam dos padrões aceitos, como nor-
mais e ortodoxos; tampouco que agisse sob a impressão er-
rônea de que meus amigos possuíam os mesmos desejos.
Bastante surpreendentemente, eu estava tão absorvido
por histórias de romance, que dedicava todos os meus be-
los devaneios a pensamentos sobre o amor entre homens e
donzelas, e a casamento, exatamente como se fosse uma
jovenzinha que não soubesse nada do mundo. Lancei meu
amor por Omi ao monturo dos enigmas abandonados, sem
nunca procurar entender profundamente seu significado.
Agora, quando escrevo a palavra “amor”, quando escrevo
“afeição”, minha intenção é totalmente diferente da com-
preensão que tinha das palavras naquele tempo. Nunca se-
quer sonhei que os desejos como os que sentira por Omi
pudessem ter uma conexão significativa com as realidades
da minha “vida” (MISHIMA, 1985, p. 52).
Kochan tenta descartar seu desejo por Omi, substituí-lo por uma mulher.
Decide nunca “sair do armário”: “Todo mundo diz que a vida é um palco. Mas
a maioria das pessoas não parece ficar obcecada com a ideia, menos ainda tão
cedo quanto eu. Pelo final da infância, eu já estava firmemente convencido de
que a coisa era assim e de que devia representar minha parte no palco sem nem
uma vez revelar meu verdadeiro eu.” (MISHIMA, 1985, p.65). De fato, a saída do
armário nunca foi uma opção para Kochan, uma vez que nunca foi mencionada
uma comunidade de pessoas como ele. Não é possível se assumir, pois não havia
um grupo que o acolhesse na época de sua adolescência:
| 186
5. Conclusão
Foi feita neste ensaio uma análise do romance Confissões de uma más-
cara, de Yukio Mishima, apontando que, no livro, Mishima expressa abertamen-
te uma sexualidade considerada desviante e expõe a questão do gênero como
uma construção discursiva. Na primeira parte, o narrador aprende a ser menino,
ao invés de nascer menino, e, ao longo de todo o romance, utiliza uma “másca-
ra” metafórica e compara a performatividade do masculino com a performance
artística. Discute também suas fantasias homoeróticas e sadomasoquistas, o
que é tabu no contexto histórico de sua publicação.
Diante do exposto, podemos concluir, primeiramente, que o queer en-
quanto conceito vai além do movimento queer em si, aparecendo anacronica-
mente na produção artistico-literária que predata a pós-modernidade, por meio
de conceitos importantes à teoria queer, como a distinção sexo-gênero-sexu-
alidade, a visibilidade LGBT e outros. Chegamos também à conclusão de que a
análise queer não deve reduzir o sujeito a um herói a frente de seu tempo ou a
apenas uma vítima, mas um indivíduo que, como exposto por Halberstan, pode
ocupar diversas posições políticas e sociais, sendo possível que o sujeito possua
um “modo de vida” queer e pertença, em parte, a ideologias reacionárias. Mishi-
ma é um corpo estranho, queer de si mesmo e do mundo.
Referências
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Tiago
Cruvinel
Ensaio sobre a
sexualidade da
criança-viada
Introdução
Recentemente, em maio
de 2021, o projeto intitulado
Criança Viada Show foi cen-
surado na cidade de Itajaí,
no Estado de Santa | 124
Catarina. O projeto tinha como objetivo falar sobre as memórias de infância e
os registros de cinco artistas homossexuais. A censura girou em torno da ex-
pressão “criança-viada” pois foi entendido que o projeto se dirigiria às crianças,
quando, na verdade, seria produzido para e por adultos.
O termo “criança-viada” surge no Brasil, por volta de 2012, pela figura
do ativista Iran Giusti, que criou uma página no Tumblr com imagens suas e de
outros colaboradores que celebravam a liberdade do comportamento infantil
fora do padrão heteronormativo, tais como meninos afeminados ou meninas
masculinizadas.
Não será feita aqui uma discussão sobre os motivos que levaram à censu-
ra do projeto, pois é evidente a homofobia atribuída ao grupo organizador do
Criança Viada Show, mas propõem-se aqui alguns questionamentos. É possível
uma criança ser viada? Se existe a criança-viada, em que momento ela se torna
uma? Pode-se pensar em sexualidade e práticas sexuais como coisas distintas
no que tange à infância? Pensar que uma criança possa ser viada é sexualizá-la?
A criança-viada seria uma identidade existente, e se for, deveria se apresentada
a outras crianças? O fato do espaço social e das práticas sociais não permitirem
a existência do corpo da criança-viada significa então que essa identidade não
existe? Paul Preciado (2019) autor de uma crônica importante, publicada em
2013, sobre a criança queer[1] não responde às perguntas aqui colocadas. A sua
preocupação girava mais em torno de tentar compreender quem defende os
direitos da criança queer, não só o direito de ser diferente, mas o direito de ser
considerada como subjetividade política irredutível a uma autodeterminação
sexual, gênero ou raça (Preciado, 2019).
Sexualidade e sexo
Considerações finais
Esse texto não tem por objetivo ser nenhum artigo científico sobre a se-
xualidade da criança. Isso exigiria um outro tipo de pesquisa. Trata-se de um ar-
tigo de opinião que transita entre um conceito que está no centro da discussão
recente e que atravessa a minha experiência pessoal, de sujeito que se identifi-
ca como tendo sido uma criança-viada.
Ser criança-viada não é um determinismo. Ela pode recusar esse demar-
cador a qualquer instante. No entanto, só é possível recusar uma vez que esse
determinismo já se instaurou, assim como acontece com o sistema sexo/gênero.
A condição de reação ao poder só surge quando o poder já nos demarcou. A par-
tir dessa instauração, dessa marca, dessa cicatriz, as crianças vão criar formas
de agir, interagir e negociar, tanto com a norma cisheteronormativa, quanto
com o marcador criança-viada. Cada vez mais vemos crianças e familiares con-
seguindo resistir às normas de gênero e propondo, ou exigindo, outros modos de
formação dos sujeitos nas escolas brasileiras.
Notas
1.
Termo esse que contemplaria a criança-viada, a criança-trans, a criança-travesti, isto é, todos os
corpos dissidentes à norma cisheteronormativo.
2.
Trechos do discurso disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0ZRKLHQ7YRU.
Acesso 22 maio. 2021. [Título do vídeo: Josie Totah Receives HRC Visibility Award].
| 196
Referências
Adriana Bicalho
Camila Rodrigues Moreira da Cruz
Claudia Cristina Maia
Edson José Carpintero Rezende
Giselle Safar
Marcelina das Graças de Almeida
Maria do Carmo Fernandes Nunes Rolla
Sebastião Brandão Miguel
Soraya Aparecida Alves Coppola
Wânia Maria Araújo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vários autores.
Bibliografia
ISBN 978-65-86805-09-3
21-80890 CDD-080
Organizador
Luiz Lopes
Editor
Mário Santiago
Coeditora
Lucia Santiago
Projeto gráfico
Miriã Bonifácio
Capa e ilustração
Thiago Bonifácio
Revisão
André Meyerewicz
Revisão final
Lucia Santiago
Divulgação
Lucas M. R. Faria
Vinícius Gonzaga
Este livro foi composto com as fontes Elgraine e Cyntho Pro, para a Atafona, em
dezembro de 2021.