O Estado Dos Mortos No Sheol (Lucas Banzoli)
O Estado Dos Mortos No Sheol (Lucas Banzoli)
O Estado Dos Mortos No Sheol (Lucas Banzoli)
O texto que você está lendo é um extrato de um dos capítulos da nova versão do
***
1
Sumário
2
Os problemas da interpretação literal ........................................................................ 114
Se a parábola não é literal, então Jesus mentiu? ....................................................... 120
O propósito de uma parábola ..................................................................................... 123
Interpretando a parábola ........................................................................................... 128
• Considerações Finais.................................................................................................... 145
3
O estado dos mortos no Sheol
• Introdução
intermediário é que o único lugar para o qual a Bíblia diz que justos e ímpios vão
após a morte, o Sheol, não é nem um céu nem um inferno, mas tão-somente a
Bíblia, embora muitas delas, pelo viés do tradutor, traduzam por “inferno” ou por
“mansão dos mortos”, impondo um conceito que não está no texto. Tome como
exemplo um simples texto como Isaías 14:15, que a NVI traduz da seguinte maneira:
(Isaías 14:15)
português. Mas veja como este mesmo texto é traduzido pela Almeida Revista e
Atualizada:
4
“Contudo, serás precipitado para o reino dos mortos, no mais profundo do
Na ARA, o Sheol é traduzido como o “reino dos mortos”, o que para alguns pode
transmitir a ideia de um reino literal cujos habitantes estão vivos e interagem entre
si (algo semelhante ao “reino dos céus”). Algo parecido faz a Nova Almeida
“E, entretanto, eis que foste precipitado à morada dos mortos, ao mais
Para piorar, observe como o mesmo texto é traduzido pela Almeida Corrigida Fiel:
14:15)
5
Aqui eles já meteram o “inferno” no meio, sem mais nem menos.
onde se lê:
“Em vez disso, será lançado ao lugar dos mortos, ao mais profundo abismo”
(Isaías 14:15)
Bíblia Tradução
6
Sheol em Isaías 14:15 com o modo como traduzem a mesma palavra em Eclesiastes
“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força,
pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento,
não há conhecimento nem sabedoria” (Eclesiastes 9:10)
Embora no original hebraico conste a mesma palavra Sheol que aparece no texto
de Isaías, a NVI preferiu traduzir por “sepultura” aqui, e manter o “Sheol” no outro
texto, sem tradução. Das outras versões, a maior parte delas prefere traduzir por
apenas do túmulo e nada a mais (embora seja o mesmo termo que apareça no
Bíblia Tradução
para manter um mínimo de coerência. Todas elas mudaram alguma coisa, mesmo
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que uma mudança sutil. O segundo detalhe curioso é que a maioria das versões
nenhuma fez isso com o Sheol em Isaías 14:15. Até a NVI, que de todas foi a única
corajosa que verteu o Sheol como Sheol em Isaías 14:15, deixando que o leitor
Eclesiastes 9:10, induzindo o leigo a pensar que um autor falava do Sheol, e o outro
não.
Não admira que muitos apologistas imortalistas não familiarizados com o texto
hebraico pensem que Salomão falava do qeber (túmulo) em Eclesiastes 9:10, e não
do Sheol. Essas mudanças são intencionais, e fazem parte das sutilezas com as quais
clarividente a qualquer leitor do hebraico, de que o Sheol nada mais é que a região
subterrânea da terra. Em minhas pesquisas para escrever este capítulo, descobri que
tradutores preferiram ocultar sua menção, pelo simples fato de que os textos
enterrados. Nestes casos, eles preferem traduzir por “sepultura”, “túmulo” ou “cova”.
Por outro lado, nos poucos textos onde não está claro o significado do Sheol (ou
seja, onde o contexto não mostra claramente que se trata de um lugar sem vida,
embora também não afirme ser um lugar com vida), eles aproveitam para manter o
termo “Sheol” ou para traduzir por “mansão dos mortos”, “reino dos mortos”,
leitores sem familiaridade com o hebraico são induzidos a pensar que este lugar
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aparece pouquíssimas vezes na Bíblia, e todas elas em textos que abrem alguma
Mal sabem eles que o Sheol aparece em toda a parte, e que é justamente o grosso
dos textos sobre o Sheol que lança luz ao seu significado nos demais textos, onde
o sentido é “obscuro” ao olhar o texto por si só. Nenhum leigo consegue perceber
interprete a Bíblia (ou seja, que os textos com significado menos claro sejam
explicados à luz dos textos onde o significado é claro), eles astutamente encobrem
o Sheol em pelo menos 80% dos textos onde o Sheol aparece, e o mantém na
minoria que abre alguma margem para interpretações duvidosas, que os teólogos
sugerir que quase todas as vezes que o Sheol aparece na Bíblia ele aparece em um
sentido alternativo e secundário que não tem nada a ver com o Sheol, e que o
textos que eles distorcem vergonhosamente, ignorando todos os demais. Isso não
apenas é um exemplo de como não se faz exegese, como ilustra bem o tipo de
costura”, que ao invés de partir da Bíblia e dela tirar as conclusões mais sensatas,
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Para evitar a exegese de costura, todos os textos que serão aqui apresentados
leitor saiba quando é o Sheol que aparece, e quando é outro termo (exceto nas
o hebraico).
Sheol e Hades – Antes de mais nada, e para evitar confusões futuras, precisamos
esclarecer que o equivalente grego ao Sheol é o Hades, o que explica por que os
Testamento como uma referência ao Hades. Por exemplo, o salmista diz que “tu não
(Sl 16:10). O termo aqui traduzido por “sepulcro”, no original hebraico, é o Sheol.
Este mesmo texto é citado por Pedro em seu discurso no Pentecoste, mas com o
De forma semelhante, Oseias diz: “Onde estão, ó morte, as suas pragas? Onde está,
ó sepultura, a sua destruição?” (Os 13:14). Aqui, mais uma vez, é o Sheol que aparece
no texto hebraico. Paulo cita esse mesmo texto em 1ª Coríntios 15:55, mas com o
Hades em lugar do Sheol, uma vez que o Hades é o equivalente grego ao Sheol do
como Hades.
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Onde fica o Sheol? – Que o Sheol e o Hades são os mesmos, isso é um ponto
pacífico entre holistas e dualistas. A grande discussão gira em torno do que vem a
ainda que em textos de natureza poética ou alegórica haja liberdade poética para
se referir ao Sheol de uma forma figurada (no mesmo sentido em que as árvores
falam e conversam entre si). Mas na teologia imortalista, o Sheol é a própria morada
dos espíritos dos mortos, onde estão conscientes e sofrendo tormento (se forem
no Sheol ou onde o Sheol fica. Para alguns, o Sheol é um lugar subterrâneo literal
almas de justos e ímpios vão após a morte. Não me pergunte o que um espírito
imaterial faria no interior de um planeta físico, mas este é o único jeito que eles
exemplo, afirmou que o Sheol “é o lugar não visto, abaixo da terra, enquanto a
um “reino dos mortos” embaixo da terra, como, por exemplo, nesse autointitulado
1
RINALDI, Natanael. O que dizem os adventistas sobre o Seol e o Hades? Disponível em:
<http://www.cacp.org.br/o-que-dizem-os-adventistas-sobre-o-seol-e-o-hades>. Acesso em:
29/09/2020.
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“mapa escatológico” cheio de setas pra lá e pra cá, que ilustra bem a confusão
Curiosamente, o mesmo Natanael Rinaldi que disse em um artigo que o Sheol fica
embaixo da terra escreveu outra coisa em seu livro, onde se opõe aberta e
descaradamente aos textos bíblicos que ele mesmo cita e diz que o Sheol fica na
“lugar mais baixo da terra” (Jó 11:8; Is 44:23, 57:9; Ez 26:20; Am 9:2).
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geográfica. Indicam que o Sheol não faz parte desta dimensão (ou
Não me pergunte de onde foi que Rinaldi viu nos textos uma indicação de que o
Sheol “existe em outra dimensão”, mas aqui nos deparamos com o primeiro grande
dilema que atormenta a mente dos imortalistas. Se eles disserem que o Sheol fica
nas regiões subterrâneas da terra, como a Bíblia taxativamente ensina, terão que
lidar com insuperáveis problemas lógicos; por outro lado, se disserem que fica em
outra dimensão, terão que lidar com o problema da Bíblia. Na dúvida, a maior parte
deles prefere sacrificar a Bíblia e lançar o Sheol para uma outra dimensão, ainda que
não haja um único mísero texto que afirme que o Sheol pertence a uma outra
dimensão fora da terra. Isso mostra o apreço que eles têm pela Bíblia: nenhum.
embaixo da terra ou se fica fora da terra. Se o Sheol fica mesmo em uma outra
dimensão, então fica fora da terra, e todos os textos bíblicos que descrevem o Sheol
como parte da terra estão simplesmente enganando o leitor. É curioso notar que
não há um único texto bíblico que diga que o céu onde Deus habita é uma parte da
terra, justamente porque os escritores bíblicos sabiam que ficava numa outra
dimensão. Por isso vemos vários textos que contrastam o céu com a terra (cf. Dt
4:39; Is 55:9; 1Rs 8:27; Sl 73:25; Mt 6:19-20, 16:19, 28:18; Cl 3:2, etc).
Por outro lado, nunca vemos um único texto bíblico que coloque em contraste o
Sheol (que para os imortalistas também fica numa outra dimensão espiritual) com
2
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 95.
13
a terra, ou que considere o Sheol um lugar fora da terra. Pelo contrário, o Sheol é
terra, justamente porque os escritores bíblicos sabiam que ele é parte da terra, não
de outra dimensão, como o céu. Dizer que o Sheol fica em outra dimensão é zombar
da inteligência de qualquer leitor alfabetizado, e até dos que não são. É pisar em
cima dos textos bíblicos desavergonhadamente e dizer que vale qualquer coisa
Em Amós, Deus diz que “ainda que cavem até o Sheol, dali a minha mão irá tirá-los”
(Am 9:2). Aqui vemos que é possível chegar ao Sheol cavando. Eu me pergunto
quanto tempo será preciso escavar até acessar uma outra dimensão, como ensina
Rinaldi e tantos outros autores imortalistas. Deve ser bastante, eu suponho. Note
assumimos que o Sheol é exatamente aquilo que os escritores bíblicos diziam ser:
Um texto que mostra com uma clareza indiscutível como o Sheol era identificado
“Então o Senhor disse a Moisés: ‘Diga à comunidade que se afaste das tendas
de Corá, Datã e Abirão’. Moisés levantou-se e foi para onde estavam Datã e
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‘Afastem-se das tendas desses ímpios! Não toquem em nada do que pertence
a eles, senão vocês serão eliminados por causa dos pecados deles’. Eles se
afastaram das tendas de Corá, Datã e Abirão. Datã e Abirão tinham saído e
estavam de pé, à entrada de suas tendas, junto com suas mulheres, seus
filhos e suas crianças pequenas. E disse Moisés: ‘Assim vocês saberão que o
Senhor me enviou para fazer todas essas coisas e que isso não partiu de
a sua boca e os engolir, junto com tudo o que é deles, e eles descerem vivos
Assim que Moisés acabou de dizer tudo isso, o chão debaixo deles fendeu-se
e a terra abriu a sua boca e os engoliu juntamente com suas famílias, com
sepultura [Sheol], com tudo o que possuíam; a terra fechou-se sobre eles, e
pereceram dentre a assembleia” (Números 16:23-33)
subterrâneas da terra. Observe ainda que o texto não apenas diz que os seguidores
de Corá desceram vivos ao Sheol, mas também que desceram com tudo o que
possuíam (ou seja, com os seus pertences). Se o Sheol fica numa outra dimensão, a
única coisa que podemos concluir é que, enquanto os seguidores de Corá eram
engolidos pela terra, suas almas se separaram de seus corpos e foram magicamente
teletransportadas para uma outra dimensão, juntamente com os seus bens. Se isso
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Como comenta Bacchiocchi, “este episódio claramente revela que a pessoa inteira,
não somente a alma, desce ao Sheol”3. É evidente que o Sheol para os hebreus nada
mais era que o interior da terra, onde as pessoas eram enterradas. O que diferenciou
esse episódio de Números 16:30-33 de uma morte comum é que numa morte
aqui todos os seguidores de Corá foram enterrados vivos quando a terra se abriu e
os engoliu junto com todos os seus pertences, incluindo suas tendas (vs. 24-27).
outro exemplo disso em Isaías 5:13-14, que fala a respeito da cidade de Jerusalém:
“Portanto, o meu povo vai para o exílio, por falta de conhecimento; a elite
Aqui vemos que não apenas os habitantes desceriam ao Sheol, mas também o
como isso é possível, já que os israelitas não enterrariam suas próprias riquezas e
palácios. Isso não seria preciso, já que isso é o que acontece naturalmente com uma
cidade em ruínas: com o passar do tempo, ela é lentamente “engolida” pela terra da
3
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 150.
16
mesma forma que os seguidores de Corá. É por isso que quando um arqueólogo
tenta encontrar vestígios de uma civilização antiga, e mesmo de uma não tão antiga
assim, ele precisa escavar, e muito. O que Deus estava dizendo é que toda a riqueza
da cidade e o seu esplendor viraria ruínas nas mãos dos babilônicos, o que faria a
Algo semelhante é dito a respeito da cidade de Tiro, sobre a qual Ezequiel declara:
“Depois entoarão um lamento acerca de você e lhe dirão: ‘Como você está
ali vivem. Agora as regiões litorâneas tremem no dia de sua queda; as ilhas
do mar estão apavoradas diante de sua ruína’. Assim diz o Soberano Senhor:
você descer com os que descem à cova, para fazer companhia aos antigos.
que descem à cova, e você não voltará e não retomará o seu lugar na terra
dos viventes. Levarei você a um fim terrível e você já não existirá. Você será
A cidade faria «companhia aos antigos», não porque ela fosse teletransportada para
porque habitaria «embaixo da terra», assim como eles. Essa expressão de modo
algum diz respeito a uma dimensão espiritual metafísica, mas meramente à região
17
subterrânea da terra, o lugar onde os mortos estão enterrados e onde se encontram
os resquícios das antigas cidades. O mesmo pode ser dito a respeito das árvores
que são cortadas e morrem, as quais também vão «para baixo da terra», junto com
terra, junto com as árvores do Éden; você jazerá entre os incircuncisos, com
os que foram mortos pela espada” (Ezequiel 31:18)
Neste último texto, vemos que o destino do faraó seria o mesmo das árvores do
Éden, que estão embaixo da terra. Isso não significa que as árvores do Éden tenham
sido teletransportadas para o inferno numa outra dimensão onde o faraó estaria
sofrendo, significa apenas que o faraó estaria no mesmo lugar que as árvores
destruídas pelo dilúvio: embaixo da terra. Assim, vemos que toda a região
subterrânea da terra é chamada de Sheol, razão pela qual ela é tantas vezes
usavam o termo erets (traduzido como “terra”), enquanto usavam Sheol quando
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queriam designar a região subterrânea da terra. Em todas as 66 vezes que o Sheol
sentido, mas em muitos desses casos traduzi-lo por “inferno” ou por qualquer lugar
infernus foi criado, ele designava justamente as regiões inferiores da terra, mas com
como o lugar onde o espírito dos ímpios está queimando conscientemente. Isso
porque Paulo diz que todo joelho se dobraria a Cristo “debaixo da terra” (na versão
“Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está
acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no
céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o
Senhor, para a glória de Deus Pai” (Filipenses 2:9-11)
Baseado nisso, eles concluem que a expressão “debaixo da terra” deve designar um
lugar com consciência e atividade, caso contrário ninguém conseguiria dobrar seus
joelhos ali. Com essa mesma lógica, poderíamos concluir que a Atlântida do filme
do Aquaman é uma cidade real no fundo do mar, já que outro texto bíblico diz:
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“Depois ouvi todas as criaturas existentes no céu, na terra, debaixo da terra e
no mar, e tudo o que neles há, que diziam: ‘Àquele que está assentado no
Será que isso significa que há literalmente seres aquáticos que conscientemente
louvam ao Senhor com a oração citada no verso? Poucos seriam capazes de chegar
do texto aos filipenses. O que Paulo queria dizer não é que os joelhos se dobrariam
enquanto estivessem debaixo da terra, mas sim que todos aqueles que estão
debaixo da terra um dia dobrarão seus joelhos diante do Senhor. Da mesma forma,
João não estava dizendo que quem estava no mar louvaria ao Senhor enquanto
estivesse no mar, mas sim que o mar entregará os seus mortos (Ap 20:13), quando
Em outras palavras, todos os que estão no céu, na terra, debaixo da terra e no mar
ressuscitarem e estiverem frente a frente com ele. Isso inclui todos os que estão
vivos hoje (no céu ou na terra) e os que já morreram e estão debaixo da terra ou do
mar. Se uma mãe com vários filhos espalhados pela casa dissesse que “todos os que
estão na sala, na cozinha e no quarto vão tomar banho”, isso obviamente não
significaria que eles vão tomar banho na sala, na cozinha ou no quarto, mas sim que
mesma forma, todos os que estão debaixo da terra confessarão que Jesus é o
ressuscitados.
20
• Para onde vão os salvos após a morte?
“desce” para o Sheol com a de que o espírito “sobe” para Deus na morte. Como
contexto para dizer que uma alma imortal abandona o corpo depois da morte e vai
para a presença de Deus, já que o texto diz que “o pó volta à terra, de onde veio, e
o espírito volta a Deus, que o deu” (Ec 12:7). Como vimos, o espírito neste texto se
refere ao princípio animador da vida que Deus soprou no homem em Gênesis 2:7,
e que volta para Ele por ocasião da morte. Em nada tem a ver com uma alma dotada
alma imortal fora do corpo, eles são obrigados a interpretar este texto no sentido
de um ente pessoal que vai para a presença de Deus, mesmo antes da morte e da
ressurreição de Cristo (na época em que Salomão escreveu este verso). Isso
identificado com ele. Jesus, por exemplo, exclamou: “E você, Cafarnaum, será
elevada até ao céu? Não, você descerá até o Hades” (Mt 11:23).
Para Jesus, portanto, o Hades está embaixo da terra, e o céu em cima. Os dois
claramente não estão no mesmo lugar, como seria preciso para conciliar o texto
21
que fala do espírito subindo para Deus com os inúmeros textos que dizem que a
alma desce ao Sheol na morte. Isso está perfeitamente de acordo com a noção
“embaixo”) e de que o céu faz parte de uma dimensão mais elevada em relação à
nossa (portanto, “em cima”). Se Deus habita no céu (1Rs 8:43; Jó 22:12; Mt 6:9; Hb
9:24) e o espírito volta para Deus por ocasião da morte (Ec 12:7), a única coisa que
podemos concluir é que ele não desce ao Sheol, o que desmonta inteiramente a
noção de que o espírito seja a tal “alma imortal”, o nosso verdadeiro “eu” que
E não foi apenas Jesus que situou o Sheol/Hades “embaixo”, em oposição ao céu.
Sempre que um escritor bíblico se refere à ida de alguém ao Sheol, ele usa o verbo
yarad (descer). Jó diz que “assim como a nuvem esvai-se e desaparece, assim quem
desce (yarad) à sepultura [Sheol, no hebraico] não volta” (Jó 7:9). De igual maneira,
os seguidores de Corá “desceram (yarad) vivos ao Sheol, com tudo o que possuíam;
Segundo Isaías, “o Sheol aumenta o seu apetite e escancara a sua boca. Para dentro
dele descerão (yarad) o esplendor da cidade e a sua riqueza, o seu barulho e os que
Davi pede que seu filho Salomão faça Joabe “descer (yarad) ensanguentado à
sepultura [Sheol]” (1Rs 2:9), e Jacó diz a seus filhos que se alguma coisa acontecesse
a Benjamim, “vocês farão estes meus cabelos brancos descerem (yarad) ao Sheol
com tristeza” (Gn 42:38), algo que é repetido pelos próprios filhos (Gn 44:31). Na
oração de Ana, lemos que “o Senhor mata e preserva a vida; ele faz descer (yarad) à
sepultura [Sheol] e dela resgata” (1Sm 2:6). Jó também declara que desceria (yarad)
22
às portas do Sheol (Jó 17:16), e o salmista diz que estava prestes a “descer à cova
Vale lembrar que yarad é o mesmo verbo hebraico também rotineiramente usado
para se falar da descida à cova ou sepultura (cf. Sl 88:4; Pv 1:12; Is 38:18; Ez 26:20), o
que reforça a conexão entre ambos. O uso constante do verbo yarad (descer)
relativo ao Sheol, tanto para os justos como para os ímpios, vai ao encontro da
mensagem de Jesus, que situou o Hades como um lugar em oposição ao céu (Mt
11:23). Enquanto para o Sheol é usado sempre e somente o verbo descer, para o
céu é justamente o inverso que acontece. Embora o céu seja mencionado milhares
Em vez disso, vemos Moisés dizendo que “o Senhor é Deus em cima nos céus e
embaixo na terra” (Dt 4:39), que “o céu está acima da terra” (Dt 11:21) e que ao
Senhor pertencem “os mais altos céus” (Dt 10:14). Josué reforça a mensagem de
que “o Senhor é Deus em cima nos céus e embaixo na terra” (Js 2:11), Samuel diz
que “o clamor da cidade subiu até o céu” (1Sm 5:12), Esdras reconhece que “a nossa
culpa sobe até os céus” (Ed 9:6), Jó declara que Deus está “nas alturas dos céus” (Jó
22:12), Salomão diz que “não há Deus como tu em cima nos céus nem embaixo na
terra” (1Rs 8:23) e pergunta “quem subiu aos céus e desceu” (Pv 30:4).
Os salmos estão repletos dessa mesma mensagem. O salmista escreve que Deus
“convoca os altos céus e a terra para o julgamento do seu povo” (Sl 50:4), que “os
céus se elevam acima da terra” (Sl 103:11), que os “mais altos céus pertencem ao
Senhor” (Sl 115:16), e que “se eu subir aos céus, lá estás; se eu fizer a minha cama
23
na sepultura [Sheol], também lá estás” (Sl 139:8). Neste último texto, em particular,
reforçar que não importa o quanto o salmista pudesse subir ou descer, ele nunca
Jesus também disse que “ninguém jamais subiu ao céu” (Jo 3:13), e em sua ascensão
nos é dito que “ele foi elevado aos céus” (At 1:2). Em relação a Davi, somos
informados que ele “não subiu aos céus” (At 2:34), e no Apocalipse vemos uma
porta aberta no céu, de onde uma voz diz a João: “Suba para cá, e lhe mostrarei o
que deve acontecer depois dessas coisas” (Ap 4:1). Paulo não apenas situou o céu
“em cima”, como ainda reforçou o contraste entre ele e o Sheol quando escreveu:
“Mas a justiça que vem da fé diz: ‘Não diga em seu coração: ‘Quem subirá
ao céu?’ (isto é, para fazer Cristo descer) ou ‘Quem descerá ao abismo?’ (isto
Antigo Testamento em paralelismo com o Sheol e com a morte (cf. Jó 26:6, 22:28; Sl
88:11; Pv 15:11). Paulo diz que foi deste lugar que Jesus ressuscitou dos mortos, e
Pedro em Atos 2:27 diz que foi do Hades (Sheol) que Jesus ressuscitou. Isso prova
onde Jesus ressuscitou. Note que Paulo claramente situa o céu acima (“subirá”), e o
24
Para os mortalistas, isso é perfeitamente simples e fácil de se explicar, uma vez que
o espírito não é o “verdadeiro eu”, mas apenas o fôlego da vida, algo impessoal que
veio de Deus (Gn 2:7) e volta para Deus na morte (Ec 12:7). Por isso todos os mortos
imortal que sai do corpo após a morte, cabe a eles conciliar este texto (e todos os
outros que são pateticamente tirados do contexto para dizer que alguém vai para
o céu após a morte, como o do ladrão da cruz de Lucas 23:43) com todos os textos
que dizem que os homens vão de corpo e alma ao Sheol após a morte – que é não
Tamanho é o problema que até hoje eles não se decidiram se os mortos descem ao
basicamente uma salada de frutas, onde cada um diz uma coisa diferente do outro
argumentos dos dois lados e não chega a qualquer conclusão definitiva (embora
Em favor da tese de que os mortos estão no Sheol, ele cita como exemplo o texto
que fala dos “espíritos em prisão” (1Pe 3:19) e a parábola do rico e Lázaro, sempre
apontada como a prova mais forte da imortalidade da alma na Bíblia, onde o rico
ao final deste capítulo). Já em favor da tese contrária (de que após a morte vamos
25
direto pro céu) ele cita como exemplo o ladrão da cruz, que supostamente estaria
no Paraíso naquele mesmo dia, bem como Jesus entregando o espírito ao Pai (Lc
equilibrar numa corda bamba os textos que usa para provar a imortalidade da alma,
própria teologia. Eles são cínicos o suficiente para usar textos como Eclesiastes 12:7
todos os outros textos que usam, os quais não conseguem encaixar nem em sua
Para tentar contornar uma contradição tão gritante, Geisler chega a dizer que “o
seio de Abraão (Lc 16:23) é uma descrição do céu. Em nenhum ponto ele é descrito
como sendo o inferno. É o lugar para onde Abraão foi, que é o ‘reino dos céus’”4. Ao
invés de solucionar o problema, ele acaba criando outro, uma vez que na parábola
Abraão podia não estar no inferno, mas ele estava claramente no mesmo lugar que
o rico que sofria tormentos, separado apenas por um abismo (mas não tão grande
estava mesmo no céu, a única coisa que podemos concluir é que o rico também
4
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 371.
26
estava no céu – ou pelo menos em um lugar muito próximo, que de modo algum
Na parábola, lemos que o rico estava no Hades (Lc 16:23), que para Jesus era um
lugar diametralmente oposto ao céu: “E você, Cafarnaum, será elevada até ao céu?
Não, você descerá até o Hades” (Mt 11:23). Se o rico estava tão perto de Abraão a
ponto de conversar com ele, e ele estava em um lugar mais distante do céu do que
a própria terra onde vivemos, então é óbvio que Abraão não podia estar no céu.
Alguns tentarão resolver este problema alegando que o céu e o Hades são
próximos. Essa tentativa esbarra nos inúmeros textos bíblicos que explicitamente
Os justos no Sheol – O salmista escreve que “a minha alma está cheia de angústia,
e a minha vida se aproxima da sepultura” (Sl 88:3). Onde a NVI traduz por
“sepultura”, é o Sheol que aparece no texto hebraico. Se o salmista sabia que ele iria
ao Sheol caso morresse, é evidente que não passava pela sua cabeça que o Sheol
era uma habitação apenas dos ímpios (ou seja, um “inferno”). Quando recuperado
de sua enfermidade, ele louvou ao Senhor dizendo que “grande é o teu amor para
27
templo ele ouviu a minha voz; meu grito chegou à sua presença, aos seus
Estas palavras são quase que repetidas à risca no Salmo 116, onde ele escreve:
“Ele inclinou os seus ouvidos para mim; eu o invocarei toda a minha vida. As
(Salmos 116:2-6)
Tão certo o salmista estava de que o Sheol era o destino natural de todos os homens
que ele fez a pergunta retórica: “Que homem pode viver e não ver a morte, ou livrar-
se do poder da sepultura?” (Sl 89:48). Aqui, “sepultura” é mais uma vez a tradução
do hebraico Sheol, o que mostra que para o salmista o Sheol estava longe de ser
uma morada apenas de ímpios. Note que ele não pergunta “que homem ímpio
pode livrar-se do Sheol”, mas fala do gênero humano, de uma forma geral5.
sepultura [Sheol] e me levará para si” (Sl 49:15). Embora a NVI traduza por “vida” e
“sepultura”, é nephesh (alma) e Sheol que constam no original hebraico. Note que
ele não diz que Deus não permitiria que sua alma passasse pelo Sheol, mas sim que
Deus redimiria a sua alma dali. A palavra usada no hebraico para “redimir” é padah,
5
Ainda que hajam exceções pontuais, como Enoque e Elias, que não passaram pela morte porque foram
arrebatados vivos, como os crentes serão na volta de Jesus.
28
que significa «resgatar, redimir, livrar; ser resgatado»6. Esta é uma das primeiras
alusões à ressurreição final na Bíblia, e mostra que para o salmista não apenas o
Observe ainda que ele seria resgatado do Sheol, que é onde ele estaria antes disso,
e que só então veria a Deus, o que fica claro na continuação do verso (“...e me levará
para si”). Para o salmista, portanto, ele desceria de corpo e alma ao Sheol, e dali seria
ressurreição dos mortos). Isso confronta toda a visão de que só os ímpios vão ao
O próprio Ezequias, que é descrito como um rei que “fez o que era bom e certo, e
em tudo foi fiel diante do Senhor, do seu Deus” (2Cr 31:20), estava certo de que iria
para o Sheol caso morresse: “No vigor da minha vida tenho que passar pelas portas
da sepultura [Sheol] e ser roubado do restante dos meus anos?’” (Is 38:10).
Semelhantemente, quando Deus livrou Davi das mãos de Saul, que queria matá-lo,
meu Deus. Do seu templo ele ouviu a minha voz; o meu grito de socorro
6
#6299 da Concordância de Strong.
29
Assim, o testemunho bíblico unânime é o de que todos os mortos sepultados
debaixo da terra estão no Sheol, sejam eles justos ou ímpios, o que explica por que
morte. Isso refuta o ensino tradicional de que vamos ao céu após a morte, uma vez
que, como vimos, o céu é sempre apresentado em oposição ao Sheol, não como
uma parte do mesmo. Sendo assim, é evidente que o espírito que volta para Deus
na morte (Ec 12:7) não é uma alma imortal, como creem os imortalistas, mas o
Se o Sheol ou Hades fosse a habitação apenas dos ímpios – ou seja, o inferno que
popularmente conhecemos –, Jacó jamais teria dito que desceria ao Sheol para
junto de seu filho José (Gn 37:35), a não ser que ele pensasse que ele e seu filho
eram ímpios que queimariam juntos no quinto dos infernos. Jó também jamais teria
até passar a tua ira!” (Jó 14:13). Quem em sã consciência desejaria ir para o inferno?
Neste caso, Jó estaria desejando algo pior do que a vida horrível que ele tinha
naquele momento, o que não faz o menor sentido. Como também não faz o menor
sentido queimar um lugar que já está queimando, como Deus diz que faria com o
Sheol:
“Pois um fogo foi aceso pela minha ira, fogo que queimará até às
profundezas do Sheol. Ele devorará a terra e as suas colheitas e consumirá os
30
Até mesmo Russell Norman Champlin (1933-2018), que não apenas tem um livro
defendendo a imortalidade da alma como ainda tem uma abordagem espírita sobre
desde então o Sheol passou a ser entendido por alguns como algo diferente
sombras e densas trevas” (Jó 10:21), uma “terra tenebrosa como a noite” (Jó 10:22),
que o Sheol é um “inferno” onde os ímpios estão queimando, pois onde há fogo, há
luz. A única conclusão que nos resta é que o Sheol não é nem o céu nem o inferno,
7
CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo:
Candeia, 2000. v. 2, p. 880.
31
O lugar indesejável – Os textos que acabamos de conferir não apenas provam que
que apenas os ímpios descem ao Sheol –, mas também provam que o Sheol estava
Deus e de todos os santos que partiram desta vida. Isso porque todos esses textos
tem uma coisa em comum: as pessoas envolvidas (Davi, Ezequias e etc) não
aparece no AT e nas outras 8 vezes em que o Hades aparece no NT, não vemos uma
A única exceção é Jó, que estava tão arruinado e desolado que desejava ir ao Sheol,
não porque achava que o Sheol era alguma coisa boa, mas porque na condição em
que se encontrava preferia a morte do que a vida (Jó 14:13, 17:13). Isso deveria
chamar a atenção de todos aqueles que pensam que os justos iam para uma “parte
boa” do Sheol conhecida como o “seio de Abraão”: se isso é verdade, por que
ninguém desejava ir para lá? Se de fato o Sheol fosse para os justos um lugar de
falecidos e de todos os santos que partiram desta vida, um lugar onde não há mais
dor nem sofrimento, por que todos os justos do Antigo Testamento desejavam com
todas as forças não ir para lá? Não é preciso ser um Sherlock Holmes para perceber
Sempre que algum personagem bíblico estava prestes a descer ao Sheol, ele fazia
questão de orar a Deus clamando para que isso não acontecesse (Is 38:17-19; Sl 6:4-
5), e quando Deus livrava um justo da morte, ele agradecia por não ter descido ao
32
Sheol (2Sm 22:5-7; Sl 18:5-6, 30:3, 116:2-6; Is 38:10). O Sheol nunca foi visto como
a “cova da corrupção” (Is 38:17) e o lugar de completa inatividade (Ec 9:10). “Mais
vale um cão vivo do que um leão morto” (Ec 9:4), porque quem morreu “não sabe
coisa nenhuma” (Ec 9:5) e tem sua memória “entregue ao esquecimento” (Ec 9:5).
Quando estava prestes a descer ao Sheol, o salmista disse que “a minha alma está
palavra aqui traduzida por “angústia” é o hebraico ra`, que significa «ruim, mau,
como o salmista estaria se sentindo desse jeito sabendo que estava tão perto de se
encontrar com Abraão, Moisés, seus entes queridos e talvez até com Deus no Sheol.
ao céu.
O salmista também diz que “grande é o teu amor para comigo; tu me livraste das
profundezas do Sheol” (Sl 86:13). Livrar do Sheol era um sinal do amor de Deus pelo
salmista, o que demonstra mais uma vez que o Sheol era um lugar indesejável.
Quando o salmista pergunta “que homem pode viver e não ver a morte, ou livrar-
se do poder da sepultura [Sheol]?” (Sl 89:48), ele está novamente nos mostrando
que o Sheol é um lugar para onde nem ele, nem pessoa alguma desejava ir. Assim
como ninguém em sã consciência diria que deseja “se livrar do céu”, ninguém diria
8
#7451 da Concordância de Strong.
33
que deseja se livrar do Sheol se o Sheol fosse algum lugar bom, como uma
“antessala” do céu.
Diante disso, está claro que o Sheol não era o céu nem um lugar análogo ao céu, da
mesma forma que não era o inferno nem análogo ao inferno. Todas as descrições
do Sheol, bem como o sentimento de pavor diante dele, descrevem com perfeição
os sentimentos de quem sabe que o Sheol nada mais era que as regiões
subterrâneas da terra, onde o corpo repousaria inconsciente. Isso explica por que
ninguém desejava descer ao Sheol, exceto Jó, cuja aflição era tamanha que até
mesmo o Sheol era encarado com bons olhos, da mesma forma que muitos que
Provérbios 15:24 – Contra tudo isso, os imortalistas que creem na subida iminente
estaria dizendo que os justos não descem ao Sheol: “O caminho da vida conduz
para cima quem é sensato, para que ele não desça à sepultura [Sheol]” (Pv 15:24).
Será que esse verso se opõe a todo o caminhão de textos que atestam com toda a
clareza que o Sheol é o destino de toda a humanidade? Não tão cedo. Embora a
NVI tenha traduzido por «conduz para cima», o “conduz” (yabal ou nachah) não
’orach (caminho)
chay (vida)
34
suwr (desviar-se ou afastar-se)
Sheol
mattah (embaixo)
A Bible in Basic English traduz por: Acting wisely is the way of life, guiding a man
homem para longe do submundo”). Uma tradução mais precisa e literal, com o
mesmo sentido, seria: “Ser prudente é um caminho mais alto (ou mais elevado) de
Sheol”). Em outras palavras, o texto não está falando sobre ir para o céu, mas de
O mesmo termo ma àl que a NVI traduziu como “para cima”, mas que também pode
ser traduzido como “mais alto” ou “mais elevado”, aparece em Deuteronômio 28:43
no seguinte contexto:
ele; ele será por cabeça, e tu serás por cauda” (Deuteronômio 28:43-44)
É evidente que o texto não está dizendo que o estrangeiro se elevaria-ma àl até o
céu, como se estivesse falando do destino de sua alma. “Elevar”, aqui, diz respeito
expressam um sentido semelhante. Em Jó, lemos que Deus “faz chover sobre a terra
e envia águas sobre os campos, para pôr os abatidos num lugar alto e para que os
35
Senhor te responda no dia da tribulação; o nome do Deus de Jacó te eleve em
No Salmo 91, vemos Deus dizendo que “também eu o livrarei; pô-lo-ei num alto
retiro, porque conheceu o meu nome” (Sl 91:14). Alguns salmos adiante, ele
diz que “torre forte é o nome do Senhor; a ela correrá o justo, e estará em alto
refúgio” (Pv 18:10). Todos esses textos usam verbos hebraicos que significam
«elevar» ou «ser colocado no alto»9, mas, obviamente, não estão falando do céu,
Este é o mesmo caso de Provérbios 15:24, onde o “caminho mais elevado” não é o
céu em si, mas uma vida com prudência. Viver sabiamente é o “caminho mais alto”
que afasta o homem do Sheol, ou seja, da morte. Isso não significa que uma pessoa
sábia não vá para o Sheol um dia, pois, como vimos, era um consenso que todos os
que os sábios evitarão trilhar caminhos que levam à morte precoce, pois ter vida
longa na terra é uma das tônicas principais tanto de Provérbios como do Antigo
Testamento como um todo. Para citar apenas alguns exemplos do próprio livro de
Provérbios:
9
#7682 da Concordância de Strong.
36
“Ouça, meu filho, e aceite o que digo, e você terá vida longa” (Provérbios
4:10)
“Na mão direita, a sabedoria lhe garante vida longa; na mão esquerda,
riquezas e honra” (Provérbios 3:16)
“Pois por meu intermédio os seus dias serão multiplicados, e o tempo da sua
vida se prolongará” (Provérbios 9:11)
“Meu filho, não se esqueça da minha lei, mas guarde no coração os meus
mandamentos, pois eles prolongarão a sua vida por muitos anos e lhe darão
conselhos de sabedoria para prolongar seus dias na terra, e é neste mesmo sentido
que Provérbios 15:24 deve ser entendido. Assim, “se afastar do Sheol” não significa
“nunca ir ao Sheol”, mas multiplicar seus dias de vida na terra de modo a retardar o
quanto possível a ida ao Sheol (i.e, a morte). Isso é reconhecido até mesmo por
37
teólogos imortalistas de respeito, como é o caso do Dr. Thomas Constable, que
sábios evitam o Sheol o máximo que podem, sendo sábios. Viver com
Quem também reconhece este fato é o renomado teólogo anglicano Charles John
possa ter sido apenas que o homem sábio que teme ao Senhor (Pv
Um salmo que expressa bem o sentido do texto de Provérbios é o Salmo 30:3, que
diz: “Senhor, da cova [Sheol] fizeste subir a minha alma; preservaste-me a vida para
que não descesse à sepultura”. A preservação da vida, neste caso, está atrelada ao
fato da alma não ter descido ao Sheol, o que teria acontecido se Deus não tivesse
estendido os dias de vida do salmista. Isso obviamente não significa que o salmista
nunca iria ao Sheol (já vimos inúmeros textos onde o próprio salmista o afirma
10
CONSTABLE, Thomas. DD. "Commentary on Proverbs 15:24". "Expository Notes of Dr. Thomas
Constable", 2012.
11
ELLICOTT, Charles John. "Commentary on Proverbs 15:24". "Ellicott's Commentary for English Readers",
1905.
38
expressamente), mas sim que Deus o livrou de uma ida precoce ao Sheol ao livrá-lo
“Não evite disciplinar a criança; se você a castigar com a vara, ela não
morrerá. Castigue-a, você mesmo, com a vara, e assim a livrará da
A parte que diz “a livrará da sepultura” é literalmente “livrará sua alma do Sheol”, já
que o hebraico traz aqui nephesh e Sheol. Isso evidentemente não se opõe aos
inúmeros textos bíblicos que mostram a alma de pessoas justas no Sheol, porque a
intenção não era dizer que o filho jamais iria um dia para o Sheol, mas sim que a
criança não morreria precocemente, por desobedecer aos pais. Não à toa Paulo diz
que “honra teu pai e tua mãe’ é o primeiro mandamento com promessa: ‘Para que
tudo te corra bem e tenhas longa vida sobre a terra’” (Ef 6:2-3). Caso semelhante
você vai morrer”. Obviamente eu não estaria dizendo que quem não fuma jamais
qualquer parte do Antigo Testamento que o justo vai pro céu depois da morte. Pelo
contrário, somos sempre informados que o lar dos salvos é a terra, tanto no Antigo
(Sl 37:29, 25:3; Pv 2:21) como no Novo Testamento (Mt 5:5; Ap 21:2-3). Se Provérbios
15:24 estivesse falando de ir morar no céu após a morte, este texto não seria apenas
uma exceção à regra, mas estaria contradizendo todo o resto da Bíblia, incluindo o
próprio livro, que diz que “os justos habitarão na terra, e os íntegros nela
39
permanecerão” (Pv 2:21). A ideia de ir morar no céu é estranha às Escrituras,
que os imortalistas usam para dizer que vamos imediatamente para o céu após a
morte; do outro, todo o testemunho bíblico que unanimemente atesta que o lar de
12:7, o “partir e estar com Cristo” (Fp 1:23) e o “hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc
23:43) como uma alma que sai do corpo em direção ao céu é frustrada pelo realismo
afirmar que o ladrão estaria naquele mesmo dia no Paraíso, eles são obrigados a
concluir que o Paraíso fica no Sheol, como afirma Pickering ao comentar o texto:
“’Paraíso’ aqui diz respeito à metade do Hades (Sheol no AT) destinada aos finados
justos. Hades é tipo a ‘sala de espera’ onde os espíritos dos finados aguardam o
juízo final. Em Lucas 16:22 leva o nome de ‘seio de Abraão’”12. Mas se o Paraíso está
no Hades, e Jesus classificou o Hades como antagônico ao céu (Mt 11:23), como
explicar o texto em que Paulo diz que o Paraíso está justamente no céu?
12
PICKERING, Wilbur. Comentários em Lucas 23:43. Disponível em: <https://www.prunch.com.br/wp-
content/uploads/2020/01/Lucas.pdf>. Acesso em: 13/09/2020.
40
esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei, mas Deus o sabe – foi
No verso 2, Paulo diz que foi arrebatado ao terceiro céu, onde ouviu coisas
indizíveis da parte de Deus. Ele abre um parêntesis no verso 3 para sublinhar que
não sabia se estava lá fisicamente, e então volta a dizer que foi arrebatado ao
Paraíso, retomando o ponto anterior. Isso prova que o terceiro céu é a mesma coisa
que o Paraíso, para onde Paulo foi arrebatado. O “Paraíso”, portanto, não era um
nome dado à “metade do Hades”(!) ou ao tal “seio de Abraão”, mas a uma parte do
próprio céu, onde Deus habita. O termo aqui traduzido por “Paraíso” é paradeisos,
O paradeisos só volta a ser citado novamente no Apocalipse, onde Cristo diz que
“ao vencedor darei o direito de comer da árvore da vida, que está no paraíso de
Deus” (Ap 2:7). Aqui vemos que a árvore da vida está no Paraíso, mas no capítulo 22
Nova Jerusalém» (Ap 21:2), a mesma que desce dos céus à terra ao final do milênio,
para ser a morada eterna dos santos (Ap 21:2-3). Isso significa que o Paraíso está
hoje no céu, mas um dia descerá à terra e aqui estará para sempre, à semelhança
do jardim do Éden, que Deus criou como um paraíso terrestre onde a humanidade
Se o Paraíso se encontra hoje no céu, a única coisa que podemos concluir é que o
41
tampouco é um compartimento do mesmo (Mt 11:23), o que nos leva à inevitável
conclusão de que o ladrão da cruz não esteve naquele mesmo dia com Jesus no
Paraíso, uma vez que o seu destino, como o de todos os demais, era descer ao
Sheol/Hades, em vez de subir ao Paraíso, no terceiro céu. O ladrão não poderia estar
presença de Deus.
Os justos foram transferidos do Sheol para o céu? – Para tentar resolver parte do
problema, alguns criaram a ideia de que os mortos iam para o Sheol até a morte de
Cristo, quando então Jesus tirou os salvos dali e os levou ao céu, deixando no Sheol
apenas os ímpios. Desde então, dizem eles, o justo que morre vai direto pro céu,
mas o ímpio continua indo ao Sheol. Como é óbvio, essa ideia criativa e fantasiosa
não faltem textos mutilados com este objetivo. Em seu livro, toda a argumentação
13
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 98.
42
“Por isso, diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu
dons aos homens. Ora, que quer dizer subiu, senão que também havia
Se você não conseguiu ver neste texto Jesus “tirando os justos da sessão
sozinho. Não se espante se às vezes (ou sempre) eles enxergarem coisas sinistras
nos textos que simplesmente não estão ali. Para quem acredita em fantasminha fora
do corpo, enxergar coisas a mais nos textos é fichinha. Talvez até estejam ali, mas
nós não conseguimos ver porque são tão invisíveis quanto a alma imortal. De fato,
a interpretação que Rinaldi e outros imortalistas fazem deste texto é tão surreal que
chega a ser criticada até por teólogos imortalistas de calibre mais alto, como Geisler,
que escreve:
14
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 371.
43
A expressão “até as regiões inferiores da terra” não é uma referência
que o termo aichmalosia, aqui traduzido como “cativeiro”, também significa «uma
prisioneiros», de acordo com o léxico de Thayer17. É por isso que a NVI traduz por
“levou cativo muitos prisioneiros, e deu dons aos homens” (Ef 4:8). Teria Jesus feito
a ser ridícula.
Na verdade, Paulo estava apenas citando o Salmo 68:18, que por sua vez alude ao
distribuindo-os entre si e com o seu povo. Foi isso o que Jesus fez quando triunfou
15
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 371.
16
#161 da Concordância de Strong.
17
#161 do léxico de Thayer.
44
A interpretação de que Jesus fez os próprios salvos cativos e os levou como
imortalistas mais convictos e militantes, como João Calvino). Era ponto pacífico que
principados e potestades, não uma remoção dos salvos do “seio de Abraão” para o
céu.
Para não encher o livro inteiro de citações, selecionei apenas algumas. Podemos
começar com o famoso teólogo metodista Adam Clarke (1760-1832), que assim
comenta o texto:
18
CLARKE, Adam. "Commentary on Ephesians 4:8". "The Adam Clarke Commentary".
45
Ele não apenas subjuga seu inimigo, mas ele conduz seus cativos em
John Gill (1697-1771), ministro batista do século XVIII e autor de uma conceituada
público.20
Jamieson (não o que você está pensando, mas o autor de um dos comentários
19
BARNES, Albert. "Commentary on Ephesians 4:8". "Barnes' Notes on the Whole Bible", 1870.
20
GILL, John. "Commentary on Ephesians 4:8". "The New John Gill Exposition of the Entire Bible".
46
diabo, a morte, a maldição e o pecado (Cl 2:15; 2Pe 2:4) foram
da destruição do inimigo.21
2:14.22
Quando subiu ao alto, levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens.
extraordinários do Espírito.23
21
JAMIESON, Robert, D.D.; FAUSSET, A. R.; BROWN, David. "Commentary on Ephesians 4:8".
"Commentary Critical and Explanatory on the Whole Bible", 1871.
22
VINCENT, Marvin R. DD. "Commentary on Ephesians 4:8". "Vincent's Word Studies in the New
Testament", 1887.
23
WESLEY, John. "Commentary on Ephesians 4:8". "John Wesley's Explanatory Notes on the Whole Bible",
1765. 47
John Trapp (1601-1669), comentarista bíblico anglicano que exerceu grande
24
TRAPP, John. "Commentary on Ephesians 4:8". “John Trapp Complete Commentary”, 1865.
25
PETT, Peter. "Commentary on Ephesians 4:8". "Peter Pett's Commentary on the Bible”, 2013.
48
inimigos. Mas o verbo grego, traduzido pela frase “levado cativo”, ou
mesma verdade, que por meio da cruz Cristo derrotou Seus inimigos
livres do terror da morte (Hb 2:14-15). Eles estão livres dos enganos
do diabo (Ef 4:14; 2Co 2:11). Eles têm as armas para resistir aos ataques
26
WHEDON, Daniel. "Commentary on Ephesians 4:8". "Whedon's Commentary on the Bible", 1874.
27
DUNAGAN, Mark. "Commentary on Ephesians 4:8". "Mark Dunagan Commentaries on the Bible", 1999.
49
aos seus seguidores. Assim, Cristo venceu. Ele destruiu aquele que
tem o poder da morte, ou seja, o diabo. Ele libertou aqueles que pelo
armado, guarda sua casa, seus bens estão seguros. Mas quando
Até mesmo Calvino (1509-1564), a quem muito se deve o fato da Reforma ter
que de qualquer outra forma. Ele não só obteve uma vitória completa
partir dos rebeldes ele forma todos os dias “um povo voluntário” (Sl
carne. Por outro lado, seus inimigos – cuja classe todos os homens
são impedidos por seu poder de exercer sua fúria além dos limites que
ele designa.29
28
HODGE, Charles. "Commentary on Ephesians 4:8". “Hodge's Commentary on Romans, Ephesians and
First Corintians”.
29
CALVIN, John. "Commentary on Ephesians 4:8". "Calvin's Commentary on the Bible", 1840.
50
Como você pode ver, o consenso unânime entre os próprios teólogos imortalistas
exército derrotado é usado como metáfora para ilustrar o que Jesus fez
não tem nada a ver com levar cativo os próprios salvos ao céu, numa viagem
vários textos bíblicos que expressam a mesma ideia, como Colossenses 2:13-15, que
diz:
A mesma linguagem que Paulo emprega em Efésios 4:8 também é usada aqui.
Ambos os textos falam daquilo que Jesus fez ao triunfar sobre o inimigo na cruz,
despojo/presentes. No caso de Efésios 4:8, é dito que Cristo «deu dons (presentes)
aos homens», o que, como vimos, era uma prática recorrente do exército vitorioso,
também não se referem a uma ida dos salvos ao céu, mas aos dons ministeriais,
51
“Quando ele subiu em triunfo às alturas, levou cativo muitos prisioneiros, e
deu dons aos homens. Que significa ‘ele subiu’, senão que também descera
ministério, para que o corpo de Cristo seja edificado, até que todos
(Efésios 4:8-13)
A ideia absurda e disparatosa de que Cristo levava em cativeiro o seu próprio povo
para o céu só veio a surgir em tempos recentes, quando teólogos imortalistas bem
que justificasse a ida imediata da alma do salvo ao céu após a morte, sem ter que
teológica que caiu como uma luva, ao deslocarem os salvos de um lugar para outro
final de Hebreus 2:13, que diz: “Aqui estou eu com os filhos que Deus me deu”. Para
alguns imortalistas, isso significaria que quando Cristo entrou no céu ele veio
52
acompanhado das almas dos justos teletransportadas do Hades para o Paraíso, e é
nisso que consistiria a expressão “aqui estou eu com os filhos que Deus me deu”. O
problema com essa interpretação é que o próprio verso seguinte explica quando
“Portanto, visto que os filhos são pessoas de carne e sangue, ele também
participou dessa condição humana, para que, por sua morte, derrotasse
aquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo” (Hebreus 2:14)
Como se vê, o autor não estava falando de almas incorpóreas fora do corpo, mas
de pessoas de carne e sangue (αἵματος καὶ σαρκός). Uma vez que um espírito não
tem carne ou sangue, é evidente que ele não estava falando de almas fora do corpo,
mas de pessoas fisicamente presentes. Por isso o texto prossegue dizendo que
Jesus «participou dessa condição humana», já que se referia não ao que Jesus fez
palavras, os “filhos que Deus me deu” são os homens e mulheres que seguiram
Jesus quando ele esteve na terra, não um grupo de almas desencarnadas que Jesus
Outro texto por vezes usado para provar que Jesus tirou os salvos do seio de Abraão
“Sou aquele que vive. Estive morto mas agora estou vivo para todo o sempre!
53
Um bom observador deve ter notado que não há nada no texto que sugira que os
“além daquilo que está escrito” (1Co 4:6). A bem da verdade, o texto nem sequer diz
que Jesus tomou as chaves do diabo, só diz que ele está em posse das chaves.
Efésios 4:8, que mostram o triunfo espiritual de Cristo sobre as forças das trevas, por
A ideia transmitida nestes textos não é que Jesus foi ao inferno e ali literalmente
arrancou as chaves das mãos do diabo, mas que Cristo, como “as primícias dos que
dormem” (1Co 15:23), venceu o império da morte por meio de Sua ressurreição
seremos ressuscitados do Hades assim como ele foi. Por isso Paulo diz que “da
mesma forma como em Adão todos morrem, em Cristo todos serão vivificados. Mas
cada um por sua vez: Cristo, o primeiro; depois, quando ele vier, os que lhe
Paulo diz que Cristo, “tendo despojado os poderes e as autoridades, fez deles um
espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Cl 2:15). Obviamente, ele não
estava falando de um espetáculo público literal enquanto Jesus morria na cruz, mas
chaves das mãos do diabo literalmente, como creem certas pessoas que chegam a
afirmar que Jesus desceu até o inferno, da mesma forma que não entregou uma
chave literal para Pedro (Mt 16:19) e para os demais apóstolos (Mt 18:18). As chaves
são um símbolo de autoridade. Quando Jesus diz que tem as chaves da morte e do
54
Hades, o que ele quer dizer é que toda autoridade lhe foi dada (Mt 28:18), até
E como Jesus tem a autoridade sobre o Hades, ele pode ressuscitar qualquer pessoa
dali, no último dia. É isso o que Paulo alude em 1ª Coríntios 15:54-55, que diz:
escrita: Tragada foi a morte na vitória. Onde está, ó morte, o teu aguilhão?
O termo que a ACF traduziu como “inferno” é o Hades, no original grego (que, como
neste momento que Paulo diz que o Hades será derrotado. Se os justos já tivessem
anos. E antes que alguém diga que essa ressurreição da qual Paulo se refere diz
respeito apenas aos ímpios, Paulo claramente fala em nome dos cristãos quando
diz que “nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados” (v. 51), e
dos mortos veio por meio de um só homem. Pois da mesma forma como em
Adão todos morrem, em Cristo todos serão vivificados. Mas cada um por sua
vez: Cristo, o primeiro; depois, quando ele vier, os que lhe pertencem” (1ª
Coríntios 15:21-23)
55
Não é a ressurreição dos ímpios que quebra os aguilhões da morte, mas justamente
a ressurreição dos justos, que a morte não consegue reter. Assim, é perfeitamente
quando então o próprio Hades será derrotado. Isso não apenas prova que os salvos
que falecem permanecem descendo ao Sheol e não subindo ao céu, como refuta a
“seio de Abraão” para os justos. Para Paulo, os próprios justos estão no Hades, e lá
que Jesus transferiu os justos do Sheol para o céu, onde Deus habita. Os poucos
textos citados para este fim não passam de distorções bizarras e vergonhosas, que
só servem para demonstrar o quanto eles precisam apelar aos malabarismos mais
bárbaros na vã tentativa de dar algum sentido à doutrina que eles criaram. Ao invés
encaixar nela a imortalidade da alma, pois sem apelar desse jeito nada faz sentido
na teologia imortalista.
A razão pela qual os imortalistas tiveram que criar esse arranjo teológico é fácil de
eles usam para dizer que vamos imediatamente ao céu após a morte com os textos
que dizem que o destino de todos é o Sheol, embaixo da terra. Como vimos, de
acordo com eles, Jesus prometeu ao ladrão da cruz que estaria naquele mesmo dia
com ele no Paraíso (Lc 23:43), que segundo Paulo fica no terceiro céu, onde Deus
56
habita (2Co 12:2-4). No entanto, se Jesus esteve no Hades após a morte (At 2:27) e
Da mesma forma, eles dizem que Paulo esperava estar com Cristo como um espírito
incorpóreo num estado intermediário (Fp 1:23), e sabemos que Jesus está
assentado à direita do Pai, no céu (At 7:56; Lc 22:69; Mc 16:19). Mas se todos descem
ao Sheol na morte, como Paulo poderia estar no céu? E como poderia Abraão estar
entregar o espírito a Deus (Lc 23:46; At 7:59), se eles iriam para o Sheol/Hades após
a morte, e não para a presença de Deus? Apelar para a onipresença de Deus não
resolve o problema, pois se fosse assim nós já estaríamos na presença de Deus hoje,
já que a onipresença dEle obviamente abrange a própria terra. A única solução seria
dizer que o Sheol/Hades está no próprio céu onde Deus habita visivelmente, mas,
como vimos, isso esbarra em todos os textos que contrastam um e outro – o céu
É por essas e outras que os imortalistas tiveram que arrumar um jeito de resolver o
desde os tempos do Antigo Testamento Salomão dizia que o espírito voltava para
Deus na morte (Ec 12:7), o que para os imortalistas se refere à alma imortal. O
57
próprio fato deles precisarem apelar para uma tese tão excêntrica e sem qualquer
ser preciso uma engenharia colossal para explicar o inexplicável, à custa dos textos
por isso não podem ser o mesmo. Rinaldi, por exemplo, escreve que “qeber
ele acerta quando diz que o Sheol não é uma mera sepultura individual, já que o
é simplesmente falso, para não dizer mentiroso, que “qeber é o lugar do corpo,
enquanto que Sheol é o lugar do espírito e da alma”. Quem afirma isso o faz de má-
Isso me faz lembrar uma antiga querela que tive com o pastor imortalista Jamierson
30
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 94.
58
Eu o respondi com todo o prazer, citando 17 textos bíblicos que expressamente
refutação está guardada”, mas deve ter guardado tão bem que perdeu, e até hoje
(2020) não saiu nada. A verdade é que os imortalistas são tão fracos de Bíblia que
fazem afirmações das mais categóricas e desafios dos mais ousados em torno de
coisas das quais desconhecem por completo. Nenhum deles sequer se deu ao
Israel na época do rei Davi. Em seu leito de morte, o rei diz a seu filho e herdeiro
Salomão: “Mas, agora, não o considere inocente. Você é um homem sábio e saberá
o que fazer com ele; apesar de ele já ser idoso, faça-o descer ensanguentado à
sepultura” (1Rs 2:9). O termo aqui traduzido por “sepultura” é Sheol, no hebraico. A
não ser que o espírito de Joabe sangre, é evidente que Davi falava de seu corpo
físico, que desceria ensanguentado ao Sheol por ser atacado e morto de forma
cabelos brancos:
“Meu filho não descerá com vocês; seu irmão está morto, e ele é o único que
resta. Se qualquer mal lhe acontecer na viagem que estão por fazer, vocês
31
Disponível em: <http://heresiascatolicas.blogspot.com/2015/07/o-sheol-hades-e-uma-morada-de-
almas.html>.
59
farão estes meus cabelos brancos descerem ao Sheol com tristeza” (Gênesis
42:38)
“Agora, pois, se eu voltar a teu servo, a meu pai, sem levar o jovem conosco,
logo que meu pai, que é tão apegado a ele, perceber que o jovem não está
conosco, morrerá. Teus servos farão seu velho pai descer seus cabelos
Novamente vemos o verbo “descer”, porque Jacó sabia que o Sheol nada mais era
que as regiões subterrâneas da terra. Ele não esperava ir para o céu depois da morte,
nem pensava que seu espírito se separaria do corpo e iria a uma outra dimensão.
Isso porque os textos são claros em dizer que seus cabelos brancos desceriam com
ele ao Sheol, não uma alma incorpórea e fluídica. Jacó sabia perfeitamente que não
era o seu espírito que estaria no Sheol, mas seu corpo físico, com cabelos, ossos e
“Quando eles caírem nas mãos da Rocha, o juiz deles, ouvirão as minhas
Mais uma vez, o termo aqui traduzido por “sepultura” é Sheol, no hebraico. Se o
Sheol fica em outra dimensão, só podemos concluir que os ossos do ímpio que
dimensão. Isso ainda não chegaria a provar a imortalidade da alma, mas com
60
Mas, como é óbvio, os ossos espalhados na entrada do Sheol significam apenas que
seriam soterrados assim como os seguidores de Corá e todos os que morrem, mais
cedo ou mais tarde. Em nada tem a ver com um lugar no centro da terra ou em outra
O fato do Sheol ser a habitação de corpos físicos, e não de almas fora do corpo, é
expressado com perfeição pelo salmista, que diz: “Voltem os ímpios ao pó, todas as
nações que se esquecem de Deus!” (Sl 9:17). O termo que a NVI traduz por “pó” e
que a ACF traduz por “inferno” é justamente o Sheol, no hebraico. Mas “inferno” é
uma tradução visceralmente equivocada, uma vez que o texto diz “voltem” (shuwb,
que significa «retornar, voltar»32). Ninguém volta para um lugar onde nunca esteve;
portanto, traduzir por “inferno” é um disparate. Neste sentido, a NVI é mais coerente
ao traduzir por “pó”, lembrando que “do pó viestes, e ao pó voltarás” (Gn 3:19), texto
Em outras palavras, quando o salmista diz que os ímpios voltarão ao Sheol, o que
ele quer dizer é que eles voltarão ao pó da terra, de onde foram feitos. Aqui, o Sheol
é claramente identificado com o pó, de onde Deus fez o corpo (Gn 2:7). É o corpo
que foi feito do pó da terra (Sheol), e é o corpo que para lá retorna na morte. Nada
tem a ver com um inferno numa outra dimensão ou com qualquer coisa do tipo.
32
#7725 da Concordância de Strong.
61
“Ora, se o único lar pelo qual espero é o Sheol; se estendo a minha cama nas
trevas; se digo à corrupção mortal: Você é o meu pai, e se aos vermes digo:
Vocês são minha mãe e minha irmã, onde está então minha esperança?
Quem poderá ver alguma esperança para mim? Descerá ela às portas do
Sheol? Desceremos juntos ao pó?” (Jó 17:13-16)
Jó não estava dizendo que iria para o inferno e que ali seria comido por vermes
metafísicos, mas apenas que voltaria ao pó, onde seu corpo mortal viraria comida
para os vermes. Por isso ele conclui dizendo: “Descerá ela às portas do Sheol?
Desceremos juntos ao pó?” (v. 16). O paralelismo entre as “portas do Sheol” e o “pó”
mostra claramente que Jó equiparava ambos, como sendo idênticos (como vimos
verso o mesmo que havia sido dito na parte anterior, mas com outras palavras).
“silente, empoeirado e escuro lugar para onde Deus disse a Adão que ele e seus
volta a ser pó, como disse Deus (Gn 3:19). Por isso Jó falou em descer ao pó, uma
linguagem que diz respeito à morte, quando seria enterrado embaixo da terra.
ciclo da vida.
33
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 155.
62
Este significado torna-se ainda mais nítido à luz do Salmo 49, que diz:
Nas duas ocasiões onde aparece a palavra “sepultura” na tradução da NVI, é o Sheol
que aparece no original hebraico. Literalmente, o que o salmista dizia era que a
uma aparência que se desfaz numa outra dimensão ou no centro da terra. O termo
aqui traduzido por “desfará” no hebraico é balah, que significa «gastar pelo uso,
quem não aceita a clareza dos textos bíblicos são os dualistas, seja por uma
ignorância invencível, seja por uma obstinação ainda mais difícil de se vencer.
em tantos textos, se não fosse pela necessidade patológica que os imortalistas tem
em encontrar um lugar para colocar a alma dos mortos fora do corpo, o que os leva
34
#1086 da Concordância de Strong.
63
a distorcer criminosamente o significado do Sheol a fim de transformá-lo em algo
E por falar em túmulo, o Sheol também está intimamente relacionado a ele. Embora
seja errado limitar o Sheol a uma sepultura individual ( qeber), as sepulturas são
enterradas na terra, ou seja, no Sheol. Por essa razão, todos os que estão sepultados
estão no Sheol, embora nem todos os que estejam no Sheol foram devidamente
vivos pela terra, e outros tantos cadáveres são privados de sepultura). Essa relação
íntima entre o Sheol e a sepultura (ou cova) explica os tantos textos bíblicos que
equivalem ambos.
resgatarei da morte. Onde estão, ó morte, as suas pragas? Onde está, ó sepultura, a
sua destruição?” (Os 13:14). O termo aqui traduzido por “sepultura”, no hebraico, é
o Sheol. Paulo cita esse mesmo texto em 1ª Coríntios 15:55, ao falar da ressurreição
“Por isso o meu coração se alegra e no íntimo exulto; mesmo o meu corpo
64
A parte que diz “tu não me abandonarás no sepulcro”, no hebraico é `azab nephesh
sh'owl (“não abandonarás minha alma no Sheol”). É ali, no Sheol, que o seu corpo
paralelismo hebraico, que iguala corpo e alma). Isso refuta ao mesmo tempo a ideia
de que o corpo não vai pro Sheol e de que a alma é um elemento incorpóreo que
O mais interessante é que Pedro aplica este texto a Jesus, que não foi abandonado
no Sheol nem sofreu decomposição, porque ressuscitou ao terceiro dia (At 2:27).
“Irmãos, posso dizer-lhes com franqueza que o patriarca Davi morreu e foi
sepultado, e o seu túmulo está entre nós até o dia de hoje. Mas ele era
profeta e sabia que Deus lhe prometera sob juramento que colocaria um dos
seus descendentes em seu trono. Prevendo isso, falou da ressurreição do
Cristo, que não foi abandonado no sepulcro e cujo corpo não sofreu
Davi disse que sua alma não seria abandonada no Sheol nem sofreria
decomposição (Sl 16:9-10), e Pedro, ao citar este verso (At 2:27), o aplica
profeticamente a Jesus, cujo corpo não sofreu decomposição no túmulo. Isso prova
que, para Pedro, não havia diferença substancial entre a alma e o corpo, e tampouco
65
túmulo, como Pedro disse. Portanto, no salmo e no uso do salmo por parte de Pedro
“Ó Senhor, Deus que me salva, a ti clamo dia e noite. Que a minha oração
chegue diante de ti; inclina os teus ouvidos ao meu clamor. Tenho sofrido
tanto que a minha vida está à beira da sepultura! Sou contado entre os que
descem à cova; sou como um homem que já não tem forças. Fui colocado
junto aos mortos, sou como os cadáveres que jazem no túmulo, dos quais já
Onde se lê que “minha vida está à beira da sepultura”, é o Sheol que aparece no
hebraico. Para os imortalistas, isso significa que o salmista estava dizendo que sua
alma sairia do corpo rumo a uma outra dimensão na presença de Deus, que seria o
Sheol. No entanto, essa ideia é fortemente combatida nos versos seguintes, onde
ele complementa o seu pensamento dizendo estar contado entre os que descem à
cova (v. 4), como os cadáveres que jazem no túmulo (v. 5). Em outras palavras, aqui
66
o Sheol é igualado à cova-bowr e ao túmulo-qeber, como o destino que o
aguardava.
Vemos algo semelhante no Salmo 30, onde o salmista diz: “Senhor, tiraste-me da
sepultura; prestes a descer à cova, devolveste-me à vida” (Sl 30:3). A parte que diz
significa “tiraste minha alma do Sheol”. Note que ele não apenas diz que sua alma
foi “tirada” do Sheol, mas que estava prestes a descer à cova. Esse texto foi mal
que diz: Yhovah `alah nephesh sh'owl chayah yarad bowr, que, literalmente
traduzido, é: “Senhor, tiraste minha alma do Sheol; conservaste-me vivo para que
O paralelismo entre a primeira e a segunda parte do verso mostra que o Sheol era
igualado à cova, e não a um lugar em uma outra dimensão. Era o local onde se
destruídos os que descem à cova” (Pv 1:12). Como você já deve suspeitar, o termo
aqui traduzido por “sepultura” é o Sheol, no hebraico. Aqui, o Sheol é mais uma vez
igualado à cova (bowr), que aparece 67 vezes na Bíblia, e nunca designa um lugar
numa outra dimensão. Todas as vezes que a palavra é usada, é para se referir a uma
cova literal, cavada na terra (que pode servir de poço, sepultura, cisterna e etc)35.
35
Confira em: <https://biblehub.com/hebrew/strongs_953.htm>. Acesso em: 30/09/2020.
67
Jó também diz que “assim como o calor e a seca depressa consomem a neve
derretida, assim a sepultura consome os que pecaram” (Jó 24:19). À essa altura, creio
que não é preciso dizer qual palavra consta no original hebraico do termo aqui
traduzido por “sepultura”. O mais importante é que o texto diz que o Sheol consome
os que pecaram, da mesma forma que o calor consome a neve derretida. Essa é uma
se decompõe até voltar ao pó de onde veio – como a neve que se derrete e já não
é mais neve –, mas nada compatível com um espírito imortal e imaterial, além de
incorruptível.
Outro texto que mostra com clareza o vínculo entre o Sheol e a sepultura está em
Isaías 38, onde o rei Ezequias, que estava à beira da morte, agradece pelos quinze
“Foi para o meu benefício que tanto sofri. Em teu amor me guardaste da cova
que descem à cova não podem esperar pela tua fidelidade. Os vivos, somente
os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo; os pais contam a tua fidelidade
O hebraico deste texto tem uma série de nuances que passam despercebidas na
tradução defeituosa ao português. Primeiramente, na parte que diz que «em teu
ele disse literalmente é que Deus, ao livrá-lo da morte, livrou sua alma de descer à
68
cova (do hebraico shachath, que significa «cova, destruição, sepultura»36). Isso
responde o inocente desafio do pastor Jamierson, que pediu um texto bíblico onde
a alma está na sepultura (na verdade, como vimos no capítulo 2, há muitos textos
Logo após louvar a Deus por ter livrado sua alma da cova, Ezequias conclui: “Pois a
sepultura não pode louvar-te...” (v. 18). Aqui, “sepultura” é a tradução do hebraico
Sheol, o que não apenas mostra que não há louvor no Sheol (refutando totalmente
a ideia de que o Sheol era um lugar onde os salvos estivessem conscientes), mas
também iguala o Sheol à cova-shachath, uma vez que o texto é uma conclusão que
completa o sentido do verso anterior. Em outras palavras, Deus livrou sua alma de
Se o Sheol fosse algo diferente da cova citada no verso 17, o verso 18 não seria um
absurdo pelo contexto. O fato do Sheol ser identificado com a “cova da destruição”
é reforçado na continuação do próprio verso 18, que diz que «aqueles que descem
à cova não podem esperar pela tua fidelidade». Aqui é usada outra palavra para
cova (bowr), mas que expressa o mesmo sentido. Ezequias usa três palavras
diferentes para designar o local onde iria após a morte – shachath, Sheol e bowr –,
e ambos são igualados em absoluto. Era bastante comum um judeu usar palavras
diferentes para expressar a mesma ideia em paralelismo, como ocorre no Salmo 24:
36
#7845 da Concordância de Strong.
69
“Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem”
(Salmos 24:1)
A segunda parte do verso diz a mesma coisa da primeira, mas com outras palavras.
Senhor é “o que nela existe”; na outra, “os que nele vivem”. A segunda parte vem
palavras sinônimas ou bastante próximas, não para introduzir uma ideia nova ao
texto. Vemos isso centenas de vezes na Bíblia. Quando Isaías usa shachath, Sheol e
bowr para dizer que depois da morte ele não poderia louvar a Deus, ele estava
ideia. Isso obviamente exige que o Sheol seja tão físico e terreno quanto a sepultura
Walter Doermann chegou à conclusão de que “os mortos eram concebidos como
diferentes”37. Da mesma forma que quem está em São Paulo também está no Brasil,
mas isso não significa que esteja em dois lugares diferentes, assim também quem
está na sepultura está no Sheol, porque o Sheol abrange a sepultura. Assim, embora
o Sheol não se limite à sepultura apenas, ele está intimamente relacionado a ela,
uma vez que todos os mortos que foram sepultados estão no Sheol.
37
DOERMANN, Ralph Walter. Sheol in the Old Testament. Dissertação (Doutorado em Teologia) – Duke
University. Durham, 1961, p. 191.
70
Só não está no Sheol os mortos que não foram enterrados, como aqueles que
Hades entregando os mortos que nele havia e o mar entregando os mortos que
nele havia, o que revela que quem tinha morrido no mar não estava no Hades:
sentido, pois retrata cada um entregando os seus mortos (ou seja, «os mortos que
neles havia»). Aqui vemos o mar entregando os mortos que nele havia (ou seja, os
que morreram no mar), enquanto a morte e o Hades entregam os mortos que neles
havia (ou seja, os que morreram na terra). Os mortos no mar não estão no Hades,
justamente porque não estão debaixo da terra (já que boiam no mar). Quem
texto em questão:
separada dos mortos. Mas eles também são agora levados perante o
38
WRIGHT, N. T. Os Evangelhos Para Todos. São Paulo: Thomas Nelson, 2020, p. 1899.
71
Isso é mais uma prova avassaladora de que o Sheol/Hades nada mais é que as
também. A não ser que os imortalistas inventem que o “mar” neste texto também
se refere a uma outra dimensão metafísica para onde vão as almas que não estão
no Hades, fica mais do que evidente que o autor concebia o Hades como não mais
que a região subterrânea da terra onde os mortos estão enterrados, uma região tão
Hades e o mar, ou mesmo por que raios o mar aparece no texto. Interpretar aqui
que João se referia aos que morreram no mar quando diz que o mar entregou os
seus mortos, mas que ao se referir ao Hades estava falando das almas numa outra
Wright: o mar diz respeito aos que morreram no mar e por isso não foram
enterrados, e o Hades aos que morreram em terra firme e estão debaixo da terra. O
que João estava dizendo é que tanto os cadáveres que estão boiando no mar
quanto aqueles que estão enterrados na terra ressuscitarão para prestar contas a
Deus no dia do juízo, o que anula toda tentativa de interpretar o Hades como um
“mundo espiritual dos espíritos”. O Hades é uma região tão física quanto o mar, e
72
• Há vida no Sheol?
“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força,
pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento,
não há conhecimento nem sabedoria” (Eclesiastes 9:10)
Embora a NVI traduza por “sepultura”, é o Sheol que aparece no original hebraico.
Note que o autor não diz que há vida, consciência ou qualquer tipo de atividade no
Sheol. Pelo contrário, ele diz que no Sheol não há atividade, nem planejamento,
que no Sheol não há conhecimento das coisas que acontecem na terra, mas que
eles têm pleno conhecimento do que acontece à sua volta, no Sheol. Isso é
claramente refutado pelo contexto, que diz tudo o que devemos fazer temos que
fazer agora, já que no Sheol não teremos como realizá-los. Se essas práticas fossem
sem sentido, já que as coisas que fazemos aqui também seriam possíveis de se
realizar no além. A única coisa que explica a necessidade de fazermos tais coisas
73
Sheol é impossível fazer o que fazemos aqui, justamente porque no Sheol não há
verso? Sabedoria do que acontece na terra? Isso não faz sentido algum. É difícil
imaginar como isso possa se aplicar a um homem sábio, a não ser que ele perca a
significado do Sheol, fica muito fácil de explicar: não há sabedoria no Sheol, porque
não há vida no Sheol. E se não há vida, não há nada que se relacione a ela, o que
onde vieram. Por isso Salomão diz que “assim como morre o sábio, morre o tolo”
(Ec 2:16), algo que não faria sentido algum se ambos tivessem destinos
discriminado, não enquanto estão no Sheol. Isso vai ao encontro das palavras do
oposto, que eles gritariam no Sheol devido ao seu sofrimento, como qualquer
imortalista diria.
Não me surpreenderia se alguém chegasse ao ponto de dizer que a parte que diz
“calados fiquem no Sheol” deva ser interpretada como “calados fiquem nesta vida,
mas no Sheol não”. Ou, pior ainda, que os seus corpos estão calados, mas suas
74
almas imortais fora do corpo estão gritando de agonia e desespero. Além de uma
já que para ele (e para os imortalistas no geral) o Sheol é a morada das almas, e o
Em outro salmo, o salmista diz que “se o Senhor não fora em meu auxílio, já a minha
alma habitaria no lugar do silêncio” (Sl 94:17). Que “lugar do silêncio” é esse, que o
salmista diz que a sua alma-nephesh habitaria depois da morte? O céu não pode
ser, pois é um lugar de júbilo e regozijo. O inferno também não, pois é um lugar de
dor e gritaria (e além disso, um destino pouco provável para o salmista). A única
conclusão que resta é que ele falava do Sheol, o «lugar do silêncio» debaixo da terra
Este texto é tão mortal que nem mesmo permite a manobra sorrateira à qual eles
estão acostumados, de dizer que neste caso Sheol se refere à sepultura, mas que
em outros casos (que ninguém sabe quais) se refere ao mundo do além. Isso porque
o salmista diz que sua nephesh (alma) iria para o lugar do silêncio na morte, o que,
Portanto, a única solução que resta para os imortalistas são duas manobras
sorrateiras atuando juntas: primeiro, dizer que nephesh (alma) está se referindo ao
corpo e não à alma, e, segundo, dizer que o Sheol está se referindo à sepultura
75
dissimulada seria capaz de vender, e só gente extremamente ingênua seria capaz
de comprar – o que muitos deles não hesitam em fazer, já que é a única opção que
lhes resta. Isso mostra o quanto seus argumentadores não são sérios nem estão
arrumar qualquer pretexto que sirva para negar a clareza do texto bíblico que
retórica: “Quem morreu não se lembra de ti. No Sheol, quem te louvará?” (Sl 6:5). É
seria Deus. Nenhum católico diria que os “santos” no céu para os quais ele reza não
se lembram do Deus com quem eles estão. A única solução que resta aos
ridícula é refutada logo em seguida, quando ele diz: “No Sheol, quem te louvará?”.
Note que o salmista não fala do qeber, mas do Sheol, precisamente o lugar que os
imortalistas acreditam estar em uma outra dimensão e onde as almas dos justos
estão (ou estavam) na presença de Deus. E é neste lugar que ele diz que ninguém
conscientes no Sheol (a não ser que haja uma placa na entrada do Sheol dizendo
76
Não poucos imortalistas tem a desfaçatez de dizer que aqui o salmista estava
falando apenas sobre louvar a Deus na assembleia de Israel, como se ele dissesse:
Isso seria como se eu dissesse: “No Recife, quem pode louvar a Deus em São
Paulo?”. Não apenas a frase é irracional, como leva a uma direção obviamente
oposta à que o salmista expressava. Como você pode perceber ao ler o salmo na
íntegra, todo o ponto girava em torno da inutilidade que o salmista teria para com
Salmos 6
ossos tremem:
6 Estou exausto de tanto gemer. De tanto chorar inundo de noite a minha cama; de
adversários.
8 Afastem-se de mim todos vocês que praticam o mal, porque o Senhor ouviu o
meu choro.
de repente.
77
Como você pode notar, o salmista acreditava estar à beira da morte, e por isso faz
essa oração ao Senhor, onde roga pela manutenção de sua vida. No verso 5, ele
apresenta uma razão pela qual ele seria mais útil vivo, ao alegar que os mortos não
presença de Deus e o louvassem no Sheol, essa razão seria de toda falsa, e jogaria
por terra todo o argumento. Para os católicos, por exemplo, o salmista não apenas
isso é o oposto ao entendimento do salmista, que acreditava que só seria útil para
Deus vivo, na terra. Isso porque ele sabia que o Sheol não era uma morada de almas
“Pois a sepultura não pode louvar-te, a morte não pode cantar o teu louvor.
Aqueles que descem à cova não podem esperar pela tua fidelidade. Os vivos,
somente os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo; os pais contam a tua
Onde a NVI traz “sepultura”, é Sheol que consta no hebraico. Como vimos, o autor
equivale o Sheol à cova, mas não só isso: ele também diz que não há louvor no
Sheol pode louvar a Deus na assembleia israelita, mas que podem louvá-lo no
próprio Sheol. Isso é claramente refutado no verso seguinte, que diz que “os vivos,
78
e somente os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo”. Não sei de que forma
Ezequias poderia deixar mais claro que não há a menor possibilidade de louvar a
que não seja a interpretação natural do texto. Isso porque Ezequias estava
agradecendo por Deus ter lhe dado quinze anos a mais de vida, após o profeta Isaías
dizer que ele morreria da doença que havia contraído. É neste contexto que ele diz
que só os vivos podem louvar a Deus e que não há como louvá-lo no Sheol. Em
outras palavras, o que ele estava dizendo é que seria mais útil vivo, pois enquanto
vivo poderia louvar ao Senhor, algo que ele não poderia fazer depois de morto.
Dizer que aqui Ezequias estava falando apenas de louvar a Deus entre os vivos
equivaleria a interpretar sua frase como “os vivos, e somente os vivos, podem te
louvar entre os vivos”, o que seria uma informação redundante e inútil. Tanto o
contexto como o bom senso implicam que Ezequias estava olhando para além da
vida presente, fazendo questão de destacar que ele não teria valor algum para Deus
na condição de morto, mas vivo ele poderia louvá-lo e adorá-lo. Ou, para usar as
palavras do sábio filho de Davi, “até um cachorro vivo é melhor do que um leão
morto” (Ec 9:4). Diante disso, é evidente que para os escritores bíblicos o Sheol era
Isso é confirmado pelo salmista no Salmo 88, que lembra muito a oração de
79
“Afastaste de mim os meus melhores amigos e me tornaste repugnante para
eles. Estou como um preso que não pode fugir; minhas vistas já estão fracas
de tristeza. A ti, Senhor, clamo cada dia; a ti ergo as minhas mãos. Acaso
mostras as tuas maravilhas aos mortos? Acaso os mortos se levantam e te
louvam? Será que o teu amor é anunciado no túmulo, e a tua fidelidade, no
Note a semelhança deste texto com os dois últimos que analisamos, que também
sugere ser impossível os mortos louvarem a Deus. A diferença é que o termo que
aparece para “túmulo” aqui é qeber, o que mostra que o salmista se referia aos
mortos na sepultura exatamente da mesma maneira que ele se referia aos mortos
vimos, é igualado ao Sheol) mostra não apenas a paridade entre um e outro, mas
também que no Sheol não é anunciada a fidelidade de Deus ou seus feitos de justiça
– algo completamente falso se o Sheol fosse uma outra dimensão onde os que
Como reconhece o erudito imortalista Hans Walter Wolff em sua clássica obra
80
no mundo dos mortos, não há mais lugar para a obra de Javé, nem
Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil no início do século passado, disse que
o Sheol “não se representa como lugar de castigo nem de recompensa”40. Isso fica
ainda mais claro a partir da descrição que Jó faz do Sheol, que em nada se parece
“Por que não morri ao nascer, e não pereci quando saí do ventre? Por que
bem poderia estar deitado em paz e achar repouso junto aos reis e
ruínas, com governantes que possuíam ouro, que enchiam suas casas de
prata. Por que não me sepultaram como criança abortada, como um bebê
que nunca viu a luz do dia? Ali os ímpios já não se agitam, e ali os cansados
39
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 171-172.
40
CRABTREE, A. R. Teologia Bíblica do Velho Testamento. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1960,
p. 268.
81
Jó não estava falando de uma sepultura individual (qeber), porque diz que se tivesse
Portanto, é evidente que ele estava falando do Sheol, onde estão todos os mortos,
embaixo da terra. Sabemos, então, que Jó se referia ao Sheol, mas que tipo de Sheol
era esse? Seria o Sheol imortalista da outra dimensão, onde as almas estão
perfeitamente ativas e conscientes? Não é o que parece. Jó diz que ali «os ímpios já
consciente. Ainda mais significativo que isso é que “já não ouvem mais os gritos do
feitor de escravos” (v. 18), quando o senhor de escravos deveria ser o primeiro a
estar gritando de dor. Se os ímpios não parecem estar em um lugar que lembre o
mais remotamente o inferno, os justos não parecem estar em um lugar como o céu.
assim como Jó, que estaria “deitado em paz e acharia repouso junto aos reis e
Isso lembra muito o texto em que Daniel diz que “multidões que dormem no pó da
terra despertarão” (Dn 12:2), ao se referir à ressurreição do último dia. Note que
Daniel não diz que essas multidões virão do céu ou do inferno, mas do pó da terra,
41
#7267 da Concordância de Strong.
82
que, como vimos, está associado ao Sheol. E a respeito da condição dessas pessoas
no Sheol ele usa o verbo yashen (dormir), o mesmo que Jó usa em relação à
condição dos mortos no Sheol, no texto que acabamos de conferir (Jó 3:13). E é do
Sheol (Hades) que Paulo diz que os mortos serão ressuscitados (1Co 15:54-55).
Os imortalistas alegam que Daniel falava apenas do corpo, pois é só o corpo que
ressuscita (uma vez que a alma já está viva). Se isso é verdade em relação ao texto
de Daniel, também deveria ser para o texto de Jó, que fala da condição dos mortos
no Sheol usando a mesma linguagem. Mas isso implicaria que o Sheol é o lugar
onde fica o corpo, o que os imortalistas como Jamierson Oliveira não admitem. Isso
os deixa na delicada situação onde são forçados a concluir que Jó falava do sono da
negar que o Sheol seja um lugar de almas incorpóreas numa outra dimensão, para
sustentar que é só o corpo que iria “dormir”. De um jeito ou de outro, eles estão em
apuros. Como diz o ditado, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
no Sheol ou no pó da terra lança luz aos vários textos do Pentateuco que dizem que
alguém que morreu “foi reunido aos seus antepassados” (cf. Gn 25:8,17, 35:29,
49:33; Nm 20:26, 31:2; Dt 32:50). Esses textos são por vezes citados pelos
imortalistas para dizer que a alma dos personagens bíblicos em questão se desligou
dimensão, quando na verdade é apenas um eufemismo semita para dizer que eles
compartilhariam o mesmo lugar embaixo da terra. Alguém que morre é reunido aos
outros mortos no cemitério, não porque tenha virado um fantasma que assombra
83
o lugar com as outras almas penadas, mas porque seu destino é compartilhar o
É por isso que a expressão “foi reunido aos seus antepassados” é substituída nos
livros históricos pela expressão “descansou com os seus antepassados” (cf. 1Rs 2:10,
15:8, 16:6,28, 22:40; 2Rs 20:21; 2Cr 16:13, 33:20, etc), que quer dizer a mesma coisa.
Essa expressão é usada indistintamente para os reis justos e ímpios, o que significa
que o “descansar” aqui em nada tem a ver com um “descanso celestial” no sentido
de refrigério (até mesmo o ímpio rei Acabe, marido de Jezabel, «descansou com os
somente ao corpo, uma vez que a alma está bem ativa e consciente no “mundo dos
mortos”. O problema é que isso implicaria que a expressão “descansou com os seus
antepassados” se refere ao estado do corpo, o que prova que “se reunir aos
antepassados” não era de modo algum uma linguagem de vida após a morte, como
em que Jacó diz que desceria ao seu filho no Sheol – cf. Gn 37:35). Mais do que isso,
implicaria que o próprio Sheol é o lugar do corpo, e não da alma fora do corpo, uma
vez que o Sheol abrange todos os mortos embaixo da terra, enquanto a sepultura
84
lugar, ou seja, no Sheol (=embaixo da terra), e ali “descansam”, indicando
inatividade. Isso é tudo o que os hebreus tinham a dizer quanto ao estado atual dos
mortos, sem o menor indício de vida após a morte em uma outra dimensão, como
Wolff honestamente admite que enquanto nas religiões do antigo Oriente Médio
1:12)42.
O próprio fato da cidade de Tiro “descer com os que descem à cova, para fazer
companhia aos antigos” (Ez 26:20), prova que a mesma linguagem empregada em
relação aos mortos no Sheol também era utilizada para cidades na cova, o que
obviamente não significa que haja vida consciente na cova ou que Tiro sobrevive
numa outra dimensão na companhia das almas dos mortos. Ao contrário, é dito a
seu respeito que “você já não existirá” (v. 21), que é o que acontece com quem
“habita embaixo da terra” (v. 20). Habitar embaixo da terra, fazer companhia aos
expressões idiomáticas semíticas comumente usadas para designar não uma vida
42
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 167.
85
após a morte, mas o fim da existência ao ser enterrado na terra, um fim comum a
toda a humanidade.
ao Sheol como a “prova” de que o Sheol é uma mansão literal dos mortos, no outro
mundo. Leia com atenção o “argumento” levantado por Michael S. Heiser: “O Sheol
tinha ‘barras’ (Jó 17:16) e ‘cordas’ para amarrar seus habitantes (2Sm 22:5-6),
impedindo qualquer fuga (Jó 7:9)”43. O primeiro texto que ele cita é Jó 17:16, que
diz: “Descerá ela às portas do Sheol? Desceremos juntos ao pó?”. Ele usa esse texto
para explicar as “portas do Hades” de Mateus 16:18, que não prevalecerão contra a
Igreja do Senhor. Para ele, trata-se de portas literais, e era disso que Jó estava
falando.
Como vimos, essa interpretação já nasce completamente refutada logo de cara pelo
paralelismo hebraico presente no texto, que iguala o Sheol ao pó da terra. Uma vez
que o pó não tem um portão literal, é evidente que as “portas do Sheol” são uma
força de expressão. Jesus também disse que devemos andar pelo “caminho
estreito” (Mt 7:14) e entrar pela “porta estreita” (Mt 7:14), mas ninguém em sã
consciência acredita que ele estava falando de uma porta ou caminho literais que
devemos percorrer nesta vida, como se uma pessoa obesa não pudesse ser salva
por não passar por uma porta tão estreita. Da mesma forma, ninguém lucidamente
acredita que Jesus entregou uma chave literal nas mãos de Pedro quando disse que
43
HEISER, Michael S. What Did Jesus Mean by “Gates of Hell”? Disponível em:
<https://blog.logos.com/2018/04/jesus-mean-gates-hell>. Acesso em: 03/10/2020.
86
estava lhe dando as chaves do Reino dos céus (Mt 16:19), as mesmas que ele deu
ser que o contexto indique o contrário, não devem ser tomadas ao pé da letra. Paulo
disse que a morte tem um “aguilhão” (1Co 15:55-56), mas nem por isso alguém
imagem seja recorrente nos quadrinhos e nos filmes de terror). No Salmo 9:13, o
salmista pede para Deus salvá-lo «das portas da morte», embora a morte em si não
seja um lugar para ter portas, mas somente uma condição. A mesma linguagem é
A Bíblia fala, é claro, com uma linguagem figurada quando diz que “as
44
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 184.
87
Heiser está certo ao aplicar este texto ao Sheol, pois é o Sheol que aparece no
hebraico onde a NVI traduz por “sepultura”. No entanto, o contexto não diz nada a
respeito de “cordas para amarrar seus habitantes”, mas é apenas uma forma poética
de expressar sua aflição, uma vez que se encontrava à beira da morte. Algo
semelhante vemos no Salmo 116:3, onde lemos que a própria morte tem “cordas”,
o que é obviamente tão figurado quanto as cordas do Sheol. Note que o texto
alguém acredita que a morte tem cercas, que a destruição tem torrentes e que a
Mais do que isso, o paralelismo aqui deixa claro que o Sheol é igualado à morte e à
destruição, não à vida em outro mundo. Como se não bastasse, o texto em questão
se refere ao rei Davi, que entoou este cântico ao Senhor quando Ele o livrou de seus
inimigos. Uma vez que Davi era um homem “segundo o coração de Deus” (At 13:22),
é evidente que ele não iria para o inferno ou a “parte ruim” do Sheol, onde seria
amarrado com cordas. Para os imortalistas, Davi estaria no “seio de Abraão”, a “parte
boa” do Sheol, não num assombroso lugar em que precisaria ser amarrado para não
Por fim, ele cita o texto de Jó que diz que “assim como a nuvem esvai-se e
desaparece, assim quem desce à sepultura [Sheol] não volta” (Jó 7:9), para dizer que
as cordas servem para evitar a fuga. Mas além deste texto de Jó não ter
absolutamente qualquer relação com o texto de 2ª Samuel (o que diz muito sobre
88
a metodologia usada pelos imortalistas para enganar o leitor mais incauto), o texto
em si não fala nada sobre a natureza do Sheol, só diz que não há como voltar do
Sheol.
Jó acreditava na ressurreição do último dia (Jó 19:25-27), mas como ele viveu na
época dos patriarcas, nunca tinha testemunhado uma ressurreição para esta vida,
como a de Lázaro. Por isso ele complementa logo em seguida que “nunca mais
voltará ao seu lar; a sua habitação não mais o conhecerá” (Jó 7:10). Ele não estava
negando a ressurreição do último dia que ele próprio dizia crer (Jó 19:25-27), estava
apenas dizendo que ninguém voltava do Sheol para o seu lar, isto é, para a
habitação terrena que tinha aqui, na companhia de seus familiares, porque até
Sheol e Abaddon – Que o Sheol designa apenas destruição e morte, e não vida
Abaddon, que significa literalmente “destruição”. Jó diz que “o Sheol está nu diante
diante do Senhor” (Pv 15:11). Como comenta Bacchiocchi, “o fato do Sheol estar
associado com Abaddon, o local de destruição, mostra que o reino dos mortos era
visto como um lugar de destruição, e não como um lugar de eterno sofrimento para
os ímpios”45.
45
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 151.
89
Isso é confirmado pelos muitos textos bíblicos que associam o Sheol sempre e
paralelismo mostra que não se trata de dois acordos diferentes, mas do mesmo
pacto. Em outras palavras, fazer um pacto com a morte é o mesmo que fazer pacto
Isso explica por que o Sheol é descrito como um «ventre estéril» em Provérbios
30:16. Uma mulher estéril é uma mulher que não pode gerar vida em seu ventre, e,
da mesma forma, não há vida no interior do Sheol. Isso se opõe por completo à
visão imortalista que entende o Sheol como um lugar onde almas perfeitamente
teólogo imortalista Robert Martin-Achard, “o Sheol seria a terra sem vida, o mundo
caótico, o não-mundo”46.
De todos os textos bíblicos que falam do Sheol ou Hades, há apenas três que são
como veremos, dois desses textos tem linguagem claramente poética, e o outro é
46
MARTIN-ACHARD, Robert. Da Morte à Ressurreição segundo o Antigo Testamento. São Paulo:
Academia Cristã LTDA, 2005, p. 54.
90
uma parábola. Não poderíamos esperar mais de uma tese inteiramente destituída
Isaías 14 – O primeiro texto está em Isaías 14, que é um lamento a respeito do rei
da Babilônia escrito em linguagem poética. Para que fique claro o seu significado,
Isaías 14
4 assim você zombará do rei da Babilônia: Como chegou ao fim o opressor! Sua
arrogância acabou-se!
8 Até os pinheiros e os cedros do Líbano alegram-se por sua causa e dizem: “Agora
9 Nas profundezas o Sheol está todo agitado para recebê-lo quando chegar. Por
sua causa ele desperta os espíritos dos mortos, todos os governantes da terra. Ele
10 Todos responderão e lhe dirão: “Você também perdeu as forças como nós, e
91
11 Sua soberba foi lançada na sepultura [Sheol], junto com o som das suas liras; sua
12 Como você caiu dos céus, ó estrela da manhã, filho da alvorada! Como foi atirado
13 Você que dizia no seu coração: “Subirei aos céus; erguerei o meu trono acima
14 Subirei mais alto que as mais altas nuvens; serei como o Altíssimo”.
16 Os que olham para você admiram-se da sua situação, e a seu respeito ponderam:
18 Todos os reis das nações jazem honrosamente, cada um em seu próprio túmulo.
19 Mas você é atirado fora do seu túmulo, como um galho rejeitado; como as
roupas dos mortos que foram feridos pela espada; como os que descem às pedras
20 você não se unirá a eles num sepultamento, pois destruiu a sua própria terra, e
21 Preparem um local para matar os filhos dele por causa da iniquidade dos seus
antepassados; para que eles não se levantem para herdar a terra e a cobrirem de
cidades.
diz o Senhor.
92
23 “Farei dela um lugar para corujas e uma terra pantanosa; vou varrê-la com a
A parte que alguns citam fora de contexto para dizer que o Sheol é uma morada de
almas incorpóreas é a que diz que “nas profundezas o Sheol está todo agitado para
recebê-lo quando chegar. Por sua causa ele desperta os espíritos dos mortos, todos
os governantes da terra. Ele os faz levantar-se dos seus tronos, todos os reis dos
povos” (v. 9). Como saber que se trata de uma linguagem alegórica, e não de
mortos-vivos no além? Simples: o próprio verso anterior diz que “até os pinheiros e
os cedros do Líbano alegram-se por sua causa e dizem: ‘Agora que você foi
A não ser que os imortalistas acreditem realmente em árvores falantes, terão que
reconhecer o caráter alegórico do trecho. O objetivo do autor não era acentuar que
mas para enfatizar o trágico fim do rei da Babilônia por meio da linguagem poética.
Assim, quando o verso seguinte diz que “todos responderão e lhe dirão: ‘Você
também perdeu as forças como nós, e tornou-se como um de nós’” (v. 10), o sentido
não é que esse diálogo ocorreu realmente, mas que o rei da Babilônia tornou-se a
mesma coisa que os que morreram antes dele (ou seja, um mero cadáver). Este
sentido é reforçado logo no verso seguinte, que diz que “a sua soberba foi lançada
na sepultura [Sheol], junto com o som das suas liras; sua cama é de larvas, sua
93
coberta, de vermes” (v. 11). Sua “cama” era de larvas e sua “coberta” de vermes não
porque ele estivesse sendo comido por vermes metafísicos da quarta dimensão,
paralelismo que deixa claro que o Sheol citado no texto nada mais é do que a cova:
“Mas às profundezas do Sheol você será levado, irá ao fundo do abismo”. A palavra
hebraica traduzida como “abismo” neste texto é bowr, que significa «cova, poço,
sepultura, onde são colocados os cadáveres (Pv 1:12; Sl 28:1, 88:4; Is 38:18). O
salmista pede ao Senhor que “não escondas de mim o teu rosto, ou serei como os
que descem à cova-bowr” (Sl 143:7), o que mostra que os que estão na cova estão
«fundo do abismo (bowr)» mostra que em Isaías 14:15 o Sheol não era nada além
da cova.
O verso seguinte diz que os mortos no Sheol “admiram-se da sua situação, e a seu
respeito ponderam: ‘É esse o homem que fazia tremer a terra e abalava os reinos e
prisioneiros voltassem para casa?’” (v. 16). Antes que um imortalista use esse texto
47
#953 da Concordância de Strong.
94
“Todos os reis das nações jazem honrosamente, cada um em seu próprio
túmulo. Mas você é atirado fora do seu túmulo, como um galho rejeitado;
como as roupas dos mortos que foram feridos pela espada; como os que
descem às pedras da cova; como um cadáver pisoteado, você não se unirá a
eles num sepultamento, pois destruiu a sua própria terra, e matou o seu
Em outras palavras, o fato concreto expressado por meio do discurso poético que
personificava tanto homens como árvores dizia respeito justamente ao fato de que
pisoteado pelos homens, enquanto os outros reis que haviam morrido jaziam em
seu próprio túmulo. Era apenas uma forma poética de dizer que aquele rei tão
poderoso e temido pelas nações quando vivo teria na morte o mesmo destino
deles, mas ainda mais humilhante. Isso em nada tinha a ver com o conceito
que o rei da Babilônia estaria queimando ou sofrendo, nem que os outros reis
estariam em bem-aventurança).
Egito:
95
consolavam-se embaixo da terra. Todos os que viviam à sombra dele, seus
juntando-se aos que foram mortos pela espada. Qual das árvores do Éden
pode comparar-se a você em esplendor e majestade? No entanto, você
também será derrubado e irá para baixo da terra, junto com as árvores do
Éden; você jazerá entre os incircuncisos, com os que foram mortos pela
Nas duas ocasiões em que constam o termo “sepultura”, tanto no verso 16 como no
17, é o Sheol que aparece no hebraico. O que o texto diz é que as árvores no Sheol
que as árvores também tem uma alma imortal que vai para o mesmo lugar dos
espíritos humanos após a morte, embora seja esse o tipo de exegese que eles usem
Ezequiel 32
18 Filho do homem, lamente pelas multidões do Egito e faça descer para baixo da
terra tanto elas como as filhas das nações poderosas, junto com aqueles que
descem à cova.
96
19 Diga-lhe: “Acaso você merece mais favores do que os outros? Desça e deite-se
com os incircuncisos”.
20 Eles cairão entre os que foram mortos pela espada. A espada está preparada;
21 De dentro do Sheol os poderosos líderes dirão ao Egito e aos seus aliados: “Eles
22 A Assíria está ali com todo o seu exército; está cercada pelos túmulos de todos
23 Seus túmulos estão nas profundezas, e o seu exército jaz ao redor de seu
túmulo. Todos os que haviam espalhado pavor na terra dos viventes estão mortos,
24 Elão está ali, com toda a sua população ao redor de seu túmulo. Todos eles estão
mortos, caídos pela espada. Todos os que haviam espalhado pavor na terra dos
viventes desceram incircuncisos para baixo da terra. Carregam sua vergonha com
25 Uma cama está preparada para ele entre os mortos, com todas as suas hordas
em torno de seu túmulo. Todos eles são incircuncisos, mortos pela espada. Porque
o seu terror havia se espalhado na terra dos viventes, eles carregam sua desonra
26 Meseque e Tubal estão ali, com todas a sua população ao redor de seus túmulos.
Todos eles são incircuncisos, mortos à espada porque espalharam o seu terror na
27 Acaso não jazem com os outros guerreiros incircuncisos que caíram, que
desceram ao Sheol com suas armas de guerra, cujas espadas foram postas debaixo
de suas cabeças? O castigo de suas iniquidades está sobre seus ossos, embora o
pavor causado por esses guerreiros tenha percorrido a terra dos viventes.
97
28 Você também, ó faraó, será abatido e jazerá entre os incircuncisos, com os que
29 Edom está ali, seus reis e todos os seus príncipes; a despeito de seu poder, jazem
com os que foram mortos à espada. Jazem com os incircuncisos, com aqueles que
descem à cova.
30 Todos os príncipes do norte e todos os sidônios estão ali; eles desceram com os
mortos cobertos de vergonha, apesar do pavor provocado pelo poder que tinham.
Eles jazem incircuncisos com os que foram mortos à espada e carregam sua desonra
31 O faraó, ele e todo o seu exército, os verá e será consolado da perda de todo o
32 Embora eu o tenha feito espalhar pavor na terra dos viventes, o faraó e todo o
seu povo jazerão entre os incircuncisos, com os que foram mortos pela espada,
malandros que tentam usá-los para provar a consciência da alma no Sheol. Mas
como qualquer leitor pode observar ao ler todo o contexto, trata-se apenas de
os mortos. Por isso o Sheol é citado em paralelismo com o túmulo (qeber), como se
fossem a mesma coisa. Note que parte alguma do texto fala de almas ou espíritos
apenas se refere ao Sheol como um local onde todos os corpos mortos pela espada
jazem.
98
O verso 18 começa dizendo que as multidões do Egito desceriam para baixo da
do verso diz que elas desceriam «junto com aqueles que descem à cova (bowr)»,
seguinte diz que eles desceriam e se deitariam com os incircuncisos, onde “deitar”
expressão para falar do indivíduo na sepultura, e não como se houvesse uma rede
de dormir no inferno.
O verso 21 é o que os imortalistas citam fora de contexto para dizer que os líderes
“falaram” dentro do Sheol, mas se esquecem que o que foi dito é que «eles
usando o mesmo termo hebraico shakab, que diz respeito a uma pessoa morta na
sentido do texto é que os egípcios se tornariam iguais aos demais mortos; ou seja,
que “descansariam” o sono da morte na sepultura assim como eles, sem terem mais
O que prova este sentido com mais clareza é o verso seguinte, que diz que «a Assíria
está ali com todo o seu exército; está cercada pelos túmulos de todos os seus
mortos, de todos os que caíram pela espada». Primeiro ele diz que a Assíria “está
ali”, ou seja, no mesmo lugar que os egípcios estariam (que de acordo com o verso
48
#7901 da Concordância de Strong.
99
estariam numa dimensão espiritual metafísica, que seria a morada dos espíritos fora
interpretá-lo desta forma, já que diz que «está cercada pelos túmulos de todos os
seus mortos».
A não ser que os túmulos também tenham sido teletransportados para uma outra
dimensão, é evidente que o autor estava falando apenas da sepultura ou cova, onde
acordo com o verso anterior, o “está ali” se refere ao Sheol, e, de acordo com a
continuação do verso, se refere à sepultura. Isso não é uma contradição, uma vez
que, como vimos, o Sheol é precisamente a “sepultura universal dos mortos” – mas
Note ainda que o verso 23 prossegue dizendo que «seus túmulos estão nas
profundezas», e que o exército «jaz ao redor de seu túmulo». Tudo isso comprova
que o autor não estava falando de um mundo espiritual numa realidade metafísica,
mas da própria sepultura, onde o exército jaz (descansa) após a morte. Isso também
“Descer para baixo da terra”, portanto, não designava um mundo subterrâneo dos
espíritos, mas dizia respeito à condição dos cadáveres que desceram à cova, como
100
“Elão está ali, com toda a sua população ao redor de seu túmulo. Todos eles
estão mortos, caídos pela espada. Todos os que haviam espalhado pavor na
terra dos viventes desceram incircuncisos para baixo da terra. Carregam sua
vergonha com os que descem à cova” (v. 24)
É neste contexto que aparece a segunda menção ao Sheol na perícope, que fala dos
guerreiros incircuncisos “que desceram ao Sheol com suas armas de guerra” (v. 27).
mundo subterrâneo para onde vão as almas, isso significaria que os espíritos
imateriais descem ao Sheol com suas armas (físicas) na mão, o que é tão pitoresco
que nenhum imortalista admitiria. Agora veja como o texto faz um completo
sentido na visão mortalista bíblica, que entende o Sheol como a região subterrânea
caso, o que o texto está dizendo é que eles pereceram ainda com suas armas em
É digno de nota que logo após dizer que os edomitas “jazem com os incircuncisos,
com aqueles que descem à cova” (v. 29), Deus continua dizendo que “todos os
príncipes do norte e todos os sidônios estão ali; eles desceram com os mortos
cobertos de vergonha” (v. 30). Para onde foi que eles desceram? Onde é o “ali”?
Obviamente, ele não está falando de um mundo espiritual em outra dimensão, mas
da cova, como diz o final do verso anterior, complementado pelo verso 30. O texto
termina dizendo que “embora eu o tenha feito espalhar pavor na terra dos viventes,
o faraó e todo o seu povo jazerão entre os incircuncisos, com os que foram mortos
101
Essa é a tônica de todo o capítulo: o faraó, tão temido pelos viventes, terminaria
como qualquer outro na morte. Ele não teria um destino especial, como criam os
embora o capítulo fale de um homem ímpio e de nações ímpias, não há nada ali
árvores também falam, e a própria fala serve pra destacar não uma vida consciente
sepultura que aguarda aqueles que abusam de seu poder nesta vida”49.
49
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 155.
102
vermes cobrindo-o (Is 14:11) e do faraó jazendo entre guerreiros
caídos com suas espadas debaixo da cabeça (Ez 32:27) não falam de
parábola como a prova mais forte de imortalidade da alma na Bíblia, à exemplo das
parábola do rico e Lázaro, que muitos citam para apoiar a visão do Sheol/Hades
Uma parábola dos tempos modernos – Certa vez, morreram, na mesma hora, em
lugares diferentes, mas não muito distante um do outro, dois homens. O primeiro
era um senhor simples, sem estudos, motorista de ônibus na pequena região onde
profissional. Era muito, mas muito barbeiro. Foi assim a vida toda, até que morreu
motorista.
50
PETERSON, Robert A. Hell on Trial: The Case for Eternal Punishment. Phillipsburg: Presbyterian &
Reformed, 1995, p. 28.
103
No questionário de admissão para entrar no céu, quando São Pedro queria saber
quem ele era, aquele homem começou a explicar: eu sou aquele conhecido
“Ah, tá!”, disse São Pedro. “Você é o motorista barbeiro!”. “Justamente”, respondeu
o homem. “Pois bem!”, disse São Pedro. “Entre! O céu é todo seu!”.
O pastor, que estava assistindo a entrevista enquanto esperava para ser também
atendido, pensava: “Se este homenzinho foi admitido ao céu, imagine eu, o
pregador”.
“Sim”, respondeu o pastor, todo empolgado: “Sou o pastor, da mesma cidade deste
São Pedro cortou: “Olha, eu sei quem você é. Infelizmente, você não tem entrada
“Mas como?”, contestou o pastor. “Este homenzinho ignorante, iletrado, que fazia
seu trabalho mal feito, que não pregava, que vivia dando prejuízo pra empresa, que
sempre deixava todos os seus passageiros tensos e temerosos, vai entrar no céu, e
eu, o pregador, que vivia na igreja, que falava da palavra de Deus, que procurava
104
“É justamente nesta diferença que está a razão da rejeição de sua entrada em face
O apóstolo porteiro do céu explicou: “É que enquanto você estava na igreja, com
seus sermões sem vida, colocando todos os seus fiéis para dormir, o motorista
***
A parábola que você leu acima costuma ser contada pelo pastor adventista Valdeci
Junior aos seus ouvintes, ao introduzir a parábola do rico e Lázaro. Depois que ele
conta a história, ainda antes de revelar ao auditório qual será o assunto do dia,
começa a perguntar às pessoas quais são as lições que elas tiraram da história. É
“Nem todo o que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus”
105
E por aí vai...
O interessante é que ninguém até hoje diz que viu nesta história lições como:
“A alma é imortal”
Ninguém se escandaliza por isso ou ridiculariza a história. Esperam então que ele
tirar dela. Começam a imaginar qual será o tema da noite. Jamais pensam que ele
iria falar da parábola do rico e do Lázaro. Ele se aproveitou de uma crendice popular
apenas como um cenário onde se passava uma história fictícia, a fim de ensinar
• Eles conhecem a crendice popular de que quem morre vai pro céu, e na entrada
• Eles não creem nesta crendice como doutrina. Sabem que isto não é verdade (o
pastor já conhece o auditório e sabe que eles creem como ele crê, sobre o destino
106
• O auditório vai conseguir captar as lições que ele quer ensinar com mais facilidade,
pois, através de uma metáfora, está figurando o ensino. Isto é didática. A primeira
vez que ele ouviu esta história, ela foi contada por um palestrante que não cria na
imortalidade da alma, para um público que também não cria. Na ocasião, todos
e Lázaro pela mesma razão que o pastor adventista contou a parábola do pastor e
sobre a vida após a morte, porque o propósito passava longe de ser uma aula
teológica sobre o que acontece depois da morte. Tanto os ouvintes de Jesus como
os do pastor Valdeci eram perfeitamente bem doutrinados para saber disso. Nos
tempos de Jesus, parábolas eram bem mais comuns do que são hoje, e ninguém
PARÁBOLA
■ substantivo feminino
1 Narrativa alegórica que tem por objetivo transmitir uma mensagem de maneira
Escrituras Sagradas.51
51
Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-
brasileiro/par%C3%A1bola>. Acesso em: 18/09/2020.
107
Quando um imortalista iletrado diz que “se a parábola não é real, então Jesus
mentiu”, mostra em primeiro lugar que não sabe sequer o significado básico de uma
parábola, que jamais teve o objetivo de ser uma história real ou de expressar
necessariamente coisas reais. A prova disso é que na Bíblia não faltam exemplos de
parábolas onde árvores falam e conversam entre si, e nem por isso os mesmos
Edom e agora está arrogante. Comemore a sua vitória, mas fique em casa!
Por que provocar uma desgraça que levará você e também Judá à ruína?’”
parábola do rico e Lázaro obviamente não era dizer que o Sheol/Hades era um lugar
108
Em outras palavras, embora os elementos em si (espinheiros, cedros ou mortos)
sejam fictícios, eles transmitem uma lição moral mais profunda, que é de fato o
árvores:
“Certo dia as árvores saíram para ungir um rei para si. Disseram à oliveira:
‘Seja o nosso rei!’. A oliveira, porém, respondeu: ‘Deveria eu renunciar ao meu
azeite, com o qual se presta honra aos deuses e aos homens, para dominar
renunciar ao meu vinho, que alegra os deuses e os homens, para ter domínio
sobre as árvores?’. Finalmente todas as árvores disseram ao espinheiro:
‘Venha ser o nosso rei!’. O espinheiro disse às árvores: ‘Se querem realmente
Jotão contou essa parábola para ilustrar o quão errada foi a escolha dos israelitas
por Abimeleque como rei, o qual havia assassinado os seus irmãos a sangue frio. Ao
invés deles escolherem homens mais dignos, representados pelas árvores mais
conversas entre árvores, não para fundamentar uma doutrina de árvores falantes,
mas para ilustrar uma verdade mais profunda através do uso da alegoria.
109
Se em parábolas até árvores ganham personalidade e falam, não admira que haja
alguma coisa, uma vez que tanto os mortos como as árvores são seres inanimados
literalmente para dizer que os mortos estão vivos no mundo do além, mas não
A história do rico e Lázaro não é uma parábola? – A única alternativa que lhes resta
é dizer que Lucas 16:19-31 não é uma parábola, mas uma história real. Este é o único
jeito de exigir a literalidade do texto, o que distinguiria essa parábola das parábolas
tentativa esbarra nas evidências esmagadoras tanto dentro como fora de Lucas
110
16:19-31 que demonstram que Jesus estava contando, de fato, uma parábola, e não
seguintes, e incluindo o próprio capítulo 16, são recheados de parábolas dos mais
variados tipos, como se Lucas tivesse reservado essa parte do livro quase que
mais narra parábolas de Jesus, e muitas delas nós conhecemos apenas por seu
Lázaro).
Teria Lucas incluído uma história real justamente no meio de uma série de
parábolas? Há quem diga que sim, porque em Lucas 16:19-31 ele não diz
111
interromper sua apresentação para avisar os ouvintes de que aquilo que ele
contaria em seguida seria mais uma piada, o que não faz o menor sentido. Se a
esperar um aviso prévio como esse, mas não quando todo o contexto é parabólico.
Isso explica por que muitas outras dessas parábolas também não vem com um aviso
prévio de que é uma parábola, como por exemplo a parábola da moeda perdida (Lc
(Lc 16:1-8), que antecedem a do rico e Lázaro. A razão disso é que era totalmente
desnecessário enfatizar que era uma outra parábola quando vem contando várias
Há vários outros casos em que Jesus não diz expressamente que se trata de uma
parábola, mas seus discípulos entenderam dessa maneira. Por exemplo, em Lucas
12:37-40 Jesus conta uma história sem dizer que é uma parábola, e em seguida
Pedro pergunta: “Senhor, estás contando esta parábola para nós ou para todos?”
(Lc 12:41). O mesmo acontece em Mateus 15:14-15, quando Pedro pede para Jesus
explicar uma parábola sem que Jesus tivesse avisado se tratar de uma.
Em Lucas 5:36, o evangelista diz que Jesus “lhes contou esta parábola...”, mas a
mesma parábola é citada em Marcos 2:21 sem a informação prévia de que se tratava
de uma parábola. Isso nos mostra que nem os evangelistas faziam questão de
acentuar que se tratava de uma parábola, nem os discípulos precisavam que Jesus
112
quando Jesus contava histórias ele estava falando através de parábolas, porque ele
Embora não poucos imortalistas reconheçam que em Lucas 16:19-31 Jesus estava
contando outra parábola, muitos dizem que este caso é uma exceção à regra, e que
Jesus contava uma história real. O “argumento” deles é que Jesus usou um verbo de
existência quando disse que “havia um homem rico...” (v. 19), e que isso provaria
que se tratava de uma história real. Trata-se de um argumento que além de bobo
não consta no original grego, que diz apenas “anthrōpos de tis ēn plousios kai
O “havia” é uma inserção no texto feita pelos tradutores, que fizeram o mesmo no
que tinha um administrador; e este lhe foi denunciado como quem estava a
defraudar os seus bens...” (Lc 16:1). Os imortalistas saberiam disso se tivessem feito
implicaria que o rico existia na parábola, da mesma forma que o filho pródigo existia
“Depois de ter gasto tudo, houve uma grande fome em toda aquela região, e
Diferentemente de Lucas 16:19, onde o “havia” é uma inserção que não consta no
original grego, aqui na parábola do filho pródigo aparece o termo grego ginomai,
113
que significa «vir à existência, começar a ser, receber a vida»52. Nem por isso alguém
acredita que a parábola do filho pródigo era uma história real, como afirmam alguns
sua história, não porque esteja descrevendo algo real, mas porque aquilo existe
dentro da ficção.
da parábola do rico e Lázaro provam que se trata mesmo de uma parábola, isto é,
Lucas 16
19 Havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e vivia no luxo
todos os dias.
chagas;
21 este ansiava comer o que caía da mesa do rico. Em vez disso, os cães vinham
23 No Hades, onde estava sendo atormentado, ele olhou para cima e viu Abraão de
52
1096 da Concordância de Strong.
114
24 Então, chamou-o: “Pai Abraão, tem misericórdia de mim e manda que Lázaro
molhe a ponta do dedo na água e refresque a minha língua, porque estou sofrendo
25 Mas Abraão respondeu: “Filho, lembre-se de que durante a sua vida você
recebeu coisas boas, enquanto que Lázaro recebeu coisas más. Agora, porém, ele
26 E além disso, entre vocês e nós há um grande abismo, de forma que os que
desejam passar do nosso lado para o seu, ou do seu lado para o nosso, não
conseguem”.
27 Ele respondeu: “Então eu lhe suplico, pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai,
28 pois tenho cinco irmãos. Deixa que ele os avise, a fim de que eles não venham
30 “Não, pai Abraão, disse ele, mas se alguém dentre os mortos fosse até eles, eles
se arrependeriam”.
ou espírito. Apenas diz que “o rico foi sepultado”, e então ele aparece no Hades.
Isso não é um mero detalhe sem relevância, porque, como veremos, a parábola
Por essa razão, os personagens aparecem no Hades com o corpo físico, não como
uma alma desencarnada ou um espírito sem corpo. Isso fica nítido no verso 24, em
que o rico pede a Lázaro que “molhe a ponta do dedo na água e refresque a minha
língua”.
115
Isso mostra que Lázaro tinha dedos e que o rico tinha língua, que são, obviamente,
alma incorpórea. Como comenta Bacchiocchi, “eles são retratados como existindo
depositado na sepultura. Foi o seu corpo levado ao Hades juntamente com sua
sugerir que o espírito fora do corpo tem os mesmos órgãos do corpo físico, para
superar esses problemas intransponíveis. Neste caso, de que serviria o corpo? Mais
do que isso, se um espírito já tem corpo, por que raios existiria a ressurreição do
corpo?
A coisa piora quando se nota o desejo do rico de refrescar a sua língua, o que indica
que ele sentia sede. Como é evidente, a sede é uma característica do corpo
biológico, não de um espírito imaterial e fluídico. Nem Deus nem os anjos precisam
“refrescar a língua”, porque não tem um corpo para sentir sede. O rico precisava,
Por exemplo, ela abriria espaço para a crença de que os salvos no céu poderão
53
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 165.
116
com Lázaro. Imagine você não apenas saber que seu filho está queimando no
inferno em um terrível sofrimento sem fim, mas ainda poder vê-lo sofrendo diante
dos seus olhos e se comunicar com ele sem poder fazer nada para atenuar seu
sofrimento ou livrá-lo dali. Certamente uma experiência desse tipo seria traumática,
Embora alguns imortalistas afirmem que após a morte de Jesus os salvos no “seio
tem mais contato com os perdidos no inferno, ainda assim teriam que lidar com o
fato de que por pelo menos quatro mil anos (desde o início da criação até a vinda
de Cristo) isso não apenas era possível, mas acontecia realmente. Se você nunca viu
conversar com os ímpios no inferno, talvez seja porque até eles sabem que a
parábola não pode ser interpretada literalmente, mas mesmo assim a usam para
conveniência.
Para piorar, Abraão e o rico conversam como se estivessem perto um do outro, mas
o próprio relato diz que havia «um grande abismo» entre eles, tão grande que
outro (v. 26). Mesmo se estivessem próximos, dificilmente poderiam se ouvir com
clareza, já que milhões de pessoas naquele lugar estariam gritando e berrando sem
117
O diálogo, assim como tudo o que ronda o relato, é bem típico de uma história
fictícia, e, como toda ficção, esbarra em absurdos lógicos quando passado para a
daquela distância e enquanto sofria amargamente entre as chamas, por que diabos
ele pediria para Lázaro molhar a sua língua, quando todo o seu corpo estava sendo
devorado pelo fogo? Eu nunca vi alguém que está sendo queimado se preocupar
com refrescar a língua, a não ser que apenas a língua estivesse pegando fogo. Ou o
Hades por toda a eternidade. Tal visão não destruiria a própria alegria
divisório”54
54
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 165-166.
118
Eu nem vou entrar em mais detalhes problemáticos, como de que forma o rico sabia
que era Abraão, ou como reconheceu Lázaro de tão longe entre as fumaças de uma
fornalha, ou para onde iam as pessoas no “seio de Abraão” antes de Abraão existir,
ou por que ele pediria que Lázaro molhasse apenas “a ponta do dedo na água” (v.
24), algo que sequer serviria para transportar a água de um lugar a outro, em vez
Também chama a atenção que o rico peça que Abraão mande Lázaro de volta ao
mundo dos vivos, como se Abraão tivesse algum poder para isso, em lugar de Deus.
E embora Abraão não atenda o pedido, ele não diz que não tinha esse poder, como
leviana citam fora de contexto os trechos da parábola que lhes convém para dizer
que os mortos estão vivos no mundo do além não fazem o mesmo para sustentar a
doutrina de que os espíritos descem ao Hades com o corpo físico, que os salvos
refrescar a língua ou que é possível ter um diálogo normal com alguém que está
119
tenho-me surpreendido com o fato de que até mesmo conceituados eruditos com
A razão pela qual é tão frequente ver teólogos “conceituados” citando a parábola
praticamente tudo o que eles tem, e sem ela o que sobra é meia-dúzia de textos
verdadeira e única razão por que eles precisam se apegar tão desesperadamente a
essa parábola como o “carro-forte” da doutrina que eles defendem, já que é o único
desprovida de exegese.
mentiu” ao contar uma parábola em que há vida após a morte não dizem que Jesus
morte, embora eu não conheça um único imortalista tradicional que cogite tal coisa.
É como se Jesus pudesse ter “mentido” sobre os salvos e perdidos baterem papo
depois da morte, mas não pudesse “mentir” sobre existir vida consciente após a
morte. Eles pegam da parábola apenas o que lhes convém, para acusar os
55
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 154.
120
Não à toa a concepção tradicional de inferno nas teologias sistemáticas foge
estar numa piscina conversando com o rico que queima do outro lado mas que está
mortalistas Jesus “mentiu” por ter contado essa parábola mostra o quanto os
perceber que só faz sentido falar em “mentira” em se tratando de histórias reais, não
Se contar uma história fictícia fosse “mentir”, então todos os escritores de ficção
seriam grandes mentirosos. Algo só pode ser considerado uma mentira quando se
pretende dizer uma verdade literal em um contexto literal. Por exemplo, se alguém
estivesse sendo presunçoso e você lhe dissesse “tire o seu cavalinho da chuva”, ele
não poderia com justiça alegar que você é um mentiroso só porque ele não tem um
filhote de cavalo ou porque não está chovendo. Isso porque é óbvio, neste contexto,
Para entender a diferença entre uma coisa e outra, imagine que eu dissesse a você
nunca ter ocorrido. Neste caso, é evidente que eu estarei mentindo. Mas se eu
contar isso como uma piada ou como um conto folclórico, ninguém diria que eu
“menti”, mesmo que não exista alien algum na realidade. J. K. Rowling não “mentiu”
ao escrever Harry Potter, porque ninguém realmente acredita que haja crianças
121
Da mesma forma, Jesus não “mentiu” ao usar um cenário alegórico na parábola de
Reis 14:9 (nos textos que personificam árvores falantes), nem Tiago mentiu quando
falou da “ferrugem que testemunha” (Tg 5:3) ou do “salário que clama” (Tg 5:4), nem
Moisés mentiu quando falou do sangue de Abel que clama da terra em Gênesis
4:10, nem João mentiu quando disse que “os trovões falaram” (Ap 10:3), e o mesmo
se aplica aos “campos exultantes” (1Cr 16:32), às “árvores jubilantes” (1Cr 16:33), às
“colinas que irromperão em canto” (Is 55:12), às aves e peixes falantes (Jó 12:7-8) e
na Bíblia, ainda mais em um contexto parabólico como esse. Assim como árvores
falantes em parábolas não provam que árvores realmente falam, mortos falantes
em outra parábola também não prova que os mortos realmente falam. Não
a interpretação da parábola àquilo que a Bíblia como um todo ensina sobre o tema
em questão. Nenhuma parábola que Jesus contou era uma história real, e nem por
isso ele era um mentiroso ou induzia as multidões ao erro, porque elas sabiam que
Se um imortalista do século XXI não sabe, a culpa não é de Jesus, mas dele, por sua
própria ignorância. Nenhum dos ouvintes originais de Jesus seria induzido a pensar
que a alma sobrevive após a morte, da mesma forma que ninguém seria induzido a
122
infiel desonestamente reduz pela metade os débitos de seus credores a fim de obter
deles algum benefício pessoal (Lc 16:1-9), mas ninguém acusa Jesus de incentivar a
Lucas 16:19-31 para validar a imortalidade da alma não façam a mesma coisa com
desonesto, porque agiu astutamente” (Lc 16:8). Dizem que “o que aconteceu em
Vegas, fica em Vegas”, e, da mesma forma, o que acontece numa parábola, fica na
meios de uma parábola, que, por definição, é uma história fictícia, expressa por
meio de alegorias. O que devemos tirar delas é sua lição moral, que, tal como na
O propósito de uma parábola – Quem diz que Jesus era imortalista porque contou
morte não entende nem o que é uma parábola, muito menos o propósito de Jesus
ao usá-las. Isso porque a Bíblia é perfeitamente clara em dizer que Jesus não
contava as parábolas para deixar as coisas mais claras, mas justamente para mantê-
mistérios do Reino dos céus, mas a eles não. A quem tem será dado, e este
terá em grande quantidade. De quem não tem, até o que tem lhe será tirado.
123
Por essa razão eu lhes falo por parábolas: Porque vendo, eles não veem e,
Ainda que estejam sempre ouvindo, vocês nunca entenderão; ainda que
estejam sempre vendo, jamais perceberão’” (Mateus 13:10-14)
Isso significa que as parábolas que Jesus contava não podiam ser entendidas pelo
senso comum, como os imortalistas fazem ao dizer que a parábola do rico e Lázaro
ensina a imortalidade da alma. Se este fosse o propósito da parábola, isso seria tão
óbvio que de modo algum se enquadraria no que Jesus diz sobre a multidão ser
incapaz de entender as parábolas, porque não foi dado a ela o conhecimento dos
de Jesus espiritualmente, e por essa razão o povo, que só via as coisas na superfície,
Para entender o que Jesus queria dizer era preciso mais do que uma análise
algo que está escondido, oculto, mantido em segredo, não algo que esteja
escancarado diante de todos, mediante uma leitura superficial. Isso significa que
para entender o que Jesus queria dizer com a parábola do rico e Lázaro nós
devemos ir além da superfície, buscando captar a intenção por detrás dela – isto é,
todo exegeta que se preze é retirar delas sua lição moral, e não os meios utilizados
124
para se chegar a isso. Da mesma forma que o conto do pastor Valdeci não tinha
qualquer objetivo de ser uma lição sobre o que acontece após a morte, mas apenas
se apropria de um conceito popular para extrair uma lição moral, assim também
ocorria com as parábolas de Jesus, muitas das quais deixariam os cristãos em apuros
administrador desonesto é elogiado por ter agido astutamente, mesmo ele tendo
sobrevivência da alma ao contar a parábola seguinte. Nós sabemos que isso não é
relação com seus meios, que nada mais são que um instrumento utilizado para se
desonesto no muito” (Lc 16:10) – nada a ver com roubar o patrão – e, como veremos,
a lição da parábola do rico e Lázaro era que “se não ouvem a Moisés e aos Profetas,
Em outra parábola, “um juiz que não temia a Deus nem se importava com os
homens” (Lc 18:2) decide atender o pedido de uma viúva de tanto que ela insistiu:
125
“Embora eu não tema a Deus e nem me importe com os homens, esta viúva está me
aborrecendo; vou fazer-lhe justiça para que ela não venha me importunar” (vs. 4-5).
Jesus contou essa parábola “para mostrar-lhes que eles deviam orar sempre e
nunca desanimar” (v. 1). Sendo Deus aquele que atende as orações, qualquer um
ímpio que se irrita com as nossas orações e só as responde para deixar de ser
Mas a lição moral é apenas que “Deus lhes fará justiça, e depressa” (v. 8), aos “que
Tome também como exemplo uma parábola semelhante a essa, em que Jesus diz:
noite e diga: ‘Amigo, empreste-me três pães, porque um amigo meu chegou
de viagem, e não tenho nada para lhe oferecer’. E o que estiver dentro
digo: embora ele não se levante para dar-lhe o pão por ser seu amigo, por
causa da importunação se levantará e lhe dará tudo o que precisar. Por isso
lhes digo: Peçam, e lhes será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta
lhes será aberta” (Lucas 11:5-9)
Mais uma vez, uma aplicação literal da parábola nos levaria a pensar que Deus não
nos dá as coisas por ser nosso amigo, como Jesus disse que somos (Jo 15:15), mas
126
espiritual, onde Deus “dá a todos liberalmente, de boa vontade” (Tg 1:5). A lição da
parábola não tinha nada a ver com Deus se irritar com nossos pedidos, mas apenas
O mesmo acontece na parábola dos talentos, onde aquele que distribui os talentos
é descrito como “um homem duro, que colhe onde não plantou e junta onde não
semeou” (Mt 25:24). Qualquer um que fizesse uma aplicação literal da parábola
seria levado a pensar que Deus é como aquele homem de duro coração que age
é falsa pela simples razão de que os meios de uma parábola nunca podem ser
obrigue-os a entrar, para que a minha casa fique cheia’” (Lc 14:23). Sabemos que
essa parábola fala a respeito de salvação, pois Jesus a contou para dizer quem
estaria no banquete do Reino de Deus (v. 15). No entanto, poucos pensam que Deus
literalmente obriga as pessoas a serem salvas, como se elas não tivessem como
seria um convite, mas uma exigência feita na base da força, de maneira coercitiva.
por isso tanta gente tende a interpretá-las literalmente e extrair doutrina de seus
meios, criando confusões como essa. E os teólogos, que em tese teriam a obrigação
de esclarecer isso aos leigos, preferem endossar o engano, porque tiram proveito
127
dele para defender a imortalidade da alma. É o tipo de engano conveniente, que
serve aos propósitos de alguém desesperado em encontrar base bíblica para uma
doutrina que sabe que é tão desprovida de fundamento que o jeito é apelar a uma
parábola.
Interpretando a parábola – Ao chegar até aqui, você deve ter aprendido que: (1)
Lucas 16:19-31 é de fato uma parábola como todas as outras em volta dela, e não
uma história real; (2) se a parábola do rico e Lázaro devesse ser entendida
literalmente, como uma aula de teologia sobre o que acontece após a morte, ela
nenhum deles acredita que os espíritos vão para o Hades com um corpo físico tal
como o rico e Lázaro, e tampouco o lugar onde estavam se parece com a noção
descrições literais, das quais devemos captar a lição moral que o autor pretende
ensinar ao usar a parábola, em vez de nos prendermos nos meios usados para
ensinar a lição.
Tendo isso em mente, o que ainda nos resta é saber que lição é essa que Jesus quis
ensinar com a parábola do rico e Lázaro. Parte da dificuldade está no fato de que
muitas pregações são feitas sobre as outras parábolas, explicando seu significado
contextual aos leigos, mas nunca vemos o mesmo com a do rico e Lázaro, porque
olhos para o seu propósito real e mantendo os fiéis na ignorância. Mas entender o
significado dessa parábola não é nada difícil quando captamos o sentido das outras
128
Na verdade, basta um olhar mais cuidadoso para perceber que o foco da parábola
não estava exatamente no filho pródigo (embora seja o foco de quase todas as
pregações contemporâneas), mas justamente no outro filho, que por inveja não
aceitava o fato do pai ter acolhido o seu irmão. Para entendermos isso, precisamos
primeiro ver o contexto que levou Jesus a contar essa parábola e outras do tipo:
come com eles’. Então Jesus lhes contou esta parábola: Qual de vocês que,
possuindo cem ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa e nove no
coloca-a alegremente sobre os ombros e vai para casa. Ao chegar, reúne seus
um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não
estarem se reunindo para ouvir Jesus, pois se julgavam melhores do que eles e
cheio de pecados. Então Jesus começa a contar uma série de parábolas com o
moeda perdida e pela do filho pródigo. Jesus costumava contar várias parábolas
129
Por exemplo, a parábola de Mateus 25:14-30 tem exatamente o mesmo sentido da
rei encarrega seus súditos a cuidar de dez minas). Em Lucas 15, a parábola da ovelha
Lázaro. Todas elas tinham o mesmo significado básico, de que Deus dá mais valor
ao pecador que se arrepende do que àqueles que julgam a si mesmos justos e não
necessitam de arrependimento.
voltado a Jesus (representado pelo pai amoroso, que o recebeu de braços abertos).
Assim como o outro filho da parábola se revoltou com o pai por aceitar a volta do
Todo o ponto girava em torno não da multidão de pecadores em si, mas da soberba
dos fariseus, que se achavam melhores que os demais e julgavam não precisar de
arrependimento, o que levou Jesus a dizer que “eu não vim chamar justos, mas
Todas as três parábolas de Lucas 15 têm este mesmo sentido básico, e não é
fariseus:
130
“Nenhum servo pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará ao
Aquilo que tem muito valor entre os homens é detestável aos olhos de Deus’”
(Lucas 16:13-15)
Note que a discussão entre Jesus e os fariseus tinha tudo a ver com a do capítulo
justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e maldade” (Mt 23:28).
Mas além dessa discussão principal, há aqui um detalhe adicional que não consta
no capítulo 15, que são as riquezas. Os fariseus amavam o dinheiro, e por isso Jesus
contou uma nova parábola com os mesmos significados básicos das outras três do
capítulo anterior, mas incluindo a questão do dinheiro, para reforçar que “a vida de
Por isso não é surpresa que o homem que representa os fariseus aqui, que é o
equivalente ao irmão do filho pródigo na outra parábola, seja descrito como “um
homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e vivia no luxo todos os dias”
parábola é representada pelo filho pródigo? Aqui, ela é representada por “um
131
mendigo chamado Lázaro, coberto de chagas; este ansiava comer o que caía da
Isso também faz todo o sentido, já que a multidão que costumava seguir Jesus era
tão miserável que ele dizia que “se eu os mandar para casa com fome, vão desfalecer
no caminho” (Mc 8:3), razão pela qual ele lhes multiplicou os pães e os peixes em
pelo menos duas ocasiões diferentes (Mt 14:13-21, 15:32-39). E assim como o
“devoram as casas das viúvas e, para disfarçar, fazem longas orações” (Mt 23:14).
Note também como o rico da parábola se refere a Abraão: “Pai Abraão, tem
“Quando viu que muitos fariseus e saduceus vinham para onde ele estava
batizando, disse-lhes: Raça de víboras! Quem lhes deu a ideia de fugir da ira
que se aproxima? Deem fruto que mostre o arrependimento! Não pensem
que vocês podem dizer a si mesmos: ‘Abraão é nosso pai’. Pois eu lhes digo
que destas pedras Deus pode fazer surgir filhos a Abraão” (Mateus 3:7-9)
E ainda:
“Eu lhes estou dizendo o que vi na presença do Pai, e vocês fazem o que
ouviram do pai de vocês. ‘Abraão é o nosso pai’, responderam eles. Disse
Jesus: ‘Se vocês fossem filhos de Abraão, fariam as obras que Abraão fez. Mas
vocês estão procurando matar-me, sendo que eu lhes falei a verdade que
ouvi de Deus; Abraão não agiu assim’” (João 8:38-40)
132
Eles se apegavam tanto a Abraão que Paulo precisou enfatizar em duas cartas
diferentes que “nem por serem descendentes de Abraão passaram todos a ser filhos
de Abraão” (Rm 9:7), e que “os que são da fé, estes é que são filhos de Abraão” (Gl
colocar Pedro (em quem os papistas se apegam como o primeiro papa e se dizem
que Pedro não tem nada a ver com os papas. Jesus fez isso com Abraão e o rico,
conformidade com o que Abraão fazia. É por isso que na parábola Jesus coloca
socorreu”, e o deixa separado do rico por um longo abismo (v. 26). Tudo isso é muito
daquele em quem ostentavam ter por “pai” e como quem realmente seguia os
É isso o que significa “Lázaro no seu seio” (v. 23), não como se o seio de Abraão
fosse um lugar com este nome, mas era apenas uma expressão semítica para se
referir a alguém que está junto de outra pessoa (a NVI corretamente traduz por “ao
seu lado”). Por exemplo, quando João diz que “ninguém jamais viu a Deus; o Deus
unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou” (Jo 1:18), a expressão “o seio
do Pai” não diz respeito a um lugar com este nome, mas é apenas uma forma de
133
É importante fazer essa ressalva, porque muitos imortalistas ignorantes (com o
seus livros cheios de ilustrações bizarras sobre o estado dos mortos, como na pérola
abaixo:
porque seu nome significa “aquele que Deus socorre”, mas porque Lázaro também
era o nome do homem a quem Jesus havia ressuscitado e suscitado a inveja dos
fariseus. Nesta ocasião, “os chefes dos sacerdotes fizeram planos para matar
também Lázaro, pois por causa dele muitos estavam se afastando dos judeus e
crendo em Jesus” (Jo 12:10-11). Os fariseus não acreditaram em Jesus mesmo após
134
admira que ele tenha dado o nome Lázaro ao mendigo da parábola, a quem o rico
“Ele respondeu: ‘Então eu lhe suplico, pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai,
pois tenho cinco irmãos. Deixa que ele os avise, a fim de que eles não
venham também para este lugar de tormento’. Abraão respondeu: ‘Eles têm
Moisés e os Profetas; que os ouçam’. ‘Não, pai Abraão’, disse ele, ‘mas se
alguém dentre os mortos fosse até eles, eles se arrependeriam’. Abraão
respondeu: ‘Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão
Como vimos, tudo isso está envolvo em uma simbologia muito forte. Os fariseus se
orgulhavam de terem Abraão por pai, mas na parábola Abraão repreende o rico,
continuaram tramando contra ele, e na parábola é dito que eles não acreditariam
Note ainda que o rico diz que tinha cinco irmãos (v. 28). Jesus poderia apenas ter
dito que ele tinha irmãos, mas é bem específico em dizer que tinha cinco. Se, como
vimos, o rico representava os fariseus, que eram a principal facção dos judeus, quais
seriam esses seus “irmãos”? Evidentemente, só pode ser uma alusão a outras
135
bem conhecidas biblicamente e/ou historicamente: (1) a dos saduceus (Lc 20:27);
(2) a dos zelotes (Lc 6:15); (3) a dos herodianos (Mc 12:13); (4) a dos samaritanos (Jo
4:9) e (5) a dos essênios. Estes últimos são os únicos que não aparecem no Novo
O ponto em comum em todas essas cinco facções dos judeus da época (ou seis, se
salvador ou esteve ao lado dele quando a multidão gritava “crucifica-o” (Jo 19:6).
Havia elementos de cada um deles (ou da maior parte deles) que aceitou Jesus,
4:24-42), mas como grupo, nenhum reconheceu Jesus como o Messias ou esteve
com ele até o fim. Isso significa que Jesus foi rejeitado por todas as facções judaicas
de sua época, o que está de acordo com a visão apresentada na parábola, de que o
rico (fariseu) tinha cinco irmãos que também não reconheceriam Jesus.
A mensagem principal da parábola é como ela termina: “Se não ouvem a Moisés e
aos Profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite alguém dentre
os mortos” (v. 31). “Moisés e os Profetas” é uma forma de se referir à Escritura que
eles conheciam (i.e, o Antigo Testamento). Por exemplo, quando Paulo chegou em
respeito de Jesus, com base na Lei de Moisés e nos Profetas” (At 28:23). A lei (de
136
Em outras palavras, a dureza de coração dos fariseus havia chegado ao ponto em
bíblico, que apontava a Jesus como o Messias. Até mesmo os nomes citados na
parábola, que os imortalistas bisonhamente usam como a “prova” de que não era
envolvido. O fato dessa parábola ter nomes não significa que ela não seja parábola,
só significa que é a única parábola de Jesus que tem nomes (da mesma forma que
significado da parábola, já que tudo o que conseguem ver ali é Jesus ensinando a
bastante estranho que num contexto de disputa com os fariseus sobre questões
que não tinham nada a ver com a imortalidade da alma Jesus decidisse contar uma
história para provar que a alma sobrevive após a morte, o que seria desproposital e
Faz muito mais sentido entender que Jesus estava complementando as parábolas
137
arrependimento, do que supor que ele iria parar tudo para contar uma simples
historinha sobre a vida após a morte, que teria caído de paraquedas no texto sem
para apelar a uma parábola a fim de corroborar sua visão de sobrevivência da alma
responde com sinceridade: “A resposta pode ser: ‘Nada’”56. Ele cita como exemplo
internet fazem vista grossa: “Seremos nós seres corpóreos no estado intermediário?
outros?”57.
da vida no além, nem propicia uma base firme para uma doutrina do
56
COOPER, John W. Soul and Life Everlasting: Biblical Anthropology and the Monism-Dualism Debate.
Grand Rapids: Alban Books Limited, 1989, p. 139.
57
COOPER, John W. Soul and Life Everlasting: Biblical Anthropology and the Monism-Dualism Debate.
Grand Rapids: Alban Books Limited, 1989, p. 139.
138
posição ética. Ele podia não estar endossando tais imagens, e não
Quem confirma essa tese é outro teólogo que acredita na sobrevivência da alma
que
histórias como esta eram tão bem conhecidas que podemos ver como
O Dr. Rodrigo Silva explica que havia pelo menos sete versões conhecidas dessa
mundo pagão. Mas em todas elas o rico consegue o que queria no final: voltar ao
mundo dos vivos para dar o recado que tanto queria60. Em outras palavras, Jesus
não estava contando nenhuma história real sobre a vida após a morte, mas apenas
58
COOPER, John W. Soul and Life Everlasting: Biblical Anthropology and the Monism-Dualism Debate.
Grand Rapids: Alban Books Limited, 1989, p. 139.
59
WRIGHT, N. T. Os Evangelhos Para Todos. São Paulo: Thomas Nelson, 2020, p. 466.
60
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8dCiEqjG-1M>. Acesso em: 25/09/2020.
139
um conto bem popular em sua época, que todos sabiam se tratar de uma história
fictícia, para enfatizar alguma lição moral que difere do conto tradicional.
Isso seria o mesmo que eu contasse uma história folclórica muito famosa e
conhecida por todos, como a da Branca de Neve, mas mudasse algum detalhe
belo, retratar um homem comum e simples, para mostrar que beleza e dinheiro não
com isso. Foi exatamente isso o que Jesus fez, ao citar uma parábola bem popular,
mas com um final alterado para ensinar uma lição moral que seus ouvintes não
esperavam.
Além de mudar o final da história, Jesus também mudou alguns detalhes no meio
dela, relacionados ao mundo dos mortos. Nas outras versões da mesma história, o
que ia para o Hades era um espírito incorpóreo, de acordo com a crença platônica
que levava o mesmo nome. Este mundo inferior era um lugar subterrâneo para
onde iam as almas dos falecidos, guiadas por Hermes, o emissário dos deuses, e lá
universo: Zeus ficou com os céus e as terras, Posídon ficou com os oceanos e Hades
ficou com o mundo dos mortos. Sua guarda cabia ao Cérbero, um cão gigante de
140
três cabeças que era dócil com quem chegava, mas feroz a quem tentasse fugir. No
justos, e o Tártaro, onde ficavam os ímpios. Edward Fudge fez o seguinte resumo
do Hades grego:
mortos ao longo dos rios Styx e Aqueron para as suas moradas, onde
Como é óbvio, Jesus não acreditava nesse tipo de Hades, embora frequentemente
outros significados, que fossem mais compatíveis com sua própria teologia. Por
mesmo Deus do Antigo Testamento (YHWH), no mundo grego era usada para
também ocorre em relação a Lilith, que era adorada como uma deusa na
61
FUDGE, Edward William. The Fire That Consumes: A Biblical and Historical Study of the Final
Punishment. Houston: Providential Press, 1989, p. 205.
141
Mesopotâmia e na Babilônia, mas que na Bíblia aparece com um significado
Da mesma forma que theos e Lilith, o Hades cristão tinha um significado bem
Sheol hebraico, um lugar sem vida ou existência consciente (Ec 9:10; Sl 6:5, 94:17).
Isso explica por que há tantos detalhes cômicos na descrição do Hades na parábola:
o Hades da parábola era uma sátira do Hades grego, já que Jesus citava uma
parábola popular extraída de contos gregos populares, mas que ele obviamente
não acreditava serem reais. Por isso, enquanto nos contos gregos o Hades era o
local para onde iam os espíritos fora do corpo, na parábola de Jesus ele faz questão
de colocar no Hades personagens de carne e osso, com língua, dedos, que sentem
O humor hebraico era bem mais sutil que o brasileiro, e se baseava principalmente
no exagero. Como o nosso humor é diferente do deles, muitos pensam que não há
humor na Bíblia, o que é um grande equívoco. Ele está ali, mesmo que nem todos
que Elias zombou dos profetas de Baal, que gritavam e feriam o próprio corpo para
que o deus deles os ouvisse e fizesse cair fogo do céu, no desafio que Elias lhes
propôs:
“Ao meio-dia Elias começou a zombar deles. ‘Gritem mais alto!’, dizia, ‘já que
ele é um deus. Quem sabe está meditando, ou ocupado, ou viajando. Talvez
142
É evidente que Elias não acreditava que Baal realmente existisse e estivesse apenas
dormindo ou viajando, mas disse aquilo justamente para satirizar a crença dos
adoradores de Baal. Quando Jesus colocou o rico no Hades com língua e Lázaro
com dedos e disse que o rico (cujo corpo inteiro queimava no fogo) queria que
Lázaro molhasse apenas a ponta do dedo para refrescar somente a sua língua, ele
pagã, que via no Hades um lugar de vida consciente após a morte. Ao invés de
ocasionais, mas foram propositalmente incluídos por Jesus para satirizar o Hades
grego. Ao verem Jesus tratar o Hades pagão como uma piada, seus ouvintes de
saberiam que Jesus não endossava a crença, da mesma forma que Elias não
endossava a crença em Baal que ele ridicularizava. Jesus usou um cenário satírico
da vida após a morte para ensinar uma lição moral mais profunda, revertendo o
Branca de Neve, mas retratasse os sete anões como sete gigantes barbudos e
Em suma, a parábola do rico e Lázaro não é uma história real ou uma lição sobre o
tanto, Jesus usou como pano de fundo um famoso conto popular da época, onde
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um morto consegue voltar ao mundo dos vivos para alertar os demais, mas muda
o final da história, para enfatizar que já não há mais esperança para quem
habitação dos mortos, para satirizar a crença pagã e mostrar a todos o quanto ela é
sátira do Hades grego, porque é no Hades grego que se passava o famoso conto
popular ao qual Jesus aludiu, e que todos os seus ouvintes conheciam bem. Como
público-alvo, seu fundo histórico e os textos que a cercam, criaram a estúpida ideia
de que Jesus contou a parábola do rico e Lázaro (que para alguns nem parábola é)
como uma aula de teologia sobre o que acontece depois da morte, o que seria
Na verdade, como já dissemos, essa ignorância é proposital, pois nenhum leigo que
todo o contexto bíblico, exegético e histórico iria se dar ao ridículo de concluir que
Jesus estava endossando a crença numa alma imortal. Por essa razão, em vez de
fazer um estudo sério em torno de Lucas 16:19-31, eles preferem induzir os leigos
a pensar que se trata apenas de uma historinha sobre a vida após a morte, para usá-
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• Considerações Finais
Como vimos neste capítulo, o Sheol (nome hebraico usado no Antigo Testamento)
estão enterrados (Nm 16:23-33; Ez 31:18). À exceção dos que morreram no mar (Ap
20:13), todos os mortos estão no Sheol (Jó 3:19), sejam eles justos (Sl 49:15; Is 38:10)
ou ímpios (Sl 31:17). No Sheol não há vida (Sl 88:8-13), consciência (Sl 6:5), louvor a
Deus (Is 38:17-19) ou atividade (Ec 9:10); também não há sofrimento (Sl 31:17; Jó
3:11-18), gritaria (Jó 3:18; Sl 94:17) ou fogo (Sl 88:12; Dt 32:22). É simplesmente a
“terra do esquecimento” (Sl 88:12), comparável à cova (Sl 30:3; Pv 1:12) e à sepultura
(Sl 49:14, 141:6-7; 1Rs 2:9), diferindo-se delas apenas por sua extensão, não por sua
natureza.
si no Sheol, mas as próprias árvores falam (Is 14:8). No Novo Testamento, o único
texto que retrata o Hades como um lugar de consciência após a morte é uma
parábola de uso popular na época de Jesus (Lc 16:19-31), onde é representado não
o Hades bíblico, mas uma sátira do Hades grego, que era o cenário onde se passava
essa parábola bem conhecida dos ouvintes originais de Jesus, e cuja lição moral não
Mais significativo que isso, vimos que o lugar para onde os mortos iam de corpo e
alma era o Sheol/Hades, identificado sempre com as regiões inferiores da terra (Nm
16:33; 1Sm 2:6), não o céu, identificado como um plano superior ao nosso (Dt 4:39;
145
1Rs 8:23). Isso anula qualquer pretensão de colocar os salvos no céu imediatamente
após a morte, como ensina a imensa maioria dos teólogos imortalistas. Em vez de
não poderia ser mais claro (Mt 11:23). Para resolver o problema, os apologistas
Sheol ao Paraíso entre a sua morte e ressurreição, mas vimos que este ensino é
gritante de textos.
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