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Maria Natividade Silva Rodrigues

Violência Intrafamiliar: O Abuso Sexual contra Crianças e Adolescentes


Universidade Federal do Maranhão
Centro de Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Violência Intrafamiliar: O Abuso Sexual contra Crianças e


Adolescentes

MARIA NATIVIDADE SILVA RODRIGUES

São Luís
2014
MARIA NATIVIDADE SILVA RODRIGUES

Violência Intrafamiliar: O Abuso Sexual contra Crianças e


Adolescentes

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão
como requisito para a obtenção do título
de Mestre.

Orientador(a): Profa. Dra. Sandra Maria


Nascimento Sousa

São Luís
2014
Rodrigues, Maria Natividade Silva

Violência Intrafamiliar: o abuso sexual contra crianças e adolescentes/ Maria Natividade


Silva Rodrigues. – São Luís, 2014.

157 f.

Impresso por computador (Fotocópia).

Orientador(a): Profa. Dra. Sandra Maria Nascimento Sousa

Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Maranhão,


Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2014.

1. Violência 2. Abuso Sexual Intrafamiliar 3. Gênero 4. Família 5. Criança e


adolescente. I. Título

CDU 343.541-053.2
Maria Natividade Silva Rodrigues

Violência Intrafamiliar: O Abuso Sexual contra Crianças e


Adolescentes

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Ciências Sociais da Universidade Federal do
Maranhão como requisito para a obtenção do título de
Mestre.

Aprovada em ______/______/______

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Maria Nascimento Sousa (Orientadora)
Doutora em Ciências Sociais
Universidade Federal do Maranhão

_______________________________________
Prof. Dr. Álvaro Roberto Pires
Doutor em Ciências Sociais
Universidade Federal do Maranhão

____________________________________________
Prof. Dra. Maria Mary Ferreira
Doutora em Sociologia – Departamento de Biblioteconomia UFMA
“Nós pedimos com insistência
Não digam nunca: Isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia.
Numa época em que reina a confusão.
Em que corre o sangue,
Em que se ordena a desordem,
Em que o arbitrário tem força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza,
Não digam nunca: Isso é natural!”
Bertolt Brecht
A minha mãe Joana
A todas as crianças e adolescentes de João Lisboa
Aos parceiros de caminhada, do 2ºEPMont
AGRADECIMENTOS

A Deus, pela fortaleza e perseverança nas horas difíceis longe de casa.


A minha querida mãe, grande incentivadora das minhas lutas.
Ao meu sobrinho querido Ádrian, pelo carinho, cuidado e companhia.
A Dom Gilberto Pastana, Bispo da Diocese de Imperatriz.
Ao Padre Ivanildo, reitor do Seminário Bom Pastor, por me acolher por todo esse tempo que
tive que permanecer em São Luís.
Aos seminaristas; André, Donizete, Jafélix, Jorge, Jhonathan, Luciano, Láersio, Sandro,
Moisés, pela acolhida e ensinamentos durante esse período.
Aos seminaristas da Diocese de Viana, pela amizade cultivada.
Aos meus amigos Cáritas de Imperatriz, Antonio Alves (Sitônio), Ribamar Araújo, e Cleide
sua esposa pela amizade de muitos anos.
Aos amigos de Imperatriz, Wanusa e Manoel Pinto, Mêrvane Cruz, Ray, Suely.
As amigas: Margarida Chaves, Conceição Formiga, Conceição Diniz,
Aos Segundo Esquadrão de Polícia Montada, na pessoa do Major Arlan Madson,
(Comandante), Capitão Anderson Lima, e Wismaley Leite, pela parceria e amizade durante
esses oito anos de trabalho junto ao Fórum DCA.
Aos funcionários do da 2ª Vara do Fórum de João Lisboa, Raimundo, Andréia, Sâmia, Sérgio,
Ao juiz de direito, Márlon Reis, titular da 2ª Vara e também a da Infância e Juventude no
Município de João Lisboa que me concedeu autorização para a coleta de dados tanto no
Fórum, quanto no Conselho Tutelar.
Aos Conselheiros Tutelares (Clorismar, João Alfredo, Raimundo, Francineide).
Aos amigos Ariston de França, Paulo Maciel, Francisco Duvalle,
A Professora Dra. Sandra Nascimento, que aceitou ser minha orientadora e que de forma
carinhosa me fez enxergar meu objeto de estudo sob vários enfoques.
Ao Prof. Dr. Marcelo Carneiro, que me incentivou e ajudou durante todo esse processo de
aprendizagem, começando na Graduação.
Ao Prof. Dr. Benevides Queiroz, que me orientou na graduação em Ciências Sociais, e que
me incentivou a participar da seleção do mestrado.
A Prof. Dra. Mary Ferreira, amiga e que orientou meu projeto de pesquisa.
Ao Prof.Dr.Benedito Souza, carinhosamente chamado de Biné, pelas aulas maravilhosas de
Metodologia das Ciências Sociais, durante o curso.
A todos os professores do Curso pela paciência, e o desejo de deixar algo substancial em cada
encontro.
A equipe da Secretaria do Programa de Pós-Graduação, pela gentileza nas comunicações.
Ao GENI- grupo coordenador pela Profa. Sandra, espaço onde pude duvidar e aprender.
A todos os\as colegas do curso, pelo aprendizado que partilharam e pelas amizades que
nasceram.
Ao Prof. Dr. Álvaro e Prof.ª. Dra. Mundicarmo Ferretti participantes da banca de qualificação,
e que muito me ajudaram na melhoria do meu estudo.
Ao Prof.Ms. Fabrício Moura, pelas orientações e dicas durante a fase final da escrita.
O amigo Remulu, e sua irmã Diala pelas contribuições na área do Direito.
A Gilda Rodrigues, Marinez Calixto, Fabiane Freitas pelos bons momentos junto ao Fórum
DCA.
As amigas professoras Geneva, Nelcilene Pessoa, Maria Antonia, Elizabeth Rocha, Fátima
(Sen.Laroque) pela amizade e incentivo durante esse período de estudo.
Aos colegas da Escola Henrique La Roque.
RESUMO

Esse estudo tem por objetivo analisar a violência sexual contra a criança e o adolescente,
através do exame dos processos-crime de denúncias de “Abuso sexual”, na comarca de João
Lisboa – MA e no Conselho Tutelar no período de 2008-2012. Com o objetivo de
compreender as modalidades discursivas de violência, manifestas nos processos jurídicos
formais, nos quais são sujeitos envolvidos: crianças, adolescentes, adultos, parentes e ou,
agregados. Foram utilizados os registros nos autos para analisar a relação existente entre o
medo, silêncio, segredo, relações de poder e obediência, construção do conceito do que é
violência, os discursos e as práticas jurídicas. A violência sexual contra a criança assume na
atualidade duas formas principais: O abuso sexual e a exploração sexual comercial. Não é um
problema da modernidade, sabe-se que sempre existiu no seio da família, mas é tratada como
um tema delicado, de excelência do privado, é um fenômeno banalizado e naturalizado
socialmente. Todavia o abuso sexual intrafamiliar incorpora as dimensões simbólica, cultural,
social. O estudo foi feito diante de um discurso moralista e conservador, de forma bem
expressa, quando emerge o tema da sexualidade, onde em determinados casos a vítima se
torna ré, o acusado em vítima, especificamente quando a criança é muito pequena, ou então
adolescente, capaz de nos levar a pensar como é feita a apropriação dos valores morais
presente na sociedade através do discurso jurídico. Assim compreender como as narrativas
são elaboradas pelos advogados para dificultar a credibilidade da vítima, e a responsabilização
do autor da violência.

Palavras-chave: Violência, Abuso Sexual Intrafamiliar, Gênero, Família, Criança e


adolescente.
ABSTRACT

This study aims to examine sexual violence against children and adolescents, by examining
the criminal cases of allegations of "sexual abuse" in the district of Lisbon John - MA and the
Guardian Council in 2008-2012. Aiming to understand the discursive forms of violence,
manifested in formal legal proceedings, in which subjects are involved: children, adolescents,
adults, relatives and or aggregates. Records were used in the records to analyze the
relationship between fear, silence, secrecy, power relations and obedience, building the
concept of what is violence, discourses and legal practices. Sexual violence against children
nowadays takes two main forms: sexual abuse and commercial sexual exploitation. Not a
problem of modernity, it is known that has always existed within the family, but is treated as a
sensitive topic, the excellence of private, is a commonplace phenomenon and naturalized
socially. However the intrafamily sexual abuse incorporates the symbolic, cultural, social
dimensions. The study was done before a moralist and conservative discourse, quite
explicitly, emerges when the topic of sexuality, in certain cases where the victim becomes a
defendant, the defendant in the victim, especially when the child is very small, or teen able to
lead us to think how this is done appropriation of moral values in society through legal
discourse. So understand how narratives are drawn up by lawyers to hinder the credibility of
the victim, and the accountability of the author violence.

Keywords: Violence, Sexual Abuse Intra-Family, Genus, Family, Child and adolescent.
LISTA DE SIGLAS

B.O - Boletim de Ocorrência


C.F.B - Constituição Federal Brasileira
CCB - Código Civil Brasileiro
CECRIA - Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes na
América Latina e Caribe.
CLT - Consolidação das Leis do Trabalho
CONANDA - Conselho Nacional da Criança
CP - Código Penal
CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito
CPMI - Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
CRAS - Centro de Referência e Assistência Social
CREAS - Centro de Referência Especializada da Assistência Social
CT - Conselho Tutelar
DPCA - Delegacia Especializada da Criança e do Adolescente
ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente
FEBEM - Fundação Estadual de Bem Estar do Menor
FUNABEM - Fundação Nacional de Bem estar do Menor
GENI - Grupo de Estudos das Relações de Gênero, Memória e Identidade
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IML - Instituto Médico Legal
PC - Polícia Civil
PESTRAF - Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de
Exploração Sexual Comercial no Brasil.
PIAJ - Programa Infância, Adolescência e Juventude.
SAM - Serviço de Assistência do Menor
SEAS - Secretaria de Estado da Assistência Social
SEDH - Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
SUAS - Sistema Único de Assistência Social
SUS - Sistema Único de Saúde
UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância
LISTA DE QUADROS, FIGURAS E GRÁFICOS.

FIGURA 1: Microrregião de Imperatriz.........................................................................................19

GRÁFICO 1- Índice de Violência por Bairros ...............................................................................23

FIGURA. 2. Sagrada Família ........................................................................................................29

FIGURA 3. Representação do nascimento de S. Francisco Xavier .................................................31

FIGURA 4. A roda dos Expostos...................................................................................................42

QUADRO 1 - Percurso Histórico da Criança e do Adolescente no Brasil .......................................45

FIGURA 5: Fluxograma - Caminho da violência contra crianças e adolescentes ............................53

QUADRO 2: Tipos de Abusos Sexuais .........................................................................................65

QUADRO 3: Mitos e verdades sobre o Abuso Sexual....................................................................70

FIGURA 6: Fluxograma – Caminho de um processo-crime ..........................................................84

GRÁFICO 2 - Relação da vítima com o agressor ...........................................................................87

GRÁFICO 3 – Quem fez a denúncia .............................................................................................88

GRÁFICO 4 – Idade da vítima quando aconteceu o abuso sexual ..................................................89


LISTA DE TABELAS

TABELA 1- EDUCAÇÃO ................................................................................................................20

TABELA 2 - CRIANÇAS E ADOLESCENTES RAÇA\ETNIA .......................................................22

TABELA 3 - RELAÇÃO DO AGRESSOR COM A VÍTIMA (2008-2012) ......................................81

TABELA 4 - PROCESSOS UTILIZADOS NA PESQUISA .............................................................81

TABELA 5 – PERÍODO ENTRE A PRIMEIRA OCORRÊNCIA DO ABUSO E A DENÚNCIA...112


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................16

CAPITULO I ............................................................................................................................28

1. FAMÍLIA: ASPECTOS HISTÓRICO-CULTURAIS ..............................................................28

1.1. A Família Brasileira ..............................................................................................................32

1.2. A Criança e o Adolescente ....................................................................................................39

1.3. A Roda dos Expostos .............................................................................................................41

1.4. Os Marcos Jurídicos .............................................................................................................47

CAPITULO II .................................................................................................................................51

2.Violência Intrafamiliar e suas Expressões ..................................................................................51

2.1. Violência Sexual .......................................................................................................................54

2..1.1 Deslocamentos Históricos da “Violência Sexual” . ...............................................................56

2.2. A emergência do termo ‘abuso sexual’ ....................................................................................62

2.3. Tipos de Abuso Sexual .............................................................................................................64

2.4. Outros tipos de Abuso Sexual, considerados nos discursos de especialistas:..........................68

2. 5. Mitos e Realidades sobre o Abuso Sexual no discurso de especialistas: ................................69

2.6. Políticas Públicas de Enfrentamento do Abuso Sexual ...........................................................71

2.6.1 Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil ..............................71

2.6.2 Programa Sentinela ................................................................................................................74

2.6.3- O PAIR ..................................................................................................................................75

CAPÍTULO III ...............................................................................................................................76

3.1. O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente..........................................76

3.2. O Conselho Tutelar no Estatuto da Criança e do Adolescente ..............................................77

3.3. Delegacias Especializadas ........................................................................................................79

3.4. Ministério Público ....................................................................................................................79

3.5. Defensorias ...............................................................................................................................80

3.6- Juizados da Infância e Juventude............................................................................................80


3.7 O Judiciário e a Violência Doméstica .......................................................................................82

3.8 Os Processos-Crime: entre o medo e o silêncio.........................................................................86

3.9. Os crimes contra a dignidade sexual ..................................................................................... 113

3.10 Menina-Mulher? ................................................................................................................... 116

3.11. Práticas Jurídicas e Atos de Justiça ..................................................................................... 129

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 133

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 137

ANEXOS............................................................................................................................... 149
16

INTRODUÇÃO

A proposta deste estudo é compreender modalidades discursivas de expressões de


violência, especialmente, as conhecidas como “abuso sexual” na cidade de João Lisboa
Estado do Maranhão, que são manifestas em processos jurídicos formais, nos quais são
sujeitos envolvidos: crianças, adolescentes, parentes, e outros agregados próximos.
Para operacionalizar o estudo proposto sobre as denúncias de abuso sexual, foi
selecionado o período de 2002-2012. Mas, no percurso da pesquisa de campo percebi que o
período era longo, devido o espaço de tempo que tinha, porque houve uma demora em acessar
os processos, tanto no Fórum, quanto no Conselho Tutelar devido à ausência do juiz
responsável pela Infância e Juventude na Comarca de João Lisboa. Somente tive acesso em
junho, quando da volta do juiz. Então, foi necessário reduzir o espaço temporal para 2008-
2012, anos de maior número de denúncias, na referida década. A documentação pesquisada
está registrada nos processos-crime cuja violência estão nos autos1como sendo de caráter
sexual.
A intenção da investigação se dirigiu à verificação dos autos dos processos jurídicos
e registros do Conselho Tutelar, com atenção a relação entre sujeitos considerados adultos,
crianças e adolescentes envolvidos em manifestações de violência sexual. As dificuldades
encontradas junto ao Conselho Tutelar foi no sentido da desorganização dos arquivos, e das
informações estarem incompletas.
As motivações para este tema surgiram a partir do meu trabalho na Cáritas
Brasileira2 Diocese de Imperatriz, onde coordenei o Programa Infância e Juventude (PIAJ), de
2003 a 2006, em 2005 participei do Curso “Semente de Girassol”3, organizado pelo Centro de
Defesa Pe. Marcos Passerini-São Luís. Como parte prática do curso e atuação na sala de aula,
coordenei a Campanha “Proteção é um direito”4, envolvendo duas escolas estaduais do
município de João Lisboa, onde foi realizada uma pesquisa sobre vários assuntos, com ênfase
nas modalidades de violência, nas quais crianças e adolescentes eram alvos. Foram

1
Por autos entende-se peça escrita, de natureza judicial, constitutiva do processo, em que se registra a narração
minuciosa, formal e autêntica de determinados atos judiciais.
2
Organização da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), para o trabalho das questões sociais da
Igreja no Brasil. A Cáritas está presente em mais e 192 países.
3
O curso “Semente de Girassol” é realizado pelo Centro de Defesa Marcos Passerini para pessoas ou
organizações que trabalham com crianças e adolescentes. O curso é dividido em módulos à distância e encontros
presenciais.
4
Campanha surgiu a partir das inquietações nas aulas de História, com os alunos da CE Henrique de La Roque,
no ano de 2006. Teve a parceira do CE Rio Amazonas. A pesquisa foi realizada nos período de agosto de 2006 a
maio de 2007.
17

entrevistadas 3.100 pessoas. Os dados desta pesquisa revelaram informações sobre a situação
da criança e do adolescente no município. A violência física aprece em primeiro lugar, e a
sexual em segundo, seguida da negligência. Esse despertar foi se colocando em alguns
trabalhos junto ao Fórum da Criança e do Adolescente5. Em 2009 iniciei a Graduação em
Ciências Sociais, e trabalhei com esse tema no projeto de final do curso. Essa escolha é a
continuidade da graduação, enfatizando a violência que envolve crianças e adolescentes,
principalmente em relação ao abuso sexual, aquele praticado por familiares, bem como, os
que pertencem ao convívio da família: vizinhos, padrinhos, professores.
Nesse sentido, a proposta de estudo pareceu-me adequada, até o início do Mestrado,
em março de 2012. Mas passado algum tempo e o contato com novas leituras e discussões em
sala, fui conduzida percorrer outros caminhos, rever conceitos, tanto com meus pares da
educação e mais recentemente com colegas e professores do Mestrado, constituindo assim
uma espécie de “autoanálise”, onde o trabalho científico leva à revisão de conceitos, e de
acordo com Pierre Bourdieu (2005). “É um discurso em que a gente se expõe”. Nesse
percurso deparei-me com algumas situações, categorias, que foi necessário suspender as
minhas “pré-noções” trazidas comigo no envolvimento com o trabalho junto ao Fórum da
Criança e do adolescente, tais como: a crença que o sujeito agressor tinha um distúrbio
psicológico, e que sua punição era o bastante; apatia de uma parcela da sociedade e da família
em denunciar; envolvimento emocional com a situação do sujeito vítima. Foi necessário o
exercício do distanciamento, para perceber o fato com certa objetividade.
O texto de Lenoir (1998) ajudou-me a discernir, ou pelo menos a entender que os
problemas são construídos socialmente, e historicamente imbricados na vida social dos
indivíduos. Do ponto de vista das políticas públicas, o Município de João Lisboa não dispõe
do Programa Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual, que traz essa prerrogativa, a
exemplo dos Planos Federal e Estadual. No município tem alguns órgãos, como o Conselho
Tutelar, e um juiz titular da Infância e Juventude. Porém, a rede de proteção integral
preconizada no Estatuto da Criança e do Adolescente não está articulada. Aliado a tudo isso, o
município de João Lisboa é próximo de outro município que é apontado como uma das rotas
de exploração sexual de Crianças e Adolescente, o Município de Imperatriz.

5
O Fórum DCA(Fórum das \Organizações Não Governamentais dos Direitos da Criança e do Adolescente), foi
fundado em 2006, com o intuito de trabalhar as questões relacionadas ao público citado, tem como parceiro a
Polícia Militar(2º Esquadrão de Polícia Montada-com sede em João Lisboa).Os trabalhos do Fórum deu
visibilidade ao abuso sexual na cidade de João Lisboa. Além de propor políticas públicas para o gestor
municipal.
18

O não entendimento da criança e do adolescente como prioridade, e ou, a falta de


sensibilidade aos problemas sociais latentes, sejam os motivos maiores pela falta de políticas,
ações, leis que possam ser suportes no enfrentamento de qualquer tipo de violência presente
na infância.
Do ponto de vista da Sociologia foi necessário o entendimento com as outras áreas
do conhecimento para a melhor compreensão da complexidade desse problema. E as relações
de poder entre os sujeitos envolvidos, políticas sociais de atuação, e as ações estratégicas.
Cada caso ocorre em contextos específicos, apontando uma dimensão do seu grau de
dificuldade e importância para o campo de estudo das Ciências Sociais, a de lidar com um
problema social tenso e carregado de significado políticos.
A aproximação com inúmeras atividades ligadas às discussões de gênero, raça e
violência, principalmente nos grupos de estudos, particularmente o GENI grupo de Estudo
vinculado a este Mestrado, proporcionaram oportunidades de aprofundamento das teorias e
permitiram a construção de novas experiências e saberes. As leituras de Pierre Bourdieu,
Michel Foucault, Norbert Elias, Bachelard, dentre outros contribuíram para o meu interesse
de pesquisa.
Meu olhar sobre a violência contra crianças e adolescentes foi ampliado, pois toca
em questões delicadas como família e sexualidade. Passei a problematizá-lo partir do que
Bachelard (2011) coloca “o conhecimento do real é luz que projeta sempre alguma sombra. O
real nunca é o que se poderia achar, mas é sempre o que se deveria ser”. Esse enfoque
esclarece o pensamento empírico quando o conjunto de argumentos para apresentar
determinado problema, fica naturalizado. Esse “estranhamento” do já conhecido foi um
exercício difícil, mas através da discussão nas diversas disciplinas do Mestrado pude
realmente entendê-lo e praticá-lo como parte importante na constituição do objeto de
pesquisa.
Outro desafio percebido é a pouca bibliografia no campo das Ciências Sociais sobre
o assunto, pois o mesmo é mais ampliado pela Psicologia, Saúde, Serviço Social e Direito.
Embora a violência esteja circulando nas mídias, e bem presente atualmente no cotidiano das
pessoas, os estudos científicos são poucos. Porém continuo motivada a compreender esse
problema, presente em muitas famílias brasileiras, e suas relações com o discurso sobre o
modelo ideal da família, e as práticas jurídicas e o acesso da justiça.
19

Caracterização da situação sócio econômica da cidade de João Lisboa

Em decorrência do desbravamento da parte Oeste do Estado do Maranhão, surgiu em


1930 o povoado chamado “Gameleira”6,na área de abrangência do municiípio de Imperatriz.
O desmembramento de Imperatriz e a elevação do povoado à condição de municipio, ocorreu
no dia 22 de dezembro de 1961.A então Gameleira passa a ser chamada de João Lisboa,em
homenagem ao escritor maranhense João Francisco Lisboa.
A Microrregião de Imperatriz é uma das microrregiões do Maranhão pertencente à
mesorregião Oeste Maranhense,que está dividida em dezesseis municípios. Possui uma área
total de 29.483,768 km².Nesta região se destaca a Cidade de Imperatiz, como Portal da
Amazônia legal,e entreposto com os Estados do Tocantins e Pará.

FIGURA 1: Microrregião de Imperatriz


Fonte:pt.wikipedia.org/.../Mesorregião_do_Oeste_Maranhense – Acesso em 30-06-2014.

A cidade de João Lisboa fica a 12 quilômetros de Imperatriz e a 650 quilômetros


de São Luís; João Lisboa é também interligada ao sistema rodoviário nacional pelas rodovias
Pedro Neiva de Santana (MA-122) e pela rodovia Belém Brasília (BR 010). Mais de 50
quilômetros do município são hoje cortados pela Ferrovia Norte-Sul.Com uma população
estimada, segundo o censo 2010, de vinte mil e trezentos e oitenta e um habitantes (20.381
habitantes), e uma área de 637km2.
Suas principais atividades econômicas são a agricultura e a pecuária. Basicamente a
produção é de subsistência. O comércio é abastecido principalmente por armazéns localizados
na cidade de Imperatriz. Contudo, a maioria das pessoas trabalha na Prefeitura enquanto
outras se deslocam para trabalhar e estudar em Imperatriz. Outros postos de trabalho foram

6
Árvore nativa da região, conhecida por sua imponência frondosa, deu origem ao primeiro nome do povoado
20

surgindo com a implantação da usina da Suzano Papel e Celulose, embora seja mesmo
localizada em Imperatriz, a mão--de–obra é das cidades circunvizinhas como João Lisboa,
Senador, La Roque, Davinópolis.

INDICADORES SOCIAIS

Na saúde, o município João Lisboa dispõe de um hospital alugado, 04 postos de


saúde distribuídos na zona urbana, outros na zona rural. Um grande número de atendimentos é
feito nos Hospitais: Regional (partos), Socorrão (para outros atendimentos, e cirurgias), todos
localizados em Imperatriz, no município têm poucos médicos especialistas, e nenhum
residente no município.
Na educação, segundo o censo do IBGE,2010, a população alfabetizada é de 14,284
pessoas. A rede municipal dispõe de (167) escolas, distribuídas na zona urbana e rural. A
tabela abaixo traz um demonstrativo dos números de matrículas desde a creche até o ensino
médio em 2012, pelas estimativas do IBGE.

TABELA 1- EDUCAÇÃO

Número de Matrículas Matrículas Creche ou População


unidades Ensino Ensino Médio outra Escola Alfabetizada
Escolares Fundamental
167 4.412 938 8.344 14.990
Fonte: IBGE: Censo Demográfico 2010;

Os professores são amparados pelo Estatuto do Magistério, que foi implantado no


governo de Valdemar da Mota e Silva, pela Lei nº 15/86, de 10 de novembro de 1987. Quanto
ao acesso às políticas sociais, pode-se constatar que é precário, porque só funcionam
praticamente os programas do Governo Federal, como o Centro de Referência e Assistência
Social (CRAS). PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil); CREAS (Centro de
Referência Especializado da Assistência Social).
Sobre a segurança, como em boa parte das cidades maranhenses, a população sofre
com a falta de investimentos do governo, o município conta, com um delegado que atende
outros três municípios, conta com ajuda dos militares do 2º Esquadrão de Polícia Montada
que tem sua sede em João Lisboa, e um Pelotão da Polícia Militar no bairro Cidade Nova,
contando com uma barreira policial que se encontra na entrada da cidade. As principais
21

denúncias na delegacia são: roubo, principalmente de bancos, gados, motos, e alguns


homicídios. Tanto os dois promotores de justiça como os dois juízes da comarca, nenhum
mora na sede do Município.

Contextualizando a criança e a adolescente

Sobre a ocupação de crianças e adolescentes, no município registram-se algumas


atividades desempenhadas principalmente por meninos de 08 a 15 anos no sábado,
trabalhando na feira, vendendo geladinho, salgados etc. Não tem registro nos órgãos de defesa
de crianças ou adolescentes moradores de rua, embora se observe que alguns adolescentes são
engraxates e trabalham no município de Imperatriz.
No quesito lazer, não tem no município área de lazer para a população, as únicas
opções são os diversos bares que proliferam pela cidade e povoados, festejos católicos, festas
evangélicas e juninas, o lava-pratos.
O problema da violência que atinge este grupo tem pouca visibilidade, há um
descaso nas políticas públicas ligadas à infância e juventude. Governo e Sociedade Civil não
conseguiram pensar coletivamente o plano municipal de enfrentamento à violência e
exploração sexual de criança e adolescentes, ou outro dispositivo legal que faça
enfrentamento desse problema em todos os seus níveis.
Em 2005, o abuso sexual na infância e adolescência foi colocado como problema
social, para a população do Município de João Lisboa, através da Secretaria de Assistência
Social, e do Programa Federal, chamado Sentinela7, em parceria com o Projeto Cuida de
Mim8. A partir de então várias ações foram colocadas em andamento, para que as famílias, os
poderes constituídos pudessem se unir para o seu enfrentamento.
Em junho de 2005, foi criado o Fórum das Organizações Não Governamentais dos
Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA) que atuou junto ao Conselho Tutelar,
Escolas (Estadual, Municipal), Ministério Público, propondo ações coletivas de
sensibilização, formação, responsabilização. Dentre as ações implantadas pelo Fórum DCA,
destacamos duas, a primeira, foi a parceria com a Polícia Militar, trazendo para as escolas o
Programa de Prevenção às Drogas e a Violência (PROERD), priorizando as crianças e

7
Antigo programa do Governo Federal que em 2003 o Município de João Lisboa foi contemplado para trabalhar
as questões relativas a violência sexual. Atualmente o programa passou a ser Centro de Referência
Eespecializada de Assistência Social(CREAS).
8
É um projeto desenvolvido desde 2004 pelo Centro da Melhor Idade “Dom Affonso”,uma organização da
sociedade civil surgida a partir da Campanha da Fraternidade 2003.Uma ação da Cáritas Brasileira. Que trabalha
com idosos, e crianças no município de João Lisboa.
22

adolescentes em situação de vulnerabilidade social mais aguda, que durou dois anos, e nos
anos seguintes foi ampliado pelo governo municipal. A segunda ação, foi a articulação junto
à Câmara Municipal para aprovação do projeto de Lei de Inclusão do Eca no Currículo
Escolar. O mesmo foi aprovado e sancionado pelo prefeito em 2006. Mas, infelizmente não
foi implantando. Aconteceram algumas oficinas para os professore da rede municipal, mas
não teve prosseguimento.
O município de João Lisboa tem uma população Infanto Juvenil, caracterizada
segundo o IBGE, no Censo Demográfico 2010, em etnia ou raça, (Preta=437); Parda (4.807 )
;Branca( 1.988 ), num total de 6.232 pessoas, apontado na tabela a seguir. Consideramos
importante destacar que a faixa etária dos 5 aos 14 anos se constitui na maioria das crianças e
adolescentes do Município,( (4.418) período onde ocorre o maior número de abuso sexual. E
a população de crianças e adolescentes ‘pardos’ é a maioria deste grupo etário
A composição familiar da cidade de João Lisboa passa pelas transformações
ocorridas na modernidade, um número significativa das famílias aparecem a mulher como
chefe de família, ou já em uma segundo ou terceiro relacionamento, a composição nuclear
(pai, mãe, filhos) é muito presente também, além da família composta por avós e netos.

TABELA 2 - CRIANÇAS E ADOLESCENTES RAÇA\ETNIA

GRUPOS POR PRETA PARDA BRANCA


IDADE
0-4 ANOS 103 1.171 533
5 – 9 ANOS 145 1.396 539
10-14 ANOS 195 1.533 610
15-17 104 807 306
TOTAL 437 4.807 1.988
Fonte: IBGE: Censo Demográfico 2010;

Quando vemos a população feminina em contraste com a masculina, os números são


quais iguais. o sexo feminino é de 3.172 ,enquanto que o sexo masculino é de 3.132 crianças
ou adolescentes. Sobre o número de adolescente de 15 a 18 anos não foram contabilizados
nesses dados, devido não serem relevantes para o estudo sobre violência sexual, porque o
abuso tende a baixar quando chega a adolescência, ou seja, depois dos 14 anos Para tanto, no
estudo sobre violência sexual, foram designados dois tipos de situações em que ocorre o
abuso sexual: um intrafamiliar e outro extrafamiliar. O intrafamiliar é o abuso que ocorre no
23

âmbito familiar, com pessoas próximas e com laços afetivos ou de parentesco, como pai,
padrasto ou outros; e o extrafamiliar, comumente cometido por pessoas desconhecidas da
vítima ou sem vínculo afetivo nem de parentesco com ela.
No Brasil, segundo informações da UNICEF9, 18 mil crianças, são vítimas de
violência doméstica por dia, e 80% das agressões são feitas por parentes próximos. As
meninas entre 07 e 14 anos são as mais afetadas. A negligência e a violência psicológica
fazem parte do repertório cotidiana de muitas vítimas nas famílias brasileiras. O Estado do
Maranhão aparece em quinto lugar no número de denúncias no disque 100, no ano de 2014.
Pelo registro das denúncias junto ao Conselho Tutelar do município de João Lisboa,
no espaço de 2008 a 2012, foi possível elaborar o seguinte gráfico, demonstrando os bairros
de maior incidência da violação dos direitos da criança e do adolescente tanto na urbana
quanto na rural, as demais violências (psicológica, negligência, física), não foram
contabilizadas. O destaque é para o Bairro Cidade Nova com 32% das denúncias, quando
retratado o bairro tem uma estrutura precária, e os grandes eventos do município são feitos no
referido bairro, nele se encontra um ‘bolsão de pobreza’, em conjunto com outras mazelas
sociais, que não é privilégio somente deste bairro, mas de outros bairros da cidade. Mesmo
recentemente tenha sido implantado o CRAS, a efetivação destas politicas ainda não é
visualizada concretamente as mudanças na vida das pessoas, principalmente de crianças e
adolescentes.

GRÁFICO 1- Índice de Violência por Bairros

9
https://sites.google.com/site/violenciainfantilturma3107/violencia-domestica-infantil acessado em 12 de
dezembro de 2012.
24

Diante do exposto, as seguintes questões orientam as bases do estudo proposto:


Através de que discursos o Poder Judiciário, o Conselho Tutelar retratam os sujeitos
envolvidos nessas relações designadas como “abuso sexual”? Como os marcadores de gênero,
idade, etnia, raça, sexualidade aparecem em seus discursos jurídicos? Como são percebidas as
relações de poder entre adultos, crianças e adolescentes?

Caminho Metodológico

Como fontes principais desse estudo foram analisadas 49 processos de denúncias de


abuso sexual, no Conselho Tutelar de João Lisboa, das quais 13 foram selecionados para o
meu estudo, por serem relevantes, à medida que os envolvidos são familiares ou pertencentes
a grupos que fazem parte das relações da família (vizinho, padrinho).Após autorização do juiz
da Infância e da Juventude e requerimento de responsabilidade de sigilo da pesquisadora,
procedeu-se à coleta de dados, primeiro no Conselho Tutelar, em segundo momento, no
Fórum com a análise dos processos.
Através da análise dos registros do Conselho Tutelar foi possivel selecionar as
denúncias que viraram processos e foram excluídos então os casos que envolviam
desconhecidos, namorados que não fossem parentes, porque foram encontrados alguns
processos onde os envolvidos são primos e namorados. Foi utilizada uma ficha de dados,
elaborada para coletar as informações relacionadas às crianças, e adolescentes, sobre o
agressor, e a relação com a vítima. Tive o cuidado de colocar nomes fictícios para os sujeitos
envolvidos. Confeccionei vários modelos de ficha no período da catalogação no Conselho
Tutelar, até chegar a um tipo ideal. Fui à delegacia, porque muitas informações não
constavam na primeira denúncia, e na maioria das vezes, a informante não dispunha de todas
as informações dos sujeitos envolvidos: agressores e vítimas. Às vezes, um único processo
continha informações de um, dois, três sujeitos vitimizados na mesma família. Vale ressaltar
que o número de denúncias não é o mesmo de vítimas, e a maioria das denúncias não chegam
até a instância do judiciário .
Tanto entre os processos do Conselho Tutelar, quanto no conjunto dos processos-
crime da 1ª e 2ª Varas, o trabalho consistiu em verificar qual era o tipo de violência praticada,
além dos locais (bairros) de maior incidência. A razão pela escolha somente de casos de abuso
sexual intrafamiliar, foi porque a violência sexual entre pessoas da família, sejam os genitores
ou outros parentes, e ou, participantes da rede afetiva da família, como os vizinhos e
25

padrinhos, amigos, aparecem no Município como irreal. No municipio pesquisado figuram no


papel de agressores, além de pais e padrastros outros parentes, como tio, primo, avô.
Após terminar o levantamento e transcrição procedi à formulação de tabelas, gráficos
para me ajudar na visualização dos envolvidos nesses processos-crime, todas são meninas
pobres, as mulheres-mães que ganham até um salário minimo, em algumas situações com
mais de três filhos, e na segunda união.
Para este trabalho foi empreendida uma análise de documentos oficiais, sendo
conduzida pelo método da análise do discurso da vertente francesa,fundada por Michel
Pêcheux, acrescentando uma interlocução com Eni Orlandi, Foucault, Baktin
(GOLDENBERG, 2011), visando contextualizar a realidade estudada, interpretar as possíveis
relações de poder e os efeitos de verdade que são relatados pelos denunciantes de violência
sexual, Os documentos utilizados foram processos-crime, de denúncias do abuso sexual.
Foram feitos alguns recortes das falas dos sujeitos envolvidos para empreender a análise, e
consequentemente contextuar a situação notificada e compreender como crianças e a
adolescente são construídas nestes processos, através dos discursos.
Utilizei alguns teóricos, de modo a ampliar a compreensão sobre os conceitos de
família, infância, relações de paternidade e maternidade. Em relação à criança, Philippe Ariès,
na sua obra História Social da Infância e da Família, originalmente de 1960, que se tornou
referência para pesquisas sobre a criança. Ele aborda a criança e a família, na França do
Antigo Regime, mas com alguns traços semelhantes ao caso brasileiro. Destaca a
historicidade dessas instituições, especificando o surgimento do sentimento de infância e de
família, do isolamento da família em relação à coletividade, e da valorização da privacidade,
que aos poucos vai construindo elementos de uma “sociedade moderna”. Já, Mary Del Priori,
historiadora brasileira traz na sua obra ‘a História da Criança no Brasil’, retrata a situação da
criança desde a época da colônia, e como esta era tratada na sociedade, na família.
Para pensar a sexualidade, relações de poder, discursos, as obras de Michel
Foucault, História da Sexualidade I,II,III foram importantes, com as quais este filósofo faz
uma análise da explosão de discursos sobre sexo a partir do século XVIII, A hipótese de
Foucault é que foi o próprio poder que incitou essa proliferação de discursos, através de
instituições como a Igreja, a escola, a família, o consultório médico. Essas instituições não
visavam proibir ou reduzir a prática sexual. Visavam sim, o controle do indivíduo e da
população, bem presente em seu livro Vigiar e Punir. Outra obra do filósofo foi A Verdade e
as Formas Jurídicas, essencial para a minha aproximação com o campo jurídico. Através
dessa leitura, pude entender as referências usadas nos discursos dos juristas nos processos
26

analisados. Outra obra importante foi de Eni Orlandi Análise de Discurso: princípios e
procedimentos, juntamente com Michel Pêcheux.
Outra obra importante para esse estudo foi a de Georges Vigarello. A História do
Estupro: Violência Sexual nos Séculos XVI-XX, mostra toda a trajetória do surgimento da
sensibilidade em relação aos crimes sexuais na França. Na obra também aparece um percurso
da história dos estupros. E no século XVIII começaram as queixas. Em meados do século
XIX, as mudanças são significativas, e uma acentuada sensibilização à violência.
Enfatizo a obra de Ricardo Pimentel Méllo: A Construção da Noção de abuso Sexual
Infantil, o autor faz uma abordagem construcionista. É, portanto, um convite para analisar a
essencialização dos fenômenos do mundo social. As assimetrias como gênero e raça foram
objetos de lutas políticas para sua dessencialização. Observa-se que a criança/adolescente
mantém seu lugar sacralizado, fortalecido. Elementos esses, que são bem presentes nos
processos-crime, onde aparecem como “as ofendidas”, ou “vítimas”. Essa obra ajudou-me na
compreensão de como a construção da noção de abuso sexual surgiu.
Outra obra foi a de Edson Passetti:Violentados-Crianças, Adolescentes, Justiça. O
autor retrata um extenso estudo de processos sobre denúncias de crianças atingidas por
violência doméstica, e adolescentes infratores. Embora nesse estudo não trate da situação de
adolescentes infratores, o importante nessa obra é a visão do conjunto de crianças e
adolescente que permanecem imantados às tensões decorrentes de novos vínculos de
afetividade, redimensionados pelos novos casamentos dos pais.
Na obra de Rosana Morgado, Mulheres Mãe- o abuso sexual incestuoso, a autora faz
a distinção da sexualidade da criança/adolescente/adulto, com uma reflexão aprofundada do
papel da mãe nesse processo de violência sexual. Observa que a violência doméstica é o
grande guarda chuva das demais violências perpetradas contra a criança e adolescente,
principalmente do sexo feminino. Na leitura dos processos as denúncias foram feitas por
mulheres, em sua maioria as mães. Assim sendo, a leitura dessa obra se tornou essencial para
esse estudo.
As obras de Heleieth I.B. Saffioti, Gênero, Violência e Patriarcado e O Poder do
Macho, são relevantes para discutir as relações de gênero como relações sociais. Para Saffioti
elas se estabelecem no âmbito de nossa sociedade e sugere um caminho para desvendar as
condições que demarcam a inserção das crianças e adolescentes nessas relações. Discute a
figura do homem nas relações familiares como espaço privilegiado do exercício do poder.
Outras obras de igual relevância são as de Pierre Bourdieu. A Dominação Masculina;
Poder Simbólico, que enfatizam a violência simbólica como suave invisível às suas próprias
27

vítimas. Assim sendo, percebemos que, em muitas situações de violência, as crianças e


adolescentes não veem tipificadas como violência os atos praticados pelos adultos. Para o
autor, os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às
relações de dominação, fazendo-as assim serem vistas como naturais.
Nas obras de Viviane Nogueira de Azevedo Guerra,Violência de Pais contra filhos,
procuram-se vítimas e a Violência de Pais contra filhos- a tragédia revisitada. A autora tem
se destacado na discussão da violência doméstica contra crianças e adolescente no Brasil.
Suas obras são referências nos estudos e pesquisas relacionadas à violência doméstica onde
crianças e adolescentes são vítimas.
A dissertação de mestrado de Laura Lowenkron, Sexualidade e Menor
(Idade),contribui de forma assertiva, porque problematiza a sexualidade entre adultos e uma
menor, retratando os diversos olhares sobre a visão que se tem da sexualidade das crianças.
Tenta desnaturalizar o problema que se tornou evidente no final do século XX e primeira
década do século XXI. Outra produção científica da autora que foi salutar para o estudo,
denominada “Monstro Contemporâneo”, discute a pedofilia e suas interfaces com as outras
ciências. Faz a diferença entre pedofilia e abusadores sexuais intrafamiliares.
Para sistematizar o trabalho dissertativo com este estudo, fiz a seguinte distribuição
em capítulos: o primeiro capítulo é denominado Famílias: aspectos histórico- culturais, um
percurso histórico do surgimento da família, como uma instituição, e as mudanças ocorridas
através dos tempos. Faz uma contextualização da criança no espaço familiar, e o surgimento
da infância. No final do capitulo tem dois quadros; primeiro com a linha do tempo da criança
e do adolescente; e no segundo um resumo dos marcos jurídicos que sustentam o paradigma
da proteção integral de crianças e adolescentes no Brasil,
No segundo capítulo, denominado A Violência Intrafamiliar e suas diferentes
expressões contra Crianças e Adolescentes: Deslocamentos históricos da “violência sexual” e
seus autores. A emergência do termo “abuso sexual”. Tipos, formas e mitos sobre o abuso
sexual. No final do capítulo apresento as políticas públicas ligadas à infância e juventude.
No terceiro capítulo é parte mais significativa desse estudo, pois se trata da análise
dos Processos-Crime, onde constará de uma caracterização dos sujeitos envolvidos, crianças,
adolescentes, adultos acusados da agressão, bem como, o papel do Judiciário, e do Conselho
Tutelar, órgãos acolhedores das denúncias. Como o repertório jurídico transcorre sobre a
sexualidade e a moral, e os “bons costumes”, faremos a análise dos dados obtidos a partir das
denúncias registradas no Conselho Tutelar, e os processos da 1ª e 2ª Varas do Fórum do
Município.
28

CAPITULO I

1. FAMÍLIA: ASPECTOS HISTÓRICO-CULTURAIS

A compreensão do fenômeno da violência contra crianças e adolescentes exige que


exploremos o contexto socioeconômico, político e cultural onde estão inseridos estes sujeitos.
Assim, consideramos relevante destacar algumas das perspectivas de construção histórica do
modelo ideal de família, sua organização e constituição política.
Do ponto de vista etimológico, família é um vocábulo português advindo do latim
famulus que significa, originalmente, “um conjunto de escravos servidores de uma pessoa”. O
vocábulo francês famille advém do século XIV e o inglês Family data do século XV e o seu
sentido tal como conhecemos hoje foi estabelecido numa construção sócio-histórica.
O termo família foi criado na Roma Antiga para designar um novo organismo social
que surgiu entre as tribos latinas, ao serem introduzidas à agricultura. O Pater Famílias, chefe
da família, concentrava as funções militares, econômicas e afetivas, com uma distribuição
rígida e hierarquia de papéis. A família patriarcal se caracterizava também pelo controle da
sexualidade feminina e a regulamentação da procriação para fins de herança e sucessão. A
sexualidade masculina se exercia, no entanto, livremente. Os casamentos eram realizados por
conveniência entre parentes ou entre membros de grupos econômicos que desejavam
estabelecer alianças.(Cayres.2008).
Os estudos do historiador francês Philippe Ariès(1981)contribuíram para a
compreensão das mudanças pelas quais a família tem passado, desde sua funcionalidade até
suas relações. Segundo Ariès a família se transformou fundamentalmente na medida em que
modificou suas relações com a criança. O autor descreve que até o século XVI o livro das
horas10 mostrava a evolução do ano, com características próprias de cada época. Inicialmente
o homem aparecia sozinho, ou acompanhado por um criado, também homem. Estas
representações são alteradas vagarosamente quando a mulher aparece desempenhando
diferentes papéis. Surge o calendário com cenas de rua, trazendo também as cidades, e não só
os espaços rurais, mas o mercado, os vizinhos, o cenário familiar do trabalho e das relações
sociais. As realidades e os sentimentos da família se transformaram, de forma lenta e gradual,

10
Era um manuscrito da Idade Média, que continha uma coleção de textos descritivos sobre as atividades
cotidianas das pessoas. Em sua forma original, o livro de horas servia como conteúdo litúrgico para determinas
horas do dia.
29

para classes abastadas do campo e da cidade e somente a partir do século XVIII se estendeu
para as demais classes.
A criança é novo personagem do século XVI, uma vez que, até então, ela só aparecia
nas representações de anjos e mesmo assim como um adulto em miniatura. Ao longo desse
mesmo século as mudanças continuaram surgindo, com a simbologia das idades da vida, que
poderiam ser representadas por uma pirâmide, através da criança, do jovem ou de um idoso.
Nesse sentido, verificamos as modificações da vida social começando com a história das
famílias, seu patrimônio, as mortes e a união, surgindo assim o sentimento da família.
Ariès(1981) ressalta que o novo é o sentimento de família e não a família, uma vez que esta
sempre existiu, mas sua existência era silenciosa. Esse sentimento foi se fortalecendo em
torno da família conjugal formada pelos pais e os filhos. Os artistas começaram a representar
a família em torno da mesa coberta de frutas. A família que posa para o artista, com um grau
de afetação, esteve presente na arte francesa até pelo menos o início do século XVIII. Mas,
sob a influência particular dos holandeses, o retrato de família muitas vezes seria tratado
como uma cena do gênero, tal como a imagem dos momentos cotidianos, representado o
homem, a mulher e a criança evocando a vida familiar, modelo que se disseminou em muitos
outros países da Europa e, principalmente, nas colônias por eles instituídas.

FIGURA. 2. Sagrada Família com São João Batista Criança. Autor: Pintor da Emília (Séc. XVI).
Fonte: http://masp.art.br/masp2010/acervo_detalheobra.php?id=75 – Acesso em 13-06-2014
30

O sentimento de família, que emerge nos séculos XVI e XVII é inseparável do


sentimento de infância. A iconografia apresentada por Ariès (1981),leva-nos a concluir que o
sentimento de família era desconhecido na Idade Média e nasceu para exprimir, com vigor, o
século XVII. A ideia central dos historiadores do direito e da sociedade é a de que os laços de
sangue não constituíam um único grupo, e sim dois, embora distintos, a saber: a família
oumesnie, que pode ser comparada à nossa família conjugal moderna, e a linhagem que
estendia sua solidariedade a todos os descendentes de um mesmo ancestral. Esse modelo de
família, embora não se estendesse a toda a linhagem, compreendia, entre seus membros que
residiam juntos, vários elementos, e, às vezes, vários casais que viviam numa mesma
propriedade que eles se recusavam a dividir; a família conjugal moderna seria, portanto, a
consequência de uma evolução que, no final da Idade Média, teria enfraquecido a linhagem e
as tendências à indivisão. Segundo Ariès(1981), essa indivisão da família que, aliás, não
durava além de duas gerações, deu origem às teorias tradicionalistas do século XIX sobre a
grande família patriarcal.
A influência do sentimento da família também pode ser reconhecida, especialmente
no século XVII, na nova maneira de representar, em pinturas, um casamento ou um batismo.
O outro elemento importante foi o surgimento das orações e preces em família, onde os
artistas se dedicaram a representá-la, pois em geral se atribuía à prece, outrora banal, um novo
significado. O tema iconográfico agora evocava e associava numa síntese três forças afetivas,
a saber: a religiosidade, o sentimento da infância (a criança menor),e o sentimento da
família(a reunião em torno da mesa).Percebe-se que a iconografia tradicional modificou-se,
portanto, sob a mesma influência que aumentou a autoridade paterna, que tinha como ícone a
figura de São José no quadro da Sagrada Família, quando o mesmo é retratado como chefe de
família na mesa, na hora da refeição, e no ateliê, nas horas de trabalho.
31

FIGURA 3. Representação do nascimento de S. Francisco Xavier – Autor: Andre Reinoso (Séc. XII).
Fonte: http://obaudahistoria.blogspot.com.br/2011_12_01_archive.html - Acesso em 13-06-2014

Segundo Ariès, a família moderna parece ter surgido concomitantemente ao hábito


de enviar as crianças à escola. A família moderna dos séculos XVII e XVIII passou a
conceder maior ênfase à educação das crianças. Esse processo teve início quando os
eclesiásticos e juristas passaram a ter um interesse pela educação infantil, aliado a uma visão
mais moralista do que humanista, lutando contra a anarquia, e iniciando uma moralização da
sociedade. Nesse cenário surgem as ordens religiosas, como os jesuítas. Estas ordens
ensinavam aos pais que eles eram os guardiões espirituais das crianças e responsáveis perante
Deus pela alma dos seus filhos. Passou-se a admitir então que a criança não estava madura
para a vida e que era necessário submetê-la a um regime especial antes de deixá-la participar
da vida em comum com os adultos. (Ariès, 1978, p.277). Assim, a família e a escola tiraram
as crianças do mundo dos adultos, transferindo-as para os internatos.Segundo Ariès, as
crianças eram rigorosamente ensinadas e corrigidas com chicotes ou prisões.Essa mudança
não era só para manter as crianças afastadas das tentações do mundo adulto, mas também para
cumprir o desejo dos pais de não mais abandoná-las aos cuidados de outras famílias. A
substituição da aprendizagem pela escola revela também uma aproximação da família e das
crianças, do sentimento da família e do sentimento de infância, que antes estavam separados.
Nesse sentido a família concentrou-se em torno da criança. (Ariès, 1978, p.232).
No entanto, enquanto antes a responsabilidade de cuidar dos filhos era transferida
para a escola, a família passou a assumi-la ,deixando de ser apenas uma instituição de direito
32

privado, para a transmissão dos bens e do nome, tomando para si, a função moral e espiritual,
onde a educação e a transmissão de valores passavam de geração em geração. Na medida em
que as relações com as crianças foram mudando, a família também passava por visíveis
transformações.
Ariès (1981) cita que uma das características dessa família moderna é que ela tornou-
se mais intimista, determinando o espaço de convivência entre crianças e o adulto, pois novas
práticas e valores foram agregados na educação, criando vínculos afetivos com a maior
aproximação de pais e filhos. É nesse contexto que a família passa a se isolar em relação à
coletividade, valorizando a privacidade de seus membros. A casa passou a corresponder a essa
nova preocupação de defesa contra o mundo. Era já a casa moderna, que assegurava a
independência dos cômodos fazendo-os abrir para um corredor de acesso. Essa reorganização
dos espaços e dos costumes surgiu inicialmente entre a burguesia e nobreza, resultando em
uma das maiores mudanças da vida cotidiana, correspondendo a uma nova necessidade de
isolamento, deixando um espaço maior para a intimidade da família, excluindo criados,
clientes e amigos.
Outra característica da família moderna é a igualdade entre seus filhos, que pôs fim
ao favorecimento dos primogênitos em detrimento dos demais filhos. Com isso, os filhos
conseguiram um lugar mais próximo dos pais, diferindo assim a família moderna da família
medieval. Nesse sentido, a criança ganhou importância, e os adultos passaram a ocupar-se de
sua educação para o futuro. Embora, não fosse o centro do núcleo familiar, ela tornou-se uma
personagem importante.
Ariès(1981) destaca ainda a preocupação inicial do surgimento da infância
como categoria social em que a família nuclear, composta pelo pai, pela mãe, pelos filhos e
por uma complexa combinação de autoridade e amor parental, trouxe um novo conjunto de
atitudes em relação às crianças. Uma delas foi a passagem da função de socializadora para o
âmbito restrito do lar, constituindo alguns mecanismos fundamentais para a construção dessa
família moderna, coincidindo com a ascensão da burguesia.

1.1. A Família Brasileira

Acerca da história da família brasileira o ponto de partida foi o modelo patriarcal,


importado pela colonização e adaptado às condições sociais do Brasil de então: latifundiário e
escravagista. (Saffioti, 1979; Xavier,1998). Para alguns autores, como Marilena Chauí (1989),
embora a desintegração do patriarcado rural tenha ocorrido de diferentes maneiras nas
33

diferentes regiões do Brasil, a mentalidade patriarcal permaneceu na vida e na política


brasileira, através do coronelismo, do clientelismo, e do protecionismo11. Para esses autores,
mesmo no meio urbano, as atitudes autoritárias sobre a condição feminina devem ser
entendidas em relação aos esquemas de dominação social característicos do patriarcado
tradicional brasileiro da época colonial. (D’Ávila Neto, 1994).
Segundo Bruschini (2000), nos primeiros séculos de colonização, tivemos como
modelo dominante de organização familiar, o tradicional, patriarcal, extenso e rural, que
resultou da adaptação das famílias trazidas pelos portugueses ao modelo sócio econômico em
vigor no país. Este estilo de família se impôs na colônia, através do controle sobre os
indígenas e, mais tarde, da importação de escravos negros. Nesta perspectiva, a posição da
mulher na família e na sociedade em geral, desde a colonização até os nossos dias, ficaria
demonstrado que a família patriarcal foi uma das matrizes de nossa organização social.
De acordo com alguns pesquisadores do campo da família, dentre eles Sarti (2003) e
Mioto (1997), esse processo de modernização aconteceu de forma não linear e por todo o país.
Estes autores entendem que modelos patriarcais e conjugais permanecem existindo até os dias
atuais, havendo a predominância de um ou de outro, dependendo da camada social a que a
família pertence.
No pensamento de Costa (1979) apud Cayres. (2008) o autor afirma que no Brasil as
manifestações de intimidade familiar foram escassas, ou pelo menos, despercebidas, até o
início do século XIX. Segundo o autor, a medicina teve um papel relevante no surgimento na
revitalização deste sentimento. Foram os médicos os responsáveis pelos estímulos da
intimidade familiar, com o propósito de promover hábitos higiênicos que, até então, eram
quase inexistes na família, bastante dispersa, aberta para o convívio da comunidade e sem
restrições à sua intimidade. Para esse mesmo autor, alguns fatores podem ter facilitado a falta

11
O termo Coronelismo surgiu em 1820,junto com a Guarda nacional. Foi termo criado para designar certos
hábitos políticos e sociais próprios do meio rural brasileiro, onde os proprietários rurais chamados de ‘coronéis
exerciam domínio absoluto sobre as pessoas ou delas dependiam para sobreviver. Tem raízes profundas com o
patriarcado. Também é utilizado na atualidade para designar a ação demagógica de alguns políticos. Recebe o
nome de Clientelismo a prática política de troca de favores na qual os eleitores são encarados como ‘clientes’. A
origem dessa relação possui raízes na sociedade rural tradicional, bem como nos laços entre latifundiários e
camponeses fundados na reciprocidade,fidelidade, lealdade e confiança. É uma relação que se traduz também em
conceder benefícios púbicos na forma de empregos,benefícios fiscais e isenções em troca de apoio político. Tem
relação bastante estreita com a prática do coronelismo.Protecionismo é uma teoria que prega um conjunto de
medidas a serem tomadas no sentido de favorecer as atividades econômicas internas,reduzindo e dificultando ao
máximoa importação de produtos e a concorrência estrangeira. Os principais exemplos de protecionismo
são:criação de altas taxas e normas técnicas de qualidade para produtos estrangeiros,reduzindo a lucratividade
dos mesmos. Subsídios à indústria nacional,fixação de quota litando os serviços e produtos estrangeiro no
mercado nacional.A fiscalização é feita pela OMC( Organização Mundial do Comércio),cuja função é
promovera liberação do comércio internacional. Vale ressaltar que a diminuição do comércio, consequência
natural do protecionismo,enfraquece as políticas de combate a fome e ao desenvolvimento dos países pobres.
34

do sentimento de intimidade. Dentre eles, a presença de muitos escravos no interior da


casa,inibindo o convívio familiar. Além disso, a família colonial era um sistema piramidal,ou
seja,o homem exercia funções polivalentes, tais como:pai,marido, chefe de empresa e
comandante do exército. Ele tomava a iniciativa em tudo, desestimulando assim os elos
afetivos. Jablonski(1991) acrescenta que a urbanização e modernização industrial exerceram
uma forte influencia no modelo de família nuclear.
Essas mudanças podem ser compreendidas como decorrentes de inúmeros aspectos.
Sarti (2007) revela que o primeiro aspecto foi a pílula anticoncepcional, difundida a partir da
década de 60,como aquela que separou a sexualidade da reprodução, interferindo de forma
decisiva na vida sexual das mulheres.Esse contexto fez com que as mulheres deixassem de ter
sua vida atrelada à reprodução.
Para Maria Luiza Heilborn (2004), as relações entre família e sexualidade vêm
passando por transformações e tais mudanças resultam, de um lado, do processo que tornou a
relação conjugal um domínio autônomo da família, onde a sexualidade era o centro, e, por
outro,do fato de que o exercício da atividade sexual deixou ser circunscrito à esfera do
casamento. O segundo momento de mudanças, na década de 80,se deve às novas tecnologias,
como a inseminação artificial, seja fertilização in vitro, que dissociaram a gravidez da relação
sexual entre homem e mulher. Tal situação provocou transformações na constituição do
modelo de família nuclear e, em sua dinâmica, fundamentada na ideia de família e parentesco
sanguíneo, via referência hegemônica no mundo ocidental judaico cristão. O terceiro aspecto
foi a saída da mulher do espaço privado para o espaço público, através do trabalho
remunerado, pois, numa primeira fase de constituição do modelo, ao homem destinava-se a
atividade de provedor do lar e à mulher cabia a função de cuidar dos filhos.
Essas novas configurações originam vários modelos de família. O estudioso Kaslow
(2010) apud Cayres (2008) nomeia pelo menos nove tipos de composição que podem ser
consideradas “famílias”, a saber:
a) Família Nuclear,incluindo duas gerações, com filhos biológicos.
b) Famílias Extensas, incluindo três gerações.
c) Famílias Adotivas temporárias.
d) Famílias Adotivas por estrangeiros.
e) Casais.
f) Famílias Monoparentais, sendo o pai ou mãe o chefe.
g) Casais homossexuais com ou sem crianças.
h) Famílias reconstituídas depois do divórcio.
35

i) Várias pessoas morando juntas,sem laços legais,mas com forte compromisso


mútuo.(CAYRES.2008.p.6)
A perspectiva de Melo (1995) aponta que em muitas literaturas especializadas
aparece o termo “desorganização familiar”, quando nos referimos aos problemas apresentados
por seus membros. Segundo a autora, o melhor termo para ilustrar a situação familiar atual é o
poliformismo familiar,ou seja,os modelos acima mencionados não são exemplos de que as
famílias estejam desorganizadas,mas “organizadas de maneira diferente, segundo as suas
necessidades que lhe são peculiares”(p.58).Esses novos modelos têm adquirido status de
legitimidade,evidenciando as transformações e as complexas construções históricas,socais,
morais e psicológicas pelas quais tem passado a sociedade e consequentemente, a família
contemporânea. É possível perceber esta legitimidade no âmbito jurídico, seja pela mudança
na legislação ou pelo tratamento legal dado em determinadas questões dentro dessas relações.
Muito se discute sobre a “crise” da família,consequência da baixa taxa de
fecundidade,do aumento da expectativa de vida e,consequentemente, do crescimento de
pessoas acima de 60 anos,mas, também, do declínio da instituição casamento,e da aceitação
social do divórcio.De fato, o que se observa, são novos modelos familiares derivados desses
fenômenos sociais e,sobretudo,das transformações nas relações de gênero, nestas últimas
décadas.
No entanto, Lira (1997) corroborando com o debate, aponta algumas modificações,
nas últimas décadas, no âmbito do direito da família. O autor nos mostra que do ponto de
vista legal família é “a instituição jurídica e social resultante das justas núpcias, contraídas por
duas pessoas de sexo diferente”. Esta definição abrange os cônjuges, mas para a sua
configuração não é essencial a existência da prole. (Lira, 1997, p.25). Na Constituição Federal
de 1988, o autor (Lira, 1997, p.27) lembra que, ao lado da família conjugal, consideram-se
entidades familiares a união estável entre um homem e uma mulher (Art.226 § 3º) e a
comunidade familiar formada por um dos pais e seus descendentes (Art.226.§4º).
Nas primeiras décadas do século XX as mulheres brasileiras não haviam conquistado
alguns dos direitos civis garantidos ao homem. Precisavam exigir direitos de cidadã e
aumentar sua participação na esfera pública. Em 1916 foi criado o Código Civil Brasileiro12,
patriarcal e paternalista, onde constava que a mulher só podia trabalhar fora com autorização
do marido. Em 1934, em meio ao governo provisório de Getúlio Vargas, uma nova
constituição assegurou o direito ao voto da mulher. O trabalho feminino foi regulamentado

12
O Código Civil de 1916 Disponível em
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70309/704509.pdf?sequence=2
36

pela Consolidação das leis do trabalho (CLT) em 1941. Durante a ditadura de Vargas os
movimentos feministas foram reprimidos, sendo retomados somente no início da Segunda
Guerra Mundial, em 1945. Nesse período os homens foram enviados para as batalhas e as
mulheres tiveram que trabalhar para sustentar as famílias. No pós-guerra surgiu o Estado de
Bem-Estar Social, que girava em torno do pleno emprego masculino e do cuidado com o lar
destinado às mulheres. Em 1962 com a criação do Estatuto Civil da Mulher Casada13 teve
início o processo de democratização da sociedade conjugal, eliminando algumas
discriminações contra a mulher e os filhos. Foi a partir desta alteração do Código Civil
Brasileiro que as mulheres casadas puderam trabalhar sem autorização dos maridos.
A Constituição Brasileira de 1988 é um marco jurídico da família contemporânea e o
Novo Código Civil Brasileiro de 2002 substituíram o Código de 1916. Foram consolidados
alguns direitos femininos existentes na sociedade, nos quais a família não seria mais regida
pelo pátrio poder, ou seja, pelo poder exclusivo do pai, mas pela igualdade de poder entre o
casal. Os pais passaram a ter o dever de criar e educar os filhos menores, frutos do casamento
ou não. Nesse contexto os filhos “legítimos”, “legitimados naturais”, “adulterinos” e
“incestuosos” agora não existem. O que existe são os filhos, todos equalizados (Lira, 1997,
p.31). Também não existe mais o poder dos pais sobre os filhos. Crianças e adolescentes
passam a ter assegurado o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.
Na Constituição de 1988, a criança e o adolescente estão a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão14. (Lira, 1997, p.31).
A constituição de 1988 desloca sua atenção para o casamento e para as relações
familiares dele decorrentes. Vejamos o que a Carta Magna nos diz a respeito da família e suas
garantias:
Art. 226, § 3º - reconhecimento e proteção às entidades familiares não fundadas no
casamento.
Art. 226, § 4º - reconhecimento e proteção às famílias monoparentais.
Art. 226 § 5º - igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Art. 226 § 6º - possibilidade de dissolução do casamento, independente de culpa.
Art. 226 § 7º - planejamento familiar voltado para os princípios da dignidade
humana e da paternidade responsável.
Art. 226 § 8º - a previsão de intervenção estatal no núcleo familiar,para proteger
integrantes e coibir a violência doméstica.

13
A Lei de 4.121 de agosto de 1962-disonível em www.dji.com.br/leis_ordinarias/1962-004121-emc/4121-
62.html

14
Art.227, caput da Constituição de 1988.
37

Art. 227- O Estado divide com a família a responsabilidade pela proteção à criança e
à garantia dos seus direitos.

Segundo (Cayres.2008),foi a partir dos anos 90 que a família brasileira apresentou


mudanças significativas em todos os segmentos da população, que foram desde a redução do
número de filhos, à concentração produtiva das mulheres jovens, o aumento da concepção
precoce, implicando em um número maior de adolescentes grávidas, aumento das uniões
consensuais, ou seja, a união legal (aumento de casamentos civis) em contraposição à união
religiosa, predomínio da família, aumento da família monoparental, com predominâncias,
principalmente no nordeste brasileiro, de mulheres chefes da casa, aumento das famílias
recompostas, fato advindo do aumento das separações e divórcios e do aumento do numero de
pessoas que moram sozinhas.(CAYRES.2008.P.7)
Nas análises de Tepedino (1997) o mesmo enfatiza que com a Constituição de 1988
a família teve seu prestígio do ponto de vista constitucional ampliado, ao passo que, anos
depois, a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, mudou a posição da criança e
do adolescente, de objeto de poder paterno, expressado muita vezes em castigos e abusos
sexuais os transforma em “protagonista do próprio processo educacional”. Além disso, “a lei
determina um controle ostensivo dos pais e educador e sem geral, reprimindo não só os atos
ilícitos, mas também o abuso de direitos”. (TEPEDINO. 1997, p.54).
Apesar das várias definições de família disponíveis na literatura especializada, para
este estudo optamos pela seguinte conceituação:

A família também é um grupo social composto por indivíduos diferenciados por


sexo e por idade que se relacionam cotidianamente, gerando uma complexa gama de
emoções; ela não é a soma de indivíduos, mas um conjunto vivo, contraditório e
cambiante, com sua própria personalidade e individualidade. A sexualidade, a
reprodução, a socialização são esferas potencialmente geradoras tanto de relações
prazerosas quanto conflitivas. A divisão interna de papéis pode ser a expressão de
importantes relações de dominação e submissão, na medida em que configura uma
distribuição de privilégios, direitos e deveres dentro do grupo. (BRUSCHINI, 1993,
p. 77)

O modelo apresentado como nuclear, abarca a composição heterogênea entre seus


membros e de forma hierarquizada que se materializa no processo de socialização, e na
definição de atributos sociais diferenciados entre mulheres e homens no interior do grupo
doméstico15. A casa, nesse sentido, é o lugar do privado, como espaço de ligação entre seus
membros. Da Matta (1997) enfatiza que a casa e a rua são categorias sociológicas para os

15
Neste caso o grupo doméstico está sendo empregado como sinônimo de grupo familiar.
38

brasileiros. Segundo o autor, não são somente espaços geográficos, mas são esferas dotadas
de positividade, domínios culturais institucionalizados, e por isso suscita emoções, reações e
leis. Então as relações familiares não representariam uma unidade interna totalmente
harmoniosa, mas uma dinâmica de emoções, que oscila entre a contradição e concordância de
valores, hábitos e comportamentos.
Bruschini (1993) destaca que algumas das funções básicas das famílias variam
conforme o contexto socioeconômico em determinado período da história, seja com a
socialização de seus membros, seja com a reprodução ideológica e econômica, constituindo
tal estrutura um espaço social distinto, em que se definem as diferenças e as relações de poder
entres estruturas hierarquizantes, de subordinação e dominação.
Na família estão presentes os componentes de raça, etnia, geração, gênero, como
enfatiza Morgado:

[...] as perspectivas em que se localizam a violência doméstica contra a criança e o


adolescente nas relações interpessoais confundem o lugar da expressão relações
interpessoais familiares-ocultando o lugar de sua origem-estrutura da sociedade por
relações de classe, gênero, etnia, em uma sociedade de caráter adultocêntrico.
(MORGADO, 2001, p. 32).

Uma consideração importante para o nosso estudo, está na obra O Processo


Civilizador (1994), de Norbert Elias, para ele, o processo de civilização introduz os
sentimentos de respeito e pudor ao corpo, não se permitindo a exposição “natural” das partes
íntimas, nem mesmo nas artes. E as crianças que aparecem como transgressoras de normas de
vergonhas internalizadas pelos adultos provocam uma difícil compreensão dos indivíduos
quanto à naturalização das regras sociais. A percepção de que a criança não pode se
comportar como adulto é algo da era moderna, denominado “século da criança”.

O sentimento que cerca de vergonha as relações sexuais tem aumentado muito no


processo de civilização. Isto se manifesta com especial clareza na dificuldade
experimentada por adultos nos estágios mais recentes da civilização, em falar com
crianças sobre essas relações. (ELIAS, 1994, p. 169).

Para o autor, ainda existe uma dificuldade de se falar de sexo na família e tudo isso
têm marcado a distância entre o natural e o cultural, baseadas nas regras que limitam as ações
humanas. Assim, os séculos XIX e XX marcam o momento em que a vida sexual foi
removida para o fundo da cena, e a exclusão prevalece mais ainda para as meninas. Há um
silêncio nos assuntos sobre sexo, uma restrição à fala, gestos e atitudes, construindo assim
uma parede de sigilos ao redor dos adolescentes. Entretanto, os problemas de adaptação e
39

modelação dos adolescentes aos padrões dos adultos só podem ser compreendidos em relação
à fase histórica e à estrutura da sociedade como um todo.
Compreendemos que a sexualidade transita pelo ambiente familiar de diferentes
formas, fazendo parte do cotidiano, presente na exaltação da genitália do filho varão recém-
nascido, nos toques corporais que expressam intimidade e carinho, nos cuidados com o corpo
físico infantil durante a higienização, nas preocupações quanto ao modo de sentar feminino,
nos olhares de transformações advindas pela puberdade. Há um movimento familiar nem
sempre consciente no qual a sexualidade está em cena. Essa dinâmica da sexualidade em geral
não se transforma em atos abusivos, pois estas relações são afetadas pelas representações de
crenças, experiências e práticas que as modificam, as quais também são reguladas pelos
costumes socioculturais de cada época.

1.2. A Criança e o Adolescente

A criança é o princípio sem fim, o fim da criança é o princípio do fim. Quando uma
sociedade deixa matar suas crianças é porque começou seu suicídio como
sociedade. Quando não as ama é porque deixou de se reconhecer como
humanidade. Herbert de Souza (Betinho).

Para definir as categorias de criança e adolescente no Brasil utilizamos como


parâmetro a literatura especializada. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
produzido na década de 90, crianças são pessoas até doze anos incompletos, e adolescentes,
pessoas entre doze e dezoito anos incompletos (BRASIL, 2008). O historiador francês
Phillippe Ariès (1981) observa que a importância pessoal da noção da idade se firmou quando
os reformadores religiosos civis a impuseram nos documentos, no século XVI, começando
pelas camadas mais instruídas da sociedade, ou seja, aquelas camadas que passavam pela
Escola.
O termo criança continua sendo influenciado no cotidiano, através das relações que
essas estabelecem com os demais. Entretanto, a descrição dicionarizada da criança é “um ser
humano de tenra idade, menino ou menina”. (Luft, 2005, p.247)
A etimologia da palavra infância, deriva do “infante”, do latim “infans”, que
significa incapaz de falar. Assim, percebemos que a criança ainda é vista pelos adultos, como
alguém sem fala, ou melhor, que não diz nada coerente, o que é verificado nas frases ditas
comumente: “não seja criança”, “essa sua atitude é muito infantil”, etc. Nessa perspectiva a
criança carrega o estigma da incapacidade de emitir opiniões que sejam válidas. Erving
Goffman diz que o “estigma é então, na realidade um tipo especial de relação entre atributo e
40

estereótipo.” (Goffman, 2008, p.13). Por outro lado, o conceito de adolescente define o sujeito
que está no começo da idade adulta, mas ainda não atingiu seu vigor.
Ariès (1981) comenta que antes da modernidade não existia a separação entre os
adultos e as crianças, esta última, inclusive, era um adulto em miniatura, não significando
aqui que não houvesse afeto, mas a falta da consciência das particularidades entre essas duas
fases da vida e que os conhecimentos e valores eram repassados a crianças não pelos pais,
mas pelos adultos durante o trabalho cotidiano. Esta situação era tão recorrente que, segundo
o autor, era frequente a solicitação de crianças para prestarem favores sexuais, e ou,
participarem de jogos sexuais. Portanto, somente quando houve a diferenciação da infância da
fase adulta é que a criança e o adolescente passaram a serem vistos de forma singular,
propiciada pela educação formal.
O reconhecimento da criança e do adolescente como pessoa humana e sujeitos de
direitos é recente. A perspectiva da “proteção integral”, anunciada na última década do século
XX e começo do século XXI confronta-se com a história da negação da humanidade da
criança, sua coisificação, sua dominação absoluta, bem como o rigoroso método disciplinar.

A história da infância é um pesadelo do qual recentemente começamos a despertar.


Quanto mais regressamos atrás na História, mais reduzido o nível de cuidado com as
crianças, maior a probabilidade de que houvessem sido assassinadas, aterrorizadas, e
abusadas sexualmente. (DeMAUSE, 1991, p.14).

A literatura médica, especialmente nas áreas da Pediatria, Radiologia, Medicina


Legal e Psiquiatria começaram a se interessar de forma mais crescente pela violência imposta
à criança por seus pais. As primeiras incursões de que se tem notícia surgiram em 1860 na
França, através do professor Ambroise Tardieu, que deu a conhecer à comunidade científica
os resultados de seu trabalho intitulado “Étude médico-legal sur les services et mauvais
traitements exercés sur des enfants”. Neste trabalho o pesquisador apresentou 32 casos,
com 18 mortes de crianças submetidas a crueldades, metade com idade inferior a cinco anos.
De certa forma, pode-se dizer que o eminente pesquisador foi o primeiro a estabelecer o
conceito de criança maltratada.
No Brasil, a infância foi marcada duramente pelos castigos. Segundo Viviane Guerra
(1998) há relatos de diversas companhias religiosas de que os índios não castigavam seus
filhos e que foram os jesuítas que introduziram essa prática contra crianças na Colônia. A
própria literatura brasileira registra esses atos violentos. Freire (1984), em Casa Grande &
Senzala, registra que “através da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedo, o
41

leva-pancadas, iniciou-se várias vezes o menino branco, no amor físico”. Era comum ainda o
homem branco “sifilizar” a menina negra. (FREIRE. 1984. p.400-401).
Em termos de estudos científicos no Brasil registra-se, em 1973,uma publicação
elaborada pelos professores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo,
relativa à descrição de um caso de espancamento de uma criança de aproximadamente um ano
e três meses de idade. De acordo com os autores deste estudo trata-se do “caso descrito
segundo a pesquisa feita pela Biblioteca Regional de Medicina (BIREME) como o primeiro
16
da literatura nacional”. Neste artigo os autores fazem uma revisão da bibliografia mais
relevante da época sobre o assunto, apontando as formas de se fazer um diagnóstico clínico.
Não há informações acerca dos fatos que envolveram o espancamento da criança, uma vez
que sua mãe a levou ao Pronto-Socorro e não mais retornou. Durante os duzentos e sete dias
de internação hospitalar, a criança não recebeu visitas de familiares e, por ocasião da alta, foi
entregue ao Juizado de Menores.

1.3. A Roda dos Expostos

As rodas dos expostos são originárias da Itália na Idade Média. Elas surgiram
particularmente com a aparição das confrarias de caridade, no século XII que se constituíram
num espírito de sociedade de socorros mútuos para a realização das Obras de Misericórdia.
Marcos Cézar de Freitas(2003) revela que o fenômeno de abandonar os filhos é tão antigo
quanto a histórica colonização brasileira. Só que antes os meninos abandonados,
supostamente deveriam ser assistidos pelas câmaras municipais. Havia de fato uma omissão e
pouca disposição para esse trabalho. De certo as crianças abandonadas em sua maioria não
foram assistidas por instituições especializadas, mas foram acolhidas por famílias substitutas.
Nos séculos XVIII e XIX, no Brasil o abandono de crianças e o infanticídio eram
práticas encontradas entre brancos, negros e índios. Os bebês eram deixados nas ruas, lixeiras
e calçadas, o que provocou a criação da Roda dos Expostos17 pela Santa Casa, lugar no qual,
aquela pessoa que levava a criança, não era reconhecida. No Período Republicano a Roda dos

16
COATES, Veronica; RIBEIRO, Theotônio; MIRANDA, Hercowtz; KAISERMAN, Isnard. Síndrome da
criança batida. Jornal de Pediatria.Rio de Janeiro, 1973, p.265-270.
17
Era um mecanismo usado para abandonar recém-nascidos que eram cuidados pela instituição de caridade. Sua
forma cilíndrica,dividida ao meio por uma divisória,era fixada numa parede ou janela, da instituição. No
tabuleiro inferior e em sua abertura externa o expositor colocava a criança enjeitada. A seguir, ele girava a roda e
a criança já estava do outro lado do muro. Puxava-se uma cordinha com uma sineta, para avisar a vigilante, ou
rodeira que um bebê acabava de ser abandonado e o expositor furtivamente se retirava do local, sem ser
identificado.
42

Expostos se transformou em asilo de “meninos desvalidos”, sendo a última extinta nos anos
1950 do século XX. Sobre a roda dos expostos:

[...] a roda dos expostos foi uma das instituições de mais longa vida no Brasil,
sobrevivendo a três longos regimes de nossa história. Cria sede na Colônia, perpassa
e se multiplica no Império, conseguindo manter-se na República e só foi extinta na
recente década de 50. Sendo o Brasil o último a abolir a chagada da escravidão, foi
igualmente o último a acabar com o triste sistema de rodas dos enjeitados.
(MARCÍLIO, 2009, p.53).

FIGURA 4. A roda dos Expostos


Fonte: www. intrometendo.com – Acesso em 13-06-2014

É importante significar o que destaca este filósofo francês quando diz que a infância
não nos abandona, e que nem pode ser considerada só a idade sem razão.

Por infância entende que nascemos antes de nascer para nós mesmos. E, portanto,
nascemos através dos outros e, mas também para os outros, entregues, sem defesa,
aos outros. Estamos sujeitos ao seu mancipium que eles próprios não podem avaliar.
Porque embora sejam mães, pais, eles mesmos são também infantes. Eles não estão
emancipados de sua infância, da ferida da infância ou do apelo que ela lança.
(LYOTARD, apud KHOEN, 2005, p.239).

No início do século XX o Brasil passava por um momento de relevantes mudanças,


sobretudo na década de 20 quando o país atravessava uma fase de crise econômica e política
na República Liberal, o que levou ao questionamento do Estado acerca das questões sociais.
A filantropia surgiu como modelo assistencial, fundamentado na ciência, para substituir o
modelo de caridade. Nesses termos, à filantropia atribuía-se a tarefa de organizar a assistência
dentro das novas exigências sociais, políticas, econômicas e morais, que nasceram com o
início do século XX no Brasil.
43

Todavia, somente nas primeiras décadas do século XX, foi que as ideias de infância
se transformaram em discurso normativo e promoveu-se a universalização dos direitos das
crianças. Nesse sentido, a infância foi inventada juridicamente. A partir de 1924, a Liga das
Nações proclamou a Declaração de Genebra18, reconhecendo a criança como um sujeito de
direitos, garantindo a elas um desenvolvimento saudável, com acesso à alimentação e à saúde.
Guerra (2004) cita a fala de Moro para ilustrar seu pensamento:

Não se trata de redescobrir a criança, assim como suas necessidades reais e não
fictícias: trata-se de reconhecê-la tanto como protagonista na mesma qualidade de
todos os outros atores que estão ao seu lado, da construção de uma vida coletiva
nova e diferente, dentro da qual o valor de que as crianças são portadoras estejam
também presentes, tenham também importância. Trata-se de dar um novo sentido à
relação adulto/criança, reconhecendo uma ação (e não somente uma reação) da
criança e estabelecendo benefícios significativos que só pode acontecer do
reencontro acontecido entre duas autoridades, mesmo que elas sejam diferentes,
mesmo que elas não estejam no mesmo plano. (MORO,1991 apud GUERRA, 2004,
p.7).

Após a proclamação da Declaração dos Direitos da Criança pela liga das Nações, o
Brasil criou, em 1927, o Primeiro Código de Menores19, no qual o governo consolidou todas
as leis existentes a respeito da proteção e assistência à infância. Essa lei foi produto de
inúmeras lutas de grupos organizados em defesa da proteção à criança e organizações estatais,
federais, ou municipais, para que crianças pobres fossem protegidas das doenças, e das
precárias condições de sobrevivência. Questões sobre a infância pobre se tornaram uma
preocupação pública, e na pessoa do juiz centrou-se todo o poder sobre os interesses dos
menores. A Doutrina de Proteção Irregular20 era um dispositivo público que assegurava a
proteção para as crianças abandonadas, vítimas de maus-tratos, miseráveis e infratores.

18
Em 1924 a Assembleia da Liga das Nações adotou a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança como
reconhecimento internacional dos direitos da criança.
19
Criado pelo Decreto 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, O Primeiro Código de Menores, também conhecido
como Código Mello Mattos, em homenagem a seu autor, o jurista José Cândido Albuquerque Mello Mattos,além
de autor foi o primeiro juiz de Menores do Brasil,exercendo sua atividade na cidade do Rio de Janeiro. Esse
Código tem como antecedente a lei Orçamentária (Lei 4.242 de 5 de Janeiro de 1921),que referia-se a
despesas.Mas adotou o critério cronológico,e a partir daí, os menores de 14 anos foram declarados penalmente
irresponsáveis e sujeitos a medidas reeducativas. Em 1926, o Congresso autorizou o Poder Executivo a reunir
todas as medidas relacionadas aos menores em um Código, o primeiro da América latina.O Código de Menores
veio alterar e substituir concepções como culpabilidade,penalidade,responsabilidade,pátrio poder,passando a dar
assistência ao menor de idade,sob a perspectiva educacional.Abandonou-se a postura anterior de reprimir e
punir, e passou a priorizar como questão básica o regenerar e o educar.Esse novo entendimento colocava as
questões relativas a criança e ao adolescente fora da perspectiva criminal, ou seja,fora do Código Penal.
20
A doutrina do Código Mello Mattos era manter a ordem social,ou seja as crianças com famílias não eram
objeto do Direito;já as crianças pobres, abandonadas ou delinquentes,ou seja, em situação irregular- passariam a
sê-lo.Nesse sentido,estariam em situação irregular aqueles menores de (18) anos que estivessem expostos,(
abandonado ou fossem delinquentes).
44

Em 1941, foi criado no Brasil o Serviço de Assistência ao Menor (SAM) que tinha a
perspectiva de corrigir e agregar alguns objetivos da natureza protecionista de menores
considerados carentes e delinquentes. Logo depois o SAM foi extinto devido a sua política
institucionalizada de repressão violenta contra crianças e adolescentes. Em 1964, em pleno
golpe militar, o governo brasileiro criou a Fundação Nacional de Bem Estar do Menor
(FUNABEM) e suas unidades executoras (FEBENS) descentralizando a execução da Política
Nacional do Bem Estar do Menor. Seu principal objetivo era formular e implantar a Política
Nacional de Bem Estar do Menor, o estudo do problema e o planejamento de soluções.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância, o UNICEF, lançou o ano de 1979 como
o Ano Internacional da Criança21, procurando dar visibilidade mundial a esse problema que
atinge o planeta. Os primeiros sinais de violência entre os pequenos foram registrados pela
medicina ao se debruçarem sobre o tempo da infância. Com um tempo singular da vida
humana, os primeiros médicos afirmaram as ideias de incompletude de crescimento, distinto
dos demais tempos da vida humana.
A aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente22, em 1990, em substituição do
Código de Menores foi decisiva para que a sociedade civil encontrasse embasamento jurídico
no enfrentamento da violência sexual. Embora haja esse aparato legal, os atos violentos
crescem em denúncias, principalmente pelas campanhas e proposições dos movimentos
sociais. A instituição do Dia Nacional de Combate a Violência Sexual, o 18 de maio23 é a
expressão das mobilizações que os atores sociais têm exigido do governo preparo para as
demandas apresentadas pelo conjunto da sociedade civil, bem como à necessária criação de
órgãos especializados que possam programar as diversas políticas e uma legislação adequada
e eficiente, uma vez que esse problema é multifacetado, e daí se exigir um tratamento
multidisciplinar.
Essa mudança é percebida na própria definição dos sujeitos da infância, e
consequentemente da adolescência, como fase sucessora, onde a necessidade vigente era a de
proteção como cidadãos em fase de desenvolvimento (Faleiros, 1998)e quando esses sujeitos
são relevantes na sociedade de consumo. Essas mudanças têm ressonâncias nos diferentes
modos de tratamento das questões da infância e adolescência. Diante desse contexto, essas
21
A proclamação oficial foi feita no dia 1° de janeiro de 1979, pelo secretário-geral das Nações Unidas Kurt
Waldheim.
22
Aprovado pela Lei n° 8.069/90 de 20 de julho de 1990.
23
Dia Nacional de Luta pelo Fim da Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescente. Instituído pela
Lei n°9.970\00, de autoria da então Deputada Rita Camata - ES. A data foi escolhida porque em 18 de maio de
1973, a menina Araceli Cabrera Crespo, com nove anos incompletos, foi sequestrada,drogada,estuprada e teve
seu rosto desfigurado com ácido,dentre outras barbáries,em Vitória,Espírito Santo. Esse crime até hoje não teve
seus envolvidos punidos.
45

práticas contra crianças e adolescentes são rejeitadas moralmente, e são consideradas como
problemas políticos, exigindo uma política pública de intervenção para os sujeitos envolvidos
em uma relação de violência sexual.
O quadro abaixo traz uma linha do tempo dos principais fatos que tiveram
relevância na vida das crianças e dos adolescentes no Brasil. embora seja resumido, estas
informações trazem consigo o olhar do governo, sociedade e os cuidados dispensados a este
público através dos tempos. Assim sendo, o que pode ser observado é a trajetória das crianças
e dos adolescentes de objetos para sujeitos de direitos. Mas, é importante ressaltar que embora
se tenha alguns ganhos, falta muito para que a efetivação dos direitos para maioria das
crianças e adolescentes brasileiros, posam usufruir de seus direitos fundamentais, tais como
educação, saúde, lazer, segurança, etc.

Quadro 1 - Percurso Histórico da Criança e do Adolescente no Brasil

PERÍODO FATOS DESCRIÇÃO

Nesta época o trabalho com


Brasil
crianças é desenvolvido
Colônia
Abandono de crianças pela Igreja Católica, como
missão evangelizadora.

A igreja era a única


Século responsável pela assistência
XVIII Roda dos Expostos a criança e adolescentes
abandonados por suas
famílias.
Nascimento das instituições de caridade, tanto Mulheres e homens de
Século pública quanto privada, foram criadas como classe média entendiam que
XX forma de combater o crescente problema da o governo precisava intervir
delinquência juvenil na sociedade e na vida
familiar, para proteção de
suas mães e filhos, com o
pretexto de assegurar
riqueza e o progresso do
país.
Criação do primeiro Código de Menores- o -Questões sobre a infância
governo consolidou todas as leis existentes a pobre se tornou uma
respeito da proteção e assistência à infância. preocupação pública
1927
Essa lei foi produto de inúmeras lutas, para -na pessoa do juiz da
que crianças pobres fossem protegidas das criança, centrou-se todo o
doenças, e das precárias condições de poder sobre os interesses
46

sobrevivência. dos menores.


Doutrina de Proteção
Irregular (abandonados,
vítimas de maus-tratos,
miseráveis e infratores).
Tinha a perspectiva de
Serviço de Assistência ao Menor (SAM)- corrigir e agregar alguns
objetivos da natureza
1941
protecionista de menores
considerados carentes e
delinquentes
Por sua política de
Extinção do SAM repressão violenta contra
crianças e adolescentes
institucionalizados
Criação da Funabem (Fundação Nacional de Seu principal objetivo era
Bem Estar do Menor) e suas unidades formular e implantar a
executoras FEBENS)descentralização da Política Nacional de Bem
1964
execução da Política Nacional do Bem Estar Estar do Menor, o estudo do
do Menor problema e planejamento de
soluções.
Trazia implícita a visão de
Criação do Novo Código de menores- esse que a família ou a criança
dividia as crianças e adolescentes em era responsável pelas
1979 marginais, marginalizados ou integrado. irregularidades. Aprovava,
de forma autoritária, o
internamento e o
abrigamento.
Promulgação da Carta Magna Brasileira- a Define que é de
Constituição Federal- que prescrevia criança responsabilidade da
1988 e adolescentes como detentores de direitos, Família, Sociedade e do
prioridade absoluta. Estado assegurar esses
direitos.
A lei 8.069-criou o Estatuto da Criança e do Essa Lei regulamenta os
Adolescente-representa uma ruptura com artigos 227 e 228 da
paradigma caracterizado pelo autoritarismo, Constituição Federal de
pela centralização e repressão, até então 1988, sobre a Doutrina de
1990 vigente quanto à assistência a esse público. Proteção Legal
Primeira Lei aprovada de acordo com a
Convenção Internacional dos Direitos das
Crianças.

Declaração de Estocolmo- define a A criança ou adolescente


Exploração Sexual Comercial de Crianças e são tratados como objeto
Adolescentes, como uma violação sexual e mercadoria, pode
fundamental dos direitos da criança, num ato implicar em trabalho
1996
cometido por adultos, combinada a forçado e formas
remuneração com a vítima, e ou, uma terceira contemporâneas de
, ou várias pessoas escravidão.
47

Criado para intensificar a


luta pelo fim da violência
2000 Criação do 18 de maio
sexual contra a Criança e o
Adolescente
Faz parte da Política
Nacional de enfrentamento
Plano Nacional de Enfrentamento da
2000 da violência e exploração
violência
sexual, envolvendo vários
atores sociais, e governo.
Substituiu o antigo disque
0800,para registar as
denúncias de violências
contra criança e
2003 Disque 100 Denúncia Nacional adolescente, e mais
ressentimento contra idosos.
É ligado a Secretaria
Nacional de Direitos
Humanos.

1.4. Os Marcos Jurídicos

É recente a preocupação com as crianças e adolescentes, como já dissemos


anteriormente, tanto na literatura quanto nos dispositivos legais, ou seja, leis, conferências e
tratados. No Brasil persiste ainda uma dificuldade para os operadores do direito quando a
violência em todas as suas modalidades, seja física, negligência, psicológica ou sexual entra
no circuito da justiça. Apresentamos a seguir alguns marcos jurídicos que asseguram os
direitos dessa parte da população brasileira24.
Constituição Federal Brasileira (1988) – Principal artigo da legislação sobre maus-
tratos e abuso sexual:

Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao


adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à Profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Parágrafo 49 – A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual
da criança e do adolescente.

24
Fonte: Cartilha - A Violência sexual contra meninas – Uma leitura feminista sobre a violência intrafamiliar,
as formas comerciais e de omissão de Estado. Coletivo Feminino Plural. Porto Alegre, 2005.
48

A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) – Protocolo Facultativo para


Convenção sobre os Direitos da Criança relativos à sua venda, prostituição e pornografia
infantis, reconhece a importância da aplicação das disposições do Programa de Ação para a
Prevenção da Venda de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantis e da Declaração e
Programas de Ação adotados no Congresso Mundial contra a Exploração Sexual e Comercial
de Crianças, realizado em Estocolmo de 27 a 31 de agosto de 1962, além de outras decisões e
recomendações pertinentes dos organismos internacionais competentes, tendo devidamente
em conta a importância das tradições e dos valores culturais de cada povo para a proteção e o
desenvolvimento harmonioso da criança. O texto aponta o seguinte:

Artigo 1º – Os Estados deverão proibir a venda de crianças, a prostituição infantil e


a pornografia infantil, conforme disposto no presente Protocolo.
Artigo 2º – Para os fins do presente Protocolo:
a) Venda de crianças significa qualquer ato ou transação pelo qual uma criança seja
transferida por qualquer pessoa ou grupo de pessoas para outra pessoa ou grupo
mediante remuneração ou qualquer outra retribuição;
b) Prostituição infantil significa a utilização de uma criança em atividades sexuais
mediante remuneração ou qualquer outra retribuição;
c) Pornografia infantil significa qualquer representação, por qualquer meio, de uma
criança no desempenho de atividades sexuais explícitas reais ou simuladas ou
qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins
predominantemente sexuais.

O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei Nº 8069 de 13/07/90) destaca


o seguinte:
Art. 5 – Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência,discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na
forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 13 – Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou
adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva
localidade, sem prejuízo de outras providências legais.
Art. 82 (resumido) – Proíbe a hospedagem de criação ou adolescente em hotel,
motel, pensão ou estabelecimento congênere, salvo se autorizado ou acompanhado
pelos pais ou responsáveis.
Arts. 83, 84, e 85 (resumidos) – Vedam viagens para fora da comarca onde reside,
acompanhada dos pais ou responsáveis, sem expressa autorização judicial; para o
exterior é necessário documento com firma reconhecida; e sem prévia e expressa
autorização judicial, não poderá sair do país em companhia de estrangeiro ou
domiciliado no exterior;
Art. 98 – As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre
que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III – em razão de sua conduta.
Art. 130 – Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos
pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida
cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.
Art. 233 – Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância
a tortura:
Pena – reclusão de um a cinco anos.
49

Parágrafo 1º – Se resultar lesão corporal grave: Pena – reclusão de dois a oito anos.
Parágrafo 2º – Se resultar lesão corporal gravíssima: Pena – reclusão de quatro a
doze anos.
Parágrafo 3º – Se resultar morte: Pena – reclusão de quinze a trinta anos.
Art. 240 e 241 – (resumidos) Vedam a exposição de crianças e adolescentes, em
qualquer meio de comunicação como: fotografia, teatro, TV, cinema, internet,
inclusive, produzir, vender, fornecer, divulgar, ou publicar imagens com pornografia
em cenas de sexo explícito vexatórias.
Art. 244 – A (resumido) – Submeter criança, pessoa até 12 anos de idade
incompletos e adolescentes, entre 12 anos e 18anos de idade à prostituição ou a
exploração sexual.
Art. 245 – Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de
atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à
autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou
confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena – multa de três a
vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.
Art. 262 – Enquanto não instalados os Conselhos Tutelares, as atribuições a eles
conferidas serão exercidas pela autoridade judiciária.

A Convenção de Viena (1993), em seu Parágrafo 9, expressa o seguinte:

Os direitos humanos da mulher e da menina são parte inalienável e indivisível dos


direitos humanos universais. A plena participação da mulher em condições de
igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural, em nível regional e
internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação baseadas no sexo
são objetivos prioritários da comunidade internacional.

A Convenção de Belém do Pará (1995) define o âmbito de aplicação da convenção


acima citada:
.
Artigo 1 – Para os efeitos desta Convenção entender-se-á por violência contra a
mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na
esfera privada.
Artigo 2 – Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física,
sexual e psicológica:a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em
qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou
não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e
abuso sexual;b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo,
entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres,
prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em
instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; etc. perpetrada
ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

O reconhecimento da criança e do adolescente como pessoa humana, como sujeito de


direitos é recente. A perspectiva da “proteção integral”, anunciada na última década do século
XX e começo do século XXI confronta-se com a história da negação da humanidade da
criança, sua coisificação, sua dominação absoluta, bem como o rigoroso método disciplinar.
50

Reafirmamos o que já foi destacado anteriormente, um grande passo na garantia de


proteção à infância e à adolescência foi dado em 1988, no texto da Constituição Federal
Brasileira, o qual coloca a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado, no sentido
de assegurar, com absoluta prioridade, colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, esses sujeitos em fase de
desenvolvimento.
As justificativas para a violência são variadas: desde a culpabilização da vítima à
desresponsabilização da sociedade. Esta situação é bem presente nos adágios populares: “em
briga de marido e mulher não se mete a colher”, “e de pequeno que se torce o pepino”,
“tapa de amor não dói”. São expressões que reforçam e sinalizam a aceitação na forma de
resolver conflitos ou de socializar as crianças. Nesse sentido, naturalizam-se papéis
subalternos construídos historicamente para as mulheres, as crianças e os adolescentes.
Vale lembrar que, as mobilizações por décadas, asseguraram juridicamente à infância
brasileira a condição de sujeitos de direitos, mas, também, desvelou a dificuldade de garantir
um ambiente familiar seguro e protetor para um desenvolvimento integral e integrado. O novo
paradigma de uma sociedade de direito rompe com padrões antigos, exige a construção de
uma cultura de proteção e respeito aos direitos humanos de crianças e adolescentes.
Nesse ambiente de debate e novos paradigmas, a criação dos Centros de Defesa,
surgem com objetivo de oferecer atendimento especializado a vítima de violência domestica,
as famílias, e agressores. Simultaneamente, devem-se desenvolver ações que visem a
responsabilização, para que quebre o ciclo da violência, e consequentemente, o ciclo do abuso
sexual.
Segundo o Guia Escolar (2004), a prevenção primária é a maneira mais econômica,
eficaz e abrangente para se evitar a violência contra crianças,. Através da prevenção primária
atua-se para modificar condutas e formar novas culturas, sensibilizando e mobilizando a
sociedade.
51

CAPITULO II

2.Violência Intrafamiliar e suas Expressões

O termo violência tem sua origem no latim ‘violentia’ ato de violentar,


constrangimento físico ou moral, ao qual pode se acrescentar a coação ou coerção psicológica,
segundo Narvaz(20005).o termo ainda pode ser usado como sinônimo de ‘abuso’, como
aponta Corsi,1997;Foucault.1995;Odalia1993) na medida em que expressa uma relação
desigual de forças e de poder, ou seja, manifesta um estado de dominação e de expropriação,
individual ou grupal.
A violência é um fenômeno complexo, para DIAS (1996), a mesma assume
múltiplas expressões, e que é perpassado por determinações macro estruturais sugerindo
abordagens socioeconômicas que entrelaçam e compõem uma rede de diferentes significados,
permitindo várias traduções em vários tempos e lugares. O conceito de violência é a base
sobre a qual se fundamenta as violências contra crianças e adolescentes, tais como incesto, e
exploração sexual (Libório & Castro.2010),nesse sentido Marlena Chauí citada pelas autoras:

A violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e ou psíquico contra


alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão ,pelo
medo, e o terror. A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e
sensíveis,dotados de linguagem e de liberdade,como se fossem coisas, isto e,
irracionais, insensíveis e inertes ou passivos (CHAUÍ 1999 apud LIBÓRIO &
CASTRO,2010, p.20)

Nesta perspectiva, a violência é explicada através da transformação dos sujeitos


desejantes em objetos, sem levar em conta sua sensibilidade e racionalidade, em uma relação
de poder assimétrica que sustenta às diversas de manifestações de violência, nas quais
crianças e adolescentes são vítimas. Para a filósofa Marilena Chauí (1999) todo ato de
violência se contrapõe a ética por:
1-ser aquilo que age utilizando-se da força ou poder para contrapor-se à natureza do
desejo do outro (desnaturar)
2-envolve atos de força contra a liberdade e a vontade de alguém, utilizando-se de
coação, constrangimentos e torturas.
3-por violar a natureza de alguém ou de coisas valorizadas na sociedade
52

4-por constituir-se enquanto um ato de transgressão de algo em alguém ou uma


sociedade estabelece como justo e como um direito (CHAUÍ 1999 apud LIBÓRIO &
CASTRO 2010. p.21).
A violência contra criança e adolescente, não se constitui como um fenômeno
recente, mas continua ainda, particularmente no Brasil, “pouco conhecida” do público em
geral. E, apenas muito recentemente, se tornou objeto de investigação mais sistemática,
principalmente ao no final da década de 80 . Assim, manter a violência que ocorre no espaço
doméstico, restrita ao privado e à responsabilidade da família, significa a manutenção da
ordem desigual e a negação dos conflitos. Fica evidente que a família não é espaço só de
afetividade, mas de conflitos e, para muitos, de perigo.
A noção de violência tem sido discutida nas várias linhas teóricas no mundo
acadêmico, e é nesse contexto que inserimos a nossa reflexão, observando que a categoria de
violência está intimamente ligada à noção de poder. Ao analisar as relações de poder que se
estabelecem no âmbito social, Heleieth Saffioti (1992), sugere um caminho para desvendar as
condições que demarcam a inserção de crianças e adolescentes nessas relações, ou seja, as
atuais estruturas que determinam as relações de gênero, classe e etnia em nossa sociedade que
tem se utilizado do poder para o exercício da dominação e da exploração.
Quando refletimos sobe a desigualdade das relações entre adultos, crianças e
adolescentes, percebemos a família como lugar onde essas diferenças ficam evidentes. Como
pondera Faleiros (1995).

O poder é tomado como estratégia e como tática, isto é, como articulação de forças e
formas diversas de exercício de dominação, como assinala Foucault, implicando
enfrentamentos, resistências, oposições o poder não se define por um lugar ou uma
função, mas pelo confronto desigual de forças (FALEIROS. 1995. p.478)

Consideramos a violência como um fenômeno cultural e histórico, e para tanto, não


pode ser definida, em função dos aparatos legais, considerando a imposição da vontade de
alguns em detrimento de outros. O sociólogo Michaud (1989) observa que “É preciso estar
pronto para admitir que não há discurso e nem saber universal sobre violência: cada
sociedade está as voltas com suas próprias violências, segundo seus próprios critérios e trata
seus próprios problemas com maior ou menor êxito” (MICHAUD.1989.p.14)
Estima-se que três em cada dez crianças de zero a dez anos sofrem diariamente
algum tipo de maus-tratos dentro da própria casa, tendo como agressor pai, mãe, padrasto ou
53

parentes. (SILVA, 2002, p.73).O Serviço do Disque 100 do Governo Federal25 recebeu
195.932 denúncias de violência contra crianças e adolescentes entre 2003 a 2011.As
violências psicológicas e físicas aparecem nos dados de 2010 como principais formas
denunciadas, contabilizando 36% dos casos, seguidas da violência sexual, com 34%, e da
negligência, com 30% dos registros. Com exceção da violência sexual os outros tipos atingem
ambos os sexos de forma quase igualitária.
Esse tipo de violação não é característico da pobreza e pode ocorrer
independentemente do credo religioso, etnia ou classe social. Todavia, nas famílias em que a
situação econômica é menos favorável as ocorrências numéricas têm mais visibilidade. Tanto
as crianças como os adolescentes que frequentam centros públicos não têm “muros altos”
garantindo sua privacidade e servindo como proteção da não denúncia por parte dos vizinhos
e outros que mantenham contato com a vítima.
A violência segue um curso e autores como Faleiros (2005) e Minayo (2002) tecem a
construção de uma divisão em quatro modalidades conforme indica figura abaixo:

CAMINHO DA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

FIGURA 5: Fluxograma - Caminho da violência contra crianças e adolescentes

25
O Disque Denúncia Nacional foi criado inicialmente pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção
à Infância e Adolescência (Abrapia), com objetivo de acolher as denúncias de qualquer uma das modalidades de
violência contra a criança e o adolescente,crimes de tráfico de pessoas e desaparecimento de crianças. (Paixão e
Deslandes, 2010, p.3). Em 2003 este serviço passou a ser coordenado pela Secretaria Especial dos Direitos
Secretaria de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República,sendo denominado a partir de 2006,
Disque100.Mais recentemente o disque 100 passou a receber também as denúncias de violência contra os idosos.
54

a) VIOLÊNCIA DA NEGLIGÊNCIA- é uma forma de violência caracterizada por


ato ou omissão do responsável pela criança ou adolescente em prover as necessidades para
seu desenvolvimento sadio. Pode significar omissão em termos de cuidados básicos como
alimentação, cuidados médicos, vacinas, roupas inadequadas, higiene,educação e/ ou falta de
apoio psicológico e emocional.
b) VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA- é um conjunto de atitudes, palavras e ações para
envergonhar, censurar e pressionar a criança de modo permanente. Ela ocorre quando há
xingamentos, rejeição, isolamento e utilização da criança e do adolescente para atender a
vontade do adulto. É de difícil identificação devido a não deixar marcas visíveis.
c) VIOLÊNCIA FÍSICA- é o uso da força física de forma intencional e não acidental
por um agente agressor e adulto, ou mais velho do que a criança ou o adolescente.
Normalmente esses agentes são os pais ou responsáveis. A violência física pode deixar
marcas evidentes e em alguns casos pode causar a morte.
d) VIOLÊNCIA SEXUAL- consiste não só numa submissão sexual do outro, mas
também uma violação aos direitos humanos da criança e do adolescente. É praticada sem o
consentimento da pessoa vitimada. Quando cometida contra crianças, constitui crime grave.
Pode ser classificada como intrafamiliar, extrafamiliar e Exploração Sexual Comercial.
(BRASIL, 2004, p.35-36).
As formas acima citadas de violência intrafamiliar designam um agressor em relação
a outros sujeitos que tem menos poderes. Entre adultos e crianças há uma hierarquia, na qual
o poder do adulto expressa-se na socialização da criança, cuja função social é a de transformá-
la em adulto, à sua imagem e semelhança. Dessa forma, valores, crenças religiosas e culturais
são repassadas às crianças, que interiorizam as normas preestabelecidas pela sociedade.
Assim, as relações sociais e familiares são mediatizadas pelo uso do poder e este é exercido
por quem representa força e autoridade dentro da relação.

2.1. Violência Sexual

A violência sexual contra a criança e adolescente acontece em escala mundial, para


Azevedo (1993) reflete de um lado as concepções que a sociedade construiu acerca da
sexualidade humana, de outro, a posição da criança e do adolescente nessas mesmas
sociedades e, finalmente o papel da família na estrutura da sociedade ao longo do tempo e do
espaço. Nesse contexto é uma violência que traz em si a dominação de um gênero sobro o
outro, dizendo de outro modo, a dominação do homem sobre a mulher, criança, adolescente.
55

De certo modo os crimes sexuais contra crianças e adolescentes são cercados por
preconceitos, silêncios. Veronese (2006),cita dois aspectos balizadores da violência sexual:
Contexto Sócio-econômico-considera que a situação de pobreza e miséria em que
vive a população brasileira; a disparidade geográfica existente no país, a degradação rural
ocasionada pelo êxodo rural; e a desestruturação familiar.
Contexto Cultural-alicerçado no tripé gênero, etnia e raça, a violência sexual é
sustentada pela violência de gênero, que se expressa através de qualquer ato ou danos físicos
ou emocionais causados pelo abuso de poder de uma pessoa sobre outra baseado na
desigualdade de gêneros, e os homens brancos, adultos e ricos pela hierarquização do poder
de dominação ,abusam e exploram sexualmente mulheres, crianças e adolescentes, pobres e
negras.(VERONESE.2006.p.14).
Corroborando com a discussão, Renato Roseno (2008), enfatiza que

A violência sexual é uma das formas de violação de direito que melhor revelam a
interseccionalidade de gênero, raça, etnia, classe social e geração presente nas
relações humanas. É uma violência que atinge, no Brasil, majoritariamente, mas não
exclusivamente, meninas, mulheres negras e pobres, evidenciando os traços
estruturantes de uma sociedade classista, sexista, racista e adultocêntrica.
(ROSENO, 2008. p.31)

Para o autor, isso revela o déficit de cultura de cidadania, de políticas de promoção


de direitos, e, ainda, um padrão de sexualidade autoritário, conservador e insolidário entre o
mundo adulto e o mundo infanto-adolescente, resultando e fortalecendo o mal-estar e a
dominação presente nas relações humanas na sociedade.
Assim sendo, as transformações ocorridos nos processos de estruturação da
sociedade contemporânea, que chamamos de globalização traz uma lógica que se opera tanto
nas novas formas de inclusão no mercado de trabalho, como no modelo familiar,
determinando assim, novas relações muitas vezes difíceis de serem enfrentadas dentro da
família, especialmente na vida das crianças e adolescentes tais como: conviver com as novas
dinâmicas familiares e conflitos na família, uso de álcool e drogas, experiências sexuais
precoces, violência e exploração sexual, vulnerabilizando de modo desconcertante esse
segmento.
Na globalização da economia, e consequentemente da cultura de consumo estão
desaparecendo os limites culturalmente estabelecidos de relações interpessoais, substituindo
pelos sentimentos de ter direito ao “prazer” a qualquer custo. O cidadão é aquele que
consome. Portanto o binômio “sexo e juventude” tem um potencial apelo econômico. O
56

mercado convence que o ‘prazer sexual’ só se realiza com sua ajuda. O ‘sexo’ é separado do
‘amor’, desapropriado pelo mercado para se tornar um “produto de prazer”. Cresce de fora
mundial e milionária o mercado do sexo, que se deixa conhecer através de duas vertentes
como assinala Marcel Hazeu (2004), a erotização e infantilização de produtos e serviços; a
comercialização de produtos sexuais envolvendo jovens e mulheres. Segundo o autor a
primeira vertente utiliza-se da receita de sexo e juventude para vender produtos e serviços ou
ideias (cervejas, carros, passeios turísticos, etc) e, como consequências estimula o interesse
sexual de adultos por crianças e adolescentes, provocando um interesse sexual prematuro no
público infanto-juvenil. Já a segunda vertente é altamente diversificada, incluindo atividades
como, exploração sexual comercial, shows eróticos, pornografia, tele-sexo etc. Geralmente
reforçando as desigualdades socais, dentre elas a de gênero, uma vez que coloca a figura
feminina mais explorada e erotizada, recaindo sobre si uma interiorização sexual frente à
figura do ‘possuidor’
A sexualidade continua sendo um assunto delicado, enquanto que o sexo se impõe
como o grande mito da sociedade moderna. Fica difícil, se não impossível atravessar um dia,
sem ver, ouvir ou fazer sexo, tamanha é a oferta mantida pela indústria o entretenimento e sua
patrocinadora, a publicidade. O discurso do desejo é onipresente, uma família sabe da sua
impossibilidade de reunir sua família em gente da tv em corpos ardentes desfilem um
imaginário repleto de sensualidade e apelo libidinoso. Paradoxalmente, essa grande
quantidade de informações não garantem efeito qualitativo que justifique a superexposição,
inclusive virtual a que estão submetidos, adultos, crianças, adolescentes, jovens. Pelo
contrário tem trazido consequências desastrosas para a sociedade como um todo.

2..1.1 Deslocamentos Históricos da “Violência Sexual” .

A violência não deve ser pensada apenas como perigosa e ruim por seus dados
estatísticos, mas como uma categoria analítica que está articulada a sistemas de classificação
históricos. (LOWENKRON. 2008) Nesse sentido, (Douglas 1998 apud Lowenkron 2008.p.9)
“os rótulos estabilizam o fluxo da vida social, e criam, até certo ponto, as realidades a que eles
se aplicam”. Então ao constatar um número de denúncias de “violência sexual”,
especialmente contra crianças e adolescentes, na última década do século XX, Vigarello
(1988) considera que não houve somente um aumento repentino de atos violentos, mas uma
mudança nos padrões de sensibilidade, em nossos valores culturais.
57

Laura Lowenkron (2008) elabora:


que o emaranhado de discursos que constitui a violência sexual não é regido
exclusivamente pelo saber judicial, embora este ocupe um lugar central no processo
de produção e regulação desse problema. Outros saberes como a psiquiatria, a
psicologia, as instituições sociais e os meios de comunicação de massa
desempenham um papel de produção e reprodução e divulgação de manifestações de
violência em práticas sexuais e das configurações historicamente mais recentes.
(LOWENKRON,2008.p.9-10).

Esses deslocamentos ocorridos, em face do que vem sendo designado como


violência sexual, fez aparecer uma nova ideia de violência que se situa entre o crime e o que
se designa como perversão sexual, como é atribuído, no caso da pedofilia.
Na análise dos processos de estupro no Antigo Regime, na França do século XVI ao
XVIII, Georges Vigarello (1988) apud Lowenkron (2008), observa que somente se
considerava como prova para condenação do crime os atos visíveis ou ouvidos: se fosse
ouvido um pedido de socorro ou se percebido por testemunhas, ou seja, se houvesse indício
de que a vítima não parou de resistir. “O não consentimento da mulher e as formas manifestas
da sua vontade só existem em seus vestígios materiais e em seus indícios corporais”.
(VIGARELLO, 1988, p.8). Assim, o juiz não se baseava nas coações ou fraquezas das vítimas
e, o olhar sobre crimes sexuais era focalizado sob o foco da luxúria ou impudor e não na
violência. A palavra “estuprador” nem existia e a categoria de crime mais estigmatizada era a
lesão física, assim como o maior perigo na hierarquia dos criminosos até o século XIX era o
assassino, o criminoso de sangue, e menos o homem das perversões.
Vigarello. (1988). A mudança revisional do Código Francês, em 1832, definiu a
ofensa sexual cuja coação não se recorre à brutalidade ou à força física direta como uma
modalidade de violência. Nesse sentido, criou-se a diferença entre violência física e violência
moral. Foi inserido no novo código um título que pudesse agrupar os atos de ofensa e de
violência sexual sob o nome de “os atentados contra os costumes”, uma versão moderna do
antigo crime de luxúria. O que se observa nesse título é que a gravidade agora não estava no
pecado, mas na ameaça à segurança e à ordem social.
Para o autor, a primeira brutalidade invisível no novo Código Francês pós-revolução
foi o estabelecimento do critério da idade – 11 anos - para a presunção da violência nos casos
de atentado ao pudor. Em 1863 uma lei elevou esse limite para 13 anos e também para
atentados contra menores acima dessa idade, mas não emancipados pelo casamento, quando
essa agressão era cometida por alguém que ocupava, em relação ao de menor idade, uma
posição de autoridade. Vigarello enfatiza que:
58

Se for possível supor uma vontade inteligente e livre numa criança com mais de 13
anos, essa vontade não é certa se a solicitação lhe chega de um dos seus ascendentes,
isto é, de alguém que exerce sobre ela uma autoridade natural. (VIGARELLO, 1988,
p.138).

A nova jurisprudência francesa em vigor a partir de 1850, reconheceu e denominou


pela primeira vez de modo bem explicito a existência de uma violência moral fora dos casos
de crianças, configurando como um crime o fato de que uma pessoa abuse de outra contra a
sua vontade, tanto no caso em que a falta de consentimento resulte numa violência física ou
moral. Nesse sentido, há um novo pensamento sobre o estupro, ou seja, toda vez que o livre
arbítrio de uma pessoa seja abolido, há o estupro.
Lowenkron (2008) ressalta que as semelhanças entre o Brasil e a França são visíveis.
Onde a primeira modalidade de ofensa sexual invisível pode ser caracterizada pela presunção
da violência por menoridade. A primeira legislação a prevê a presunção da violência foi o
Código de 1890, no artigo 272 em que a violência era ficta, 26 quando o ato sexual era
perpetrado com menor de dezesseis anos. (PRADO, 2006, p.244). Portanto, qualquer relação
sexual com pessoas consideradas menores de idade, prevista na lei, esta era considerada
estupro (se o ato fosse cópula heterossexual vaginal e a vítima fosse do sexo feminino) ou
atentado violento ao pudor (se fosse outra forma de ato libidinoso, diverso da conjunção
carnal, seja a vítima do sexo feminino ou masculino). Em 1940 o novo Código manteve o
critério da presunção, diminuindo a idade para 14 anos, além de acrescentar que a vítima
poderia ser débil mental, ou não poder, de forma alguma, oferecer resistência.
A razão da tutela do menor de 14 anos, pelo que se depreende da própria Exposição
de Motivos do Código Penal, reside na innocentia consili do sujeito passivo, ou seja, à sua
completa incidência em relação aos atos sexuais de modo que não pode dar valor algum ao
consentimento. (PRADO, 2006, p.244).
A mudança no paradigma de um olhar centrado na materialidade da ofensa para uma
visão jurídica que passa a priorizar os elementos invisíveis e morais do delito é percebida
quando olhamos a legislação brasileira. É importante acrescer que mesmo com algumas
alterações, muitos significados, como o caso da virgindade como sinal de pureza e inocência,
podem ser utilizados pelos operadores do direito para uma caracterização de “corrupção
moral”, por exemplo.
Para Lowenkron (2008) O processo de constituição da categoria “violência sexual”,
diferenciada da “violência física” é pertinente para o entendimento do deslocamento do crime
26
É designada a violência presumida, ou seja, quando ocorrida com menores(16 anos), independente da
vontade da pessoa, o adulto é culpado.
59

de honra ao atentado contra a liberdade da pessoa. A lei criminal que foi consolidada no
século XIX era destinada a regular as práticas sexuais no interior de uma sociedade
estruturada em relações de gênero extremamente desiguais, fundadas sobre a legitimação da
autoridade do homem sobre as mulheres e as crianças no interior da família. No Código de
1890 as “ofensas sexuais” foram organizadas sob o título de crimes contra a segurança da
honra e a honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor.
Segundo Laura Lowenkron (2008),

De acordo com o discurso patriarcal, a ofensa sexual que atingisse a mulher


fatalmente atingiria o homem, pai ou marido. Se a mulher fosse casada, no caso de
adultério, o prejuízo era para ao marido e as famílias eram o principal foco. Em se
tratando de moça virgem o crime era de defloramento, ou seja, o que determinava a
gravidade era o roubo da castidade, que era visto como fundamental para a união e
preservação da honra das famílias. (LOWENKRON, 2008, P.15)

Nesse sentido, autora considera que se a ofensa sexual atingia a moral pública e não
a subjetividade da pessoa ofendida, o status social da vítima podia aumentar ou diminuir a
gravidade do crime praticado de acordo com a vergonha ou prejuízo social produzido. O
estupro contra uma mulher pública, ou prostituta, era menos grave do que se a mulher fosse
considerada “honesta”.
Prado (2006), elenca as mudanças no campo do Direito, como por exemplo, as do
Código Penal Brasileiro de 1940, onde os delitos sexuais foram agrupados sob o título dos
“crimes contra os costumes”, no capítulo dos “crimes contra a liberdade sexual”. O bem
jurídico protegido não é mais a “honra das famílias”, mas a “liberdade sexual”, definida como
“a capacidade dos sujeitos de dispor livremente do seu corpo à prática sexual”, ou seja, a
faculdade de se comportar no plano sexual segundo seus desejos. (PRADO, 2006, p.194).
Aqui o consentimento aparece como algo mais importante do que o status da vítima. Nesse
sentido, o estupro passou a ser uma ameaça ao corpo íntimo e privado, e não mais um roubo
ou ultraje. É interessante notar que mesmo com o novo modelo pautado na liberdade
individual, a vergonha continuou presente e as denúncias não aumentaram repentinamente
com a mudança do novo código (VIGARELLO, 1998).
Na década de 70 o embate contra o estupro tomou um novo sentido: o da libertação.
(VIGARELLO,1998, p.210). O Movimento Feminista foi um dos primeiros movimentos
sociais a refletir sobre o campo jurídico como estratégia política para a promoção de mudança
na desigualdade de gêneros. Segundo Vieira, as entidades feministas a partir do final da
década de 1980 iniciaram uma luta para a inclusão dos crimes sexuais no capitulo dos crimes
60

contra a pessoa, demarcando, assim, um espaço discursivo em defesa dos direitos individuais
das mulheres. (VIEIRA, 2007, p.33).
Corroborando com a discussão, Lowenkron (2008) ressalta que a passagem para uma
linguagem dos sujeitos de direitos é acompanhada por outro deslocamento da compreensão
histórica da categoria “violência sexual”, que é do enfoque de gênero para o de geração.
Assim sendo Landini compreende que “se antes a violência era entendida como um problema
relacionado à desigualdade entre homens e mulheres, no final do século XX ela passou a ser
vista muito mais como uma questão relacionada à desigualdade de poder entre crianças e
adultos”. (LANDINI, 2006, p.251). A percepção desta mudança é importante porque a
violência contra a criança cruza com outras vulnerabilidades que permitem compreender
porque as meninas, figuras que combinam elementos de gênero feminino e idade infantil, e
que figuram como as vítimas privilegiadas do abuso e da exploração sexual.
Somente a partir do século XX, é que as crianças e adolescentes tiveram seu lugar
sacralizado nos aparatos legais. Assim elas passaram a ocupar nas agendas políticas um lugar
de destaque nas lutas por direitos. Antes, os casos de estupro de crianças e adolescentes não
tinham julgamentos específicos. Quando a ofensa era denunciada constava apenas como
violência sexual contra menina impúbere. Com a transformação da criança e do adolescente
como sujeitos de direitos, atos de violência contra elas ganham força no sentido de
transformar o crime em principal modelo de atrocidade. Neste sentido,

O resultado do crime não é mais a imoralidade, mas a morte psíquica. A questão não
é mais a depravação, mas a quebra da identidade irremediável ferida à qual aquela
criança ou adolescente em situação de vítima parece condenada, o que concede um
lugar inteiramente novo ao estupro contra crianças. (VIGARELLO, 1998, p.248).

Percebemos que manifestações empíricas e os efeitos da violência sexual se


deslocaram, historicamente, da honra das famílias para o foco do desenvolvimento psíquico
da criança, no qual, a experiência de “abuso sexual” é percebida como prejuízo à sua saúde
física e mental. Nesse sentido, um novo discurso é articulado à prática jurídica, que é o auxilio
do saber psicológico enquanto instância privilegiada para a compreensão e a gestão desse tipo
de violência.
A primeira reflexão psicológica sobre o estupro, segundo Vigarello (1998),aparece
no fim do século XIX, a partir da surpresa e do interesse público provocado pelos processos
contra clérigos e professores. Como explicar a violência desses homens cultos? Passa a haver
então o reconhecimento de um desejo particular direcionado às crianças. Embora a palavra
61

pedofilia não apareça em 1880 às causas desses atos estão ligadas ao alcoolismo, ao
descontrole sexual ou à loucura. Apenas em 1925, é que a psiquiatria do século XX adotou o
termo pedófilo, mas esse termo só se popularizou na última década do século XX. Segundo
Landini (2006) esse termo é utilizado principalmente para retratar casos associados à rede de
pornografia infantil na internet e para justificar,por meio da doença, crimes de famosos ou
pessoas cultas que, de outro modo não poderiam ser pensadas como criminosos. O temor
durante muito tempo focalizado no inimigo público se desloca para o homem comum, o
vizinho de quem se deve desconfiar. (VIGARELLO, 1998, p.239).
Para Lowenkron (2008), o pedófilo é difícil de ser identificado porque se parece
conosco de modo inquietante, e por isso mesmo, se torna uma ameaça permanente, sem
levantar suspeitas. Nota-se que a palavra pedofilia não é uma categoria jurídica27, mas uma
categoria clínica. Como diz Vigarello (1998), a opinião pública, diferente da médica, borra
com facilidade as fronteiras entre pedófilos, pais incestuosos e abusadores sexuais28 de
menores em geral. Ou seja, o estuprador é, no máximo, um reincidente e é definido pelos seus
atos, enquanto o pedófilo é definido pela orientação de seus desejos. Landini (2004) destaca
também que, ao relatar casos de pornografia, dificilmente os meios de comunicação fazem
distinções entre pornografia de crianças e adolescentes, englobando as duas numa só
categoria: a pedofilia29.
Para a referida autora enquanto categoria analítica clínica, a pedofilia é definida
pelos desejos e fantasias que podem ou não se atualizar nas formas de crimes sexuais, mas
como categoria social de acusação ela pode ser acionada nas diversas modalidades de práticas
sexuais envolvendo menores, de modo que não só o ato é condenado, mas a pessoa total do
agressor. Embora nas diversas literaturas disponíveis sobre esse assunto as questões
conceituais ainda se constituam desafios para os estudiosos perceberam que o conceito de
violência sexual está longe de ser preciso. No entanto, é possível considera-lo como:

27
O diagnóstico da pedofilia pode ser associado ao crime de estupro (art.213\CP),ou atentado violento ao
pudor(art.214\CP) de menores(Art.244\CP), corrupção de menores (art.218CP),prostituição(art.244\ECA) e
pornografia infanto-juvenil (Art. 240 e 241\ECA).
28
Destaca-se que a expressão abuso sexual pode ser usada dependendo do contexto para classificar relações
sexuais não coercitivas. A ideia de abuso, portanto,não precisa estar associada necessariamente, à noção de
ausência de consentimento,nem tampouco de dano psicológico,desde que se reconheça a natureza assimétrica da
relação.
29
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV (DSM), a pedofilia é caracterizada
pelo foco de interesse sexual em crianças pre-púberes (geralmente, de 13 anos ou menos)por parte de um
individuo de 16 anos ou mais que sejam ao menos cinco anos mais velho do que a criança,ao longo do período
de seis meses.
62

Todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual entre um ou mais


adultos e ou criança menos de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a
criança ou adolescente ou estimulá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua
pessoa ou de outra pessoa. (AZEVEDO& GUERRA, 2007, p. 42).

Historicamente, o termo abuso sexual foi construído e podemos perceber essa


mudança a partir do cruzamento das pesquisas nas diversas áreas do conhecimento. Conhecer
a trajetória conceitual é importante para a compreensão desse problema que está presente em
todas as camadas da sociedade.

2.2. A emergência do termo ‘abuso sexual’

O discurso sobre a violência sexual contra a criança e o adolescente assume, na


atualidade, duas formas principais de expressão: uma delas refere-se ao abuso sexual e
exploração sexual comercial. Abuso é o termo mais difundido para retratar a violência sexual
intrafamiliar, também encontrada em algumas literaturas como abuso sexual incestuoso ou
violência sexual doméstica. A categoria ‘abuso sexual infantil’ parece ter origem no discurso
da psiquiatria e da psicologia. O termo aparece nos textos de Sigmund Freud, escritos no final
do século XIX. No entanto, a dimensão sexual do ‘abuso ’tardou um pouco nos debates
públicos e políticos, sendo, inicialmente, enfatizada a questão da violência e dos maus-tratos.
Méllo (2006) destaca que no início do século XIX na Europa, especialmente na
Inglaterra e França, essa legislação se referia aos serviços de saúde e sociais, e estavam
relacionadas ao combate à crueldade contra crianças. A expressão ‘abuso sexual’ é muito rara
antes de 1960 porque o que se dizia era “crueldade com crianças”. Nesse sentido,
diferentemente do ”abuso”, a “crueldade” não se referia às transgressões sexuais.
Segundo Méllo (2006), geralmente, a literatura especializada reconhece que o início
dos movimentos de proteção às crianças maltratadas em suas famílias está relacionado ao
episódio de uma pequena garota de nove anos, chamada Mary Ellen,que era espancada por
seu padrasto. Mary Ellen foi removida de casa em 1874 por uma associação que cuidava dos
animais, fundada em 1866 por Henry Bergh. Em 1874, depois desse caso, foi fundada em
Nova York uma fundação de prevenção da crueldade contra crianças. Inicialmente, a
associação investigou “abuso” físico e negligência infantil, primeiramente entre imigrantes
americanos pobres e de famílias de classes trabalhadoras.
Ambos os casos citados e as demais situações em que houve a intervenção dessa
associação americana não havia ainda a identificação como ”abuso”, mas como “crueldade” e
63

as denúncias estavam restritas às circunstâncias em que as crianças eram criadas por pessoas
que não eram seus parentes.
Conforme Hacking (1999) apud Méllo (2006) o uso do termo “crueldade”
relacionado a crianças começou a perder notoriedade em torno de 1910,dando lugar a
problemas como “mortalidade infantil” e “delinquência juvenil”. Estes temas tiveram
relevância até pouco mais da metade do século XX. A partir da década de 1960, o termo
“abuso” infantil emerge nos Estados Unidos, mais especificamente na cidade de Denver, por
meio de médicos pediatras, que começaram a observar com certo estranhamento as fraturas e
lesões em crianças pequenas, e com o auxílio dos raios-X, passaram a obter os indícios ou
sinais de maus-tratos, o que permitiu que esses pediatras fossem batizados como o “Grupo de
Denver” e pudessem indicar o surgimento de uma nova síndrome.
A rede que se formou em torno do “abuso” sexual iniciou nos Estados Unidos e
expandiu-se por todo o mundo, e houve a substituição da palavra incesto, que também se
referia a relações sexuais entre adultos e crianças e essas motivações eram de cunho religioso,
moral, político e econômico. Nesse sentido, as relações sexuais entre um adulto e uma criança
deixaram de ser um problema de consanguinidade ou de parentesco para ser um problema de
“direitos humanos”. E mais ainda, com uma peculiaridade em relação aos outros problemas de
direitos humanos. No caso do abuso sexual tornou-se importante destacar que sua ocorrência
acarreta problemas de saúde física e mental e é considerada uma manifestação da violência
que se expandiu em escala mundial.
Para Lúcia Alves Mess a violência de cunho intrafamiliar retém os aspectos do abuso
relativo ao apelo sexual feito à criança, bem como destaca tal ocorrência no interior da
família. (MESS, 2001, p.18), caracterizando-se como uma violação aos direitos humanos.
Para a autora que a interdição dos impulsos incestuosos tem uma importância central no
desenvolvimento psicológico, sendo considerada como o paradigma da possibilidade de
reconhecimento, pelo sujeito, e que balizam seu reconhecimento de si.
Embora os indicadores da violação aos direitos da criança e do adolescente sejam
altos, sabe-se que estes não revelam a totalidade dessa questão na realidade brasileira. Em se
tratando da violência sexual, muitos casos não chegam a ser notificados, tanto pela
dificuldade de discussão sobre a sexualidade, quanto pela idealização da família como “lugar
seguro”, além da desqualificação da fala da criança ou adolescente, interpretada muitas vezes
como mentira ou fantasia. No caso de práticas consideradas como abuso sexual, quase em sua
totalidade, acontecem em uma relação de parentesco, entre o sujeito adulto, considerado o
abusador e a criança ou adolescente, situado na posição de vítima, por conta do poder
64

atribuído ao adulto, tanto do ponto de vista hierárquico e econômico, ou seja, pode ser o pai,
mãe ou padrasto, quanto do ponto de vista afetivo e parental, como avós, tios, irmãos, primos,
vizinhos, professores e padrinhos. Talvez por seu caráter sexual e, portanto, cercado de
constrangimentos e segredos, o abuso sexual intrafamiliar não tenha sido comum nas
abordagens dos historiadores, mas este contexto não significa a sua inexistência ou baixo
índice de ocorrência. Como assinala Rangel:

A vergonha que permeia a interdição do incesto e que possui um grande poder


castrador da expressão, bem como as dificuldades quanto à comprovação da maioria
dos atos sexuais, tornavam esse tipo de violência ausente dos estudos e estatísticas
históricas, até bem pouco tempo atrás. (RANGEL, 2009, p. 49).

Dados mais sistemáticos sobre violência sexual intrafamiliar surgiram somente


quando a medicina passou a se voltar para o estudo dos processos psicológicos do indivíduo e
através do diagnóstico de doenças psíquicas, em virtude de ser uma das ocorrências mais
frequentes na sociedade e também por trazer maiores consequências traumáticas para as
pessoas. Na Inglaterra e nos Estados Unidos a liderança do movimento internacional de
combate ao abuso sexual está diretamente ligada aos profissionais de medicina. No Brasil os
primeiros estudos foram também realizados por médicos, embora a liderança do movimento
em torno do abuso sexual contra crianças continue sendo de psicólogos, assistentes sociais e
advogados (profissionais das chamadas Ciências Humanas), uma vez que os mesmos tem uma
tradição maior no envolvimento de problemas sociais.
De certo modo o abuso sexual envolve debates difíceis e inquietantes, pois falar
sobre sexo não faz parte do mundo infantil, e sim dos adultos. Um exemplo bem comum é
quando esse assunto entra na discussão, gera em muitas situações, e certo desconforto,
principalmente nas famílias, onde pais não se sentem preparados pra falar do assunto em casa
com os filhos e filhas. É percebido na sociedade um sentimento generalizado de ‘repulsa’ a
qualquer coisa que conecte sexo e criança e mais especificamente, a relação de cunho sexual
envolvendo um adulto e uma criança ou adolescente.

2.3. Tipos de Abuso Sexual

Há várias tipificações de violência contra crianças e adolescentes. Optei por dividi-


las em três grupos, relacionados principalmente com a violência sexual, de forma a
compreender as peculiaridades de cada situação.
65

Abuso sexual extrafamiliar Abuso sexual intrafamiliar Abuso sexual institucional


É um tipo de abuso sexual Também chamado de Ocorre dentro das
que ocorre fora do âmbito abuso incestuoso. É instituições
familiar, ou seja, o agressor qualquer relação de caráter governamentais e não
não tem laços de sexual entre um adulto e governamentais
consanguinidade com a uma criança ou adolescente encarregadas de prover,
criança, podendo conhecê- ou entre um adolescente e proteger, defender, ou
la ou não. Esse tipo de uma criança, quando existe aplicar medidas sócio
abuso pode ocorrer fora da um laço familiar (direto ou educativas. Pode ocorrer
casa da vítima. Como não) ou relação de entre as próprias crianças
exemplo, temos os casos de responsabilidade. Nem ou adolescentes ou entre
estupros em lugares toda relação incestuosa é crianças, adolescentes e
públicos. abuso sexual. Por exemplo, profissionais da instituição.
quando se realiza entre Quando ocorre entre
pessoas da mesma idade. crianças e adolescentes, os
Mas é considerado “abuso” recém-chegados são
quando for criança e ou forçados a se submeterem
adolescente, mesmo sem o sexualmente a grupos de
uso da força física. adolescentes mais velhos e
mais antigos na instituição
e que dominam o território
e o poder local.
QUADRO 2: Tipos de Abusos Sexuais

Outra forma peculiar de violência é o incesto. Faz-se necessário, entretanto,


estabelecer uma definição quanto ao que seja considerada violência sexual contra crianças e
adolescentes. Nesse sentido, Saffioti institui uma diferença fundamental entre relações
incestuosas e aquelas que envolvem o abuso. A autora propõe a utilização do conceito “abuso
sexual incestuoso” ou “abuso incestuoso” em substituição a “incesto”, para designar as
relações entre adultos(as), de um lado, e crianças e adolescentes, de outro. Segundo Saffioti:

É muito rara a ocorrência de incesto entre adultos e entre parceiros da mesma idade
ou de idades semelhantes. Aliás, o verdadeiro incesto pressupõe uma relação par
entre os parceiros, o que presume nenhuma ou pequena diferença de idade. Se esta
66

não é uma condição garantidora da relação igualitária, é necessária para que esta
possa ser construída. Assim, o incesto fica restrito a irmãos,primos, tio e sobrinho,
quando a relação não envolve poder. Nos demais casos de contato sexual(não
exclusivamente uma relação sexual completa),trata-se de abuso incestuoso.
(SAFFIOTI, 1997, p.170).

Com base nesse argumento, Saffioti discorda também de que a denominação


utilizada por Butler (1979) de “assalto incestuoso” explicite a complexidade da relação. De
acordo com Saffioti, embora “assalto incestuoso” revele o caráter violento da relação, o
conceito não se sustenta, pois o termo assalto significa uma investida impetuosa, um ataque
inesperado e com emprego de força, não dando a ideia de continuidade, geralmente presente
no abuso sexual incestuoso. (SAFFIOTI, 1991, p.15).
O termo assalto não comporta também todo o processo de sedução que se
desenvolve, às vezes ao longo de anos, submetendo crianças e adolescentes a frequentes
violências. Assim, abusar significa exorbitar atribuições e poderes de um contra o outro.
Dessa forma, está implícita a ideia de violência, aqui entendida como uma imposição de do
adulto que viola o direito de outro, no caso da criança. (SAFFIOTI, 1995, p. 15). É dentro
dessas formas que o incesto tem se caracterizado como a ação mais habitual dentre os casos
notificados, demonstrando assim a incidência da violência intrafamiliar, ou seja, quando se
trata do abuso sexual ocorrido no espaço doméstico e familiar.
Nessa direção, segundo algumas literaturas, os abusos incestuosos não tinham sido
enfocados com mais atenção porque o sexo intergeracional familiar equivalia a um escândalo
na estrutura patriarcal da família. Assim, o segredo é a característica específica do abuso
sexual intrafamiliar marcando a diferença entre ele e as outras formas de violência no período
da infância e da adolescência. Talvez esta característica explique o porquê de suas
consequências tão danosas. Segundo Miller “ o segredo do incesto, se deixado fermentando
dentro do indivíduo ferido, distorce sua experiência de vida e frequentemente leva à angústia
da doença emocional e à dor psíquica implacável”. (MILLER (1994, p. 185)
Para o filósofo Michel Foucault

Não existe um só, mas, muitos silêncios e são partes integrantes das estratégias que
apoiam e atravessam os discursos. Esse fenômeno tem uma dinâmica específica,
iniciando-se sutilmente e, à medida que o agressor ganha a confiança da criança e do
adolescente, os contatos são mais íntimos e podem durar meses ou anos.(
(FOUCAULT.2005, p. 30)

O rompimento do pacto de silêncio do abuso sexual, ou qualquer outra modalidade


de violência é o maior desafio que as pessoas consideradas vítimas enfrentam, mas se
67

constitui um passo decisivo para a responsabilização do acusado e da reconstrução dos laços e


vínculos afetivos .Richard Miskolci (2007) afirma que o armário não é uma armadilha sem
saída. Mas sair dele significa que não é só uma decisão individual e tem um amparo no
contexto social e histórico. No caso da quebra do segredo, a criança ou adolescente já
percebeu um ambiente de confiança com alguém, seja da família ou do espaço das afinidades.
Retomamos a informação de que o sexo feminino é o mais vitimado, evidenciando-se a
dimensão de gênero nesse fenômeno, embora o sexo masculino também sofra abuso sexual,
mas em menor proporção.
Para Simmel apud Watier (1996), a confiança que uma pessoa deposita na outra tem
um valor moral muito grande, pelo que implica não decepcionar aqueles que confiam em nós.
O fato do abuso sexual, em muitas ocasiões, acontecer sem o uso da força, está relacionado à
questão da lealdade e confiança que o agressor utiliza para obter o silêncio da criança ou
adolescente. Dessa forma, a violência praticada se converte em segredo, o qual pode
ultrapassar gerações, dificultando assim a denúncia e ajuda a esses sujeitos. O silêncio, que
embora não possamos vê-lo, se manifesta seja pelas rupturas, falhas ou medos e podemos
percebê-lo em todo e qualquer discurso. Assim, Simmel (1996) acrescenta a importância do
segredo e da confiança na vida social, e lembra que a sociedade é condicionada pelo fato de
falar e se comunicar, mas também é modelada pela capacidade de se calar. Quando o assunto
é abuso sexual esses aspectos são importantes para o sujeito adulto esconder ou mascarar uma
situação de agressividade contra terceiros.
A luta pela implementação do direito de proteção às crianças e aos adolescentes e do
incentivo a sua autonomia e aprendizagem é uma luta ideológica, cultural e simbólica
empreendida contra os valores do machismo, da hierarquia que marca as relações de gênero,
estabelecendo condições e lugares de “superioridade” e “inferioridade”, das atribuições de
poder a grupos etários diferenciados e do patrimonialismo do outro. Assim, a manifestação da
relação de domínio do outro, presente tanto na esfera familiar e doméstica como em diferentes
contextos de poder (escola, política, comércio, mídia e igreja), mostra-se como a expressão da
repressão e do autoritarismo, ou seja, da escravidão do outro. Nesse caso, a vitimização
inverte a relação de proteção em relação de prejuízo para o outro, causando dor e silêncio.
Para as autoras Azevedo &Guerra, a vitimização não é um problema da sexualidade violenta,
mas, sim, da violência sexual na medida em que esta faz parte do padrão falocêntrico e
adultocêntrico que preside as relações sociais de gênero e de geração em nossa sociedade.
68

2.4.Outros tipos de Abuso Sexual, considerados nos discursos de especialistas:

Outras áreas do conhecimento, como a psicologia, psicanalise, medicina, elencam


outros tipos de abuso, que é interessante que seja divulgado e conhecido, para que de certo
modo a inibição da violência ganhe sentido e multiplicadores.

Sem contato físico

 Voyeurismo: observação total ou parcial de nudez de crianças ou adolescentes por


parte de adultos.
 Assédio Sexual: caracteriza-se por propostas de relações sexuais, e baseiam-se, na
maioria das vezes, na posição de poder do adulto sobre a criança ou adolescente, que é
chantageado e ameaçado.
 Abuso Sexual Verbal: pode ser definido por conversas abertas sobre atividades sexuais
destinadas a despertar o interesse da criança ou adolescente ou chocá-los.
 Exibicionismo: exposição intencional do corpo nu de um adulto para crianças ou
adolescentes.
 Telefonemas Obscenos: telefonemas com ofensas de natureza sexual e que façam
convites explícitos ou implícitos.
 Pornografia: exploração de criança para fins econômicos (imagens).

Com contato físico

 Atos físicos genitais: manipulação dos genitais e contatos oral-genital-anal.


 Sedução: quando há a penetração vaginal sem uso da violência, em adolescentes
virgens de 14 a 18 anos incompletos.
 Estupro: quando há penetração vaginal com uso da violência ou ameaça grave, sendo a
violência presumida em crianças até 14 anos. No caso de penetração anal, vários
movimentos da sociedade civil já reivindicam que possa ser legalmente considerado
estupro.
 Incesto: atividade sexual entre crianças e adolescentes e parentes. Pode ser tipificado
como atentado violento ao pudor, corrupção de menores, sedução e estupro.
69

2. 5. Mitos e Realidades sobre o Abuso Sexual no discurso de especialistas:

Um problema social com tamanha relevância, mas, pouco discutido ,como a violência
sexual, e compreensivo que se espalhe por diversos ambientes, conceitos, classificações
diversas do assunto. Elaboramos um quadro sobre alguns dos mitos e realidades mais comuns
acerca do assunto.

MITOS REALIDADES
O estranho representa maior perigo Os estranhos são responsáveis por um
para crianças e adolescentes. percentual pequeno nos casos registrados. Na
maioria das vezes entre 85% e 90% dos casos,
as crianças são sexualmente abusadas por
pessoas do convívio, como o pai, mãe,
padrasto, vizinhos, professores, médicos, etc.
O autor do abuso é psicopata, tarado Os crimes sexuais são praticados em todos os
que todos reconhecem na rua, níveis socioeconômicos, religiosos e étnicos.
depravado, débil mental, homossexual, Na maioria das vezes são pessoas
alcoólatra, homem mais velho. aparentemente normais e queridas pelas
crianças e pelos adolescentes. A maioria dos
agressores é heterossexual.
O pedófilo tem características próprias Do ponto de vista físico o pedófilo pode ser
que o identificam. qualquer pessoa.
A criança mente e fantasia o abuso. Raramente a criança mente. Apenas 6% dos
casos são fictícios e, nessas situações, trata-se,
em geral, de crianças maiores que objetivam
alguma vantagem.
Se a criança ou adolescente O autor da agressão sexual tem inteira
“consentiu” é porque gostou. Só responsabilidade pela violência sexual,
quando diz “não” é que se caracteriza qualquer que seja a forma por ele assumida.
abuso.
A maioria dos abusos ocorre longe da O abuso ocorre, com frequência, dentro ou
casa da criança ou do adolescente perto da casa da criança ou do agressor.
Normalmente, procura locais em que a criança
70

ou adolescente estará completamente


vulnerável. O maior índice das ocorrências
tem sido no período diurno.
O abuso sexual está associado a lesões A violência física em abusados sexualmente
corporais. não é o mais comum, mas o uso da ameaça ou
conquista da confiança e do afeto da criança
ou adolescente.
O abuso sexual limita-se ao estupro. Além do ato sexual com penetração
vaginal(estupro) e anal, outros atos são
considerados abuso sexual, como manipulação
dos genitais, pornografia, exibicionismo, e etc.
As vítimas de abuso sexual são Níveis de renda familiar e de educação não
oriundas de famílias de baixo nível são indicadores de abuso. Famílias das classes
socioeconômico. média e alta podem ter melhores condições
para encobrir o abuso e manter o “muro do
silêncio”. Vítimas e autores do abuso são,
muitas vezes, do mesmo grupo étnico e
socioeconômico.
A maioria dos casos é denunciada. Estima-se que poucos casos são notificados.
Quando há envolvimento de familiares,
poucas são as possibilidades de que a vítima
faça a denúncia, seja por medo de ser expulso
de casa, ou ser a “causadora da discórdia
familiar”.
O abuso sexual é uma situação rara, O abuso é extremamente frequente em todo o
não deve ser prioridade por parte dos mundo. Estudos realizados nos EUA, por
governos. exemplo, revelaram que os gastos com
atendimentos a dois milhões de crianças que
sofreram abuso sexual chegaram a U$$ 12,4
milhões por ano.

QUADRO 3: Mitos e verdades sobre o Abuso Sexual


Fonte: Guia Escolar, 2004.
71

2.6. Políticas Públicas de Enfrentamento do Abuso Sexual

A violência sexual nas suas duas forma mais visível, ou seja, o abuso sexual e
exploração sexual comercial, assumiu uma relevância nos anos 90, onde a mobilização social
teve sua expressão política na agenda da sociedade civil como questão relacionada com a luta
nacional e internacional pelos direitos humanos, preconizados na Constituição Federal de
1988, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança do Adolescente em 1989 e no
Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 .
A partir de 2000, o Brasil, depois de anos de mobilização elabora o plano nacional de
enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil, como carro chefe das várias estratégias
integrando governo e os vários programas em todas as esferas (federal ,estadual ,municipal)e
das organizações não governamentais.

2.6.1 Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil

Apenas nas últimas décadas, o enfrentamento e a prevenção à violência sexual contra


criança e adolescente ganharam uma maior visibilidade por parte dos governos, como da
sociedade civil. Essa visibilidade ganhou destaque com os congressos que foram articulados
desde 1996, por ocasião do I Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de
Criança e Adolescente, em Estocolmo, Suécia, do qual o Brasil foi signatário. Em 2001
acontece o II Congresso, em Yokohama. Em 2008, o III Congresso foi no Rio de Janeiro,
onde foi assinada a “Declaração e o Pacto do Rio de Janeiro”. Como resultados desses
primeiro encontro foram elaborados diretrizes mundiais, e programas de cooperação nacional
e internacional. É importante enfatizar que todos esses encontros intensificaram as
mobilizações, e exerceram uma força nos países signatários para a prevenção à violência
sexual na infância e adolescência.
No Brasil esse enfrentamento acontece a partir da aprovação do Estatuto da Criança
(ECA), pois o mesmo amplia a atuação das Organizações não governamentais, criam-se
fóruns, conselhos e inicia-se a consolidação dos movimentos de defesa dos direitos da criança
e adolescente. Para a efetivação do ECA, foi criado o Conselho Nacional da
Criança(CONANDA30),com a responsabilidade de criar os conselhos nos estados e

30
É a instância máxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e
adolescência na esfera federal. Foi criado pela Lei nº 8.242 de 12 de outubro de 1991, é o órgão responsável, por
tornar efetivos os direitos, princípios e diretrizes contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É
também o responsável pela fiscalização das ações executadas pelo poder público no diz respeito ao atendimento
72

municípios. Estabelecem-se os Conselhos de Direito e os Tutelares, os primeiros, órgãos


deliberativos, e paritários, responsáveis pela elaboração das políticas de atendimento e
controle do orçamento da criança, e os segundos (Tutelares )com o papel de zelar, para que as
medidas de proteção, apoio e orientações às crianças sejam cumpridas.(CECRIA, 2008).
Em 1993 são instituídos alguns marcos históricos de enfretamento do abuso sexual,
com a implantação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito31 (CPMI), para investigar as
redes de exploração sexual de crianças e adolescentes, trazendo inúmeros dados que
evidenciaram a falta de políticas sociais básicas e de atendimento às vítimas. (LIBÓRIO,
2005; LEAL, 2006).
O Fundo das Nações Unidas para a Infância apoiou a criação dos Centros de Defesa,
(CEDECA) em várias cidades, que tem como finalidade, desenvolver mecanismos de
proteção, prevenção e atendimento às crianças e seus familiares em situação de violência
sexual32.
Visando alcançar a eficácia necessária no enfrentamento da violência sexual, foi
realizado um encontro para a realização e elaboração e aprovação do Plano Nacional de
Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, em Natal (RN) em junho de 2000,
resultado do processo de articulação e mobilização encabeçada pela sociedade civil, por
instituições governamentais e pela cooperação internacional.
O plano apresentado e aprovado pelo Conselho Nacional da Criança e do
Adolescente (CONANDA) em 12 de julho de 2000. A partir desse momento torna-se uma
diretriz nacional de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no
âmbito das políticas públicas e sociais. O plano tem como referência fundamental o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), reafirmando os princípios da proteção integral da criança
e do adolescente, bem como sua condição de sujeitos de direito. Reafirma ainda a prioridade
absoluta para esse público, em sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento. O
plano nacional abrange os seguintes eixos estratégicos:

do público infanto-juvenil. É gestor do Fundo Nacional da Criança e do Adolescente (FNCA),pela criação e


regulamentação e utilização desses recursos, garantido que sejam destinados às ações de promoção e defesa dos
direitos da criança e do adolescente, conforme estabelece o estatuto. Sua composição é de 28 conselheiros, sendo
14 representantes do governo federal indicados pelos ministérios, e 14 representantes da sociedade civil
organizada em âmbito nacional e de atendimento aos direitos da criança e do adolescente, e são eleitos a cada
dois anos. O CONANDA realiza suas assembleias mensalmente e está vinculado à Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República e possui quatro comissões temáticas: (Políticas Públicas, Orçamento e
Finanças, Formação e Mobilização e Direitos Humanos e Assuntos Parlamentares).
31
Criada em 1993 pela Câmara dos Deputados, no período de 27 de maio de 1993 a 9 de junho de 1994,a CPI
investigou as denúncias de exploração sexual envolvendo crianças e adolescentes em todas as regiões do país.
Essa investigação deu visibilidade ao tema, fazendo com que várias organizações não governamentais passassem
a lutar por um enfrentamento político do problema.
32
Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra crianças e adolescentes. 2007.
73

a) Análise da situação- consiste em conhecer a realidade da violência sexual em todo


país, diagnóstico das situações, condições e garantia de financiamento do plano, divulgação
dos dados para a sociedade braseira.
b) Mobilização e Articulação- Fortalecer as articulações nacionais, estaduais,
municipais de combate e eliminação da violência, comprometer a sociedade civil no
enfrentamento a violência, divulgar o posicionamento do Brasil acerca do “turismo sexual”, e
o tráfico para fins sexuais, e avaliar os impactos e resultados das mobilizações.
c) Defesa e Responsabilização - atualizar a legislação sobe crimes sexuais, combater
a impunidade e disponibilizar os serviços de notificação e capacitar os profissionais na área
jurídico-policial; implantar e implementar os Conselhos Tutelares, o Sistema de Informação
para a Infância e Adolescência(SIPIA),as Delegacias Especializadas em crimes contra
crianças e adolescentes(DPCA).
d) Atendimento- efetuar e garantir o atendimento especializado e em rede, às
crianças e adolescentes em situação de violência sexual e às suas famílias.
e) Prevenção- assegurar ações preventivas contra a violência sexual, possibilitando
que crianças e adolescentes sejam educados para o fortalecimento de sua autodefesa; atuar
junto à Frente Parlamentar, no sentido de desenvolver legislação referente a internet.
f)Protagonismo Infanto-Juvenil- Promover a participação ativa de crianças e
adolescentes, em todas as instâncias de discussões, mobilização e definição de ações em
defesa de seus direitos e comprometê-los para o monitoramento do plano.
g) Monitoramento e Avaliação- para o acompanhamento da implementação das
ações do Plano Nacional, criou-se o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual
contra Crianças e Adolescentes33 é uma articulação nacional que conta com representantes de
cada região do país, do Governo Federal, da cooperação internacional e de jovens. O
Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CONANDA) e os
conselhos estaduais e municipais são instâncias de deliberação, controle, e acompanhamento
do Plano.
Após a implementação do Plano Nacional, foi realizada entre 2003 e 2004,a
Comissão Parlamentar de Inquérito,(CPMI) da Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes, nas duas casas do Congresso Nacional. Essa CPI foi liderada por parlamentares

33
Criado em Junho de 2000,o período da elaboração e aprovação do Plano Nacional de Enfrentamento da
Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. O Comitê Nacional tem em sua missão de implementar,
monitora,avaliar o Plano Nacional. É a instância representativa da sociedade,dos governos, e doas cooperações
internacionais. Reúne-se trimestralmente,tem sede em Brasília-DF.
74

da Frente Parlamentar de Defesa da Criança e do Adolescente 34, e teve como ponto de partida
a pesquisa da PESTRAF35, que mapeou as principais rotas do tráfico nacional e internacional
de mulheres, crianças, adolescentes para fins de exploração sexual.
A primeira ação concreta empreendida pelo governo federal dentro do cumprimento
das metas, foi a implementação do Programa Sentinela, com o foco no atendimento
psicossocial às vítimas.

2.6.2 Programa Sentinela

O programa tem suas diretrizes e normas estabelecidas em dezembro de 2001, pela


portaria nº878\01, e sua implantação iniciada em 2002, sob a responsabilidade da extinta
Secretaria de Estado da Assistência Social, do Ministério da Previdência e Assistência
Social(SEAS). A implementação foi realizada através dos Serviços e Centros de Referências,
dotados de estrutura física e recursos humanos para o desenvolvimento dos atendimentos
sociais especializados. O critério de seleção do município com ocorrências notificadas de
violência contra crianças e adolescentes. Seja no âmbito familiar, garimpos e outros.
Até 2003, o Programa havia sido implantado em 331 dos 5.561 municípios, com
atendimento de 19.245 crianças, sendo que 9.225 delas, vítimas de abuso ou exploração
sexual36.Com o Plano Plurianual de 2004\2007,a Secretaria Especial de Direitos
Humanos(SEDH)abarcou o Programa Sentinela que atuava prioritariamente sobre o abuso
sexual. Em 2006, foi criado o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Sentinela
passou a ser inserido nos serviços do Centro de Referência Especializada de Assistência
Social(CREAS).
O Município de João Lisboa foi incluído no Programa Sentinela em 2005,
desenvolvendo ações junto às crianças vítimas, como parte da gestão municipal. A partir
desse momento o “abuso sexual” foi colocado como um problema para a sociedade, bem
presente em muitas famílias

34
Criada em 1993, mas a Frente só ganhou força em 2003,quando vários deputados e senadores assumiram o
compromisso de prioridade absoluta o problema do abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. A
Frente realiza diversas atividades junto a sociedade civil, e também ao governo,se envolve nas discussões acerca
da criança e do adolescente, como projetos de leis no âmbito do Legislativo.
35
Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres,Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no
Brasil. A Pestraf foi coordenada pelo Centro de Referência,Estudos e Ação sobre Crianças e
Adolescentes(CECRIA). Publicada em 2002,evidenciando 131 rotas internacionais, e 110 domésticas,perfazendo
assim 241 rotas utilizadas para o tráfico de pessoas no Brasil.
36
.http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-12902010000100009&script=sci_arttext- Acessado em 05 de
junho de 2013.
75

2.6.3- O PAIR

O Programa de Ações Integradas e Referenciais no Enfrentamento da Violência


Sexual Infanto-Juvenil- O PAIR tem sua base no Plano Nacional de Enfrentamento à
Violência Sexual Infanto Juvenil, que reafirma por sua vez, os princípios contidos na
Convenção sobre os Direitos da Criança, na Constituição Brasileira e Estatuto da Criança e do
Adolescente, reconhece a criança como sujeitos de direito, de pessoa em desenvolvimento,
como direito a proteção integral e como prioridade absoluta das políticas públicas. Tem sua
fundamentação na:
Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989),
Convenção da OIT (2000);
Diretrizes estabelecidas nos Encontros mundiais de Estocolmo/Suécia
(1996).Yokohama/Japão2001/Rio de Janeiro/Brasil(2008)
Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2008)
O PAIR tem como objetivos desenvolver metodologias exitosas de enfrentamento à
violência sexual contra crianças e adolescente, que possam ser estendidas para outras regiões
brasileiras. Integrar políticas para a construção de uma agenda comum de trabalho entre
governos, sociedade civil e organismos internacionais, visando desenvolvimento de ações de
proteção a crianças e adolescentes vulneráveis ou vítimas da violência sexual e tráfico para
fins sexuais. Configura-se como uma metodologia de articulação em rede do que um
programa pontual. e para sua operacionalização contém seis eixos estratégicos que são:
Análise da situação/diagnóstico
Atendimento
Articulação/mobilização
Prevenção
Defesa/responsabilização
Protagonismo juvenil
76

CAPÍTULO III

Quebrando o Pacto do Silêncio

Neste capítulo serão analisados 13 (treze) processos escolhidos tanto na 2ª Vara da


Infância e da Adolescência quanto no Conselho Tutelar, no período entre 2008 e 2012 na
Cidade de João Lisboa, Maranhão. Foram divididos em duas partes, a saber: a primeira
composta de 10 processos e a segunda de três, sem levar em conta a ordem cronológica.
Privilegiamos as informações contidas nos autos, pois as mesmas têm certa proximidade.
Trata-se de um quadro de informações relevantes contidos nos documentos acerca do discurso
jurídico, a tentativa de descrédito da criança, do adolescente e da mãe, o medo e a coerção
para retirar a denúncia e os dispositivos jurídicos utilizados na defesa dos acusados. Outro
elemento importante diz respeito aos três últimos processos analisados, as chamadas
“vítimas” mantiveram relações sexuais de comum acordo. A partir desses processos foi
possível nos situar diante de cada discurso, dos detalhes próprios de cada processo, além da
possibilidade de compreendermos a construção do conceito de violência, o imaginário do
medo e da exposição da família na sociedade.
Inicialmente será lançado o olhar sobre as instituições que são as portas de entrada
no caso de denúncia, onde criança e/ou adolescente estão envolvidos. No processo de
constituição dos mesmos como sujeitos de direitos e em fase de desenvolvimento, a chamada
“proteção integral”, é composta por vários serviços e órgãos que sustentam esse paradigma,
denominado Sistema de Garantia de Direitos.

3.1. O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente

O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente compreende os


centros de defesas, as delegacias especializadas, a vara da infância e juventude, as
promotorias da infância e juventude, conselho tutelar, conselho de direitos, dentre outros. É
salutar apresentar informações alusivas a estas instituições, já que podem ser acionadas
quando da denúncia de abuso sexual.
77

3.2. O Conselho Tutelar no Estatuto da Criança e do Adolescente

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem sua existência inspirada na


Doutrina de Proteção Integral, que passa a entender a criança e o adolescente como sujeitos de
direitos, credores de uma proteção integral, agregando responsabilidade à família, à sociedade
e ao Estado. No ano de 1986, dada a maturidade e o nível de diversos movimentos e
organizações sociais que denunciavam pelos próprios meninos as violações aos seus direitos,
a Assembleia Constituinte apresentou-se como um importante espaço para o debate nacional
nas questões relativas à infância e adolescência no Brasil.
O debate pela garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes brasileiros
começava a definir o compromisso político dos constituintes, tendo o apoio da Pastoral do
Menor, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), do Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), da Frente Nacional de Defesa dos Direitos das
Crianças e dos Adolescentes e, principalmente, da Comissão Nacional Criança e
Constituinte37, que promoveu uma sensibilização e mobilização junto aos constituintes e à
opinião pública. O resultado desse esforço foi a elaboração do Artigo 227 da Constituição
Federal. Nesse sentido, o Brasil se antecipou até mesmo à Convenção Internacional dos
Direitos da Criança, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), somente no dia
20 de novembro de 1989.
Em face dos avanços ideológicos, os legisladores federais também promoveram a
substituição do Código, dado ao corpo de normas, pelo novo termo “Estatuto”. Outra
substituição foi adotada em relação ao termo “menor”. O qual foi substituído por “criança e
adolescente”. Contudo, mesmo após duas décadas da aprovação do Estatuto da Criança e do
Adolescente é comum a utilização da palavra “menor” no sentido pejorativo e discriminatório,
inclusive nos meios de comunicação.
A respeito das dificuldades deste avanço, do enraizamento ainda muito lento do novo
paradigma relativo aos direitos das crianças e adolescentes, cabe aqui verificar quais foram os
instrumentos instituídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente para que se estabeleça de
um modo mais efetivo os novos princípios da Doutrina de Proteção Integral, onde a criança e
o adolescente são prioridade nacional.

37
A Comissão Nacional da Criança e do Adolescente foi criada pela Portaria Interministerial nº 449, de setembro
de 1986, constituindo-se uma articulação entre os Ministérios da Educação, Justiça, Previdência e Assistência
Social, Saúde, Trabalho e Planejamento.
78

Em decorrência dos princípios constitucionais da descentralização político-


administrativa e da participação popular, surgiram os Conselhos Municipais, Estaduais e
Nacionais de Direitos da Criança e do Adolescente, órgãos dispostos na política de
atendimento de caráter deliberativo e controladores das ações em todos os níveis, além da
instituição de um Conselho Tutelar em cada município, com a atribuição de zelar pelo
cumprimento dos direitos da criança e do adolescente definidos pelo Estatuto. Se antes do
Estatuto o Governo deliberava e controlava a política referente à criança e ao adolescente,
agora cede espaço para a participação popular, provocando assim a exigência de uma nova
adequação e de um reordenamento em que se destaca um embate entre o velho e novo modo
de ver, pensar e agir sobre os temas da infância e da juventude.
O Conselho Tutelar constitui-se como um avanço institucional oriundo do ECA.
Vejamos sua definição: “Art. 131- O Conselho Tutelar é um órgão permanente e autônomo,
não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelos direitos das crianças e dos
adolescentes definidos nesta lei”. (BRASIL. Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990,
2004, p. 51). É composto por cinco membros eleitos pela comunidade, por um período de 03
anos. O Conselho é responsável pela aplicação de medidas de proteção38, e aos pais e
responsáveis39, da requisição de serviços públicos40, e de representações junto ao Ministério
Público 41 e ao Juizado da Infância e da Juventude42.
Uma vez tendo sido criado não pode ser desativado, assim o Conselho Tutelar é
permanente. Há apenas a renovação dos seus membros a cada três anos. É uma instituição
autônoma, porque não precisa de ordem judicial para aplicar suas medidas de proteção. Por
fim, é um órgão não jurisdicional, porque não pode processar ou punir quem infrinja as
determinações legais. Contudo, pode encaminhar ao Ministério Público notícias de
determinações não cumpridas.
Para Andrade (2000), o Conselho Tutelar não se define apenas como uma instância
para garantir direitos, mas também como um possível mecanismo de cobrança de deveres:
deveres do Estado e, também, dos indivíduos.
Geralmente os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes chegam ao
Sistema de Justiça, através do Conselho Tutelar, da Delegacia de Polícia ou das Varas de

38
Art. 136, I c\c art.101, I a VIII, ambos do ECA.
39
Art. 136, II, c/c art. 129, I a VII, ambos do ECA.
40
Art. 136, III, a, do ECA.
41
Art. 136, IV e XI, do ECA.
42
Art. 136, III, b; art. 191 e art. 194, todos do ECA.
79

Família, por diversos motivos, sejam eles nas disputas envolvendo guarda, visita ou
suspensão e destituição do pátrio poder, abrigo na casa de passagem e nos casos de fuga etc.
Para Carvalho (1992) apud Azambuja (2006) ao Conselho Tutelar cabe receber,
dentre entre outras situações de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente,
os casos de suspeita ou confirmação de maus tratos praticados contra a referida crianças,
mostrando-se a urgência da sua criação e instalação em todos os municípios “para a
efetivação da política de atendimento à criança e ao adolescente, tendo em vista assegurar-lhe
os direitos básicos, em prol da formação de sua cidadania”. (AZAMBUJA. 2006.p.4).
A demanda do Conselho Tutelar, no que se refere à violência intrafamiliar, abarca
situações complexas a serem enfrentadas, uma vez que, entre outros fatores, o agressor e a
vítima pertencem, geralmente, ao mesmo grupo familiar.

3.3. Delegacias Especializadas

A Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA) é competente para


fiscalizar, investigar e instaurar inquérito e procedimentos policiais nos casos de infração
penal praticada contra crianças e adolescentes. Isso significa que a DPCA é responsável por
crimes em que as crianças e adolescentes são as vítimas e não autores do delito. Além desta
função, a DPCA também desenvolve estratégias de repressão continuadas em qualquer local,
público ou privado, como forma de interromper o ciclo de impunidades dos agressores. Toda
prática de violência contra criança ou adolescente deve ser denunciada nesta delegacia
especializada. Não é necessário se identificar para comunicar algum crime.

3.4. Ministério Público

Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude atua na defesa judicial e


extrajudicial dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes (pessoas de até 18 anos
incompletos), previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Como, por exemplo: vida, saúde, segurança, educação, lazer.
Além de tratar de direitos individuais (de cada criança ou adolescente), o parquet promove a
defesa dos direitos fundamentais no âmbito coletivo (de todas as crianças ou adolescentes, ou
de um grupo delas), através da ação civil pública, e outros instrumentos, como o inquérito
civil. Nos processos judiciais que envolvam os direitos de crianças e adolescentes, a defesa
ocorre mesmo quando não é sua a iniciativa da ação.
80

3.5. Defensorias

À Defensoria Pública incumbe, em regra, prestar assistência jurídica integral e


gratuita às pessoas que não podem pagar pelos serviços de um advogado, sendo a defesa dos
financeiramente hipossuficientes sua função típica. O Defensor é um agente político de
transformação social. Não integra a advocacia, pública ou privada, e tem independência
funcional no exercício de sua função. Outra hipótese da Defensoria Pública em função atípica
é a da defesa de grupos organizacionalmente hipossuficientes (consumidor, idoso, criança e
adolescente, mulheres vítimas de violência), legitimando a Defensoria para o ajuizamento de
ações civis públicas em prol do interesse desses grupos. Tal instituição não integra
formalmente o executivo, embora dele dependa financeiramente. Possui autonomia funcional
e administrativa, e representa o compromisso do Constituinte de permitir que todos, inclusive
os mais pobres, tenham acesso à justiça.

3.6-Juizados da Infância e Juventude

Ao Juizado da Infância e da Juventude compete a prestação jurisdicional à criança e


ao adolescente e o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Compete, pois, ao Juiz da Infância e Juventude, processar e julgar causas previstas no Estatuto
da Criança e do Adolescente e na legislação complementar, inclusive as relativas a infrações
penais cometidas por menores de 18 (dezoito) anos, além de questões cíveis em geral,
inclusive as pertinentes a registros públicos, desde que concernentes a soluções de situações
irregulares em que se encontra a criança e o adolescente interessado.
Durante a trajetória de pesquisa, verificou-se no Conselho Tutelar, que é a primeira
porta de entrada para a maioria dos casos de violência, a importância de uma tabela para a
visualização da relação existente entre a criança ou adolescente vítima de abuso sexual e o
denunciado. Durante o espaço temporal de 2008 a 2012, foram coletadas 49 (quarenta e nove)
denúncias pertinentes ao interesse da pesquisa, das quais 22 (vinte e duas) denúncias tiveram
os parentes (pai, padrasto, primo, tio. avô) como abusadores; em 23 (vinte e três) eram
pessoas que fazem parte do círculo de amizade da família (vizinho, padrinho, namorado);
desconhecidos aparecem em 02 (duas), e não informado também em 02 (duas) denúncias. O
resultado dessa tabela corrobora com as pesquisas já existentes, em que o sujeito agressor é
alguém conhecido, e uma porcentagem mínima é de desconhecidos.
81

TABELA 3 - RELAÇÃO DO AGRESSOR COM A VÍTIMA (2008-2012)

Identificação do 2008 2009 2010 2011 2012 Subtotal


acusado como
consta nas
denúncias
PAI 01 01
PRIMO 01 01 01 03
N. INFORMADO 01 01 02
VIZINHO 02 10 12
NAMORADO 02 05 01 02 10
DESCONHECIDO 01 01 02
PADRASTO 01 02 01 02 06
TIO 04 02 04 01 11
PADRINHO 01 01
AVÔ 01 01
TOTAL 03 11 09 20 06 49

Fonte: Conselho Tutelar de João Lisboa

Através da análise das denúncias foi possível selecionar aquelas que se tornaram
processos, e observar outras que embora não tendo sido instaurados o inquérito policial era
importante analisar. Em todas as denúncias houve o cuidado de inserir nomes fictícios para
preservar tanto as crianças e adolescentes, quanto os adultos envolvidos. Outro aspecto que
merece esclarecimento é que nem toda denúncia se torna um processo. Dentre as denúncias
analisadas, algumas não chegaram ao judiciário, sendo encerradas na delegacia. Algumas
queixas foram retiradas pelas famílias e em outras situações o processo está em andamento,
mas, ainda assim, continham informações importantes para esta pesquisa e foram, portanto,
utilizadas para análise. Para este estudo foram utilizados um total de 13 processos, divididos
por anos, conforme a tabela:

TABELA 4 - PROCESSOS UTILIZADOS NA PESQUISA

Ano de 2008 02 casos


Ano de 2009 02 casos
Ano de 2010 03casos
Ano de 2011 02 casos
Ano de 2012 04 casos
Total de processos selecionados 13 casos
Fonte: Conselho Tutelar de João Lisboa – MA
82

3.7 O Judiciário e a Violência Doméstica

A reflexão sociológica sobre o Direito e a prática judicial é fundada pela tese de que
a relação entre este poder e a sociedade não consiste numa relação mecânica, destituída de
qualquer tipo de significado. Ao contrário, ela traz em seu âmago uma série de
descontinuidades, contribuindo para que o judiciário seja percebido, de acordo, com o
momento histórico analisado, como um elemento transformador ou reacionário, da ética e dos
valores morais. O objetivo do sistema judiciário é buscar a justiça e garantir os direitos dos
cidadãos.

Nesse sentido, a justiça representada pelo Judiciário é uma instituição que é


entendida como aquela que tem a obrigação com a verdade e onde há,
historicamente, uma situação legitimada, que permite a formulação de juízos e
valores entre o verdadeiro e o falso, o normal e anormal, o certo e o errado,
produzindo saberes e enunciados e formações discursivas sobre o indivíduo e o
espaço que ele ocupa na sociedade. (ELOY, 2006, p.01).

Portanto, compreender a relação entre o judiciário e a violência doméstica é uma


tarefa complexa, por constituir-se em um tema percebido como comum e naturalizado na
sociedade. Estes conflitos não são percebidos como formas de violência por algumas
instituições sociais e segmentos, muitas vezes estas situações são tidas como naturais. Na
situação de abuso sexual de crianças e adolescentes, os operadores do Direito devem aplicar a
lei maior, a Constituição Federal, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente, para
garantir sua proteção e responsabilizar o agressor. Todavia, estando legalmente sob a
responsabilidade de seus pais ou tutores, as crianças e os adolescentes dependem destes para
acionar o sistema judiciário.
Embora existam instâncias próprias para o atendimento de crianças e adolescentes
como os Conselhos Tutelares, as Delegacias Especializadas e as Varas da Infância e da
Juventude, os delitos que afetam essa população são revestidos por um intrincado conjunto de
relações e significações sociais. É pertinente ressaltar que a maioria dos munícipios brasileiros
não tem Delegacia e nem Vara especializada na infância e Juventude. Aqui existe um
paradoxo, enquanto que para a punição dos adolescentes em situação infracional, existe uma
delegacia, já para a proteção da criança e do adolescente não tem. Essa demanda é investigada
pela delegacia da Mulher, ocorrendo assim uma morosidade na apuração das denúncias de
violência, mesmo sendo um público colocado como prioritário.
83

De acordo com as modificações na legislação ocorridas em 2009 qualquer pessoa


pode denunciar em nome da criança ou do adolescente, o que antes era prerrogativa apenas de
pais ou responsáveis. A compreensão do seu funcionamento é essencial para o entendimento
das respostas apresentadas pelo sistema judiciário para cada situação. No exame dos
processos houve o cuidado de citar e analisar os termos utilizados pelos operadores do direito
e pelos magistrados para representarem os sujeitos.
No Município de João Lisboa não existe nenhuma Vara ou Delegacia Especializada,
embora haja um Juiz da Infância e Juventude, que também trata de outros assuntos, tornando
demorada a resolução das denúncias. Outro agravante que pesa sobre essa questão é que
alguns procedimentos são realizados na cidade de Imperatriz, como é o caso do exame de
conjunção carnal feito pelo Instituto Médico Legal - IML, requisito importante para o
prosseguimento da denúncia, ou do inquérito policial, e os serviços de assistência (social e
psicológica).
Antes de compreender a forma através da qual eles operam no sistema, é salutar,
porém, conhecer as etapas que acompanham a construção de um processo criminal. A maioria
dos processos é um fluxo para a justiça criminal, seguido pelo Inquérito Policial. Esse
caminho tem início com a denúncia levada ao Conselho Tutelar, que é encaminhada à
Delegacia, se tornando Inquérito43 instaurado pela polícia, que tem como objetivo investigar
as causas de tal crime44, identificando o autor, as testemunhas e o local de ocorrência.
Segundo Michel Foucault (2002), o inquérito surgiu no meio da Idade Média, como forma de
pesquisar a verdade no interior da ordem jurídica.
Assim que a denúncia é registrada é acionada a ação repressiva do aparato policial e
judicial, encarregados da execução das normas prevista pelo Código Penal, as quais são
responsáveis pela regulamentação das condutas públicas previstas para os indivíduos. Quando
o delegado tece o seu relatório deve constar a conclusão dessa fase inicial que se inicia com o
conhecimento do fato e termina quando as investigações são concluídas. No caso do inquérito
policial de crimes sexuais é configurada uma ação penal incondicionada, ou seja, cabe ao
Estado, através do Ministério Público, dar início a uma ação pública, independente da vontade
dos queixosos. Esta fase compreende num conjunto de decisões tomada em diferentes
instâncias para a elaboração das peças a serem anexadas aos autos dos processos. Tudo isso
resulta num relatório geral feito pelo delegado, que é encaminhado, por conseguinte, ao

43
É todo procedimento destinado à reunião de elementos acerca de uma infração penal. Objetiva proporcionar ao
titular da ação penal a ingressar em juízo, pedido aplicação da lei penal ao caso concreto. (GILBERT, 2003,
p.243 e 244).
44
O Abuso sexual é crime previsto no Código Penal Brasileiro.
84

judiciário. Essa remessa significa conclusão da etapa policial, como podemos observar no
gráfico abaixo:

CAMINHO DE UM PROCESSO-CRIME

FIGURA 6: Fluxograma – Caminho de um processo-crime

No entanto, a fase que consiste no Inquérito Policial está impregnada por uma série
de interferências, as quais influenciam na cooptação dos processos pelo fluxo da justiça
criminal ou não. Tais interferências relacionam-se ao modo como os agentes policiais
ordenam e selecionam as denúncias que merecem ser investigadas. São eles que decidem
quem deve ter voz e qual conteúdo dessas falas será inserido no relatório final. A linguagem
técnica utilizada na construção dos autos é também um exemplo das reflexões sobre os fatos,
pois todos os atos são mediados por um vocabulário próprio e padronizado. Para Eni Orlandi
(2007) no estudo do texto.

É a unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte. O que faz ele diante
de um texto? Ele o remete imediatamente a um discurso que, por sua vez, se
explicita em suas regularidade pela sua referência a uma formação discursiva que,
por sua vez, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela formação
ideológica dominante naquela conjuntura(ORLANDI, 2007, p.63)

É a unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte. O que faz ele diante de
um texto? Ele o remete imediatamente a um discurso que, por sua vez, se explicita em suas
regularidades pela sua referência a uma formação discursiva que, por sua vez, ganha sentido
porque deriva de um jogo definido pela formação ideológica dominante naquela conjuntura.
Em seguida inicia-se uma jornada jurídica. Entra o Ministério Público, sendo de sua
obrigação a acusação e o litígio processual45, nesse caso oferecendo a denúncia ao Juiz, na
qual reconhece o delito como um fato sucedido e tipificado, tendo o indiciado como seu autor.

45
De acordo com Vargas (2000) “a responsabilidade da ação penal da origem à denúncia é do Ministério Público
quando pública, e do representante legal do ofendido (Advogado), quando privada. [...] em crimes sexuais, salvo
condições especiais, a ação privada. No entanto, de acordo com C. P., uma ação privada pode tornar-se pública,
condicionada à manifestação da vítima ou do seu representante legal, através da representação, quando os
queixosos alegarem que não podem arcar com as custas do processo.” (VARGAS, 2000, p. 139).
85

Após o indiciamento do crime pelo juiz de direito, o acusado é citado, nomeando-se o


advogado que irá defendê-lo. Em 2009, o Código Penal sofreu algumas alterações no que se
refere aos crimes sexuais. Estas alterações foram aprovadas pelo Senado Federal e entraram
em vigor a partir do dia 07 de agosto do referido ano. Os artigos 213 (Estupro) e 214
(Atentado violento ao pudor), que eram distintos, passaram agora a integrar um mesmo artigo,
pois ambos são qualificados como estupro. Também não havia um artigo que tratasse de
crimes sexuais contra menores de 14 anos, ou contra pessoa incapacitada de resistir. Nos dois
casos, independente de ocorrer violência ou ameaça, a pena passou de oito para quinze anos.
Foucault enfatiza que “O suplício penal não corresponde a qualquer punição
corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação
das vítimas e a manifestação do poder que pune”. (FOUCAULT, 1987, p. 32). Trata-se de
considerar que as práticas penais constituem mais um capítulo da autonomia política do que
uma consequência das teorias jurídicas. A partir das alterações citadas, a ação penal de
iniciativa individual não existe mais e se a vítima for menor de 18 anos o Ministério Público
pode abrir o processo independente de sua vontade. Com essas alterações não apenas as
mulheres caracterizam-se como sujeitos passivos do crime de estupro, mas também o homem,
ou seja, a conjunção carnal não está mais intimamente ligada à cópula vaginal.
O artigo 226 trata do aumento da pena nos casos de crimes cometidos com concurso
de duas ou mais pessoas (aumento de um quarto da pena) e se o agente for ascendente ou
possuir qualquer autoridade sobre a vítima (aumento de metade da pena)46. As alterações no
Código Penal trazem transformações na dinâmica social e histórica através da mudança do
título “Dos Crimes contra os Costumes” para “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”47.
Verifica-se que a alteração não aconteceu apenas na nomenclatura, mas no aspecto
moral, pois o crime passou a ser visto como uma ação contra a pessoa vitimada e não contra
os costumes e a moral de uma sociedade. Embora o Brasil disponha de uma avançada
legislação onde crianças e adolescentes têm a garantia de direitos fundamentais e proteção
integral, a lei por si só não basta para proteger essa população das várias violências a que são
submetidos diariamente. (FALEIROS, 2000). Em alguns casos analisados, percebe-se que a
punição varia de acordo com as influências, e/ou condição financeira dos sujeitos acusados.
Comumente, os abusos sexuais são praticados por homens com trabalho e moradia fixos e

46
Desde 2005 tramita um projeto de lei na Câmara dos Deputados que trata do tema do incesto, especificamente
sobre o aumento da pena para casos como este, tendo como justificativa o fato do incesto ser considerado um
tabu na sociedade e de ser um caso que causa repúdio e provoca sequelas irreversíveis à vítima.
47
Teoricamente tira o foco da sociedade (costumes) para o indivíduo.
86

bem vistos na comunidade. Esta situação acarreta descrédito à justiça, deixando a sensação de
impunidade, inibindo a prática de outras denúncias ao Judiciário.

3.8 Os Processos-Crime: entre o medo e o silêncio.

A maior parte dos casos de abuso sexual nunca é revelada devido ao medo, à
submissão, à vergonha, à ignorância ou à tolerância do sujeito vítima.
No sistema jurídico brasileiro a violência sexual é presumida somente quando ocorre
entre um adulto e uma criança menor de 14 anos. Nesses casos, por se constituir um crime
tipificado, além de culturalmente condenável, o mais comum é o silêncio sobre esse tipo de
relação, protegida sob a forma do segredo. Os discursos presentes nos autos dos processos se
constituem importantes fontes de análises das formas de atuação dos diversos profissionais.
Permitem analisar as construções discursivas que situam os sujeitos envolvidos.
Provavelmente aqueles que refletem modelos de masculinidade hegemônicos, mas também
sujeitos julgados pela sociedade e pela justiça, e, por outro lado, aqueles que são designados
como sujeitos-vítimas, em particular as mulheres, as crianças e os adolescentes.
Os processos analisados evidenciam o valor de alguns testemunhos da criança e do
adolescente, comumente questionados pelo delegado de polícia, juiz de direito, promotor de
justiça e advogado do réu, quando do pedido das perícias ou laudos referentes à veracidade
das declarações e revelam as dificuldades para reconhecer e enfrentar essa desigualdade de
poder legitimada em relações de gênero que têm como efeitos uma questão social muito
significativa, especialmente em seus aspectos negativos, como o duvidar da criança ou do
adolescente a respeito da violência sofrida.
Em princípio as denúncias de “abuso sexual”, elemento fundamental para que a mãe
da vítima possa acionar a justiça, deveram-se ao sentimento de pavor e de revolta provocado
por esse tipo de violência, revelados pelos discursos. Diante desse cenário, os tipos mais
frequentes apresentados nos processos são: tentativa de estupro, estupro de vulnerável e
atentado violento ao pudor. Todos os casos analisados dos sujeitos-vítimas na época do
ocorrido eram menores de 14 anos e, o tio, padrasto, primo, avô e vizinho foram apresentados
como os principais agressores, de certa forma tem alguma semelhança com os dados
internacionais, nacionais e estaduais que apontam os familiares como os principais agressores
nas notificações. A seguir, serão descritos os processos, com atenção aos termos utilizados
pelos sujeitos elencados nos autos. Antes, contudo, serão demonstrados gráficos sintetizando
algumas informações sobre o universo dos 13 (treze) processos.
87

Na análise dos dados do gráfico 1 (um) sobre a relação do agressor com a criança e
adolescente, permite constatar que o tio aparece com 38% (trinta e oito por cento) das
notificações como autor, seguido do padrasto e primo, ambos com 23% (vinte e três por
cento) . Predomina nos casos analisados, o envolvimento de parentes, ou com a função de
responsabilidade, colocando assim como uma violência que tem como lócus o espaço
doméstico, e tem a casa como espaço privilegiado para essa prática violenta. Evidenciando
assim que os sujeitos agressores são conhecidos e tem ligações afetivas com as vítimas, e suas
famílias.

GRÁFICO 2 - Relação da vítima com o agressor

O gráfico 2 (dois) traz uma amostra de quem fez a denúncia. É interessante notar que
em todas as notificações foram realizadas por mulheres com alguma ligação estreita com a
criança ou adolescente, e a mãe aparece com a principal denunciante com 54% (cinquenta e
quatro por cento).
A decisão das mulheres em procurar a polícia e, posteriormente, em manter ou não a
queixa perante a justiça, representa uma forma de exercício de poder por essas mulheres,
revelando também que elas não pactuam com o lugar de vítimas passivas da violência. A mãe
é muitas vezes colocada com conivente, nas falas da comunidade, mas quando passamos para
a pesquisa, podemos constatar que nessa ótica, o direito de representação deve ser entendido
como sua capacidade legal para intervir no desenrolar dos acontecimentos, elemento
88

fundamental para o exercício de sua liberdade e autodeterminação. Porque muita dessas mães
são vítimas de algum tipo de violência. Outro elemento importante como canal de denúncia
foi o disque 100, que é um serviço ligado a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, onde
as pessoas podem denunciar, e ter seu nome sob sigilo.

GRÁFICO 3 – Quem fez a denúncia

No gráfico 3 (três) é apresentado um demonstrativo da idade quando a criança e o


agora adolescente tinham no período que ocorreu o abuso. A partir dos dados nos casos que
chegaram ao judiciário, como nas denúncias que foram notificadas no Conselho Tutelar, todas
as vítimas tinham menos de 13 anos, embora a denúncia tenha um espaço temporal de dois a
seis anos. Pode-se dizer que o abuso sexual cumpre uma constância, ou seja, leva anos até que
a criança ou adolescente sinta-se com coragem de relatar o abuso. Nessa direção, entende-se
que a ideia da violência intrafamiliar está distribuída e acaba por encobrir o fato de que ela se
desenvolve em um contexto na qual o homem desponta como o agressor, Pertinente ressaltar
que esse tipo de violência tem uma faixa etária mais vulnerável. Conforme mostra o gráfico
que vai dos oito aos treze anos como a faixa de maior incidência. Além de corroborar com os
dados nacionais no caso, de que o sexo feminino é o mais atingido. Nesse estudo, todas as
vítimas eram meninas morenas48, filhas de mães que trabalham fora, ou seja, que estão fora do

48
Termo escrito na Certidão de Nascimento das crianças e adolescentes
89

espaço doméstico o dia todo. E algumas têm o complemento da renda familiar com a Bolsa
Família.
Contribuindo para essa discussão, Morgado (2012) observa que há uma rotinização
extremamente perversa.

GRÁFICO 4 – Idade da vítima quando aconteceu o abuso sexual

A seguir, será apresentada a descrição dos 13 (treze) casos, fazendo um diálogo com
literatura especializado sobre o assunto. Pertinente esclarecer que alguns termos podem
parecer erros ortográficos, e podem até ser, mas prezou-se a fidelidade dos termos utilizados
nas denúncias colhidas pelos órgãos responsáveis pela investigação e responsabilização, ou
seja, pelo Conselho Tutelar, Delegacia, Ministério Público e Judiciário.

O primeiro caso descrito:


Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima- adolescente de 15
Acusado- pai
Denunciante- a tia
Data da notificação-1ª- dia 14 de agosto de 2008; 2ª notificação em 2009
90

A primeira denúncia ocorreu dia 14 de agosto de 2008, onde compareceu à sede do


Conselho Tutelar, Ricardo relatando que sua cunhada, residente em uma cidade do Pará,
levou sua filha adolescente para passar 15 dias com ela e que tinha ligado dizendo que a
mesma não voltaria. Dentre as providências imediatas o C. T. entrou em contato com o
conselho da referida cidade, no sentido de resgatar adolescente, mas souberam que a
adolescente estava estudando e não queria voltar. Em 2009, a tia de Diana fez uma denúncia
de abuso sexual contra o seu genitor ao Conselho Tutelar Paraense. Disse que, por diversas
vezes, foi abusada pelo seu pai. Para o prosseguimento da denúncia todos os documentos
foram enviados para o C. T. de João Lisboa, domicílio dos pais da adolescente. Quando
ouvida pela autoridade policial da cidade de João Lisboa a adolescente relatou que os abusos
começaram quando ela tinha doze anos.

“Disse que o pai lambia seus lábios, seios, vagina, e que chegara a ficar diversas
vezes nu em sua frente e pedia que ela lhe fizesse sexo oral, afirmando que não iria
fazer nada com ela, porque ela era sua filha. Disse ainda que quando completou
quatorze anos, seu pai lhe disse que ela tinha que pertencer a ele de qualquer
maneira e que por raiva, resolveu ter relações sexuais com um conhecido
adolescente por uma única vez. Revelou também que seu pai lhe deu uma surra e ela
foi morar com sua tia em Santana do Araguaia - PA, como forma de fugir dos
abusos”.

Em 27 de outubro de 2010 houve a audiência no Fórum local e a adolescente negou


todas as acusações que tinha feito junto ao delegado e ao Conselho Tutelar. O acusado já
estava preso numa das celas da delegacia local. No novo depoimento a vítima alterou seu
depoimento ao juiz porque a sua mãe implorou para que dissesse que a história era inventada
e porque precisava que o seu pai fosse posto em liberdade, uma vez que estava grávida e não
podia sozinha, criar os filhos. A mãe disse ainda que se o pai morresse na cadeia a culpa seria
dela. A vítima atendeu aos apelos da mãe e resolveu voltar a João Lisboa para “tirar o pai da
cadeia”. A menina revelou também que quando seu pai saiu da prisão disse na frente de sua
mãe: “dou a minha palavra para qualquer um que nunca mais vou mexer com qualquer uma
das minhas filhas”. A vítima tem cinco irmãs e um irmão. A adolescente foi coagida pela
genitora e a justiça revogou a prisão preventiva do acusado.
Em 28 de outubro de 2010 a adolescente compareceu ao C. T. relatando, que queria
voltar para a casa dos tios, por não querer mais conviver com os pais em virtude dos fatos
ocorridos. Para a sua segurança, a menina foi encaminhada à casa de passagem, onde
91

permaneceu por 08 meses, pois somente em 15 de junho de 2011 o seu tio assinou o termo de
responsabilidade pela adolescente.
Depois que a promotora de justiça de João Lisboa tomou conhecimento da nova
versão da vítima, resolveu ouvi-la novamente, tendo sido registrado que a mesma confessou
que mentira porque estava ainda na cabeça dela as palavras da mãe: “que se teu pai morrer na
cadeia a culpa vai ser tua”. Mas no novo depoimento ao ministério público a menina afirmou
que era verdade absoluta que seu pai “apalpava e chupava seus seios e seu órgão genital todos
os dias, entre os doze e quatorze anos” (Fls. 71) e que estas ações sempre aconteciam no
mato, onde ele fazia carvão.
Segundo o despacho do juiz o crime em apuração foi praticado no interior da família,
tratando-se de um crime de violência doméstica, posto que a vítima é filha do agressor e que o
mesmo utilizou-se da estreita relação afetiva que tinha para praticar o crime.
Analisando este caso percebe-se que é comum o abuso sexual intrafamiliar ser
desencadeado e mantido por uma dinâmica complexa que inclui o “segredo”. Esta dinâmica
está relacionada diretamente com o suposto agressor porque gera uma repulsa social, que
tende a se proteger através do segredo, conseguido e, muitas vezes, mantido à custa das
ameaças à mãe, principalmente. É caracterizado pelo comportamento compulsivo frente à
criança, vista como alívio para as suas tensões. É recorrente nos processos analisados que os
abusos sexuais sofridos por crianças e adolescentes no contexto familiar vêm acompanhados
de outras violências como negligência e abusos físicos e psicológicos. Esta situação se revela
através dos relatos das vítimas durante as denúncias. E os agressores utilizaram as artimanhas
da sedução, da persuasão e do imaginário, de tal forma que a criança sentia-se a preferida.
Para Vigarello (1998) o abuso sexual não pode ficar limitado à história da violência,
tratando-se de um emaranhado complexo entre o corpo, o olhar e a moral que essa prática
lembra. A vergonha, inevitavelmente sentida pela vítima, liga-se à intimidade imposta à
imagem que se oferece dela, à sua publicidade possível. (Vigarello, 1998, p. 8).
Para muitas mulheres é difícil acusar o marido, os parentes e os amigos. A denúncia
de violência sexual implica enfrentar a figura masculina, expor a pessoa ao risco da prisão, ou
lançar a família ao escândalo público. Muitas vezes ele é a única fonte de renda da família e
isso é acentuado na frase do sujeito- vítima: “precisava que o pai fosse solto, pois a mãe
estava grávida e não podia sozinha criar os filhos e que se o pai morresse na cadeia a culpa
era dela, e que ficou com pena da mãe e resolveu voltar a João Lisboa e tirar o pai da
cadeia”.
92

No caso acima citado, percebemos que as concepções e a hierarquia fundadas na


diferença sexual e/ou de gênero materializam sujeitos e comportamentos diferenciados, com
distintas posições de autoridade. “Todo o processo histórico de construção social de gênero
está presente quando se lê representações discursivas como aquelas em que o homem é o
“cabeça do casal”, “autoridade maior”, “provedor” da família” e “a mulher”, por natureza é
frágil, sem capacidade para comando, ação eficiente e competência para dirigir sua própria
vida e criar os seus filhos..
Parte dos estudos sobre abuso sexual intrafamiliar, especialmente os desenvolvidos
na década de 70 contendo relatos individuais de casos, situam a mãe da criança ou dos
adolescentes abusados como a “cúmplice silenciosa” do abuso incestuoso, de acordo com
Forward & Buck (1978). Acusada de omissão ou de conivência, a mãe exerce, segundo estes
autores, papel central na questão do incesto, ao abandonar emocionalmente sua família,
participando de maneira consciente ou inconsciente do processo de envolvimento sexual entre
pai e filha.
Butler (1979) questiona, no entanto, os fundamentos ideológicos que permeiam esta
visão estereotipada da mulher como co-responsável pelos erros do homem e tenta enxergar
com mais profundidade quem é essa mulher que quase toda a literatura psiquiátrica define
como “conivente”, a mulher que permite que o assalto incestuoso aconteça conscientemente,
mulher que é considerada como o terceiro participante invisível no ato sexual entre o marido e
a filha. (Butler, 1979, p. 98). Ainda de acordo com essa autora, a sociedade tem justificado o
comportamento do homem em buscar na filha o que não tem conseguido no relacionamento
com sua mulher, porque ele foi condicionado a ter, na família, as atenções e honras que sua
posição como homem adulto lhe assegura. Para a socióloga Saffioti quanto mais dominada for
a mulher, mais difícil lhe será reunir forças necessárias para proteger seus filhos dos ataques
do macho. (Saffioti, 1989, p. 21).
A maioria foi a mãe que fez a revelação aos órgãos de proteção a criança e ao
adolescente. Outro elemento que identificamos foi que somente em um caso analisado a mãe
confessou diante da autoridade policial que sofria violência doméstica por parte do seu
amásio.
Na análise das falas dos sujeitos encontramos concepções ideológicas, elementos
circunstanciais e interesses que confirmam a assertiva de Rocha Coutinho:

Os falantes inscrevem em suas falas suas ideologias e interesses. A cultura, assim


“fala por si mesma” através da fala do individual. Por isso é possível se examinar
nos discursos de desigualdades de gênero, opressão racial outras práticas de poder
93

que podem ser admitidas ou vistas como certas ou “naturais” por falantes
individuais. (ROCHA COUTINHO, 1998, p. 324)

Corroborando com a perspectiva do autor citado, recortamos uma expressão dita em


depoimento pela adolescente Diana:

Que quando completou quatorze anos seu pai lhe disse que ela tinha que pertencer a
ele de qualquer maneira e que por raiva ela resolveu ter relações sexuais com um
conhecido adolescente, que foi uma única vez. Que seu pai lhe deu uma surra e ela
foi morar com sua tia em Santana do Araguaia/PA, como forma de fugir dos abusos
do pai.

Essa postura, segundo Saffioti (2007), expressa a naturalização da diferença de


gênero, traduzida em hierarquização e legitimidade de poder, induz o homem a ver toda
mulher como uma presa. Embora por lei isso não se aplique, ele acaba tendo direito à vida e
morte dos seus filhos e de sua mulher. Nesse cenário, a violência está presente para preservar
o poder, sempre que este estiver ameaçado, recorrendo ao uso da força física. No que tange às
filhas, a postura masculina é, com frequência, a de caçador. Trata-se de mulher, não
importando a relação de parentesco com sua pretendida.
No abuso sexual o homem se vale de qualquer meio. No caso incestuoso, ele é a
pessoa respeitada da família, que só deseja o “bem” dos seus filhos. Nestas circunstâncias
observamos que as abordagens sedutoras ou agressivas para manter relações libidinosas com
crianças ou adolescentes tiveram todas as possibilidades de sucesso. Destacamos uma
expressão do pai de Diana, justificando os abusos: “que o pai chegara a ficar diversas vezes
nu em sua frente e pedia que lhe fizesse sexo oral, e que não ia fazer nada com ela, porque
ela era sua filha.” Segundo Saffioti:

Muitas vezes a criança ou adolescente não sabem que certas carícias são próprias do
amor sexual ou do amor filia, Ademais, se é o pai, que as pratica, deve tratar-se de
algo bom e socialmente aprovado já que o pai só deseja “o bem” da filha. Outras
vezes, a filha sabe que “não é certo” praticar determinados atos com seu pai, mas vê
se constrangida a fazê-lo O constrangimento abrange longo espectro indo da
sedução e da cumplicidade do segredo até a violência física. A ela não é dado optar.
(SAFFIOTI, 200, p. 60-61).

Percebe-se, com muita facilidade, a posição de objeto do desejo masculino ocupado


pela mulher. Lamentavelmente, inclusive para os homens, a sexualidade masculina foi
culturalmente genitalizada. Ou seja, esse ‘poder do macho’49, é inegavelmente, o pólo oposto

49
Termo utilizado pela Socióloga Heleieth Saffioti, no seu livro Poder do Macho, para designar o poder do
homem, e a sexualidade ligada a genitália (falo).
94

do prazer. No caso ilustrado, percebemos de modo bem claro os impulsos do homem-pai,


fazendo da filha seu objeto de desejo.

O segundo caso descrito:


Tipificação da denúncia-Estupro (B.O)
Vítimas- 03 meninas- 09, 10,11 anos
Acusado-tio
Denunciante-(Professora) Coordenadora da Escola
Data da notificação-06 de novembro de 2009

A segunda denúncia chega no dia seis de novembro de 2009, quando a coordenadora


de uma Escola faz um comunicado ao Conselho Tutelar, relatando que as estudantes MS (11
anos), MP (10 anos) e sua irmã MN (09 anos) estavam sofrendo abusos por parte do seu tio.
Segundo a mesma, que ouviu a primeira versão dos fatos relatados pelas garotas, “o tio
oferecia bebidas alcoólicas e exibia filmes pornôs para as meninas assistirem, enquanto
apalpava os seios de MN, que é sua sobrinha”.
Segundo a denúncia, as crianças estavam sob os cuidados da avó, mas a mesma
passava muito tempo em outro município, onde possuía uma terra e o tio ficava em casa, pois
as crianças tinham que frequentar a escola. Após os procedimentos da delegacia, como o
registro do Boletim de Ocorrência, as crianças foram levadas para a casa da avó, mãe do
suspeito, onde as mesmas moravam há um ano e meio. No dia 12 de novembro de 2009, os
avós foram intimados a comparecerem ao Conselho Tutelar para receberem as crianças.
Assinaram o termo de responsabilidade com a obrigação pelo zelo das referidas netas.
No momento da entrega as crianças ficaram com medo de apanhar da avó, pois a
mesma relata que “eram desobedientes por estarem falando coisas que não deviam e que
eram culpadas dos fatos”.
. Geralmente, a criança ou adolescente são colocados como culpados pela violência
sofrida, conforme a expressão revelada pela avó, no momento de recebê-las. O que é
percebido não é a violência, mas a exposição da família diante dos vizinhos, dos olhares
públicos.
Diante dessa realidade acima mencionada e pelo fato do Município de João Lisboa
não dispor de uma casa abrigo, os conselheiros optaram por deixá-las na sede do Conselho
Tutelar, aguardando o parecer da Justiça.
95

No caso analisado, o tio foi preso em flagrante, em seu depoimento junto ao


delegado, ele negou todas as acusações, mas como foram apreendidos materiais pornográficos
na casa no momento da prisão, não sustentou-se sua negativa. Em seu depoimento, afirmou
“que sentia desejo por elas, mas que não ia fazer nada, pois eram filhas do seu irmão, que
tinha bebido e usado drogas”.
O andamento do processo foi um dos mais rápidos, uma vez que o indiciado estava
preso. Em menos de três meses houve todas as audiências e a comunicação da pena. O réu foi
condenado a 9 anos de reclusão em regime fechado. O mesmo morreu na prisão, ainda
faltando muito para a sua liberdade.
Quanto às crianças, o pai tomando conhecimento da situação, levou-as para morar
com ele e sua segunda esposa, em um município próximo. Os avós se mudaram de João
Lisboa, pois sentiram-se estigmatizados diante dos acontecimentos e da prisão do filho.
Não existe nenhum registro de acompanhamento dos serviços do município a essas
três meninas, o que foi observado é a ineficiência dos serviços, onde as famílias, crianças e
adolescentes são deixados à deriva.

O terceiro caso descrito:


Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima- 02 meninas-10 e 11 anos
Acusado-vizinho
Denunciante- Disque 100
Data da notificação-29 de novembro de 2010
Incidência Penal-

Essa denúncia chegou no dia 29 de novembro de 2010, através da Secretaria de


Direitos Humanos da Presidência da República, o disque 100, e encaminhada ao Conselho
Tutelar pela Promotoria de Justiça, relatando que duas crianças, uma de 10 anos e outra de 11
anos, eram abusadas por um idoso, e que as mesmas recebiam 10 ou 20 centavos. Desse
modo, segundo o relato das crianças, prevaleceu o ato libidinoso por parte do idoso, mediante
o texto abaixo:

Que por diversas vezes foi brincar na casa do Sr. Gonçalo Barrosa convite de sua
amiga, a também criança Tatiane, enteada do mesmo. Que de lá saía para a casa do
pai do Sr. Maurício, o Sr. Gonçalo, que é próximo a sua residência. Que enquanto
brincava no quarto, o senhor Gonçalo passava a mão em suas partes íntimas,
colocava a mão dentro da calcinha e introduzia o dedo em sua vagina. Que no
96

momento que a porta da casa ficava aberta e quando o Sr. Gonçalo saía para ver se
tinha alguém chegando a mesma ia embora. Que recebeu diversas vezes moedas de
R$ 0,10 e R$ 0,20 centavos. Que não contou pra a sua genitora com medo dela lhe
bater. - DEPOIMENTO DA CRIANÇA AO CONSELHO TUTELAR (C.T.).

A segunda vítima dessa mesma denúncia disse ao C.T.:

Que conhece a criança W. Que no período da tarde ia brincar em sua casa quando
sua genitora morava com o Sr. G B, conhecido por M. Que ia diariamente e que a
mesma o chamava de avô, devido a sua mãe morar com um filho desse senhor. Que
enquanto brincava no quarto na casa do Sr. G, presenciou o mesmo passando a mão
nas partes íntimas (“perereca”) da criança W, que sempre ia a casa do referido
senhor e ele lhe dava dinheiro, no valor de R$ 2,00 e que ele também passava a mão
no seu corpo, pernas, seios, em sua vagina e pedia para não dizer para sua genitora.
Que não disse, com medo. - DEPOIMENTO DA CRIANÇA T. AO C.T.

Após serem ouvidas as duas crianças, acompanhadas pelo CT, fizeram o Boletim de
Ocorrência, onde foi requisitado o Exame de Conjunção Carnal necessário para instauração
do inquérito policial. O resultado do laudo do Instituto Médico Legal apontou resultado
positivo, confirmando que as duas crianças foram estupradas. Quando foi ouvida pelo
delegado de polícia, a criança T repetiu a versão apresentada ao C.T., mas observamos que a
referência aos órgãos genitais, passou de “perereca”, para “vagina”. Essa mudança
representa a intervenção da escrivã, no caso, uma jovem advogada, e demonstra o uso de
termos científicos, fugindo um pouco do senso comum. Os órgãos genitais recebem variadas
nomenclaturas, retratando assim o quanto ainda é difícil falar sobre sexualidade,
principalmente por parte das crianças e dos adolescentes. Foucault lembra que as crianças, por
exemplo, sabem muito bem que não têm sexo: boa razão para interditá-lo, de proibi-las de
falarem nele, razão para fechar os olhos, tapar os ouvidos, onde quer que venha manifestá-lo,
razão para impor um silêncio geral e aplicado. (Foucault, 1988, p.10).
Neste sentido, a condição histórica ocupada pelo sujeito pertence às diversas
produções que envolvem o discurso, ou seja, a memória discursiva que se apresenta como
parte dos sujeitos, à medida que esses são reconstruídos, como é o caso dos diversos
depoimentos que a criança e o adolescente precisam fazer nas diferentes instituições, quando
o abuso sexual é revelado. Fernandes (2007, p.54) destaca que uma formação discursiva nesse
sentido nunca é homogênea e é sempre constituída por diferentes discursos. Um mesmo tema,
ao ser posto em evidência, é objeto de conflitos e de tensão face às diversas posições
ocupadas por sujeitos, que se opõem e se contestam.
No interior das grandes e pequenas cidades as crianças brincam, ou no quintal ou no
quarto da casa. No trecho descrito acima observa-se que o local onde os abusos acontecem é
97

solitário, sem testemunhas. Este contexto retrata também a noção de relações de poder, não
pela força, mas pela sedução econômica, demonstrada através do oferecimento de algumas
moedas por parte do adulto. A situação econômica da família é precária e, no caso em
particular citado, a mãe da criança é doméstica, sobrevive com o auxílio do Programa Bolsa
Família do Governo Federal e uma mesada de R$130,00 que é paga pelo pai da criança W. As
crianças ficam sozinhas praticamente durante todo o dia, em casa, mas sob os cuidados dos
vizinhos. Assim sendo, os vizinhos constituem parte dessa família extensa50. Contudo, a
associação mecânica entre pobreza e abuso sexual tem sido rejeitada, tanto pela sua
insuficiência explicativa quanto pelo potencial estigmatizante dos segmentos populares da
sociedade. Ainda que o abuso sexual ocorra em todas as classes é fato que a sociedade
brasileira trata desigualmente autores de agressão e vítimas segundo a sua posição social, seu
gênero, sua faixa etária etc.
Outro elemento presente nos termos das vítimas é o medo da revelação à mãe: “pedia
para não dizer para sua genitora. Que não disse, com medo”. “Que não contou para a sua
genitora, com medo dela lhe bater”. Nessas expressões está contido o receio de que os outros
não acreditem nela ou, ainda, a julguem culpada, sobretudo se estiver sofrendo abuso sexual.
(FERRARI & VECINA, 2002).
Mesmo constituindo-se como uma das formas de violência mais presentes na vida de
crianças e adolescentes, o abuso sexual intrafamiliar ainda se caracteriza como menos visível
socialmente, se comparadas a outras formas de violência. Isto se deve ao fato de que ela
ocorre no âmbito privado, e que seus autores são pessoas próximas às vítimas. “A sua difícil
visibilidade se deve ao fato de que as vítimas desse tipo de violência parecer ficar
aprisionadas no desejo do adulto, uma vez que a ameaça e o medo, mantêm um ‘pacto de
silêncio’, como a agressor, num processo perverso instalado na intimidade de sua família”
(FERREIRA, 2002, p.23)
Nessa realidade, crianças e adolescentes tem limitadas ou anuladas as possibilidades
de proteção, tanto através de ações quanto da palavra, no caso, a denúncia, frente ao ato de
violência. No caso citado, mesmo tendo sido constatado o estupro, através do laudo médico, o
acusado não foi responsabilizado, e fugiu para outra cidade. Diante disso, a família que sofreu
o impacto da publicização do fato recolheu-se e não deu prosseguimento na busca pela
Justiça. Resultado é que as crianças não tiveram nenhum acompanhamento psicológico, e

50
Nesse estudo colocamos o vizinho como parte da família extensa, devido ser uma prática muito recorrente
nessa região, onde as crianças ficam sob os cuidados dos vizinhos ,amigos, madrinhas, devido os pais saírem
para o trabalho. A relação com o vizinho é próxima, até amis de que com alguns parentes, constituindo assim
uma pessoa de muita confiança pelas famílias..
98

tiveram que resolver sozinhas sua própria dor. Para evitar mais constrangimentos mudaram-se
para outro endereço.

O quarto caso descrito –


Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima- adolescente
Acusado- padrasto
Denunciante- mãe
Data da notificação-26 de novembro de 2010
Incidência Penal- Art.217-A c\c 226, inciso II. Art.71, do Código Penal

A quinta denúncia foi no dia 22 de novembro de 2010, quando a senhora Cristina


compareceu ao Conselho Tutelar relatando que sua filha, a adolescente Raimunda de 12 anos
estava mantendo relações sexuais com o namorado chamado de Zé de 21 anos. Em
decorrência da recusa da adolescente em voltar para casa, a mesma foi encaminhada para a
casa de passagem no dia 23 de novembro de 2010. Após o registro do Boletim de Ocorrência
na Delegacia de Polícia Civil, da realização do Exame de Conjunção Carnal e com a
orientação do Conselho Tutelar a adolescente aceitou voltar para casa e foi entregue à sua
genitora mediante termo de responsabilidade.
No entanto, em 25 de novembro de 2010, às 15h00min, o C. T. foi informado pela
mãe da adolescente que a mesma queria voltar à casa de passagem, pois estava sofrendo
ameaça de morte por parte do seu padrasto, devido a mesma ter mantido relações sexuais com
o namorado, e ter confessado para a mãe que era abusada sexualmente pelo padrasto desde os
11 anos de idade. Diante dos novos fatos, o Conselho Tutelar levou a denúncia ao
conhecimento do delegado e acompanhou-as para o registro do boletim de ocorrência e a
requisição de Exame de conjunção carnal. No relatório da Polícia Civil, enviado ao judiciário
consta o seguinte:

“Que dia 22 de novembro e 2010, a senhora Cristina, relatou ao delegado que sua
filha mantinha relações sexuais com o namorado. Entretanto três dias depois a
mesma retorna com a filha ao Conselho Tutelar e posteriormente a delegacia
oferecendo uma nova versão. Dizendo que mentiu, e que quem a desvirginou foi o
seu padrasto. e que fugiu porque seu padrasto estava ficando cada dia mais violento,
inclusive batia na mãe e quando interrogada a mãe confirmou a violência doméstica
que sofria. Que o indiciado M foi interrogado e negou que tivesse cometido crime. A
materialidade está comprovada por intermédio do laudo do IML” (Inquérito
nº46/2010).
99

O acusado ficou em liberdade, e na audiência judicial quando perguntado sobre a


veracidade da acusação disse: “Que ela me provocava me chamando de veado”. Percebemos
que o mesmo confirma as relações sexuais com a criança. E na escuta da adolescente ao juiz,
ela relata:

Que foi forçada a fazer sexo com o padrasto, que acontecia na parte da tarde quando
a mãe ia para o trabalho, e todas as relações aconteciam na cama da mãe. E que
quando padrasto soube do namorado lhe fez ameaças, quando resistia, ele batia na
mãe. E resolveu morar com o namorado para fugir porque o padrasto esta cada dia
mais violento.

Na decisão judicial foi imputada ao padrasto a prática da conduta delituosa tipificada


no art.217-A c\c 226, inciso II. Art.71, todo do Código Penal. Na conclusão do processo o réu
foi condenado, encontra-se foragido.
Na análise dessa situação podemos destacar alguns elementos que apareceram no ato
da denúncia, que a primeira notificação realizada pela mãe foi do namorado, maior de 18
anos, e sua filha menor de 14. As razões de fuga da adolescente para a casa do namorado
eram implícitas pela mãe. Muitas vezes os familiares tomam conhecimento da violência,
meses e até anos depois. Quando a criança ou adolescente são abusadas sexualmente, há uma
desorganização psíquica. Segundo os psicólogos, nesses casos, a vítima se envolve com outra
pessoa como uma fuga dos ataques sexuais dentro de sua casa. Os valores do machismo, do
patriarcalismo e de inferioridade de gênero e da submissão das crianças e adolescentes fazem
parte da estrutura de uma sociedade, na qual se inscreve a trajetória das notificações de abuso
sexual.. É muito debatida a relação entre o abuso sexual na infância e adolescência e os
prejuízos para o exercício da sexualidade na idade adulta.
Nas palavras de Anna Freud :”No abuso sexual, a criança não pode evitar ficar
sexualmente estimulada, e essa experiência rompe desastrosamente a sequência normal de sua
organização sexual”(FREUD apud FURNISS.1993.p.14).
No caso da Raimunda, o resultado prático desses abusos de anos se configura no
modo de vida que ela tem que conviver. Isso é bem presente quando ela no dia 26 de
dezembro de 2012 presta esclarecimentos de uma denúncia do disque 100, que relatava que a
mesma estava vivendo maritalmente com outro rapaz a cerca de três meses na casa dos pais
do mesmo, e estava sofrendo violência por parte do companheiro. Em depoimento no CT, a
adolescente relata.
“Que desde que foi morar com o novo namorado, sua genitora mudou seu
comportamento, ficando agressiva e chegando a dizer e que mesma não ‘prestava’ que era
100

‘culpada’ pela separação do seu marido, o qual está condenado e foragido da justiça”. Nesse
boletim de ocorrência a acusada passa a ser a genitora, por violência física e psicológica.

Ao nos defrontarmos com tantas dificuldades para romper o muro da convivência


que silencia os casos de abusos sexuais em crianças, quando se trata de adolescentes,
isso se torna mais difícil. Atribui-se, mais rápida e facilmente, a responsabilidade
doa abuso e minimiza-se o sofrimento vivenciado, como observa Butler: Se a vítima
expressa seus sentimentos através do uso de drogas, álcool ou prostituição,
concluímos que ela deve ter sido sempre uma menina má, e deve ser considerada
,pelo menos em parte, como responsável pela situação. (BUTLER. 1979.p.38).

Nas palavras de Butler podemos refletir bem os sentimentos da mãe que após o
processo judicial se viu separada do seu companheiro, e agora culpa a filha quando a mesma
relata que “a mesma não ‘prestava’ que era ‘culpada’ pela sua separação do seu marido”
As adolescentes têm mais dificuldade em provar que não foram culpadas ou
permissivas com o ato quando o acusado era parente ou amigo, pois as mesmas são
representadas como sedutoras e provocativas.
Nessa perspectiva Abromavay (2004) coloca que a iniciação sexual é destacada
como um rito de passagem, envolvendo distintos trânsitos entre infância, adolescência. Esse
tal caminho segundo a autora se dá na afirmação da virilidade para os meninos e a modelagem
sobre feminilidade para as meninas, além da busca por autonomia. A sexualidade se destaca
como projeto e práticas exercidas de forma singular por uma geração jovem.
A sexualidade precoce, tem se manifestado como um caldeirão de conflitos que dele
decorrem a gravidez indesejada, abortos improvisados, banalização do afeto e suas
implicações emocionais para os sujeitos envolvidos em situação de violência sexual.
No caso de abuso sexual, a adolescente perde a referência desse rito de passagem,
pois a mesma é levada a prática sexual, sem respeitar as fases do seu desenvolvimento
emocional e físico. Os sujeitos envolvidos numa relação de violência, com capacidades
psíquicas diferenciadas para o enfrentamento das adversidades da vida, sofrem mais ou
menos, vivenciado situações semelhantes. O grau de sofrimento individual de cada pessoa
envolvida numa situação de abuso sexual não pode ser mensurado.
Nos registros pode-se visualizar a percepção das vítimas em relação ao agressor, a
maioria expressava medo, que as crianças ou adolescentes não consentiram, ou seja, não eram
favoráveis à situação abusiva, e em muitos dos casos envolviam-se sexualmente com outros
adolescentes, de certa forma para cessar os abusos.
101

O quinto caso
Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima- meninas de 12 e 10 anos
Acusado- avô
Denunciante- tia
Data da notificação-01 de fevereiro de 2011

No dia 01 de fevereiro de 2011 compareceu a Promotoria de Justiça a senhora Eva,


brasileira, viúva, que declarou que sua irmã Lia, de 47 anos, tem três filhos, Yana de 12 anos,
Yvone de 10, e Hélio de 7 anos, que atualmente estão residindo coem sua residência. Que sua
irmã sofre de depressão e que não tem condição de assumir os atos de sua vida civil, que
morava em Brasília, e veio passar alguns dias em João Lisboa. Quando quis retornar, sua filha
de 12 anos disse que estava sendo abusada sexualmente pelo avô, desde os 7 anos. Que a
declarante pede ajuda do Ministério Público sobre esse caso. A adolescente Y foi ouvida pela
promotora de justiça e fez a seguinte declaração

“Morava em Brasília, que vinha sendo abusada pelo seu avô paterno, quando tinha
cerca de sete anos, que os abusos aconteciam quando os pais iam dormir na casa do
referido avô, ele botava a declarante para dormir no quarto dele, sob o pretexto de
assisti televisão na casa dele e, bem mais tarde, quando todos dormiam, passava as
mãos em seu corpo e enfiava o dedo em sua vagina, que uma vez que ele fez isso
doeu e sangrou um pouco, que ele beijava sua boca e dizia que era normal, que é
coisa de avô e neta e que não era para a declarante contar nada pra ninguém, senão,
ele mandaria internar sua mãe e dava uma surra nela, ela nunca contou pra mãe,”.

A mesma aproveitou que estava na casa da tia para contar tudo que vinha sofrendo,
que sabe também, que seu avô abusava da irmã, pois a mesma lhe contara que ela já tentou
enfiar o dedo nela e disse que ela tem um “boca muito gostosa”, que pediu pra seu avô deixar
sua irmã fora disso, que ele negou tudo. Perguntada se queria dizer mais alguma coisa, a
declarante pediu proteção, pois se a mãe voltasse para Brasília, o avô ia internar a mãe numa
clínica psiquiátrica, e ficar com a guarda deles, e assim ficar livre para abusar dela e da irmã.
No dia 09 de fevereiro de 2011, foi registrado o BO, feito o exame de conjunção
carnal nas duas meninas. Contou que os abusos aconteceram dos sete aos onze anos data que
deixaram a casa do avô.
No relatório elabora pelo CT, prestando esclarecimento ao MP, relataram que a
adolescente foi atendida pela psicóloga, poucas vezes, pois a mesma não gostava de responder
as perguntas, pois era difícil ter que se lembrar dos abusos sofridos. E pediu a tia para não
102

participar mais das sessões com a psicóloga. Que a irmã dizia que o avô sempre a beijava na
boca. Green (1995) citado por Azambuja corrobora com a discussão “A persistência da
negação da criança sobre o abuso sexual previsivelmente complica sua avaliação e
tratamento” (GREEN apud AZAMBUJA 2006).
O resultado do IML constata que a adolescente Yana foi estuprada, apresentando
ruptura himenal, enquanto que sua irmã apresenta hímen intacto.
A senhora Eva que é tia, está com a guarda das crianças, os mesmos estudam, e o
processo sobre a violência sofrida por ambas, está tramitando no Judiciário.
Percebemos no caso analisado que o abuso sexual, tende a se rotinizar e manter a
criança em estado permanente de alerta, pois sua manifestação pode ser desencadeada pelos
fatos corriqueiros. E que a criança ou adolescentes muitas vezes não tem como escapar dos
ataques. Exemplo é quando Yana reclamava do abuso do avô “ele beijava sua boca e dizia
que era normal, que é coisa de avô e neta e que não era para a declarante contar nada pra
ninguém, senão, ele mandaria internar sua mãe e dava uma surra nela”.
A mãe de Yana tinha depressão além de outros, percebemos como esse problema foi
usado contra ela todo o tempo, pelo avô, porque ele sustentava a família do filho, e
consequentemente se aproveitava da situação de parentesco, e provedor econômico.
É pertinente nessa situação, a análise de Faiman (2011), revela que um exemplo claro
de abuso de poder, que pode adquirir um caráter sexual, é a situação em que, por meio de
ameaça ou chantagem, uma pessoa consegue que a outra tome atitudes que, de outra forma,
não tomaria. Podemos rever as palavras da autora, através da situação vivida pela adolescente
Yana. Saffioti (1987) enfatiza: Quando o homem desfruta de uma posição de poder em
relação à mulher, criança ou adolescente tem a função de caçador. Para o poderoso macho
importa, em primeiro lugar seu próprio desejo (P.18). Em suma, esse apoderamento não se
verifica somente na sexualidade, pode-se entrar no terreno pago para que o homem possa
sempre ocupar a posição de mando, principalmente quando o aspecto econômico é usado
como argumento para a submissão da criança ou adolescente a várias situações de violência.

O sexto caso
Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima- menina de 09 anos
Acusado- primo
Denunciante- mãe
Data da notificação-09 de fevereiro de 2011
103

Incidência Penal- Art.- 217-do CP

Foi denunciado no dia 09 de fevereiro de 2011, através do processo 9492/2011 C. T.


pela Keila. Que afirmou que no dia 08 de Fevereiro sua filha, a criança Cássia, lhe relatou que
foi abusada sexualmente por seu primo de nome Danilo. Na denúncia consta que, em
atendimento à criança na sede desse órgão, a mesma relatou que enquanto brincava no quintal
da casa de sua avó paterna, no bairro Cidade Nova, seu primo lhe mostrou suas partes íntimas
(pênis), tirou sua calcinha, deitou sobre seu corpo e introduziu o pênis em sua vagina e que
este fato aconteceu duas vezes. A mãe da criança informou ainda que a mesma sofre de
insuficiência pulmonar e que já foi submetida a três cirurgias de hérnia. Mãe e filha foram
encaminhadas à delegacia para realizar o exame de conjunção carnal e o resultado foi
positivo. O boletim de ocorrência foi realizado com a tipificação de estupro de vulnerável,
pelo fato de, além de ser criança, a menina tem um problema sério de saúde.

Aos 10 dias do mês de fevereiro de 2011, nesta cidade compareceu a Sra. Maria do
Espírito Santo e disse à autoridade policial que presenciou quando a criança C.
prestara a declaração nesta delegacia e dissera que havia sido vítima de abuso sexual
por parte do seu primo D. e que presenciou quando a criança informara que o fato
acontecera duas vezes, dentro da casa da senhora M. da L., avó da vítima e do
agressor. Que presenciara quando a criança disse que seu primo “tirava o negócio
dele” e depois deitava em cima dela. Que nesta delegacia foi informada que o laudo
do IML deu positivo e que a mesma sofrera ruptura himenal antiga, ou seja, faz
algum tempo fora estuprada. (Termo de Declarações da Conselheira)

No seu depoimento o acusado se declarou solteiro, lavrador, 21 anos, negou todas as


acusações feitas pela mãe da vítima, e pela criança. Foi instaurado o inquérito sendo anexado
o resultado do exame de conjunção carnal que dera positivo pra estupro. Sendo que o mesmo
foi qualificado no art.217-A do CP. No dia 23 de novembro de 2011, O Ministério Público
oferece a denúncia com o seguinte relato:

Pesa contra o requerente a imputação de crime de estupro praticado contra


vulnerável, sua prima de 09 anos, que ele convivia que se aproveitando das
condições de coabitação, indiferente à tenra idade da ofendida. Trata-se de uma
violência sexual contra criança, dentre os termos investigados nesta comarca, em
que atuação estatal tem conseguido andar a passos lentos, nutrir as vítimas de
determinações suficientes para trazer a lume sua história, muita vezes em detrimento
das próprias relações familiares. (fls.26), que após o crime evadiu-se do distrito da
culpa.
104

A decisão da 2ª Vara decreta a prisão preventiva do indiciado, pelo suposto crime de


estupro de vulnerável. Não resistiu a prisão, mas nunca confessou seus atos. Segundo o juiz
do caso verificam-se várias condicionantes deve ser preenchida pela conduta. “A primeira e
mais importante para o caso dos autos, diz respeito à idade da vítima, segundo pela presença
de provas cabais da autoria e materialidade do delito”.
. Ao contrário da redação proposta no CP antes da entrada em vigor da lei
12.015/2009. Segundo o juiz “Atualmente não se busca a pesquisa do concreto, já que o
legislador por fim a referenda discussão para conferir às pessoas menores de 14 anos a
titulação de vulnerável, impendente da caracterização do crime leia-se a vítima já foi
corrompida anteriormente, uma vez que se busca tutelar á a dignidade sexual da pessoa
independentemente do juízo moral e social”.
Em sua decisão o juiz, fez um relato, contextualizando sua decisão.

Apesar de negar a autoria encontra-se imputado sob o acusado: se aproveitou da


confiança da vítima em decorrência do parentesco, tinha pela consciência da idade
da vítima. Merece registro, que os crimes sexuais tal como o aqui analisado são
praticados na sua grande maioria na clandestinidade e em local esmo sobre qual se
apoio ao agressor para se manter puro e livre de qualquer responsabilização, sendo
esta a razão porque se deve creditar à versão da vítima, quando corroborada por
outros elementos carregados aos autos de forma coesa” .STF “em se tratando de
delito contra os costumes, a palavra da ofendida ganha relevo especial aliada aos
exames periciais, elide ao argumento da negativa da autoria. (fls.37) STF 278/343.

Em suas palavras o juiz do caso revela ainda, a preocupação do Judiciário na defesa


da criança e adolescente, vítimas de violência, o mesmo retrata o quanto a menina não tinha
como ser a culpada, ou a provocadora, pois os autos falavam por si, através das testemunhas e
sem falar da visão física da mesma. Nesta perspectiva ele salienta:

Quando o juiz analisa um procedimento para julgar a conduta de um abusador


sexual, convém salientar que não haveria como se falar que a vítima Cássia
ostentava, à época dos fatos “experiência sexual”, pois além de contar com 8 anos
absolutamente, todos os depoimentos colhidos por esse órgão judicial inclusive os
prestados pelas testemunhas de defesa, informara o contrário descrevendo aquela
como uma criança tímida, reservada, pueril, desprovida, até mesmo dos atributos
corporais caracterizados da puberdade (fls 109ª 129).

A decisão foi de condenação para o réu a 9 anos e onze meses, inicialmente em


regime fechado, com as combinações do Art. 217 e 71 do CP.
Segundo o advogado de defesa – “não há provas suficientes para a condenação do
réu, que a única pessoa a apontar como autor foi a vítima, que é incapaz de arguir
corretamente como supostamente ocorreu o fato em vista que há contradições em relação ao
105

modo de ato infracional e não discernimento da data do ocorrido, pelo longo lapso temporal a
proposta da denúncia ofertada.”
No acordão de n° 122547/2012

A configuração do tipo de estupro de vulnerável nos termos da lei 12.015/2009,


independe da análise da configuração da violência ou mesmo da vida sexual
pretensa da vítima, bastando que o agente mantinha conjunção carnal ou pratique
outros atos libidinoso com menor de 14 anos.(fls.228.São Luis.19/11/2012,a
jurisprudência pátria tem se posicionado favorável à condenação do réu em crimes
contra a liberdade sexual com base nos depoimentos das vítimas quando os mesmos
se mostram coerentes e harmônicos com o apoio nos demais elementos probatórios
nos autos.

As crianças e adolescentes vítimas de violência intrafamiliar vivem em estado de


tensão, e com isso acaba trazendo par si a responsabilidade sobre a violência a que está
potencialmente exposto em seu cotidiano. Pois a dinâmica de desvalorização de sua palavra
frente à autoridade do adulto, especialmente do adulto homem, é reproduzida nas relações
familiares. Por essa razão, acusa-se a criança ou adolescente, podemos verificar na fala do
advogado de defesa nesse processo, “a vítima, que é incapaz de arguir corretamente como
supostamente ocorreu o fato em vista que há contradições em relação ao modo de ato
infracional e não discernimento da data do ocorrido”.

Morgado (2012) enfatiza

O descrédito no relato da criança, calcado na banalização da violência e pela


proteção à instituição familiar e contribuindo pra a manutenção desigual da
distribuição de poder, leva a que não só os agressores culpem as crianças, mas
também outros membros da família (MORGADO, 2012.p.81).

O abuso sexual afeta o desenvolvimento de crianças e adolescentes, e o impacto


estão relacionados a fatores como vulnerabilidade, funcionamento familiar, recursos
emocional e financeiro que muitas vezes se constituem como problemas na família, e
incluindo aqui também o acesso ao tratamento. Para Gabel (1997. Mattos. 2005) os efeitos
negativos diante do abuso mais intrusivos, como a penetração resultam em consequências
mais negativas à criança pela sociedade, e essa responsabilização da criança ou adolescente
pela interação sexual faz com que, segundo a literatura especializada, sejam desenvolvidos
quadros de depressão, transtornos alimentares, déficit de atenção.

O sétimo caso
106

Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro


Vítima-adolescente de 14 anos incompletos
Acusado- padrasto
Denunciante- mãe
Data da notificação-16 de julho de 2012,

Foi registrado através da denúncia levada ao C.T., no dia 16 de julho de 2012, pela
mãe da adolescente Salete de 14 anos, que seu marido, padrasto da vítima, abusava dela desde
os oito anos, que lhe dava presentes, inclusive um celular e que morava com mais duas irmãs.
As relações sexuais aconteciam sempre na cama de sua mãe, quando ela estava no trabalho.
Quando não estava mais suportando, a criança falou para a mãe que o expulsou de casa, mas
ele passou a ameaça-la de morte. A adolescente foi encaminhada à Delegacia para solicitar a
requisição do exame de conjunção carnal. Quando foi ouvida pelo delegado relatou que:

Inquirida pela autoridade policial, reafirmou que era forçada a manter relações
sexuais até o mês passado (Junho de 2012) com seu padrasto M. Que fora
desvirginada51 aos oito anos, que nunca contou o fato a ninguém, que as demais
relações sexuais que tivera com M sempre aconteciam na cama de sua mãe quando
ela saia para trabalhar na parte da tarde, que M exigia que mantivesse relação sexual
com ele e ameaçava lhe matar se por acaso contasse para alguém o que estava
acontecendo. Entretanto, no sábado passado resolveu confessar o que estava
acontecendo para a sua genitora, tendo em vista que M passou a ficar violento e
chegou a quebrar o celular que havia lhe dado de presente. Que fez um mês que está
namorando um rapaz chamado de Samuel e que por este motivo o padrasto passou a
ficar com ciúmes. Que sua mãe conversou com M e esse saiu de casa, mas fez
ameaça de morte contra sua mãe e chegou a investir contra ela com uma faca. Que
na noite de segunda feira resolveu dormir na casa do namorado e manteve relação
sexual com ele. Que atualmente seu padrasto está morando na casa dos pais dele.

No caso apresentado, o processo está em andamento no fórum local. A mãe pediu ao


delegado uma requisição de exame de conjunção carnal para as suas outras duas filhas. Nota-
se que no trecho transcrito acima o sujeito vítima traz à tona aspectos de sua vida de
violência. Percebe-se ainda a formação discursiva de que o homem é movido por instintos e,
por isso, não pode controlar seus desejos, principalmente na expressão: “era forçada a
manter relações sexuais até o mês passado (junho de 2012) com seu padrasto. Que fora
desvirginada aos oito anos. E que relações sexuais que tivera sempre aconteciam na cama de
sua mãe”. Nesse caso o sexo se constitui como prática essencial para o universo masculino,
pois, discursivamente falando, o homem vê a mulher, a menina adolescente, como objeto de
uso e desejo, que deve satisfazê-lo em todas as suas vontades e fantasias.

51
É o termo que consta nos autos do inquérito policial.
107

De volta a esse processo, observei que o processo teve um prosseguimento, e que já


aconteceram algumas audiências, e o acusado quando ouvido pelo juiz, disse que não é
verdade as acusações, e que sempre cuidou das crianças como se fossem suas filhas. Para sua
defesa, ao acusado fez uso de sua deficiência, que não constavam nos autos qual era. Essa
premeditação está exemplificada no depoimento da criança, que nunca contou o fato a
ninguém, que as demais relações sexuais que tivera com seu padrasto sempre aconteciam na
cama de sua mãe quando ela saia para trabalhar na parte da tarde Nessa direção Saffioti
aponta.

O abuso não pode ocorrer diante de outros membros da família, especialmente a


mãe. Logo, não pode ser deixado ao acaso da emergência do desejo sexual. Deve,
então, ser planejado para acontecer quando a mãe está hospitalizada, viajando,
trabalhando fora do lar, fazendo compras ou dormindo, etc.(SAFFIOTI.1992.p.22).

Na maioria dos casos aqui analisados, os abusos aconteceram dessa forma, a


ausência da mãe, por a mesma estar no trabalho fora de casa, como afirma Saffioti.
Problematizar sobre o papel da mulher mãe diante do abuso sexual incestuoso constitui um
caminho longo e desafiador, porque envolve muitas sutilezas próprias de cada situação, que
passa pela responsabilização sobre a violência sofrida por sua filha, além do lugar ocupado
por essa mulher na estrutura da sociedade.
A perspectiva intergeracional, (Rangel 2009) se desconsiderada, leva o adulto a
acreditar que os desejos da criança são idênticos aos seus, o que é uma inverdade, além de
trazer consigo uma negação do poder que permeia a relação adulto-criança e das dificuldades
concretas e psicológicas que a criança tem que romper com a sua família, decorrentes de sua
estrutura estrutural, caso não queira se submeter ao relacionamento sexual.
Portanto a mesma autora considera que “a proibição do desejo sexual entre pai e
filhos humanos, não pode ser uma imposição natural, uma vez que os caos de incesto existem,
e são muitos, apesar de toda a repressão moral, religiosa, cultural, e da censura legal”
(RANGEL. 2009.p.59).

O oitavo caso
Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima-adolescente de 16
Acusado- tio
108

Denunciante- disque 100


Data da notificação-12 de maio de 2012
Incidência Penal-

Compareceu ao Conselho Tutelar no 11 dias do mês de junho de 2012. A senhora


Regina de 44 anos, solteira, funcionária pública, através da notificação 032/12 para
esclarecimento do disque 100, protocolo n°276804, denúncia n°96.981 datados de 12 de maio
de 2012.

No registro da ocorrência no CT, segundo a senhora Regina, sua filha Gabel, hoje
com 16 anos, vem sendo abusada desde os nove anos pelo seu tio. A genitora relatou
a este conselho que a adolescente só falou para ela porque havia tirado um pedaço de
pau debaixo de sua cama ,porque era para se defender do tio, que vivia tentando lhe
abusar.

O nono caso
Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima-adolescente de
Acusado- tio
Denunciante- adolescente
Data da notificação-18 de julho de 2012,
Incidência Penal-

Apresentado ocorreu com a denúncia no dia 18 de julho de 2012, ao CT, pela


adolescente Tânia, de 13 anos que relatou que:

Desde os seis anos seu tio passou a lhe abusar sexualmente, passando a mão no seu
corpo quando a mesma dormia em um quarto de sua casa onde mora com sua
genitora e seus 05 irmãos. Acontecia quando o tio percebia que a adolescente estava
sozinha e dormindo. Que uma das vezes foi acordada por ele que estava colocando o
dedo no seu ânus enquanto dormia no beliche do irmão e outra vez acordou com o
seu tio tentando tirar a sua calcinha.

No Boletim de Ocorrência foi registrado como estupro de vulnerável, de acordo com


a nova legislação do Código Penal Brasileiro (CPB). O acusado é lavrador e moreno, mas não
foi possível revelar outras características, em virtude de os espaços em branco em alguns
documentos, inclusive no Boletim de Ocorrência (B. O.). Sobre esses espaços em branco
Côrrea (1983) observa que:
109

Se os espaços preenchidos são as formas pré-determinadas de um processo, as


páginas em branco são as estratégias utilizadas pelos atores jurídicos para
transformar o real, numa realidade manipulável, flexível. As várias fases de um
processo, redefinidas por esses atores que as preenche e sua escolha vai determinar
por sua vez as margens de opção deixadas ao grupo que finalmente decide da sorte
do acusado, decidindo ao mesmo tempo da correção das estratégias escolhidas para
apresenta-lo. (CORRÊA, 1983, p. 6).

Os dois casos analisados (oitavo e nono) remetem a uma mesma família, são duas
irmãs, abusadas durante muito tempo pelo tio, em duas das denúncias, alguém faz uma
ligação para o disque 100, e na outra, a própria adolescente faz a denúncia na delegacia,
auxiliado por um investigador da polícia civil. Foi verificando que algumas denúncias não
passam pelo Conselho Tutelar primeiramente, isso acontece devido, muitas pessoas não se
sentirem seguras ao deletar alguém, por isso recorrem ao MP, ou a Delegacia por se sentirem
mais seguras. Os casos de abusos sexuais aqui analisados, o número de vítimas é maior do
que o número de processos.
O referido acusado foi preso e condenado por três crimes de violência sexual: além
das sobrinhas, um menino e uma menina também foram abusados pelo acusado. Atualmente
cumpre pena na delegacia local.
Um elemento bastante perceptível nos autos, é que a negligência é uma violência tão
grave tano a sexual, porque dela decorre a maioria das outras violências. Nos dois casos
analisado em conjunto, devido o agressor ser a mesma pessoa, no caso, o tio, verificamos a
demora da mãe de comparecer ao Conselho Tutelar depois da denúncia. Nesse sentido,
entende-se que para os familiares fica a dúvida, o medo de denunciar alguém próximo. Nesses
casos fica bem ilustrado por Morgado (2012) a reatualização da perspectiva da mulher como
pilar de sustentação moral e afetiva da família conduz a diferentes sentimentos e indagações.
Como podem essa mãe ser protetora, enquanto seus filhos passam o tempo todo sozinhos?
Lembrando que a análise da violência sexual a partir da perspectiva de gênero na qual a
mulher ocupa historicamente uma condição subordinada, é possibilitar quem são essas
mulheres mães, vislumbrando identificar como vêm, ou não, se estruturando suas estratégias
de rompimento desse processo de violência e subordinação, mesmo quando não tem o marido
e a poder masculino, é assumida por outros, ou seja, irmão, pai, tio.

O décimo caso
Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro
Vítima-menina de 09 anos
Acusado- padrasto
110

Denunciante- mãe
Data da notificação-2012

A denúncia é de 2012, a criança Kátia, de 9 anos, na época cursava a segunda série do


ensino fundamental e teve como acusado de abuso o seu padrasto. No relato ao Conselho
Tutelar, ela conta:

Durante a noite quando estava dormindo na sala, ele chegou lhe tirando a roupa,
mexendo com o dedo no seu órgão genital o qual ficava acariciando. Em seguida,
colocou o dedo na sua vagina. A criança disse ainda que tinha medo do seu padrasto
e depois passou a dormir com seu irmão menor. Disse ainda que sente muita raiva
do seu padrasto e que ele lhe bate de cipó e cinto, devido ela não deixar que ele lhe
toque.

Segundo a perícia não houve rompimento do hímen. Não foi encontrado nenhum
indício de que este relato tenha provocado à abertura de um inquérito policial. Nesse sentido,
devido não ter havido rompimento himenal, a denúncia não teve prosseguimento. Nesse caso
em questão o depoimento da criança não foi levado a sério, isso porque o laudo do IML não
indicava o evento. Entretanto não se pode compactuar com a ideia de que, se não há vestígios
aparentes não houve violência. Segundo Rosana Morgado (2012) quando se avalia esse
processo vivenciado por crianças e adolescentes podem estar relacionados outros fatores.
Corroborando com a autora, Furniss elenca que: “Idade do início do abuso, duração do abuso,
grau de violência ou ameaça, diferença de idade entre a pessoa que cometeu o abuso e a
criança que sofria o abuso, ausência de figuras parentais protetores e o grau de segredo”
(FURNISS. 1993.p.15).
Embora existam leis punitivas para esse tipo de crime, a impunidade dos agressores
constitui-se em outra característica da violência intrafamiliar, favorecendo uma das bases para
que a violência se perpetue, legitimando-a e produzindo um sentimento de profunda
insegurança nas crianças e adolescentes.
Outro ponto que merece destaque nessa história de abuso é o descumprimento do
Estatuto da Criança e do Adolescente, onde pela primeira vez na legislação, vê-se, claramente,
que a violência contra crianças e adolescentes pode ser cometida por pais ou responsáveis,
prevendo-se sanções a eles. Em seu artigo 130, diz
“Verificando a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos
pais ou responsáveis, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o
afastamento do agressor da moradia comum” (ECA. 1990. Art.130).
111

Nesse sentido, não foi dada pelos órgãos de garantia de direitos, a menor
possibilidade de proteção da criança, pois a mesma não passou por nenhum serviço de ajuda
(assistência social, psicológica), e muito menos na justiça. Resultado é que o caso encerra-se
na delegacia. Aqui fica claro, o descumprimento da lei, pelas próprias autoridades que são
encarregadas de cumpri-la, no qual é previsto no Artigo 214 do Código Penal, o atentado
violento ao pudor que “constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou
permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Esse delito fica
bem evidenciado quando do depoimento da criança ao delegado:
Que Durante a noite estava dormindo na sala, quando ele chegou lhe tirando a
roupa, mexendo com o dedo no seu órgão sexual o qual ficava acariciando. Em seguida,
colocou o dedo na sua vagina.
É importante ressaltar que no B.O (Boletim Ocorrência) a tipificação feita na
delegacia foi de estupro. Portanto, quando se fala da violência presumida, prevista no artigo
224 do ECA, em que se pese a existência de leis e regulamentações prevendo a aplicabilidade
de punição aos responsáveis pela violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes,
dispõe-se de pouquíssimos dados acerca da efetivação, e pode-se inferir, com segurança, que
lidamos, ainda hoje com a existência da impunidade.
Dados de uma pesquisa realizada por Assis e Sousa, citados por Rosana Morgado
(2012) coloca que a morbidade de crianças e adolescentes, no município do Rio de Janeiro,
mostram que foram observados 8 mil eventos mórbidos por violência no ano de 1990, os
abusos sexuais representam 4% das ocorrências. Essa pesquisadoras chama atenção para o
que fato que:
A realização do exame pericial ocorreu em 58%, (corpo de delito) e, em 7%
efetuados outros exames. Estranhamente, 35% das vítimas de abuso sexual não foram
submetidos a qualquer exame. (ASSIS &SOUZA. 1995. apud. MORGADO. p.75).
Essa realidade apresentada nos dados embora seja de duas décadas atrás revelam que
na atualidade ela persiste. O baixo índice de instauração de inquérito, realização de exame de
corpo de delito dentre outros como no caso DST/HIV para as vítimas de violência sexual são
poucos realizados.
A impunidade não se explica somente pelos limites explícitos das leis, pois estas
dependem de sujeitos sociais que as acionem, as interpretem e que, também, as alterem. Um
dos caminhos já trilhados internacionalmente aponta para a necessidade de ampliação ente os
prazos dos “fatos cometidos e os fatos denunciados”. Vigarello (1998).
112

O quadro demonstrativo abaixo traz uma ideia do espaço entre a primeira ocorrência
do abuso e a denúncia. Os dados coletados nos processos analisados, embora não seja preciso,
a criança ou a adolescente, normalmente, não sabe com exatidão indicar quando foi o
primeiro episódio de violência que sofreu, até porque uma grande parte eram crianças com
pouca idade.

TABELA 5 – PERÍODO ENTRE A PRIMEIRA OCORRÊNCIA DO ABUSO E A


DENÚNCIA

Menos de 1 ano 05 casos


1-3 anos 04 casos
5-7 anos 04 anos

Com base no quadro acima, verifica-se um longo período até que o abuso sexual
chegue ao conhecimento de pessoas fora do âmbito das relações familiares. Vale destacar que
essas informações são registradas pelas crianças ou adolescentes utilizando algumas
expressões tais como: “várias vezes”, “ toda vez que a gente ia dormir na casa dele”, ”quando
a mãe saia para o trabalho” dentre outras, que evidenciam a frequência dos abusos.
Percebemos quão grave é a demora ou a falta da denúncia em caso de violência
sexual, onde as crianças muito pequenas, não conseguem revelar o abuso porque não sabem o
que aconteceu, e pela demora, as provas ficam comprometidas para elucidação dos casos.
Da denúncia até a provável chegada ao judiciário, a criança ou adolescente é ouvida
pelo menos por cinco profissionais diferentes, e muitas vezes resultam na vitimização desses
sujeitos já marcados pela violência. Sobre o processo de vitimização Azevedo & Guerra
(2007) colocam que o estudo dos problemas ligados à vitimização sexual de crianças e
adolescentes foi, durante muito tempo, objeto de cerrado bloqueio. Por parte da sociedade em
geral, e especialmente dos profissionais que atuam na área.
Para Nelson Vitielo, médico ginecologista

A frequência com tais atos são praticados é de muito estabelecimento, visto eu sobre
ele se estende uma verdadeira conspiração do silêncio. Sabemos que apenas alguns
casos, em geral ou mais brutais ou de maiores consequências, chegam ao
conhecimento de profissionais. por ser ocorrência que envolve medo e vergonha, a
informação da vitimização sexual é sonegada, frequentemente até pela criança ou a
adolescente.(VITIELO, 2009, p.126).
113

Para viabilizar a imposição de regras arbitrárias, o individuo, no caso o agressor


possui perante o outro (criança, adolescente) um diferencial de recursos simbólicos ou
materiais que o sustente. E na busca desse referencial simbólico de recursos é que se criam os
estereótipos e se atribuem valores desiguais às diferenças entre os seres humanos.

3.9. Os crimes contra a dignidade sexual

Dignidade vem do latim dignitate, que quer dizer virtude, consideração, honradez.
Ao falar sobre a dignidade sexual, procuramos trabalhar o conceito dicionarizado, do que é
dignidade. Segundo o dicionário Houaiss e Villar (2004) “dignidade é a consciência do
próprio valor, honra, modo de proceder que inspira respeito, distinção, amor próprio”
(HOUAISS; VILLAR, 204, p248).
Podemos dizer que a dignidade de um indivíduo representa a sua integridade moral, e
um possível ataque a essa dignidade resulte em danos morais, precisa ser reparado pela justiça
quando acionada. A dignidade da pessoa humana se tornou um princípio norteador de todo o
ordenamento jurídico, inclusive na aplicação dos demais princípios que estão condicionados a
dignidade.
Nesse sentido, através do conceito podemos concluir que toda forma de depredação
ou redução do homem, considerando-o não sujeito, mas sim como um objeto de direito é
vedada, não havendo sequer possibilidade de se rebaixar qualquer ser humano (NOBRE
JUNUIOR apud RODRIGUES, 2012). Nessa direção o filósofo Immanuel Kant (1724-1804)
enfatiza que a dignidade é o valor revestido daquilo que não tem preço, ou seja, não tem algo
equivalente ao seu valor aos indivíduos.
No entanto, a dignidade da pessoa humana, diferentemente de outros direitos, não é
fruto de um mero aspecto referente às relações de existência ou não do ser humano, e sim, é
uma característica inerente do ser humano que o difere dos demais seres (TAVARES apud
RODRIGUES. 2012).
A noção moderna contratualista de sociedade, baseada na proteção dos direitos
individuais (inicialmente, liberdade, vida e propriedade) e na autonomia da vontade,
predominou e triunfou não só no modelo de Estado Liberal, como na gênese e modelo da
sociedade. Na epistemologia do reconhecimento trabalhada por Axel Honneth (2003), é
central a noção de invisibilidade. Tornar-se socialmente visível ultrapassa o ato cognitivo de
identificação individual. Assim sendo, visibilidade social pressupõe conferir existência no
sentido social, ou seja, implica um ato de reconhecimento que expressa a validade social dos
114

sujeitos. Na esteira das considerações acerca da criança e do adolescente, vale demonstrar que
esses sujeitos passaram por várias épocas até que fossem reconhecidas como sujeitos de
direitos. Segundo ainda o autor, o amor é tido como forma de reconhecimento recíproco,
inicialmente descrito por Hegel, e ganha uma dimensão de processo psicológico no
desenvolvimento individual por meio da psicanálise, tendo como exemplo, relacionamento da
mãe com o seu bebê.
Então pensar a violência sexual como afronta a dignidade humana, é retratar de
modo efetivo que sua condição humana, como diz Hannna Aredent foi violada. A suspeita
que uma criança ou adolescente teve uma relação sexual com um sujeito adulto desafia
valores construídos socialmente e cabe bem a questão: porque é repulsivo para o mundo
moderno esse fato? Parafraseando Foucault (2001), esse fenômeno não apenas foi construído
como apenas como lugar do proibido, mas também do não inteligível, do contra a natureza,
por isso ultrapassá-la produz um efeito de monstruosidade.
Essa última parte do capítulo, traz a história de três adolescentes, menores de
quatorze anos, que tiveram sua primeira relação sexual de comum acordo, ou seja,
consentida52. O critério da idade53 para a presunção da violência já era prevista bem antes do
Código de 1940. De acordo com o Manual de Direito Penal Brasileiro, de autoria de Luiz
Regis Prado, no Brasil “a primeira legislação que prevê a presunção da violência foi o de
1890, disciplinado no artigo 272 que a violência era ficta, quando ato sexual fosse perpetrado
com menor de dezesseis anos”. (Prado, 2006, p. 244). No entanto, o referido código não
permite decifrar os princípios éticos que o norteia ou orienta as avaliações morais das
condutas sexuais. Para Foucault:

As prescrições podem muito bem serem formalmente parecidas e só provam, no


final das contas, a pobreza das interdições. A maneira pela qual a atividade sexual
era constituída, reconhecida, organizada como questão moral não é idêntica somente
pelo fato de que o permitido ou o proibido, o recomendado ou desaconselhado sejam
idênticos. (FOUCAULT, 1984, p. 218)

Nessa perspectiva, podemos perceber que saber que a ‘idade’ é uma noção
construída, e que tem certa efetividade, haja vista que serve de instrumental de ordenamento
social, assim como os outros marcadores sociais, como sexo, gênero e classe. Para Bourdieu
“as classificações por idade, acabam sempre por impor limites e produzir uma ordem onde
cada um deve se manter, em seu lugar”. (Bourdieu, 1983, p. 112). Nesse sentido, as
52
Para a justiça, não existe consentimento para um envolvimento sexual entre um adulto e uma criança menor de
14 anos. A violência é presumida, ou seja, é crime previsto no Código Penal Brasileiro.
53
Segundo o E.C.A., a criança tem de 0 a 12 anos incompletos e o adolescente, de 12 anos aos 18 anos.
115

expressões “criança” e “adulto” se constituem como dois polos divergentes com elementos
para analisar as bases morais das condutas sexuais.
O caso das assimetrias como princípio básico e hierárquico na qual a família e a
regulamentação da vida sexual estavam ancoradas e evidentes nos anos 70. Entretanto, as
bases que justificam a dominação dos homens sobre as mulheres e as crianças foram
duramente questionadas pelo movimento feminista. Por outro lado, outras assimetrias
continuam bem naturalizadas, como é o caso da pressuposição da vulnerabilidade de crianças
e adolescentes. Tudo isso é verificado dentro do arcabouço legal, onde percebemos o
enfraquecimento do Estado e o fortalecimento do Judiciário, tanto como peça administrativa,
quanto como as leis e os discursos de proteção que adquiriram uma centralidade no conjunto
das transformações sociais. Uma vez que outros casos de assimetrias (como raça, e gênero)
são objetos de luta para a sua dessencialização. A “criança” tem seu lugar sacralizado e
fortalecido devido a sua vulnerabilidade “natural”. Nessa perspectiva, o tema da “violência
sexual contra criança” adquire uma gravidade alarmante no final século XX e princípio do
século XXI.
Os processos aqui analisados são recentes, emergem como problema e são
desmembrados em diferentes modalidades, cuja visibilidade e repercussão rompem as
fronteiras nacionais. Colocando criança e adolescentes como sujeitos em desenvolvimento,
qualquer violência perpetrada contra esses é tida como crime, de maior ou menor grau,
segundo a legislação penal brasileira.
Das três narrativas apresentadas nesta parte, duas são entre primos, e a outra é
relação tio-sobrinha. Em dois dos três casos, foram as mães que fizeram as denúncias. Nos
dois primeiros processos o advogado é o mesmo. No terceiro processo a genitora da
adolescente pediu o arquivamento. Houve condenação para dois dos acusados No primeiro, o
réu foi condenado a seis anos de reclusão em regime semiaberto e no segundo, réu foi
condenado a 15 anos de reclusão em regime fechado.
Sobre o regime de sentença, devido sua relação de parentesco com a vítima, sua pena
foi aumentada. Foucault enfatiza que “consiste na enunciação, por um terceiro do seguinte:
certa pessoa tendo dito a verdade, tem razão, outra tendo dito, uma mentira não tenha razão”.
Em sua obra A verdade e as Formas Jurídicas, Foucault acrescenta que a sentença não existe,
mas apenas vitória e fracasso. (Foucault, 2002, p. 6).
O reconhecimento por estima social, na qual os indivíduos adquirem a capacidade de
“referir-se positivamente a suas propriedade e capacidades”, é importante para as relações
sociais, mas no caso de sujeitos representados por violentos, essa estima, transforma-se em
116

algo vil e a rejeição é visível, tornando-se maioria das vezes impossível a convivência em seu
próprio ambiente, incluindo a família.

3.10 Menina-Mulher?

A violência tem suas expressões mais recorrentes em maus tratos físicos,


psicológicos, sexuais, em forma de negligência, omissão das famílias ou do Estado,
exploração sexual, ou mesmo pelo abandono quando crianças e adolescentes são noticiadas
como desparecidas ou em fuga, revela um conjunto de peculiaridades que demandam o
contexto das meninas no Brasil.(NEGRÂO, 2005).
Na literatura corrente sobre a dignidade humana dos direitos humanos, pouco
privilegiou o impacto da invisibilidade social e da estima social no que tange à definição e às
implicações da noção de dignidade. A noção de dignidade humana é capilar aos direitos
humanos. As relações de reconhecimento mútuo incidem sobre a dinâmica de autorrealização.
As meninas, como sujeitos de direitos, surgem no panorama internacional em 1993,
quando da Declaração dos Direitos Humanos em Viena enuncia que “os direitos humanos das
mulheres e das meninas constituem patê inalienável e indivisível dos direitos humanos
universais”. Anteriormente na Convenção dos Direitos da Criança (1989), de concepção
geracional, já enfatizava em seu preâmbulo a necessidade de proporcionará criança proteção
integral, reafirmando assim a Declaração de Genebra (1924).
Enquanto que a Plataforma de Ação de Beijing (1995), que teve orientação da
Convenção sobre os Direitos da Criança e pela Declaração de Viena, traz as diretrizes
voltadas a eliminar a discriminação e obstáculos que se opunham à igualdade de gênero e à
emancipação das meninas.
O reconhecimento nas relações jurídicas opera como ‘proteção social para a
dignidade humana’. Paiva (2012) observa que o reconhecimento no ordenamento jurídico
passa pela formação valorativa da autoimagem, e esta depende do nível de visibilidade social.
Nesse sentido, esse reconhecimento jurídico, pressupõe a identificação entre indivíduo e
sociedade verificada no acesso concreto a direito.
Foucault citado por Giddens (1993) relata que a invenção da sexualidade foi parte de
alguns processos distintos na formação e consolidação das instituições modernas,
contribuindo na discussão Heilborn (2006).
117

O estudo da sexualidade põe em evidência a ideia mais relevante da teoria


sociológica: a relação entre sociedade e individuo e como são produzidas
contextualmente os nexos entre esses dois polos. Os roteiros sexuais espelham as
múltiplas e diferentes socializações que uma pessoa experimenta em sua vida,
família, tipo de escolas, acesso a distintos meios de comunicação, redes de amizade
e vizinhança (HEILBORN, 2006, p.46).

No processo de adaptação cultural do ser humano, o controle da sexualidade é um


dos aspectos centrais. Praticamente todas as culturas impõem alguma forma de restrição ao
comportamento sexual. (Lowen apud Taquette 1997).
Para Taquette (1997), as proibições ou interferências ao livre exercício da
sexualidade humana foram necessárias para o processo de aculturamento do ser humano.
Onde existe cultura existe algum tipo de interdição sexual.
O filósofo Michel Foucault, citado por Giddens (1993) entende que o sexo tornou-se
de fato o ponto principal dos confessionários modernos, para ele o confessionário católico foi
sempre um meio de controle da vida sexual dos fiéis.
Michel Foucault citado por Anacleto & Maia 2010

Constrói uma hipótese acerca da sexualidade humana, argumentando que ela não
deve ser concebida como um dado apenas da natureza e sim como um produto do
encadeamento da estimulação dos corpos, da intensificação dos prazeres, da
iniciativa do discurso, da formação dos conhecimentos, do reforço dos controles e
das resistências (FOUCAULT.apud ANACLETO & MAIA.2010.p.57)

Portanto as sexualidades são um construto social a partir dos discursos sociais, no


pensamento foucaultiano, uma vez que as instituições são as mediadas pelas relações do
poder-saber. Todos esses discursos acerca das práticas sexuais geram na sociedade normas,
controles, vigilância presente nas relações de poder (Chauí 1985; Louro 1999).
Maia (2004) descreve que as sociedades sempre mostram certa preocupação com o
sexo e a sexualidade, tanto na educação, quanto na saúde, onde a prioridade era os aspectos
higiênicos e fisiológicos ligados ao sexo e suas diversas patologias.
Percebemos o papel representativo dos médicos nesse processo exemplificados na
história dos banhos e das elações com a praia. O imaginário social está presente através do
corpo. O discurso médico, fundamentado numa perspectiva hierárquica e conservadora do
mundo, Esse corpo educado, expressão de Guacira Louro, é encontrada em Foucault sobre o
uso do mecanismo como:

Ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo


corpo... Tudo isto conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um trabalho
118

insistente, obstinado, meticuloso eu o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos
soldados e sobre o corpo sadio. (FOUCAULT,1987, p.146).

O corpo está intimamente ligado a sexualidade, e quando colocamos a menina-


mulher nesse contexto, percebemos que o poder investido no corpo ao longo do tempo, se
deu em dois momentos, primeiro como uma consciência de si mesma, e no segundo como
uma forma de exploração econômica, no trabalho, e agora na violência sexual, seja na
exploração sexual comercial ou no abuso sexual intrafamiliar.
Jeffrey Weeks, (2010) aponta a sexologia como um elemento importante na
codificação do modo como pensamos o corpo e a sexualidade. Segundo o autor, é através do
corpo que experimentamos tanto o prazer quanto a dor. Além disso, há corpos masculinos e
corpos femininos, e isso nos dá lugar a experiências diferentes, Sabemos que a reação mais
frequente de um corpo violado, tem sido o silêncio e busca do esquecimento do fato
traumático. Mas, olhando o contexto imediato, percebemos essa menina-mulher
denunciando, se expondo, através de sua dor e vergonha, construindo mesmo sem perceber
sua história de resistência, como ferramenta política de libertação.

O Décimo primeiro

Tipificação da denúncia-(B.O) Estupro


Vítima-adolescente de 12 anos
Acusado- primo
Denunciante- mãe
Data da notificação: 13 de novembro de 2009
Incidência Penal- Art. 217-A caput e Art. 226 do CP,

O caso foi denunciado ao C.T. no dia treze de novembro de 2009, pela mãe da
adolescente, sendo encaminhada à delegacia, onde fez o boletim de ocorrência e a requisição
para o exame de conjunção carnal, que comprovou a ruptura himenal. No depoimento, a mãe
relatou que:

Sua filha de doze anos estava namorando um rapaz chamado F, disse que sua filha é
uma moça de família e que depois de falar com o rapaz, ela percebeu a filha com
comportamento diferente, estranho, então resolveu investigar e revistar suas coisas e
encontrou um caderno dela o seguinte “no dia 11 de novembro aconteceu uma coisa
importante na minha vida”, então falou com sua filha e perguntara se F. tinha
“mexido” com ela, e a mesma respondeu afirmativamente. Que permitiu o namoro
119

entre eles, mas não sabia que o acusado tinha uma mulher grávida em casa, pois se
soubesse não tinha autorizado o namoro.

No relatório enviado pelo delegado ao judiciário, encerrando o inquérito, apurou-se a


conduta de Francisco, acusando-o de ter praticado crime de estupro com violência presumida
contra a adolescente de 13 anos. Segundo o relatório, a materialidade do delito está
comprovada pelo laudo de exame de conjunção carnal realizado na vítima. É importante
destacar que o estupro contra criança e adolescente não era julgado específico ou ligado
nenhum tipo de criminalidade particular. Com a passagem do entendimento da ofensa às
famílias para uma ofensa ao sujeito dotado de uma interioridade, os crimes sexuais sofreram
um deslocamento importante, conferindo ao estupro contra criança outro entendimento.
Nesses casos:

O resultado do crime não é mais e imoralidade, mas a morte psíquica, a questão não
é mais a depravação, mas a quebra da identidade, irremediavelmente ferida à qual a
vítima parece condenada, o que concede um lugar inteiramente novo ao estupro
contra crianças. (VIGARELLO, 1998, p. 248).

Até a década de 1990 a maioria dos doutrinadores via a presunção da violência por
menoridade absoluta. Mas, na jurisprudência recente, vê-se que a relatividade ou não da
presunção da violência continua controversa entre os juízes. Vale destacar que as decisões do
Supremo Tribunal Federal (STF) servem de referência para o entendimento das leis e a
conversão destas em tomadas de decisão pelos juízes em todas as instâncias do judiciário.
Quando foi ouvida pela autoridade policial a adolescente Cláudia fez o seguinte relato:

“Que em Novembro tinha ido ao ensaio na igreja e depois foi na casa


do Francisco e que ele estava acompanhado do seu amigo Naldo e que
foram ouvir música no seu quarto. E que chegando lá o mesmo tirou
sua roupa e então começaram ter relação sexual e que era virgem e
que ele não ejaculou dentro dela, e que em momento algum foi
forçada”. (Depoimento da vítima).

Para a conclusão do inquérito policial, o acusado, ouvido pelo delegado disse o


seguinte em seu depoimento: Confessou que manteve uma relação sexual com a vítima, a qual
é sua prima e que só mantivera relação sexual com ela, porque a mesma lhe disse que já não
era virgem. Disse ainda que a mesma tinha mantido relação sexual com um namorado. Falou
também que a adolescente Cláudia lhe dissera que quando era pequena percebia certo
120

interesse do seu padrasto, por isso acha que ele ficou com ciúmes do seu namoro com a
adolescente.
Na defesa preliminar o advogado faz o seguinte discurso:

“[...] que no dia que manteve relação sexual ela, de livre e espontânea iniciativa, que
o acusado não teve tempo de ser esclarecido sobre a proibição de manter relação
sexual com menor de 14 nos, até porque a realidade das cidades brasileiras
impossibilita qualquer conclusão semelhante. Outro dado importante é a baixa
incidência de processos criminais na comarca para a acusação de casos semelhantes,
isto é, em conjunção carnal entre namorados, relata ao advogado. Que não há
reprovação da conduta de um jovem casal apaixonado manter relação sexual.”

Como forma de perceber as discordâncias, a vítima foi ouvida pela representante do


Ministério Público apenas como informante, para confirmar a sua versão preliminar.

“Que não é verdade que a depoente tenha dito que tinha mantido relação sexual com
um antigo namorado, que o acusado disse a depoente que se não tivesse relação
sexual com uma mulher ela não significaria nada para o mesmo e seria apenas um
passatempo, o que levou a depoente a pensar que se tivesse relação sexual, o mesmo
ia gostar e iria parar de falar em outras mulheres, disse que gostava da depoente, mas
se esta tivesse relação com ele o namoro ficaria mais firme”.

É recorrente em casos da primeira relação sexual de uma adolescente acontecer com


o namorado, e muitas vezes a menina é seduzida pela chamada “prova de amor”.
Outra estratégia utilizada foi a promessa do casamento que o indiciado confessou em
seu depoimento em juízo “Que após oito ou nove meses de namoro, manteve relação sexual
com a vítima e que seus pais não aceitavam a namoro, porque eles são primos, e que
prometeu casar com ela”.
Como cumprir a promessa de casamento se o sujeito indiciado mora com uma
mulher e a mesma está gravida? Conforme depoimento da genitora da adolescente. “Que
permitiu o namoro entre eles, mas não sabia que o acusado tinha uma mulher grávida em
casa, pois se soubesse não tinha autorizado o namoro”.
Abromavay (2004) enfatiza que a virgindade é um marco na diferenciação dos
gêneros na cultura brasileira. Ela vem sendo (re) significada frente a novos discursos, mas
permanece como referência que norteia comportamentos e delimita atitudes e valores morais
como evoca a mãe da adolescente na expressão “minha filha é uma moça de família”.
Sabemos que persiste, segundo estudos e pesquisas, e também nos discurso do senso
comum a cobrança da atividade sexual mais precoce para o sexo masculino, a fim de
diferenciar do sexo feminino. Segundo a autora
121

Em relação à iniciação sexual das moças, as interpretações se dão por lógica


diferenciada àquela atribuída aos jovens. A ausência de experiência sexual é vista
como estratégia de seleção para relacionamentos que entrelaçam o sexual com o
afetivo, em um plano de relação estável, do tipo matrimonial. (ABROMAVAY,
2009, p.74)

O estabelecimento de relacionamento, como um valor, uma vez que “o sexo é


compreendido como uma dádiva, cedida na expectativa de uma aliança que é a contrapartida”
(HEILBORN. 1999.54).
Percebemos esse tipo de contrapartida ressaltada pela autora, no depoimento da
adolescente quando retratou a fala com o namorado “disse que gostava da depoente, mas se
esta tivesse relação com ele o namoro ficaria mais firme”.
Após todo o trâmite do processo, nas alegações finais do Ministério Público, a
promotora contextualiza a história de Cláudia, frente a todos os fatos apurados.

No dia 13 de novembro, por volta das 19:00 o denunciado constrangeu à conjunção


carnal a adolescente KLF, de apenas 12 anos de idade, fato ocorrido na residência
dele próprio, nesta cidade. (...) o denunciado aproveitou-se da relação de confiança
que mantinha com a ofendida e sua família para induzi-la ao relacionamento mais
íntimo. Indiferente a incapacidade dela para resistir, própria da tenra idade,
aproveitou-se de uma visita dela a sua casa e a induziu a acompanha-lo ao quarto
sob o pretexto e ouvir música, tendo a constrangido à cópula vaginal completa. A
imputação é do crime de estupro com violência presumida, com a previsão no Art.
213 c/c 224 do Código Penal à época do crime. O consentimento da menor de 14
anos para prática de relações sexuais e suas experiências anteriores não afastam a
presunção de violência para caracterização do estupro. (STF H.C 74.580-6 Rel.
Ilmar Galvão (146 Fls.).

Continua dizendo que


“São fortes os apelos em prol da exclusão de caracterização dos crimes de estupro
contra menores de 14 anos. São fortes os apelos midiáticos. Mas há ainda muitos que gritam
pela preservação da inocência, pelo respeito aos valores e padrões familiares. Nesse contexto,
acredita aliar-se àqueles que pregam ser absoluta a presunção de violência nos crimes sexuais
cometidos contra menores de 14 anos não é fechar os olhos para a realidade que nos cerca, e,
antes, enxergá-la bem, e reconhecê-la e admitir a existência da prostituição infantil e a
condição irrefutável de adolescentes como vítimas de crimes sexuais”. “Os tempos mudaram
irremediavelmente o ser humano evolui, e as leis foram na mesma proporção como diz Bento
de Farias.”

O único quesito que permanece intacto nesta relação desigual de forças relativas ao
crime sexual é a violência. As consequências sejam elas decorrentes de uma
122

presunção ou de uma agressão, não se alteraram. Compõem-se sempre de uma


pesada carga traumatizante, desorientam, constrangem e até mesmo desequilibram
uma vida em formação.” (Código Penal Comentado, V6. ed. Record, Rio de
Janeiro).(149fls).

“Aprovar que criança e adolescentes menores de 14 anos tenham discernimento,


entendimento, capacidade ou sequer a possibilidade de conhecimento das consequências de
uma relação sexual, tendo por base apenas mudanças ocorridas em nossa sociedade, que nãos
e sabe se são ou não suficientes para tanto, é contradizer todo o conjunto de normas nacionais,
inclusive preceitos constitucionais, que seriam apenas sem sentido”. Na sentença final o
acusado foi condenado a seis anos, para ser cumprido em regime aberto, ou seja, livre.
Sobre a questão Morgado (2012) coloca.

Quando um homem usa sexualmente uma menina está lhe passando uma forte
mensagem sobre o mundo: que ela só é importante por causa da sua sexualidade,
que os homens querem que as meninas deem sexo e que os seus relacionamentos são
insuficientes sem sexo está dizendo que ela pode usar sua sexualidade como forma
de chamar atenção e conseguir o afeto de que necessita que o sexo é o instrumento
(BASS e THORNTON1985 apud MORGADO,2012, p.70)

Percebemos no caso citado, dois discursos distintos sobre a prática sexual, ou


melhor, envolvimento de um adulto com uma adolescente, menor de 14 anos, e quando o caso
vira uma investigação policial.
Maldidier (2003) coloca que “as palavras mudam de sentido segundo as posições
sustentadas por aqueles que as empregam” (p.31) de um lado o advogado de defesa que
reforçando o discurso da mídia,” que usando camisinha, você pode tudo, O mesmo evoca em
primeiro momento a ignorância do seu cliente quando diz que o jovem namorado não sabia
que era proibido pela lei fazer sexo com uma menor, No segundo, trouxe a suposta
experiência sexual da adolescente. E em terceiro, que achava que ela tinha mais idade.
Assertiva totalmente descartada por uma testemunha que falou “a gente via que a menina era
novinha”
Pensar a respeito dos discursos sobre as atribuições culturalmente inscritas para cada
sexo na relação de gênero é importante, pois situa esses sujeitos no imaginário social, e
também nos remete à forma como são representados nesses discursos. Percebemos no
discurso do advogado a tentativa de culpar ou desqualificar a vítima (criança, adolescente,
mulher) é uma prática muito recorrente dos operadores do direito em casos de crimes sexuais.
De acordo com Pêcheux (1988), os sentidos não existem em si mesmos, mas sempre devem
ser submetidos aos processos sócio históricos nos quais são (re)produzidos. Assim é possível
123

acreditar que esses discursos são construídos a partir dos lugares sociais e rede de sentidos a
que os protagonistas são filiados. Nesse contexto, geralmente é homem defendendo homem.
Do outro lado o discurso da Justiça, representada pelo Ministério Público, que evoca
a leis brasileiras sobre crimes sexuais. Colocando um contexto pouco exploratório sobre a
condição da menina-mulher na sociedade. Talvez isso seja explicada nas palavras de Orlandi
(2001), a relação entre a língua e o objeto é sempre atravessada por uma memória do dizer,
contida na materialidade histórica e ideológica, onde os sentidos são cristalizados e
legitimados socialmente.
E a partir dessa memória discursiva que se faz emergir toda a concepção da
sociedade e de relações interpessoais, ocasionando os termos de distinções de papeis sociais
de homens e mulheres presentes nos discursos e na lei. Tudo isso nos faz indagar, qual é a
memória histórica sobre crianças e de mulheres?
A realidade é que a situação reflete o paradoxo, em particular das jovens
adolescentes, ao lidar com desejo, prazer, e o seu corpo independente da virgindade como
valor, enfatizando, por um lado, o peso da sociabilidade, da pressão dos grupos e da religião
para que se tenha um ou outro comportamento no caso de ser virgem ou não.

Décimo segundo caso –

Tipificação da Denúncia-(B.O) Estupro


Vítima-adolescente de 12 anos
Acusado- tio
Denunciante- mãe
Data da Notificação; 20 de setembro de 2010
Incidência Penal- Art. 217-A caput e Art. 226 do CP,
Processo 684.062010.8.10.0038

A denúncia chega à delegacia através do Ministério Público, que teve como principal
evento, o boato que Keli estava tendo relações sexuais com o seu tio. Então a mãe, sabendo
dos rumores, recorreu a promotora de Justiça. No depoimento ao delegado, no dia 20 de
setembro de 2010, a adolescente de 12 anos, estudante da 4ª série do Ensino Fundamental,
acompanhada de sua genitora, falou que os boatos do envolvimento com seu tio era mentira.
Carmem, funcionária pública, amasiada, 33 anos de idade, moradora da Vila Norte
Sul em seu depoimento relata:
124

Sua filha mora com os avós paternos, ambos idosos e que seu cunhado, tia da
adolescente mora com eles, e o mesmo aproveita-se da intimidade com a sobrinha
para seduzi-la. Que seu avô já presenciou algumas cenas estranhas entre os dois,
inclusive dissera ter visto a mesma sentada nas pernas do tio. Que os mesmos
assistiam filmes, mas nãos sabia dizer sobre o assunto, que foi avisado por uma
amiga que sua filha vinha mantendo relações sexuais com adolescente da
vizinhança. E que se a filha está sofrendo abuso sexual, o autor do crime tinha que
ser responsabilizado (depoimento da mãe na delegacia)

Passando algum tempo, no dia 12 de novembro de 2010, no cartório da delegacia, a


adolescente é ouvida pela segunda vez pelo delegado, contando uma nova versão da denúncia.

Que era virgem e fora desvirginada pelo seu tio, dentro da casa do seu avô onde
morava naquela época. Mas acho que fora desvirginada quando dia 12 anos, que
posteriormente mantivera relações sexuais com seu tio e sempre acontecia dentro da
casa do avô, que foi de forma consensual, uma vez que ele lhe tratava bem, e lhe
dava presentes e dinheiro. Que a principio recusara as investidas do tio, mas depois
aceitou manter relações sexuais, uma vez que se afeiçoou a ele; que só contou a sua
mãe há dois dias, pois confiou para dizer a verdade do que acontecera.

Após a nova versão dos fatos, foi expedida pela Justiça a prisão preventiva do
indiciado que cometera o crime de estupro de vulnerável 217-A e esse delito está inserido no
rol de crimes hediondos de acordo com o Art.1. V, da lei 8.072/1990, que também prevê em
seu Art. 2º, parágrafo 4º que sua prisão temporária, será e 30 dias, prorrogável por igual
período.
Depois que o laudo médico comprovou a ruptura himenal da adolescente, o acusado
foi preso, e instaurado o inquérito, e no dia 29 de novembro de 2010, ele foi ouvido, Aécio é
solteiro, motorista, 43 anos. Nunca foi preso, não possui bens, tem cinco filhos todos
menores, que estudou até a 5º série, que não é verdade que tenha estuprado sua sobrinha,
coloca que a adolescente está sendo usada pela mãe, pois deseja recuperar sua guarda que a
mesma havia perdido.
Dia 22 de fevereiro de 2011 ocorreu o pedido da revogação de prisão temporária. Na
defesa preliminar feita, consta nos autos:

Aduz a denúncia as fl.01/02 que o acusado Aécio está incurso nas penas previstas no
Art. 217-A caput e Art. 226 do CP, tudo por que: “no decorrer dos anos de 2009 e
2010, por diversas vezes o denunciado manteve conjunção carnal com sua sobrinha
Keli, desde que a mesma tinha 12 anos, e as relações aconteciam na casa do avô,
nesta cidade” (fls.39).

O advogado de defesa fez uma breve narrativa da denúncia prestada pelo Ministério
Público
125

“... com separação dos pais a adolescentes, está sob a guarda do avós, cuja casa
reside o denunciado. E logo que a menina completou 12 anos o denunciado passou a
assediá-la, induzindo-a atos libidinosos até que passou a manter relações sexuais
com a mesma, quando ficavam a sós em casa”. (fls.39).

“Os fatos acima narrados revelam sem qualquer sombra de dúvida que para a
caracterização do crime de estupro de vulnerável, não basta ser a vítima menor de 14 anos, é
necessário também que a mesma seja inocente, ingênua, desinformada a respeito de sexo, fato
que não se pode presumir ou depreender da leitura dos autos do inquérito policial na peça de
acusação. Ademais se pode comprovar pelo depoimento da testemunha S (fls. 8), em
respostas as indagações, respondeu da seguinte forma: “Keli lhe dissera que já mantivera
relações sexuais com alguns adolescentes que residem pelas proximidades de sua casa ,mas
não citou nome dos adolescentes com quem ela supostamente mantivera relações
sexuais”(fls.40)
“Para o advogado nesse caso verifica-se a ausência da inocentia conccilli da vítima,
ou seja, pela sua ciência a fatos sexuais, fato este que, por si só, afasta a presunção de
violência absoluta prevista no art-217ª do CP. É bem verdade que nos crimes sexuais contra
vulnerável, o depoimento da vítima tem o maior significado, entretanto, tanto a jurisprudência
quanto a doutrina é unânime em afirmar que deve existir o abrandamento nesta regra, tendo
em vista que, em depoimento da vítima importa na verdade, em direito penal não existe a
denominada rainha das provas e, portanto, o depoimento da vítima importa na verdade em seu
valor relativo, e não absoluto como que fazer crer o MP. Até porque a vítima apresentou duas
versões na delegacia. Primeiro informou nunca mantivera relações sexuais com nenhum
homem (fls.07), e depois afirma que manteve relações sexuais com o requerente (fls. 110).
Para o MP a denúncia contra Aécio está alicerçada nas investigações policiais, apenas no
segundo depoimento se limitaria quando muito, na qualidade de informante, já que não possui
credibilidade, idoneidade moral para tanto, pois apresentam duas versões para o mesmo ato,
(fls. 43)”.
Podemos ler, a partir do discurso, a tentativa de silenciar a vítima através do
descrédito em seu depoimento, devido às duas versões apresentadas pela adolescente. Nesse
sentido, Cavalcante (2002) orienta que nem todas as ações ou intenções do sujeito aparecem
abertamente em seu discurso, ora os sentidos são selecionados ou descortinados, ora são
excluídos, de forma consciente ou inconsciente. No caso de abuso sexual, crianças e
adolescentes ficam receosos diante das autoridades, e na maioria das vezes não percebem as
contradições de suas palavras, quando discorrem sobre os fatos ocorridos. Orlandi (2001)
126

enfatiza as situações de linguagem são reguladas, não se diz o que se quer, em qualquer
situação, de qualquer maneira.
Portanto, é bem difícil a revelação de uma situação de violência quando o sujeito é
adulto. Imaginemos uma criança ou adolescente, onde todo o temor de uma exposição pública
está evidente, principalmente quando a relação é de proximidade, ou de parentesco.
Contudo, oito meses depois da denúncia, ocorre a audiência em juízo e a adolescente
responde quando interpelada pela promotora de justiça sobre ela ter mentido na primeira
denúncia na delegacia. A mesma responde:

Que não queria que o tio fosse preso, porque não queria ir na delegacia, pois tinha
mentido da primeira vez, porque estava com medo do CT tirá-la de casa, nunca
manteve relação sexual com outra pessoa, que o tio lhe dava presentes, aparelho
celular maquiagem, dinheiro, roupas,(fls.64)

Em setembro de 2011 o MP reafirma a acusação contra Aécio, que tinha sido


efetivada em janeiro de 2011, e sua condenação acontece em 23 de novembro de 2011, sendo
publicada no dia seguinte com o texto abaixo.

“A culpabilidade do agente está evidenciada que se aproveitou da imaturidade de


uma infante para consumar o ato, o fato que agora se agrava por ser sua sobrinha; os
autos revelam que o condenado tem boa conduta social, não possuindo
personalidade voltada para o crime. Os motivos e as circunstâncias do fato
demonstram que o condenado agiu com intenção de satisfazer a própria lascívia,
aproveitando-se pelo fato de residir na mesma casa que a vítima. Levando em conta
que o condenado consciente de sua responsabilidade da conduta assumiu leva-la a
termo, e considerando as circunstâncias judiciais previstas no Art.59 do CP, a
maioria desfavorável ao condenado, fixo a pena base de 09(nove) anos de reclusão.
Não estão presentes atenuantes e nem agravantes. Configurada a causa de aumento
da pena prevista no Art.226, § II aumento a pena-base da metade (1/2) chegando a
treze anos e seis de reclusão. Tipificada, ainda outra causa de aumento de pena
esculpida no Art 71, faço nova elevação, desta em 1/6,motivo pelo qual torno-a
definitiva em 15 anos e nove meses de reclusão, que serão cumpridos inicialmente,
em regime fechado.(fls.114,de 24 de novembro de 2011-1ª Vara Criminal)”.

Embora nas duas primeiras narrativas, o advogado seja o mesmo, os discursos são
diferentes em cada caso, mesmo sendo o sujeito agressor parente, o é em graus diferentes,
evidentemente (um primo outro e tio), pois segundo a lei tem agravantes diferentes.
Outro dado importante para a análise foi o fato de que essas adolescentes tiveram sua
iniciação sexual bem cedo, nota-se que as famílias não questionaram isso, mas sim o
Ministério Público. E nesse sentido não dar para falar de abuso sexual sem invocar a questão
da sexualidade. Para Rodrigues apud Andrade. “A sexualidade caracteriza-se por uma
capacidade de se ligar a pessoas, objetos, ideias, a vida como um todo, é a busca do amor, do
127

desejo, do prazer sexual, além dos diversos sentimentos tais como admiração,
companheirismo e amizade” (RODRIGUES apud ANDRADE 2010. p. 7).
Corroborando com a fala de Keli, relatada na segunda ida à delegacia, e quando
respondeu ao Ministério Público sobre ter mentido, e sobre os boatos, queria ir na delegacia,
pois tinha mentido da primeira vez, porque estava com medo do CT tirá-la de casa,
Foucault citado por Butler (2008) afirma que a sexualidade é um sistema aberto e ao
mesmo tempo um complexo discurso de poder, o qual produz a denominação imprópria de
“sexo” como parte estratégica de ocultar e até mesmo perpetuar essas relações de poder.
Nesse sentido, o poder é concebido como repressão e dominação, já o sexo é concebido como
energia que espera ser libertada.
O pensamento acima pode ser retratado em dois momentos do processo da
adolescente Keli, primeiro quando a mãe “que foi avisado por uma amiga que sua filha vinha
mantendo relações sexuais com adolescente da vizinhança”. Segundo, quando o juiz profere
a sentença, enfatizando que “Os motivos e as circunstâncias do fato demonstram que o
condenado agiu com intenção de satisfazer a própria lascívia, aproveitando-se pelo fato de
residir na mesma casa que a vítima”.
Para o advogado de defesa, a relação sexual entre uma menina menor de 14 anos é
tido como estupro, mas quando é de um casal de namorados, aparece o discurso, expresso em
suas palavras nos autos. “Que não há reprovação da conduta de um jovem casal apaixonado
manter relação sexual.”
São percebidas que embora os crimes sexuais sejam contra a pessoa, as ressonâncias
é nos valores arraigados na sociedade brasileira, perpassadas pelos laços familiares, a
tradição, costumes. O grande temor das vítimas quando de suas famílias é o da exposição
pública. Ao que parece os sentimentos refletidos na angustia, na dor, no silêncio da criança e
do adolescente ficaram invisíveis.

Décimo terceiro caso-

Tipificação da Denúncia-(B.O) Estupro


Vítima-adolescente de 12 anos
Acusado- primo
128

Denunciante-desconhecida
Data da Notificação; 8 de setembro
Incidência Penal- Art. 217-A caput e Art. 226 do CP,

No dia 08 de setembro de 2009 compareceu a sede do C.T. de João Lisboa, uma


denúncia dando conta de que a menina Vânia, de 12 anos de idade, estava sendo abusada
sexualmente por um homem maior de idade. A denúncia foi feita por uma desconhecida. Em
contato com os familiares da criança foi feito o encaminhamento a delegacia local, através do
ofício nº 112\2009. Quando do depoimento ao delegado, a declarante,

“disse que é solteira, estudante da terceira série do Ensino Fundamental, inquirida


pela autoridade policial disse que desde os 11 anos mantinha relações sexuais com o
seu primo Antonio, pois o mesmo morava com sua família, com ele que perdeu a
virgindade, e o mesmo lhe dava dinheiro, calcinha, e com o dinheiro comprava
mantimentos para a sua casa, e que contou à sua mãe sobre o que vinha acontecendo
e que a mesma havia pedido para que ela parasse de ter relações sexuais com ele,
mas que continuou. Disse também que não sabe como isso chegou ao C.T. e a
delegacia, porque não era forçada. As relações aconteciam de comum acordo entre
os dois”.

Esse processo foi o mais curto dos analisados devido a mãe da vítima entrar com um
pedido junto ao Ministério Público de arquivamento do processo. Não consta no processo o
depoimento do acusado, já que o mesmo não foi encontrado.
Outra observação constatada é que as informações chegadas ao Conselho Tutelar
eram insuficientes, já tinha muito tempo que os fatos haviam ocorrido. A vítima mora ainda
na zona rural, onde é recorrente que crianças com 11,12 anos já estejam amasiadas, às vezes
já com filhos, situação naturalizada, por fim ‘normal’. O elemento facilitador é que tudo é
protegido pelos laços do silêncio da vizinhança, ou para não criar inimizades.
A análise nesse caso recai sobre o sentido do silêncio, como parte inquietante em
caso de violência sexual contra crianças e adolescentes. Orlandi (1995) coloca que o silêncio
é presente, não como ausência de sons, mas como algo que significa e que se distingue do
implícito, que precisa ser ‘dito’ para colocar-se sob o sentido.
A violência tem a força de construir ‘silêncios’, e primeiro é o das palavras. Orlandi
(1995) defende a ideia de que esta relação do ‘poder dizer’ expressa a tentativa de apagar
determinados sentidos em determinadas conjunturas. Segundo, é o silêncio como agente da
censura, que diz respeito ao que não pode ser enunciado em determinadas circunstâncias
dadas. Esse pensamento da autora vem de encontro às narrativas dos processos analisados
neste estudo, é só observarmos o espaço de anos que vai da ocorrência do abuso à sua
129

notificação aos órgãos de defesa e proteção revelando o porquê do calar, como forma de
opressão, coação, e não como consentimento. A psicologia e psicanálise já têm estudos que
corroboram essa discussão, evidenciando os ‘apagões’ da memória, como fuga da dor, da
vergonha ou culpa.

3.11. Práticas Jurídicas e Atos de Justiça

É pertinente destacar que nos julgamentos, a noção de Direito e Justiça que temos,
soma-se aos conceitos e preconceitos arraigados, adquiridos nas relações sociais, além das
opiniões interna ou pública, ou mesmo do senso comum, onde apregoam-se valores morais e
sociais. A relevância dada à Medicina Legal no estabelecimento de um discurso supostamente
verdadeiro sobre as acusações. Nos processos analisados aparecem os julgamentos morais
sobre os envolvidos, visto que os operadores do direito se utilizam dos depoimentos dos
sujeitos envolvidos, silenciado algumas vozes e enfatizando outras, construindo suas
argumentações fundamentais em conteúdos diversos. (ZAMBONI, 2007, apud
BACCI.2011.p.63).
Outro ponto a ser considerado é que a fala dos agentes por meio da escrita nos
registros está inserida nos valores da sociedade e, portanto, são eles também que contribuem
para a construção e desconstrução da violência. Tudo isso é percebido desde o início da
revelação do abuso sexual, seja na delegacia ou no Conselho Tutelar, no laudo do IML ou no
acompanhamento dos psicólogos e assistentes sociais. Percebemos então, que a neutralidade
da lei, tão falada, na prática é outra realidade, e aparecem evidentes nos termos utilizados para
caracterizar os envolvidos, principalmente a criança e o adolescente, tais como “ofendida”,
”desvirginamento”, “moça de família”, “doente”, “denunciante” e “declarante”. “vítima”
Esses termos são mais de cunho moral do que técnico, a exemplo de cópula vaginal ou
conjunção carnal. Diante disso, nenhum réu foi condenado somente pela violência praticada,
mas também, pelos valores morais acumulados na sociedade. Embora a legislação retrate o
crime contra a pessoa, no fundo ainda é também contra os costumes.
Embora os crimes sexuais, principalmente contra crianças e adolescentes se
constituem como algo inaceitável pelo conjunto da sociedade, mais ainda quando é praticado
por parentes próximos, ou pessoas conhecidas. Podemos compreender que esses elementos
discursivos constituem parte dos valores que circulam e são aceitos normalmente. Existe uma
verdadeira tecnologia do poder, ou melhor, dos poderes, cada uma com sua história.
130

Contribuindo com o debate Silva (2009) fala do percurso da queixa ao julgamento é


constituído de um jogo de forças entre as partes envolvidas, no qual ‘acusados’ ‘ofendidas’
buscam provar a veracidade de suas versões. Para autora, os processos-crime configuram-se
como momentos de relações de forças, em que juristas,’ acusados’ ‘ofendidas’, detentores de
diferentes graus de poder, procurando dar à sua versão o estatuto da verdade(SILVA.2010.77)
Sobre essa questão (Foucault 1999 apud Bacci. 2011. p66-67) destaca que essa
complexa rede de disciplina pelas quais o poder opera particularmente nas disciplinas
normalizantes na medicina, da educação e da psicologia, nas quais o poder e o saber
entrelaçados constituem discursos sobre o sujeito da modernidade. Segundo o autor, existem
cinco maneiras de extorquir a verdade através do saber científico, que são: a codificação
clínica do fazer falar, o postulado da casualidade geral e difusa, ou seja, o sexo como algo que
representa perigo ilimitado, o princípio da latência intrínseca da sexualidade (a ideia que o
sexo é clandestino e sua essência é obscura), a interpretação ou a verdade produzida pelos
discursos interpretativos de confissão, e por fim, a medicalização (os médicos como
intérpretes da verdade sobre o sexo) já que a confissão é transportada da norma para o
patológico. Entendendo, que Foucault tenta mostrar que a história da sexualidade deve ser
analisada a partir desses discursos, da multiplicidade dos dispositivos de controle em oposição
às relações entre o saber e o prazer.
Embora nos processos analisados não haja nenhum laudo clínico de patologia dos
sujeitos acusados, é importantes registrar que alguns casos não foram adiante porque a perícia
oficial não comprovou “a verdade”, que seria a ruptura himenal no abuso sexual com contato
físico. Nesse caso, para a Justiça, a palavra do sujeito-vítima não tem crédito total, precisando
da validação da ciência e para enfatizar como as narrativas dos diversos profissionais
determinam discursivamente o lugar de cada sujeito envolvido num processo judicial.
Segundo (Michel Foucault 1999 apud Bacci.2011) acrescenta que para se analisar a
história da sexualidade no Ocidente desde o Cristianismo é preciso considerar os mecanismos
de poder, além dos ideais morais e as proibições éticas. Essa abordagem contribui para a
compreensão das relações de violência, sexualidade e o próprio discurso técnico (jurídico ou
médico) nos processos analisados.
Relevante também é o lugar da Medicina Legal54 no discurso jurídico. Em todos os
processos descritos havia nos autos os exames periciais e os laudos produzidos pelos médicos
legistas que desempenham papel fundamental na instauração do inquérito policial. Ademais,

54
Medicina Legal pode ser pensada também como forma de “extorquir a verdade”, pensando os termos Foucault
sobre as verdades e a justiça.
131

percebemos que a importância do laudo médico pode ser compreensível se considerarmos que
a Medicina assumiu o controle ético e sexual e que essa mudança afetou a moral familiar. E
mais ainda, o corpo interno da família passou a ser regulado por ela. Esse apoio mútuo entre
Medicina e família tomou força com o Estado Burguês a partir do século XVIII. Para Andrade
(2010), historicamente, a sociologia não deu o primeiro passo para a discussão de questões
que envolva a saúde. Isso aconteceu com a Medicina, mais precisamente a medicina social.
Esta surgiu no século XIX, tratando de compreender os fatores sociais, econômicos e
ambientais que desencadeavam patologias que apenas a medicina não dava conta. Nessa
direção o filósofo Michel Foucault (1988) reconhece que o resultado desse desenvolvimento
aconteceu devido às diversas técnicas, saberes, questionamentos, cujo objetivo principal é a
abrangência do mundo social. No final do século XIX, a medicalização, a gestão da vida
sexual controlada e supervisionada pelo saber e pela racionalidade médica é considerada um
efeito importante, até não entrar em cena temas relacionadas ao incesto55.
Essa temática ocasionou na Europa o aumento de tempo das crianças na escola.
Como o incesto foi colocado na agenda da família, houve o reforço da ideia de recorrer a
outro conhecimento externo à família, no caso a psicanálise. Logo depois, entrou em cena
outro poder-saber, o judiciário, com a capacidade de arbitrar os conflitos e tomar decisões,
intervindo na vida das pessoas, inclusive afastando alguns membros quando necessário.
(Branco, 2007).
Nos processos aqui analisados para a comprovação do abuso sexual, em alguns casos
os agressores foram presos, em outros, eles foram afastados pela própria mãe da criança ou
adolescente.
Outro elemento importante de ser enfatizado é o lugar da criança e do adolescente.
Eles aparecem como sujeitos que pouco participa das decisões concernentes à sua vida, pois
são considerados indivíduos incapazes perante a lei. A representação social da criança e do
adolescente está evidenciada nos processos quando os mesmos rompem o silêncio, e trazem à
luz fatos muitas vezes difíceis de ouvir Na maioria dos processos a palavra da criança foi
importante para o desvelamento da violência sofrida, e da família como um espaço
privilegiado de práticas violentas.

55
Tratado nesse estudo como abuso sexual intrafamiliar. Caracteriza-se pelo ato ou jogo sexual entre genitores e
seus filhos. Foucault ressalta que não se tem uma teoria geral para o incesto. É preciso considerar que, para a
família burguesa a psicanálise fazia sentido, mas ao tratar de famílias proletárias, eram consideradas instituições
de policiamento, de campanha a favor do casamento, das casas populares de três cômodos que dividiam
sexualmente os membros da família.
132

Especificamente sobre os sujeitos-vítimas, foi percebida certa sujeição diante do


abuso sexual, dissociando o pensar do fazer e do sentir como forma de sobrevivência à
condição adversa do vivido. Isabel Martinez Benlloch, (2005) destaca que:

Muchos discursos teoricos continuam hablando de la subjetividad feminina


articulada em la construcción simbólica de\ la mujer como madre, hablan do sujeto
humano mujer incardinada en el orden social patriarcal construída como sujeto
deseante em interacción com a cultura que la subordina y aliena. Toman como punto
de partida el statu quo de las mujeres para explicar sus experiências y psiquismo ló
que implica invisibilizar las relaciones asimétricas de poder entre lós sexos y, em
consecuencia, obviar que la dualidad social masculinino/feminino y sus funciones
actúan como eje vertebrador em el mantenimiento de la opresión hacia las mujeres.
Los mitos em torno a la feminidad, que en gran medida se apoyan em el amor
romântico, entendido como dependência e adicción, enfatizan la posición de esposa
y madre como lugar de abnegación, sacrifício, renuncia personal y preocupación
absoluta por elbienestar de lós otros.( BENLLOCH, 2005, p.121-122)

Em suas análises, considera essa autora que esta é uma idealização muito forte, de
efeitos negativos, principalmente para as mulheres, colocando-as em situações de anulação
pessoal, dependência afetiva, afinal, em posição de vulnerabilidade. Daí tornar-se necessário
vincularmos política e subjetividade, relações de poder, para enfrentarmos a construção de
políticas de intervenção e ação positiva. O olhar crítico voltado para as relações de gênero,
seguramente, focalizará mais significativamente, as bases sobre as quais se assentam esses
atos agressivos e destrutivos para os sujeitos mulheres e homens.
Essa busca do diferencial simbólico de recursos é que se criam os estereótipos e se
atribuem valores desiguais às diferenças entre os seres humanos. O sexo, a raça, o nível
cultural, a idade, assim, tornam-se mais que diferenças, diferenças agregadas a cada
indivíduo, que lhe dão maior autoridade ou poder diante do outro.
A importância da contribuição da perspectiva das relações de gênero no
desvendamento de processos de dominação e exploração em curso na sociedade, como forma
de entender os sujeitos sociais na sua relação com as estruturas de organização da sociedade a
partir da classe, gênero e etnia possibilita identificar com maior acuidade suas possibilidades e
limites de enfretamento e construção de rupturas do ciclo de violência sexual contra crianças a
adolescentes.
133

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De que valeria a obstinação do saber se assegurasse apenas os conhecimentos e não,


de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?
Michel Foucault. História da Sexualidade II. O Uso dos Prazeres. p.13.

Embora este assunto esteja longe de ser concluído do ponto de vista da luta no
enfrentamento da violência em todas as suas expressões. Urge o desejo de partilhar o
aprendizado adquirido ao longo desse percurso na arte de aprender a conhecer. E não foi à toa
a escolha das palavras do filósofo Michel Foucault como inspiração nesta fase importante de
conclusão do Mestrado. Porque acredito que não vale a pena os (saberes, conhecimentos,
tecnologias,) se não estiverem a serviço da melhoria da vida do maior número possível de
pessoas.
Ademais, as rápidas e intensas transformações econômicas e tecnológicas que estão
em curso no mundo contemporâneo, viabilizando um grande número de conquistas, não são
capazes de solucionar problemas sociais graves, como a distribuição de renda, o desemprego,
e as desigualdades sociais, além das múltiplas violências que são praticadas diariamente
contra o ser humano. Em nosso país, mesmo estando fora do mapa da fome, segundo a
Organização das Nações Unidas (ONU), sabemos que muitas realidades estão postas num país
de dimensões continentais como o nosso. E o problema da violência consegue ser mais grave
do que os números apresentados, porque se tornou ‘algo normal’, e percebemos essa
‘normalidade’, nas chamadas da TV, jornais, bem visível nos comentários dos ditos jornais,
nos tornamos ‘mais uns’, na escalada da violência. Quando paramos para pensar que o grupo
está mais vulnerável, percebemos, claramente, que são crianças, adolescentes, jovens, idosos,
mulheres em todas as idades.
Compreender esse contexto é reconhecer que o problema da violência sexual contra
crianças e adolescentes dizem respeito a toda sociedade e passa por uma discussão não só das
políticas públicas, mas também da relação da família com esta sociedade. Contudo, a família
que é representada, nas sociedades contemporâneas, como um espaço de afetos e
solidariedade, que são gerados e mantidos pelos laços de sangue ou alianças formais ou
informais, ou seja, como as famílias acolhedoras, ou famílias adotivas. Está se constituindo
também com espaço de maus tratos. As alterações verificadas na estrutura da família nos
últimos anos estão intimamente ligadas às mudanças ocorridas na estrutura da economia, nas
relações sociais em geral. Os familiares (pai, mãe) que outrora eram representados como
figuras que são responsáveis pelo bem estar de seus filhos e filhas, transitam em outros
134

papéis, inclusive com perpetradores de violência contra sua prole. As novas configurações de
família tem possibilitado um novo pensar sobre as relações familiares e afetivas entre
membros sem lações de parentesco.
A violência, ao longo dos anos, vitimou mulheres, crianças e adolescentes. Essas
agressões tanto física, sexual, psicológica, dentre outros, ocorrem com muita frequência nos
lares, independentemente, da classe social, região, etnia ou raça. Legitimada ora por dogmas
religiosos e políticos, ora pela lógica patriarcal, a violência doméstica é um fenômeno de
longa data, que faz parte integrante da família das sociedades ocidentais. Tais práticas
encontram-se imbuídas, na maioria das vezes, no pressuposto da prática educativa da criança
e do adolescente.
Essa tolerância cultural sobre a violência contra a criança e o adolescente está no
reconhecimento tardio como objeto de investigação e intervenção. O caso de Mary Ellen, em
1874, uma criança que sofria vários abusos por sua família acolhedora, marcou o despertar da
consciência pública e, consequentemente, do marco legal para as inúmeras agressões que as
crianças e adolescentes são vítimas em contexto familiar.
Infelizmente foram necessários 100 anos para que essa forma de violência fosse
colocada como um problema social grave. Graças à publicação de Henry Kempe e seus
colaboradores, foi possível esse despertar dos profissionais e da comunidade científica e
pública beneficiando as discussões em torno desse problema.
No Brasil, a título de exemplo podemos ilustrar o sequestro, estupro e assassinato da
pequena Araceli, no Espírito Santo, do qual seus algozes nunca foram responsabilizados. Esse
caso chocante tem dado sentido a muitas lutas e campanhas no enfrentamento à violência
contra crianças e adolescentes, inclusive na criação do “18 de maio”, um dia para a reflexão
para toda a sociedade.
Um pensamento bem divulgado que muitas vezes fica difícil problematizar é pensar
a violência sexual não como um problema isolado de uma família, mas de várias, onde a
dinâmica familiar se encontra fortemente sustentada pelo segredo, como um elemento de
coesão da família. Nesse ambiente é evidenciado as contradições vividas pelos responsáveis
de crianças e adolescentes, na medida em que de um lado devem zelar pela sua integridade
física e emocional, transmitindo-lhe um lugar seguro e acolhedor, e por outro lado, ao vitimá-
lo sexualmente, acabam por mostrar uma face de crueldade e constrangimento.
A legislação tem se tornado uma aliada na prevenção, ou nos efeitos de justiça a
favor das vítimas, ou de suas famílias. Todavia, é notável a dificuldade da Justiça em
responder de modo satisfatório, seja pelo volume de processos da criminalidade em geral, seja
135

pela crescente violência. A violência sexual é uma violação ao direito a uma convivência
familiar protetora. Além de ser uma ultrapassagem dos limites humanos legais, sociais e
éticos.
Fica evidente que embora a sociedade reaja com indignação pública desse problema
social de vitimização sexual contra a criança e o adolescente, continua a praticá-lo no âmbito
privado. Essa é naturalmente uma forma de fortalecimento da impunidade vigente. Assim
sendo, os direitos das crianças e adolescentes historicamente como pessoas sem valor e sem
direitos no Brasil, são ainda contestados pela sociedade, que resiste fortemente à concepção
de que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos e que se traduz na forte resistência
que se constata em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
Esse tipo de procedimento só fortalece a ideia de que o enfretamento da questão do
abuso sexual intrafamiliar é extremamente difícil, devido ao seu caráter familiar, doméstico,
privado, e, no caso da exploração sexual, por ser ilegal, clandestino, comercial e articulado em
redes. No caso do Brasil, essa questão torna-se mais complexa devido, muitas vezes, à
conivência policial e também dos profissionais da saúde, como também em decorrência do
medo e silêncio das vítimas, familiares e testemunhas, além da constatação da impunidade dos
autores.
Foi possível observar junto aos processos analisados que, muitas das vezes, as
famílias demoram a tomar a iniciativa para denunciar as situações de abuso e que, quando isso
ocorreu, nem sempre houve o encaminhamento para o atendimento, ou ainda quando há o
encaminhamento, esse pode não ocorrer de forma imediata. Identifica-se uma lacuna na rede
de proteção na medida em que alguns casos acabam não sendo acompanhados devidamente.
Outra observação realizada é que as instituições destinadas à defesa e garantia dos
direitos de todos os envolvidos em situação de abuso sexual, especialmente as vítimas, ao
formalizarem e encaminharem a notificação do abuso, muitas vezes não consegue manter um
acompanhamento contínuo e sistemático, diminuindo assim a atenção ao caso. Os serviços de
atendimento às situações de violência, tendo em vista a demanda e, principalmente, a
sobrecarga e número reduzido de pessoal não conseguem abarcar novos encaminhamentos. E,
nesse período de espera, muitas famílias se veem sozinhas para lidar com todas as alterações
no sistema familiar que a notificação do abuso acionou.
Há um verdadeiro descompromisso dos gestores públicos junto às políticas de
atendimento à criança e ao adolescente, que vai desde a precária infraestrutura dos Conselhos
Tutelares ou inexistência de um espaço adequado para acolher quando estas são vítimas de
violência, a uma política municipal de enfrentamento da violência e exploração sexual contra
136

a criança e o adolescente. Esta realidade não é privilégio de João Lisboa, mas também em
outros municípios vizinhos. A prerrogativa da proteção integral ou da perspectiva da criança e
adolescente como prioridade absoluta fica só na lei.
As tentativas de “retirar” as denúncias e as retratações, por parte da vítima, são
exemplos de ações que visam restabelecer as relações familiares e que sinalizam a
vulnerabilidade a qual muitas famílias estão expostas.
Esta pesquisa permitiu, na aliança com a literatura, compreensão mais abrangente
sobre o significado de relação de violência, ou “abuso sexual” que permeiam a violência
intrafamiliar, ou chamada por alguns de violência doméstica. Se por um primeiro momento
havia a compreensão de que essas relações centravam-se no agressor ou vítima, a pesquisa
possibilitou identificar que tais relações implicam, necessariamente, problematizar, estranhar
a existência do agressor ou vítima na forma singular, mas sim na forma plural.
Outros aspectos visualizados no âmbito da violência sofrida por crianças e
adolescentes são: a escalada da violência, a rotina do abuso, segredo, a longa duração, o
descrédito nas falas, os vários sentimentos permeados por contradições, ambivalências,
inocência, e o vínculo estabelecido entre os sujeitos envolvidos nessas relações de violência e
os discursos construídos muitas vezes para fortalecer a impunidade.
Embora não faça parte da pesquisa, a análise dos serviços dos profissionais, e de
forma específica, os ligados a saúde, é questão desafiadora, porque alguns desses
procedimentos realizados no atendimento à criança e adolescentes, são reproduzidos numa
perspectiva naturalizante dos processos sociais, e assim sendo, tem pouco a contribuir com a
ruptura das relações de dominação e exploração.
No que se refere às mulheres mães, nos casos aqui explorados, a maioria deles são
elas que fazem a denúncia, faz-se necessário registro da atitude da mãe em acreditar na
palavra da filha, e aqui aquele adágio popular de “quem cala consente”, não é de todo
verdadeiro. É salutar o debate sobre o papel dessas mulheres diante do abuso sexual
incestuoso, ou não. As qualificações de negligente, omissa, passiva, cúmplice ou conivente,
frequentemente encontrada na literatura, nos pareceres profissionais ou no senso comum, não
se apresentaram como satisfatórias. Isso é percebido na forma de denúncia, logo que sabem
do abuso, tendo como referência os relatos constantes nos processos estudados. Muito desse
sistema de reprodução e significados dos discursos acerca da mulher, ainda persistem, nos
dias atuais.
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149

ANEXOS
150

Anexo 1:
151

Anexo 2:
152

Anexo 3:

Anexo 3:
153

Anexo 4:
154

Anexo 5:
155

Anexo 6:
156

Anexo 7:

FILMOGRAFIA

NOME DO FILME ANO


Querem me enlouquecer. EUA-1997
Sobre Meninos e Lobos EUA-2003
Festa de Família Dinamarca-1998
O príncipe das marés EUA-1991
Acusados EUA-1988
Lolita. EUA-1962
Taxi driver EUA-1976
A filha do general EUA-1999
No limite do silêncio EUA-2001
Zona de conflito Inglaterra-1999
Abuso sexual. EUA-1994
Eclipse total 1995
A ira de um anjo 1992
A sombra da dúvida 1993
Meninas inocentes 1995
Ajudem minha filha. 1990
Despertar de um homem 1993
Entre elas 1994
Em nome do amor. 1996
Falsa moral 1996
Presa do silêncio 1986
O padre 1996
Os silêncios do palácio. 1994
Um dia para não esquecer 1991
Testemunha do silêncio 1994
Traída pela justiça 1994
Papai me machucou 1990

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