O Estado Dos Mortos No Sheol (Lucas Banzoli)

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O texto que você está lendo é um extrato de um dos capítulos da nova versão do

meu livro “A Lenda da Imortalidade da Alma” (ainda em construção). Para

qualquer dúvida, crítica, sugestão ou observação, deixe um comentário em meu

site (www.lucasbanzoli.com) ou entre em contato por inbox na minha página do

facebook (www.facebook.com/lucasbanzoli1). Também não deixe de seguir meu

canal no YouTube: www.youtube.com/c/LucasBanzoli

***

1
Sumário

5. O estado dos mortos no Sheol .................................................................................... 4


• Introdução ........................................................................................................................4
• O que é e onde fica o Sheol? ......................................................................................... 10
Sheol e Hades................................................................................................................ 10
Onde fica o Sheol? ........................................................................................................ 11
Substâncias físicas no Sheol .......................................................................................... 16
Joelhos se dobrando no inferno? ................................................................................. 19
• Para onde vão os salvos após a morte?......................................................................... 21
Subir ao céu ou descer ao Sheol? ................................................................................. 21
Os justos no Sheol......................................................................................................... 27
O lugar indesejável........................................................................................................ 32
Provérbios 15:24 ........................................................................................................... 34
O Sheol e o Paraíso ....................................................................................................... 40
Os justos foram transferidos do Sheol para o céu? ...................................................... 42
Conclusão ...................................................................................................................... 56
• Sheol, sepultura, pó e cova............................................................................................ 58
• Há vida no Sheol? .......................................................................................................... 73
Há atividade no Sheol? ................................................................................................. 73
Há lembrança no Sheol? ............................................................................................... 76
Há louvor no Sheol? ...................................................................................................... 78
Há castigo ou recompensa no Sheol? ........................................................................... 81
Reunir-se aos antepassados ......................................................................................... 83
As “portas” e “cordas” do Sheol ................................................................................... 86
Sheol e Abaddon ........................................................................................................... 89
• O Sheol em Isaías 14 e em Ezequiel 32 .......................................................................... 91
Isaías 14......................................................................................................................... 91
Ezequiel 32 .................................................................................................................... 96
• O Hades na parábola do rico e Lázaro ......................................................................... 103
Uma parábola dos tempos modernos ........................................................................ 103
Parábolas devem ser interpretadas literalmente? ..................................................... 107
A história do rico e Lázaro não é uma parábola? ....................................................... 110

2
Os problemas da interpretação literal ........................................................................ 114
Se a parábola não é literal, então Jesus mentiu? ....................................................... 120
O propósito de uma parábola ..................................................................................... 123
Interpretando a parábola ........................................................................................... 128
• Considerações Finais.................................................................................................... 145

3
O estado dos mortos no Sheol

• Introdução

Talvez a mais importante prova da inexistência de consciência no estado

intermediário é que o único lugar para o qual a Bíblia diz que justos e ímpios vão

após a morte, o Sheol, não é nem um céu nem um inferno, mas tão-somente a

região subterrânea da terra onde estão os cadáveres dos mortos. “Sheol” é um

termo hebraico que às vezes é apenas transliterado nas versões em português da

Bíblia, embora muitas delas, pelo viés do tradutor, traduzam por “inferno” ou por

“mansão dos mortos”, impondo um conceito que não está no texto. Tome como

exemplo um simples texto como Isaías 14:15, que a NVI traduz da seguinte maneira:

“Mas às profundezas do Sheol você será levado, irá ao fundo do abismo!”

(Isaías 14:15)

O original hebraico diz:

“Yarad sh'owl yrekah bowr”

“Sh'owl” é o termo geralmente transcrito como “Sheol”, na maioria das Bíblias em

português. Mas veja como este mesmo texto é traduzido pela Almeida Revista e

Atualizada:

4
“Contudo, serás precipitado para o reino dos mortos, no mais profundo do

abismo” (Isaías 14:15)

Na ARA, o Sheol é traduzido como o “reino dos mortos”, o que para alguns pode

transmitir a ideia de um reino literal cujos habitantes estão vivos e interagem entre

si (algo semelhante ao “reino dos céus”). Algo parecido faz a Nova Almeida

Atualizada, que assim traduz o verso em questão:

“Mas você descerá ao mundo dos mortos, no mais profundo do abismo”


(Isaías 14:15)

A versão católica Ave Maria, de forma similar, assim traduz:

“E, entretanto, eis que foste precipitado à morada dos mortos, ao mais

profundo abismo” (Isaías 14:15)

A Bíblia da CNBB, também católica, já coloca uma “mansão” no texto:

“Foste, porém, precipitado à mansão dos mortos, chegaste ao fundo do


Abismo!” (Isaías 14:15)

Para piorar, observe como o mesmo texto é traduzido pela Almeida Corrigida Fiel:

“E contudo levado serás ao inferno, ao mais profundo do abismo” (Isaías

14:15)

5
Aqui eles já meteram o “inferno” no meio, sem mais nem menos.

Uma tradução mais “neutra” podemos encontrar na Nova Versão Transformadora,

onde se lê:

“Em vez disso, será lançado ao lugar dos mortos, ao mais profundo abismo”
(Isaías 14:15)

A tabela abaixo resume as diferentes traduções para o Sheol em Isaías 14:15:

Bíblia Tradução

Nova Versão Internacional Sheol

Almeida Revista e Atualizada Reino dos mortos

Nova Almeida Atualizada Mundo dos mortos

Ave Maria Morada dos mortos

CNBB Mansão dos mortos

Almeida Corrigida Fiel Inferno

Nova Versão Transformadora Lugar dos mortos

Lembre-se de que estamos falando apenas de sete versões diferentes traduzindo

um único texto. Se ampliássemos a quantidade de versões e de textos onde o Sheol

aparece, teríamos uma tabela quase interminável de traduções diferentes para a

mesma palavra. O viés doutrinário da grande maioria dessas traduções é

evidenciado quando simplesmente comparamos a forma como eles traduzem o

6
Sheol em Isaías 14:15 com o modo como traduzem a mesma palavra em Eclesiastes

9:10, que na NVI aparece assim:

“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força,
pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento,
não há conhecimento nem sabedoria” (Eclesiastes 9:10)

Embora no original hebraico conste a mesma palavra Sheol que aparece no texto

de Isaías, a NVI preferiu traduzir por “sepultura” aqui, e manter o “Sheol” no outro

texto, sem tradução. Das outras versões, a maior parte delas prefere traduzir por

“sepultura”, induzindo o leitor a pensar que em Isaías o autor falava de um “reino”

ou “mundo” onde os mortos estão conscientes, e que em Eclesiastes o autor falava

apenas do túmulo e nada a mais (embora seja o mesmo termo que apareça no

hebraico de ambos os textos):

Bíblia Tradução

Nova Versão Internacional Sepultura

Almeida Revista e Atualizada Além

Nova Almeida Atualizada Sepultura

Ave Maria Região dos mortos

CNBB Mundo dos mortos

Almeida Corrigida Fiel Sepultura

Nova Versão Transformadora Sepultura

A primeira ironia a se observar é que nenhuma versão manteve a mesma tradução,

para manter um mínimo de coerência. Todas elas mudaram alguma coisa, mesmo

7
que uma mudança sutil. O segundo detalhe curioso é que a maioria das versões

consultadas traduziram o Sheol em Eclesiastes 9:10 como “sepultura”, mas

nenhuma fez isso com o Sheol em Isaías 14:15. Até a NVI, que de todas foi a única

corajosa que verteu o Sheol como Sheol em Isaías 14:15, deixando que o leitor

tirasse as suas próprias conclusões, mudou a tradução para “sepultura” em

Eclesiastes 9:10, induzindo o leigo a pensar que um autor falava do Sheol, e o outro

não.

Não admira que muitos apologistas imortalistas não familiarizados com o texto

hebraico pensem que Salomão falava do qeber (túmulo) em Eclesiastes 9:10, e não

do Sheol. Essas mudanças são intencionais, e fazem parte das sutilezas com as quais

os tradutores imortalistas adulteram a Bíblia a fim de ofuscar a verdade nítida e

clarividente a qualquer leitor do hebraico, de que o Sheol nada mais é que a região

subterrânea da terra. Em minhas pesquisas para escrever este capítulo, descobri que

o Sheol aparece 66 vezes no texto hebraico, e que na vasta maioria delas os

tradutores preferiram ocultar sua menção, pelo simples fato de que os textos

claramente mostram se tratar de um lugar sem vida onde os mortos estão

enterrados. Nestes casos, eles preferem traduzir por “sepultura”, “túmulo” ou “cova”.

Por outro lado, nos poucos textos onde não está claro o significado do Sheol (ou

seja, onde o contexto não mostra claramente que se trata de um lugar sem vida,

embora também não afirme ser um lugar com vida), eles aproveitam para manter o

termo “Sheol” ou para traduzir por “mansão dos mortos”, “reino dos mortos”,

“mundo dos mortos” e “inferno”, já que ali o tradutor vê a oportunidade de encaixar

o inferno ou o lugar intermediário onde as almas supostamente estariam. Assim, os

leitores sem familiaridade com o hebraico são induzidos a pensar que este lugar

8
aparece pouquíssimas vezes na Bíblia, e todas elas em textos que abrem alguma

margem para a possibilidade de um lugar com vida.

Mal sabem eles que o Sheol aparece em toda a parte, e que é justamente o grosso

dos textos sobre o Sheol que lança luz ao seu significado nos demais textos, onde

o sentido é “obscuro” ao olhar o texto por si só. Nenhum leigo consegue perceber

isso ao ler apenas as traduções, porque as traduções maliciosas os induzem ao erro.

Ao invés de manterem o Sheol onde o Sheol aparece e deixarem que a Bíblia

interprete a Bíblia (ou seja, que os textos com significado menos claro sejam

explicados à luz dos textos onde o significado é claro), eles astutamente encobrem

o Sheol em pelo menos 80% dos textos onde o Sheol aparece, e o mantém na

minoria que abre alguma margem para interpretações duvidosas, que os teólogos

imortalistas se aproveitam às custas da ignorância do leitor médio.

Quando defrontados com essa realidade, alguns imortalistas chegam ao ponto de

sugerir que quase todas as vezes que o Sheol aparece na Bíblia ele aparece em um

sentido alternativo e secundário que não tem nada a ver com o Sheol, e que o

verdadeiro significado do Sheol só pode ser deduzido daquela pequena gama de

textos que eles distorcem vergonhosamente, ignorando todos os demais. Isso não

apenas é um exemplo de como não se faz exegese, como ilustra bem o tipo de

hermenêutica defeituosa que se cria na base do desespero. É a famosa “exegese de

costura”, que ao invés de partir da Bíblia e dela tirar as conclusões mais sensatas,

parte-se de um pressuposto doutrinário e tenta-se “arranjar” os textos de uma

forma que convenientemente combine com o desejado.

9
Para evitar a exegese de costura, todos os textos que serão aqui apresentados

estarão devidamente acompanhados de seu significado no hebraico, para que o

leitor saiba quando é o Sheol que aparece, e quando é outro termo (exceto nas

ocasiões em que a tradução utilizada já use o termo Sheol, em conformidade com

o hebraico).

• O que é e onde fica o Sheol?

Sheol e Hades – Antes de mais nada, e para evitar confusões futuras, precisamos

esclarecer que o equivalente grego ao Sheol é o Hades, o que explica por que os

textos do Antigo Testamento que mencionam o Sheol são citados no Novo

Testamento como uma referência ao Hades. Por exemplo, o salmista diz que “tu não

me abandonarás no sepulcro, nem permitirás que o teu santo sofra decomposição”

(Sl 16:10). O termo aqui traduzido por “sepulcro”, no original hebraico, é o Sheol.

Este mesmo texto é citado por Pedro em seu discurso no Pentecoste, mas com o

Hades em lugar do Sheol (cf. At 2:27 no original grego).

De forma semelhante, Oseias diz: “Onde estão, ó morte, as suas pragas? Onde está,

ó sepultura, a sua destruição?” (Os 13:14). Aqui, mais uma vez, é o Sheol que aparece

no texto hebraico. Paulo cita esse mesmo texto em 1ª Coríntios 15:55, mas com o

Hades em lugar do Sheol, uma vez que o Hades é o equivalente grego ao Sheol do

hebraico. Na Septuaginta, uma famosa versão grega do Antigo Testamento

produzida poucos séculos antes de Cristo, o Sheol também é sempre traduzido

como Hades.

10
Onde fica o Sheol? – Que o Sheol e o Hades são os mesmos, isso é um ponto

pacífico entre holistas e dualistas. A grande discussão gira em torno do que vem a

ser o Sheol/Hades. Como veremos, na Bíblia o Sheol/Hades significa

invariavelmente a região subterrânea da terra onde os mortos estão sepultados,

ainda que em textos de natureza poética ou alegórica haja liberdade poética para

se referir ao Sheol de uma forma figurada (no mesmo sentido em que as árvores

falam e conversam entre si). Mas na teologia imortalista, o Sheol é a própria morada

dos espíritos dos mortos, onde estão conscientes e sofrendo tormento (se forem

ímpios) ou desfrutando paz e bem-aventurança (se forem justos).

O problema é que os imortalistas sequer tem um consenso em relação a quem está

no Sheol ou onde o Sheol fica. Para alguns, o Sheol é um lugar subterrâneo literal

no interior da terra (que alguns identificam como o núcleo do planeta) onde as

almas de justos e ímpios vão após a morte. Não me pergunte o que um espírito

imaterial faria no interior de um planeta físico, mas este é o único jeito que eles

encontraram para conciliar os inúmeros textos que descrevem o Sheol

invariavelmente como um lugar subterrâneo na terra. O Pr. Natanael Rinaldi, por

exemplo, afirmou que o Sheol “é o lugar não visto, abaixo da terra, enquanto a

sepultura é na superfície da terra, é um lugar visto por qualquer ser humano”1.

Há inúmeras ilustrações de autores imortalistas que mostram o Sheol/Hades como

um “reino dos mortos” embaixo da terra, como, por exemplo, nesse autointitulado

1
RINALDI, Natanael. O que dizem os adventistas sobre o Seol e o Hades? Disponível em:
<http://www.cacp.org.br/o-que-dizem-os-adventistas-sobre-o-seol-e-o-hades>. Acesso em:
29/09/2020.

11
“mapa escatológico” cheio de setas pra lá e pra cá, que ilustra bem a confusão

mental que assola a cabeça de tantos imortalistas:

Curiosamente, o mesmo Natanael Rinaldi que disse em um artigo que o Sheol fica

embaixo da terra escreveu outra coisa em seu livro, onde se opõe aberta e

descaradamente aos textos bíblicos que ele mesmo cita e diz que o Sheol fica na

verdade em “outra dimensão”, tentando dar algum sentido lógico à crença

imortalista, à custa dos textos bíblicos:

[O Sheol] é visto como ficando abaixo, nas “entranhas da terra” ou

“lugar mais baixo da terra” (Jó 11:8; Is 44:23, 57:9; Ez 26:20; Am 9:2).

Essas expressões não podem ser literalizadas dentro de uma posição

12
geográfica. Indicam que o Sheol não faz parte desta dimensão (ou

mundo), mas existe em outra dimensão.2

Não me pergunte de onde foi que Rinaldi viu nos textos uma indicação de que o

Sheol “existe em outra dimensão”, mas aqui nos deparamos com o primeiro grande

dilema que atormenta a mente dos imortalistas. Se eles disserem que o Sheol fica

nas regiões subterrâneas da terra, como a Bíblia taxativamente ensina, terão que

lidar com insuperáveis problemas lógicos; por outro lado, se disserem que fica em

outra dimensão, terão que lidar com o problema da Bíblia. Na dúvida, a maior parte

deles prefere sacrificar a Bíblia e lançar o Sheol para uma outra dimensão, ainda que

não haja um único mísero texto que afirme que o Sheol pertence a uma outra

dimensão fora da terra. Isso mostra o apreço que eles têm pela Bíblia: nenhum.

Imortalistas como Natanael Rinaldi precisam se decidir se o Sheol é um lugar

embaixo da terra ou se fica fora da terra. Se o Sheol fica mesmo em uma outra

dimensão, então fica fora da terra, e todos os textos bíblicos que descrevem o Sheol

como parte da terra estão simplesmente enganando o leitor. É curioso notar que

não há um único texto bíblico que diga que o céu onde Deus habita é uma parte da

terra, justamente porque os escritores bíblicos sabiam que ficava numa outra

dimensão. Por isso vemos vários textos que contrastam o céu com a terra (cf. Dt

4:39; Is 55:9; 1Rs 8:27; Sl 73:25; Mt 6:19-20, 16:19, 28:18; Cl 3:2, etc).

Por outro lado, nunca vemos um único texto bíblico que coloque em contraste o

Sheol (que para os imortalistas também fica numa outra dimensão espiritual) com

2
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 95.

13
a terra, ou que considere o Sheol um lugar fora da terra. Pelo contrário, o Sheol é

sempre, somente e invariavelmente identificado com as regiões subterrâneas da

terra, justamente porque os escritores bíblicos sabiam que ele é parte da terra, não

de outra dimensão, como o céu. Dizer que o Sheol fica em outra dimensão é zombar

da inteligência de qualquer leitor alfabetizado, e até dos que não são. É pisar em

cima dos textos bíblicos desavergonhadamente e dizer que vale qualquer coisa

para salvar uma doutrina antibíblica como a da imortalidade da alma.

Em Amós, Deus diz que “ainda que cavem até o Sheol, dali a minha mão irá tirá-los”

(Am 9:2). Aqui vemos que é possível chegar ao Sheol cavando. Eu me pergunto

quanto tempo será preciso escavar até acessar uma outra dimensão, como ensina

Rinaldi e tantos outros autores imortalistas. Deve ser bastante, eu suponho. Note

como o texto é muito mais simples de se entender quando simplesmente

assumimos que o Sheol é exatamente aquilo que os escritores bíblicos diziam ser:

a região subterrânea da terra. Neste caso, a linguagem de “cavar” é apropriada e de

fácil entendimento, bem diferente do que seria se o Sheol se situasse numa

dimensão metafísica, tornando a escavação tão inútil quanto ridícula, e fazendo

dela uma linguagem totalmente inapropriada, um nonsense.

Um texto que mostra com uma clareza indiscutível como o Sheol era identificado

com a região subterrânea da terra é o episódio da revolta de Corá, ocasião na qual

a terra se abriu e engoliu vivos os rebeldes:

“Então o Senhor disse a Moisés: ‘Diga à comunidade que se afaste das tendas
de Corá, Datã e Abirão’. Moisés levantou-se e foi para onde estavam Datã e

Abirão, e as autoridades de Israel o seguiram. Ele advertiu a comunidade:

14
‘Afastem-se das tendas desses ímpios! Não toquem em nada do que pertence

a eles, senão vocês serão eliminados por causa dos pecados deles’. Eles se

afastaram das tendas de Corá, Datã e Abirão. Datã e Abirão tinham saído e
estavam de pé, à entrada de suas tendas, junto com suas mulheres, seus
filhos e suas crianças pequenas. E disse Moisés: ‘Assim vocês saberão que o

Senhor me enviou para fazer todas essas coisas e que isso não partiu de

mim. Se estes homens tiverem morte natural e experimentarem somente

aquilo que normalmente acontece aos homens, então o Senhor não me


enviou. Mas, se o Senhor fizer acontecer algo totalmente novo, e a terra abrir

a sua boca e os engolir, junto com tudo o que é deles, e eles descerem vivos

ao Sheol, então vocês saberão que estes homens desprezaram o Senhor’.

Assim que Moisés acabou de dizer tudo isso, o chão debaixo deles fendeu-se

e a terra abriu a sua boca e os engoliu juntamente com suas famílias, com

todos os seguidores de Corá e com todos os seus bens. Desceram vivos à

sepultura [Sheol], com tudo o que possuíam; a terra fechou-se sobre eles, e
pereceram dentre a assembleia” (Números 16:23-33)

Aqui vemos claramente os seguidores de Corá descendo vivos ao Sheol ao serem

engolidos pela terra, justamente porque o Sheol compreende as regiões

subterrâneas da terra. Observe ainda que o texto não apenas diz que os seguidores

de Corá desceram vivos ao Sheol, mas também que desceram com tudo o que

possuíam (ou seja, com os seus pertences). Se o Sheol fica numa outra dimensão, a

única coisa que podemos concluir é que, enquanto os seguidores de Corá eram

engolidos pela terra, suas almas se separaram de seus corpos e foram magicamente

teletransportadas para uma outra dimensão, juntamente com os seus bens. Se isso

parece ridículo, é porque é ridículo.

15
Como comenta Bacchiocchi, “este episódio claramente revela que a pessoa inteira,

não somente a alma, desce ao Sheol”3. É evidente que o Sheol para os hebreus nada

mais era que o interior da terra, onde as pessoas eram enterradas. O que diferenciou

esse episódio de Números 16:30-33 de uma morte comum é que numa morte

comum o homem é enterrado depois que morre, e é enterrado sozinho, enquanto

aqui todos os seguidores de Corá foram enterrados vivos quando a terra se abriu e

os engoliu junto com todos os seus pertences, incluindo suas tendas (vs. 24-27).

Substâncias físicas no Sheol – O fato de objetos físicos descerem ao Sheol, como

no episódio da revolta de Corá, é outra prova indiscutível de que os hebreus de

modo algum imaginavam o Sheol como pertencente a outra dimensão. Vemos

outro exemplo disso em Isaías 5:13-14, que fala a respeito da cidade de Jerusalém:

“Portanto, o meu povo vai para o exílio, por falta de conhecimento; a elite

morrerá de fome, e as multidões, de sede. Por isso o Sheol aumenta o seu


apetite e escancara a sua boca. Para dentro dele descerão o esplendor da

cidade e a sua riqueza, o seu barulho e os que se divertem” (Isaías 5:13-14)

Aqui vemos que não apenas os habitantes desceriam ao Sheol, mas também o

próprio «esplendor da cidade e a sua riqueza». Talvez você esteja se questionando

como isso é possível, já que os israelitas não enterrariam suas próprias riquezas e

palácios. Isso não seria preciso, já que isso é o que acontece naturalmente com uma

cidade em ruínas: com o passar do tempo, ela é lentamente “engolida” pela terra da

3
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 150.

16
mesma forma que os seguidores de Corá. É por isso que quando um arqueólogo

tenta encontrar vestígios de uma civilização antiga, e mesmo de uma não tão antiga

assim, ele precisa escavar, e muito. O que Deus estava dizendo é que toda a riqueza

da cidade e o seu esplendor viraria ruínas nas mãos dos babilônicos, o que faria a

cidade desaparecer no fundo da terra – ou seja, no Sheol.

Algo semelhante é dito a respeito da cidade de Tiro, sobre a qual Ezequiel declara:

“Depois entoarão um lamento acerca de você e lhe dirão: ‘Como você está

destruída, ó cidade de renome, povoada por homens do mar! Você era um


poder nos mares, você e os seus cidadãos; você impunha pavor a todos que

ali vivem. Agora as regiões litorâneas tremem no dia de sua queda; as ilhas

do mar estão apavoradas diante de sua ruína’. Assim diz o Soberano Senhor:

Quando eu fizer de você uma cidade abandonada, como uma cidade

inabitável, e quando eu a cobrir com as vastas águas do abismo, então farei

você descer com os que descem à cova, para fazer companhia aos antigos.

Eu a farei habitar embaixo da terra, como em ruínas antigas, com aqueles

que descem à cova, e você não voltará e não retomará o seu lugar na terra

dos viventes. Levarei você a um fim terrível e você já não existirá. Você será

procurada, e jamais será achada, palavra do Soberano Senhor” (Ezequiel


26:17-21)

A cidade faria «companhia aos antigos», não porque ela fosse teletransportada para

uma outra dimensão onde os antigos estariam queimando ou se regozijando, mas

porque habitaria «embaixo da terra», assim como eles. Essa expressão de modo

algum diz respeito a uma dimensão espiritual metafísica, mas meramente à região

17
subterrânea da terra, o lugar onde os mortos estão enterrados e onde se encontram

os resquícios das antigas cidades. O mesmo pode ser dito a respeito das árvores

que são cortadas e morrem, as quais também vão «para baixo da terra», junto com

«os que descem à cova»:

“Por isso nenhuma outra árvore junto às águas chegará a erguer-se


orgulhosamente tão alto, alçando o seu topo acima da folhagem espessa.
Nenhuma outra árvore igualmente bem regada chegará a essa altura; estão

todas destinadas à morte, e irão para baixo da terra, entre os homens

mortais, com os que descem à cova” (Ezequiel 31:14)

“Qual das árvores do Éden pode comparar-se a você em esplendor e

majestade? No entanto, você também será derrubado e irá para baixo da

terra, junto com as árvores do Éden; você jazerá entre os incircuncisos, com
os que foram mortos pela espada” (Ezequiel 31:18)

Neste último texto, vemos que o destino do faraó seria o mesmo das árvores do

Éden, que estão embaixo da terra. Isso não significa que as árvores do Éden tenham

sido teletransportadas para o inferno numa outra dimensão onde o faraó estaria

sofrendo, significa apenas que o faraó estaria no mesmo lugar que as árvores

destruídas pelo dilúvio: embaixo da terra. Assim, vemos que toda a região

subterrânea da terra é chamada de Sheol, razão pela qual ela é tantas vezes

associada aos mortos, que lá estão enterrados.

Para a superfície terrestre ou para designar o planeta como um todo, os hebreus

usavam o termo erets (traduzido como “terra”), enquanto usavam Sheol quando

18
queriam designar a região subterrânea da terra. Em todas as 66 vezes que o Sheol

aparece no Antigo Testamento, ele pode ser simplesmente traduzido como

“regiões subterrâneas” (referindo-se ao que está embaixo da terra) sem perda de

sentido, mas em muitos desses casos traduzi-lo por “inferno” ou por qualquer lugar

em outra dimensão seria simplesmente ridículo.

Joelhos se dobrando no inferno? – Ironicamente, quando o termo em latim

infernus foi criado, ele designava justamente as regiões inferiores da terra, mas com

o tempo passou a ser usado no sentido de um lugar de tormento numa dimensão

metafísica, tornando-se o “inferno” que popularmente conhecemos. Há quem se

apegue a Filipenses 2:9-11 na tentativa de impor o conceito popular de infernus,

como o lugar onde o espírito dos ímpios está queimando conscientemente. Isso

porque Paulo diz que todo joelho se dobraria a Cristo “debaixo da terra” (na versão

em latim, nos “infernus”):

“Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está

acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no
céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o
Senhor, para a glória de Deus Pai” (Filipenses 2:9-11)

Baseado nisso, eles concluem que a expressão “debaixo da terra” deve designar um

lugar com consciência e atividade, caso contrário ninguém conseguiria dobrar seus

joelhos ali. Com essa mesma lógica, poderíamos concluir que a Atlântida do filme

do Aquaman é uma cidade real no fundo do mar, já que outro texto bíblico diz:

19
“Depois ouvi todas as criaturas existentes no céu, na terra, debaixo da terra e

no mar, e tudo o que neles há, que diziam: ‘Àquele que está assentado no

trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a honra, a glória e o poder, para todo o


sempre!’” (Apocalipse 5:13)

Será que isso significa que há literalmente seres aquáticos que conscientemente

louvam ao Senhor com a oração citada no verso? Poucos seriam capazes de chegar

a esta conclusão, embora façam exatamente isso em relação ao “debaixo da terra”

do texto aos filipenses. O que Paulo queria dizer não é que os joelhos se dobrariam

enquanto estivessem debaixo da terra, mas sim que todos aqueles que estão

debaixo da terra um dia dobrarão seus joelhos diante do Senhor. Da mesma forma,

João não estava dizendo que quem estava no mar louvaria ao Senhor enquanto

estivesse no mar, mas sim que o mar entregará os seus mortos (Ap 20:13), quando

então eles reconhecerão ao Senhor e lhe darão glória.

Em outras palavras, todos os que estão no céu, na terra, debaixo da terra e no mar

um dia reconhecerão a majestade do Senhor, o que acontecerá quando eles

ressuscitarem e estiverem frente a frente com ele. Isso inclui todos os que estão

vivos hoje (no céu ou na terra) e os que já morreram e estão debaixo da terra ou do

mar. Se uma mãe com vários filhos espalhados pela casa dissesse que “todos os que

estão na sala, na cozinha e no quarto vão tomar banho”, isso obviamente não

significaria que eles vão tomar banho na sala, na cozinha ou no quarto, mas sim que

os que estão nestes lugares irão tomar banho (evidentemente, no banheiro). Da

mesma forma, todos os que estão debaixo da terra confessarão que Jesus é o

Senhor, não enquanto estiverem embaixo da terra, mas quando forem

ressuscitados.

20
• Para onde vão os salvos após a morte?

Subir ao céu ou descer ao Sheol? – Um dos problemas mais sérios que os

imortalistas tem de enfrentar é a impossibilidade de conciliar a visão de que a alma

“desce” para o Sheol com a de que o espírito “sobe” para Deus na morte. Como

vimos no capítulo 2, os imortalistas rotineiramente citam Eclesiastes 12:7 fora de

contexto para dizer que uma alma imortal abandona o corpo depois da morte e vai

para a presença de Deus, já que o texto diz que “o pó volta à terra, de onde veio, e

o espírito volta a Deus, que o deu” (Ec 12:7). Como vimos, o espírito neste texto se

refere ao princípio animador da vida que Deus soprou no homem em Gênesis 2:7,

e que volta para Ele por ocasião da morte. Em nada tem a ver com uma alma dotada

de personalidade e consciência à parte do corpo.

No entanto, uma vez que para os imortalistas o espírito se refere precisamente à

alma imortal fora do corpo, eles são obrigados a interpretar este texto no sentido

de um ente pessoal que vai para a presença de Deus, mesmo antes da morte e da

ressurreição de Cristo (na época em que Salomão escreveu este verso). Isso

confronta diretamente os muitos textos bíblicos que se referem ao Sheol como um

lugar embaixo da terra, situado em contraste com o Paraíso, em vez de ser

identificado com ele. Jesus, por exemplo, exclamou: “E você, Cafarnaum, será

elevada até ao céu? Não, você descerá até o Hades” (Mt 11:23).

Para Jesus, portanto, o Hades está embaixo da terra, e o céu em cima. Os dois

claramente não estão no mesmo lugar, como seria preciso para conciliar o texto

21
que fala do espírito subindo para Deus com os inúmeros textos que dizem que a

alma desce ao Sheol na morte. Isso está perfeitamente de acordo com a noção

bíblica de que o Sheol diz respeito às regiões inferiores da terra (portanto,

“embaixo”) e de que o céu faz parte de uma dimensão mais elevada em relação à

nossa (portanto, “em cima”). Se Deus habita no céu (1Rs 8:43; Jó 22:12; Mt 6:9; Hb

9:24) e o espírito volta para Deus por ocasião da morte (Ec 12:7), a única coisa que

podemos concluir é que ele não desce ao Sheol, o que desmonta inteiramente a

noção de que o espírito seja a tal “alma imortal”, o nosso verdadeiro “eu” que

sobrevive à morte com consciência e personalidade.

E não foi apenas Jesus que situou o Sheol/Hades “embaixo”, em oposição ao céu.

Sempre que um escritor bíblico se refere à ida de alguém ao Sheol, ele usa o verbo

yarad (descer). Jó diz que “assim como a nuvem esvai-se e desaparece, assim quem

desce (yarad) à sepultura [Sheol, no hebraico] não volta” (Jó 7:9). De igual maneira,

os seguidores de Corá “desceram (yarad) vivos ao Sheol, com tudo o que possuíam;

a terra fechou-se sobre eles, e pereceram dentre a assembleia” (Nm 16:33).

Segundo Isaías, “o Sheol aumenta o seu apetite e escancara a sua boca. Para dentro

dele descerão (yarad) o esplendor da cidade e a sua riqueza, o seu barulho e os que

se divertem” (Is 5:14).

Davi pede que seu filho Salomão faça Joabe “descer (yarad) ensanguentado à

sepultura [Sheol]” (1Rs 2:9), e Jacó diz a seus filhos que se alguma coisa acontecesse

a Benjamim, “vocês farão estes meus cabelos brancos descerem (yarad) ao Sheol

com tristeza” (Gn 42:38), algo que é repetido pelos próprios filhos (Gn 44:31). Na

oração de Ana, lemos que “o Senhor mata e preserva a vida; ele faz descer (yarad) à

sepultura [Sheol] e dela resgata” (1Sm 2:6). Jó também declara que desceria (yarad)

22
às portas do Sheol (Jó 17:16), e o salmista diz que estava prestes a “descer à cova

[Sheol]” (Sl 30:3).

Vale lembrar que yarad é o mesmo verbo hebraico também rotineiramente usado

para se falar da descida à cova ou sepultura (cf. Sl 88:4; Pv 1:12; Is 38:18; Ez 26:20), o

que reforça a conexão entre ambos. O uso constante do verbo yarad (descer)

relativo ao Sheol, tanto para os justos como para os ímpios, vai ao encontro da

mensagem de Jesus, que situou o Hades como um lugar em oposição ao céu (Mt

11:23). Enquanto para o Sheol é usado sempre e somente o verbo descer, para o

céu é justamente o inverso que acontece. Embora o céu seja mencionado milhares

de vezes na Bíblia, nunca vemos o uso de yarad ou de qualquer verbo hebraico ou

grego para “descer”.

Em vez disso, vemos Moisés dizendo que “o Senhor é Deus em cima nos céus e

embaixo na terra” (Dt 4:39), que “o céu está acima da terra” (Dt 11:21) e que ao

Senhor pertencem “os mais altos céus” (Dt 10:14). Josué reforça a mensagem de

que “o Senhor é Deus em cima nos céus e embaixo na terra” (Js 2:11), Samuel diz

que “o clamor da cidade subiu até o céu” (1Sm 5:12), Esdras reconhece que “a nossa

culpa sobe até os céus” (Ed 9:6), Jó declara que Deus está “nas alturas dos céus” (Jó

22:12), Salomão diz que “não há Deus como tu em cima nos céus nem embaixo na

terra” (1Rs 8:23) e pergunta “quem subiu aos céus e desceu” (Pv 30:4).

Os salmos estão repletos dessa mesma mensagem. O salmista escreve que Deus

“convoca os altos céus e a terra para o julgamento do seu povo” (Sl 50:4), que “os

céus se elevam acima da terra” (Sl 103:11), que os “mais altos céus pertencem ao

Senhor” (Sl 115:16), e que “se eu subir aos céus, lá estás; se eu fizer a minha cama

23
na sepultura [Sheol], também lá estás” (Sl 139:8). Neste último texto, em particular,

vemos novamente o Sheol como a antítese geográfica ao céu, com o objetivo de

reforçar que não importa o quanto o salmista pudesse subir ou descer, ele nunca

escaparia da onipresença de Deus.

Jesus também disse que “ninguém jamais subiu ao céu” (Jo 3:13), e em sua ascensão

nos é dito que “ele foi elevado aos céus” (At 1:2). Em relação a Davi, somos

informados que ele “não subiu aos céus” (At 2:34), e no Apocalipse vemos uma

porta aberta no céu, de onde uma voz diz a João: “Suba para cá, e lhe mostrarei o

que deve acontecer depois dessas coisas” (Ap 4:1). Paulo não apenas situou o céu

“em cima”, como ainda reforçou o contraste entre ele e o Sheol quando escreveu:

“Mas a justiça que vem da fé diz: ‘Não diga em seu coração: ‘Quem subirá

ao céu?’ (isto é, para fazer Cristo descer) ou ‘Quem descerá ao abismo?’ (isto

é, para fazer subir Cristo dentre os mortos)” (Romanos 10:6-7)

O “abismo” do qual Paulo se refere é o mesmo abaddon citado em vários textos do

Antigo Testamento em paralelismo com o Sheol e com a morte (cf. Jó 26:6, 22:28; Sl

88:11; Pv 15:11). Paulo diz que foi deste lugar que Jesus ressuscitou dos mortos, e

Pedro em Atos 2:27 diz que foi do Hades (Sheol) que Jesus ressuscitou. Isso prova

que o “Abismo” (abaddon) e o Sheol são o mesmo: ambos se referem ao lugar de

onde Jesus ressuscitou. Note que Paulo claramente situa o céu acima (“subirá”), e o

Abismo/Sheol embaixo (“descerá”), em perfeita harmonia com as palavras de Cristo

em Mateus 11:23. Sendo assim, os imortalistas precisam lidar com o dilema: ou o

espírito sobe para Deus no céu, ou desce para o Sheol/Hades.

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Para os mortalistas, isso é perfeitamente simples e fácil de se explicar, uma vez que

o espírito não é o “verdadeiro eu”, mas apenas o fôlego da vida, algo impessoal que

veio de Deus (Gn 2:7) e volta para Deus na morte (Ec 12:7). Por isso todos os mortos

descem ao Sheol, mas nenhum sobe para a presença de Deus. Mas se os

imortalistas entendem que o espírito citado em Eclesiastes 12:7 se refere à alma

imortal que sai do corpo após a morte, cabe a eles conciliar este texto (e todos os

outros que são pateticamente tirados do contexto para dizer que alguém vai para

o céu após a morte, como o do ladrão da cruz de Lucas 23:43) com todos os textos

que dizem que os homens vão de corpo e alma ao Sheol após a morte – que é não

apenas distinto do céu, mas antagônico a ele.

Tamanho é o problema que até hoje eles não se decidiram se os mortos descem ao

Sheol na morte, ou se sobem ao Paraíso, ou se antes desciam e agora sobem. É

basicamente uma salada de frutas, onde cada um diz uma coisa diferente do outro

e ninguém consegue provar nada, simplesmente porque sua teologia é deficiente

e contradiz a si mesma. Norman Geisler escancara esse dilema em seu Manual

Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia, onde elenca os

argumentos dos dois lados e não chega a qualquer conclusão definitiva (embora

pareça favorecer a tese de que os mortos iam e vão direto ao céu).

Em favor da tese de que os mortos estão no Sheol, ele cita como exemplo o texto

que fala dos “espíritos em prisão” (1Pe 3:19) e a parábola do rico e Lázaro, sempre

apontada como a prova mais forte da imortalidade da alma na Bíblia, onde o rico

estava no Hades e Lázaro no “seio de Abraão”, que supostamente seria um

compartimento no Hades para os justos (discorrerei amplamente sobre a parábola

ao final deste capítulo). Já em favor da tese contrária (de que após a morte vamos

25
direto pro céu) ele cita como exemplo o ladrão da cruz, que supostamente estaria

no Paraíso naquele mesmo dia, bem como Jesus entregando o espírito ao Pai (Lc

23:46) e o episódio do monte da transfiguração (Mt 17:3).

Essas contradições mostram como é difícil encaixar os conceitos imortalistas

referentes à alma e ao espírito dentro da Bíblia, como um malabarista que tenta

equilibrar numa corda bamba os textos que usa para provar a imortalidade da alma,

ao mesmo tempo em que mal consegue encaixá-los adequadamente dentro de sua

própria teologia. Eles são cínicos o suficiente para usar textos como Eclesiastes 12:7

a fim de provar a sobrevivência da alma no céu, ao mesmo tempo em que usam a

parábola do rico e Lázaro com o mesmo propósito, embora esta retrate os

personagens em um lugar totalmente diferente do céu. E fazem o mesmo com

todos os outros textos que usam, os quais não conseguem encaixar nem em sua

própria teologia, muito menos na Bíblia.

Para tentar contornar uma contradição tão gritante, Geisler chega a dizer que “o

seio de Abraão (Lc 16:23) é uma descrição do céu. Em nenhum ponto ele é descrito

como sendo o inferno. É o lugar para onde Abraão foi, que é o ‘reino dos céus’”4. Ao

invés de solucionar o problema, ele acaba criando outro, uma vez que na parábola

Abraão podia não estar no inferno, mas ele estava claramente no mesmo lugar que

o rico que sofria tormentos, separado apenas por um abismo (mas não tão grande

que impossibilitasse a comunicação entre ambos – cf. Lc 16:26). Portanto, se Abraão

estava mesmo no céu, a única coisa que podemos concluir é que o rico também

4
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 371.

26
estava no céu – ou pelo menos em um lugar muito próximo, que de modo algum

seria geograficamente antagônico ao céu.

Na parábola, lemos que o rico estava no Hades (Lc 16:23), que para Jesus era um

lugar diametralmente oposto ao céu: “E você, Cafarnaum, será elevada até ao céu?

Não, você descerá até o Hades” (Mt 11:23). Se o rico estava tão perto de Abraão a

ponto de conversar com ele, e ele estava em um lugar mais distante do céu do que

a própria terra onde vivemos, então é óbvio que Abraão não podia estar no céu.

Alguns tentarão resolver este problema alegando que o céu e o Hades são

antagônicos apenas “espiritualmente” (no sentido de que no céu as pessoas estão

perto de Deus, e no Hades/inferno estão distantes), mas que são geograficamente

próximos. Essa tentativa esbarra nos inúmeros textos bíblicos que explicitamente

colocam os justos no Sheol/Hades, o que incluiria o próprio Abraão.

Os justos no Sheol – O salmista escreve que “a minha alma está cheia de angústia,

e a minha vida se aproxima da sepultura” (Sl 88:3). Onde a NVI traduz por

“sepultura”, é o Sheol que aparece no texto hebraico. Se o salmista sabia que ele iria

ao Sheol caso morresse, é evidente que não passava pela sua cabeça que o Sheol

era uma habitação apenas dos ímpios (ou seja, um “inferno”). Quando recuperado

de sua enfermidade, ele louvou ao Senhor dizendo que “grande é o teu amor para

comigo; tu me livraste das profundezas do Sheol” (Sl 86:13). Em outra ocasião,

também próximo da morte, ele escreveu:

“As cordas do Sheol me envolveram; os laços da morte me alcançaram. Na


minha aflição clamei ao Senhor; gritei por socorro ao meu Deus. Do seu

27
templo ele ouviu a minha voz; meu grito chegou à sua presença, aos seus

ouvidos” (Salmos 18:4-6)

Estas palavras são quase que repetidas à risca no Salmo 116, onde ele escreve:

“Ele inclinou os seus ouvidos para mim; eu o invocarei toda a minha vida. As

cordas da morte me envolveram, as angústias do Sheol vieram sobre mim;


aflição e tristeza me dominaram. Então clamei pelo nome do Senhor: ‘Livra-
me, Senhor!’. O Senhor é misericordioso e justo; o nosso Deus é compassivo.

O Senhor protege os simples; quando eu já estava sem forças, ele me salvou”

(Salmos 116:2-6)

Tão certo o salmista estava de que o Sheol era o destino natural de todos os homens

que ele fez a pergunta retórica: “Que homem pode viver e não ver a morte, ou livrar-

se do poder da sepultura?” (Sl 89:48). Aqui, “sepultura” é mais uma vez a tradução

do hebraico Sheol, o que mostra que para o salmista o Sheol estava longe de ser

uma morada apenas de ímpios. Note que ele não pergunta “que homem ímpio

pode livrar-se do Sheol”, mas fala do gênero humano, de uma forma geral5.

O salmista estava consciente de que “Deus redimirá a minha vida (nephesh) da

sepultura [Sheol] e me levará para si” (Sl 49:15). Embora a NVI traduza por “vida” e

“sepultura”, é nephesh (alma) e Sheol que constam no original hebraico. Note que

ele não diz que Deus não permitiria que sua alma passasse pelo Sheol, mas sim que

Deus redimiria a sua alma dali. A palavra usada no hebraico para “redimir” é padah,

5
Ainda que hajam exceções pontuais, como Enoque e Elias, que não passaram pela morte porque foram
arrebatados vivos, como os crentes serão na volta de Jesus.

28
que significa «resgatar, redimir, livrar; ser resgatado»6. Esta é uma das primeiras

alusões à ressurreição final na Bíblia, e mostra que para o salmista não apenas o

corpo seria ressuscitado, mas também sua nephesh.

Observe ainda que ele seria resgatado do Sheol, que é onde ele estaria antes disso,

e que só então veria a Deus, o que fica claro na continuação do verso (“...e me levará

para si”). Para o salmista, portanto, ele desceria de corpo e alma ao Sheol, e dali seria

resgatado em algum momento para a presença do Senhor (o que ocorrerá na

ressurreição dos mortos). Isso confronta toda a visão de que só os ímpios vão ao

Sheol, ou de que é possível estar na presença de Deus no Sheol, ou de que o Sheol

seja o próprio céu ou inferno.

O próprio Ezequias, que é descrito como um rei que “fez o que era bom e certo, e

em tudo foi fiel diante do Senhor, do seu Deus” (2Cr 31:20), estava certo de que iria

para o Sheol caso morresse: “No vigor da minha vida tenho que passar pelas portas

da sepultura [Sheol] e ser roubado do restante dos meus anos?’” (Is 38:10).

Semelhantemente, quando Deus livrou Davi das mãos de Saul, que queria matá-lo,

ele cantou este cântico ao Senhor:

“As ondas da morte me cercaram; as torrentes da destruição me

aterrorizaram. As cordas da sepultura [Sheol] me envolveram; as armadilhas


da morte me confrontaram. Na minha angústia, clamei ao Senhor; clamei ao

meu Deus. Do seu templo ele ouviu a minha voz; o meu grito de socorro

chegou aos seus ouvidos” (2ª Samuel 22:5-7)

6
#6299 da Concordância de Strong.

29
Assim, o testemunho bíblico unânime é o de que todos os mortos sepultados

debaixo da terra estão no Sheol, sejam eles justos ou ímpios, o que explica por que

os personagens bíblicos mais fiéis e tementes a Deus esperavam ir ao Sheol na

morte. Isso refuta o ensino tradicional de que vamos ao céu após a morte, uma vez

que, como vimos, o céu é sempre apresentado em oposição ao Sheol, não como

uma parte do mesmo. Sendo assim, é evidente que o espírito que volta para Deus

na morte (Ec 12:7) não é uma alma imortal, como creem os imortalistas, mas o

fôlego da vida, como destacamos no capítulo 2.

Se o Sheol ou Hades fosse a habitação apenas dos ímpios – ou seja, o inferno que

popularmente conhecemos –, Jacó jamais teria dito que desceria ao Sheol para

junto de seu filho José (Gn 37:35), a não ser que ele pensasse que ele e seu filho

eram ímpios que queimariam juntos no quinto dos infernos. Jó também jamais teria

exclamado: “Se tão-somente me escondesses na sepultura [Sheol] e me ocultasses

até passar a tua ira!” (Jó 14:13). Quem em sã consciência desejaria ir para o inferno?

Neste caso, Jó estaria desejando algo pior do que a vida horrível que ele tinha

naquele momento, o que não faz o menor sentido. Como também não faz o menor

sentido queimar um lugar que já está queimando, como Deus diz que faria com o

Sheol:

“Pois um fogo foi aceso pela minha ira, fogo que queimará até às
profundezas do Sheol. Ele devorará a terra e as suas colheitas e consumirá os

alicerces dos montes” (Deuteronômio 32:22)

30
Até mesmo Russell Norman Champlin (1933-2018), que não apenas tem um livro

defendendo a imortalidade da alma como ainda tem uma abordagem espírita sobre

a vida após a morte, reconhece ao comentar este texto:

A palavra aqui traduzida (Dt 32:22) por “inferno” é Sheol. A tradução

“inferno” é um anacronismo. Nos seus primórdios, a teologia dos

hebreus entendia essa palavra hebraica como indicativa somente da

sepultura ou da morte. Posteriormente, contudo, veio a indicar um

lugar de espíritos de mortos partidos deste mundo, mas que não

seriam verdadeiras entidades humanas, porém apenas fragmentos de

energia, sem sentidos, sem memória e sem consciência. No estágio

seguinte de desenvolvimento, o Sheol tornou-se um lugar dos

espíritos humanos que se iam deste mundo; e então o Sheol aparece

dividido em dois compartimentos, um bom e o outro ruim.7

Como vimos no capítulo 1, só por ocasião da diáspora judaica é que os judeus

expostos ao helenismo adotaram ideias imortalistas oriundas da filosofia grega, e

desde então o Sheol passou a ser entendido por alguns como algo diferente

daquilo que a revelação bíblica ensinava. Na Bíblia, o Sheol é chamado de “terra de

sombras e densas trevas” (Jó 10:21), uma “terra tenebrosa como a noite” (Jó 10:22),

uma terra de esquecimento e de escuridão (Sl 88:12), em contraste com a visão de

que o Sheol é um “inferno” onde os ímpios estão queimando, pois onde há fogo, há

luz. A única conclusão que nos resta é que o Sheol não é nem o céu nem o inferno,

mas tão-somente a região subterrânea da terra onde se enterram os mortos.

7
CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo:
Candeia, 2000. v. 2, p. 880.

31
O lugar indesejável – Os textos que acabamos de conferir não apenas provam que

todos os justos esperavam ir ao Sheol após a morte – desmentindo os que dizem

que apenas os ímpios descem ao Sheol –, mas também provam que o Sheol estava

longe de ser um lugar de bem-aventurança, regozijo ou alegria na presença de

Deus e de todos os santos que partiram desta vida. Isso porque todos esses textos

tem uma coisa em comum: as pessoas envolvidas (Davi, Ezequias e etc) não

queriam ir ao Sheol de jeito nenhum. Em todas as 66 ocasiões em que o Sheol

aparece no AT e nas outras 8 vezes em que o Hades aparece no NT, não vemos uma

única pessoa desejando ir para lá.

A única exceção é Jó, que estava tão arruinado e desolado que desejava ir ao Sheol,

não porque achava que o Sheol era alguma coisa boa, mas porque na condição em

que se encontrava preferia a morte do que a vida (Jó 14:13, 17:13). Isso deveria

chamar a atenção de todos aqueles que pensam que os justos iam para uma “parte

boa” do Sheol conhecida como o “seio de Abraão”: se isso é verdade, por que

ninguém desejava ir para lá? Se de fato o Sheol fosse para os justos um lugar de

consolo e refrigério na presença dos patriarcas, de nossos amigos e familiares já

falecidos e de todos os santos que partiram desta vida, um lugar onde não há mais

dor nem sofrimento, por que todos os justos do Antigo Testamento desejavam com

todas as forças não ir para lá? Não é preciso ser um Sherlock Holmes para perceber

que alguma coisa não bate.

Sempre que algum personagem bíblico estava prestes a descer ao Sheol, ele fazia

questão de orar a Deus clamando para que isso não acontecesse (Is 38:17-19; Sl 6:4-

5), e quando Deus livrava um justo da morte, ele agradecia por não ter descido ao

32
Sheol (2Sm 22:5-7; Sl 18:5-6, 30:3, 116:2-6; Is 38:10). O Sheol nunca foi visto como

um lugar de regozijo ou refrigério, mas como a “terra do esquecimento” (Sl 88:12),

a “cova da corrupção” (Is 38:17) e o lugar de completa inatividade (Ec 9:10). “Mais

vale um cão vivo do que um leão morto” (Ec 9:4), porque quem morreu “não sabe

coisa nenhuma” (Ec 9:5) e tem sua memória “entregue ao esquecimento” (Ec 9:5).

Quando estava prestes a descer ao Sheol, o salmista disse que “a minha alma está

cheia de angústia, e a minha vida se aproxima da sepultura [Sheol]” (Sl 88:3). A

palavra aqui traduzida por “angústia” é o hebraico ra`, que significa «ruim, mau,

desagradável, maligno; que causa dor, infelicidade, miséria»8. É difícil imaginar

como o salmista estaria se sentindo desse jeito sabendo que estava tão perto de se

encontrar com Abraão, Moisés, seus entes queridos e talvez até com Deus no Sheol.

O fato do salmista ter um horror tão grande à ideia de ir ao Sheol desmantela

qualquer pretensão de interpretá-lo como um lugar de alegria e júbilo, semelhante

ao céu.

O salmista também diz que “grande é o teu amor para comigo; tu me livraste das

profundezas do Sheol” (Sl 86:13). Livrar do Sheol era um sinal do amor de Deus pelo

salmista, o que demonstra mais uma vez que o Sheol era um lugar indesejável.

Quando o salmista pergunta “que homem pode viver e não ver a morte, ou livrar-

se do poder da sepultura [Sheol]?” (Sl 89:48), ele está novamente nos mostrando

que o Sheol é um lugar para onde nem ele, nem pessoa alguma desejava ir. Assim

como ninguém em sã consciência diria que deseja “se livrar do céu”, ninguém diria

8
#7451 da Concordância de Strong.

33
que deseja se livrar do Sheol se o Sheol fosse algum lugar bom, como uma

“antessala” do céu.

Diante disso, está claro que o Sheol não era o céu nem um lugar análogo ao céu, da

mesma forma que não era o inferno nem análogo ao inferno. Todas as descrições

do Sheol, bem como o sentimento de pavor diante dele, descrevem com perfeição

os sentimentos de quem sabe que o Sheol nada mais era que as regiões

subterrâneas da terra, onde o corpo repousaria inconsciente. Isso explica por que

ninguém desejava descer ao Sheol, exceto Jó, cuja aflição era tamanha que até

mesmo o Sheol era encarado com bons olhos, da mesma forma que muitos que

vivem em terrível sofrimento preferem a morte.

Provérbios 15:24 – Contra tudo isso, os imortalistas que creem na subida iminente

ao céu após a morte se apegam a um único texto, onde Salomão supostamente

estaria dizendo que os justos não descem ao Sheol: “O caminho da vida conduz

para cima quem é sensato, para que ele não desça à sepultura [Sheol]” (Pv 15:24).

Será que esse verso se opõe a todo o caminhão de textos que atestam com toda a

clareza que o Sheol é o destino de toda a humanidade? Não tão cedo. Embora a

NVI tenha traduzido por «conduz para cima», o “conduz” (yabal ou nachah) não

consta no texto hebraico, que literalmente diz o seguinte:

’orach (caminho)

chay (vida)

ma àl (mais alto ou para cima)

sakal (ser prudente)

ma àn (por causa de)

34
suwr (desviar-se ou afastar-se)

Sheol

mattah (embaixo)

A Bible in Basic English traduz por: Acting wisely is the way of life, guiding a man

away from the underworld (“Agir sabiamente é o caminho da vida, guiando o

homem para longe do submundo”). Uma tradução mais precisa e literal, com o

mesmo sentido, seria: “Ser prudente é um caminho mais alto (ou mais elevado) de

vida, porque afasta o homem do Sheol embaixo” (alternativamente, “de descer ao

Sheol”). Em outras palavras, o texto não está falando sobre ir para o céu, mas de

seguir um caminho mais elevado que afastará o homem da morte.

O mesmo termo ma àl que a NVI traduziu como “para cima”, mas que também pode

ser traduzido como “mais alto” ou “mais elevado”, aparece em Deuteronômio 28:43

no seguinte contexto:

“O estrangeiro que está no meio de ti se elevará (ma àl) mais e mais, e tu


mais e mais descerás. Ele te emprestará a ti, porém tu não lhe emprestarás a

ele; ele será por cabeça, e tu serás por cauda” (Deuteronômio 28:43-44)

É evidente que o texto não está dizendo que o estrangeiro se elevaria-ma àl até o

céu, como se estivesse falando do destino de sua alma. “Elevar”, aqui, diz respeito

ao status que o estrangeiro desfrutaria em Israel, entre os vivos. Numerosos textos

expressam um sentido semelhante. Em Jó, lemos que Deus “faz chover sobre a terra

e envia águas sobre os campos, para pôr os abatidos num lugar alto e para que os

enlutados se alegrem da maior ventura” (Jó 5:10-11). O Salmo 20 assim começa: “O

35
Senhor te responda no dia da tribulação; o nome do Deus de Jacó te eleve em

segurança” (Sl 20:1).

No Salmo 91, vemos Deus dizendo que “também eu o livrarei; pô-lo-ei num alto

retiro, porque conheceu o meu nome” (Sl 91:14). Alguns salmos adiante, ele

escreve: “Mas ele levanta da opressão o necessitado, para um alto retiro, e

multiplica as famílias como rebanhos” (Sl 107:41). O autor de Provérbios também

diz que “torre forte é o nome do Senhor; a ela correrá o justo, e estará em alto

refúgio” (Pv 18:10). Todos esses textos usam verbos hebraicos que significam

«elevar» ou «ser colocado no alto»9, mas, obviamente, não estão falando do céu,

mas sim de uma condição elevada.

Este é o mesmo caso de Provérbios 15:24, onde o “caminho mais elevado” não é o

céu em si, mas uma vida com prudência. Viver sabiamente é o “caminho mais alto”

que afasta o homem do Sheol, ou seja, da morte. Isso não significa que uma pessoa

sábia não vá para o Sheol um dia, pois, como vimos, era um consenso que todos os

homens, incluindo os mais piedosos, desciam ao Sheol na morte. Significa apenas

que os sábios evitarão trilhar caminhos que levam à morte precoce, pois ter vida

longa na terra é uma das tônicas principais tanto de Provérbios como do Antigo

Testamento como um todo. Para citar apenas alguns exemplos do próprio livro de

Provérbios:

“O temor do Senhor prolonga a vida, mas a vida do ímpio é abreviada”


(Provérbios 10:27)

9
#7682 da Concordância de Strong.

36
“Ouça, meu filho, e aceite o que digo, e você terá vida longa” (Provérbios

4:10)

“Na mão direita, a sabedoria lhe garante vida longa; na mão esquerda,
riquezas e honra” (Provérbios 3:16)

“Pois por meu intermédio os seus dias serão multiplicados, e o tempo da sua
vida se prolongará” (Provérbios 9:11)

“Meu filho, não se esqueça da minha lei, mas guarde no coração os meus

mandamentos, pois eles prolongarão a sua vida por muitos anos e lhe darão

prosperidade e paz” (Provérbios 3:1-2)

“No caminho do perverso há espinhos e armadilhas; quem quer proteger a


própria vida mantém-se longe dele” (Provérbios 22:5)

“O ensino dos sábios é fonte de vida, e afasta o homem das armadilhas da


morte” (Provérbios 13:14)

Como se nota, uma das tônicas principais de Provérbios estava em escutar os

conselhos de sabedoria para prolongar seus dias na terra, e é neste mesmo sentido

que Provérbios 15:24 deve ser entendido. Assim, “se afastar do Sheol” não significa

“nunca ir ao Sheol”, mas multiplicar seus dias de vida na terra de modo a retardar o

quanto possível a ida ao Sheol (i.e, a morte). Isso é reconhecido até mesmo por

37
teólogos imortalistas de respeito, como é o caso do Dr. Thomas Constable, que

comenta este texto da seguinte maneira:

Todos vão para o Sheol (o túmulo) eventualmente (exceto os crentes

que experimentam o arrebatamento e não morrem). No entanto, os

sábios evitam o Sheol o máximo que podem, sendo sábios. Viver com

sabedoria tende a prolongar a vida.10

Quem também reconhece este fato é o renomado teólogo anglicano Charles John

Ellicott (1819–1905), que comenta:

O caminho de vida é superior para os sábios. Essas palavras soam

como um pequeno eco de passagens como Filipenses 3:20 e

Colossenses 3:1-2, embora o significado pretendido pelo escritor

possa ter sido apenas que o homem sábio que teme ao Senhor (Pv

1:7) é recompensado com vida longa na terra (Pv 3:16).11

Um salmo que expressa bem o sentido do texto de Provérbios é o Salmo 30:3, que

diz: “Senhor, da cova [Sheol] fizeste subir a minha alma; preservaste-me a vida para

que não descesse à sepultura”. A preservação da vida, neste caso, está atrelada ao

fato da alma não ter descido ao Sheol, o que teria acontecido se Deus não tivesse

estendido os dias de vida do salmista. Isso obviamente não significa que o salmista

nunca iria ao Sheol (já vimos inúmeros textos onde o próprio salmista o afirma

10
CONSTABLE, Thomas. DD. "Commentary on Proverbs 15:24". "Expository Notes of Dr. Thomas
Constable", 2012.
11
ELLICOTT, Charles John. "Commentary on Proverbs 15:24". "Ellicott's Commentary for English Readers",
1905.
38
expressamente), mas sim que Deus o livrou de uma ida precoce ao Sheol ao livrá-lo

da morte. O próprio autor de Provérbios volta a expressar este sentido no capítulo

23, onde diz:

“Não evite disciplinar a criança; se você a castigar com a vara, ela não
morrerá. Castigue-a, você mesmo, com a vara, e assim a livrará da

sepultura” (Provérbios 23:13-14).

A parte que diz “a livrará da sepultura” é literalmente “livrará sua alma do Sheol”, já

que o hebraico traz aqui nephesh e Sheol. Isso evidentemente não se opõe aos

inúmeros textos bíblicos que mostram a alma de pessoas justas no Sheol, porque a

intenção não era dizer que o filho jamais iria um dia para o Sheol, mas sim que a

criança não morreria precocemente, por desobedecer aos pais. Não à toa Paulo diz

que “honra teu pai e tua mãe’ é o primeiro mandamento com promessa: ‘Para que

tudo te corra bem e tenhas longa vida sobre a terra’” (Ef 6:2-3). Caso semelhante

seria se eu dissesse a um fumante compulsivo: “Se você continuar fumando assim,

você vai morrer”. Obviamente eu não estaria dizendo que quem não fuma jamais

morrerá, mas sim que o fumante provavelmente morrerá mais cedo.

Corrobora com essa conclusão o fato de que jamais é dito em Provérbios ou em

qualquer parte do Antigo Testamento que o justo vai pro céu depois da morte. Pelo

contrário, somos sempre informados que o lar dos salvos é a terra, tanto no Antigo

(Sl 37:29, 25:3; Pv 2:21) como no Novo Testamento (Mt 5:5; Ap 21:2-3). Se Provérbios

15:24 estivesse falando de ir morar no céu após a morte, este texto não seria apenas

uma exceção à regra, mas estaria contradizendo todo o resto da Bíblia, incluindo o

próprio livro, que diz que “os justos habitarão na terra, e os íntegros nela

39
permanecerão” (Pv 2:21). A ideia de ir morar no céu é estranha às Escrituras,

estranha ao Antigo Testamento e estranha ao próprio autor de Provérbios.

O Sheol e o Paraíso – Temos, então, o seguinte panorama: de um lado, os textos

que os imortalistas usam para dizer que vamos imediatamente para o céu após a

morte; do outro, todo o testemunho bíblico que unanimemente atesta que o lar de

todos nós é o Sheol, um lugar em oposição ao céu, de acordo com os mesmos

escritores inspirados. Assim, toda a tentativa de interpretar textos como Eclesiastes

12:7, o “partir e estar com Cristo” (Fp 1:23) e o “hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc

23:43) como uma alma que sai do corpo em direção ao céu é frustrada pelo realismo

bíblico de que os mortos não vão imediatamente ao céu ou ao inferno, mas

permanecem no Sheol até a ressurreição dos mortos.

Este último texto em particular é um “racha cuca” para os imortalistas, pois, ao

afirmar que o ladrão estaria naquele mesmo dia no Paraíso, eles são obrigados a

concluir que o Paraíso fica no Sheol, como afirma Pickering ao comentar o texto:

“’Paraíso’ aqui diz respeito à metade do Hades (Sheol no AT) destinada aos finados

justos. Hades é tipo a ‘sala de espera’ onde os espíritos dos finados aguardam o

juízo final. Em Lucas 16:22 leva o nome de ‘seio de Abraão’”12. Mas se o Paraíso está

no Hades, e Jesus classificou o Hades como antagônico ao céu (Mt 11:23), como

explicar o texto em que Paulo diz que o Paraíso está justamente no céu?

“Conheço um homem em Cristo que há catorze anos foi arrebatado ao


terceiro céu. Se foi no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe. E sei que

12
PICKERING, Wilbur. Comentários em Lucas 23:43. Disponível em: <https://www.prunch.com.br/wp-
content/uploads/2020/01/Lucas.pdf>. Acesso em: 13/09/2020.

40
esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei, mas Deus o sabe – foi

arrebatado ao paraíso e ouviu coisas indizíveis, coisas que ao homem não é

permitido falar” (2ª Coríntios 12:2-4)

No verso 2, Paulo diz que foi arrebatado ao terceiro céu, onde ouviu coisas

indizíveis da parte de Deus. Ele abre um parêntesis no verso 3 para sublinhar que

não sabia se estava lá fisicamente, e então volta a dizer que foi arrebatado ao

Paraíso, retomando o ponto anterior. Isso prova que o terceiro céu é a mesma coisa

que o Paraíso, para onde Paulo foi arrebatado. O “Paraíso”, portanto, não era um

nome dado à “metade do Hades”(!) ou ao tal “seio de Abraão”, mas a uma parte do

próprio céu, onde Deus habita. O termo aqui traduzido por “Paraíso” é paradeisos,

que é exatamente a mesma palavra usada em Lucas 23:43.

O paradeisos só volta a ser citado novamente no Apocalipse, onde Cristo diz que

“ao vencedor darei o direito de comer da árvore da vida, que está no paraíso de

Deus” (Ap 2:7). Aqui vemos que a árvore da vida está no Paraíso, mas no capítulo 22

vemos a árvore da vida presente na «cidade santa» (Ap 22:2,14,19), chamada de «a

Nova Jerusalém» (Ap 21:2), a mesma que desce dos céus à terra ao final do milênio,

para ser a morada eterna dos santos (Ap 21:2-3). Isso significa que o Paraíso está

hoje no céu, mas um dia descerá à terra e aqui estará para sempre, à semelhança

do jardim do Éden, que Deus criou como um paraíso terrestre onde a humanidade

passaria a eternidade se não tivesse pecado.

Se o Paraíso se encontra hoje no céu, a única coisa que podemos concluir é que o

Paraíso não é um compartimento do Hades, como afirma Pickering e tantos outros

imortalistas que literalizam a parábola do rico e Lázaro. O Hades não é o céu e

41
tampouco é um compartimento do mesmo (Mt 11:23), o que nos leva à inevitável

conclusão de que o ladrão da cruz não esteve naquele mesmo dia com Jesus no

Paraíso, uma vez que o seu destino, como o de todos os demais, era descer ao

Sheol/Hades, em vez de subir ao Paraíso, no terceiro céu. O ladrão não poderia estar

no Paraíso e no Hades ao mesmo tempo, se são dois lugares completamente

diferentes. E o mesmo se aplica a qualquer um que supostamente estaria na

presença de Deus.

Os justos foram transferidos do Sheol para o céu? – Para tentar resolver parte do

problema, alguns criaram a ideia de que os mortos iam para o Sheol até a morte de

Cristo, quando então Jesus tirou os salvos dali e os levou ao céu, deixando no Sheol

apenas os ímpios. Desde então, dizem eles, o justo que morre vai direto pro céu,

mas o ímpio continua indo ao Sheol. Como é óbvio, essa ideia criativa e fantasiosa

formulada na base do desespero não encontra qualquer respaldo bíblico, embora

não faltem textos mutilados com este objetivo. Em seu livro, toda a argumentação

de Natanael Rinaldi a este respeito se limita a isso aqui:

Paulo usa a linguagem de transição ou mudança, quando fala de

Cristo como levando cativo o cativeiro, isto é, tirando os justos do

Hades (seção denominada Seio de Abraão) e transportando-os para

o céu (Ef 4:8-9). Posteriormente, pois na ressurreição de Cristo, os

cristãos vão ao céu por ocasião da morte, a fim de esperar a

ressurreição e o estado eterno.13

O texto que ele cita é Efésios 4:8-9, que diz o seguinte:

13
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 98.

42
“Por isso, diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu

dons aos homens. Ora, que quer dizer subiu, senão que também havia

descido até às regiões inferiores da terra?” (Efésios 4:8-9)

Se você não conseguiu ver neste texto Jesus “tirando os justos da sessão

denominada Seio de Abraão do Hades e transportando-os para o céu”, não se sinta

sozinho. Não se espante se às vezes (ou sempre) eles enxergarem coisas sinistras

nos textos que simplesmente não estão ali. Para quem acredita em fantasminha fora

do corpo, enxergar coisas a mais nos textos é fichinha. Talvez até estejam ali, mas

nós não conseguimos ver porque são tão invisíveis quanto a alma imortal. De fato,

a interpretação que Rinaldi e outros imortalistas fazem deste texto é tão surreal que

chega a ser criticada até por teólogos imortalistas de calibre mais alto, como Geisler,

que escreve:

Quando Cristo “levou cativo o cativeiro”, não estava levando amigos

para o céu, mas trazendo inimigos a uma prisão. É uma referência à

sua vitória sobre as forças do inimigo. Os cristãos não são “cativos” no

céu. Não somos forçados a ir para lá contra a nossa própria e livre

escolha (veja Mt 23:37; 2Pe 3:9).14

Sobre o “descer às regiões inferiores da terra”, ele comenta:

14
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 371.

43
A expressão “até as regiões inferiores da terra” não é uma referência

ao inferno, mas ao túmulo. Até mesmo o ventre de uma mulher é

descrito como sendo “profundezas da terra” (Sl 139:15). Essa

expressão significa simplesmente covas, túmulos, lugares fechados na

terra, em oposição a partes altas, como montanhas.15

A situação fica ainda mais insustentável para os imortalistas quando observamos

que o termo aichmalosia, aqui traduzido como “cativeiro”, também significa «uma

multidão cativa», de acordo com a Concordância de Strong16, «equivalente a

prisioneiros», de acordo com o léxico de Thayer17. É por isso que a NVI traduz por

“levou cativo muitos prisioneiros, e deu dons aos homens” (Ef 4:8). Teria Jesus feito

os salvos de prisioneiros, levando-os cativos para o céu? A simples hipótese chega

a ser ridícula.

Na verdade, Paulo estava apenas citando o Salmo 68:18, que por sua vez alude ao

que acontecia tipicamente nas guerras da época. Quando um exército enfrentava o

outro, o vencedor fazia prisioneiros do exército derrotado e os levava em cativeiro

para servirem como escravos, além de se apoderar dos despojos da guerra,

distribuindo-os entre si e com o seu povo. Foi isso o que Jesus fez quando triunfou

sobre as forças das trevas na cruz do Calvário e em sua ressurreição: ele

espiritualmente “despojou os poderes e as autoridades, e fez deles um espetáculo

público, triunfando sobre eles na cruz” (Cl 2:15).

15
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 371.
16
#161 da Concordância de Strong.
17
#161 do léxico de Thayer.
44
A interpretação de que Jesus fez os próprios salvos cativos e os levou como

prisioneiros ao céu é não apenas delirante, mas também extremamente recente na

história da interpretação bíblica. Quando pesquisei a este respeito nos mais

diversos comentários bíblicos escritos pelos teólogos imortalistas mais renomados

dos séculos passados, fiquei bastante surpreso em constatar que nenhum,

literalmente nenhum estudioso defendia tamanha aberração (o que inclui os

imortalistas mais convictos e militantes, como João Calvino). Era ponto pacífico que

o “levou cativo o cativeiro” representava a vitória espiritual de Cristo sobre os

principados e potestades, não uma remoção dos salvos do “seio de Abraão” para o

céu.

Para não encher o livro inteiro de citações, selecionei apenas algumas. Podemos

começar com o famoso teólogo metodista Adam Clarke (1760-1832), que assim

comenta o texto:

Todo este versículo, tal como no salmo, parece referir-se a um triunfo

militar. Tome a seguinte paráfrase: Tu ascendeste ao alto: o

conquistador foi colocado em uma carruagem muito elevada. Levaste

cativo o cativeiro: os reis e generais conquistados eram geralmente

amarrados atrás da carruagem do conquistador, para enfatizar o

triunfo. Tu destes presentes aos homens: nessas ocasiões, o

conquistador costumava jogar moedas no meio da multidão.18

O ministro presbiteriano Albert Barnes (1798-1870) também escreveu:

18
CLARKE, Adam. "Commentary on Ephesians 4:8". "The Adam Clarke Commentary".

45
Ele não apenas subjuga seu inimigo, mas ele conduz seus cativos em

triunfo. A alusão é aos triunfos públicos dos conquistadores,

especialmente como celebrado entre os romanos, em que os cativos

eram conduzidos em cadeias (Tácito, Ann. Xii. 38), e conforme o

costume, em tais triunfos eram distribuídos presentes entre os

soldados; compare também Juízes 5:30, onde parece que este

também era um costume antigo em outras nações.19

John Gill (1697-1771), ministro batista do século XVIII e autor de uma conceituada

Exposição do Novo Testamento, comentou:

Ele levou cativo ao cativeiro. É a expressão das conquistas e do triunfo

de Cristo sobre o pecado, Satanás, o mundo, a morte e a sepultura; e,

de fato, todo inimigo espiritual dele e de seu povo, especialmente o

diabo, que leva os homens cativos à sua vontade e, portanto, é

chamado cativeiro, e seus principados e potestades, a quem Cristo

destruiu e triunfou; a alusão é aos triunfos públicos dos romanos, nos

quais os cativos eram conduzidos em cadeias e expostos ao escárnio

público.20

Jamieson (não o que você está pensando, mas o autor de um dos comentários

bíblicos mais famosos do final do século XVIII) também disse:

Cativeiro. Isto é, um bando de cativos. No salmo, os inimigos cativos

de Davi. No sentido antitípico, os inimigos de Cristo, o Filho de Davi: o

19
BARNES, Albert. "Commentary on Ephesians 4:8". "Barnes' Notes on the Whole Bible", 1870.
20
GILL, John. "Commentary on Ephesians 4:8". "The New John Gill Exposition of the Entire Bible".

46
diabo, a morte, a maldição e o pecado (Cl 2:15; 2Pe 2:4) foram

conduzidos, por assim dizer, em uma procissão triunfal como um sinal

da destruição do inimigo.21

Marvin Vincent (1834-1922), que foi ministro da Igreja Metodista (1858-1862) e da

Presbiteriana (1863-1873), comentou:

Cativeiro. Resumo para o corpo de cativos (cf. Lc 4:18). Os cativos não

são os redimidos, mas os inimigos do reino de Cristo: Satanás, o

pecado e a morte. Compare com Colossenses 2:15 e 2ª Coríntios

2:14.22

John Wesley (1703-1791), um dos maiores vultos da história do Cristianismo e

precursor do movimento metodista, escreveu:

Quando subiu ao alto, levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens.

Ele triunfou sobre todos os seus inimigos, Satanás, o pecado e a

morte, que antes escravizavam todo o mundo, aludindo ao costume

dos antigos conquistadores, que conduziam aqueles que haviam

conquistado acorrentados atrás deles. E como eles também

costumavam dar donativos ao povo, quando eles voltavam da vitória,

ele deu dons aos homens – tanto os dons ordinários quanto os

extraordinários do Espírito.23

21
JAMIESON, Robert, D.D.; FAUSSET, A. R.; BROWN, David. "Commentary on Ephesians 4:8".
"Commentary Critical and Explanatory on the Whole Bible", 1871.
22
VINCENT, Marvin R. DD. "Commentary on Ephesians 4:8". "Vincent's Word Studies in the New
Testament", 1887.
23
WESLEY, John. "Commentary on Ephesians 4:8". "John Wesley's Explanatory Notes on the Whole Bible",
1765. 47
John Trapp (1601-1669), comentarista bíblico anglicano que exerceu grande

influência em pregadores como Charles Spurgeon, dissertou:

Ele levou cativo o cativeiro. Como nos triunfos romanos, o vencedor

subia ao Capitólio em uma carruagem de Estado, os prisioneiros

seguiam a pé com as mãos amarradas atrás, e eles jogavam algumas

moedas para serem recolhidas pelo povo comum; assim também,

Cristo, no dia de sua solene entrada em seu reino celestial, triunfou

sobre o pecado, a morte e o inferno.24

O ministro batista Peter Pett também disse:

A imagem é de um senhor conquistador liderando prisioneiros de

guerra e recebendo tributo, e dando tributo àqueles que se

mostraram fiéis. Portanto, Paulo tem em mente aqui o triunfo de

Cristo na cruz, derrotando os poderes do inimigo (Cl 2:15) e dando

presentes ao Seu povo fiel.25

O teólogo e pregador wesleyano Daniel Whedon (1808-1885) igualmente assinala:

Dr. Craven, o editor americano de “Revelation” de Lange, afirma que a

frase implica em um resgate de amigos do cativeiro nas mãos de

24
TRAPP, John. "Commentary on Ephesians 4:8". “John Trapp Complete Commentary”, 1865.
25
PETT, Peter. "Commentary on Ephesians 4:8". "Peter Pett's Commentary on the Bible”, 2013.

48
inimigos. Mas o verbo grego, traduzido pela frase “levado cativo”, ou

“capturado”, deve significar reduzir ao cativeiro, não livrar dele.26

O pastor e escritor contemporâneo Mark Dunagan também comentou:

Os cativos não são os redimidos, mas os inimigos do reino de Cristo,

Satanás, o pecado e a morte. Mesmo que os cristãos já tenham sido

escravos do pecado (Rm 6:13,16), os "cativos" levados cativos no

versículo acima são os inimigos de Deus. Outras Escrituras ensinam a

mesma verdade, que por meio da cruz Cristo derrotou Seus inimigos

(Cl 2:15; Lc 11:20-22; Ap 1:17-18; Hb 2:14-15; At 2:22-24; 1Jo 3:8). Isso

se encaixa bem com o salmo citado. Os cativos são inimigos de Cristo;

assim como no salmo, eles são os inimigos de Israel e do Deus de

Israel. Como em um triunfo literal, os chefes do exército inimigo são

levados cativos. O poder e a influência do diabo foram limitados para

aqueles que optam por desobedecer a Cristo. Os obedientes estão

livres do terror da morte (Hb 2:14-15). Eles estão livres dos enganos

do diabo (Ef 4:14; 2Co 2:11). Eles têm as armas para resistir aos ataques

do diabo (Ef 6:10-18; Tg 4:7).27

Charles Hodge (1797-1878), pastor presbiteriano e um dos maiores expoentes do

calvinismo no século XIX, escreveu:

O Messias é representado pelo salmista como um conquistador,

conduzindo cativos em triunfo e carregado de despojos que distribui

26
WHEDON, Daniel. "Commentary on Ephesians 4:8". "Whedon's Commentary on the Bible", 1874.
27
DUNAGAN, Mark. "Commentary on Ephesians 4:8". "Mark Dunagan Commentaries on the Bible", 1999.

49
aos seus seguidores. Assim, Cristo venceu. Ele destruiu aquele que

tem o poder da morte, ou seja, o diabo. Ele libertou aqueles que pelo

medo da morte estavam sujeitos à escravidão (Hb 2:15). Tendo

derrotado principados e potestades, ele os exibiu publicamente,

triunfando sobre eles (Cl 2:15). “Quando um homem forte, bem

armado, guarda sua casa, seus bens estão seguros. Mas quando

alguém mais forte o ataca e vence, tira-lhe a armadura em que

confiava e divide os despojos” (Lc 11:21-22). Esse é o modo familiar de

representação a respeito da obra de Cristo. Ele capturou Satanás.28

Até mesmo Calvino (1509-1564), a quem muito se deve o fato da Reforma ter

adotado a visão imortalista, comentou Efésios 4:8 nas seguintes palavras:

Ele levou cativo o cativeiro. Cativeiro é um substantivo coletivo para

inimigos cativos, e o significado claro é que Deus reduziu seus

inimigos à sujeição, o que foi mais plenamente realizado em Cristo do

que de qualquer outra forma. Ele não só obteve uma vitória completa

sobre o diabo, o pecado, a morte e todo o poder do inferno, mas a

partir dos rebeldes ele forma todos os dias “um povo voluntário” (Sl

110:3) quando ele subjuga por sua palavra a obstinação da nossa

carne. Por outro lado, seus inimigos – cuja classe todos os homens

perversos pertencem – são mantidos presos por correntes de ferro e

são impedidos por seu poder de exercer sua fúria além dos limites que

ele designa.29

28
HODGE, Charles. "Commentary on Ephesians 4:8". “Hodge's Commentary on Romans, Ephesians and
First Corintians”.
29
CALVIN, John. "Commentary on Ephesians 4:8". "Calvin's Commentary on the Bible", 1840.

50
Como você pode ver, o consenso unânime entre os próprios teólogos imortalistas

mais conceituados dos séculos passados era que os “prisioneiros” levados em

“cativeiro” representavam a vitória espiritual de Cristo sobre as forças das trevas

(Satanás, o pecado e o mal). Aquilo que os comandantes de guerra faziam com o

exército derrotado é usado como metáfora para ilustrar o que Jesus fez

espiritualmente ao derrotar os principados e potestades na cruz do Calvário, e isso

não tem nada a ver com levar cativo os próprios salvos ao céu, numa viagem

intergaláctica do seio de Abraão para o Paraíso. Isso está em conformidade com os

vários textos bíblicos que expressam a mesma ideia, como Colossenses 2:13-15, que

diz:

“Ele nos perdoou todas as transgressões, e cancelou a escrita de dívida, que

consistia em ordenanças, e que nos era contrária. Ele a removeu, pregando-a


na cruz, e, tendo despojado os poderes e as autoridades, fez deles um

espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Colossenses 2:13-15)

A mesma linguagem que Paulo emprega em Efésios 4:8 também é usada aqui.

Ambos os textos falam daquilo que Jesus fez ao triunfar sobre o inimigo na cruz,

ambos os textos aludem ao espetáculo público que o conquistador fazia com os

prisioneiros do exército adversário e ambos os textos mencionam o

despojo/presentes. No caso de Efésios 4:8, é dito que Cristo «deu dons (presentes)

aos homens», o que, como vimos, era uma prática recorrente do exército vitorioso,

que tomava os despojos do adversário e os repartia com o seu povo. Os dons

também não se referem a uma ida dos salvos ao céu, mas aos dons ministeriais,

como prossegue Paulo:

51
“Quando ele subiu em triunfo às alturas, levou cativo muitos prisioneiros, e

deu dons aos homens. Que significa ‘ele subiu’, senão que também descera

às profundezas da terra? Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de


todos os céus, a fim de encher todas as coisas. E ele designou alguns para
apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para

pastores e mestres, com o fim de preparar os santos para a obra do

ministério, para que o corpo de Cristo seja edificado, até que todos

alcancemos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, e

cheguemos à maturidade, atingindo a medida da plenitude de Cristo”

(Efésios 4:8-13)

A ideia absurda e disparatosa de que Cristo levava em cativeiro o seu próprio povo

para o céu só veio a surgir em tempos recentes, quando teólogos imortalistas bem

menos sérios e sem qualquer escrúpulo moral precisaram de um pretexto sórdido

que justificasse a ida imediata da alma do salvo ao céu após a morte, sem ter que

negar a clareza de tantos textos bíblicos do Antigo Testamento que expressamente

colocam todos indistintamente no Sheol. Então criaram a grande gambiarra

teológica que caiu como uma luva, ao deslocarem os salvos de um lugar para outro

depois da morte de Cristo, mesmo sem qualquer respaldo bíblico (e inclusive às

custas de distorções bizarras como a de Efésios 4:8).

O outro texto tirado vergonhosamente do contexto para apoiar a tese da

transferência intergaláctica dos salvos do seio de Abraão para o Paraíso é o trecho

final de Hebreus 2:13, que diz: “Aqui estou eu com os filhos que Deus me deu”. Para

alguns imortalistas, isso significaria que quando Cristo entrou no céu ele veio

52
acompanhado das almas dos justos teletransportadas do Hades para o Paraíso, e é

nisso que consistiria a expressão “aqui estou eu com os filhos que Deus me deu”. O

problema com essa interpretação é que o próprio verso seguinte explica quando

isso aconteceu, e de que tipo gente está falando:

“Portanto, visto que os filhos são pessoas de carne e sangue, ele também
participou dessa condição humana, para que, por sua morte, derrotasse
aquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo” (Hebreus 2:14)

Como se vê, o autor não estava falando de almas incorpóreas fora do corpo, mas

de pessoas de carne e sangue (αἵματος καὶ σαρκός). Uma vez que um espírito não

tem carne ou sangue, é evidente que ele não estava falando de almas fora do corpo,

mas de pessoas fisicamente presentes. Por isso o texto prossegue dizendo que

Jesus «participou dessa condição humana», já que se referia não ao que Jesus fez

entre a sua morte e ressurreição, mas justamente à sua encarnação. Em outras

palavras, os “filhos que Deus me deu” são os homens e mulheres que seguiram

Jesus quando ele esteve na terra, não um grupo de almas desencarnadas que Jesus

levou para o céu após a morte.

Outro texto por vezes usado para provar que Jesus tirou os salvos do seio de Abraão

no Hades e os teletransportou para a presença de Deus no céu está em Apocalipse

1:18, quando Jesus diz que tem as chaves da morte e do Hades:

“Sou aquele que vive. Estive morto mas agora estou vivo para todo o sempre!

E tenho as chaves da morte e do Hades” (Apocalipse 1:18)

53
Um bom observador deve ter notado que não há nada no texto que sugira que os

salvos foram transferidos de uma parte a outra do universo, o que é claramente ir

“além daquilo que está escrito” (1Co 4:6). A bem da verdade, o texto nem sequer diz

que Jesus tomou as chaves do diabo, só diz que ele está em posse das chaves.

Presumimos isso justamente por causa de textos como Colossenses 2:13-15 e

Efésios 4:8, que mostram o triunfo espiritual de Cristo sobre as forças das trevas, por

ocasião de sua vitória na cruz e por sua ressurreição.

A ideia transmitida nestes textos não é que Jesus foi ao inferno e ali literalmente

arrancou as chaves das mãos do diabo, mas que Cristo, como “as primícias dos que

dormem” (1Co 15:23), venceu o império da morte por meio de Sua ressurreição

gloriosa e assim antecipou a nossa própria ressurreição no último dia, quando

seremos ressuscitados do Hades assim como ele foi. Por isso Paulo diz que “da

mesma forma como em Adão todos morrem, em Cristo todos serão vivificados. Mas

cada um por sua vez: Cristo, o primeiro; depois, quando ele vier, os que lhe

pertencem” (1Co 15:22-23).

Paulo diz que Cristo, “tendo despojado os poderes e as autoridades, fez deles um

espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Cl 2:15). Obviamente, ele não

estava falando de um espetáculo público literal enquanto Jesus morria na cruz, mas

sim de um espetáculo espiritual, onde as forças do mal eram derrotadas,

despojadas e humilhadas espiritualmente. Da mesma forma, Jesus não tomou as

chaves das mãos do diabo literalmente, como creem certas pessoas que chegam a

afirmar que Jesus desceu até o inferno, da mesma forma que não entregou uma

chave literal para Pedro (Mt 16:19) e para os demais apóstolos (Mt 18:18). As chaves

são um símbolo de autoridade. Quando Jesus diz que tem as chaves da morte e do

54
Hades, o que ele quer dizer é que toda autoridade lhe foi dada (Mt 28:18), até

mesmo sobre o império da morte.

E como Jesus tem a autoridade sobre o Hades, ele pode ressuscitar qualquer pessoa

dali, no último dia. É isso o que Paulo alude em 1ª Coríntios 15:54-55, que diz:

“E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é


mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra que está

escrita: Tragada foi a morte na vitória. Onde está, ó morte, o teu aguilhão?

Onde está, ó inferno, a tua vitória?” (1ª Coríntios 15:54-55)

O termo que a ACF traduziu como “inferno” é o Hades, no original grego (que, como

vimos, é o equivalente ao Sheol do Antigo Testamento). Este texto prova que os

justos permanecerão no Hades/Sheol até a ressurreição do último dia, pois é só

neste momento que Paulo diz que o Hades será derrotado. Se os justos já tivessem

deixado o Hades na época de Cristo, o Hades já teria sido derrotado há milhares de

anos. E antes que alguém diga que essa ressurreição da qual Paulo se refere diz

respeito apenas aos ímpios, Paulo claramente fala em nome dos cristãos quando

diz que “nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados” (v. 51), e

também quando escreve poucos versos antes:

“Visto que a morte veio por meio de um só homem, também a ressurreição

dos mortos veio por meio de um só homem. Pois da mesma forma como em
Adão todos morrem, em Cristo todos serão vivificados. Mas cada um por sua
vez: Cristo, o primeiro; depois, quando ele vier, os que lhe pertencem” (1ª

Coríntios 15:21-23)

55
Não é a ressurreição dos ímpios que quebra os aguilhões da morte, mas justamente

a ressurreição dos justos, que a morte não consegue reter. Assim, é perfeitamente

claro que os justos permanecerão no Hades até a ressurreição na volta de Jesus,

quando então o próprio Hades será derrotado. Isso não apenas prova que os salvos

que falecem permanecem descendo ao Sheol e não subindo ao céu, como refuta a

separação esdrúxula que os imortalistas fazem entre o Hades para os ímpios e o

“seio de Abraão” para os justos. Para Paulo, os próprios justos estão no Hades, e lá

permanecerão até que o Hades seja vencido na ressurreição.

Conclusão – Em suma, os imortalistas não tem qualquer evidência bíblica séria de

que Jesus transferiu os justos do Sheol para o céu, onde Deus habita. Os poucos

textos citados para este fim não passam de distorções bizarras e vergonhosas, que

só servem para demonstrar o quanto eles precisam apelar aos malabarismos mais

bárbaros na vã tentativa de dar algum sentido à doutrina que eles criaram. Ao invés

de tirar suas conclusões a partir da Bíblia, eles fazem justamente o oposto,

procurando “brechas” na Escritura e deturpando os textos mais simples para

encaixar nela a imortalidade da alma, pois sem apelar desse jeito nada faz sentido

na teologia imortalista.

A razão pela qual os imortalistas tiveram que criar esse arranjo teológico é fácil de

entender, já que é o único jeito de conciliar, ao menos parcialmente, os textos que

eles usam para dizer que vamos imediatamente ao céu após a morte com os textos

que dizem que o destino de todos é o Sheol, embaixo da terra. Como vimos, de

acordo com eles, Jesus prometeu ao ladrão da cruz que estaria naquele mesmo dia

com ele no Paraíso (Lc 23:43), que segundo Paulo fica no terceiro céu, onde Deus

56
habita (2Co 12:2-4). No entanto, se Jesus esteve no Hades após a morte (At 2:27) e

se o Sheol/Hades é o destino de todos os que morrem (Jó 3:19; Sl 49:15, 31:17),

como o ladrão da cruz poderia estar naquele mesmo dia no Paraíso?

Da mesma forma, eles dizem que Paulo esperava estar com Cristo como um espírito

incorpóreo num estado intermediário (Fp 1:23), e sabemos que Jesus está

assentado à direita do Pai, no céu (At 7:56; Lc 22:69; Mc 16:19). Mas se todos descem

ao Sheol na morte, como Paulo poderia estar no céu? E como poderia Abraão estar

no céu com Deus, se na parábola do rico e Lázaro (que eles interpretam

literalmente) ele está geograficamente próximo do rico no Hades, a ponto de

conseguir conversar com ele (Lc 16:24-31)?

E mais: se o espírito é a própria alma imortal, como poderiam Jesus e Estêvão

entregar o espírito a Deus (Lc 23:46; At 7:59), se eles iriam para o Sheol/Hades após

a morte, e não para a presença de Deus? Apelar para a onipresença de Deus não

resolve o problema, pois se fosse assim nós já estaríamos na presença de Deus hoje,

já que a onipresença dEle obviamente abrange a própria terra. A única solução seria

dizer que o Sheol/Hades está no próprio céu onde Deus habita visivelmente, mas,

como vimos, isso esbarra em todos os textos que contrastam um e outro – o céu

em cima, e o Sheol/Hades embaixo (Mt 11:23; Lc 10:15).

É por essas e outras que os imortalistas tiveram que arrumar um jeito de resolver o

problema, inventando a lendária transferência de lugar dos salvos entre a morte e

a ressurreição de Cristo, o que nem mesmo resolveria todos os problemas, já que

desde os tempos do Antigo Testamento Salomão dizia que o espírito voltava para

Deus na morte (Ec 12:7), o que para os imortalistas se refere à alma imortal. O

57
próprio fato deles precisarem apelar para uma tese tão excêntrica e sem qualquer

fundamento bíblico mostra o quanto a contradição é mesmo insolúvel, a ponto de

ser preciso uma engenharia colossal para explicar o inexplicável, à custa dos textos

bíblicos grosseiramente amputados.

• Sheol, sepultura, pó e cova

Imortalistas inutilmente argumentam que a Bíblia distingue o Sheol da sepultura, e

por isso não podem ser o mesmo. Rinaldi, por exemplo, escreve que “qeber

(sepultura) e Sheol são sempre contrastadas e nunca equiparadas. Qeber é o lugar

do corpo, enquanto que Sheol (Hades) é o lugar do espírito e da alma”30. De fato,

ele acerta quando diz que o Sheol não é uma mera sepultura individual, já que o

Sheol compreende toda a região subterrânea e não um simples túmulo. No entanto,

é simplesmente falso, para não dizer mentiroso, que “qeber é o lugar do corpo,

enquanto que Sheol é o lugar do espírito e da alma”. Quem afirma isso o faz de má-

fé ou por uma ignorância extraordinária.

Isso me faz lembrar uma antiga querela que tive com o pastor imortalista Jamierson

Oliveira, em 2015. Na ocasião, ele propôs aos mortalistas o seguinte desafio:

“Você poderia me dar uma única referência bíblica de pessoas colocando

corpos físicos no Sheol ou no Hades, e alma ou espírito indo para a sepultura


ou túmulo?”

30
RINALDI, Natanael. Imortalidade Condicional ou Sono da Alma. São Paulo: Vida Cristã, 2019, p. 94.

58
Eu o respondi com todo o prazer, citando 17 textos bíblicos que expressamente

colocam o corpo no Sheol e a alma no túmulo31. Ele respondeu que “a minha

refutação está guardada”, mas deve ter guardado tão bem que perdeu, e até hoje

(2020) não saiu nada. A verdade é que os imortalistas são tão fracos de Bíblia que

fazem afirmações das mais categóricas e desafios dos mais ousados em torno de

coisas das quais desconhecem por completo. Nenhum deles sequer se deu ao

trabalho de conferir uma a uma das 66 ocorrências do Sheol no Antigo Testamento

ou do Hades do Novo, limitando-se a repetir os jargões imortalistas presentes em

blogs de quinta categoria.

Um exemplo de corpo físico no Sheol é o de Joabe, o comandante do exército de

Israel na época do rei Davi. Em seu leito de morte, o rei diz a seu filho e herdeiro

Salomão: “Mas, agora, não o considere inocente. Você é um homem sábio e saberá

o que fazer com ele; apesar de ele já ser idoso, faça-o descer ensanguentado à

sepultura” (1Rs 2:9). O termo aqui traduzido por “sepultura” é Sheol, no hebraico. A

não ser que o espírito de Joabe sangre, é evidente que Davi falava de seu corpo

físico, que desceria ensanguentado ao Sheol por ser atacado e morto de forma

violenta, o que aconteceu pouco depois (1Rs 2:28-34).

Um exemplo semelhante é o de Jacó, que esperava descer ao Sheol com os seus

cabelos brancos:

“Meu filho não descerá com vocês; seu irmão está morto, e ele é o único que
resta. Se qualquer mal lhe acontecer na viagem que estão por fazer, vocês

31
Disponível em: <http://heresiascatolicas.blogspot.com/2015/07/o-sheol-hades-e-uma-morada-de-
almas.html>.

59
farão estes meus cabelos brancos descerem ao Sheol com tristeza” (Gênesis

42:38)

“Agora, pois, se eu voltar a teu servo, a meu pai, sem levar o jovem conosco,
logo que meu pai, que é tão apegado a ele, perceber que o jovem não está
conosco, morrerá. Teus servos farão seu velho pai descer seus cabelos

brancos ao Sheol com tristeza” (Gênesis 44:30-31)

Novamente vemos o verbo “descer”, porque Jacó sabia que o Sheol nada mais era

que as regiões subterrâneas da terra. Ele não esperava ir para o céu depois da morte,

nem pensava que seu espírito se separaria do corpo e iria a uma outra dimensão.

Isso porque os textos são claros em dizer que seus cabelos brancos desceriam com

ele ao Sheol, não uma alma incorpórea e fluídica. Jacó sabia perfeitamente que não

era o seu espírito que estaria no Sheol, mas seu corpo físico, com cabelos, ossos e

tudo mais. Vemos isso claramente no Salmo 141:7, que diz:

“Quando eles caírem nas mãos da Rocha, o juiz deles, ouvirão as minhas

palavras com apreço. Como a terra é arada e fendida, assim foram


espalhados os seus ossos à entrada da sepultura” (Salmos 141:6-7)

Mais uma vez, o termo aqui traduzido por “sepultura” é Sheol, no hebraico. Se o

Sheol fica em outra dimensão, só podemos concluir que os ossos do ímpio que

morreu foram teletransportados para aparecerem à entrada do Sheol, na outra

dimensão. Isso ainda não chegaria a provar a imortalidade da alma, mas com

certeza provaria a imortalidade dos ossos!

60
Mas, como é óbvio, os ossos espalhados na entrada do Sheol significam apenas que

os restos mortais daquele homem estavam espalhados na terra, onde em breve

seriam soterrados assim como os seguidores de Corá e todos os que morrem, mais

cedo ou mais tarde. Em nada tem a ver com um lugar no centro da terra ou em outra

dimensão. Infelizmente, apologistas imortalistas como Jamierson e Rinaldi não

sabem disso, porque se limitam a fazer exegese em cima de traduções defeituosas

em português, em vez de conferir os originais hebraico e grego.

O fato do Sheol ser a habitação de corpos físicos, e não de almas fora do corpo, é

expressado com perfeição pelo salmista, que diz: “Voltem os ímpios ao pó, todas as

nações que se esquecem de Deus!” (Sl 9:17). O termo que a NVI traduz por “pó” e

que a ACF traduz por “inferno” é justamente o Sheol, no hebraico. Mas “inferno” é

uma tradução visceralmente equivocada, uma vez que o texto diz “voltem” (shuwb,

que significa «retornar, voltar»32). Ninguém volta para um lugar onde nunca esteve;

portanto, traduzir por “inferno” é um disparate. Neste sentido, a NVI é mais coerente

ao traduzir por “pó”, lembrando que “do pó viestes, e ao pó voltarás” (Gn 3:19), texto

que usa o mesmo verbo shuwb, no hebraico.

Em outras palavras, quando o salmista diz que os ímpios voltarão ao Sheol, o que

ele quer dizer é que eles voltarão ao pó da terra, de onde foram feitos. Aqui, o Sheol

é claramente identificado com o pó, de onde Deus fez o corpo (Gn 2:7). É o corpo

que foi feito do pó da terra (Sheol), e é o corpo que para lá retorna na morte. Nada

tem a ver com um inferno numa outra dimensão ou com qualquer coisa do tipo.

Quem também relaciona o Sheol com o pó da terra é Jó, quando diz:

32
#7725 da Concordância de Strong.

61
“Ora, se o único lar pelo qual espero é o Sheol; se estendo a minha cama nas

trevas; se digo à corrupção mortal: Você é o meu pai, e se aos vermes digo:

Vocês são minha mãe e minha irmã, onde está então minha esperança?
Quem poderá ver alguma esperança para mim? Descerá ela às portas do
Sheol? Desceremos juntos ao pó?” (Jó 17:13-16)

Jó não estava dizendo que iria para o inferno e que ali seria comido por vermes

metafísicos, mas apenas que voltaria ao pó, onde seu corpo mortal viraria comida

para os vermes. Por isso ele conclui dizendo: “Descerá ela às portas do Sheol?

Desceremos juntos ao pó?” (v. 16). O paralelismo entre as “portas do Sheol” e o “pó”

mostra claramente que Jó equiparava ambos, como sendo idênticos (como vimos

no capítulo 2, o paralelismo hebraico consistia em repetir na segunda parte do

verso o mesmo que havia sido dito na parte anterior, mas com outras palavras).

A razão pela qual o Sheol é equiparado ao pó nestes textos é porque o pó é o

“silente, empoeirado e escuro lugar para onde Deus disse a Adão que ele e seus

descendentes deveriam ir”33. O corpo que é enterrado na morte se decompõe e

volta a ser pó, como disse Deus (Gn 3:19). Por isso Jó falou em descer ao pó, uma

linguagem que diz respeito à morte, quando seria enterrado embaixo da terra.

Assim, o Sheol está intimamente relacionado ao pó, não porque haja pó na

dimensão metafísica em que os imortalistas colocaram o Sheol, mas porque se

refere às profundezas da terra, onde o corpo perece e volta ao pó, cumprindo o

ciclo da vida.

33
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 155.

62
Este significado torna-se ainda mais nítido à luz do Salmo 49, que diz:

“Como ovelhas, estão destinados à sepultura, e a morte lhes servirá de


pastor. Pela manhã os justos triunfarão sobre eles! A aparência deles se
desfará na sepultura, longe das suas gloriosas mansões” (Salmos 49:14)

Nas duas ocasiões onde aparece a palavra “sepultura” na tradução da NVI, é o Sheol

que aparece no original hebraico. Literalmente, o que o salmista dizia era que a

aparência deles se desfaria no Sheol, que é a consequência inevitável do processo

de decomposição de um corpo. Em nada tem a ver com um espírito incorpóreo com

uma aparência que se desfaz numa outra dimensão ou no centro da terra. O termo

aqui traduzido por “desfará” no hebraico é balah, que significa «gastar pelo uso,

consumir completamente»34. É isso o que acontece com um cadáver, que é

completamente consumido onde quer que esteja enterrado.

Como se nota, os escritores bíblicos tinham plena consciência do significado

simples, lógico e coerente de Sheol, e assim o descreviam recorrentemente. Só

quem não aceita a clareza dos textos bíblicos são os dualistas, seja por uma

ignorância invencível, seja por uma obstinação ainda mais difícil de se vencer.

Sequer haveria discussão quanto ao significado tão objetivo e evidente expresso

em tantos textos, se não fosse pela necessidade patológica que os imortalistas tem

em encontrar um lugar para colocar a alma dos mortos fora do corpo, o que os leva

34
#1086 da Concordância de Strong.

63
a distorcer criminosamente o significado do Sheol a fim de transformá-lo em algo

que faria qualquer hebreu dos tempos bíblicos se revirar no túmulo.

E por falar em túmulo, o Sheol também está intimamente relacionado a ele. Embora

seja errado limitar o Sheol a uma sepultura individual ( qeber), as sepulturas são

enterradas na terra, ou seja, no Sheol. Por essa razão, todos os que estão sepultados

estão no Sheol, embora nem todos os que estejam no Sheol foram devidamente

sepultados em um túmulo (os seguidores de Corá, por exemplo, foram engolidos

vivos pela terra, e outros tantos cadáveres são privados de sepultura). Essa relação

íntima entre o Sheol e a sepultura (ou cova) explica os tantos textos bíblicos que

equivalem ambos.

Em Oseias, por exemplo, Deus diz: “Eu os redimirei do poder da sepultura; eu os

resgatarei da morte. Onde estão, ó morte, as suas pragas? Onde está, ó sepultura, a

sua destruição?” (Os 13:14). O termo aqui traduzido por “sepultura”, no hebraico, é

o Sheol. Paulo cita esse mesmo texto em 1ª Coríntios 15:55, ao falar da ressurreição

da carne. Isso significa que o que é ressuscitado do Sheol no texto de Oseias é o

mesmo que é ressuscitado da sepultura no texto de Paulo aos coríntios, porque o

que ressuscita é um corpo morto na sepultura/Sheol, não uma alma desencarnada,

que não precisaria de ressurreição. Semelhantemente, o salmista escreve:

“Por isso o meu coração se alegra e no íntimo exulto; mesmo o meu corpo

repousará tranquilo, porque tu não me abandonarás no sepulcro, nem


permitirás que o teu santo sofra decomposição” (Salmos 16:9-10)

64
A parte que diz “tu não me abandonarás no sepulcro”, no hebraico é `azab nephesh

sh'owl (“não abandonarás minha alma no Sheol”). É ali, no Sheol, que o seu corpo

repousaria tranquilo, e onde sua alma não sofreria decomposição (observe o

paralelismo hebraico, que iguala corpo e alma). Isso refuta ao mesmo tempo a ideia

de que o corpo não vai pro Sheol e de que a alma é um elemento incorpóreo que

não está sujeito à decomposição. Sequer faria sentido falar em “sofrer

decomposição” se estivesse falando de um ente fluídico e imaterial, o que por

definição seria algo impossível.

O mais interessante é que Pedro aplica este texto a Jesus, que não foi abandonado

no Sheol nem sofreu decomposição, porque ressuscitou ao terceiro dia (At 2:27).

Logo após citar o salmo em questão, ele declara:

“Irmãos, posso dizer-lhes com franqueza que o patriarca Davi morreu e foi

sepultado, e o seu túmulo está entre nós até o dia de hoje. Mas ele era

profeta e sabia que Deus lhe prometera sob juramento que colocaria um dos
seus descendentes em seu trono. Prevendo isso, falou da ressurreição do

Cristo, que não foi abandonado no sepulcro e cujo corpo não sofreu

decomposição” (Atos 2:29-31)

Davi disse que sua alma não seria abandonada no Sheol nem sofreria

decomposição (Sl 16:9-10), e Pedro, ao citar este verso (At 2:27), o aplica

profeticamente a Jesus, cujo corpo não sofreu decomposição no túmulo. Isso prova

que, para Pedro, não havia diferença substancial entre a alma e o corpo, e tampouco

entre o Sheol e o túmulo. Se houvesse, ele seria facilmente acusado de estar

distorcendo o salmo em questão, que fala da alma no Sheol, não do corpo no

65
túmulo, como Pedro disse. Portanto, no salmo e no uso do salmo por parte de Pedro

vemos, de uma só vez, que:

(1) o corpo é citado em paralelismo com a alma, como se fossem o mesmo;

(2) o corpo também vai para o Sheol;

(3) a alma também pode sofrer decomposição;

(4) a alma também ressuscita;

(5) um corpo no túmulo é a mesma coisa que uma alma no Sheol;

(6) estar sepultado é a mesma coisa que estar no Sheol.

Em outra ocasião, o salmista escreveu:

“Ó Senhor, Deus que me salva, a ti clamo dia e noite. Que a minha oração

chegue diante de ti; inclina os teus ouvidos ao meu clamor. Tenho sofrido
tanto que a minha vida está à beira da sepultura! Sou contado entre os que

descem à cova; sou como um homem que já não tem forças. Fui colocado
junto aos mortos, sou como os cadáveres que jazem no túmulo, dos quais já

não te lembras, pois foram tirados de tua mão” (Salmos 88:1-5)

Onde se lê que “minha vida está à beira da sepultura”, é o Sheol que aparece no

hebraico. Para os imortalistas, isso significa que o salmista estava dizendo que sua

alma sairia do corpo rumo a uma outra dimensão na presença de Deus, que seria o

Sheol. No entanto, essa ideia é fortemente combatida nos versos seguintes, onde

ele complementa o seu pensamento dizendo estar contado entre os que descem à

cova (v. 4), como os cadáveres que jazem no túmulo (v. 5). Em outras palavras, aqui

66
o Sheol é igualado à cova-bowr e ao túmulo-qeber, como o destino que o

aguardava.

Vemos algo semelhante no Salmo 30, onde o salmista diz: “Senhor, tiraste-me da

sepultura; prestes a descer à cova, devolveste-me à vida” (Sl 30:3). A parte que diz

«tiraste-me da sepultura», no hebraico, é `alah nephesh sh'owl, que traduzido

significa “tiraste minha alma do Sheol”. Note que ele não apenas diz que sua alma

foi “tirada” do Sheol, mas que estava prestes a descer à cova. Esse texto foi mal

traduzido pela NVI, que praticamente eliminou o paralelismo presente no hebraico,

que diz: Yhovah `alah nephesh sh'owl chayah yarad bowr, que, literalmente

traduzido, é: “Senhor, tiraste minha alma do Sheol; conservaste-me vivo para que

não descesse à cova”.

O paralelismo entre a primeira e a segunda parte do verso mostra que o Sheol era

igualado à cova, e não a um lugar em uma outra dimensão. Era o local onde se

colocavam os cadáveres, não um repositório de almas fantasmagóricas. O mesmo

paralelismo observamos no livro de Provérbios, que diz: “Vamos engoli-los vivos,

como a sepultura engole os mortos; vamos destruí-los inteiros, como são

destruídos os que descem à cova” (Pv 1:12). Como você já deve suspeitar, o termo

aqui traduzido por “sepultura” é o Sheol, no hebraico. Aqui, o Sheol é mais uma vez

igualado à cova (bowr), que aparece 67 vezes na Bíblia, e nunca designa um lugar

numa outra dimensão. Todas as vezes que a palavra é usada, é para se referir a uma

cova literal, cavada na terra (que pode servir de poço, sepultura, cisterna e etc)35.

35
Confira em: <https://biblehub.com/hebrew/strongs_953.htm>. Acesso em: 30/09/2020.

67
Jó também diz que “assim como o calor e a seca depressa consomem a neve

derretida, assim a sepultura consome os que pecaram” (Jó 24:19). À essa altura, creio

que não é preciso dizer qual palavra consta no original hebraico do termo aqui

traduzido por “sepultura”. O mais importante é que o texto diz que o Sheol consome

os que pecaram, da mesma forma que o calor consome a neve derretida. Essa é uma

linguagem totalmente condizente com um cadáver no túmulo, que se consome e

se decompõe até voltar ao pó de onde veio – como a neve que se derrete e já não

é mais neve –, mas nada compatível com um espírito imortal e imaterial, além de

incorruptível.

Outro texto que mostra com clareza o vínculo entre o Sheol e a sepultura está em

Isaías 38, onde o rei Ezequias, que estava à beira da morte, agradece pelos quinze

anos acrescentados à sua vida e diz ao Senhor:

“Foi para o meu benefício que tanto sofri. Em teu amor me guardaste da cova

da destruição; lançaste para trás de ti todos os meus pecados, pois a


sepultura não pode louvar-te, a morte não pode cantar o teu louvor. Aqueles

que descem à cova não podem esperar pela tua fidelidade. Os vivos, somente
os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo; os pais contam a tua fidelidade

a seus filhos” (Isaías 38:17-19)

O hebraico deste texto tem uma série de nuances que passam despercebidas na

tradução defeituosa ao português. Primeiramente, na parte que diz que «em teu

amor me guardaste da cova da destruição», é nephesh (alma) que aparece. O que

ele disse literalmente é que Deus, ao livrá-lo da morte, livrou sua alma de descer à

68
cova (do hebraico shachath, que significa «cova, destruição, sepultura»36). Isso

responde o inocente desafio do pastor Jamierson, que pediu um texto bíblico onde

a alma está na sepultura (na verdade, como vimos no capítulo 2, há muitos textos

idênticos a esse, onde a nephesh está na cova, sepultura ou túmulo).

Logo após louvar a Deus por ter livrado sua alma da cova, Ezequias conclui: “Pois a

sepultura não pode louvar-te...” (v. 18). Aqui, “sepultura” é a tradução do hebraico

Sheol, o que não apenas mostra que não há louvor no Sheol (refutando totalmente

a ideia de que o Sheol era um lugar onde os salvos estivessem conscientes), mas

também iguala o Sheol à cova-shachath, uma vez que o texto é uma conclusão que

completa o sentido do verso anterior. Em outras palavras, Deus livrou sua alma de

descer à cova, porque ele não poderia louvar a Deus no Sheol.

Se o Sheol fosse algo diferente da cova citada no verso 17, o verso 18 não seria um

complemento, mas a introdução de uma ideia totalmente nova, o que é claramente

absurdo pelo contexto. O fato do Sheol ser identificado com a “cova da destruição”

é reforçado na continuação do próprio verso 18, que diz que «aqueles que descem

à cova não podem esperar pela tua fidelidade». Aqui é usada outra palavra para

cova (bowr), mas que expressa o mesmo sentido. Ezequias usa três palavras

diferentes para designar o local onde iria após a morte – shachath, Sheol e bowr –,

e ambos são igualados em absoluto. Era bastante comum um judeu usar palavras

diferentes para expressar a mesma ideia em paralelismo, como ocorre no Salmo 24:

36
#7845 da Concordância de Strong.

69
“Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem”

(Salmos 24:1)

A segunda parte do verso diz a mesma coisa da primeira, mas com outras palavras.

Em uma é usada a palavra “terra” (erets); na outra, “mundo” (tebel). Em uma, do

Senhor é “o que nela existe”; na outra, “os que nele vivem”. A segunda parte vem

para complementar a primeira reforçando o mesmo sentido através do uso de

palavras sinônimas ou bastante próximas, não para introduzir uma ideia nova ao

texto. Vemos isso centenas de vezes na Bíblia. Quando Isaías usa shachath, Sheol e

bowr para dizer que depois da morte ele não poderia louvar a Deus, ele estava

recorrendo à mesma prática de usar palavras diferentes para expressar a mesma

ideia. Isso obviamente exige que o Sheol seja tão físico e terreno quanto a sepultura

e a cova; um lugar na terra onde se enterram os mortos, não um lugar metafísico

para almas fora do corpo.

Em sua tese de dissertação de doutorado sobre o tema, o erudito bíblico Ralph

Walter Doermann chegou à conclusão de que “os mortos eram concebidos como

estando no Sheol e na sepultura ao mesmo tempo, contudo não em dois lugares

diferentes”37. Da mesma forma que quem está em São Paulo também está no Brasil,

mas isso não significa que esteja em dois lugares diferentes, assim também quem

está na sepultura está no Sheol, porque o Sheol abrange a sepultura. Assim, embora

o Sheol não se limite à sepultura apenas, ele está intimamente relacionado a ela,

uma vez que todos os mortos que foram sepultados estão no Sheol.

37
DOERMANN, Ralph Walter. Sheol in the Old Testament. Dissertação (Doutorado em Teologia) – Duke
University. Durham, 1961, p. 191.

70
Só não está no Sheol os mortos que não foram enterrados, como aqueles que

morreram no mar. O texto mais esclarecedor concernente a isso é o que retrata o

Hades entregando os mortos que nele havia e o mar entregando os mortos que

nele havia, o que revela que quem tinha morrido no mar não estava no Hades:

“O mar entregou os mortos que nele havia, e a morte e o Hades entregaram


os mortos que neles havia; e cada um foi julgado de acordo com o que tinha
feito. Então a morte e o Hades foram lançados no lago de fogo. O lago de

fogo é a segunda morte” (Apocalipse 20:13-14)

Se os mortos no mar estivessem no Hades, este texto simplesmente não faria

sentido, pois retrata cada um entregando os seus mortos (ou seja, «os mortos que

neles havia»). Aqui vemos o mar entregando os mortos que nele havia (ou seja, os

que morreram no mar), enquanto a morte e o Hades entregam os mortos que neles

havia (ou seja, os que morreram na terra). Os mortos no mar não estão no Hades,

justamente porque não estão debaixo da terra (já que boiam no mar). Quem

confirma isso é o renomado teólogo imortalista N. T. Wright, que assim comenta o

texto em questão:

Na cosmologia antiga, o mar não era entendido como uma parte do

Hades. Assim, aqueles que morreram por afogamento no mar e nunca

foram recuperados para um enterro constituíam uma categoria

separada dos mortos. Mas eles também são agora levados perante o

grande trono branco.38

38
WRIGHT, N. T. Os Evangelhos Para Todos. São Paulo: Thomas Nelson, 2020, p. 1899.

71
Isso é mais uma prova avassaladora de que o Sheol/Hades nada mais é que as

regiões subterrâneas da terra. Se dissesse respeito a uma dimensão metafísica para

onde as almas se dirigem, é evidente que os que morreram no mar estariam lá

também. A não ser que os imortalistas inventem que o “mar” neste texto também

se refere a uma outra dimensão metafísica para onde vão as almas que não estão

no Hades, fica mais do que evidente que o autor concebia o Hades como não mais

que a região subterrânea da terra onde os mortos estão enterrados, uma região tão

desprovida de vida quanto os mortos que flutuam no mar.

Os imortalistas simplesmente não conseguem explicar por que João distinguiu o

Hades e o mar, ou mesmo por que raios o mar aparece no texto. Interpretar aqui

que João se referia aos que morreram no mar quando diz que o mar entregou os

seus mortos, mas que ao se referir ao Hades estava falando das almas numa outra

dimensão, é simplesmente boçal. A única divisão lógica é aquela exposta por

Wright: o mar diz respeito aos que morreram no mar e por isso não foram

enterrados, e o Hades aos que morreram em terra firme e estão debaixo da terra. O

que João estava dizendo é que tanto os cadáveres que estão boiando no mar

quanto aqueles que estão enterrados na terra ressuscitarão para prestar contas a

Deus no dia do juízo, o que anula toda tentativa de interpretar o Hades como um

“mundo espiritual dos espíritos”. O Hades é uma região tão física quanto o mar, e

tão inóspito à vida humana quanto ele.

72
• Há vida no Sheol?

Há atividade no Sheol? – Provavelmente nenhum texto seja mais enfático em

relação à natureza do Sheol do que Eclesiastes 9:10, que diz:

“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força,
pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento,
não há conhecimento nem sabedoria” (Eclesiastes 9:10)

Embora a NVI traduza por “sepultura”, é o Sheol que aparece no original hebraico.

Note que o autor não diz que há vida, consciência ou qualquer tipo de atividade no

Sheol. Pelo contrário, ele diz que no Sheol não há atividade, nem planejamento,

nem conhecimento ou sabedoria alguma. Dificilmente poderia haver uma descrição

mais firme e contundente da completa ausência de vida ou consciência no Sheol,

em direto contraste com a noção de uma morada metafísica de almas imortais.

Imortalistas geralmente argumentam que o que Salomão estava querendo dizer é

que no Sheol não há conhecimento das coisas que acontecem na terra, mas que

eles têm pleno conhecimento do que acontece à sua volta, no Sheol. Isso é

claramente refutado pelo contexto, que diz tudo o que devemos fazer temos que

fazer agora, já que no Sheol não teremos como realizá-los. Se essas práticas fossem

possíveis de serem realizadas no Sheol, a primeira parte do verso seria inteiramente

sem sentido, já que as coisas que fazemos aqui também seriam possíveis de se

realizar no além. A única coisa que explica a necessidade de fazermos tais coisas

agora é justamente porque depois não teremos como realizá-las no Sheol. No

73
Sheol é impossível fazer o que fazemos aqui, justamente porque no Sheol não há

vida, apenas morte.

Ademais, se o conhecimento que Salomão diz que não há no Sheol é o

“conhecimento do que acontece na terra”, o que seria a sabedoria, citada no mesmo

verso? Sabedoria do que acontece na terra? Isso não faz sentido algum. É difícil

imaginar como isso possa se aplicar a um homem sábio, a não ser que ele perca a

sabedoria assim que chega ao Sheol. Mas quando entendemos o verdadeiro

significado do Sheol, fica muito fácil de explicar: não há sabedoria no Sheol, porque

não há vida no Sheol. E se não há vida, não há nada que se relacione a ela, o que

inclui tudo o que Salomão escreveu no verso e muito mais.

Na morte, o sábio está na mesma condição que o tolo – ambos voltam ao pó de

onde vieram. Por isso Salomão diz que “assim como morre o sábio, morre o tolo”

(Ec 2:16), algo que não faria sentido algum se ambos tivessem destinos

completamente diferentes no Sheol. É só na ressurreição que o destino dos dois é

discriminado, não enquanto estão no Sheol. Isso vai ao encontro das palavras do

salmista, de “que os ímpios sejam humilhados e calados fiquem no Sheol” (Sl

31:17). Como um ímpio ficaria calado em seu próprio lugar de tormento? Se o

salmista tivesse qualquer noção de sofrimento no Sheol, ele diria exatamente o

oposto, que eles gritariam no Sheol devido ao seu sofrimento, como qualquer

imortalista diria.

Não me surpreenderia se alguém chegasse ao ponto de dizer que a parte que diz

“calados fiquem no Sheol” deva ser interpretada como “calados fiquem nesta vida,

mas no Sheol não”. Ou, pior ainda, que os seus corpos estão calados, mas suas

74
almas imortais fora do corpo estão gritando de agonia e desespero. Além de uma

interpretação ridícula, esbarraria na própria argumentação do Sr. Jamierson, que

desafiou os mortalistas a mostrar um texto bíblico onde os corpos estão no Sheol,

já que para ele (e para os imortalistas no geral) o Sheol é a morada das almas, e o

lugar do corpo é apenas a sepultura. Quanto mais eles argumentam, mais se

enrolam em sua própria isca.

Em outro salmo, o salmista diz que “se o Senhor não fora em meu auxílio, já a minha

alma habitaria no lugar do silêncio” (Sl 94:17). Que “lugar do silêncio” é esse, que o

salmista diz que a sua alma-nephesh habitaria depois da morte? O céu não pode

ser, pois é um lugar de júbilo e regozijo. O inferno também não, pois é um lugar de

dor e gritaria (e além disso, um destino pouco provável para o salmista). A única

conclusão que resta é que ele falava do Sheol, o «lugar do silêncio» debaixo da terra

para onde vai corpo e alma, uma unidade indivisível.

Este texto é tão mortal que nem mesmo permite a manobra sorrateira à qual eles

estão acostumados, de dizer que neste caso Sheol se refere à sepultura, mas que

em outros casos (que ninguém sabe quais) se refere ao mundo do além. Isso porque

o salmista diz que sua nephesh (alma) iria para o lugar do silêncio na morte, o que,

portanto, colocaria a alma do salmista na sepultura, o que deixaria Jamierson de

cabelo em pé (embora ele já tenha poucos).

Portanto, a única solução que resta para os imortalistas são duas manobras

sorrateiras atuando juntas: primeiro, dizer que nephesh (alma) está se referindo ao

corpo e não à alma, e, segundo, dizer que o Sheol está se referindo à sepultura

(qeber) e não ao Sheol mesmo. O tipo de manobra que só gente extremamente

75
dissimulada seria capaz de vender, e só gente extremamente ingênua seria capaz

de comprar – o que muitos deles não hesitam em fazer, já que é a única opção que

lhes resta. Isso mostra o quanto seus argumentadores não são sérios nem estão

comprometidos com hermenêutica alguma, apenas estão desesperados em

arrumar qualquer pretexto que sirva para negar a clareza do texto bíblico que

depõe contra eles.

Há lembrança no Sheol? – Como se não fosse o bastante, o salmista faz a pergunta

retórica: “Quem morreu não se lembra de ti. No Sheol, quem te louvará?” (Sl 6:5). É

evidente que se nós morrêssemos, a primeira pessoa de quem nos lembraríamos

seria Deus. Nenhum católico diria que os “santos” no céu para os quais ele reza não

se lembram do Deus com quem eles estão. A única solução que resta aos

imortalistas é a manobra de que o texto “só se refere ao corpo”, como se o salmista

estivesse mais preocupado em descrever a condição de um cadáver apodrecendo

na sepultura do que da alma na presença de Deus. Mas mesmo essa inferência

ridícula é refutada logo em seguida, quando ele diz: “No Sheol, quem te louvará?”.

Note que o salmista não fala do qeber, mas do Sheol, precisamente o lugar que os

imortalistas acreditam estar em uma outra dimensão e onde as almas dos justos

estão (ou estavam) na presença de Deus. E é neste lugar que ele diz que ninguém

pode louvar a Deus, o que seria absolutamente falso, se os justos estivessem

conscientes no Sheol (a não ser que haja uma placa na entrada do Sheol dizendo

“proibido louvar a Deus”, o que eu particularmente acho improvável, mas não

duvido que um imortalista o afirme).

76
Não poucos imortalistas tem a desfaçatez de dizer que aqui o salmista estava

falando apenas sobre louvar a Deus na assembleia de Israel, como se ele dissesse:

“No Sheol, quem te louvará na assembleia?” – o que além de risível é um completo

nonsense, já que é obviamente impossível louvar em um lugar estando em outro.

Isso seria como se eu dissesse: “No Recife, quem pode louvar a Deus em São

Paulo?”. Não apenas a frase é irracional, como leva a uma direção obviamente

oposta à que o salmista expressava. Como você pode perceber ao ler o salmo na

íntegra, todo o ponto girava em torno da inutilidade que o salmista teria para com

Deus caso viesse a morrer:

Salmos 6

1 Senhor, não me castigues na tua ira nem me disciplines no teu furor.

2 Misericórdia, Senhor, pois vou desfalecendo! Cura-me, Senhor, pois os meus

ossos tremem:

3 Todo o meu ser estremece. Até quando, Senhor, até quando?

4 Volta-te, Senhor, e livra-me; salva-me por causa do teu amor leal.

5 Quem morreu não se lembra de ti. No Sheol, quem te louvará?

6 Estou exausto de tanto gemer. De tanto chorar inundo de noite a minha cama; de

lágrimas encharco o meu leito.

7 Os meus olhos se consomem de tristeza; fraquejam por causa de todos os meus

adversários.

8 Afastem-se de mim todos vocês que praticam o mal, porque o Senhor ouviu o

meu choro.

9 O Senhor ouviu a minha súplica; o Senhor aceitou a minha oração.

10 Serão humilhados e aterrorizados todos os meus inimigos; frustrados, recuarão

de repente.

77
Como você pode notar, o salmista acreditava estar à beira da morte, e por isso faz

essa oração ao Senhor, onde roga pela manutenção de sua vida. No verso 5, ele

apresenta uma razão pela qual ele seria mais útil vivo, ao alegar que os mortos não

se lembram de Deus e não podem louvá-lo no Sheol. Se os mortos estivessem na

presença de Deus e o louvassem no Sheol, essa razão seria de toda falsa, e jogaria

por terra todo o argumento. Para os católicos, por exemplo, o salmista não apenas

continuaria se lembrando de Deus depois da morte e o louvaria no Sheol, como

ainda se tornaria um intercessor muito mais poderoso do que na terra. Obviamente,

isso é o oposto ao entendimento do salmista, que acreditava que só seria útil para

Deus vivo, na terra. Isso porque ele sabia que o Sheol não era uma morada de almas

conscientes louvando a Deus, mas o fim da existência no túmulo.

Há louvor no Sheol? – Um texto que ecoa bem o entendimento do salmista a

respeito do Sheol é o de Isaías 38:18-19, quando o rei Ezequias diz:

“Pois a sepultura não pode louvar-te, a morte não pode cantar o teu louvor.
Aqueles que descem à cova não podem esperar pela tua fidelidade. Os vivos,

somente os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo; os pais contam a tua

fidelidade a seus filhos” (Isaías 38:18-19)

Onde a NVI traz “sepultura”, é Sheol que consta no hebraico. Como vimos, o autor

equivale o Sheol à cova, mas não só isso: ele também diz que não há louvor no

Sheol. Imortalistas argumentam que Ezequias só estava dizendo que ninguém no

Sheol pode louvar a Deus na assembleia israelita, mas que podem louvá-lo no

próprio Sheol. Isso é claramente refutado no verso seguinte, que diz que “os vivos,

78
e somente os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo”. Não sei de que forma

Ezequias poderia deixar mais claro que não há a menor possibilidade de louvar a

Deus depois da morte, no Sheol.

Assim como no Salmo 6, o contexto de Isaías 38 também fulmina qualquer hipótese

que não seja a interpretação natural do texto. Isso porque Ezequias estava

agradecendo por Deus ter lhe dado quinze anos a mais de vida, após o profeta Isaías

dizer que ele morreria da doença que havia contraído. É neste contexto que ele diz

que só os vivos podem louvar a Deus e que não há como louvá-lo no Sheol. Em

outras palavras, o que ele estava dizendo é que seria mais útil vivo, pois enquanto

vivo poderia louvar ao Senhor, algo que ele não poderia fazer depois de morto.

Dizer que aqui Ezequias estava falando apenas de louvar a Deus entre os vivos

equivaleria a interpretar sua frase como “os vivos, e somente os vivos, podem te

louvar entre os vivos”, o que seria uma informação redundante e inútil. Tanto o

contexto como o bom senso implicam que Ezequias estava olhando para além da

vida presente, fazendo questão de destacar que ele não teria valor algum para Deus

na condição de morto, mas vivo ele poderia louvá-lo e adorá-lo. Ou, para usar as

palavras do sábio filho de Davi, “até um cachorro vivo é melhor do que um leão

morto” (Ec 9:4). Diante disso, é evidente que para os escritores bíblicos o Sheol era

um lugar inteiramente destituído de vida, consciência ou atividade.

Isso é confirmado pelo salmista no Salmo 88, que lembra muito a oração de

Ezequias perto da morte:

79
“Afastaste de mim os meus melhores amigos e me tornaste repugnante para

eles. Estou como um preso que não pode fugir; minhas vistas já estão fracas

de tristeza. A ti, Senhor, clamo cada dia; a ti ergo as minhas mãos. Acaso
mostras as tuas maravilhas aos mortos? Acaso os mortos se levantam e te
louvam? Será que o teu amor é anunciado no túmulo, e a tua fidelidade, no

Abismo da Morte? Acaso são conhecidas as tuas maravilhas na região das

trevas, e os teus feitos de justiça, na terra do esquecimento? Mas eu, Senhor,

a ti clamo por socorro; já de manhã a minha oração chega à tua presença”


(Salmos 88:8-13)

Note a semelhança deste texto com os dois últimos que analisamos, que também

sugere ser impossível os mortos louvarem a Deus. A diferença é que o termo que

aparece para “túmulo” aqui é qeber, o que mostra que o salmista se referia aos

mortos na sepultura exatamente da mesma maneira que ele se referia aos mortos

no Sheol, porque de fato ambos se referem ao cadáver embaixo da terra (mudando

apenas a amplitude da coisa, já que o Sheol inclui todos os mortos em qualquer

lugar debaixo da terra). O paralelismo entre o túmulo e o Abaddon (que, como

vimos, é igualado ao Sheol) mostra não apenas a paridade entre um e outro, mas

também que no Sheol não é anunciada a fidelidade de Deus ou seus feitos de justiça

– algo completamente falso se o Sheol fosse uma outra dimensão onde os que

morreram estão próximos de Deus.

Como reconhece o erudito imortalista Hans Walter Wolff em sua clássica obra

Anthropology of the Old Testament,

80
no mundo dos mortos, não há mais lugar para a obra de Javé, nem

para seu anúncio ou seu louvor. Essa concepção é confirmada muitas

vezes, por exemplo, no Salmo 115:17. (...) Com isso, à definição do

morto como excluído do louvor de Deus se opõe aquela do vivo como

ser humano que pode exaltar a obra e a palavra de Javé.39

Há castigo ou recompensa no Sheol? – A. R. Crabtree, professor e reitor do

Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil no início do século passado, disse que

o Sheol “não se representa como lugar de castigo nem de recompensa”40. Isso fica

ainda mais claro a partir da descrição que Jó faz do Sheol, que em nada se parece

com o céu ou com o inferno:

“Por que não morri ao nascer, e não pereci quando saí do ventre? Por que

houve joelhos para me receberem e seios para me amamentarem? Agora eu

bem poderia estar deitado em paz e achar repouso junto aos reis e

conselheiros da terra, que construíram para si lugares que agora jazem em

ruínas, com governantes que possuíam ouro, que enchiam suas casas de
prata. Por que não me sepultaram como criança abortada, como um bebê

que nunca viu a luz do dia? Ali os ímpios já não se agitam, e ali os cansados

permanecem em repouso; os prisioneiros também desfrutam sossego, já não


ouvem mais os gritos do feitor de escravos. Os simples e os poderosos ali
estão, e o escravo está livre de seu senhor” (Jó 3:11-19)

39
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 171-172.
40
CRABTREE, A. R. Teologia Bíblica do Velho Testamento. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1960,
p. 268.

81
Jó não estava falando de uma sepultura individual (qeber), porque diz que se tivesse

morrido logo após nascer estaria na companhia dos reis, conselheiros e

governantes da terra, que não compartilhariam o mesmo túmulo depois da morte.

Portanto, é evidente que ele estava falando do Sheol, onde estão todos os mortos,

embaixo da terra. Sabemos, então, que Jó se referia ao Sheol, mas que tipo de Sheol

era esse? Seria o Sheol imortalista da outra dimensão, onde as almas estão

perfeitamente ativas e conscientes? Não é o que parece. Jó diz que ali «os ímpios já

não se agitam», o que é o inverso da descrição do inferno tradicional, onde os

ímpios estão gritando e correndo de demônios torturadores.

O verbo hebraico usado aqui é rogez, que significa «agitação, exaltação,

aborrecimento, tumulto, tremor, inquietação, furor»41. Basicamente, todos os

comportamentos que se esperariam de um ímpio em um lugar de sofrimento

consciente. Ainda mais significativo que isso é que “já não ouvem mais os gritos do

feitor de escravos” (v. 18), quando o senhor de escravos deveria ser o primeiro a

estar gritando de dor. Se os ímpios não parecem estar em um lugar que lembre o

mais remotamente o inferno, os justos não parecem estar em um lugar como o céu.

Os cansados «permanecem em repouso» e os prisioneiros «desfrutam sossego»,

assim como Jó, que estaria “deitado em paz e acharia repouso junto aos reis e

conselheiros da terra” (vs. 13-14).

Isso lembra muito o texto em que Daniel diz que “multidões que dormem no pó da

terra despertarão” (Dn 12:2), ao se referir à ressurreição do último dia. Note que

Daniel não diz que essas multidões virão do céu ou do inferno, mas do pó da terra,

41
#7267 da Concordância de Strong.

82
que, como vimos, está associado ao Sheol. E a respeito da condição dessas pessoas

no Sheol ele usa o verbo yashen (dormir), o mesmo que Jó usa em relação à

condição dos mortos no Sheol, no texto que acabamos de conferir (Jó 3:13). E é do

Sheol (Hades) que Paulo diz que os mortos serão ressuscitados (1Co 15:54-55).

Os imortalistas alegam que Daniel falava apenas do corpo, pois é só o corpo que

ressuscita (uma vez que a alma já está viva). Se isso é verdade em relação ao texto

de Daniel, também deveria ser para o texto de Jó, que fala da condição dos mortos

no Sheol usando a mesma linguagem. Mas isso implicaria que o Sheol é o lugar

onde fica o corpo, o que os imortalistas como Jamierson Oliveira não admitem. Isso

os deixa na delicada situação onde são forçados a concluir que Jó falava do sono da

alma em Jó 3:13, já que é no Sheol que Jó encontraria repouso (yashen), ou então

negar que o Sheol seja um lugar de almas incorpóreas numa outra dimensão, para

sustentar que é só o corpo que iria “dormir”. De um jeito ou de outro, eles estão em

apuros. Como diz o ditado, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

Reunir-se aos antepassados – O fato de tanto Jó como Daniel aludirem ao “sono”

no Sheol ou no pó da terra lança luz aos vários textos do Pentateuco que dizem que

alguém que morreu “foi reunido aos seus antepassados” (cf. Gn 25:8,17, 35:29,

49:33; Nm 20:26, 31:2; Dt 32:50). Esses textos são por vezes citados pelos

imortalistas para dizer que a alma dos personagens bíblicos em questão se desligou

do corpo e foi se encontrar conscientemente com os seus antepassados na outra

dimensão, quando na verdade é apenas um eufemismo semita para dizer que eles

compartilhariam o mesmo lugar embaixo da terra. Alguém que morre é reunido aos

outros mortos no cemitério, não porque tenha virado um fantasma que assombra

83
o lugar com as outras almas penadas, mas porque seu destino é compartilhar o

mesmo lugar daqueles que já morreram e que estão ali sepultados.

É por isso que a expressão “foi reunido aos seus antepassados” é substituída nos

livros históricos pela expressão “descansou com os seus antepassados” (cf. 1Rs 2:10,

15:8, 16:6,28, 22:40; 2Rs 20:21; 2Cr 16:13, 33:20, etc), que quer dizer a mesma coisa.

Essa expressão é usada indistintamente para os reis justos e ímpios, o que significa

que o “descansar” aqui em nada tem a ver com um “descanso celestial” no sentido

de refrigério (até mesmo o ímpio rei Acabe, marido de Jezabel, «descansou com os

seus antepassados» – 1Rs 22:40).

Além disso, os imortalistas rotineiramente argumentam que o “sono” diz respeito

somente ao corpo, uma vez que a alma está bem ativa e consciente no “mundo dos

mortos”. O problema é que isso implicaria que a expressão “descansou com os seus

antepassados” se refere ao estado do corpo, o que prova que “se reunir aos

antepassados” não era de modo algum uma linguagem de vida após a morte, como

muitos imortalistas inutilmente argumentam (especialmente em relação ao texto

em que Jacó diz que desceria ao seu filho no Sheol – cf. Gn 37:35). Mais do que isso,

implicaria que o próprio Sheol é o lugar do corpo, e não da alma fora do corpo, uma

vez que o Sheol abrange todos os mortos embaixo da terra, enquanto a sepultura

(qeber) diz respeito apenas ao túmulo individual.

Dito em termos simples, a expressão «foi reunido aos seus antepassados» é um

eufemismo equivalente à expressão «descansou com os seus antepassados» e diz

respeito ao estado do corpo morto no Sheol, um estado de óbvia inatividade após

a morte. Os cadáveres de todos os que morreram na terra estão reunidos no mesmo

84
lugar, ou seja, no Sheol (=embaixo da terra), e ali “descansam”, indicando

inatividade. Isso é tudo o que os hebreus tinham a dizer quanto ao estado atual dos

mortos, sem o menor indício de vida após a morte em uma outra dimensão, como

acreditavam os povos pagãos à sua volta.

Wolff honestamente admite que enquanto nas religiões do antigo Oriente Médio

os mortos eram glorificados ou deificados após a morte,

coisa semelhante é inconcebível no Antigo Testamento. Na maioria

das vezes, a menção da descida ao Sheol como mundo dos mortos

não significa mais do que a referência ao enterro como o fim da vida

(Gn 42:38, 44:29,31; Is 38:10,17; Sl 9:15,17, 16:10, 49:9,15, 88:3-6,11; Pv

1:12)42.

O próprio fato da cidade de Tiro “descer com os que descem à cova, para fazer

companhia aos antigos” (Ez 26:20), prova que a mesma linguagem empregada em

relação aos mortos no Sheol também era utilizada para cidades na cova, o que

obviamente não significa que haja vida consciente na cova ou que Tiro sobrevive

numa outra dimensão na companhia das almas dos mortos. Ao contrário, é dito a

seu respeito que “você já não existirá” (v. 21), que é o que acontece com quem

“habita embaixo da terra” (v. 20). Habitar embaixo da terra, fazer companhia aos

mortos, ser reunido aos antepassados e descansar com os antepassados são

expressões idiomáticas semíticas comumente usadas para designar não uma vida

42
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 167.

85
após a morte, mas o fim da existência ao ser enterrado na terra, um fim comum a

toda a humanidade.

As “portas” e “cordas” do Sheol – Não satisfeitos em distorcer o eufemismo semita

para a morte, eles também se apoderam de forças de expressão usadas em relação

ao Sheol como a “prova” de que o Sheol é uma mansão literal dos mortos, no outro

mundo. Leia com atenção o “argumento” levantado por Michael S. Heiser: “O Sheol

tinha ‘barras’ (Jó 17:16) e ‘cordas’ para amarrar seus habitantes (2Sm 22:5-6),

impedindo qualquer fuga (Jó 7:9)”43. O primeiro texto que ele cita é Jó 17:16, que

diz: “Descerá ela às portas do Sheol? Desceremos juntos ao pó?”. Ele usa esse texto

para explicar as “portas do Hades” de Mateus 16:18, que não prevalecerão contra a

Igreja do Senhor. Para ele, trata-se de portas literais, e era disso que Jó estava

falando.

Como vimos, essa interpretação já nasce completamente refutada logo de cara pelo

paralelismo hebraico presente no texto, que iguala o Sheol ao pó da terra. Uma vez

que o pó não tem um portão literal, é evidente que as “portas do Sheol” são uma

força de expressão. Jesus também disse que devemos andar pelo “caminho

estreito” (Mt 7:14) e entrar pela “porta estreita” (Mt 7:14), mas ninguém em sã

consciência acredita que ele estava falando de uma porta ou caminho literais que

devemos percorrer nesta vida, como se uma pessoa obesa não pudesse ser salva

por não passar por uma porta tão estreita. Da mesma forma, ninguém lucidamente

acredita que Jesus entregou uma chave literal nas mãos de Pedro quando disse que

43
HEISER, Michael S. What Did Jesus Mean by “Gates of Hell”? Disponível em:
<https://blog.logos.com/2018/04/jesus-mean-gates-hell>. Acesso em: 03/10/2020.

86
estava lhe dando as chaves do Reino dos céus (Mt 16:19), as mesmas que ele deu

aos demais apóstolos (Mt 18:18).

“Chave”, “porta” e “caminho” são figuras de linguagem recorrentes na Bíblia, e a não

ser que o contexto indique o contrário, não devem ser tomadas ao pé da letra. Paulo

disse que a morte tem um “aguilhão” (1Co 15:55-56), mas nem por isso alguém

pensa que a morte é um personagem real empunhando um aguilhão (embora essa

imagem seja recorrente nos quadrinhos e nos filmes de terror). No Salmo 9:13, o

salmista pede para Deus salvá-lo «das portas da morte», embora a morte em si não

seja um lugar para ter portas, mas somente uma condição. A mesma linguagem é

empregada em relação às «comportas do céu», que o próprio teólogo imortalista

Norman Geisler reconhece que não deve ser entendida literalmente:

A Bíblia fala, é claro, com uma linguagem figurada quando diz que “as

comportas dos céus se abriram” (Gn 7:11), quando aconteceu o

dilúvio. Mas essa expressão não é para ser tomada literalmente, da

mesma forma como não tomamos de modo literal a seguinte frase

dita por alguém: “Estavam ali cinco gatos pingados”.44

O segundo texto citado por Heiser é o de 2ª Samuel 22:5-6, que diz:

“As ondas da morte me cercaram; as torrentes da destruição me

aterrorizaram. As cordas da sepultura me envolveram; as armadilhas da


morte me confrontaram” (2ª Samuel 22:5-6)

44
GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual Popular de Dúvidas, Enigmas e “Contradições” da Bíblia.
São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 184.

87
Heiser está certo ao aplicar este texto ao Sheol, pois é o Sheol que aparece no

hebraico onde a NVI traduz por “sepultura”. No entanto, o contexto não diz nada a

respeito de “cordas para amarrar seus habitantes”, mas é apenas uma forma poética

de expressar sua aflição, uma vez que se encontrava à beira da morte. Algo

semelhante vemos no Salmo 116:3, onde lemos que a própria morte tem “cordas”,

o que é obviamente tão figurado quanto as cordas do Sheol. Note que o texto

também diz que as ondas da morte o cercaram, que as torrentes da destruição o

aterrorizaram e que as armadilhas da morte o confrontaram, mas nem por isso

alguém acredita que a morte tem cercas, que a destruição tem torrentes e que a

morte tem armadilhas literais.

Mais do que isso, o paralelismo aqui deixa claro que o Sheol é igualado à morte e à

destruição, não à vida em outro mundo. Como se não bastasse, o texto em questão

se refere ao rei Davi, que entoou este cântico ao Senhor quando Ele o livrou de seus

inimigos. Uma vez que Davi era um homem “segundo o coração de Deus” (At 13:22),

é evidente que ele não iria para o inferno ou a “parte ruim” do Sheol, onde seria

amarrado com cordas. Para os imortalistas, Davi estaria no “seio de Abraão”, a “parte

boa” do Sheol, não num assombroso lugar em que precisaria ser amarrado para não

fugir. Aparentemente Heiser se esqueceu deste detalhe, na ânsia de encontrar

provas de atividade no Sheol.

Por fim, ele cita o texto de Jó que diz que “assim como a nuvem esvai-se e

desaparece, assim quem desce à sepultura [Sheol] não volta” (Jó 7:9), para dizer que

as cordas servem para evitar a fuga. Mas além deste texto de Jó não ter

absolutamente qualquer relação com o texto de 2ª Samuel (o que diz muito sobre

88
a metodologia usada pelos imortalistas para enganar o leitor mais incauto), o texto

em si não fala nada sobre a natureza do Sheol, só diz que não há como voltar do

Sheol.

Jó acreditava na ressurreição do último dia (Jó 19:25-27), mas como ele viveu na

época dos patriarcas, nunca tinha testemunhado uma ressurreição para esta vida,

como a de Lázaro. Por isso ele complementa logo em seguida que “nunca mais

voltará ao seu lar; a sua habitação não mais o conhecerá” (Jó 7:10). Ele não estava

negando a ressurreição do último dia que ele próprio dizia crer (Jó 19:25-27), estava

apenas dizendo que ninguém voltava do Sheol para o seu lar, isto é, para a

habitação terrena que tinha aqui, na companhia de seus familiares, porque até

aquele momento nenhuma ressurreição havia ocorrido ainda e todos os que

morreram permaneciam mortos em seus respectivos túmulos. Tirar esse texto do

contexto para sustentar a consciência no Sheol beira a estupidez.

Sheol e Abaddon – Que o Sheol designa apenas destruição e morte, e não vida

consciente em algum lugar, isso também é indicado pelo paralelismo com o

Abaddon, que significa literalmente “destruição”. Jó diz que “o Sheol está nu diante

de Deus, e nada encobre a Destruição [abaddon]” (Jó 26:6). Semelhantemente, em

Provérbios lemos que “a Sepultura [Sheol] e a Destruição [abaddon] estão abertas

diante do Senhor” (Pv 15:11). Como comenta Bacchiocchi, “o fato do Sheol estar

associado com Abaddon, o local de destruição, mostra que o reino dos mortos era

visto como um lugar de destruição, e não como um lugar de eterno sofrimento para

os ímpios”45.

45
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 151.

89
Isso é confirmado pelos muitos textos bíblicos que associam o Sheol sempre e

somente à morte e à destruição, e nunca à vida ou consciência em outro mundo. O

Sheol aparece em paralelismo com a morte no Salmo 116:3, em Provérbios 5:5, em

Provérbios 7:27 e em Isaías 28:15, onde os ímpios se vangloriam dizendo que

“fizemos um pacto com a morte, com a sepultura [Sheol] fizemos um acordo”. O

paralelismo mostra que não se trata de dois acordos diferentes, mas do mesmo

pacto. Em outras palavras, fazer um pacto com a morte é o mesmo que fazer pacto

com o Sheol, porque o Sheol é igualado à morte, como a cessação total da

existência (i.e, o inverso da vida).

Isso explica por que o Sheol é descrito como um «ventre estéril» em Provérbios

30:16. Uma mulher estéril é uma mulher que não pode gerar vida em seu ventre, e,

da mesma forma, não há vida no interior do Sheol. Isso se opõe por completo à

visão imortalista que entende o Sheol como um lugar onde almas perfeitamente

vivas e conscientes se encontram em uma outra dimensão. Como reconhece o

teólogo imortalista Robert Martin-Achard, “o Sheol seria a terra sem vida, o mundo

caótico, o não-mundo”46.

De todos os textos bíblicos que falam do Sheol ou Hades, há apenas três que são

mais frequentemente usados pelos defensores da imortalidade da alma na

tentativa de fundamentar o entendimento deles a este respeito. Curiosamente,

como veremos, dois desses textos tem linguagem claramente poética, e o outro é

46
MARTIN-ACHARD, Robert. Da Morte à Ressurreição segundo o Antigo Testamento. São Paulo:
Academia Cristã LTDA, 2005, p. 54.

90
uma parábola. Não poderíamos esperar mais de uma tese inteiramente destituída

de qualquer amparo bíblico sério.

• O Sheol em Isaías 14 e em Ezequiel 32

Isaías 14 – O primeiro texto está em Isaías 14, que é um lamento a respeito do rei

da Babilônia escrito em linguagem poética. Para que fique claro o seu significado,

precisamos passar o texto com todo o seu contexto:

Isaías 14

3 No dia em que o Senhor lhe der descanso do sofrimento, da perturbação e da

cruel escravidão que sobre você foi imposta,

4 assim você zombará do rei da Babilônia: Como chegou ao fim o opressor! Sua

arrogância acabou-se!

5 O Senhor quebrou a vara dos ímpios, o cetro dos governantes,

6 que irados feriram os povos com golpes incessantes, e enfurecidos subjugaram

as nações com perseguição implacável.

7 Toda a terra descansa tranquila, todos irrompem em gritos de alegria.

8 Até os pinheiros e os cedros do Líbano alegram-se por sua causa e dizem: “Agora

que você foi derrubado, nenhum lenhador vem derrubar-nos!”

9 Nas profundezas o Sheol está todo agitado para recebê-lo quando chegar. Por

sua causa ele desperta os espíritos dos mortos, todos os governantes da terra. Ele

os faz levantar-se dos seus tronos, todos os reis dos povos.

10 Todos responderão e lhe dirão: “Você também perdeu as forças como nós, e

tornou-se como um de nós”.

91
11 Sua soberba foi lançada na sepultura [Sheol], junto com o som das suas liras; sua

cama é de larvas, sua coberta, de vermes.

12 Como você caiu dos céus, ó estrela da manhã, filho da alvorada! Como foi atirado

à terra, você, que derrubava as nações!

13 Você que dizia no seu coração: “Subirei aos céus; erguerei o meu trono acima

das estrelas de Deus; eu me assentarei no monte da assembleia, no ponto mais

elevado do monte santo.

14 Subirei mais alto que as mais altas nuvens; serei como o Altíssimo”.

15 Mas às profundezas do Sheol você será levado, irá ao fundo do abismo!

16 Os que olham para você admiram-se da sua situação, e a seu respeito ponderam:

“É esse o homem que fazia tremer a terra e abalava os reinos,

17 e fez do mundo um deserto, conquistou cidades e não deixou que os seus

prisioneiros voltassem para casa?”

18 Todos os reis das nações jazem honrosamente, cada um em seu próprio túmulo.

19 Mas você é atirado fora do seu túmulo, como um galho rejeitado; como as

roupas dos mortos que foram feridos pela espada; como os que descem às pedras

da cova; como um cadáver pisoteado,

20 você não se unirá a eles num sepultamento, pois destruiu a sua própria terra, e

matou o seu próprio povo. Nunca se mencione a descendência dos malfeitores!

21 Preparem um local para matar os filhos dele por causa da iniquidade dos seus

antepassados; para que eles não se levantem para herdar a terra e a cobrirem de

cidades.

22 “Eu me levantarei contra eles”, diz o Senhor dos Exércitos. “Eliminarei da

Babilônia o seu nome e os seus sobreviventes, sua prole e os seus descendentes”,

diz o Senhor.

92
23 “Farei dela um lugar para corujas e uma terra pantanosa; vou varrê-la com a

vassoura da destruição”, diz o Senhor dos Exércitos.

A parte que alguns citam fora de contexto para dizer que o Sheol é uma morada de

almas incorpóreas é a que diz que “nas profundezas o Sheol está todo agitado para

recebê-lo quando chegar. Por sua causa ele desperta os espíritos dos mortos, todos

os governantes da terra. Ele os faz levantar-se dos seus tronos, todos os reis dos

povos” (v. 9). Como saber que se trata de uma linguagem alegórica, e não de

mortos-vivos no além? Simples: o próprio verso anterior diz que “até os pinheiros e

os cedros do Líbano alegram-se por sua causa e dizem: ‘Agora que você foi

derrubado, nenhum lenhador vem derrubar-nos!’” (v. 10).

A não ser que os imortalistas acreditem realmente em árvores falantes, terão que

reconhecer o caráter alegórico do trecho. O objetivo do autor não era acentuar que

literalmente as árvores conversam ou os mortos falem, mas retratar a desgraça total

do rei da Babilônia através da personificação de personagens inanimados. Assim

como o autor personifica as árvores ele personifica os mortos com o mesmo

objetivo, não de endossar a crença na consciência das árvores ou de quem morreu,

mas para enfatizar o trágico fim do rei da Babilônia por meio da linguagem poética.

Assim, quando o verso seguinte diz que “todos responderão e lhe dirão: ‘Você

também perdeu as forças como nós, e tornou-se como um de nós’” (v. 10), o sentido

não é que esse diálogo ocorreu realmente, mas que o rei da Babilônia tornou-se a

mesma coisa que os que morreram antes dele (ou seja, um mero cadáver). Este

sentido é reforçado logo no verso seguinte, que diz que “a sua soberba foi lançada

na sepultura [Sheol], junto com o som das suas liras; sua cama é de larvas, sua

93
coberta, de vermes” (v. 11). Sua “cama” era de larvas e sua “coberta” de vermes não

porque ele estivesse sendo comido por vermes metafísicos da quarta dimensão,

mas porque é isso o que acontece com um cadáver.

O próprio verso 15, que menciona o rei da Babilônia no Sheol, contém um

paralelismo que deixa claro que o Sheol citado no texto nada mais é do que a cova:

“Mas às profundezas do Sheol você será levado, irá ao fundo do abismo”. A palavra

hebraica traduzida como “abismo” neste texto é bowr, que significa «cova, poço,

cisterna»47. É a mesma palavra usada diversas vezes para designar a cova ou

sepultura, onde são colocados os cadáveres (Pv 1:12; Sl 28:1, 88:4; Is 38:18). O

salmista pede ao Senhor que “não escondas de mim o teu rosto, ou serei como os

que descem à cova-bowr” (Sl 143:7), o que mostra que os que estão na cova estão

longe da presença de Deus. O paralelismo entre as «profundezas do Sheol» e o

«fundo do abismo (bowr)» mostra que em Isaías 14:15 o Sheol não era nada além

da cova.

O verso seguinte diz que os mortos no Sheol “admiram-se da sua situação, e a seu

respeito ponderam: ‘É esse o homem que fazia tremer a terra e abalava os reinos e

fez do mundo um deserto, conquistou cidades e não deixou que os seus

prisioneiros voltassem para casa?’” (v. 16). Antes que um imortalista use esse texto

para fundamentar a crença em um Sheol com vida consciente, os versos seguintes

explicam o sentido daquilo que foi alegoricamente exposto no diálogo,

confirmando o paralelismo do verso 15, que iguala o Sheol à cova:

47
#953 da Concordância de Strong.

94
“Todos os reis das nações jazem honrosamente, cada um em seu próprio

túmulo. Mas você é atirado fora do seu túmulo, como um galho rejeitado;

como as roupas dos mortos que foram feridos pela espada; como os que
descem às pedras da cova; como um cadáver pisoteado, você não se unirá a
eles num sepultamento, pois destruiu a sua própria terra, e matou o seu

próprio povo. Nunca se mencione a descendência dos malfeitores!” (vs. 18-20)

Em outras palavras, o fato concreto expressado por meio do discurso poético que

personificava tanto homens como árvores dizia respeito justamente ao fato de que

o rei da Babilônia seria privado de um sepultamento, tornando-se um cadáver a ser

pisoteado pelos homens, enquanto os outros reis que haviam morrido jaziam em

seu próprio túmulo. Era apenas uma forma poética de dizer que aquele rei tão

poderoso e temido pelas nações quando vivo teria na morte o mesmo destino

deles, mas ainda mais humilhante. Isso em nada tinha a ver com o conceito

imortalista de céu e inferno, de júbilo ou sofrimento no mundo porvir (note que

mesmo na linguagem alegórica da poesia, não é mencionado em momento algum

que o rei da Babilônia estaria queimando ou sofrendo, nem que os outros reis

estariam em bem-aventurança).

Um exemplo semelhante do Sheol sendo usado em um sentido figurado, com a

personificação até de árvores, é Ezequiel 31:16-18, que fala a respeito do rei do

Egito:

“Fiz as nações tremerem ao som da sua queda, quando o fiz descer à


sepultura junto com os que descem à cova. Então todas as árvores do Éden,

as mais belas e melhores do Líbano, todas as árvores bem regadas,

95
consolavam-se embaixo da terra. Todos os que viviam à sombra dele, seus

aliados entre as nações, também haviam descido com ele à sepultura,

juntando-se aos que foram mortos pela espada. Qual das árvores do Éden
pode comparar-se a você em esplendor e majestade? No entanto, você
também será derrubado e irá para baixo da terra, junto com as árvores do

Éden; você jazerá entre os incircuncisos, com os que foram mortos pela

espada. Aí estão o faraó e todo o seu grande povo, palavra do Soberano

Senhor” (Ezequiel 31:16-18)

Nas duas ocasiões em que constam o termo “sepultura”, tanto no verso 16 como no

17, é o Sheol que aparece no hebraico. O que o texto diz é que as árvores no Sheol

consolavam-se com a chegada do faraó, atribuindo a elas sentimentos humanos e

as situando na mesma habitação do faraó e seu exército depois da morte. A

despeito disso, desconheço imortalistas que enxerguem em Ezequiel 31 a prova de

que as árvores também tem uma alma imortal que vai para o mesmo lugar dos

espíritos humanos após a morte, embora seja esse o tipo de exegese que eles usem

em Isaías 14 para endossar a crença em almas vivas no Sheol.

Ezequiel 32 – Caso similar ocorre no capítulo seguinte, quando é dito a respeito do

Egito e de seus aliados:

Ezequiel 32

18 Filho do homem, lamente pelas multidões do Egito e faça descer para baixo da

terra tanto elas como as filhas das nações poderosas, junto com aqueles que

descem à cova.

96
19 Diga-lhe: “Acaso você merece mais favores do que os outros? Desça e deite-se

com os incircuncisos”.

20 Eles cairão entre os que foram mortos pela espada. A espada está preparada;

sejam eles arrastados junto com toda a multidão do seu povo.

21 De dentro do Sheol os poderosos líderes dirão ao Egito e aos seus aliados: “Eles

desceram e jazem com os incircuncisos, com os que foram mortos à espada”.

22 A Assíria está ali com todo o seu exército; está cercada pelos túmulos de todos

os seus mortos, de todos os que caíram pela espada.

23 Seus túmulos estão nas profundezas, e o seu exército jaz ao redor de seu

túmulo. Todos os que haviam espalhado pavor na terra dos viventes estão mortos,

caídos pela espada.

24 Elão está ali, com toda a sua população ao redor de seu túmulo. Todos eles estão

mortos, caídos pela espada. Todos os que haviam espalhado pavor na terra dos

viventes desceram incircuncisos para baixo da terra. Carregam sua vergonha com

os que descem à cova.

25 Uma cama está preparada para ele entre os mortos, com todas as suas hordas

em torno de seu túmulo. Todos eles são incircuncisos, mortos pela espada. Porque

o seu terror havia se espalhado na terra dos viventes, eles carregam sua desonra

com aqueles que descem à cova; jazem entre os mortos.

26 Meseque e Tubal estão ali, com todas a sua população ao redor de seus túmulos.

Todos eles são incircuncisos, mortos à espada porque espalharam o seu terror na

terra dos viventes.

27 Acaso não jazem com os outros guerreiros incircuncisos que caíram, que

desceram ao Sheol com suas armas de guerra, cujas espadas foram postas debaixo

de suas cabeças? O castigo de suas iniquidades está sobre seus ossos, embora o

pavor causado por esses guerreiros tenha percorrido a terra dos viventes.

97
28 Você também, ó faraó, será abatido e jazerá entre os incircuncisos, com os que

foram mortos à espada.

29 Edom está ali, seus reis e todos os seus príncipes; a despeito de seu poder, jazem

com os que foram mortos à espada. Jazem com os incircuncisos, com aqueles que

descem à cova.

30 Todos os príncipes do norte e todos os sidônios estão ali; eles desceram com os

mortos cobertos de vergonha, apesar do pavor provocado pelo poder que tinham.

Eles jazem incircuncisos com os que foram mortos à espada e carregam sua desonra

com aqueles que descem à cova.

31 O faraó, ele e todo o seu exército, os verá e será consolado da perda de todo o

seu povo que foi morto à espada, palavra do Soberano Senhor.

32 Embora eu o tenha feito espalhar pavor na terra dos viventes, o faraó e todo o

seu povo jazerão entre os incircuncisos, com os que foram mortos pela espada,

palavra do Soberano Senhor.

Eu coloquei em vermelho os trechos da perícope que mencionam o Sheol no

hebraico, e que são às vezes tirados totalmente do contexto por imortalistas

malandros que tentam usá-los para provar a consciência da alma no Sheol. Mas

como qualquer leitor pode observar ao ler todo o contexto, trata-se apenas de

linguagem poética para se falar da sepultura, o destino comum e universal de todos

os mortos. Por isso o Sheol é citado em paralelismo com o túmulo (qeber), como se

fossem a mesma coisa. Note que parte alguma do texto fala de almas ou espíritos

desencarnados, muito menos de tormento com fogo ou de torturas infernais,

apenas se refere ao Sheol como um local onde todos os corpos mortos pela espada

jazem.

98
O verso 18 começa dizendo que as multidões do Egito desceriam para baixo da

terra, o que para os imortalistas é uma linguagem que se refere ao inferno ou ao

“mundo espiritual dos mortos” na outra dimensão. Contudo, a própria continuação

do verso diz que elas desceriam «junto com aqueles que descem à cova (bowr)»,

referindo-se à sepultura, não a uma dimensão espiritual de vida consciente. O verso

seguinte diz que eles desceriam e se deitariam com os incircuncisos, onde “deitar”

(shakab, que também significa “descansar” ou “repousar”48) é uma força de

expressão para falar do indivíduo na sepultura, e não como se houvesse uma rede

de dormir no inferno.

O verso 21 é o que os imortalistas citam fora de contexto para dizer que os líderes

“falaram” dentro do Sheol, mas se esquecem que o que foi dito é que «eles

desceram e jazem com os incircuncisos, com os que foram mortos à espada»,

usando o mesmo termo hebraico shakab, que diz respeito a uma pessoa morta na

sepultura. A não ser que o ímpio esteja repousando tranquilamente no inferno, o

sentido do texto é que os egípcios se tornariam iguais aos demais mortos; ou seja,

que “descansariam” o sono da morte na sepultura assim como eles, sem terem mais

como oprimir outros povos.

O que prova este sentido com mais clareza é o verso seguinte, que diz que «a Assíria

está ali com todo o seu exército; está cercada pelos túmulos de todos os seus

mortos, de todos os que caíram pela espada». Primeiro ele diz que a Assíria “está

ali”, ou seja, no mesmo lugar que os egípcios estariam (que de acordo com o verso

anterior, diz respeito ao Sheol). Se os imortalistas estão certos, portanto, os assírios

48
#7901 da Concordância de Strong.

99
estariam numa dimensão espiritual metafísica, que seria a morada dos espíritos fora

do corpo. Mas observe como a continuação do texto refuta toda pretensão de se

interpretá-lo desta forma, já que diz que «está cercada pelos túmulos de todos os

seus mortos».

A não ser que os túmulos também tenham sido teletransportados para uma outra

dimensão, é evidente que o autor estava falando apenas da sepultura ou cova, onde

os assírios estariam enterrados com todos os seus mortos. Em outras palavras, de

acordo com o verso anterior, o “está ali” se refere ao Sheol, e, de acordo com a

continuação do verso, se refere à sepultura. Isso não é uma contradição, uma vez

que, como vimos, o Sheol é precisamente a “sepultura universal dos mortos” – mas

seria um grande problema se o entendêssemos como um lugar de vida consciente

de espíritos incorpóreos, que de modo algum poderia ser igualado à sepultura.

Note ainda que o verso 23 prossegue dizendo que «seus túmulos estão nas

profundezas», e que o exército «jaz ao redor de seu túmulo». Tudo isso comprova

que o autor não estava falando de um mundo espiritual numa realidade metafísica,

mas da própria sepultura, onde o exército jaz (descansa) após a morte. Isso também

confirma que o termo “profundezas”, na Bíblia, não diz respeito a um “mundo

inferior” no interior da terra, como afirmam os imortalistas mais fundamentalistas,

já que a expressão é usada aqui para descrever os túmulos (qeber).

“Descer para baixo da terra”, portanto, não designava um mundo subterrâneo dos

espíritos, mas dizia respeito à condição dos cadáveres que desceram à cova, como

diz o verso seguinte:

100
“Elão está ali, com toda a sua população ao redor de seu túmulo. Todos eles

estão mortos, caídos pela espada. Todos os que haviam espalhado pavor na

terra dos viventes desceram incircuncisos para baixo da terra. Carregam sua
vergonha com os que descem à cova” (v. 24)

É neste contexto que aparece a segunda menção ao Sheol na perícope, que fala dos

guerreiros incircuncisos “que desceram ao Sheol com suas armas de guerra” (v. 27).

Se o Sheol é uma habitação de espíritos incorpóreos em outra dimensão ou um

mundo subterrâneo para onde vão as almas, isso significaria que os espíritos

imateriais descem ao Sheol com suas armas (físicas) na mão, o que é tão pitoresco

que nenhum imortalista admitiria. Agora veja como o texto faz um completo

sentido na visão mortalista bíblica, que entende o Sheol como a região subterrânea

da terra, compreendendo todos os que morreram e estão embaixo da terra. Neste

caso, o que o texto está dizendo é que eles pereceram ainda com suas armas em

punho, no contexto da batalha, e ali foram soterrados. De longe uma interpretação

muito mais lógica e coerente.

É digno de nota que logo após dizer que os edomitas “jazem com os incircuncisos,

com aqueles que descem à cova” (v. 29), Deus continua dizendo que “todos os

príncipes do norte e todos os sidônios estão ali; eles desceram com os mortos

cobertos de vergonha” (v. 30). Para onde foi que eles desceram? Onde é o “ali”?

Obviamente, ele não está falando de um mundo espiritual em outra dimensão, mas

da cova, como diz o final do verso anterior, complementado pelo verso 30. O texto

termina dizendo que “embora eu o tenha feito espalhar pavor na terra dos viventes,

o faraó e todo o seu povo jazerão entre os incircuncisos, com os que foram mortos

pela espada” (v. 32).

101
Essa é a tônica de todo o capítulo: o faraó, tão temido pelos viventes, terminaria

como qualquer outro na morte. Ele não teria um destino especial, como criam os

egípcios que faziam questão de embalsamar os faraós pensando na outra vida. Em

vez da sobrevivência da alma em um mundo espiritual, o que o faraó teria era um

fim indigno e vergonhoso na sepultura, como todos os demais. É notável que,

embora o capítulo fale de um homem ímpio e de nações ímpias, não há nada ali

que faça alusão a um tormento no pós-morte, a torturas colossais, a demônios de

rabo grande e tridente ou a um fogo inextinguível.

Mesmo quando alguém “fala”, é no mesmo sentido poético/alegórico que as

árvores também falam, e a própria fala serve pra destacar não uma vida consciente

em meio aos tormentos ou às bem-aventuranças celestiais, mas precisamente o fim

da existência na sepultura. Como comenta Samuele Bacchiocchi, “esta dificilmente

seria uma descrição de almas desfrutando bem-aventuranças paradisíacas ou

tormentos do inferno. É, antes, uma representação figurada da humilhação da

sepultura que aguarda aqueles que abusam de seu poder nesta vida”49.

Até mesmo Robert A. Peterson, em um livro em que defende o tormento eterno no

inferno, reconhece que

Isaias 14 e Ezequiel 31 e 32, capítulos tradicionalmente entendidos

como referindo-se ao inferno, fazem mais sentido se os tomarmos

falando da sepultura. Os quadros do rei de Babilônia com gusanos e

49
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 155.

102
vermes cobrindo-o (Is 14:11) e do faraó jazendo entre guerreiros

caídos com suas espadas debaixo da cabeça (Ez 32:27) não falam de

inferno, mas da humilhação da sepultura.50

O desconhecimento a respeito da recorrente personificação de coisas inanimadas

na Bíblia quando se trata de linguagem poética ou alegórica os leva a tomar uma

parábola como a prova mais forte de imortalidade da alma na Bíblia, à exemplo das

alegorias de Isaías 14 e de Ezequiel 32 que, em vez de provar que o Sheol é uma

habitação de almas conscientes, prova exatamente o contrário. Trata-se, é claro, da

parábola do rico e Lázaro, que muitos citam para apoiar a visão do Sheol/Hades

como uma morada de espíritos fora do corpo.

• O Hades na parábola do rico e Lázaro

Uma parábola dos tempos modernos – Certa vez, morreram, na mesma hora, em

lugares diferentes, mas não muito distante um do outro, dois homens. O primeiro

era um senhor simples, sem estudos, motorista de ônibus na pequena região onde

morava. Era conhecido de todos, principalmente pela má execução de sua tarefa

profissional. Era muito, mas muito barbeiro. Foi assim a vida toda, até que morreu

em acidente de trânsito. O segundo homem era o pastor da cidadela. Pois bem,

chegaram na porta do céu praticamente juntos. São Pedro atendeu primeiro o

motorista.

50
PETERSON, Robert A. Hell on Trial: The Case for Eternal Punishment. Phillipsburg: Presbyterian &
Reformed, 1995, p. 28.

103
No questionário de admissão para entrar no céu, quando São Pedro queria saber

quem ele era, aquele homem começou a explicar: eu sou aquele conhecido

motorista de ônibus, da empresa tal, de tal cidade, e tal e tal...

“Ah, tá!”, disse São Pedro. “Você é o motorista barbeiro!”. “Justamente”, respondeu

o homem. “Pois bem!”, disse São Pedro. “Entre! O céu é todo seu!”.

O pastor, que estava assistindo a entrevista enquanto esperava para ser também

atendido, pensava: “Se este homenzinho foi admitido ao céu, imagine eu, o

pregador”.

São Pedro se virou para o pastor: “Você é o próximo?”

“Sim”, respondeu o pastor, todo empolgado: “Sou o pastor, da mesma cidade deste

barbeiro que acabou de entrar...”.

São Pedro cortou: “Olha, eu sei quem você é. Infelizmente, você não tem entrada

livre ao céu. Não poderá ficar aqui”.

“Mas como?”, contestou o pastor. “Este homenzinho ignorante, iletrado, que fazia

seu trabalho mal feito, que não pregava, que vivia dando prejuízo pra empresa, que

sempre deixava todos os seus passageiros tensos e temerosos, vai entrar no céu, e

eu, o pregador, que vivia na igreja, que falava da palavra de Deus, que procurava

deixar todos em paz, não poderei entrar?”.

104
“É justamente nesta diferença que está a razão da rejeição de sua entrada em face

da admissão do motorista”, respondeu São Pedro.

“Não entendi”, disse o pregador.

O apóstolo porteiro do céu explicou: “É que enquanto você estava na igreja, com

seus sermões sem vida, colocando todos os seus fiéis para dormir, o motorista

estava colocando todos os seus passageiros para rezar”.

***

A parábola que você leu acima costuma ser contada pelo pastor adventista Valdeci

Junior aos seus ouvintes, ao introduzir a parábola do rico e Lázaro. Depois que ele

conta a história, ainda antes de revelar ao auditório qual será o assunto do dia,

começa a perguntar às pessoas quais são as lições que elas tiraram da história. É

interessante notar alguns pontos da reação do auditório. Assim que termina a

história, os ouvintes sorriem e vão fazendo a lista das lições aprendidas:

“Nem todo o que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus”

“Os simples também têm entrada no céu”

“É melhor a devoção do que o formalismo”

“Ser pastor não garante a salvação”

“O pregador deve fazer bons sermões”

“O céu não admite só pela aparência”

“As aparências enganam”

“Devemos vigiar e orar”

105
E por aí vai...

O interessante é que ninguém até hoje diz que viu nesta história lições como:

“São Pedro está na porta do céu esperando por nós”

“Antes de entrarmos no céu teremos que passar por uma entrevista”

“Assim que morremos chegamos ao céu”

“Pode ser que cheguemos à porta do céu e não sejamos admitidos”

“A alma é imortal”

Ninguém se escandaliza por isso ou ridiculariza a história. Esperam então que ele

introduza o assunto da palestra baseado em alguma das lições que conseguiram

tirar dela. Começam a imaginar qual será o tema da noite. Jamais pensam que ele

iria falar da parábola do rico e do Lázaro. Ele se aproveitou de uma crendice popular

apenas como um cenário onde se passava uma história fictícia, a fim de ensinar

algumas lições. Por quê?

• O auditório sabe que esta não é uma história verdadeira.

• Eles conhecem a crendice popular de que quem morre vai pro céu, e na entrada

encontra São Pedro.

• Eles não creem nesta crendice como doutrina. Sabem que isto não é verdade (o

pastor já conhece o auditório e sabe que eles creem como ele crê, sobre o destino

do homem após a morte).

106
• O auditório vai conseguir captar as lições que ele quer ensinar com mais facilidade,

pois, através de uma metáfora, está figurando o ensino. Isto é didática. A primeira

vez que ele ouviu esta história, ela foi contada por um palestrante que não cria na

imortalidade da alma, para um público que também não cria. Na ocasião, todos

entenderam a mensagem. A questão de mortalidade ou imortalidade não foi

cogitada por ninguém. Não era este o assunto.

Parábolas devem ser interpretadas literalmente? – Jesus contou a parábola do rico

e Lázaro pela mesma razão que o pastor adventista contou a parábola do pastor e

do barbeiro. Nenhum deles estava querendo endossar alguma doutrina errônea

sobre a vida após a morte, porque o propósito passava longe de ser uma aula

teológica sobre o que acontece depois da morte. Tanto os ouvintes de Jesus como

os do pastor Valdeci eram perfeitamente bem doutrinados para saber disso. Nos

tempos de Jesus, parábolas eram bem mais comuns do que são hoje, e ninguém

em sã consciência as interpretaria literalmente. Eles sabiam que uma parábola é por

definição uma alegoria, como diz o dicionário Michaelis:

PARÁBOLA

■ substantivo feminino

1 Narrativa alegórica que tem por objetivo transmitir uma mensagem de maneira

indireta, usando como recurso a analogia ou a comparação.

2 Narrativa alegórica que transmite preceitos morais ou religiosos, comum nas

Escrituras Sagradas.51

51
Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-
brasileiro/par%C3%A1bola>. Acesso em: 18/09/2020.

107
Quando um imortalista iletrado diz que “se a parábola não é real, então Jesus

mentiu”, mostra em primeiro lugar que não sabe sequer o significado básico de uma

parábola, que jamais teve o objetivo de ser uma história real ou de expressar

necessariamente coisas reais. A prova disso é que na Bíblia não faltam exemplos de

parábolas onde árvores falam e conversam entre si, e nem por isso os mesmos

imortalistas dizem que os personagens bíblicos “mentiram”, ou que árvores falem

mesmo. Por exemplo, no livro de 2ª Reis, nós lemos:

“Então Amazias enviou mensageiros a Jeoás, filho de Jeoacaz e neto de Jeú,

rei de Israel, com este desafio: ‘Venha me enfrentar’. Contudo, Jeoás

respondeu a Amazias: ‘O espinheiro do Líbano enviou uma mensagem ao

cedro do Líbano: Dê sua filha em casamento a meu filho. Mas um animal

selvagem do Líbano veio e pisoteou o espinheiro. De fato, você derrotou

Edom e agora está arrogante. Comemore a sua vitória, mas fique em casa!

Por que provocar uma desgraça que levará você e também Judá à ruína?’”

(2ª Reis 14:8-10)

O objetivo de Jeoás obviamente não era ensinar que os espinheiros literalmente

conversam com os cedros do Líbano, assim como o objetivo de Jesus ao contar a

parábola do rico e Lázaro obviamente não era dizer que o Sheol/Hades era um lugar

de almas queimando ou conversando entre si. Em ambos os casos, a conversa das

árvores ou dos mortos serve apenas como um «recurso de analogia ou

comparação», que é precisamente no que consiste uma parábola.

108
Em outras palavras, embora os elementos em si (espinheiros, cedros ou mortos)

sejam fictícios, eles transmitem uma lição moral mais profunda, que é de fato o

objetivo do autor ao usar a parábola. Em Juízes vemos uma parábola semelhante,

onde uma verdade é novamente ilustrada através de um diálogo fictício entre as

árvores:

“Certo dia as árvores saíram para ungir um rei para si. Disseram à oliveira:
‘Seja o nosso rei!’. A oliveira, porém, respondeu: ‘Deveria eu renunciar ao meu

azeite, com o qual se presta honra aos deuses e aos homens, para dominar

sobre as árvores?’. Então as árvores disseram à figueira: ‘Venha ser o nosso

rei!’. A figueira, porém, respondeu: ‘Deveria eu renunciar ao meu fruto

saboroso e doce, para dominar sobre as árvores?’. Depois as árvores disseram

à videira: ‘Venha ser o nosso rei!’. A videira, porém, respondeu: ‘Deveria eu

renunciar ao meu vinho, que alegra os deuses e os homens, para ter domínio
sobre as árvores?’. Finalmente todas as árvores disseram ao espinheiro:

‘Venha ser o nosso rei!’. O espinheiro disse às árvores: ‘Se querem realmente

ungir-me rei sobre vocês, venham abrigar-se à minha sombra; do contrário,

sairá fogo do espinheiro e consumirá até os cedros do Líbano!’” (Juízes 9:8-15)

Jotão contou essa parábola para ilustrar o quão errada foi a escolha dos israelitas

por Abimeleque como rei, o qual havia assassinado os seus irmãos a sangue frio. Ao

invés deles escolherem homens mais dignos, representados pelas árvores mais

“nobres”, escolheram justamente um assassino sanguinário, representado pelo

espinheiro. Aqui nós novamente vemos um cenário totalmente fictício envolvendo

conversas entre árvores, não para fundamentar uma doutrina de árvores falantes,

mas para ilustrar uma verdade mais profunda através do uso da alegoria.

109
Se em parábolas até árvores ganham personalidade e falam, não admira que haja

na Bíblia textos em menor quantidade que apresentem mortos “vivos” falando

alguma coisa, uma vez que tanto os mortos como as árvores são seres inanimados

que podem ser personificados em cenários alegóricos com um propósito

ilustrativo. A razão pela qual os imortalistas interpretam a parábola do rico e Lázaro

literalmente para dizer que os mortos estão vivos no mundo do além, mas não

fazem o mesmo com as parábolas que dão personalidade e consciência às árvores,

é tão-somente porque estão apegados à pressuposição de que as almas são

imortais e precisam desesperadamente encontrar apoio bíblico a isso.

A história do rico e Lázaro não é uma parábola? – A única alternativa que lhes resta

é dizer que Lucas 16:19-31 não é uma parábola, mas uma história real. Este é o único

jeito de exigir a literalidade do texto, o que distinguiria essa parábola das parábolas

em que árvores falam e outras de natureza claramente simbólica. No entanto, essa

tentativa esbarra nas evidências esmagadoras tanto dentro como fora de Lucas

110
16:19-31 que demonstram que Jesus estava contando, de fato, uma parábola, e não

uma história real.

Para começo de conversa, esse trecho de Lucas se encontra justamente no meio de

parábolas bem conhecidas de Lucas. Tanto os capítulos precedentes como os

seguintes, e incluindo o próprio capítulo 16, são recheados de parábolas dos mais

variados tipos, como se Lucas tivesse reservado essa parte do livro quase que

exclusivamente às parábolas de Jesus (de fato, Lucas é de longe o evangelista que

mais narra parábolas de Jesus, e muitas delas nós conhecemos apenas por seu

registro, como a do bom samaritano e a do filho pródigo, além dessa do rico e

Lázaro).

CAP.14 – A parábola da grande festa

CAP.15 – A parábola da ovelha perdida

CAP.15 – A parábola da moeda perdida

CAP.15 – A parábola do filho pródigo

CAP.16 – A parábola do administrador desonesto

CAP. 16 – A ******** do rico e Lázaro

CAP.17 – A parábola do empregado

CAP.18 – A parábola da viúva e do juiz

Teria Lucas incluído uma história real justamente no meio de uma série de

parábolas? Há quem diga que sim, porque em Lucas 16:19-31 ele não diz

expressamente que se trata de uma parábola. No entanto, seria inteiramente

desnecessário, dado o fato de que Lucas citava várias parábolas de Jesus em

sequência. Isso seria como um comediante num show de Stand Up precisar

111
interromper sua apresentação para avisar os ouvintes de que aquilo que ele

contaria em seguida seria mais uma piada, o que não faz o menor sentido. Se a

parábola do rico e Lázaro estivesse inserida em meio a histórias reais, seria de se

esperar um aviso prévio como esse, mas não quando todo o contexto é parabólico.

Isso explica por que muitas outras dessas parábolas também não vem com um aviso

prévio de que é uma parábola, como por exemplo a parábola da moeda perdida (Lc

15:8-9), a parábola do filho pródigo (Lc 15:11-32) e a do administrador desonesto

(Lc 16:1-8), que antecedem a do rico e Lázaro. A razão disso é que era totalmente

desnecessário enfatizar que era uma outra parábola quando vem contando várias

parábolas em sequência, o que está obviamente pressuposto a qualquer pessoa

com um QI acima de zero.

Há vários outros casos em que Jesus não diz expressamente que se trata de uma

parábola, mas seus discípulos entenderam dessa maneira. Por exemplo, em Lucas

12:37-40 Jesus conta uma história sem dizer que é uma parábola, e em seguida

Pedro pergunta: “Senhor, estás contando esta parábola para nós ou para todos?”

(Lc 12:41). O mesmo acontece em Mateus 15:14-15, quando Pedro pede para Jesus

explicar uma parábola sem que Jesus tivesse avisado se tratar de uma.

Em Lucas 5:36, o evangelista diz que Jesus “lhes contou esta parábola...”, mas a

mesma parábola é citada em Marcos 2:21 sem a informação prévia de que se tratava

de uma parábola. Isso nos mostra que nem os evangelistas faziam questão de

acentuar que se tratava de uma parábola, nem os discípulos precisavam que Jesus

afirmasse expressamente que se tratava de uma. Eles naturalmente entendiam que

112
quando Jesus contava histórias ele estava falando através de parábolas, porque ele

“nada lhes dizia sem usar alguma parábola” (Mt 13:34).

Embora não poucos imortalistas reconheçam que em Lucas 16:19-31 Jesus estava

contando outra parábola, muitos dizem que este caso é uma exceção à regra, e que

Jesus contava uma história real. O “argumento” deles é que Jesus usou um verbo de

existência quando disse que “havia um homem rico...” (v. 19), e que isso provaria

que se tratava de uma história real. Trata-se de um argumento que além de bobo

ainda demonstra o peso da ignorância de nossos proponentes, pois o termo “haver”

não consta no original grego, que diz apenas “anthrōpos de tis ēn plousios kai

enedidysketo porphyran” (“certo homem rico se vestia de púrpura...”).

O “havia” é uma inserção no texto feita pelos tradutores, que fizeram o mesmo no

início do capítulo, na parábola do administrador desonesto: “Havia um homem rico

que tinha um administrador; e este lhe foi denunciado como quem estava a

defraudar os seus bens...” (Lc 16:1). Os imortalistas saberiam disso se tivessem feito

uma pesquisa básica antes de repetir bobagens de terceiros e usá-las como

argumento. E mesmo se o grego usasse mesmo um verbo de existência, isso apenas

implicaria que o rico existia na parábola, da mesma forma que o filho pródigo existia

na parábola, bem como os acontecimentos que o cercam:

“Depois de ter gasto tudo, houve uma grande fome em toda aquela região, e

ele começou a passar necessidade” (Lucas 15:14)

Diferentemente de Lucas 16:19, onde o “havia” é uma inserção que não consta no

original grego, aqui na parábola do filho pródigo aparece o termo grego ginomai,

113
que significa «vir à existência, começar a ser, receber a vida»52. Nem por isso alguém

acredita que a parábola do filho pródigo era uma história real, como afirmam alguns

a respeito da parábola do rico e Lázaro (que não usa um verbo de existência). Um

autor de ficção, como Lewis e Tolkien, frequentemente usa verbos de existência em

sua história, não porque esteja descrevendo algo real, mas porque aquilo existe

dentro da ficção.

Os problemas da interpretação literal – Ademais, os próprios detalhes narrativos

da parábola do rico e Lázaro provam que se trata mesmo de uma parábola, isto é,

de uma alegoria sem nenhuma pretensão de ser entendida literalmente. Muitos

imortalistas são rápidos em citar a parábola como uma “prova” da imortalidade da

alma, mas se esquecem dos detalhes incômodos que ela apresenta:

Lucas 16

19 Havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e vivia no luxo

todos os dias.

20 Diante do seu portão fora deixado um mendigo chamado Lázaro, coberto de

chagas;

21 este ansiava comer o que caía da mesa do rico. Em vez disso, os cães vinham

lamber as suas feridas.

22 Chegou o dia em que o mendigo morreu, e os anjos o levaram para junto de

Abraão. O rico também morreu e foi sepultado.

23 No Hades, onde estava sendo atormentado, ele olhou para cima e viu Abraão de

longe, com Lázaro ao seu lado.

52
1096 da Concordância de Strong.

114
24 Então, chamou-o: “Pai Abraão, tem misericórdia de mim e manda que Lázaro

molhe a ponta do dedo na água e refresque a minha língua, porque estou sofrendo

muito neste fogo”.

25 Mas Abraão respondeu: “Filho, lembre-se de que durante a sua vida você

recebeu coisas boas, enquanto que Lázaro recebeu coisas más. Agora, porém, ele

está sendo consolado aqui e você está em sofrimento.

26 E além disso, entre vocês e nós há um grande abismo, de forma que os que

desejam passar do nosso lado para o seu, ou do seu lado para o nosso, não

conseguem”.

27 Ele respondeu: “Então eu lhe suplico, pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai,

28 pois tenho cinco irmãos. Deixa que ele os avise, a fim de que eles não venham

também para este lugar de tormento”.

29 Abraão respondeu: “Eles têm Moisés e os Profetas; que os ouçam”.

30 “Não, pai Abraão, disse ele, mas se alguém dentre os mortos fosse até eles, eles

se arrependeriam”.

31 Abraão respondeu: “Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se

deixarão convencer, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”.

O primeiro detalhe interessante é que a parábola simplesmente não menciona alma

ou espírito. Apenas diz que “o rico foi sepultado”, e então ele aparece no Hades.

Isso não é um mero detalhe sem relevância, porque, como veremos, a parábola

personifica personagens inanimados, tal como as parábolas de árvores falantes.

Por essa razão, os personagens aparecem no Hades com o corpo físico, não como

uma alma desencarnada ou um espírito sem corpo. Isso fica nítido no verso 24, em

que o rico pede a Lázaro que “molhe a ponta do dedo na água e refresque a minha

língua”.

115
Isso mostra que Lázaro tinha dedos e que o rico tinha língua, que são, obviamente,

órgãos de um corpo humano físico, e não partes de um espírito imaterial ou de uma

alma incorpórea. Como comenta Bacchiocchi, “eles são retratados como existindo

fisicamente, a despeito do fato de que o corpo do homem rico foi devidamente

depositado na sepultura. Foi o seu corpo levado ao Hades juntamente com sua

alma por engano?”53. Não me surpreenderia que alguém chegasse ao ponto de

sugerir que o espírito fora do corpo tem os mesmos órgãos do corpo físico, para

superar esses problemas intransponíveis. Neste caso, de que serviria o corpo? Mais

do que isso, se um espírito já tem corpo, por que raios existiria a ressurreição do

corpo?

A coisa piora quando se nota o desejo do rico de refrescar a sua língua, o que indica

que ele sentia sede. Como é evidente, a sede é uma característica do corpo

biológico, não de um espírito imaterial e fluídico. Nem Deus nem os anjos precisam

“refrescar a língua”, porque não tem um corpo para sentir sede. O rico precisava,

porque ele não estava ali como um “fantasminha”, mas corporalmente,

precisamente porque o Sheol é um lugar de corpos mortos (que ganham “vida” no

contexto da parábola, exatamente como as árvores falantes).

Uma interpretação literal da parábola também abre margem a uma série de

inconsistências, que os imortalistas dificilmente desejariam incluir em sua teologia.

Por exemplo, ela abriria espaço para a crença de que os salvos no céu poderão

conversar tranquilamente com os ímpios no inferno, assim como o rico conversa

53
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 165.

116
com Lázaro. Imagine você não apenas saber que seu filho está queimando no

inferno em um terrível sofrimento sem fim, mas ainda poder vê-lo sofrendo diante

dos seus olhos e se comunicar com ele sem poder fazer nada para atenuar seu

sofrimento ou livrá-lo dali. Certamente uma experiência desse tipo seria traumática,

mesmo para aqueles que estivessem no céu.

Embora alguns imortalistas afirmem que após a morte de Jesus os salvos no “seio

de Abraão” foram magicamente transferidos para uma dimensão celestial e não

tem mais contato com os perdidos no inferno, ainda assim teriam que lidar com o

fato de que por pelo menos quatro mil anos (desde o início da criação até a vinda

de Cristo) isso não apenas era possível, mas acontecia realmente. Se você nunca viu

um pastor ou padre pregar que os salvos no Paraíso podiam ou podem ver e

conversar com os ímpios no inferno, talvez seja porque até eles sabem que a

parábola não pode ser interpretada literalmente, mas mesmo assim a usam para

“provar” a sobrevivência da alma. Não há nada que não mude conforme a

conveniência.

Para piorar, Abraão e o rico conversam como se estivessem perto um do outro, mas

o próprio relato diz que havia «um grande abismo» entre eles, tão grande que

impedia Lázaro de molhar a língua do rico e de alguém passar de um lado para o

outro (v. 26). Mesmo se estivessem próximos, dificilmente poderiam se ouvir com

clareza, já que milhões de pessoas naquele lugar estariam gritando e berrando sem

parar em um sofrimento incalculável. O próprio rico dificilmente conseguiria manter

um diálogo daqueles com Abraão, se estivesse realmente “sofrendo muito neste

fogo” (v. 24).

117
O diálogo, assim como tudo o que ronda o relato, é bem típico de uma história

fictícia, e, como toda ficção, esbarra em absurdos lógicos quando passado para a

realidade. Ainda que o rico conseguisse dialogar tranquilamente com Abraão

daquela distância e enquanto sofria amargamente entre as chamas, por que diabos

ele pediria para Lázaro molhar a sua língua, quando todo o seu corpo estava sendo

devorado pelo fogo? Eu nunca vi alguém que está sendo queimado se preocupar

com refrescar a língua, a não ser que apenas a língua estivesse pegando fogo. Ou o

fogo da parábola é de mentirinha, ou as reações ao fogo é que são.

Como observa Bacchiocchi,

um abismo separa Lázaro no céu (o seio de Abraão) do homem rico

no Hades. O abismo é por demais amplo para qualquer um atravessar,

contudo, estreito o suficiente para permitir que conversem. Tomado

literalmente, isso significa que o céu e o inferno mantêm uma

distância geográfica que permite a santos e pecadores ver e

comunicar-se uns com os outros, eternamente. Ponderemos por um

momento o caso de pais no céu vendo seus filhos agonizando no

Hades por toda a eternidade. Tal visão não destruiria a própria alegria

e paz do céu? É impensável que os salvos verão e conversarão com

seus queridos não-salvos por toda a eternidade através de um abismo

divisório”54

54
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 165-166.

118
Eu nem vou entrar em mais detalhes problemáticos, como de que forma o rico sabia

que era Abraão, ou como reconheceu Lázaro de tão longe entre as fumaças de uma

fornalha, ou para onde iam as pessoas no “seio de Abraão” antes de Abraão existir,

ou por que ele pediria que Lázaro molhasse apenas “a ponta do dedo na água” (v.

24), algo que sequer serviria para transportar a água de um lugar a outro, em vez

de pedir um verdadeiro “banho de água”, ou de que forma algumas gotas de água

iriam aliviá-lo de um tormento num lago de fogo inextinguível (as quais

presumivelmente se dissolveriam antes que chegassem ao lugar onde o rico

estava), entre outros detalhes intrigantes da perícope.

Também chama a atenção que o rico peça que Abraão mande Lázaro de volta ao

mundo dos vivos, como se Abraão tivesse algum poder para isso, em lugar de Deus.

E embora Abraão não atenda o pedido, ele não diz que não tinha esse poder, como

quando mencionou o grande abismo que impedia Lázaro de ajudá-lo lançando

água. É intrigante como os mesmos imortalistas que de forma irresponsável e

leviana citam fora de contexto os trechos da parábola que lhes convém para dizer

que os mortos estão vivos no mundo do além não fazem o mesmo para sustentar a

doutrina de que os espíritos descem ao Hades com o corpo físico, que os salvos

podem conversar tranquilamente com os não-salvos do outro lado depois da

morte, que a maior preocupação de quem tem o corpo queimado no inferno é

refrescar a língua ou que é possível ter um diálogo normal com alguém que está

tão longe num ambiente tomado pela gritaria e pelo pânico.

Isso eles obviamente descartam e omitem de suas conclusões teológicas em cima

da interpretação literal da parábola, seja por cinismo e desonestidade, seja pela

simples ignorância e amadorismo. Como comenta Bacchiocchi, “vez após vez

119
tenho-me surpreendido com o fato de que até mesmo conceituados eruditos com

frequência ignoram um princípio hermenêutico fundamental de que linguagem de

parábola não pode e não deve ser interpretada literalmente”55.

A razão pela qual é tão frequente ver teólogos “conceituados” citando a parábola

do rico e Lázaro como a “prova” da sobrevivência da alma é porque ela é

praticamente tudo o que eles tem, e sem ela o que sobra é meia-dúzia de textos

desconexos que nem remotamente indicam a imortalidade da alma. Essa é a

verdadeira e única razão por que eles precisam se apegar tão desesperadamente a

essa parábola como o “carro-forte” da doutrina que eles defendem, já que é o único

argumento capaz de ludibriar um leigo desavisado em uma leitura superficial e

desprovida de exegese.

Se a parábola não é literal, então Jesus mentiu? – É intrigante notar que os

mesmos imortalistas que cinicamente acusam os mortalistas de dizer que “Jesus

mentiu” ao contar uma parábola em que há vida após a morte não dizem que Jesus

mentiu quando afirmou a possibilidade de justos e ímpios conversarem após a

morte, embora eu não conheça um único imortalista tradicional que cogite tal coisa.

É como se Jesus pudesse ter “mentido” sobre os salvos e perdidos baterem papo

depois da morte, mas não pudesse “mentir” sobre existir vida consciente após a

morte. Eles pegam da parábola apenas o que lhes convém, para acusar os

mortalistas de fazer exatamente aquilo que eles mesmos fazem.

55
BACCHIOCCHI, Samuele. Imortalidade ou Ressurreição? Uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno. São Paulo: UNASPRESS, 2007, p. 154.

120
Não à toa a concepção tradicional de inferno nas teologias sistemáticas foge

completamente daquele apresentado na parábola, onde Abraão e Lázaro parecem

estar numa piscina conversando com o rico que queima do outro lado mas que está

mais preocupado em refrescar a língua. A própria alegação de que para os

mortalistas Jesus “mentiu” por ter contado essa parábola mostra o quanto os

nossos oponentes são debilitados intelectualmente, a ponto de serem incapazes de

perceber que só faz sentido falar em “mentira” em se tratando de histórias reais, não

de histórias fictícias, como uma parábola.

Se contar uma história fictícia fosse “mentir”, então todos os escritores de ficção

seriam grandes mentirosos. Algo só pode ser considerado uma mentira quando se

pretende dizer uma verdade literal em um contexto literal. Por exemplo, se alguém

estivesse sendo presunçoso e você lhe dissesse “tire o seu cavalinho da chuva”, ele

não poderia com justiça alegar que você é um mentiroso só porque ele não tem um

filhote de cavalo ou porque não está chovendo. Isso porque é óbvio, neste contexto,

que a declaração não tem a pretensão de ser entendida literalmente, da mesma

forma que ninguém na época de Jesus interpretaria uma parábola literalmente.

Para entender a diferença entre uma coisa e outra, imagine que eu dissesse a você

que vi ontem um alienígena saindo de um disco voador e abduzindo uma vaca

numa fazenda, e tentasse te convencer de que isso aconteceu mesmo, apesar de

nunca ter ocorrido. Neste caso, é evidente que eu estarei mentindo. Mas se eu

contar isso como uma piada ou como um conto folclórico, ninguém diria que eu

“menti”, mesmo que não exista alien algum na realidade. J. K. Rowling não “mentiu”

ao escrever Harry Potter, porque ninguém realmente acredita que haja crianças

praticando magia com varinhas mágicas.

121
Da mesma forma, Jesus não “mentiu” ao usar um cenário alegórico na parábola de

Lucas 16:19-31, da mesma forma que ninguém mentiu em Juízes 9:6-15 ou em 2ª

Reis 14:9 (nos textos que personificam árvores falantes), nem Tiago mentiu quando

falou da “ferrugem que testemunha” (Tg 5:3) ou do “salário que clama” (Tg 5:4), nem

Moisés mentiu quando falou do sangue de Abel que clama da terra em Gênesis

4:10, nem João mentiu quando disse que “os trovões falaram” (Ap 10:3), e o mesmo

se aplica aos “campos exultantes” (1Cr 16:32), às “árvores jubilantes” (1Cr 16:33), às

“colinas que irromperão em canto” (Is 55:12), às aves e peixes falantes (Jó 12:7-8) e

às montanhas que “regozijam” (Sl 98:8).

Como vemos, personificar coisas inanimadas é uma prática extremamente comum

na Bíblia, ainda mais em um contexto parabólico como esse. Assim como árvores

falantes em parábolas não provam que árvores realmente falam, mortos falantes

em outra parábola também não prova que os mortos realmente falam. Não

devemos condicionar a doutrina bíblica às parábolas, mas, ao contrário, condicionar

a interpretação da parábola àquilo que a Bíblia como um todo ensina sobre o tema

em questão. Nenhuma parábola que Jesus contou era uma história real, e nem por

isso ele era um mentiroso ou induzia as multidões ao erro, porque elas sabiam que

era uma parábola e sabiam no que uma parábola consistia.

Se um imortalista do século XXI não sabe, a culpa não é de Jesus, mas dele, por sua

própria ignorância. Nenhum dos ouvintes originais de Jesus seria induzido a pensar

que a alma sobrevive após a morte, da mesma forma que ninguém seria induzido a

tomar a mesma atitude que o administrador desonesto da parábola que Jesus

contou imediatamente antes, no início do capítulo. Nesta parábola, o mordomo

122
infiel desonestamente reduz pela metade os débitos de seus credores a fim de obter

deles algum benefício pessoal (Lc 16:1-9), mas ninguém acusa Jesus de incentivar a

desonestidade nos negócios.

É curioso observar que os mesmos imortalistas que usam os meios da parábola de

Lucas 16:19-31 para validar a imortalidade da alma não façam a mesma coisa com

os meios da parábola anterior de Lucas 15:1-9 para validar a administração

desonesta, apesar da parábola dizer que “o senhor elogiou o administrador

desonesto, porque agiu astutamente” (Lc 16:8). Dizem que “o que aconteceu em

Vegas, fica em Vegas”, e, da mesma forma, o que acontece numa parábola, fica na

parábola. É inapropriado e imprudente tirar conclusões teológicas em cima dos

meios de uma parábola, que, por definição, é uma história fictícia, expressa por

meio de alegorias. O que devemos tirar delas é sua lição moral, que, tal como na

parábola do pastor Valdeci, em nada tem a ver com a sobrevivência da alma.

O propósito de uma parábola – Quem diz que Jesus era imortalista porque contou

uma parábola que superficialmente pressupõe a sobrevivência da alma após a

morte não entende nem o que é uma parábola, muito menos o propósito de Jesus

ao usá-las. Isso porque a Bíblia é perfeitamente clara em dizer que Jesus não

contava as parábolas para deixar as coisas mais claras, mas justamente para mantê-

las escondidas do entendimento do povo de coração endurecido:

“Os discípulos aproximaram-se dele e perguntaram: ‘Por que falas ao povo


por parábolas?’. Ele respondeu: ‘A vocês foi dado o conhecimento dos

mistérios do Reino dos céus, mas a eles não. A quem tem será dado, e este

terá em grande quantidade. De quem não tem, até o que tem lhe será tirado.

123
Por essa razão eu lhes falo por parábolas: Porque vendo, eles não veem e,

ouvindo, não ouvem nem entendem. Neles se cumpre a profecia de Isaías:

Ainda que estejam sempre ouvindo, vocês nunca entenderão; ainda que
estejam sempre vendo, jamais perceberão’” (Mateus 13:10-14)

Isso significa que as parábolas que Jesus contava não podiam ser entendidas pelo

senso comum, como os imortalistas fazem ao dizer que a parábola do rico e Lázaro

ensina a imortalidade da alma. Se este fosse o propósito da parábola, isso seria tão

óbvio que de modo algum se enquadraria no que Jesus diz sobre a multidão ser

incapaz de entender as parábolas, porque não foi dado a ela o conhecimento dos

mistérios do Reino dos céus. Em outras palavras, só é possível entender as parábolas

de Jesus espiritualmente, e por essa razão o povo, que só via as coisas na superfície,

era incapaz de compreendê-las.

Para entender o que Jesus queria dizer era preciso mais do que uma análise

superficial, que é exatamente o mesmo erro que os imortalistas incorrem, os quais

são tão espiritualmente cegos quanto a multidão. Um “mistério” é por definição

algo que está escondido, oculto, mantido em segredo, não algo que esteja

escancarado diante de todos, mediante uma leitura superficial. Isso significa que

para entender o que Jesus queria dizer com a parábola do rico e Lázaro nós

devemos ir além da superfície, buscando captar a intenção por detrás dela – isto é,

seu significado espiritual e oculto, que se esconde no “mais profundo” que

geralmente passa imperceptível numa leitura superficial.

É por isso que, em se tratando de parábolas, o princípio elementar conhecido por

todo exegeta que se preze é retirar delas sua lição moral, e não os meios utilizados

124
para se chegar a isso. Da mesma forma que o conto do pastor Valdeci não tinha

qualquer objetivo de ser uma lição sobre o que acontece após a morte, mas apenas

se apropria de um conceito popular para extrair uma lição moral, assim também

ocorria com as parábolas de Jesus, muitas das quais deixariam os cristãos em apuros

se fossem interpretadas literalmente pelos seus meios.

Já citamos o exemplo da parábola anterior à do rico e Lázaro, em que o

administrador desonesto é elogiado por ter agido astutamente, mesmo ele tendo

roubado o seu patrão. Usando o mesmo recurso hermenêutico que os imortalistas

recorrem para corroborar a imortalidade da alma na parábola do rico e Lázaro,

qualquer um poderia concluir que aqui Jesus estava encorajando os negócios

desonestos, da mesma forma que estava incitando as pessoas a crerem na

sobrevivência da alma ao contar a parábola seguinte. Nós sabemos que isso não é

verdade porque a lição moral da parábola frequentemente não tem qualquer

relação com seus meios, que nada mais são que um instrumento utilizado para se

chegar à lição, e não a lição em si.

No caso da parábola do administrador desonesto, a lição era que “quem é fiel no

pouco, também é fiel no muito, e quem é desonesto no pouco, também é

desonesto no muito” (Lc 16:10) – nada a ver com roubar o patrão – e, como veremos,

a lição da parábola do rico e Lázaro era que “se não ouvem a Moisés e aos Profetas,

tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”

(Lc 16:31) – nada a ver com a imortalidade da alma.

Em outra parábola, “um juiz que não temia a Deus nem se importava com os

homens” (Lc 18:2) decide atender o pedido de uma viúva de tanto que ela insistiu:

125
“Embora eu não tema a Deus e nem me importe com os homens, esta viúva está me

aborrecendo; vou fazer-lhe justiça para que ela não venha me importunar” (vs. 4-5).

Jesus contou essa parábola “para mostrar-lhes que eles deviam orar sempre e

nunca desanimar” (v. 1). Sendo Deus aquele que atende as orações, qualquer um

seria tentado a interpretar as palavras de Jesus no sentido de que Deus é um juiz

ímpio que se irrita com as nossas orações e só as responde para deixar de ser

importunado, que é o que se depreenderia de uma aplicação literal da parábola.

Mas a lição moral é apenas que “Deus lhes fará justiça, e depressa” (v. 8), aos “que

clamam a ele dia e noite” (v. 7).

Tome também como exemplo uma parábola semelhante a essa, em que Jesus diz:

“Suponham que um de vocês tenha um amigo e que recorra a ele à meia-

noite e diga: ‘Amigo, empreste-me três pães, porque um amigo meu chegou
de viagem, e não tenho nada para lhe oferecer’. E o que estiver dentro

responda: ‘Não me incomode. A porta já está fechada, e meus filhos estão


deitados comigo. Não posso me levantar e lhe dar o que me pede’. Eu lhes

digo: embora ele não se levante para dar-lhe o pão por ser seu amigo, por

causa da importunação se levantará e lhe dará tudo o que precisar. Por isso

lhes digo: Peçam, e lhes será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta
lhes será aberta” (Lucas 11:5-9)

Mais uma vez, uma aplicação literal da parábola nos levaria a pensar que Deus não

nos dá as coisas por ser nosso amigo, como Jesus disse que somos (Jo 15:15), mas

porque é importunado e quer se livrar desse incômodo o quanto antes. No entanto,

este é apenas um cenário fictício que em nada representa a realidade do mundo

126
espiritual, onde Deus “dá a todos liberalmente, de boa vontade” (Tg 1:5). A lição da

parábola não tinha nada a ver com Deus se irritar com nossos pedidos, mas apenas

que devemos orar com perseverança.

O mesmo acontece na parábola dos talentos, onde aquele que distribui os talentos

é descrito como “um homem duro, que colhe onde não plantou e junta onde não

semeou” (Mt 25:24). Qualquer um que fizesse uma aplicação literal da parábola

seria levado a pensar que Deus é como aquele homem de duro coração que age

desonestamente, já que é Ele quem distribui os talentos. No entanto, essa aplicação

é falsa pela simples razão de que os meios de uma parábola nunca podem ser

usados para fundamentar doutrina. Este é um princípio dos mais básicos da

hermenêutica, que os imortalistas ignoram pela necessidade de recorrer a uma

parábola para sustentar uma doutrina que dela depende inteiramente.

Em outra parábola, “o senhor disse ao servo: ‘Vá pelos caminhos e valados e

obrigue-os a entrar, para que a minha casa fique cheia’” (Lc 14:23). Sabemos que

essa parábola fala a respeito de salvação, pois Jesus a contou para dizer quem

estaria no banquete do Reino de Deus (v. 15). No entanto, poucos pensam que Deus

literalmente obriga as pessoas a serem salvas, como se elas não tivessem como

escolher rejeitá-lo. Se essa parábola fosse entendida literalmente, a salvação não

seria um convite, mas uma exigência feita na base da força, de maneira coercitiva.

Grande parte do problema está no fato de que as parábolas caíram em desuso, e

por isso tanta gente tende a interpretá-las literalmente e extrair doutrina de seus

meios, criando confusões como essa. E os teólogos, que em tese teriam a obrigação

de esclarecer isso aos leigos, preferem endossar o engano, porque tiram proveito

127
dele para defender a imortalidade da alma. É o tipo de engano conveniente, que

serve aos propósitos de alguém desesperado em encontrar base bíblica para uma

doutrina que sabe que é tão desprovida de fundamento que o jeito é apelar a uma

parábola.

Interpretando a parábola – Ao chegar até aqui, você deve ter aprendido que: (1)

Lucas 16:19-31 é de fato uma parábola como todas as outras em volta dela, e não

uma história real; (2) se a parábola do rico e Lázaro devesse ser entendida

literalmente, como uma aula de teologia sobre o que acontece após a morte, ela

contradiria não apenas os mortalistas, mas também os próprios imortalistas, já que

nenhum deles acredita que os espíritos vão para o Hades com um corpo físico tal

como o rico e Lázaro, e tampouco o lugar onde estavam se parece com a noção

tradicional de céu e inferno; (3) parábolas são essencialmente alegorias, não

descrições literais, das quais devemos captar a lição moral que o autor pretende

ensinar ao usar a parábola, em vez de nos prendermos nos meios usados para

ensinar a lição.

Tendo isso em mente, o que ainda nos resta é saber que lição é essa que Jesus quis

ensinar com a parábola do rico e Lázaro. Parte da dificuldade está no fato de que

muitas pregações são feitas sobre as outras parábolas, explicando seu significado

contextual aos leigos, mas nunca vemos o mesmo com a do rico e Lázaro, porque

os imortalistas só conseguem enxergar a imortalidade da alma ali, fechando os

olhos para o seu propósito real e mantendo os fiéis na ignorância. Mas entender o

significado dessa parábola não é nada difícil quando captamos o sentido das outras

parábolas naquele contexto, especialmente a do capítulo anterior, que conhecemos

como “a parábola do filho pródigo”.

128
Na verdade, basta um olhar mais cuidadoso para perceber que o foco da parábola

não estava exatamente no filho pródigo (embora seja o foco de quase todas as

pregações contemporâneas), mas justamente no outro filho, que por inveja não

aceitava o fato do pai ter acolhido o seu irmão. Para entendermos isso, precisamos

primeiro ver o contexto que levou Jesus a contar essa parábola e outras do tipo:

“Todos os publicanos e ‘pecadores’ estavam se reunindo para ouvi-lo. Mas os


fariseus e os mestres da lei o criticavam: ‘Este homem recebe pecadores e

come com eles’. Então Jesus lhes contou esta parábola: Qual de vocês que,
possuindo cem ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa e nove no

campo e vai atrás da ovelha perdida, até encontrá-la? E quando a encontra,

coloca-a alegremente sobre os ombros e vai para casa. Ao chegar, reúne seus

amigos e vizinhos e diz: ‘Alegrem-se comigo, pois encontrei minha ovelha


perdida’. Eu lhes digo que, da mesma forma, haverá mais alegria no céu por

um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não

precisam arrepender-se” (Lucas 15:1-7)

Os fariseus estavam se incomodando com o fato de publicanos e “pecadores”

estarem se reunindo para ouvir Jesus, pois se julgavam melhores do que eles e

achavam inaceitável que um verdadeiro mestre atraísse a atenção do “populacho”

cheio de pecados. Então Jesus começa a contar uma série de parábolas com o

mesmo sentido, a começar pela parábola da ovelha perdida, passando pela da

moeda perdida e pela do filho pródigo. Jesus costumava contar várias parábolas

com um mesmo significado básico, como um meio didático de fixar o conceito na

cabeça de seus ouvintes.

129
Por exemplo, a parábola de Mateus 25:14-30 tem exatamente o mesmo sentido da

de Lucas 19:12-27, embora os elementos sejam diferentes (em uma, o patrão

encarrega os servos de cuidar de uma quantidade variável de talentos; na outra, um

rei encarrega seus súditos a cuidar de dez minas). Em Lucas 15, a parábola da ovelha

perdida é bastante similar à da moeda perdida e ambas tinham o mesmo

significado, que depois é reforçado pelas parábolas do filho pródigo e do rico e

Lázaro. Todas elas tinham o mesmo significado básico, de que Deus dá mais valor

ao pecador que se arrepende do que àqueles que julgam a si mesmos justos e não

necessitam de arrependimento.

O irmão do filho pródigo representa precisamente a mentalidade dos fariseus, que

não aceitavam que os “pecadores” (representados pelo filho pródigo) tivessem se

voltado a Jesus (representado pelo pai amoroso, que o recebeu de braços abertos).

Assim como o outro filho da parábola se revoltou com o pai por aceitar a volta do

filho pródigo, os fariseus se incomodavam com a presença das multidões seguindo

Jesus, e o acusavam de “comer e beber com publicanos e pecadores” (Mt 9:11).

Todo o ponto girava em torno não da multidão de pecadores em si, mas da soberba

dos fariseus, que se achavam melhores que os demais e julgavam não precisar de

arrependimento, o que levou Jesus a dizer que “eu não vim chamar justos, mas

pecadores ao arrependimento” (Mt 9:13).

Todas as três parábolas de Lucas 15 têm este mesmo sentido básico, e não é

diferente na parábola de Lucas 16:19-31. Curiosamente, poucos versos antes de

contar a parábola do rico e Lázaro, Jesus estava discutindo justamente com os

fariseus:

130
“Nenhum servo pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará ao

outro, ou se dedicará a um e desprezará ao outro. Vocês não podem servir a

Deus e ao Dinheiro. Os fariseus, que amavam o dinheiro, ouviam tudo isso e


zombavam de Jesus. Ele lhes disse: ‘Vocês são os que se justificam a si
mesmos aos olhos dos homens, mas Deus conhece os corações de vocês.

Aquilo que tem muito valor entre os homens é detestável aos olhos de Deus’”

(Lucas 16:13-15)

Note que a discussão entre Jesus e os fariseus tinha tudo a ver com a do capítulo

anterior, envolvendo a autojustificação dos mesmos. Por fora, os fariseus “parecem

justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e maldade” (Mt 23:28).

Mas além dessa discussão principal, há aqui um detalhe adicional que não consta

no capítulo 15, que são as riquezas. Os fariseus amavam o dinheiro, e por isso Jesus

contou uma nova parábola com os mesmos significados básicos das outras três do

capítulo anterior, mas incluindo a questão do dinheiro, para reforçar que “a vida de

um homem não consiste na abundância de bens” (Lc 12:15).

Por isso não é surpresa que o homem que representa os fariseus aqui, que é o

equivalente ao irmão do filho pródigo na outra parábola, seja descrito como “um

homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e vivia no luxo todos os dias”

(Lc 16:19). Tudo é perfeitamente compreensível quando apenas observamos todo

o contexto. Se os fariseus são representados por um homem rico de linhos finos,

como é representada a multidão de “publicanos e pecadores” que na outra

parábola é representada pelo filho pródigo? Aqui, ela é representada por “um

131
mendigo chamado Lázaro, coberto de chagas; este ansiava comer o que caía da

mesa do rico” (vs. 20-21).

Isso também faz todo o sentido, já que a multidão que costumava seguir Jesus era

tão miserável que ele dizia que “se eu os mandar para casa com fome, vão desfalecer

no caminho” (Mc 8:3), razão pela qual ele lhes multiplicou os pães e os peixes em

pelo menos duas ocasiões diferentes (Mt 14:13-21, 15:32-39). E assim como o

mendigo da parábola «ansiava comer o que caía da mesa do rico», os fariseus

“devoram as casas das viúvas e, para disfarçar, fazem longas orações” (Mt 23:14).

Note também como o rico da parábola se refere a Abraão: “Pai Abraão, tem

misericórdia de mim...” (Lc 16:24). Quem mais chamava Abraão de pai?

“Quando viu que muitos fariseus e saduceus vinham para onde ele estava

batizando, disse-lhes: Raça de víboras! Quem lhes deu a ideia de fugir da ira
que se aproxima? Deem fruto que mostre o arrependimento! Não pensem

que vocês podem dizer a si mesmos: ‘Abraão é nosso pai’. Pois eu lhes digo
que destas pedras Deus pode fazer surgir filhos a Abraão” (Mateus 3:7-9)

E ainda:

“Eu lhes estou dizendo o que vi na presença do Pai, e vocês fazem o que
ouviram do pai de vocês. ‘Abraão é o nosso pai’, responderam eles. Disse

Jesus: ‘Se vocês fossem filhos de Abraão, fariam as obras que Abraão fez. Mas

vocês estão procurando matar-me, sendo que eu lhes falei a verdade que
ouvi de Deus; Abraão não agiu assim’” (João 8:38-40)

132
Eles se apegavam tanto a Abraão que Paulo precisou enfatizar em duas cartas

diferentes que “nem por serem descendentes de Abraão passaram todos a ser filhos

de Abraão” (Rm 9:7), e que “os que são da fé, estes é que são filhos de Abraão” (Gl

3:7). Em outras palavras, ao colocar Abraão contra o rico que representava os

fariseus na parábola, Jesus estava fazendo o mesmo que um protestante faria ao

colocar Pedro (em quem os papistas se apegam como o primeiro papa e se dizem

sucessores dele) contra um representante do papado numa parábola, para enfatizar

que Pedro não tem nada a ver com os papas. Jesus fez isso com Abraão e o rico,

separando ambos por um grande abismo.

Os fariseus se orgulhavam de terem Abraão por pai, mas não agiam em

conformidade com o que Abraão fazia. É por isso que na parábola Jesus coloca

Abraão ao lado do mendigo Lázaro, cujo nome literalmente significa “Deus

socorreu”, e o deixa separado do rico por um longo abismo (v. 26). Tudo isso é muito

simbólico, representando ao mesmo tempo o quanto os fariseus passavam longe

daquele em quem ostentavam ter por “pai” e como quem realmente seguia os

passos de Abraão era a multidão de pecadores arrependidos, que na parábola é

colocada ao lado de Abraão.

É isso o que significa “Lázaro no seu seio” (v. 23), não como se o seio de Abraão

fosse um lugar com este nome, mas era apenas uma expressão semítica para se

referir a alguém que está junto de outra pessoa (a NVI corretamente traduz por “ao

seu lado”). Por exemplo, quando João diz que “ninguém jamais viu a Deus; o Deus

unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou” (Jo 1:18), a expressão “o seio

do Pai” não diz respeito a um lugar com este nome, mas é apenas uma forma de

dizer que Jesus está ao lado do Pai, sentado à destra do Todo-Poderoso.

133
É importante fazer essa ressalva, porque muitos imortalistas ignorantes (com o

perdão do pleonasmo) não apenas transformaram o seio de Abraão da parábola

em um “compartimento” com este nome, como ainda incluíram essa aberração em

seus livros cheios de ilustrações bizarras sobre o estado dos mortos, como na pérola

abaixo:

O próprio fato do mendigo se chamar Lázaro é bastante simbólico, não apenas

porque seu nome significa “aquele que Deus socorre”, mas porque Lázaro também

era o nome do homem a quem Jesus havia ressuscitado e suscitado a inveja dos

fariseus. Nesta ocasião, “os chefes dos sacerdotes fizeram planos para matar

também Lázaro, pois por causa dele muitos estavam se afastando dos judeus e

crendo em Jesus” (Jo 12:10-11). Os fariseus não acreditaram em Jesus mesmo após

testemunharem uma ressurreição sobrenatural como a de Lázaro, por isso não

134
admira que ele tenha dado o nome Lázaro ao mendigo da parábola, a quem o rico

desprezou, e cujos irmãos também não acreditariam se retornasse dos mortos:

“Ele respondeu: ‘Então eu lhe suplico, pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai,
pois tenho cinco irmãos. Deixa que ele os avise, a fim de que eles não
venham também para este lugar de tormento’. Abraão respondeu: ‘Eles têm

Moisés e os Profetas; que os ouçam’. ‘Não, pai Abraão’, disse ele, ‘mas se
alguém dentre os mortos fosse até eles, eles se arrependeriam’. Abraão
respondeu: ‘Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão

convencer, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos’” (Lucas 16:27-31)

Como vimos, tudo isso está envolvo em uma simbologia muito forte. Os fariseus se

orgulhavam de terem Abraão por pai, mas na parábola Abraão repreende o rico,

que representa os fariseus, e ambos estão separados por um abismo. Os fariseus

desprezavam as multidões de miseráveis que acompanhavam Jesus, e na parábola

o rico desprezava o mendigo, que estava ao lado de Abraão. Jesus havia

ressuscitado um homem chamado Lázaro, mas mesmo assim os fariseus

continuaram tramando contra ele, e na parábola é dito que eles não acreditariam

mesmo se o mendigo chamado Lázaro ressuscitasse dos mortos. É impossível não

perceber as ligações óbvias.

Note ainda que o rico diz que tinha cinco irmãos (v. 28). Jesus poderia apenas ter

dito que ele tinha irmãos, mas é bem específico em dizer que tinha cinco. Se, como

vimos, o rico representava os fariseus, que eram a principal facção dos judeus, quais

seriam esses seus “irmãos”? Evidentemente, só pode ser uma alusão a outras

facções do Judaísmo da época. Curiosamente, além dos fariseus, há cinco facções

135
bem conhecidas biblicamente e/ou historicamente: (1) a dos saduceus (Lc 20:27);

(2) a dos zelotes (Lc 6:15); (3) a dos herodianos (Mc 12:13); (4) a dos samaritanos (Jo

4:9) e (5) a dos essênios. Estes últimos são os únicos que não aparecem no Novo

Testamento porque viviam isolados do resto da sociedade, mas eram bem

conhecidos e sua existência é historicamente consolidada.

O ponto em comum em todas essas cinco facções dos judeus da época (ou seis, se

contar os próprios fariseus) é que nenhuma delas reconheceu Jesus como o

salvador ou esteve ao lado dele quando a multidão gritava “crucifica-o” (Jo 19:6).

Havia elementos de cada um deles (ou da maior parte deles) que aceitou Jesus,

como o fariseu Nicodemus (Jo 7:50-52, 19:39-40) ou os samaritanos que

acreditaram em Jesus após ouvir o testemunho da mulher samaritana do poço (Jo

4:24-42), mas como grupo, nenhum reconheceu Jesus como o Messias ou esteve

com ele até o fim. Isso significa que Jesus foi rejeitado por todas as facções judaicas

de sua época, o que está de acordo com a visão apresentada na parábola, de que o

rico (fariseu) tinha cinco irmãos que também não reconheceriam Jesus.

A mensagem principal da parábola é como ela termina: “Se não ouvem a Moisés e

aos Profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite alguém dentre

os mortos” (v. 31). “Moisés e os Profetas” é uma forma de se referir à Escritura que

eles conheciam (i.e, o Antigo Testamento). Por exemplo, quando Paulo chegou em

Roma, ele “lhes testemunhou do Reino de Deus, procurando convencê-los a

respeito de Jesus, com base na Lei de Moisés e nos Profetas” (At 28:23). A lei (de

Moisés) e os profetas testemunhavam que Jesus era o Messias prometido, o

Salvador tão esperado, mas se eles não acreditavam no testemunho bíblico,

tampouco acreditariam se um morto ressuscitasse.

136
Em outras palavras, a dureza de coração dos fariseus havia chegado ao ponto em

que nem mesmo um milagre extraordinário como o da ressurreição de Lázaro seria

o suficiente para convencê-los, já que eles rejeitavam até mesmo o testemunho

bíblico, que apontava a Jesus como o Messias. Até mesmo os nomes citados na

parábola, que os imortalistas bisonhamente usam como a “prova” de que não era

uma parábola, fazem um perfeito sentido quando observamos todo o contexto

envolvido. O fato dessa parábola ter nomes não significa que ela não seja parábola,

só significa que é a única parábola de Jesus que tem nomes (da mesma forma que

a parábola do bom samaritano é a única que cita a nacionalidade dos personagens,

mas nem por isso deixa de ser parábola).

Se você só percebeu agora esses detalhes, não se preocupe: é normal os

pregadores imortalistas usarem a parábola do rico e Lázaro apenas para “provar” a

imortalidade da alma, ignorando o seu verdadeiro sentido contextual. Eles não

apenas mantêm os leigos na ignorância, como são eles próprios ignorantes do

significado da parábola, já que tudo o que conseguem ver ali é Jesus ensinando a

imortalidade da alma, o que estava longe de ser o propósito. Seria no mínimo

bastante estranho que num contexto de disputa com os fariseus sobre questões

que não tinham nada a ver com a imortalidade da alma Jesus decidisse contar uma

história para provar que a alma sobrevive após a morte, o que seria desproposital e

inútil, já que os fariseus em geral já criam em imortalidade da alma.

Faz muito mais sentido entender que Jesus estava complementando as parábolas

anteriores, no contexto da disputa com os fariseus que arrogantemente

desprezavam a multidão que seguia Jesus e que pensavam não precisar de

137
arrependimento, do que supor que ele iria parar tudo para contar uma simples

historinha sobre a vida após a morte, que teria caído de paraquedas no texto sem

qualquer justificativa ou lógica. É esse o cúmulo do amadorismo que os imortalistas

se metem no desespero de dar base a uma doutrina manifestadamente antibíblica,

que precisa se agarrar aos meios de uma parábola para se sustentar.

Logicamente, nem todos os imortalistas são ingênuos ou desonestos o suficiente

para apelar a uma parábola a fim de corroborar sua visão de sobrevivência da alma

após a morte. Jon W. Cooper, professor de teologia filosófica pelo Calvin

Theological Seminary e autor de um livro em que defende a imortalidade da alma,

indaga: “O que esta passagem nos diz a respeito do estado intermediário?”. E

responde com sinceridade: “A resposta pode ser: ‘Nada’”56. Ele cita como exemplo

algumas das incoerências que listamos aqui, que os apologistas imortalistas de

internet fazem vista grossa: “Seremos nós seres corpóreos no estado intermediário?

Serão os bem-aventurados e os condenados capazes de se verem uns aos

outros?”57.

Ele conclui que a parábola

não nos diz necessariamente no que Jesus ou Lucas criam a respeito

da vida no além, nem propicia uma base firme para uma doutrina do

estado intermediário. Pois é possível que Jesus simplesmente

estivesse empregando imagens populares a fim de ressaltar sua

56
COOPER, John W. Soul and Life Everlasting: Biblical Anthropology and the Monism-Dualism Debate.
Grand Rapids: Alban Books Limited, 1989, p. 139.
57
COOPER, John W. Soul and Life Everlasting: Biblical Anthropology and the Monism-Dualism Debate.
Grand Rapids: Alban Books Limited, 1989, p. 139.
138
posição ética. Ele podia não estar endossando tais imagens, e não

estar crendo nelas porque sabia serem falsas.58

Quem confirma essa tese é outro teólogo que acredita na sobrevivência da alma

após a morte, N. T. Wright. Em seu comentário do Novo Testamento, ele destaca

que

[A parábola] é muito parecida com um conto popular bem conhecido

no mundo antigo; Jesus era de modo algum o primeiro a dizer como

a riqueza e a pobreza podem ser revertidas na vida futura. Na verdade,

histórias como esta eram tão bem conhecidas que podemos ver como

Jesus mudou o padrão que as pessoas esperavam. Na história de

costume, quando alguém pede permissão para enviar uma

mensagem de volta para as pessoas que ainda estavam vivas na terra,

a permissão é concedida. Aqui não, é o fim da história que os leitores

de Lucas foram instados a enfrentar.59

O Dr. Rodrigo Silva explica que havia pelo menos sete versões conhecidas dessa

parábola contadas pelos judeus da época de Jesus, além de muitas outras do

mundo pagão. Mas em todas elas o rico consegue o que queria no final: voltar ao

mundo dos vivos para dar o recado que tanto queria60. Em outras palavras, Jesus

não estava contando nenhuma história real sobre a vida após a morte, mas apenas

58
COOPER, John W. Soul and Life Everlasting: Biblical Anthropology and the Monism-Dualism Debate.
Grand Rapids: Alban Books Limited, 1989, p. 139.
59
WRIGHT, N. T. Os Evangelhos Para Todos. São Paulo: Thomas Nelson, 2020, p. 466.
60
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8dCiEqjG-1M>. Acesso em: 25/09/2020.
139
um conto bem popular em sua época, que todos sabiam se tratar de uma história

fictícia, para enfatizar alguma lição moral que difere do conto tradicional.

Isso seria o mesmo que eu contasse uma história folclórica muito famosa e

conhecida por todos, como a da Branca de Neve, mas mudasse algum detalhe

importante para enfatizar um ponto (por exemplo, ao invés de um príncipe rico e

belo, retratar um homem comum e simples, para mostrar que beleza e dinheiro não

é tudo). Se eu fizesse isso, ninguém em sã consciência interpretaria que eu estou

endossando a narrativa da Branca de Neve como uma história real. Todos

entenderiam perfeitamente o ponto, que é a lição moral que eu desejaria passar

com isso. Foi exatamente isso o que Jesus fez, ao citar uma parábola bem popular,

mas com um final alterado para ensinar uma lição moral que seus ouvintes não

esperavam.

Além de mudar o final da história, Jesus também mudou alguns detalhes no meio

dela, relacionados ao mundo dos mortos. Nas outras versões da mesma história, o

que ia para o Hades era um espírito incorpóreo, de acordo com a crença platônica

tradicional. Na mitologia grega, o Hades era o nome do deus do “mundo inferior”,

que levava o mesmo nome. Este mundo inferior era um lugar subterrâneo para

onde iam as almas dos falecidos, guiadas por Hermes, o emissário dos deuses, e lá

ficariam para sempre.

No fim da luta dos deuses olímpicos contra os Titãs (a Titanomaquia), os deuses

olímpicos saíram vitoriosos. Então, Zeus, Posídon e Hades partilharam entre si o

universo: Zeus ficou com os céus e as terras, Posídon ficou com os oceanos e Hades

ficou com o mundo dos mortos. Sua guarda cabia ao Cérbero, um cão gigante de

140
três cabeças que era dócil com quem chegava, mas feroz a quem tentasse fugir. No

Hades havia ao menos dois compartimentos: os Campos Elísios, onde ficavam os

justos, e o Tártaro, onde ficavam os ímpios. Edward Fudge fez o seguinte resumo

do Hades grego:

Na mitologia grega, o Hades era o deus do mundo subterrâneo, e daí

o próprio nome do mundo do nada. Charon transportava as almas dos

mortos ao longo dos rios Styx e Aqueron para as suas moradas, onde

o cão de guarda Cérbero vigiava o portão de modo a que ninguém

escapasse. O mito pagão continha todos os elementos da escatologia

medieval: havia o agradável Elíseos, o sombrio e miserável Tártaro, e

mesmo as Planícies de Asfodel, onde as almas que não se ajustavam a

nenhum dos lugares acima podiam vaguear. Reinando junto ao deus

estava sua rainha Proserpina (ou Perséfone), a quem ele havia

violentado no mundo acima.61

Como é óbvio, Jesus não acreditava nesse tipo de Hades, embora frequentemente

os escritores bíblicos usassem os mesmos termos do mundo grego dotando-os de

outros significados, que fossem mais compatíveis com sua própria teologia. Por

exemplo, a palavra theos, usada em todo o Novo Testamento para designar o

mesmo Deus do Antigo Testamento (YHWH), no mundo grego era usada para

designar o panteão de deuses gregos. A prática de ressignificar termos pagãos

também ocorre em relação a Lilith, que era adorada como uma deusa na

61
FUDGE, Edward William. The Fire That Consumes: A Biblical and Historical Study of the Final
Punishment. Houston: Providential Press, 1989, p. 205.

141
Mesopotâmia e na Babilônia, mas que na Bíblia aparece com um significado

bastante distinto, de “animais noturnos” (Is 34:14).

Da mesma forma que theos e Lilith, o Hades cristão tinha um significado bem

diferente do Hades grego, pois, como vimos, se identificava precisamente com o

Sheol hebraico, um lugar sem vida ou existência consciente (Ec 9:10; Sl 6:5, 94:17).

Isso explica por que há tantos detalhes cômicos na descrição do Hades na parábola:

o Hades da parábola era uma sátira do Hades grego, já que Jesus citava uma

parábola popular extraída de contos gregos populares, mas que ele obviamente

não acreditava serem reais. Por isso, enquanto nos contos gregos o Hades era o

local para onde iam os espíritos fora do corpo, na parábola de Jesus ele faz questão

de colocar no Hades personagens de carne e osso, com língua, dedos, que sentem

sede e etc (Lc 16:24).

O humor hebraico era bem mais sutil que o brasileiro, e se baseava principalmente

no exagero. Como o nosso humor é diferente do deles, muitos pensam que não há

humor na Bíblia, o que é um grande equívoco. Ele está ali, mesmo que nem todos

percebam em uma primeira vista. Um exemplo dos mais conhecidos é a ocasião em

que Elias zombou dos profetas de Baal, que gritavam e feriam o próprio corpo para

que o deus deles os ouvisse e fizesse cair fogo do céu, no desafio que Elias lhes

propôs:

“Ao meio-dia Elias começou a zombar deles. ‘Gritem mais alto!’, dizia, ‘já que
ele é um deus. Quem sabe está meditando, ou ocupado, ou viajando. Talvez

esteja dormindo e precise ser despertado’” (1ª Reis 18:27)

142
É evidente que Elias não acreditava que Baal realmente existisse e estivesse apenas

dormindo ou viajando, mas disse aquilo justamente para satirizar a crença dos

adoradores de Baal. Quando Jesus colocou o rico no Hades com língua e Lázaro

com dedos e disse que o rico (cujo corpo inteiro queimava no fogo) queria que

Lázaro molhasse apenas a ponta do dedo para refrescar somente a sua língua, ele

estava fazendo precisamente a mesma coisa que Elias: ridicularizando a crença

pagã, que via no Hades um lugar de vida consciente após a morte. Ao invés de

endossar o paganismo, ele estava justamente ridicularizando-o, mediante a

inclusão de elementos na parábola que tornavam a crença absurda, digna de risos.

O que é preciso entender é que os exageros e o nonsense da parábola não são

ocasionais, mas foram propositalmente incluídos por Jesus para satirizar o Hades

grego. Ao verem Jesus tratar o Hades pagão como uma piada, seus ouvintes de

modo algum seriam induzidos a acreditar na realidade do mesmo. Em vez disso,

saberiam que Jesus não endossava a crença, da mesma forma que Elias não

endossava a crença em Baal que ele ridicularizava. Jesus usou um cenário satírico

da vida após a morte para ensinar uma lição moral mais profunda, revertendo o

significado dos contos tradicionais. Seria como se eu contasse a famosa história da

Branca de Neve, mas retratasse os sete anões como sete gigantes barbudos e

musculosos. Isso provocaria risos na plateia, e certamente ninguém pensaria que

eu acredito realmente no conto.

Em suma, a parábola do rico e Lázaro não é uma história real ou uma lição sobre o

que acontece após a morte, mas uma alegoria sobre a incredulidade e a

autojustificação dos fariseus, à semelhança da parábola do filho pródigo. Para

tanto, Jesus usou como pano de fundo um famoso conto popular da época, onde

143
um morto consegue voltar ao mundo dos vivos para alertar os demais, mas muda

o final da história, para enfatizar que já não há mais esperança para quem

intencionalmente rejeita o testemunho das Escrituras (“Moisés e os profetas”).

Ele também mudou sutilmente aspectos da parábola referentes ao lugar de

habitação dos mortos, para satirizar a crença pagã e mostrar a todos o quanto ela é

ridícula. Em vez de um retrato fidedigno do Sheol/Hades bíblico, a parábola é uma

sátira do Hades grego, porque é no Hades grego que se passava o famoso conto

popular ao qual Jesus aludiu, e que todos os seus ouvintes conheciam bem. Como

os imortalistas ignoram todo o contexto da parábola, seu propósito original, seu

público-alvo, seu fundo histórico e os textos que a cercam, criaram a estúpida ideia

de que Jesus contou a parábola do rico e Lázaro (que para alguns nem parábola é)

como uma aula de teologia sobre o que acontece depois da morte, o que seria

cômico, se não fosse trágico.

Na verdade, como já dissemos, essa ignorância é proposital, pois nenhum leigo que

se desse ao trabalho de pesquisar o verdadeiro propósito da parábola diante de

todo o contexto bíblico, exegético e histórico iria se dar ao ridículo de concluir que

Jesus estava endossando a crença numa alma imortal. Por essa razão, em vez de

fazer um estudo sério em torno de Lucas 16:19-31, eles preferem induzir os leigos

a pensar que se trata apenas de uma historinha sobre a vida após a morte, para usá-

la como a “prova” da imortalidade da alma.

144
• Considerações Finais

Como vimos neste capítulo, o Sheol (nome hebraico usado no Antigo Testamento)

e o Hades (nome grego em que aparece no Novo Testamento) corresponde

invariavelmente ao mesmo lugar: a região subterrânea da terra, onde os mortos

estão enterrados (Nm 16:23-33; Ez 31:18). À exceção dos que morreram no mar (Ap

20:13), todos os mortos estão no Sheol (Jó 3:19), sejam eles justos (Sl 49:15; Is 38:10)

ou ímpios (Sl 31:17). No Sheol não há vida (Sl 88:8-13), consciência (Sl 6:5), louvor a

Deus (Is 38:17-19) ou atividade (Ec 9:10); também não há sofrimento (Sl 31:17; Jó

3:11-18), gritaria (Jó 3:18; Sl 94:17) ou fogo (Sl 88:12; Dt 32:22). É simplesmente a

“terra do esquecimento” (Sl 88:12), comparável à cova (Sl 30:3; Pv 1:12) e à sepultura

(Sl 49:14, 141:6-7; 1Rs 2:9), diferindo-se delas apenas por sua extensão, não por sua

natureza.

Os únicos dois textos do Antigo Testamento onde há “vida” no Sheol são

marcadamente poéticos e alegóricos, onde não apenas os mortos conversam entre

si no Sheol, mas as próprias árvores falam (Is 14:8). No Novo Testamento, o único

texto que retrata o Hades como um lugar de consciência após a morte é uma

parábola de uso popular na época de Jesus (Lc 16:19-31), onde é representado não

o Hades bíblico, mas uma sátira do Hades grego, que era o cenário onde se passava

essa parábola bem conhecida dos ouvintes originais de Jesus, e cuja lição moral não

tinha qualquer relação com a sobrevivência da alma após a morte.

Mais significativo que isso, vimos que o lugar para onde os mortos iam de corpo e

alma era o Sheol/Hades, identificado sempre com as regiões inferiores da terra (Nm

16:33; 1Sm 2:6), não o céu, identificado como um plano superior ao nosso (Dt 4:39;

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1Rs 8:23). Isso anula qualquer pretensão de colocar os salvos no céu imediatamente

após a morte, como ensina a imensa maioria dos teólogos imortalistas. Em vez de

igualar o Sheol com o céu, Jesus os contrastou expressamente, de um modo que

não poderia ser mais claro (Mt 11:23). Para resolver o problema, os apologistas

imortalistas contemporâneos inventaram a tese de que Jesus transferiu os salvos do

Sheol ao Paraíso entre a sua morte e ressurreição, mas vimos que este ensino é

inteiramente destituído de base bíblica, e totalmente dependente da distorção

gritante de textos.

Por Cristo e por Seu Reino,


Lucas Banzoli (www.lucasbanzoli.com)

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