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A DOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI E

VIOLÊNCIA POLICIAL: A INTERVENÇÃO


PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL
ANDERSON DAMIÃO RAMOS DA SILVA*AN
S* E GABRIELA F ERNANDEZ SANCHEZ **

Resumo: Este artigo propõe-se a investigar a trajetória da política de atendimento aos adolescentes
em conflito com a lei e a apresentar as respostas profissionais do Serviço Social no Núcleo de
Apoio ao Trabalho de Apuração dos Processos de Conhecimento – NAPC – ante a problemática
da violência policial relatada por adolescentes atendidos pelo Núcleo. Reflete a violência como
expressão da questão social, inserida na processualidade histórica que marca a sociedade capitalista.
Também analisa as respostas profissionais do Serviço Social como dotadas de potencial para
impor barreiras ao circuito da violência, ainda que circunscritas aos limites institucionais e às
condições de trabalho advindas da relação de assalariamento a que está submetido o exercício
profissional. Nesse processo, valendo-se da perspectiva teórica do materialismo histórico e
utilizando como técnicas de pesquisa a análise bibliográfica e documental, o estudo se aproximou
das conclusões conforme as quais a violência tem sido um componente ideológico na história da
formação social brasileira e na trajetória da política de atendimento aos adolescentes em conflito
com a lei. Em sua expressão de violência policial, tem simbolizado um esforço de controle (social
e ideológico) das classes subalternas, constituindo-se em grave violação de direitos.
Palavras-chave: Violência. Serviço Social. Adolescentes. Socioeducação. Prática profissional.

Adolescents in conflict with the law and police violence: the professional intervention
from Social Work.
Abstract: The present article proposes to investigate the trajectory of the care policy for adolescents
in conflict with the law and to present the professional answers from the Social Work in Núcleo
de Apoio ao Trabalho de Apuração dos Processos de Conhecimento - NAPC facing the issue of
reported police violence by adolescents attended by the Service. This article identifies violence as
an expression of the social issue, inserted in the historical process that marks the capitalist society.
It also analyzes the professional responses from Social Work as potentially capable of imposing
barriers to the cycle of violence, although restricted to institutional limits and working conditions
arising from the wage ratio the professional practice is subjected to. In this process, under the
theoretical perspective of historical materialism, and using as research techniques bibliographic
and documentary analysis, the study approached conclusions according to which violence has
been an ideological component in the history and formation of Brazilian society and in the
trajectory of the care policy for adolescents in conflict with the law. In its expression of police
violence, it has symbolized a social and ideological effort to control the lower classes, constituting
a serious violation of rights.
Keywords: Violence. Social Work. Adolescents. Social education. Professional Practice.

_________________________________
* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

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INTRODUÇÃO adolescência perpassou considerável parte da trajetória
No âmbito da problemática que envolve brasileira, superada apenas, em termos formais, com
adolescentes em conflito com a lei, a violência tem o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente,
perpassado a história e a trajetória das políticas do em 1990 e a adoção da Doutrina da Proteção Integral.
atendimento socioeducativo, materializadas em Compreender essa trajetória é uma premissa
atendimentos e serviços que têm se configurado, importante para a apreensão do significado social que
tendencialmente, em perspectivas punitivas e a violência tem adquirido na cena contemporânea,
repressivas. Nessa trajetória, o Serviço Social tem especificamente a violência policial e seus
atuado na área socioeducativa ocupando um lugar a rebatimentos e desafios para a intervenção de
partir do qual assistentes sociais são convocados a assistentes sociais.
intervir, na condição de peritos ou analistas, lançando Convém sintetizar, antes de adentrar na descrição
respostas profissionais e elementos para subsidiar da trajetória das políticas sociais de atendimento à
decisões judiciais quanto à aplicação de medidas infância e adolescência no Brasil e suas principais
socioeducativas. legislações e serviços, a concepção de política
Motivado pelo desejo de elucidar a violência norteadora deste estudo. Behring e Boschetti (2011),
policial no âmbito do atendimento socioeducativo e analisando a contribuição da tradição marxista à
na ânsia de dar visibilidade à questão, este estudo compreensão das políticas sociais, as analisam “[...]
ocupou-se da investigação do significado social da como processo e resultado de relações complexas e
violência policial e da análise das respostas contraditórias que se estabelecem entre Estado e
profissionais do Serviço Social no Núcleo de Apoio sociedade civil, no âmbito dos conflitos e luta de classes
ao Trabalho de Apuração dos Processos de que envolvem o processo de produção e reprodução
Conhecimento - NAPC - ante o problema, bem como do capitalismo [...]” (p. 36). Tal perspectiva exclui o
da análise da trajetória da política de atendimento à entendimento das políticas sociais como ações
infância e adolescência no Brasil, sobretudo das outorgadas, neutras e isentas de associações com
legislações e serviços destinados à parcela alvo do projetos políticos e societários. Dessa forma,
atendimento socioeducativo. compreendemos as políticas sociais a partir do
Privilegiou-se, como caminho metodológico, a processo de adensamento da questão social e da
perspectiva teórica do materialismo histórico, por ser consequente luta social e política da classe
esta a mais adensada para a apreensão das mediações trabalhadora em suas demandas imediatas e mediatas,
históricas que envolvem a violência aos adolescentes lutas estas que dão visibilidade às expressões da
em conflito com a lei, bem como a que proporciona questão social enquanto tais.
fecunda aproximação para com as repostas
profissionais do Serviço Social no NAPC numa O BRASIL COLÔNIA E REPUBLICANO
dimensão de totalidade. Como técnicas de pesquisa No período do Brasil Colônia não havia uma
foram utilizadas a análise bibliográfica, com a classificação etária em relação à infância e à
investigação do conhecimento teórico produzido sobre adolescência tal qual se concebe hoje. Conforme
a temática e a análise documental de dados e Arantes (2009), as categorias de classificação de
informações do NAPC. crianças e adolescentes no Brasil Colônia eram dadas
de acordo com a filiação. Assim, havia os “[...] filhos
HISTÓRIA E TRAJETÓRIA DA POLÍTICA DE ATENDIMENTO de família, os meninos da terra, os filhos dos escravos,
À INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NO BRASIL os órfãos, os desvalidos, os expostos [...]” (p. 192).
A presença da violência como componente Nesse período, a frágil assistência centralizou-se na
ideológico e repressivo no atendimento à infância e à instituição das “Rodas de Expostos”, cilindros nos
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quais as crianças “enjeitadas” eram abandonadas Menores, com grande concentração de poder dos
(FALEIROS, E.; 2009). Nessas casas de acolhimento, juízes, aos quais caberia a decisão sobre o
as crianças recebiam cuidados mínimos. De acordo internamento. O Código instituiu também que aos
com a autora, o período do Brasil Colônia pode ser menores de 12 anos seria vedado o trabalho, para
sintetizado como um período de negligência e de descontentamento, segundo Vicente Faleiros (2009),
negação da vida, pois, sobrevivendo ao abandono, da classe industrial, que defendia a utilização massiva
não restava às crianças e aos adolescentes alternativa da mão de obra infantil.
senão o trabalho explorado.
Na época republicana, a utilização da mão de obra OS ANOS POPULISTAS DE VARGAS E O PERÍODO DA
infantil cresceu com a incipiente industrialização. DITADURA CIVIL-MILITAR
“Omissão, repressão e paternalismo [...]” Segundo Rizzini (2009), o período que marca o
(FALEIROS, V.; 2009, p. 36) são marcas das Estado Novo apresentou mudanças na configuração
primeiras legislações referentes à infância e à das políticas para a infância e a adolescência. Essas
adolescência nessa época. Importa destacar que essas mudanças foram resultado da intervenção do
políticas voltavam-se não para toda a parcela da governo na área da assistência com o deslocamento
sociedade, mas para o conjunto da considerada pobre, da questão do “menor”, até então exclusiva do
abandonada e potencialmente perigosa. De acordo espaço jurídico, para a área da assistência.
com Rizzini (2009) a “[...] assistência oficial durante Permaneceu, no entanto, a ênfase no internamento,
esse período orientava-se pela tradição de práticas com os objetivos de “[...] preservar ou reformar
caritativas, constituindo-se a partir de instituições do os menores apreendidos” (RIZZINII, 2009, p. 242).
tipo asilar [...]” (p. 227). Posteriormente, surgiram Foram criados serviços na área da assistência e da
as escolas correcionais incumbidas de corrigir, via proteção à infância a partir do “Serviço de
repressão, as situações tidas como “viciosas”. Para Assistência e Proteção à Infância Abandonada e
elas eram encaminhados indiscriminadamente os Delinquente” (Ibid. p. 243). Em 1923 é criado o
“menores” abandonados e os “menores” julgados Juízo de Menores do Rio de Janeiro, então capital
criminalmente. federativa. O Juízo representa o que Rizzini (2009)
Como principal marco legislativo desse período, denomina de “justiça assistencialista”, na qual
em 1927 foi promulgado o Código de Menores. Esta prevaleceram, no fundo, práticas discriminatórias
legislação foi criada numa perspectiva “[...] higienista e segregacionistas.
de proteção do meio e do indivíduo, como a visão Posteriormente, foram criados o Serviço de
jurídica repressiva e moralista” (FALEIROS, V.; Assistência ao Menor (SAM), para atendimento à
2009, p. 47). A visão higienista expressava a causa do “menor”, isto é, aos que apresentavam
preocupação com as condições de salubridade sem comportamentos classificados como de
intervir nos fatores que as causavam. A visão jurídica delinquência, e o Departamento Nacional da
incorporava a centralização da decisão do juiz de Criança (DNCr). A este cabiam ações destinadas à
arbitrar sobre a criança e o adolescente, e a dimensão maternidade e à infância. Àquele competiam os
moralista estava relacionada à repressão à pobreza, serviços de internamento dos “menores” advindos
justificada como razão para a apreensão e do Juízo de Menores em instituições públicas e
internamento (RIZZINI, 2009). privadas (RIZZINI, 2009). Desse período,
O Código definiu que os menores de 14 anos não depreende-se uma tímida mudança em termos
podiam ser processados penalmente. Entre os 14 e formais com a separação dos serviços à infância
18 anos deveriam ser julgados a partir de um processo dos serviços destinados ao “menor”.
especial. Para tanto, foi criado o Juízo Privativo de O período inaugurado pela ditadura civil-militar,
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instaurada em 1964, iniciou-se com substituição A REDEMOCRATIZAÇÃO E A MUDANÇA DE PARADIGMA
do SAM pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Nos anos 80, uma série de princípios e valores foi
Menor, a FUNABEM. Em tempos de contestada pelos movimentos sociais no advento do
aprofundamento das expressões da questão social movimento de redemocratização, alcançando-se
e de sua gestão, na esfera da repressão e da mudanças significativas na esfera da política da
assistência, intensificou-se o combate aos processos infância e da adolescência. No campo dos direitos,
de marginalização e ameaça à ordem social vigente, surge – em contraposição aos paradigmas repressivos
tão cara aos militares, sobre a qual se legitimaram e às concepções institucionalizantes – a defesa da
a repressão e a tortura sob o viés da ideologia da socioeducação, que na contemporaneidade se
segurança nacional. apresenta como diretriz na garantia de direitos das
A criação da FUNABEM representou um crianças e adolescentes, sobretudo dos adolescentes
esforço de mudança do paradigma do SAM, até em situação de conflito com a lei. Para Sales (2007),
então centrado no internamento. Buscava agir sobre a introdução da perspectiva de direitos das crianças e
a marginalização, favorecendo a integração familiar. dos adolescentes na agenda pública brasileira ganha
Competiu-lhe também elaborar a Política Nacional corpo como uma questão preponderante no fim da
do Bem-Estar do Menor (PNBEM). Em termos década de 1970, inserida no “[...] conjunto de
operacionais, a FUNABEM era um órgão central reflexões e críticas anti-institucionais ao lado das
ao qual cabia o repasse de recursos para as demais demandas de presos políticos, prisioneiros comuns e
instituições. Posteriormente, nos estados, foram loucos [...]” (pp. 48-49).
criadas as FEBEMs – Fundações Estaduais do A promulgação do Estatuto da Criança e do
Bem-Estar do Menor. No âmbito da PNBEM, Adolescente (ECA), em 1990, ao estabelecer um rol
conforme Vogel (2009), a intenção da FUNABEM de direitos e garantias, representou um avanço na
era interiorizar essa política apoiando as ações de legislação de proteção das crianças e adolescentes,
construção e implantação das instituições de pois estes passaram a figurar como sujeitos de direitos
atendimento nos estados, no que diz respeito à e a serem contemplados, por exemplo, com o
triagem e reeducação. A política efetivamente não reconhecimento de sua condição de desenvolvimento
representou avanços significativos, pois não se e a primazia de tratamento diferenciado, em se
afastou do paradigma da internação, além de não tratando da responsabilização por atos infracionais,
investir na superação das causas que alimentavam com a adoção das medidas socioeducativas. Essa
a “marginalização”, aproximando-se muito mais de mudança, conforme Faleiros (2009) é fruto da adoção
um “[...] paradigma corretivo [...]” (FALEIROS, da Doutrina da Proteção Integral.
V., p. 72). No entanto, nos adverte Iamamoto (2010) que
Outro marco legislativo deste período foi a “[...] os direitos sociais proclamados nos estatutos
reformulação do Código de Menores, em 1979, com legais nem sempre são passíveis de serem efetivados,
a adoção da “doutrina da situação irregular”. Essa visto que dependem de vontade política e de decisões
perspectiva compreendia a criminalização de governamentais [...]”. Nesse sentido, o ECA não
situações que iam desde a carência material às rompeu definitivamente com a trajetória ideológica
situações decorrentes da prática de atos de um longo período em que as demandas da infância
infracionais. Nesse sentido, o Código operava uma e adolescência eram questão de polícia. Assim, a
moralização das condições socais responsabilizando produção e reprodução da violência policial constituem
a família ou o próprio “menor” pela sua condição um processo cuja recorrência e atualidade têm
social, dissociando a suposta “irregularidade” do tensionado a efetivação dos direitos da infância e
contexto social (FALEIROS, V., 2009). adolescência dispostos em lei.
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A VIOLÊNCIA POLICIAL NA TRAJETÓRIA DA POLÍTICA DE ela sempre depende de orientação e da justificação pelo fim
ATENDIMENTO AOS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A que almeja. E aquilo que necessita de justificação por outra
LEI coisa não pode ser a essência de nada. (ARENDT, 2009, p.
Considerando os teóricos que têm a violência 68).
como objeto de estudo a partir do conhecimento
filosófico e sociológico, Minayo (2006, p. 17) O poder, para Arendt (2009), tem uma finalidade
reúne-os em três distintos grupos explicativos: o em si mesma, é “[...] inerente à própria existência
primeiro destaca a violência como uma reação dos das comunidades políticas [...]” (p. 69), enquanto a
grupos oprimidos diante das situações de “[...] violência precisa de justificação para sua
crises sociais [...]”. Para esse grupo, a violência implementação. Poder e violência convivem juntos,
significaria o enfrentamento de condições no entanto, um expressa o declínio da outra: o “[...]
opressoras e a busca pela legitimidade de seus domínio pela pura violência advém de onde o poder
interesses. Seus expoentes foram Toquecville, está sendo perdido [...]” (Idem, p. 71). Em síntese,
Fanon, Sorel. O segundo grupo defende a violência pode-se afirmar que a reflexão teórica de Hannah
como instrumento para atingir suas finalidades Arendt apreende a violência distinta, porém
políticas. A análise da violência não estaria relacionada ao poder como um canal, um meio para
dissociada dos conflitos sociais que marcam a alcançá-lo.
sociedade. Engels e Arendt se enquadram nesse Na sua interpretação da violência, Engels
grupo. Finalmente, o terceiro grupo defende a (1979) faz uma relação entre violência e
relação da violência com a cultura. A perspectiva desenvolvimento econômico. Analisando o incremento
culturalista relaciona a violência como componente e o avanço bélico ao longo da história, o autor defende
cultural do homem, a qual, em diferentes estágios, que a violência acelera o processo econômico:
assume conotações diferentes, desde a associação
à agressividade natural proposta por Freud às a violência não é um mero ato de vontade, pressupondo, pelo
noções da violência como modo de imposição ante contrário, condições prévias bastante reais para o seu exercício,
outros. a saber: instrumentos, entre os quais, o mais perfeito esmaga o
No campo do pensamento filosófico ou erudito, mais imperfeito. Estes instrumentos, que não brotam do solo
Arendt (2009) elabora sua reflexão sobre a violência por si sós, tiveram de ser produzidos, o que equivale a dizer
no espaço da política distinguindo-a da noção de que o produtor dos mais perfeitos instrumentos de violência,
poder. Para a filósofa não são válidas as que são as armas, triunfa sobre o produtor dos mais imperfeitos.
interpretações de que a violência pode ser explicada Daí, temos de reconhecer, em resumo, que a vitória da violência
numa perspectiva biológica e de que violência e se reduz à produção de armas e que esta, por sua vez, se
poder são a mesma coisa. Ela defende que violência reduz à produção em geral, e, portanto, ao ‘poderio econômico’,
e poder são fenômenos que “[...] pertencem ao à ‘situação econômica’, aos meios materiais colocados à
âmbito político dos negócios humanos [...]” disposição da vontade de violência (ENGELS, 1979, p. 145).
(ARENDT, 2009, p. 103). Em termos conceituais,
conforme Minayo (2006), Arendt define que a Nota-se que o autor associa a violência à existência
violência é instrumental na relação de busca pelo de condições para seu implemento: o desenvolvimento
poder, mas não deve ser confundida com o próprio de instrumentos, ou seja, de armas, e que, neste
poder. Diz a filósofa: processo, sobressai-se a força dos que detêm os
instrumentos mais perfeitos. Por seu turno, a obtenção
o poder é de fato a essência de todo governo, e não a violência. de instrumentos bélicos mais sofisticados está
A violência é por natureza instrumental; como todos os meios condicionada ao “poderio econômico”. O autor ainda
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acrescenta que a violência pode ter uma perspectiva Silva (2007), muitas das manifestações da violência
revolucionária por ser capaz de destronar antigos estrutural aparecem ideologicamente naturalizadas, de
regimes e suas formas políticas (ENGELS, 1979). modo que não são perceptíveis como tal.
Em contraste com essa afirmativa, Arendt (2009, Compreender a violência estrutural e social
p.101) elabora sua reflexão destacando, por outro lado, como raiz de outras expressões de violência não
que a violência não pode ter uma conotação positiva, significa maximizar seu potencial interpretativo em
pois para ela a “[...] prática da violência, como toda detrimento de outros aspectos que a influenciam, uma
ação, muda o mundo, mas a mudança mais provável vez que se trata de um “[...] fenômeno biopsicossocial
é para um mundo mais violento”. [...]” (MINAYO, 1994, p. 7). Contudo, é na sociedade
Sem desconsiderar a importância dessas concreta que a violência se desenvolve e se concretiza.
contribuições para o aprofundamento da reflexão Para a mesma autora,
sobre a violência que, a esta altura, salta-nos à
compreensão como um fenômeno que “[...] não é toda violência social tem, até certo ponto, caráter revelador de
auto-explicável e é pluricausal” (FRAGA, 2010, p. estruturas de dominação (de classe, grupos, indivíduos, etnias,
90), considera-se aqui que as concepções que faixas etárias, gênero, nações), e surge como expressão de
permitem uma “[...] aproximação mais fecunda com contradições entre os que buscam privilégios e os que se
as questões [...]” (BORGIANNI, 2013, p. 416) da rebelam contra. Até a delinquência, ou principalmente a
violência estão relacionadas à teoria crítica do delinquência, pode ser interpretada à luz dessas relações sociais
materialismo histórico. Nesse sentido, pensar em conflituosas. As desigualdades sociais, a expropriação
violência significa pensar em estruturas de dominação, econômica e cultural são ingredientes que importa compreender
cujo fundamento encontra-se na apartação dos como base da criminalidade [...] (MINAYO, 1998, p. 522).
trabalhadores dos meios necessários à produção das
riquezas socialmente produzidas. Significa pôr em A violência estrutural revela estruturas de
conflito o capital como um sistema em cujo processo dominação a partir das quais diversas outras
o valor significa uma “[...] relação social [...]” expressões de violências ganham contorno. Revela
(HARVEY, 2013, p. 41), um meio de produção e de também, de acordo com Minayo (1994) mecanismos
obtenção de mais-valia que gera estruturas desiguais, institucionais de opressão que limitam e segregam parte
alienantes. da sociedade do usufruto das riquezas e forjam formas
Como expressão da questão social, cuja gênese, naturalizadas de concepção da realidade. Reúne
conforme Iamamoto (2012, p. 156) “[...] deriva do também, como meio de resistência, a rebeldia através
caráter coletivo da produção contraposto à apropriação do surgimento de movimentos sociais em torno de
privada da própria atividade humana – o trabalho –, um ideal mais democrático e emancipatório.
das condições necessárias à sua realização, assim Ainda sobre a conceituação da violência, Fraga
como de seus frutos”, a violência perpassa todos os (2002, p. 47) a compreende como uma “[...] forma
espaços sociais e está associada ao modelo econômico de dilaceramento do ser social”. Para ele, se nos
hegemônico: o capitalista. De natureza contraditória, primórdios a “[...] violência primária [...]” (Idem, p.
nesse sistema prevalece a lógica da propriedade como 45) foi estabelecida pelos homens conforme a luta
meio para acesso aos bens sociais e só a aquisição de pela sobrevivência ante a ausência de outras
mercadorias passa a ser sinônimo de felicidade mediações históricas, a violência em sua face atual,
(FRAGA, 2002). A apropriação de bens e mercadorias, que ele denomina de secundária, notabiliza-se num
no entanto, encontra-se monopolizada, o que gera cenário em que o homem atingiu certo nível de
uma violência estrutural e social, posto que está na desenvolvimento histórico e, paradoxalmente, vive
estrutura da organização social. Contudo, conforme em extremas situações de desintegração. Para o citado
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autor, a violência como forma de dilaceramento do pelo desprezo e pela crueldade contra os índios e os
ser social expõe as mazelas de uma lógica social em negros e pela exploração de sua força de trabalho e
que a obtenção de mercadorias – o consumismo –, de sua cultura [...]”. A imagem do mito fundador,
passa a ser sinônimo de felicidade. A relação dos conforme Chauí (2000), não está alicerçada nesses
homens com seus iguais, consequentemente, assume elementos. Pelo contrário, idealiza circunstâncias e
a dimensão de uma relação mercadológica, status que encobrem e naturalizam a violência, a
caracterizada pelo estranhamento. O autor conclui desigualdade e a cultura servil.
ainda que é através do trabalho que o homem se A esse perfil se acrescenta, segundo Adorno
reconhece. No entanto, este reconhecimento (2002), o teor patrimonialista que marcou nossos
dependerá da forma como o trabalho é socialmente regimes políticos oligárquicos. A violência
realizado. Assim, será apenas com a superação da patrimonialista encontra raízes na distorção entre o
forma de trabalho alienante que o homem vislumbrará público e o privado, na cultura do favor, em que este
um reconhecimento emancipado. é introduzido como mediação dos serviços públicos e
a partir do qual se desenvolve uma relação de
A VIOLÊNCIA NA FORMAÇÃO HISTÓRICA BRASILEIRA dependência e de domínio, que tem no coronelismo
No contexto histórico e social brasileiro, a violência e no clientelismo suas mais fortes expressões. São,
tem acompanhado a trajetória dessas terras assim, traços contributivos para a formação de uma
“tupiniquins”, contrariando o mito de que somos um violência social.
povo pacífico por natureza (CHAUÍ, 2000). Esse A violência social tem raízes nas estruturas de
ideário de que em nossas terras convivem dominação que sustentaram os processos políticos
harmonicamente diferentes raças, credos e culturas, brasileiros e que influenciaram na construção e
desempenhou, talvez, um papel ideológico de aliviar conservação de uma sociabilidade subjugada, porém
as tensões de uma sociabilidade profundamente rebelde. Foi a ditadura militar, no entanto, o evento a
marcada em suas origens por estruturas desiguais, de partir do qual germinou-se o “[...] aprofundamento
concentração de renda e de autoritarismo, presentes da cultura autoritária” (MINAYO, 2006, p. 29),
em tantos eventos históricos nacionais, como na quando a violência policial sob o viés do controle
ditadura militar, na contínua criminalização de político era tolerada pelos governos militares (NETO,
movimentos sociais, assassinato de lideranças rurais 1999). De acordo com Minayo (2006), dezoito
e na criminalização da juventude pobre. Tais eventos, milhões de brasileiros foram afetados pelos
no entanto, são naturalizados ante a constatação de desdobramentos da ditadura militar, tendo direitos
que “[...] somos uma formação social que desenvolve cerceados e limitados pela imposição dos atos
ações e imagens com força suficiente para bloquear institucionais. Da liberdade limitada à prática da
o trabalho dos conflitos e das contradições sociais tortura, o saldo do regime militar deixou a marca do
[...]” uma vez que conflitos e contradições negam a autoritarismo mais visível a partir da violência praticada
imagem de uma boa sociedade indivisa (CHAUÍ, pelo próprio Estado. É, assim, um evento-chave para
2000, p. 94). a compreensão da violência policial, posto que, no
Nesse sentido, a própria chegada dos colonizadores regime ditatorial, a violência policial praticada pelas
pode ser considerada em si um fato demonstrativo Forças Armadas era legitimada. Conforme Neto
de violência, pois estes impuseram sua cultura aos (1999), com o fim do regime militar, de instrumento
povos indígenas de maneira agressiva e discriminatória. essencialmente político, a violência policial “[...]
De acordo com Minayo (2006, p. 27), foi a violência passou a ser usada como instrumento de controle da
do estupro que esteve na base do ideário criacionista criminalidade” (p. 130).
do Brasil e “[...] todo o período colonial foi marcado Considerando a intensidade com que se apresenta
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no cotidiano brasileiro, julga-se oportuno tratar e legítimos, o uso da violência policial pode ser
conceitualmente a violência policial nesse tópico, visto denunciado pelos veículos de imprensa pelo clamor
que ela tem íntima relação com o processo ditatorial que cause na opinião pública. A quarta e última
de 1964. Neto (1999), analisando concepções teóricas concepção, designada como concepção profissional,
da violência policial, apresenta quatro concepções baseia-se no uso excessivo dos atos de força física,
conceituais e três tipos de explicações para ela. Em pelos policiais, de acordo com o nível de
relação às concepções conceituais, considera a profissionalização da atuação policial. Assim,
violência a partir do critério da legalidade, do critério mesmo que legal, legítimo e regular, os atos de
da legitimidade, da concepção jornalística e da força podem ser tomados como violentos pela
concepção profissional. O autor inicia a análise ausência de estratégias que dispensassem sua
partindo do texto constitucional de 1988, segundo o utilização.
qual o aparato policial diferencia-se dos demais Em relação às explicações para a existência da
cidadãos pela prerrogativa de poder utilizar a força violência policial, Neto (1999) apresenta três
física no cumprimento do exercício legal, ou dever explicações: a explicação estrutural, funcional e
legal, de suas atribuições. processual. A explicação processual ressalta as
O primeiro critério abordado pelo autor, causas da violência policial como frutos de disputas
classificado como critério da legalidade, é utilizado, e conflitos no interior da própria instituição policial;
sobretudo, no âmbito jurídico e se refere à utilização a violência seria uma instrumentalização desses
da força física pelos policiais para o cumprimento do conflitos. A explicação funcional destaca as funções
dever legal. Haveria, assim, legalidade no uso da força que a violência policial adquire em contextos de
física desde que associada ao exercício legal das mudanças sociais e analisa que a própria violência
funções da profissão. Fora desse âmbito, o uso da seria uma resposta a essas crises. A explicação
força física transformar-se-ia em ato de violência. estrutural, por sua vez, analisa as motivações da
Essa concepção, no entanto, desconsidera situações violência relacionando-as às estruturas de
em que a utilização da força física é desnecessária, desigualdades sociais, econômicas e políticas.
ou realizada para coagir. É, portanto, classificada como Considerando esses três tipos de explicação para
“[...] rígida [...]” e “[...] restrita [...]” (NETO, 1999, a questão da violência, cabe sinalizar que a
p. 133). A concepção ou critério da legitimidade, por explicação estrutural é a que mais se aproxima da
seu turno, está relacionada ao que o autor chama de perspectiva teórica adotada neste estudo. A
concepção política e sociológica da violência policial. violência policial revela, sim, estruturas de
Essa concepção abrange não só o uso da força física dominação a partir das quais consideráveis parcelas
de maneira ilegal, mas também ilegítima, e significa da sociedade têm seu cotidiano criminalizado, como
que os atos de força física quando utilizados de a juventude negra e o conjunto de moradores das
maneira desnecessária e exagerados seriam violentos. periferias dos grandes centros urbanos. Revela
Esses atos estariam mais passíveis de sofrerem a também mecanismos de injustiça social, de abuso
crítica da sociedade, conforme o sentimento de revolta de autoridade e de poder, disfarçados sob o
que podem despertar. estereótipo do controle da criminalidade.
A terceira concepção sobre a violência policial é Na contemporaneidade, descrever a violência
denominada de concepção jornalística. Mais requer, como premissa, entendê-la a partir dos
abrangente que as duas até aqui citadas, essa fundamentos da sociabilidade atual, tensionada pelas
concepção incluiria além dos atos definidos como expressões da questão social. Em nosso entender,
ilegais e ilegítimos, os atos irregulares, escandalosos. tais expressões continuam tendo um fundamento
Em outras palavras, nessa concepção, ainda que legais comum: a contradição na relação capital e
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exploração do trabalho. Essa observação é O NAPC E AS RESPOSTAS PROFISSIONAIS À VIOLÊNCIA
importante para delimitar que não há uma nova POLICIAL RELATADA PELOS ADOLESCENTES
questão social. Como destaca Iamamoto (2012) O NAPC é um núcleo interprofissional vinculado
tornou-se comum a associação mecânica da questão à Terceira e à Quarta Vara da Infância e Juventude
social às noções de exclusão social, como se as da Capital – Tribunal de Justiça do Estado de
expressões da questão social se encerrassem na Pernambuco – TJPE. Tem sede no Centro Integrado
exclusão social. Essa defesa esconde, no entanto, a da Criança e do Adolescente – CICA –, um complexo
estratégia de desmobilizar e despolitizar processos de de instituições localizado na cidade do Recife-PE. O
lutas e de descaracterizar a questão social de seu CICA reúne diversas instituições e órgãos que
fundamento: a exploração do trabalho. Conforme a compõem o Sistema de Garantia de Direitos. A
mesma autora, a questão social é a mesma, assume Terceira e Quarta Varas da Infância e Juventude da
“[...] novas roupagens [...]” (IAMAMOTO, 2012, p. cidade do Recife são responsáveis por julgar processos
144), mas que continuam a relacionados à prática de atos infracionais circunscritos
a adolescentes da cidade do Recife. Os dados que
evidenciar a imensa fratura entre desenvolvimento de forças embasam esta pesquisa são oriundos de informações
produtivas do trabalho social e as relações sociais que o colhidas nos atendimentos sociais, registradas em
impulsionam. Fratura esta que vem se traduzindo na documento interno intitulado Perfil do NAPC. Esse
banalização da vida humana, na violência escondida no fetiche perfil reúne as informações dos atendimentos
do dinheiro e da mistificação do capital ao impregnar todos os realizados anualmente, traçando o perfil
espaços e esferas da vida social. Violência que tem no aparato socioeconômico e demais informações dos/as
repressivo do Estado, capturado pelas finanças e colocado a adolescentes atendidos.
serviço da propriedade e poder dos que dominam, o seu escudo Informam-se aqui os dados colhidos no ano de
de proteção e disseminação (IAMAMOTO, 2012, p. 145). 2013. Nesse referido ano foram atendidos 756
adolescentes, dentre os quais 752 eram autores de
Especificamente quanto à violência em desfavor ato infracional e 4 eram vítimas. 91% eram do sexo
dos jovens, aqui destacados também os masculino e 9% do sexo feminino. A faixa etária
adolescentes, haja vista a faixa geracional estender- predominante era de adolescentes entre 14 e 17 anos.
se dos 15 aos 29 anos, o Mapa da Violência de Em relação à situação escolar, 51% afirmaram estar
2014 revelou números profundamente estudando, a maioria nas séries do ensino fundamental.
preocupantes. Analisando a mortalidade juvenil, o Quanto à renda socioeconômica, a faixa predominante
estudo destaca que, se em décadas passadas a corresponde a menos de um a 1,5 salário mínimo.
principal causa da mortalidade juvenil derivava de Os/as adolescentes eram oriundos/as de todas as
epidemias e doenças, no cenário atual esse critério Regiões Político-Administrativas – RPAs da cidade
cedeu lugar para as causas externas. Estas englobam do Recife. Advêm, no entanto, de bairros e
as mortes por homicídio, por acidentes de trânsito comunidades periféricas. No tocante ao
e por suicídio. Os dados do estudo informam que acompanhamento, 61% das responsáveis pelos
entre os anos de 1980 a 2011 a mortalidade de adolescentes eram suas respectivas mães. 48% das
jovens cresceu 32,5%. Quanto às mortes por famílias estavam inseridas em programas sociais,
homicídio, esse número saltou 148,5% entre os dentre os quais o Bolsa Família abrangia 86% delas.
referidos anos. Considerando o ano de 2012, houve 57% afirmaram realizar algum tipo de atividade
56.337 mortes de jovens por homicídio. Entre 1980 remunerada, boa parte na condição de informalidade.
e 2012, os homicídios foram responsáveis por 63% dos/as adolescentes relataram fazer uso de algum
28, 8% das mortes de jovens. tipo de substância psicoativa, entre drogas lícitas e
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ilícitas. O quantitativo maior de substâncias relatadas concretas dispostas em conflitos, como o é o conflito
foi maconha e álcool. 4% dos/as atendidos com a lei.
informaram sofrer algum transtorno mental. A maioria
dos adolescentes estava respondendo pela primeira INTERVENÇÃO PROFISSIONAL E INTERFACE COM A
vez a processo por ato infracional e os principais atos VIOLÊNCIA : ARTICULAÇÃO ENTRE POLÍTICA DE
destacados foram: tráfico de drogas, roubo, estupro ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO E RESPOSTAS
de vulnerável e lesão corporal. PROFISSIONAIS DO NAPC
À luz de uma análise crítica que considera a A intervenção profissional do Serviço Social no
realidade social de adolescentes em conflito com a lei NAPC responde às requisições postas no cotidiano
como fruto de processos históricos e sociais, em que profissional e às demandas solicitadas pela instituição:
se sobressaem a ausência de cidadania e de direitos, o atendimento a adolescentes em conflito com a lei a
é possível apreender e relacionar essas informações partir da realização de estudo social. Esse aspecto
oriundas do NAPC à tendência histórica do tratamento evidencia que a dimensão técnico-operativa
e visibilidade dada ao problema no Brasil. Assim, os (GUERRA, 2012) da profissão emerge como categoria
dados atualizam uma tendência claramente repressora a partir da qual se efetiva a relação concreta entre
e estigmatizada. A condição socioeconômica profissionais e usuários. Convém destacar, de partida,
apresentada pelo/as adolescentes reflete a ausência que as respostas profissionais que dão cor à dimensão
de renda para o provimento dos mínimos básicos ou operativa estão coadunadas às dimensões ético-
sua realização em condições-limite e a necessidade política e teórico-metodológica, numa perspectiva de
de complementação através de programas de autorrelação, de autoimplicação. É a dimensão
transferência de renda. As informações alusivas à operativa, contudo, de acordo com a autora
situação escolar expõem o déficit e a distorção na supracitada, a “[...] forma de aparecer da profissão
relação idade/série, bem como evidenciam a ausência [...]” (p. 40). Em outros termos, é na dimensão
de projetos de vida sólidos, baseados no acesso à interventiva, instrumentalizada em ações,
educação e à profissionalização. procedimentos, modos de fazer, que se materializam
Esses dados dão conta, assim, de um rico perfil as respostas profissionais no âmbito do exercício
de informações sobre os usuários/as atendidos/as no profissional.
Núcleo e transformam-se numa importante fonte de As respostas profissionais são, assim, atos, formas
conhecimento sobre sua realidade social. Decorre do de atender às requisições imediatas postas no cotidiano
lugar privilegiado que ocupa o Serviço Social no profissional. Mas há que se considerar nesse processo
contato direto com sujeitos que demandam serviços as implicações decorrentes dos equívocos de equiparar
e atendimento. Cabe expressar, no entanto, que na essas ações a respostas meramente imediatistas,
área sociojurídica de atendimento a adolescentes em deslocando-as do componente histórico e social que
conflito com a lei não existe a mediação de um serviço caracterizam a demanda solicitada e que influem nas
social ou execução de uma determinada política de requisições profissionais. Significa que a dimensão
assistência, como ocorre em outros espaços interventiva não se resume à operacionalização de
ocupacionais. Conforme Borgianni (2013), nas serviços nem sintetiza apenas a resolução de conflitos.
instituições judiciárias o trabalho de assistentes sociais São requisições interventivas frutos de processos
não corresponde a “[...] mediação dos benefícios históricos e sociais nos quais estão implicados e sem
socioassistenciais” (BORGIANNI, 2013, p. 435). os quais a intervenção concreta redundaria em
Ocorre, sobretudo, a mediação de situações implicadas pragmatismo (GUERRA, 2012).
em processos judiciais, como no NAPC, em que o É oportuno informar, antes da descrição e análise
Serviço Social é chamado a opinar sobre situações das respostas profissionais do Serviço Social no
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NAPC, o dado relativo à violência policial relatada primazia dos princípios éticos da profissão na
pelos/as adolescentes. Sobre o aspecto, as informações intervenção profissional.
presentes no “Perfil NAPC 2013” dão conta que 48% O significado social da violência, entendido como
dos/as adolescentes atendidos/as informaram ter o sentido e características por ela expressado, pode
sofrido algum tipo de violência da polícia no ato de estar relacionado aos mecanismos de controle
sua apreensão. ideológico e de criminalidade engendrados, sobretudo,
Nessas situações, as respostas profissionais – pelas instituições policiais, mas sem a elas se resumir,
procedimentos – mais frequentes relacionam-se ao uma vez que fazem parte de amplo movimento de
esclarecimento à família atendida do remetimento controle social encampado pelo Estado. Este, ao
automático dos autos1 do processo à Corregedoria da assumir a condição de ente legitimador do sistema
Polícia Militar. Realiza-se também a orientação sobre capitalista, incorpora, ainda que sob o rótulo da
a possibilidade da família realizar denúncia no referido ideologia da segurança, os princípios de apartação
órgão e, por fim, há o registro no Relatório Social a social e de criminalização das classes pauperizadas.
partir das informações constantes nos relatos dos A violência policial estaria, dessa forma, relacionada
adolescentes. Em algumas situações, quando da a mecanismos de controle social das expressões da
existência de ameaças de morte, adota-se também o questão social pelo Estado através das instituições
procedimento, com o consentimento do/a adolescente, policiais. Considera-se que esta realidade está inserida
de tentar inseri-lo/a em programa de proteção à vida. no histórico do tratamento repressivo e punitivo a
No NAPC, o primeiro contato com a informação que foram expostos adolescentes em conflito com lei
sobre a violência policial surge na recepção inicial, ao longo da história, alvo de medidas que gravitaram
com a pergunta sobre a ocorrência de alguma violência em torno de perspectivas saneadoras, filantrópicas,
sofrida pelo/a adolescente e a sua descrição. Em caso repressivas e punitivas.
de resposta afirmativa, os entrevistados são indagados A segunda questão – a contextualização das
quanto ao repasse dessa informação já na audiência respostas profissionais do NAPC diante do problema
de apresentação, uma vez que é praxe, como da violência policial relatada por adolescentes –
informado acima, o remetimento dos autos1 do apresenta-se como intervenção fruto de
processo à Corregedoria da Polícia Militar. Ressalte- conhecimentos adquiridos na formação acadêmica,
se que a pergunta sobre a ocorrência da violência plasmada pelas competências ético-política, teórico-
policial passou a integrar o formulário de cadastro metodológica e técnico-operativa e também pela
inicial no ano de 2013, após reflexões sobre a experiência cotidiana de trabalho. Estão elas, no
recorrência dos relatos sobre a violência policial. entanto, conformadas aos limites institucionais e à
Ao apresentar as respostas profissionais do Serviço condição de assalariamento dos profissionais. Isso não
Social no NAPC, no atendimento aos adolescentes significa assumir uma postura fatalista em que a
que relatam violência policial, importa destacar alguns intervenção fica fadada aos limites fixos da instituição,
aspectos implicados no problema. O primeiro diz uma vez que a realidade social é, sim, passível de
respeito ao significado dessa violência e sua relação transformação social.
com a trajetória de atendimento aos adolescentes em Nesse sentido, as repostas profissionais do Serviço
conflito com a lei no Brasil. O segundo, não menos Social no NAPC têm permanecido na esfera individual,
importante, refere-se à contextualização dessas compreensível diante da própria dinâmica de
respostas ante a perspectiva de estarem elas realização dos atendimentos e entrevistas. Em outros
conformadas aos limites institucionais e às condições termos, a intervenção profissional no problema tem
do exercício profissional, o que não significa, contudo, sido pautada por respostas singulares. Essas, embora
o enrijecimento de possibilidades e a negação da não signifiquem a inoperância ou inviabilização de
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direitos – muito menos o detrimento dos princípios p. 407-442, 2013.
éticos da profissão, minimizam a possibilidade de BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei federal nº
8069, de 13 de julho de 1990. Conselho Estadual de Defesa da
enaltecer a dimensão coletiva do problema.
Criança e do Adolescente. Recife, 2009.
Enfraquecem a articulação com outros atores sociais,
ENGELS, F. Anti-Dühring: filosofia, economia política, socialismo.
como movimentos sociais que lutam pela causa da Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 145.
infância e da juventude, pelos direitos humanos e FALEIROS, E. T. A criança e o adolescente. Objeto sem valor no
pela não redução da maioridade penal. Brasil Colônia e no Império. In: RIZZINI, I; PILOTTI, F.
Compreender a violência policial a partir desse (Org.). A arte de governar as crianças: a história das políticas
sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São
paradigma significa entendê-la como grave prática de
Paulo: Cortez, 2009. p. 203.
violação de direitos humanos, o que requisita, por
FALEIROS, V. de P. Infância e processo político no Brasil. In:
seu turno, posicionamento crítico, aprofundamento RIZZINI, I; PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar as
teórico e intervenção coerente com os postulados crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da
éticos da profissão. Nesse sentido, é mister romper o assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009. p.
36.
nível aparente da questão, situando-a em sua
FRAGA, P. C. P. Política, isolamento e solidão: práticas sociais na
processualidade histórica e social. Isentar-se dessa
produção de violência contra jovens. In: SALES, M. A.;
posição é incorrer no erro de analisar a violência a MATOS, M. C. de; LEAL, M. Cr. (Org.). Política social,
partir de suas fragmentações. família e juventude: uma questão de direitos. São Paulo:
Para o Serviço Social impõe-se ainda o desafio de Cortez, 2010. p. 90.
intensificar a disponibilização de informações aos FRAGA, P. D. Violência: forma de dilaceramento do ser social.
Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 70, p. 44-58, 2002.
usuários sobre seus direitos e as formas de acesso a
GUERRA, Y. A dimensão técnico-operativa do exercício
eles, além de tornar cada vez mais pública a violência
profissional. In: SANTOS. C. M. dos; BACKX, S; GUERRA,
através da notificação nos relatórios sociais e nas Y. (Org). A dimensão técnico-operativa do serviço social:
instâncias de defesa dos direitos das crianças e desafios contemporâneos. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012. p.
adolescentes. Mesmo que esse avanço não represente 40.
o fim da prática da violência policial e se restrinja a HARVEY, D. Para entender o capital. São Paulo: Boitempo,
2013, p. 41.
um dado espaço ocupacional, representa um esforço
IAMAMOTO, M. V. Questão Social, família e juventude: desafios
no enfrentamento e construção de canais e barreiras
do trabalho do assistente social na área sociojurídica. In:
à reprodução da violência policial. SALES, M. A.; MATOS, M. C. de; LEAL, M. C. (Org.).
Política social, família e juventude: uma questão de direitos.
NOTAS EXPLICATIVAS São Paulo: Cortez, 2010.
1 Páginas do Processo Judicial em que estão transcritos os ______. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital
depoimentos do/a adolescente e de seus respectivos familiares financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2012.
ou responsáveis. p. 145.
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