Jonas Leite - Itinerário Do Tempo
Jonas Leite - Itinerário Do Tempo
Jonas Leite - Itinerário Do Tempo
Itinerário do Tempo
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Jonas Leite – Itinerário do Tempo
Jonas Leite
Itinerário do Tempo
Prêmio de Literatura da
Prefeitura Municipal de Campina Grande
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Copyright © Jonas Leite
Jonas Leite
Itinerário do Tempo. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021. 173p.
CDD – 800
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Jonas Leite – Itinerário do Tempo
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De tudo sempre conversamos, sexo, droga,
relacionamento, política, viagens... Mas, quando a noite se
prolongava, era o universo regente das artes e da literatura
que nos enlevava, especialmente. Jonas sempre teve uma
facilidade que muito me invejava e cativava, paradoxalmente,
para recitar poemas decorados, inteirinhos. Sobre o assunto,
eu tenho impressão que a calibragem do álcool sempre lhe
favoreceu a inflexão, o aparato articulatório e as próprias
cordas vocais, toda vez que de forma indelével recitava
Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Maria Teresa Horta, Lúcio
Lins, Orides Fontela, Roberto Piva, Cícero Dias e tantas outras
raridades de nosso apreço, que eram lidas ou recitadas de cor
em nossas madrugadas etílicas. Ali, o tempo era suspenso
como se nada pudesse importunar sua majestade, a poesia;
somente a luz do dia, implacável como sempre, trazia com ela
a certeza de todos os compromissos ordinários pendentes.
Assim, de forma oblíqua o tempo presente nesse
itinerário poético convida-nos à suspeição de suas próprias
coordenadas. O tempo que se inscreve nesse espaço possui
um percurso de estímulos visuais, sonoros, sinestésicos,
que, não sendo cronológico como o tempo de chegada da
comida solicitada pelo aplicativo, aduz o leitor para outro
lugar, com outra atmosfera, de suspensão do próprio
tempo retido nas horas e nos minutos. O Itinerário do
Tempo é um poema completo, mas cada poema pode ser
lido separadamente. No entanto, surgem uns poemas sem
títulos que criam no conjunto da obra a engrenagem de
uma narrativa simbólica, que atravessa todo o poema como
uma composição plástica, que se faz de outros poemas,
como nas pinturas de Giuseppe Arcimboldo.
Com efeito dramático, a alternância de estado de espírito
da voz lírica favorece a leitura dos poemas como narrativa
simbólica, que se pode ler: por metáforas, ícones, imagens
verbais, índices, em cujos estados de espírito estão presentes
e encadeadas todas as emoções disfóricas e eufóricas deste
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Eis aqui um processo orgânico de criação poética que
surge com esse feixe de luz, após emular as estrelas e
rasgar o véu do firmamento. Esse feixe atravessa a matéria
translúcida do vidro e, como uma explosão de átomos, se
instala frenético no quarto (ventre fecundo), como um
membro vibrátil do próprio sol. Esse feixe de luz é a pena
do poeta que desenha a letra e atrai outras letras,
convidando-as a se juntarem umas as outras. Todas elas
amalgamam-se em palavras, em versos e em ritmos
pausados, explorando o silêncio anterior à primeira sílaba
emitida, cumprindo sua pequena revolução chamejante e
anunciando pari passu o próximo poema, o primeiro com
título: Monet.
O Itinerário do Tempo é um livro de poemas repleto de
plasticidade. Espaço de cores, luz e sombra. Mas, também, é
um espaço abissal de vazios e silêncios. E, assim, porque Há
sempre uma névoa / Ou um pano fino / A sabotar a transparência
dessa manhã, sou conduzido poeticamente a enxergar (que é
mais do que ver!) a opacidade do mundo exterior; a
questionar imediatamente a verdade do que vejo e do que
sou. Os objetos e a experiência descritível são borrões de
realidade que me faz lembrar com nostalgia a Tabacaria de
Álvaro de Campos, exatamente quando o poeta enuncia:
“Estou hoje dividido entre a lealdade que devo / À Tabacaria do
outro lado da rua, como coisa real por fora, / E à sensação de que
tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Assim também acontece nesse Itinerário, quando o
poeta afirma: Naquilo que não distingue, imagina. E assim
também, como um jogo de percepção, É quase uma
clarividência / Ultrapassar o mundo exterior. É como voyeur
que assumo essa contemplação de intimidade
poeticamente compartilhada, quando me é apresentado o
ambiente descrito nos poemas, o dentro da casa: os porta-
retratos, os gatos e a rotina visível iluminada por essa
manhã que suspende o tempo. Por isso, torno-me íntimo
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inconformações em quase todos os poemas. A melodia é
contida e dispensa as rimas. Bordeja-se intermitentemente
um objetivo que não se alcança. Por esse motivo também,
esse poema fala da incompletude do ser: No começo Sísifo
pensou / Maneiras de escapar / Mas percebeu logo / Que a
eternidade / É um pavor que os homens / Só desejam por não
poderem ter. Jonas Leite escreve esse Itinerário do Tempo
como se dissecasse os sentidos dos objetos, como numa
anatomia do desejo presente e pulsante, que é ao mesmo
tempo intransigente e selvagem. Mas sabe ele que tais
fenômenos precisam ser acolhidos em palavras... palavras
de uma poética do isolamento urdida de luz e contenção. O
que mais posso dizer? O poema é lindo, busca a precisão
verbal de sua própria realização e confidencia que não
existe palavras para tudo. O livro está pronto e este é o
momento de seguir sua natureza de livro e significar em
outras leituras, em outros tempos, em outras
circunstâncias.
Ricardo Soares
Campina Grande, 10/12/20.
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I
A Cinza do dia
Emula estrelas
No céu preto.
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Um feixe de luz
Entrou pela janela
Rompendo a decisão
De me fechar no quarto.
Ele ficou, perseguiu a dança do sol
Até que a noite apagou
Sua pequena revolução,
Maquiou o intransponível
E conformou minha resolução.
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Monet
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Suspendeu-se o tempo,
O ar,
O som.
Mudificaram-se as bocas
E o pavor adivinhou-se nos olhos.
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Recuperação da Infância
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Anatomia do Silêncio
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Ariadne
Labiríntica é a solidão
Portas que emulam a esperança
Umbrais rotos viciados na espera
Há gatos, um lobo e dias
Que só encontram as noites.
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Cinzas
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Antes,
Apesar de tudo
Éramos.
E nem o pano puído na mesa
Os remendos na alma
Nada poderia nos deter.
Antes
Havia palavras
E elas catapultavam sonhos.
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Corifeu da Solidão,
O Silêncio
Oficia o rito.
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No meu coração
Estão todas as horas,
Todos os minutos,
Todos os segundos
Desse dia que demora.
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Sertão
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Lisboa
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Barcelona
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II
À noite, ébrios
Tudo parecia
Sublime.
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Antífona
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— Estou assustado:
Meu desejo é maior do que eu.
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Imagino-te assim,
Sem me dizeres uma palavra
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Agora que és
É imperioso que te espere.
Mas não tardes
Que os homens adoram qualquer deus
Na ausência de Deus.
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Sem me arrepender
Quero absolvição.
— Escrevo para poder sentir que estou vivo.
Menti cedo
Fiquei intransponível.
Mamãe sabe que posso amar
E fica aterrorizada
Sabe que posso tudo.
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Agora me organizo:
Homem sério com pasta na mão
Se fazendo de autoritário.
O que é rígido agora
É a técnica com que trato minhas perdas.
Organizado, faço um índex.
Perdi o prumo
E guardei minha história fantasiosa
De homem sério.
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Amante ignoto,
Todas as tardes devem
Ter o teu cheiro.
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Compreende Homem:
A Arte já feriu meu coração
E o que te dou nas mãos
É perfume, espinho, dor, sangue e prazer.
E só te peço que sintas
Sintas, Homem.
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Deram-se as mãos
E já não se deixaram mais.
Deram-se as bocas
E permaneceram.
Deram-se. E são.
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Lépido,
Tépido,
Intrépido.
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Lírico e loquaz
Era o meu amor.
O teu calado e atento.
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Coreografia
No teu passo
O meu salto
Nas tuas pernas
O meu trampolim
No teu corpo
O meu bailado.
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Paraíso
Meu amor,
Nenhum anjo te expulsará
Por comeres do meu fruto.
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Diante de ti
Penso no deus
Nos teus pais
Ou em qualquer coisa
Que se conjurou para te formar
E agradeço, rapidamente,
A tudo isso
Antes de mergulhar.
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Amiúde,
Entramos no oculto de nós
E tecemos noites
De seiva e dulçor.
Às vezes fazemos de sol
O quarto fechado
Tão quente e luminoso
Que amanhece a casa inteira.
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Da Vontade
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Entre nós
Não há nada
Nem os deuses
Nem os outros.
Somente nós
Nus
A sós.
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Da fresta da porta
Uma luz qualquer
Silhuetavam-lhes os movimentos
E regalavam a ambos,
Absortos de júbilo,
O prazer recíproco
De perceber, um no olho do outro,
A entrega incipiente
Que começavam a arquitetar.
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Estirado,
Lânguido
E de olhos fechados.
Eis tu, depois de ser
Todo meu.
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Intimidade
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Nada exprimirá
À exatidão
O instante,
O pulso
O espasmo
A explosão
De quando caímos
Inertes
Um em cima do outro
No colchão.
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Não te prendas
Nunca a mim:
Nosso amor é
A minha mão
Na tua mão.
Somente.
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III
De manhã
Tudo é ambíguo.
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Súbita a manhã
Irrompendo em feixes de luz
O nosso mistério.
Nada nos afetaria:
Tínhamos o álcool, a noite e a efêmera promessa.
Mas é de manhã
E cada um precisa cuidar do segredo que não disse
E das urgências que adiaram.
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Ausência
Não és
Mas a ideia de seres
Dói-me por não existires
Como se tudo o que é real
Fosse condicionado ao futuro
E o presente apenas um espectro
Que será.
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Amamo-nos ali
Sem pudor, depressa.
A urgência do teu corpo
Encontrou a urgência do meu
E tudo fez-se.
Éramos!
Até que cada um
Cuidou apenas de ser.
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Queria tudo:
A fama, a glória, o amor.
E teve, por benefício ou castigo de um deus qualquer,
Sem cuidar que tudo o que ansiava
Era o prenúncio da ruína que nunca desejou.
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Amanhecemos.
Ainda tentamos tecer uma carícia
Ou algo que aplacasse o desconforto.
Certamente não nos veríamos mais
Apesar de dizermos o contrário.
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IV
Poética
Busco as palavras
Na tentativa das frases
Num jogo de perceber o que virá
Mas a ideia movediça, amorfa
Desintegra-se à concretude do verbo
E sempre perco.
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Primeira Tentativa
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Última Tentativa
Sempre tento
A precisão.
Mas não há palavras para tudo.
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II
O que foi é.
Eis o paradoxo da memória.
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Equação do Mito
Deixar de ser
Para ser.
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O Outro
II
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Bala de Prata
Acostumado a quedar
Tudo a seus pés
O Tempo não vence a Arte.
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Teseu
Depois da vitória
Do auge
Do gozo
Nada é como fora prometido.
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De ti restou o fantasma
Eco de uma voz
Que calada
Sofreu e mendigou.
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Amanhã
Amanhã
Serei o que quero ser
A resolução firmada
O primeiro passo ao triunfo
Os aprendizados à mostra.
Amanhã
Conjuração de tudo o que é hoje
Tempo supostamente flexionando para melhor.
Amanhã
O meu atestado de ruína presente
A desculpa fácil
Isca de sonhos a realizar.
Amanhã
O passado que não deixa de ser.
Amanhã
Onde tudo o que foi será
Sucessivamente,
Para sempre.
Amanhã.
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Em silêncio
O Tempo prepara seu plano
E induz os homens à sedição.
Depois, como resposta à revolta que se erigiu,
Oferece atalhos
Para, novamente, cairmos na armadilha.
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NOTA BIOGRÁFICA
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