TEXTO16
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São Luís
2014
MARIA NATIVIDADE SILVA RODRIGUES
São Luís
2014
Rodrigues, Maria Natividade Silva
157 f.
CDU 343.541-053.2
Maria Natividade Silva Rodrigues
Aprovada em ______/______/______
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Maria Nascimento Sousa (Orientadora)
Doutora em Ciências Sociais
Universidade Federal do Maranhão
_______________________________________
Prof. Dr. Álvaro Roberto Pires
Doutor em Ciências Sociais
Universidade Federal do Maranhão
____________________________________________
Prof. Dra. Maria Mary Ferreira
Doutora em Sociologia – Departamento de Biblioteconomia UFMA
“Nós pedimos com insistência
Não digam nunca: Isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia.
Numa época em que reina a confusão.
Em que corre o sangue,
Em que se ordena a desordem,
Em que o arbitrário tem força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza,
Não digam nunca: Isso é natural!”
Bertolt Brecht
A minha mãe Joana
A todas as crianças e adolescentes de João Lisboa
Aos parceiros de caminhada, do 2ºEPMont
AGRADECIMENTOS
Esse estudo tem por objetivo analisar a violência sexual contra a criança e o adolescente,
através do exame dos processos-crime de denúncias de “Abuso sexual”, na comarca de João
Lisboa – MA e no Conselho Tutelar no período de 2008-2012. Com o objetivo de
compreender as modalidades discursivas de violência, manifestas nos processos jurídicos
formais, nos quais são sujeitos envolvidos: crianças, adolescentes, adultos, parentes e ou,
agregados. Foram utilizados os registros nos autos para analisar a relação existente entre o
medo, silêncio, segredo, relações de poder e obediência, construção do conceito do que é
violência, os discursos e as práticas jurídicas. A violência sexual contra a criança assume na
atualidade duas formas principais: O abuso sexual e a exploração sexual comercial. Não é um
problema da modernidade, sabe-se que sempre existiu no seio da família, mas é tratada como
um tema delicado, de excelência do privado, é um fenômeno banalizado e naturalizado
socialmente. Todavia o abuso sexual intrafamiliar incorpora as dimensões simbólica, cultural,
social. O estudo foi feito diante de um discurso moralista e conservador, de forma bem
expressa, quando emerge o tema da sexualidade, onde em determinados casos a vítima se
torna ré, o acusado em vítima, especificamente quando a criança é muito pequena, ou então
adolescente, capaz de nos levar a pensar como é feita a apropriação dos valores morais
presente na sociedade através do discurso jurídico. Assim compreender como as narrativas
são elaboradas pelos advogados para dificultar a credibilidade da vítima, e a responsabilização
do autor da violência.
This study aims to examine sexual violence against children and adolescents, by examining
the criminal cases of allegations of "sexual abuse" in the district of Lisbon John - MA and the
Guardian Council in 2008-2012. Aiming to understand the discursive forms of violence,
manifested in formal legal proceedings, in which subjects are involved: children, adolescents,
adults, relatives and or aggregates. Records were used in the records to analyze the
relationship between fear, silence, secrecy, power relations and obedience, building the
concept of what is violence, discourses and legal practices. Sexual violence against children
nowadays takes two main forms: sexual abuse and commercial sexual exploitation. Not a
problem of modernity, it is known that has always existed within the family, but is treated as a
sensitive topic, the excellence of private, is a commonplace phenomenon and naturalized
socially. However the intrafamily sexual abuse incorporates the symbolic, cultural, social
dimensions. The study was done before a moralist and conservative discourse, quite
explicitly, emerges when the topic of sexuality, in certain cases where the victim becomes a
defendant, the defendant in the victim, especially when the child is very small, or teen able to
lead us to think how this is done appropriation of moral values in society through legal
discourse. So understand how narratives are drawn up by lawyers to hinder the credibility of
the victim, and the accountability of the author violence.
Keywords: Violence, Sexual Abuse Intra-Family, Genus, Family, Child and adolescent.
LISTA DE SIGLAS
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................16
CAPITULO I ............................................................................................................................28
CAPITULO II .................................................................................................................................51
ANEXOS............................................................................................................................... 149
16
INTRODUÇÃO
1
Por autos entende-se peça escrita, de natureza judicial, constitutiva do processo, em que se registra a narração
minuciosa, formal e autêntica de determinados atos judiciais.
2
Organização da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), para o trabalho das questões sociais da
Igreja no Brasil. A Cáritas está presente em mais e 192 países.
3
O curso “Semente de Girassol” é realizado pelo Centro de Defesa Marcos Passerini para pessoas ou
organizações que trabalham com crianças e adolescentes. O curso é dividido em módulos à distância e encontros
presenciais.
4
Campanha surgiu a partir das inquietações nas aulas de História, com os alunos da CE Henrique de La Roque,
no ano de 2006. Teve a parceira do CE Rio Amazonas. A pesquisa foi realizada nos período de agosto de 2006 a
maio de 2007.
17
entrevistadas 3.100 pessoas. Os dados desta pesquisa revelaram informações sobre a situação
da criança e do adolescente no município. A violência física aprece em primeiro lugar, e a
sexual em segundo, seguida da negligência. Esse despertar foi se colocando em alguns
trabalhos junto ao Fórum da Criança e do Adolescente5. Em 2009 iniciei a Graduação em
Ciências Sociais, e trabalhei com esse tema no projeto de final do curso. Essa escolha é a
continuidade da graduação, enfatizando a violência que envolve crianças e adolescentes,
principalmente em relação ao abuso sexual, aquele praticado por familiares, bem como, os
que pertencem ao convívio da família: vizinhos, padrinhos, professores.
Nesse sentido, a proposta de estudo pareceu-me adequada, até o início do Mestrado,
em março de 2012. Mas passado algum tempo e o contato com novas leituras e discussões em
sala, fui conduzida percorrer outros caminhos, rever conceitos, tanto com meus pares da
educação e mais recentemente com colegas e professores do Mestrado, constituindo assim
uma espécie de “autoanálise”, onde o trabalho científico leva à revisão de conceitos, e de
acordo com Pierre Bourdieu (2005). “É um discurso em que a gente se expõe”. Nesse
percurso deparei-me com algumas situações, categorias, que foi necessário suspender as
minhas “pré-noções” trazidas comigo no envolvimento com o trabalho junto ao Fórum da
Criança e do adolescente, tais como: a crença que o sujeito agressor tinha um distúrbio
psicológico, e que sua punição era o bastante; apatia de uma parcela da sociedade e da família
em denunciar; envolvimento emocional com a situação do sujeito vítima. Foi necessário o
exercício do distanciamento, para perceber o fato com certa objetividade.
O texto de Lenoir (1998) ajudou-me a discernir, ou pelo menos a entender que os
problemas são construídos socialmente, e historicamente imbricados na vida social dos
indivíduos. Do ponto de vista das políticas públicas, o Município de João Lisboa não dispõe
do Programa Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual, que traz essa prerrogativa, a
exemplo dos Planos Federal e Estadual. No município tem alguns órgãos, como o Conselho
Tutelar, e um juiz titular da Infância e Juventude. Porém, a rede de proteção integral
preconizada no Estatuto da Criança e do Adolescente não está articulada. Aliado a tudo isso, o
município de João Lisboa é próximo de outro município que é apontado como uma das rotas
de exploração sexual de Crianças e Adolescente, o Município de Imperatriz.
5
O Fórum DCA(Fórum das \Organizações Não Governamentais dos Direitos da Criança e do Adolescente), foi
fundado em 2006, com o intuito de trabalhar as questões relacionadas ao público citado, tem como parceiro a
Polícia Militar(2º Esquadrão de Polícia Montada-com sede em João Lisboa).Os trabalhos do Fórum deu
visibilidade ao abuso sexual na cidade de João Lisboa. Além de propor políticas públicas para o gestor
municipal.
18
6
Árvore nativa da região, conhecida por sua imponência frondosa, deu origem ao primeiro nome do povoado
20
surgindo com a implantação da usina da Suzano Papel e Celulose, embora seja mesmo
localizada em Imperatriz, a mão--de–obra é das cidades circunvizinhas como João Lisboa,
Senador, La Roque, Davinópolis.
INDICADORES SOCIAIS
TABELA 1- EDUCAÇÃO
7
Antigo programa do Governo Federal que em 2003 o Município de João Lisboa foi contemplado para trabalhar
as questões relativas a violência sexual. Atualmente o programa passou a ser Centro de Referência
Eespecializada de Assistência Social(CREAS).
8
É um projeto desenvolvido desde 2004 pelo Centro da Melhor Idade “Dom Affonso”,uma organização da
sociedade civil surgida a partir da Campanha da Fraternidade 2003.Uma ação da Cáritas Brasileira. Que trabalha
com idosos, e crianças no município de João Lisboa.
22
adolescentes em situação de vulnerabilidade social mais aguda, que durou dois anos, e nos
anos seguintes foi ampliado pelo governo municipal. A segunda ação, foi a articulação junto
à Câmara Municipal para aprovação do projeto de Lei de Inclusão do Eca no Currículo
Escolar. O mesmo foi aprovado e sancionado pelo prefeito em 2006. Mas, infelizmente não
foi implantando. Aconteceram algumas oficinas para os professore da rede municipal, mas
não teve prosseguimento.
O município de João Lisboa tem uma população Infanto Juvenil, caracterizada
segundo o IBGE, no Censo Demográfico 2010, em etnia ou raça, (Preta=437); Parda (4.807 )
;Branca( 1.988 ), num total de 6.232 pessoas, apontado na tabela a seguir. Consideramos
importante destacar que a faixa etária dos 5 aos 14 anos se constitui na maioria das crianças e
adolescentes do Município,( (4.418) período onde ocorre o maior número de abuso sexual. E
a população de crianças e adolescentes ‘pardos’ é a maioria deste grupo etário
A composição familiar da cidade de João Lisboa passa pelas transformações
ocorridas na modernidade, um número significativa das famílias aparecem a mulher como
chefe de família, ou já em uma segundo ou terceiro relacionamento, a composição nuclear
(pai, mãe, filhos) é muito presente também, além da família composta por avós e netos.
âmbito familiar, com pessoas próximas e com laços afetivos ou de parentesco, como pai,
padrasto ou outros; e o extrafamiliar, comumente cometido por pessoas desconhecidas da
vítima ou sem vínculo afetivo nem de parentesco com ela.
No Brasil, segundo informações da UNICEF9, 18 mil crianças, são vítimas de
violência doméstica por dia, e 80% das agressões são feitas por parentes próximos. As
meninas entre 07 e 14 anos são as mais afetadas. A negligência e a violência psicológica
fazem parte do repertório cotidiana de muitas vítimas nas famílias brasileiras. O Estado do
Maranhão aparece em quinto lugar no número de denúncias no disque 100, no ano de 2014.
Pelo registro das denúncias junto ao Conselho Tutelar do município de João Lisboa,
no espaço de 2008 a 2012, foi possível elaborar o seguinte gráfico, demonstrando os bairros
de maior incidência da violação dos direitos da criança e do adolescente tanto na urbana
quanto na rural, as demais violências (psicológica, negligência, física), não foram
contabilizadas. O destaque é para o Bairro Cidade Nova com 32% das denúncias, quando
retratado o bairro tem uma estrutura precária, e os grandes eventos do município são feitos no
referido bairro, nele se encontra um ‘bolsão de pobreza’, em conjunto com outras mazelas
sociais, que não é privilégio somente deste bairro, mas de outros bairros da cidade. Mesmo
recentemente tenha sido implantado o CRAS, a efetivação destas politicas ainda não é
visualizada concretamente as mudanças na vida das pessoas, principalmente de crianças e
adolescentes.
9
https://sites.google.com/site/violenciainfantilturma3107/violencia-domestica-infantil acessado em 12 de
dezembro de 2012.
24
Caminho Metodológico
analisados. Outra obra importante foi de Eni Orlandi Análise de Discurso: princípios e
procedimentos, juntamente com Michel Pêcheux.
Outra obra importante para esse estudo foi a de Georges Vigarello. A História do
Estupro: Violência Sexual nos Séculos XVI-XX, mostra toda a trajetória do surgimento da
sensibilidade em relação aos crimes sexuais na França. Na obra também aparece um percurso
da história dos estupros. E no século XVIII começaram as queixas. Em meados do século
XIX, as mudanças são significativas, e uma acentuada sensibilização à violência.
Enfatizo a obra de Ricardo Pimentel Méllo: A Construção da Noção de abuso Sexual
Infantil, o autor faz uma abordagem construcionista. É, portanto, um convite para analisar a
essencialização dos fenômenos do mundo social. As assimetrias como gênero e raça foram
objetos de lutas políticas para sua dessencialização. Observa-se que a criança/adolescente
mantém seu lugar sacralizado, fortalecido. Elementos esses, que são bem presentes nos
processos-crime, onde aparecem como “as ofendidas”, ou “vítimas”. Essa obra ajudou-me na
compreensão de como a construção da noção de abuso sexual surgiu.
Outra obra foi a de Edson Passetti:Violentados-Crianças, Adolescentes, Justiça. O
autor retrata um extenso estudo de processos sobre denúncias de crianças atingidas por
violência doméstica, e adolescentes infratores. Embora nesse estudo não trate da situação de
adolescentes infratores, o importante nessa obra é a visão do conjunto de crianças e
adolescente que permanecem imantados às tensões decorrentes de novos vínculos de
afetividade, redimensionados pelos novos casamentos dos pais.
Na obra de Rosana Morgado, Mulheres Mãe- o abuso sexual incestuoso, a autora faz
a distinção da sexualidade da criança/adolescente/adulto, com uma reflexão aprofundada do
papel da mãe nesse processo de violência sexual. Observa que a violência doméstica é o
grande guarda chuva das demais violências perpetradas contra a criança e adolescente,
principalmente do sexo feminino. Na leitura dos processos as denúncias foram feitas por
mulheres, em sua maioria as mães. Assim sendo, a leitura dessa obra se tornou essencial para
esse estudo.
As obras de Heleieth I.B. Saffioti, Gênero, Violência e Patriarcado e O Poder do
Macho, são relevantes para discutir as relações de gênero como relações sociais. Para Saffioti
elas se estabelecem no âmbito de nossa sociedade e sugere um caminho para desvendar as
condições que demarcam a inserção das crianças e adolescentes nessas relações. Discute a
figura do homem nas relações familiares como espaço privilegiado do exercício do poder.
Outras obras de igual relevância são as de Pierre Bourdieu. A Dominação Masculina;
Poder Simbólico, que enfatizam a violência simbólica como suave invisível às suas próprias
27
CAPITULO I
10
Era um manuscrito da Idade Média, que continha uma coleção de textos descritivos sobre as atividades
cotidianas das pessoas. Em sua forma original, o livro de horas servia como conteúdo litúrgico para determinas
horas do dia.
29
para classes abastadas do campo e da cidade e somente a partir do século XVIII se estendeu
para as demais classes.
A criança é novo personagem do século XVI, uma vez que, até então, ela só aparecia
nas representações de anjos e mesmo assim como um adulto em miniatura. Ao longo desse
mesmo século as mudanças continuaram surgindo, com a simbologia das idades da vida, que
poderiam ser representadas por uma pirâmide, através da criança, do jovem ou de um idoso.
Nesse sentido, verificamos as modificações da vida social começando com a história das
famílias, seu patrimônio, as mortes e a união, surgindo assim o sentimento da família.
Ariès(1981) ressalta que o novo é o sentimento de família e não a família, uma vez que esta
sempre existiu, mas sua existência era silenciosa. Esse sentimento foi se fortalecendo em
torno da família conjugal formada pelos pais e os filhos. Os artistas começaram a representar
a família em torno da mesa coberta de frutas. A família que posa para o artista, com um grau
de afetação, esteve presente na arte francesa até pelo menos o início do século XVIII. Mas,
sob a influência particular dos holandeses, o retrato de família muitas vezes seria tratado
como uma cena do gênero, tal como a imagem dos momentos cotidianos, representado o
homem, a mulher e a criança evocando a vida familiar, modelo que se disseminou em muitos
outros países da Europa e, principalmente, nas colônias por eles instituídas.
FIGURA. 2. Sagrada Família com São João Batista Criança. Autor: Pintor da Emília (Séc. XVI).
Fonte: http://masp.art.br/masp2010/acervo_detalheobra.php?id=75 – Acesso em 13-06-2014
30
FIGURA 3. Representação do nascimento de S. Francisco Xavier – Autor: Andre Reinoso (Séc. XII).
Fonte: http://obaudahistoria.blogspot.com.br/2011_12_01_archive.html - Acesso em 13-06-2014
privado, para a transmissão dos bens e do nome, tomando para si, a função moral e espiritual,
onde a educação e a transmissão de valores passavam de geração em geração. Na medida em
que as relações com as crianças foram mudando, a família também passava por visíveis
transformações.
Ariès (1981) cita que uma das características dessa família moderna é que ela tornou-
se mais intimista, determinando o espaço de convivência entre crianças e o adulto, pois novas
práticas e valores foram agregados na educação, criando vínculos afetivos com a maior
aproximação de pais e filhos. É nesse contexto que a família passa a se isolar em relação à
coletividade, valorizando a privacidade de seus membros. A casa passou a corresponder a essa
nova preocupação de defesa contra o mundo. Era já a casa moderna, que assegurava a
independência dos cômodos fazendo-os abrir para um corredor de acesso. Essa reorganização
dos espaços e dos costumes surgiu inicialmente entre a burguesia e nobreza, resultando em
uma das maiores mudanças da vida cotidiana, correspondendo a uma nova necessidade de
isolamento, deixando um espaço maior para a intimidade da família, excluindo criados,
clientes e amigos.
Outra característica da família moderna é a igualdade entre seus filhos, que pôs fim
ao favorecimento dos primogênitos em detrimento dos demais filhos. Com isso, os filhos
conseguiram um lugar mais próximo dos pais, diferindo assim a família moderna da família
medieval. Nesse sentido, a criança ganhou importância, e os adultos passaram a ocupar-se de
sua educação para o futuro. Embora, não fosse o centro do núcleo familiar, ela tornou-se uma
personagem importante.
Ariès(1981) destaca ainda a preocupação inicial do surgimento da infância
como categoria social em que a família nuclear, composta pelo pai, pela mãe, pelos filhos e
por uma complexa combinação de autoridade e amor parental, trouxe um novo conjunto de
atitudes em relação às crianças. Uma delas foi a passagem da função de socializadora para o
âmbito restrito do lar, constituindo alguns mecanismos fundamentais para a construção dessa
família moderna, coincidindo com a ascensão da burguesia.
11
O termo Coronelismo surgiu em 1820,junto com a Guarda nacional. Foi termo criado para designar certos
hábitos políticos e sociais próprios do meio rural brasileiro, onde os proprietários rurais chamados de ‘coronéis
exerciam domínio absoluto sobre as pessoas ou delas dependiam para sobreviver. Tem raízes profundas com o
patriarcado. Também é utilizado na atualidade para designar a ação demagógica de alguns políticos. Recebe o
nome de Clientelismo a prática política de troca de favores na qual os eleitores são encarados como ‘clientes’. A
origem dessa relação possui raízes na sociedade rural tradicional, bem como nos laços entre latifundiários e
camponeses fundados na reciprocidade,fidelidade, lealdade e confiança. É uma relação que se traduz também em
conceder benefícios púbicos na forma de empregos,benefícios fiscais e isenções em troca de apoio político. Tem
relação bastante estreita com a prática do coronelismo.Protecionismo é uma teoria que prega um conjunto de
medidas a serem tomadas no sentido de favorecer as atividades econômicas internas,reduzindo e dificultando ao
máximoa importação de produtos e a concorrência estrangeira. Os principais exemplos de protecionismo
são:criação de altas taxas e normas técnicas de qualidade para produtos estrangeiros,reduzindo a lucratividade
dos mesmos. Subsídios à indústria nacional,fixação de quota litando os serviços e produtos estrangeiro no
mercado nacional.A fiscalização é feita pela OMC( Organização Mundial do Comércio),cuja função é
promovera liberação do comércio internacional. Vale ressaltar que a diminuição do comércio, consequência
natural do protecionismo,enfraquece as políticas de combate a fome e ao desenvolvimento dos países pobres.
34
12
O Código Civil de 1916 Disponível em
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70309/704509.pdf?sequence=2
36
pela Consolidação das leis do trabalho (CLT) em 1941. Durante a ditadura de Vargas os
movimentos feministas foram reprimidos, sendo retomados somente no início da Segunda
Guerra Mundial, em 1945. Nesse período os homens foram enviados para as batalhas e as
mulheres tiveram que trabalhar para sustentar as famílias. No pós-guerra surgiu o Estado de
Bem-Estar Social, que girava em torno do pleno emprego masculino e do cuidado com o lar
destinado às mulheres. Em 1962 com a criação do Estatuto Civil da Mulher Casada13 teve
início o processo de democratização da sociedade conjugal, eliminando algumas
discriminações contra a mulher e os filhos. Foi a partir desta alteração do Código Civil
Brasileiro que as mulheres casadas puderam trabalhar sem autorização dos maridos.
A Constituição Brasileira de 1988 é um marco jurídico da família contemporânea e o
Novo Código Civil Brasileiro de 2002 substituíram o Código de 1916. Foram consolidados
alguns direitos femininos existentes na sociedade, nos quais a família não seria mais regida
pelo pátrio poder, ou seja, pelo poder exclusivo do pai, mas pela igualdade de poder entre o
casal. Os pais passaram a ter o dever de criar e educar os filhos menores, frutos do casamento
ou não. Nesse contexto os filhos “legítimos”, “legitimados naturais”, “adulterinos” e
“incestuosos” agora não existem. O que existe são os filhos, todos equalizados (Lira, 1997,
p.31). Também não existe mais o poder dos pais sobre os filhos. Crianças e adolescentes
passam a ter assegurado o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.
Na Constituição de 1988, a criança e o adolescente estão a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão14. (Lira, 1997, p.31).
A constituição de 1988 desloca sua atenção para o casamento e para as relações
familiares dele decorrentes. Vejamos o que a Carta Magna nos diz a respeito da família e suas
garantias:
Art. 226, § 3º - reconhecimento e proteção às entidades familiares não fundadas no
casamento.
Art. 226, § 4º - reconhecimento e proteção às famílias monoparentais.
Art. 226 § 5º - igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Art. 226 § 6º - possibilidade de dissolução do casamento, independente de culpa.
Art. 226 § 7º - planejamento familiar voltado para os princípios da dignidade
humana e da paternidade responsável.
Art. 226 § 8º - a previsão de intervenção estatal no núcleo familiar,para proteger
integrantes e coibir a violência doméstica.
13
A Lei de 4.121 de agosto de 1962-disonível em www.dji.com.br/leis_ordinarias/1962-004121-emc/4121-
62.html
14
Art.227, caput da Constituição de 1988.
37
Art. 227- O Estado divide com a família a responsabilidade pela proteção à criança e
à garantia dos seus direitos.
15
Neste caso o grupo doméstico está sendo empregado como sinônimo de grupo familiar.
38
brasileiros. Segundo o autor, não são somente espaços geográficos, mas são esferas dotadas
de positividade, domínios culturais institucionalizados, e por isso suscita emoções, reações e
leis. Então as relações familiares não representariam uma unidade interna totalmente
harmoniosa, mas uma dinâmica de emoções, que oscila entre a contradição e concordância de
valores, hábitos e comportamentos.
Bruschini (1993) destaca que algumas das funções básicas das famílias variam
conforme o contexto socioeconômico em determinado período da história, seja com a
socialização de seus membros, seja com a reprodução ideológica e econômica, constituindo
tal estrutura um espaço social distinto, em que se definem as diferenças e as relações de poder
entres estruturas hierarquizantes, de subordinação e dominação.
Na família estão presentes os componentes de raça, etnia, geração, gênero, como
enfatiza Morgado:
Para o autor, ainda existe uma dificuldade de se falar de sexo na família e tudo isso
têm marcado a distância entre o natural e o cultural, baseadas nas regras que limitam as ações
humanas. Assim, os séculos XIX e XX marcam o momento em que a vida sexual foi
removida para o fundo da cena, e a exclusão prevalece mais ainda para as meninas. Há um
silêncio nos assuntos sobre sexo, uma restrição à fala, gestos e atitudes, construindo assim
uma parede de sigilos ao redor dos adolescentes. Entretanto, os problemas de adaptação e
39
modelação dos adolescentes aos padrões dos adultos só podem ser compreendidos em relação
à fase histórica e à estrutura da sociedade como um todo.
Compreendemos que a sexualidade transita pelo ambiente familiar de diferentes
formas, fazendo parte do cotidiano, presente na exaltação da genitália do filho varão recém-
nascido, nos toques corporais que expressam intimidade e carinho, nos cuidados com o corpo
físico infantil durante a higienização, nas preocupações quanto ao modo de sentar feminino,
nos olhares de transformações advindas pela puberdade. Há um movimento familiar nem
sempre consciente no qual a sexualidade está em cena. Essa dinâmica da sexualidade em geral
não se transforma em atos abusivos, pois estas relações são afetadas pelas representações de
crenças, experiências e práticas que as modificam, as quais também são reguladas pelos
costumes socioculturais de cada época.
A criança é o princípio sem fim, o fim da criança é o princípio do fim. Quando uma
sociedade deixa matar suas crianças é porque começou seu suicídio como
sociedade. Quando não as ama é porque deixou de se reconhecer como
humanidade. Herbert de Souza (Betinho).
estereótipo.” (Goffman, 2008, p.13). Por outro lado, o conceito de adolescente define o sujeito
que está no começo da idade adulta, mas ainda não atingiu seu vigor.
Ariès (1981) comenta que antes da modernidade não existia a separação entre os
adultos e as crianças, esta última, inclusive, era um adulto em miniatura, não significando
aqui que não houvesse afeto, mas a falta da consciência das particularidades entre essas duas
fases da vida e que os conhecimentos e valores eram repassados a crianças não pelos pais,
mas pelos adultos durante o trabalho cotidiano. Esta situação era tão recorrente que, segundo
o autor, era frequente a solicitação de crianças para prestarem favores sexuais, e ou,
participarem de jogos sexuais. Portanto, somente quando houve a diferenciação da infância da
fase adulta é que a criança e o adolescente passaram a serem vistos de forma singular,
propiciada pela educação formal.
O reconhecimento da criança e do adolescente como pessoa humana e sujeitos de
direitos é recente. A perspectiva da “proteção integral”, anunciada na última década do século
XX e começo do século XXI confronta-se com a história da negação da humanidade da
criança, sua coisificação, sua dominação absoluta, bem como o rigoroso método disciplinar.
leva-pancadas, iniciou-se várias vezes o menino branco, no amor físico”. Era comum ainda o
homem branco “sifilizar” a menina negra. (FREIRE. 1984. p.400-401).
Em termos de estudos científicos no Brasil registra-se, em 1973,uma publicação
elaborada pelos professores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo,
relativa à descrição de um caso de espancamento de uma criança de aproximadamente um ano
e três meses de idade. De acordo com os autores deste estudo trata-se do “caso descrito
segundo a pesquisa feita pela Biblioteca Regional de Medicina (BIREME) como o primeiro
16
da literatura nacional”. Neste artigo os autores fazem uma revisão da bibliografia mais
relevante da época sobre o assunto, apontando as formas de se fazer um diagnóstico clínico.
Não há informações acerca dos fatos que envolveram o espancamento da criança, uma vez
que sua mãe a levou ao Pronto-Socorro e não mais retornou. Durante os duzentos e sete dias
de internação hospitalar, a criança não recebeu visitas de familiares e, por ocasião da alta, foi
entregue ao Juizado de Menores.
As rodas dos expostos são originárias da Itália na Idade Média. Elas surgiram
particularmente com a aparição das confrarias de caridade, no século XII que se constituíram
num espírito de sociedade de socorros mútuos para a realização das Obras de Misericórdia.
Marcos Cézar de Freitas(2003) revela que o fenômeno de abandonar os filhos é tão antigo
quanto a histórica colonização brasileira. Só que antes os meninos abandonados,
supostamente deveriam ser assistidos pelas câmaras municipais. Havia de fato uma omissão e
pouca disposição para esse trabalho. De certo as crianças abandonadas em sua maioria não
foram assistidas por instituições especializadas, mas foram acolhidas por famílias substitutas.
Nos séculos XVIII e XIX, no Brasil o abandono de crianças e o infanticídio eram
práticas encontradas entre brancos, negros e índios. Os bebês eram deixados nas ruas, lixeiras
e calçadas, o que provocou a criação da Roda dos Expostos17 pela Santa Casa, lugar no qual,
aquela pessoa que levava a criança, não era reconhecida. No Período Republicano a Roda dos
16
COATES, Veronica; RIBEIRO, Theotônio; MIRANDA, Hercowtz; KAISERMAN, Isnard. Síndrome da
criança batida. Jornal de Pediatria.Rio de Janeiro, 1973, p.265-270.
17
Era um mecanismo usado para abandonar recém-nascidos que eram cuidados pela instituição de caridade. Sua
forma cilíndrica,dividida ao meio por uma divisória,era fixada numa parede ou janela, da instituição. No
tabuleiro inferior e em sua abertura externa o expositor colocava a criança enjeitada. A seguir, ele girava a roda e
a criança já estava do outro lado do muro. Puxava-se uma cordinha com uma sineta, para avisar a vigilante, ou
rodeira que um bebê acabava de ser abandonado e o expositor furtivamente se retirava do local, sem ser
identificado.
42
Expostos se transformou em asilo de “meninos desvalidos”, sendo a última extinta nos anos
1950 do século XX. Sobre a roda dos expostos:
[...] a roda dos expostos foi uma das instituições de mais longa vida no Brasil,
sobrevivendo a três longos regimes de nossa história. Cria sede na Colônia, perpassa
e se multiplica no Império, conseguindo manter-se na República e só foi extinta na
recente década de 50. Sendo o Brasil o último a abolir a chagada da escravidão, foi
igualmente o último a acabar com o triste sistema de rodas dos enjeitados.
(MARCÍLIO, 2009, p.53).
É importante significar o que destaca este filósofo francês quando diz que a infância
não nos abandona, e que nem pode ser considerada só a idade sem razão.
Por infância entende que nascemos antes de nascer para nós mesmos. E, portanto,
nascemos através dos outros e, mas também para os outros, entregues, sem defesa,
aos outros. Estamos sujeitos ao seu mancipium que eles próprios não podem avaliar.
Porque embora sejam mães, pais, eles mesmos são também infantes. Eles não estão
emancipados de sua infância, da ferida da infância ou do apelo que ela lança.
(LYOTARD, apud KHOEN, 2005, p.239).
Todavia, somente nas primeiras décadas do século XX, foi que as ideias de infância
se transformaram em discurso normativo e promoveu-se a universalização dos direitos das
crianças. Nesse sentido, a infância foi inventada juridicamente. A partir de 1924, a Liga das
Nações proclamou a Declaração de Genebra18, reconhecendo a criança como um sujeito de
direitos, garantindo a elas um desenvolvimento saudável, com acesso à alimentação e à saúde.
Guerra (2004) cita a fala de Moro para ilustrar seu pensamento:
Não se trata de redescobrir a criança, assim como suas necessidades reais e não
fictícias: trata-se de reconhecê-la tanto como protagonista na mesma qualidade de
todos os outros atores que estão ao seu lado, da construção de uma vida coletiva
nova e diferente, dentro da qual o valor de que as crianças são portadoras estejam
também presentes, tenham também importância. Trata-se de dar um novo sentido à
relação adulto/criança, reconhecendo uma ação (e não somente uma reação) da
criança e estabelecendo benefícios significativos que só pode acontecer do
reencontro acontecido entre duas autoridades, mesmo que elas sejam diferentes,
mesmo que elas não estejam no mesmo plano. (MORO,1991 apud GUERRA, 2004,
p.7).
Após a proclamação da Declaração dos Direitos da Criança pela liga das Nações, o
Brasil criou, em 1927, o Primeiro Código de Menores19, no qual o governo consolidou todas
as leis existentes a respeito da proteção e assistência à infância. Essa lei foi produto de
inúmeras lutas de grupos organizados em defesa da proteção à criança e organizações estatais,
federais, ou municipais, para que crianças pobres fossem protegidas das doenças, e das
precárias condições de sobrevivência. Questões sobre a infância pobre se tornaram uma
preocupação pública, e na pessoa do juiz centrou-se todo o poder sobre os interesses dos
menores. A Doutrina de Proteção Irregular20 era um dispositivo público que assegurava a
proteção para as crianças abandonadas, vítimas de maus-tratos, miseráveis e infratores.
18
Em 1924 a Assembleia da Liga das Nações adotou a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança como
reconhecimento internacional dos direitos da criança.
19
Criado pelo Decreto 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, O Primeiro Código de Menores, também conhecido
como Código Mello Mattos, em homenagem a seu autor, o jurista José Cândido Albuquerque Mello Mattos,além
de autor foi o primeiro juiz de Menores do Brasil,exercendo sua atividade na cidade do Rio de Janeiro. Esse
Código tem como antecedente a lei Orçamentária (Lei 4.242 de 5 de Janeiro de 1921),que referia-se a
despesas.Mas adotou o critério cronológico,e a partir daí, os menores de 14 anos foram declarados penalmente
irresponsáveis e sujeitos a medidas reeducativas. Em 1926, o Congresso autorizou o Poder Executivo a reunir
todas as medidas relacionadas aos menores em um Código, o primeiro da América latina.O Código de Menores
veio alterar e substituir concepções como culpabilidade,penalidade,responsabilidade,pátrio poder,passando a dar
assistência ao menor de idade,sob a perspectiva educacional.Abandonou-se a postura anterior de reprimir e
punir, e passou a priorizar como questão básica o regenerar e o educar.Esse novo entendimento colocava as
questões relativas a criança e ao adolescente fora da perspectiva criminal, ou seja,fora do Código Penal.
20
A doutrina do Código Mello Mattos era manter a ordem social,ou seja as crianças com famílias não eram
objeto do Direito;já as crianças pobres, abandonadas ou delinquentes,ou seja, em situação irregular- passariam a
sê-lo.Nesse sentido,estariam em situação irregular aqueles menores de (18) anos que estivessem expostos,(
abandonado ou fossem delinquentes).
44
Em 1941, foi criado no Brasil o Serviço de Assistência ao Menor (SAM) que tinha a
perspectiva de corrigir e agregar alguns objetivos da natureza protecionista de menores
considerados carentes e delinquentes. Logo depois o SAM foi extinto devido a sua política
institucionalizada de repressão violenta contra crianças e adolescentes. Em 1964, em pleno
golpe militar, o governo brasileiro criou a Fundação Nacional de Bem Estar do Menor
(FUNABEM) e suas unidades executoras (FEBENS) descentralizando a execução da Política
Nacional do Bem Estar do Menor. Seu principal objetivo era formular e implantar a Política
Nacional de Bem Estar do Menor, o estudo do problema e o planejamento de soluções.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância, o UNICEF, lançou o ano de 1979 como
o Ano Internacional da Criança21, procurando dar visibilidade mundial a esse problema que
atinge o planeta. Os primeiros sinais de violência entre os pequenos foram registrados pela
medicina ao se debruçarem sobre o tempo da infância. Com um tempo singular da vida
humana, os primeiros médicos afirmaram as ideias de incompletude de crescimento, distinto
dos demais tempos da vida humana.
A aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente22, em 1990, em substituição do
Código de Menores foi decisiva para que a sociedade civil encontrasse embasamento jurídico
no enfrentamento da violência sexual. Embora haja esse aparato legal, os atos violentos
crescem em denúncias, principalmente pelas campanhas e proposições dos movimentos
sociais. A instituição do Dia Nacional de Combate a Violência Sexual, o 18 de maio23 é a
expressão das mobilizações que os atores sociais têm exigido do governo preparo para as
demandas apresentadas pelo conjunto da sociedade civil, bem como à necessária criação de
órgãos especializados que possam programar as diversas políticas e uma legislação adequada
e eficiente, uma vez que esse problema é multifacetado, e daí se exigir um tratamento
multidisciplinar.
Essa mudança é percebida na própria definição dos sujeitos da infância, e
consequentemente da adolescência, como fase sucessora, onde a necessidade vigente era a de
proteção como cidadãos em fase de desenvolvimento (Faleiros, 1998)e quando esses sujeitos
são relevantes na sociedade de consumo. Essas mudanças têm ressonâncias nos diferentes
modos de tratamento das questões da infância e adolescência. Diante desse contexto, essas
21
A proclamação oficial foi feita no dia 1° de janeiro de 1979, pelo secretário-geral das Nações Unidas Kurt
Waldheim.
22
Aprovado pela Lei n° 8.069/90 de 20 de julho de 1990.
23
Dia Nacional de Luta pelo Fim da Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescente. Instituído pela
Lei n°9.970\00, de autoria da então Deputada Rita Camata - ES. A data foi escolhida porque em 18 de maio de
1973, a menina Araceli Cabrera Crespo, com nove anos incompletos, foi sequestrada,drogada,estuprada e teve
seu rosto desfigurado com ácido,dentre outras barbáries,em Vitória,Espírito Santo. Esse crime até hoje não teve
seus envolvidos punidos.
45
práticas contra crianças e adolescentes são rejeitadas moralmente, e são consideradas como
problemas políticos, exigindo uma política pública de intervenção para os sujeitos envolvidos
em uma relação de violência sexual.
O quadro abaixo traz uma linha do tempo dos principais fatos que tiveram
relevância na vida das crianças e dos adolescentes no Brasil. embora seja resumido, estas
informações trazem consigo o olhar do governo, sociedade e os cuidados dispensados a este
público através dos tempos. Assim sendo, o que pode ser observado é a trajetória das crianças
e dos adolescentes de objetos para sujeitos de direitos. Mas, é importante ressaltar que embora
se tenha alguns ganhos, falta muito para que a efetivação dos direitos para maioria das
crianças e adolescentes brasileiros, posam usufruir de seus direitos fundamentais, tais como
educação, saúde, lazer, segurança, etc.
24
Fonte: Cartilha - A Violência sexual contra meninas – Uma leitura feminista sobre a violência intrafamiliar,
as formas comerciais e de omissão de Estado. Coletivo Feminino Plural. Porto Alegre, 2005.
48
Parágrafo 1º – Se resultar lesão corporal grave: Pena – reclusão de dois a oito anos.
Parágrafo 2º – Se resultar lesão corporal gravíssima: Pena – reclusão de quatro a
doze anos.
Parágrafo 3º – Se resultar morte: Pena – reclusão de quinze a trinta anos.
Art. 240 e 241 – (resumidos) Vedam a exposição de crianças e adolescentes, em
qualquer meio de comunicação como: fotografia, teatro, TV, cinema, internet,
inclusive, produzir, vender, fornecer, divulgar, ou publicar imagens com pornografia
em cenas de sexo explícito vexatórias.
Art. 244 – A (resumido) – Submeter criança, pessoa até 12 anos de idade
incompletos e adolescentes, entre 12 anos e 18anos de idade à prostituição ou a
exploração sexual.
Art. 245 – Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de
atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à
autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou
confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena – multa de três a
vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.
Art. 262 – Enquanto não instalados os Conselhos Tutelares, as atribuições a eles
conferidas serão exercidas pela autoridade judiciária.
CAPITULO II
O poder é tomado como estratégia e como tática, isto é, como articulação de forças e
formas diversas de exercício de dominação, como assinala Foucault, implicando
enfrentamentos, resistências, oposições o poder não se define por um lugar ou uma
função, mas pelo confronto desigual de forças (FALEIROS. 1995. p.478)
parentes. (SILVA, 2002, p.73).O Serviço do Disque 100 do Governo Federal25 recebeu
195.932 denúncias de violência contra crianças e adolescentes entre 2003 a 2011.As
violências psicológicas e físicas aparecem nos dados de 2010 como principais formas
denunciadas, contabilizando 36% dos casos, seguidas da violência sexual, com 34%, e da
negligência, com 30% dos registros. Com exceção da violência sexual os outros tipos atingem
ambos os sexos de forma quase igualitária.
Esse tipo de violação não é característico da pobreza e pode ocorrer
independentemente do credo religioso, etnia ou classe social. Todavia, nas famílias em que a
situação econômica é menos favorável as ocorrências numéricas têm mais visibilidade. Tanto
as crianças como os adolescentes que frequentam centros públicos não têm “muros altos”
garantindo sua privacidade e servindo como proteção da não denúncia por parte dos vizinhos
e outros que mantenham contato com a vítima.
A violência segue um curso e autores como Faleiros (2005) e Minayo (2002) tecem a
construção de uma divisão em quatro modalidades conforme indica figura abaixo:
25
O Disque Denúncia Nacional foi criado inicialmente pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção
à Infância e Adolescência (Abrapia), com objetivo de acolher as denúncias de qualquer uma das modalidades de
violência contra a criança e o adolescente,crimes de tráfico de pessoas e desaparecimento de crianças. (Paixão e
Deslandes, 2010, p.3). Em 2003 este serviço passou a ser coordenado pela Secretaria Especial dos Direitos
Secretaria de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República,sendo denominado a partir de 2006,
Disque100.Mais recentemente o disque 100 passou a receber também as denúncias de violência contra os idosos.
54
De certo modo os crimes sexuais contra crianças e adolescentes são cercados por
preconceitos, silêncios. Veronese (2006),cita dois aspectos balizadores da violência sexual:
Contexto Sócio-econômico-considera que a situação de pobreza e miséria em que
vive a população brasileira; a disparidade geográfica existente no país, a degradação rural
ocasionada pelo êxodo rural; e a desestruturação familiar.
Contexto Cultural-alicerçado no tripé gênero, etnia e raça, a violência sexual é
sustentada pela violência de gênero, que se expressa através de qualquer ato ou danos físicos
ou emocionais causados pelo abuso de poder de uma pessoa sobre outra baseado na
desigualdade de gêneros, e os homens brancos, adultos e ricos pela hierarquização do poder
de dominação ,abusam e exploram sexualmente mulheres, crianças e adolescentes, pobres e
negras.(VERONESE.2006.p.14).
Corroborando com a discussão, Renato Roseno (2008), enfatiza que
A violência sexual é uma das formas de violação de direito que melhor revelam a
interseccionalidade de gênero, raça, etnia, classe social e geração presente nas
relações humanas. É uma violência que atinge, no Brasil, majoritariamente, mas não
exclusivamente, meninas, mulheres negras e pobres, evidenciando os traços
estruturantes de uma sociedade classista, sexista, racista e adultocêntrica.
(ROSENO, 2008. p.31)
mercado convence que o ‘prazer sexual’ só se realiza com sua ajuda. O ‘sexo’ é separado do
‘amor’, desapropriado pelo mercado para se tornar um “produto de prazer”. Cresce de fora
mundial e milionária o mercado do sexo, que se deixa conhecer através de duas vertentes
como assinala Marcel Hazeu (2004), a erotização e infantilização de produtos e serviços; a
comercialização de produtos sexuais envolvendo jovens e mulheres. Segundo o autor a
primeira vertente utiliza-se da receita de sexo e juventude para vender produtos e serviços ou
ideias (cervejas, carros, passeios turísticos, etc) e, como consequências estimula o interesse
sexual de adultos por crianças e adolescentes, provocando um interesse sexual prematuro no
público infanto-juvenil. Já a segunda vertente é altamente diversificada, incluindo atividades
como, exploração sexual comercial, shows eróticos, pornografia, tele-sexo etc. Geralmente
reforçando as desigualdades socais, dentre elas a de gênero, uma vez que coloca a figura
feminina mais explorada e erotizada, recaindo sobre si uma interiorização sexual frente à
figura do ‘possuidor’
A sexualidade continua sendo um assunto delicado, enquanto que o sexo se impõe
como o grande mito da sociedade moderna. Fica difícil, se não impossível atravessar um dia,
sem ver, ouvir ou fazer sexo, tamanha é a oferta mantida pela indústria o entretenimento e sua
patrocinadora, a publicidade. O discurso do desejo é onipresente, uma família sabe da sua
impossibilidade de reunir sua família em gente da tv em corpos ardentes desfilem um
imaginário repleto de sensualidade e apelo libidinoso. Paradoxalmente, essa grande
quantidade de informações não garantem efeito qualitativo que justifique a superexposição,
inclusive virtual a que estão submetidos, adultos, crianças, adolescentes, jovens. Pelo
contrário tem trazido consequências desastrosas para a sociedade como um todo.
A violência não deve ser pensada apenas como perigosa e ruim por seus dados
estatísticos, mas como uma categoria analítica que está articulada a sistemas de classificação
históricos. (LOWENKRON. 2008) Nesse sentido, (Douglas 1998 apud Lowenkron 2008.p.9)
“os rótulos estabilizam o fluxo da vida social, e criam, até certo ponto, as realidades a que eles
se aplicam”. Então ao constatar um número de denúncias de “violência sexual”,
especialmente contra crianças e adolescentes, na última década do século XX, Vigarello
(1988) considera que não houve somente um aumento repentino de atos violentos, mas uma
mudança nos padrões de sensibilidade, em nossos valores culturais.
57
Se for possível supor uma vontade inteligente e livre numa criança com mais de 13
anos, essa vontade não é certa se a solicitação lhe chega de um dos seus ascendentes,
isto é, de alguém que exerce sobre ela uma autoridade natural. (VIGARELLO, 1988,
p.138).
de honra ao atentado contra a liberdade da pessoa. A lei criminal que foi consolidada no
século XIX era destinada a regular as práticas sexuais no interior de uma sociedade
estruturada em relações de gênero extremamente desiguais, fundadas sobre a legitimação da
autoridade do homem sobre as mulheres e as crianças no interior da família. No Código de
1890 as “ofensas sexuais” foram organizadas sob o título de crimes contra a segurança da
honra e a honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor.
Segundo Laura Lowenkron (2008),
Nesse sentido, autora considera que se a ofensa sexual atingia a moral pública e não
a subjetividade da pessoa ofendida, o status social da vítima podia aumentar ou diminuir a
gravidade do crime praticado de acordo com a vergonha ou prejuízo social produzido. O
estupro contra uma mulher pública, ou prostituta, era menos grave do que se a mulher fosse
considerada “honesta”.
Prado (2006), elenca as mudanças no campo do Direito, como por exemplo, as do
Código Penal Brasileiro de 1940, onde os delitos sexuais foram agrupados sob o título dos
“crimes contra os costumes”, no capítulo dos “crimes contra a liberdade sexual”. O bem
jurídico protegido não é mais a “honra das famílias”, mas a “liberdade sexual”, definida como
“a capacidade dos sujeitos de dispor livremente do seu corpo à prática sexual”, ou seja, a
faculdade de se comportar no plano sexual segundo seus desejos. (PRADO, 2006, p.194).
Aqui o consentimento aparece como algo mais importante do que o status da vítima. Nesse
sentido, o estupro passou a ser uma ameaça ao corpo íntimo e privado, e não mais um roubo
ou ultraje. É interessante notar que mesmo com o novo modelo pautado na liberdade
individual, a vergonha continuou presente e as denúncias não aumentaram repentinamente
com a mudança do novo código (VIGARELLO, 1998).
Na década de 70 o embate contra o estupro tomou um novo sentido: o da libertação.
(VIGARELLO,1998, p.210). O Movimento Feminista foi um dos primeiros movimentos
sociais a refletir sobre o campo jurídico como estratégia política para a promoção de mudança
na desigualdade de gêneros. Segundo Vieira, as entidades feministas a partir do final da
década de 1980 iniciaram uma luta para a inclusão dos crimes sexuais no capitulo dos crimes
60
contra a pessoa, demarcando, assim, um espaço discursivo em defesa dos direitos individuais
das mulheres. (VIEIRA, 2007, p.33).
Corroborando com a discussão, Lowenkron (2008) ressalta que a passagem para uma
linguagem dos sujeitos de direitos é acompanhada por outro deslocamento da compreensão
histórica da categoria “violência sexual”, que é do enfoque de gênero para o de geração.
Assim sendo Landini compreende que “se antes a violência era entendida como um problema
relacionado à desigualdade entre homens e mulheres, no final do século XX ela passou a ser
vista muito mais como uma questão relacionada à desigualdade de poder entre crianças e
adultos”. (LANDINI, 2006, p.251). A percepção desta mudança é importante porque a
violência contra a criança cruza com outras vulnerabilidades que permitem compreender
porque as meninas, figuras que combinam elementos de gênero feminino e idade infantil, e
que figuram como as vítimas privilegiadas do abuso e da exploração sexual.
Somente a partir do século XX, é que as crianças e adolescentes tiveram seu lugar
sacralizado nos aparatos legais. Assim elas passaram a ocupar nas agendas políticas um lugar
de destaque nas lutas por direitos. Antes, os casos de estupro de crianças e adolescentes não
tinham julgamentos específicos. Quando a ofensa era denunciada constava apenas como
violência sexual contra menina impúbere. Com a transformação da criança e do adolescente
como sujeitos de direitos, atos de violência contra elas ganham força no sentido de
transformar o crime em principal modelo de atrocidade. Neste sentido,
O resultado do crime não é mais a imoralidade, mas a morte psíquica. A questão não
é mais a depravação, mas a quebra da identidade irremediável ferida à qual aquela
criança ou adolescente em situação de vítima parece condenada, o que concede um
lugar inteiramente novo ao estupro contra crianças. (VIGARELLO, 1998, p.248).
pedofilia não apareça em 1880 às causas desses atos estão ligadas ao alcoolismo, ao
descontrole sexual ou à loucura. Apenas em 1925, é que a psiquiatria do século XX adotou o
termo pedófilo, mas esse termo só se popularizou na última década do século XX. Segundo
Landini (2006) esse termo é utilizado principalmente para retratar casos associados à rede de
pornografia infantil na internet e para justificar,por meio da doença, crimes de famosos ou
pessoas cultas que, de outro modo não poderiam ser pensadas como criminosos. O temor
durante muito tempo focalizado no inimigo público se desloca para o homem comum, o
vizinho de quem se deve desconfiar. (VIGARELLO, 1998, p.239).
Para Lowenkron (2008), o pedófilo é difícil de ser identificado porque se parece
conosco de modo inquietante, e por isso mesmo, se torna uma ameaça permanente, sem
levantar suspeitas. Nota-se que a palavra pedofilia não é uma categoria jurídica27, mas uma
categoria clínica. Como diz Vigarello (1998), a opinião pública, diferente da médica, borra
com facilidade as fronteiras entre pedófilos, pais incestuosos e abusadores sexuais28 de
menores em geral. Ou seja, o estuprador é, no máximo, um reincidente e é definido pelos seus
atos, enquanto o pedófilo é definido pela orientação de seus desejos. Landini (2004) destaca
também que, ao relatar casos de pornografia, dificilmente os meios de comunicação fazem
distinções entre pornografia de crianças e adolescentes, englobando as duas numa só
categoria: a pedofilia29.
Para a referida autora enquanto categoria analítica clínica, a pedofilia é definida
pelos desejos e fantasias que podem ou não se atualizar nas formas de crimes sexuais, mas
como categoria social de acusação ela pode ser acionada nas diversas modalidades de práticas
sexuais envolvendo menores, de modo que não só o ato é condenado, mas a pessoa total do
agressor. Embora nas diversas literaturas disponíveis sobre esse assunto as questões
conceituais ainda se constituam desafios para os estudiosos perceberam que o conceito de
violência sexual está longe de ser preciso. No entanto, é possível considera-lo como:
27
O diagnóstico da pedofilia pode ser associado ao crime de estupro (art.213\CP),ou atentado violento ao
pudor(art.214\CP) de menores(Art.244\CP), corrupção de menores (art.218CP),prostituição(art.244\ECA) e
pornografia infanto-juvenil (Art. 240 e 241\ECA).
28
Destaca-se que a expressão abuso sexual pode ser usada dependendo do contexto para classificar relações
sexuais não coercitivas. A ideia de abuso, portanto,não precisa estar associada necessariamente, à noção de
ausência de consentimento,nem tampouco de dano psicológico,desde que se reconheça a natureza assimétrica da
relação.
29
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV (DSM), a pedofilia é caracterizada
pelo foco de interesse sexual em crianças pre-púberes (geralmente, de 13 anos ou menos)por parte de um
individuo de 16 anos ou mais que sejam ao menos cinco anos mais velho do que a criança,ao longo do período
de seis meses.
62
as denúncias estavam restritas às circunstâncias em que as crianças eram criadas por pessoas
que não eram seus parentes.
Conforme Hacking (1999) apud Méllo (2006) o uso do termo “crueldade”
relacionado a crianças começou a perder notoriedade em torno de 1910,dando lugar a
problemas como “mortalidade infantil” e “delinquência juvenil”. Estes temas tiveram
relevância até pouco mais da metade do século XX. A partir da década de 1960, o termo
“abuso” infantil emerge nos Estados Unidos, mais especificamente na cidade de Denver, por
meio de médicos pediatras, que começaram a observar com certo estranhamento as fraturas e
lesões em crianças pequenas, e com o auxílio dos raios-X, passaram a obter os indícios ou
sinais de maus-tratos, o que permitiu que esses pediatras fossem batizados como o “Grupo de
Denver” e pudessem indicar o surgimento de uma nova síndrome.
A rede que se formou em torno do “abuso” sexual iniciou nos Estados Unidos e
expandiu-se por todo o mundo, e houve a substituição da palavra incesto, que também se
referia a relações sexuais entre adultos e crianças e essas motivações eram de cunho religioso,
moral, político e econômico. Nesse sentido, as relações sexuais entre um adulto e uma criança
deixaram de ser um problema de consanguinidade ou de parentesco para ser um problema de
“direitos humanos”. E mais ainda, com uma peculiaridade em relação aos outros problemas de
direitos humanos. No caso do abuso sexual tornou-se importante destacar que sua ocorrência
acarreta problemas de saúde física e mental e é considerada uma manifestação da violência
que se expandiu em escala mundial.
Para Lúcia Alves Mess a violência de cunho intrafamiliar retém os aspectos do abuso
relativo ao apelo sexual feito à criança, bem como destaca tal ocorrência no interior da
família. (MESS, 2001, p.18), caracterizando-se como uma violação aos direitos humanos.
Para a autora que a interdição dos impulsos incestuosos tem uma importância central no
desenvolvimento psicológico, sendo considerada como o paradigma da possibilidade de
reconhecimento, pelo sujeito, e que balizam seu reconhecimento de si.
Embora os indicadores da violação aos direitos da criança e do adolescente sejam
altos, sabe-se que estes não revelam a totalidade dessa questão na realidade brasileira. Em se
tratando da violência sexual, muitos casos não chegam a ser notificados, tanto pela
dificuldade de discussão sobre a sexualidade, quanto pela idealização da família como “lugar
seguro”, além da desqualificação da fala da criança ou adolescente, interpretada muitas vezes
como mentira ou fantasia. No caso de práticas consideradas como abuso sexual, quase em sua
totalidade, acontecem em uma relação de parentesco, entre o sujeito adulto, considerado o
abusador e a criança ou adolescente, situado na posição de vítima, por conta do poder
64
atribuído ao adulto, tanto do ponto de vista hierárquico e econômico, ou seja, pode ser o pai,
mãe ou padrasto, quanto do ponto de vista afetivo e parental, como avós, tios, irmãos, primos,
vizinhos, professores e padrinhos. Talvez por seu caráter sexual e, portanto, cercado de
constrangimentos e segredos, o abuso sexual intrafamiliar não tenha sido comum nas
abordagens dos historiadores, mas este contexto não significa a sua inexistência ou baixo
índice de ocorrência. Como assinala Rangel:
É muito rara a ocorrência de incesto entre adultos e entre parceiros da mesma idade
ou de idades semelhantes. Aliás, o verdadeiro incesto pressupõe uma relação par
entre os parceiros, o que presume nenhuma ou pequena diferença de idade. Se esta
66
não é uma condição garantidora da relação igualitária, é necessária para que esta
possa ser construída. Assim, o incesto fica restrito a irmãos,primos, tio e sobrinho,
quando a relação não envolve poder. Nos demais casos de contato sexual(não
exclusivamente uma relação sexual completa),trata-se de abuso incestuoso.
(SAFFIOTI, 1997, p.170).
Não existe um só, mas, muitos silêncios e são partes integrantes das estratégias que
apoiam e atravessam os discursos. Esse fenômeno tem uma dinâmica específica,
iniciando-se sutilmente e, à medida que o agressor ganha a confiança da criança e do
adolescente, os contatos são mais íntimos e podem durar meses ou anos.(
(FOUCAULT.2005, p. 30)
Um problema social com tamanha relevância, mas, pouco discutido ,como a violência
sexual, e compreensivo que se espalhe por diversos ambientes, conceitos, classificações
diversas do assunto. Elaboramos um quadro sobre alguns dos mitos e realidades mais comuns
acerca do assunto.
MITOS REALIDADES
O estranho representa maior perigo Os estranhos são responsáveis por um
para crianças e adolescentes. percentual pequeno nos casos registrados. Na
maioria das vezes entre 85% e 90% dos casos,
as crianças são sexualmente abusadas por
pessoas do convívio, como o pai, mãe,
padrasto, vizinhos, professores, médicos, etc.
O autor do abuso é psicopata, tarado Os crimes sexuais são praticados em todos os
que todos reconhecem na rua, níveis socioeconômicos, religiosos e étnicos.
depravado, débil mental, homossexual, Na maioria das vezes são pessoas
alcoólatra, homem mais velho. aparentemente normais e queridas pelas
crianças e pelos adolescentes. A maioria dos
agressores é heterossexual.
O pedófilo tem características próprias Do ponto de vista físico o pedófilo pode ser
que o identificam. qualquer pessoa.
A criança mente e fantasia o abuso. Raramente a criança mente. Apenas 6% dos
casos são fictícios e, nessas situações, trata-se,
em geral, de crianças maiores que objetivam
alguma vantagem.
Se a criança ou adolescente O autor da agressão sexual tem inteira
“consentiu” é porque gostou. Só responsabilidade pela violência sexual,
quando diz “não” é que se caracteriza qualquer que seja a forma por ele assumida.
abuso.
A maioria dos abusos ocorre longe da O abuso ocorre, com frequência, dentro ou
casa da criança ou do adolescente perto da casa da criança ou do agressor.
Normalmente, procura locais em que a criança
70
A violência sexual nas suas duas forma mais visível, ou seja, o abuso sexual e
exploração sexual comercial, assumiu uma relevância nos anos 90, onde a mobilização social
teve sua expressão política na agenda da sociedade civil como questão relacionada com a luta
nacional e internacional pelos direitos humanos, preconizados na Constituição Federal de
1988, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança do Adolescente em 1989 e no
Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 .
A partir de 2000, o Brasil, depois de anos de mobilização elabora o plano nacional de
enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil, como carro chefe das várias estratégias
integrando governo e os vários programas em todas as esferas (federal ,estadual ,municipal)e
das organizações não governamentais.
30
É a instância máxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e
adolescência na esfera federal. Foi criado pela Lei nº 8.242 de 12 de outubro de 1991, é o órgão responsável, por
tornar efetivos os direitos, princípios e diretrizes contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É
também o responsável pela fiscalização das ações executadas pelo poder público no diz respeito ao atendimento
72
33
Criado em Junho de 2000,o período da elaboração e aprovação do Plano Nacional de Enfrentamento da
Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. O Comitê Nacional tem em sua missão de implementar,
monitora,avaliar o Plano Nacional. É a instância representativa da sociedade,dos governos, e doas cooperações
internacionais. Reúne-se trimestralmente,tem sede em Brasília-DF.
74
da Frente Parlamentar de Defesa da Criança e do Adolescente 34, e teve como ponto de partida
a pesquisa da PESTRAF35, que mapeou as principais rotas do tráfico nacional e internacional
de mulheres, crianças, adolescentes para fins de exploração sexual.
A primeira ação concreta empreendida pelo governo federal dentro do cumprimento
das metas, foi a implementação do Programa Sentinela, com o foco no atendimento
psicossocial às vítimas.
34
Criada em 1993, mas a Frente só ganhou força em 2003,quando vários deputados e senadores assumiram o
compromisso de prioridade absoluta o problema do abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. A
Frente realiza diversas atividades junto a sociedade civil, e também ao governo,se envolve nas discussões acerca
da criança e do adolescente, como projetos de leis no âmbito do Legislativo.
35
Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres,Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no
Brasil. A Pestraf foi coordenada pelo Centro de Referência,Estudos e Ação sobre Crianças e
Adolescentes(CECRIA). Publicada em 2002,evidenciando 131 rotas internacionais, e 110 domésticas,perfazendo
assim 241 rotas utilizadas para o tráfico de pessoas no Brasil.
36
.http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-12902010000100009&script=sci_arttext- Acessado em 05 de
junho de 2013.
75
2.6.3- O PAIR
CAPÍTULO III
37
A Comissão Nacional da Criança e do Adolescente foi criada pela Portaria Interministerial nº 449, de setembro
de 1986, constituindo-se uma articulação entre os Ministérios da Educação, Justiça, Previdência e Assistência
Social, Saúde, Trabalho e Planejamento.
78
38
Art. 136, I c\c art.101, I a VIII, ambos do ECA.
39
Art. 136, II, c/c art. 129, I a VII, ambos do ECA.
40
Art. 136, III, a, do ECA.
41
Art. 136, IV e XI, do ECA.
42
Art. 136, III, b; art. 191 e art. 194, todos do ECA.
79
Família, por diversos motivos, sejam eles nas disputas envolvendo guarda, visita ou
suspensão e destituição do pátrio poder, abrigo na casa de passagem e nos casos de fuga etc.
Para Carvalho (1992) apud Azambuja (2006) ao Conselho Tutelar cabe receber,
dentre entre outras situações de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente,
os casos de suspeita ou confirmação de maus tratos praticados contra a referida crianças,
mostrando-se a urgência da sua criação e instalação em todos os municípios “para a
efetivação da política de atendimento à criança e ao adolescente, tendo em vista assegurar-lhe
os direitos básicos, em prol da formação de sua cidadania”. (AZAMBUJA. 2006.p.4).
A demanda do Conselho Tutelar, no que se refere à violência intrafamiliar, abarca
situações complexas a serem enfrentadas, uma vez que, entre outros fatores, o agressor e a
vítima pertencem, geralmente, ao mesmo grupo familiar.
3.5. Defensorias
Através da análise das denúncias foi possível selecionar aquelas que se tornaram
processos, e observar outras que embora não tendo sido instaurados o inquérito policial era
importante analisar. Em todas as denúncias houve o cuidado de inserir nomes fictícios para
preservar tanto as crianças e adolescentes, quanto os adultos envolvidos. Outro aspecto que
merece esclarecimento é que nem toda denúncia se torna um processo. Dentre as denúncias
analisadas, algumas não chegaram ao judiciário, sendo encerradas na delegacia. Algumas
queixas foram retiradas pelas famílias e em outras situações o processo está em andamento,
mas, ainda assim, continham informações importantes para esta pesquisa e foram, portanto,
utilizadas para análise. Para este estudo foram utilizados um total de 13 processos, divididos
por anos, conforme a tabela:
A reflexão sociológica sobre o Direito e a prática judicial é fundada pela tese de que
a relação entre este poder e a sociedade não consiste numa relação mecânica, destituída de
qualquer tipo de significado. Ao contrário, ela traz em seu âmago uma série de
descontinuidades, contribuindo para que o judiciário seja percebido, de acordo, com o
momento histórico analisado, como um elemento transformador ou reacionário, da ética e dos
valores morais. O objetivo do sistema judiciário é buscar a justiça e garantir os direitos dos
cidadãos.
43
É todo procedimento destinado à reunião de elementos acerca de uma infração penal. Objetiva proporcionar ao
titular da ação penal a ingressar em juízo, pedido aplicação da lei penal ao caso concreto. (GILBERT, 2003,
p.243 e 244).
44
O Abuso sexual é crime previsto no Código Penal Brasileiro.
84
judiciário. Essa remessa significa conclusão da etapa policial, como podemos observar no
gráfico abaixo:
CAMINHO DE UM PROCESSO-CRIME
No entanto, a fase que consiste no Inquérito Policial está impregnada por uma série
de interferências, as quais influenciam na cooptação dos processos pelo fluxo da justiça
criminal ou não. Tais interferências relacionam-se ao modo como os agentes policiais
ordenam e selecionam as denúncias que merecem ser investigadas. São eles que decidem
quem deve ter voz e qual conteúdo dessas falas será inserido no relatório final. A linguagem
técnica utilizada na construção dos autos é também um exemplo das reflexões sobre os fatos,
pois todos os atos são mediados por um vocabulário próprio e padronizado. Para Eni Orlandi
(2007) no estudo do texto.
É a unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte. O que faz ele diante
de um texto? Ele o remete imediatamente a um discurso que, por sua vez, se
explicita em suas regularidade pela sua referência a uma formação discursiva que,
por sua vez, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela formação
ideológica dominante naquela conjuntura(ORLANDI, 2007, p.63)
É a unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte. O que faz ele diante de
um texto? Ele o remete imediatamente a um discurso que, por sua vez, se explicita em suas
regularidades pela sua referência a uma formação discursiva que, por sua vez, ganha sentido
porque deriva de um jogo definido pela formação ideológica dominante naquela conjuntura.
Em seguida inicia-se uma jornada jurídica. Entra o Ministério Público, sendo de sua
obrigação a acusação e o litígio processual45, nesse caso oferecendo a denúncia ao Juiz, na
qual reconhece o delito como um fato sucedido e tipificado, tendo o indiciado como seu autor.
45
De acordo com Vargas (2000) “a responsabilidade da ação penal da origem à denúncia é do Ministério Público
quando pública, e do representante legal do ofendido (Advogado), quando privada. [...] em crimes sexuais, salvo
condições especiais, a ação privada. No entanto, de acordo com C. P., uma ação privada pode tornar-se pública,
condicionada à manifestação da vítima ou do seu representante legal, através da representação, quando os
queixosos alegarem que não podem arcar com as custas do processo.” (VARGAS, 2000, p. 139).
85
46
Desde 2005 tramita um projeto de lei na Câmara dos Deputados que trata do tema do incesto, especificamente
sobre o aumento da pena para casos como este, tendo como justificativa o fato do incesto ser considerado um
tabu na sociedade e de ser um caso que causa repúdio e provoca sequelas irreversíveis à vítima.
47
Teoricamente tira o foco da sociedade (costumes) para o indivíduo.
86
bem vistos na comunidade. Esta situação acarreta descrédito à justiça, deixando a sensação de
impunidade, inibindo a prática de outras denúncias ao Judiciário.
A maior parte dos casos de abuso sexual nunca é revelada devido ao medo, à
submissão, à vergonha, à ignorância ou à tolerância do sujeito vítima.
No sistema jurídico brasileiro a violência sexual é presumida somente quando ocorre
entre um adulto e uma criança menor de 14 anos. Nesses casos, por se constituir um crime
tipificado, além de culturalmente condenável, o mais comum é o silêncio sobre esse tipo de
relação, protegida sob a forma do segredo. Os discursos presentes nos autos dos processos se
constituem importantes fontes de análises das formas de atuação dos diversos profissionais.
Permitem analisar as construções discursivas que situam os sujeitos envolvidos.
Provavelmente aqueles que refletem modelos de masculinidade hegemônicos, mas também
sujeitos julgados pela sociedade e pela justiça, e, por outro lado, aqueles que são designados
como sujeitos-vítimas, em particular as mulheres, as crianças e os adolescentes.
Os processos analisados evidenciam o valor de alguns testemunhos da criança e do
adolescente, comumente questionados pelo delegado de polícia, juiz de direito, promotor de
justiça e advogado do réu, quando do pedido das perícias ou laudos referentes à veracidade
das declarações e revelam as dificuldades para reconhecer e enfrentar essa desigualdade de
poder legitimada em relações de gênero que têm como efeitos uma questão social muito
significativa, especialmente em seus aspectos negativos, como o duvidar da criança ou do
adolescente a respeito da violência sofrida.
Em princípio as denúncias de “abuso sexual”, elemento fundamental para que a mãe
da vítima possa acionar a justiça, deveram-se ao sentimento de pavor e de revolta provocado
por esse tipo de violência, revelados pelos discursos. Diante desse cenário, os tipos mais
frequentes apresentados nos processos são: tentativa de estupro, estupro de vulnerável e
atentado violento ao pudor. Todos os casos analisados dos sujeitos-vítimas na época do
ocorrido eram menores de 14 anos e, o tio, padrasto, primo, avô e vizinho foram apresentados
como os principais agressores, de certa forma tem alguma semelhança com os dados
internacionais, nacionais e estaduais que apontam os familiares como os principais agressores
nas notificações. A seguir, serão descritos os processos, com atenção aos termos utilizados
pelos sujeitos elencados nos autos. Antes, contudo, serão demonstrados gráficos sintetizando
algumas informações sobre o universo dos 13 (treze) processos.
87
Na análise dos dados do gráfico 1 (um) sobre a relação do agressor com a criança e
adolescente, permite constatar que o tio aparece com 38% (trinta e oito por cento) das
notificações como autor, seguido do padrasto e primo, ambos com 23% (vinte e três por
cento) . Predomina nos casos analisados, o envolvimento de parentes, ou com a função de
responsabilidade, colocando assim como uma violência que tem como lócus o espaço
doméstico, e tem a casa como espaço privilegiado para essa prática violenta. Evidenciando
assim que os sujeitos agressores são conhecidos e tem ligações afetivas com as vítimas, e suas
famílias.
O gráfico 2 (dois) traz uma amostra de quem fez a denúncia. É interessante notar que
em todas as notificações foram realizadas por mulheres com alguma ligação estreita com a
criança ou adolescente, e a mãe aparece com a principal denunciante com 54% (cinquenta e
quatro por cento).
A decisão das mulheres em procurar a polícia e, posteriormente, em manter ou não a
queixa perante a justiça, representa uma forma de exercício de poder por essas mulheres,
revelando também que elas não pactuam com o lugar de vítimas passivas da violência. A mãe
é muitas vezes colocada com conivente, nas falas da comunidade, mas quando passamos para
a pesquisa, podemos constatar que nessa ótica, o direito de representação deve ser entendido
como sua capacidade legal para intervir no desenrolar dos acontecimentos, elemento
88
fundamental para o exercício de sua liberdade e autodeterminação. Porque muita dessas mães
são vítimas de algum tipo de violência. Outro elemento importante como canal de denúncia
foi o disque 100, que é um serviço ligado a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, onde
as pessoas podem denunciar, e ter seu nome sob sigilo.
48
Termo escrito na Certidão de Nascimento das crianças e adolescentes
89
espaço doméstico o dia todo. E algumas têm o complemento da renda familiar com a Bolsa
Família.
Contribuindo para essa discussão, Morgado (2012) observa que há uma rotinização
extremamente perversa.
A seguir, será apresentada a descrição dos 13 (treze) casos, fazendo um diálogo com
literatura especializado sobre o assunto. Pertinente esclarecer que alguns termos podem
parecer erros ortográficos, e podem até ser, mas prezou-se a fidelidade dos termos utilizados
nas denúncias colhidas pelos órgãos responsáveis pela investigação e responsabilização, ou
seja, pelo Conselho Tutelar, Delegacia, Ministério Público e Judiciário.
“Disse que o pai lambia seus lábios, seios, vagina, e que chegara a ficar diversas
vezes nu em sua frente e pedia que ela lhe fizesse sexo oral, afirmando que não iria
fazer nada com ela, porque ela era sua filha. Disse ainda que quando completou
quatorze anos, seu pai lhe disse que ela tinha que pertencer a ele de qualquer
maneira e que por raiva, resolveu ter relações sexuais com um conhecido
adolescente por uma única vez. Revelou também que seu pai lhe deu uma surra e ela
foi morar com sua tia em Santana do Araguaia - PA, como forma de fugir dos
abusos”.
permaneceu por 08 meses, pois somente em 15 de junho de 2011 o seu tio assinou o termo de
responsabilidade pela adolescente.
Depois que a promotora de justiça de João Lisboa tomou conhecimento da nova
versão da vítima, resolveu ouvi-la novamente, tendo sido registrado que a mesma confessou
que mentira porque estava ainda na cabeça dela as palavras da mãe: “que se teu pai morrer na
cadeia a culpa vai ser tua”. Mas no novo depoimento ao ministério público a menina afirmou
que era verdade absoluta que seu pai “apalpava e chupava seus seios e seu órgão genital todos
os dias, entre os doze e quatorze anos” (Fls. 71) e que estas ações sempre aconteciam no
mato, onde ele fazia carvão.
Segundo o despacho do juiz o crime em apuração foi praticado no interior da família,
tratando-se de um crime de violência doméstica, posto que a vítima é filha do agressor e que o
mesmo utilizou-se da estreita relação afetiva que tinha para praticar o crime.
Analisando este caso percebe-se que é comum o abuso sexual intrafamiliar ser
desencadeado e mantido por uma dinâmica complexa que inclui o “segredo”. Esta dinâmica
está relacionada diretamente com o suposto agressor porque gera uma repulsa social, que
tende a se proteger através do segredo, conseguido e, muitas vezes, mantido à custa das
ameaças à mãe, principalmente. É caracterizado pelo comportamento compulsivo frente à
criança, vista como alívio para as suas tensões. É recorrente nos processos analisados que os
abusos sexuais sofridos por crianças e adolescentes no contexto familiar vêm acompanhados
de outras violências como negligência e abusos físicos e psicológicos. Esta situação se revela
através dos relatos das vítimas durante as denúncias. E os agressores utilizaram as artimanhas
da sedução, da persuasão e do imaginário, de tal forma que a criança sentia-se a preferida.
Para Vigarello (1998) o abuso sexual não pode ficar limitado à história da violência,
tratando-se de um emaranhado complexo entre o corpo, o olhar e a moral que essa prática
lembra. A vergonha, inevitavelmente sentida pela vítima, liga-se à intimidade imposta à
imagem que se oferece dela, à sua publicidade possível. (Vigarello, 1998, p. 8).
Para muitas mulheres é difícil acusar o marido, os parentes e os amigos. A denúncia
de violência sexual implica enfrentar a figura masculina, expor a pessoa ao risco da prisão, ou
lançar a família ao escândalo público. Muitas vezes ele é a única fonte de renda da família e
isso é acentuado na frase do sujeito- vítima: “precisava que o pai fosse solto, pois a mãe
estava grávida e não podia sozinha criar os filhos e que se o pai morresse na cadeia a culpa
era dela, e que ficou com pena da mãe e resolveu voltar a João Lisboa e tirar o pai da
cadeia”.
92
que podem ser admitidas ou vistas como certas ou “naturais” por falantes
individuais. (ROCHA COUTINHO, 1998, p. 324)
Que quando completou quatorze anos seu pai lhe disse que ela tinha que pertencer a
ele de qualquer maneira e que por raiva ela resolveu ter relações sexuais com um
conhecido adolescente, que foi uma única vez. Que seu pai lhe deu uma surra e ela
foi morar com sua tia em Santana do Araguaia/PA, como forma de fugir dos abusos
do pai.
Muitas vezes a criança ou adolescente não sabem que certas carícias são próprias do
amor sexual ou do amor filia, Ademais, se é o pai, que as pratica, deve tratar-se de
algo bom e socialmente aprovado já que o pai só deseja “o bem” da filha. Outras
vezes, a filha sabe que “não é certo” praticar determinados atos com seu pai, mas vê
se constrangida a fazê-lo O constrangimento abrange longo espectro indo da
sedução e da cumplicidade do segredo até a violência física. A ela não é dado optar.
(SAFFIOTI, 200, p. 60-61).
49
Termo utilizado pela Socióloga Heleieth Saffioti, no seu livro Poder do Macho, para designar o poder do
homem, e a sexualidade ligada a genitália (falo).
94
Que por diversas vezes foi brincar na casa do Sr. Gonçalo Barrosa convite de sua
amiga, a também criança Tatiane, enteada do mesmo. Que de lá saía para a casa do
pai do Sr. Maurício, o Sr. Gonçalo, que é próximo a sua residência. Que enquanto
brincava no quarto, o senhor Gonçalo passava a mão em suas partes íntimas,
colocava a mão dentro da calcinha e introduzia o dedo em sua vagina. Que no
96
momento que a porta da casa ficava aberta e quando o Sr. Gonçalo saía para ver se
tinha alguém chegando a mesma ia embora. Que recebeu diversas vezes moedas de
R$ 0,10 e R$ 0,20 centavos. Que não contou pra a sua genitora com medo dela lhe
bater. - DEPOIMENTO DA CRIANÇA AO CONSELHO TUTELAR (C.T.).
Que conhece a criança W. Que no período da tarde ia brincar em sua casa quando
sua genitora morava com o Sr. G B, conhecido por M. Que ia diariamente e que a
mesma o chamava de avô, devido a sua mãe morar com um filho desse senhor. Que
enquanto brincava no quarto na casa do Sr. G, presenciou o mesmo passando a mão
nas partes íntimas (“perereca”) da criança W, que sempre ia a casa do referido
senhor e ele lhe dava dinheiro, no valor de R$ 2,00 e que ele também passava a mão
no seu corpo, pernas, seios, em sua vagina e pedia para não dizer para sua genitora.
Que não disse, com medo. - DEPOIMENTO DA CRIANÇA T. AO C.T.
Após serem ouvidas as duas crianças, acompanhadas pelo CT, fizeram o Boletim de
Ocorrência, onde foi requisitado o Exame de Conjunção Carnal necessário para instauração
do inquérito policial. O resultado do laudo do Instituto Médico Legal apontou resultado
positivo, confirmando que as duas crianças foram estupradas. Quando foi ouvida pelo
delegado de polícia, a criança T repetiu a versão apresentada ao C.T., mas observamos que a
referência aos órgãos genitais, passou de “perereca”, para “vagina”. Essa mudança
representa a intervenção da escrivã, no caso, uma jovem advogada, e demonstra o uso de
termos científicos, fugindo um pouco do senso comum. Os órgãos genitais recebem variadas
nomenclaturas, retratando assim o quanto ainda é difícil falar sobre sexualidade,
principalmente por parte das crianças e dos adolescentes. Foucault lembra que as crianças, por
exemplo, sabem muito bem que não têm sexo: boa razão para interditá-lo, de proibi-las de
falarem nele, razão para fechar os olhos, tapar os ouvidos, onde quer que venha manifestá-lo,
razão para impor um silêncio geral e aplicado. (Foucault, 1988, p.10).
Neste sentido, a condição histórica ocupada pelo sujeito pertence às diversas
produções que envolvem o discurso, ou seja, a memória discursiva que se apresenta como
parte dos sujeitos, à medida que esses são reconstruídos, como é o caso dos diversos
depoimentos que a criança e o adolescente precisam fazer nas diferentes instituições, quando
o abuso sexual é revelado. Fernandes (2007, p.54) destaca que uma formação discursiva nesse
sentido nunca é homogênea e é sempre constituída por diferentes discursos. Um mesmo tema,
ao ser posto em evidência, é objeto de conflitos e de tensão face às diversas posições
ocupadas por sujeitos, que se opõem e se contestam.
No interior das grandes e pequenas cidades as crianças brincam, ou no quintal ou no
quarto da casa. No trecho descrito acima observa-se que o local onde os abusos acontecem é
97
solitário, sem testemunhas. Este contexto retrata também a noção de relações de poder, não
pela força, mas pela sedução econômica, demonstrada através do oferecimento de algumas
moedas por parte do adulto. A situação econômica da família é precária e, no caso em
particular citado, a mãe da criança é doméstica, sobrevive com o auxílio do Programa Bolsa
Família do Governo Federal e uma mesada de R$130,00 que é paga pelo pai da criança W. As
crianças ficam sozinhas praticamente durante todo o dia, em casa, mas sob os cuidados dos
vizinhos. Assim sendo, os vizinhos constituem parte dessa família extensa50. Contudo, a
associação mecânica entre pobreza e abuso sexual tem sido rejeitada, tanto pela sua
insuficiência explicativa quanto pelo potencial estigmatizante dos segmentos populares da
sociedade. Ainda que o abuso sexual ocorra em todas as classes é fato que a sociedade
brasileira trata desigualmente autores de agressão e vítimas segundo a sua posição social, seu
gênero, sua faixa etária etc.
Outro elemento presente nos termos das vítimas é o medo da revelação à mãe: “pedia
para não dizer para sua genitora. Que não disse, com medo”. “Que não contou para a sua
genitora, com medo dela lhe bater”. Nessas expressões está contido o receio de que os outros
não acreditem nela ou, ainda, a julguem culpada, sobretudo se estiver sofrendo abuso sexual.
(FERRARI & VECINA, 2002).
Mesmo constituindo-se como uma das formas de violência mais presentes na vida de
crianças e adolescentes, o abuso sexual intrafamiliar ainda se caracteriza como menos visível
socialmente, se comparadas a outras formas de violência. Isto se deve ao fato de que ela
ocorre no âmbito privado, e que seus autores são pessoas próximas às vítimas. “A sua difícil
visibilidade se deve ao fato de que as vítimas desse tipo de violência parecer ficar
aprisionadas no desejo do adulto, uma vez que a ameaça e o medo, mantêm um ‘pacto de
silêncio’, como a agressor, num processo perverso instalado na intimidade de sua família”
(FERREIRA, 2002, p.23)
Nessa realidade, crianças e adolescentes tem limitadas ou anuladas as possibilidades
de proteção, tanto através de ações quanto da palavra, no caso, a denúncia, frente ao ato de
violência. No caso citado, mesmo tendo sido constatado o estupro, através do laudo médico, o
acusado não foi responsabilizado, e fugiu para outra cidade. Diante disso, a família que sofreu
o impacto da publicização do fato recolheu-se e não deu prosseguimento na busca pela
Justiça. Resultado é que as crianças não tiveram nenhum acompanhamento psicológico, e
50
Nesse estudo colocamos o vizinho como parte da família extensa, devido ser uma prática muito recorrente
nessa região, onde as crianças ficam sob os cuidados dos vizinhos ,amigos, madrinhas, devido os pais saírem
para o trabalho. A relação com o vizinho é próxima, até amis de que com alguns parentes, constituindo assim
uma pessoa de muita confiança pelas famílias..
98
tiveram que resolver sozinhas sua própria dor. Para evitar mais constrangimentos mudaram-se
para outro endereço.
“Que dia 22 de novembro e 2010, a senhora Cristina, relatou ao delegado que sua
filha mantinha relações sexuais com o namorado. Entretanto três dias depois a
mesma retorna com a filha ao Conselho Tutelar e posteriormente a delegacia
oferecendo uma nova versão. Dizendo que mentiu, e que quem a desvirginou foi o
seu padrasto. e que fugiu porque seu padrasto estava ficando cada dia mais violento,
inclusive batia na mãe e quando interrogada a mãe confirmou a violência doméstica
que sofria. Que o indiciado M foi interrogado e negou que tivesse cometido crime. A
materialidade está comprovada por intermédio do laudo do IML” (Inquérito
nº46/2010).
99
Que foi forçada a fazer sexo com o padrasto, que acontecia na parte da tarde quando
a mãe ia para o trabalho, e todas as relações aconteciam na cama da mãe. E que
quando padrasto soube do namorado lhe fez ameaças, quando resistia, ele batia na
mãe. E resolveu morar com o namorado para fugir porque o padrasto esta cada dia
mais violento.
‘culpada’ pela separação do seu marido, o qual está condenado e foragido da justiça”. Nesse
boletim de ocorrência a acusada passa a ser a genitora, por violência física e psicológica.
Nas palavras de Butler podemos refletir bem os sentimentos da mãe que após o
processo judicial se viu separada do seu companheiro, e agora culpa a filha quando a mesma
relata que “a mesma não ‘prestava’ que era ‘culpada’ pela sua separação do seu marido”
As adolescentes têm mais dificuldade em provar que não foram culpadas ou
permissivas com o ato quando o acusado era parente ou amigo, pois as mesmas são
representadas como sedutoras e provocativas.
Nessa perspectiva Abromavay (2004) coloca que a iniciação sexual é destacada
como um rito de passagem, envolvendo distintos trânsitos entre infância, adolescência. Esse
tal caminho segundo a autora se dá na afirmação da virilidade para os meninos e a modelagem
sobre feminilidade para as meninas, além da busca por autonomia. A sexualidade se destaca
como projeto e práticas exercidas de forma singular por uma geração jovem.
A sexualidade precoce, tem se manifestado como um caldeirão de conflitos que dele
decorrem a gravidez indesejada, abortos improvisados, banalização do afeto e suas
implicações emocionais para os sujeitos envolvidos em situação de violência sexual.
No caso de abuso sexual, a adolescente perde a referência desse rito de passagem,
pois a mesma é levada a prática sexual, sem respeitar as fases do seu desenvolvimento
emocional e físico. Os sujeitos envolvidos numa relação de violência, com capacidades
psíquicas diferenciadas para o enfrentamento das adversidades da vida, sofrem mais ou
menos, vivenciado situações semelhantes. O grau de sofrimento individual de cada pessoa
envolvida numa situação de abuso sexual não pode ser mensurado.
Nos registros pode-se visualizar a percepção das vítimas em relação ao agressor, a
maioria expressava medo, que as crianças ou adolescentes não consentiram, ou seja, não eram
favoráveis à situação abusiva, e em muitos dos casos envolviam-se sexualmente com outros
adolescentes, de certa forma para cessar os abusos.
101
O quinto caso
Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima- meninas de 12 e 10 anos
Acusado- avô
Denunciante- tia
Data da notificação-01 de fevereiro de 2011
“Morava em Brasília, que vinha sendo abusada pelo seu avô paterno, quando tinha
cerca de sete anos, que os abusos aconteciam quando os pais iam dormir na casa do
referido avô, ele botava a declarante para dormir no quarto dele, sob o pretexto de
assisti televisão na casa dele e, bem mais tarde, quando todos dormiam, passava as
mãos em seu corpo e enfiava o dedo em sua vagina, que uma vez que ele fez isso
doeu e sangrou um pouco, que ele beijava sua boca e dizia que era normal, que é
coisa de avô e neta e que não era para a declarante contar nada pra ninguém, senão,
ele mandaria internar sua mãe e dava uma surra nela, ela nunca contou pra mãe,”.
A mesma aproveitou que estava na casa da tia para contar tudo que vinha sofrendo,
que sabe também, que seu avô abusava da irmã, pois a mesma lhe contara que ela já tentou
enfiar o dedo nela e disse que ela tem um “boca muito gostosa”, que pediu pra seu avô deixar
sua irmã fora disso, que ele negou tudo. Perguntada se queria dizer mais alguma coisa, a
declarante pediu proteção, pois se a mãe voltasse para Brasília, o avô ia internar a mãe numa
clínica psiquiátrica, e ficar com a guarda deles, e assim ficar livre para abusar dela e da irmã.
No dia 09 de fevereiro de 2011, foi registrado o BO, feito o exame de conjunção
carnal nas duas meninas. Contou que os abusos aconteceram dos sete aos onze anos data que
deixaram a casa do avô.
No relatório elabora pelo CT, prestando esclarecimento ao MP, relataram que a
adolescente foi atendida pela psicóloga, poucas vezes, pois a mesma não gostava de responder
as perguntas, pois era difícil ter que se lembrar dos abusos sofridos. E pediu a tia para não
102
participar mais das sessões com a psicóloga. Que a irmã dizia que o avô sempre a beijava na
boca. Green (1995) citado por Azambuja corrobora com a discussão “A persistência da
negação da criança sobre o abuso sexual previsivelmente complica sua avaliação e
tratamento” (GREEN apud AZAMBUJA 2006).
O resultado do IML constata que a adolescente Yana foi estuprada, apresentando
ruptura himenal, enquanto que sua irmã apresenta hímen intacto.
A senhora Eva que é tia, está com a guarda das crianças, os mesmos estudam, e o
processo sobre a violência sofrida por ambas, está tramitando no Judiciário.
Percebemos no caso analisado que o abuso sexual, tende a se rotinizar e manter a
criança em estado permanente de alerta, pois sua manifestação pode ser desencadeada pelos
fatos corriqueiros. E que a criança ou adolescentes muitas vezes não tem como escapar dos
ataques. Exemplo é quando Yana reclamava do abuso do avô “ele beijava sua boca e dizia
que era normal, que é coisa de avô e neta e que não era para a declarante contar nada pra
ninguém, senão, ele mandaria internar sua mãe e dava uma surra nela”.
A mãe de Yana tinha depressão além de outros, percebemos como esse problema foi
usado contra ela todo o tempo, pelo avô, porque ele sustentava a família do filho, e
consequentemente se aproveitava da situação de parentesco, e provedor econômico.
É pertinente nessa situação, a análise de Faiman (2011), revela que um exemplo claro
de abuso de poder, que pode adquirir um caráter sexual, é a situação em que, por meio de
ameaça ou chantagem, uma pessoa consegue que a outra tome atitudes que, de outra forma,
não tomaria. Podemos rever as palavras da autora, através da situação vivida pela adolescente
Yana. Saffioti (1987) enfatiza: Quando o homem desfruta de uma posição de poder em
relação à mulher, criança ou adolescente tem a função de caçador. Para o poderoso macho
importa, em primeiro lugar seu próprio desejo (P.18). Em suma, esse apoderamento não se
verifica somente na sexualidade, pode-se entrar no terreno pago para que o homem possa
sempre ocupar a posição de mando, principalmente quando o aspecto econômico é usado
como argumento para a submissão da criança ou adolescente a várias situações de violência.
O sexto caso
Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima- menina de 09 anos
Acusado- primo
Denunciante- mãe
Data da notificação-09 de fevereiro de 2011
103
Aos 10 dias do mês de fevereiro de 2011, nesta cidade compareceu a Sra. Maria do
Espírito Santo e disse à autoridade policial que presenciou quando a criança C.
prestara a declaração nesta delegacia e dissera que havia sido vítima de abuso sexual
por parte do seu primo D. e que presenciou quando a criança informara que o fato
acontecera duas vezes, dentro da casa da senhora M. da L., avó da vítima e do
agressor. Que presenciara quando a criança disse que seu primo “tirava o negócio
dele” e depois deitava em cima dela. Que nesta delegacia foi informada que o laudo
do IML deu positivo e que a mesma sofrera ruptura himenal antiga, ou seja, faz
algum tempo fora estuprada. (Termo de Declarações da Conselheira)
modo de ato infracional e não discernimento da data do ocorrido, pelo longo lapso temporal a
proposta da denúncia ofertada.”
No acordão de n° 122547/2012
O sétimo caso
106
Foi registrado através da denúncia levada ao C.T., no dia 16 de julho de 2012, pela
mãe da adolescente Salete de 14 anos, que seu marido, padrasto da vítima, abusava dela desde
os oito anos, que lhe dava presentes, inclusive um celular e que morava com mais duas irmãs.
As relações sexuais aconteciam sempre na cama de sua mãe, quando ela estava no trabalho.
Quando não estava mais suportando, a criança falou para a mãe que o expulsou de casa, mas
ele passou a ameaça-la de morte. A adolescente foi encaminhada à Delegacia para solicitar a
requisição do exame de conjunção carnal. Quando foi ouvida pelo delegado relatou que:
Inquirida pela autoridade policial, reafirmou que era forçada a manter relações
sexuais até o mês passado (Junho de 2012) com seu padrasto M. Que fora
desvirginada51 aos oito anos, que nunca contou o fato a ninguém, que as demais
relações sexuais que tivera com M sempre aconteciam na cama de sua mãe quando
ela saia para trabalhar na parte da tarde, que M exigia que mantivesse relação sexual
com ele e ameaçava lhe matar se por acaso contasse para alguém o que estava
acontecendo. Entretanto, no sábado passado resolveu confessar o que estava
acontecendo para a sua genitora, tendo em vista que M passou a ficar violento e
chegou a quebrar o celular que havia lhe dado de presente. Que fez um mês que está
namorando um rapaz chamado de Samuel e que por este motivo o padrasto passou a
ficar com ciúmes. Que sua mãe conversou com M e esse saiu de casa, mas fez
ameaça de morte contra sua mãe e chegou a investir contra ela com uma faca. Que
na noite de segunda feira resolveu dormir na casa do namorado e manteve relação
sexual com ele. Que atualmente seu padrasto está morando na casa dos pais dele.
51
É o termo que consta nos autos do inquérito policial.
107
O oitavo caso
Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima-adolescente de 16
Acusado- tio
108
No registro da ocorrência no CT, segundo a senhora Regina, sua filha Gabel, hoje
com 16 anos, vem sendo abusada desde os nove anos pelo seu tio. A genitora relatou
a este conselho que a adolescente só falou para ela porque havia tirado um pedaço de
pau debaixo de sua cama ,porque era para se defender do tio, que vivia tentando lhe
abusar.
O nono caso
Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima-adolescente de
Acusado- tio
Denunciante- adolescente
Data da notificação-18 de julho de 2012,
Incidência Penal-
Desde os seis anos seu tio passou a lhe abusar sexualmente, passando a mão no seu
corpo quando a mesma dormia em um quarto de sua casa onde mora com sua
genitora e seus 05 irmãos. Acontecia quando o tio percebia que a adolescente estava
sozinha e dormindo. Que uma das vezes foi acordada por ele que estava colocando o
dedo no seu ânus enquanto dormia no beliche do irmão e outra vez acordou com o
seu tio tentando tirar a sua calcinha.
Os dois casos analisados (oitavo e nono) remetem a uma mesma família, são duas
irmãs, abusadas durante muito tempo pelo tio, em duas das denúncias, alguém faz uma
ligação para o disque 100, e na outra, a própria adolescente faz a denúncia na delegacia,
auxiliado por um investigador da polícia civil. Foi verificando que algumas denúncias não
passam pelo Conselho Tutelar primeiramente, isso acontece devido, muitas pessoas não se
sentirem seguras ao deletar alguém, por isso recorrem ao MP, ou a Delegacia por se sentirem
mais seguras. Os casos de abusos sexuais aqui analisados, o número de vítimas é maior do
que o número de processos.
O referido acusado foi preso e condenado por três crimes de violência sexual: além
das sobrinhas, um menino e uma menina também foram abusados pelo acusado. Atualmente
cumpre pena na delegacia local.
Um elemento bastante perceptível nos autos, é que a negligência é uma violência tão
grave tano a sexual, porque dela decorre a maioria das outras violências. Nos dois casos
analisado em conjunto, devido o agressor ser a mesma pessoa, no caso, o tio, verificamos a
demora da mãe de comparecer ao Conselho Tutelar depois da denúncia. Nesse sentido,
entende-se que para os familiares fica a dúvida, o medo de denunciar alguém próximo. Nesses
casos fica bem ilustrado por Morgado (2012) a reatualização da perspectiva da mulher como
pilar de sustentação moral e afetiva da família conduz a diferentes sentimentos e indagações.
Como podem essa mãe ser protetora, enquanto seus filhos passam o tempo todo sozinhos?
Lembrando que a análise da violência sexual a partir da perspectiva de gênero na qual a
mulher ocupa historicamente uma condição subordinada, é possibilitar quem são essas
mulheres mães, vislumbrando identificar como vêm, ou não, se estruturando suas estratégias
de rompimento desse processo de violência e subordinação, mesmo quando não tem o marido
e a poder masculino, é assumida por outros, ou seja, irmão, pai, tio.
O décimo caso
Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima-menina de 09 anos
Acusado- padrasto
110
Denunciante- mãe
Data da notificação-2012
Durante a noite quando estava dormindo na sala, ele chegou lhe tirando a roupa,
mexendo com o dedo no seu órgão genital o qual ficava acariciando. Em seguida,
colocou o dedo na sua vagina. A criança disse ainda que tinha medo do seu padrasto
e depois passou a dormir com seu irmão menor. Disse ainda que sente muita raiva
do seu padrasto e que ele lhe bate de cipó e cinto, devido ela não deixar que ele lhe
toque.
Segundo a perícia não houve rompimento do hímen. Não foi encontrado nenhum
indício de que este relato tenha provocado à abertura de um inquérito policial. Nesse sentido,
devido não ter havido rompimento himenal, a denúncia não teve prosseguimento. Nesse caso
em questão o depoimento da criança não foi levado a sério, isso porque o laudo do IML não
indicava o evento. Entretanto não se pode compactuar com a ideia de que, se não há vestígios
aparentes não houve violência. Segundo Rosana Morgado (2012) quando se avalia esse
processo vivenciado por crianças e adolescentes podem estar relacionados outros fatores.
Corroborando com a autora, Furniss elenca que: “Idade do início do abuso, duração do abuso,
grau de violência ou ameaça, diferença de idade entre a pessoa que cometeu o abuso e a
criança que sofria o abuso, ausência de figuras parentais protetores e o grau de segredo”
(FURNISS. 1993.p.15).
Embora existam leis punitivas para esse tipo de crime, a impunidade dos agressores
constitui-se em outra característica da violência intrafamiliar, favorecendo uma das bases para
que a violência se perpetue, legitimando-a e produzindo um sentimento de profunda
insegurança nas crianças e adolescentes.
Outro ponto que merece destaque nessa história de abuso é o descumprimento do
Estatuto da Criança e do Adolescente, onde pela primeira vez na legislação, vê-se, claramente,
que a violência contra crianças e adolescentes pode ser cometida por pais ou responsáveis,
prevendo-se sanções a eles. Em seu artigo 130, diz
“Verificando a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos
pais ou responsáveis, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o
afastamento do agressor da moradia comum” (ECA. 1990. Art.130).
111
Nesse sentido, não foi dada pelos órgãos de garantia de direitos, a menor
possibilidade de proteção da criança, pois a mesma não passou por nenhum serviço de ajuda
(assistência social, psicológica), e muito menos na justiça. Resultado é que o caso encerra-se
na delegacia. Aqui fica claro, o descumprimento da lei, pelas próprias autoridades que são
encarregadas de cumpri-la, no qual é previsto no Artigo 214 do Código Penal, o atentado
violento ao pudor que “constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou
permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Esse delito fica
bem evidenciado quando do depoimento da criança ao delegado:
Que Durante a noite estava dormindo na sala, quando ele chegou lhe tirando a
roupa, mexendo com o dedo no seu órgão sexual o qual ficava acariciando. Em seguida,
colocou o dedo na sua vagina.
É importante ressaltar que no B.O (Boletim Ocorrência) a tipificação feita na
delegacia foi de estupro. Portanto, quando se fala da violência presumida, prevista no artigo
224 do ECA, em que se pese a existência de leis e regulamentações prevendo a aplicabilidade
de punição aos responsáveis pela violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes,
dispõe-se de pouquíssimos dados acerca da efetivação, e pode-se inferir, com segurança, que
lidamos, ainda hoje com a existência da impunidade.
Dados de uma pesquisa realizada por Assis e Sousa, citados por Rosana Morgado
(2012) coloca que a morbidade de crianças e adolescentes, no município do Rio de Janeiro,
mostram que foram observados 8 mil eventos mórbidos por violência no ano de 1990, os
abusos sexuais representam 4% das ocorrências. Essa pesquisadoras chama atenção para o
que fato que:
A realização do exame pericial ocorreu em 58%, (corpo de delito) e, em 7%
efetuados outros exames. Estranhamente, 35% das vítimas de abuso sexual não foram
submetidos a qualquer exame. (ASSIS &SOUZA. 1995. apud. MORGADO. p.75).
Essa realidade apresentada nos dados embora seja de duas décadas atrás revelam que
na atualidade ela persiste. O baixo índice de instauração de inquérito, realização de exame de
corpo de delito dentre outros como no caso DST/HIV para as vítimas de violência sexual são
poucos realizados.
A impunidade não se explica somente pelos limites explícitos das leis, pois estas
dependem de sujeitos sociais que as acionem, as interpretem e que, também, as alterem. Um
dos caminhos já trilhados internacionalmente aponta para a necessidade de ampliação ente os
prazos dos “fatos cometidos e os fatos denunciados”. Vigarello (1998).
112
O quadro demonstrativo abaixo traz uma ideia do espaço entre a primeira ocorrência
do abuso e a denúncia. Os dados coletados nos processos analisados, embora não seja preciso,
a criança ou a adolescente, normalmente, não sabe com exatidão indicar quando foi o
primeiro episódio de violência que sofreu, até porque uma grande parte eram crianças com
pouca idade.
Com base no quadro acima, verifica-se um longo período até que o abuso sexual
chegue ao conhecimento de pessoas fora do âmbito das relações familiares. Vale destacar que
essas informações são registradas pelas crianças ou adolescentes utilizando algumas
expressões tais como: “várias vezes”, “ toda vez que a gente ia dormir na casa dele”, ”quando
a mãe saia para o trabalho” dentre outras, que evidenciam a frequência dos abusos.
Percebemos quão grave é a demora ou a falta da denúncia em caso de violência
sexual, onde as crianças muito pequenas, não conseguem revelar o abuso porque não sabem o
que aconteceu, e pela demora, as provas ficam comprometidas para elucidação dos casos.
Da denúncia até a provável chegada ao judiciário, a criança ou adolescente é ouvida
pelo menos por cinco profissionais diferentes, e muitas vezes resultam na vitimização desses
sujeitos já marcados pela violência. Sobre o processo de vitimização Azevedo & Guerra
(2007) colocam que o estudo dos problemas ligados à vitimização sexual de crianças e
adolescentes foi, durante muito tempo, objeto de cerrado bloqueio. Por parte da sociedade em
geral, e especialmente dos profissionais que atuam na área.
Para Nelson Vitielo, médico ginecologista
A frequência com tais atos são praticados é de muito estabelecimento, visto eu sobre
ele se estende uma verdadeira conspiração do silêncio. Sabemos que apenas alguns
casos, em geral ou mais brutais ou de maiores consequências, chegam ao
conhecimento de profissionais. por ser ocorrência que envolve medo e vergonha, a
informação da vitimização sexual é sonegada, frequentemente até pela criança ou a
adolescente.(VITIELO, 2009, p.126).
113
Dignidade vem do latim dignitate, que quer dizer virtude, consideração, honradez.
Ao falar sobre a dignidade sexual, procuramos trabalhar o conceito dicionarizado, do que é
dignidade. Segundo o dicionário Houaiss e Villar (2004) “dignidade é a consciência do
próprio valor, honra, modo de proceder que inspira respeito, distinção, amor próprio”
(HOUAISS; VILLAR, 204, p248).
Podemos dizer que a dignidade de um indivíduo representa a sua integridade moral, e
um possível ataque a essa dignidade resulte em danos morais, precisa ser reparado pela justiça
quando acionada. A dignidade da pessoa humana se tornou um princípio norteador de todo o
ordenamento jurídico, inclusive na aplicação dos demais princípios que estão condicionados a
dignidade.
Nesse sentido, através do conceito podemos concluir que toda forma de depredação
ou redução do homem, considerando-o não sujeito, mas sim como um objeto de direito é
vedada, não havendo sequer possibilidade de se rebaixar qualquer ser humano (NOBRE
JUNUIOR apud RODRIGUES, 2012). Nessa direção o filósofo Immanuel Kant (1724-1804)
enfatiza que a dignidade é o valor revestido daquilo que não tem preço, ou seja, não tem algo
equivalente ao seu valor aos indivíduos.
No entanto, a dignidade da pessoa humana, diferentemente de outros direitos, não é
fruto de um mero aspecto referente às relações de existência ou não do ser humano, e sim, é
uma característica inerente do ser humano que o difere dos demais seres (TAVARES apud
RODRIGUES. 2012).
A noção moderna contratualista de sociedade, baseada na proteção dos direitos
individuais (inicialmente, liberdade, vida e propriedade) e na autonomia da vontade,
predominou e triunfou não só no modelo de Estado Liberal, como na gênese e modelo da
sociedade. Na epistemologia do reconhecimento trabalhada por Axel Honneth (2003), é
central a noção de invisibilidade. Tornar-se socialmente visível ultrapassa o ato cognitivo de
identificação individual. Assim sendo, visibilidade social pressupõe conferir existência no
sentido social, ou seja, implica um ato de reconhecimento que expressa a validade social dos
114
sujeitos. Na esteira das considerações acerca da criança e do adolescente, vale demonstrar que
esses sujeitos passaram por várias épocas até que fossem reconhecidas como sujeitos de
direitos. Segundo ainda o autor, o amor é tido como forma de reconhecimento recíproco,
inicialmente descrito por Hegel, e ganha uma dimensão de processo psicológico no
desenvolvimento individual por meio da psicanálise, tendo como exemplo, relacionamento da
mãe com o seu bebê.
Então pensar a violência sexual como afronta a dignidade humana, é retratar de
modo efetivo que sua condição humana, como diz Hannna Aredent foi violada. A suspeita
que uma criança ou adolescente teve uma relação sexual com um sujeito adulto desafia
valores construídos socialmente e cabe bem a questão: porque é repulsivo para o mundo
moderno esse fato? Parafraseando Foucault (2001), esse fenômeno não apenas foi construído
como apenas como lugar do proibido, mas também do não inteligível, do contra a natureza,
por isso ultrapassá-la produz um efeito de monstruosidade.
Essa última parte do capítulo, traz a história de três adolescentes, menores de
quatorze anos, que tiveram sua primeira relação sexual de comum acordo, ou seja,
consentida52. O critério da idade53 para a presunção da violência já era prevista bem antes do
Código de 1940. De acordo com o Manual de Direito Penal Brasileiro, de autoria de Luiz
Regis Prado, no Brasil “a primeira legislação que prevê a presunção da violência foi o de
1890, disciplinado no artigo 272 que a violência era ficta, quando ato sexual fosse perpetrado
com menor de dezesseis anos”. (Prado, 2006, p. 244). No entanto, o referido código não
permite decifrar os princípios éticos que o norteia ou orienta as avaliações morais das
condutas sexuais. Para Foucault:
Nessa perspectiva, podemos perceber que saber que a ‘idade’ é uma noção
construída, e que tem certa efetividade, haja vista que serve de instrumental de ordenamento
social, assim como os outros marcadores sociais, como sexo, gênero e classe. Para Bourdieu
“as classificações por idade, acabam sempre por impor limites e produzir uma ordem onde
cada um deve se manter, em seu lugar”. (Bourdieu, 1983, p. 112). Nesse sentido, as
52
Para a justiça, não existe consentimento para um envolvimento sexual entre um adulto e uma criança menor de
14 anos. A violência é presumida, ou seja, é crime previsto no Código Penal Brasileiro.
53
Segundo o E.C.A., a criança tem de 0 a 12 anos incompletos e o adolescente, de 12 anos aos 18 anos.
115
expressões “criança” e “adulto” se constituem como dois polos divergentes com elementos
para analisar as bases morais das condutas sexuais.
O caso das assimetrias como princípio básico e hierárquico na qual a família e a
regulamentação da vida sexual estavam ancoradas e evidentes nos anos 70. Entretanto, as
bases que justificam a dominação dos homens sobre as mulheres e as crianças foram
duramente questionadas pelo movimento feminista. Por outro lado, outras assimetrias
continuam bem naturalizadas, como é o caso da pressuposição da vulnerabilidade de crianças
e adolescentes. Tudo isso é verificado dentro do arcabouço legal, onde percebemos o
enfraquecimento do Estado e o fortalecimento do Judiciário, tanto como peça administrativa,
quanto como as leis e os discursos de proteção que adquiriram uma centralidade no conjunto
das transformações sociais. Uma vez que outros casos de assimetrias (como raça, e gênero)
são objetos de luta para a sua dessencialização. A “criança” tem seu lugar sacralizado e
fortalecido devido a sua vulnerabilidade “natural”. Nessa perspectiva, o tema da “violência
sexual contra criança” adquire uma gravidade alarmante no final século XX e princípio do
século XXI.
Os processos aqui analisados são recentes, emergem como problema e são
desmembrados em diferentes modalidades, cuja visibilidade e repercussão rompem as
fronteiras nacionais. Colocando criança e adolescentes como sujeitos em desenvolvimento,
qualquer violência perpetrada contra esses é tida como crime, de maior ou menor grau,
segundo a legislação penal brasileira.
Das três narrativas apresentadas nesta parte, duas são entre primos, e a outra é
relação tio-sobrinha. Em dois dos três casos, foram as mães que fizeram as denúncias. Nos
dois primeiros processos o advogado é o mesmo. No terceiro processo a genitora da
adolescente pediu o arquivamento. Houve condenação para dois dos acusados No primeiro, o
réu foi condenado a seis anos de reclusão em regime semiaberto e no segundo, réu foi
condenado a 15 anos de reclusão em regime fechado.
Sobre o regime de sentença, devido sua relação de parentesco com a vítima, sua pena
foi aumentada. Foucault enfatiza que “consiste na enunciação, por um terceiro do seguinte:
certa pessoa tendo dito a verdade, tem razão, outra tendo dito, uma mentira não tenha razão”.
Em sua obra A verdade e as Formas Jurídicas, Foucault acrescenta que a sentença não existe,
mas apenas vitória e fracasso. (Foucault, 2002, p. 6).
O reconhecimento por estima social, na qual os indivíduos adquirem a capacidade de
“referir-se positivamente a suas propriedade e capacidades”, é importante para as relações
sociais, mas no caso de sujeitos representados por violentos, essa estima, transforma-se em
116
algo vil e a rejeição é visível, tornando-se maioria das vezes impossível a convivência em seu
próprio ambiente, incluindo a família.
3.10 Menina-Mulher?
Constrói uma hipótese acerca da sexualidade humana, argumentando que ela não
deve ser concebida como um dado apenas da natureza e sim como um produto do
encadeamento da estimulação dos corpos, da intensificação dos prazeres, da
iniciativa do discurso, da formação dos conhecimentos, do reforço dos controles e
das resistências (FOUCAULT.apud ANACLETO & MAIA.2010.p.57)
insistente, obstinado, meticuloso eu o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos
soldados e sobre o corpo sadio. (FOUCAULT,1987, p.146).
O Décimo primeiro
O caso foi denunciado ao C.T. no dia treze de novembro de 2009, pela mãe da
adolescente, sendo encaminhada à delegacia, onde fez o boletim de ocorrência e a requisição
para o exame de conjunção carnal, que comprovou a ruptura himenal. No depoimento, a mãe
relatou que:
Sua filha de doze anos estava namorando um rapaz chamado F, disse que sua filha é
uma moça de família e que depois de falar com o rapaz, ela percebeu a filha com
comportamento diferente, estranho, então resolveu investigar e revistar suas coisas e
encontrou um caderno dela o seguinte “no dia 11 de novembro aconteceu uma coisa
importante na minha vida”, então falou com sua filha e perguntara se F. tinha
“mexido” com ela, e a mesma respondeu afirmativamente. Que permitiu o namoro
119
entre eles, mas não sabia que o acusado tinha uma mulher grávida em casa, pois se
soubesse não tinha autorizado o namoro.
O resultado do crime não é mais e imoralidade, mas a morte psíquica, a questão não
é mais a depravação, mas a quebra da identidade, irremediavelmente ferida à qual a
vítima parece condenada, o que concede um lugar inteiramente novo ao estupro
contra crianças. (VIGARELLO, 1998, p. 248).
Até a década de 1990 a maioria dos doutrinadores via a presunção da violência por
menoridade absoluta. Mas, na jurisprudência recente, vê-se que a relatividade ou não da
presunção da violência continua controversa entre os juízes. Vale destacar que as decisões do
Supremo Tribunal Federal (STF) servem de referência para o entendimento das leis e a
conversão destas em tomadas de decisão pelos juízes em todas as instâncias do judiciário.
Quando foi ouvida pela autoridade policial a adolescente Cláudia fez o seguinte relato:
interesse do seu padrasto, por isso acha que ele ficou com ciúmes do seu namoro com a
adolescente.
Na defesa preliminar o advogado faz o seguinte discurso:
“[...] que no dia que manteve relação sexual ela, de livre e espontânea iniciativa, que
o acusado não teve tempo de ser esclarecido sobre a proibição de manter relação
sexual com menor de 14 nos, até porque a realidade das cidades brasileiras
impossibilita qualquer conclusão semelhante. Outro dado importante é a baixa
incidência de processos criminais na comarca para a acusação de casos semelhantes,
isto é, em conjunção carnal entre namorados, relata ao advogado. Que não há
reprovação da conduta de um jovem casal apaixonado manter relação sexual.”
“Que não é verdade que a depoente tenha dito que tinha mantido relação sexual com
um antigo namorado, que o acusado disse a depoente que se não tivesse relação
sexual com uma mulher ela não significaria nada para o mesmo e seria apenas um
passatempo, o que levou a depoente a pensar que se tivesse relação sexual, o mesmo
ia gostar e iria parar de falar em outras mulheres, disse que gostava da depoente, mas
se esta tivesse relação com ele o namoro ficaria mais firme”.
O único quesito que permanece intacto nesta relação desigual de forças relativas ao
crime sexual é a violência. As consequências sejam elas decorrentes de uma
122
Quando um homem usa sexualmente uma menina está lhe passando uma forte
mensagem sobre o mundo: que ela só é importante por causa da sua sexualidade,
que os homens querem que as meninas deem sexo e que os seus relacionamentos são
insuficientes sem sexo está dizendo que ela pode usar sua sexualidade como forma
de chamar atenção e conseguir o afeto de que necessita que o sexo é o instrumento
(BASS e THORNTON1985 apud MORGADO,2012, p.70)
acreditar que esses discursos são construídos a partir dos lugares sociais e rede de sentidos a
que os protagonistas são filiados. Nesse contexto, geralmente é homem defendendo homem.
Do outro lado o discurso da Justiça, representada pelo Ministério Público, que evoca
a leis brasileiras sobre crimes sexuais. Colocando um contexto pouco exploratório sobre a
condição da menina-mulher na sociedade. Talvez isso seja explicada nas palavras de Orlandi
(2001), a relação entre a língua e o objeto é sempre atravessada por uma memória do dizer,
contida na materialidade histórica e ideológica, onde os sentidos são cristalizados e
legitimados socialmente.
E a partir dessa memória discursiva que se faz emergir toda a concepção da
sociedade e de relações interpessoais, ocasionando os termos de distinções de papeis sociais
de homens e mulheres presentes nos discursos e na lei. Tudo isso nos faz indagar, qual é a
memória histórica sobre crianças e de mulheres?
A realidade é que a situação reflete o paradoxo, em particular das jovens
adolescentes, ao lidar com desejo, prazer, e o seu corpo independente da virgindade como
valor, enfatizando, por um lado, o peso da sociabilidade, da pressão dos grupos e da religião
para que se tenha um ou outro comportamento no caso de ser virgem ou não.
A denúncia chega à delegacia através do Ministério Público, que teve como principal
evento, o boato que Keli estava tendo relações sexuais com o seu tio. Então a mãe, sabendo
dos rumores, recorreu a promotora de Justiça. No depoimento ao delegado, no dia 20 de
setembro de 2010, a adolescente de 12 anos, estudante da 4ª série do Ensino Fundamental,
acompanhada de sua genitora, falou que os boatos do envolvimento com seu tio era mentira.
Carmem, funcionária pública, amasiada, 33 anos de idade, moradora da Vila Norte
Sul em seu depoimento relata:
124
Sua filha mora com os avós paternos, ambos idosos e que seu cunhado, tia da
adolescente mora com eles, e o mesmo aproveita-se da intimidade com a sobrinha
para seduzi-la. Que seu avô já presenciou algumas cenas estranhas entre os dois,
inclusive dissera ter visto a mesma sentada nas pernas do tio. Que os mesmos
assistiam filmes, mas nãos sabia dizer sobre o assunto, que foi avisado por uma
amiga que sua filha vinha mantendo relações sexuais com adolescente da
vizinhança. E que se a filha está sofrendo abuso sexual, o autor do crime tinha que
ser responsabilizado (depoimento da mãe na delegacia)
Que era virgem e fora desvirginada pelo seu tio, dentro da casa do seu avô onde
morava naquela época. Mas acho que fora desvirginada quando dia 12 anos, que
posteriormente mantivera relações sexuais com seu tio e sempre acontecia dentro da
casa do avô, que foi de forma consensual, uma vez que ele lhe tratava bem, e lhe
dava presentes e dinheiro. Que a principio recusara as investidas do tio, mas depois
aceitou manter relações sexuais, uma vez que se afeiçoou a ele; que só contou a sua
mãe há dois dias, pois confiou para dizer a verdade do que acontecera.
Após a nova versão dos fatos, foi expedida pela Justiça a prisão preventiva do
indiciado que cometera o crime de estupro de vulnerável 217-A e esse delito está inserido no
rol de crimes hediondos de acordo com o Art.1. V, da lei 8.072/1990, que também prevê em
seu Art. 2º, parágrafo 4º que sua prisão temporária, será e 30 dias, prorrogável por igual
período.
Depois que o laudo médico comprovou a ruptura himenal da adolescente, o acusado
foi preso, e instaurado o inquérito, e no dia 29 de novembro de 2010, ele foi ouvido, Aécio é
solteiro, motorista, 43 anos. Nunca foi preso, não possui bens, tem cinco filhos todos
menores, que estudou até a 5º série, que não é verdade que tenha estuprado sua sobrinha,
coloca que a adolescente está sendo usada pela mãe, pois deseja recuperar sua guarda que a
mesma havia perdido.
Dia 22 de fevereiro de 2011 ocorreu o pedido da revogação de prisão temporária. Na
defesa preliminar feita, consta nos autos:
Aduz a denúncia as fl.01/02 que o acusado Aécio está incurso nas penas previstas no
Art. 217-A caput e Art. 226 do CP, tudo por que: “no decorrer dos anos de 2009 e
2010, por diversas vezes o denunciado manteve conjunção carnal com sua sobrinha
Keli, desde que a mesma tinha 12 anos, e as relações aconteciam na casa do avô,
nesta cidade” (fls.39).
O advogado de defesa fez uma breve narrativa da denúncia prestada pelo Ministério
Público
125
“... com separação dos pais a adolescentes, está sob a guarda do avós, cuja casa
reside o denunciado. E logo que a menina completou 12 anos o denunciado passou a
assediá-la, induzindo-a atos libidinosos até que passou a manter relações sexuais
com a mesma, quando ficavam a sós em casa”. (fls.39).
“Os fatos acima narrados revelam sem qualquer sombra de dúvida que para a
caracterização do crime de estupro de vulnerável, não basta ser a vítima menor de 14 anos, é
necessário também que a mesma seja inocente, ingênua, desinformada a respeito de sexo, fato
que não se pode presumir ou depreender da leitura dos autos do inquérito policial na peça de
acusação. Ademais se pode comprovar pelo depoimento da testemunha S (fls. 8), em
respostas as indagações, respondeu da seguinte forma: “Keli lhe dissera que já mantivera
relações sexuais com alguns adolescentes que residem pelas proximidades de sua casa ,mas
não citou nome dos adolescentes com quem ela supostamente mantivera relações
sexuais”(fls.40)
“Para o advogado nesse caso verifica-se a ausência da inocentia conccilli da vítima,
ou seja, pela sua ciência a fatos sexuais, fato este que, por si só, afasta a presunção de
violência absoluta prevista no art-217ª do CP. É bem verdade que nos crimes sexuais contra
vulnerável, o depoimento da vítima tem o maior significado, entretanto, tanto a jurisprudência
quanto a doutrina é unânime em afirmar que deve existir o abrandamento nesta regra, tendo
em vista que, em depoimento da vítima importa na verdade, em direito penal não existe a
denominada rainha das provas e, portanto, o depoimento da vítima importa na verdade em seu
valor relativo, e não absoluto como que fazer crer o MP. Até porque a vítima apresentou duas
versões na delegacia. Primeiro informou nunca mantivera relações sexuais com nenhum
homem (fls.07), e depois afirma que manteve relações sexuais com o requerente (fls. 110).
Para o MP a denúncia contra Aécio está alicerçada nas investigações policiais, apenas no
segundo depoimento se limitaria quando muito, na qualidade de informante, já que não possui
credibilidade, idoneidade moral para tanto, pois apresentam duas versões para o mesmo ato,
(fls. 43)”.
Podemos ler, a partir do discurso, a tentativa de silenciar a vítima através do
descrédito em seu depoimento, devido às duas versões apresentadas pela adolescente. Nesse
sentido, Cavalcante (2002) orienta que nem todas as ações ou intenções do sujeito aparecem
abertamente em seu discurso, ora os sentidos são selecionados ou descortinados, ora são
excluídos, de forma consciente ou inconsciente. No caso de abuso sexual, crianças e
adolescentes ficam receosos diante das autoridades, e na maioria das vezes não percebem as
contradições de suas palavras, quando discorrem sobre os fatos ocorridos. Orlandi (2001)
126
enfatiza as situações de linguagem são reguladas, não se diz o que se quer, em qualquer
situação, de qualquer maneira.
Portanto, é bem difícil a revelação de uma situação de violência quando o sujeito é
adulto. Imaginemos uma criança ou adolescente, onde todo o temor de uma exposição pública
está evidente, principalmente quando a relação é de proximidade, ou de parentesco.
Contudo, oito meses depois da denúncia, ocorre a audiência em juízo e a adolescente
responde quando interpelada pela promotora de justiça sobre ela ter mentido na primeira
denúncia na delegacia. A mesma responde:
Que não queria que o tio fosse preso, porque não queria ir na delegacia, pois tinha
mentido da primeira vez, porque estava com medo do CT tirá-la de casa, nunca
manteve relação sexual com outra pessoa, que o tio lhe dava presentes, aparelho
celular maquiagem, dinheiro, roupas,(fls.64)
Embora nas duas primeiras narrativas, o advogado seja o mesmo, os discursos são
diferentes em cada caso, mesmo sendo o sujeito agressor parente, o é em graus diferentes,
evidentemente (um primo outro e tio), pois segundo a lei tem agravantes diferentes.
Outro dado importante para a análise foi o fato de que essas adolescentes tiveram sua
iniciação sexual bem cedo, nota-se que as famílias não questionaram isso, mas sim o
Ministério Público. E nesse sentido não dar para falar de abuso sexual sem invocar a questão
da sexualidade. Para Rodrigues apud Andrade. “A sexualidade caracteriza-se por uma
capacidade de se ligar a pessoas, objetos, ideias, a vida como um todo, é a busca do amor, do
127
desejo, do prazer sexual, além dos diversos sentimentos tais como admiração,
companheirismo e amizade” (RODRIGUES apud ANDRADE 2010. p. 7).
Corroborando com a fala de Keli, relatada na segunda ida à delegacia, e quando
respondeu ao Ministério Público sobre ter mentido, e sobre os boatos, queria ir na delegacia,
pois tinha mentido da primeira vez, porque estava com medo do CT tirá-la de casa,
Foucault citado por Butler (2008) afirma que a sexualidade é um sistema aberto e ao
mesmo tempo um complexo discurso de poder, o qual produz a denominação imprópria de
“sexo” como parte estratégica de ocultar e até mesmo perpetuar essas relações de poder.
Nesse sentido, o poder é concebido como repressão e dominação, já o sexo é concebido como
energia que espera ser libertada.
O pensamento acima pode ser retratado em dois momentos do processo da
adolescente Keli, primeiro quando a mãe “que foi avisado por uma amiga que sua filha vinha
mantendo relações sexuais com adolescente da vizinhança”. Segundo, quando o juiz profere
a sentença, enfatizando que “Os motivos e as circunstâncias do fato demonstram que o
condenado agiu com intenção de satisfazer a própria lascívia, aproveitando-se pelo fato de
residir na mesma casa que a vítima”.
Para o advogado de defesa, a relação sexual entre uma menina menor de 14 anos é
tido como estupro, mas quando é de um casal de namorados, aparece o discurso, expresso em
suas palavras nos autos. “Que não há reprovação da conduta de um jovem casal apaixonado
manter relação sexual.”
São percebidas que embora os crimes sexuais sejam contra a pessoa, as ressonâncias
é nos valores arraigados na sociedade brasileira, perpassadas pelos laços familiares, a
tradição, costumes. O grande temor das vítimas quando de suas famílias é o da exposição
pública. Ao que parece os sentimentos refletidos na angustia, na dor, no silêncio da criança e
do adolescente ficaram invisíveis.
Denunciante-desconhecida
Data da Notificação; 8 de setembro
Incidência Penal- Art. 217-A caput e Art. 226 do CP,
Esse processo foi o mais curto dos analisados devido a mãe da vítima entrar com um
pedido junto ao Ministério Público de arquivamento do processo. Não consta no processo o
depoimento do acusado, já que o mesmo não foi encontrado.
Outra observação constatada é que as informações chegadas ao Conselho Tutelar
eram insuficientes, já tinha muito tempo que os fatos haviam ocorrido. A vítima mora ainda
na zona rural, onde é recorrente que crianças com 11,12 anos já estejam amasiadas, às vezes
já com filhos, situação naturalizada, por fim ‘normal’. O elemento facilitador é que tudo é
protegido pelos laços do silêncio da vizinhança, ou para não criar inimizades.
A análise nesse caso recai sobre o sentido do silêncio, como parte inquietante em
caso de violência sexual contra crianças e adolescentes. Orlandi (1995) coloca que o silêncio
é presente, não como ausência de sons, mas como algo que significa e que se distingue do
implícito, que precisa ser ‘dito’ para colocar-se sob o sentido.
A violência tem a força de construir ‘silêncios’, e primeiro é o das palavras. Orlandi
(1995) defende a ideia de que esta relação do ‘poder dizer’ expressa a tentativa de apagar
determinados sentidos em determinadas conjunturas. Segundo, é o silêncio como agente da
censura, que diz respeito ao que não pode ser enunciado em determinadas circunstâncias
dadas. Esse pensamento da autora vem de encontro às narrativas dos processos analisados
neste estudo, é só observarmos o espaço de anos que vai da ocorrência do abuso à sua
129
notificação aos órgãos de defesa e proteção revelando o porquê do calar, como forma de
opressão, coação, e não como consentimento. A psicologia e psicanálise já têm estudos que
corroboram essa discussão, evidenciando os ‘apagões’ da memória, como fuga da dor, da
vergonha ou culpa.
É pertinente destacar que nos julgamentos, a noção de Direito e Justiça que temos,
soma-se aos conceitos e preconceitos arraigados, adquiridos nas relações sociais, além das
opiniões interna ou pública, ou mesmo do senso comum, onde apregoam-se valores morais e
sociais. A relevância dada à Medicina Legal no estabelecimento de um discurso supostamente
verdadeiro sobre as acusações. Nos processos analisados aparecem os julgamentos morais
sobre os envolvidos, visto que os operadores do direito se utilizam dos depoimentos dos
sujeitos envolvidos, silenciado algumas vozes e enfatizando outras, construindo suas
argumentações fundamentais em conteúdos diversos. (ZAMBONI, 2007, apud
BACCI.2011.p.63).
Outro ponto a ser considerado é que a fala dos agentes por meio da escrita nos
registros está inserida nos valores da sociedade e, portanto, são eles também que contribuem
para a construção e desconstrução da violência. Tudo isso é percebido desde o início da
revelação do abuso sexual, seja na delegacia ou no Conselho Tutelar, no laudo do IML ou no
acompanhamento dos psicólogos e assistentes sociais. Percebemos então, que a neutralidade
da lei, tão falada, na prática é outra realidade, e aparecem evidentes nos termos utilizados para
caracterizar os envolvidos, principalmente a criança e o adolescente, tais como “ofendida”,
”desvirginamento”, “moça de família”, “doente”, “denunciante” e “declarante”. “vítima”
Esses termos são mais de cunho moral do que técnico, a exemplo de cópula vaginal ou
conjunção carnal. Diante disso, nenhum réu foi condenado somente pela violência praticada,
mas também, pelos valores morais acumulados na sociedade. Embora a legislação retrate o
crime contra a pessoa, no fundo ainda é também contra os costumes.
Embora os crimes sexuais, principalmente contra crianças e adolescentes se
constituem como algo inaceitável pelo conjunto da sociedade, mais ainda quando é praticado
por parentes próximos, ou pessoas conhecidas. Podemos compreender que esses elementos
discursivos constituem parte dos valores que circulam e são aceitos normalmente. Existe uma
verdadeira tecnologia do poder, ou melhor, dos poderes, cada uma com sua história.
130
54
Medicina Legal pode ser pensada também como forma de “extorquir a verdade”, pensando os termos Foucault
sobre as verdades e a justiça.
131
percebemos que a importância do laudo médico pode ser compreensível se considerarmos que
a Medicina assumiu o controle ético e sexual e que essa mudança afetou a moral familiar. E
mais ainda, o corpo interno da família passou a ser regulado por ela. Esse apoio mútuo entre
Medicina e família tomou força com o Estado Burguês a partir do século XVIII. Para Andrade
(2010), historicamente, a sociologia não deu o primeiro passo para a discussão de questões
que envolva a saúde. Isso aconteceu com a Medicina, mais precisamente a medicina social.
Esta surgiu no século XIX, tratando de compreender os fatores sociais, econômicos e
ambientais que desencadeavam patologias que apenas a medicina não dava conta. Nessa
direção o filósofo Michel Foucault (1988) reconhece que o resultado desse desenvolvimento
aconteceu devido às diversas técnicas, saberes, questionamentos, cujo objetivo principal é a
abrangência do mundo social. No final do século XIX, a medicalização, a gestão da vida
sexual controlada e supervisionada pelo saber e pela racionalidade médica é considerada um
efeito importante, até não entrar em cena temas relacionadas ao incesto55.
Essa temática ocasionou na Europa o aumento de tempo das crianças na escola.
Como o incesto foi colocado na agenda da família, houve o reforço da ideia de recorrer a
outro conhecimento externo à família, no caso a psicanálise. Logo depois, entrou em cena
outro poder-saber, o judiciário, com a capacidade de arbitrar os conflitos e tomar decisões,
intervindo na vida das pessoas, inclusive afastando alguns membros quando necessário.
(Branco, 2007).
Nos processos aqui analisados para a comprovação do abuso sexual, em alguns casos
os agressores foram presos, em outros, eles foram afastados pela própria mãe da criança ou
adolescente.
Outro elemento importante de ser enfatizado é o lugar da criança e do adolescente.
Eles aparecem como sujeitos que pouco participa das decisões concernentes à sua vida, pois
são considerados indivíduos incapazes perante a lei. A representação social da criança e do
adolescente está evidenciada nos processos quando os mesmos rompem o silêncio, e trazem à
luz fatos muitas vezes difíceis de ouvir Na maioria dos processos a palavra da criança foi
importante para o desvelamento da violência sofrida, e da família como um espaço
privilegiado de práticas violentas.
55
Tratado nesse estudo como abuso sexual intrafamiliar. Caracteriza-se pelo ato ou jogo sexual entre genitores e
seus filhos. Foucault ressalta que não se tem uma teoria geral para o incesto. É preciso considerar que, para a
família burguesa a psicanálise fazia sentido, mas ao tratar de famílias proletárias, eram consideradas instituições
de policiamento, de campanha a favor do casamento, das casas populares de três cômodos que dividiam
sexualmente os membros da família.
132
Em suas análises, considera essa autora que esta é uma idealização muito forte, de
efeitos negativos, principalmente para as mulheres, colocando-as em situações de anulação
pessoal, dependência afetiva, afinal, em posição de vulnerabilidade. Daí tornar-se necessário
vincularmos política e subjetividade, relações de poder, para enfrentarmos a construção de
políticas de intervenção e ação positiva. O olhar crítico voltado para as relações de gênero,
seguramente, focalizará mais significativamente, as bases sobre as quais se assentam esses
atos agressivos e destrutivos para os sujeitos mulheres e homens.
Essa busca do diferencial simbólico de recursos é que se criam os estereótipos e se
atribuem valores desiguais às diferenças entre os seres humanos. O sexo, a raça, o nível
cultural, a idade, assim, tornam-se mais que diferenças, diferenças agregadas a cada
indivíduo, que lhe dão maior autoridade ou poder diante do outro.
A importância da contribuição da perspectiva das relações de gênero no
desvendamento de processos de dominação e exploração em curso na sociedade, como forma
de entender os sujeitos sociais na sua relação com as estruturas de organização da sociedade a
partir da classe, gênero e etnia possibilita identificar com maior acuidade suas possibilidades e
limites de enfretamento e construção de rupturas do ciclo de violência sexual contra crianças a
adolescentes.
133
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora este assunto esteja longe de ser concluído do ponto de vista da luta no
enfrentamento da violência em todas as suas expressões. Urge o desejo de partilhar o
aprendizado adquirido ao longo desse percurso na arte de aprender a conhecer. E não foi à toa
a escolha das palavras do filósofo Michel Foucault como inspiração nesta fase importante de
conclusão do Mestrado. Porque acredito que não vale a pena os (saberes, conhecimentos,
tecnologias,) se não estiverem a serviço da melhoria da vida do maior número possível de
pessoas.
Ademais, as rápidas e intensas transformações econômicas e tecnológicas que estão
em curso no mundo contemporâneo, viabilizando um grande número de conquistas, não são
capazes de solucionar problemas sociais graves, como a distribuição de renda, o desemprego,
e as desigualdades sociais, além das múltiplas violências que são praticadas diariamente
contra o ser humano. Em nosso país, mesmo estando fora do mapa da fome, segundo a
Organização das Nações Unidas (ONU), sabemos que muitas realidades estão postas num país
de dimensões continentais como o nosso. E o problema da violência consegue ser mais grave
do que os números apresentados, porque se tornou ‘algo normal’, e percebemos essa
‘normalidade’, nas chamadas da TV, jornais, bem visível nos comentários dos ditos jornais,
nos tornamos ‘mais uns’, na escalada da violência. Quando paramos para pensar que o grupo
está mais vulnerável, percebemos, claramente, que são crianças, adolescentes, jovens, idosos,
mulheres em todas as idades.
Compreender esse contexto é reconhecer que o problema da violência sexual contra
crianças e adolescentes dizem respeito a toda sociedade e passa por uma discussão não só das
políticas públicas, mas também da relação da família com esta sociedade. Contudo, a família
que é representada, nas sociedades contemporâneas, como um espaço de afetos e
solidariedade, que são gerados e mantidos pelos laços de sangue ou alianças formais ou
informais, ou seja, como as famílias acolhedoras, ou famílias adotivas. Está se constituindo
também com espaço de maus tratos. As alterações verificadas na estrutura da família nos
últimos anos estão intimamente ligadas às mudanças ocorridas na estrutura da economia, nas
relações sociais em geral. Os familiares (pai, mãe) que outrora eram representados como
figuras que são responsáveis pelo bem estar de seus filhos e filhas, transitam em outros
134
papéis, inclusive com perpetradores de violência contra sua prole. As novas configurações de
família tem possibilitado um novo pensar sobre as relações familiares e afetivas entre
membros sem lações de parentesco.
A violência, ao longo dos anos, vitimou mulheres, crianças e adolescentes. Essas
agressões tanto física, sexual, psicológica, dentre outros, ocorrem com muita frequência nos
lares, independentemente, da classe social, região, etnia ou raça. Legitimada ora por dogmas
religiosos e políticos, ora pela lógica patriarcal, a violência doméstica é um fenômeno de
longa data, que faz parte integrante da família das sociedades ocidentais. Tais práticas
encontram-se imbuídas, na maioria das vezes, no pressuposto da prática educativa da criança
e do adolescente.
Essa tolerância cultural sobre a violência contra a criança e o adolescente está no
reconhecimento tardio como objeto de investigação e intervenção. O caso de Mary Ellen, em
1874, uma criança que sofria vários abusos por sua família acolhedora, marcou o despertar da
consciência pública e, consequentemente, do marco legal para as inúmeras agressões que as
crianças e adolescentes são vítimas em contexto familiar.
Infelizmente foram necessários 100 anos para que essa forma de violência fosse
colocada como um problema social grave. Graças à publicação de Henry Kempe e seus
colaboradores, foi possível esse despertar dos profissionais e da comunidade científica e
pública beneficiando as discussões em torno desse problema.
No Brasil, a título de exemplo podemos ilustrar o sequestro, estupro e assassinato da
pequena Araceli, no Espírito Santo, do qual seus algozes nunca foram responsabilizados. Esse
caso chocante tem dado sentido a muitas lutas e campanhas no enfrentamento à violência
contra crianças e adolescentes, inclusive na criação do “18 de maio”, um dia para a reflexão
para toda a sociedade.
Um pensamento bem divulgado que muitas vezes fica difícil problematizar é pensar
a violência sexual não como um problema isolado de uma família, mas de várias, onde a
dinâmica familiar se encontra fortemente sustentada pelo segredo, como um elemento de
coesão da família. Nesse ambiente é evidenciado as contradições vividas pelos responsáveis
de crianças e adolescentes, na medida em que de um lado devem zelar pela sua integridade
física e emocional, transmitindo-lhe um lugar seguro e acolhedor, e por outro lado, ao vitimá-
lo sexualmente, acabam por mostrar uma face de crueldade e constrangimento.
A legislação tem se tornado uma aliada na prevenção, ou nos efeitos de justiça a
favor das vítimas, ou de suas famílias. Todavia, é notável a dificuldade da Justiça em
responder de modo satisfatório, seja pelo volume de processos da criminalidade em geral, seja
135
pela crescente violência. A violência sexual é uma violação ao direito a uma convivência
familiar protetora. Além de ser uma ultrapassagem dos limites humanos legais, sociais e
éticos.
Fica evidente que embora a sociedade reaja com indignação pública desse problema
social de vitimização sexual contra a criança e o adolescente, continua a praticá-lo no âmbito
privado. Essa é naturalmente uma forma de fortalecimento da impunidade vigente. Assim
sendo, os direitos das crianças e adolescentes historicamente como pessoas sem valor e sem
direitos no Brasil, são ainda contestados pela sociedade, que resiste fortemente à concepção
de que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos e que se traduz na forte resistência
que se constata em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
Esse tipo de procedimento só fortalece a ideia de que o enfretamento da questão do
abuso sexual intrafamiliar é extremamente difícil, devido ao seu caráter familiar, doméstico,
privado, e, no caso da exploração sexual, por ser ilegal, clandestino, comercial e articulado em
redes. No caso do Brasil, essa questão torna-se mais complexa devido, muitas vezes, à
conivência policial e também dos profissionais da saúde, como também em decorrência do
medo e silêncio das vítimas, familiares e testemunhas, além da constatação da impunidade dos
autores.
Foi possível observar junto aos processos analisados que, muitas das vezes, as
famílias demoram a tomar a iniciativa para denunciar as situações de abuso e que, quando isso
ocorreu, nem sempre houve o encaminhamento para o atendimento, ou ainda quando há o
encaminhamento, esse pode não ocorrer de forma imediata. Identifica-se uma lacuna na rede
de proteção na medida em que alguns casos acabam não sendo acompanhados devidamente.
Outra observação realizada é que as instituições destinadas à defesa e garantia dos
direitos de todos os envolvidos em situação de abuso sexual, especialmente as vítimas, ao
formalizarem e encaminharem a notificação do abuso, muitas vezes não consegue manter um
acompanhamento contínuo e sistemático, diminuindo assim a atenção ao caso. Os serviços de
atendimento às situações de violência, tendo em vista a demanda e, principalmente, a
sobrecarga e número reduzido de pessoal não conseguem abarcar novos encaminhamentos. E,
nesse período de espera, muitas famílias se veem sozinhas para lidar com todas as alterações
no sistema familiar que a notificação do abuso acionou.
Há um verdadeiro descompromisso dos gestores públicos junto às políticas de
atendimento à criança e ao adolescente, que vai desde a precária infraestrutura dos Conselhos
Tutelares ou inexistência de um espaço adequado para acolher quando estas são vítimas de
violência, a uma política municipal de enfrentamento da violência e exploração sexual contra
136
a criança e o adolescente. Esta realidade não é privilégio de João Lisboa, mas também em
outros municípios vizinhos. A prerrogativa da proteção integral ou da perspectiva da criança e
adolescente como prioridade absoluta fica só na lei.
As tentativas de “retirar” as denúncias e as retratações, por parte da vítima, são
exemplos de ações que visam restabelecer as relações familiares e que sinalizam a
vulnerabilidade a qual muitas famílias estão expostas.
Esta pesquisa permitiu, na aliança com a literatura, compreensão mais abrangente
sobre o significado de relação de violência, ou “abuso sexual” que permeiam a violência
intrafamiliar, ou chamada por alguns de violência doméstica. Se por um primeiro momento
havia a compreensão de que essas relações centravam-se no agressor ou vítima, a pesquisa
possibilitou identificar que tais relações implicam, necessariamente, problematizar, estranhar
a existência do agressor ou vítima na forma singular, mas sim na forma plural.
Outros aspectos visualizados no âmbito da violência sofrida por crianças e
adolescentes são: a escalada da violência, a rotina do abuso, segredo, a longa duração, o
descrédito nas falas, os vários sentimentos permeados por contradições, ambivalências,
inocência, e o vínculo estabelecido entre os sujeitos envolvidos nessas relações de violência e
os discursos construídos muitas vezes para fortalecer a impunidade.
Embora não faça parte da pesquisa, a análise dos serviços dos profissionais, e de
forma específica, os ligados a saúde, é questão desafiadora, porque alguns desses
procedimentos realizados no atendimento à criança e adolescentes, são reproduzidos numa
perspectiva naturalizante dos processos sociais, e assim sendo, tem pouco a contribuir com a
ruptura das relações de dominação e exploração.
No que se refere às mulheres mães, nos casos aqui explorados, a maioria deles são
elas que fazem a denúncia, faz-se necessário registro da atitude da mãe em acreditar na
palavra da filha, e aqui aquele adágio popular de “quem cala consente”, não é de todo
verdadeiro. É salutar o debate sobre o papel dessas mulheres diante do abuso sexual
incestuoso, ou não. As qualificações de negligente, omissa, passiva, cúmplice ou conivente,
frequentemente encontrada na literatura, nos pareceres profissionais ou no senso comum, não
se apresentaram como satisfatórias. Isso é percebido na forma de denúncia, logo que sabem
do abuso, tendo como referência os relatos constantes nos processos estudados. Muito desse
sistema de reprodução e significados dos discursos acerca da mulher, ainda persistem, nos
dias atuais.
137
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ANEXOS
150
Anexo 1:
151
Anexo 2:
152
Anexo 3:
Anexo 3:
153
Anexo 4:
154
Anexo 5:
155
Anexo 6:
156
Anexo 7:
FILMOGRAFIA