Dorian Gray - Puer Aeternus

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Junguiana

v.39-1, p.111-126

Diálogos entre Nise e Jung: a obra expressi-


va de Nise da Silveira e suas contribuições
para a psicologia analítica

Marisa V. Catta-Preta* *

Resumo Palavras-chave
Nise da Silveira foi uma referência na psico- Inconsciente permanecem como um legado que psicologia
logia analítica por pautar seu trabalho nos refer- ainda está em movimento na psicologia analítica analítica,
enciais de Jung que a apoiou e a convidou para como fonte de pesquisa e estudo. ■ doença
mental, arte,
expor trabalhos realizados na saúde mental no
museu de
Brasil, numa exposição em Zurique. O objeti- imagens do
vo deste artigo é analisar aspectos do trabalho inconsciente.
de Nise da Silveira e suas contribuições para a
psicologia analítica. A metodologia é o uso de
pesquisa bibliográfica com alguns estudos de
Jung, Nise da Silveira e outros autores que se
dedicaram a compreender o tema. Considera-se
que o trabalho com esquizofrênicos e a leitura de
imagens empregadas no Museu de Imagens do

* Psicóloga na abordagem junguiana, mestre e doutoranda


em psicologia clínica pela PUC/SP – Núcleo de estudos jun-
guianos. Professora na disciplina de psicologia analítica pela
PUC-SP e UNIMES. Supervisora do Aprimoramento em psic-
oterapia de adultos na perspectiva da psicologia analítica
–(PUC/COGEAE) Coordenadora do curso de pós-graduação
em Psicologia Junguiana (UNIMES).Autora do livro : A noite
da alma –sonhos e insônia e co-autora de Sonhos e Arte,
Sonhos na psicologia junguiana, Jung e Saúde, 95 anos de
Paulo Freire.
Email <[email protected] e [email protected]>

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Diálogos entre Nise e Jung: a obra expressiva de Nise da Silveira e suas con-
tribuições para a psicologia analítica

1. Introdução Adelina e Emygdio, entregues por Luiz Carlos


Discorrer sobre o trabalho de Nise da Sil- Mello, as quais guardo com muito carinho.
veira é convidar o leitor a conhecer uma das O impacto de quem conhece o museu é
diretrizes mestras de construção da minha for- grande, porque nele tudo é verdadeiro. Há de
mação e de muitos colegas no trabalho com a fato um acervo cuidado e alimentado de obras
abordagem junguiana. Suas profundas refle- em séries que possibilitam ver o processo da
xões sobre a realidade do doente mental e seus evolução dos pacientes. São muitas obras ca-
atravessamentos sociais no Brasil, em diferen- talogadas e, quando andamos pelos ateliês,
tes momentos políticos e seu engajamento nas vemos de fato a arte se construindo no espaço
lutas por uma saúde pública melhor foram de- cotidiano do museu. A afetividade, a criação e
terminantes para uma geração de psicólogos a dedicação da equipe do museu, bem como a
que a têm como referência. Mas foi sobretudo forma como compreendem de fato o trabalho
o respeito atribuído à singularidade humana e de Nise da Silveira, são espetaculares. Deixei
à pesquisa em saúde mental, não só através o museu fascinada em minha primeira visita e
de métodos mais humanizados, mas por cami- desde então não apenas estudei ainda mais o
nhos que buscam dar forma concreta à expres- que Nise deixou, mas travei com a equipe do
são simbólica das imagens inconscientes de museu uma amizade de confiança e admira-
seus pacientes, numa proposta de análise do ção: Gladys Schincariol, psicóloga que cuida
que Jung trouxe teoricamente para todos nós, da direção do museu e que está com Nise des-
o que me encantou quando ouvi pela primeira de que ainda era uma estudante; Eurípedes Ju-
vez sobre seu trabalho. Como estudante, li sua nior, que sempre cuidou do trato das imagens
produção mais conhecida, seu livro “Imagens e hoje está na direção da Sociedade Amigos
do Inconsciente”, na voz de Alice Marques – do Museu, concluindo seu doutorado em 2015
médica que fez parte da sua equipe por anos e sobre as coleções de arte e loucura; e Luiz Car-
foi sua amiga íntima – em um congresso brasi- los Mello que está na direção e organização
leiro, o que despertou meu interesse em estu- das exposições nacionais e internacionais das
dar o trabalho de Nise. O refinamento das par- obras. A força dessa equipe formada por Nise
ticularidades do seu trabalho e a forma como o e que conduz esse legado com tanto respeito
relacionou com a prática da psicologia analíti- é muito grande, hoje associada a vários cola-
ca, trabalho aprovado por Jung, e ter Von Franz boradores e redes que se formam em torno do
para fazer análise e orientação, trouxeram-me museu. É com coragem e determinação, pas-
grande impacto. Compreendi que, se eu quises- sando por várias políticas públicas, preconcei-
se trilhar o caminho da psicologia junguiana, tos da psiquiatria tradicional e falta de apoio
teria que ir ao Rio de Janeiro conhecer o Museu de governos omissos à causa da saúde mental
de Imagens do Inconsciente. Quando estive lá que essa equipe atravessa as décadas de tra-
alguns anos depois, Nise já estava afastada balho no Museu de Imagens do Inconsciente,
do serviço público e não consegui vê-la. Mas um museu que ainda está vivo e presente em
deixou-me como lembrança: em troca de um discussões em psicologia analítica.
pequeno presente que eu lhe dei, mandou-me Nise da Silveira é um desses nomes que mar-
algumas erratas de uma exposição de Carlos, caram não só a saúde mental, a psicologia jun-

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guiana, mas também o cenário nacional de sua viva e expressa em símbolos de origem pessoal
época. São conhecidos seus posicionamentos e arquetípicos (CRUZ JUNIOR, 2015).
políticos, afinal foi presa política na sala 4, fa- O fato de Jung, ao receber as fotos das man-
mosa sala de personalidades como Olga Benário dalas brasileiras enviadas por Nise, abrir a expo-
Prestes e Maria Werneck, entre outras mulheres sição brasileira num Congresso Internacional e
importantes do cenário político brasileiro. Foi convidá-la para estudar no Instituto C.G. Jung em
personagem de Graciliano Ramos em seu livro Zurique, além de lhe indicar para uma de suas
Memórias do Cárcere, pintada pelo artista Di discípulas mais importantes para que a orientas-
Cavalcanti, amiga de Manoel Bandeira e amiga se em seus trabalhos, nos traz a ideia do inte-
de críticos de arte como Mario Pedrosa que in- resse do próprio criador da psicologia analítica
titulou de Arte Virgem aquela que Jean Dubuffet por seus trabalhos. Isso aconteceu após uma
chamava de Arte Bruta e incluía as expressões correspondência trocada na qual Nise enviou
de indivíduos que se encontravam à margem de os trabalhos brasileiros para Jung confirmar se
nossa sociedade. eram mandalas e ele respondeu confirmando
Única mulher em sua época na Faculdade de que eram mesmo mandalas. Nise voltou poste-
Medicina na Bahia, ela veio para o Rio de Janeiro riormente mais duas vezes para a Suíça levando
onde trabalhou como médica a vida inteira. Uma um estudo de caso e aprofundou nessas oca-
nordestina, mulher, numa época em que esses siões ainda mais seus estudos na psicologia
atributos bastavam para gerar fortes preconcei- junguiana, além de adquirir com esse trabalho
tos sociais e culturais, Nise era firme e se enga- um profundo respeito e interesse de Jung às ex-
jou sempre na grande batalha em defesa dos pressões do inconsciente retratadas no Brasil
menos favorecidos, os doentes mentais, em sua (MELLO, 2014). O trabalho de Nise da Silveira
época em grande parte abandonados por suas ilustra o que Jung postulou em sua obra através
famílias e pela sociedade em hospitais psiquiá- de seus conceitos teóricos.
tricos com métodos abusivos, intervenções me- Neste artigo, dou início a uma breve introdu-
dicamentosas excessivas e o uso indiscriminado ção ao trabalho do próprio Jung com pacientes
de eletrochoque (MELLO, 2014). psicóticos, esquizofrênicos e sua experiência
Para a psicologia junguiana, o método de com eles. Para Jung (2019b):
Nise da Silveira que teve como base a psicologia
analítica, estudos de autores da antipsiquiatria Para minha satisfação, pude provar que
como Ronald Laing, além de um profundo estudo a doença, embora numa escala reduzida,
da arte e da saúde mental, trouxe contribuições pode ser tratada por meio da psicotera-
importantes pelo fato de se originar nas mãos pia. Tão logo se aceite o tratamento psico-
da única psiquiatra no Brasil, com uma leitura lógico, porém, surge a questão acerca do
na abordagem junguiana capaz de sistematizar conteúdo psicótico e sua significação. Já
imagens de pacientes esquizofrênicos e criar um sabemos que, em muitos casos, lidamos
museu com essas imagens. O museu foi uma com um material psicológico comparável
ideia criativa e de extrema importância para a a certos materiais das neuroses e dos so-
pesquisa daqueles que se interessam pela ex- nhos, que são compreendidos a partir do
pressão simbólica de pacientes esquizofrênicos ponto de vista da pessoa. No entanto, em
e psicóticos em sua maioria. O Museu de Ima- contraste com o conteúdo de uma neuro-
gens do Inconsciente, que atualmente conta se, explicável de modo satisfatório pelos
com mais de 350 mil obras, é um acervo de gran- dados biográficos, os conteúdos psicóti-
de importância também para o estudo da psico- cos mostram particularidades que fogem
logia analítica de Jung, pois lá vemos sua teoria às circunstâncias individuais da vida, que

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também observamos em relação aos so- rem preenchidas sobre a doença mental pela au-
nhos cujo simbolismo não pode ser cor- tora que, ao voltar de Zurique, cria um grupo de
retamente esclarecido com base apenas estudo e impulsiona o trabalho do museu com
nos dados pessoais (p. 285). informações obtidas sobre o acervo do próprio
Instituto C. G. Jung de Zurique (MELLO, 2014).
Em seguida retrato, neste artigo, a importân- Concluo demonstrando a particularidade do
cia do trabalho com arte como expressão simbó- trabalho de Nise da Silveira, que segue a me-
lica para Jung, nas suas próprias experiências e todologia de leitura de imagens postulada por
com seus pacientes. Considero as experiências Jung e que, a conselho do mestre, como ela o
pessoais de Jung e sua expressão simbólica chamava, encontra na mitologia uma forma de
através de pinturas e esculturas na pedra, pre- compreensão e estudo sistemático das ima-
sentes especialmente em suas memórias e no gens que com o tempo passa a ter sua marca
Livro Vermelho (JUNG, 2010), além dos trabalhos indelével. A ideia da fundação de um Museu de
ilustrados presentes em sua obra com imagens Imagens do Inconsciente com as produções dos
pintadas por pacientes e nos Seminários Sonhos doentes para pesquisa em esquizofrenia que,
e Visões. segundo Cruz Junior (2015), resultou num acervo
Prossigo no artigo ressaltando a trajetória de de mais de 350 mil obras, grande parte tombada
Nise na construção de seu trabalho atravessado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
por questões político-sociais no Brasil e a dificul- Nacional, foi uma de suas criações mais geniais.
dade de manter vivo o acervo do Museu de Ima- O acervo do museu é o maior dessa natureza no
gens do Inconsciente como um trabalho sério de mundo. Para obter esses dados, o autor pesqui-
pesquisa com base nos conceitos da psicologia sou várias iniciativas de trabalho com doentes
analítica. Silveira (1981) escreve: mentais envolvendo expressão artística, mas
nenhuma delas compara-se ao número de obras
Certamente a linguagem abstrata que compõem o acervo do Museu de Imagens do
presta-se a dar forma a segredos pesso- Inconsciente (CRUZ JUNIOR, 2015).
ais, satisfazendo uma necessidade de Além disso, ressalto a importância para a
expressão sem que outros os devassem. pesquisa em psicologia das obras do museu e
Mas no hospital é raro acontecer essa tra- do “museu vivo”, que tem mais produções ca-
dução de linhas para palavras. Não se te- talogadas e inseridas no acervo mesmo após a
nha a ilusão de acreditar que onde forem morte de Nise, e a importância da continuidade
vistas linhas imbricadas isso signifique desse projeto e de seu trabalho no Brasil com a
ambição. Cedo me convenci da impossi- equipe que trilhou seus passos e segue com seu
bilidade do estabelecimento de códigos. trabalho diário na pesquisa das imagens incons-
A linguagem abstrata cria-se a si própria cientes. Atualmente a equipe do museu tem na
a cada instante, ao impulso das forças direção os mesmos membros que acompanha-
em movimento no inconsciente. Era uma ram Nise da Silveira. Eles dirigem os principais
constatação empírica (p. 19). trabalhos do Museu e suas exposições no Brasil
e no exterior, em uma luta pela manutenção dos
Finalmente relaciono o trabalho de Nise com trabalhos do museu nos moldes de sua criadora.
os conceitos de Jung, presentes em documentá- O objetivo deste artigo é analisar aspectos do
rios e livros da autoria nos quais estudos de ca- trabalho de Nise da Silveira e suas contribuições
sos são descritos e analisados pela autora sob a para a psicologia analítica. A metodologia é a
perspectiva da psicologia analítica. Seu encon- pesquisa bibliográfica de publicações de Jung,
tro com Jung instaura uma série de lacunas a se- Nise da Silveira e dos autores contemporâneos

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que se dedicaram à pesquisa através da leitura enquanto ser humano, enquanto indivi-
de seus livros e artigos publicados. dualidade; tratava-se do doente número
x, munido de uma longa lista de diagnós-
2. A história do percurso de Jung com ticos e sintomas (p. 114).
pacientes esquizofrênicos
Jung (1990) trabalhou na clínica psiquiátri- Em suas memórias, Jung (1990) relata o
ca Burgholzli ligada à Universidade de Zurique, aprendizado com seus pacientes como no caso
onde tornou-se professor de psiquiatria e, em de Babette. Era uma paciente que tinha uma irmã
1905, e após passar por estudos com Pierre Ja- prostituta e o pai alcoólatra e, aos 39 anos, sur-
net, deu prosseguimento aos seus experimentos tou e apresentava delírios de grandeza. Jung via
com o teste de associação de palavras. Segundo no discurso de Babette a compensação simbóli-
Jung (1990), o teste de associação popularizou ca de um profundo sentimento de inferioridade.
seu trabalho nos EUA, vindo um número grande Outra paciente ouvia vozes, sendo que uma
de pacientes para consultar-se com ele, na Su- delas era a de Deus. Jung a visitou para ler a Bí-
íça. Jung (2019c) só abandonou o uso do teste, blia quinzenalmente, por seis anos, fazendo-a
quando iniciou o trabalho de análise de sonhos. lembrar da leitura anterior. A paciente melho-
Afinal, nos sonhos era possível detectar os com- rou, concentrando suas vozes que antes falavam
plexos do paciente com material espontâneo, pelo corpo inteiro, apenas no lado esquerdo. A
enviado diariamente pelo inconsciente. paciente, para Jung (1990), teve uma cura unila-
Os casos de psicoses merecem destaque teral, mas, de qualquer forma, o levou a compre-
nesse artigo e vêm relatados em suas memórias. ender que o ato intuitivo de ler com ela a Bíblia
Um deles trata de uma paciente que fazia gestos como ordenava a voz, de alguma forma a trouxe
com as mãos sem parar. Jung (1990) acreditava do mundo das imagens.
que, para compreender a doença, era necessá- Jung chama a atenção para o conteúdo da ex-
rio conhecer a história do paciente. Quando a pressão simbólica do paciente, que não é com-
paciente morreu, seu irmão contou a Jung que preensível para a consciência de forma imediata,
ela quisera se casar com um sapateiro, mas foi mas que o fato de não compreendermos não sig-
recusada por ele, o que desencadeou o seu pro- nifica que seja destituída de sentido. Jung (1990)
cesso de enlouquecimento. Nesse momento, considera que a psicoterapia para tais casos já
Jung compreende o gesto das mãos da paciente, fora utilizada por ele no começo de sua carrei-
expressão simbólica de seu sofrimento pela per- ra e não compreende por que esse método não
da do passado. Na época em que Jung (1990, p. é aplicável para muitos que tratam de doença
114) trabalhava no Burgholzli, quando foi médico mental. Para Jung, a cura é possível, e quando
chefe da clínica psiquiátrica por quatro anos, e acontecia muitas vezes, diziam que era um erro
descreve como era vista a doença mental já no de diagnóstico e não aceitavam a possibilidade
início de sua atuação como psiquiatra, como mé- de o indivíduo voltar para sua realidade cons-
dico assistente: ciente (JUNG, 1990).
São muitos os casos que Jung relata em sua
O ensino psiquiátrico procurava, por as- obra, e sua visão de cada indivíduo é única, por-
sim dizer, abstrair-se da personalidade tanto, o método deve ser de uma construção a
do doente e se contentava com diagnós- partir do que traz o paciente e exige do psicotera-
ticos, com a descrição dos sintomas e peuta um preparo individual com análise pessoal
dados estatísticos. Do ponto de vista clí- além do preparo técnico. Jung (2019b) percebeu
nico que então predominava, os médicos que não poderia trabalhar a simbologia por trás
não se ocupavam com o doente mental de uma psicose sem o estudo da mitologia, pois

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não raro a presença de imagens arquetípicas tra- Nise (SILVEIRA, 1992) destaca a atuação de
zia significados importantes para a compreensão Laing pelo fato dele privilegiar a experiência do
das narrativas expressas pela alma do paciente. psicótico procurando compreender o que está por
Interessante notar que, para Campbell, segun- trás da doença. Laing esteve no Brasil em 1978 e,
do entrevista retratada no livro “A jornada do he- ao conhecer o Museu de Imagens do Inconscien-
rói”, a mitologia também tem uma função peda- te, emocionado beijou as mãos de Nise, tocado
gógica, trazendo para o homem uma orientação com o que viu e que tinha forte relação com aqui-
em momentos de crises nos quais aspectos racio- lo que havia vivido em suas experiências com pa-
nais não dão conta de abarcar toda a experiência. cientes esquizofrênicos (MELLO, 2014).
Assim, ele vê na mitologia a ligação do indivíduo à Nise não só negou a apertar o eletrochoque
sociedade, sua integração e seu significado. como foi firmemente contra a lobotomia. Em seu
Jung (2019b) considera que em grande par- trabalho sobre Lúcio, um interno com esquizofre-
te dos casos de esquizofrenia já estaria com- nia do hospital de Engenho de Dentro, Silveira
provado que os indivíduos não apresentariam (1992) revela as lindas esculturas que ele produ-
alterações no cérebro, embora essa fosse uma zia sempre na forma de guerreiros expressam a
doença com manifestações físicas e psíquicas. luta entre o bem e o mal e a deformação que teve
Considera também como na clínica de Zurique o em suas expressões artísticas após a cirurgia.
seu método foi tratar a investigação psicológica Apesar dos apelos de Nise, sua família permitiu
da doença mental. Para Jung (2019b), o conheci- que ele passasse por uma cirurgia de lobotomia
mento da história do indivíduo é primordial para perdendo toda a capacidade criativa, tornan-
qualquer análise do caso. do-se passivo e sem nenhum estímulo para a
Portanto, a ideia de Silveira (1981) de obser- criação de imagens (SILVEIRA, 1992).
var o paciente e compreender que ali há uma
expressão simbólica vem de encontro ao traba- 4. Diálogos entre Nise e Jung – A arte
lho que Jung desenvolveu com esquizofrênicos como expressão simbólica
e que, posteriormente, estendeu à sua clínica Nise iniciou seu trabalho com os pacientes,
particular para todos os tipos de pacientes e não que costumava chamar de clientes, com uma ofi-
apenas aos psicóticos e esquizofrênicos. O tra- cina de costura num espaço sem mesas e cadei-
balho com leitura de imagens que nascem no in- ras, no chão. Para aqueles que não queriam par-
consciente e emergem na consciência foi criado ticipar das oficinas, certa vez tirou suas meias e
por Jung, porém a amplitude que Nise deu a essa fez uma bola para que pudessem jogar futebol e
prática, com a criação de um arquivo gigantesco ter um espaço lúdico. Isso mostra que, mesmo
que é o acervo do museu, foi uma enorme contri- em situações onde não há material, é preciso
buição à psicologia analítica no mundo. ser criativo e propiciar um espaço para a criação
do paciente. Assim, Nise fazia das dificuldades
3. O uso da arte para trabalhar com a oportunidades de práticas criativas, usando sua
esquizofrenia por Nise da Silveira sensibilidade e praticidade. Em um dos relatos
Quando Nise da Silveira criou o setor de te- em sua biografia escrita por Mello (2014), ela di-
rapêutica ocupacional com oficinas e um atelier ria: “Tenho Lampião debaixo da pele... Também
de pintura, precisamos considerar que se trata- se não tivesse, já tinha sido esmagada há muito
va de uma iniciativa corajosa, pois sua ação foi tempo” (p. 294).
anterior ao movimento da antipsiquiatria que foi Os monitores, além de serem orientados para
iniciado com Cooper e Laing, na Inglaterra, Basa- trabalharem no atelier de pintura, participavam
glia, na Itália, além de outros que questionaram dos estudos em grupo de estudo conhecido e
a loucura revisitando sua história como Foucault. frequentado por muitos médicos, psicólogos e

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profissionais de outras áreas, além de internos Jung por duas vezes em entrevistas e, em sua
do hospital. Sua grande amiga e médica Alice biografia, Mello (2014) relata a emoção de um
Marques consegue como diretora do hospital primeiro encontro e o conselho de Jung que dizia
abrir mais espaços para a terapêutica ocupacio- que ela deveria estudar mitologia para a melhor
nal. O serviço se amplia em oficinas de sapata- compreensão das imagens. Além disso, Jung ain-
ria, cestaria, teatro, jardinagem, música, carpin- da a convida a frequentar o instituto suíço, onde
taria, encadernação e recreação. Também desde ela completa sua formação.
1946, havia as oficinas de xilogravura, pintura O grande encontro de Jung e Nise se dá, portan-
e atividades expressivas, e os trabalhos eram to, pelas imagens. Sabemos que, para Jung, o tra-
tão importantes que Nise se inspira em criar em balho com imagens era algo que permeou empiri-
1952 o Museu de Imagens do Inconsciente. Em camente sua vida e sua prática com seus pacientes.
dezembro de 1946, foi feita a primeira mostra No livro recém-lançado “A arte de Jung”, Ho-
dentro do hospital psiquiátrico (MELLO, 2014). erni et al. (2019) comentam que a obra artística
Criticada pela psiquiatria tradicional, Nise de Jung, antes do lançamento de “O Livro Ver-
tem o apoio de artistas e intelectuais que com- melho” que veio a público por Sonu Shandasani
preendiam a grandeza de seu trabalho, como (JUNG, 2010) nunca havia sido publicada e or-
Carlos Drummond de Andrade que escreve um ganizada. Assim, o autor traz uma classificação
lindo texto em sua homenagem onde diz: da mesma com desenhos e pinturas de Jung de
fantasias e imagens suas internas, paisagens e
Nise interroga o inconsciente e consegue aquarelas, o esboço de suas casas em Kusnacht
que dele aflorem as representações artís- e Bollingen, objetos em sua casa com vários ti-
ticas espontâneas, prova de que nem tudo pos de materiais, o desenho do brasão de sua
em seus autores é caos e aniquilamento: família que é por ele reformulado, esculturas na
perduram condições geradoras de uma ati- pedra em sua casa em Bollingen, além de dese-
vidade bela, a serem devidamente estuda- nhos em cartões, pedra esculpida no memorial
das visando ao benefício do homem futu- de Toni Wolf e Emma Jung. No “Livro Vermelho”
ro, tornando-o mais transparente em suas (JUNG, 2010), inúmeras imagens esteticamente
grutas interiores (MELLO, 2014, p. 263). tratadas e belas revelam não apenas os aspectos
inconscientes de Jung traduzidos em imagens e
Na arte, onde compreendia o lugar de mais diálogos, mas o lado artístico do autor que am-
forte expressão simbólica, explorou várias possi- plifica seus símbolos com riqueza de detalhes e
bilidades. Quando os internos começam a dese- traços precisos de quem está familiarizado com
nhar mandalas, Nise escreve para Jung para que a expressão artística.
o “mestre” pudesse validar e confirmar se eram Seus pacientes eram sempre encorajados a
mandalas. Em uma carta ele confirma e, anos trabalhar seus símbolos e ampliarem seus sig-
depois, Nise se inscreve no II Congresso Interna- nificados, mesmo longe de sua presença e da
cional de Psiquiatria e o próprio Jung envia para sessão terapêutica. Assim, temos registros de
Nise um convite formal para sua participação. imagens de visões espontâneas de uma pa-
Ele abre a exposição brasileira e destaca o fato ciente nas suas conferências dos Seminários e
de que nas pinturas há temas comuns retratados Visões, que inicia explicando que as palestras e
por esquizofrênicos, mas apresenta cores vivas esse estudos tinham como objetivo falar sobre
num segundo plano da pintura, o que lhe parece a função transcendente por meio dos sonhos e
mostrar que esses pacientes pintavam envoltos das imagens expressas pelo desenho e pintura,
numa atmosfera afetiva de aceitação por parte promovendo a síntese de sua paciente. A ideia
dos que os acompanhavam. Nise esteve com era mostrar por esse material como era possível

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estabelecer uma conciliação interna, através da percebendo as ligações entre uma crise e outra
superação dos opostos presentes nas possibili- e sentindo que poderiam ser traduzidas quando
dades simbólicas (JUNG, 1983). vistas sob a forma de símbolos. [...] A primeira
Para Jung (2019c), o símbolo define-se de for- observação foi que a maioria dos símbolos trazia
ma diferenciada, e a esse respeito ele escreve: no seu todo uma ligação do mundo interno com
“Chamamos de símbolo um conceito, uma figura o mundo externo” (p. 29).
ou um nome que nos podem ser conhecidos em Os trabalhos de pintura de Adelina, Carlos
si, mas cujo conteúdo, emprego ou serventia são Pertuis e Fernando Diniz tornaram-se documen-
específicos ou estranhos, indicando um sentido tários e estudos de caso de uma importância
oculto, obscuro e desconhecido” (p. 201). ímpar. Esses documentários foram feitos por
Assim, para Jung (2019c, p. 201), a base do Leon Hirszman, famoso cineasta brasileiro, que
símbolo é a função transcendente que permite retrata as imagens pintadas, bem como os auto-
que possamos efetuar a ligação entre conteú- res, com o texto de Silveira (1981). Esses docu-
dos conscientes e inconscientes. Essa reunião mentários trouxeram enorme repercussão para
de conteúdos pode promover uma síntese, uma o trabalho desses artistas, doentes mentais em
outra possibilidade que resulta dessa união de tratamento e que tinham sua história narrada
conteúdos opostos. pelas suas próprias imagens e analisadas por
Assim, a vida simbólica não se expressa ape- Nise. Silveira (1981) descreve esses casos clíni-
nas em imagens oníricas ou espontâneas que se cos, analisa suas imagens e segue o conselho
refletem na arte, mas pode estar contida em ou- de Jung de usar seus conhecimentos de mitolo-
tras formas de representação do símbolo. A pró- gia e pesquisas com material comparativo para
pria palavra pode ter um significado simbólico interpretar símbolos que expressavam imagens
ou, segundo Ramos (2006), os sintomas que sur- arquetípicas. Esses conteúdos eram originários
gem no corpo, como revela a psicossomática na do inconsciente, de suas camadas mais profun-
psicologia analítica. Porém, na arte, é possível das e se mesclavam com questões pessoais de
observarmos uma possibilidade de expressão forte teor afetivo, reprimidas, esquecidas e que
simbólica através da pintura, da escultura, da passam a ser retratadas nas imagens pintadas
música, da poesia, entre outras possibilidades. (MELLO, 2014).
Considerando que o paciente esquizofrêni- Ao tratar cada caso, Silveira (1981) utilizava
co tem uma dificuldade na comunicação clara e a mesma metodologia que Jung aplicava aos so-
objetiva, especialmente para falar de suas emo- nhos, a análise em série. Colocava diante de si
ções e do que se passa dentro de si, Nise da Sil- as inúmeras imagens dos pacientes, cataloga-
veira encontra na arte uma forte aliada como pro- das, datadas e seguia o percurso das imagens a
posta de expressão simbólica do paciente. Além partir da sequência que revelava a narrativa mí-
disso, possibilidades dessa expressão vindas de tica. Quando identificava o mito corresponden-
relatos escritos de paciente, como, por exemplo, te às imagens verificava a relação do conteúdo
o de Beta, paciente que se expressava em seu do mesmo com a história de vida do paciente.
caderno enquanto internada como psicótica, Silveira (1981) observava claramente na série de
também são muito relevantes. Em seu livro, Beta imagens que recolhia em anos de trabalho com
D’Rocha (2003) relata que através de estudos no os pacientes, a transformação dos símbolos e o
Museu e quando começou a frequentar o ateliê retorno do paciente para camadas mais próximas
de artes que passou a compreender o quanto à consciência. Constatava, assim como Jung o fi-
era importantes anotações que fizera num ca- zera anteriormente, que a psique inconsciente
derno que ganhara de sua irmã para fazer seus tinha uma função de auto-regulação que levava
registros dentro do hospital: “A partir daí, fui naturalmente o paciente a uma tentativa de re-

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organização psíquica e autocura. Jung considera mães tinham inclusive garras de crustáceos. As
que: “Assim como o organismo reage de maneira imagens evoluem para temas mais recentes e
adequada a um ferimento, a uma infecção ou a mães mais amorosas. Surge uma versão de De-
uma situação anormal da vida, assim também as meter e Perséfone, deusas representantes dessa
funções psíquicas reagem a perturbações não díade mãe e filha inseparáveis. Até que Adelina
naturais ou perigosas, com mecanismos de de- chega na imagem da Virgem Maria. Também em
fesas apropriados” (2019c, p. 203). suas pinturas, depois de uma série de mães, apa-
Para Jung (2019e) o princípio de autorregula- rece o gato, representante de seus instintos tão
ção pode ser visto nos sonhos e imagens espon- fortemente reprimidos. Interessante notar que no
tâneas que são produzidas, e pode ser integrada seu primeiro surto, Adelina estrangula a gata de
parte de seu significado pela consciência, na sua casa. Portanto, percebemos que as imagens
medida que o ego for capaz de estabelecer um e as temáticas vão formando uma trama que aos
diálogo com esses aspectos inconscientes. Mas, poucos pode ser revisitada de uma forma mais
no caso da esquizofrenia, esse ego está frag- clara. A paciente esquizofrênica pinta suas ima-
mentado e, portanto, o caminho de volta para gens enquanto Nise a observa de longe, mas ela
esse diálogo é mais difícil e sinuoso. não fala sobre suas imagens, apenas a retrata e
Para Jung (2019e), a presença de imagens ar- diz poucas coisas a respeito. Porém, o fato de
quetípicas requer uma outra forma de ampliação essas imagens serem compartilhadas e virem à
em torno da imagem por parte do terapeuta, a qual consciência possibilitam uma grande melhora
ele chamou de amplificação. Assim escreve quan- para paciente que muda em sua atitude e com-
do estamos diante de um conteúdo arquetípico: portamento com os outros internos e com a equi-
pe do museu e monitores. Aos poucos, Adelina
A partir daí percebe-se claramente que se encontrou uma possibilidade de viver um pouco
trata de uma emoção coletiva, isto é, de mais próxima da realidade. Na realidade, namo-
uma situação típica fortemente afetiva, rou um interno e sua relação com o masculino fi-
que não é, em primeiro lugar, uma expres- cou mais saudável, bem como sua agressividade
são pessoal, mas só se torna de tal natu- excessiva desapareceu.
reza em fase posterior. Trata-se, primei- O caso de Adelina é um estudo no qual ve-
ramente, de um problema humano geral mos uma psique viva, dinâmica, capaz de ex-
que, por não ter chamado a atenção sub- pressar um drama interno através de imagens
jetiva, procura abrir caminho, de maneira pintadas numa narrativa imagética que precisa
objetiva, até a consciência do sonhador ser traduzida para que haja a compreensão de
(p. 247). seu conteúdo (SILVEIRA, 1981).
O fato de Nise ter colocado essa dinâmica
Silveira (1981) observou, por exemplo, em sua psíquica viva de vários pacientes em imagens,
paciente Adelina Gomes, cuja temática era a re- como prontuários de suas vidas inconscientes,
pressão materna e um desenlace ruim de uma re- valida empiricamente a teoria de Jung e possi-
lação amorosa fortemente reprimida pela mãe, a bilita uma abertura para pesquisas importantes
descrição do mito de Dafne. Nele, a ninfa em fuga sobre a esquizofrenia, ainda vista de forma pre-
do Deus Apolo é transformada em flor. A meta- conceituosa em nossa cultura.
morfose vegetal aparece fortemente nas imagens Silveira (1981) abriu vários campos para pes-
de Adelina bem como imagens da mãe terrível e quisa. Criou um museu de imagens, manteve
repressora. Esculturas também retratam essas os ateliês de pintura e arte, treinou sua equipe
características da mãe terrível, algumas compa- técnica em termos de atitude terapêutica, fez do-
radas com esculturas do neolítico onde essas cumentários preciosos de seus trabalho, inau-

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gurou um grupo de estudos de Jung com parti- Na pauta das análises de casos realizadas
cipação de sua equipe e de outros profissionais por Silveira (1981) e divulgados como estudos e
de saúde, bem como pacientes. Escreveu livros fontes de pesquisa, estão incluídas em seu se-
relatando seu trabalho, deu entrevistas discu- gundo livro as histórias de Lucio e suas escultu-
tindo as questões de saúde mental, realizou ex- ras de guerreiros que culminaram em seu triste
posições nacionais e internacionais mostrando fim após a cirurgia de lobotomia. Após a cirurgia,
que esquizofrênicos eram capazes de expressar descreve como a alma criativa de Lucio foi captu-
suas emoções, que eles também tinham uma rada e destruída. Incapaz de estabelecer contato
voz que ao ser silenciada, passava a ser repre- com a arte novamente, quando o fez, algumas
sentada por imagens. Realizou peças de teatro, vezes, tinha apenas uma expressão sem vonta-
com homenagens a Dionísio, personagem muito de e todo seu talento nem parecia ter existido
vivo nas pinturas dos internos, tema frequente um dia. Também as pinturas de Emygdio, retra-
que se intercalava com de outros deuses e deu- tos da desordem da psique inconsciente onde o
sas pagãos, que retratavam a dificuldade de su- mundo interno coincide com o externo e se cru-
primirmos os instintos da vida humana pregadas zam desordenadamente, aos poucos, através de
pela vida cristã (MELLO, 2014). sua pintura foi delimitando esses espaços, o que
O caso de Adelina foi apresentado em Zuri- se refletiu em sua melhora também (SILVEIRA,
que e relacionado com outros estudos de casos 1992). O crítico de arte Mario Pedrosa, segundo
europeus. Segundo Mello (2014), Nise conta que Mello (2014), elogiava sua pintura e o considera-
Marie Louise von Franz a ajudou na organização va um gênio da arte.
das imagens e o próprio Jung também incluiu Silveira (1981) cunhou alguns conceitos que
algumas das imagens brasileiras no arquivo do expressam simbolicamente e de forma imagéti-
Instituto C. G. Jung, em Zurique. ca o seu “fazer terapêutico”. Uma dessas expres-
Para Jung (2019d), o amor só poderia existir sões é a de “afeto catalizador” que representa a
com a presença dos instintos e a espiritualida- possibilidade de um espaço terapêutico que pro-
de juntos. A negação de uma dessas instâncias picie a expressão criativa do paciente através de
pode levar o indivíduo a uma cisão enorme tão um vínculo afetivo e encorajador. Silveira (1981)
presente ainda na contemporaneidade. Assim, apresentava uma enorme preocupação com a ca-
vemos que a história de Adelina, embora com pacitação e formação dos monitores que eram os
atravessamentos socioculturais, ainda é presen- que estariam mais próximos dos pacientes. Para
te na história de muitas mulheres que sofrem por isso não deveriam intervir no que eles estavam
decepções amorosas e apresentam um ego frágil pintando, mas propiciar, como na química, uma
para dar conta dessa dor e sofrimento. velocidade nas reações a partir de uma postura
Quanto às mandalas, na medida que começa- encorajadora e terapêutica.
ram a surgir no setor de terapêutica ocupacional, Von Franz (1999) irá falar da importância de
Nise enviou fotos para Jung e ele reconhece esse um campo afetivo no vínculo com o paciente
símbolo que surge em várias pinturas de seus pa- podendo propiciar um espaço transformador.
cientes e que aparecem nas religiões (MELLO, 2014). Gambini (2008, p. 138) vai usar a ideia do que
Jung (2019f) comenta que “[...] as mandalas ele chama do “solo” do trabalho terapêutico,
aparecem de preferência depois de estados de ou seja, do espaço capaz de fazer surgir e nas-
desorientação, pânico ou caos psíquico” (p. cer transformações com a presença do pacien-
356). Seu objetivo é, segundo Jung, transformar te e do psicoterapeuta. Vemos, portanto, que
o caos e trazer uma certa ordem numa atitude Silveira (1981) compreendia a importância tera-
compensatória da psique, cuja função autorre- pêutica dos monitores que, mesmo não sendo
guladora já tratamos anteriormente. psicólogos, deveriam assumir uma postura de

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investimento no próprio processo interno e de sumem a uma série de pinturas guardadas e ex-
conhecimento, para que pudessem estar jun- pressas por pacientes, mas fazem parte de uma
to ao paciente sem intervenções particulares, pesquisa de grande sofisticação, apresentando
pois sabia que tal qual no processo analítico, uma série de imagens que revelam o caráter ar-
ao observarem as pinturas e o convívio com os quetípico das histórias humanas com as quais
pacientes, eles sairiam também transformados. encontram-se relacionadas.
Por essa razão, participavam com frequência dos Além disso, muitos pacientes apresentavam
eventos e grupos de estudo do Museu de Ima- melhora em seu quadro clínico e se relacionavam
gens do Inconsciente. O afeto catalizador era de melhor com seus familiares, com outros internos
uma atitude encorajadora, porém não diretiva, e com a equipe. Foi quando Nise criou a Casa
quanto ao que o paciente iria pintar. das Palmeiras, uma clínica onde o paciente fazia
Uma outra expressão de Nise é a que ela uma transição do hospital para sua vida familiar
chama de “Emoção de lidar”, que trata-se do fa- e em comunidade. Era uma casa para o pacien-
zer ou se expressar com as mãos, com o fazer te passar parte do dia e ainda ter referência do
terapêutico. Ou ainda “os inumeráveis estados tratamento anteriormente recebido e o trabalho
do ser”, expressão que foi inspirada na leitura com a arte como expressão de suas emoções.
de Antonin Artaud, poeta francês que foi inter- Nesse sentido, podemos dizer que Silveira foi
nado em hospital psiquiátrico, capaz de, mes- precursora dos Centros de Atenção Psicossocial
mo como paciente, fazer uma severa crítica à (CAPS), na medida que A Casa das Palmeiras era
psiquiatria tradicional e o uso de técnicas como um lugar apenas para o paciente passar o dia,
o eletrochoque. Silveira (1981) dizia que essa acompanhado de familiares ou sozinho. Nise se
expressão seria mais adequada do que a pala- preocupava muito com a questão do egresso e
vra esquizofrenia, que rotulava e diagnosticava queria conseguir que o paciente pudesse de fato
o doente tirando dele sua humanidade. Ora, se ser reintegrado à sociedade. Portanto, a Casa
pensarmos nos complexos, nomeados por Jung das Palmeiras servia como uma ponte entre a
de subpersonalidades, presentes na psique de institucionalização e a volta para a vida social
todos nós, cujo núcleo sempre está ligado a um (MELLO, 2014).
arquétipo, podemos visualizar essa pluralidade Para Nise, a psiquiatria foi algo que integrou
de formas de ser que podem vir a tona na consci- em sua trajetória assim como Jung que trouxe
ência, especialmente se o ego, o grande maestro sua experiência psiquiátrica como importante
da consciência, apresentar fissuras profundas, passagem de aprendizado fundamental em sua
como no caso da esquizofrenia. vida. Em 1950, escreve ao filho de Bleuler uma
Para Jung (2019c, p. 87), o complexo é formado carta, visto que ele continua com o trabalho do
por um aglomerado de associações com uma tona- pai na clínica psiquiátrica do Burgholzli:
lidade afetiva acentuada ou traumática. A visão de
Artaud desses inúmeros estados que podem ser Devo muito à psiquiatria e sempre me
vividos revela na verdade a natureza múltipla de conservei interiormente próximo a ela,
nossa psique, já que os complexos para Jung são pois desde o início me preocupou um pro-
dotados de energia própria e comportam-se como blema geral: de que estrato procedem as
personalidades que ele chama de “parciais”, pos- ideias tão impressionantes da esquizo-
suindo inclusive uma “fisiologia própria” e na es- frenia? As questões daí resultantes leva-
quizofrenia vão se manifestar deliberadamente ram-me aparentemente para bem longe
como personalidades parciais (JUNG, 2019e). da psiquiatria clínica e fizeram-me peram-
Portanto, são muitas as contribuições de bular pelo mundo todo. Nessas viagens
Nise da Silveira com seu trabalho, que não se re- aventureiras descobri tantas coisas que

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nunca sonhei em Burgholzli; mas a ma- Nise da Silveira foi a primeira brasileira a es-
neira rigorosa de observar, que lá apren- tudar no Instituto C. G. Jung de Zurique, a conhe-
di, acompanhou-me por toda a parte e cer Jung e a ter o reconhecimento dele para seu
ajudou-me a entender objetivamente a trabalho. Se não bastasse isso, deu continuida-
estranha psique (JUNG, 2019a, p. 171). de ao trabalho com esquizofrênicos e pesquisou
as manifestações das imagens arquetípicas pre-
Silveira (1981) também tinha uma outra carac- sentes na expressão simbólica desses pacientes
terística interessante: ela costumava observar os seguindo a mesma perspectiva que Jung criou
pacientes, sobretudo quando estavam pintando em seu método de leitura de imagens, com base
ou realizando alguma atividade. Segundo a au- em amplificações e estudos de material compa-
tora, gostava de ver as expressões e a força que rado na mitologia e alquimia.
os impulsionava às imagens. Isso diferenciava Atualmente passamos por um momento po-
seu olhar para as imagens, pois participava da lítico no qual ainda ouvimos a respeito de técni-
sua criação de uma forma silenciosa, mas afe- cas e intervenções agressivas para a cura de pa-
tiva. A observação e a pesquisa eram constan- cientes. A discussão da medicalização e de uma
tes, bem como os estudos que iam desde Jung possível volta de hospitais psiquiátricos nos
à Bachelard, Machado de Assis, Freud, entre ou- lembraram tempos sombrios pelos quais Nise
tros tantos nomes que deixou em sua biblioteca passou em sua prática como médica psiquiatra.
particular. Essa lista de leituras foi deixada por Como profissionais que escutam a alma huma-
ela para serem discutidas nos grupos de estudo, na, precisamos estar atentos aos ruídos que se
cumprida até hoje pelo projeto BENEDITO, um anunciam para destruir a liberdade conquistada
grupo de interessados em debater conteúdos de e os avanços da saúde mental. Temos muito ain-
textos propostos por Nise. da a aprender com Nise e com Jung e temos mais
Em sua velhice, assim como Jung, aproximou-se junguianos e niseanos buscando ampliar essas
mais da vida instintual e da natureza, especial- ideias no fomento à estudos e pesquisas.
mente dos animais que amava. Tinha vários gatos O extenso trabalho de Nise da Silveira, vivo
e escreveu sobre o simbolismo dos gatos. Consi- até hoje e expandido para vários grupos em todo
derava os animais coterapeutas, pois, devido ao o Brasil, precisa ser constantemente revisitado
seu afeto incondicional, eram capazes de trazer o e ainda mais aprofundado. Não aproveitamos
paciente de suas imagens internas para um pouco com profundidade o imenso legado que ela nos
da realidade consciente. No final da vida costuma- deixou para a pesquisa, sobretudo de pacientes
va ir a um retiro budista em Santa Teresa, bairro do psicóticos e esquizofrênicos. Esse legado que
Rio de Janeiro. Morreu dizendo que ia para “outras Nise nos deixou demonstra didaticamente a es-
galáxias” e escreveu num poema que o poeta do trutura da psique proposta por Jung, composta
espaço “não carrega nem cajado nem sacola” por- de camadas mais profundas do inconsciente co-
que possui a liberdade (MELLO, 2014). letivo que se manifestam pelas imagens arquetí-
picas. Ela retrata em sua relação construída com
5. Considerações finais o paciente respeitando seu potencial interno, o
Sempre que se trata de Nise da Silveira, que Jung compreendeu como um método cons-
tem-se a impressão de ter esquecido algo das trutivo na relação terapêutica.
inumeráveis possibilidades e contribuições que Em seu trabalho, vemos o mito vivo e com-
trouxe para a psicologia. Sempre parece pouco preendemos o que disse Campbell por toda sua
retratar o que fez essa grande mulher e profis- vida, sobre o poder transformador e educativo
sional pela saúde mental e psicologia analítica, das narrativas míticas, da origem sagrada des-
especialmente no Brasil. sas narrativas que retratam o humano e estão

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presentes nas imagens mais arcaicas manifes- o símbolo é um transformador de energia que
tadas por nossa psique, atravessando nossos pode nos levar de um nível psíquico para outro.
complexos culturais e pessoais. Jung também obteve na imagem sua outra
Em seu livro “Cartas a Spinoza”, vemos seu língua, expressando-se através das imagens e
olhar para o transpessoal e visitamos as frontei- dando imensa importância à sua vida simbólica.
ras da espiritualidade construída e não fragmen- Vemos isso em toda sua vida relatada em suas
tada. Em seu amor por Artaud, vemos a empatia memórias e da qual seus livros são testemunhos
com suas ideias e com sua linguagem poética. de suas formas de pensar o ser humano em sua
Nise tem uma fala imagética presente na nar- dimensão psíquica. Em seu último ensaio, dedi-
rativa dos casos clínicos de seus pacientes, onde cado ao livro “O homem e seus símbolos”, con-
transforma suas biografias em vidas carregadas cluído poucos dias antes de sua morte, deixa
de símbolos e emoção. Devolve para essas pes- sua última mensagem para leigos. Ressalta a im-
soas, que foram tão maltratadas e coisificadas portância dos sonhos com acesso ao inconscien-
pela psiquiatria tradicional e por uma sociedade te e a importância de termos uma vida simbólica
de preconceitos, uma vida simbólica. Ao devol- que nos traga significado.
ver isso a seus pacientes ou clientes, é capaz de Assim, Nise e Jung viveram o mundo das ima-
reestruturar certo equilíbrio psíquico e afetivo, gens e aprenderam a olhar além da expressão
tornando todos menos invisíveis socialmente. verbal. Ambos perceberam que, além das pala-
Nise trata as expressões simbólicas como vras, há uma mensagem expressa por outras for-
sua segunda língua, dedicando-se sempre ao mas simbólicas, e que até nas palavras podemos
estudo da arte, da música e do teatro. Teve gran- ver os símbolos se expressarem. Para traduzir os
des amigos artistas e o apoio de todos, porque símbolos, Jung nos lembra que o intelecto só não
eles compreendiam essa sua segunda língua, dará conta e que, por isso, faz-se necessário re-
a linguagem simbólica. Afinal o artista também correr a outras formas de ler a linguagem simbó-
passa por muitas metamorfoses parecidas com lica e as mensagens da alma. Compreender es-
o chamado “louco”, mas é capaz de voltar do sas imagens foi a tarefa de Jung e Nise. Ampliar
mundo das imagens sem ser consumido por esse legado é um trabalho de todos nós! ■
elas. Eles têm um ego que suporta esse conta-
to e conseguem compartilhar e transformar suas Recebido em: 24/03/2021 Revisão em: 25/06/2021
emoções em arte, sem serem inundados pelos
conteúdos inconscientes. Afinal, sabemos que

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Abstract
Dialogues between Nise and Jung: the expressive work of Nise da Silveira and
their contributions to analytical psychology
Nise da Silveira was a reference in analyti- with some studies by Jung, Nise da Silveira
cal psychology for basing her work in the ref- and other authors who have dedicated them-
erences of Jung who gave support in her work selves to understanding the theme treated,
and invited her to exhibit works carried out in supporting this analysis. It is considered that
mental health in Brazil, in an exhibition in Zu- the work with schizophrenics and the reading
rich. The objective of this article is to analyze of images used in the Museum of Images of the
aspects of Nise da Silveira’s work and her con- Unconscious, remain as a legacy that is still in
tributions to analytical psychology. The meth- motion in analytical psychology as a source of
odology is the use of bibliographic research research and study. ■

Keywords: analytical psychology, mental illness, art, museum of images of the unconscious.

Resumen
Diálogos entre Nise y Jung: la obra expresiva de Nise da Silveira y sus contri-
buciones a la psicología analítica
Nise da Silveira fue una referencia en psi- ográfica con algunos estudios de Jung, Nise da
cología analítica para guiar su trabajo sobre Silveira y otros autores que se dedicaron a com-
las referencias de Jung que la apoyaron en su prender el tema tratado que sustenta este análi-
trabajo y la invitaron a exponer obras realizadas sis. Se considera que el trabajo con esquizof-
en salud mental en Brasil, en una exposición rénicos y la lectura de imágenes utilizadas en
en Zúrich. El objetivo de este artículo es anal- el Museo de Imágenes del Inconsciente, quedan
izar aspectos del trabajo de Nise da Silveira y como un legado que todavía está en movimien-
sus contribuciones a la psicología analítica. La to en la psicología analítica como fuente de in-
metodología es el uso de la investigación bibli- vestigación y estudio. ■

Palabras clave: psicología analítica, enfermedad mental, arte, museo de imágenes del inconsciente.

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