TESE FINAL Renato de Ulhoa Canto Reis 06-07-21
TESE FINAL Renato de Ulhoa Canto Reis 06-07-21
TESE FINAL Renato de Ulhoa Canto Reis 06-07-21
JUIZ DE FORA
2021
Renato de Ulhoa Canto Reis
Juiz de Fora
2021
[FICHA CATALOGRÁFICA]
Renato de Ulhoa Canto Reis
Aprovada em , de , de 2021.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Profª. Dra. Silvana Mota Barbosa – Orientadora (UFJF)
_____________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Mansur Barata (UFJF)
_____________________________________________
Prof. Dr. João Paulo Garrido Pimenta (USP)
_____________________________________________
Prof. Dr. Jefferson Cano (UNICAMP)
_____________________________________________
Profª. Dra. Naiara dos Santos Damas Ribeiro (UFJF)
Dedico este trabalho ao meu pai, Fernando
César de Souza Reis (in memorian).
AGRADECIMENTOS
Ao finalizar esta etapa, não posso me furtar de agradecer a uma série de pessoas que
contribuíram de diversas maneiras para a conclusão deste trabalho.
A minha orientadora e amiga, Silvana Mota Barbosa, agradeço pela generosidade,
pelos incentivos, pela paciência, pela confiança e pelo suporte emocional e intelectual que
sempre me ofereceu.
Ao professor Alexandre Mansur Barata, agredeço pela presença constante em minha
trajetória, pela amizade e pelos comentários que sempre me auxiliaram a pensar e repensar o
meu objeto de pesquisa. Agradeço também ao professor João Paulo Garrido Pimenta, pelas
importantes sugestões e observações oferecidas durante a qualificação.
Agradeço ao professor Jefferson Cano e à professora Naiara Dantas por terem
gentilmente aceito o convite para compor a banca de defesa.
Agradeço aos professores do Departamento de História e do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Todos eles contribuíram,
através das suas aulas, eventos, discussões e atividades para a realização desta tese. Agradeço
também a professora Maria Fernanda Vieira Martins (in memorian), que com sua
generosidade costumeira, não perdia uma oportunidade de saber como estava indo a redação
da tese e quais textos eu estava lendo, para logo em seguida oferecer uma indicação de leitura
sempre pertinente.
Aos amigos do Núcleo de Estudos em História Social da Política (NEHSP), agradeço
pelas discussões acadêmicas e pelos encontros sempre divertidos. Todos vocês tornaram
possível este texto.
Diego Rodolfo, Eduardo Silva Jr., Eliene da Silva Nogueira, Renato Balbino, Gabriela
Fazolato, Fábio de Souza Duque, Lucas Martins, Sérgio Gouvêa, Rafael Madeira, Alessandro
Aguiar, Bruno Fávero, Luisa Cutrim e Eduardo Barbosa de Morais Jr. Sintam-se todos
abraçados. Meus sinceros agradecimentos por estarem ao meu lado durante toda essa
trajetória.
É imensurável o tanto que tenho que agradecer a Raissa Gabrielle Vieira Cirino. Pela
leitura atenta da tese, correções e sugestões. Pelo carinho, amor, companheirismo e paciência.
Pelo apoio psicológico, material, intelectual e emocional. É difícil expressar em palavras o
tanto que o seu apoio foi fundamental para a conclusão desta etapa.
Agradeço também aos meus familiares. Minha mãe, Celina de Ulhoa Canto Reis, e
meu pai, Fernando César de Souza Reis (in memorian), pelo apoio, amor, serenidade e
cuidado com que sempre me trataram. Meus irmãos, Rodrigo, André e Marco, e meus primos,
Iberê e Peri, pelo companheirismo. Agradeço também a minha tia Alba, meu tio Cid
Fernando, e minhas avós Regina e Marina.
Por fim, agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) que através da concessão da bolsa tornou possível a realização deste trabalho.
RESUMO
Keyword: Public, private and particular. Conceptual History. Iberian World. Empire of Brazil.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14
CAPÍTULO 1. HISTORIOGRAFIA E ESTADO DA ARTE: A DICOTOMIA NO
PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO .............................................. 23
1.1 A “esfera pública” .......................................................................................................... 33
1.2 A “vida privada” ............................................................................................................ 41
1.3 Jeff Weintraub e as quatro tipologias ............................................................................. 61
1.4 Relação de não oposição como condição de compreensão dos conceitos ..................... 68
1.5 Universalização e definição teórica: riscos históricos ................................................... 73
CAPÍTULO 2. PÚBLICO, PARTICULAR E PRIVADO NO ANTIGO REGIME
PORTUGUÊS (c. 1600-1750) ................................................................... 78
2.1 Os “privados dos reis”: a questão do valimento ............................................................ 79
2.2 O “público” e os “particulares” no interior do discurso político-jurídico-teológico do
Antigo Regime ............................................................................................................. 112
2.3 A publicidade exemplar: uma ferramenta teológico-política de retidão moral ........... 141
2.4 Do lado de cá do Atlântico: público e particular na América Portuguesa .................... 154
CAPÍTULO 3. A ILUSTRAÇÃO E AS IDEIAS LIBERAIS NOS SETECENTOS:
INDIVIDUALISMO E PACTO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE UM
NOVO ORDENAMENTO DAS PARTES COM O TODO (c.1750-1820)
.................................................................................................................... 172
3.1 As ideias de polícia e as reformas institucionais no mundo luso-brasileiro do Antigo
Regime ......................................................................................................................... 180
3.2 Um novo ordenamento jurídico ................................................................................... 189
3.3 As reformas no Estatuto da Universidade de Coimbra: interpretações sobre o Direito
Público ............................................................................................................................... 192
3.4 A polêmica do Novo Código: o debate entre Mello Freire e Ribeiro dos Santos ........ 200
3.5 Francisco Coelho de Souza e Sampaio e a “fonte imediata do Poder Público” ........... 216
3.6 Sedições na América Portuguesa e a transferência da família real .............................. 220
CAPÍTULO 4. OS OITOCENTOS E A CONSTRUÇÃO DA DICOTOMIA (c.1820-
1870) ......................................................................................................... 238
4.1 O momento constitucional: o vintismo português e as Cortes Extraordinárias da Nação
Portuguesa .................................................................................................................... 240
4.1.1 A Assembleia Constituinte de 1823 ....................................................................... 249
4.1.1.1 A escravidão ............................................................................................... 251
4.1.1.2 A supremacia do público e as tentativas de conciliação: o problema dos
privilégios ..................................................................................................... 254
4.1.1.3 Público e particular: o reforço da diferença e o federalismo ........................ 256
4.1.1.4 Do particular ao privado: a privacidade da casa e a questão religiosa ......... 257
4.2 O público e o Estado. O direito administrativo a partir de Charles Bonnin: entre teoria e
prática ........................................................................................................................... 261
4.2.1 O Código Criminal de 1830 ................................................................................... 271
4.2.2 O Código Comercial de 1850 e os interesses particulares e públicos .................... 283
4.3 O público e a publicidade: a sociedade política ........................................................... 306
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 320
FONTES E BIBLIOGRAFIA ............................................................................................ 324
Fontes ................................................................................................................................. 324
Bibliografia ........................................................................................................................ 334
14
INTRODUÇÃO1
a confusão entre o público e o privado, nós não podemos aceitar. Esse é o pilar
fundamental da crença do PSDB. Uma coisa é o governo, outra coisa é a
família. A confusão entre o interesse de família e o interesse público leva à
corrupção, um cupim da democracia.
Depois ainda disse que “o maior problema do Brasil, tradicionalmente na nossa cultura
política, é o clientelismo e o patrimonialismo, confusão do público com o privado. Isso vem
de sempre, desde o Império, a Colônia, mas tem de acabar”2.
O então senador Aécio Neves (PSDB), no mesmo ano de 2012, atacava o PT através
da mesma afirmação: “na verdade, o que nós percebemos ao longo dos últimos anos é que o
PT institucionalizou uma prática em que o público e o privado se confundem sempre”3.
Por outro lado, a ex-presidenta Dilma Roussef (PT), no ano de 2015, durante o 3º
Festival da Juventude Rural, em Brasília, disse:
Essa confusão entre o que é privado e o que é público veio lá de trás nesse país.
Tem a mesma idade que a escravidão. (...) A confusão entre o que é bem
individual e o que é bem público decorre de uma coisa chamada
patrimonialismo que era típico da oligarquia rural brasileira, que achava que o
Brasil como nação era só dela porque parte da população era escrava e não tinha
direito nenhum4.
1
Todas as referências em nota estão completas, isto é, sem abreviaturas. Acredito que mantê-las dessa forma
auxilia a leitura dos membros da banca, bem como facilita alterações futuras. Comprometo-me, no entanto, a
alterá-las quando da entrega da versão final.
2
URIBE, Gustavo. FH afirma que Lula confunde o público com o privado. O Globo. 29/11/2012. Disponível
em: https://oglobo.globo.com/brasil/fh-afirma-que-lula-confunde-publico-com-privado-6877991. Acesso em
10/05/2021.
3
URIBE, Gustavo. PT confunde público e privado, critica Aécio Neves. Exame. 19/07/2012. Disponível em:
http://exame.abril.com.br/brasil/pt-confunde-publico-e-privado-critica-aecio-neves/. Acesso em 10/05/2021.
4
MARCELLO, Maria Carolina. Confusão entre público e privado tem a mesma idade da escravidão, diz Dilma.
Reuters. 29/04/2015. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2015/04/29/confusao-
entre-publico-e-privado-no-brasil-tem-mesma-idade-da-escravidao-diz-dilma.htm. Acesso em 15/02/2021.
15
5
“Governo Temer confunde o que é público e privado”, diz Humberto sobre o Conselho Nacional de Educação.
Disponível em: http://www.senadorhumberto.com.br/governo-temer-confunde-o-que-e-publico-e-privado-diz-
humberto-sobre-o-conselho-nacional-da-educacao/. Acesso em 10/05/2021.
6
DAMOUS, Wadih e PIMENTA, Paulo R. S. Representação ao Exmo. Sr. Corregedor do Conselho Nacional do
Ministério Público.
7
ARAGÃO, Eugênio. Sobre palestras e a apropriação do público pelo privado, por Eugênio Aragão. GGN: o
jornal de todos os Brasis. 18/06/2017. Disponível em: https://jornalggn.com.br/editoria/justica/sobre-palestras-e-
a-apropriacao-do-publico-pelo-privado-por-eugenio-aragao/. Acesso em: 10/05/2021.
8
Trata-se do caso em que o ex-ministro comprou um prédio em Salvador que foi embargado pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Geddel teria se aproveitado de sua condição de ministro
para “pressionar” e “ameaçar” o então Ministro da Cultura, Marcelo Calero, que decidiu se demitir por causa do
acontecimento. Geddel teria dito que poderia “pedir a cabeça” da diretoria do IPHAN e que iria falar “até com o
presidente da República”.
16
está na raiz do grande atraso nacional. Sendo assim, se o Brasil realmente tem a
intenção de superar seu crônico descompasso com o mundo desenvolvido, o
primeiro passo deve ser a renúncia à velha prática do patrimonialismo9.
9
EDITORIAL. Sobre a Imoralidade. O Estado de São Paulo. 23/11/2016. Disponível em:
http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,sobre-a-imoralidade,10000089991. Acesso em: 10/05/2021.
10
BULLA, Beatriz. Câmara foi usada por Cunha, afirma Janot. O Estado de São Paulo. 13/08/2015. Disponível
em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,janot-acusa-camara-de-agir-em-interesse-particular-em-acao-
para-anular-provas-contra-cunha,1743554. Acesso em: 10/05/2021.
11
LEITÃO, Miriam. A confusão entre o público e o privado. O Globo. 01/02/2008. Disponível em:
http://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/a-confusao-entre-publico-o-privado-88921.html. Acesso em:
10/05/2021.
17
12
Ministro Lewandowski assina acordo para acelerar processos contra a corrupção. 25/03/2015. Disponível em:
http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesClipping.php?sigla=portalStfDestaque_pt_br&idCon
teudo=288243. Acesso em: 10/05/2021.
13
NÊUMANNE, José. Bolsonaro trata público como privado. Estadão. 06/05/2020. Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/blogs/neumanne/bolsonaro-trata-publico-como-privado/. Acesso em: 10/05/2021;
Relembre casos em que o clã Bolsonaro cruzou o limite entre público e privado. Folha de São Paulo.
11/12/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/12/relembre-casos-em-que-o-cla-
bolsonaro-cruzou-o-limite-entre-publico-e-privado.shtml. Acesso em: 11/05/2021.
14
BLOCH, Marc. O ídolo das origens. In: Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.
15
Outros exemplos foram explorados em: REIS, Renato de Ulhoa Canto. Existe uma confusão entre público e
privado no Brasil? Um olhar a partir da história conceitual. Anais do II Encontro de Pós-graduandos da SEO,
vol. 2, 2018.
18
Ainda de acordo com Baczko, é muito comum que o imaginário social intervenha nas
dimensões intelectuais da vida coletiva através de uma série de oposições conformadas em
redes de significações. Como exemplo, o autor oferece: “legitimar/invalidar; justificar/acusar;
tranquilizar/perturbar; mobilizar/desencorajar; incluir/excluir (relativamente ao grupo em
causa), etc.”17. Acredito ser coerente pensar também, como no caso em questão, em
separar/confundir, como dimensões simplificadoras de uma experiência social complexa e
dinâmica. A ideia de “confusão” opõe a realidade da prática aos imperativos das normas, a
suposta concretude da experiência à expectativa do futuro (a própria imaginação, portanto).
Por trás desta ideia está uma disputa pela política, uma disputa pela história, e também uma
disputa pelo futuro.
Pressuposto básico para a ideia de “confusão” é a crença de que público e privado
conformam reinos, esferas, espaços, domínios ou setores antagônicos. Uma dicotomia cujos
elementos seriam mutuamente exclusivos. Cada um dos lados seria composto por um
conjunto de valores e normas que atuariam em oposição ao outro. Nesse sentido, os contatos
são, usualmente, considerados como “invasão”, como “confusão”.
Porém, a despeito de prevalecer no imaginário social uma projeção anacrônica dessa
relação dicotômica entre público e privado na história brasileira, as discussões nas últimas
décadas sobre os indivíduos, a sociedade, a família e o Estado, bem como acerca dos poderes
políticos e jurídicos na Colônia e no Império, sofreram inúmeras alterações. Essas mudanças
16
BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et al. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 311-312.
17
BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et al. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 312.
19
18
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos históricos; tradução, Wilma
Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. PUC-Rio,
2006; KOSELLECK, Reinhart. A configuração do moderno conceito de História. In: KOSELLECK, Reinhart;
MEIER, Christian; GÜNTHER, Horst; ENGELS, Odilo. O conceito de História. Trad. René E. Gertz. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
20
as transformações conceituais tornar-se-iam evidentes apenas entre os anos de 1770 até 1870,
decurso adotado no projeto Iberconceptos19. A periodização elegida aqui não se define pelo
sattelzeit, mas compartilha das suas premissas e da sua constatação central, ou seja, estamos
lidando com um período de transição20, de deslocamentos semânticos e de uma experiência
temporal sentida e, reiteradamente, expressada como acelerada.
A meu ver, começar um exercício de observação dos usos dos conceitos,
desvencilhando-se de atribuições definidas previamente, justamente no período considerado
como de aceleração e deslocamentos, é andar em terreno arenoso, pois dificulta o
entendimento acerca do que estava sendo questionado, como, quando e por que. Nesse
sentido, recuar o olhar para um período anterior ao momento em que se iniciam as mutações é
fundamental para compreender esse processo. Prática que é comumente adotada nos trabalhos
de história conceitual.
Além disso, motivações pragmáticas orientaram o estudo para o século XVII. O
conceito de “privado” poucas vezes aparece emparelhado ao “público” nos debates do século
XVIII (e mesmo no XIX). A leitura das fontes indicava, entretanto, um uso pouco conhecido,
mas que se mostrava importante no vocabulário político. Refiro-me aos privados dos reis e a
questão do valimento. O século XVII, considerado o “século de ouro” dos validos,
apresentava-se como um período fecundo para entender, ou mesmo repensar, de um ponto de
vista que busca levar em consideração os usos dos conceitos, a pretensa relação dicotômica
entre o público e o privado.
A opção teórica e metodológica conduziu também para uma concepção espacial mais
livre. A definição de um contexto nacional, especialmente para o período anterior aos
oitocentos, é bastante frágil. As fronteiras territoriais eram outras antes da sua divisão em
diferentes nacionalidades. Além disso, a linguagem, e mais especificamente os conceitos,
19
SEBASTIÁN, Javier Fernández. Tiempos de transición en el Atlántico Ibérico. Conceptos políticos en
revolución. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario político y social del mundo
iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870, Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales – Universidad del País Vasco, Tomo II, 2014.
20
Elias J. Palti tem criticado a historiografia do século XIX por trabalhar demasiadamente com a ideia de
transição. Segundo ele, essa forma de olhar o período retira-lhe as especificidades, situando-o entre dois mundos:
ou Antigo Regime ou Modernidade. De fato, é preciso eliminar a ideia de que se trata de dois blocos
homogêneos e coerentes lutando entre si. Contudo, “transição” significa, especialmente, a ação de passar, a
passagem. Se não há transição, resta a ruptura ou a continuidade. Perde-se, portanto, a ideia de processo,
princípio basilar do conhecimento histórico. Pode não ser uma transição entre dois mundos fechados, mas ainda
assim é inegável que durante esse período se produziram renovações importantes nos conceitos fundamentais
que articulavam a vida política. Os argumentos de Palti podem ser encontrados em: PALTI, Elías J. El tiempo de
la política. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2007. A perspectiva
adotada aqui segue de maneira mais próxima: SEBASTIÁN, Javier Fernández. Tiempos de transición en el
Atlántico Ibérico. Conceptos políticos en revolución. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario
político y social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870, Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales – Universidad del País Vasco, Tomo II, 2014.
21
possuem uma dimensão transnacional, cujo rastreamento ao longo da tese intercalou Espanha,
Portugal e América. Tal poderia ser definido mais propriamente como um mundo conceitual
ibérico, ou mesmo Atlântico21. A partir do século XIX e com o processo de construção dos
Estados nacionais, a análise passa a se restringir ao Brasil. Entende-se que os contextos
devem ser delimitados a partir das questões em jogo, não havendo definições a priori que
explicariam automaticamente os usos e significados dos conceitos22.
O primeiro capítulo visa apresentar ao leitor algumas questões historiográficas e
teóricas acerca dos conceitos. Trata-se da construção de um caminho dentre vários possíveis
devido a grande quantidade de estudos. Nesse sentido, procuro trazer à tona as marcas
deixadas pelos “intérpretes” do Brasil dos anos 1930, tanto no imaginário social brasileiro
quanto na historiografia, como parece ser o caso do projeto da história da vida privada no
Brasil. Depois, elenco as discussões sobre a “esfera pública” e a “vida privada”, que, ainda
hoje, orientam a forma como se lida com o público e o privado. Visando apresentar o uso dos
conceitos em outras reflexões, trato brevemente das tipologias de Jeff Weintraub.
Posteriormente, encaminho a discussão para as questões contemporâneas, onde existe uma
descrença quanto à capacidade de pensar o mundo por meio de um binarismo. Por último,
considerando as questões levantadas ao longo do capítulo, busco apresentar e justificar o
método adotado na tese como uma alternativa para repensar os problemas.
Após esse percurso pelas questões historiográficas e teóricas, no segundo capítulo
passo a analisar o uso dos conceitos entre os anos de 1600 até 1750, aproximadamente. O
foco na utilização dos conceitos, como dito, direcionou o olhar para uma diferenciação entre
“privado” e “particular”. O primeiro designando o “amigo” do rei, o segundo integrando,
juntamente com o “público”, as teorias corporativas do poder inseridas em uma cultura
jurisdicionalista. Com esse propósito, as fontes empregadas restringiram-se, basicamente, aos
textos teóricos que, dificilmente, podem ser qualificados como meramente jurídicos,
21
SEBASTIÁN, Javier Fernández. Tiempos de transición en el Atlántico Ibérico. Conceptos políticos en
revolución. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario político y social del mundo
iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870, Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales – Universidad del País Vasco, Tomo II, 2014. Ver também: GAMES, Alison. Atlantic History:
definitions, challenges, and oportunities. The American Historical Review, AHR Forum: Oceans of History, vol.
111, Issue 3, June 2006, p. 741-757.
22
BEVIR, Mark. The errors of linguistic contextualism. History and Theory, vol. 31, n. 3, (Oct. 1992);
GOERING, D. Timothy. Concepts, History and the game of giving and asking for reasons: a defense of
conceptual history. In: Journal of the Philosophy of History, 7, 2013. P. 426-452; LACAPRA, Dominick.
Repensar la historia intelectual y leer textos. In: PALTI, Elías José. “Giro linguístico” e historia intelectual.
Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 1998; SHOGIMEN, Takashi. On the elusiveness of context.
History & theory, n. 55, (May 2016).
22
23
BOTELHO, André. Público e privado no pensamento social brasileiro. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ,
Lilia Moritz (Org.). Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. São Paulo: Claro
Enigma, 2012. p. 50.
24
GOMES, Angela Maria de Castro. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público
e o privado. In: NOVAIS, Fernando (Coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no
Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 4, 1998.
24
25
Trata-se, como se sabe, do debate a respeito do “lugar” das ideias. O caso exemplar do pensamento de que as
ideias estão fora de lugar: SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos
inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977. A opinião de que as ideias estão no lugar é
representada por FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As ideias estão no lugar. Cadernos de Debate, São Paulo,
n. 1, p. 61-64, 1976.
26
Angela Maria de Castro Gomes aponta que após a Primeira Guerra Mundial e a crise de 1929, a ideia de
igualdade liberal, “fundada na equidade política do indivíduo-cidadão portador de opinião-voto, era contestada
pela desigualdade natural dos seres humanos, que justamente por isso, não podiam ser tratados da mesma
maneira pela lei. Esse cidadão liberal, definido como possível, mas, no caso brasileiro, inexistente, era de fato
uma ficção, como o eram os procedimentos a ele associados: eleição, partidos políticos, parlamentos, etc.”. A
crítica à ficção política liberal orientava as análises para a atribuição de destaque ao papel do Estado (os órgãos e
as políticas públicas) como paradigma para uma modernização possível. GOMES, Angela Maria de Castro. A
política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público e o privado. In: NOVAIS, Fernando
(Coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade
contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 4, 1998. p. 506.
27
GOMES, Angela Maria de Castro. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público
e o privado. In: NOVAIS, Fernando (Coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no
Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 4, 1998. p. 500.
25
28
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil [1918]. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2005.
29
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil [1918]. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2005. p. 344.
30
Cf. RICUPERO, Bernardo. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Alameda, 2005.
31
VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil [1918]. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2005. p. 344.
26
colonial. Esse conceito de privado é que orienta a constatação de que havia uma hipertrofia do
privado no Brasil sem haver, ao mesmo tempo, vida privada – como veremos mais à frente.
Em Casa Grande & Senzala, publicado em 1933 por Gilberto Freyre, a dicotomia
também estava presente, porém em uma perspectiva diferente. Em primeiro lugar, ela era
parte de uma série de antagonismos: a cultura europeia e a indígena (ou africana), a economia
agrária e a pastoril, o jesuíta e o fazendeiro, o senhor e o escravo, a casa grande e a senzala,
entre outras. De acordo com Bernardo Ricupero, o que era central na tese de Freyre era a
busca pelo “equilíbrio de antagonismos”. Isso significa que na avaliação do autor, as
oposições não eram impeditivas para a instauração da democracia, mas condições profícuas
para a emergência de um tipo diferente de formação política e social, pois sempre
encontravam uma maneira de se equilibrar, nunca se chocando completamente32. O equilíbrio
marcava uma superioridade em relação a outros povos, a capacidade de viver entre dois
continentes, Europa e África, um dualismo de cultura e de raça, tornando-nos predispostos
para um tipo de democracia “racial”.
A primazia da colonização brasileira ficou a cargo da família, diferindo-se de outros
projetos em que o indivíduo ou o Estado tomaram à dianteira. Assim como Oliveira Vianna,
Freyre atribuía uma grande importância para o ambiente e o processo de adaptação do colono
ao território extenso do grande latifúndio, no qual imperava a dominação do pater familias.
As facilidades e as concessões para os donatários introduzirem a cultura do açúcar teria tido,
também, um duplo caráter:
32
Para alguns, como Carlos Guilherme Mota, esse tipo de análise obscurece os conflitos e encobre as
contradições. Para outros, como Ricardo Benzaquen de Araújo, ela abre um tipo promissor de totalidade sem
síntese, de contradições sem mediações. Cf. RICUPERO, Bernardo. Sete lições sobre as interpretações do
Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Alameda, 2005. p. 85.
33
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 48º Edição. São Paulo: Global, 2003. p. 324.
27
34
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos históricos; tradução, Wilma
Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. PUC-Rio,
2006. p. 102-103. Outro momento em que o autor trata dos “-ismos” modernos está nas páginas 326 e 327.
35
Gilberto Freyre, segundo Ricupero e outros autores, era saudosista do passado colonial, fazendo uma apologia
do modo de organização patriarcal, ameaçado pela urbanização desde o século XIX. Ele não via o passado como
algo a ser superado. RICUPERO, Bernardo. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. 2ª Ed. São Paulo:
Alameda, 2005. “Privativismo”, nesse sentido, pode ser lido como ideia e ideologia. Apontando mais para um
projeto em construção do que para uma realidade efetiva.
36
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 48º Edição. São Paulo: Global, 2003. p. 438.
37
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
28
38
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 82.
39
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 145-
146.
40
MATA, Sérgio da. Relendo os clássicos em época de crise: Raízes do Brasil, Os Donos do poder e as
anomalias da consciência histórica brasileira. Cadernos da Escola do Legislativo, vol. 19, n. 32, jul./dez. 2017.
p. 29.
41
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e nação no Brasil: 1838-1857. Tradução de Paulo
Knauss e Ina de Mendonça. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.
42
DECCA, Edgar Salvadori de. Ensaios de nacionalidade: cordialidade, cidadania e desterro na obra de Sérgio
Buarque de Holanda. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, 2006, p. 150.
43
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 146.
29
Ricardo. Nesta, ele explica que “cordialidade” não é sinônimo de bondade, e que a palavra
pretende designar o homem que é dominado pelas emoções, pelo coração. “A inimizade bem
pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem,
assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado”44. Em outras palavras, o “privatismo” em
Sérgio Buarque adquire uma dimensão ontológica definidora do “ser nacional”, orientando,
por sua vez, a própria definição da ação pública45. O paradoxo aqui é pensar na ação pública
direcionando-se para um “ser nacional” que apenas age por imperativos privados.
“O português é mais um homem privado do que político”46. Assim definia Nestor
Duarte, em sua obra Ordem privada e organização política nacional de 1939. De acordo com
o próprio autor, ainda que Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque tenham
“toca[do], de certo modo, nessas tintas”, a mera consideração de que na sociedade colonial
prepondera o “privatismo”, “é muito pouco”. Eles teriam apontado para o fenômeno, mas
“não o tomam como fato a sistematizar na interpretação e na explicação dessa organização
social”47. Oliveira Viana apenas teria apontado para o fenômeno. Gilberto Freyre teria lhe
reduzido a uma “história social íntima”, sem entender o familismo como determinante do
mundo político da colônia. Sérgio Buarque era o que tinha mais avançado na compreensão da
oposição entre família e Estado, contudo, como seu objetivo era entender o “problema cultural
brasileiro, fatores morais [e] psicológicos”, ele não chegou a “alargar e sistematizar o
problema que não é central na sua interpretação”48.
Assim, para Nestor Duarte, a família devia ser encarada como uma “organização
privada”. E essa “organização privada” como a “estrutura de base” da sociedade colonial. A
família, ou o que daria no mesmo, o “privatismo”, era o único centro de organização da
colônia, sendo todo o resto desorganização e anarquia. Era a organização privada da família o
centro político, econômico e social, em torno da qual a vida colonial existia. Nestor Duarte
44
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 205.
45
É possível pensar também, nos termos de Richard Sennet, como a distinção privado e público passou a se
vincular à oposição entre a natureza e a cultura, o íntimo e o civilizado. A civilidade implicaria em normas,
regras de condutas adequadas ao espaço de convivência público, enquanto o espaço privado, de realização do
“eu”, permitiria identificar a “natureza” da conduta humana, o real em oposição ao artificial ou cultural.
SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução de Lygia Araujo
Watanabe. Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, 2015.
46
DUARTE, Nestor. Ordem privada e organização política nacional (contribuição à sociologia política
brasileira). São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 17.
47
DUARTE, Nestor. Ordem privada e organização política nacional (contribuição à sociologia política
brasileira). São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 122.
48
DUARTE, Nestor. Ordem privada e organização política nacional (contribuição à sociologia política
brasileira). São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 124.
30
corroborava a ideia da colônia como um mundo feudal. A sua autossuficiência era critério
para determinar que “família, propriedade e feudalismo é transcurso de um só processo”49.
O autor ressaltava sempre a oposição existente entre família e Estado, conceitos que
seriam mutuamente exclusivos. A colonização portuguesa teria se efetuado com base na
família, por meio da organização privada. O Estado português era “fraco”, “distante”,
“deformado” e “ineficiente” como poder, “inoperante naquela finalidade de cultura política, a
que se afaz o homem como cidadão e membro da comunidade política”. Ele não conseguiu
despertar o indivíduo para os “mistérios e os sentimentos próprios da vida pública”50.
Não obstante, o Estado existia. Interessante notar que no prefácio à sétima edição do
livro Coronelismo, enxada e voto de Victor Nunes Leal, escrito em 1949, José Murilo de
Carvalho afirmava que na sua interpretação a divergência mais clara de Victor Nunes era com
o ensaio de Nestor Duarte. E isto porque Nestor Duarte trabalharia com a polarização
“público” e “privado”, superada por Victor Nunes Leal por meio da ideia de
“compromisso”51. De fato, essa dicotomia tem uma importância central em Ordem privada.
Contudo, Nestor Duarte, apesar de entender o Estado no território colonial como uma
instituição praticamente vazia de sentido, ainda assim concebia uma pequena atuação estatal.
Trata-se de uma passagem que permite observar certo ponto de concordância entre os autores,
e não tanto uma divergência.
É evidente que o desenvolvimento dado por Victor Nunes Leal ao tema adquire outras
conotações. Mas é importante notar que seja através do “patrimonialismo”, seja por meio de
um “compromisso”, a existência de uma “coisa pública”, já diminuta, era quase sempre
comprometida pelo poder privado. Não se trata aqui de nenhuma novidade. Há praticamente
um século esse debate se estende, adquirindo contornos bem distintos nas últimas décadas.
49
DUARTE, Nestor. Ordem privada e organização política nacional (contribuição à sociologia política
brasileira). São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 129.
50
DUARTE, Nestor. Ordem privada e organização política nacional (contribuição à sociologia política
brasileira). São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 93-94.
51
CARVALHO, José Murilo. Prefácio à sétima edição. In: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. O
município e o regime representativo no Brasil. 7ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
52
DUARTE, Nestor. Ordem privada e organização política nacional (contribuição à sociologia política
brasileira). São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 140.
31
Novamente, meu objetivo é apenas demonstrar o uso dos conceitos nas interpretações do
Brasil, o papel que desempenharam e a forma como podem ter se disseminado pelo
imaginário social brasileiro.
Talvez o autor que mais se distingue entre os intérpretes do Brasil seja Raymundo
Faoro, que em Os donos do poder (originalmente publicado em 1958, se tornou conhecido
apenas em 1975, ocasião em que foi reeditado e duplicado de tamanho), negava que tanto
Portugal como Brasil tivesse conhecido o feudalismo. A experiência colonial brasileira era
resultado da “monarquia patrimonial” portuguesa. Nesta,
(...) o rei se eleva sobre todos os súditos, senhor da riqueza territorial, dono do
comércio – o reino tem um dominus, um titular da riqueza eminente e perpétua,
capaz de gerir as maiores propriedades do país, dirigir o comércio, conduzir a
economia como se fosse empresa sua. O sistema patrimonial, ao contrário dos
direitos, privilégios e obrigações fixamente determinados do feudalismo, prende
os servidores numa rede patriarcal, na qual eles representam a extensão da casa
do soberano53.
De certa forma, Faoro inverte os polos. A ordem privada não passaria da própria casa
do soberano. A imposição da lógica patrimonialista ao Estado por parte dos detentores do
poder político transformara-o em um estamento autônomo, e o custo elevado para sua
sustentação limitou o desenvolvimento do mercado e da economia. A primazia da colonização
coube ao Estado, sendo as capitanias “delegação pública de poderes, sem exclusão da
realeza”54. A pequena margem de ação dada pelo poder público à “iniciativa particular” era
sempre acompanhada de atenção, vigilância e controle. Impôs-se sobre o “Brasil real” o
“Brasil legal”, na colônia, no império e na república. O estamento criava a realidade brasileira
pela lei, pelo regulamento. “A economia, a sociedade se amoldarão ao abstrato império das
ordens régias – em lugar do ajustamento, em troca de concessões, o soberano corrigirá as
distorções com a espada, a sentença e a punição”55.
O poder público que dominava a ordem privada, no entanto, não era caracterizado pela
presença de uma ordem jurídica e uma ação impessoal, burocrática e universal. O Estado era
planejado e dirigido por um estamento, que o controlava para atender os seus interesses
53
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3ª edição. Rio de
Janeiro: Globo, 2001. Cap. I, parte 3, paginação irregular. (e-book).
54
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3ª edição. Rio de
Janeiro: Globo, 2001. Cap. IV, parte 3, paginação irregular. (e-book).
55
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3ª edição. Rio de
Janeiro: Globo, 2001. Cap. IV, parte 4, paginação irregular. (e-book).
32
particulares56. Nesse sentido, mais do que dominação de um polo pelo outro, a tese de Faoro
reforçou o argumento da “mistura”57, da “confusão”58, da “indistinção”59 e da
“interpenetração”. Opondo-se às analises tradicionais sobre o privatismo, e mobilizando o
patrimonialismo como categoria a-histórica da formação brasileira, Faoro afirmava a respeito
dos “coronéis” no período republicano:
Na citação de André Botelho que abre este capítulo, o “baralhamento” entre o público
e o privado é uma das “construções intelectuais mais recorrentes no seu pensamento social”.
De diferentes formas, os autores aqui elencados declaram abertamente que, seja o predomínio
do privado sobre o público, ou o contrário, existe em nossa formação histórica um mal
entendido quanto à delimitação precisa da fronteira entre eles. Os que apontavam apenas para
o predomínio da “ordem privada” na colônia, ao observar a instalação inicial de instituições
do poder público na época do império, constatavam que a partir desse momento passava a
56
CAMPANTE, Rubens Goyatá. O patrimonialismo em Faoro e Weber e a sociologia brasileira. DADOS –
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n. 1, p. 153-193, 2003.
57
“O coronel utiliza seus poderes públicos para fins particulares, mistura, não raro, a organização estatal e seu
erário com os bens próprios”. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político
brasileiro. 3ª edição. Rio de Janeiro: Globo, 2001. Cap. XIV, parte 3, paginação irregular. (e-book).
58
“Num estágio inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído pelo estamento, apropria as
oportunidades econômicas de desfrute dos bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre o setor público
e o privado, que, com o aperfeiçoamento da estrutura, se extrema em competências fixas, com divisão de
poderes, separando-se o setor fiscal do setor pessoal”. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do
patronato político brasileiro. 3ª edição. Rio de Janeiro: Globo, 2001. Capítulo final, paginação irregular. (e-
book).
59
“Este último vínculo – entre as contribuições e o tesouro régio – suscita a comercialização, a redução em
riqueza móvel, do patrimônio do soberano. Por aí se canalizará o influxo, poderoso dentro de dois séculos, de
caráter patrimonial do Estado, indistinta a riqueza particular da pública”. FAORO, Raymundo. Os donos do
poder. Formação do patronato político brasileiro. 3ª edição. Rio de Janeiro: Globo, 2001. Cap. I, parte 1,
paginação irregular. (e-book).
60
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3ª edição. Rio de
Janeiro: Globo, 2001. Cap. XIV, parte 3, paginação irregular. (e-book).
33
imperar o reino da indiferenciação entre o público e o privado. Era o caso de Luiz Aguiar da
Costa Pinto em Lutas de família no Brasil, de 1949, que seguia de perto o discurso do
“privatismo”, especialmente na versão de Nestor Duarte61.
Para Angela de Castro Gomes a “situação de fronteira” entre o público e o privado no
Brasil é um bom exemplo da interlocução entre “pensamento social” e “imaginário político”.
A característica que essa situação de fronteira adquiriu é de que seria específica do Brasil e de
outros países latino-americanos, diferenciando-se dos EUA e Europa, que teriam resolvido o
impasse entre eles. Ela também estaria vinculada com a formação histórica de cada país e com
seu processo de modernização política, no qual teria se iniciado e se sustentado pela esfera
estatal. O desafio para a superação do “atraso”, portanto, envolvia: de um lado, reconhecer um
paradigma de política moderna, baseado nos cidadãos racionais e nos procedimentos públicos
impessoais; de outro, confrontar esse paradigma com a realidade social, fundada em “padrões
de autoridade tradicionais – personalizada e emocional –, que não podiam ser ignorados e
menosprezados, sob pena de total insucesso”. A partir daí a autora afirma que: “Justamente
por isso, avalia-se a fronteira público/privado, com frequência, por um desajuste que sintetiza
a principal causa de todos os nossos males e o maior indicador de nosso “atraso”62.
61
“No Império, apesar das mudanças na organização política, que não alteraram nem podiam alterar,
abruptamente, o quadro fundamental, foram se ampliando, entretanto, progressivamente, os fatores de
consolidação do poder político, não tanto pelo enfraquecimento do poder privado mas, essencialmente, pela
fusão das duas ordens – o que foi a coluna mestre da monarquia. Como nunca, poder econômico e poder político
se identificaram”. (itálico meu). COSTA PINTO, Luiz Aguiar da. Lutas de família no Brasil (introdução ao seu
estudo). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949. p. 10-11.
62
GOMES, Angela de Castro. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público e o
privado. In: NOVAIS, Fernando (Coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no
Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 4, 1998. pp. 499-500.
63
A respeito do conceito de “sociabilidade”, ver: QUIRÓS, Pilar González Bernaldo de. La “sociabilidad” y la
historia política. In: PEIRE, Jaime (Comp.). Actores, representaciones e imaginarios. Homenaje a François-
Xavier Guerra. Caseros: Universidad Nacional de Tres de Febrero, 2007. p. 65-109. Fundamental para o
34
desenvolvimento do tema foi a obra de Maurice Agulhon (AGULHON, Maurice. Penitents et francs-maçons de
l’ancienne Provence: essai sur la sociabilité méridionale. 3ª Ed. Paris : Fayard, 1984) e François-Xavier Guerra
(GUERRA, François-Xavier. Modernidad y independencias : ensayos sobre las revoluciones hispánicas.
México: Fondo de Cultura Económica, 1993).
64
Aqui, também, os trabalhos são ricos e heterogêneos. Ver, entre outros: BARATA, Alexandre Mansur.
Maçonaria, sociabilidade ilustrada e independência (Brasil, 1790-1822). 2002. Tese de Doutorado – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2002; BASILE, Marcello. O laboratório
da nação: a era regencial (1831-1840). In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil Imperial,
volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009; LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos. A
guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; MOREL,
Marco. As transformações dos espaços públicos. Imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial
(1820-1840). Editora Hucitec: São Paulo, 2005; NEVES, Lucia Maria Bastos P. Corcundas e Constitucionais: a
cultura política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003.
65
CALHOUN, Craig (Ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge, MA: MIT Press., 1992; MELTON,
James Van Horn. The Rise of the Public in Enlightenment Europe. Cambridge: Cambridge University Press,
2004.
66
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. A primeira
tradução para o português data de 1984, para o inglês de 1989 e o francês de 1988.
67
STRUM, Arthur. A bibliography of the concept öffentlichkeit. New German Critique, n. 61, Special issue on
Niklas Luhmann (winter, 1994), p. 161-202.
35
68
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. P. 76.
69
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. P. 20.
70
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. P. 22.
71
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. P. 30.
36
72
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. P. 9.
73
“I think it was due to this slight idealization that the collapsing of norm and description came into this book”.
CALHOUN, Craig; FLORENCE, Leah; MIRCHANDANI, Rehka (Ed.). Concluding Remarks. In: CALHOUN,
Craig (Ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge, MA: MIT Press., 1992. P. 463.
74
Em “Mudança Estrutural da Esfera Pública” já é possível perceber o interesse do autor por um ideal de
comunicação que foi, posteriormente, elaborado em sua teoria política e moral. Para Harold Mah, essa
“suspensão de particularidades sociais” era o principal fator da “esfera pública moderna” em relação ao modelo
de “representatividade pública” medieval, no qual o público sempre estava permeado pelas regras de conduta e
pelas marcas de status dos indivíduos que se punham como seu representante. MAH, Harold. Phantasies of the
public sphere: Rethinking the Habermas of historians. The Journal of Modern History, Vol. 72, nº 1, New Work
on the Old Regime and the French Revolution: A Special issue in honor of François Furet, 2000.
http://www.jstor.org/stable/10.1086/315932.
37
75
FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing
Democracy. In: CALHOUN, Craig (Ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge, MA: MIT Press.,1992.
76
SCHUDSON, Michael. Was there ever a public sphere? If so, when? Reflections on the American case. In:
CALHOUN, Craig (Ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge, MA: MIT Press., 1992.
77
ZARET, David. Religion, science, and printing in the public sphere in seventeenth-century England. In:
CALHOUN, Craig (Ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge, MA: MIT Press., 1992.
78
ZARET, David. Religion, science, and printing in the public sphere in seventeenth-century England. In:
CALHOUN, Craig (Ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge, MA: MIT Press., 1992. p. 214.
79
DOWNIE, J. A. How useful to eighteenth-century English studies is the paradigm of the ‘bourgeois public
sphere’? Literature Compass, Vol 1, 2003; DOWNIE, J. A. The Myth of the Bourgeois Public Sphere. In:
WALL, Cynthia (Ed.). A Concise companion to the Restoration and eighteenth-century. Oxford: Blackwell,
2005.
80
GUERRA, François-Xavier e LEMPÉRIÈRE, Annick. Introducción. In: GUERRA, François-Xavier;
LEMPÉRIÈRE, Annick et al. Los espacios públicos en Iberoamerica: Ambigüedades y problemas. Siglos
XVIII-XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.
81
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Trad. Luciana
Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: Ed. UERJ e Ed. Contraponto, 1999.
38
82
CEPPA, Leonardo. Dialettica dell’Illuminismo e opinione pubblica: I modelli di Habermas e Koselleck. Studi
Storici: Anno 25, n. 2, I periodici d’“ancien regime” come problema, Abr-jun, 1984. P. 343-352.
83
CHARTIER, Roger. Espacio público, crítica y desacralización en el siglo XVIII: los orígenes culturales de la
Revolución Francesa. Gedisa, 1995. P. 34.
39
84
PINTER, Andrej. Public Sphere and History: Historians’ Response to Habermas on the “Worth” of the Past.
In: Journal of Communication Inquiry, nº 28, 2004. p. 217.
85
BAKER, Keith Michael. Public opinion as a political invention. In: Inventing the French Revolution: essays
on French political culture in the eighteenth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. P. 167-199.
40
que, devido a essa característica, estava sempre a serviço de uma grande variedade de
interesses políticos e sociais86. Em seu trabalho, o autor entendia “público” como um conceito
que os atores que vivenciaram a crise do absolutismo apelaram para redefinir uma linguagem
política tradicional que já não dava mais conta de condensar as novas experiências.
Baker considerava que a “esfera pública” de Habermas era muito sociológica e
defendia pensa-la como uma categoria mais abstrata. Já François-Xavier Guerra e Annick
Lempérière julgavam o oposto. Para eles, a “esfera pública” remetia a uma noção abstrata e
imaterial de espaço, porém a história cultural já teria demonstrado que estes eram mais
palpáveis do que se imaginava, podendo ser perscrutados nas recepções e difusões dos
impressos e nas práticas de leitura. Já as praças, as ruas, os cafés, as associações, o palácio,
eram espaços públicos, lugares de congregação, comunicação e ação dos homens87.
Reivindicavam, portanto, a adoção do termo “espaço” no lugar de “esfera”.
Além disso, Guerra também adotava a dicotomia “público” e “privado” em seu
trabalho88. Segundo ele, o conjunto de mutações que assolaram o mundo ibérico, englobados
sob o termo genérico de “modernidade”, atava-se às novas concepções sobre o homem, a
sociedade e a política89. Estas, no entanto, já estavam surgindo ao longo de todo o século
XVIII por meio de grupos restritos de homens reunidos em novas formas de sociabilidade. O
“radicalmente novo” era a “criação de uma cena pública quando este novo sistema de
referências deixa os círculos privados em que até então estava recluído, para irromper em
plena luz”90. Na leitura de Guerra, é inevitável perceber a proximidade com as teses de
Habermas ou Koselleck.
Assim como nas interpretações do Brasil, a definição das fronteiras entre o público e o
privado faz parte de uma narrativa de transição para a modernidade. A ideia de “esfera
pública” recolocava o debate em outros termos, mas não alterava essencialmente a crise pós-
86
BAKER, Keith Michael. Defining the public sphere in eighteenth-century France: Variations on a theme by
Habermas. In: CALHOUN, Craig (Ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge, MA: MIT Press., 1992. P.
192.
87
GUERRA, François-Xavier e LEMPÉRIÈRE, Annick. Introducción. In: GUERRA, François-Xavier;
LEMPÉRIÈRE, Annick et al. Los espacios públicos en Iberoamerica: Ambigüedades y problemas. Siglos
XVIII-XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 1998. P. 10.
88
GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independências: ensayos sobre las revoluciones hispânicas.
México: Mapfre - Fondo de Cultura Económica, 1993.
89
“O homem novo é um homem individual, desgarrado dos vínculos da antiga sociedade estamental e
corporativa; a nova sociedade, uma sociedade contratual surgida de um novo pacto social; a nova política, a
expressão de um novo soberano, o povo, através da competição dos que buscavam encarna-lo ou representa-lo”.
[tradução minha]. GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independências: ensayos sobre las revoluciones
hispânicas. México: Mapfre - Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 13.
90
“Lo radicalmente nuevo es la creación de una escena pública cuando este nuevo sistema de referencias deja los
círculos privados en los que hasta entonces había estado recluido, para irrumpir en plena luz”. GUERRA,
François-Xavier. Modernidad e independências: ensayos sobre las revoluciones hispânicas. México: Mapfre -
Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 13.
41
91
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 2ª Ed., 1986.
92
“Mais le Bourgeois dans la ville, le Paysan dans la chaumiere, le Gentil-homme dans son château, le Français
enfin au milieu de les travaux & de les plaisirs, au sein de sa famille & de ses enfans, voilà ce qu'il ne peut nous
représenter”. D’AUSSY, Legrand. Histoire de la vie privée des français, depuis l’origine de la Nation jusq’á nos
jours. Paris: de l’imprimerie de ph.-D. Pierres, 1782. P. 5.
42
Um século depois, em 1890, Alfred Franklin publicava seu La vie privée d’autrefois,
no qual buscava descrever os “modos, costumes, hábitos dos parisienses”93. Propunha-se a
analisar, dentre outras coisas, a higiene dos banheiros, as cozinhas, os relógios enquanto
medidas do tempo, as corporações de trabalhadores, as refeições, os ofícios, as moradias, os
vestuários, etc. Temas que apareceriam também em Fernand Braudel em 1979 (Civilisation
Matérielle, Économie et Capitalisme)94, ainda que de maneira radicalmente diversa. Como
aponta André Burguière, “Franklin não apresenta mais do que um repertório retrospectivo dos
objetos da vida cotidiana para servir de adorno a “grande história”, e dar-lhe um ar mais
familiar, mais verossímil”95. O primeiro trata da vie privée, já Braudel estava preocupado com
a “vida material”, ou com as “estruturas do cotidiano”, conforme discutiremos mais a frente.
A lista de autores reivindicados como precursores de tal tipo de abordagem poderia se
alongar por mais tempo. Mas não é meu objetivo tratar das “filiações” ou “linhagens”, apenas
de apontar que determinados temas já foram trabalhados também por outros autores antes de
Ariès. A busca pelas filiações pode gerar, inclusive, vários problemas do ponto de vista
teórico96. Maria Lucia Montes, por exemplo, associa, com razão, a história da vida privada
com a antropologia histórica. Busca, a partir daí recuperar aquele que seria o “herói fundador”
da antropologia. Baseada em Lévi-Strauss, diz que é a Rousseau, o “verdadeiro fundador da
antropologia”, aquele a “quem deve ser invocado na origem dessa linhagem que desagua na
História da Vida Privada”97. Outros nomes também elencados como partícipes dessa matriz
são Norbert Elias e Michel Foucault.
Mas o que parece ser consensual é a vinculação do projeto da história da vida privada
e/ou do cotidiano com a antropologia histórica, especialmente pela então “história das
mentalidades” e da “Nova História” à moda francesa. De fato, a antropologia contribuiu
extensamente em todos os âmbitos da história, renovando alguns olhares e ao mesmo tempo
propondo novos campos de investigação. A história do corpo, da vida, da morte, da
sexualidade, dos hábitos alimentares e do consumo, do vestuário, dos calendários e das
93
FRANKLIN, Alfred. La vie privée d’autrefois. Arts et métiers: modes, moeurs, usages des parisiens du XII au
XVIII siècle d’après des documents originaux ou inédits. Paris: Librairie Plon, 1895.
94
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: as estruturas do
cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, V. 1, 2005.
95
“Franklin no presenta más que um repertorio retrospectivo de los objetos de la vida cotidiana para servir de
adorno a la ‘gran historia’, y darle un aire más familiar, más verosímil”. BURGUIÈRE, André. Antropologia
histórica. In: ______. Dicionário Akal de Ciencias Históricas. Madrid: Ediciones Akal, 1991.
96
Basta lembrar-se das “mitologias” que assolavam a história das ideias segundo Skinner. SKINNER, Quentin.
Meaning and Understanding in the History of Ideas. In: History and Theory, Vol 8, Nº 1, 1969.
97
MONTES, Maria Lucia. Comentário VIII. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. V. 4, jan./dez. 1996.
P. 78.
43
atividades cotidianas. Toda essa agenda nova de investigação se sistematizava através do que
foi chamado de uma história dos comportamentos, dos hábitos ou dos costumes.
No âmbito da história econômica, através da apropriação das teorias de Marcel Mauss,
buscou-se provar como em sociedades “pré-capitalistas” ou “pré-industriais”, determinados
elementos éticos, religiosos, comportamentais e culturais sobrepunham-se às determinações
econômicas no conjunto social. Tais análises se coadunavam com as investigações no âmbito
social (que na verdade nunca acontecem isoladamente). Os estudos sobre demografia, família
e relações de parentesco, de particular interesse para a própria compreensão de uma história
da vida privada, alimentavam estas renovações historiográficas repensando as relações sociais
e o papel que a família ocupava no interior de um processo onde o Estado ou era ausente, ou
ainda era muito fraco.
Cultural e politicamente, os símbolos e signos, as crenças populares e os ritos, os
folclores e a vida religiosa foram elevados também como formas de se representar o mundo e
de lhe atribuir um sentido, para além das formulações intelectuais do pensamento filosófico e
científico, sobretudo no âmbito institucional das decisões políticas. Toda essa série de
mudanças não teve um ritmo homogêneo na historiografia dos diferentes países, muito menos
foi incorporada de maneira passiva e acrítica. Contudo, foi no interior desse processo de
renovação que se inseriu a história da vida privada.
Mesmo que o considerado “texto inaugural” de Ariès (História social da criança e da
família) tenha sido publicado nos anos de 1960, foi apenas na década de 1980 que a temática
da vida privada foi incorporada na Nova História, “tempo em que a própria história das
mentalidades já começava a demonstrar sinais de desgaste na própria França” 98. De acordo
com Ronaldo Vainfas, a demora em se incorporar a temática da história da vida privada e do
cotidiano na “Nova História” estaria relacionada ao fato de que na trilogia Faire de
L’Historie, organizada por Le Goff e Pierre Nora em 197499, texto que ficou conhecido como
um “manifesto da Nova História”, nenhuma menção é feita a temática em questão.
O enorme projeto da história da vida privada ficou a cargo de Philippe Ariès e
Georges Duby, sendo o primeiro incorporado na academia junto com a própria incorporação
do tema na década de 80, uma vez que não frequentava os espaços universitários e nem
pertencia aos quadros de ensino, trabalhando em uma sociedade de importação de frutas
98
VAINFAS, Ronaldo. História da vida privada: dilemas, paradigmas, escalas. Anais do Museu Paulista. São
Paulo. N. Sér. V. 4, jan./dez. 1996. P. 10.
99
LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Org.) História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 4ª Ed.,
1995.
44
100
BURGUIÈRE, André. Ariès, Philippe, 1914-1984. In: ______. Dicionário Akal de Ciencias Históricas.
Madrid: Ediciones Akal, 1991.
101
VAINFAS, Ronaldo. História da vida privada: dilemas, paradigmas, escalas. Anais do Museu Paulista. São
Paulo. N. Sér. V. 4, jan./dez. 1996. P. 10.
102
DUBY, Georges. Prefácio à história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). VEYNE,
Paul (Org.). História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 8.
45
uma perspectiva menos histórica e mais antropológica, portanto relacionada a uma espécie de
natureza humana dicotômica, uma constatação ontológica que divide todos os homens como
portadores de uma vida pública e outra privada.
Não era uma história da casa, no sentido de uma história do cotidiano, mas era uma
história do espaço doméstico. Não era uma história da intimidade, mas era uma história da
vida privada que acontece no lugar “íntimo”. Também a premissa básica, a de que “sempre e
por toda parte” a linguagem contrastou público e privado não procede, como prova o seu
próprio texto Poder privado, poder público ou o texto-seminário de Philippe Ariès publicado
no terceiro volume, Por uma história da vida privada.
A partir da sua preocupação com o exercício do poder, Duby afirma que o processo de
feudalização, a partir do ano mil, “traduz uma privatização do poder”104. A extensão do poder
e do papel dos senhores em suas respectivas localidades, a rex familiaris, os direitos, a justiça,
a liberdade, o povo na estrutura social, enfim, tudo apontava para este processo. Em outras
palavras, “no limite, poder-se-ia dizer que na sociedade que se torna feudal a área do público
se embota, se encolhe, e que, ao termo do processo, tudo é privado, a vida privada tudo
penetra”105. Por outro lado, o mesmo processo, para o autor, poderia ser validamente visto
com o olhar oposto. Nesse, tratava-se não de uma privatização e sim de uma fragmentação do
público. Os direitos públicos mantiveram seu caráter, mas agora no interior de cada casa, no
103
DUBY, Georges. Prefácio à história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). VEYNE,
Paul (Org.). História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 8.
104
DUBY, Georges. Poder privado, poder público. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). CHARTIER,
Roger (Org.) História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 23.
105
DUBY, Georges. Poder privado, poder público. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). CHARTIER,
Roger (Org.) História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 23.
46
seio da morada e da família. “De modo que se poderia dizer, no limite, que tudo se tornou
público na sociedade feudalizada”106.
Tudo se tornou privado e tudo se tornou público. Essa imprecisão, de início, já
contrapõe a ideia de que público e privado sempre se contrastaram. Para articular essa
duplicidade, Duby afirma que “entre o privado e o público, tratava-se bem de interpenetração,
de osmose”107, revelando claramente a dificuldade de operar estes conceitos como contrastes
delimitados, fronteiras precisas destinadas à duas partes da existência. Ao longo do texto
insiste mais na maneira como a vida privada ou o poder privado usados quase indistintamente,
esfacelavam o poder público gerando um paradoxo: “quando a sociedade se feudalizou, houve
cada vez menos vida privada porque todo poder se tornara cada vez mais privado”108.
Já Philippe Ariès não está tão preocupado com duas esferas de poder distintas, mas
sim com a vida dos indivíduos e suas relações no interior da sociedade. Sua preocupação era
com o sentido de público enquanto sociedade (a vida pública) e de privado como indivíduo ou
família (a vida privada), o que significava pensar que determinadas formas de relações entre
estes conceitos fundam certas formas de sociabilidades. Para o autor, no final da Idade Média,
o mundo não é “nem privado nem público no sentido que conferimos a esses termos”, em
outras palavras, “digamos de maneira banal que há confusão entre o privado e o público, entre
o dormitório e o tesouro”109. Até aqui, existe uma concordância com Duby, público e privado
se misturavam. Ambos, portanto, vão de encontro à própria premissa usada na definição
teórica do conceito de vida privada.
Contudo, no sentido proposto pelo autor, essa “não distinção” ou “interpenetração”,
está relacionada com a falta de uma fronteira precisa entre o indivíduo e/ou a família e as
“solidariedades coletivas”. A questão é que a comunidade enquadrava e limitava a vida
privada do indivíduo, gestando um tipo de “sociabilidade anônima” na qual o público
absorvia o privado, diferente, portanto, do processo de privatização informado por Duby.
106
DUBY, Georges. Poder privado, poder público. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). CHARTIER,
Roger (Org.) História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 23.
107
DUBY, Georges. Poder privado, poder público. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). CHARTIER,
Roger (Org.) História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 33.
108
DUBY, Georges. Poder privado, poder público. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). CHARTIER,
Roger (Org.) História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 43.
109
ARIÈS, Philippe. Por uma história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.).
CHARTIER, Roger (Org.) História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo:
Companhia das Letras, Vol. 3. 2009. p. 9.
47
110
ARIÈS, Philippe. Por uma história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.).
CHARTIER, Roger (Org.) História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo:
Companhia das Letras, Vol. 3. 2009. P. 21.
111
ARIÈS, Philippe. Por uma história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.).
CHARTIER, Roger (Org.) História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo:
Companhia das Letras, Vol. 3. 2009. P. 22.
112
ARIÈS, Philippe. Por uma história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.).
CHARTIER, Roger (Org.) História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo:
Companhia das Letras, Vol. 3. 2009. P. 22.
113
ARIÈS, Philippe. Por uma história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.).
CHARTIER, Roger (Org.) História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo:
Companhia das Letras, Vol. 3. 2009. P. 24.
48
privado ao público”114. Porém, a questão aqui pode ser de outro sentido. Duby insiste durante
sua definição que o contraste se dá no vocabulário, na linguagem. Esta afirmação sugere,
considerando o que dizem os autores sobre estes conceitos (ou seja, que se interpenetravam),
e considerando o suposto contraste que existe na linguagem, que havia ou há um descompasso
entre a experiência e a linguagem. Problema de ordem teórica que será discutido mais a
frente.
O texto já citado de Ronaldo Vainfas foi elaborado como proposta de debate a partir
da iniciativa do Museu Paulista da Universidade de São Paulo no ano de 1996. Dez
comentários, de autores consagrados da historiografia, sociologia e antropologia, seguiram-se
ao texto de Vainfas, sendo o último texto uma resposta do autor aos questionamentos
levantados pelos comentadores115. Salvo algumas exceções, foi praticamente consensual que
existia uma dificuldade em se definir, ou entender, o que significava o conceito de vida
privada, e qual a sua diferença em relação à história da vida cotidiana.
Duby não pretendia que a história da vida privada fosse confundida com uma história
do cotidiano e nem como uma história do individualismo. A vida privada não estaria
enclausurada no interior da casa, mesmo que fosse este o melhor lugar para encontra-la,
devendo o historiador investigar também os lugares de lazer, de trabalho – “a oficina, a loja, o
escritório, a fábrica” – ainda que muitos destes possam ser tratados também como lugares
públicos. Isto seria possível porque para o autor, desde a Idade Média,
Já nesse sentido, a “vida privada” aparece como a parte da existência humana que não
é “tocada” pelo Estado, que se aplicaria possivelmente para o século XVIII ou XIX (ainda
114
Em resenha sobre o primeiro volume, coordenado por Paul Veyne, Janet L. Nelson afirma a mesma coisa, ou
seja, que apesar da definição a respeito do claro contraste entre os conceitos de público e privado, em
praticamente todos os textos o que se encontrava era o oposto, a constatação de que na Antiguidade estes
conceitos não se contrastavam. Também já é possível encontrar no primeiro volume o argumento do crescimento
do domínio privado sobre o público. NELSON, Janet L. The problematic in the private. Social History, Vol. 15,
nº 3, Oct, 1990. P. 355-364.
115
Os autores, na ordem dos comentários, são: Celeste Zenha, Ciro Flamarion Cardoso, Francisco José C.
Falcon, José de Souza Martins, Lana Lage da Gama Lima, Laura de Mello e Souza e Fernando A. Novais
(comentário escrito pelos dois), Maria Fernanda B. Bicalho, Maria Lúcia Montes, Sheila de Castro Faria e Silvia
Regina Ferraz Petersen.
116
DUBY, Georges. Prefácio à história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). VEYNE,
Paul (Org.). História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 9.
49
assim com problemas), mas que Duby vincula à Idade Média. Se de um lado (“exterior”) o
poder privado procura se proteger dos “assaltos do poder público”, por outro (“interior”), ele
procura “conter as aspirações dos indivíduos à independência”117. O poder privado, assim, se
situaria na interseção entre o indivíduo e o Estado, realçando o papel da família, dos
compadrios, das linhagens, dos vizinhos, e outros, que através de seus muros, fortalezas e
cercas protegiam-se de ambas as intrusões. No prefácio à segunda edição, o autor irá reforçar
o caráter da privacidade e familiaridade como uma noção oposta à autoridade, ao Estado,
mesmo fazendo todas as ressalvas relacionadas à fragilidade de tal empreendimento118.
O mesmo questionamento feito à história da vida privada é aplicado à história do
cotidiano. Mary Del Priore se pergunta:
Segundo a autora, a noção de “vida cotidiana” poderia ser aplicada a outras épocas,
pois seria uma evidência clara do “mecanismo magistral da dicotomização da realidade
social”120. A realidade social dicotômica de que trata a autora é a distinção “público” e
“privado”. Esta teria, de um lado, a esfera da produção dos bens, da acumulação, da
transformação e da ação, lugar “onde se concentra tudo o que faz a História”. De outro lado, a
esfera da reprodução, “da repetição do existente”, de regeneração de formas através das
práticas, mas não de sua transformação, “um lugar ‘privado’ da História”. Ainda que a autora
não faça referência, é possível que esta fundamentação esteja baseada na divisão feita por
Hannah Arendt121.
117
DUBY, Georges. Prefácio à história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). VEYNE,
Paul (Org.). História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 9.
118
Diz o autor: “Insisto em que se trata de uma exploração pioneira, muito tateante, incerta. Que o leitor não
espere encontrar aqui um quadro acabado. O que ele vai ler, incompleto e recheado de pontos de interrogação,
não passa de um esboço”. DUBY, Georges. Advertência. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). DUBY,
Georges (Org.). História da vida privada: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, V.
2, 2009. P. 7.
119
DEL PRIORE, Mary. História do cotidiano e vida privada. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS,
Ronaldo (Org.). Os Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Editora Campus,
1997. P. 259.
120
DEL PRIORE, Mary. História do cotidiano e vida privada. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS,
Ronaldo (Org.). Os Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Editora Campus,
1997. P. 259. P. 259.
121
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 10ª Ed, 2007.
50
Essa representação dicotômica da realidade social seria alimentada pela oposição entre
vida pública e vida privada, tendo o segundo termo surgido apenas no século XVIII com a
emergência da burguesia. Porém, como pode se observar ao longo do artigo da autora, “vida
privada” e “cotidiano” estão estreitamente vinculados, mesmo que se faça alusão em
determinados trechos a respeito da “interpenetração” das supostas esferas da vida.
Duby, no entanto, pretendia distanciar a história da vida privada de uma história do
cotidiano, pelo que parece devido à coleção, editada na França pela Hachette, intitulada
Histoire de la vie quotidienne, desde o ano de 1938. Le Goff também teceu duras críticas ao
projeto, ressaltando que algumas obras não passavam de “uma poalha de anedotas, de dados
dispersos, de instantâneos, que nada tem a ver com o verdadeiro cotidiano, e ainda menos,
com a história”122. Nestas críticas feitas inseria-se aquilo que seria central para uma história
da vida cotidiana: a temporalidade. Ou seja, a análise do cotidiano sugeria uma interpretação
microscópica da realidade, mas esta só teria validade se integrada em um sistema histórico
mais amplo, articulando as questões em torno dos processos econômicos, sociais e políticos.
Caso contrário, se tornava apenas anedotas e compilações de curiosidades.
A boa história do cotidiano, portanto, era aquela que articulava um olhar microscópico
sobre a realidade com uma análise dos sistemas históricos e, também, que tornava manifesto
aquele “sentimento” do tempo nos indivíduos e nos coletivos, a experiência do que muda e do
que permanece. Le Goff faz de A Sociedade Feudal, de Marc Bloch, um caso exemplar de
uma história do cotidiano, que relacionava os modos de sentir e pensar com uma análise da
“sociedade feudal global”. Civilização material, economia e capitalismo, de Fernand Braudel,
publicada apenas um ano antes do artigo de Le Goff, em 1979, também seria uma obra
significativa “do cotidiano da chamada época moderna”124. Mesmo que brevemente, é preciso
ater-se na discussão de Braudel sobre as “estruturas do cotidiano” para demonstrar, em
122
LE GOFF, Jacques. A História do quotidiano. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges; LE GOFF, Jacques.
História e Nova História. Lisboa: Teorema, 3ª Ed., 1994. P. 92-93. O texto original de Le Goff saiu na revista
Magazine Littéraire em setembro de 1980. O debate sobre a vida privada ainda não havia acontecido, o que
talvez explique o fato do autor não ter abordado o tema.
123
LE GOFF, Jacques. A História do quotidiano. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges; LE GOFF, Jacques.
História e Nova História. Lisboa: Teorema, 3ª Ed., 1994. P. 95.
124
LE GOFF, Jacques. A História do quotidiano. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges; LE GOFF, Jacques.
História e Nova História. Lisboa: Teorema, 3ª Ed., 1994. P. 94.
51
125
BRAUDEL, Fernand. Introdução. In: ______. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-
XVIII: as estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, V. 1, 2005. P. 12.
126
BRAUDEL, Fernand. Introdução. In: ______. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-
XVIII: as estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, V. 1, 2005. P. 13.
127
BRAUDEL, Fernand. Prefácio. In: ______. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII:
as estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, V. 1, 2005. P. 15.
52
Onipresente, invasora, repetitiva esta vida material corre sob o signo da rotina:
semeia-se o trigo como sempre se semeou; planta-se o milho como sempre foi
plantado; prepara-se o solo do arrozal como sempre se preparou; navega-se no
mar Vermelho como sempre se navegou... Um passado obstinadamente
presente, voraz, devora monotonamente o tempo frágil dos homens130.
128
BRAUDEL, Fernand. Prefácio. In: ______. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII:
as estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, V. 1, 2005. P. 16.
129
BRAUDEL, Fernand. Prefácio. In: ______. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII:
as estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, V. 1, 2005. P. 16.
130
BRAUDEL, Fernand. Prefácio. In: ______. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII:
as estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, V. 1, 2005. P. 16.
131
BRAUDEL, Fernand. Prefácio. In: ______. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII:
as estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, V. 1, 2005. P. 17.
132
BRAUDEL, Fernand. Prefácio. In: ______. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII:
as estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, V. 1, 2005. P. 17.
53
ocorrência de fatos que se encadeiam no limite do possível e do impossível. Talvez por isso
que Braudel não vincula vida material, vida cotidiana e vida privada. Em outras palavras, falar
do cotidiano não é falar da vida privada, pois também a vida pública pode ter uma dimensão
cotidiana.
As abordagens sobre o cotidiano são heterogêneas e ricas133. Estas discussões já
aconteciam antes das elaborações teóricas de uma história da vida privada, razão porque,
talvez, foi a vida privada que, ou teve que se aproximar da história do cotidiano para se
fundamentar enquanto objeto (ou campo de investigação, território de pesquisa, tema, etc.), ou
se distanciar em busca das suas características próprias. A história do cotidiano permaneceu,
como ainda permanece, enquanto um campo promissor de pesquisa. Mesmo que se apontem
as suas deficiências (que são naturais em qualquer tipo de abordagem), o fato de estar
ancorada na tentativa de observar a vida das pessoas comuns, as práticas do dia a dia, as
experiências de mudança ou permanência do tempo, atribui-lhe uma vantagem sobre a história
da vida privada. Como afirmou Vainfas:
133
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática, 1991 [1968]; HELLER,
Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 6ª Ed., 2000 [1970]; LÜDTKE, Alf (Dir.). Histoire du
quotidien. Paris: Ed. de la Maison des sciences de l’homme, 1994 [1989].
134
VAINFAS, Ronaldo. História da vida privada: dilemas, paradigmas, escalas. Anais do Museu Paulista. São
Paulo. N. Sér. V. 4, jan./dez. 1996. P. 14.
135
DEVOTO, Fernando. Las relaciones entre publico e privado. Algunas reflexiones a partir de la historiografía
sudamericana. In: VENTURA, Maria da Graça A. Mateus. Os espaços de sociabilidade na Ibero-América (Sécs.
XVI-XIX). Lisboa: Edições Colibri e Instituto de Cultura Ibero-Atlântica, 2004. P. 57-74.
136
Os quatro volumes foram publicados entre os anos de 1997 e 1998.
54
belíssimas reconstituições dos hábitos, dos gestos, dos saberes, dos amores, do
cotidiano, da sensibilidade, enfim da mentalité, ficam pairando no espaço, como
se nada tivessem a ver com as outras esferas da existência, as formas de
estruturação da sociedade e do Estado, os modos de organização da vida
material etc. – temas todos esses da “velha” história137.
Esta crítica à “Nova História” resvalava para o projeto específico da história da vida
privada e a forma como foi incorporada. Não era a incorporação automática e direta dos
novos temas, mas sim uma atitude de abertura em relação a eles a partir da peculiaridade
brasileira, do nosso próprio processo histórico de formação. Ao mesmo tempo, a crítica feita
por Novais na passagem acima se assemelhava a forma como Le Goff e Duby procuraram se
afastar da versão anedótica da história do cotidiano. Era preciso vincular o cotidiano, a
privacidade, a família, em suma, os micros objetos de estudo com os “sistemas históricos
mais amplos” – com os temas da “velha” história. Assim, o autor afirmava que era preciso
apreender “aqueles nexos, recompor aquelas articulações que permitem uma reconstituição
mais compreensiva desses novos fragmentos da vida humana”138.
Contudo, quanto à definição mesma do objeto “vida privada”, Novais não oferece
outra explicação a não ser aquela própria do projeto francês, especialmente no prefácio. Em
seu texto, que inaugura o primeiro volume, outras considerações são feitas, mas irei trata-las
delas mais a frente. De acordo com o autor, a vida privada foi tomada no seu sentido amplo,
englobando a intimidade e o cotidiano, e citando Duby, ela era aquela “zona de imunidade
oferecida ao recolhimento”139. A “vida privada” era conceitualmente contraposta à “vida
pública”, tendo como pressuposto o Estado moderno como critério de delimitação. Se “a
rigor, só seria possível uma história da vida privada a partir do século XIX”, alargar as
137
NOVAIS, Fernando A. Prefácio. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e (Org.).
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, V. 1, 1997. P. 8.
138
NOVAIS, Fernando A. Prefácio. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e (Org.).
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, V. 1, 1997. P. 8.
139
NOVAIS, Fernando A. Prefácio. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e (Org.).
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, V. 1, 1997. P. 9.
55
140
NOVAIS, Fernando A. Prefácio. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e (Org.).
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, V. 1, 1997. P. 9-10.
141
DEVOTO, Fernando. Las relaciones entre publico e privado. Algunas reflexiones a partir de la historiografía
sudamericana. In: VENTURA, Maria da Graça A. Mateus. Os espaços de sociabilidade na Ibero-América (Sécs.
XVI-XIX). Lisboa: Edições Colibri e Instituto de Cultura Ibero-Atlântica, 2004. P. 57-74.
142
SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil 1500-1627. São Paulo e Rio de Janeiro: Weiszflog irmão,
Revista por Capistrano de Abreu, 1918. Liv. I, Cap. II, P. 16-17.
56
reino”. Isso explicaria também a falta de fontes, pontes, caminhos “e outras coisas
públicas”143.
A afirmação de que as coisas aqui estavam trocadas, a terra não era república, porém
cada casa o era, faz com que Novais identifique a peculiaridade do público e do privado no
Brasil em relação aos congêneres Europeus. Se do outro lado do Atlântico prevaleceu uma
“imbricação” entre o público e o privado, como teriam demonstrado Duby e Ariès, do lado de
cá não era apenas uma imbricação, mas sim uma inversão. A inversão seria a característica
peculiar da relação entre o público e o privado no mundo colonial da América portuguesa.
Pretendo destacar apenas três pontos em relação à afirmação de Novais, os dois primeiros
relacionados ao próprio texto do autor, o último vincula-se a teoria mais geral em relação aos
conceitos, no qual pretendo me deter na próxima seção.
Em primeiro lugar, a definição do objeto do estudo ou a conceituação mesma de vida
privada. Diversas são as maneiras de tratar o objeto de estudo: manifestações, formas,
domínios, esferas, relações, condições, modos da intimidade e/ou do cotidiano; estruturas do
cotidiano; cotidiano da intimidade; vida de relações; vida do dia a dia; modos ou formas de
convívio; viver em colônias; laços primários. Em determinado momento o autor fala de um
“sistema de relações primários (cotidianidade, intimidade, individualidade, vida familiar)”144.
O conceito de “vida privada” não é um dos mais utilizados pelo autor. Postas em suas
respectivas sentenças, as palavras não prejudicam a compreensão do texto, mas causam certas
confusões em determinados momentos, como no trecho que se segue:
145
NOVAIS, Fernando A. Condições da privacidade na colônia. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA,
Laura de Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, V. 1, 1997. P. 32.
146
O autor utiliza de uma expressão de Luís dos Santos Vilhena de 1803.
58
atuar como uma “casa particular”147, mas tal constatação não é compartilhada pelos outros
autores. No geral, a ênfase é na indistinção, ou melhor, na “imbricação” dos conceitos.
Conforme Leila Mezan Algranti,
147
Tal problema remete à discussão sobre como o modelo doméstico e familiar se projetava no âmbito do
governo e da administração. Ver: FRIGO, Daniela. “Disciplina Rei Familiariae”: a economia como modelo
administrativo de Ancien Régime. In: Penélope: fazer e desfazer a história, nº 6, 1991. P. 47-62.
148
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de
Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, V. 1, 1997. P. 89.
149
SOUZA, Laura de Mello e. Conclusão. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e (Org.).
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, V. 1, 1997. P. 441.
150
SOUZA, Laura de Mello e. Conclusão. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e (Org.).
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, V. 1, 1997. P. 441.
59
Apenas com a chegada da família real, em 1808, é que se começaria a delinear com
mais clareza os contornos do “universo público” e também da “vida privada” ou do “espaço
da privacidade”151. Porém, as premissas utilizadas por Alencastro em seu texto no segundo
volume refletem que, ainda, estes contornos eram pouco claros, para não dizer inexistentes. O
predomínio da “ordem privada escravista” limitava sobremaneira a existência de uma ordem
pública152. Até 1870, como afirma Hebe Mattos, a existência separada das esferas do público
e do privado era uma ficção mantida apenas no plano do discurso153. O que se percebe é que,
a partir de distintos olhares e abordagens, também a lógica da “imbricação” caracteriza a
relação entre público e privado no período imperial.
Cabe destacar, no entanto, em que pese às dificuldades teóricas, a articulação do
cotidiano com as estruturas políticas, econômicas e sociais propostas pelos autores são
realizadas com grande sucesso. Não à toa o tema da escravidão, central também no segundo
volume da coleção organizado por Luiz Felipe de Alencantro, tem um peso fundamental. A
escravidão, tomada como relação social dominante, penetra nas formas de relacionamento
familiar, na organização do espaço doméstico e na sua arquitetura, na produção, na
intimidade, em suma, em todas as características da sociedade colonial e imperial. As análises
sobre as práticas de leitura, a sexualidade, o mobiliário, os trabalhos cotidianos, bem como a
diversidade e riqueza das fontes fazem da História da vida privada um trabalho fundamental
para a historiografia brasileira. As indagações aqui apresentadas referem-se à fundamentação
teórica e a conceituação de vida privada, e não aos importantes objetos de pesquisa estudados
no projeto.
A “vida privada”, portanto, sugere uma ampla e diversificada gama, por vezes
inclusive contraditória, de temas, campos de investigação e objetos de pesquisa. Para Pilar
Gonzalo Aizpuru, também a aplicação dos conceitos de espaço público e espaço privado para
o período colonial da América espanhola seria completamente inadequada. Para encontrar a
vida privada era preciso, primeiro, partir da consideração contemporânea de que público é o
exercício do poder do Estado e o “particular” aquilo que está subtraído de sua supervisão ou
ação. Portanto o privado, no período colonial, seria aquilo que estivesse à margem das
151
SOUZA, Laura de Mello e. Conclusão. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e (Org.).
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, V. 1, 1997. P. 440-444.
152
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.).
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (Org.). História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade
nacional. São Paulo: Companhia das Letras, V. 2, 1997. P. 11-93.
153
CASTRO, Hebe M. Mattos de. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: NOVAIS, Fernando A.
(Dir.). ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (Org.). História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a
modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, V. 2, 1997. P. 378.
60
154
AIZPURU, Pilar Gonzalbo. Hacia una historia de la vida privada en la Nueva España. In: Historia Mexicana,
Vol. 42, Nº 2, México e Hispanoamérica. Una reflexión historiográfica en el Quinto Centenário I (Oct.-Dec.,
1992). P. 355-356.
155
AIZPURU, Pilar Gonzalbo. Hacia una historia de la vida privada en la Nueva España. In: Historia Mexicana,
Vol. 42, Nº 2, México e Hispanoamérica. Una reflexión historiográfica en el Quinto Centenário I (Oct.-Dec.,
1992). P. 358.
156
AIZPURU, Pilar Gonzalbo. Hacia una historia de la vida privada en la Nueva España. In: Historia Mexicana,
Vol. 42, Nº 2, México e Hispanoamérica. Una reflexión historiográfica en el Quinto Centenário I (Oct.-Dec.,
1992). P. 358-361.
61
período colonial157. Todos estes objetos ou formas de aproximação histórica são elaborados
pela autora com o propósito de demonstrar a maneira como o historiador podia investigar a
vida privada no período colonial.
Essas sugestões, no entanto, já vinham se desenvolvendo desde o Faire de L’Historie
de 1974, conforme procurei demonstrar anteriormente, além de terem sido os alvos de
investigação de Braudel na busca pela civilização material. Trata-se, na verdade, dos objetos e
das inovações da antropologia na história, surgindo a “vida privada” apenas como uma
tentativa de colocar estes objetos em um sistema histórico mais amplo, que poderia justificar a
importância ou a necessidade de tal empreendimento. Minha preocupação aqui é se a criação
de um campo chamado “história da vida privada” não foi apenas uma tentativa de dar
legitimidade aos objetos de estudo que vieram da antropologia, mas que precisavam
sistematizar-se para não correrem o risco de se tornar, nas duras palavras de Le Goff, apenas
uma “poalha de anedotas”.
Por fim, a presente tese não intenciona responder às inúmeras questões levantadas até
aqui. Ela pretende apenas contribuir com uma reflexão teórica e histórica acerca dos conceitos
de público e privado, tal como indicado por José Jobson Arruda e José Manuel Tengarrinha.
Lidando com o paradoxo apresentado por Laura de Mello e Souza sobre a hipertrofia da vida
privada, mas ao mesmo tempo a inexistência de vida privada na colônia, dizem os autores:
157
AIZPURU, Pilar Gonzalbo. Hacia una historia de la vida privada en la Nueva España. In: Historia Mexicana,
Vol. 42, Nº 2, México e Hispanoamérica. Una reflexión historiográfica en el Quinto Centenário I (Oct.-Dec.,
1992). p. 361-370.
158
ARRUDA, José Jobson e TENGARRINHA, José Manuel. Historiografia luso-brasileira contemporânea. São
Paulo: EDUSC, 1999. P. 106.
62
altamente teóricos, mas possuem também uma dimensão prática e imediata na vida das
pessoas, tal como na administração pública ou privada. O processo de “privatização” tratado
pela economia política é diferente da “privatização” em termos de intimidade, sexualidade ou
familiaridade compreendida pela ideia de “vida privada”. Costuma-se afirmar que as novas
tecnologias estão alterando ou corroendo as fronteiras entre o público e o privado (supondo
que algum dia elas tenham se definido), ocasionando ou um excesso de publicidade ou um
excesso de privacidade. Ou ainda se pode argumentar que público e privado dividem a linha
do político e do não político, mas a própria ideia do político não é fixa, podendo se tratar da
administração do estado ou mesmo da “esfera pública”.
Para Jeff Weintraub, essa ampla gama de questões levantadas pelos conceitos foi
enfraquecida devido a duas limitações analíticas:
159
“The enormous bodies of discourse that use “public” and “private” as organizing categories are not always
informed by a careful consideration of the meanings and implications of the concepts themselves. And, even
when the discussions are more conceptually self-reflective, those who draw on one or another version of the
public/private distinction often do so without systematic attention to, or even clear awareness of, the wider range
of alternative frameworks within which is employed. Aside from fragmenting the different fields of discussion,
the result is that people operating within these different perspectives are often not fully aware of the
undercurrents of assumption and implication bound up in their own conceptual vocabularies. People not only
talk past each other, or operate in mutual isolation, but confuse themselves as well”. WEINTRAUB, Jeff;
KUMAR, Krishan. Preface. In: WEINTRAUB, Jeff; KUMAR, Krishan (Ed.). Public and private in thought and
practice: perspectives on a Grand Dichotomy. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1997. P.
12. [tradução minha].
63
mercado, que pode assumir a forma também do governamental contra o não governamental. A
metáfora mais comum para tratar deste tipo é “setor”, como em “setor público” ou “setor
privado”. A premissa desta tipologia é que a sociedade é composta por indivíduos que
perseguem apenas seus interesses pessoais. A relação entre público e privado, nesse caso, está
em determinar, nos termos de uma “intervenção” de um setor no outro, o papel do Estado e do
mercado na realização da liberdade e/ou da felicidade do indivíduo160.
A visão da economia liberal excluiria, para Weintraub, as formulações de Kant, que
mereceria uma tipologia a parte. Além disso, o modelo poderia ser subdividido em dois:
Locke e Adam Smith, de um lado, preconizavam a natural harmonização dos interesses
pessoais; Hobbes e Bentham, por outro, acreditavam que era preciso de uma força coercitiva
acima da sociedade para manter a ordem enquanto os indivíduos buscavam seus interesses.
O segundo modelo é caracterizado pelo autor como a “virtude republicana”. Assim
como no modelo liberal, público aqui também é sinônimo de política. O que muda é a
concepção de política de cada um. Enquanto no primeiro a atenção primária é com o Estado e
o seu aparato administrativo, no segundo, a política é pensada em termos de discussão,
debate, deliberação coletiva, ação e concerto161. A comunidade política seria composta por
cidadãos atuando em um quadro de solidariedade e igualdade. Público é então mais
frequentemente associado com “espaço”, “esfera” e “vida”, do que com “setor”.
A virtude republicana teria realizado um exercício de interconectar duas tradições
distintas: primeiro a pólis republicana, na qual “público” tem a ver com “cidadão” e sua
possibilidade de participação coletiva na pólis; segundo a tradição do Império Romano,
principalmente a partir da relação entre “público” e “soberania”, esta entendida como um
aparato centralizado, unificado e onipotente acima da sociedade e do governo. Se a premissa
da visão liberal é de que a sociedade é composta por indivíduos que perseguem apenas seus
interesses pessoais, no caso da visão republicana trata-se da percepção de que apesar das
diferenças entre os indivíduos, quando reunidos em um público, e enquanto cidadãos, estes
colocam de lado suas particularidades sociais e se veem como indivíduos iguais, discutindo,
deliberando e participando de assuntos e interesses comuns. Haveria, assim, certo sentido
“comunitarista” nesta ideia de “público”, diferente do “público” da economia liberal, que por
mais que admita o indivíduo como cidadão, não o concebe como participante de uma
160
WEINTRAUB, Jeff. The theory and politics of the public/private distinctions. In: WEINTRAUB, Jeff;
KUMAR, Krishan (Ed.). Public and private in thought and practice: perspectives on a Grand Dichotomy.
Chicago & London: The University of Chicago Press, 1997. P. 8-10.
161
WEINTRAUB, Jeff. The theory and politics of the public/private distinctions. In: WEINTRAUB, Jeff;
KUMAR, Krishan (Ed.). Public and private in thought and practice: perspectives on a Grand Dichotomy.
Chicago & London: The University of Chicago Press, 1997. P. 11.
64
162
WEINTRAUB, Jeff. The theory and politics of the public/private distinctions. In: WEINTRAUB, Jeff;
KUMAR, Krishan (Ed.). Public and private in thought and practice: perspectives on a Grand Dichotomy.
Chicago & London: The University of Chicago Press, 1997. P. 10-16.
163
WEINTRAUB, Jeff. The theory and politics of the public/private distinctions. In: WEINTRAUB, Jeff;
KUMAR, Krishan (Ed.). Public and private in thought and practice: perspectives on a Grand Dichotomy.
Chicago & London: The University of Chicago Press, 1997. P. 20.
164
WEINTRAUB, Jeff. The theory and politics of the public/private distinctions. In: WEINTRAUB, Jeff;
KUMAR, Krishan (Ed.). Public and private in thought and practice: perspectives on a Grand Dichotomy.
Chicago & London: The University of Chicago Press, 1997. P. 20.
165
“But historically these two poles emerge together, to a great extent in dialectical tension with each other; and
the sharpness of the split between them is one of the defining characteristics of modernity”. WEINTRAUB, Jeff.
The theory and politics of the public/private distinctions. In: WEINTRAUB, Jeff; KUMAR, Krishan (Ed.).
Public and private in thought and practice: perspectives on a Grand Dichotomy. Chicago & London: The
University of Chicago Press, 1997. P. 21.
65
166
Reforço que o autor é consciente destes problemas, pois afirma que estas quatro concepções não são as únicas
formas possíveis para lidar com esta dicotomia. Afirma também que existe uma dificuldade inerente em lidar
com estes conceitos, devido as suas características confusas, e ao mesmo tempo poderosas como instrumentos de
análise social.
167
SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. In: History and Theory, Vol 8, Nº
1, 1969.
66
que na sua época ainda não existia ou ainda não havia sido sistematizada. A segunda, por sua
vez, designa a atribuição indevida de valor histórico às contribuições de um determinado
autor, como por exemplo, Rousseau como pai da doutrina do totalitarismo ou Locke e Hobbes
como teóricos políticos liberais168.
Outra mitologia, a “mitologia da coerência”, também pode ser pensada nesse caso.
Esta se refere à tentativa de reconstruir ideias de autores do passado dando-lhes uma
coerência que poderia simplesmente não existir. E este pode ser considerado um segundo
problema das proposições de Weintraub. O autor reconhece que a dificuldade de se
estabelecer o que é público e o que é privado deriva em grande parte das diversas formulações
e utilizações que foram feitas com estes conceitos ao longo dos anos. Por outro lado,
reconhece também que existe uma problemática interna aos próprios conceitos. Mas o que
desejo apontar é que quando falamos de um conceito estamos falando de algo que significa
mais do que uma palavra. Segundo Reinhart Koselleck, um conceito agrega em si uma
“totalidade de sentidos”, reunindo também
168
A respeito de Hobbes como um teórico politico liberal, ver: JAUME, Lucien. Hobbes and the Philosophical
Source of Liberalism. In: SPRINGBORG, Patricia (Ed.) The Cambridge Companion to Hobbes’s Leviathan.
Cambridge: Cambridge University Press, 2007. P. 199 – 216.
169
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos históricos; tradução,
Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. PUC-
Rio, 2006. P. 109 .
67
modelos são divergentes. A própria finalidade de cada um é diferente. Habermas escreve para
propor alternativas as democracias de massa do Estado liberal, já Hobbes desenvolve sua
teoria política tendo em vista as guerras civis religiosas que assolavam a Europa em sua
época170. Comparar os dois modelos, que apresentam visões distintas sobre os conceitos de
público e privado, sem apresentar essa distância temporal e espacial entre eles pode, talvez,
gerar mais confusão do que sanar.
Por último, e também concernente à questão da historicidade, antes de entrar na
explicitação dos modelos, Weintraub estabelece as “orientações básicas”, prévias e
necessárias para entender as quatro tipologias. De certa forma, manifesta aquilo que seria a
característica geral, universal, do sentido dos conceitos:
170
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Trad. Luciana
Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: Ed. UERJ e Ed. Contraponto, 1999.
171
“We can begin by reminding ourselves that any notion of “public” and “private” makes sense only as one
element in a paired opposition – whether the contrast is being used as an analytical device to address a specific
problem or being advanced as a comprehensive model of social structure” (tradução nossa). WEINTRAUB, Jeff.
The theory and politics of the public/private distinctions. In: WEINTRAUB, Jeff; KUMAR, Krishan (Ed.).
Public and private in thought and practice: perspectives on a Grand Dichotomy. Chicago & London: The
University of Chicago Press, 1997. P. 4.
172
WEINTRAUB, Jeff. The theory and politics of the public/private distinctions. In: WEINTRAUB, Jeff;
KUMAR, Krishan (Ed.). Public and private in thought and practice: perspectives on a Grand Dichotomy.
Chicago & London: The University of Chicago Press, 1997. P. 5.
173
DUBY, Georges. Prefácio à história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). VEYNE,
Paul (Org.). História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 8.
68
“linguagem liberal” dos finais do XVIII e início do XIX no mundo luso-brasileiro dentro de
sua manifestação própria. Em outras palavras, irei procurar investigar o que os atores
históricos do período diziam quando se utilizavam dos conceitos de público e privado, para
qual objetivo e dentro de qual situação política, social e cultural. O foco é na ideia de
“construção” destes conceitos e isto pressupõe a desnaturalização de que sempre foram
utilizados como contrapostos, ou de que possuem sentidos universais. Se isto ocorre é preciso
provar e não pressupor. As orientações metodológicas e teóricas serão discutidas nos
subcapítulos que se seguem.
Mais recentemente uma série de autores tem questionado a validade das ideias de
público e privado como instrumentos de análise e compreensão do mundo. Na maior parte dos
casos o argumento é de que as sociedades modernas se tornaram complexas demais para
serem enrijecidas em dois polos excludentes. Tal constatação gerou como consequência um
debate que gira em torno de negar a dicotomia, aceitando a natureza múltipla e complexa da
realidade na contemporaneidade, ou salva-la, na crença de que a separação entre o público e o
privado é uma premissa necessária para a democracia moderna.
A negação da dicotomia também abre brechas para diferentes posicionamentos
políticos e ideológicos. Peter Berger, por exemplo, um dos principais sociólogos do século
XX, já em uma etapa da sua vida considerada como “neoconservadora”, advogava que a crise
das sociedades modernas era fruto de um pensamento dicotômico entre o público e o privado.
Este pensamento dividia e obrigava as pessoas a migrarem entre as megaestruturas (Estado,
mercado, corporações) – ambientes duros, rígidos, impessoais e sem identidade, mas que
proviam estabilidade para a vida dos indivíduos (o público); e as suas vidas privadas – lócus
provido de sentido, de identidade pessoal, leve, porém onde o indivíduo é largado a sua
própria sorte, gerando instabilidade, incerteza e ansiedade (o privado). A crise, dessa maneira,
era tanto do indivíduo que deveria se equilibrar entre as demandas das duas esferas, quanto da
política, pois as megaestruturas (notadamente o Estado) por não terem “sentido” e serem
“impessoais” eram vistas como “irreais” e “malignas”174.
Dessa forma, Berger não propõe a eliminação da dicotomia através da superação de
um dos lados pelo outro, dado que isto seria o caráter de um regime totalitário, e sim a criação
174
BERGER, Peter; NEUHAUS, Richard John. To empower people: from state to civil society. Washington: The
American Enterprise Institute press, 2ª Ed., 1996. P. 158-159.
69
175
ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
176
BAUMAN, Zygmunt. Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press, 2000. Foi graças ao texto de Mimi Sheller
e John Urry que atentei-me para esta passagem: SHELLER, Mimi; URRY, John. Mobile transformations of
“public” and “private” life. In: Theory, Culture & Society, nº 20, Issue 3, June 2003. P. 107-125.
70
Existe, dessa forma, uma série de análises que vinculam a falta de uma delimitação
fronteiriça entre o público e o privado como causa da crise democrática. O recente livro de
Jacques Rancière177 traz o problema de outro ponto de vista. Para o autor, a democracia é um
princípio que inaugura a política, como algo artificial e por fora da ordem natural da
organização social. Em outras palavras, a democracia significa o rompimento com os diversos
outros “títulos” de governo: o mais sábio, o mais velho, o mais forte, o mais rico, etc. Estes
títulos fundamentavam-se em uma suposta ordem natural de dominação. A democracia seria o
título que permite que aqueles que não tem razão natural para governar, governem sobre
aqueles que não tem razão natural para serem governados. O ódio à democracia de que trata o
autor é exatamente o ódio daqueles detentores, ou daqueles que ainda exigem as competências
e os títulos naturais de governo.
A lógica “natural” dos títulos de governo é, para o autor, uma lógica da indistinção
entre público e privado. Uma vez que a autoridade do mais forte, ou do mais sábio, ou do
mais rico, está fundada numa condição de “ordem natural” de dominação, estes governos não
precisariam se mostrar como instâncias do comum da comunidade. É apenas com a
democracia e com o rompimento dos títulos de governo que passa a existir uma esfera
pública, lugar de encontro e conflito entre os que exigem competência para governar e os que
defendem o governo de qualquer um. A tendência natural dos governos seria tratar esta esfera
pública como um assunto privado seu, repelindo os atores para suas vidas privadas. A
democracia, para Rancière, “é o processo de luta contra essa privatização, o processo de
ampliação dessa esfera”178.
A ampliação da esfera pública, historicamente, teria significado no reconhecimento da
qualidade de iguais e de sujeitos políticos para aqueles que haviam sido repelidos para a vida
privada (como as mulheres, por exemplo), e também no reconhecimento de espaços e relações
que antes estavam sob a tutela do poder da riqueza (as relações de trabalho, por exemplo).
Não menos importante é a luta da democracia para ampliar a esfera pública no intuito de
evitar a tendência natural da representação do sistema eleitoral ser apenas uma representação
dos interesses dominantes.
Este último ponto traz a ambiguidade. A divisão público/privado apenas garante a
dupla dominação da oligarquia, no Estado e na sociedade. Isto porque mesmo as questões
públicas e os Estados estão constantemente ameaçados pela privatização. Dessa maneira, se
por um lado cabe a democracia “desprivatizar” a esfera pública, ela deve também lutar contra
177
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio da Democracia. São Paulo: Boi Tempo Editorial, 2014.
178
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio da Democracia. São Paulo: Boi Tempo Editorial, 2014. P. 72.
71
a divisão total dessas esferas. Trata-se, para a democracia, de não deixar que nem o particular
suprima o universal, e nem que o universal domine o particular. Ambos devem ser
constantemente postos em jogo de maneira polêmica.
Mimi Sheller e John Urry concordam que no mundo contemporâneo, com destaque
para o século XXI, as fronteiras entre o público e o privado já praticamente não existem.
Porém, não acreditam que apresentam algum risco para a democracia. O que é central, para os
autores, é a tentativa de superar as antigas maneiras de pensar os dois conceitos,
especialmente quanto ao seu caráter polar sempre em contraste. O mundo atual, híbrido,
fluído e complexo teria erodido definitivamente esta divisão: “apesar dos heroicos esforços
das teorias normativas do século XX para salvar a divisão, as várias distinções entre o
domínio público e privado não podem sobreviver”180. A partir do que ficou conhecido como
mobility turn na sociologia, sendo John Urry um dos seus principais expoentes181, os autores
defendem abordar os conceitos através da “sociologia das mobilidades”.
A dinâmica da aparente erosão entre o público e o privado deveria ser vista, para
Shelley e Urry, como consequência da fluidez, das redes, das mobilidades do mundo
contemporâneo. Estas seriam físicas (na forma de pessoas e objetos que se movem pelo globo
e de “pessoas-em-máquinas”) e informativas (através das comunicações eletrônicas, imagens,
sons e textos). Quanto à democracia, os autores apenas apontam que o abandono do contraste
fechado entre público e privado pode, ao invés de prejudicar a democracia, fazer com que se
proliferem múltiplos locais móveis para potencial democratização. Ou seja, os autores não
avançam, de fato, para as consequências desse abandono, apenas apontando o surgimento de
caminhos alternativos. Tal é, também, a postura diante do fracasso explicativo dos conceitos
de público e privado:
179
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio da Democracia. São Paulo: Boi Tempo Editorial, 2014. P. 81.
180
“Despite the heroic efforts of 20thcentury normative theorists to rescue the divide, the various distinctions
between public and private domains cannot survive”. SHELLER, Mimi; URRY, John. Mobile transformations of
“public” and “private” life. In: Theory, Culture & Society, nº 20, Issue 3, June 2003. P. 113.
181
URRY, John. Mobile Sociology. In: The British Journal of Sociology, Volume 61, Issue s1, The BJS: shaping
sociology over 60 years, jan., 2010.
72
182
“The future of citizenship, democratic possibility and good social science belongs to those who will navigate
new material, mobile worlds, bringing into being ways of communication, mobilization and theory that are both
and neither, public and private”. SHELLER, Mimi; URRY, John. Mobile transformations of “public” and
“private” life. In: Theory, Culture & Society, nº 20, Issue 3, June 2003. P. 122.
183
MAHAJAN, Gurpreet. Reconsidering the private-public distinction. In: Critical review of international social
and political philosophy, 12:2, 2009. P. 133-143. Ver também: THOLEN, Berry. Drawing the line: on the
public/private distinction in debates on new modes of governance. In: Public Integrity, Vol. 18, Issue 3, 2016. P.
237-253.
184
ARYAMA. Private life and public sphere: some theoretical considerations and implications in the Indian
context. 2006. Tese de Doutorado - Jawaharlal Nehru University. Centre for Political Studies School of Social
Sciences, 2006. Ver especialmente o capítulo 5: “Caste and corruption”.
73
185
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1994.
186
CASSESE, Sabino. The rise and decline of the notion of state. In: International Political Science Review /
Revue Internationale de science politique, Vol. 7, N. 2, The state and the public sphere, 1986. P. 120-130. Ver
também: CHITTOLINI, Giorgio. The “private”, the “public”, the state. In: The Journal of Modern History.
Supplement: The origins of the state in Italy, 1300-1600, vol. 67, dez. 1995. p. 34-61.
187
BENACCHIO, Gian Antonio; GRAZIADEI, Michele. Il declino della distinzione tra diritto pubblico e diritto
privato. In: Quaderni della facoltá di giurisprudenza – Atti del IV Congresso Nazionale SIRD, Trento, 24-26
settembre 2015. Trento: Università Degli Studi di Trento, 2016.
188
Ver: MATTEI, Ugo. Beni Comuni. Un manifesto. Roma: Gius. Laterza & Figli, 2011; CHIGNOLA, Sandro
(Org.). Il diritto del comune. Crisi della sovranità, proprietà e nuovi poteri constituenti. Roma: Ombre Corte,
2012. Para uma crítica as novas discussões sobre o bem comum, ver: IANNELLO, Carlo. Beni pubblici versus
beni comuni. In: Forum di Quaderni Constituzionali Rassegna, 24 de settembre 2013. Disponível em:
http://www.forumcostituzionale.it/wordpress/?p=8. Acesso em: 02/04/2019; FERRANTE, Riccardo. Per una
storia giuridica dei beni comuni. In: FERRETI, Paolo; FIORENTINI, Mario; ROSSI, Davide (Org.). Il governo
del território nell’esperienza storico-giuridica. Trieste: Edizioni Università di Trieste, 2017. P. 173-188.
189
HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. P. 18.
74
190
GAL, Susan. A Semiotics of the Public/Private distinction. In: Differences: a journal of feminist cultural
studies, 13.1, 2002. P. 77-95.
75
pública, estaria a casa enquanto espaço privado. Mas no interior deste espaço privado, a sala
de estar seria um espaço público. Dentro deste espaço público as relações podem ser
privadas, e nada impede, a princípio, o desenvolvimento de relações públicas no interior do
espaço privado. De qualquer maneira, é exatamente por adquirirem os seus significados com
base nos usos em situações particulares e, igualmente, por mobilizarem politicamente,
proporem ações práticas na vida política e social, que podem ou devem ser pensados como
conceitos políticos tal como os conceitos citados anteriormente.
Para os propósitos deste trabalho, os “conceitos” são compreendidos como
“indicadores” de uma dada circunstância social. Sua indefinição é condição de sua existência,
e seu campo de disputa é a própria política. Adjetivá-los como “políticos” cumpre a função de
ressaltar seu caráter instrumental na intermediação dos debates e na resolução dos conflitos
que caracterizam a existência do âmbito político. A incapacidade de se fixar um ponto de
definição do significado de um conceito pode até se relacionar com uma característica
imanente de “essencial refutabilidade” dos conceitos éticos e políticos modernos 191, mas para
o presente objetivo, esta característica vincula-se mais diretamente a questões empíricas. Ou
seja, sua indefinição deriva do fato de que seus significados dependem dos usos que se fazem
a partir de determinados aspectos da realidade social192 e esta é, inquestionavelmente, uma
variável histórica.
A preocupação da história dos conceitos se dá na relação entre dois níveis principais:
as situações particulares dos usos e as estruturas de significado da linguagem. Tal exercício
visa oferecer reflexões acerca das mudanças na consciência ou no conhecimento social do
passado193. Ao mesmo tempo, se concebe que a construção do conhecimento histórico é
articulada através de conceitos (mas não só), sendo que os próprios conceitos possuem
também uma história. Bödeker formula da seguinte maneira: “Begriffsgeschichte explora
épocas sociais e transformações políticas estruturais na medida em que podem ser analisadas
como transformações de experiências, expectativas e teorias”194. O ponto não é tanto o
191
PALTI, Elías José. Temporalidade e refutabilidade dos conceitos políticos. In: Revista da Faculdade de
Direito da UFRGS: Porto Alegre, n. 35, dez. 2016. P. 4-23.
192
“Realidade social” é entendida aqui no sentido proposto por John Searle. SEARLE, John R. The construction
of social reality. New York: The Free Press, 1995.
193
BÖDEKER, Hans Erich. Begriffseschichte as the History of Theory. The History of Theory as
Begriffsgeschichte: An Essay. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández. Political concepts and time. New Approaches
to Conceptual History. Santander: Cantabria University Press; McGraw-Hill Interamericana de España, 2011.
194
BÖDEKER, Hans Erich. Begriffseschichte as the History of Theory. The History of Theory as
Begriffsgeschichte: An Essay. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández. Political concepts and time. New Approaches
to Conceptual History. Santander: Cantabria University Press; McGraw-Hill Interamericana de España, 2011. P.
24.
76
significado do conceito em si, mas as diversas maneiras em que afetam as crenças, culturas,
ações, e situações sociais.
Dessa forma, em linhas gerais, a concepção que se adota na presente tese é aquela
proposta pela begriffsgeschichte, especialmente por Reinhart Koselleck195. Ainda que o autor
não tenha elaborado uma metodologia sobre a semântica e que, dessa forma, tenha recebido
críticas dos linguistas, os pontos apresentados pelo autor podem nos servir de guia para
investigar historicamente (no sentido de uma abordagem própria ao historiador) a presença de
determinados conceitos na história. É no sentido proposto pelo autor que se concebe que
público e privado possuem também uma história. Seus significados devem ser
desnaturalizados, e aquilo que é dado como um pressuposto universal e atemporal pode e deve
ser investigado historicamente.
Sua desnaturalização implica em reconhecer que são construídos historicamente, com
objetivos específicos e vinculados a projetos políticos particulares. Ao mesmo tempo, deve-se
reconhecer que possuem “estruturas” de significado, ou nos termos de Koselleck, “camadas
de significados” que se sobrepõe ao longo da história; umas se perdem, outras surgem, e
outras acabam por adquirir sentidos diversos. Com exceção dos casos de neologismos, os
conceitos sempre possuem sentidos herdados de períodos anteriores, que na verdade são os
seus próprios significados. No caso dos conceitos de público e privado, mesmo as supostas
relações de “contraste” ou “não oposição” devem ser investigadas como discursos típicos de
uma época.
Essa forma de investigação, no entanto, não busca evitar as formulações teóricas ou a
criação de grandes narrativas interpretativas. Ela também acaba por gerar generalizações, os
grandes contornos dos usos de um dado conceito diacronicamente. A diferença reside no fato
de que essa fundamentação teórica é pensada a posteriori. Investiga-se um problema
195
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos históricos; tradução, Wilma
Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. PUC-Rio,
2006. Outros autores que de diferentes maneiras compartilham destes pressupostos metodológicos e que,
guardadas as devidas discordâncias entre si, contribuíram para a elaboração do referencial metódico deste texto
são: IFVERSEN, Jan. About key concepts and how to study them. In: Contributions to the History of Concepts,
vol. 6, Issue 1, Summer 2011. P. 65-88.; PALONEN, Kari. The Politics of Conceptual History. In: Contributions
to the History of Concepts, vol. 1, nº 1, march 2005. P. 37-50.; VALKHOFF, Rudolf. Some similarities between
begriffsgeschichte and the history of discourse. In: Contributions to the History of Concepts, vol. 2, nº 1, March
2006. P. 83-98.; PERNAU, Margrit. Whiter Conceptual History? From national to entangled histories. In:
Contributions to the History of Concepts, vol. 7, issue 1, Summer 2012. P. 1-11. ARMITAGE, David. What’s
the Big Idea? Intellectual History and the Longue Durée. In: History of European Ideas, vol. 38, nº 4, December
2012. P. 493-507.; GOERING, D. Timothy. Concepts, History and the game of giving and asking for reasons: a
defense of conceptual history. In: Journal of the Philosophy of History, 7, 2013. P. 426-452.; JASMIN, Marcelo
Gantus e JÚNIOR, João Feres (Org.). História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora
Puc-Rio: Edições Loyola: IUPERJ, 2006. SEBASTIÁN, Javier Fernández. Hacia uma história atlântica de los
conceptos políticos. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández (dir.). Diccionário Político y Social Del Mundo
Iberoamericano. Madrid: Ministério da Cultura, 2009.
77
historicamente para depois se formular uma teoria a respeito dos conceitos, baseada e
amparada na própria documentação, índices dos usos e da evolução semântica ao longo do
tempo.
Nos itens 1.1 e 1.2, sobre a “esfera pública” e a “vida privada” respectivamente,
procurei apresentar como que as duas discussões se fundamentavam a partir de diferentes
pressupostos, objetivos, tradições, linhagens, etc. Porém elas possuem também pontos de
convergências. Ambas compartilham do fato, e do problema, de se situarem no
entrecruzamento entre norma e descrição; entre as categorias analíticas e os conceitos da
época. Tal situação não é exclusiva a elas. Não seria exagerado dizer que praticamente todo
exercício de interpretação do passado apresenta para o historiador, como condição, o dilema
da compreensão da linguagem, entre o passado e o presente. No meu entender, o ponto central
da história dos conceitos e das linguagens políticas é atentar-se para este fato, procurando
oferecer a todos os historiadores formas de reflexão acerca do exercício de interpretação do
passado por meio das formulações conceituais dos atores históricos em relação com as do
observador. Trata-se de um processo de ida e vinda, que vai para o passado, mas retorna para
o presente. Esse conflito linguístico-conceitual é o ponto mesmo da reflexão da história dos
conceitos196.
196
BARROS, José D’Assunção. Os conceitos na história: considerações sobre o anacronismo. In: Ler História,
nº 71 – Varia, 2017.
78
Não existe para ele [fisco], em suma, separadamente o público e o privado: ‘Nec
tamen fiscales res propie publicae dici possunt ut nec privatae’; estes são então
termos ou índices instáveis e flutuantes, não pouco erráticos; categorias
conotativas mais do que denotativas; conceitos que, mesmo que presentes desde
o texto romano e agora reanimados em outros âmbitos da cultura moderna,
podem resultar mais significativos por sua aplicação indefinida ou por sua
incidência distorcida que por sua mera presença ou postulação198.
197
Para Hannah Pitkin, todas estas metáforas vinculadas ao público e ao privado representam um risco: “Um
reino é um ‘kingdom’, e nós temos o direito de esperar disto um monarca com súditos, um território com
fronteiras. Um domínio tem um senhor para chefiar a casa. Um setor foi cortado de algum todo maior,
usualmente circular na forma; uma esfera é uma bola, um objeto físico no espaço. Todas essas locuções sugerem
limites claros e fixos, uma exclusão mútua de conteúdos, que é altamente enganosa”. PITKIN, Hannah. Justice:
on relating private and public. Political Theory, Vol. 9, n. 3 (Aug. 1981). p. 327-352.
198
“No existe para ella [fisco], en suma, separadamente lo público y lo privado: ‘Nec tamen fiscales res propie
publicae dici possunt ut nec privatae’; éstos son entonces términos o índices lábiles y fluctuantes, no poco
erráticos; categorías connotativas más que denotativas; conceptos que, por cuanto que presentes desde el texto
romano y ahora reanimados en otros ámbitos de la cultura moderna, pueden resultar más significativo por su
aplicación desdibujada o por su incidencia distorsionada que por su mera presencia o postulación” (tradução
nossa). CLAVERO, Bartolomé. Hispanus Fiscus, persona ficta. Concepción del sujeto político en el ius
commune moderno. Quaderni Fiorentini: per la storia del pensiero giuridico moderno. Literari moderni della
persona giuridica, 11/12, tomo I, 1982/1983. p. 140-141.
79
Ou seja, uma vez que não é possível ver a separação clara entre o público e o privado,
a forma de resolver o problema é afirmar que são instáveis, flutuantes, erráticos, conotativos,
turvos e distorcidos. Porém, Clavero afirma em nota que:
199
“A lo que llegan mis noticias, el binômio público/privado, o su juego de calificaciones realmente no
binómico, en la doctrina moderna del ius commune es materia que sólo ha sido tocada de forma más bien
tangencial, excesivamente genérica o bastante anacrónica, y no con el detenimento que el tópico indudablemente
merecería, no conociendo en todo caso un tratamiento de sus particularidades interesantes a nuestro objeto”.
CLAVERO, Bartolomé. Hispanus Fiscus, persona ficta. Concepción del sujeto político en el ius commune
moderno. Quaderni Fiorentini: per la storia del pensiero giuridico moderno. Literari moderni della persona
giuridica, 11/12, tomo I, 1982/1983.p. 141. Nota 103.
200
BOBBIO, Norberto. Democracy and Dictatorship: The nature and limits of State power. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1989. p. 1.
80
201
Sobre o conceito de res publica em Cícero, ver: HODGSON, Louise. Res Publica and the Roman Republic.
“Without body or form”. New York: Oxford University Press, 2017.
202
FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing
Democracy. In: CALHOUN, Craig (Ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge, MA: MIT Press., 1992.
203
SEILER, Hansjakob; BRETTSCHNEIDER, Gunter (Eds.). Language Invariants and Mental Operations.
International Interdisciplinary Conference held at Gummersbach-Cologne, Germany, september 18-23, 1983.
Tübingen: Narr, 1985. P. 128; SOUKHANOV, Anne H. The American Heritage Dictionary of the English
Language. Boston: Houghton Mifflin, 3ª Ed., 1992.
204
VERDELHO, Telmo. Terminologias na língua portuguesa. Perspectivas diacrônicas. In: La história dels
llenguatges Iberoromànics d’especialitat (segles XVII-XIX): solucions per al present. Barcelona: Jenny Brumme
/ Institut Universitari de Lingüística Aplicada / Universitat Pompeu Fabra, 1998. p. 98-131.
205
HANSEN, João Adolfo. Instituição retórica, técnica retórica, discurso. Matraga, Rio de Janeiro, v. 20, n. 33,
jul/dez. 2013.
81
Português-latim
206
CARDOSO, Jerónimo. Dictionarium latino lusitanicum et vice versa lusitanico latinum : cum adagiorum feré
omnium iuxta seriem alphabeticam perutili expositione.../ per Hieronymum Cardosum Lusitanum congesta;
recognita vero omnia per Sebast. Stokhamerum Germanum. Qui libellum etiam de propriis nominibus regionum,
populorum, illustrium virorum... adiecit. - Adhuc noui huic ultimae impressioni adjuncti sunt varij loquendi
modi ex praecipuis auctoribus decerpti praesertim ex Marco Tullio Cicerone. - Olyssipone : excussit Alexander
de Syqueira... : expensis Simonis Lopezij, bybliopolae, 1592.
207
VERDELHO, Telmo. Dicionários portugueses, breve história. In: NUNES, José Horta; PETTER, Margarida
(Orgs.). História do saber lexical e constituição de um léxico brasileiro. São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP:
Pontes, 2002. p.15-64.
208
As edições consultadas foram: 1562, 1570, 1592, 1601, 1613, 1619, 1630, 1643, 1677, 1694. Eles podem ser
acessados através do site da Biblioteca Nacional de Portugal.
82
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de: CARDOSO, Jerónimo. Dictionarium latino lusitanicum et
vice versa lusitanico latinum...1562, 1570, 1592, 1601, 1613, 1619, 1630, 1643, 1677, 1694.
209
NEBRIJA, Elio Antonio. Dictionarium Latinohispanicum, et vice versa Hispanicolatinum ... nunc denuo
ingenti vocum accessione locupletatum ... Ad haec Dictionarium proprium nominum, ex probatissimis Graecae
et Latinae lingua autoribus, addita ad calcem neoterica locorum appellatione concinnatum. Antuérpia: Aedib.
Ioannis Stellsii, 1560.
210
PERCYVALL, Richard. Bibliothecae Hispanicae pars altera. Containing a dictionarie in Spanish, English,
and latine… London: John Jackson, 1591.
83
dificuldade em saber qual era; porque parece que tudo, e que nada. Tudo,
porque é dono da vontade do Rei; e nada, porque se deixa sua autoridade aos
Conselhos, Juízes, e Ministros, não lhe sobre coisa alguma213.
214
Sobre a questão da amizade e do amor no período, ver: CARDIM, Pedro. Amor e amizade na cultura política
dos séculos XVI e XVII. Lusitania Sacra, 2ª série, 11, 1999; OLIVEIRA, Ricardo de. Amor, amizade e
valimento na linguagem cortesã do Antigo Regime. Tempo, v. 11, nº 21, 2006; OLIVEIRA, Ricardo de.
Valimento, privança e favoritismo: aspectos da teoria e cultura política do Antigo Regime. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 25, nº 50, 2005. P. 217-238.
215
BOYDEN, James M. “De tu resplendor, te ha privado la fortuna”: los validos y sus destinos en la España de
los siglos XV y XVI. In: BROCKLISS, Laurence (Coord.); ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El mundo de los
validos. Madrid: Taurus Ediciones, 1999.
216
BROCKLISS, Laurence (Coord.); ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El mundo de los validos. Madrid: Taurus
Ediciones, 1999. Outros nomes importantes são: Uceda, entre o período de Lerma e Olivares na Espanha, bem
como Haro, Nithard e Valenzuela depois de Olivares; antes de Richelieu e Mazarino, na França, Sully, Concini,
De Luynes, Sillery, La Vieuville; Cecil e Carr antes de Buckingham na Inglaterra; e Oxenstierna na Suécia.
217
“Fue durante la privanza de Lerma cuando se desarrollaron los discursos legitimadores del poder de los
validos, cuando se llevaron a cabo una serie de reformas institucionales, o cuando se creó un estilo de gobierno
que habría de configurarse como el modelo utilizado por todos los que vinieron después de él, desde Olivares en
España, a Richelieu en Francía o Buckingham en Inglaterra” (tradução nossa). FEROS, Antonio. Introducción.
In: ______. El Duque de Lerma: Realeza y privanza en la España de Felipe III. Madrid: Marcial Pons, 2002.
85
Felipe II, antes, possuía também seu conselho de validos, contudo, não os reconhecia
publicamente, preocupando-se em manter uma imagem de rei forte e responsável pelas
próprias decisões. O ponto de inflexão, que amplia substancialmente os debates relacionados
à prática no governo de Felipe III, parece residir no fato de que este não apenas escolheu
somente um valido, o duque de Lerma, como também ampliou consideravelmente seu poder
através da delegação de diversas funções. A partir de Lerma, praticamente todos os negócios
da Monarquia deviam passar pelas mãos do valido, que adquiria o trato exclusivo com o
monarca. Felipe III inclusive o reconhece publicamente, enviando ao Conselho de Estado uma
nota em que pedia que o Conselho cumprisse tudo o que o duque dissesse ou ordenasse218.
Para além, entretanto, da iniciativa de Felipe III ou da postura de Lerma, haviam
motivações estruturais relacionadas às condições políticas e sociais da Europa nos seiscentos
que demandavam redefinições no papel dos validos. As explicações tradicionais giravam em
torno de duas questões. A primeira seria uma suposta apatia ou indolência generalizada entre
os reis na Europa, explicação cada vez mais insustentável219.
A outra explicação, para Thompson, estaria correta apenas em parte. Segundo esta
linha interpretativa, o aumento da força dos validos, bem como a concentração do favor real
em apenas uma pessoa, características do valimento no século XVII, era consequência de um
processo de complexificação da máquina administrativa e de uma crise relacionada ao
crescimento do governo. O que estava ocorrendo, portanto, era um processo de
despersonalização do governo e aumento da burocracia, ao mesmo tempo em que se dava uma
ênfase maior na majestade da monarquia, na dignidade real, que sugeria ser inapropriado para
o rei que se envolvesse diretamente nos detalhes administrativos ou que lidasse diretamente
com os “caçadores de cargos”220.
Porém, o problema do crescimento administrativo e governamental não implicava,
necessariamente, na concentração do poder nas mãos do valido. Esta era apenas uma das
inúmeras soluções possíveis. A complexificação e expansão da máquina administrativa podia
significar um peso maior para que os reis carregassem, mas não era como se estes já não
contassem com secretários, conselhos e ajudantes. De uma forma ou de outra, por si só esse
crescimento não explica a escolha específica por um modo de governo no qual os reis
delegavam enormes poderes para apenas um dos homens da nobreza.
218
OLIVEIRA, Ricardo de. Valimento, privança e favoritismo: aspectos da teoria e cultura política do Antigo
Regime. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, nº 50, 2005. P. 227.
219
THOMPSON, I. A. A. El contexto institucional de la aparición del ministro-favorito. In: BROCKLISS,
Laurence (Coord.); ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El mundo de los validos. Madrid: Taurus Ediciones, 1999.
220
THOMPSON, I. A. A. El contexto institucional de la aparición del ministro-favorito. In: BROCKLISS,
Laurence (Coord.); ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El mundo de los validos. Madrid: Taurus Ediciones, 1999.
86
Para o autor, o ponto central foi o desenvolvimento das instituições no interior desse
processo de crescimento do governo. No caso espanhol, onde eram formalizadas, numerosas,
departamentalizadas, diferenciadas e regidas por um regime jurisdicional, a expansão
governamental levou a uma série de problemas de rotina burocrática, rivalidade institucional e
corporativismo. Estes organismos herdavam um sistema administrativo e judicial
praticamente autorregulado e que podia entrar em conflito com as vontades de um novo rei,
especialmente se o anterior tivesse ficado durante muito tempo no cargo. Os funcionários
eram cooptados entre uma camarilla profissional restrita, protegida pela lei e segundo
princípios jurídicos e interesses colegiados que, também, podiam não corresponder à vontade
do rei e de seus ministros. Dessa maneira, o valido teria sido necessário como forma de
coordenar, controlar e impor obediências aos organismos centrais do governo na Espanha221.
Crescimento administrativo significava também maiores proporções de riqueza, o que
deslocava o equilíbrio de poder entre a monarquia e a aristocracia. O valido também foi uma
solução para este problema, pois atuava como uma espécie de canal institucional, o centro de
uma rede de clientelismo e patronato que se estendia por todo o reino. Portanto, vinculando as
localidades com o centro político, cujas redes clientelísticas e de patronato dependiam
anteriormente de esferas regionais e das influências de alguns senhores particulares, os
validos garantiam a efetivação de um processo de centralização política através da formação
de redes. Nas palavras de Thompson, eles contribuíam para “transformar o patronato de uma
relação social privada em um tipo mais prescritivo politicamente”222. E estas seriam uma das
marcas da pratica do valimento no século XVII, centralização e politização do poder. Tais
características, concomitante ao incremento da prática da venalidade dos cargos públicos, já
foram, inclusive, elencadas como pressupostos para compreender a força dos validos por
Perry Anderson:
Por sua vez, a maior burocratização da função pública produziu novos tipos de
administradores dirigentes, em geral recrutados da nobreza e ansiosos pelos
benefícios convencionais dos cargos, mas imbuídos, ao mesmo tempo, de um
rigoroso respeito pelo Estado enquanto tal e de uma firme determinação de
sustentar os seus interesses de longo prazo contra os conluios de vista curta da
alta nobreza ambiciosa ou descontente. Foram estes os austeros ministros
reformadores do século XVII, funcionários essencialmente civis, carentes de
base regional ou militar, que dirigiam os negócios do Estado a partir de seus
221
THOMPSON, I. A. A. El contexto institucional de la aparición del ministro-favorito. In: BROCKLISS,
Laurence (Coord.); ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El mundo de los validos. Madrid: Taurus Ediciones, 1999.
222
THOMPSON, I. A. A. El contexto institucional de la aparición del ministro-favorito. In: BROCKLISS,
Laurence (Coord.); ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El mundo de los validos. Madrid: Taurus Ediciones, 1999.
Paginação irregular.
87
223
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. Tradução João Roberto Martins Filho. São Paulo:
Brasiliense, 2004. P. 51.
224
OLIVEIRA, Ricardo de. Valimento, privança e favoritismo: aspectos da teoria e cultura política do Antigo
Regime. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, nº 50, 2005. P. 228.
225
LÓPEZ, José Antonio Escudero. Privados, validos y primeros ministros en la monarquía española del antiguo
régimen (viejas y nuevas reflexiones). Anales de la Real Academia de Jurisprudencia y legislación, nº 39, 2009.
p. 665-680. Nuno Gonçalo Monteiro tem uma opinião contrária sobre os primeiros ministros: MONTEIRO,
Nuno Gonçalo. D. José na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006; ver especialmente o capítulo
14 – D. José e Pombal: o rei, a monarquia e o valido.
226
LÓPEZ, José Antonio Escudero. Privados, validos y primeros ministros en la monarquía española del antiguo
régimen (viejas y nuevas reflexiones). Anales de la Real Academia de Jurisprudencia y legislación, nº 39, 2009.
p. 665-680.
88
227
THOMPSON, I. A. A. El contexto institucional de la aparición del ministro-favorito. In: BROCKLISS,
Laurence (Coord.); ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El mundo de los validos. Madrid: Taurus Ediciones, 1999.
Paginação irregular; BENIGNO, Francesco. Tra corte e Stato: il mondo del favorito. In: Storica, nº 15, 1999. P.
123-136; ELISZEZYNSKI, Giuseppe Mrozek. Ripensare il valimento. Don Luis de Haro nella più recente
storiografia. In: Storica, nº 67-68, ano XXIII, 2017.
228
De acordo com Ricardo de Oliveira, o termo mignon possuía um sentido negativo, sendo empregado, na
maior parte das vezes, com conotações sexuais. OLIVEIRA, Ricardo de. Amor, amizade e valimento na
linguagem cortesã do Antigo Regime. In: Tempo, v. 11, nº 21, jun. 2006.
229
OLIVEIRA, Ricardo de. Amor, amizade e valimento na linguagem cortesã do Antigo Regime. In: Tempo, v.
11, nº 21, jun. 2006.
89
própria e particular, porque se particulariza com ele e se diferencia dos demais; e este se
chama privado, e o favor ao senhor privança”230.
Outra visão acerca da escolha do conceito, e que se diferencia das apresentadas, é
oferecida pelo Padre Antônio Vieira. Segundo ele, “os validos com mais nobre e heroica
etimologia se chamam privados”231. Para Vieira, dizer “não” era uma tarefa necessária, porém
ruim. Os reis deviam evitar ao máximo utilizar dessa palavra. Uma maneira de evitar dizer
muitas vezes a palavra “não” era impedir que as pessoas viessem ao rei para pedir graças,
mercês ou outras coisas. Era importante, portanto, dizer “não” aos validos, pois através deste
exemplo, pessoas que não tinham tanta proximidade com o rei não iriam buscar seus auxílios.
Se o rei diz apenas um “não” ao valido, evita de diversas negativas para outras pessoas. Mas o
autor se questiona se não seria ruim dizer “não” para um valido. Segundo ele, a maior graça
que um valido poderia ter era ser valido do rei, não havendo mais nada que pudesse querer ou
pedir.
Toda a justificativa de Vieira é para demonstrar como a negação para o privado não
era ruim, mas positiva. Segundo ele, “os filósofos distinguem dois tipos de negação, umas que
se chamam puras negações, e outras a que deram o nome de privações” 232. A pura negação
seria uma negação do ato e da aptidão. Vieira oferece o exemplo de uma estátua, na qual a
negação da fala é não só do ato de falar como da capacidade, marcando assim um aspecto
negativo. Já na privação nega-se apenas a ação e não a capacidade. O silêncio no homem seria
a privação do ato de falar, mas ao mesmo tempo o reconhecimento de sua aptidão e
capacidade de falar, portanto um aspecto positivo.
230
OROZCO, Sebastián Covarrubias. Tesoro de la lengua castellana, o española. Madrid: Luis Sanchez,
impresor del Rey, 1611.
231
VIEIRA, P. Antonio. Sermam da terceira quarta feira da Quaresma, pregado na Capella Real, anno de 1670.
In: ______. Sermões do P. Antonio Vieira da Companhia de Jesus, Pregador de Sua Alteza. Segunda Parte.
Dedicada no panegyrico da Rainha Santa ao sereníssimo nome da Princesa N. S. D. Isabel. Lisboa: Officina de
Miguel Deslandes, 1682. P. 98.
232
VIEIRA, P. Antonio. Sermam da terceira quarta feira da Quaresma, pregado na Capella Real, anno de 1670.
In: ______. Sermões do P. Antonio Vieira da Companhia de Jesus, Pregador de Sua Alteza. Segunda Parte.
Dedicada no panegyrico da Rainha Santa ao sereníssimo nome da Princesa N. S. D. Isabel. Lisboa: Officina de
Miguel Deslandes, 1682. P. 97.
90
privação. Por isso os validos com mais nobre e heroica etimologia se chamam
privados233.
Vieira oferece, dessa forma, um argumento que busca se utilizar do próprio sentido
“negativo” do termo, como “despojar”, “privar” e “abdicar” como algo positivo e que
justificaria a escolha do termo privado para designar o valido. Iremos retomar este ponto mais
a frente. Vieira, a partir da retórica, está remetendo à tipologia aristotélica dos quatro modos
de oposição: como relação, como contrariedade, como afirmação e negação, e como
efetividade e privação234. A última designa o mesmo objeto, mas demarca uma condição que
deveria existir e não existe: a vista, por exemplo, é efetividade, a cegueira é privação da vista.
São Tomás de Aquino, nos Comentários à metafísica de Aristóteles, também apresenta a
diferença entre negação e privação, afirmando que no caso da privação existe uma
“determinada natureza ou substância de que a privação é predicada”235.
De qualquer maneira, na realidade política do século XVII essa era sua principal
acepção. No Discurso del Perfecto Privado de Pedro Maldonado, confessor de Lerma, não
aparece nenhuma vez o termo valido, sendo utilizado apenas o conceito de privado.
Maldonado escreve seu texto em 1609, durante a privança de Lerma. A escolha deste como
único privado por Felipe III gerou uma série de descontentamentos e fez também com que os
chamados “lermistas” fizessem “esforços teóricos mais consistentes revolucionando assim o
discurso existente sobre a privança”236. Para Maldonado,
233
VIEIRA, P. Antonio. Sermam da terceira quarta feira da Quaresma, pregado na Capella Real, anno de 1670.
In: ______. Sermões do P. Antonio Vieira da Companhia de Jesus, Pregador de Sua Alteza. Segunda Parte.
Dedicada no panegyrico da Rainha Santa ao sereníssimo nome da Princesa N. S. D. Isabel. Lisboa: Officina de
Miguel Deslandes, 1682. P. 98.
234
ARISTÓTELES. Categorias. Tradução de Silvestre Pinheiro Ferreira. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1814.
235
AQUINAS, St. Thomas. Commentary on the metaphysics of Aristotle. Translated by John P. Rowan.
Chicago: Henry Regnery Company; Library of Living Catholic Thought, Volume I, 1961. Bk 4 Lsn. 3 Sct. 565
P. 227 | 565.
236
FEROS, Antonio. Almas gemelas: monarcas y favoritos en la primera mitad del siglo XVII. In: KAGAN,
Richard L.; PARKER, Geoffrey (Ed.). España, Europa y el mundo atlántico: homenaje a John H. Elliott.
Madrid: Marcial Pons, 2001. P. 69.
237
“Privado llamamos un hombre, con quien a solas, i particularmente se comunica, con quien no ay cosa
secreta, escogido entre los demas para una cierta manera de igualdad, fundada en amor, i perfecta amistad. Que
una particular persona tenga otra por Privado, i amigo particular no cae debajo de duda. (…) La duda, si los
Reyes, i personas publicas le podran tener: comunmente dicen los que escriben de Republicas, i crianza de
Principes que no; i dicen ser dañoso al Reynos (…). Yo soy de contrario parecer” (tradução nossa).
91
está bem o Rei, e o Reino: o Rei, porque lhe dará maior notícia das coisas,
encaminhará melhor à razão como quem tem as chaves de seu coração, cuidará
melhor de sua vida, honra, fazenda, e consciência, como quem paga amor com
amor. O Reino, porque assim outros se animam a merecer a privança, assim se
fazem os Reinos floridos e de grandes estados, e finalmente tem um mediador
entre as partes do Reino, e como mais aceito pelo Rei mais alcance suas
mercês238.
MALDONADO, Pedro. Discurso del Perfecto Privado. Escribiole el Padre Maestro Fr. Pedro Maldonado, de
la Orden de S. Agustin, Confessor del Duque de Lerma. Manuscrito, 1609. Biblioteca Digital Hispánica.
Disponível em: http://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000074259&page=1. Acesso em 27/07/2018.
238
“está bien al Rey, i al Reyno: al Rey, porque le dará mayor noticia de las cosas, encaminará mejor à la razón
como quien tiene las llaves de su corazón, cuidará mejor de su vida, honra, hazienda, i conciencia, como quien le
paga amor con amor. Al Reyno, porque assi se animan otros a merecer la privanza, assi se hacen los Reynos
floridos, i de grandes estados, i al fin tiene un medianero que como del Reyno haga sus partes, i como mas
acepto al Rey le alcance sus mercedes” (tradução minha). MALDONADO, Pedro. Discurso del Perfecto
Privado. Escribiole el Padre Maestro Fr. Pedro Maldonado, de la Orden de S. Agustin, Confessor del Duque de
Lerma. Manuscrito, 1609. P. 3.
239
FEROS, Antonio. Almas gemelas: monarcas y favoritos en la primera mitad del siglo XVII. In: KAGAN,
Richard L.; PARKER, Geoffrey (Ed.). España, Europa y el mundo atlántico: homenaje a John H. Elliott.
Madrid: Marcial Pons, 2001. P. 69.
92
paixão em seus pareceres, e não tem aquele Arcanjo, que lhe guarda, nem as Missas, e
orações do Reino, que são para o Rei”240.
O segundo motivo é que no rei o poder temporal e espiritual caminha junto, pois
ambos têm “um mesmo fim, que é o bem comum”. Quando o Reino estiver “próspero, quieto,
e mantido em justiça” o rei será santo, “que cumpri com sua obrigação de mirar pelo bem
público”. No privado é diferente, pois “o aumento particular de sua casa não consiste, ou
depende do comum da República”241. O terceiro motivo é que o privado, pela falta de costume
e de preparo, poderia se embriagar com o Poder, já o rei nasceu e foi criado como rei, “e
como aquele que se vivesse criado com vinho correria menos perigo de embriaguez que
aquele que de repente o bebesse em abundância; assim, se não há boa cabeça, corre mais
perigo o Privado que o Rei”242.
O quarto motivo é que onde mais existe “razão de interesse”243 mais difícil é encontrar
a amizade perfeita. Quando não há “razão de interesse” o amor é mais para o outro do que
para si próprio: “o Privado encontra tanto de bem próprio, que corre o perigo de amar-se mais
para si do que para ele [rei], e retirada esta razão de desinteressada amizade é impossível ser
Privado perfeito”244. Tanto a metáfora do “escudo” quanto a tópica do desinteresse do privado
serão constantemente repetidas. Outra metáfora utilizada pelo autor é a do pescoço, pois o
privado “pode ser como o pescoço por onde a cabeça de seu Rei, e ainda do Papa, pode ao
corpo místico do Reino derivar mil bens”245. Na visão corporativa da sociedade e do poder a
parte que o privado podia ocupar era a de sustentar a cabeça, fazendo a mediação com as
outras partes. O papel mediador do privado no Reino é uma característica que aparece em
outros autores.
240
“debe ser justo, i recto, amigo del bien publico, acertado en las elecciones, sin pasión en sus pareceres, i no
tiene aquel Arcangel, que le guarda, ni las Missas, i oraciones del Reyno, que son por el Rey” (tradução nossa).
MALDONADO, Pedro. Discurso del Perfecto Privado. Escribiole el Padre Maestro Fr. Pedro Maldonado, de
la Orden de S. Agustin, Confessor del Duque de Lerma. Manuscrito, 1609. P. 4.
241
MALDONADO, Pedro. Discurso del Perfecto Privado. Escribiole el Padre Maestro Fr. Pedro Maldonado,
de la Orden de S. Agustin, Confessor del Duque de Lerma. Manuscrito, 1609. P. 4-5.
242
“i como el que se vivisse criado con vino correria menos peligro de embriaguez que el que de repente lo
bebiesse en abundancia; assi, si no ay buena cabeza, corre mas peligro el Privado que el Rey” (tradução nossa).
MALDONADO, Pedro. Discurso del Perfecto Privado. Escribiole el Padre Maestro Fr. Pedro Maldonado, de
la Orden de S. Agustin, Confessor del Duque de Lerma. Manuscrito, 1609. P. 4.
243
Convém apontar desde já um interessante trabalho sobre o conceito de “interesse”: ORNAGHI, Lorenzo. Il
concetto di “interesse”. Milano: Giuffrè Editore, 1984.
244
“el Privado halla tanto de bien propio, que corre peligro de amar le mas para si que para el, i quitada esta
razón de desinteresada amistad es imposible ser perfecto Privado” (tradução nossa). MALDONADO, Pedro.
Discurso del Perfecto Privado. Escribiole el Padre Maestro Fr. Pedro Maldonado, de la Orden de S. Agustin,
Confessor del Duque de Lerma. Manuscrito, 1609. P. 4.
245
“i finalmente puede ser como el cuello por donde de la cabeza de su Rey, i aun del papa puedan al cuerpo
mistico del Reyno deribarse mil bienes. MALDONADO, Pedro. Discurso del Perfecto Privado. Escribiole el
Padre Maestro Fr. Pedro Maldonado, de la Orden de S. Agustin, Confessor del Duque de Lerma. Manuscrito,
1609. P. 7.
93
João Salgado de Araújo, em sua obra Ley Régia de Portugal, publicada em 1627,
também discute a pertinência dos privados no contexto da privança de Felipe III. O autor
possui uma visão negativa sobre os privados, ainda que defenda o direito do rei de mantê-los.
Assim como outros autores procura justificar a importância e a existência da prática através
de exemplos bíblicos. Adão e Lúcifer seriam privados de Deus, mas ambos não souberam
“aproveitar de sua privança”. Depois de demonstrar que “alguns Príncipes desde o princípio
do mundo” tiveram privados, como por exemplo, “que Faraó teve a Joseph por seu grande
Privado, (...) afora a Amã, e depois Mardocheo, David a Joab, Absalon a Architopel”, e que
“Cristo Nosso Senhor que entre seus apóstolos teve a S. João por Privado”, o autor afirma que
os textos sagrados não dizem “que alguns destes Privados se meteram na soberania do
Príncipe, antes que lhe recusaram”. O único que teria aceitado seria Moisés, mas por ter sido
obrigado. Além disso, ele não teria suportado o peso por si só, elegendo Ministros e
Tribunais, e recebendo auxílios do Céu, já que “era privado do verdadeiro Príncipe, de quem
246
todos os Reis e ministros, que governam devem ser” . Para Araújo, todos os reis eram
privados de Deus, ou melhor, Deus fez dos reis seus privados.
Com exceção destes exemplos, os privados foram causas de muita perturbação em
suas repúblicas, pois não souberam se conservar e se abster de tocar no que competia a
Regalia. Segundo ele, muitos “entraram nas privanças como raposas, reinaram nelas como
tigres, e finalmente vieram a perecer como cães furiosos”247. Ainda assim, Salgado de Araújo
não desaprova que o Príncipe tenha um privado, mas não concorda que esse privado deve
interferir no curso dos negócios da República. De acordo com o autor, o governo é ofício Real
e nele “militam” duas coisas, “em que consiste todo o peso do mundo. Uma é administrar
justiça. A outra é defender os oprimidos e agraviados”248.
E porque isto não atende a eficácia e vigor que em um padre universal da pátria,
como é o Rei, cujo agravo de seus vassalos lhe toca, como a cabeça, e eles
membros, a imitação de Cristo Nosso Senhor, que como verdadeira cabeça de
seu corpo místico, disse, que se lhe fazia o agravo feito a um pequeno e
humilde, e aqui não tem um privado lugar, por ser como os demais vassalos
246
ARAÚJO, João Salgado. Ley Régia de Portugal. Primeira parte. Madrid: Por Juan Delgado. 1627. P. 55-56.
§ 153-156.
247
“entraron en las privanças como çorras, reynaron en ellas como tigres, y al fin vinieron a perecer como canes
rabiando” (tradução nossa).. ARAÚJO, João Salgado. Ley Régia de Portugal. Primeira parte. Madrid: Por Juan
Delgado. 1627. P. 57. § 157.
248
“Porque militan aqui dos cosas, en que consiste todo el peso del mundo. La una es, administrar justicia. La
otra defender los oprimidos, y agraviados” (tradução nossa). ARAÚJO, João Salgado. Ley Régia de Portugal.
Primeira parte. Madrid: Por Juan Delgado. 1627. P. 57-58. § 159.
94
membro, e não cabeça, claro é que se faria intruso, valendo-se desta obrigação,
e que seu exercício irá falecer, fazendo sofrer os negociantes e o Reino249.
249
“Y porque esto no se halla con la eficacia y vigor que en un padre universal de la patria, como lo es el Rey,
cuyo agravio de sus vassalos le toca, como a cabeça, y ellos miembros, a imitación de Christo Señor nuestro, que
como verdadera cabeça de su cuerpo mixtico, dixo, que sele hazia el agravio hecho a un pequeño y humilde, y
aquí no tiene un privado lugar, por ser como los demás vassalos miembro, y no cabeça, claro es que se haría
intruso, echando mano desta obligación, y que es menester fallezca, y lo padezcan los negociantes y Reynos”
(tradução nossa). ARAÚJO, João Salgado. Ley Régia de Portugal. Primeira parte. Madrid: Por Juan Delgado.
1627. P. 58. § 161.
250
ARAÚJO, João Salgado. Ley Régia de Portugal. Primeira parte. Madrid: Por Juan Delgado. 1627. P. 59. §
165.
251
ARAÚJO, João Salgado. Ley Régia de Portugal. Primeira parte. Madrid: Por Juan Delgado. 1627. P. 59. §
165.
252
MOSQUERA, Santiago Fernández. Quevedo y el valimento: del Discurso de las privanzas hasta Cómo ha de
ser el privado. Bulletin of Spanish Studies: Hispanic Studies and Researches on Spain, Portugal and Latin
America, 90: 4-5, 2013. P. 551-576.
253
Ver: MOSQUERA, Santiago Fernández. Quevedo y el valimento: del Discurso de las privanzas hasta Cómo
ha de ser el privado. Bulletin of Spanish Studies: Hispanic Studies and Researches on Spain, Portugal and Latin
America, 90: 4-5, 2013. P. 551-576; IGLESIAS, Rafael. Cómo há de ser el privado de Francisco de Quevedo y
la tradición española antimaquiavélica de los siglos XVI y XVII. La Perinola, 14, 2010. P. 101-127; IGLESIAS,
Rafael. El imposible equilibrio entre el encomio cortesano y la reprimenda política: hacia una nueva
interpretación de Cómo ha de ser el privado de Quevedo. La Perinola, 9, 2005. P. 267-298.
95
254
Sobre a possível data de Discurso de las privanzas ver o artigo de MARTÍNEZ, Eva María Díaz. El Discurso
de las privanzas, de Francisco de Quevedo. Algunas consideraciones en torno a su autoría y datación. Moenia, 2,
1996. P. 485-494.
255
QUEVEDO, Francisco de. Discurso de las privanzas. In: SOTOMAYOR, Don Antonio Valladares.
Semanario erudito, que comprehende varias obras inéditas, criticas, morales, instructivas, políticas, históricas,
satíricas y jocosas de nuestros mejores autores antiguos, y modernos. Tomo Primeiro. Madrid: Por Blas Roman,
1788. P. 181.
256
“De esta há de usarse; pero no fiarlo todo de ella. Hombre es el Rey, y hombre el Privado. En el Rey ponen
peligro los muchos de que es Cabeza; y en el Privado la Cabeza con todos” (tradução nossa). QUEVEDO,
Francisco de. Discurso de las privanzas. In: SOTOMAYOR, Don Antonio Valladares. Semanario erudito, que
comprehende varias obras inéditas, criticas, morales, instructivas, políticas, históricas, satíricas y jocosas de
nuestros mejores autores antiguos, y modernos. Tomo Primeiro. Madrid: Por Blas Roman, 1788. P. 183.
257
“el Privado es un médio entre el Rey, y el Pueblo; hombre en quien descansa la voluntad del Príncipe, y el
peso de la República; cosas que entrambas son de gran cuidado; porque si en la voluntad del Rey está todos, y en
la suya la del Rey, necesita vivir con gran prudencia, y solicitud, mirando por su sosiego, recogimiento,
templanza, y entretenimiento honesto, encaminándole siempre à la virtud, y apartándole de todos los que le
puedan separar de ella” (tradução nossa). QUEVEDO, Francisco de. Discurso de las privanzas. In:
SOTOMAYOR, Don Antonio Valladares. Semanario erudito, que comprehende varias obras inéditas, criticas,
morales, instructivas, políticas, históricas, satíricas y jocosas de nuestros mejores autores antiguos, y modernos.
Tomo Primeiro. Madrid: Por Blas Roman, 1788. P. 191.
96
“necessariamente um Privado tem inimigos públicos e secretos. Públicos, não porque eles
sejam, mas porque ele o sabe; e secretos, porque não os conhece. Como deve lidar com estes,
é o principal ponto da conservação de um privado”258. O uso dos conceitos nessa passagem
claramente aponta que devemos repensar a relação público/privado no período em questão.
Aqui, “privado” é o amigo do rei. Não tem relação com uma suposta “esfera”, nem trata da
“vida privada”, como se fosse uma instância existencial específica em relação à “vida
pública”. Não é um par de opostos, uma “grande dicotomia” que divide o mundo, tal como
quer Norberto Bobbio259. Diferente também é a relação de público e particular, conforme se
discutirá mais a frente.
Para Mosquera, a intenção de Quevedo, em grande parte do seu trabalho, era de
exercer influência política260. Esse era o grande desejo do autor. Para isso, ele não se
contentava em apenas oferecer um repertório para a ação do privado, associando-o sempre
com as ações do Príncipe. Tanto no Discurso de las privanzas quanto em Cómo ha de ser el
privado o autor parece preocupar-se mais em definir e ensinar o rei a governar do que o
privado propriamente. Tal ousadia ou falta de prudência era percebida, uma vez que para além
das questões teóricas, a obra era destinada a Felipe III e havia de fato um privado, o duque de
Lerma. Assim, os erros ou acertos do rei e do privado idealizado por Quevedo eram sempre
confrontados com os seus respectivos correspondentes reais.
Cómo ha de ser el privado foi uma comédia escrita por Quevedo por ordem do conde-
duque de Olivares, privado de Felipe IV, talvez em “1623 e reescrita (ou finalizada) até 1628
ou 1629”261 de acordo com diferentes interpretações. Durante muito tempo ela foi esquecida e
teve pouca repercussão no período em que foi escrita. É considerada como uma das obras de
mais baixa qualidade literária do autor. Também demorou a ser seriamente analisada, uma vez
que se considerava apenas uma obra laudatória à Olivares e Felipe IV, o que tem sido
constantemente questionado, especialmente por sua revalorização como obra política e crítica
258
“necesariamente un Privado tiene enemigos públicos, y secretos. Públicos digo, no porque ellos lo sean, sino
porque él lo sabe; y secretos, porque no los conoce. Como se ha de haber con estos, es el principal punto de la
conservación de un Privado” (tradução nossa). QUEVEDO, Francisco de. Discurso de las privanzas. In:
SOTOMAYOR, Don Antonio Valladares. Semanario erudito, que comprehende varias obras inéditas, criticas,
morales, instructivas, políticas, históricas, satíricas y jocosas de nuestros mejores autores antiguos, y modernos.
Tomo Primeiro. Madrid: Por Blas Roman, 1788. P. 203.
259
BOBBIO, Norberto. Democracy and Dictatorship: The nature and limits of State power. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1989.
260
MOSQUERA, Santiago Fernández. Quevedo y el valimento: del Discurso de las privanzas hasta Cómo ha de
ser el privado. Bulletin of Spanish Studies: Hispanic Studies and Researches on Spain, Portugal and Latin
America, 90: 4-5, 2013. P. 554.
261
MOSQUERA, Santiago Fernández. Quevedo y el valimento: del Discurso de las privanzas hasta Cómo ha de
ser el privado. Bulletin of Spanish Studies: Hispanic Studies and Researches on Spain, Portugal and Latin
America, 90: 4-5, 2013. P. 561.
97
aos mesmos. Além disso, ela se insere no gênero de dramaturgia de suma importância para o
século XVII conhecido como comédias de la privanza262.
No início da obra o rei Fernando (personagem da comédia e alusão a Felipe IV), que
acabava de subir ao trono de Nápoles, procura escolher um privado para auxiliá-lo na tarefa
do governo:
[aparte] (Para aliviar este peso / he menester un valido. / Rey que de nadie se
fía, / entre los vasallos buenos / poco vale, y vale menos / el que de todos
confía. / De un hombre me de fíar; / ¿cuál destos eligiré / de talento, amor y fe?
/ Yo los quiero examinar.) / si uno de vosotros fuera / valido de un rey ¿en cuál /
virtud, como principal, / más eminencia tuviera?263
(...) Por un escudo me pones, / sin que haya excepción, en quien / rigurosos
golpes den / comunes murmuraciones. / No es otra coisa el privado / que un
sujeto en quien la gente / culpe cualquier acidente / o suceso no acertado. / Con
invidia o con pasión / le censuran de mil modos / y aunque más le alaben todos,
/ todos sus émulos son264.
Tal como em Maldonado, o privado aqui é um “escudo” entre o rei e o Reino. Seu
desinteresse o habilita a exercer o papel de mediador, um “ministro da lei”, um “braço”, um
“instrumento” da vontade do rei, um “ministro singular” que ainda que possa aconselhar, não
pode decidir265. Em dois momentos da comédia ficam evidentes os aspectos positivos do
conceito de “privação” no sentido de “se privar”, “de despojar”, “abdicar”, tal como
elaborado por Vieira. É possível que a escolha de “privado” para caracterizar estas pessoas
tivesse relação com o fato de que ao entrarem na privança do rei, elas deveriam se privar de
262
OLIVEIRA, Ricardo; RODRIGUES, Karenina do Nascimento. O valido em cena. Política, história e crítica
social em ¿Como há de ser el Privado?, de Francisco de Quevedo. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 40, n.
1, jan-jun. 2014. P. 45-63.
263
QUEVEDO, Francisco de. Cómo ha de ser el privado. Edición y estudio de Ignácio Arellano. Pamplona:
Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra; Biblioteca Áurea Digital, 2017. P. 49-50. Disponível
em: <http://hdl.handle.net/10171/43779>. Acesso em 24/07/2018.
264
QUEVEDO, Francisco de. Cómo ha de ser el privado. Edición y estudio de Ignácio Arellano. Pamplona:
Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra; Biblioteca Áurea Digital, 2017. P. 51.
265
QUEVEDO, Francisco de. Cómo ha de ser el privado. Edición y estudio de Ignácio Arellano. Pamplona:
Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra; Biblioteca Áurea Digital, 2017. P. 53.
98
todo o resto, se despojar de sua vida particular para se dedicar totalmente a ele, ao menos nas
elaborações teóricas acerca do privado perfeito.
O primeiro momento em que isso fica claro na comédia é quando o marquês de
Valisero é informado pelo almirante que seu filho havia falecido. Respondendo ao comentário
do “Porteiro”, de que não era mais possível dar audiência, o marquês diz que iria continuar
trabalhando: “Sufráse el dolor en tanto / que yo cumplo com mi oficio; / acudamos a el
servicio / del rey primeiro que al llanto. / Entren todos.”266. Apenas depois de realizar a
audiência com três pessoas que vieram pedir mercês o marquês se permite sofrer pela perda
do filho.
No outro momento, o Rei se esconde para observar como o marquês realizava as
audiências. Tendo ficado satisfeito e agradecido por tudo que Valisero havia lhe feito, o Rei
lhe oferece cem mil ducados e a Vila dos Açores. O marquês, como era de se esperar de um
bom privado, recusa, dizendo que:
Ou seja, trata-se do que Vieira afirmava a respeito de que o “maior crédito do valido é
que sua privança seja privação”. Ser valido do Rei deveria colocar estas pessoas em posição
tal que não houvesse mais nada que elas pudessem querer. Quevedo, assim, oferecia um
repertório que correspondia exatamente ao título da sua comédia: “Como há de ser el
privado”. Trata-se, dessa forma, de um tema constante na linguagem do período, a abnegação
e o desinteresse268.
Também em Politica de Dios y gobierno de Cristo269 (1626) é possível vislumbrar
alguns exemplos que corroboram a afirmação acima. O livro de Quevedo se inseria na
tradição ibérica antimaquiavélica, ratificando a sacralidade do político e da monarquia, bem
266
QUEVEDO, Francisco de. Cómo ha de ser el privado. Edición y estudio de Ignácio Arellano. Pamplona:
Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra; Biblioteca Áurea Digital, 2017. P. 84. De acordo com
Ignácio Arellano no texto introdutório ao livro, de fato, tal episódio aconteceu. Ou seja, Olivares, mesmo
sabendo da morte de sua filha optou por levar adiante as audiências. ARELLANO, Ignácio. Introducción a la
comédia de Quevedo. In: QUEVEDO, Francisco de. Cómo ha de ser el privado. Edición y estudio de Ignácio
Arellano. Pamplona: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra; Biblioteca Áurea Digital, 2017.
267
QUEVEDO, Francisco de. Cómo ha de ser el privado. Edición y estudio de Ignácio Arellano. Pamplona:
Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra; Biblioteca Áurea Digital, 2017. P. 123.
268
ELLIOT, John. Conservar el poder: el Conde-Duque de Olivares. In: ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El
mundo de los validos. Madrid: Taurus Ediciones, 1999.
269
QUEVEDO, Francisco de. Política de Dios y gobierno de Cristo. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de
Cervantes, 2002 [1626]. Edición digital basada en la 2ª ed. de Buenos Aires; México: Espasa-Calpe Argentina,
1947.
99
como a cristologia política medieval que reforçava que a missão do Rei era representar e
imitar a Cristo (christomimetes). Felipe IV e o conde-duque de Olivares são, novamente, os
alvos da dedicatória de Quevedo.
Como era comum também em outros autores, Quevedo estabelece uma analogia entre
os apóstolos de Cristo e os privados, validos e ministros. Assim, se as ações e práticas de
Cristo deviam orientar as ações dos reis, eram através dos exemplos das ações dos apóstolos
que os privados deviam se guiar: São Pedro ou São João enquanto os exemplos perfeitos,
Judas como personificação de como não devia ser um privado. O autor se baseia no décimo-
quarto capítulo do Evangelho de Lucas, que diz: “se alguém vem a mim e ama o seu pai, sua
mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua própria vida mais do que a mim,
não pode ser meu discípulo”; para argumentar para o rei que: “senhor, quem vier a vossa
majestade, se não amar seu real serviço e o bem de seus vassalos e a conservação da fé e da
religião mais do que a seus pais, mulheres e filhos, irmãos e irmãs, não seja discípulo, não
acompanhe, não assista”270. Era preciso, portanto, que o privado se privasse de sua família.
Em outra passagem a questão fica ainda mais clara e novamente a partir de um extrato
do Evangelho de Lucas (Cap. 9): “Se alguém quiser vir atrás de mim, negue-se a si mesmo,
tome diariamente a sua cruz e siga-me”. Quevedo enfatiza a negação de si mesmo como
condição para o privado: “toda a fidelidade de um privado está em negar-se a si as vinganças,
as ganâncias, as ‘medras’, os roubos, os excessos, a adoração; e ao negar isso a si mesmo, vá
atrás de seu senhor (...)”271. Cabia, portanto, ao privado, negar sua família, seus sentimentos,
seus interesses, enfim, negar a si mesmo, para servir ao rei. Em certo sentido, é possível
vislumbrar o motivo de ser chamado de privado, que corresponderia à própria definição de
Vieira de que seu maior crédito era de que sua privança fosse privação272.
270
“Señor, quien viniere a vuestra majestad, si no amare su real servicio y el bien de sus vassalos y la
conservación de la fe y de la religión más que a sus padres, hijos, hermanos y hermanas, no sea discípulo, no
acompañe, no asista”. QUEVEDO, Francisco de. Política de Dios y gobierno de Cristo. Alicante: Biblioteca
Virtual Miguel de Cervantes, 2002. Edición digital basada en la 2ª ed. de Buenos Aires; México: Espasa-Calpe
Argentina, 1947. P. 54.
271
“Toda la fidelidad de un privado está en negarse a sí las venganzas, las codicias, las medras, los robos, las
demasías, la adoración; y en negándose esto a sí mismo, va detrás de su señor (…)”. QUEVEDO, Francisco de.
Política de Dios y gobierno de Cristo. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2002. Edición digital
basada en la 2ª ed. de Buenos Aires; México: Espasa-Calpe Argentina, 1947. P. 176. Segundo o dicionário de
Covarrubias, medrar é “vocablo antiguo corrompido del verbo latino meliorare de melior, que es mejorar, y
adelantar una cosa. Sueleze dezir, en la salud, en la hazienda, en las costumbres, y en toda qualquier cosa que va
procediendo de mal a bien, o de bien en mejor. Medrar también vale ser aprovechado en alguna cosa, como el
que sirve al señor, que le haze merced, dezimos que está medrado; metafóricamente se dize de los arboles.
Desmedrar, es lo contrario”. OROZCO, Sebastián Covarrubias. Tesoro de la lengua castellana, o española.
Madrid: Luis Sanchez, impresor del Rey, 1611.
272
A tópica da abnegação de si mesmo, sintetizada na fórmula do “eu não-eu”, é central também na retórica de
Antonio Vieira, tal como exposto por Alcir Pécora. PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade
100
Porém, mesmo no curto período de tempo de 20 anos que separam o Discurso de las
Privanzas de Politica de Dios e Gobierno de Cristo, parece ter havido uma mudança na
preferência de Quevedo pelo termo privado para ministro. No primeiro livro, somam-se,
aproximadamente, 101 usos de privado e 27 de privança; zero para o termo valido ou
valimento; cinco para ministro e nenhum para ministério. Já no segundo livro, privado é
utilizado 48 vezes e privança 12; valido soma 15 e valimento 10; ministro, por fim, aparece
249 vezes e ministério 10. Mesmo reconhecendo a diferença entre os textos, seu tamanho,
formato, objetivos e contextos históricos, o que estes números aproximados revelam é uma
tendência, no próprio autor, de preferência por um termo ou por outro. Tal mudança está
relacionada, provavelmente, com o fato de que Olivares, então privado de Felipe IV, já havia
demonstrado sua insatisfação pelo conceito, preferindo ser chamado de ministro273. O próprio
Quevedo já havia anotado certa insatisfação com “privado” em 1623: “prometem os que hoje
servem (tanto é necessário rodear para não dizer Privados, que esta voz se tornou ‘aciaga’,
‘achacosa’, e formidável)274.
Após a privança de Olivares, Felipe IV ainda teve como último valido d. Luis de Haro.
As relações pessoais, a amizade, a inveja, o excesso de poder e de fortuna e as diversas
críticas com que os privados tinham que lidar, segundo James M. Boyden, condicionaram
para que a maioria das privanças terminassem mal. Mesmo Olivares, considerado um dos
maiores privados do “século de ouro” da Espanha terminou exilado e desonrado, afirmando
que a única certeza da vida era a instabilidade, inconstância e falta de gratidão275.
Em março de 1661 morreu na França o cardeal Mazarino, marcando o início do
chamado “governo pessoal” de Luís XIV, que a partir de então procurou modelos alternativos
de privança para lidar com os despachos do governo. Luís XIV atribuiu as prerrogativas de
Mazarino para três ministros: Michel Le Tellier, Chanceler da França; Hugues de Lionne,
Secretário dos Assuntos Estrangeiros; Jean-Baptiste Colbert, Controlador Geral das Finanças
e Secretário de Estado da Marinha. Felipe IV, por sua vez, depois da morte de d. Luis de
Haro, considerado o último valido da Espanha, até sua morte em 1665, não governou mais
com privados.
Porém, no Portugal restaurado a trajetória foi um pouco diferente. O processo que
levou a Restauração, marcado por críticas às políticas tributárias dos governos filipinos,
resvalava também para à atuação dos privados dos reis, especialmente a Olivares. Aos autores
portugueses a prática do valimento parecia como algo vinculado ao governo espanhol,
portanto, no momento inicial da Restauração os comentários negativos a respeito dos privados
prevaleciam. Como aponta Vinícius Dantas:
276
DANTAS, Vinicius Orlando de Carvalho. O conde de Castelo Melhor: valimento e razões de estado no
Portugal seiscentista (1640-1667). 2009. 313 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Fluminense
(UFF). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2009. P. 139.
277
TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da
Universidade, V. 1, 1981. p. 304.
278
AFRICANO, Antonio de Freitas. Primores políticos e regalias do nosso Rey Dom Joam o IV, de maravilhoza
memoria. Lisboa: por Manoel da Sylva, 1641. p. 43-45.
102
A discussão e o uso do termo privado em Portugal são feitas não só por Antônio de
Freitas Africano ou pelo Padre Antônio Vieira. Outros autores ao longo do século XVII, como
por exemplo, Antônio Carvalho Perada, Antônio de Souza de Macedo, Luís de Sá, Sebastião
César de Meneses, Fr. Manoel dos Anjos279, entre outros, se utilizaram do conceito no sentido
apresentado até aqui. Divergiam muitas vezes, como era comum, em relação aos seus
aspectos positivos e negativos, em relação também ao direito do rei de possuí-los ou não, ou
ainda sobre qual seria o ofício do privado. No entanto, tal como na Espanha, os principais
argumentos a favor relacionavam-se ao peso excessivo carregado pelo monarca e a
possibilidade inegável que tinha de ter amigos. Por outro lado, no aspecto negativo, alertava-
se sempre para que o privado não se equiparasse ou se considerasse superior ao rei, para que
não cedesse à ganância, ambição, inveja e ao interesse próprio.
Sebastião César de Meneses no “capítulo VI” de sua Summa Política, de 1649,
intitulado “Da Privança”, corroborava as críticas já conhecidas acerca dos perigos da
condição. Porém, somava a isso um problema digno de nota, pois afetava aquilo que era
considerado o cerne da arte de reinar, cuja consequência era a desunião do estado e do
conselho, bem como a debilitação da força das armas e da desordem da justiça. Para ele, a
existência do privado desequilibrava a justa distribuição do favor. Ao atribuir ao privado uma
“parte extraordinária nas deliberações dos negócios”, a união do Reino se desfaz, pois a
execução se daria apenas pelo respeito ao vassalo e “não com a grandeza do Príncipe”. A
esperança dos vassalos era fundamental para manter a união do Reino, mas através dessa ação
os vassalos passariam a reconhecer “por benefício do privado o que se devia agradecer por
mercê do Príncipe” 280.
Também o conselho se desune, pois alguns dos membros podiam ter uma relação mais
próxima com o privado, fazendo com que perdessem “a liberdade do voto e a sinceridade de
seu conselho”, parecendo, assim, “mais parciais do privado que conselheiros do Príncipe”281.
Quanto à força das armas, Meneses aponta que o privado “ordinariamente serve a seus
279
PERADA, Antonio Carvalho. Arte de Reynar. Ao potentíssimo Rey D. João IV. Nosso Senhor Restaurador
da Liberdade Portuguesa. Bucelas: Paulo Crasbeck, 1644; MACEDO, Antonio de Souza de. Armonia política.
Dos documentos Divinos com as conveniências d’Estado. Exemplar de príncipes. No governo dos gloriosíssimos
Reys de Portugal. Haga do Conde Oficina de Samuel Brown, 1651; SÁ, Luís de. Serman encomeastico, e
demonstrativo da indubitável justiça, com que o sereníssimo Rey D. Joam o IV foi acclamado neste reyno.
Coimbra: Laurentium Craesbeck, 1641; MENESES, Sebastião César. Summa Política. (1649). In: Conselho aos
Governantes. Brasília: Senado Federal, 1998; ANJOS, Fr. Manoel dos. Politica predicável, e doutrina moral do
bom governo do mundo, offerecida ao sereníssimo Príncipe de Portugal Dom Joam nosso senhor. Lisboa:
Officina de Miguel Deslandes, 1693.
280
MENESES, Sebastião César. Summa Política. (1649). In: Conselho aos Governantes. Brasília: Senado
Federal, 1998. P. 585.
281
MENESES, Sebastião César. Summa Política. (1649). In: Conselho aos Governantes. Brasília: Senado
Federal, 1998. P. 586.
103
intentos”, lhe importando mais a sua conservação do que qualquer outra coisa, portanto movia
a guerra de acordo com seus intentos. Por último, o desequilíbrio na distribuição do favor
afetava a justa atribuição de justiça.
282
MENESES, Sebastião César. Summa Política. (1649). In: Conselho aos Governantes. Brasília: Senado
Federal, 1998. P. 586.
104
283
Para os detalhes destas privanças, ver: DANTAS, Vinicius Orlando de Carvalho. O conde de Castelo Melhor:
valimento e razões de estado no Portugal seiscentista (1640-1667). 2009. 313 f. Dissertação de Mestrado –
Universidade Federal Fluminense (UFF). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2009.
284
Sobre Alexandre de Gusmão, ver: OLIVEIRA, Ricardo de. Pela Graça do Rei: um estudo sobre o valimento
no Antigo Regime Ibérico. O caso de Alexandre de Gusmão. 2004. Tese de Doutorado – Universidade Federal
do Rio de Janeiro – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 2004.
285
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006. P. 240.
286
SUBTIL, José. Pombal e o Rei: valimento ou governamentalização. Ler história, nº 60 – Vária, 2011.
Parágrafo 8. Disponível em: https://journals.openedition.org/lerhistoria/1472. Acesso em: 20/12/2018.
287
SUBTIL, José. Pombal e o Rei: valimento ou governamentalização. Ler história, nº 60 – Vária, 2011.
Parágrafo 7.
288
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
105
deste governo não teríamos assistido, durante o período mariano-joanino, à confirmação desta
governamentalização”289. Mais enfaticamente, no resumo do artigo diz que: “assim, Pombal
exerceu, de fato, a função de um primeiro-ministro, diferente da figura de um valido que
tivesse procurado impor-se politicamente entre o monarca, as secretarias, os tribunais e os
conselhos”290.
Porém, para os propósitos do presente capítulo, interessa-me especificamente o uso do
termo privado. Ao que tudo indica, mesmo que “privança” fosse ainda utilizado no período de
Pombal para se referir à condição do valido ou primeiro ministro, “privado” já era um termo
em desuso. Na entrada do século XVIII é possível encontrar no dicionário do padre Raphael
Bluteau:
Valido. Aquele que tem valimento, que pode com alguém mais que os outros.
Os Persas chamam os validos, olhos e orelhas dos Príncipes, porque só por eles
vem, e ouvem os Príncipes. O que ensina a reinar, pode dizer que ele mesmo
reina; o Valido, que com o Príncipe faz quanto quer, na realidade é o próprio
Príncipe. Esta é a maior desgraça de um reino, reduzir-se toda a administração
do Estado a um só, e a um, que não é seu próprio senhor. Verdade é que se não
pode tirar a um Príncipe a liberdade de escolher sujeito benemérito, em cuja
capacidade descanse; tolher ao Soberano o levantar humildes, e engrandecer
pequenos, é tirar-lhe da mão o cetro, e apagar a mais viva luz da sua Coroa;
neste engrandecimento está interessada a República, porque é bem dela que se
veja premiada a virtude (...)292
289
SUBTIL, José. Pombal e o Rei: valimento ou governamentalização. Ler história, nº 60 – Vária, 2011.
Parágrafo 61.
290
SUBTIL, José. Pombal e o Rei: valimento ou governamentalização. Ler história, nº 60 – Vária, 2011. Para
um síntese dessa discussão ver: HESPANHA, António Manuel. A Note on Two Recent Books on the Patterns of
Portuguese Politics in the 18th Century. e-JPH, Vol. 5, nº 2, Winter 2007.
291
BLUTEAU, Raphael. Privado. In:______. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico,
architectonico... Lisboa: Officina de Pascoal Silva, v. 1, 1720. p. 750.
292
BLUTEAU, Raphael. Valido. In: ______. Vocabulario Portuguez & Latino: áulico, anatômico,
architectonico...Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, v. 2, 1721. p. 354.
293
Nos dicionários de Antonio de Morais Silva, Eduardo de Faria e Francisco Solano Constâncio, por exemplo.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza composto pelo Padre D. Rafael Bluteau,
reformado e accrescentado por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.
106
Também nas edições de 1813, 1823, 1831. FARIA, Eduardo de. Novo Diccionario da Lingua
Portugueza...Lisboa: Typographia Lisbonense, 2ª Ed. Vol. 4, 1853. CONSTANCIO, Francisco Solano. Novo
diccionario critico e etymologico da lingua portuguesa. Paris: na officina typographica de Casimir, 1836.
294
BLUTEAU, Raphael. Privado. In:______. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico,
architectonico... Lisboa: Officina de Pascoal Silva, v. 1, 1720. P. 750. [Itálico do autor]. NATIVIDADE, Fr.
Francisco da. Lenitivos da dor. Propostos ao augusto e poderoso monarcha el Rey D. Pedro II Nosso Senhor, e
107
Saavedra Fajardo, por outro lado, não gostava do termo valido ou valimento, pois
segundo ele a natureza deste “ministério” era de tamanha importância que não deveria ser
tratada como uma graça do príncipe, e sim como um ofício, tal como de um presidente de
Conselho.
aplicados aos leaes Portuguezes no justificado sentimento da intempestiva morte da Serenissima Rainha, e
Senhora nossa, a Senhora D. Maria Sofia Isabela. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1700. P. 216-217.
295
“che se tù non vuoi privarti di Regno lascia i privati” (tradução minha). LETI, Gregorio. Le ombre apparenti.
Ombra quarta. In: Le visioni politiche sopra gli interessi più Reconditi, di tutti Prencipi, e Republiche della
Christianità. Germania, 1671. P. 115
296
“cesará tambíen la razon del nombre de Privado, y lo mas apetecido de su exercício, por que de solo esto se
compone que el servir en los Consejos, y dar su parecer en las cosas de oficio, está tan lejos de ser exercício de
Privado, que si no son quatro Embajadores, no había hombre, que llegue à sus Puertas”. (tradução minha).
GUZMÁN, Gaspar de (Conde Duque de Olivares). Reflexiones politicas y christianas que el Conde de Olivares
hizo al Señor Phelipe IV. In: Papeles satíricos sobre el Ministerio del Conde Duque de Olivares, en el reinado
de Felipe IV. (Manuscrito). P. 67-69v. [1626]. Disponível em: http://bdh-
rd.bne.es/viewer.vm?id=0000135556&page=1. Acesso em: 02/01/2019.
297
“El nombre de valimiento hace odiosa esta ocupación. Si tuviera nombre propio de prefectura o presidencia
mayor, no reparara en ella la envidia, como no reparaba en los prefectos de Roma, que era segundos césares en el
gobierno de la ciudad. La dificultad se reduce a la elección de un tal ministro, que con generosidad atribuya a su
rey los aciertos y las mercedes, y con fiel sufrimiento tolere los odios del pueblo en los errores del gobierno, aun
cuando no fuese suya la culpa; que sin divertimiento asista, sin ambición negocie, sin desprecio escuche, sin
pasión consulte y sin interés resuelva; que a utilidad y conveniencia de su rey, no a las suyas y a su conservación,
encamine las negociaciones públicas, que es la medida por donde se conoce si es justo o injusto el valimiento.
Cuando estas calidades concurren en un ministro, digno es de toda la gracia de su príncipe, porque este tal no es
108
Presidência maior ou ministro são os dois termos sugeridos pelo autor. Ao que tudo
indica, do século XVII até o final do XVIII, paulatinamente, os termos “valido” e “privado”
declinam completamente. Em parte devido à própria função que desempenhavam, em parte
devido às ambiguidades do próprio nome. Quanto ao primeiro elemento, é preciso salientar
que muitas das críticas aos privados, favoritos, validos ou ministros, eram consequências das
tentativas de acomodá-los dentro da estrutura política, jurídica e teológica que prevalecia no
período.
É difícil encontrar nos textos orientados pelo paradigma da dicotomia público/privado
qualquer referência a “privado” no sentido tratado aqui. O que se pretendeu demonstrar é que
este sentido era, para além do significado mais comum e menos politizado de “despojar”, um
dos mais importantes e central nos debates políticos do período. Fruto de intensas
elaborações, os privados ou validos, favoritos, ministros, foram figuras centrais na política
europeia dos séculos XVI, XVII e XVIII. Semântica e culturalmente, no mundo ibérico,
“privado” não parece se opor à público muito claramente ao menos até as décadas finais do
setecentos. A compreensão do privado enquanto um amigo do rei abala os fundamentos de
uma existência e um significado que depende, para fazer sentido, de estar emparelhado de
maneira antagônica com o conceito de público.
Por fim, a iconografia sobre o “privado” no período foi bastante rica. Esses homens
entendiam a importância da imagem visual para ressaltar, defender e demarcar a sua posição
política singular no âmbito da república. De acordo com Jonathan Brown, no geral, os
privados pertenciam à pequena ou média nobreza:
Eram carreiristas no círculo mais seleto da corte e nos níveis mais altos de uma
sociedade onde as aparências, ou a conduta pública, estavam fortemente
carregadas de significado. Os quadros encomendados por nossos validos são
projeções das alterações que iam experimentando seus estados de realidade. O
que se pretendia era a autodefinição, cuja finalidade era oferecer imagens
reluzentes e idealizadas destas personalidades complexas e muitas vezes
carentes de simpatia298.
compañero del imperio, sino sustituto del trabajo” (tradução nossa). SAAVEDRA FAJARDO, Diego de.
Introducciones a la política y razón de estado del Rey Católico Fernando. Manuscrito. 1631. p. 59-60.
Disponível em: http://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000082971&page=1. Acesso em: 02/01/2019.
298
BROWN, Jonathan. “Peut-on assez louer cet excellent ministre?” Imágenes del privado en Inglaterra, Francia
y España. In: ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El mundo de los validos. Madrid: Taurus Ediciones, 1999.
Paginação irregular. (e-book).
109
Juan Antonio de Vera y Figueroa, o “conde de La Roca”, inseriu na capa de seu livro
El Fernando, um poema heroico dedicado a Felipe IV, uma imagem de seu amigo conde-
duque de Olivares, em que se reforçavam os tópicos da abnegação e do desinteresse. À
esquerda aparece Olivares nu, com o dizer “de interesse” logo abaixo. À direita representa-se
Olivares novamente, mas vestido com trajes simples e com os dizeres “de valor”. Nos seus
ombros repousa o globo terrestre. Na parte de cima a frase “esta sombra é meu sol”, e na parte
de baixo: “Para sustentar melhor, o grave peso que vês, a lealdade reside aqui nua de
interesse, vestida ali de valor”.
110
Fonte: VERA Y FIGUEROA, Juan Antonio. El Fernando o Sevilla restaurada…Milan: por Henrico Estefano,
1632.
111
Também o “público” e o “privado” pode ser vislumbrado por meio da iconografia dos
privados. A obra La recuperación de Bahía de Todos los Santos, pintada em 1635 por Juan
Bautista Maíno, oferece um bom exemplo. Estima-se que o pintor tenha ganhado 200 ducados
provenientes dos gastos secretos do rei Felipe IV. A obra foi destinada a decorar o Salón de
Reinos do palácio de Buen Retiro, e compunha uma série de outras onze pinturas
encomendadas a comemorar as vitórias da monarquia hispânica no primeiro período da
Guerra dos Trinta Anos (1621-1630). Olivares, novamente, parece ter sido o responsável pela
iniciativa. Destaca-se também o fato de que o Salón de Reinos era o lugar mais importante do
palácio, no qual aconteciam diversos espetáculos e festejos, configurando-se como um espaço
de grande circulação299.
Fonte: Juan Batista Maíno. 1634 - 1635. Óleo sobre lienzo, 309 x 381 cm.
299
BROWN, Jonathan. “Peut-on assez louer cet excellent ministre?” Imágenes del privado en Inglaterra, Francia
y España. In: ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El mundo de los validos. Madrid: Taurus Ediciones, 1999.
112
Como eu espero demonstrar mais a frente, em dois sentidos o público está presente
nesta obra. No primeiro enquanto “o comum dos homens”, o geral, uma totalidade abstrata
que assiste ao discurso do comandante no que parece um palco de teatro destinado ao tipo de
“publicidade exemplar”. No segundo sentido, personificado pelo soberano, responsável pelo
“bem público” e pelo “interesse público”. Garantia da harmonia do corpo e da superação dos
interesses particulares, por um lado, e condição necessária para realização do destino
metafísico do bem comum, política e teologicamente, por outro. No momento, interessa
pensar no papel do privado. Atrás do monarca, mas em uma posição de destaque, Olivares
segura uma espada, representação da justiça, e um ramo de oliveira, símbolo da paz.
Considerando toda a discussão realizada neste subcapítulo e tomando os inúmeros debates e
diferentes posicionamentos acerca da presença destas pessoas nas cortes europeias, é
inevitável imaginar a força dessas representações, os debates nos quais elas se inseriam, os
problemas que levantavam, e os caminhos que tomaram.
No século XVII e XVIII em Portugal, público era na maior parte das vezes associado
ao termo particular. Para compreender a relação entre estes conceitos é preciso se ater a duas
300
“Fadrique de Toledo, el victorioso comandante de las fuerzas conjuntas españolas y portuguesas que
expulsaron a los holandeses de la bahía de Todos los Santos de Brasil en 1625, arenga a los soldados holandeses
arrodillados. Señala hacia un tapiz que muestra al rey pisando las personificaciones de la Herejía y la Traición,
mientras Olivares coloca el pie derecho sobre el pecho de la bestia negra de los privados, la Discordia. A la
izquierda está situada Minerva, que entrega al rey la palma de la victoria y coloca una corona de laurel, símbolo
de la virtud, sobre la cabeza del monarca, diestramente asistida por la figura rolliza del privado”. (tradução
minha). BROWN, Jonathan. “Peut-on assez louer cet excellent ministre?” Imágenes del privado en Inglaterra,
Francia y España. In: ELLIOTT, John H. (Dir. Congr.) El mundo de los validos. Madrid: Taurus Ediciones,
1999. Paginação irregular. Optei aqui pela tradução do termo “rolliza” para “imponente”, pois apesar de se
referir a “gordo”, “musculoso”, sugere também “forte”, “saudável”, uma imagem grande e imponente do
privado.
113
reciprocamente igualdade em o que se dá, e recebe entre particulares pessoas”305. Essa ordem
jurídica, que fundamentava a teoria e a prática política, segundo Carlos Garriga, possuía três
características centrais: a preeminência da religião; a configuração tradicional e pluralista; e o
probabilismo.
Quanto à primeira das três características, a religião ocupava um papel central na
estruturação e fundamentação do direito. Na verdade, seria incompreensível o direito e a lei
no Antigo Regime caso não se compreendesse a complexidade normativa que se formava da
relação intrínseca entre a ordem jurídica e a teologia moral. Basta pensar na justificativa que
faz Francisco Suárez sobre a razão pela qual a lei deveria ser tema do teólogo. Primeiro
porque tanto a lei divina quanto a lei humana vieram de Deus. Segundo, porque a lei existe
para garantir a retidão da moral e da consciência dos homens, e a medida da obediência das
leis reside na fé306.
A segunda característica diz respeito ao fato de que o ordenamento jurídico era
“integrado por ordens distintas dotadas de conteúdos normativos e diferentes legitimidades”.
Os inúmeros corpos que habitavam essa sociedade possuíam seus direitos tradicionais, e estes
eram “articulados por uma lógica de integração (e não de exclusão), cultivada pela
jurisprudência, o saber (ou a doutrina) dos juristas”307. A terceira se refere à forma de atuação
dos juristas, a capacidade de estabelecer um consenso entre diferentes perspectivas, propondo
soluções de caso a caso. O direito seria antecedente a regra e as decisões seriam justificadas
dentro de casos particulares: “vencem ou se impõem porque convencem no marco de uma
cultura compartilhada (e não porque seja expressão de uma certeza jurídica definida: entenda-
se, legalmente preceituada)”308.
Partindo dessa forma de compreensão da sociedade no Antigo Regime não é de se
estranhar que público e particular estivessem associados. Público era compreendido ou como
aquilo que era comum, uma atribuição abstrata e pretensamente totalizante, ou como
encarnado na própria pessoa do rei. Dizia-se também das pessoas que possuíam ofícios,
representantes do rei. Particular, por sua vez, eram as partes de que se compõe o todo. A
305
ABOYM, Diogo Guerreiro Camacho de. Escola moral, política, christãa, e jurídica. Lisboa: Officina de
Bernardo Antonio de Oliveira, 3ª Ed., 1759 [1733]. Sem paginação.
306
SUÁREZ, P. Francisco. Prólogo del Autor. In: SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios
Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, 1918 [1612]. As passagens
usadas foram comparadas com a respectiva versão em latim, e anotei, quando pertinente, qualquer detalhe acerca
da tradução nas notas de rodapé. A versão consultada foi: SUÁREZ, P. Francisco. Tractatus de Legibus, Ac Deo
Legislatore. Antuérpia: Ioannem Keerbergium, Tomo I, 1613.
307
GARRIGA, Carlos. Orden jurídico y poder político en el Antiguo Régimen. Istor: Historia y derecho,
historia del derecho, nº 16, Primavera, 2004. P. 14-15.
308
GARRIGA, Carlos. Orden jurídico y poder político en el Antiguo Régimen. Istor: Historia y derecho,
historia del derecho, nº 16, Primavera, 2004. P. 15.
115
relação entre o comum (público) e as partes (particulares) que o compõe insere-se na própria
lógica de uma monarquia corporativa e de uma perspectiva assentada na ideia de integração, e
não de exclusão. A justa distribuição da justiça “obriga o público aos particulares, e os
particulares ao público”309.
O uso de “pessoas particulares”, que é frequente no período, remete ao próprio
conceito de pessoa e sua caracterização social310. De antemão, é preciso descartar o conceito
de “indivíduo”. Na obra de Francisco Velasco Gouvea aparece uma única vez e no sentido de
que o Reino é indivíduo311, ou seja, não deve ou pode se dividir. Segundo António Manuel
Hespanha, as definições das pessoas como “pai”, “vizinho”, “clérigo”, não eram apenas
nomes, mas qualidades pertencentes à própria natureza da pessoa. Isso significaria que a
autorrepresentação dessa sociedade era da existência de grupos de pessoas portadoras de uma
mesma função social e titulares de um mesmo estatuto, os estados das pessoas312.
Nos marcos de uma cultura jurisdicional as pessoas eram vistas como objetos do
direito, e não como sujeitos. As pessoas, por sua vez, não podiam ser consideradas isoladas
dos seus estados: a condição dos homens em sociedade. Não havia pessoa sem estado, mas
havia homens sem pessoa, como os escravos, pois ter condição de pessoa implicaria em ter
estado. Nesse sentido, segundo Bartolomé Clavero, para o período é mais condizente tratar
dos homens que tem condição de pessoa do que daqueles que são pessoa313.
Costuma-se utilizar, com razão, a imagem do mundo como um teatro e das pessoas
como atores. As pessoas seriam aquilo que elas representavam neste palco. Portanto, a sua
função social, o papel que se interpreta, as “qualidades” que se tem, estabelecem a própria
noção de pessoa. Como lembra Hobbes, pessoa vem do latim persona, “disfarce ou aparência
309
ABOYM, Diogo Guerreiro Camacho de. Escola moral, política, christãa, e jurídica. Lisboa: Officina de
Bernardo Antonio de Oliveira, 3ª Ed., 1759 [1733]. Palestra II, Lição I, P. 177.
310
CLAVERO, Bartolomé. Cádiz 1812: antropología e historiografía del individuo como sujeto de constitución.
Quaderni Fiorentini: per la storia del pensiero giuridico moderno, nº 42, 2013; ______. La máscara de Boécio:
antopologías del sujeto entre persona e individuo, teología y derecho. Quaderni Fiorentini: per la storia del
pensiero giuridico moderno, nº 39, 2010.
311
GOUVEA, Francisco Velasco. Justa acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV. Tratado
analytico dividido em três partes. Ordenado, e divulgado em nome do mesmo Reyno, em justificação de sua
ação. Lisboa: Officina de Lourenço de Anveres, 1644. P. 247.
312
HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – séc. XVII.
Coimbra: Livraria Almedina, 1994. P. 307-308. Assim também o afirma Jesús Vallejo: “La sociedad se organiza
en cuerpos, formados por individuos que tienen individualmente importancia para la conformación jurídica de la
sociedad sólo en la medida en que forman parte de esos cuerpos, y que ejercen funciones distintas según la
posición que dentro de ellos les corresponda”. VALLEJO, Jesús. El Cáliz de Plata. Articulación de órdenes
jurídicos en la jurisprudencia de ius commune. In: Revista de Historia del Derecho, n. 38, Julio-Diciembre 2009.
P. 11.
313
CLAVERO, Bartolomé. Cádiz 1812: antropología e historiografía del individuo como sujeto de constitución.
Quaderni Fiorentini: per la storia del pensiero giuridico moderno, nº 42, 2013. P. 218.
116
Pelo que, pois que o benefício da representação obra, que os filhos representem
a seus pais com estas qualidades, e prerrogativas pessoais; assim na sucessão do
314
HOBBES, Thomas; SMITH, W. G. Pogson. Hobbes’s Leviathan: Reprinted from the edition of 1651. Oxford:
Clarendon Press, 1909. P. 123. Argumento semelhante desenvolve o Padre Antonio Vieira: “Este mundo é um
teatro; os homens as figuras que nele representam, e a história verdadeira de seus sucessos uma comédia de
Deus, traçada e disposta maravilhosamente pelas idades de sua Providência”. VIEIRA, Antonio. Historia do
futuro. Livro anteprimeyro. Lisboa: na officina de Antonio Pedrozo Galram, 1718. P. 197-198.
315
TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da
Universidade, V. 1, 1981. P. 306.
316
GOUVEA, Francisco Velasco. Justa acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV. Tratado
analytico dividido em três partes. Ordenado, e divulgado em nome do mesmo Reyno, em justificação de sua
ação. Lisboa: Officina de Lourenço de Anveres, 1644. P. 139.
117
Reino, e das coisas que hão de andar em uma só pessoa, como nas heranças
ordinárias; bem segue, que da mesma maneira a filha há de representar a seu pai
na sucessão destes Reinos, com a prerrogativa de varão; porque consta que as
ditas qualidades, e prerrogativas apontadas supra, não estão comunicadas aos
filhos por especial disposição da lei, mas somente se seguem da concessão
geral, porque o benefício da representação, foi dado aos filhos, para
representarem a seus pais, e entrarem em seu lugar, e grau, e sucederem em seu
direito317.
317
GOUVEA, Francisco Velasco. Justa acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV. Tratado
analytico dividido em três partes. Ordenado, e divulgado em nome do mesmo Reyno, em justificação de sua
ação. Lisboa: Officina de Lourenço de Anveres, 1644. P. 232.
318
GOUVEA, Francisco Velasco. Justa acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV. Tratado
analytico dividido em três partes. Ordenado, e divulgado em nome do mesmo Reyno, em justificação de sua
ação. Lisboa: Officina de Lourenço de Anveres, 1644. P. 232.
319
GOUVEA, Francisco Velasco. Justa acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV. Tratado
analytico dividido em três partes. Ordenado, e divulgado em nome do mesmo Reyno, em justificação de sua
ação. Lisboa: Officina de Lourenço de Anveres, 1644. P. 240.
320
GOUVEA, Francisco Velasco. Justa acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV. Tratado
analytico dividido em três partes. Ordenado, e divulgado em nome do mesmo Reyno, em justificação de sua
ação. Lisboa: Officina de Lourenço de Anveres, 1644. P. 241.
118
possível falar abertamente da ilegitimidade filipina”321. Ele teria inserido um princípio oculto
que poderia ser utilizado pelos legitimistas portugueses, como de fato foi durante a
Restauração. Para Torgal, esta pode ter sido a intenção do autor tendo em conta que depois de
1640 passa a defender a legitimidade de D. João IV322. Esse princípio oculto diz que quando o
“bem comum” ou a “utilidade pública” exigem é possível não seguir a ordem de sucessão de
um Reino. Argumento que será reforçado por Francisco Velasco Gouvea anos depois,
conforme já apontamos. A questão é que, para Araújo, quando o primogênito não tem “as
partes necessárias para governar o Reino” gera-se uma situação de exceção:
A ideia de pessoa pública como “pai geral de seus vassalos” tem a ver com aquele
sentido de público vinculado ao rei, responsável por levar a respublica em direção ao “bem
comum”324. A tradução para “procomunal” pode ser tanto de “utilidade pública” como de
321
TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da
Universidade, V. 1, 1981. P. 227.
322
Miguel Geraldes Rodrigues apresenta uma perspectiva diferente em relação à atitude de João Salgado de
Araújo. Segundo ele, “colocando a sua pena ao serviço de quem mais pagasse, João Salgado de Araújo obteve
alguma notoriedade, e a proteção e salvaguarda financeira necessárias, que permitiram com que finalmente se
pudesse concentrar no desenvolvimento da sua obra, constituindo a Ley Regia de Portugal um passo que marcou
a sua passagem da imagem pejorativa do arbitrista para o respeitado tratadista no contexto peninsular”. A
mudança de atitude de Araújo é vista pelo autor como “oportunista”: “A grande discrepância registrada em
algumas das suas ações ou dos seus estudos revela o enorme pragmatismo com que Salgado de Araújo buscara a
sua fortuna e a sua afirmação social, podendo ser igualmente acusado de oportunismo. Tratou-se no fundo de um
caso de um agente do império, que procurou o seu espaço no contexto da monarquia dual após o abandono da
sua rede familiar, vendo-se na necessidade de obter rendimentos, tendo para tal servido diferentes facções e
personalidades da mesma forma que à partida, serviria a sua família”. RODRIGUES, Miguel Geraldes. Do Reino
a Angola – Agentes, arbítrios e negócios na rede familiar de João Salgado de Araújo. Dissertação de Mestrado,
2012. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2012. p. 104.
323
“Y la causa desta excepcion es, porque en la sucession de un Reyno, se considera la utilidad de los vassallos,
y no el provecho particular de la persona del Rey que sucede, porque el Rey no se elige para si, ni para su
provecho, sino para El procomunal del Reyno, que por estas palabras lo dixo el Rey don Afonso el sabio:
persona publica, padre general de sus vassallos, como lo dizen Lucas de Pena, y cabedo” (tradução nossa; itálico
do autor). ARAÚJO, João Salgado. Ley Régia de Portugal. Primeira parte. Madrid: Por Juan Delgado. 1627. P.
107-108. § 63.
324
De acordo com Senellart, a ideia de persona publica ganha uma especial acepção com João de Salisbury no
século XII, configurando-se, segundo ele, como uma das “chaves da invenção do Estado moderno” (P. 154). A
partir de Salisbury, salus publica, persona publica e interesse público se funde por meio da equidade (aequitas).
Nas palavras de Salisbury: “O príncipe, portanto, é o ministro do interesse público e o escravo da equidade
(publicae ergo utilitatis minister et aequitatis servus est princeps), e ele assume a pessoa pública (personam
publicam gerit) na medida em que pune as injustiças e os delitos de todos, e todos os crimes, com equidade”.
SALISBURY, John. Policraticus, 515 b 15-18, t. 1, P. 238 apud SENELLART, Michel. As artes de governar.
Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006. P. 151.
119
“bem comum”. Era corrente a percepção do caráter dual do rei, enquanto pessoa pública e
pessoa particular, que acabava por tomar a forma de rei ou parte. Dizia Velasco Gouvea que:
Porém, como o Rei Católico, quando vagaram estes Reinos por morte do Rei
Dom Henrique, nem se achava na posse deles, nem contendia sobre eles com
seus vassalos, senão com outros Príncipes supremos, e com outros senhores,
que lhe não eram sujeitos; não podia dizer, que como Príncipe, e senhor
soberano, não devia estar sujeito nesta matéria, coativamente a juízo, e sentença
de outras pessoas. Pois nela, não entrava ainda como Rei, senão como parte,
usando do direito de pessoa particular. Nem também entrava como possuidor,
que ainda o não era, para se poder justamente defender na posse, como o Rei, e
não admitir sentença de outro juízo325.
E se prova, porque assim como uma pessoa particular, não pode in totum
renunciar o poder de sua legitima defesa, nem jactar sua vida, conforme a regra
da l. non tantum ff. de appellat. E relat. cap. contingit, 02. de sentent.
excommunicationis. Glos. in l. pactum inter heredem, ff, de pact. Assim também
a Comunidade pública, que tem poder para se governar, e defender, não podia
in totum renunciar este poder, e tirá-lo de si totalmente; pois em um, e outro
caso, é concedido por direito natural; e na Comunidade pública, fica mais
necessário, e útil à sua defesa, em ordem ao bem público, do que na pessoa
particular. E por isso à fortiori, se a particular a não pode in totum renunciar;
menos o poderá fazer a pública326.
325
GOUVEA, Francisco Velasco. Justa acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV. Tratado
analytico dividido em três partes. Ordenado, e divulgado em nome do mesmo Reyno, em justificação de sua
ação. Lisboa: Officina de Lourenço de Anveres, 1644. P. 299. Da mesma maneira argumentava Aboym, para o
qual era preciso evitar os “mimos” destinados aos Ministros em seu ofício público, quando “não há razão para se
considerar que o mesmo mimo, que se ofereceu ao Ministro público, se oferecerá sendo pessoa particular”.
ABOYM, Diogo Guerreiro Camacho de. Escola moral, política, christãa, e jurídica. Lisboa: Officina de
Bernardo Antonio de Oliveira, 3ª Ed., 1759 [1733]. Palestra II, Lição XV, P. 278.
326
GOUVEA, Francisco Velasco. Justa acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV. Tratado
analytico dividido em três partes. Ordenado, e divulgado em nome do mesmo Reyno, em justificação de sua
ação. Lisboa: Officina de Lourenço de Anveres, 1644. P. 32.
120
327
Outros autores fundamentais para a formulação das teorias corporativas de poder que prevaleciam em
Portugal e Espanha, de acordo com Villalta, eram: Roberto Belarmino (1542-1621), Martinus Becanus (1563-
1624), Azpilcueta Navarro (1592-1686), Francisco de Vitória (1485-1546), Domingo de Soto (1595-1660), Luís
de Molina (1536-1600) e Juan de Mariana (1536-1624). VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-
brasileiro sob as luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2015.
328
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, 1918.
121
“corpo político”, cujo princípio e finalidade eram a ideia de “bem comum”329. “Comum” e
“público” eram conceitos correlatos, muitas vezes usados como sinônimos, mas por vezes
distinguíveis.
Tendo o “bem comum” como princípio e finalidade do corpo político, a lei era a forma
de realiza-lo em sua plenitude. Era através dela que se garantia a retidão moral e das
consciências em direção à felicidade e concórdia. Dessa forma, independente se trata da lei
divina, elaborada diretamente por Deus, ou da lei humana, inscrita nos homens também por
Deus, era condição inerente às leis terem sido instituídas para a comunidade e promulgadas
sempre em prol do “bem comum”; não eram, portanto, instituídas e nem destinadas
diretamente às personas singularis330. Conforme Tomás de Aquino, a lei é a regra e medida
dos atos humanos, esta regra e medida são estipuladas pela razão, logo a lei é algo da razão. A
razão, por sua vez, ordena para um determinado fim, e essa finalidade é o próprio princípio do
agir. Se a finalidade última da vida humana é a felicidade e a beatitude, necessário é que a lei
se ordene sempre para a beatitude. Afirma, por conseguinte que:
Suárez argumenta no mesmo sentido: “não há dúvida que com o nome de lei se
significa o preceito público a alguma comunidade, e não somente imposto a uma ou outra
pessoa singular”332. Uma das objeções que se colocava a respeito disso era que a lei se refere
à pessoa real e não à pessoa fictícia, ou seja, “a comunidade é pessoa fingida, e cada homem
particular é verdadeira pessoa”333, ainda que a ficção sempre supusesse a verdade que imita. O
329
HANSEN, João Adolfo. Categorias metafísicas e teológico-políticas em Vieira. In: SCRIPTA, Belo
Horizonte, v. 11, n. 21, 2º sem. 2007, P. 187-202.
330
O verbete singularis no dicionário de Jerónimo Cardoso é traduzido por “cada hum, ou de hum em hum”,
“coisa singular” ou “singularmente”. CARDOSO, Jerónimo. Dictionarium latino lusitanicum et vice versa
lusitanico latinum : cum adagiorum ferè omnium iuxta... Ulyssipone : Ex officina Petri Crasbeeck, 1619. P. 212.
331
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Questão 90, Art. II. In: _______. Escritos políticos de Santo Tomás de
Aquino. Tradução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997. P. 38.
332
“no hay duda que con el nombre de ley se significa el precepto público a alguna comunidad, no solamente
impuesto a una que otra persona singular”. SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador.
Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, Cap. VI, 1918. P. 114.
333
“la comunidade es persona fingida, y cada hombre particular es verdadera persona”. SUÁREZ, P. Francisco.
Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid: Hijos de Reus, Tomo I,
Cap. VI, 1918. P. 112.
122
autor concedia que a comunidade fosse pessoa fictícia, mas argumentava que a lei se dava
pela comunidade devido à concepção específica de “comum” a que se referia.
do pai em relação à mulher, ou em relação ao filho, servos e criados. Mais do que isso, no
entanto, é o fato de que na casa “não se reúnem as pessoas particulares como membros
principais para compor um só corpo político”336. Isso significa que a especificidade, e
diferença que de fato existe, entre o domus privatus e a respublica não se configura como uma
relação de oposição. E nem basta com isso esperar pela mera conclusão da “não oposição”. A
sua relação é análoga a da parte com o todo, do particular e do público nos discursos jurídicos
e teológicos do Antigo Regime.
Dessa forma, o principal motivo de a casa ser uma comunidade imperfeita, que é uma
“imperfeição quase natural de tal comunidade”, é:
porque não se basta para procurar-se a felicidade humana do modo que se pode
procurar humanamente, ou (para falar mais claro) as partes de tal comunidade
não se prestam auxílio mútuo suficiente ou mútua ajuda de que necessita a
sociedade humana para seu fim ou para sua conservação, e, portanto, tal
comunidade se ordena quase naturalmente à comunidade perfeita, como a parte
ao todo, e portanto, a potência legislativa não está em tal comunidade, mas
somente na perfeita337.
Assim como na passagem já citada de Tomás de Aquino em que dizia que “dado
qualquer parte ordenar-se para o todo como o imperfeito ao perfeito”, Suárez vê uma
tendência natural de que as partes se integrem no todo338. Se a casa é imperfeita de maneira
“quase natural”, ela também se ordena em direção à comunidade perfeita “quase
naturalmente”. Tal como Aristóteles, o autor concebe que o “homem é animal social e deseja
natural e justamente viver em sociedade”339. Assim como a pessoa singular era parte da
comunidade, a casa ou qualquer “comunidade imperfeita é parte da perfeita”, que é a cidade.
336
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, Cap. VI, 1918. P. 123.
337
“porque no se basta para procurarse la felicidad humana del modo que puede procurarse humanamente, o
(para hablar más claro) las partes de tal comunidad no se prestan mutuamente suficiente auxilio o mutua ayuda
de que necesita la sociedad humana para su fin o para su conservación, y, por tanto, tal comunidad se ordena
cuasi naturalmente a la comunidad perfecta, como parte al todo, y por tanto, la potestad legislativa no está en tal
comunidad, sino sólo en la perfecta”. SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad.
de D. Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, Cap. VI, 1918. P. 124-125.
338
Este é um dos pontos fundamentais para se entender a lógica de integração que presidia a relação do público e
do particular no Antigo Regime. Dizia Aboym que: “É cada um dos cidadãos parte da República, e se a parte se
deve conformar com todo o corpo; segue-se, que a lei, que obriga todo o corpo, obriga a parte; e daqui é que se
chama Ley de ler-se; e de ligar; porque liga a quem a lê, obrigando a ser virtuoso”. ABOYM, Diogo Guerreiro
Camacho de. Escola moral, política, christãa, e jurídica. Lisboa: Officina de Bernardo Antonio de Oliveira, 3ª
Ed., 1759 [1733]. Palestra II, Lição II, P. 183.
339
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo III, Cap. I, 1918. P. 8.
124
Cada cidade ou comunidade perfeita, por sua vez, quando conservadas em justiça e paz, são
“partes” necessárias para “o bem do universo”340.
A comparação que Suárez faz da casa ou da família com uma comunidade imperfeita
não é a única e nem consensual no período. Porém, explicita que não é bem verdade que o
governo é uma mera extensão ampliada da casa, e nem que estes fazem partes de universos
distintos. O ponto é que, por analogia, governar bem uma casa revela os valores necessários
para governar bem a república. Nesse sentido, as regras éticas de comportamento integravam
a casa/família e a república. Contudo, como impera na casa o poder de dominação do pater
familias e devido ao número reduzido de membros, ela não se direciona ao bem comum,
portanto, ao público. Para isso, era necessário o poder de jurisdição, responsável por unir estas
partes em um todo harmônico e dispô-los na comunidade universal católica.
A oeconomia, o governo da casa, revelava, portanto, os valores necessários para o
reconhecimento do direito político do pater familias. Se o poder de dominação sugere certa
autonomia e uma orientação para o “interior” da casa, este reconhecimento público, e a
própria ostentação do prestígio social, orientavam a ação do pai de família para o “exterior”,
habilitando-o às funções políticas pelo exemplo da correta administração doméstica. Dessa
forma, como diz Romina Zamora: “casa, cidade e república conformavam uma trindade
indissociável dentro de uma lógica de autogoverno corporativo”341.
Mas voltando a Suárez, a perspectiva de que a lei se impunha sempre ao “comum” não
era oposta à possibilidade de que se aplicassem diferentemente as partes. Isto ocorria de três
modos: leis dadas e específicas a determinados cargos ou ofícios; leis destinadas a certos
gêneros e condições, como para plebeus, nobres, “descendentes dos hebreus”, “ou para os
conversos dos Sarracenos”; leis dadas para habitantes de certas partes da cidade, ou para uma
população e não para outra. Garantida a justiça da lei, para o autor, todas essas “partes”
possuíam “modos de generalidade” que eram suficientes para a essência da lei (o bem
340
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo III, Cap. II, 1918. P. 25. Semelhante consideração realizou Michel Senellart, ainda
que não se compartilhe da sua conclusão: “um fio contínuo, com efeito, liga a conduta de si, a administração
doméstica e a direção do Estado. O príncipe governa seu reino da mesma maneira que seus próprios desejos, sua
mulher, seus filhos, seus domésticos: trata-se, em cada nível, de conduzir uma multidão para o fim virtuoso que
lhe corresponde. Simplesmente a dificuldade aumenta com o número. O rei é aquele que, em sua atividade
diretiva, tem que se haver não só consigo mesmo e com sua família, mas com a maior multidão possível. Por
causa dessa relação transitiva entre o governo de si, de sua casa e do reino, a ação pública é reduzida, na maioria
das vezes, às regras éticas do comportamento privado”. As regras éticas de comportamento, de fato, uniam os
diferentes níveis das partes do todo. Exatamente por isso é que também não faz sentido falar de uma suposta
“invasão” do privado no público, pois corrobora para uma visão anacrônica de que o “público” devia funcionar
de maneira distinta do “privado”, o que não corresponde para o período. SENELLART, Michel. As artes de
governar. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006. P. 31.
341
ZAMORA, Romina. Casa poblada y buen gobierno: Oeconomia católica y servicio personal en San Miguel
de Tucumán, siglo XVIII. Bueno Aires: Prometeo Libros, 2017. P. 26.
125
comum). A justificativa, no entanto, não era apenas de que guardavam certa generalidade,
mas que também participavam daquela “distribuição acomodada”, ou seja, da justiça
distributiva que garantia o respeito às suas partes e funções, ao mesmo tempo em que as
ordenava em uma unidade harmônica342.
Impõe-se, entretanto, a necessidade de compreender o que era e como era possível o
privilégio. De acordo com Suárez, e como era tratado em outros textos (no Digesto, por
exemplo), privilégio podia ser chamado de “lei privada”, porque se concede em “proveito
privado do privilegiado”343. O que o autor busca resolver através das duas formas do “bem
comum”. O primeiro bem comum da república é imediatamente comum, ou seja, é o que diz
respeito diretamente à comunidade, como os templos, as coisas sagradas, as magistraturas, os
pastos, etc. Já o segundo é o bem comum apenas secundariamente, quando uma lei destinada
a um particular (privilégio) redunda no benefício geral. E isto ocorria, pois a república “tem
certo alto direito sobre os bens próprios dos particulares, de sorte que pode se usar deles,
quando lhe forem necessários”, ou ainda porque como “cada pessoa é parte da comunidade, o
bem de cada um que não redunda no dano aos outros, é proveito de toda a comunidade” 344. O
privilégio, portanto, não é de fato um problema à lógica de articulação e integração.
O privilégio apenas podia ser visto como um problema se indiciasse uma
desorganização daquele sistema de justa distribuição de justiça, tal como apontamos no
subcapítulo anterior a partir do posicionamento de Sebastião César de Meneses em relação à
figura dos privados. Igualmente, se colocasse em dúvida a possibilidade de a lei ser instituída
e ter como finalidade a comunidade e o bem comum, o que, como dito, é objetado pelo autor a
partir da consideração de que caso isso ocorresse, não seria lei. De qualquer maneira, o
privilégio enquanto lex privata pode ser um elemento importante para compreender, inclusive,
os “privados dos reis”. Suárez divide os privilégios em gratuitos (liberais) e remuneratórios.
Os primeiros são dados “liberalmente”, não tomando em conta os méritos das pessoas que
recebem. Os segundos são dados para pessoas que possuem mérito para receber tal privilégio.
E assim afirma que:
342
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, Cap. VI, 1918. P. 126-127.
343
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, Cap. VII, 1918. P. 134.
344
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, Cap. VII, 1918. P. 136.
126
daquele a quem se concede, mas não como mérito e sim como indícios de
virtude, de prudência e diligência, as quais se têm em conta em tal pessoa
para confiar-lhe mediante o privilégio tal ministério ou um poder tão
grande345.
Nem todo privilégio, que para o autor é uma graça ou benefício, lida diretamente com
um “ministério” ou um “poder tão grande”. É possível que o autor estivesse tratando aqui dos
favoritos dos reis. Privilégio também era concebido por Suárez como um “favor”. De
qualquer modo, “direito particular” é privilégio. Sua finalidade é o bem comum, mas a
destinação imediata e a vantagem direta que se obtém dessa lei é de usufruto de uma pessoa
particular. Segundo explica o autor, ela “se chama lei privada porque concede um direito
especial – a margem do direito comum – a uma pessoa ou a uma comunidade particular”346.
Ainda que o autor usasse, por vezes, particular e privado ou comum e público em
sentidos semelhantes, como na definição dos costumes347, em outras parece haver diferenças
sutis, especialmente em relação aos termos público e comum. O “público” ganha especial
destaque quando trata de se referir às autoridades políticas e eclesiásticas, mormente para
aludir a cabeça do corpo político.
Assim, da mesma forma como discute o problema dos privilégios, Suárez responde às
objeções de que os tributos cobrados pelos príncipes eram leis dadas em benefício particular.
Segundo ele, considerando o tributo justo, aquilo que for em “proveito do príncipe” será “pelo
bem comum”, pois “sendo ele pessoa pública e comum, já também porque é justo o subsídio
dado ao príncipe pela república, é bem comum de toda república”348.
Além disso, era da essência da lei ser dada pelo “poder público”, dado que a lei era um
preceito imposto que obriga e força. Porém, nem todo poder de jurisdição (potestate
iurisdictionis) podia dar leis, como no caso dos juízes ordinários. A isto se requeria um poder
principal e superior. Conforme dissemos acima, esse poder superior vinha de Deus e era
345
“En efecto, algunas veces el privilegio se le concede a uno por el bien común, y, sin embargo, al darlo se
tienen en cuenta los buenos méritos de aquel a quien se concede, pero no como méritos sino como indicios de
virtud, de prudencia y de diligencia, las cuales se tienen en cuenta en tal persona para confiarle mediante el
privilegio tal ministerio o un poder tan grande”. SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de Leyes y de Dios Legislador.
Reproducción anastática de la edición príncipe de Coimbra de 1612 (bilingüe). Trad. De José Ramón Eguillor
Muniozguirren. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, Sección de Teólogos Juristas, Volumen V (Libro VIII),
Cap. 4, 1968. P. 881.
346
“se llama ley privada porque concede un derecho especial – al margen del derecho común – a una persona o a
una comunidad particular”. SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de Leyes y de Dios Legislador. Reproducción
anastática de la edición príncipe de Coimbra de 1612 (bilingüe). Trad. De José Ramón Eguillor Muniozguirren.
Madrid: Instituto de Estudios Políticos, Sección de Teólogos Juristas, Volumen V (Libro VIII), Cap. 4, 1968. P.
868.
347
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo VII, Cap. III, 1918.
348
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, Cap. VII, 1918. P. 139.
127
mediado pela comunidade, enquanto unidade, para certa cabeça, “pois não pode haver corpo,
a não ser monstruoso e mutilado, sem cabeça”. No caso do reino temporal, para o rei, no caso
da república aristocrática, para toda a república349. A respeito disso o autor concluí “que a lei
deve proceder de pessoa pública que tenha o cuidado de toda a multidão”350.
O uso de “multidão” para se referir ao conjunto de pessoas que se alienam do poder
em prol do rei, distingue-se do “público” e demarca uma linha divisória entre dois estágios. O
primeiro era antecedente à formação do corpo político, o segundo, condição necessária para
integrar as partes até então “monstruosas” em um corpo. O ponto é que, se público podia estar
associado ao comum, nos seus usos se revelava uma disposição específica que o associava
diretamente com a cabeça do corpo, o rei, o qual era a garantia da unidade, tão importante
para cumprir o destino teológico do bem comum351. Dessa forma, “público” era
primordialmente a cabeça do corpo:
Consta, pois, que o poder de dar leis humanas está somente na cabeça suprema,
qualquer que ela seja, porque nem pode proceder ao infinito nem pode haver
poder maior em outro naquela ordem352.
Frequentemente existem muitas coisas que são necessárias para o bem comum,
que não são para os particulares; e ainda que sejam às vezes, não as procuram
como comuns e sim como próprias; logo, na comunidade perfeita, é necessária a
349
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, Cap. VIII, 1918. P. 154.
350
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo I, Cap. VIII, 1918. P. 154. [itálico do autor].
351
Esta configuração aparece em Suárez, mas como será apresentado mais a frente, o rei não é a única “pessoa
pública”. As diversas corporações, que atuam no sentido da unidade desejada, são qualificadas como “públicas”.
352
“Consta, pues, que la potestad de dar leyes humanas solamente está en la cabeza suprema, cualquiera que ella
sea, porque ni puede procederse al infinito ni puede haber mayor poder en otro en aquel orden”. SUÁREZ, P.
Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid: Hijos de
Reus, Tomo I, Cap. VIII, 1918. P. 154.
353
“porque sólo en el príncipe o magistrado hay potestad pública que se ordene a acto público y verse cerca de
toda comunidad y tenga eficacia de obligar y forzar”. SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios
Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid: Hijos de Reus, Tomo III, Cap. I, 1918. P. 12.
128
Logo, muito maior é o perigo se cada um dos crentes põe como base de sua fé a
sua intepretação pessoal e seu sentido humano: assim, não só o evangelho de
Deus se converterá em evangelho do homem, mas também haverá tantos
evangelhos e tantas Escrituras como cabeças356.
Também neste caso o objetivo era garantir que a pluralidade se integrasse em uma
unidade – das opiniões pessoais para a verdade superior. O rei (potestas publica superior) era
a solução para integrar a comunidade e torna-la um corpo político, uma comunidade perfeita.
354
“y frecuentemente hay muchas cosas que son necesarias para el bien común, que no lo son para los
particulares; y aunque lo sean a veces, no las procuran como comunes sino como propias; luego en la comunidad
perfecta es necesaria la potestad púbica a la que pertenece por oficio intentar el bien común y procurarlo”.
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, Tomo III, Cap. I, 1918. P. 11.
355
PALTI, Elías José. An Archaelogy of the political: regimes of power from the seventeenth century to the
present. New York: Columbia University Press, 2016. P. 20.
356
“Luego mucho mayor es el peligro si cada uno de los creyentes pone como base de su fe su interpretación
personal y su sentido humano: así, no solo el evangelio de Dios se convertirá en evangelio del hombre, sino que
además habrá tantos evangelios y tantas Escrituras como cabezas”. SUÁREZ, P. Francisco. Defensa de la fe
catolica y apostolica contra los errores del anglicanismo. Reproducción anastática de la edición príncipe de
Coimbra de 1613. Trad. de José Ramón Eguillor Muniozguren. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, Sección
de Teólogos Juristas, Volumen I (Libro I y II), 1970. Lib. I, Cap. X, n. 7. P. 56.
129
Nesse caso, porém, era através da fé. Esta é mais firme e infalível se for assistida pelo Espírito
Santo e esta assistência “não foi prometida a cada um dos fiéis” para que formassem seus
“juízos particulares sobre seu sentido [das escrituras]”, e sim para a Igreja e seus pastores:
“logo, a base da fé não deve ser o juízo próprio e sim o juízo público da Igreja” 357. Isto
significa que, para Suárez, a “verdadeira fé cristã é comum e pública”, pois “se apresenta
como objeto da fé de todos, e a todos se lhes manda a unidade e concórdia nessa fé; logo é
uma coisa comum e pública”358. James I propunha, então, a fé particular e privada, enquanto o
autor ponderava a superioridade da fé pública e comum.
Era a partir de um jogo de interdependência e subordinação do particular e do público
que variavam as manifestações políticas dos conceitos. No temporal ou no espiritual, era
preciso que se instituísse uma autoridade (potestas publica) que mediasse e ordenasse as
partes em direção ao todo. Os interesses, as opiniões, a manifestação da fé particular, deveria
se unir em algo comum e público, que era, ao mesmo tempo, dependente das partes, mas um
todo distinto das mesmas. O problema do público e particular era a questão da articulação:
unidade do corpo e pluralidade dos membros. Através da justiça distributiva era possível
garantir a unidade e, ao mesmo, tempo, salvaguardar as especificidades de cada parte,
respeitando suas funções. Dos particulares dependia o público, e o público dependia dos
particulares.
Porém, no geral, concebia-se que essa interdependência devia ser dirigida para um fim
comum, correspondendo a uma assimetria de forças em relação, um dado natural da condição
hierárquica dos corpos. Dessa forma, para atingir o “bem comum” e a “felicidade e a
beatitude” era preciso subordinar as partes ao todo. Dessa subordinação dependia uma série
de premissas e argumentos: as leis eram instituídas para comunidade e pelo bem comum e não
visavam os particulares (ao menos em última instância); a felicidade e a beatitude apenas se
obtinham a partir da formação de um corpo harmônico; o modo de alcançar a verdade e evitar
as opiniões pessoais era a partir da verdadeira fé cristã, que era pública e não particular; e
colocando mais claramente este ponto, como afirmam Tomás de Aquino e Suárez: a parte
ordena-se ao todo naturalmente, assim como o imperfeito ordena-se ao perfeito também
naturalmente.
357
SUÁREZ, P. Francisco. Defensa de la fe catolica y apostolica contra los errores del anglicanismo.
Reproducción anastática de la edición príncipe de Coimbra de 1613. Trad. de José Ramón Eguillor
Muniozguren. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, Sección de Teólogos Juristas, Volumen I (Libro I y II),
1970. Lib. I. Cap. XI, n. 6. P. 59.
358
SUÁREZ, P. Francisco. Defensa de la fe catolica y apostolica contra los errores del anglicanismo.
Reproducción anastática de la edición príncipe de Coimbra de 1613. Trad. de José Ramón Eguillor
Muniozguren. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, Sección de Teólogos Juristas, Volumen I (Libro I y II),
1970. Lib. I. Cap. XI, n. 5. P. 59.
130
A submissão era também dos vícios e paixões pessoais. Por serem inevitáveis, deviam
ser controladas. Para Saavedra Fajardo:
Assim, da subordinação dependia a permanência do Império, pois este era uma “união
de vontades na ‘potestad’ de um: se estas se mantêm em concórdia, vive e cresce; se se
dividem, cai e morre; porque não é outra coisa a morte do que uma discórdia das partes” 360.
Sobre essa subordinação dos súditos em relação ao todo, João Adolfo Hansen diz que:
perfeita quando submetida ao soberano. Ao mesmo tempo, apenas recebe o poder de Deus,
necessário para a transmissão e consolidação do soberano, quando deixa de ser uma multidão
e se torna uma comunidade perfeita. Elías Palti vê nessa possível ambiguidade um processo
de simultaneidade, ou seja, receber o poder de Deus, se instituir enquanto comunidade e se
submeter à potestas pública ocorrem no mesmo momento362. De todo modo, a união entre a
comunidade e o soberano forma o corpo político. Seria tentador perceber na constituição do
corpo político uma única ideia de público, o que de fato existe, mas não é a única forma como
aparece nos usos de Suárez.
Parece-me, no entanto, que essa ambiguidade se torna visível em dois momentos. Em
primeiro lugar, na capacidade dos homens de escolherem o regime de governo. Para o autor, a
forma como os homens recebem o poder de Deus não é através de uma “instituição”, mas pela
inserção desse poder em sua natureza, que se manifesta quando se juntam em uma
comunidade. Por ser de direito natural, cabe aos homens escolherem o modo de governo que
desejam. Seguindo a distinção Aristotélica, Suárez apresenta os três modos possíveis:
Monarquia, Aristocracia e Democracia. Ainda que defenda a Monarquia, ou “regime de
somente uma cabeça”, como um modo superior de governo, afirma que a determinação do
modo de governo depende apenas do arbítrio humano. Portanto, antes de se submeter a uma
potestas publica, já tem os homens, ao menos parcialmente, a “virtude” para formarem uma
comunidade perfeita e utilizarem do seu poder para escolher a forma de governo. Nesse
sentido, a comunidade já pode ser vista como um público independente do soberano363.
Em segundo lugar, esse duplo sentido do público aparece no caso da tirania. Trata-se
da possibilidade do rompimento do pacto, inclusive pela legitimidade do tiranicídio. Nos
casos em que o soberano, sendo justo e legítimo na posse do reino, ou age contra o bem
comum, ou de maneira injusta, ou contra a religião católica, é considerado tirano. O rei tirano
“induz seus súditos à heresia, ou a outro gênero de apostasia, ou ao cisma público (publicum
schisma)”364. O “cisma público” pode ser considerado como a divisão entre a comunidade e o
soberano, o rompimento do pacto que mantêm o corpo político que, consequentemente, leva a
fragmentação do todo. Por mais que a comunidade somente se torne realmente um público a
partir da sujeição ao soberano, no caso de um governo tirânico:
362
PALTI, Elías José. An Archaelogy of the political: regimes of power from the seventeenth century to the
present. New York: Columbia University Press, 2016. P. 26.
363
Sobre essa “unificação” da comunidade antes da submissão ao soberano, ver: SKINNER, Quentin. As
fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia das Letras, 1996. P. 441-442.
364
SUÁREZ, P. Francisco. Defesa da fé católica. Edição compilada. Trad. Luiz Astorga & Tiago Gadotti. Porto
Alegre: Editora Concreta (Coleção Salamanca), 2015. Livro VI, Cap. IV, n. 1. P. 181.
132
Poderá a inteira república, com um conselho comum das cidades e dos nobres,
depor o rei, tanto pela força do direito natural, pelo qual é lícito repelir a
violência com a violência, quanto porque este caso necessário à própria
conservação da república é entendido como exceção no pacto pelo qual a
república transfere seu poder ao rei365.
Parece haver uma assimetria que elasticamente vai da união do corpo político à sua
dissolução. Nesses dois momentos a comunidade aparece enquanto um público independente
do soberano. Mas trata-se de exceções no pacto, pois no geral (em tempos de paz e
conservados na justiça) permanece a visão do público relacionada ao soberano e ao corpo
político. A fórmula do poder in actu e do poder in habitu defendida por Azpicuelta Navarro,
no qual Belarmino e Velasco Gouvea parecem se apoiar368, foi uma tentativa de lidar com este
problema, que para o propósito desse texto refere-se à ambiguidade do conceito de público:
concerne à comunidade, ao soberano, e ao corpo político. Mas a comunidade só exerce esse
poder em casos de exceção no pacto, no momento da formação e da dissolução do corpo
político. Ela existe enquanto um todo abstrato e universalizado, e que depende de estar
submetida ao “poder público” para se manter como uma unidade.
Em outras palavras, a comunidade se mantém como um público in habitu, mas no
momento em que faz uma doação absoluta para o exercício desse poder para o soberano no
intuito de sua conservação, o poder in actu, o soberano passa a ser o público. Por ser doação
absoluta o soberano não depende do “povo” para sua conservação, apenas para sua geração.
Como consequência, a comunidade é um público universalizado, unitário e abstrato e que
existe apenas habitualmente. Depende de estar subordinada ao soberano para manter sua
unidade, configurando-se como um sujeito coletivo passivo que apenas em dois momentos
parece exercer algum tipo de poder: na formação e na dissolução do corpo político369. Ela
aparece como um público nas justificativas e legitimidades das ações do poder público,
destinatária das benesses, mercês, justiças, ordenamentos, pareceres, regulamentos, etc.;
enquanto usufrutuária das ações destinadas ao seu bem: o “bem público”.
Quando Velasco Gouvea, em 1640, defendia que se uma pessoa particular não podia
in totum renunciar do seu direito de conservar a própria vida menos o poderia fazer uma
comunidade pública, ele estava retomando um tópico já presente em Suárez:
Logo, ainda que o rei tenha recebido do povo o domínio mediante doação ou
contrato, não será por isso lícito ao povo retirar-lhe tal domínio, nem usurpar
sua liberdade novamente - do mesmo modo que uma pessoa particular que
renunciou à sua liberdade e vendeu-se ou entregou-se como servo não pode, em
368
Francisco Suárez no Defensio Fidei também argumenta sobre o poder in habitu e o poder in actu,
concordando com Azpilcueta Navarro e o Cardeal Belarmino. SUÁREZ, P. Francisco. Defesa da fé católica.
Edição compilada. Trad. Luiz Astorga & Tiago Gadotti. Porto Alegre: Editora Concreta (Coleção Salamanca),
2015. Liv. III, Cap. III, n. 3.
369
Como será tratado mais a frente, trata-se de uma visão bastante distinta do século XIX. Ainda que “público”
continuasse sendo visto como um sujeito coletivo, agora podia ser também o povo, a cidade, os leitores, a nação,
etc. num gradual processo de fragmentação. Ao mesmo tempo, sua capacidade crítica, reflexiva, legitimadora,
justificadora, orientadora e coerciva, transformará esse público em um conceito sociopolítico ativo.
134
seguida, eximir-se da servidão por arbítrio próprio. E o mesmo vale para uma
pessoa fictícia ou comunidade, depois de haver-se sujeitado plenamente a algum
príncipe. Depois que um povo transferiu sua liberdade ao rei, já se encontra
privado dela; não pode, apoiado nela, insurgir justamente contra o rei, pois
depende de poder que não possui. Isso não seria um uso justo, mas uma
usurpação do poder370.
370
SUÁREZ, P. Francisco. Defesa da fé católica. Edição compilada. Trad. Luiz Astorga & Tiago Gadotti. Porto
Alegre: Editora Concreta (Coleção Salamanca), 2015. Liv. III, Cap. III, n. 2.
135
frente, passaram por readaptações a partir de outros contextos, em que se destacaram três
outras formas: a sociedade, o estado, e a nação.
De todo modo, o problema da interdependência e da subordinação das partes ao todo
aparece de diferentes maneiras na sua relação com as três formas do público. A comunidade é
composta por pessoas particulares que se articulam em um público (vínculo moral) de
maneira subordinada, pois caso contrário, prevalece a multidão desorganizada. O soberano se
encarrega não apenas das pessoas particulares, mas também da sua própria natureza dual
enquanto “parte” e “todo”371. O corpo político, por sua vez, trata a comunidade e o soberano
como partes, além de ser também uma parte da comunidade universal:
Portanto, ainda que cada cidade perfeita, república ou reino, seja ela própria
uma comunidade perfeita composta de seus membros, no entanto, qualquer dela
é também um membro de algum modo deste universo, enquanto pertence ao
gênero humano; pois nunca são aquelas comunidades isoladas de tal maneira
que sejam suficientes para si, que não necessitem de alguma ajuda mútua e
sociedade e comunicação, às vezes para ser melhor e maior utilidade, e às vezes
também por necessidade moral e indigência (...)372.
371
KANTOROWICZ, Ernst. H. Os dois Corpos do Rei: Um estudo sobre Teologia Política Medieval. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
372
“Por lo cual, aunque cada ciudad perfecta, republica o reino, sea en sí comunidad perfecta compuesta de sus
miembros, no obstante cualquiera de ella es también miembro de algún modo de este universo, en cuanto
pertenece al género humano; pues nunca aquellas comunidades son aisladamente de tal modo suficientes para sí,
que no necesiten de alguna mutua ayuda y sociedad y comunicación, a veces para mejor ser y mayor utilidad, y a
veces también por moral necesidad e indigencia, como consta del mismo uso”. SUÁREZ, P. Francisco. Tratado
de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid: Hijos de Reus, Tomo II, 1918.
Lib. II, Cap. XIX, n. 5, P. 286.
373
Conforme aponta Vinícius Dantas, Maquiavel não utilizava da ideia de razão de estado. Foi a partir de uma
relação entre os escritos de Tácito, que eram recebidos em uma escala maior na Europa no mesmo período que a
de Maquiavel, que houve uma associação entre estes autores. DANTAS, Vinicius Orlando de Carvalho. O conde
de Castelo Melhor: valimento e razões de estado no Portugal seiscentista (1640-1667). 2009. 313 f. Dissertação
136
razão de estado era aquela que não subordinava o interesse público e comum ao interesse
particular.
Tal como qualquer conceito político, “razão de estado” conheceu inúmeras
formulações ao longo dos anos e em diferentes lugares. Costuma-se atribuir o seu surgimento
a Maquiavel, ainda que este não se utilizasse dele. A popularização do conceito, no entanto,
ficou a encargo de Giovanni Botero em sua obra Della Ragion di Stato de 1589374, e que
marca também o início das teorias sobre a razão de estado.
Como demonstra Maurizio Viroli a partir do caso italiano, a ideia de “razão civil” que
vinha desde o século XIII incorporava a “razão” na noção convencional de política enquanto
uma razão moral, pautada na lei e na equidade. No final dos quinhentos passava a haver uma
percepção de que existiam circunstâncias extremas em que a “razão” podia justificar
determinadas crueldades e injustiças. Era preciso apelar para outra “razão”, a “razão de
estado”, que surgia enquanto uma categoria para ser invocada como um critério permissivo de
derrogação da “razão civil”375. Apenas a partir de Botero é que essa “razão” deixava de
figurar somente como uma “prática” ou “uso” (fator que lhe colocava em posição inferior e
negativa em relação à linguagem da filosofia civil e moral), adquirindo o status de uma teoria.
Em Botero, a razão de estado era um meio de “fundar”, “conservar” e “ampliar” o
estado, entendido como um domínio em geral376. A definição ampliada de “domínio” permitia
que a “razão de estado” fosse um meio também para preservar uma tirania. E esta foi
justamente uma das principais formas que a “razão de estado” foi interpretada, não apenas por
diferentes autores na Itália, como também no mundo ibérico. Ela sugeria uma mudança na
percepção dos objetivos da política em direção ao bem comum, através da adequada
distribuição da justiça, para uma justificativa de violação das leis civis, naturais e divinas
baseadas apenas no interesse próprio do governante. Nos seiscentos italiano, Viroli argumenta
que havia a constatação de que a ideia de “política” estava sendo corrompida pelo novo
conceito de “razão de estado”, passando a estar associada à tirania, mentira, dissimulação,
ambição e ao interesse próprio377.
de Mestrado – Universidade Federal Fluminense (UFF). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2009. P. 70-
71.
374
BOTERO, Giovanni. Della Ragion di Stato. Venetia: Apresso I Gioliti, 1589.
375
VIROLI, Maurizio. The origin and the meaning of the reason of state. In: HAMPSHER-MONK, Iain;
TILMANS, Karin; VREE, Frank Van (Ed.). History of Concepts: comparative perspectives. Amsterdam:
Amsterdam University Press, 1998. P. 67-73.
376
“Ragione di Stato si é notitia de’ mezi, atti à fondare, conservare, e ampliare un Dominio”. BOTERO,
Giovanni. Della Ragion di Stato. Venetia: Apresso I Gioliti, 1589. Lib. I, P. 1.
377
Analisando a obra de Giovanni De Luca (Il principe cristiano pratico), Viroli diz que a política, como
constatado por este autor, não mais significava bom governo ou boa administração, mas a forma de preservação
e ampliação do poder de uma pessoa ou família. A visão comum era de que a política se associava à mentira, ao
137
engano, e a busca pela ambição e interesse pessoal de cada um. VIROLI, Maurizio. The origin and the meaning
of the reason of state. In: HAMPSHER-MONK, Iain; TILMANS, Karin; VREE, Frank Van (Ed.). History of
Concepts: comparative perspectives. Amsterdam: Amsterdam University Press, 1998. P. 73.
378
SOUZA, Bruno Silva. O fantasma de Maquiavel: antimaquiavelismo e razão de estado no pensamento
político ibérico do século XVII. 2011. 82 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, 2011. P. 4.
379
DANTAS, Vinicius Orlando de Carvalho. O conde de Castelo Melhor: valimento e razões de estado no
Portugal seiscentista (1640-1667). 2009. 313 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Fluminense
(UFF). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2009. P. 79.
380
RIBADENEYRA, Pedro de. Tratado de la religion y virtudes que deve tener el Principe Christiano, para
governar, y conservar sus Estados. Contra lo que Nicolas Machiavelo y los Politicos deste tiempo enseñan.
Madrid: emprenta de P. Madrigal, 1595.
138
a intenção da ação e do interesse: o rei estava “atado ao bem público, e a defesa de seu povo”,
o tirano “não faz coisa a não ser por seu interesse”381.
Para Sebastião César de Meneses em 1649, a razão de estado era uma arte que lidava
com três tipos de governos. O de si mesmo, por meio da ética. O da família, por meio da
economia. O da república ou reino, por meio da política. O governo de si mesmo e da família
ocupavam-se de “coisas particulares e domésticas”, já o da república, de “coisas públicas e
comuns”. Porém, corroborando para a perspectiva de integração e de articulação subordinada
entre o particular e o público, afirmava que:
sujeitos a emulações e discórdias entre si, e pela diversidade dos fins que cada
um respeita, torcem muitas vezes os conselhos públicos a interesses
particulares, e procuram com vários artifícios por melhorarem seu partido
interromper os meios mais concernente ao aumento do estado385.
381
RIBADENEYRA, Pedro de. Tratado de la religion y virtudes que deve tener el Principe Christiano, para
governar, y conservar sus Estados. Contra lo que Nicolas Machiavelo y los Politicos deste tiempo enseñan.
Madrid: emprenta de P. Madrigal, 1595. Lib. II, Cap. IX. P. 320.
382
MENESES, Sebastião César. Summa Política. (1649). In: Conselho aos Governantes. Brasília: Senado
Federal, 1998. P. 523.
383
MENESES, Sebastião César. Summa Política. (1649). In: Conselho aos Governantes. Brasília: Senado
Federal, 1998. P. 574.
384
MENESES, Sebastião César. Summa Política. (1649). In: Conselho aos Governantes. Brasília: Senado
Federal, 1998. P. 537.
385
MENESES, Sebastião César. Summa Política. (1649). In: Conselho aos Governantes. Brasília: Senado
Federal, 1998. P. 535.
386
ALMEIDA, Gustavo Kelly de. O polêmico caso da prisão de D. Duarte de Bragança no Portugal Restaurado.
Notas sobre o tema no Congresso de Vestfália (1644-1648). Porto: IV Encontro Internacional de Jovens
Pesquisadores em História Moderna (EJIHM), 2015. Disponível em: https://ejihm2015.weebly.com/programa--
schedule.html. Acessado em: 19/02/2019.
139
buscava por meio das discussões sobre a razão de estado atacar os adversários castelhanos
após a Restauração. Para tanto, dividia a razão de estado em duas: “a verdadeira, justa,
honesta e lícita; e em aparente e injusta”. A primeira,
O nome mais adequado para essa razão de estado seria o de “prudência de estado”, e
que seria o mesmo que “prudência civil”, nunca apartada “das virtudes morais”. A segunda,
por sua vez, é aquela que:
A “má” razão de estado, portanto, afastava-se da lei de Deus, atuando contra os fins
para os quais os reis e reinos foram instituídos, a saber, “a glória de Deus e saúde dos
súditos”. E a isso o autor acrescenta: “que difere o bom Principe do tirano em que este
endereça tudo a sua utilidade, aquele à pública”389. A publicística restauradora valeu-se do
conceito de “razão de estado” para justificar a legitimidade de d. João IV e a tirania dos reis
castelhanos, especialmente pela má administração da justiça e da cobrança dos pesados
387
“Aquella se conforma con preceptos divinos, y del derecho, enseñando a vivir honestamente, no ofender a
nadie, dar a cada uno lo que es suyo, no hacer a otro lo que sintiera hacérsele a si mismo, encaminando todo al
fin de la quietud, y utilidad de los súbditos, y no del lucro, gloria, o amplicacion de estado, que el Principe
govierna”. AZEVEDO, Luis Marino de. Exclamaciones políticas, jurídicas y morales. Al Summo Pontifice,
Reyes, Principes, Respublicas amigas, y confederadas con El Rey Don Juan IV de Portugal, en la injusta
prisión, y retención del Serenissimo Infante D. Duarte su hermano. Lisboa: Lourenço de Anveres, 1645. P. 68-
69.
388
“con capa de fortaleza, o de prudencia pierde el respeto a Dios, a la razón, a la justicia, tratando solamente de
la utilidad del que usa dela, y adulterando las leyes de la razón, se bale de las de su poder, querer, y voluntad; por
esta causa la define Scipion Amiranto ser un privilegio particular del Principe para derogar la razón, y lei comum
a respeto de la defensa propia, o bien particular; en que fundados Alexandro, y Tyberio, uno mato a Parmenio,
otro a Seyano”. AZEVEDO, Luis Marino de. Exclamaciones políticas, jurídicas y morales. Al Summo Pontifice,
Reyes, Principes, Respublicas amigas, y confederadas con El Rey Don Juan IV de Portugal, en la injusta
prisión, y retención del Serenissimo Infante D. Duarte su hermano. Lisboa: Lourenço de Anveres, 1645. P. 69.
389
“que difiere el buen Principe del tyrano en que este endereça todo a su utilidad, aquel a la publica”.
AZEVEDO, Luis Marino de. Exclamaciones políticas, jurídicas y morales. Al Summo Pontifice, Reyes,
Principes, Respublicas amigas, y confederadas con El Rey Don Juan IV de Portugal, en la injusta prisión, y
retención del Serenissimo Infante D. Duarte su hermano. Lisboa: Lourenço de Anveres, 1645. P. 69.
140
(...) que o bem público da comunidade naturalmente deve ser preferido ao bem
particular das partes: que as leis das sociedades obrigam em consciência a sua
inteira observância pelo mesmo motivo do bem geral de cada um dos indivíduos
delas; e que sendo um bom cristão aquele que bem ama a Deus, e ao próximo,
vem a ser bom cidadão, aquele que é bom cristão394.
390
DANTAS, Vinicius Orlando de Carvalho. O conde de Castelo Melhor: valimento e razões de estado no
Portugal seiscentista (1640-1667). 2009. 313 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Fluminense
(UFF). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2009.
391
Ver: HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994; GARRIGA, Carlos.
Orden jurídico y poder político en el Antiguo Régimen. Istor: Historia y derecho, historia del derecho, nº 16,
Primavera, 2004; VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes: reformas,
censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2015.
392
ANJOS, Fr. Manoel dos. Politica predicável, e doutrina moral do bom governo do mundo, offerecida ao
sereníssimo Príncipe de Portugal Dom Joam nosso senhor. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1693. Liv. 1,
Cap. VII, § 1, n. 2. P. 48.
393
AZEREDO COUTINHO, J. J. da Cunha. Estatutos do Seminário Episcopal de N. Senhora da Graça da
Cidade de Olinda de Pernambuco ordenados por D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho XII Bispo de
Pernambuco do Conselho de S. Magestade Fidelíssima, fundador do mesmo Seminário [1798]. In: ALVES,
Gilberto Luiz. Azeredo Coutinho. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. Parte II, Cap.
III. P. 102.
394
Estas formulações teóricas tinham por objetivo fundamentar as regras e normas que iriam reger o Estatuto do
Colégio. As normas que se seguem depois dessa discussão, por exemplo, são: o horário que o Colegial devia
retornar caso saísse de licença do Colégio; estudar em silêncio para não incomodar os outros; não sair do
141
Cada um, além de ser em particular virtuoso, procure ser em público bem
reputado; não basta cingir-se interiormente com virtudes, sem trazer nas mãos
tochas acesas de boas obras395.
Colégio ou falar “da janela para a rua” sem a licença do Reitor; um colega deve admoestar o outro caso faça
injúrias a alguém, e não sendo possível solucionar o problema apenas através da admoestação, deveria relatar ao
Reitor. AZEREDO COUTINHO, J. J. da Cunha. Estatutos do Seminário Episcopal de N. Senhora da Graça da
Cidade de Olinda de Pernambuco ordenados por D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho XII Bispo de
Pernambuco do Conselho de S. Magestade Fidelíssima, fundador do mesmo Seminário [1798]. In: ALVES,
Gilberto Luiz. Azeredo Coutinho. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. Parte II, Cap.
III. P. 102.
395
MACEDO, Antonio de Souza de. Armonia política. Dos documentos Divinos com as conveniências
d’Estado. Exemplar de príncipes. No governo dos gloriosíssimos Reys de Portugal. Haga do Conde Oficina de
Samuel Brown, 1651. Parte II, § 1, P. 33.
142
O conceito de “publicidade” só irá aparecer com mais frequência nas fontes a partir
dos anos finais do século XVIII e do início do XIX. No sentido usado aqui, “publicidade” visa
captar aquele sentido de público relacionado àquilo que é aberto, visível, uma “coisa
publicamente dita ou feita”396, como definido por Bluteau. Ele engloba, portanto, os conceitos
de publicar, publicação, publicado, “em público” e publicamente, remetendo ao âmbito da
“comunicação” e ao “mundo da aparência”397. Não deve ser pensando em associação com as
ideias de marketing ou propaganda, sentidos presentes somente muito tardiamente, no
desenrolar do século XX.
Costuma-se utilizar algumas metáforas para dar concretude à publicidade, como
esfera, espaço, reino ou domínio, no entanto, estas não fazem jus ao significado complexo e
abstrato implicado na publicidade como uma teia de visualizações e sensações em que se
relacionam duas ou mais pessoas. A aparência, além de participar da formação da consciência
humana que se estabelece na vida em sociedade, exerce uma função única nas normatizações
dadas pelo poder público, na construção das legitimidades e obediências, no estabelecimento
das distinções sociais que regem as sociedades, nos projetos que se constituem enquanto
“horizontes de expectativas” de determinados grupos. Tudo isso por meio de símbolos,
signos, gestos, hábitos, rituais, linguagem, em suma, a aparência que pressupõe o ver e ser
visto, falar e ser ouvido. A “publicidade”, dessa forma, é tão histórica quanto qualquer outra
categoria. Isso quer dizer que o “mundo da aparência” não é um dado natural e eterno da vida
humana, mas uma condição histórica conformada pelas experiências e expectativas,
articuladas em torno de concepções específicas de mundo, da política, da justiça, da cultura,
etc.
Diferente da ideia de publicidade como um princípio da política moderna, em que a
“transparência” e o debate crítico e racional conduzem à verdade, no período abarcado neste
capítulo, a publicidade se destaca pelo seu caráter de exemplaridade, em grande medida, pela
própria aproximação entre o conceito de público e o soberano, responsável pelo interesse
público e pelo bem comum, e entre o conceito de público e a comunidade, um sujeito coletivo
passivo, universalizado e, como na definição de Chartier:
396
BLUTEAU, Raphael. Publicidade. In:______. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico,
architectonico... Lisboa: Officina de Pascoal Silva, v. 1, 1720.
397
ARENDT, Hannah. The life of the mind. The groundbreaking investigation on how we think. New York:
Harcourt Brace Jovanovich. Inc., 1978.
143
captar e ganhar, tanto os grandes como o povo, tanto os políticos avisados como
a plebe ignorante398.
398
CHARTIER, Roger. Espacio público, crítica y desacralización en el siglo XVIII: los orígenes culturales de la
Revolución Francesa. Barcelona: Gedisa, 2003. P. 46.
399
ALBORNOZ, Diego Felipe de. Cartilla politica y christiana. Lisboa: emprenta de Antonio Craesbeck, 1667.
P. 45a.
400
“pero mucho màs con el exemplo de los Principes, porque no solo imperan con la voz, sino con los
movimientos y las acciones”. ALBORNOZ, Diego Felipe de. Cartilla politica y christiana. Lisboa: emprenta de
Antonio Craesbeck, 1667. P. 45a.
401
O mesmo afirmava Aboym: “A virtude dos particulares pode ser como pedra preciosa, e como raiz de árvore,
como mineral secreto, e como tesouro escondido; porém os Ministros públicos, e pais de família hão de ter
virtudes públicas e secretas; porque para persuadir, tem o exemplo mais retórica eloquência, que as palavras
(...)”.ABOYM, Diogo Guerreiro Camacho de. Escola moral, política, christãa, e jurídica. Lisboa: Officina de
Bernardo Antonio de Oliveira, 3ª Ed., 1759 [1733]. Palestra II, Lição XIX, P. 295.
402
“con que deseamos igualarnos con aquel de quien estamos tan distantes en autoridad, y poder, y ponernos
ombro a ombro en las acciones, ya que en la obediencia, y vassalage estamos tan inferiores”. ALBORNOZ,
Diego Felipe de. Cartilla politica y christiana. Lisboa: emprenta de Antonio Craesbeck, 1667. P. 46b.
403
“la Magestad há de ponerlas a los ojos del mundo por el buen exemplo (como acabo de decir) y por grangear
buena Fama”. ALBORNOZ, Diego Felipe de. Cartilla politica y christiana. Lisboa: emprenta de Antonio
Craesbeck, 1667. P. 47b.
144
que estes se guiavam pelas “riquezas e demais bens temporais”, já o príncipe devia orientar-se
pela fama404.
A partir de São Agostinho afirma Albornoz que a fama deriva da consciência, mas
estas são distintas. A consciência seria para a própria pessoa, a fama para as outras pessoas.
Nesse sentido, “aquela é para o interior, esta para o público e manifesto, e os que ocupam
postos superiores, não se contentarão com ter virtude, mas ter e mostrar, que é crueldade
contra seu crédito ser virtuoso e encobrir”405. Também para Sebastião César de Meneses, “o
vassalo cumpre com sua obrigação sendo bom, mas o Príncipe deve sê-lo, e parece-lo”406.
Trata-se, portanto, da preocupação com a “reputação”, o terceiro fundamento da razão de
estado segundo o autor.
Se por um lado as elaborações, nas teorias políticas do XVII, remontam à tradicional
construção textual dos “espelhos de príncipes” que vinha desde o período medieval, em que se
procurava fabricar uma imagem ideal do príncipe perfeito tendo como base as virtudes cristãs,
por outro, mesmo que fosse para negar, tinham que lidar com as propostas de readequações do
gênero apresentadas por Maquiavel e outros407. Em ambas, no entanto, não se negava o
caráter instrutivo da exemplaridade e que se obtinha por meio da publicização dos atos do
príncipe. O problema apresentado por Maquiavel dizia respeito à concepção que colocava
como objetivo final da política a conservação e ampliação do poder (diferente da visão do
bem comum teológico-política que vinha do período medieval), que autorizaria o príncipe a
agir contra os ditados, valores e virtudes cristãos408. Mesmo com a forte rejeição a Maquiavel,
um dos principais pontos apresentados por ele e que alcançou uma grande repercussão na
teoria e na prática do governo foi a possibilidade do príncipe agir dissimuladamente.
Em Meneses, por exemplo, a dissimulação no príncipe era abominada. Era preciso,
contudo, considerar que certas formas de dissimulação não eram necessariamente
dissimulação. Ou seja, “dissimular por recato é prudência: ter o mesmo semblante nas coisas
adversas e felizes, (...) é constância e moderação...”. Se a dissimulação não podia enganar,
404
ALBORNOZ, Diego Felipe de. Cartilla politica y christiana. Lisboa: emprenta de Antonio Craesbeck, 1667.
P. 48b.
405
“aquella es para lo interior, esta para lo publico, y manifesto, los que ocupan puestos superiores, no se han de
contentar con tener virtud, sino tenerla, y mostrarla, que es crueldad contra su credito ser virtuoso, y encubrirlo”.
ALBORNOZ, Diego Felipe de. Cartilla politica y christiana. Lisboa: emprenta de Antonio Craesbeck, 1667. P.
48a.
406
MENESES, Sebastião César. Summa Política. (1649). In: Conselho aos Governantes. Brasília: Senado
Federal, 1998. P. 581.
407
LOPES, Marcos Antônio; CAMPOS, Adriana Pereira. Virtudes fingidas, enganos proveitosos: o valor das
redescrições morais na retórica política moderna. In: história, histórias. Brasilia, vol. 1, n. 1, 2013.
408
Ver: SENELLART, Michel. As artes de governar. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006.
145
fingir ou mentir era lícito que se pudesse “calar, encobrir e mostrar não haver entendido as
coisas, dissimulando o que delas se alcança, por guardar segredo no fim que se pretende”409.
A opinião de Saavedra Fajardo em relação à necessidade da subordinação dos vícios e
paixões pessoais ao bem público, citada anteriormente, atrelava-se à “razão de estado”
pensada pelo autor. Em outras palavras, devia o príncipe não se governar “por seus afetos e
sim pela razão de estado”. Assim, aparentemente comungando com a possibilidade da
dissimulação justificada pela razão de estado o autor afirmava:
Então mais é o Príncipe uma ideia de Governador, que Homem. Mais de todos,
que seu. Não à de obrar por inclinação, e sim por razão de governo. Não por
gênio próprio, e sim por arte. Seus costumes mais hão de serem políticas, que
naturais. Seus desejos mais hão de nascer do coração da República, que do seu.
Os Particulares se governam a seu modo, os Príncipes segundo a conveniência
comum. Nos Particulares é hipocrisia dissimular suas paixões, nos Príncipes
razão de estado. (...). Quem governa a todos, com todos a de mudar de afeto, ou
mostrar-se, se convier, desnudo deles. Uma mesma hora há de ser severo e
benigno; justiceiro e clemente; liberal e parco, segundo a variedade dos casos410.
409
MENESES, Sebastião César. Summa Política. (1649). In: Conselho aos Governantes. Brasília: Senado
Federal, 1998. P. 574.
410
“Entonces mas es el Príncipe una idea de Governador, que Hombre. Más de todos, que suyo. No a de obrar
por inclinación, sino por razón de governo. No por genio propio, sino por arte. Sus costumbres mas an de ser
políticas, que naturales. Sus deseos mas an de nazer del corazón de la Republica, que del suyo. Los Particulares
se goviernan a su modo, los Principes según la conveniencia común. En los Particulares es doblez disimular sus
pasiones, en los Principes razón de Estado. (…). Quien govierna a todos, con todos a de mudar de afecto, o
mostrarse, si conviniere, desnudo dellos. Una misma hora le a de ser severo, y benigno; justiciero, y clemente;
liberal, y parco, según la variedad de los caso”. SAAVEDRA FAJARDO, Diego de. Idea de un Principe Politico
Christiano, representada en cien empresas, dedicada al príncipe de las Españas Nuestro Señor. Amberes: en
casa de Ieronymo y Ivan Bapt. Verdvssen, 1655. Empresa Política VII, § 4, P. 46-47.
411
Sobre a relação entre Maquiavel e Saavedra Fajardo, ver: VILLANUEVA, Jesús. La influencia de
Maquiavelo en las “Empresas Políticas” de Diego de Saavedra Fajardo. In: Studia Historica. Historia Moderna.
Vol. 19, 1998. P. 169-196.
412
Assim como afirma Senellart, não se trata de uma “ruptura maquiaveliana”, mas do impacto de sua
linguagem: “Il importe, pour ce faire, de le replacer à l’intérieur d’une mutation plus profonde de la culture
occidentale, celle par laquelle, dés le Moyen Âge, s’est constitué, au sein d’un ordre struturé par la
transcendance, le plan d’immanence de la politique”. SENELLART, Michel. Autonomie et hétéronomie de la
politique: la question de la finalité. In: Miroirs de la raison d’État, Cahiers du Centre de Recherches
Historiques, n. 20, abr. de 1998. P. 3.
146
que dizia que também os particulares deviam agir sempre em direção ao bem comum,
Saavedra Fajardo, ao menos nessa passagem, afirmava que esta era uma obrigação do
príncipe, podendo os particulares se governar “a seu modo”.
Assim, esse pensamento “realista” imiscuía-se com a tradição escolástica ibérica.
Através da defesa da dissimulação, incorporava-se na concepção política do Antigo Regime,
cuja ossatura era dada pelos valores morais e cristãos, a possibilidade da ação direcionada por
critérios utilitários e de eficiência. Além da dissimulação, também a preocupação com o
“aumento do estado”413; as constatações sobre a diferença das ações dos particulares em
relação às ações dos reis; e a distinção entre os interesses dos súditos por riquezas e bens
temporais e dos reis por fama e reputação, por exemplo, sugerem uma fratura na concepção
organicista da sociedade e do poder. A perspectiva de integração e imitação das partes
(súditos) com o todo (representado pelo rei), que dava sentido as noções de particular e
público parecem sofrer seu primeiro golpe. Esse processo iniciou-se no século XVII, mas
apenas nos anos finais do XVIII é que adquiriu um caráter mais substancial nas teorias e
práticas políticas.
Compreende-se que o problema posto pela “razão de estado” foi o da autonomia da
política414 em relação ao discurso teológico e moral, não nos termos dos meios e das práticas,
mas da finalidade do exercício da política. Há, assim, como que um imperativo que obriga ao
governo a agir de maneira distinta do que se exige das outras partes, por vezes mesmo
independente da moral cristã. Quando se fala em secularização nesse período se pensa na
finalidade do governo dos homens. No fundo, procura dar conta do momento em que o “bem
comum”, vinculado à comunidade universal católica, já não é mais o objetivo imediato da
política, atividade destinada a gerir e administrar a comunidade – ao menos na acepção de
“bem comum” que pressupunha uma ordem universal (cosmos) que vinculava todos os
homens e criaturas para um objetivo último identificado com o Criador415. Na verdade, tal
413
Por exemplo, na passagem de Sebastião César de Meneses citada na página 134.
414
A esse respeito ver o debate originado pelo texto de Marcel Gauchet (GAUCHET, Marcel. L’État au miroir
de la raison d’État: la france et la chrétienté. In: ZARGA, Yves-Charles (Dir.). Raison et déraison d’État.
Théoriciens et théories de la raison d’État aux XVI e et XVIIe siècles. Paris: PUF, 1994. P. 193-244): Miroirs de
la raison d’État, Cahiers du Centre de Recherches Historiques, n. 20, abr. de 1998. Ver também: SENELLART,
Michel. As artes de governar. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006; FRIGO, Daniela. “Disciplina
Rei Familiariae”: a economia como modelo administrativo de Ancien Régime. In: Penélope: fazer e desfazer a
história, nº 6, 1991. P. 47-62; CARDIM, Pedro. “Governo” e “política” no Portugal de seiscentos. O olhar do
jesuíta António Vieira. In: Penélope, n. 28, 2003. P. 59-92.
415
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994. P. 114.
147
como aponta Lempérière, trata-se bem de uma modificação nas finalidades, na qual o
imperativo financeiro e militar aparece sobreposto às finalidades de salvação416.
Para os propósitos deste texto dois fatores se sobressaem: o primeiro é que a “razão de
estado” indica um primeiro passo para a possibilidade da realização de discursos que separam
o particular do público; em segundo lugar, e correndo o risco do teleologismo, a razão de
estado e a autonomia da política parecem ser a condição que tornaram possíveis as
elaborações sobre o estado de polícia e o estado administrativo, fundamentais para as teorias
políticas do XVIII.
Retornando à publicidade, a discussão sobre o “espelho de príncipes” e as maneiras
como os reis deviam se apresentar e comportar em público era atravessado pela noção de
exemplaridade, que regia a “publicidade” tanto cultural quanto conceitualmente. Tal como
afirmam Isabel Deusa e Mónica Peruga, havia três formas de tratar o conceito de “público” na
Idade Moderna. No primeiro sentido a partir de Ariès, ou seja, aquilo que é aberto, espaço de
uma sociabilidade anônima da comunidade em contraposição à sociabilidade restrita da
família. Em segundo lugar, e que é mais próximo do modo como estamos tratando o objeto,
no sentido do político, identificado pela jurisdição do soberano e das instituições. Ao mesmo
tempo, nos termos da teoria política, “com o âmbito regido pela razão de Estado, que ao longo
da Idade moderna foi consolidando sua autonomia com respeito à religião e a moral”417. E em
terceiro lugar, no sentido da “esfera pública” de Habermas, associada à opinião pública e a
ascensão da burguesia, e localizada temporalmente nos anos finais do século XVIII –
discussão que não corresponde com o período analisado aqui.
O que eu pretendo afirmar é que as duas primeiras acepções de público investigadas
pela historiografia podem e devem ser pensadas de maneira integrada. Isto é, público no
sentido daquilo que é aberto e visível, e público no sentido do político e da jurisdição do
soberano, estavam articulados pela ideia de exemplaridade. E esta articulação manifestava-se
semanticamente no conceito.
Em uma das definições de Jerónimo Cardoso em seu dicionário latim-português,
publico,as significava “publicar, ou tomar por perdido para o Rei”418. Já no dicionário de
416
LEMPÉRIÈRE, Annick. Entre Dios y el rey: la república. La ciudad de México de los siglos XVI al XIX.
Trad. De Ivette Hernández Pérez Vertti. México: Fondo de Cultura Económica (FCE), 2013. P. 173.
417
“con el ámbito regido por la razón de Estado, que a lo largo de la Edad moderna fue consolidando su
autonomía con respecto a la religión y a la moral”. DEUSA, Isabel Moran; PERUGA, Mónica Bolufer.
Presentación. Historia de las mujeres e historia de la vida privada: confluencias historiográficas. Studia
Historica. Historia Moderna. Vol. 19, 1998. P. 17-23.
418
CARDOSO, Jerónimo. Publico,as. In: Hieronymi Cardosi Dictionarium latino-lusitanicum, et lusitanico-
latinum, quanta maxima fide, ac diligentià accuratissimè expurgatum... Ulyssipone : typis, & sumptibus
Dominici Carneiro, trium Ordinum Militarium typographi, 1694. P. 229.
148
Bluteau, a publicidade era compreendida por palavras como autenticidade, promulgação 419 e
notoriedade, demarcando sempre a presença das autoridades políticas e eclesiásticas. Define-
se o verbete publicação, por exemplo, como uma “ação de manifestar autenticamente alguma
coisa por ordem do magistrado nos lugares públicos da Cidade, para que fique notória a
todos” ou como uma “publicação por editais de bens, que se põe na praça”. Da publicação
podia-se dizer também de “outras coisas, que se manifestam a várias pessoas juntas no mesmo
lugar. Publicação de sentença, do testamento, do bando, etc.”420.
Publicado era sinônimo de “promulgado, falando em leis” ou “manifestado, feito
público”. Publicar era “fazer alguma coisa publica com pregação, ou trombeta”, “com
cartazes”, “fazê-la notória a todos”421. Em todas estas definições, o ato de publicar remetia
sempre à capacidade de realizar tal ato, cuja incumbência era das autoridades políticas e
eclesiásticas ou que deveria ser autorizado por elas. Era comum, também, o tratamento dos
documentos oficiais, como alvarás e decretos, como “instrumentos públicos”. A publicação,
dessa forma, devia ser orientada e direcionada para os fins do bem comum, apresentando por
meio de exemplos os valores e virtudes cristãos que deviam reger a vida dos súditos, no
particular e no público.
Tratava-se, como diz Annick Lempérière, de uma publicidade baseada em uma
antropologia cuja fonte residia na concepção cristã do homem. A este cabia conduzir suas
ações para a sua salvação, tanto nas suas relações com os outros (em comunidade), quanto
internamente, sob as vistas de Deus. O homem, união da alma e do corpo, apenas pensa e
julga pelas sensações dispostas em sua alma através da audição e da visão. Dizia o abade
Bergier (1715-1790) que “todas as impressões percebidas pelos diversos órgãos são
transmitidas a um princípio único [a alma] a qual lhes percebe, compara e aprecia (...)” 422. Por
meio dos olhos a alma recebe as impressões sensíveis do seu entorno, portanto, a
configuração da visibilidade deve ser disposta para alimentar o bom exemplo, no seu sentido
moral cristão, e repudiar o mal.
419
Era no sentido da promulgação da lei que Diogo Aboym falava que, em Roma, para saber o “ânimo” do povo
sobre alguma lei, costumava se “por em público muitos dias antes de se publicarem”, sendo o primeiro sentido o
da visibilidade e o segundo no sentido da promulgação, do ato de instituir a lei. ABOYM, Diogo Guerreiro
Camacho de. Escola moral, política, christãa, e jurídica. Lisboa: Officina de Bernardo Antonio de Oliveira, 3ª
Ed., 1759 [1733]. Palestra II, Lição XXIII, P. 323.
420
BLUTEAU, Raphael. Publicação. In: Vocabulario Portuguez & Latino: áulico, anatômico,
architectonico...Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, v. 2, 1721. P. 817.
421
BLUTEAU, Raphael. Publicado. Publicar. In: Vocabulario Portuguez & Latino: áulico, anatômico,
architectonico...Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, v. 2, 1721. P. 817-818.
422
“Todas las impresiones percibidas por los diversos órganos son transmitidas a un principio único [el alma] el
cual las percibe, las compara y las aprecia (…)” BERGIER, Nicolas-Sylvestre. Diccionario enciclopédico de
teología apud LEMPÉRIÈRE, Annick. Entre Dios y el rey: la república. La ciudad de México de los siglos XVI
al XIX. Trad. De Ivette Hernández Pérez Vertti. México: Fondo de Cultura Económica (FCE), 2013. P. 241.
149
O foro interno da consciência, por sua vez, é vigiado permanentemente por Deus, e
uma ofensa ou atitude indesejada realizada por uma pessoa particular afeta toda a
comunidade, pois qualquer parte sempre está integrada em um todo. Estar sob os olhos de
Deus ditava regras e normas de comportamento, no particular e no público, bem como
atribuía à comunidade a tarefa de se autorregular através de denúncias, confissões, sermões,
autos de fé, no qual se destaca a participação e popularidade da Inquisição. Dessa forma, a
publicidade e a comunidade se interligavam pela tarefa de garantir a retidão moral:
423
“el espacio público es idealmente un espacio de ejemplaridad. Esta concepción de la publicidad está
íntimamente relacionada con la existencia de una moral que no es individual sino pública y colectiva. No son los
tratados de los moralistas sino los preceptos de la Iglesia transmitidos a través de las leyes reales, los bandos de
policía y los estatutos de las corporaciones, los que dispensan las lecciones de la virtud, de la misma manera que
las ceremonias públicas, los sermones y las vidas de santos edificantes.” LEMPÉRIÈRE, Annick. Entre Dios y el
rey: la república. La ciudad de México de los siglos XVI al XIX. Trad. De Ivette Hernández Pérez Vertti.
México: Fondo de Cultura Económica (FCE), 2013. P. 244.
424
“Se trataba de um privilegio exclusivo de las autoridades que representabam al rey, y fue, sin duda, uno de los
ámbitos en el que el poder soberano se ejerció de la manera más absoluta en America”. LEMPÉRIÈRE, Annick.
Entre Dios y el rey: la república. La ciudad de México de los siglos XVI al XIX. Trad. De Ivette Hernández
Pérez Vertti. México: Fondo de Cultura Económica (FCE), 2013. P. 250.
150
conhecer, por meio da publicidade, o responsável pelo ato e assim difama-lo425. No caso “do
que entra em mosteiro, ou tira freira, ou dorme com ela, ou a recolhe em casa”, por exemplo,
diz-se que:
E sendo provado, que algum homem dormiu com Freira de Religião aprovada
fora do Mosteiro, em caso que a ele não tirasse, pagará cinquenta cruzados para
o Mosteiro, e será degredado dois anos para a África, e além disso se for peão,
será açoitado publicamente com baraço e pregão426.
425
Difamar não era apenas para a pessoa “ficar mal falada”. A fama era central em uma sociedade regida por
honras e reputação. Dessa maneira, a difamação originava uma condição ou qualidade que se atribuía a pessoa e
que repercutia em termos jurídicos: as pessoas infames.
426
Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal... Recopiladas por Candido Mendes de
Almeida. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomatico, 14ª Ed., 1870. Liv. V, Tit. XV, § 2, P. 1165
[itálico meu].
427
De acordo com Foucault, este “castigo-espetáculo” típico das sociedades de Antigo Regime vai sendo
suplantado, também nos finais do século XVIII e início do XIX, em grande parte da Europa. A percepção de que
“a execução pública” era uma “fornalha em que se acende a violência” altera também a publicidade da punição.
Na verdade, a publicidade passa a existir apenas sobre os debates e as sentenças; “quanto à execução, ela é como
uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado; ela guarda distância, tendendo
sempre a confiá-la a outros e sob a marca do sigilo”. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da
prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. P. 13.
428
VIEIRA, António. As cinco pedras da fundação de David, em cinco discursos moraes. Pregados à
Sereníssima Rainha da Suécia Christina Alexandra. In: VIEIRA, Antonio. Sermoes e vários discursos do Padre
Antonio Vieira da Companhia de Jesus, pregador de Sua Majestade. Obra posthuma, dedicada à puríssima
Conceyçam da Virgem Maria Nossa Senhora. Lisboa: Por Valentim da Costa Deslandes, Tomo XIV, 1710.
Discurso II, § 5, n. 148. P. 138-139.
429
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (Dir.);
HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal: O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa,
vol. 4, 1998.
151
A questão de fundo aqui é que por mais que variassem os tipos de virtudes que deviam
ser apresentadas, como a prudência, a moderação, a caridade, a magnificência, a bondade, o
respeito, o amor, a honra, a gravidade, entre outras, seja do rei em relação aos súditos ou nas
relações entre os próprios particulares, a publicidade cumpria a função de oferecer exemplos
dignos aos homens – os valores e virtudes cristãos e o conjunto de símbolos, ideias e normas
dados pelo rei. Sua função não era gerar discussão e debate, troca de opiniões na formação da
verdade, mas reafirmar e consolidar a verdade já prescrita nos textos sagrados, tanto nas ações
e práticas da vida coletiva quanto nas publicações escritas, evitando as inovações e novidades.
A finalidade da publicidade era a retidão moral, a reputação, a fama e a glória. Para
Antonio de Souza Macedo, em 1651, a reputação para o príncipe tinha três significados. O
primeiro era que “seu exemplo regulará os súditos; fazendo-os bons, os fará obedientes e
fáceis de ser governados, fazendo-os maus, dificilmente sofrerão governador”, pois seu
exemplo “doutrina o povo”431. O segundo era através da articulação entre a reputação e a
autoridade, de particular relevância para entender por qual razão a publicidade, por sair nos
marcos do privilégio real, já recebia uma autoridade derivada da posição social de quem
tornava público ou autorizava a publicação:
430
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (Dir.);
HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal: O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa,
vol. 4, 1998. P. 344.
431
MACEDO, Antonio de Souza de. Armonia política. Dos documentos Divinos com as conveniências
d’Estado. Exemplar de príncipes. No governo dos gloriosíssimos Reys de Portugal. Haga do Conde Oficina de
Samuel Brown, 1651. P. II, § 1, P. 39.
152
A segunda, que qual for a Reputação, tal será a autoridade, como entenderam os
Governadores de aquela República antiga que não quiseram publicar uma lei
boa inventada por um homem suspeito nos costumes, sem lhe darem por autor
outro de retidão conhecida. A reputação é fundamento da estima, a estima o é da
obediência; um Príncipe não pode temer que outrem se lhe oponha, se outrem
não é estimado melhor que ele. A boa reputação de nossos Reis lhes dava a
autoridade, com que imperavam tão absolutos, como já notamos; largo seria
mostrar isto de cada um em particular, basta por todos o grande D. João II tão
cuidadoso nesta matéria, que andava de noite disfarçado informando-se do que
se dizia dele; e como foi o mais solicito de seu crédito, foi o que com a
autoridade venceu maiores, contradições dos seus, como é notório432.
432
MACEDO, Antonio de Souza de. Armonia política. Dos documentos Divinos com as conveniências d’Estado.
Exemplar de príncipes. No governo dos gloriosíssimos Reys de Portugal. Haga do Conde Oficina de Samuel
Brown, 1651. P. II, § 1, P. 40-41.
433
MACEDO, Antonio de Souza de. Armonia política. Dos documentos Divinos com as conveniências d’Estado.
Exemplar de príncipes. No governo dos gloriosíssimos Reys de Portugal. Haga do Conde Oficina de Samuel
Brown, 1651. P. II, § 1, P. 43.
434
“por un lado, la publicidad ejemplar y autorizada, por el otro, la que circulaba de forma oral o mediante
escritos ilícitos, sin duda favorecida por la densidad de las sociabilidades urbanas”. LEMPÉRIÈRE, Annick.
Entre Dios y el rey: la república. La ciudad de México de los siglos XVI al XIX. Trad. De Ivette Hernández
Pérez Vertti. México: Fondo de Cultura Económica (FCE), 2013. P. 258.
153
435
“Estos secretos, los arcanos del poder, arcana imperii, son requerimiento de protección y garantía de
conservación del estado de la república. La convicción de que lo públicamente conocido es vulnerable obliga a la
actuación sigilosa y apartada de los hombres que manejan los mecanismos del poder poder público”. VALLEJO,
Jesús. Acerca del fruto del árbol de los jueces. Escenarios de la justicia en la cultura del ius commune. Anuario
de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, n. 2, 1998. P. 34.
436
ABOYM, Diogo Guerreiro Camacho de. Escola moral, política, christãa, e jurídica. Lisboa: Officina de
Bernardo Antonio de Oliveira, 3ª Ed., 1759 [1733]. Palestra I, Lição XXIII, P. 125.
437
ABOYM, Diogo Guerreiro Camacho de. Escola moral, política, christãa, e jurídica. Lisboa: Officina de
Bernardo Antonio de Oliveira, 3ª Ed., 1759 [1733]. Palestra I, Lição XXIII, P. 125.
438
ABOYM, Diogo Guerreiro Camacho de. Escola moral, política, christãa, e jurídica. Lisboa: Officina de
Bernardo Antonio de Oliveira, 3ª Ed., 1759 [1733]. Palestra I, Lição XXIII, P. 126. Tomando em consideração
as análises de Senellart, a perspectiva de Aboym a respeito do segredo se diferiria da ideia tradicional – mística,
esotérica, técnica e jurídica – dos arcana, possuindo três características principais: trata das relações
estrangeiras; das relações entre os vassalos e o príncipe; e entre este e os ministros. Ver: SENELLART, Michel.
As artes de governar. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006. Especialmente o capítulo 2 da terceira
parte.
154
O seu suposto par emparelhado, a “vida privada” que “sempre e por toda parte” se contrapõe
na linguagem, como queria Duby439, também é ausente no período. “(...) o conceito de ‘vida
privada’ não existia no Antigo Regime e a expressão jamais foi empregada a não ser muito
depois”, declara Lempérière, e depois completa: “somente reconheciam as pessoas, no âmbito
religioso, o dever de um culto interior cujas motivações eram de todo semelhantes as do culto
exterior, e que garantia a sinceridade dos atos públicos de piedade e caridade”440.
Em suma, a publicidade configurava-se como parte de um instrumental cujo objetivo
era garantir a retidão moral da comunidade, por meio de exemplos dignos, e direcionado para
o bem comum. Tal tarefa realizava-se pelas autoridades públicas (políticas e eclesiásticas – no
sentido de direção para o bem comum), por meio das suas próprias publicações e através da
censura e licença que permitia a circulação dos escritos e a realização de festas, cerimônias e
outras práticas cotidianas. A presença das autoridades imprimia ao próprio conceito de
publicidade (tendo em conta também a associação entre o governo e a autoridade pública441)
os significados de autenticidade, promulgação e notoriedade, que posteriormente foram
separados e diferenciados.
A passagem do Frei Vicente de Salvador citada no item 1.3 que fundamenta, para
Fernando Novais, a peculiaridade da relação “invertida” entre o público e o privado no
“Brasil”, à luz da discussão realizada até aqui pode ser revista. Antes, cabe destacar que o frei
estudou direito e teologia na Universidade de Coimbra, doutorando-se em cânones. Não lhe
era estranho, portanto, as discussões realizadas nos subcapítulos anteriores. Vale a pena olhar
mais detidamente para a passagem. Depois de afirmar que os portugueses, tanto os que vieram
quanto os que nasceram no “Brasil”, pretendem levar tudo para Portugal, usando da terra não
como “senhores”, mas como “usufrutuários”, ele elabora um dos excertos mais repetidos
sobre o início do período colonial:
439
DUBY, Georges. Prefácio à história da vida privada. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). VEYNE,
Paul (Org.). História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1,
2009. P. 8.
440
“(…) el concepto de ‘vida privada’ no existía en el antiguo régimen y la expresión jamás fue empleada sino
hasta mucho después. Sólo se les reconocía a las personas, en el ámbito religiosos, el deber de un culto interior
cuyas motivaciones eran del todo semejantes a los del culto exterior y que garantizaba la sinceridad de los actos
públicos de piedad y caridad” [itálico da autora]. LEMPÉRIÈRE, Annick. Entre Dios y el rey: la república. La
ciudad de México de los siglos XVI al XIX. Trad. De Ivette Hernández Pérez Vertti. México: Fondo de Cultura
Económica (FCE), 2013. P. 245.
441
SENELLART, Michel. As artes de governar. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006. P. 39.
155
Donde nasce também que nenhum homem nesta terra é republico, nem zela ou
trata do bem comum, senão cada um do bem particular. Não notei eu isto tanto
quanto o vi notar a um bispo de Tucuman da Ordem de S. Domingos442, que por
algumas destas terras passou para a corte. Era grande canonista, homem de bom
entendimento e prudência, e assim ia muito rico. Notava as coisas e via que
mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer e nada lhe
traziam, porque não se achava na praça e nem no açougue e, se mandava pedir
as ditas coisas e outras mais às casas particulares, lhas mandavam. Então disse o
bispo: verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda
ela não é república, sendo-o cada casa443.
A denúncia feita por ele era clara. A culpa era dos reis de Portugal e/ou dos
povoadores. Quanto aos primeiros, não faziam caso destas terras. Se eles haviam feito questão
de intitularem-se “senhores de Guiné, por uma caravelinha que lá vai e vem, como disse o rei
do Congo”, do “Brasil” este título não lhes interessara. Por parte dos povoadores: “tudo
pretendem levar a Portugal” e não se importavam com o que “aqui há cá de ficar” 444. Ainda
assim, a crítica passa longe da ideia de “inversão” entre o público e o privado em um sentido
moderno. Ela assemelhava-se, na verdade, a todo o debate sobre o bem comum do qual
tratamos anteriormente, e que era recorrente no “velho mundo”. Como o próprio autor
explica, nenhum homem era “republico” pela razão de que nenhum “zela ou trata do bem
comum”. O problema era não subordinar os interesses particulares, efêmeros, ao bem comum,
permanente.
Uma constatação semelhante apresentava Ambrósio Fernandes Brandão nos Diálogos
das grandezas do Brasil, culpando exclusivamente os “moradores”. O personagem Brandonio
442
É possível que o Bispo de Tucumán à que o Frei se refere seja Francisco de Vitória, conhecido como “bispo
mercador”, comerciante português famoso pelo contrabando e por abrir uma rota comercial entre a Bahia, Rio de
Janeiro, Buenos Aires e Lima. Ver: SÁ, Helena de Cássia Trindade de. Fiscalidade, alfândega e comércio no Rio
de Janeiro no alvorecer do século XVII. In: Revista Dialogos, v. 11, n. 01, jan.-jun. 2017. P. 1-12; HELMER,
Marie. Comércio e contrabando entre a Bahia e Potosi no século XVI. Revista de História, São Paulo, USP, n.
15, 1953. Dos três bispos de Tucumán que atuaram antes da publicação da “História do Brasil” de Vicente de
Salvador em 1627 (Francisco de Vitória, Fernando Trexo y Sanabria e Julián de Cortazar) os dois primeiros
tinham maiores relações com a parte portuguesa da América. O primeiro através do comércio, o segundo nascido
na cidade de São Francisco do Sul (Santa Catarina). No entanto, dos três, apenas Francisco de Vitória pertencia a
Ordem de S. Domingos. Além disso, Vicente de Salvador ainda cita Francisco de Vitória mais uma vez: “E foi
próspero o tempo do seu governo [Manuel Telles Barreto], assim por as vitórias que se alcançaram contra os
inimigos, de que faremos menção em os capítulos seguintes, como por este tempo se abrir o comércio do Rio da
Prata, mandando o bispo de Tucumán o Tesoureiro-mór da sua sé a esta Bahia a buscar estudantes para ordenar,
e coisas pertencentes à Igreja, o que tudo levou e daí por diante não houve ano em que não fossem alguns navios
de permissão real ou de arribada com fazendas, que lá muito estimam e cá o preço universal que por elas
trazem”. SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil 1500-1627. São Paulo e Rio de Janeiro: Weiszflog
irmão, Revista por Capistrano de Abreu, 1918. Liv. IV, Cap. XVIII, P. 330.
443
SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil 1500-1627. São Paulo e Rio de Janeiro: Weiszflog irmão,
Revista por Capistrano de Abreu, 1918. Liv. I, Cap. II, P.16.
444
SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil 1500-1627. São Paulo e Rio de Janeiro: Weiszflog irmão,
Revista por Capistrano de Abreu, 1918. Liv. I, Cap. II, P.16-17.
156
445
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. Segundo a edição da Academia
Brasileira, corrigida e aumentada, com numerosas notas de Rodolfo Garcia e introdução de Jaime Cortesão.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010. Diálogo I. P. 58.
446
SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil 1500-1627. São Paulo e Rio de Janeiro: Weiszflog irmão,
Revista por Capistrano de Abreu, 1918. Liv. I, Cap. II, P. 17.
447
A partir da afirmação de Vicente de Salvador logo se argumenta sobre a indistinção do público e do privado
no Brasil; em seguida se indica o caráter patrimonial desse Estado e, por último, afirma-se a “corrupção” como
uma marca distintiva e específica da formação do Brasil. A respeito do conceito de corrupção, é importante notar
que no Antigo Regime sua principal acepção vincula-se a ação que não era direcionada para o bem público e sim
para o particular. Devido à própria noção de público – enquanto direção para a unidade do bem comum – ela não
tratava exclusivamente da questão econômica, mas também da “corrupção” moral e religiosa. Cabe, no entanto,
perguntar se a visão corporativa que as pessoas possuíam de seus papéis enquanto “partes” de um todo orgânico
contribuía, tanto no plano das justificativas ou legitimidades discursivas quanto no plano das práticas políticas,
para a caracterização da “corrupção” ou mesmo para a alegada aceitação destas atitudes por parte da
administração régia. Sobre o conceito de “corrupção”, ver: ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil:
uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2017.
448
SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil 1500-1627. São Paulo e Rio de Janeiro: Weiszflog irmão,
Revista por Capistrano de Abreu, 1918. Liv. III, Cap. II, P. 153.
449
SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil 1500-1627. São Paulo e Rio de Janeiro: Weiszflog irmão,
Revista por Capistrano de Abreu, 1918. Liv. V, Cap. VII, P. 485.
157
Haveis de saber que o Brasil é praça do mundo, se não fazemos agravo a algum
reino ou cidade em lhe darmos tal nome; e juntamente academia pública, onde
se aprende com muita facilidade toda a polícia, bom modo de falar, honrados
tenros de cortesia, saber bem negociar, e outros atributos desta qualidade450.
450
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. Segundo a edição da Academia
Brasileira, corrigida e aumentada, com numerosas notas de Rodolfo Garcia e introdução de Jaime Cortesão.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010. Diálogo III. P. 172.
451
POETTERING, Jorun. Introdução: as obras urbanas como meio heurístico para a exploração da sociedade
colonial. In: POETTERING, Jorun; RODRIGUES, Gefferson Ramos (Org.). “Em benefício do povo”: obras,
governo e sociedade na cidade colonial. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2016. P. 8-9.
452
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Império de pedra e cal. Obras públicas, política e bem comum
no Brasil, séculos XVII e XVIII. In: POETTERING, Jorun; RODRIGUES, Gefferson Ramos (Org.). “Em
benefício do povo”: obras, governo e sociedade na cidade colonial. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2016. P. 87-
111.
453
POETTERING, Jorun. Introdução: as obras urbanas como meio heurístico para a exploração da sociedade
colonial. In: POETTERING, Jorun; RODRIGUES, Gefferson Ramos (Org.). “Em benefício do povo”: obras,
governo e sociedade na cidade colonial. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2016. P. 9.
158
esperava-se uma contribuição generosa da Bahia e dos outros domínios, que o Conde dos
Arcos organizaria pelo “amor, e zelo ao meu Real Serviço, e do Bem Comum”454.
Contribuição que se repetiria em 1770, com o mesmo propósito, e de maneira voluntária.
Em relação à comentada passagem de Vicente de Salvador de que aqui as coisas
estavam trocadas, mais do que apontar para a veracidade ou não do empreendimento colonial,
interessa-nos entender a mobilização conceitual de público, particular e privado no âmbito
colonial do ponto de vista de um discurso orientado, no caso de Vicente de Salvador, o “ponto
de vista do colonizador condescendente, que temia a falha do projeto de colonização e
civilização segundo os padrões europeus”455. Como demonstrou Luiz Cristiano de Andrade,
frei Vicente de Salvador pensava o “Brasil” como uma solução para a crise do Império
português. A sua “História do Brasil” fora encomendada por Manuel Severim de Faria,
chantre da Sé de Évora, que buscava obter informações do ultramar para aconselhar a Coroa
portuguesa e obter prestígio e espaço na Corte. A ausência de “bem comum”, portanto, era
uma forma de aconselhar a Coroa a investir na empreitada colonial456.
A condição colonial se dava em termos de especificidades e semelhanças. No primeiro
termo, destaca-se: a complexidade social e cultural formada pelo emaranhado de relações
entre portugueses, indígenas e negros; o aumento gradual da porcentagem de pessoas
escravizadas no território com suas diversidades de culturas e idiomas; a distância em relação
ao centro do poder e a restrição do contato direto com o soberano; o déficit de comunicação
imposto pelo Atlântico. Tal situação contribui para pensar na “autonomia local” do processo
de governação do território. Porém, como aponta Antonio Manuel Hespanha, essa não era
uma condição exclusiva do território americano do reino Português, configurando-se como
um sustentáculo básico do seu modo de governo, pautado na pluralidade de territórios e
súditos457. Em outras palavras, a “autonomia”, a força das localidades no processo de
governação, e a ocupação por parte dessa elite local nos cargos administrativos municipais
454
AHU/Bahia Avulsos (1604-1828)/Carta Régia (minuta) do rei [D. José] ao juiz, vereadores e oficiais da
Câmara da Bahia notificando do terremoto ocorrido em Lisboa e ordenando que se organize meio de ajuda e
arrecadação para o restauro da capital do Reino. Cx. 126. Doc. 9865. 16 de dezembro de 1755; citado por
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Império de pedra e cal. Obras públicas, política e bem comum no
Brasil, séculos XVII e XVIII. In: POETTERING, Jorun; RODRIGUES, Gefferson Ramos (Org.). “Em benefício
do povo”: obras, governo e sociedade na cidade colonial. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2016. P.100.
455
POETTERING, Jorun. Introdução: as obras urbanas como meio heurístico para a exploração da sociedade
colonial. In: POETTERING, Jorun; RODRIGUES, Gefferson Ramos (Org.). “Em benefício do povo”: obras,
governo e sociedade na cidade colonial. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2016. P. 11.
456
ANDRADE, Luiz Cristiano de. A narrativa da vontade de Deus: a História do Brasil de frei Vicente do
Salvador. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2014.
457
HESPANHA, Antonio Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In: Ler
História, n. 8, 1986. P. 35-60.
159
não era um fator diferenciador da colônia em relação à metrópole: era um dado da concepção
de uma monarquia pluricontinental458.
Ainda assim, era patente a falta de uma estrutura administrativa e política no século
XVII. O que não impediu que no longo termo se organizasse aquela sociedade nos moldes do
Antigo Regime português, ao mesmo tempo em que sustentada por uma economia
escravista459. Da constatação sobre a precariedade local do início do século parte-se, ao final
do período, para a condição de sustentáculo econômico da monarquia pluricontinental e da
nobreza do reino, cujas rendas se exauriram no processo da Restauração e na guerra e
expulsão dos holandeses do território colonial. A condição para a implantação desse projeto
era a própria autonomia que as localidades possuíam. Esta só era possível através de uma
negociação permanente entre os interesses das pessoas particulares que habitavam a
localidade, e dos poderes locais com o centro. Dessa cooperação dependia a manutenção do
sistema colonial. As localidades precisavam do poder central para fazer suas intenções se
realizarem, angariarem apoio, obterem recursos, permissões legais e títulos. Instituía-se uma
situação de dependência mútua que corresponde à imagem proporcionada pela teoria a
respeito da subordinação dos particulares – neste caso as cidades coloniais e os súditos – ao
público – o corpo político, a administração que representa o rei, e o próprio rei.
Acredito, dessa forma, que a ideia de “monarquia pluricontinental” se harmoniza com
os usos que eram feitos a respeito do público e do particular. O exercício para a vinculação
dessas partes no todo se realizava por meio de redes de relacionamentos políticos, sociais e
econômicos, através da ação de oficiais régios, irmandades religiosas, inquisição, grupos
mercantis, câmaras. Cabia a estas últimas, junto com as irmandades religiosas, a função
pública de direcionar a comunidade para o bem comum, por meio da justiça, do
abastecimento e da salvação das almas. Neste caso, as cidades e territórios do reino eram
tratados também como “partes”, mas daí não se pressupõe que o “centro” fosse o público. O
centro era também uma “parte” – superior e lócus da cabeça – mas que se integrava às outras
partes em direção ao público. Apesar da força da argumentação do frei Vicente de Salvador,
não era estranho ao território colonial os usos a respeito do público, privado e particular tal
como se apresentavam no contexto ibérico.
458
“De imediato, ela resultava [a monarquia] do processo de amálgama entre a concepção corporativa e a de
pacto político, fundamentada na monarquia, e garantindo, por princípio, a autonomia do poder local”.
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas
reflexões sobre a América Lusa nos séculos XVI-XVIII. In: Tempo, vol. 14, n. 27, Niterói, 2009. P. 43.
459
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas
reflexões sobre a América Lusa nos séculos XVI-XVIII. In: Tempo, vol. 14, n. 27, Niterói, 2009. P. 36-50.
160
É a nobreza alma da República, por que com seu poder, riqueza, e autoridade a
une, defende e socorre; a que encerram estas povoações é tanta, que se faz
impossível reduzi-la a um breve compêndio sem agrava-la. Forma-se o corpo
Político desta república de ilustres cidadãos, o militar de dois Regimentos, um
de Henriques com seu Mestre de Campo, e sargento-mor, e Ajudantes pagos.
Duas companhias de Artilheiros com sargento-mor, e Mestre de Campo de
Engenheiros. O Governador da Fortaleza do Brum serve com patente de
Tenente Coronel. Os das Fortalezas das cinco pontas, Buraco e Castelo do Mar,
com patente e soldo de Capitães, além de outros emolumentos, que lhes dá
maior autoridade461.
Por sua vez, o uso de privado enquanto valido, por exemplo, tratado pelo padre
Antônio Vieira é igualmente encontrado no próprio frei Vicente de Salvador. Segundo ele,
diante da notícia de que uma armada partia da Holanda, o governador Diogo de Mendonça
teria mandado “a um mercador seu privado”462 que desse aos pobres três vinténs por dia para
que ajudassem na guerra vindoura. Os usos de privado, no entanto, são escassos. No geral,
aparecem com o significado de “despojar”, “perder” um ofício ou uma condição. O
afastamento da Corte por um oceano tornou as discussões sobre os perigos e vantagens dos
privados estranhas ao universo colonial, mas não os significados da palavra e, em menor
medida, as suas práticas.
460
Domingos de Loreto Couto fazia parte da academia dos Esquecidos e Renascidos. Concluiu sua obra em
1757, mas foi publicada apenas em 1904. Segundo Íris Kantor, Loreto Couto trouxe uma interpretação ilustrada
da história brasílica. Em seu livro buscou mostrar como os índios do Brasil não eram privados de virtudes
intelectuais, e que essa visão revelava a ignorância dos que haviam se dedicado ao tema. KANTOR, Iris.
Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica Luso-Americana, 1724-1759. São Paulo: Hucitec; Salvador,
BA: Centro de Estudos Baianos/UFBA, 2004. Além disso, tinha por objetivo ressaltar as especificidades dos
pernambucanos, mas, ao mesmo tempo, sua fidelidade ao rei de Portugal e à religião católica. SILVA, Bruno.
“Fabricando” identidades: Domingos de Loreto Couto, vida e obra de um cronista Luso-brasileiro na
Pernambuco de meados do século XVIII. Revista Cantareira, Rio de Janeiro, n. 15, jul.-dez./2011.
461
COUTO, D. Domingos de Loreto. Desagravos do Brasil e Glorias de Pernambuco [1757]. Rio de Janeiro:
Officina Typographica da Bibliotheca Nacional, 1904. Liv. III, Cap. V, n. 53, P. 161. A obra foi concluída em
1757, mas publicada apenas em 1904.
462
SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil 1500-1627. São Paulo e Rio de Janeiro: Weiszflog irmão,
Revista por Capistrano de Abreu, 1918. Liv. V, Cap. XXII, P. 508.
161
463
AHU/Maranhão (1614-1833)/Carta do ouvidor-geral da comarca João Francisco Leal para a rainha D. Maria
I, sobre a criação dos corpos Auxiliares dos Regimentos Militares da capitania e a eleição dos militares das
tropas pagas. Cx. 75. Doc. 6468. 14 de maio de 1790.
464
AHU/Maranhão (1614-1833)/Ofício do Ouvidor João Francisco Leal para o secretário de estado da Marinha e
Ultramar, Martinho de Melo e Castro, queixando-se do governador, Fernando Pereira Leite de Foios, e do seu
valido, António José de Brito, o qual obteve sesmarias ilegalmente. Cx. 79. Doc. 6733. 8 de março de 1792.
465
“extorsão, configurada na venda de salvos-condutos, isenções, baixas e licenças do serviço militar, provisões
de patentes e nomeações – nem sempre concretizadas, e proteção a ladrões; apropriação do erário, através da
cobrança de milhares de alqueires de farinha em troca de isenções diversas aos moradores da Vila de Tapuitapera
e de Guimarães; compra de casas dos missionários das Mercês, coagidos pelo governador e por valores mínimos;
apropriação ilegal de terras; aquisição de escravos, também forçada pelo governador e sem pagamento aos
proprietários; requisição dos índios para o serviço de suas lavouras, em regime de escravidão; apropriação de
bens públicos, conformada na proibição da população extremamente pobre, vizinha à sua residência, ao uso da
água de uma fonte pública e das pedras de uma pedreira pública, ambas situadas nas terras da Câmara, e do corte
de lenha na mata, também próxima”. Simei Maria de Souza Torres suspeita que a carta tenha sido escrita pelo
próprio ouvidor João Francisco Leal. TORRES, Simei Maria de Souza. O cárcere dos indesejáveis: degredados
na Amazônia Portuguesa (1750-1800). 2006. 223 f. Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP), 2006. P. 155.
466
AHU/Maranhão (1614-1833)/Carta dos moradores do Estado do Maranhão para a rainha D. Maria I, sobre as
violências praticadas pelo governador da capitania, Fernando Pereira Leite de Foios, e dos roubos praticados por
António José de Brito de Abreu e Lima. Cx. 76. Doc. 6528. 20 de outubro de 1790. A carta foi transcrita por
Simei Maria de Souza Torres e gentilmente anexada em sua dissertação, onde se podem encontrar também mais
informações sobre os atores aqui envolvidos: TORRES, Simei Maria de Souza. O cárcere dos indesejáveis:
162
Já que assim os experimentais, com tanto dano vosso, importa que daqui por
diante sejais mais Repúblicos, e zelosos do bem comum, e que este prevaleça
contra o apetite particular de cada um; para que não suceda, que assim como
hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo.
Não vos bastam tantos inimigos de fora, e tantos perseguidores, que nem de dia,
nem de noite deixam de vós por em cerco, e fazer guerra por tantos modos. (...)
Não vos basta, pois, que tenhais tantos, e tão armados inimigos de fora, senão
que também vós de vossas portas adentro o haveis de ser mais cruéis,
perseguindo-vos com uma guerra mais que civil, e comendo-vos uns aos
outros? Cesse, cesse já, irmão peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa
discórdia (...)467.
Vê-se, por aí, o quanto essa teologia é visceralmente política – os termos todos
da unio mystica, através do modo sacramental, alcançam agora uma projeção
inteiramente adequada ao corpo coletivo, o qual, ao reunir as vontades
individuais em uma vontade pública única, realiza o “corpo místico” por
excelência. A “divina essência” nomeada por São Bernardo, em Vieira, está
inteiramente repassada pela universitas do jesuíta Suárez (...)469.
Os sermões de Vieira e a ornamentação retórica que lhe dava forma, em conjunto com
as cerimônias no andamento da liturgia, integravam-se no objetivo da “ação persuasória
pública”, explica Alcir pécora, se encaminhando e preparando para a conversão 470. É possível
sintetizar aqui o caráter exemplar dessa publicidade, mas não sem alertar para o caráter
reducionista que pode adquirir tendo em vista os objetivos mais “elevados”, por assim dizer,
que visava. “A dissociação entre a pompa da missa e sua função litúrgica implica o fracasso
da cerimônia como um todo e do mistério eucarístico em particular já que ele fornece a
imagem-modelo do ritual inteiro”471. Mesmo a retórica teológica de Vieira não pode ser
considerada de maneira autônoma, como um mero ornamento estilístico. Por meio dos
conceitos engenhosos se manifestam os sinais divinos e a “presença divina” no mundo, cuja
eficácia reside no ordenamento dos homens para a salvação cristã.
Porém, como apresentado no ponto anterior, também em Vieira a publicidade servia
como critério para medição da integridade moral e aplicação das correções necessárias:
premiar os bons e castigar os maus, “dar o exemplo”. No mesmo sentido, o acadêmico
renascido d. Domingos de Loreto Couto, no texto já citado, dedicava um capítulo do seu
Livro VII – “Pernambuco ilustrado pelo sexo feminino” – para relatar casos de mulheres
assassinadas por falsos testemunhos. A questão da fama, da reputação e da defesa da honra
ocupam um papel central nas tramas homicidas dos senhores, e a publicidade dos falsos casos
de adultério ou do crime cometido são questões centrais nas histórias narradas pelo autor.
Em um dos casos relatados472 o sargento-mor Nicolau Coelho não aceitou o casamento
de sua filha D. Anna com André Viera de Mello. Mandou uma sua escrava contar a mãe de
André que D. Anna estava o traindo com João Paes Barreto. A mãe procurou convencer
469
PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio
Vieira. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, Editora da Universidade de Campinas, Editora da
Universidade de São Paulo (Co-edição), 2016. P. 195. A respeito da necessidade, ou então do imperativo, da
união e harmonia das pessoas particulares no todo, ver especialmente o capítulo 2, “Compêndio de Maravilhas”.
470
PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio
Vieira. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, Editora da Universidade de Campinas, Editora da
Universidade de São Paulo (Co-edição), 2016. P. 189.
471
PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio
Vieira. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, Editora da Universidade de Campinas, Editora da
Universidade de São Paulo (Co-edição), 2016. P. 190.
472
COUTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e glória de Pernambuco [1757]. Rio de Janeiro:
Officina Typographica da Biblioteca Nacional, 1904. Livro VII, Cap. 5. p. 478-482.
164
André a mata-la, contudo, este recusou. O pai de André, Bernardo Vieira, considerou a atitude
do filho como “indigna de homem” e demandou o pronto assassinato de D. Anna e seu
suposto consorte. André cedeu, mas antes de envenenar sua esposa recebeu a notícia de seu
tio que D. Anna estava grávida. O assassinato foi postergado até que ela parisse o filho.
Segundo relato de Loreto Couto, logo em seguida ela foi envenenada e golpeada até morrer.
Para Loreto Couto, um dos aspectos que tornou este caso mais “inumano,
escandaloso” foi a “publicidade com que foi cometido”. O envenenamento, em geral, seria
uma forma de assassinato na qual o criminoso se envergonhava e se ocultava de cometer o
crime. Mas a “publicidade” com que tudo tinha sido feito e o escândalo gerado na
comunidade era, sem dúvida, um fator agravante473. De todas as histórias Loreto Couto
procurava retirar uma mesma lição moral: se os criminosos não foram punidos pela justiça
dos homens, foram punidos pela justiça divina474.
Outros exemplos do uso do conceito de “publicidade” na América Portuguesa podem
ser encontrados no texto anônimo Discurso sobre a sublevação que nas Minas houve no ano
de 1720475. Conforme Laura de Mello e Souza, uma das questões que permite afirmar que os
jesuítas António Correia e José Mascarenhas (junto com D. Pedro de Almeida, o conde de
Assumar) foram também autores do Discurso é a defesa feita do castigo exemplar,
“conduzida por especialistas afeitos ao racionalismo escolástico e as polêmicas eruditas”476.
Essa defesa lançava mão da junção entre a publicidade e a notoriedade (tal como definido por
Bluteau). Assim, havia uma “publicidade requerida em direito” que se cumpria, nesse caso,
pelo amplo conhecimento que se tinha das ações de Felipe dos Santos, que passava “de porta
em porta sublevando os povos”. Tal atitude consistiria na “notoriedade que em direito, sem
mais processo, comprova os delitos”477. De acordo com o(s) autor(res) do Discurso, os
473
No Código Criminal de 1830, como veremos, o Art. 206 estabelecia que causar dor física ou injuriar alguém
em um “lugar público” era considerado um agravante para o crime.
474
Bernardo Vieira de Melo e André Vieira de Melo teriam sido presos e remetidos para Lisboa por outros
motivos (muito provavelmente devido as suas participações na Guerra dos Mascates). Ambos não tardaram a
falecer. Já a mãe, “por permissão de Deus”, teria sofrido o cárcere em sua própria consciência, tendo sido levada
“como desesperada a morrer no mato entre as feras, como fera”. COUTO, Domingos do Loreto. Op. Cit., 1904.
Livro VII, Cap. 5. p. 482. Sobre Bernardo Vieira de Melo, ver: MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos
mazombos nobres contra mascates: Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
475
De acordo com Laura de Mello e Souza, a obra foi provavelmente escrita por D. Pedro de Almeida, terceiro
conde de Assumar e primeiro marquês de Alorna, governador da capitania e responsável pela repressão ao
“motim”, juntamente com os jesuítas Antonio Correia e José Mascarenhas. SOUZA, Laura de Mello. Estudo
Crítico. In: Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo
Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994.
476
SOUZA, Laura de Mello. Estudo Crítico. In: Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas
houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994.
p. 55.
477
Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994. p. 170.
165
sublevados tratavam “com infame e escandalosa publicidade erigir uma república neste
governo”478. A publicidade do fato, portanto, justificava uma ação direta, um castigo
exemplar, por cima do processo e da necessidade de comprovação do delito, como aconteceu
com Felipe dos Santos.
Vale destacar que no bojo das alterações políticas e conceituais das primeiras décadas
do século XIX, Francisco de São Luiz Saraiva comentava que a publicidade não era o mesmo
que a notoriedade, pois a fama muitas vezes é mentirosa, e aquilo que é dito ou repetido por
todos pode ser falso. A publicidade remetia à extensão do conhecimento. Já a notoriedade era
aquilo que é certo, o que não se pode duvidar. O termo notório faria parte da jurisprudência
civil. Segundo ele, “no foro é como axioma, que o fato notório não necessita de prova; porque
a própria notoriedade o põe fora de toda a controvérsia”. Assim, “a simples publicidade
nunca teve esta prerrogativa, nem a terá jamais, senão quando o juiz tiver vontade, ou
interesse de condenar”479.
Também o aparato inquisitorial, ainda que distante, por meio das visitações, impunha-
se no cotidiano do território colonial e atuava na percepção sobre a publicidade480. Em uma
das visitações do Santo Ofício, em 1595, Luis Mendes, com 23 anos, afirmou que as Bulas só
vinham para ganhar ou levar dinheiro, sendo determinado pelo Visitador a “retratação pública
do Auto-da-Fé, em que descalço, em corpo, desbarretado, com vela acesa na mão, abjurou de
leve suspeita na fé”481. A leitura pública dos Éditos da Fé tinha por objetivo informar uma
sociedade que nem sempre conhecia as faltas que estava cometendo. Seria o caso de Manoel
da Costa Calheiros, que considerava que o estado dos casados era melhor do que as outras
ordens, mas depois “que nos papéis do Santo Ofício e nos Éditos da fé ouvira publicar este
caso”, entendeu que estava errado482.
478
Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994. p. 135.
479
SARAIVA, Francisco S. Luiz. Ensaio sobre alguns synonymos da língua portugueza. Tomo II. Lisboa: na
Typografia da Academia R. das Sciencias, 1828. p. 27-29.
480
“Não obstante faltassem à Colônia os ritos espetaculares que o Santo Ofício utilizava no Reino para alimentar
sua imagem terrificante, o vaivém de notícias e pessoas entre Portugal e Brasil, ou mesmo as narrativas da
vizinha América Espanhola, eram suficientes para manter acesos em nossos colonos o pânico inspirado pelo
inquisidor. E, à medida que se organizavam as engrenagens inquisitorial e eclesiástica no Brasil, que a vigilância
dos múltiplos ‘familiares’ do Santo Ofício se fazia sentir na própria vizinhança, que as devassas da Igreja se
tornaram frequentes e periódicas, expondo a vida de todos ao julgamento público, a Inquisição logrou impor sua
sinistra presença no trópico, ainda que a “negra casa do Rocio” ficasse na distante Lisboa”. VAINFAS, Ronaldo.
Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998.
P. 230.
481
SIQUEIRA, Sônia A. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978. P.
185.
482
SIQUEIRA, Sônia A. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978. P.
187.
166
Também Ronaldo Vainfas demonstra como a publicidade podia ser pensada como
uma instância de retidão moral da sociedade na América Portuguesa, na qual as confissões,
murmúrios, boatos, delações e denúncias eram parte do cotidiano da sociedade. Estas,
entretanto, na presença dos visitadores do Santo Ofício, deixavam de ser apenas um “rumor
público” para se tornarem “testemunhas de acusação”483. Os “rumores públicos”, as “vozes
públicas”, na presença do visitador se tornavam questões pertinentes à Igreja, que lançava
mão da publicidade dos atos para atingir seus objetivos, tal como na atuação de Heitor
Furtado de Mendonça, visitador entre os anos de 1591 e 1595:
Episódio que foi seguido de uma série de confissões e delações de amigos e parentes.
O Santo Ofício era parte do aparelho judiciário do Antigo Regime e imprimia nas ideias de
público e publicidade a sua autoridade. O papel que estes conceitos desempenhavam nas
teorias corporativas de poder do Antigo Regime não pode ser deslocado dos agentes
responsáveis pela tarefa de guiar a comunidade em direção ao bem comum. Assim, regular a
moral, controlar as facções e os interesses particulares, servir como “freio” da sociedade,
dirigir a comunidade para o bem publico, garantir a ordem e a autonomia das partes que se
conformavam no corpo político eram tarefas do poder real e da Igreja.
Por fim, sem dúvidas que a marca distintiva da sociedade colonial, política, econômica
e culturalmente, era o escravismo. Era nele que se alicerçava e se estruturava todo o projeto
colonial. As formulações teóricas a respeito da sociedade e do poder, contudo, simplesmente
o escondiam, ou procuravam situá-lo no quadro mais geral das suas teorias, dando-lhes pouca
ou quase nenhuma visibilidade. No âmbito jurídico, tal como já dito, os escravos não eram
vistos como capazes de direito por não terem “condição” social, estados, enquanto pré-
483
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1998. P. 99.
484
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1998. P. 230.
167
requisitos para ter pessoa485. Nesse sentido, não teriam “partes” necessárias para serem
objetos do direito. Do discurso teológico, de um lado justificava-se a legitimidade da
escravidão através de exemplos bíblicos, especialmente pela suposta descendência de Cam; de
outro, buscava-se controlar os abusos cometidos pelos senhores e a validade dos valores
morais cristãos nas ações cotidianas dos escravos.
Com dissemos, apesar do governo da casa ser um modelo para o governo da república,
especialmente no que se refere às regras éticas de comportamento, havia, de fato, a percepção
de uma distinção entre os dois: no primeiro imperava o poder de dominação e no segundo o
de jurisdição. As pessoas que compõe uma família, no interior mesmo da família, não
concorrem para o bem comum, “não se reúnem as pessoas particulares como membros
principais para compor um corpo político”, pois aí prevalece o poder de dominação do pater
familias, em que se encontram submetidos os filhos, esposa e “servos” para a “utilidade do
dono” 486. Era garantida ao poder de dominação no espaço da casa certa autonomia em relação
ao poder de jurisdição, o que não significava que não estivesse submetido aos preceitos
divinos, como todo o resto.
Nesse sentido é que o Padre Jorge Benci dizia, em 1705, que os senhores de escravos
deviam poupar o trabalho aos escravizados durante os sábados (o que obviamente não estava
acontecendo), pois Deus não fazia diferença entre senhores e escravos nesse caso (Êxodo,
20:10)487. Largado a própria sorte, o poder de dominação, isento à jurisdição da república,
assumiria um caráter ofensivo a Deus488. O discurso teológico, nesse sentido, visava
sobretudo um controle dos abusos cometidos pelo pater familias, impondo-lhes no mínimo
três obrigações para com o escravizado: pão, disciplina (ensinar a não errar) e trabalho. De
485
CLAVERO, Bartolomé. Cádiz 1812: antropología e historiografía del individuo como sujeto de constitución.
Quaderni Fiorentini: per la storia del pensiero giuridico moderno, nº 42, 2013. P. 218.
486
“no se reúnen las personas particulares como miembros principales para componer un solo cuerpo político”.
(…) “utilidad del dueño”. SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime
Torrubiano Ripoll. Madrid: Hijos de Reus, 1918. Tomo I, Cap. VI, n. 13, P. 123.
487
Jorge Benci escreveu seu manuscrito, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, em 1700,
sendo publicado em Roma no ano de 1705. Era um jesuíta que esteve no Rio de Janeiro e na Bahia, onde foi
companheiro do Padre Antônio Vieira. Sua obra inseria-se em um projeto escravista-cristão, como em Vieira e
no Padre André João Antonil. Se de um lado legitimava a escravidão por meio dos exemplos e passagens
bíblicas, preocupava-se, por outro, em apontar para os abusos cometidos por senhores, que deveriam cumprir
com seus deveres: pão, disciplina e trabalho. Não encontrei, no entanto, nenhuma referência aos escravos como
algo privado ou particular, ainda que fossem considerados enquanto propriedades. Sobre Jorge Benci, ver:
NEVES, Guilherme Pereira. Padre Jorge Benci, SJ. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil
Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. P. 456-457.
488
O mesmo ocorria em relação aos crimes graves cometidos pelos escravos. De acordo com Benci, ou os
senhores os entregavam à Justiça, mas feriam sua honra e pundonor; ou matavam o escravo, mas ofendiam aos
mandamentos Divinos. A solução era simples: era preciso entregar os escravos à justiça para não ofender a Deus.
O poder doméstico não estava isento de interferências externas (também, nesse caso, no foro interno da
consciência). BENCI DE ARIMINO, Jorge. Economia christaã dos senhores no governo dos escravos. Roma:
Officina de Antonio de Rossi na Praça de Ceri, 1705. Disc. III, § V, P. 182.
168
todo modo, o escravizado não aparece como uma pessoa particular e menos como parte de
uma unidade direcionada ao bem público, e isto ocorria pela razão de que o único bem natural
de que dispunha era sua saúde:
O bem das riquezas, não o alcança; porque nada tem de seu, pois pertence a seu
senhor tudo o que lucra. Menos alcança o bem das delícias: pois vive
continuamente entre os trabalhos, e penalidades do cativeiro. No bem da honra
não tem parte alguma; porque pelo direito são os servos reputados, e contados
entre as pessoas infames. E assim só lhes resta o bem da saúde489.
Quanto ao seu “uso” era diferente. O mesmo padre Benci afirmava que “convém ao
bem público, que ninguém use mal, nem ainda do seu”490. Reproduzindo a ideia de que uma
ofensa feita a um particular fere a comunidade como um todo, neste trecho argumentava que
os injustos castigos aos escravos na América Portuguesa não convinha ao “bem público”, não
pelo sofrimento causado ao escravo, mas pelo “mau uso” da sua posse; que em última
instância foi dada por Deus.
***
Para a conclusão deste capítulo destaca-se e retomam-se alguns pontos com o intuito
de sintetizar e, de alguma forma, sistematizar um tipo de intepretação possível para a
discussão sobre o público e o privado no Antigo Regime. Tal como sugerido no início do
capítulo a partir de um comentário de Bartolomé Clavero491, parece haver um incômodo
generalizado acerca da possibilidade de se trabalhar com estes conceitos no período anterior
ao século XIX. Os que trabalham, não o fazem sem alertar para um possível anacronismo.
Inserido em uma nota, Antonio Manuel Hespanha demonstrava esse incômodo:
489
BENCI DE ARIMINO, Jorge. Economia christaã dos senhores no governo dos escravos. Roma: Officina de
Antonio de Rossi na Praça de Ceri, 1705. Disc. I, § III, n. 47, P. 42-43.
490
BENCI DE ARIMINO, Jorge. Economia christaã dos senhores no governo dos escravos. Roma: Officina de
Antonio de Rossi na Praça de Ceri, 1705. Disc. III, § IV, n. 168, P. 170.
491
“Até onde eu saiba o binômio público/privado, ou seu jogo de qualificações realmente não binômico, na
doutrina moderna do ius commune é matéria que somente foi tocada de maneira bastante tangencial,
excessivamente genérica ou um tanto anacrônica, e não com o cuidado que o tópico indubitavelmente mereceria,
não conhecendo em todo caso um tratamento de suas particularidades interessantes a nosso objeto”. CLAVERO,
Bartolomé. Hispanus Fiscus, persona ficta. Concepción del sujeto político en el ius commune moderno.
Quaderni Fiorentini: per la storia del pensiero giuridico moderno. Literari moderni della persona giuridica,
11/12, tomo I, 1982/1983. P. 141. Nota 103.
169
Também Isabel Deusa e Mónica Peruga diziam que “as noções de ‘público’ e
‘privado” são conceitos que os historiadores costumam utilizar em suas análises “com um
significado que pertence mais à nossas consciências que a de nossos antepassados”493.
Contudo, e aqui reside um dos objetivos deste capítulo: o que fazer com o fato de que estes
conceitos estavam sendo usados nas elaborações teóricas do período? Apenas por eles não se
submeterem à pretensão “moderna” de dividirem a realidade em dois polos autoexcludentes
eles deviam ser descartados ou ignorados? Basta, para compreendê-los, afirmar que não se
distinguiam? Ou trata-se de uma atribuição teleológica relacionada ao momento
“fundacional” da separação dos dois?
O primeiro exercício a ser realizado parece ser a superação da imagem da “grande
dicotomia” elaborada por Norberto Bobbio, bem como de sua característica “mutuamente
exclusiva” (um mesmo elemento só pode pertencer a uma delas)494. Afastar-se, ou colocar em
posição de dúvida, as metáforas de “espaço”, “esfera”, “domínio” e “reino” também pode
auxiliar para um tipo de olhar que incorpore os aspectos de visibilidade e exemplaridade,
igualmente dissolvendo a rigidez dos elementos que obrigatoriamente deveriam se situar em
um ou outro lado da “dicotomia”.
O segundo exercício, me parece, é substituir a imagem que se tem de público e
privado designando dois lados fixos e separados, pela imagem de público e particular
enquanto instâncias constantemente em movimento. Isto quer dizer que o papel relevante
desempenhado por estes conceitos na linguagem política-teológica do Antigo Regime é a
manifestação reiterada da necessidade de vinculação das partes em uma unidade. O
movimento se refere ao constante caminho que se faz das pessoas particulares para a família,
das famílias particulares para a cidade, de cada cidade particular para o corpo político, de cada
corpo político para o bem comum universal da comunidade cristã. Com exceção da “pessoa
particular” e da “família”, todos os outros podem ser considerados “público”.
A mera “não distinção” do público e do privado, nesse sentido, pode ser substituída
pela necessária articulação subordinada das partes ao todo. A “indistinção” ocasional do
492
HESPANHA, Antonio Manuel. Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime. In: Ler
História, n. 8, 1986. P. 36. Nota 5.
493
DEUSA, Isabel Moran; PERUGA, Mónica Bolufer. Presentación. Historia de las mujeres e historia de la vida
privada: confluencias historiográficas. Studia Historica. Historia Moderna. Vol. 19, 1998. P. 17-23.
494
BOBBIO, Norberto. Democracy and Dictatorship: The nature and limits of State power. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1989.
170
público e privado (ocasional porque só adquire seu sentido pela razão da “separação” futura)
deve ser pensada como uma integração constitutiva do particular e do público (constitutiva
porque está na base da estrutura de significado e compreensão da linguagem própria ao
período). Contudo, e como era comum, a unidade (o todo, ou o público) nunca era somente
uma somatória das partes, e sim algo diferente dela. Nos termos de Suárez, a comunidade
perfeita, derivada da fusão estabelecida por um vínculo moral entre as diferentes casas, não
era somente um aglomerado de famílias. A isto se pareceria uma multidão. O público, dessa
forma, pressupunha sempre uma potestas responsável por tornar possível a união entre as
partes, ou os membros, na formação de um corpo político e na direção para o bem comum –
finalidade teológica última, realizada na felicidade pública e na concórdia.
O terceiro exercício, portanto, diz respeito à consideração do conceito de público
vinculado às autoridades responsáveis por ordenar e dirigir a comunidade (o público passivo
ou in habitu) para o bem comum. Importa aqui também a ideia de movimento no
ordenamento em vista de um fim. Nesse sentido, “público” não era apenas o rei ou as
autoridades que o representavam, ainda que no temporal fosse a potestas publica superior.
Também o espiritual tinha por obrigação o encaminhamento para o bem comum através da
“fé pública”, logo, compunha-se como instância pública, sendo o Sumo Pontífice a potestas
publica superior. A instância última, como defende Suárez, era Deus: potestas publica e
suprema no temporal e espiritual495.
As “pessoas particulares”, portanto, se diferenciavam das “pessoas públicas”, mas não
em termos de oposição. Em um livro atribuído ao Padre Antonio Vieira, publicado no ano de
1745496, a distinção entre “pessoa pública” e “pessoa particular” aparecia para justificar as
circunstâncias que se devem ponderar no exórdio, primeira etapa da invenção retórica.
Também se pode ponderar, quem a faz, sendo pessoa pública, como Rei, Reino,
Cabido, Convento, Confraria; se for pessoa particular, há de ser mui ilustre,
para que se fale nela; e em suma a circunstância da pessoa particular se poderá
tocar (ainda que sem nomear a pessoa) quando a sua memória se dirige a fim
sagrado; porque então não pode o Auditório notar o Orador de lisonjeiro497.
495
SUÁREZ, P. Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador. Trad. de D. Jaime Torrubiano Ripoll.
Madrid: Hijos de Reus, 1918. Tomo I, Cap. VIII, n. 2 , P. 147.
496
O livro teria sido encontrado e organizado por Guilherme José de Carvalho Bandeira, e foi atribuído ao Padre
Antonio Vieira também pelos censores. BANDEIRA, Guilherme José de Carvalho. Rhetórica Sagrada, ou arte
de pregar. Novamente descoberta entre outros fragmentos literários do grande P. Antonio Vieira da Companhia
de Jesus. Lisboa: Officina de Luiz José Correa Lemos, 1745.
497
BANDEIRA, Guilherme José de Carvalho. Rhetórica Sagrada, ou arte de pregar. Novamente descoberta
entre outros fragmentos literários do grande P. Antonio Vieira da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina de Luiz
José Correa Lemos, 1745. Cap. I, P. 6-7. [itálico meu].
171
Diz-se que o interesse dos indivíduos deve ceder ao interesse público. Mas o
que isso significa? Um indivíduo não é parte do público tanto quanto outro?
Esse interesse público que você personifica é apenas um termo abstrato:
representa meramente uma massa de interesses individuais. É necessário levar
todos em conta, em vez de considerar alguns como todos, e o resto como nada.
Se fosse apropriado sacrificar a fortuna de um indivíduo para aumentar a de
outros, seria ainda melhor sacrificar a de um segundo, de um terceiro, até
mesmo de cem, de mil, sem que fosse possível atribuir um limite; pois qualquer
que seja o número daqueles que você sacrificou, sempre terá o mesmo motivo
para adicionar mais um. Em suma, o interesse do primeiro é sagrado, ou o
interesse de ninguém pode ser.
Interesses individuais são os únicos interesses reais. Cuide dos indivíduos;
nunca os machuque, ou faça com que sejam feridos, e você terá feito o
suficiente para o público498.
498
“’The interest of individuals’, it is said, ‘ought to give way to the public interest’. But what does this mean? Is
not one individual as much part of the public as another? This public interest which you personify is only an
abstract term: it represents only the mass of the interests of individuals. They ought all to be taken account of,
instead of considering some as everything, and the rest as nothing. If it be proper to sacrifice the fortune of one
individual, in order to augment the fortune of others, it would be still better to sacrifice a second, a third, even a
hundred, even a thousand, without it being possible to assign any limits; for whatever may be the number of
those you have sacrificed, you always have the same reason for adding one more. In a word, the interest of the
first is sacred, or the interest of no one can be so. Individual interests are the only real interests. Take care of
individuals; never injure them, or suffer them to be injured, and you will have done enough for the public”.
BENTHAM, Jeremy. The Works of Jeremy Bentham. Published under the superintendence of his executor, John
Bowring. Edinburgh: William Tait, 1843. Cap. XV, §6, P. 321. (Tradução nossa). Até onde eu pude verificar
esta passagem talvez tenha sido publicada pela primeira vez em 1802, na compilação organizada por Étienne
Dumont através dos manuscritos cedidos por Bentham: BENTHAM, Jeremy. Traités de législation civile et
pénale. Publiés en François par Ét. Dumont, de Genève, d’après les manuscrits confiès par l’Auter. Paris: Chez
Bossange, Masson et Besson, tome II, 1802.
499
De acordo com Eric Hobsbawm, a população urbana da Inglaterra apenas ultrapassou a população rural no
ano de 1851, e isto em um país que por volta de 1789 possuía o maior centro urbano (cerca de um milhão de
habitantes em Londres) do mundo europeu. HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções (1789-1848). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977. P. 27.
173
acelerando, pois os ritmos das mudanças políticas, sociais e culturais, agora interpretados pela
noção de progresso, impunham-se sobre as formas tradicionais do cotidiano500.
Essa experiência de aceleração do tempo diz respeito a um processo mais amplo que
se convencionou chamar de crise do Antigo Regime, no qual as concepções e as práticas que
fundamentavam as velhas artes de governar foram questionadas em suas premissas. A
ilustração era, portanto, o momento em que o Antigo Regime foi colocado na arena de debate
para ser testado por novos atores, com novos propósitos. Consistia em uma mutação profunda
dos comportamentos, ideias e imaginários, em termos epistemológicos e também no plano das
atitudes e valores morais501. Mas é importante lembrar que não se tratava de um movimento
articulado, homogêneo e coerente. No interior desse processo de crise, inúmeros projetos
políticos estiveram em disputa.
A observação do uso dos conceitos políticos oferece um bom exemplo destes projetos.
Velhos conceitos foram ressignificados e novos conceitos emergiram: nação, constituição,
estado, povo, liberdade, lei, direito, cidadão, indivíduo, economia, pátria, progresso,
sociedade, república, entre muitos outros502. A partir desse momento se tornaram peças
centrais nos diversos quebra-cabeças que se construíam para interpretar a realidade ou então
para moldá-la a partir de novos referenciais.
Sob o imperativo do “uso público da razão”, como dizia Immanuel Kant, era preciso
sair da “menoridade” e superar a “preguiça” e a “covardia”, lançando mão da razão em
situação de liberdade para se tornar capaz de pensar por si próprio503. Este “pensar por si
próprio” foi, talvez, o principal paradigma no processo de desestruturação das teorias
corporativas de poder do Antigo Regime, pois tratava exatamente da “invenção” do indivíduo.
Em oposição às pessoas particulares, compreendidas a partir das suas condições e ligadas por
um vínculo natural estabelecido por Deus, despontava a ideia do indivíduo nu, abstrato e
500
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos históricos; tradução,
Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. PUC-
Rio, 2006; BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: as estruturas
do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, V. 1, 2005.
501
GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independências: ensayos sobre las revoluciones hispânicas.
México: Mapfre – Fondo de Cultura Económica, 1993; DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
502
A respeito destes conceitos, ver: SEBASTIÁN, Javier Fernández (dir.). Diccionário Político y Social Del
Mundo Iberoamericano. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales – Universidade del País Vasco,
Tomo I, 2009; ______. Diccionario político y social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos
fundamentales, 1770-1870, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales – Universidad del País
Vasco, Tomo II, 2014; ______. Las revoluciones hispânicas. Conceptos, metáforas y mitos. In: CHINCHILLA
PAWLING, Perla de los Angeles (Comp.). La Revolución Francesa: ¿matriz de las revoluciones? Ciudad de
México: Universidad Iberoamericana, 2010.
503
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é esclarecimento? In: Textos Seletos. Tradução Floriano de
Sousa Fernandes. Petrópolis: Editora Vozes, 2ª ed., 1985.
174
igual, isolado dos seus estados e ligado aos outros pela mera vontade, reclamando para si os
seus direitos inalienáveis.
Conforme António Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier, o paradigma
individualista que ocupou as discussões políticas a partir do século XVIII adquiriu uma nova
feição por conta da “laicização da teoria social”, que significava a libertação da sociedade e
do indivíduo das limitações transcendentes, separando, dessa forma, as matérias da fé das
aquisições intelectuais. Além disso, teve uma implicação central na compreensão sobre o
poder:
a partir daqui, este não pode mais ser tido como fundado numa ordem objetiva
das coisas; vai ser concebido como fundado na vontade. (...) Ou na vontade
soberana de Deus, manifestada na Terra, também soberanamente, pelo Seu
lugar-tenente – o príncipe (providencialismo, direito divino dos reis). Ou pela
vontade dos homens que, levados ou pelos perigos e insegurança da sociedade
natural ou pelo desejo de maximizar a felicidade e o bem-estar, instituem, por
um acordo de vontades, por um ‘pacto’, a sociedade civil (contratualismo)504.
504
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994. P. 117. A gestação da
ideia do indivíduo remete à escolástica franciscana quatrocentista e à “questão dos universais”, discutida por
autores como Guilherme d’Ockham.
505
Diversos estudos recentes têm procurado matizar a associação do governo monárquico do Antigo Regime
com um modelo “absolutista” de poder associado ao despotismo. No geral, constata-se que os processos de
centralização política na Europa durante a segunda metade do XVIII se deram a partir de negociações
permanentes com as elites locais e regionais, muitas vezes optando pela formação de uma burocracia treinada a
servir aos interesses exclusivos da Coroa ao invés de uma simples coerção militar. As propostas de um “poder
absoluto” na Europa quase sempre implicavam no respeito aos foros e liberdades. Na linguagem do período,
poder absoluto opunha-se mais precisamente ao poder despótico do que à limitação ao poder e nesta linha tênue
situava-se propriamente o direito dos vassalos, como veremos mais à frente. Ver a este respeito: HENSHALL,
Nicolas. El absolutismo de la Edad Moderna 1550-1700. ¿Realidad política o propaganda? In: ASCH, Ronald
G.; DUCHHARDT, Heinz. El absolutismo (1550-1700), ¿un mito? Revisión de un concepto historiográfico
clave. Barcelona: Idea Books, 2000.
175
No entanto, presas ao moralismo, cada abelha sentia o peso da culpa sobre si. O Deus
Júpiter, atendendo ao pedido das abelhas inconformadas com a depravação e desonestidade,
elimina todos os traços de egoísmo, corrupção e vício, transformando as abelhas em exemplos
de retidão moral e virtude. O resultado foi desastroso. Sem os vícios não havia conflitos e
nem guerras, o que impactava na profissão de advogados e na indústria bélica. Os devedores
começaram a pagar suas dívidas, dispensando os tribunais. Sem vaidade, as abelhas passaram
506
FONSECA, Eduardo Gianetti da. A Fábula das Abelhas. Braudel Papers, n. 5, 1994. P. 6.
507
MANDEVILLE, Bernard de. A Fábula das Abelhas: vícios privados, benefícios públicos. São Paulo: Editora
Unesp, 2017. No último verso o autor utiliza a expressão common good, traduzida para “bem da nação”.
176
a usar a mesma roupa por anos, destruindo a indústria da moda. Ferreiros fecharam suas lojas,
pois não havia necessidade de cadeados e chapas de ferro. O desemprego se alastrava junto ao
fechamento de inúmeras lojas, tavernas, restaurantes. As poucas abelhas que sobraram,
“abençoadas pelo contentamento e honestidade”, se refugiaram em uma “árvore oca”.
A perspectiva de Mandeville, tida atualmente por “egoísmo ético” 508, não era, no
entanto, a mais comum no período. Além do mais, ela mantinha certa limitação tradicional
que servia como freio ao próprio desenvolvimento do capitalismo, isto é, a consideração de
que a busca pelos interesses individuais e a satisfação das próprias paixões eram “vícios” ou
“vaidades”. O autor responsável por liberar estes freios foi Adam Smith, que em sua Teoria
dos Sentimentos Morais (1759), defendia que nem todas as atitudes visando ao interesse
próprio eram “vaidades”.
O ponto é que havia uma preocupação real com a dissolução desse universo
tradicional. A defesa dos indivíduos nos discursos liberais dos séculos XVIII e XIX, que se
desenrolava paralelamente à ampliação da atuação do “Estado” então em gestação, era
geralmente acompanhada de uma preocupação com as formas coletivas de existência. Estas se
manifestavam, de um lado, através da necessidade de se criar associações, instituições e
sociabilidades modernas e, de outro, pela necessidade de articular e direcionar estes
indivíduos para o interesse público. Temia-se um excesso de apego à liberdade individual e
que podia esvaziar a importância da liberdade política. Tal como em Mandeville, ainda que
por meio dos vícios, as abelhas “conciliavam as dissonâncias no geral”. Ou seja, a segunda
consequência do somatório dos interesses individuais foi uma ampliação da preocupação e,
como efeito, das discussões sobre o interesse público.
Quando, em 1819, Benjamin Constant proferiu sua conferência De la liberté des
Anciens comparée à celle des Modernes no Athénée Royal de Paris, fez questão de anotar, ao
final, essa preocupação que estamos tratando:
511
BENN, Stanley, GAUSS, Gerald F. The public and the private: concepts and action. In: BENN, Stanley,
GAUSS, Gerald F. Public and private in social life. New York: St. Martin’s Press, 1983. P. 44.
512
RENAUT, Alain. O indivíduo. Reflexão acerca da filosofia do sujeito. Trad. Elena Gaidano. Rio de Janeiro:
DIFEL, 1998. P. 29.
178
Nutrida por todo o debate que a antecedeu, a tese central de Constant apontava para o
momento fundamental, no mundo europeu, da construção do público e do privado enquanto
instâncias de divisão da realidade. Em Constant o “público” é propriamente o “político”.
Atribuindo os males da Revolução de 1789 a autores como Mably e Rousseau, Constant
acusava-os de defender uma liberdade típica das repúblicas antigas, que consistia na
participação coletiva nos negócios da república, que perniciosamente subordinava a liberdade
individual ao corpo coletivo (o público que dominava o privado). Já a liberdade dos modernos
fundava-se no oposto: tratava-se da realização das necessidades do homem privado, no direito
de ir e vir, de expressar livremente sua opinião e de professar a sua própria religião. Não se
tratava, no entanto, do abandono de um dos tipos de liberdade, mas da necessidade de
“aprender a combiná-las”514. Aos poucos, e atravessada pela junção de dois conceitos-chaves,
liberdade e indivíduo, a divisão “público” e “privado” vai se tornando uma divisão total da
realidade. E aqui dificilmente se poderia conciliar a velha fórmula de que aquilo que vale para
o particular vale tanto ou até mais para o público.
Estamos aqui abordando, sumariamente, duas mudanças centrais: a invenção do
indivíduo com capacidade de exercer sua vontade e o uso dessa mesma vontade na elaboração
do pacto social. Porém, paralelo ao desenvolvimento dessas ideias e talvez como resposta aos
“delírios dos filósofos” que se ocupavam desses temas515, houve um processo de
fortalecimento do poder central. Este movimento também era consequência da crise do Antigo
Regime e das perspectivas que fundavam na “vontade” o poder político, as leis e o direito.
No mundo luso-brasileiro, que não passou ileso às mudanças que se engendravam ao
seu redor, o desenvolvimento da centralização do poder adquiriu força durante o governo
pombalino. O contexto político e prático português no período josefino é condição para
513
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos [1819]. Filosofia política.
Porto Alegre: L&PM, 1980. P. 23. Sobre Constant e sua importância na formatação do poder moderador no
Brasil, ver: BARBOSA, Silvana Mota. A Sphinge Monárquica: o poder moderador e a política imperial. 2001.
Tese de Doutorado – Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2001.
514
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos [1819]. Filosofia política.
Porto Alegre: L&PM, 1980. P. 25.
515
Dizia Paschoal José de Mello Freire dos Reis que “o chamado pacto social é um ente suposto, que só existe na
cabeça e imaginação alambicada de alguns filósofos”. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Resposta que
deu o desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis às censuras que sobre o seu Plano do Novo Código
de Direito Público de Portugal fez, e apresentou na Junta da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In:
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr.
Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos
Santos em 1789. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. P. 88.
179
516
Cf. HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994. P. 126-127.
517
SILVA, Ana Cristina Nogueira. Tradição e reforma na organização político-administrativa do espaço,
Portugal, finais do século XVIII. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São
Paulo: Ed. Hucitec, 2003. P. 298. Sobre o caráter de ruptura ou continuidade das reformas e de Portugal ao longo
da segunda metade do XVIII, ver a discussão já citada entre Nuno Monteiro, José Subtil e António Manuel
Hespanha, cuja síntese foi feita pelo próprio Hespanha em: HESPANHA, António Manuel. A Note on Two
Recent Books on the Patterns of Portuguese Politics in the 18 th Century. e-JPH, Vol. 5, nº 2, Winter 2007.
518
Cf. SUBTIL, José. O direito de polícia nas vésperas do Estado liberal em Portugal. In: FONSECA, Ricardo
Marcelo (Org.). As formas do direito: ordem, razão e decisão – (experiências jurídicas antes de depois da
Modernidade). Curitiba: Juruá Editora, 2013. P. 329-330.
180
519
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Portugal. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario político y
social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870 [Iberconceptos II]. Madrid:
Centro de Estudios Políticos y Constitucionales – Universidad del País Vasco, Tomo III – Estado, 2014.
520
BLUTEAU, Raphael. Policia. In: Vocabulario Portuguez & Latino: áulico, anatômico,
architectonico...Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, v. 2, 1721. P. 575.
181
urbanidade dos Cidadãos, no falar, no termo, na boa maneira”. Policiar nada mais era do que
“polir, introduzir a Policia”521.
Como fica claro, a ideia de polícia no período estava longe de designar exclusivamente
o aparato repressivo de um Estado ainda ausente. Ela designava o bom governo da república,
sugerindo um tipo de governo em que a finalidade da política repousava em critérios práticos
e técnicos. Ao mesmo tempo, recobria aspectos culturais da sociedade, relacionados aos bons
modos, costumes, comportamentos, higiene, entre outros.
As elaborações teóricas sobre a “polícia” são anteriores à segunda metade do século
XVIII522. No entanto, vai ser apenas a partir deste período que em Portugal elas passaram a
adquirir uma importância nos projetos e nas práticas políticas, especialmente devido ao
Terremoto de 1755. Este evento, como destacado por José Subtil, obrigava uma atuação
incisiva e direta das autoridades. Dada à magnitude da catástrofe, era preciso buscar soluções
práticas, sem perder tempo com discussões teóricas amplas523. As ideias de polícia serviam,
portanto, como justificativas para derrogação de elementos do corporativismo, tomados como
entraves para o desenvolvimento do “interesse público” e da “felicidade pública”.
Estes dois termos se tornaram constantes nos debates do período, bem como em todo o
aparato normativo e institucional que se buscava construir. Ainda de acordo com José Subtil,
“de um ponto de vista político e institucional, o governo de polícia configurou o seu sistema
de poder alicerçado no superior ‘interesse público’ do Estado”524. Para Jesus Vallejo,
521
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza composto pelo Padre D. Rafael Bluteau,
reformado e accrescentado por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.
522
Desde o início dos setecentos as ideias de polícia vinham sendo discutidas pela Europa, com especial
destaque para Nicolas De La Mare (DE LA MARE, Nicolas. Traité de la Police. Paris, 1703-1719) e Jean Bodin
(BODIN, Jean. Les six livres de la republique. Paris, 1576) na França; Johannes Von Justi (JUSTI, Johannes
Heinrich Gottlob Von. Grundsatze der Polizeiwissenschaft. Göttingen, 1759) na Alemanha; e Juan de Santa
Maria (SANTA MARIA, Juan. Tratado de República, y Policia Christiana. Valencia, 1619) e Tomás Valeriola
(VALERIOLA, Tomás. Idea General de la Policía o Tratado de Policía... Valencia, 1798-1805) na Espanha.
523
Cf. SUBTIL, José. O Terramoto político (1755-1759): memória e poder. Lisboa: EDIUAL, 2007; SUBTIL,
José. O direito de polícia nas vésperas do Estado liberal em Portugal. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (Org.). As
formas do direito: ordem, razão e decisão – (experiências jurídicas antes de depois da Modernidade). Curitiba:
Juruá Editora, 2013.
524
SUBTIL, José. O direito de polícia nas vésperas do Estado liberal em Portugal. In: FONSECA, Ricardo
Marcelo (Org.). As formas do direito: ordem, razão e decisão – (experiências jurídicas antes de depois da
Modernidade). Curitiba: Juruá Editora, 2013. P. 276.
525
“El tópico de la felicidad estaba, como consecuencia, presente de modo definitorio, constituyéndose en
objetivo básico al que la policía debía tender. La vinculación al logro del bien público y al mantenimiento del
orden ya explica que la felicidad fuese corolario, pero no se trataba de un simple subproducto, de un resultado
182
añadido, sino de una finalidad expresa y directamente buscada”. VALLEJO, Jesús. Concepción de la policía. In:
SARIÑENA, Marta Lorente (Dir.). La jurisdicción contencioso-administrativa en España. Una historia de sus
orígenes. Cuadernos de Derecho Judicial, n. VII, 2008. P. 127.
526
VALLEJO, Jesús. Concepción de la policía. In: SARIÑENA, Marta Lorente (Dir.). La jurisdicción
contencioso-administrativa en España. Una historia de sus orígenes. Cuadernos de Derecho Judicial, n. VII,
2008. P. 128.
527
BENN, Stanley, GAUSS, Gerald F. The public and the private: concepts and action. In: BENN, Stanley,
GAUSS, Gerald F. Public and private in social life. New York: St. Martin’s Press, 1983.
528
Analisando o conceito de “ordem pública” na obra de Gaetano Filangieri (La scienza della legislazione,
1784), François Godicheu afirma o seguinte: “Esta multiplicación del adjetivo ‘público’, tautológica por carencia
de definiciones, es una afirmación bastante enfática de que existe un ámbito de lo público, como una instancia
única vinculada a la constitución política – el orden político –; es un ejemplo del poder performativo de la teoría
política. Esta fuerza le viene de la novedad del esfuerzo definitorio, de la poca costumbre de emplear la
expresión orden público en ese momento y del carácter de la obra, que se quería fundadora de una ciencia
jurídica moderna”. GODICHEAU, François. Orígenes del concepto de orden público en España: su nacimiento
en un marco jurisdicccional. Ariadna Histórica. Lenguajes, conceptos, metáforas, n. 2, 2013. P. 118.
183
529
SUBTIL, José. O direito de polícia nas vésperas do Estado liberal em Portugal. In: FONSECA, Ricardo
Marcelo (Org.). As formas do direito: ordem, razão e decisão – (experiências jurídicas antes de depois da
Modernidade). Curitiba: Juruá Editora, 2013. P. 328.
530
Compreendo o uso da expressão “Estado” adotada aqui a partir do sentido de “condição”. Acredito que as
discussões sobre a polícia, longe de designarem um “pré-Estado”, devem ser pensadas como um dos vários
projetos possíveis para os atores do período. São projetos ou ideias, heterogêneas e múltiplas, que não foram
totalmente adotadas (como se fosse um bloco único e homogêneo). Essas ideias tratavam da “arte de governo”.
Para alguns autores as ideias de polícia deveriam ser vistas mais como uma etapa da monarquia corporativa do
Antigo Regime do que como um indício prévio da construção do Estado, por exemplo, LEMPÉRIÈRE, Annick.
Entre Dios y el rey: la república. La ciudad de México de los siglos XVI al XIX. Trad. De Ivette Hernández
Pérez Vertti. México: Fondo de Cultura Económica (FCE), 2013.
531
CATROGA, Fernando. A Geografia dos afectos pátrios: as reformas político-administrativas (sécs. XIX-XX).
Coimbra: Almedina, 2013. Especialmente o primeiro capítulo: “O debate político-administrativo nos alvores do
liberalismo em Portugal”; SILVA, Ana Cristina Nogueira. O modelo espacial do Estado Moderno.
Reorganização territorial em Portugal nos finais do Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
532
SUBTIL, José. As mudanças em curso na segunda metade do século XVIII: a ciência de polícia e o novo
perfil dos funcionários régios. In: STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios
nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII-XVIII). Lisboa: Centro de História de
Além-Mar: Universidade Nova de Lisboa: Universidade dos Açores, 2012.
184
533
“Hei desde logo por extinto, e acabados, como se nunca houvessem existido, o emprego de Contador-mor, e
os Contos do Reino, e Casa, com todos os ofícios, e Incumbências, com todas as formas de arrecadação, que
neles se exercitaram, e praticaram até agora, e com todos os Cofres, e Depósitos de Entrada, e Custodia em que
até o presente paravam os Direitos, e Rendas da Minha Real Fazenda separados pelas diferentes Repartições, em
que ela andava dividida, sem exceção alguma”. Lei de 22 de dezembro de 1761. Lei extinguindo os Contos do
Reino, e Casa, e creando o Erario Régio. In: SILVA, Antonio Delgado da. Colleção da Legislação Portugueza
desde a última compilação das ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: na Typografia Maigrense, 1830.
P. 817.
534
Lei de 22 de dezembro de 1761. Lei extinguindo os Contos do Reino, e Casa, e creando o Erario Régio. In:
SILVA, Antonio Delgado da. Colleção da Legislação Portugueza desde a última compilação das ordenações.
Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: na Typografia Maigrense, 1830. P. 816. [itálico nosso].
535
CARDOSO, José Luís; CUNHA, Alexandre Mendes. Discurso econômico e política colonial no Império
Luso-Brasileiro (1750-1808). In: Revista Tempo, vol. 17, nº 31, 2011. P. 76.
536
SUBTIL, José. O direito de polícia nas vésperas do Estado liberal em Portugal. In: FONSECA, Ricardo
Marcelo (Org.). As formas do direito: ordem, razão e decisão – (experiências jurídicas antes de depois da
Modernidade). Curitiba: Juruá Editora, 2013. P. 313. Contudo, como demonstrou Ângelo Alves Carrara,
considerando estritamente a eficácia tributária das medidas fiscais pombalinas, elas “resultaram num retumbante
fracasso”. CARRARA, Ângelo Alves. O reformismo fiscal pombalino no Brasil. In: Historia Caribe, Volumen
XI, n. 29, 2016. P. 83-111.
185
537
Cf. KANTOR, Íris. Novas expressões da soberania portuguesa na América do Sul: impasses e repercussões
do reformismo pombalino na segunda metade do século XVIII. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de
Fátima (Org.). O Brasil Colonial: 1720-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, V. 3, 2014. P. 463.
538
CARDOSO, José Luís; CUNHA, Alexandre Mendes. Discurso econômico e política colonial no Império
Luso-Brasileiro (1750-1808). Revista Tempo, vol. 17, nº 31, 2011.
539
Cf. CARREIRA, António. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão: o comércio monopolista
Portugal-África-Brasil na segunda metade do século XVIII. São Paulo: Editora Nacional, vol. 1, 1988.
540
SILVA, Ana Rosa Cloclet. Inventando a Nação: intelectuais ilustrados e estadistas Luso-Brasileiros na crise
do Antigo Regime Português (1750-1822). São Paulo: Hucitec, 2006.
541
CARDOSO, José Luís; CUNHA, Alexandre Mendes. Discurso econômico e política colonial no Império
Luso-Brasileiro (1750-1808). Revista Tempo, vol. 17, nº 31, 2011.
186
das elites locais (e suas famílias tradicionais) e interesses da coroa portuguesa, que se
instalavam determinadas instituições ou se faziam cumprir as medidas reformistas. Cientes
dos seus direitos e privilégios enquanto súditos do reino542, as elites coloniais atuavam, na
medida do possível, em favor ou contra determinadas normatizações e instituições
dependendo das vantagens políticas e econômicas que poderiam ser obtidas a curto, médio ou
longo prazo543.
Assim, as elites coloniais nas mais diferentes localidades do reino português não
devem ser caracterizadas como uma força de resistência ao projeto reformista central,
tampouco como um agrupamento social passivo submetido ao jugo centralista da coroa.
Estabelecia-se um jogo político, delimitado pelas especificidades socioeconômicas das
localidades, no qual as relações de perdas e ganhos eram negociadas cotidianamente. Em
certos momentos, havia uma relação de mútua colaboração, onde as elites locais, ávidas por
mercês, privilégios, cargos e autoridade, buscavam levar adiante as normatizações do poder
central, que por sua vez necessitava de legitimidade das bases sociais. Em outros,
escancarava-se o conflito, não apenas entre as elites locais e os poderes do centro, mas
inclusive entre facções internas à localidade. O que podia, ou não, inviabilizar as imposições
governamentais544. E este conflito nem sempre era resolvido por meio da negociação,
envolvendo, como envolveu em inúmeras situações, o uso da força e da violência.
Em 1796, D. Rodrigo de Souza Coutinho é nomeado Ministro e Secretário do Estado
da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, órgão que foi gradualmente concentrando as
questões relacionadas à América Portuguesa. Assumiu, em 1801, como presidente do Real
Erário e, a partir de 1808, como Ministro da Guerra. Desde o início da sua atuação se
preocupou com a política fiscal, buscando dar mais autonomia econômica para o território
colonial, além de tentar diminuir as taxações no domínio ultramarino, quer porque entendia
que “a negação a essa prerrogativa podia inflamar movimentos por independência” 545, quer
porque compartilhasse do discurso liberal e fisiocrata e sua crença na máxima de que a
542
Estes “direitos e privilégios” eram baseados nos costumes locais e sustentavam-se na tradicional autonomia
conferida às partes do reino pela coroa. De acordo com António Manuel Hespanha, elas compunham
propriamente o “direito colonial”. HESPANHA, António Manuel. Porque é que existe e em que é que consiste
um direito colonial brasileiro. Quaderni Fiorentini: per la storia del pensiero giuridico moderno, n. 35, Tomo I,
2006. P. 59-81.
543
Cf. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Conduzindo a barca do Estado em mares revoltosos: 1808 e a
transmigração da família real portuguesa. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Brasil
Colonial (1720-1821). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 3, 2014.
544
Cf. PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e localismo: sobre as relações políticas e culturais entre capital e
territórios nas monarquias europeias do século XVI e XVII. Penélope. Fazer e desfazer história, n. 6, 1991. P.
119-144.
545
CARDOSO, José Luís; CUNHA, Alexandre Mendes. Discurso econômico e política colonial no Império
Luso-Brasileiro (1750-1808). In: Revista Tempo, vol. 17, nº 31, 2011. P. 84.
187
riqueza do rei seria uma consequência geral da riqueza dos domínios do reino 546. Tal
estratégia, no entanto, visava acima de tudo garantir um aumento nas receitas; não apenas
através da reexportação de matérias primas e gêneros alimentícios (cuja demanda crescia na
Europa), mas pela constituição da América Portuguesa como um dos maiores consumidores
dos produtos fabricados na metrópole, como o vinho e o azeite, e dos trabalhadores
escravizados.
Diversas propostas também visaram alterar a disposição dos territórios políticos e
administrativos típicos do Antigo Regime. As Câmaras concelhias (corporações) eram as
instâncias políticas mais presentes na vida cotidiana da população, regulando-a por meio do
aprovisionamento de víveres, do manejo das receitas e despesas, do estabelecimento dos
preços e salários, entre outros. Essa regulação era exercida a partir das “particularidades” de
cada território, sugerindo aos atores reformistas dos finais do XVIII uma economia localista e
protecionista que impedia uma uniformização racional e eficiente da administração do reino.
Conforme Ana Cristina Nogueira da Silva, as tentativas de uniformização operavam
em quatro aspectos fundamentais: a) equiparação dos pesos e medidas das localidades em
relação aos da corte; b) uniformização dos forais; c) substituição dos múltiplos tributos e
privilégios fiscais por um imposto único, distribuído equitativamente pelos súditos; d)
observância da lei régia em todo o território, por oposição às posturas municipais e aos
costumes locais547. Dão razões para estes aspectos a legislação pombalina, que ampliava os
mecanismos de vigilância e inspeção sob as câmaras e outras corporações, e também a
legislação no período de D. Maria I, sobretudo no período de D. Rodrigo de Souza Coutinho,
que apesar da Viradeira apresentava muitas continuidades em relação ao período de
Pombal548.
Do ponto de vista político, inserida nas reformas estava a criação da Intendência Geral
de Polícia em 1760. A sua institucionalização se assentava na constatação de que a “justiça
contenciosa” e a “Polícia da Corte” eram incompatíveis, e que sua “vastidão” era “inacessível
às forças de um só magistrado”, resultando na inobservância das leis. No seu alvará de
546
Ver: AIDAR, Bruno. Uma substituição luminosa: tributação e reforma do Antigo Regime português em D.
Rodrigo de Souza Coutinho ao final do século XVIII. In: Revista Nova Economia, 21 (1), janeiro-abril de 2011.
P. 137-156.
547
SILVA, Ana Cristina Nogueira. O modelo espacial do Estado Moderno. Reorganização territorial em
Portugal nos finais do Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. P. 34-35. Uma das mais importantes leis
do período que se destinavam propriamente para a reforma das comarcas foi a lei de 19 de julho de 1790 – “Lei
regulando a jurisdição dos Donatarios da Coroa, e abolindo os Ouvidores”.
548
Em diversos aspectos, mas especialmente no que se refere aos domínios da América, a Viradeira não
representou uma ruptura, ver a esse respeito: MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Conduzindo a barca do Estado
em mares revoltosos: 1808 e a transmigração da família real portuguesa. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria
de Fátima (Orgs.). O Brasil Colonial (1720-1821). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 3, 2014.
188
549
“Sucedendo assim nesta Corte o mesmo, que com o referido motivo havia sucedido em todas as outras da
Europa, que por muitos séculos acumularam as repetidas leis, e éditos, que foram publicando em benefício da
Polícia, e paz pública sem haverem sortido o procurado efeito enquanto a jurisdição contenciosa, e política
andaram acumuladas, e confundidas em um só Magistrado; até que sobre o desengano de tantas experiências
vieram nestes últimos tempos a separar, e distinguir as sobreditas jurisdições com o sucesso de colherem logo
delas os pretendidos frutos da paz, e do sossego público”. Alvará de 25 de junho de 1760. Alvará de criação da
Intendência Geral da Polícia, e seu regulamento. In: SILVA, Antonio Delgado da. Colleção da Legislação
Portugueza desde a última compilação das ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: na Typografia
Maigrense, 1830. P. 732.
550
José Subtil faz um relato dessas atribuições e entre elas podemos destacar: atuava na reedificação da cidade
(pontes, calçadas, fontes, limpeza de ruas, fiscalização das obras e demolição das barracas); intervinha na
distribuição do carvão e lenha, nas pescas, matadouros, vendas de carne e carestia de víveres; divulgava
programa de mobilidade de famílias; recebia queixas de párocos; intervinha nos problemas causados por
epidemias e febres; controlava prostitutas nas questões morais e de saúde pública; buscava conhecimento sobre
as doenças através da vigilância da morte e de suas causas; exercia autoridade sobre os médicos; inspecionava a
segurança dos edifícios; zelava pela prática dos bons costumes; devia cuidar dos pobres, dos mendigos, dos
inválidos e caducos de velhice; devia atuar na proteção das crianças, como na inclusão de órfãos em famílias
rurais para aprenderem a agricultura; combatia a ociosidade, tornando “úteis ao Estado aqueles indivíduos que
lhe servem de peso”; atuou na divisão do trabalho, proibindo os homens de venderem bolo, hortaliças, frutos e
peixe por “serem de mulher”; buscou controlar a propaganda da revolução francesa e apertou a vigilância nos
espaços de sociabilidade, bem como na censura à libelos difamatórios. Para mais detalhes ver: SUBTIL, José. O
direito de polícia nas vésperas do Estado liberal em Portugal. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (Org.). As formas
do direito: ordem, razão e decisão – (experiências jurídicas antes de depois da Modernidade). Curitiba: Juruá
Editora, 2013. P. 305-312.
551
Alvará de 15 de janeiro de 1780. Alvará regulando novamente a jurisdição do Intendente Geral de Polícia. In:
SILVA, Antonio Delgado. Collecção da Legislação Portugueza desde a última compilação das ordenações.
Legislação de 1775 a 1790. Lisboa: na Typografia Maigrense, 1828. P. 255-256.
552
D’AGUA, Flávio Borda. L’Intendance générale de police de la Cour et du royaume du Portugal: réflexions
sur son histoire et ses références européenes. In : DENYS, Catherine (Ed.). Circulations policières: 1750-1914.
Nouvelle édition [en ligne]. Villeneuve d’Ascq: Presses universitaires du Septentrion, 2012.
189
“Bem comum” que, diga-se de passagem, cada vez mais se atrelava à ação de um
governo ativo que devido às novas necessidades financeiras e militares buscava exercer um
controle sobre uma “população” ainda bastante dispersa e heterogênea. Este processo, no
entanto, não aconteceu isento de conflitos com magistrados, tribunais e algumas corporações,
que partindo de concepções mais tradicionais sobre o bem comum e o interesse público
reivindicavam sua capacidade de responder pela “causa pública”, tanto ou até mais que os
poderes do centro. As suas especificidades locais e seu conhecimento concreto sobre a
“população” eram argumentos utilizados para justificar a necessidade de se adaptar as normas
gerais às realidades locais555. Eram, afinal, partes específicas e com direitos próprios de um
todo maior.
553
Tal como em Paschoal José de Mello Freire dos Reis (Novo Código de Direito Público de Portugal, 1789);
Francisco Coelho de Souza e Sampaio (Prelecções de Direito Pátrio Público, e Particular, 1793); Ricardo
Raimundo Nogueira (Prelecções sobre a história do Direito Pátrio, 1795-1796); entre outros.
554
SUBTIL, José. O direito de polícia nas vésperas do Estado liberal em Portugal. In: FONSECA, Ricardo
Marcelo (Org.). As formas do direito: ordem, razão e decisão – (experiências jurídicas antes de depois da
Modernidade). Curitiba: Juruá Editora, 2013. P. 303-304.
555
A respeito desta permanência de noções tradicionais sobre o “bem comum”, enunciada pelas corporações do
Antigo Regime, ver: LEMPÉRIÈRE, Annick. Entre Dios y el rey: la república. La ciudad de México de los
siglos XVI al XIX. Trad. De Ivette Hernández Pérez Vertti. México: Fondo de Cultura Económica (FCE), 2013.
190
Para produzir o pretendido efeito ficava claro que era necessária uma profunda
reforma no ordenamento jurídico, na qual seria indispensável a construção da imagem do
monarca como legislador. Essa redução do direito à lei e sua transformação em um direito
majestático teve consequências centrais no atrelamento do “interesse público” com o interesse
da coroa e na afirmação sobre a sua superioridade em relação aos “interesses particulares”.
Isto se manifestou especialmente na questão dos privilégios.
Essenciais na teoria corporativa de poder do Antigo Regime, os privilégios
constituíam “direitos particulares” integrados na ordem natural ou transcendente, baseado nos
costumes e nos direitos objetivos. O paradigma individualista, que funda o poder na
“vontade”, e que por meio de um pacto atribui o poder de legislar ao rei, transforma os
privilégios em mercês dependentes do arbítrio do soberano. Eles deixam de ser “limitadores
do rei” para se submeterem a seus “juízos de oportunidade”558. Para Hespanha e Ângela
Xavier, trata-se de uma mudança profunda na relação dos particulares com o poder central:
556
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994. P. 127.
557
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994. P. 128.
558
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994. P. 129.
191
559
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994. P. 129.
560
Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769. Disponível em:
<https://www.fd.unl.pt/ConteudosAreasDetalhe.asp?ID=40&Titulo=Biblioteca%20Digital&Area=BibliotecaDig
ital.>. Acesso em 20/11/2019.
561
SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. O contexto do texto: notas introdutórias à história do direito público
na idade moderna. In: Revista Sequência, nº 55, dez. 2007. P. 254.
192
Contudo, argumento pela novidade do Direito Público por quatro principais motivos.
O primeiro se refere ao conteúdo do conceito romano e à condensação das experiências
extremamente diversas das realidades que articulava, ou como diz Seelaender, “o conceito
romano de ‘direito público’ apresentava singularidades que não se perpetuariam no
pensamento jurídico posterior”562. O segundo diz respeito a uma das suas acepções, o Direito
Pátrio Público, matéria nova e parte do processo de ressignificação do conceito de “pátria”,
tendo igualmente passado a se desenvolver em relação às “Leis Nacionais” ainda em estágio
inicial563. Terceiro, as elaborações sobre o Direito Público no período destinavam-se
propriamente para a desvalorização do Direito Romano, do Direito Canônico, da Glosa de
Acúrsio e das opiniões de Bártolo como fontes normativas subsidiárias às Ordenações564, tal
como na Lei da Boa Razão. Por fim, o Direito Público elaborado no período era parte do novo
direito natural, o jusnaturalismo, e trazia em si as novidades desse ordenamento
suprapositivo. Nesse sentido é que se compreendem as discussões a respeito do Direito
Público como um fenômeno histórico atado às condicionantes políticas e sociais do período.
Estava mais conectado, portanto, ao processo de centralização política e às teorias sobre a
polícia, do que a uma suposta recuperação de uma “divisão” que sempre esteve lá565.
562
SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. O contexto do texto: notas introdutórias à história do direito público
na idade moderna. In: Revista Sequência, nº 55, dez. 2007. P. 254.
563
Nos Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772, onde se cria a cadeira de Direito Pátrio, previa-se que o
seu estudo deveria ser separado do Direito Romano e deveria se orientar para a “História Civil da Nação” e para
as “Leis Portuguesas”. Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772.
T. VI, Cap. I, P. 451.
564
Ver: SOARES, António Rui Braga Lemos. Direito: evolução e continuidade: um ensaio em torno do sentido
e do espírito do direito português no século das luzes. 2013. Tese de Doutorado – Universidade do Minho, 2013.
Especialmente o capítulo 10: “O Projecto de Novo Código de Direito Público de Portugal de Pascoal José de
Mello Freire dos Reis”.
565
Vale destacar, no entanto, que esse novo ius publicum parece ter relação com o ius gentium, tal como exposto
por Bartolomé Clavero: “El nuevo concepto lo produjo un ius publicum que había venido separándose del ius
commune, del tronco civil común. Durante dicho siglo, el XVIII, se difundió en especial a través del ius
Gentium, de un derecho de gentes o, precisamente, ley de naciones que igualmente iba cobrando entidad propia”.
CLAVERO, Bartolomé. Cádiz 1812: antropología e historiografía del individuo como sujeto de constitución.
Quaderni Fiorentini: per la storia del pensiero giuridico moderno, nº 42, 2013. P. 221. Sobre a novidade do
Direito Público, ver também: STOLLEIS, Michael. O direito público na Alemanha: uma introdução a sua
história do século XVI ao XXI. Coordenação de Ricardo Campos. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. (Série
IDP: Linha direito comparado).
193
e tendo feito saber como das sobreditas Regras do justo, depois de assim
separadas, e restituídas à mesma nova Disciplina, se formou então o Direito
Público Universal, que ficou sendo uma parte essencial do Direito Natural568.
Fonte: Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772. T. II, Cap. II-III, P. 308-321.
195
570
Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772. T. VIII,
Cap. II, §28, P. 533.
571
Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772. T. VIII,
Cap. II, §36, P. 535.
572
Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772. T. III, Cap.
II, §8, P. 310-311.
196
573
Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772. T. III, Cap.
IV, §4, P. 321-322. As principais discussões sobre as “nações” encontram-se no Direito das Gentes, parte
do Direito Natural voltada às relações entre os diferentes impérios. O direito das gentes, tendo em vista a
diversidade de “nações”, só poderia ser estabelecido pelas leis naturais.
574
Cf. PIMENTA, João Paulo Garrido. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-
1828). São Paulo: Ed. Hucitec, 2ª Ed., 2006. Sobre o conceito de nação em Portugal: MATOS, Sérgio
Campos. Portugal. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario político y social del mundo
iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870 [Iberconceptos II]. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales – Universidad del País Vasco, Tomo VII – Nación, 2014.
575
Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772. T. VI, Cap.
I, §5, P. 452.
197
Estas duas direções tomadas pelo Direito Pátrio originavam o “Direito Pátrio
Público Externo” e o “Direito Pátrio Público Interno, a que outros chamam também
Econômico, por nele se tratar precisamente do Governo interior do Estado”577. Quanto
ao “Externo”, por não pertencer à competência dos magistrados e sim do Conselho e
dos Ministros de Estado, e por tratar de matérias próprias da “Sciencia do Estado”,
deveria se deixar o tema “em profundo silêncio”578. Em relação ao segundo, as matérias
podem ser acompanhadas na Figura 2 a seguir:
576
Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772. T. VI, Cap.
II, §2, P. 454.
577
Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772. T. VI, Cap.
II, §2, P. 454.
578
Vale notar aqui a semelhança deste com o Direito das Gentes. A diferença reside no fato de que o
Direito das Gentes era estabelecido pelo Direito Natural, já o Direito Pátrio Público Externo era parte do
Direito Civil. Essa é a diferença também em relação ao Direito Público Universal e o Direito Civil Pátrio
Público Interno, pois ambos tratam do governo interno do Reino.
Organograma 2: Direito Pátrio nos Estatutos da Universidade de Coimbra, 1772.
198
3.4 A polêmica do Novo Código: o debate entre Mello Freire e Ribeiro dos Santos
Não há negócio mais público, nem que mais toque e interesse a nação, do
que um código de leis581.
580
Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra, vol. 2, 1772. T. VI, Cap.
II, §7, P. 456.
581
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello
Freire dos Reis às censuras que sobre o seu Plano do Novo Código de Direito Público de Portugal fez, e
apresentou na Junta da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In: SANTOS, António Ribeiro dos.
Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e
apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1844. P. 93.
582
A Junta foi presidida pelo Visconde de Villa Nova de Cerveira (Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios do Reino) e fizeram parte dela: Doutor José Ricalde Pereira de Castro (Conselheiro da Rainha e
Desembargador do Paço), Doutor Manoel Gomes Ferreira (Desembargador dos Agravos da Casa de
Suplicação), Doutor Bartholomeu José Nunes Cardozo Giraldes de Andrade (Conselheiro da Rainha,
Desembargador do Paço e Procurador da Fazenda Real), Doutor Gonçalo José da Silveira Preto
(Conselheiro da Rainha e Procurador da Fazenda do Ultramar) e o Doutor João Pereira Ramos de
Azevedo Coutinho (Procurador da Coroa).
583
Decreto de 31 de Março de 1778. In: SILVA, Antonio Delgado. Collecção da Legislação Portugueza
desde a última compilação das ordenações. Legislação de 1775 a 1790. Lisboa: na Typografia
Maigrense, 1828. P. 164.
201
Francisco está tratando aqui de seu tio, o desembargador Paschoal José de Mello
Freire dos Reis (1738-1798)585, responsável por atualizar os Livros II e V das
Ordenações. Mello Freire inaugurou a cadeira de Direito Pátrio após a reforma dos
Estatutos e tinha a seu favor uma série de textos jurídicos com enorme visibilidade na
época. Porém, o seu Novo Código do Direito Público de Portugal também não foi
aprovado no período, sendo publicado apenas em 1844. As diferentes críticas e censuras
que recebeu da Junta da Censura e Revisão, especialmente de António Ribeiro dos
Santos (1745-1818)586, pesaram contra sua publicação, tendo originado um dos debates
mais importantes do período. Quanto a um novo código de direito criminal e civil, este
foi postergado em Portugal até meados do século XIX587.
António Ribeiro dos Santos, antigo desafeto de Mello Freire588 e figura
reconhecida no âmbito jurídico português, foi um dos principais críticos ao Projeto ao
584
MELLO, Francisco Freire de. Discurso sobre delictos e penas, e qual foi a sua proporção nas
diferentes épocas da nossa jurisprudência: principalmente nos três séculos primeiros da Monarchia
Portugueza. Londres: Impresso por T. C. Hansard, 1816. P. 55-56.
585
Pascoal José de Mello Freire dos Reis (06/04/1738 – 24/11/1798) era filho de Belchior dos Reis,
oficial que se distinguiu durante a Guerra de Sucessão de Espanha, e de D. Faustina Freire de Mello.
Doutorou-se pela Faculdade de Leis da Universidade de Coimbra com 19 anos (03 de maio de 1757).
Depois de formado atuou como professor substituto de algumas cadeiras. Colaborou também com a
reforma do ensino universitário promovido pelo Marquês de Pombal, sobretudo nos estudos jurídicos,
onde passou a ocupar a cadeira de Direito Pátrio, contudo, ainda na condição de substituto, pois se
manteve a disposição vigente no sistema anterior à reforma. Assumiu como docente proprietário da
mencionada cadeira apenas em 1781, tendo se jubilado em 1790. É considerado um autor fundamental
para o direito português devido às suas obras História do Direito Civil Português (1788), Instituições de
Direito Civil Português, tanto público como particular (1789) e Instituições de Direito Criminal
Português (1789).
586
António Ribeiro dos Santos (30/03/1745 – 16/01/1818) nasceu em Massarelos e aos onze anos de
idade foi morar no Rio de Janeiro. Estudou filologia e humanidades com os jesuítas do Seminário de
Nossa Senhora da Lapa, regressando a Portugal com 19 anos (1764) para estudar Direito Canônico na
Universidade de Coimbra. Recebeu o grau de Doutor em 1771 e nesse ínterim também participou das
reformas do ensino jurídico da Universidade. Foi professor da Faculdade de Direito da mesma instituição,
além de primeiro bibliotecário-mor da Real Biblioteca da Corte. As informações sobre Ribeiro dos Santos
foram retiradas de SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario Bibliographico Portuguez. Lisboa: na
imprensa nacional, Tomo I, 1858. P. 247-256. Para mais detalhes sobre a vida e obra de Ribeiro dos
Santos, ver: PEREIRA, José Esteves. O Pensamento político em Portugal no século XVIII – António
Ribeiro dos Santos. Lisboa: INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005.
587
NEDER, Gizlene. A recepção do constitucionalismo moderno em Portugal e a escrita da história do
direito. In: Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 4, n. 3,
septiembre-diciembre, 2012. P. 515.
588
Sobre a antiga relação de Ribeiro dos Santos com Mello Freire e os seus desentendimentos, ver
SOARES, António Rui Braga Lemos. Direito: evolução e continuidade: um ensaio em torno do sentido e
do espírito do direito português no século das luzes. 2013. Tese de Doutorado – Universidade do Minho,
202
Novo Código de Direito Público. Este projeto preparado por Mello Freire, censurado e
revisado por Ribeiro dos Santos, era uma versão bem mais concisa e apenas preparatória
para o Código entregue posteriormente. As suas Notas ao projeto589 revelam, para nosso
propósito, a abordagem ainda tateante das definições sobre o direito público e as
disputas sobre os temas que deveriam ser tratados em tal matéria, mesmo com as
prescrições do Estatuto de 1772. Por meio dessas disputas creio ser possível sondar, ao
menos no âmbito jurídico, as mobilizações conceituais dentro de uma conjuntura
específica onde se opunham diferentes projetos políticos.
O principal ponto de discordância entre os dois autores se dava na compreensão
sobre os direitos dos monarcas portugueses. Mello Freire não apenas defendia a
transmissão imediata do poder de Deus para os reis, como se preocupava sempre em
ressaltar e afirmar os poderes dos monarcas. Ribeiro dos Santos, por sua vez, buscava
limitar estes poderes por meio da tradição das reuniões das Cortes e das Leis
Fundamentais. Essa distinção principal permeia várias das censuras realizadas por
Ribeiro dos Santos, inclusive a própria definição das matérias e do Direito Público.
Assim, Mello Freire compreendia o Direito Público Universal ou o Particular
como tendo dois objetos: “os direitos e ofícios do imperante e dos vassalos em relação à
sociedade”. Cabia ao imperante regular a sociedade para obter a “segurança interna e
externa” e para isso devia fazer leis, criar juízes, determinar penas e prêmios e fazer
honras e mercês. Aos vassalos competia “amar e obedecer ao soberano”, “servir os
cargos públicos”, e pedir ao Príncipe proteção, graças, mercês e remuneração dos seus
serviços590.
Ribeiro dos Santos, por sua vez, possuía uma definição mais ampliada. Partia
inicialmente da consideração de que “é difícil assinalar” as matérias que “são próprias e
2013. Especialmente o capítulo 9: “António Ribeiro dos Santos. Um esboço biográfico dos primeiros
anos”.
589
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do
Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro
dos Santos em 1789. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. Conforme disponibilizado pela
biblioteca digital da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, as Notas estão divididas em
seis volumes. O primeiro trata de questões gerais e é dividido entre os artigos que faltariam ao projeto e
os que não deveriam entrar no código. Os outros cinco são os comentários detalhados de Ribeiro dos
Santos aos títulos propostos no projeto, estando os Títulos IV e V unidos em um mesmo volume. Link
para consulta: <https://www.fd.unl.pt/ConteudosAreasDetalhe.asp?ID=40&Titulo=Biblioteca%20Digital
&Area=BibliotecaDigital> Acesso em: 04/12/2019.
590
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. P. IV-V.
203
privativas do Direito Público da nação” e que, portanto, era preciso “trazer à memória as
noções seguintes”:
Que cada nação, pelo comum, além do Direito Público universal, que
provém da mesma natureza da sociedade civil, que é comum a todos os
impérios, e que contém em geral os direitos e obrigações recíprocas dos
súditos e dos imperantes, tem de mais o seu Direito Público particular e
próprio, por que umas se distinguem das outras, a que podemos chamar
Direito Público nacional. Que este Direito Público nacional se
estabelece, parte na convenção expressa e tácita entre o povo e o
Príncipe, isto é, nas leis primordiais e fundamentais do Estado, parte nas
leis públicas civis dos mesmos imperantes; e que por consequência consta
de Direito Público pactício ou convencional, e de Direito Público civil;
ou, pelo dizer assim, das leis do reino, e das leis do Rei. Que este Direito
regula tão somente duas coisas: 1ª a constituição fundamental; 2ª o estado
público da nação591.
591
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do
Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro
dos Santos em 1789. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. P. 5-6.
592
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do
Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro
dos Santos em 1789. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. P. 6-7.
204
“direitos, foros e liberdade dos povos”. No Projeto enviado por Mello Freire, a parte
dedicada ao direito dos vassalos, na opinião de Ribeiro dos Santos, era muito reduzida:
593
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do
Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro
dos Santos em 1789. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. P. 21. [itálico do autor].
594
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do
Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro
dos Santos em 1789. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. P. 21.
595
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do
Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro
dos Santos em 1789. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. P. 22.
205
costumes e privilégios dos povos delas decorrente) e a expansão dos poderes do centro.
Nesse caso, afirmar um poder “puro” e “absoluto” era a condição mesma para essa
conciliação. Ou seja, justamente por se tratar de uma monarquia “pura e absoluta” é que
não havia problemas em reconhecer os direitos dos vassalos, uma vez que este
reconhecimento não levaria às “confusões e desordens”. Assim, seria possível
“demarcar exatamente os privilégios nacionais, sem tocar nas balizas impreteríveis do
poder supremo”596. Opinião diferente apresentava Mello Freire.
Em sua defesa, argumentava que as ditas “Leis Fundamentais” proclamadas por
Ribeiro dos Santos eram inexistentes597. A única lei em que o povo já havia participado
era a que tratava da sucessão, estabelecida nas Cortes de Lamego598. Questionava,
inclusive, como seria possível a existência destas leis, baseadas nas tradições, usos e
costumes dos povos, se não foram escritas? Segundo ele, estes costumes, se eram
conformes à lei escrita, era escusado qualquer comentário, se fossem contrário às
mesmas, não podiam valer. Inserindo o tópos de que aquilo que vale para o particular
vale tanto ou mais para o público em outro contexto de debate, Mello Freire dizia que:
596
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do
Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro
dos Santos em 1789. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. P. 22. Além disso, como lembram
António Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier, a afirmação sobre o poder “puro” da monarquia
portuguesa fazia parte do discurso anticorporativista, e se dirigia a provar que a monarquia portuguesa era
“constituída por territórios conquistados em guerra justa, fundada por doação (de Afonso VI de Leão a D.
Henrique), transmitida por sucessão e em que todos os poderes residiam pura e soberanamente no rei (...)
e que, portanto, ao contrário do que se passava nas monarquias mistas, não havia qualquer participação no
poder de outros corpos do Reino, nomeadamente quando reunido em cortes”. Essa não é, no entanto, a
visão de Ribeiro dos Santos. HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação
da sociedade e do poder. In: HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. Lisboa:
Estampa, 1994. P. 127.
597
Para além dos motivos apresentados aqui, Mello Freire temia a “bulha” que se faria na Europa caso
houvesse uma “assembleia geral da nação” ou então fosse chamado “à capital do reino os povos para
deliberarem sobre assunto tão perigoso” como era o de fazer ajustes capazes de “obrigar os sucessores do
Trono”. Era preciso lembrar-se das “assembleias de França e suas consequências”. REIS, Paschoal José
de Mello Freire dos. Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis às
censuras que sobre o seu Plano do Novo Código de Direito Público de Portugal fez, e apresentou na Junta
da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In: SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao plano do
Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na
Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na imprensa da
Universidade, 1844. P. 65. O autor retoma o perigo representado pelas ideias dos “direitos dos povos” em
sua conclusão, nas páginas 97-99.
598
Sobre o mito das Cortes de Lamego e seus usos posteriores nos debates políticos, tanto nos setecentos
para limitar o poder do rei, como durante o vintismo para justificar as características históricas da
Constituição que se firmava, ver: HESPANHA, António Manuel. História das Instituições: épocas
medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982. P. 368-369.
206
Como fica claro em outra passagem, Mello Freire acreditava que conceder
direitos públicos era dar “parte” e “ingerência no governo do reino”601. Todos os
privilégios, foros e liberdades do “corpo de nação” não existiam em Portugal, “que foi
sempre uma monarquia pura e absoluta, e onde os povos nunca tiveram parte no seu
governo”602. A fórmula da monarquia “pura e absoluta” era agora utilizada para
599
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello
Freire dos Reis às censuras que sobre o seu Plano do Novo Código de Direito Público de Portugal fez, e
apresentou na Junta da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In: SANTOS, António Ribeiro dos.
Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e
apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1844. P. 68.
600
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello
Freire dos Reis às censuras que sobre o seu Plano do Novo Código de Direito Público de Portugal fez, e
apresentou na Junta da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In: SANTOS, António Ribeiro dos.
Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e
apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1844. P. 85.
601
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello
Freire dos Reis às censuras que sobre o seu Plano do Novo Código de Direito Público de Portugal fez, e
apresentou na Junta da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In: SANTOS, António Ribeiro dos.
Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e
apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1844. P. 92.
602
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello
Freire dos Reis às censuras que sobre o seu Plano do Novo Código de Direito Público de Portugal fez, e
apresentou na Junta da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In: SANTOS, António Ribeiro dos.
Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e
apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1844. P. 85.
207
603
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello
Freire dos Reis às censuras que sobre o seu Plano do Novo Código de Direito Público de Portugal fez, e
apresentou na Junta da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In: SANTOS, António Ribeiro dos.
Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e
apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1844. P. 88.
604
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas à resposta, que deu o doutor Paschoal José de Mello Freire dos
Reis à primeira censura que havia feito do plano do seu Novo Código de Direito Público de Portugal o
Dr. António Ribeiro dos Santos, apresentadas na Junta da Revisão. In: SANTOS, António Ribeiro dos.
Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e
apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1844. P. 116-117; 125-127.
208
à Coroa e o governo dos municípios, por exemplo, para Mello Freire deviam se reger
pelo Direito Particular e para Ribeiro dos Santos estes deveriam ser incluídos no Direito
Público de Portugal. Quanto ao último, o argumento de Mello Freire era de que o
governo dos municípios era variado e, dessa forma, não podia fazer parte de um código
público e universal605. Ou seja, “público” ainda estava longe de designar o conjunto dos
aparelhos institucionais e administrativos para o exercício do poder, em níveis distintos,
de uma entidade superior denominada “Estado” 606.
Sobre o testamento, o mesmo autor defendia que este não tinha valor de lei e que
o rei, ao fazê-lo, entrava na mesma condição de qualquer “cidadão”, não valendo,
consequentemente, “as suas disposições na parte pública”607. Quanto aos outros, a
principal diferença parece residir na compreensão sobre a posse do reino pelos reis de
Portugal. Se para Mello Freire o reino era propriedade do rei, era coerente que a cessão,
reserva e renúncia do reino devia se pautar pelos princípios gerais que regiam os
contratos entre os particulares, “que permite a cada um ceder de seu direito a favor de
quem, e como quiser”608.
O mesmo valia para as remunerações e privilégios. O rei, ao contratar com um
vassalo “como particular”, dando ou vendendo os seus bens, devia orientar-se pelas
regras dos particulares. Por outro lado, ao contratar, negociar ou vender os bens da
605
Muito do que Mello Freire escreveu já estava incluso em seu livro anterior e que tinha acabado de ser
publicado (Instituições de Direito Civil Português, tanto público como particular de 1789). De fato, neste
livro o governo dos municípios foi incluído na parte dedicada ao direito particular e não público,
especificamente ao tratar de uma das divisões entre os homens: os cidadãos e os estrangeiros. Ver: REIS,
Paschoal José de Mello Freire dos. Instituições de Direito Civil Português, tanto público como particular
[1789]. Tradução de Miguel Pinto de Menses. Lisboa: Boletim do Ministério da Justiça, n. 163 e 164,
1967. L. II, T. II, §VII-X.
606
Outro exemplo significativo dessa concepção é a divisão das coisas feitas por Mello Freire também no
livro Instituições de Direito Civil Português, citado na nota anterior. Neste, o autor separa as coisas entre
comuns, públicas, da universidade e particulares. O termo universidade era utilizado para designar uma
cidade ou povoação, portanto as coisas pertencentes ao domínio das cidades municipais “de nenhum
modo se devem dizer públicas”, uma vez que “não pertencem a todo o povo”. REIS, Paschoal José de
Mello Freire dos. Instituições de Direito Civil Português, tanto público como particular [1789]. Tradução
de Miguel Pinto de Menses. Lisboa: Boletim do Ministério da Justiça, n. 165 e 166, 1967. L. III, T. I,
§VIII. P. 46-47.
607
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello
Freire dos Reis às censuras que sobre o seu Plano do Novo Código de Direito Público de Portugal fez, e
apresentou na Junta da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In: SANTOS, António Ribeiro dos.
Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e
apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1844. P. 79.
608
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello
Freire dos Reis às censuras que sobre o seu Plano do Novo Código de Direito Público de Portugal fez, e
apresentou na Junta da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In: SANTOS, António Ribeiro dos.
Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e
apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1844. P. 80.
209
Coroa, “de que não é senhor, mas administrador”, sempre que entendesse ser prejudicial
à Coroa, podia desfazer-se dos contratos. O próprio Mello Freire resume sua opinião
sobre o assunto na seguinte passagem:
Que o reino de Portugal, como não veio ao Rei por doação, ou translação
dos povos, mas pelo direito do sangue e da conquista, ficou desde o
princípio pertencendo ao seu livre império e administração. Não venho
com isto a adotar a célebre distinção entre os reinos patrimoniais e
usufrutuários, nem a dizer que o reino está no domínio e propriedade do
Rei, e que pode usar e abusar dele como qualquer senhor particular do
que é seu; mas só que o Rei tem uma livre, geral e privativa
administração sobre todos os bens e pessoas do Estado, e autoridade para
de tudo dispor, segundo a exigência da causa pública, como mais abaixo
se dirá.
609
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Resposta que deu o desembargador Paschoal José de Mello
Freire dos Reis às censuras que sobre o seu Plano do Novo Código de Direito Público de Portugal fez, e
apresentou na Junta da Revisão o Dr. António Ribeiro dos Santos. In: SANTOS, António Ribeiro dos.
Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e
apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro dos Santos em 1789. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1844. P. 84.
610
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder.
In: HESPANHA, António Manuel (Coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994. P. 130.
611
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Provas ao Título I. In: REIS, Paschoal José de Mello Freire
dos. O novo código de direito público de Portugal, com as provas, compilado pelo desembargador
Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a matéria do Livro II das actuaes Ordenações.
Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. P. 180. Nas Instituições de Direito Civil Português, Mello
Freire diz que: “Os Fisco significa o dinheiro do Príncipe, e o Erário o do Povo, mas numa Monarquia
esta distinção não é tão rigorosa como foi entre os Romanos (...)”. REIS, Paschoal José de Mello Freire
dos. Instituições de Direito Civil Português, tanto público como particular [1789]. Tradução de Miguel
210
separar os bens reais destinados aos “usos públicos do império”, necessários para a sua
“sustentação e defesa” e também chamados de “bens do reino”, “bens do erário”,
“domínio da Coroa”, “patrimônio público” e “bens dos povos”; daqueles destinados aos
“usos privados do Príncipe”, direcionado à sustentação e manutenção de sua pessoa,
família e “estado real”, chamados de “patrimônio do Príncipe”, “bens domaniaes”,
“bens do fisco”, “bens da camera” e “patrimônio real”612.
O problema aqui não era o entendimento da dupla condição do monarca, pública
e particular, questão conhecida desde o período medieval613. Ambos os autores
compreendiam a diferença entre os bens da coroa e os bens do príncipe, bem como seus
usos públicos e particulares. A divergência residia na extensão que seria dada ao poder
do monarca sobre os bens da coroa. Para Mello Freire, o rei podia usar destes bens
arbitrariamente (tanto públicos como particulares), pois era o representante e titular
soberano da persona fisci614; para Ribeiro dos Santos, era necessário distinguir os bens
reais de uso público do império e os de uso exclusivo do monarca para limitar a sua
esfera de ação.
Novamente, o tema dialoga com as “Leis Fundamentais” e os direitos,
privilégios e foros dos vassalos. Igualmente, depende de duas conceituações distintas e
postas em confronto sobre os significados do “público”. Assim como havia afirmado
que os direitos públicos, “sendo públicos, necessariamente hão de versar sobre a pessoa
do rei”, Mello Freire não concebia a possibilidade de pensar o público para além da
atuação do soberano. Ribeiro dos Santos, por sua vez, afirmava em relação às tenças
que estas não eram “bens da Coroa do reino, mas públicos, isto é, do povo”615, e isto
significava que o rei não podia utilizar-se destes bens arbitrariamente. O patrimônio
público e o patrimônio real, para ele, possuíam naturezas, finalidades e aplicações
distintas e, portanto, deviam ser tratadas individualmente no Código de Direito Público.
Pinto de Menses. Lisboa: Boletim do Ministério da Justiça, n. 161 e 162, 1966/1967. L. I, T. IV, § I, P.
132.
612
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao Título I. Dos Direitos Reaes, do Novo Código de Direito
Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e
Revisão pelo Dr. António Ribeiro em 1789. [s.l.]: [s.n.], [s.d.]. P. 32-35.
613
KANTOROWICZ, Ernst. H. Os dois Corpos do Rei: Um estudo sobre Teologia Política Medieval. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
614
Sobre a concepção do Antigo Regime acerca da fiscalidade e a caracterização do fisco enquanto
persona situada na duplicidade do público e do particular, ver: CLAVERO, Bartolomé. Hispanus Fiscus,
persona ficta. Concepción del sujeto político en el ius commune moderno. Quaderni Fiorentini: per la
storia del pensiero giuridico moderno. Literari moderni della persona giuridica, 11/12, tomo I,
1982/1983.
615
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao Título I. Dos Direitos Reaes, do Novo Código de Direito
Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e
Revisão pelo Dr. António Ribeiro em 1789. [s.l.]: [s.n.], [s.d.]. P. 34.
211
As constituições dos bispados, não sendo por nós confirmadas, não têm
força e autoridade de lei: e muito menos os estatutos das comunidades,
616
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. T. XXXIX. P.
127. [Itálico meu].
617
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. T. XX. §30. P.
71. [Itálico meu].
212
Por fim, um último ponto a ser tratado em relação ao debate sobre o novo código
diz respeito ao título chamado “poder econômico”. Na versão preliminar analisada por
Ribeiro dos Santos, constava apenas o título a esta matéria e o autor o colocou na seção
intitulada “artigos que talvez não devam ter lugar neste Código”. Para o autor, havia
duas formas de considerar o poder econômico. A primeira seria mais tradicional,
presente já nas Ordenações, e dizia respeito ao poder exercido pelo rei para afastar os
maus eclesiásticos através de um direito especial, o poder econômico, uma vez que se
acreditava na independência dos eclesiásticos e na falta de jurisdição do rei para
interferir em seus negócios. No entanto, como esta suposta independência já cessara,
não havia motivos para tratar de tal matéria.
O segundo sentido do poder econômico era compreendido como “poder
camerario, arcano e absoluto”, um poder que poderia ser utilizado pelo Príncipe contra
todos os seus vassalos, “castigando extrajudicialmente e sem processo, e com penas
arbitrárias, certos fatos ou delitos”, o que não devia existir, segundo Ribeiro dos Santos,
“neste tempo e neste Código”:
Seria muito para recear, que pelo uso de semelhante poder, maiormente
autorizado no mesmo corpo da legislação, viessem a destruir-se um dia as
formas públicas da lei e do juízo; a dar-se um grande golpe nos direitos,
na fortuna e na liberdade dos cidadãos; e a abrir-se caminho franco a
todos os abusos do poder arbitrário, e aos cruéis excessos do despotismo.
Se nós não temos, por felicidade nossa, que temer de nossos Príncipes
atuais, que tem por divisa a humanidade, poderíamos estremecer por
nossos descendentes, que poderiam não ter igual fortuna. Mas cumpre
não insistir nestas coisas; porque esta doutrina não se pode jamais supor
nem da sabedoria e prudência do ilustre compilador desta obra, nem das
Reais intenções de nossa Augusta Soberana619.
618
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. T. XX. §30. P.
71. T. II. §21. P. 7.
619
SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao plano do Novo Código de Direito Público de Portugal, do
Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da Censura e Revisão pelo Dr. Antonio Ribeiro
dos Santos em 1789. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. P. 54-55. [itálico do autor].
213
dizia: “visto e examinado depois o texto deste Título, [sabei] com efeito, que este
tremendo poder arcano e camerario era todo o objeto da sua legislação”. Mello Freire
inseriu o título “Do Poder Econômico” logo após o título “Da Polícia”, o que não era
por acaso, sendo a ordem e o método de elaboração do Código um dos temas centrais no
debate entre os autores.
Este poder, para Mello Freire, estaria concentrado no imperante como o poder
“dos pais e mães de família”, regulando a “boa ordem e economia de todas as
sociedades e corpos políticos do Estado, procurando sua paz e segurança doméstica, que
muito depende a saúde pública”620. O tema da saúde pública era central no título
dedicado à polícia e aqui aparecia como justificativa para o exercício do “poder
econômico”. Cabia este privativamente ao rei e aos ministros a que fosse concedido,
excluindo-se bispos e ministros eclesiásticos. O parágrafo quinto deste título apresenta
em resumo o que seria este poder:
620
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. T. XLIII, P.
144.
621
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. T. XLIII, §5,
P. 144.
622
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. T. XLIII, §11,
P. 145.
214
Mello Freire não era desconhecido no período pelo autor. Ao mesmo tempo, ainda que
não chegasse ao ponto proposto por Mello Freire, já no Alvará de 25 de junho de 1760,
que criava a Intendência Geral de Polícia, como vimos, se permitia ao intendente que
instaurasse processos verbais sem testemunhas, até que se apurasse o fato, podendo não
só elaborar o processo como também deferir sobre o mesmo.
Além da dispensa das provas e da determinação arbitrária das penas, para Mello
Freire os juízes incumbidos de poder econômico não tinham necessidade de ouvir a
parte contrária e nem de ordenar processos judiciais, apenas deviam elaborar um
instrumento demonstrando o seu procedimento e as razões e provas de que se
serviram623. Entretanto, o autor estava ciente que este poder econômico continha
elementos que podiam levar ao despotismo, o que ajuda também a repensar a sua
etiqueta de “absolutista”. Nesse sentido, argumentava que era preciso, sim, de provas
para o castigo, mas que estas não eram fixas e determinadas. Nem toda cogitação ou
leves indícios eram suficiente para caracterizar um delito e era preciso de alguma
informação mais concreta (testemunhas confiáveis, por exemplo) para que se provasse
verdadeiro. Caso contrário, “o uso do poder econômico, sem as provas acima indicadas,
não é direito, é injustiça, despotismo e barbaridade”624. Ao final das suas Provas
afirmava: “desconfio de toda a doutrina do Titulo e das suas provas, e que nesta parte,
mais que nas outras, se é possível, me sujeito em tudo ao juízo e determinação da
junta”625.
A “economia política” seria um “direito real radicado na pessoa do Príncipe”
que se diferia da polícia e da política. Esta última lidaria com a “felicidade e a
segurança pública, interna e externa”, de toda a sociedade. A polícia, por sua vez, tinha
por fim a “felicidade pública interna somente pelo meio da agricultura, e outros
estabelecimentos”, não da sociedade como um todo, mas tendo como objeto o cidadão.
Já a economia teria como finalidade a “felicidade doméstica das famílias e sociedades
623
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. T. XLIII, §13,
P. 145.
624
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. Provas. Ao
Título XLIII. P. 369.
625
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. Provas. Ao
Título XLIII. P. 370.
215
626
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código de direito público de Portugal, com as
provas, compilado pelo desembargador Paschoal José de Mello Freire dos Reis. Em que se contém a
matéria do Livro II das actuaes Ordenações. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1844. Provas. Ao
Título XLIII. P. 363-364.
627
De acordo com Kenneth Maxwell, o debate entre estes autores é sintoma de “quando a crise do século
XVIII relativa ao governo e à representação entrou em sua fase mais aguda e violenta, e esse debate iria
dividir Portugal durante os primeiros trinta anos do século XIX”. MAXWELL, Kenneth. Marquês de
Pombal: paradoxo do iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 2ª ed., 1996. P. 171.
628
SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. Notas sobre a constituição do direito público na idade
moderna: a doutrina das Leis Fundamentais. Revista Sequência, n. 53, dez. 2006. P. 197-232.
216
jurídicos e teológicos do Antigo Regime. Porém, de modos distintos, ambos acabam por
atualizar estes mesmos significados a partir da conjuntura específica de Portugal e dos
seus problemas políticos, econômicos e sociais; ou mesmo pela situação, praticamente
global, das novas ideias advindas da ilustração.
629
Assim como aponta Annick Lempérière, a historiografia acostumou-se a limitar o uso de “regalismo”
para tratar das relações entre a Coroa e a Igreja no século XVIII. No entanto, seguindo também as opções
adotadas pela autora, creio ser coerente utilizar do termo para tratar do “conjunto dos esforços de
afirmação da autoridade monárquica durante este período”. O século XVIII, muito claramente,
desconhecia os “ismos” modernos. Para o Pr. Raphael Bluteau, por exemplo, “regalia” era um “sinal
exterior, demonstrativo da autoridade e majestade real. As regalias essenciais são fazer leis, investir
magistrados, eleger ministros dignos e beneméritos, bater moeda, por tributos, e em seus tempos publicar
guerra e fazer pazes. (...). Regalias também se chamam alguns direitos, ou privilégios dos reis em
matérias eclesiásticas”. LEMPÉRIÈRE, Annick. Entre Dios y el rey: la república. La ciudad de México
de los siglos XVI al XIX. Trad. De Ivette Hernández Pérez Vertti. México: Fondo de Cultura Económica
(FCE), 2013. P. 168; BLUTEAU, Raphael. Regalia. In: Vocabulario Portuguez & Latino: áulico,
anatômico, architectonico...Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, Q-S, 1720. P. 193.
630
Francisco Coelho de Souza e Sampaio assumiu como professor titular da cadeira de Direito Pátrio após
Mello Freire, em 1789, além de se tornar Lente Proprietário de História do Direito Romano e Pátrio da
Universidade de Coimbra. Era um dos jurisconsultos no reinado de D. Maria I e de D. João VI e
Desembargador da Relação do Porto.
631
Já na Dedução cronológica e analítica (1767) de José de Seabra e Silva a teoria do direito divino dos
reis era defendida. Combatiam-se os monarcômacos (jesuítas), bem como Francisco Velasco Gouvêa e as
teorias do poder in habitu e do poder in actu. Livro chave para compreender as lógicas discursivas que
fundamentavam o período pombalino, desde sua publicação até os anos finais do XVIII, diversos autores
passaram a defender a transmissão imediata do poder de Deus aos reis.
632
SAMPAIO, Francisco Coelho de Souza. Prelecções de Direito Pátrio Público, e Particular,
oferecidas ao sereníssimo senhor D. João príncipe do Brasil, e compostas por Francisco Coelho de
Souza e Sampaio. Primeira e Segunda parte. Coimbra: na Real Imprensa da Universidade, 1793;
SAMPAIO, Francisco Coelho de Souza. Observações as Prelecções de Direito Pátrio, Público, e
Particular, oferecidas ao senhor D. João príncipe regente, e compostas por Francisco Coelho de Souza e
Sampaio. Lisboa: Na Imprensa Régia, 1805.
217
do Poder Público”, expostas nos parágrafos 144 e 145 do primeiro volume. Essa
necessidade resultava de um interesse presente na sociedade e relacionava-se com o
contexto político do final dos setecentos, mais especificamente com a Revolução
Francesa e as incursões em torno dos significados da soberania633. Assim, dizia
Sampaio que:
Mesmo antes, em 1793, nas notas aos ditos parágrafos 144 e 145 (onde, de fato,
elabora seus argumentos), Sampaio justificava que o esclarecimento sobre o tema era
devido às urgências do seu tempo: “A doutrina hoje dominante (que há pouco não
passava de classe de opinião) decide (proh dolor!) que a primeira, e única pessoa é o
povo; que os Imperantes são seus meros delegados, porque o Império foi estabelecido
para benefício do povo”635. Era contra esta doutrina que Sampaio se manifestava através
da atribuição do poder imediato de Deus aos reis.
A estrutura da argumentação de Sampaio diferia-se em alguns aspectos daquela
que vimos em Francisco Suárez, como, por exemplo, através da adoção do termo
“povo” no lugar de “comunidade”. Também para ele, antes da formação da república e
da instituição do Soberano, esse povo/comunidade era apenas uma multidão. Como
vimos no capítulo anterior, para Suárez era preciso pressupor uma união moral e de
vontades antes mesmo da instituição do soberano, apenas para escolher a forma de
633
Sobre as mudanças nos sentidos da soberania, sobretudo da transição da soberania real para a
soberania nacional, ver: GOLDMAN, Noemí. Presentación. Soberania en Iberoamérica. Dimensiones y
dilemas de un concepto político fundamental, 1780-1870 e PEREIRA, Luisa Rauter. Brasil. In:
SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario político y social del mundo iberoamericano.
Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870 [Iberconceptos II]. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales – Universidad del País Vasco, Tomo X – Soberanía, 2014.
634
SAMPAIO, Francisco Coelho de Souza. Observações as Prelecções de Direito Pátrio, Público, e
Particular, oferecidas ao senhor D. João príncipe regente, e compostas por Francisco Coelho de Souza e
Sampaio. Lisboa: Na Imprensa Régia, 1805. s/p. [Prefação].
635
SAMPAIO, Francisco Coelho de Souza. Prelecções de Direito Pátrio Público, e Particular,
oferecidas ao sereníssimo senhor D. João príncipe do Brasil, e compostas por Francisco Coelho de
Souza e Sampaio. Primeira e Segunda parte. Coimbra: na Real Imprensa da Universidade, 1793. P. 168.
Nota (r).
218
A boa razão, a Filosofia, a experiência, tudo concorre para fazer crer, que
o Soberano é destinado a fazer barreira às forças, às ações, e à vontade de
uma grande parte do Povo; ações, forças e vontades, que por aquele
fundo de corrupção, que se acha no homem, estão em colisão com o bem
público, e o poriam em perigo, se não houvesse uma força, e uma vontade
pública, que sendo superior a todas as vontades particulares dos súditos,
os contivesse, e os soubesse voltar para a pública segurança, e pública
tranquilidade639.
639
SAMPAIO, Francisco Coelho de Souza. Observações as Prelecções de Direito Pátrio, Público, e
Particular, oferecidas ao senhor D. João príncipe regente, e compostas por Francisco Coelho de Souza e
Sampaio. Lisboa: Na Imprensa Régia, 1805. P. 70. n. 59.
220
passado (os ditos “monarcômacos”640) e contra os que olhavam para o futuro (os
“jacobinistas”). Em grande medida, a fratura entre o espaço de experiência e o horizonte
de expectativa641, e a consequente abertura para um tempo novo, características do
período, demandavam respostas urgentes contra “doutrinas”, “que há pouco não passava
de classe de opinião”. Para ambos, inclusive Ribeiro dos Santos, a formulação do
código de lei de Portugal, parte da reorganização da estrutura e do sentido do direito
público e pátrio, era o espaço privilegiado para a realização desta luta. Mesmo a
definição do que era “público” neste direito não era um ponto consensual e sua
diversidade de sentido correspondia aos diferentes embates do seu contexto. Em última
instância, estas visões alternativas sobre o direito foram pressupostos centrais para dotar
de legitimidade uma reforma geral nas instituições e nas práticas sociais, cuja finalidade
era racionalizar e disciplinar a ordem social.
640
Ribeiro dos Santos não chega a ser acusado de ser um “monarcômaco”, mas, a sua maneira, era um
dos autores que estava olhando para o passado e para as tradições das Cortes e das Leis Fundamentais em
ordem a instituir certos limites ao exercício da soberania. Depois de citar várias reuniões de Cortes que
teriam deliberado sobre temas graves do Reino, diz: “Estas limitações, fundadas em cortes, em costumes,
usos e foros antiquíssimos da nação, eram as que então faziam a soberania limitada, e as que modificavam
os poderes do príncipe. SANTOS, António Ribeiro dos. Notas ao Título I. Dos Direitos Reaes, do Novo
Código de Direito Público de Portugal, do Dr. Paschoal José de Mello, feitas e apresentadas na Junta da
Censura e Revisão pelo Dr. António Ribeiro em 1789. [s.l.]: [s.n.], 1789. P. 79.
641
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos históricos; tradução,
Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed.
PUC-Rio, 2006.
221
sua substituição por outra afirma-se como o objetivo que move os homens”642. Além de
evidenciar o modo como a crise do Antigo Regime emergia na parte americana do
mundo atlântico, os ensaios sediciosos indicam que na compreensão dos atores
históricos as possibilidades para repensar o tipo de organização social estavam abertas.
No caso da sedição de Minas Gerais, foi por meio de reuniões, “conventículos”,
bilhetes, cartas, conversas em estalagens, fazendas, casas, e no transcurso dos longos
caminhos que ligavam Vila Rica ao Rio de Janeiro, que se processaram ideias a respeito
do excesso de impostos, do enriquecimento de homens que levavam todas as riquezas
deste “país” (Minas Gerais) para Portugal, dos inúmeros recursos e riquezas que podiam
fazer de Minas um “Império”. Temas e problemas que não se restringiam às fronteiras
americanas, circulando através das elites que frequentavam países como Portugal,
França e Inglaterra, onde entravam em contato com as obras de Rousseau, Voltaire,
Locke, Raynal, Pope, Virgílio, entre outros643, igualmente pelo conhecimento da
experiência da independência das treze colônias americanas em 1776.
Nos autos das devassas que se realizaram em Minas Gerais e no Rio de
Janeiro644, a utilização do conceito de público aparece especialmente para tratar da
abrangência e do conhecimento generalizado que se tinha sobre a conjuração na
capitania de Minas. Por mais que fosse realizada em segredo e no interior das casas e
fazendas dos conjurados, diferentes testemunhas atestavam que era “público e notório”,
ou que era de conhecimento público, o que se tramava. Em outubro de 1789, um
anônimo enviou uma carta-denúncia para o governador da capitania de Minas, visconde
de Barbacena, na qual enumerava diversas pessoas que testemunharam os “conclaves”
que se faziam na casa do escrivão da ouvidoria, Joaquim Pedro de Caldas, e a última
testemunha era “toda a vila, por serem públicos os ditos conventículos na dita casa”645.
Grande parte da responsabilização de Joaquim José da Silva Xavier, o alferes
Tiradentes, como cabeça e figura central do levante derivou da sua pouca preocupação
com o segredo dos planos sediciosos. De acordo com as testemunhas e réus da devassa,
Tiradentes conversava abertamente sobre a sedição e por isso era considerado como
642
JANCSÓ, István. A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII.
In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil:
cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1, 1997.
643
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa. A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal – 1750-
1808. 5ª Ed. Tradução de João Maia. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
644
Autos da Devassa da Inconfidência Mineira (ADIM). Belo Horizonte: Assembleia Legislativa do
Estado de Minas Gerais, 2016. 11v. – (Coleção Minas de história e cultura; 2).
645
Carta-denúncia de um anônimo ao Visconde de Barbacena, contra Luis Ferreira de Araújo e Azevedo.
São João Del Rei, 14/10/1789. ADIM, v. 3, P. 412.
222
646
LEMPÉRIÈRE, Annick. República y publicidad a finales del Antiguo Régimen (Nueva España). In:
GUERRA, François-Xavier; LEMPÉRIÈRE, Annick et al. Los espacios públicos en Iberoamerica:
Ambigüedades y problemas. Siglos XVIII-XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.
647
JANCSÓ, István. A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII.
In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil:
cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1, 1997. P. 392.
648
BAHIA. Cópia de vários papeis sediciosos que em alguns lugares públicos desta cidade se fixarão na
manhã do dia 12 de Agosto de 1798. BR BAAPEB TJBA-SRB-BB-576-13. Arquivo Público do Estado
da Bahia. Disponível em:<http://www.icaatom.apeb.fpc.ba.gov.br/index.php/copias-de-papeis-
sediciosos;isad?sf_culture=pt>. Acesso em: 23/06/2020.
223
Gonzaga responde que “não usa da voz pública” espalhada pelos réus, mas das
“afirmativas particulares, que lhe fizeram”656. Argumentar nesse sentido era importante
para ele pela razão de que se os réus escondiam seus intentos em particular significava
que ele não havia entrado no levante. O ponto aqui é que em momentos delicados como
o do planejamento de uma conjuração as fórmulas que uniam e integravam o particular
ao público se esvaiam, escancarando que o que funcionava no público era a
dissimulação, o disfarce e as aparências. Devido às tentativas de controle sobre a
publicidade as pessoas eram obrigadas apenas a mostrar aquilo que referendasse os
valores morais tidos por aceitáveis. O particular se tornava então o lócus da sinceridade
e da honestidade. Protegidos da supervisão das autoridades e da sociedade de forma
653
ADIM, v. 1. P. 143.
654
Do S. M. Roberto de Mascarenhas Vasconcelos Lobo, sobre investigação sigilosa contra o Ouv.
Joaquim Antônio Gonzaga. Vila do Príncipe, 08/06/1790. ADIM, v. 3. P. 396.
655
ADIM, v. 5, P. 234.
656
ADIM, v. 5, P. 234.
225
geral, não havia motivos para o disfarce e dissimulação e, dessa forma, seria muito mais
confiável acreditar no que se diz em particular do que o que se diz em público. Aos
poucos, e muito lentamente, os valores compreendidos em cada um dos conceitos vão se
tornando inconciliáveis.
Além de Minas Gerais e Bahia, no Rio de Janeiro (1794) e em Pernambuco
(1801) também ocorreram revoltas que apontavam para a crise do Antigo Regime na
América Portuguesa. A eclosão de movimentos revolucionários na América inglesa, na
Europa e na Ilha de São Domingos resultou na difusão de um novo ideário político. Em
grande medida, este ideário esteve na base de constituição de novas formas de
sociabilidade que se instituíam no território colonial por meio de associações,
sociedades científicas, sociedades literárias e lojas maçônicas. Como exposto por
Alexandre Mansur Barata:
657
BARATA, Alexandre Mansur. Maçonaria, sociabilidade ilustrada e independência (Brasil, 1790-
1822). 2002. Tese de Doutorado – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas, 2002. P. 25-26.
658
VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: NOVAIS,
Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e
vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, V. 1, 1997. P. 362.
226
Uma forma de olhar para este “novo vocabulário” é através das normatizações
que criaram estas instituições da administração central. Assim como nas reformas
realizadas por Pombal anteriormente em Portugal, também aqui as justificativas
frequentemente retomam o conceito de público. A criação do Conselho Supremo Militar
659
Sobre a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, ver: ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do
império: questão nacional e questão colonial na crise do antigo regime português. Porto: Afrontamento,
1993; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. 2ª Ed. São
Paulo: Alameda, 2009. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. As bases institucionais da construção da
unidade. Dos poderes do Rio de Janeiro joanino: administração e governabilidade no Império Luso-
Brasileiro. In: JANCSÓ, István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec: FAPESP,
2005; JANCSÓ, István, PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico: ou apontamentos para o
estudo da emergência da identidade nacional brasileira. Revista de História das Ideias. Vol. 21, 2000;
SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec,
2006.
660
Erário Régio, Conselho da Fazenda do Brasil, Conselho Supremo Militar e da Justiça, Tribunal da
Mesa do Desembargo do Paço, Tribunal da Consciência e Ordens, Chancelaria-Mor do Estado do Brasil,
Casa da Suplicação do Brasil, Intendência Geral de Polícia da Corte e do Brasil, Impressão Régia, Real
Fábrica de Pólvoras, Tribunal da Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, entre
outros.
661
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. As bases institucionais da construção da unidade. Dos poderes do
Rio de Janeiro joanino: administração e governabilidade no Império Luso-Brasileiro. In: JANCSÓ,
István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec: FAPESP, 2005.
227
662
Alvará de 28 de junho de 1808. Collecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1891. P. 74.
663
Alvará de 22 de abril de 1808. Collecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1891. P. 17.
664
Alvará de 10 de maio de 1808. Collecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1891. P. 23-24.
665
Decreto de 11 de junho de 1808. Collecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1891. P. 49. (itálico meu).
666
Alvará de 23 de agosto de 1808. Collecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1891. P. 105.
228
667
Decreto de 25 de novembro de 1808. Collecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1891. P. 166.
668
Alvará de 10 de maio de 1808. Collecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1891. P. 26.
669
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. As bases institucionais da construção da unidade. Dos poderes do
Rio de Janeiro joanino: administração e governabilidade no Império Luso-Brasileiro. In: JANCSÓ,
István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec: FAPESP, 2005. P. 724.
670
Decisão nº 15 de 22 de junho de 1808. Collecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1891. P. 11.
229
671
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. As bases institucionais da construção da unidade. Dos poderes do
Rio de Janeiro joanino: administração e governabilidade no Império Luso-Brasileiro. In: JANCSÓ,
István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec: FAPESP, 2005. P. 724. A autora faz
uma síntese dos pedidos de remessas de informações que interessavam ao intendente. Elas versavam
sobre: “vadios, ciganos, e escravos de má conduta, bem como a aplicação de medidas punitivas em
relação a eles; a circulação de estrangeiros e a emissão de passaportes; os dados que viabilizassem a
construção de mapas populacionais sobre as varias regiões; as condições dos caminhos no Centro-Sul do
Brasil; a circulação de tropas de gado; o envio de sementes do capim-de-angola para o incremento da
produção pecuária do Brasil; as condições das nascentes e dos rios que abasteciam com água a cidade do
Rio; a drenagem de pântanos e a manutenção das ruas e dos principais caminhos na periferia da cidade; o
recrutamento de homens para os corpos militares do Rio de Janeiro; o padrão de construção de edifícios
na cidade do Rio; a geração de recursos em favor da ação governativa levada a cabo pela intendência; o
fomento de uma política de formação de trabalhadores livres no Brasil joanino; a coleta de elementos para
a constituição de um museu de História Natural no Rio de Janeiro”. Idem. P. 725.
672
Sobre os diferentes conflitos jurisdicionais da Intendência no período, ver: SLEMIAN, Andréa. Vida
política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006.
673
Decisão nº 15 de 22 de junho de 1808. Collecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1891. P. 13.
230
e à preservação das condições sociais dos grupos que compunham o corpo político; de
outro lado, pela ciência de polícia, refletindo uma ação interventiva de um governo
baseado em critérios práticos e técnicos no qual se buscava organizar, sistematizar e
dotar de ordem os novos assuntos de interesse geral. E este duplo sentido era
perfeitamente conciliável na compreensão dos atores do período674.
De acordo com Maria de Fátima Gouvêa, “a preservação da ordem pública e o
bem comum despontavam como as principais questões a serem atendidas pelo governo
sediado na cidade”675. Para Andréa Slemian, durante o processo de implementação da
Intendência de Polícia era possível observar a “primazia do então chamado bem
público”, que cada vez mais se vinculava “à redefinição do papel do Estado como
controlador da sociedade”676. Talvez tenha sido a Intendência, mais do que qualquer
outro órgão, a que mais se valeu do conceito de público e da supremacia do público
sobre o particular para validar sua ação677. De certa maneira, essa era uma forma clara
de justificar a amplíssima esfera jurisdicional exercida pela instituição.
A chegada da corte não reconfigurou apenas as instituições, como também
alterou a dinâmica da vida cotidiana na cidade do Rio de Janeiro, permitindo o
“alargamento de uma sociedade política na antiga colônia”:
674
Sobre o conceito de “ordem pública”, ver: GODICHEAU, François. Orígenes del concepto de orden
público en España: su nacimiento en un marco jurisdicccional. Ariadna Histórica. Lenguajes, conceptos,
metáforas, n. 2, 2013.
675
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. As bases institucionais da construção da unidade. Dos poderes do
Rio de Janeiro joanino: administração e governabilidade no Império Luso-Brasileiro. In: JANCSÓ,
István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec: FAPESP, 2005. P. 708. (itálico da
autora).
676
SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec,
2006. P. 71. (itálico da autora).
677
Ainda hoje, no âmbito da administração pública, o “poder de polícia” exercido pelo Estado tem como
fundamento a ideia de que o interesse público ou coletivo é superior ao interesse privado ou dos
indivíduos.
231
678
SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec,
2006. P. 20.
679
De 1808 a 1812 teve como redator Frei Tibúrcio José da Rocha; entre os anos de 1812 até 1821,
Manuel Ferreira de Araújo Guimarães; e entre 09/1821 e 12/1822, Francisco Vieira Goulart. Era
publicada no Rio de Janeiro e totalizou 1571 números ordinários e 231 extraordinários, com periodicidade
bissemanal. Cf. MEIRELLES, Juliana Gesuelli. A Gazeta do Rio de Janeiro e o impacto na circulação de
ideias no Império luso-brasileiro (1808-1821). 13-02-2006. 218 f. Dissertação de Mestrado –
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 13-02-
2006; PIMENTA, João Paulo Garrido. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-
1828). São Paulo: Ed. Hucitec, 2ª Ed., 2006.
680
GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 10/09/1808, nº 1.
681
PIMENTA, João Paulo Garrido. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-1828).
São Paulo: Ed. Hucitec, 2ª Ed., 2006. P. 71.
682
MOREL, Marco. Da gazeta tradicional aos jornais de opinião: metamorfoses da imprensa periódica no
Brasil. In: NEVES, Lucia Maria Bastos P. (org.) Livros e impressos: retratos do setecentos e do
oitocentos. Rio de janeiro: Editora da UERJ, 2009.
232
A partir de agora, com base nas matérias que trazia, o periódico tornava
mais próxima dos luso-americanos a articulação da diversidade do
Império em torno da monarquia, até então privilégio dos metropolitanos.
Com tudo de oficiosa que tal atividade se revestisse de início, contribuiu
decisivamente para o avanço na conformação de uma cultura política da
qual era resultado683.
683
PIMENTA, João Paulo Garrido. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-1828).
São Paulo: Ed. Hucitec, 2ª Ed., 2006. P. 72.
684
GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 15/06/1809, nº136.
685
Reinhart Koselleck demonstra como o conceito de humanidade era inicialmente politicamente cego e
neutro devido à sua abrangência universalista, ou seja, englobava todos os homens. Para se tornar um
conceito político e passível de instrumentalização no debate era preciso atribuir-lhe determinadas
“qualidades adicionais”, como era o caso do homem como cidadão. Essa diferenciação interna no sentido
do conceito, que não podia ser deduzida da ideia de homem mesmo, é o que o torna operativo para a
manifestação política. De certo modo, como veremos adiante, isso ocorre com o conceito de público,
quando passa a lhe ser atribuído o sentido de leitor, cidadão, povo, cidade, nação. KOSELLECK,
Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos históricos; tradução, Wilma Patrícia
Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. PUC-Rio, 2006.
P. 220-221.
233
as classes de pessoas” – que tinha mais a ver com o movimento da parte ao todo do que
a configuração de um determinado grupo de leitores.
No entanto, um dos aspectos de mudança mais importantes ocasionados pelo
periodismo foi a personificação do público. “Comunicar”, “anunciar”, “fazer”,
“participar”, “avisar”, “dizer”, “dar”, “apresentar” ao público eram as formas mais
usadas. Além disso, se conferia características comumente atribuídas às pessoas para o
público. A Gazeta pretendia satisfazer a sua “ansiedade”, “impaciência” e
“curiosidade”686. Aos poucos o conceito vai se tornando um “coletivo-singular”, ainda
nesse momento tratado como um sujeito passivo que deveria ser guiado pelos redatores
para os fins da felicidade social687.
Essa maneira de tratar o conceito somou-se com a ampliação no sentido da
publicidade que vinha desde as sedições dos finais do XVIII. O sentido de
“visibilidade” do conceito, aquilo que se faz público, vai deixando de tratar da esfera de
jurisdição das autoridades para demarcar cada vez mais o âmbito da disseminação e
obtenção do conhecimento e da instrução. Ao mesmo tempo, não se tratava ainda da
publicidade como espaço de discussão, debate, manifestação de opiniões diversas e
opostas e, especialmente, da transparência das ações políticas, como se construiu a
partir dos anos de 1820. Todavia, a velha característica de exemplaridade da ação
pública, que de fato não desapareceu, no mínimo foi adquirindo uma importância
secundária. E esse novo público, participante dessa nova publicidade, cada vez mais
compreenderá a sua função de “checar” as ações dos governantes688.
Na Gazeta, o termo “privado” aparece quase que exclusivamente no sentido de
privar-se, ou de ser privado de algo ou alguma coisa. Guardava, ainda, o sentido de
“particular favor” como na decisão de nove de julho de 1815 do rei da França, noticiada
em 28 de outubro de 1815 na Gazeta, onde se estabelecia que o “Conselho Privado” do
rei seria ocupado pelos “Príncipes, Ministros de Estado, e as pessoas, que Sua
Majestade julgar conveniente chamar a ele”, convocado de forma especial para discutir
“de maneira solene” certos negócios, ocasião que o rei teria para “recompensar serviços,
686
Alguns exemplos podem ser observados nas seguintes edições: GAZETA DO RIO DE JANEIRO,
05/04/1809, nº 59; 04/01/1813, nº 1(ansiedade); 19/04/1809, nº 63; 06/09/1817, nº 72 (impaciência);
14/09/1808, nº 1; 21/10/1808, nº 7; 04/09/1813, nº 71; 24/05/1815, nº 41 (curiosidade); 14/10/1809, nº
114 (rancor).
687
REIS, Renato de Ulhoa Canto. Opinião pública como força política no Brasil: uma análise a partir
dos conceitos de público e publicidade (1820-1830). 2016. 129 f. Dissertação de Metrado – Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF). Instituto de Ciências Humanas, 2016.
688
PALTI, Elias J. Recents studies on the emergence of a public sphere in Latin America. Latin America
Research Review, Vol. 36, nº 2, 2001. P. 251.
234
***
Nos anos finais do século XVIII e no início do XIX muitas das premissas que
compunham a compreensão de mundo no Antigo Regime foram colocadas em xeque.
Nos espaços vazios que se abriam, nos interstícios das estruturas, novas modalidades de
pensamento sobre as práticas e as finalidades da política e sobre as formas e os tipos de
organização social se processavam. Ao longo do capítulo busquei intercalar essas
mudanças com os usos dos conceitos de público, particular e privado.
Tratando amplamente, não há no período uma discussão clara sobre a
necessidade de separar o público do privado, muito menos o entendimento de que estes
compunham esferas delimitadas por um conjunto de valores inconciliáveis e, no mais
689
GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 28/10/1815, nº 86.
690
Depois chamado de O Português ou Mercúrio Político, Comercial, Literário.
691
Hipólito José da Costa foi processado em 1802 em Portugal por delito de maçonaria. Em 1805, foi
exilado em Londres após prestar serviço ao governo português nos Estados Unidos. O Correio ficou
muito conhecido no período, e diferente da Gazeta do Rio de Janeiro, Hipólito expunha suas opiniões e
reflexões sobre os principais acontecimentos políticos da Europa e da América muito abertamente. O
periódico, de publicação mensal, saiu entre 06/1808 até 12/1822 sem interrupções. Cf. PIMENTA, João
Paulo Garrido. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-1828). São Paulo: Ed.
Hucitec, 2ª Ed., 2006. P. 73.
235
692
SOUZA, Laura de Mello e. Conclusão. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). SOUZA, Laura de Mello e
(Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, V. 1, 1997. P. 440.
237
colonial sem dúvida dava uma dimensão concreta e prática para as mudanças que se
processavam no nível conceitual.
A vida política na corte do Rio de Janeiro, através da ampliação da circulação de
pessoas e informações, tornou-se mais dinâmica. Aos poucos, o reino da crítica política
se difundia, novas formas de comportamento moral se impunham e espaços de
sociabilidade se disseminavam, alterando as compreensões sobre o público, tanto no
sentido de um “agrupamento social” e o que lhe competia enquanto “ator político”,
quanto no sentido da necessária “publicidade política” em detrimento da mera
exemplaridade das ações morais.
Se este capítulo deu uma atenção maior para o conceito de público isto se deve
ao fato de que ainda nesse período (1750-1820) predomina a noção de particular com
aquilo que lhe é característico: as pessoas são partes de um corpo político. As alterações
do conceito de público tiveram consequências na substituição dos “particulares” para
“privados”, mas o principal aspecto dessa substituição, que é a noção de indivíduo,
apenas com as ideias liberais adquiriu importância na linguagem política. Tal já pode
ser observado no embate entre Joaquim José Rodrigues de Brito693 e José da Silva
Lisboa694 nos primeiros anos dos oitocentos. No entanto, optei por deixar esta discussão
para o próximo capítulo, quando me debruçarei no momento que considero o início da
compreensão dicotômica e antagônica do público e do privado. Momento marcado pela
tentativa de divisão total da realidade, com todas as limitações que lhe eram (e ainda
são) evidentes.
693
BRITO, Joaquim José Rodrigues de. Memórias políticas sobre as verdadeiras bases da grandeza das
nações, e principalmente de Portugal. Lisboa: na Impressão Régia, II Tomos, 1803.
694
LISBOA, José da Silva. Princípios de economia política, para servir de introducção à Tentativa
Econômica do author dos Princípios de Direito Mercantil. Lisboa: na Impressão Régia, 1804.
238
O século XIX, tal como afirmava Fernand Braudel, pode ser visto como um
período de “convulsão total do mundo”. Isso significa que diversas mudanças, tanto do
ponto de vista intelectual, político, cultural e econômico, quanto do ponto de vista
material e dos sistemas de reprodução da vida e das estruturas do cotidiano, impactaram
nas experiências dos atores históricos. A partir de então, generalizou-se um sentimento
de aceleração temporal, característico dos momentos de mudanças. No Brasil, e em
vários lugares do mundo, nem todas as transformações ocorreram de maneira abrupta,
compondo parte de um processo histórico dinâmico, com idas e vindas, conflitos e
tensões, que alteraram gradativamente o entendimento da realidade e,
consequentemente, dos conceitos políticos que pretendiam lhe dar forma e conteúdo.
Neste capítulo o objetivo é trazer a tona, na perspectiva estrutural, as mudanças e
significados dos conceitos de público, particular e privado, buscando entender o
processo de criação e recriação da relação entre os conceitos nesse contexto. Trata-se,
sobretudo, de refletir sobre a formação dessa relação a partir do seu caráter dicotômico
que, paulatinamente, transformava os conceitos de público e privado como entidades
substantivadas e reificadas, e cuja marca principal seria a de conceitos opostos e
mutuamente exclusivos.
Em primeiro lugar, analisa-se o “momento constitucional” no início do século
XIX. O desejo e a luta pela construção de uma monarquia constitucional trouxe para o
cenário político uma série de alterações conceituais. É possível perceber os conceitos de
público e particular desempenhando funções e lidando com questões até então tratadas
dentro de outros pressupostos. No caso do Brasil, temas como a escravidão, a religião, o
federalismo e os privilégios, são elencados como exemplares dessas transformações. O
debate sobre estes temas atou-se também aos conceitos de público e particular, não se
esgotando neste período e sofrendo transformações ao longo do século.
Tal como já se desenvolvia desde as elaborações da ciência de polícia nos anos
finais do século XVIII e início do XIX, a formação do Estado ancorou-se no conceito de
público e, em certo sentido, no monopólio sobre a “coisa pública”. De fato, o
surgimento do direito administrativo parece marcar esse momento de reavaliação do
poder político. A legitimidade e justificativa que a ciência administrativa oferecia para a
ação executiva e direta do Estado fundava-se no seu aspecto “público”. Ele era um dos
239
motivos que autorizavam o Estado a agir como um fim em si mesmo, acima dos poderes
paralelos e concorrentes que ainda habitavam as estruturas políticas e institucionais
(tidos, então, como “particulares” ou “privados”). O segundo momento, portanto, visa
lançar uma luz sobre a associação entre o “público” e o Estado nacional então em
construção, que passava, necessariamente, pela administração e representação política.
Esta segunda parte opera em três dimensões. Em primeiro, por meio da
apresentação das teses de Charles Bonnin sobre a administração pública e a forma como
se atualizava o pensamento sobre o “público” e a ação do Estado. Posteriormente,
discute-se o Código Criminal (1830) e o Código Comercial (1850), como forma de
situar o debate de Bonnin, mas especialmente para demonstrar como a elaboração do
aparato normativo e jurídico que dava forma ao Estado em construção mobilizava os
conceitos. Se, por um lado, o Código Comercial foi importante para a produção da
dicotomia público e privado enquanto fenômenos ou categorias analíticas e
interpretativas, de outro, a ausência do emprego dos conceitos durante o curto debate
sobre ele obrigou a discuti-lo a partir de outra frente. Dessa forma, recorri aos usos
efetuados dos conceitos de “interesse público” e “interesse particular” nos debates da
Câmara dos deputados durante os oitocentos, visando compreender o Código e as suas
disposições como parte de um entendimento mais amplo sobre as diferentes formas de
relação entre o público e o particular, ou mesmo a partir da própria dificuldade de
definir essa relação.
Ainda baseado na exposição de Bonnin, e também na própria literatura sobre o
tema, no terceiro momento procuro apresentar o conceito de público no sentido de um
conjunto social. Compreendo que se trata de uma atualização da ambiguidade do
conceito que vinha desde os seiscentos e setecentos, isto é, o público que podia tanto ser
a comunidade como o soberano e seus representantes. Porém, no século XIX, buscava-
se converter os “súditos” em “cidadãos”. A ideia de sociedade nos oitocentos recobria
significados muito distintos do papel e atribuições que a comunidade possuía
anteriormente. A importância, a função e as qualidades do conceito de “público” se
modificavam nesse processo. Junto com ele, também os “particulares”, cada vez mais
tratados como “privados”, por meio da valorização dos indivíduos e seus direitos
naturais mudavam de figura.
Por fim, discuto brevemente o conceito de privacidade. Procuro demonstrar que
a utilização do conceito (e não a realidade que ele recobre), surge apenas no século XX.
Nesse sentido, por mais que não fosse uma ideia estranha ao universo cultural do
240
período colonial ou imperial, é interessante notar que foi apenas no bojo das
transformações dos anos 1930 que o conceito passou a existir, passando a ser
incorporado na linguagem política, especialmente através das áreas da medicina, da
engenharia e da arquitetura. Ressalta-se que a importância do termo “privado” no
período imperial é bastante questionável. “Particular” e “particulares” ainda são os
termos prediletos. Além disso, são raras às vezes em que eles são utilizados como
substantivos, denotando que a sua compreensão como “esferas” ou “setores”, ou ainda
como “economia” ou “mercado”, ainda caminhava lentamente.
695
JANCSÓ, István, PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico: ou apontamentos para o
estudo da emergência da identidade nacional brasileira. Revista de História das Ideias. Vol. 21, 2000. P.
418.
696
BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes Portuguesas (1821-
1822). São Paulo: Hucitec: Fapesp, 1999.
241
697
O CAMPEÃO PORTUGUEZ, 16 de junho de 1820, vol. II, nº 24.
698
Na sessão do dia 30 de abril de 1821 foi debatida a carta enviada por D. João em que dizia que
“aprovava” as bases da Constituição. Vários deputados se opuseram a essa expressão, dizendo que não
cabia ao rei aprova-la, apenas jurá-la. Também foram protestados os termos “Vassalos” e “Rei Nosso
Senhor”, usados na carta, pois estes, assim como a ideia de “aprovação”, não eram “linguagem
constitucional”. Os deputados Sarmento, Agostinho José Freire, e José Joaquim de Moura, partindo da
inviolabilidade do monarca, argumentavam que o uso dessas expressões derivava da falta de
conhecimento que os ministros que aconselhavam o rei tinham da “exatidão que se devem empregar
quando se fala a linguagem constitucional”. O presidente da sessão, mais ao final, questionou se deveria
se protestar contra essas palavras por ferirem o Direito Público Universal e por serem derivadas do
Direito Feudal, no que foi respondido pelo deputado Manoel Fernandes Thomáz de que esses não eram
motivos suficientes para o protesto, e sim “porque não usaram os ministros no dito Decreto da linguagem
constitucional”. Diários das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa (DCGENP). Sessão de
30 de abril de 1821. P. 727-729. Ver também: TASCA, Alexandre Bellini. Enredamentos: o constituir
nacional entre Portugal e Brasil nas Cortes de Lisboa (1820-1822). 2016. 227f. Dissertação de Mestrado
242
Havia, portanto, uma percepção de que uma nova ordem de coisas emergia e,
com ela, um novo vocabulário político era necessário. Coroava-se a nação como
entidade soberana e unitária; a propriedade como direito sagrado de todo cidadão; o fim
da censura prévia e a liberdade de expressão; a representação política; os direitos dos
cidadãos; a definição da nação portuguesa como a reunião dos portugueses de ambos os
hemisférios; a religião católica como religião oficial; a forma de governo monárquica
constitucional hereditária; a divisão dos três poderes; a liberdade enquanto capacidade
individual de fazer tudo o que a lei não proibia699. No centro, articulando esse conjunto,
e caracterizando a sua linguagem própria, a constituição.
Nos debates das Cortes são inúmeros os usos dos conceitos de público e
particular. No projeto que se edificava, na dita “linguagem constitucional”, estes
conceitos adquiriam uma centralidade que dificilmente pode se observar em momentos
anteriores. Foi nessa ocasião que o entendimento sobre eles parece ter se deslocado
daquela visão de integração subordinada, que assimilava uma distinção apenas em
termos de diferenças, para uma visão que transformava a distinção em separação,
tornando as diferenças incompatíveis. A construção conceitual da dicotomia público e
privado e a dificuldade de se conciliar o pensamento dicotômico típico do liberalismo
começava a dar os seus primeiros passos.
Nesse sentido, são relevantes as discussões que pretendiam conciliar os direitos
“sagrados” de propriedade com o imperativo da “utilidade pública”. A questão das
aposentadorias dadas aos militares foi debatida nos seguintes termos pelo deputado José
Vaz Velho:
Tenho direito de falar para explicar o meu voto. Parece que a questão se
reduz a estas simplicíssimas proposições, vem a ser: qual deve preferir, se
o direito de Propriedade, se o Bem Público? Que o direito de propriedade
está estabelecido por nós como inviolável nas Bases, não tem dúvida
nenhuma. Que os privilégios atacam o direito de propriedade não tem
dúvida nenhuma. Agora que devem os privilégios existir, sendo
conformes ao Bem Público, não há dúvida nenhuma. Estabelecidos estes
princípios, resta a terceira questão: se estão na razão do Bem Público as
aposentadorias concedidas aos Militares: creio que quando se determina
que qualquer Tropa se desligue de uma parte para ir para outra, se não faz
– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
2016.
699
Cf. BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes Portuguesas
(1821-1822). São Paulo: Hucitec: Fapesp, 1999. É preciso deixar claro que todas estas questões foram
resultados de processos históricos de longa duração, simultaneamente engendradas a partir de conflitos
entre diferentes posições políticas e ideológicas, interesses econômicos e sociais, com idas e vindas,
recuos e avanços, não se esgotando nesse único momento.
243
isto a bem do particular; logo parece que vai porque o pede o Bem
Público; logo se neste caso do Bem Público, este deve prevalecer ao
particular, e se neste caso de que tratamos há o Bem Público, isto é, se o
Bem Público pede que os Militares tenham casas para se aquartelarem,
segue-se que em virtude do Bem Público estas se lhe devem conceder, e
manter-se lhe os privilégios da aposentadoria700.
700
Diários das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa (DCGENP). Sessão de 24 de maio de
1821. P. 1023-1024.
701
Diários das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa (DCGENP). Sessão de 24 de maio de
1821. P. 1024.
702
Diários das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa (DCGENP). Sessão de 24 de maio de
1821. P. 1024.
703
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. Instituições de Direito Civil Português, tanto público como
particular [1789]. Tradução de Miguel Pinto de Menses. Lisboa: Boletim do Ministério da Justiça, n. 163
e 164, 1967. L. II, T. III, § XLVII, P. 84. Para Mello Freire os Comendadores deveriam ser vistos como
“donatários”, não sendo verdadeiros donos, apenas administradores desses bens. Não podiam, portanto,
244
discutido nas Cortes visava aplicar apenas as comendas que vagassem e não retirar as
existentes. No entanto, como lembrava José Joaquim Ferreira de Moura, deputado eleito
pela província da Beira, “as doações são um título legal, que confere um direito, e este
direito está incorporado na propriedade do donatário”704. Novamente a questão estava
em determinar o alcance ou “intervenção” do público no direito de propriedade do
particular.
O debate se inicia com a proposta de Manoel de Serpa Machado, que pretendia
isentar as comendas conferidas aos professores da Universidade de Coimbra705, uma vez
que estes recebiam ordenados abaixo das suas necessidades. A primeira questão a ser
resolvida era a seguinte: pretendia-se retirar apenas as comendas que vagassem, no
entanto, não estava claro se as comendas dos professores eram pessoais, suscetíveis a
ficarem vagas quando da morte do possuidor, ou da Universidade enquanto uma
“corporação particular”, o que impediria a vacância da comenda.
A consideração da Universidade de Coimbra como uma corporação particular
levou os deputados a considerarem a sua especificidade em relação a outras
corporações, tal como a Ordem de Malta. Foi aí que interviu o deputado João Maria
Soares Castello Branco, representante da Estremadura, afirmando que:
alienar, aforar, ou alugar o bem por mais de um biênio sem licença de um ministro. A sucessão desses
bens não se dava por direito hereditário ou por direito de sangue, mas de acordo com a Lei Mental.
704
DCGENP. Sessão de 23 de março de 1821. P. 343.
705
Trata especificamente da “Faculdade de Matemática, Filosofia, e as Dignidades Canonicatos e
Benefícios conferidos aos Professores e Doutores das Faculdades Positivas”.
245
706
DCGENP. Sessão de 21 de março de 1821. P. 321.
707
DCGENP. Sessão de 22 de março de 1821. P. 333. Até este momento os “bens da coroa” ainda não
haviam sido decretados como “bens nacionais”, o que irá ocorrer apenas no decreto de 5 de maio de 1821.
708
DCGENP. Sessão de 22 de março de 1821. P. 334.
246
sua origem era de bem eclesiástico, ou ainda que as doações antigas foram feitas pelo
rei na condição de “Grão-Mestre”. De todos os argumentos subtraia-se o fato de que
eram direitos particulares e de propriedade. O que não impedia outros impasses, como a
conciliação entre merecimento e hereditariedade. Francisco Simões Margiochi ironizava
o fato de que o rei conhecia o merecimento das pessoas antes de terem nascido e que se
concediam privilégios para a “segunda” ou até “terceira vida”709. E Manoel Borges
Carneiro minimizava os danos da extinção das comendas para os filhos de
comendadores: “eles tem vínculos, e bens patrimoniais para se sustentar, e não é justo
que as famílias se sustentem à custa do público tendo um tratamento lauto”710.
O resultado da discussão se deu na sessão do dia 23 de março. No mesmo dia
mandou-se uma ordem à Regência para que não passasse alvarás de mantença aos
comendadores711. Já o decreto publicado em cinco de maio, o mesmo que dizia que
“todos os Bens da Coroa, de qualquer natureza que sejam, pertencem à Nação, e se
chamarão consequentemente Bens Nacionais”, determinava que as comendas que
ficassem vagas seriam aplicadas na caixa de amortização da dívida pública.
Excetuavam-se os palácios, quintas e tapadas destinadas à habitação e recreio do rei, e
as comendas providas para a Universidade de Coimbra. No caso das capelas da coroa,
dos direitos reais, e das três ordens militares, caso a comenda tivesse sido obtida por
remuneração de serviço, e não honorificamente, estariam fora da determinação712.
O mesmo Castello Branco, seis meses depois, debatia sobre um dos artigos do
projeto da constituição que discorria sobre os cidadãos que fossem acusados de crimes
que não ultrapassasse um ano de prisão, ou que não implicasse em desterro. Nesses
casos o projeto estabelecia que não houvesse prisão. Mas, como era usual, poderia haver
um imperativo de “necessidade” ou “segurança pública” que exigisse uma exceção. O
problema que se colocava, então, era se seriam especificadas na Constituição as
exceções à regra geral, ou se a Constituição faria remissão às leis regulamentares. Para
709
DCGENP. Sessão de 22 de março de 1821. P. 335.
710
DCGENP. Sessão de 23 de março de 1821. P. 342.
711
Ordem de Côrtes à Regência, para não passar Alvarás de mantença aos Commendadores. 23 de março
de 1821, n. 69, P. 43. In: PORTUGAL. Collecção dos decretos, resoluções e ordens das Côrtes Gerais,
Extraordinárias e Constituintes da Nação Potugueza, desde a sua instalação em 26 de janeiro de 1821.
Parte I. Coimbra: na imprensa da Universidade, 1822.
712
Decreto sobre os Bens Nacionais, e amortização da dívida pública. 5 de maio de 1821, n. 85, P. 53. In:
PORTUGAL. Collecção dos decretos, resoluções e ordens das Côrtes Gerais, Extraordinárias e
Constituintes da Nação Potugueza, desde a sua instalação em 26 de janeiro de 1821. Parte I. Coimbra: na
imprensa da Universidade, 1822. A aplicação para a dívida pública se faria através do arrendamento das
comendas vagas, determinadas pelo decreto de 9 de maio de 1821 (Decreto que manda arrendar as
comendas vagas).
247
Nós vamos reformar, e o que? Os forais; e que são forais? São leis
particulares, dadas às terras onde se cobravam direitos antigamente
chamados da coroa. Portanto os receios que apresentou um dos ilustres
Preopinantes de irmos entender com a propriedade particular,
desaparecem. Aqui não se trata da propriedade particular, aqui é toda
pública. Os forais são leis particulares sobre o modo de arrecadar os
direitos das terras antigamente da coroa, e hoje da Nação.
Consequentemente os Srs. que tem receio de que se vá entender com a
propriedade particular, podem perde-lo. Forais são leis sobre a
arrecadação de direitos. Logo que vamos fazer? É legislar dos direitos
pertencentes à Nação em geral, e não dos direitos pertencentes aos
particulares715.
713
DCGENP. Sessão de 26 de setembro de 1821. P. 2419.
714
DCGENP. Sessão de 26 de setembro de 1821. P. 2420.
715
DCGENP. Sessão de 27 de outubro de 1821. P. 2827.
248
716
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Revolução liberal e regime senhorial: a “questão dos forais” na
conjuntura vintista. Revista Portuguesa de História – atas do colóquio “A Revolução Francesa e a
Península Ibérica”, Tomo XXIII, Coimbra, 1987. P. 161.
717
Os termos anotados aqui foram todos adjetivados com “público” ao longo dos debates da Constituinte
entre 1821 e 1822. Optei por coloca-los em ordem alfabética, pois categorizá-los seria praticamente
impossível devido aos vários sentidos que o conceito recobre. Muitos deles já existiam anteriormente e
outros são novos. Aqui interessa mais demarcar a amplitude dos usos possíveis naquele momento:
academias, acontecimentos, açougue, acusação, administração, ajuntamentos, anúncio, aplauso, arquivo,
arrecadação, arrematação, assembleias, ataques, ato, audiência, aulas, autoridade, banco, bem, benefício,
benfeitoria, cabedais, cadeias, caixas, calamidade, capelas, carreira, cargos, caridade, carreira, cartas,
casa, causa, cemitério, censura, circunstância, clamor, cofres, coisa, compaixão, conceito, concurso,
conduta, confiança, consciência, conservação, consideração, contrato, contribuições, conveniência,
caridade, correspondência, corrupção, costumes, credores, crédito, culto, “daninhos” (danos), decência,
declamações, declarações, decoro, deliberação, demonstração, depositário, desaprovação, desassossego,
desastres, desavença, desconfiança, descontentamento, desgraças, despesa, desprezo, dinheiro, direito,
discussão, divertimentos, dívida, documentos, economia, edifício, educação, eleição, empregados,
empregos, empréstimo, encargos, ensino, escândalo, escolas, escritor, escritos, escritura, espírito,
estabelecimento, estações, estado, estimação, estrada, exame, execração, exemplo, exigência, fama, fato,
fazenda, fé, felicidade, festas, fiscalização, fonte, forais, força, forma, fortuna, função, funcionário,
fundos, governo, hasta, homem, igrejas, imoralidade, imposições, impostos, incolumidade, incômodo,
independência, indignação, indústria, instituições, instrução, interesse, juízo, junta, justiça, ladrão, leis,
liberdade, livro, lugares, luxo, males, maldição, malfeitorias, mancha, matas, meio, mentira, mercadoria,
mestres, miséria, monumento, necessidade, negócios, notícias, notoriedade, obras, ocasiões, ódio, oficial,
ofício, operações, opinião, ordem, organização, pacificação, papeis, passaportes, paz, penúria, periódico,
perturbação, pessoa, poder, praça, prédios, prejuízo, processo, professor, promessas, propriedade,
prosperidade, proveito, quebra, ramos, razões, reformas, regozijo, relações, renda, rendimentos,
repartições, repouso, reputação, respeito, riqueza, ruas, sacrifícios, salteador, salvação, saúde, segurança,
serviço, sitio, sociedade, sossego, subsistência, sustância, terreiro, tesouro, testemunho, título, trabalho,
tranquilidade, transações, tribunais, tolerância, urgência, utilidade, valor, vantagem, venda, vergonha,
vida, vigilância, vontade, votação, voz.
249
718
Sobre essa distância temporal, basta lembrar que o decreto de 16 de fevereiro de 1822, por meio do
qual d. Pedro convocava um Conselho de Procuradores formado por representantes das províncias do
Brasil, foi declarado nulo pelas Cortes portuguesas apenas cinco meses depois, em 17 de julho de 1822.
Quando se declarou a nulidade do decreto, este já estava instalado e desde o mês de junho o príncipe já
decretara as instruções para formação de Cortes Constituintes no país. Ou seja, o ritmo acelerado dos
acontecimentos no Brasil conflitava com a capacidade das Cortes de oferecer prontamente uma resposta
adequada. Essa temporalidade foi um fator importante no curso dos acontecimentos do período. Ver:
TASCA, Alexandre Bellini. Enredamentos: o constituir nacional entre Portugal e Brasil nas Cortes de
Lisboa (1820-1822). 2016. 227f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.
250
719
István Jancsó e João Paulo Garrido Pimenta apontam que no caso da Bahia é possível perceber no
mínimo três vertentes básicas quanto à futura forma de organização do Estado: a primeira herdeira da
tradição republicana, orientada pela ruptura total com Portugal; a segunda propugnava a adesão ao
sistema constitucional como garantia de autonomia provincial, integrando-se ao Império português em
condições de igualdade com as outras partes; já a terceira desejava a restauração da unidade do Império,
pela via constitucional, para o enfrentamento das potências estrangeiras que ameaçavam os velhos
interesses mercantis, e pela reiteração e ampliação da ordem social escravista. JANCSÓ, István,
PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico: ou apontamentos para o estudo da emergência da
identidade nacional brasileira. Revista de História das Ideias. Vol. 21, 2000. p. 428-429.
720
JANCSÓ, István, PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico: ou apontamentos para o
estudo da emergência da identidade nacional brasileira. Revista de História das Ideias. Vol. 21, 2000. p.
428-429.
251
de construir um Estado e uma nação e, com isso, imaginar e criar as fronteiras daquilo
que seria público e daquilo que seria privado.
Inúmeros foram os usos dos conceitos nos debates da Assembleia Constituinte
no Brasil. Nenhum apelo claro foi feito para a separação entre o público e o privado (ou
particular) como no caso português. Contudo, os quatro temas a seguir se destacaram na
mobilização dos conceitos: a questão da escravidão, do privilégio, do federalismo e da
religião.
4.1.1.1. A escravidão
721
Essa dicotomia, na verdade, vai ser percebida por muitos como a grande questão política dos “novos”
tempos, tal como na fala do deputado Carneiro de Campos: “Homens ignorantes ou perversos não sabem
ou fingem ignorar que o problema da associação política, ainda mesmo nos governos os mais livres,
consiste na manutenção dos direitos individuais dos cidadãos, combinados com a tranquilidade, segurança
e ordem pública; que quem não atende a estes dois dados conjuntamente e os não concilia bem,
certamente não resolve o problema, não consegue o fim da organização civil, e segundo prescindir de um
dos dados sobreditos produzirá a anarquia ou o despotismo e tirania”. BRASIL. Diário da Assembleia
Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil – 1823 (DAGC). Sessão de 23 de junho de 1823.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial. 2003. Tomo I. p. 279.
722
DAGC. Sessão de 19 de junho de 1823. T. I. p. 248. O caso foi estudado por Jaime Rodrigues em:
RODRIGUES, Jaime. Liberdade, humanidade e propriedade: os escravos e a Assembleia Constituinte de
1823. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), São Paulo, n. 39, p. 159-167, 1995.
252
A discussão ficou adiada até que o deputado França trouxesse a carta régia a que
fazia menção. Tal aconteceu na sessão do dia 23 de junho. Nesta indicava que a carta
régia era de 5 de novembro de 1710, a qual estabelecia os ordenados do Procurador da
Coroa e Fazenda, e obrigava-o a atuar em defesa das causas da coroa e dos escravos e
seus cativeiros. Daí se podia deduzir que “as causas e condições destes miseráveis se
acham debaixo da proteção do Governo” e, portanto, suas demandas nesse caso “devem
ser tratadas como causa pública por oficiais públicos a isso destinados, segundo a letra e
espírito da dita Carta Régia”724. Tendo em vista a compreensão teórica da superioridade
do interesse público sobre o particular, vincular a liberdade dos escravos como uma
“causa que tinha alguma coisa de pública” podia, obviamente, causar conflitos, como
veio a acontecer.
O deputado Lucio Soares Teixeira de Gouvêa, deputado pela província de Minas
Gerais, alegava que impedir Agueda Caetana de fazer uso dos seus escravizados até o
fim da revista era ferir o direito de propriedade, uma vez que o recurso à revista não
impedia a execução da sentença. Esta seria uma lei geral que não podia ser dispensada
em “casos particulares”: “como dispensaremos nós esta Lei geral, privando ao Cidadão
de um direito individual, e isto por mera causa particular?”725. Ao enfatizar o aspecto de
“causa particular”, Teixeira de Gouvêa pretendia diminuir a importância ou mesmo a
necessidade de intervenção do governo neste caso. A única condição que permitia a
violação da garantia de inviolabilidade do direito de propriedade era para a “salvação da
pátria” e isto não se podia dizer de uma causa meramente “particular”. O parecer voltou
para a Comissão deliberar.
723
DAGC. Sessão de 19 de junho de 1823. T. 1. p. 249 (itálico meu).
724
DAGC. Sessão de 23 de junho de 1823. T. 1. p. 280.
725
DAGC. Sessão de 23 de junho de 1823. T. 1. p. 280.
253
Cinco dias depois, no dia 28 de julho, o novo parecer já indicava o modo como
se orientava: “procurando conciliar o favor da liberdade, a causa da humanidade, com
os direitos de propriedade”. Remetia-se o requerimento ao governo pedindo que este
concedesse o “favor” para que os requerentes levassem adiante o processo de revista,
deixava-os submetidos ao poder da pretendida “Senhora” até o fim dessa etapa, mas
orientava para que esta fosse obrigada a não sevicia-los ou vende-los, dispensando os
dias necessários para tratarem da sua causa. Pedia a proteção da Santa Casa da
Misericórdia para se encarregar das suas defesas e da revista. Ao final, o parecer foi
aprovado, mas alguns deputados enfatizaram o fato de que era necessário que estes
escravizados continuassem entregando o “fruto dos seus trabalhos” para Agueda
Caetana, pois assim salvava-se o direito de propriedade726.
A mesma questão também guiou alguns deputados na discussão sobre o art. 5º
do projeto da Constituição, no qual se dizia que eram brasileiros “os escravos que
obtiverem carta de alforria”. A “lei da salvação do estado” era, para o deputado José
Martiniano de Alencar, da província do Ceará, a lei que impedia fazer dos escravizados
cidadãos:
Nesse caso, portanto, a questão da escravidão era além de particular uma “causa
pública”, pois afetava a agricultura e a ordem social, motivos que impediriam tornar
cidadão o escravizado. A indistinção entre cidadania e nacionalidade no projeto da
constituição de 1823 negava ao escravizado não apenas a condição de cidadão, mas
também a condição de “brasileiro”. Quanto aos libertos, o deputado João Severiano
Maciel da Costa, da província de Minas Gerais, tratava-os como estrangeiros no país em
que nasceram, exigindo que para serem brasileiros/cidadãos possuíssem propriedades e
se casassem com mulheres brasileiras. A necessidade de aumentar a população era um
dos “motivos de interesse nacional” que guiavam o “favor” concedido por uma nação
para “naturalizar” um estrangeiro. Contudo, estes motivos deveriam estar submetidos ao
726
DAGC. Sessão de 23 de junho de 1823. T. 1. p. 323-324.
727
DAGC. Sessão de 30 de setembro de 1823. T. 3. p. 133.
254
motivo primário “que absorve, para assim me explicar, todos os outros, o qual é a
segurança pública, esta primeira lei dos estados a qual é a tudo superior”728. Era a esta
lei de segurança pública que o autor se agarrava para criar outras condições que
dificultassem o acesso do liberto à condição de cidadão e brasileiro. Tratava-se, em
suma, do medo em relação aos escravizados. Do ponto de vista da “segurança pública”
os escravizados eram uma “causa pública”, pois despertavam uma preocupação
generalizada; do ponto de vista do conflito entre o “sagrado” direito de propriedade e a
ambição do escravizado por liberdade, eram eles tidos como meras “causas
particulares”.
728
DAGC. Sessão de 30 de setembro de 1823. T. 3. p. 136.
729
DAGC. Sessão de 15 de julho de 1823. T. 2. p. 407.
730
DAGC. Sessão de 9 de agosto de 1823. T. 2. p. 559.
255
731
Respectivamente: DCGENP. Sessão de 30 de julho de 1821. P. 1689; DCGENP. Sessão de 25 de abril
de 1821. P. 673; DCGENP. Sessão de 31 de janeiro de 1821. P. 9.
732
Respectivamente: DAGC. Sessão de 22 de maio de 1823. T. 1. p. 106; DAGC. Sessão de 18 de
setembro de 1823. T. 3. p. 48.
733
DAGC. Sessão de 9 de agosto de 1823. T. 2. p. 551.
256
Carvalho e Mello demonstra como ela podia ser instrumentalizada para a defesa de um
privilégio, pois se o benefício concedido a um particular redunda na utilidade pública,
não havia problemas na manutenção do privilégio pessoal.
734
DAGC. Sessão de 18 de setembro de 1823. T. 3. p. 48.
257
Também para José da Silva Lisboa, “nenhum chefe de casa sofreria divisão de
poderes. Todavia é admissível e justa esta divisão nos estados. Logo, nada vale o
paralelo entre casas, províncias, e nações”737. Ou seja, se para uns a autonomia era
condição para a união, para outros essa mesma autonomia apenas podia significar
desunião. A relação entre o público e o particular desempenhava um papel persuasivo
importante nos novos problemas despontados no processo de construção do estado
nacional e na sua forma de organização. E não é demais insistir que ainda nesse
momento impera o sentido tradicional dos conceitos. Na verdade, tratava-se de repensar
e reorientar a relação entre as partes e o todo dentro de uma nova conjuntura.
735
DAGC. Sessão de 18 de setembro de 1823. T. 3. p. 48. Sobre a questão do federalismo no pós-
independência, ver: MELLO, Evaldo Cabral de. A Outra Independência: o federalismo pernambucano de
1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.
736
DAGC. Sessão de 18 de setembro de 1823. T. 3. P. 51.
737
DAGC. Sessão de 18 de setembro de 1823. T. 3. P. 52.
258
Sr. Presidente, tudo quanto nós podemos fazer neste negócio é não
consentir que o cidadão seja perseguido por suas opiniões religiosas,
enquanto ele as não espalhar ou pregar de um modo sedicioso; não
consentir que o cidadão seja espionado até no interior de sua família para
saber o governo suas ideias e mesmo o modo com que este observa os
preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denúncias, perseguições,
etc., porque em rigor de direito político a alçada do governo para nos atos
públicos, que ofendam a tranquilidade e o respeito devido ao culto
nacional. Feito isto, temos – liberdade religiosa – grande liberdade
religiosa, a única de que necessitamos, a única que nos pode ser útil740.
738
Sobre a questão acima e para uma defesa da ideia de secularização, ver: CASANOVA, José. Public
Religions in the Modern World. Chicago: The University of Chicago Press, 1994; ______. Private and
Public Religions. Social Research, vol. 59, n. 1, Religion and Politics, p. 17-57, spring/1992.
739
Nas Cortes portuguesas isso fica muito claro a partir da sugestão do Bispo de Beja ao artigo 25 do
projeto da Constituição, o qual dizia: “A religião da nação portuguesa é a católica, apostólica, romana.
Permite-se contudo aos estrangeiros o exercício particular de seus respectivos cultos”. Para o Bispo, era
preciso alterar “permite-se” por “poderá ser permitido”, e também a palavra “particular” pela palavra
“privado”, “pois esta exprime melhor a ideia, que se quer ligar a palavra = particular”. DCGENP. Sessão
de 3 de agosto de 1821. p. 1772.
740
DAGC. Sessão de 7 de outubro de 1823. T. 3. p. 186.
259
741
Questão que permaneceria por muitos anos. A Seção de Justiça do Conselho de Estado, em 27 de abril
de 1854, recebia uma consulta sobre a situação de Catharina Scheid, colona de Petrópolis, protestante,
que se casara com Francisco Fagundes, português, católico, e que agora buscava se divorciar, tendo em
vista que seu marido viajara para Cantagalo em busca de melhores condições de vida e prometera voltar
no prazo de um ano. Porém, já se passavam quatro anos e ele não regressara, ficando sabendo ela que este
já se encontrava amancebado com uma “parda”, de quem já tinha filhos. Os ritos do casamento
efetuaram-se de acordo com a religião protestante, sendo assistido e confirmado por uma autoridade da
mesma religião. Na ausência de uma instituição superior para efetivar o divórcio, autorizado nesse caso
pela religião protestante, Catharina buscava soluções para sua situação. Mesmo com um longo discurso
realizado pelos conselheiros Paulino José Soares de Souza, Miguel Calmon du Pin e Almeida e Caetano
Maria Lopes Gama, a favor de uma regulação melhor da situação dos professantes de outras religiões
(especialmente no contexto após a extinção do tráfico de escravos e necessidade de imigração de mão de
obra) e também de revisão do caráter oficial da religião católica, o entendimento ao final era que o
casamento, desde o início, não tinha nenhum valor religioso e civil, pois não foi confirmado por uma
autoridade pública, como era o pároco da religião católica. Entendia-se que “o pastor protestante é um
mero particular, não tem fé alguma pública”. Consulta de 27 de abril de 1854, p. 449. In: BRASIL.
Imperiaes resoluções tomadas sobre consultas da Secção de Justiça do Conselho de Estado. Desde o
anno de 1842, em que começou a funccionar o mesmo Conselho, até hoje. Colligidas em virtude de
autorisação do Exm. Sr. Conselheiro Manoel Pinto de Souza Dantas, Ex-Ministro e Secretário de Estado
dos Negócios da Justiça, pelo Bacharel José Próspero Jehovah da Silva Caroatá. I parte. Rio de Janeiro:
B. L. Garnier, livreiro editor, 1884. [doravante, SJ-CE].
260
742
DAGC. Sessão de 8 de outubro de 1823. T. 3. p. 193-194.
743
DAGC. Sessão de 5 de novembro de 1823. T. 3. p. 362.
744
José da Silva Lisboa foi um dos principais críticos à inserção da liberdade religiosa como um direito
individual. Dizia em certo momento que: “Em todos os países nunca foi permitido publicamente
contrariar a estabelecida forma de governo; e por isso os dissidentes se calam, ou se conformam a ela na
aparência; e neste sentido se pode também dizer, que vivem com hipocrisia política”. DAGC. Sessão de 9
de outubro de 1823. T. 3. p. 208.
261
Em 1824, Francisco de São Luiz Saraiva publicou seu Ensaio sobre alguns
sinônimos da língua portuguesa, no qual pretendia demonstrar a diferença de
determinados verbetes usados até então como sinônimos. Um dos pares de termos
escolhidos pelo autor foi “público” e “comum”. Segundo ele, público “é o que pertence
ao todo de uma nação, povo ou cidade, considerada como pessoa moral, debaixo da
autoridade de um governo”, já o comum “é aquilo de que participam todos e cada um
dos indivíduos de uma nação, povo, cidade, família ou associação”. Enquanto o
primeiro era pensado a partir de uma lógica coletivista, o “todo”, a “pessoa moral” da
nação, povo ou cidade; o segundo possuía um sentido distributivo, era composto por
cada um dos indivíduos que o compunham, pelas partes.
Nesse sentido, os “interesses comuns” seriam aqueles de que participam “todos
os membros de uma sociedade, corporação ou família particular, e não são públicos”.
As relações comerciais ou mesmo os sentimentos de uma classe ou corporação seriam
comuns e não públicos. Além da diferença de uma totalidade coletiva e outra
distributiva, o fator que separava os dois conceitos estava compreendido na ideia de que
o “público” deveria estar “debaixo da autoridade de um governo”. Assim, afirmava que
“é autoridade pública a dos magistrados; são rendas públicas as do estado; e nenhuma
destas coisas é comum, ainda que ambas sejam estabelecidas para bem comum dos
povos”. Havia, no entanto, objetos em que concorriam ambas as qualidades.
As leis, por sua vez, eram feitas com vistas no bem público e no bem comum,
“porque é necessário que concorram para a felicidade geral da sociedade, a qual resulta
262
745
LUIZ, D. Francisco de São. Ensaio sobre alguns synonimos da língua portugueza. 2. ed. Lisboa:
Typografia da Academia Real de Sciencias, 1824. p. 204-205. [Todos os itálicos são do autor].
746
HESPANHA, António Manuel. O direito administrativo como emergência de um governo activo (c.
1800-1910). Revista da História das Ideias. v. 26, 2005.
263
747
Sobre as diferentes edições da obra de Bonnin, ver: OROZCO, Omar Guerrero. Estudio Introductorio.
In: BONNIN, Charles-Jean Baptiste. Principios de administración pública [compilación y estudio
introductorio de Omar Guerrero Orozco]. Trad. Eliane Cazenave. México: Fondo de Cultura Economica,
2004. Ebook. Para uma análise da leitura de Francisco Soares Franco a respeito da obra de Bonnin no
contexto português, ver: HESPANHA, António Manuel. O direito administrativo como emergência de um
governo activo (c. 1800-1910). Revista da História das Ideias. v. 26, 2005. p. 119-159; FERNANDES,
Renata Silva. As províncias do Império e o “governo por conselhos”: o Conselho de Governo e o
Conselho Geral de Minas Gerais (1825-1834). 2018. Tese de Doutorado – Instituto de Ciências Humanas
da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2018.
748
Cf. FERNANDES, Renata Silva. O modelo de administração departamental francês e a organização
das províncias do Império do Brasil (1823-1834). Temporalidades – Revista de História, Edição 23, v. 9,
n, 1, (jan./abril 2017). Também é possível encontrar referências à Bonnin em outros periódicos: Abelha
do Itaculumy (MG), Império do Brasil: Diário do Governo (CE), Correio do Rio de Janeiro (RJ), O
Observador Constitucional (SP), A Aurora Fluminense (RJ); a maior parte comentando ou extraindo
trechos de outra obra do autor: BONNIN, Charles-Jean Baptiste. Doutrina Social ou princípios
(aphorismos) universaes das leis e das relações dos povos deduzidos da natureza dos homens dos direitos
do gênero humano textualmente formados das declarações dos direitos franceses e americanos [1820].
Com as anotações e postos em linguagem vulgar pelo Dr. A. J. Mello Moraes. Bahia: Typ. Do Correio
Mercantil de I. H. Cajueiro, 1847.
264
Jamais se teve nem sequer a ideia do que é, da natureza das suas funções,
dos seus pontos de contato com o governo e os tribunais, de suas relações
com o cidadão. Jamais passou pela cabeça dos legisladores de nenhum
dos povos que a administração tinha suas leis, suas formas, e suas regras
fixas e invariáveis. Nem sequer se suspeitava da existência de umas e
outras. Administrar, era atuar ao dia; era não seguir mais que ilusões, a
vontade ou o impulso do momento; exercer impunemente uma parte
importante do poder; perturbar os cidadãos em suas pessoas e em seus
bens; em uma palavra, fazer o que se chamavam atos de autoridade. O
arbitrário mais absoluto ou uma rotina cega eram as únicas regras
seguidas da administração. Os princípios alteravam com os homens, e os
cidadãos eram joguetes das pequenas paixões, do orgulho, da inveja ou da
negligência daqueles destinados aos empregos públicos, e dos que os
sucediam neles. Dessa imperdoável ignorância dos princípios
fundamentais da administração, resultavam as maiores desordens no
Estado749.
749
“Jamais on eut seulement l’idée de ce qu’elle est, de la nature de ses fonctions, de ses points de
contacts avec le gouvernement et les tribunaux, de ses rapports avec le citoyen. Il n’était jamais venu dans
la pensée des législateurs chez aucun peuple que l’administration avait ses lois, ses formes, et ses règles
fixes et invariables. On ne soupçonnait même pas l’existence des unes et des autres. Administrer, c’était
agir au jour le jour ; c’était ne suivre que les illusions, la volonté ou l’impulsion du moment ; exercer
impunément une partie importante du pouvoir ; troubler les citoyens dans leurs personnes et dans leurs
biens ; en un mot, faire ce qu’on appelait des actes d’autorité. L’arbitraire le plus absolu ou une routine
aveugle étaient les seules règles qu’on suivait en administration. Les principes changeaient avec les
hommes, et les citoyens étaient le jouet des petites passions, de l’orgueil, de la jalousie ou de la
négligence de ceux appelés aux emplois publics, et qui s’y succédaient. De cette ignorance
impardonnable des premiers principes de l’administration, résultaient les plus grands désordres dans
l’Etat”. BONNIN, Charles-Jean Baptiste. De l’importance et de la nécessité d’un code administratif.
Paris: Chez Garnery, 1808. p. 27. [tradução minha].
750
A época napoleônica “fez muito mais, quebrando definitivamente a imagem abrangente e legalista do
poder perpetuada pela tradição e introduzindo em seu lugar dois tipos de autoridades totalmente novas, a
judicial e administrativa; a primeira consistindo em aplicar a lei aos casos contenciosos, a outra dirigida a
promoção do interesse público sob as ordens do governo. Por um lado encontramos assim formalizada
pela primeira vez a existência de um poder coercitivo e dispositivo completamente autônomo com relação
a declaração do direito, e intrinsecamente ‘político’ enquanto que instrumental para a realização dos fins
265
empíricos do Estado” (tradução minha). MANNORI, Luca. Justicia y administración entre antiguo y
nuevo régimen. Revista Jurídica: Universidad Autónoma de Madrid, n. 15, 2007. p. 137.
751
“Les lois administratives, en effet, ne considèrent pas les administrés dans la famille et comme
individus dans l’Etat, ni dans l’exercice de leurs droit politiques, mais comme membres de la société dans
leurs rapports publics, rapports nécessaires au maintien même de la société”. BONNIN, Charles-Jean
Baptiste. Principes d’administration publique. 3ª ed. T. 1. Paris: Chez Renaudiere, 1812. p. VII. [tradução
minha].
752
BONNIN, Charles Jean. Principes d’administration publique, pour servir a l’étude des lois
administratives, et considerations sur l’importance et la necessite d’um code administratif, suivies du
projet de ce code. 2ª ed. Paris: Chez Clament frères, 1809. p. 40. [tradução minha].
753
BONNIN, Charles-Jean Baptiste. Principes d’administration publique. 3ª ed. T. 1. Paris: Chez
Renaudiere, 1812. p. VIII.
754
OROZCO, Omar Guerrero. Estudio Introductorio. In: BONNIN, Charles-Jean Baptiste. Principios de
administración pública [compilación y estudio introductorio de Omar Guerrero Orozco]. Trad. Eliane
Cazenave. México: Fondo de Cultura Economica, 2004. Ebook. Paginação irregular.
266
A antiga imagem das pessoas públicas e das pessoas particulares, como aquelas
que possuíam um ofício público e as que não possuíam, cede lugar para a ideia de que
todos os “homens” possuem uma vida pública e uma vida privada. A administração
pública depende dessa dicotomização para organizar e definir a sua esfera própria de
normatização.
A dimensão pública do homem, em Bonnin, era parte da própria natureza. Aqui
o autor não difere da máxima que permeia o pensamento político desde Aristóteles: o
homem é animal social e por consequência tende naturalmente a se organizar em
sociedade. Contudo, se antes essa natureza humana social era justificativa para
explicitar a também natural necessidade da instituição do soberano, agora a fórmula era
utilizada por Bonnin para afirmar que o que emana da natural associação humana é a
administração756.
Dessa forma, a administração enquanto marco normativo do Estado pretendia
abarcar o interesse, os negócios, os assuntos e as relações públicas como exclusividade
de sua ação executiva. Era o “interesse público da grande família” que interessava à
administração, e não o “interesse privado de cada família parcial”757. Seu campo de
ação eram as relações que todos os indivíduos estabelecem diariamente em sociedade, a
755
“En efecto, la tradición administrativa francesa desarrolló lenta y gradualmente condiciones de
centralización y unidad administrativa que prohijaron un régimen genérico funcional y territorial que
abarcó a todo el país. A falta de ese régimen genérico habría un conglomerado disímbolo de autarquías
territoriales y políticas, separadas por fueros, privilegios e inmunidades, y dotadas con administraciones
igualmente peculiares y propias. La administración pública sólo es posible allí donde cuaja la nación y se
decreta la igualdad jurídica de todos los hombres, pues lo público es propio nada más del universo social
cuya naturaleza es la existencia dual del ser humano como individuo y como miembro de la comunidad”.
OROZCO, Omar Guerrero. Estudio Introductorio. In: BONNIN, Charles-Jean Baptiste. Principios de
administración pública [compilación y estudio introductorio de Omar Guerrero Orozco]. Trad. Eliane
Cazenave. México: Fondo de Cultura Economica, 2004. Ebook. Paginação irregular. [tradução minha,
grifo do autor].
756
“C’est donc dans l’organisation même de l’homme, dans son penchant naturel à être heureux, dans son
désir constant à le devenir, dans sa persévérance à y travailler, joints à l’intérêt public et aux rapports des
homes en société, qu’on trouvera également le principe des lois administratives, comme de toutes les
institutions organiques de l’Etat”. BONNIN, Charles Jean. Principes d’administration publique, pour
servir a l’étude des lois administratives, et considerations sur l’importance et la necessite d’um code
administratif, suivies du projet de ce code. 2ª ed. Paris: Chez Clament frères, 1809. p. 44.
757
“C’est l’intérêt public de la grande famille que les lois administratives ont en vue, et non l’intérêt privé
de chaque famille partielle, dont la grande famille ou l’Etat se compose”. BONNIN, Charles Jean.
Principes d’administration publique, pour servir a l’étude des lois administratives, et considerations sur
l’importance et la necessite d’um code administratif, suivies du projet de ce code. 2ª ed. Paris: Chez
Clament frères, 1809. p. 44.
267
relação dessa sociedade com o Estado, e o próprio Estado, que para Bonnin, era apenas
a reunião dos homens que o compunha, unidos entre si por relações de interesse geral.
As questões de “interesse privado” deviam ser contempladas pelas leis civis.
Com o objetivo de fundamentar a “ciência administrativa”, Bonnin aprofundava
a separação entre o público e o privado, atribuindo para cada um deles qualidades
distintas. O interesse público demandava “ordem” para sua conservação, ordem que
dependia dos “agentes designados para sua manutenção”, os administradores, cuja
atuação derivaria de regras fixas baseadas nas relações sociais da qual seriam
consequência. As certidões de nascimento dos filhos, da união ou desunião legal dos
esposos, de legitimidade dos filhos, seu reconhecimento ou sua adoção, ainda que
tratassem do âmbito familiar, eram incumbências também do Estado, pois interessava à
sociedade e era necessária para a “manutenção da ordem pública”. Já os conflitos que
surgissem entre particulares, no interior da família, tornando-se objeto de juízo,
competiriam à justiça758.
Bonnin buscava criar e sistematizar o código administrativo definindo
dimensões, esferas, âmbitos próprios para cada área do direito, especificando a relação
com as leis políticas, civis e penais. A intromissão de um campo pelo outro passava a
ser visto como um desvio da norma, um sinal de arbitrariedade ou despotismo, ou
apenas uma “confusão”. Defendia, assim, que era preciso não “confundir” o direito
administrativo com o político759 ou com o civil760; era preciso também não “confundir”
as duas condições de “público” em que a administração operava761.
758
BONNIN, Charles Jean. Principes d’administration publique, pour servir a l’étude des lois
administratives, et considerations sur l’importance et la necessite d’um code administratif, suivies du
projet de ce code. 2ª ed. Paris: Chez Clament frères, 1809. p. 46.
759
“Quanto a sua pessoa, é considerado membro do Estado quando se lhe toma coletivamente, e em suas
relações com todos. Mas não se deve confundir com as relações que tem com o Estado quanto ao
exercício dos seus direitos de cidadania nos colégios eleitorais, ou nas assembleias ‘de canton’, ou
municipais, porque neste último caso, essas relações são políticas e não administrativas”. BONNIN,
Charles Jean. Principes d’administration publique, pour servir a l’étude des lois administratives, et
considerations sur l’importance et la necessite d’um code administratif, suivies du projet de ce code. 2ª
ed. Paris: Chez Clament frères, 1809. p. 47. [tradução minha].
760
“Não se deve confundir as relações públicas com as relações civis. Nestas últimas o cidadão se
encontra sob o domínio da administração como indivíduo, quer dizer, que a autoridade e as leis
administrativas somente regulamentam o que incumbe individualmente, fazendo caso omisso de suas
relações sociais, ainda que nesse caso a ação da administração tenha como propósito a manutenção da
ordem pública”. BONNIN, Charles Jean. Principes d’administration publique, pour servir a l’étude des
lois administratives, et considerations sur l’importance et la necessite d’um code administratif, suivies du
projet de ce code. 2ª ed. Paris: Chez Clament frères, 1809. p. 48. [tradução minha].
761
“Mas não se deve confundi-los com os que formam as leis políticas, as leis penais, ou aquelas sobre as
finanças, que estatuem também sobre assuntos de interesse público, porém em outra ordem, pois nessas
leis é o interesse público considerado o mesmo em relação ao Estado, e não na relação do indivíduo com
o Estado”. BONNIN, Charles Jean. Principes d’administration publique, pour servir a l’étude des lois
268
Estas relações públicas são aquelas por meio das quais os indivíduos são
considerados como esposo ou celibatário, como recrutas, militares ou
marinheiros, proprietários ou não proprietários, contribuintes,
agricultores, fabricantes, comerciantes, artesãos, professando a medicina
e os estados que se vinculam com ela; ou cultivando as ciências ou as
artes, aprendizes ou alunos, criados, indigentes ou enfermos; enfim,
gozando de seus direitos políticos ou civis, ou não gozando deles762.
comunas, e que pertencia aos habitantes em comum, não sendo propriedade de nenhum
habitante em particular; e a propriedade privada, aquela própria dos particulares. As
duas primeiras propriedades incumbiam à administração no que competia ao seu uso,
alienação, permuta e empenho. Em relação à propriedade privada, a ação da
administração restringia-se ao seu uso (apenas quando entrasse em conflito com a
utilidade pública, situação em que a “ordem pública” teria sempre preferência, desde
que garantindo a devida indenização) e às contribuições (os impostos incidiriam
diretamente na propriedade particular das pessoas).
A despeito das tentativas de diferenciar o público e o privado, Bonnin
considerava que era necessário “aprender a combiná-los”, tal como afirmava Benjamin
Constant765. Segundo ele, “desde o momento em que um povo existe, há
necessariamente relações estabelecidas entre todos os nacionais. Essas relações estão
determinadas pelo próprio interesse público, combinado então com o interesse
privado”766. Em outro momento afirmava que o Código administrativo deveria estatuir
sobre coisas de interesse público e sobre as relações de cada um com todos, e essas
relações “não são mais que os interesses privados mesmos, dos quais se compõe o
interesse público”767. O mesmo podia ser dito da propriedade ou da riqueza pública: “a
riqueza pública consta da massa de todas as propriedades particulares, igual ao Estado
que não é senão a reunião de todos os membros que formam a Nação”768.
Desde a segunda metade do século XVIII as ideias de polícia atuavam no
alargamento das funções executivas da administração, sobretudo por meio das tentativas
de racionalizar e controlar de maneira mais efetiva o território e a população. A “ciência
de polícia”, no entanto, ainda inseria-se nos marcos jurisdicionalistas. Compreendia a
política como atividade destinada a resolver os conflitos, exercendo mais uma regulação
judicial do que uma ação executiva. Foi apenas no século XIX, com o desenvolvimento
765
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos [1819]. Filosofia
política. Porto Alegre: L&PM, 1980. P. 25.
766
“Du moment qu’un peuple existe, il y a donc nécessairement dès-lors des rapports établis entre tous les
nationaux. Ces rapports sont déterminés par l’intérêt public même, combiné alors avec l’intérêt privé”.
BONNIN, Charles Jean. Principes d’administration publique, pour servir a l’étude des lois
administratives, et considerations sur l’importance et la necessite d’um code administratif, suivies du
projet de ce code. 2ª ed. Paris: Chez Clament frères, 1809. p. 45.
767
BONNIN, Charles Jean. Principes d’administration publique, pour servir a l’étude des lois
administratives, et considerations sur l’importance et la necessite d’um code administratif, suivies du
projet de ce code. 2ª ed. Paris: Chez Clament frères, 1809. p. 46.
768
“La richesse publique se compose de la masse de toutes les propriétés particulières, comme l’Etat n’est
lui-même, que par la réunion de tous les membres que forment la Nation”. BONNIN, Charles Jean.
Principes d’administration publique, pour servir a l’étude des lois administratives, et considerations sur
l’importance et la necessite d’um code administratif, suivies du projet de ce code. 2ª ed. Paris: Chez
Clament frères, 1809. p. 59.
270
das teorias sobre a administração pública e com as tentativas de separação dos poderes,
que a administração passaria a se autonomizar em relação ao governo e a justiça,
dotando o Estado de um caráter mais interventivo, voluntário, atendendo demandas que
lhe eram próprias. Sua ação não mais se dirigia à regulação dos corpos tradicionais e
sim às relações dos indivíduos enquanto membros da sociedade e da sociedade com o
Estado. O aspecto “público” da administração residia exatamente nessas relações.
Tomando em consideração a evolução semântica, cultural, social e política do
conceito de público, parece ser esse o momento em que a lógica da separação com os
particulares se torna um fenômeno importante para os atores sociais. Foram muitos os
projetos que se enfrentaram no processo de construção do Estado nacional no século
XIX, o campo da administração e do direito administrativo ainda iria levar algumas
décadas para adquirir uma consistência na prática. Contudo, no plano dos projetos e
discursos políticos que guiavam as medidas reformistas que se ensaiavam no momento
constitucional, a sua importância não pode ser menosprezada. Conforme a historiografia
tem chamado atenção, as novas elaborações teóricas sobre a administração pública não
se restringiram a França, marcando presença também no Brasil e nos projetos que se
encaminharam durante os oitocentos.
A dificuldade de tornar real a separação entre administração e justiça no Brasil
será abordada mais à frente. Não obstante, é significativo o fato de que em 6 de
dezembro de 1853, D. Pedro II consultou o Conselho de Estado para saber se a Lei que
criou essa instituição, e atribuiu à sua jurisdição o recurso à coroa, especialmente no
conhecimento dos abusos das autoridades eclesiásticas, revogara a jurisdição das
Relações sobre os recursos. No entendimento da Seção de Justiça, na época composta
por Paulino José Soares de Souza, visconde de Abrantes e Caetano Maria Lopes Gama,
a revogação existia e era justificada pela diferença entre justiça e administração:
769
SJ-CE, resolução de 28 de junho de 1854, p. 467.
770
Sobre o tema da formação de um espaço regional de poder no Brasil, ver: GOUVÊA, Maria de Fátima
Silva. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008;
FERNANDES, Renata Silva. As províncias do Império e o “governo por conselhos”: o Conselho de
Governo e o Conselho Geral de Minas Gerais (1825-1834). 2018. Tese de Doutorado – Instituto de
Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2018; OLIVEIRA, Carlos Eduardo França
de. Construtores do Império, defensores da província: São Paulo e Minas Gerais na formação do Estado
nacional e dos poderes locais, 1823-1834. 2014. Tese de Doutorado – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2014; SLEMIAN, Andréa. Sob o império das leis:
constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Hucitec, 2009; SILVA,
Ana Rosa Cloclet da. De Comunidade à Nação: regionalização do poder, localismo e construções
identitárias em Minas Gerais (1821-1831). Almanack Braziliense, n. 2, p. 43-63, nov. de 2005.
771
Ver: BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In: GRINBERG, Keila;
SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009. De acordo com Marcello Basile é possível observar a divisão da elite política imperial
em três grupos distintos naquele momento: o dos moderados, em sua maioria provenientes do Rio de
Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, defendiam uma ideia de “justo meio”, condenavam a política
272
de revelar um projeto consolidado de Estado, através do qual seria possível impor uma
política monárquica, era ocupado por uma elite que ainda não se afastara
completamente da compreensão de que os cargos públicos configuravam-se como
direito de propriedade, a despeito da determinação constitucional de que o acesso a eles
deveria levar em conta apenas os “talentos e virtudes” do cidadão.
Ainda assim, a efetivação do projeto de centralização se realizou. Este só foi
possível por meio da negociação e da capacidade da monarquia em lidar com as elites,
bem como das estratégias e interesses das mesmas em se manterem próximas ao Estado
em formação774. A centralização do poder político não era apenas um desejo da Coroa,
mas também de uma parcela das elites que, em um momento de convulsão social como
os anos finais do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, viam a hierarquia e a
ordem social ameaçada775.
O estabelecimento de um poder central forte no país, visando à manutenção da
unidade territorial, implicou na produção de um sistema normativo e na expansão do
aparelho administrativo e judiciário. Por meio desse aparelho delineava-se a relação
entre o Estado e a sociedade, e através do sistema normativo dotava-se de legitimidade a
concentração progressiva das decisões da justiça e da polícia na esfera do poder central.
Vale destacar que também a expansão da capacidade normativa do Estado não foi
realizada sem turbulências, lidando com resistências costumeiras, com diferentes
concepções políticas e sociais locais arraigadas e, como consequência, com uma
enormidade de conflitos jurisdicionais.
O objetivo aqui é atentar-se para os usos dos conceitos de público, particular e
privado (os dois últimos usados cada vez mais indistintamente) nesse processo de
normatização jurídica e de montagem do aparelho administrativo na construção do
Estado nacional brasileiro. Por meio da investigação dos códigos publicados ao longo
dos Oitocentos, creio ser possível contemplar a pluralidade semântica dos conceitos
adquirindo efetividade na prática política, institucional e social do período.
Um desejo antigo por parte dos legisladores (que remonta aproximadamente à
segunda metade dos Setecentos) era o de criação dos códigos criminal e civil, que
774
Dentre os elementos dessa relação estão a “distribuição de títulos e honrarias, a concessão de
privilégios, a representação nos conselhos e órgãos da administração central e, principalmente no início, a
transferência de mecanismos fiscais para particulares, ou seja, uma certa privatização de serviços na
ausência de um aparelho burocrático capaz de dar conta das atividades inerentes ao novo Estado
centralizado”. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e
elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. p. 46-47.
775
MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a
partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. p. 45.
274
776
BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. In: BRASIL. Collecção das Leis do Império do Brazil de
1830: atos do poder legislativo. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1876.
777
BRASIL. Lei de 29 de novembro de 1832. In: BRASIL. Colleção das Leis do Império do Brazil de
1832: atos do poder legislativo. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1874.
778
As atribuições dos juízes de paz são sintomáticas do difícil processo de separação entre a justiça e a
administração no Brasil. Sobre este aspecto, ver: SILVA JÚNIOR, Eduardo. Em nome da “boa
administração da província”: a relação entre o governo provincial e os juízes de paz na província de
Minas Gerais (1821-1834). 2019. Dissertação de Mestrado – Instituto de Ciências Humanas da
Universidade Federal de Juiz de Fora, 2019. SLEMIAN, Andréa. A administração da justiça nas
primeiras décadas do Império do Brasil: instituições, conflitos de jurisdições e ordem pública (c. 1823-
1850). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 172 (452), p. 225-272, jul./set. 2011.
779
SLEMIAN, Andréa. A administração da justiça nas primeiras décadas do Império do Brasil:
instituições, conflitos de jurisdições e ordem pública (c. 1823-1850). Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, a. 172 (452), p. 225-272, jul./set. 2011. p. 248.
275
certa igualdade formal perante a lei; individualização dos crimes e penas; os fatores
atenuantes e agravantes dos crimes; a manutenção das penas de morte, galés,
banimento, degredo e desterro. Aos escravos mantinha-se a pena de açoites780.
As questões acima estavam previstas na primeira parte do Código, que avançava
sobre as questões gerais. Porém, interessa-me em particular a divisão tripartite realizada
posteriormente. Nessa, os delitos ou crimes (considerados como sinônimo no Código)
eram separados em “crimes públicos”, “crimes particulares” e “crimes policiais”.
Quanto aos crimes policiais, estes se voltavam para os temas da boa ordem, da moral
pública, da limpeza, dos costumes e da tranquilidade pública, como nas prescrições
sobre o exercício da religião, a existência de sociedades secretas, os ajuntamentos
ilícitos, os vadios e mendigos, os usos de arma de defesa e os usos indevidos de títulos e
da imprensa781.
Os “crimes públicos”, por sua vez, consagravam aquela junção entre o Estado e
o conceito de público, ou seja, na sua maior parte, os crimes públicos eram os crimes
cometidos contra o Estado. Nesse sentido, os títulos desta segunda parte tratavam “dos
crimes contra a existência do Império”; “dos crimes contra a constituição do Império, e
forma do seu governo”; “dos crimes contra o chefe do governo”; “dos crimes contra o
livre exercício dos poderes políticos”; “dos crimes contra a segurança interna do
Império, e pública tranquilidade”; “dos crimes contra a boa ordem, e Administração
pública”; e “dos crimes contra o Tesouro Público, e propriedade pública”. A única
exceção era o Título III, “dos crimes contra o livre gozo, e exercício dos Direito
Políticos dos Cidadãos” – em que se tratava, basicamente, de questões eleitorais e do
bom andamento dos Conselhos Gerais de Província e das Câmaras782.
780
COSTA, Vivian Chieregati. Codificação e formação do Estado-nacional brasileiro: o Código
Criminal de 1830 e a positivação das leis no pós-Independência. 2013. Dissertação de Mestrado –
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, 2013.
781
De acordo com Vivian Chieregati Costa, o Código bávaro de 1813 optou pela não inclusão da parte
dos crimes policiais em seu Código, e isso devido ao entendimento de que era preciso estabelecer uma
demarcação clara entre a justiça e a polícia. COSTA, Vivian Chieregati. Codificação e formação do
Estado-nacional brasileiro: o Código Criminal de 1830 e a positivação das leis no pós-Independência.
2013. Dissertação de Mestrado – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, 2013. p.
208-209.
782
Conforme demonstrou Vivian Chieregati Costa, estes crimes ditos “eleitorais”, provavelmente, vieram
do projeto apresentado por Clemente Pereira em 1827. Este, contudo, os inseriu na parte intitulada
“crimes contra as garantias da Constituição do Império”, enquanto no Código ele foi inserido como
crimes contra os “direitos políticos dos cidadãos”. COSTA, Vivian Chieregati. Codificação e formação
do Estado-nacional brasileiro: o Código Criminal de 1830 e a positivação das leis no pós-
Independência. 2013. Dissertação de Mestrado – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São
Paulo, 2013. p. 213.
276
783
Art. 277.
784
Art. 282.
785
Sobre o Título IV do Código, ver: DANTAS, Monica Duarte. Introdução. Revoltas, motins e
revoluções: das Ordenações ao Código Criminal. In: DANTAS, Monica Duarte (Org.). Revoltas, motins e
revoluções – Homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.
786
O autor se refere, muito provavelmente, ao livro Théorie du Code Pénal de Adolphe Chauveau e
Faustin Hélie.
277
787
TINÔCO, Antônio Luiz. Código Criminal do Império do Brazil Annotado. Prefácio de Hamilton
Carvalhido. Ed. fac-sim. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. p. 391-391.
788
Era bacharel em letras pelo Imperial Colégio D. Pedro II, e em ciências sociais e jurídicas pela
Faculdade de Direito de São Paulo. Foi advogado nos auditórios da Relação da Corte, comendador da
Ordem de Cristo e presidente do Imperial Instituto Sergipano de Agricultura. Teve uma breve passagem
como presidente da província de Sergipe, entre 1860 a 1861.
278
789
As “matrizes” e “influências” do Código foram extensamente discutidas por Vivian Chieregati Costa.
Segundo a autora, as principais influências para a elaboração do Código foram: o projeto de Edward
Livingston (Código da Louisiana), o Código Penal espanhol de 1822, o Código Penal francês de 1810, o
projeto de Mello Freire de 1786 e a Leopoldina de 1786. COSTA, Vivian Chieregati. Codificação e
formação do Estado-nacional brasileiro: o Código Criminal de 1830 e a positivação das leis no pós-
Independência. 2013. Dissertação de Mestrado – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São
Paulo, 2013.
790
As ofensas através de calamidades eram: “Calamities, by which the persons or properties of men, or
both, are liable to be affected, seem to be as follows: 1. Pestilence or contagion. 2. Famine, and other
kinds of scarcity. 3. Mischiefs producible by persons deficient in point of understanding, such as infants,
idiots, and maniacs, for want of their being properly taken care of. 4. Mischief producible by the ravages
of noxious animals, such as beasts of prey, locusts, etc., etc. 5. Collapsion, or fall of large masses of solid
matter, such as decayed buildings, or rocks, or masses of snow. 6. Inundation or submersion. 7. Tempest.
8. Blight. 9. Conflagration. 10. Explosion. In as far as a man may contribute by any imprudent act of his,
to give birth to any of the above calamities, such act may be an offence”. Já os delitos por mera
delinquência: “A whole neighborhood may be made to suffer, 1. Simple corporal injuries: in other words,
they may be made to suffer in point of health, by offensive or dangerous trades or manufactures: by
selling or falsely puffing off unwholesome medicines or provisions: by poisoning or drying up of springs,
destroying of aqueducts, destroying woods, walls, or other fences against wind and rain: by any kinds of
artificial scarcity; or by any other calamities intentionally produced. 2 and 3. Simple injurious
restrainment, and simple injurious compulsion: for instance, by obliging a whole neighborhood, by dint of
threatening handbills, or threatening discourses, publicly delivered, to join, or forbear to join, in
illuminations, acclamations, outcries, invectives, subscriptions, undertakings, processions, or any other
mode of expressing joy or grief, displeasure or approbations; or in short, in any other course of conduct
whatsoever. 4 and 5. Confinement and banishment: by the spoiling of roads, bridges, or ferry-boats: by
destroying or unwarrantably pre-occupying public carriages, or houses of accommodation. 6. By
menacement: as by incendiary letter, and tumultuous assemblies: by newspapers or handbills, denouncing
vengeance against persons of particular denominations: for example, against Jews, Catholics, Protestants,
Scotchmen, Gascons, Catalonians, etc. 7. Simple mental injuries: as by distressful, terrifying obscene, or
irreligious exhibitions: such as exposure of sores by beggars, exposure of dead bodies, exhibitions or
reports of counterfeit witchcrafts or apparitions, exhibition of obscene or blasphemous prints: obscene or
blasphemous discourses held in public: spreading false news of public defeats in battle, or of other
279
misfortunes”. BENTHAM, Jeremy. An introduction to the principles of morals and legislation [1789]. In:
The works of Jeremy Bentham, published under the superintendence of his executor, John Bowring.
Reproduced from the Bowring Edition of 1838-1843. v. 1. New York: Russel & Russel Inc., 1962. p. 115.
791
“The fourth class may be composed of such acts as ought to be made offences, on account of the
distant mischief which they threaten to bring upon an unassignable indefinite multitude of the whole
number of individuals, of which the community is composed; although no particular individual should
appear more likely to be a sufferer by them than another. These may be called public offences, or
offences against the state” BENTHAM, Jeremy. An introduction to the principles of morals and
legislation [1789]. In: The works of Jeremy Bentham, published under the superintendence of his
executor, John Bowring. Reproduced from the Bowring Edition of 1838-1843. V. 1. New York: Russel &
Russel Inc., 1962. p. 98. (tradução minha, grifo do autor).
792
ALVES JÚNIOR, Thomaz. Annotações theoricas e praticas ao Código Criminal. Tomo I. Rio de
Janeiro: Francisco Luiz Pinto & Cia., 1864. p. 48.
793
ALVES JÚNIOR, Thomaz. Annotações theoricas e praticas ao Código Criminal. Tomo I. Rio de
Janeiro: Francisco Luiz Pinto & Cia., 1864. p. 49.
794
ALVES JÚNIOR, Thomaz. Annotações theoricas e praticas ao Código Criminal. Tomo I. Rio de
Janeiro: Francisco Luiz Pinto & Cia., 1864. p. 49.
280
795
ALVES JÚNIOR, Thomaz. Annotações theoricas e praticas ao Código Criminal. Tomo I. Rio de
Janeiro: Francisco Luiz Pinto & Cia., 1864. p. 49.
796
COSTA, Vivian Chieregati. Codificação e formação do Estado-nacional brasileiro: o Código
Criminal de 1830 e a positivação das leis no pós-Independência. 2013. Dissertação de Mestrado –
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, 2013. Ver também: DANTAS, Monica
Duarte. Da Luisiana para o Brasil: Edward Livingston e o primeiro movimento codificador no Império (o
Código Criminal de 1830 e o Código e Processo Criminal de 1832). Anuário de História da América
Latina, v. 52, Issue 1, dez./2015. p. 173-205.
797
“The character drawn from the object against which the offence is directed, give us the second general
division into public and private offences. Here it is impossible that the line of demarcation should be very
distinct”. LIVINGSTON, Edward. Introductory report to the Code of Crimes and Punishments. In: A
system of penal law for the State of Louisiana. Philadelphia: James Kay, Jun. & Brother; Pittsburgh: John
I. Kay & Co., 1833. p. 144-145.
798
§1. Nos crimes que não se admite fiança; §2. Nos crimes de peculato, peita, concussão, suborno ou
qualquer outro de responsabilidade; §3. Nos crimes contra o Imperador, Imperatriz, ou algum dos
Príncipes, ou Princesas da Imperial Família, Regente, ou Regência; §4. Em todos os crimes públicos; §5.
Nos crimes de resistência às autoridades, e seus oficiais no exercício de suas funções; §6. Nos crimes em
que o delinquente for preso em flagrante, não havendo parte que o acuse.
281
ferimento. “Assim, pois, já se vê que casos há em que a parte acusa e o crime é público,
casos em que o promotor público acusa e o crime é particular”799.
Tal confusão era derivada da ausência de um “ministério público”, “cuja
organização é de uma necessidade palpitante” 800. Alguns anos antes, em 1857, Pimenta
Bueno corroborava a necessidade do estabelecimento do ministério público, “instituição
indispensável para a boa administração da justiça e mormente criminal”, partindo do
pressuposto de que “não seria racional conferir tal direito [direito de acusação] a
homens ímprobos ou cegos pela paixão”. A ação para aplicação das penas era “por sua
natureza pública e inerente à sociedade”, sendo a única que teria o direito de punir as
infrações às suas leis, não devendo ceder esse direito “aos particulares senão em casos
especiais”. O direto destes devia limitar-se a pedir a completa reparação do delito. O
ministério público, enquanto “força pública da sociedade”, devia auxiliar o governo na
inspeção da execução das leis e na regularidade dos atos dos magistrados, aliando “a
ordem administrativa com a judiciária”801. Entretanto, a formação do ministério público
ainda parecia ao autor em um estágio muito inicial:
799
ALVES JÚNIOR, Thomaz. Annotações theoricas e praticas ao Código Criminal. Tomo I. Rio de
Janeiro: Francisco Luiz Pinto & Cia., 1864. p. 51.
800
ALVES JÚNIOR, Thomaz. Annotações theoricas e praticas ao Código Criminal. Tomo I. Rio de
Janeiro: Francisco Luiz Pinto & Cia., 1864. p. 51.
801
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro [1849]. 2ª edição
correcta e augmentada. Rio de Janeiro: Empreza Nacional do Diário, 1857. p. 50-51.
802
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro [1849]. 2ª edição
correcta e augmentada. Rio de Janeiro: Empreza Nacional do Diário, 1857. p. 51.
282
expressão “ministério público” foi empregada em algum diploma legal803. Parece que ao
afirmar a ausência de um centro, ligação, unidade, inspeção e harmonia, Pimenta Bueno
apontava para a inexistência, de fato, de um ministério público804.
Além disso, Pimenta Bueno, em seus Apontamentos, divergia da divisão das
ações criminais em públicas e particulares, acrescentando uma terceira classificação, as
ações criminais populares. Assim, a “ação criminal pública ou oficial, é a que pertence à
sociedade, ao poder público”, o direito que o Estado tem de demandar perante os
tribunais a punição devida por um delito. Já a ação criminal popular era a concessão
desse direito, por parte do Estado, “a qualquer do povo” para acusar perante os tribunais
aquele que tenha ofendido “a todos e a cada um dos cidadãos”, como nos casos dos
crimes perpetrados por empregados públicos. A ação criminal particular “é direito que a
lei concede ao ofendido” para demandar não apenas a ação civil, mas a imposição da
pena sobre o delinquente. Ainda assim, apontava que, “em tese”, toda exigência de
aplicação de pena “deve pertencer exclusivamente à sociedade ou ao poder público que
a representa”, e isto porque estas ações se relacionam “com a soberania nacional, com o
interesse geral, e com a inspeção e intervenção que o poder público deve ter em
semelhante assunto”805. A junção do público com o Estado vai tornar cada vez mais
comum o conceito de “poder público”.
O foco direcionado aqui à linguagem disposta no Código Criminal, em algumas
de suas regulamentações, e em intérpretes e comentaristas do mesmo, permite perceber
como no processo de criação do aparato administrativo que dava contornos ao Estado, e
do sistema normativo através do qual se legitimava sua ação policial e judiciária, não
havia nada de natural na escolha pela divisão público e particular. Tratava-se de um
modelo possível e não uma realidade incontornável. A sua justificativa apontava sempre
para as fragilidades de pensar em uma separação completa entre os dois, o que pode ser
tido como reminiscências de um modelo corporativo de Antigo Regime, no qual
803
PINTO, Adriano Moura da Fonseca; MIRANDA, Sandra de Mello Carneiro. O Ministério Público no
Império. Confluências, v. 13, n. 1, nov. 2012. p. 96-116.
804
A questão aqui pode ser que Pimenta Bueno não compreendia o Ministério Público como um órgão,
uma instituição, mas como uma função. Assim, onde houvesse procuradores ou promotores haveria
ministério público. Essa é, também, a forma como muitos juristas (que são aqueles que geralmente
buscam reconstituir a trajetória histórica desse órgão) consideram a questão. Mas enquanto órgão ou
instituição, por exemplo, o Ministério Público estava previsto na lei de organização judiciária da França
revolucionária, como no Título VIII – “Du ministère public”. Loi des 16 et 24 août 1790 sur
l’organisation judiciaire. De qualquer forma, o tema do Ministério Público e as atuações dos procuradores
e promotores públicos parecem ser ainda carentes de investigações mais aprofundadas.
805
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro [1849]. 2ª edição
correcta e augmentada. Rio de Janeiro: Empreza Nacional do Diário, 1857. p. 57-58.
283
806
BENTIVOGLIO, Julio. Elaboração e aprovação do Código Comercial brasileiro de 1850: debates
parlamentares e conjuntura econômica (1840-1850). Revista Justiça & História, v. 5, n. 10, 2005.
284
807
BENTIVOGLIO, Julio. Elaboração e aprovação do Código Comercial brasileiro de 1850: debates
parlamentares e conjuntura econômica (1840-1850). Revista Justiça & História, v. 5, n. 10, 2005. p. 3-4.
808
Cf: GUIMARÃES, Carlos Gabriel. O Império e os bancos comerciais do Rio de Janeiro na segunda
metade do século XIX: os casos do Banco Mauá, MacGregor & Cia, do Banco Rural e Hipotecário do
Rio de Janeiro e do Banco Comercial e Agrícola. Anais do III Congresso Brasileiro de História
Econômica e da 4ª Conferência Internacional de História de Empresas. Curitiba: ABPHE/UFPR, 1999;
LOPES, José Reinaldo de Lima. A formação do direito comercial brasileiro. A criação dos Tribunais de
Comércio do Império. São Paulo: Cadernos Direito GV, Pesquisa, v. 4, n. 6, nov./2007.
809
Essa nação que se rascunhava pela lei de Terras, de acordo com Márcia Motta, não alterava o status
quo. A dificuldade do acesso às terras entre os mais pobres e a destruição das comunidades indígenas
eram uma consequência da expansão e ocupação territorial dos fazendeiros. Além disso, essa separação
entre aquilo que era público e aquilo que pertencia ao particular foi muito lentamente se concretizando,
tendo que lidar com as resistências de uma sociedade agrária enraizada por séculos de ocupação e mesmo
com concepções distintas de propriedade, como as terras comunais. Tal como sintetizado pela autora, o
estabelecimento das terras devolutas se deu pelo viés negativo: “o que não era particular, era então
público. Assim, a nação então rascunhada consagrava a primazia do particular sobre o público, na medida
em que as terras devolutas só poderiam ser conhecidas após saber-se quais eram pertencentes ao domínio
privado”. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Terra, nação e tradições inventadas (uma outra abordagem
sobre a Lei de Terras de 1850). In: MENDONÇA, Sônia; MOTTA, Márcia (Org.). Nação e poder: as
dimensões da história. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal Fluminense (EdUFF), 1998. p.
84.
285
810
GUIMARÃES, Carlos Gabriel. O Império e os bancos comerciais do Rio de Janeiro na segunda
metade do século XIX: os casos do Banco Mauá, MacGregor & Cia, do Banco Rural e Hipotecário do
Rio de Janeiro e do Banco Comercial e Agrícola. Anais do III Congresso Brasileiro de História
Econômica e da 4ª Conferência Internacional de História de Empresas. Curitiba: ABPHE/UFPR, 1999.
811
Cf. BENTIVOGLIO, Julio. Elaboração e aprovação do Código Comercial brasileiro de 1850: debates
parlamentares e conjuntura econômica (1840-1850). Revista Justiça & História, v. 5, n. 10, 2005;
LOPES, José Reinaldo de Lima. A formação do direito comercial brasileiro. A criação dos Tribunais de
Comércio do Império. São Paulo: Cadernos Direito GV, Pesquisa, v. 4, n. 6, nov./2007.
286
812
LOPES, José Reinaldo de Lima. A formação do direito comercial brasileiro. A criação dos Tribunais
de Comércio do Império. São Paulo: Cadernos Direito GV, Pesquisa, v. 4, n. 6, nov./2007, p. 48. Como se
sabe, o primeiro Código Civil brasileiro foi publicado somente em 1916.
813
BENTIVOGLIO, Julio. Elaboração e aprovação do Código Comercial brasileiro de 1850: debates
parlamentares e conjuntura econômica (1840-1850). Revista Justiça & História, v. 5, n. 10, 2005.
287
Para outros, como Pimenta Bueno, os tribunais não eram “de exceção”, e sim
“especializados”, que encontravam respaldo nos modelos francês e português. Não
814
LOPES, José Reinaldo de Lima. A formação do direito comercial brasileiro. A criação dos Tribunais
de Comércio do Império. São Paulo: Cadernos Direito GV, Pesquisa, v. 4, n. 6, nov./2007. p. 26.
815
BRASIL. Sessão de 2 de julho de 1845. In: Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs.
Deputados: segundo anno da sexta legislatura, segunda sessão de 1845, coligidos por Antonio Henoch
dos Reis. Tomo segundo. Rio de Janeiro: Typographia de Hippolyto J. Pinto, 1881. (doravante APB).
288
816
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos sobre as formalidades do processo civil [1850]. 2ª ed.
correcta, e augmentada. Rio de Janeiro: na Typographia Nacional, 1858. p. 18.
817
COSTA, Salustiano Orlando de Araujo. Código Comercial do Império do Brazil. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Eduardo & Henrique Laemmert, 1878.
289
conceitos. A perspectiva da separação, ainda no século XIX, era apenas uma entre
várias formas de relação possível, e era, geralmente, vista com muita desconfiança.
De antemão, é preciso deixar claro que a assimilação do “público” como
“Estado” é a que prevalece nos debates parlamentares, ainda que não seja exclusiva.
“O” privado ou “o” particular, enquanto substantivos, demarcando uma esfera, âmbito
ou setor, eram praticamente ausentes. Assim, optei por focar na ideia de “interesse”, na
qual os usos voltam-se, usualmente, para as questões econômicas, ainda que eu não
tenha me restringido a elas. Espera-se, portanto, que uma amostragem das diversas
formas de relação entre os conceitos nos debates parlamentares durante os oitocentos
permita contribuir para a reflexão sobre a própria construção da dicotomia, e de maneira
mais específica, ajude a pensar na presença do Tribunal do Comércio no interior do
aparelho estatal.
818
APB. Sessão de 13 de maio de 1828, T. 1, p. 69.
290
Mas não admira isto; nós temos um tino para errar, que é congênito
mesmo com a natureza da gente do Brasil; é tino especial que temos; não
vemos, por exemplo, na administração os homens cuidarem senão de
que? De si, de suas famílias, de seus amigos e de seus parentes.
(Apoiados). O Brasil é um sinecura; perfeitamente sinecura.
819
APB. Sessão de 14 de julho de 1859. T. 3, p. 129.
820
APB. Sessão de 14 de agosto de 1839. T. 2, p. 630.
291
não há um pau nessa mata; os particulares assenhorearam-se dela por diversas formas, e
até com a crueldade de fazer queimas para depois plantar alguma mandioca: eis aqui o
nosso tino no Brasil!”821.
O deputado Gabriel José Rodrigues dos Santos, no ano de 1851, manifestava-se
contra a proposta de reforma do ensino superior por parte do governo, conferindo a
competência sobre a matéria ao poder legislativo. Além disso, lembrava que o projeto
podia “entender-se” com os interesses particulares:
Nesses casos, portanto, era comum se apelar para a fragilidade do poder público:
“(...) desgraçadamente sei que o interesse particular é tão hábil em todos os países, que
consegue sempre simular o interesse público, e no nosso país acontece isto mais que em
outro qualquer”823; “se não tivermos coragem e patriotismo para resistir às solicitações
do interesse particular, para repelir pretensões injustas, o que será do sistema
representativo?”824; “nós outros brasileiros somos demasiadamente benévolos, a nossa
condescendência nestas ocasiões toca ao extremo, raríssimas vezes temos energia para
opor resistência séria e eficaz às solicitações contínuas e impertinentes do interesse
particular”825.
821
APB. Sessão de 14 de julho de 1843. T. 2b, p. 229-230.
822
APB. Sessão de 14 de julho de 1851. T. 2, p. 167.
823
APB. Sessão de 14 de julho de 1857, T. 3, p. 263. Fala de Martinho Álvares da Silva Campos.
824
APB. Sessão de 25 de junho de 1864, T. 2b, p. 268. Fala de Francisco Xavier Pinto Lima.
825
APB. Sessão de 14 de julho de 1873, T. 3, p. 111. Fala de Rodrigo Augusto da Silva.
292
826
APB. Sessão de 31 de julho de 1828, T. 3, p. 230. Costa Aguiar ainda continuava: “Desengane-se o
governo, que a melhor maneira de promover a indústria e o comércio é o que nos ensinam os verdadeiros
e luminosos princípios da economia política – Laisser faire, et laisser passer”.
827
APB. Sessão de 1 de setembro de 1841, T. 3, p. 16.
828
APB. Sessão de 1 de setembro de 1841, T. 3, p. 28.
829
APB. Sessão de 7 de julho de 1858, T. 3, p. 75.
830
APB. Sessão de 18 de julho de 1827, T. 3, p. 197.
293
se aplicará àquilo, que mais lhe convier. O governo sempre há de ser péssimo
diretor”831. E em outro momento: “Nem é preciso que a lei indique a produção mais
lucrativa: nada de direção do governo. O interesse particular é muito ativo e inteligente
(...)”832.
831
APB. Sessão de 30 de agosto de 1827, T. 4, p. 277.
832
APB. Sessão de 25 de outubro de 1827, T. 5, p. 145.
833
APB. Sessão de 17 de julho de 1837, T. 2, p. 131.
834
APB. Sessão de 17 de julho de 1830, T. 2, p. 147.
835
APB. Sessão de 4 de setembro de 1838, T. 2, p. 454.
294
A harmonia entre o particular e o público era defendida, muitas vezes, tendo por
base as próprias ideias liberais do século XIX, sobretudo o somatório dos indivíduos na
formação da totalidade, admitida por Bentham e outros. Assim, dizia-se que: “(...) não
sei o que seja interesse público, quando não se consulta o interesse particular, porque o
interesse público é a soma de todos os interesses”837; “Mas, pergunto ao honrado
membro que me precedeu, na resolução que se discute haverá só interesse particular? Se
há interesse particular de um indivíduo, não estará ele ligado ao interesse da causa
pública?”838; “para se exigir dedicações é mister reciprocidade; é mister que o interesse
particular esteja de harmonia, forme uma aliança com o interesse geral”839.
Essa perspectiva, por vezes, podia levar a argumentos mais radicais, como a de
que a existência do “interesse público” era um mito, e que os particulares e seus
interesses eram os únicos que existiam. No âmago das discussões sobre a reforma do
Banco do Brasil, em 1859, tema que estimulou o uso dos conceitos por diversas vezes,
mais do que as discussões do Código Comercial, por exemplo, é significativa a
intervenção do deputado Tito Franco de Almeida:
De acordo com o próprio Franco de Almeida, seu objetivo era combater aqueles
que argumentavam que era “o interesse do comércio, o interesse dos senhores do
836
APB. Sessão de 10 de agosto de 1859, T. 4, p. 75. Fala de Martinho Álvares da Silva Campos.
837
APB. Sessão de 16 de setembro de 1841, T. 3, p. 219. Fala de Marinho.
838
APB. Sessão de 15 de janeiro de 1850, T. 1, p. 164. Fala de Joaquim José Pacheco.
839
APB. Sessão de 27 de julho de 1857, T. 4, p. 116. Fala de Francisco Xavier Pinto Lima.
840
APB. Sessão de 15 de julho de 1859, T. 3, p. 144.
295
dinheiro, dos que estão na cúpula dessa engenhosa pirâmide, o que se sustem e lucra
quando a base, quando os operários, quando os empregados públicos, quando todas as
mais classes sofrem”841. A politização da “não separação” aqui era explicitamente
declarada. Afirmar a derivação do interesse público (geral) a partir dos interesses
particulares cumpria a função de proteger estes últimos e apaziguar os
descontentamentos dos grupos marginalizados, pressupondo que a sua riqueza, e de toda
nação, iria emergir naturalmente da riqueza e felicidade dos comerciantes e “senhores
do dinheiro”.
A busca pela “harmonia”, portanto, era por vezes abalada pela realidade prática e
material dos interesses particulares, especialmente quando este se via em confronto com
o “interesse público”, para alguns um conceito demasiadamente abstrato, atrelado ainda
aos valores cristãos e morais. Dizia o deputado Felipe Alberto Patroni, em 1842:
841
APB. Sessão de 15 de julho de 1859, T. 3, p. 144.
842
APB. Sessão preparatória de 28 de abril de 1842, T. 1, p. 28.
296
(...) quando se trata do interesse público por uma forma abstrata, por um
projeto de lei considera-lo tão remoto dos interesses individuais que o
compõem, é perder de vista o mesmo interesse público; então já não se
compreende o interesse público, será uma ficção no interesse do governo,
mas não uma realidade no interesse da nação.
843
APB. Sessão de 18 de junho de 1827, T. 2, p. 96.
297
Não se escandalize algum Sr. deputado que nesta ocasião tome por
sinônimos os termos – particulares e ministeriais – a razão é: assim como
eu entendo que o ministério quando cumpre o seu dever vai de acordo
com a vontade nacional, sou obrigado a dizer que quando ele não vai de
acordo e não cumpre o seu dever, obra só em benefício particular, e não
em benefício nacional.
Ora, eu concebo, e todos nós concebemos muitas hipóteses em que o
ministério tendo grande desejo de influir sobre as eleições, pretendendo
mesmo ter sobre elas verdadeiro domínio, tenha antes em vista o interesse
particular dele ministério do que o interesse público. Eis a razão por que
distingui interesse público neste caso e interesse particular.
844
APB. Sessão de 23 de maio de 1828, T. 1, p. 152.
298
Argumento este que não convencia o deputado Wanderley: “essa tão decantada
responsabilidade moral que principalmente deve recair sobre o deputado, é aquela que
diz respeito a negócios públicos”849. Responsabilidade sem sanção, para o deputado, era
apenas ilusão.
Os contendores na discussão diziam buscar combater o “patronato”, um “quinto
ou sexto poder do país”, uma “força mágica extraordinária”. A voz principal dos que
defendiam a publicidade do escrutínio era de Manoel de Assis Mascarenhas. Para ele, se
o patronato já invadira a câmara dos deputados, a única forma de combatê-lo era através
do “tribunal da opinião pública”, da publicidade que, ao menos, oferecia a possibilidade
da “censura moral”. E o mesmo deputado ainda enfatizava: “desgraçado do Brasil se a
câmara se deixasse levar por chás!”850.
Poucas vezes, ao longo da discussão, a definição mesma de interesse particular
ou de interesse público foi considerada. Posteriormente, esse foi um dos temas mais
problemáticos. Mas, ainda antes da aprovação da indicação, o deputado Manoel
Mascarenhas tentava argumentar contra o escrutínio secreto através dessa indefinição:
849
APB. Sessão de 25 de janeiro de 1850, T. 1, p. 304.
850
APB. Sessão de 28 de janeiro de 1850, T. 1, p. 336.
851
APB. Sessão de 28 de janeiro de 1850, T. 1, p. 336.
852
APB. Sessão de 29 de janeiro de 1850, T. 1, p. 355.
300
853
Por meio desse artigo estabelecia-se que qualquer discussão apenas se adiaria ou encerraria pela
votação dos membros presentes. Para a minoria, que na oitava legislatura compunha-se majoritariamente
de membros do partido liberal, se tratava de uma politização do regimento, pois por meio desse artigo
podia a maioria adiar ou encerrar qualquer votação que desejasse.
854
APB. Sessão de 25 de janeiro de 1850, T. 1, p. 304. Fala de João Maurício Wanderley.
855
APB. Sessão de 6 de março de 1850, T. 2, p. 74.
301
856
APB. Sessão de 24 de abril de 1850, T. 2, p. 454.
857
APB. Sessão de 24 de abril de 1850, T. 2, p. 455.
858
Por exemplo, a concessão de loterias para o hospital de caridade de Goiás (APB. Sessão de 9 de agosto
de 1850, T. 2, p. 480); também a concessão de loterias para o hospital da Santa Casa da Misericórdia
(APB. Sessão de 20 de maio de 1857, T. 2, p. 56).
302
podia ser decidido em apenas uma sessão, considerando, portanto, como interesse
particular. O então deputado José Antônio Saraiva divergia:
859
APB. Sessão de 6 de julho de 1869, T. 3, p. 70.
860
APB. Sessão de 14 de julho de 1854, T. 3, p. 131.
861
APB. Sessão de 16 de julho de 1855, T. 3, p. 168.
303
criava outras oportunidades para a satisfação dos seus interesses econômicos e políticos
ou de seus “apadrinhados”862, familiares, amigos, etc.
Outra dimensão do problema era definir os estabelecimentos que fossem
públicos e aqueles que fossem particulares. A reforma do Montepio Geral de Economia
dos Servidores do Estado, proposta em 1843, encaminhou-se para esta questão. Através
do artigo 1º do projeto, determinava-se que todos os empregados públicos que
percebessem vencimento do tesouro público ou de qualquer outra repartição pública,
seriam obrigados a contribuir com 5% do vencimento para o Montepio. Apesar de
instituída apenas em 1835, no Rio de Janeiro, a proposta de um Montepio geral para
todos os servidores do Estado já se desenrolava desde a primeira legislatura (1826-
1830).
A sua criação era parte do processo de ampliação de instituições associativas ou
espaços de sociabilidades, tais como a Sociedade dos Amantes da Instrução (1829),
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (1831) e Caixa Econômica do Rio de
Janeiro (1831), apenas para citar alguns poucos exemplos, durante os oitocentos. A
criação do Montepio teve uma atuação direta do Estado imperial. Estabelecido pelo
decreto de 10 de janeiro de 1835, todo seu estatuto foi debatido na legislatura deste ano.
O Montepio recebia joias, como condição para associação, e anuidades, que
correspondiam a 5% do salário recebido. Depois de determinado período, o Montepio
pagava uma pensão para os sócios, viúvas e filhos até certa idade863.
De acordo com Rita de Cássia da Silva Almico e Luiz Fernando Saraiva, a
participação constante do Estado imperial em quase todos os momentos da existência do
Montepio, sobretudo pelos socorros públicos ao perdoar dívidas ou o parcelamento das
mesmas, permitia afirmar que “o conceito de ‘privado’ era bastante relativo em uma
sociedade como a do Brasil Império”864. Por ocasião da discussão do artigo 1º da
reforma, fica evidente como essa dificuldade era compartilhada pelos deputados
reunidos na Assembleia.
862
Era comum, e nem sempre visto como um problema, que os interesses particulares viessem
“apadrinhados” por algum deputado, que advogava em sua defesa. Ver, por exemplo: APB. Sessão de 31
de agosto de 1847, T. 2, p. 652; APB. Sessão de 6 de julho de 1854, T. 3, p. 45.
863
Cf. ALMICO, Rita de Cássia da Silva; SARAIVA, Luiz Fernando. El Montepio General de Economía
de los Servidores del Estado y el Imperio Brasileño (1835-1883). Areas: Revista Internacional de
Ciencias Sociales, 38/2019. p. 47-59.
864
ALMICO, Rita de Cássia da Silva; SARAIVA, Luiz Fernando. El Montepio General de Economía de
los Servidores del Estado y el Imperio Brasileño (1835-1883). Areas: Revista Internacional de Ciencias
Sociales, 38/2019. p. 58.
304
865
APB. Sessão de 10 de junho de 1843, T. 1b, p. 601.
866
APB. Sessão de 12 de junho de 1843, T. 1b, p. 610.
867
Cf. GUIMARÃES, Carlos Gabriel. O Banco Commercial e Agrícola no Império do Brasil: o estudo de
caso de um banco comercial emissor (1858-1862). Saeculum – Revista de História, n. 29, jul./dez. 2013.
305
868
APB. Sessão de 11 de julho de 1859, T. 3, p. 95.
869
APB. Sessão de 15 de julho de 1859, T. 3, p. 148.
870
APB. Sessão de 28 de junho de 1864, T. 2b, p. 313.
306
871
APB. Sessão de 28 de junho de 1864, T. 2b, p. 313.
307
872
VERDELHO, Telmo. As palavras e as ideias na Revolução Liberal de 1820. Coimbra: Instituto
Nacional de Investigação Científica, 1981. P. 95.
873
DCGENP. Sessão de 13 de setembro de 1821. P. 2271. A fala é de José Joaquim de Moura.
874
VERDELHO, Telmo. As palavras e as ideias na Revolução Liberal de 1820. Coimbra: Instituto
Nacional de Investigação Científica, 1981. P. 102.
308
prisma político e legal, e não social. Tal fenômeno pode ser descrito também a partir da
ideia de “democratização”, esboçada por Reinhart Koselleck875.
Aliado ao alargamento do público estava a sua “politização” (igualmente no
sentido de Koselleck), que se apresentava por meio da atribuição de qualidades
adicionais ao conceito876. Ele tornava-se um agente político “curioso”, “rancoroso”,
“ansioso”, que passava a “obrigar”, “exigir” e “demandar”. Ao longo das primeiras
décadas do Brasil imperial, é comum encontrar na imprensa periódica expressões como
“aprovação do público”, “ao exame e crítica do público”, “confiança pública”,
“discussão pública” e “execração pública”. O que não eliminou a crença de muitos de
que o “público” tinha que ser instruído, preparado e dirigido877.
A imprensa periódica foi a que mais atuou na disseminação dessa versão. Parte
da sua autoridade e força provinha do seu caráter de instrução do “público” e de
formação da “opinião pública”, que tinham no princípio político da “publicidade” sua
fonte de legitimidade. No caso brasileiro, dois temas centrais estiveram na base da
politização da publicidade: a primeira era se a família real devia permanecer ou retornar
a Portugal depois da eclosão do movimento liberal; derivado do primeiro estava à
questão de onde devia se estabelecer o centro da nação, Portugal ou Brasil. Estes dois
temas, segundo Marco Morel, marcam o momento em que a “opinião pública” ingressa
como força política, e no qual se compreende que os assuntos de interesse público
deviam ser discutidos publicamente878.
Durante este período somou-se à exemplaridade da publicidade outras funções.
Instrução, verdade, justiça, franqueza, são termos que passaram a fazer parte da rede
semântica da publicidade, unindo-se às ideias de censura, freio, reputação e fama. O
aspecto de retidão moral, longe de desaparecer, com a proliferação de impressos
aumentou sua importância significativamente879. Tanto os usos mais antigos como os
875
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos históricos; tradução,
Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed.
PUC-Rio, 2006.
876
Cf. nota 684 do capítulo 3.
877
De acordo com Lúcia Neves: “afinados com a prática do liberalismo, quase todos os periódicos desse
período do constitucionalismo luso-brasileiro evidenciavam a preocupação, que os indivíduos ilustrados
tinham, de dirigir a opinião pública ou de erigir-se em seu porta-voz e destacavam o papel exercido pela
educação e pelos periódicos na constituição dessa opinião”. NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das.
Opinião Pública. In: JÚNIOR, João Feres (Org). Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 186.
878
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos. Imprensa, atores políticos e sociabilidades
na cidade imperial (1820-1840). Editora Hucitec: São Paulo, 2005. p. 206.
879
Abordei essas e outras questões em: REIS, Renato de Ulhoa Canto. “Dando publicidade à conduta de
todos, a todos sirva de freio”: a rede semântica da publicidade no mundo luso-brasileiro (sécs. XVII-
309
XIX). In: BARBOSA, Silvana M.; BARATA, Alexandre M.; SÁ, Luiz Cesar de. (Orgs.) Cruzando
Fronteiras: histórias no longo século XIX. Rio de Janeiro: Gramma Editora, 2020.
880
Sobre a construção da publicidade como um princípio político no mundo europeu, a principal
referência é Immanuel Kant. Ver: DAVIS, Kevin R. Kantian “publicity” and political justice. History of
Philosophy Quarterly, v. 8, n. 4, p. 409-421, Oct. 1991;____. Kant’s different ‘publics’ and the justice of
publicity. Kant-Studien. 83 (2), p. 170-184, Jan/1992; LAURSEN, John Christian. The Subversive Kant.
The vocabulary of “Public” and “Publicity”. Political Theory, v. 14, n. 4, p. 584-603, nov./1986.
881
REVERBERO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1822. Tinha
como redatores Joaquim Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa. Foi impresso entre 1821 e 1822.
882
REIS, Renato de Ulhoa Canto. Opinião pública como força política no Brasil: uma análise a partir
dos conceitos de público e publicidade (1820-1830). 2016. 129 f. Dissertação de Metrado – Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF). Instituto de Ciências Humanas, 2016.
883
ASTRO DE MINAS, São João del-Rey, 1 de dezembro de 1827. Era redigido pelo padre Francisco de
Assiz Braziel e, após 1835, pelo padre José Antônio Marinho. Foi impresso entre os anos de 1827 e 1839.
884
Respectivamente: A AURORA FLUMINENSE, Rio de Janeiro, 30 de julho de 1828; 30 de março de
1829. Foi fundado por José Francisco Xavier Sigaud, Francisco Crispiano Valdetaro e José Apolinário
Pereira de Morais. Somou-se a eles Evaristo Ferreira da Veiga, que se tornou o único redator a partir de
1829. Circulou entre 1827-1835 e depois entre 1838-1839.
310
885
O UNIVERSAL, Minas Gerais, 22 de fevereiro de 1833. Foi impresso entre 1825-1842 e tinha como
redator, possivelmente, Bernardo Pereira de Vasconcellos até 1835, e depois José Pedro Dias de Carvalho
e Joaquim Antão Fernandes Leão.
886
LIMA, José Joaquim Lopes de. Dicionário carcundático ou explicação das phrazes dos carcundas.
Rio de Janeiro: A Imprensa Nacional, 1821. p. 10.
887
JORNAL DO COMMÉRCIO, Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 1840. Circulou entre 1827-2016,
sendo redigido por vários periodistas.
311
888
O ESPELHO, Rio de Janeiro, 19 de julho de 1822. Era redigido por Manuel Ferreira de Araújo
Guimarães e circulou entre os anos de 1821 a 1823. Trata-se da publicação de um correspondente
anônimo: B.A.
889
FONSECA, Mariano José Pereira da. Máximas, pensamentos e reflexões. Ministério da Cultura,
Fundação Biblioteca Nacional. Fonte Digital. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2049>.
Acesso em: 21/03/2021. O Marquês de Maricá começou a publicar suas máximas, pensamentos e
reflexões no ano de 1813, no periódico “O Patriota”, assinando através do nome “Um Brasileiro”. Só no
ano de 1839 começou a editar a coletânea de suas máximas. Sobre o autor, ver: NEVES, Guilherme
Pereira das. As máximas do Marquês: moral e política na trajetória de Mariano José da Fonseca. Anais do
XXIII Simpósio Nacional de História, Anpuh, Londrina, 2005.
312
commencement du XIXª siècle”, publicada entre 1812 e 1814890. Refere-se ao artigo “Le
Public”, inserido no segundo tomo.
A versão de Larra, publicada no número inaugural de seu periódico, “El
Pobrecito Hablador, revista satírica de costumbres, etc., etc.”, em agosto de 1832, e
sob o pseudônimo de Don Juan Pérez de Munguía, lançava mão da ironia e da sátira891
para questionar quem era o público para o qual ele escrevia. Segundo Larra:
Esta voz público, que todos trazem na boca, sempre em apoio de suas
opiniões, esse coringa de todos os partidos, de todos os pareceres, é uma
palavra vazia de sentido, ou é um ente real e efetivo? Segundo o muito
que se fala dele, segundo o papel que desempenha no mundo, segundo os
epítetos que lhe são dados, e as considerações que se lhe guardam, parece
que deve de ser alguém. O público é ilustrado, o público é indulgente, o
público é imparcial, o público é respeitável: não há dúvida, pois, que o
público existe. Nesse caso, quem é o público, e onde se lhe encontra?892
(itálico do autor; tradução minha).
Com esse objetivo o autor saiu às ruas em busca do público, anotando em seu
caderno as principais características desse “respeitável senhor”. Optou por um domingo,
dia em que se reunia mais gente, “e onde quer que vejo um grande número de pessoas
lhes chamo de público, à imitação dos demais”. Depois de narrar o que observava, o vai
e vem de pessoas entrando e saindo de casas, as conversas sobre o tempo, “que não lhes
interessa”, e da ópera, “que não entendem”, ele escreveu em seu caderno:
890
JOUY, Victor Joseph Etienne de. L’Hermite de la Chaussée-D’Antin, ou observations sur les moeurs
et les usages parisiens au commencement du XIXª siècle”. Paris: Chez Pillet, Imprimeur-Libraire, 1813.
891
Para mais detalhes do periódico El Pobrecito Hablador e seu autor, ver: ARRONIS, José Escobar. “El
Pobrecito Hablador” de Larra y su intención satírica. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes,
2005.
892
“Esa voz público, que todos traen en boca, siempre en apoyo de sus opiniones, ese comodín de todos
los partidos, de todos los pareceres, ¿es una palabra vana de sentido, ó es un ente real y efectivo? Según lo
mucho que se habla de él, según el papelón que hace en el mundo, según los epíteto que se le prodigan, y
las consideraciones que se le guardan, parece que debe de ser alguien. El público es ilustrado, el público
es indulgente, el público es imparcial, el público es respetable: no hay duda, pues, en que existe el
público. En este supuesto, ¿quién es el público, y dónde se le encuentra?” EL POBRECITO
HABLADOR, Madrid, n. 1, agosto de 1832. p. 8-9.
893
“El público oye misa, el público coquetéa (permítaseme la expresión mientras no tengamos otra
mejor), el público hace visitas, la mayor parte inútiles, recorriendo casas, á donde va sin objeto, de donde
sale sin motivo, donde por lo regular ni es esperado antes de ir, ni es echado de menos después de salir; y
313
el público en consecuencia (sea dicho con perdón suyo) pierde el tiempo, y se ocupa en futesas”. EL
POBRECITO HABLADOR, Madrid, n. 1, agosto de 1832. p. 10.
314
894
“En primer lugar que el público es el pretexto, el tapador de los fines particulares de cada uno. El
escritor dice que emborrona papel, y saca el dinero al público por su bien y lleno de respeto hacia él. El
médico cobra sus curas equivocadas, y el abogado sus pleitos perdidos por el bien del público. El juez
sentencia equivocadamente al inocente por el bien del público. El sastre, el librero, el impresor, cortan,
imprimen y roban por el mismo motivo; y en fin, hasta el… ¿Pero a qué me canso? Yo mismo habré de
confesar que escribo para el público, so pena de tener que confesar que escribo para mí.
Y en segundo lugar concluyo: que no existe un público único, invariable, juez imparcial, como se
pretende; que cada clase de la sociedad tiene su público particular, de cuyos rasgos y caracteres diversos y
aun heterogéneos se compone la fisionomía monstruosa del que llamamos público; que este es
caprichoso, y case siempre tan injusto y parcial como la mayor parte de los hombres que le componen;
que es intolerante al mismo tiempo que sufrido, y rutinero al mismo tiempo que novelero, aunque
parezcan dos paradojas; que prefiere sin razón, y se decide sin motivo fundado; que se deja llevar de
impresiones pasajeras; que ama con idolatría sin por qué, y aborrece de muerte sin causa; que es maligno
y mal pensado, y se recrea con la mordacidad; que por lo regular siente en masa y reunido de una manera
muy distinta que cada uno de sus individuos en particular; que suele ser su favorita la medianía intrigante
y charlatana, y objeto de su olvido o de su desprecio el mérito modesto; que olvida con facilidad é
ingratitud los servicios más importantes, y premia con usura á quien le lisonjea y le engaña; y por último,
que con gran sin razón queremos confundirle con la posteridad, que casi siempre revoca sus fallos
interesados”. Tradução minha. EL POBRECITO HABLADOR, Madrid, n. 1, agosto de 1832. p. 22-24.
895
A temporalidade do conceito de público pode ser vislumbrada na obra de Kant: KANT, Immanuel.
Resposta à pergunta: Que é esclarecimento? In: Textos Seletos. Tradução Floriano de Sousa Fernandes.
Petrópolis: Editora Vozes, 2ª ed., 1985. De acordo com Roger Chartier, a ideia Kantiana de um público
universal “marca a distância existente entre a universalidade teórica do conceito de público e sua
composição efetiva (...). A ‘sociedade civil universal’ está apenas potencialmente constituída pelo
conjunto de seres humanos”. CHARTIER, Roger. Espacio público, critica y desacralización en el siglo
XVIII: los orígenes culturales de la Revolución Francesa. Barcelona: Gedisa, 1995. p. 40.
896
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 10ª Ed, 2007.
897
Richard Sennet analisou com detalhes as conformações psicológicas e culturais do “homem público”
na Europa durante este período: SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da
intimidade. Tradução de Lygia Araujo Watanabe. Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, 2015.
315
uma massa disforme, superficial, variável, sujeita aos interesses particulares daqueles
que faziam uso do conceito?
Também em Portugal, o escritor Eça de Queiroz, no prefácio ao livro “Azulejos”
do Conde de Arnoso, escrito em 1886, manifestava seu incômodo com a multidão de
leitores. Segundo ele:
898
QUEIROZ, Eça. Prefácio [1886]. In: ARNOSO, Conde. Azulejos. Coordenação de Ângela Correia.
Lisboa: Bibliotrónica Portuguesa, 2017. p. 11-12.
899
QUEIROZ, Eça. Prefácio [1886]. In: ARNOSO, Conde. Azulejos. Coordenação de Ângela Correia.
Lisboa: Bibliotrónica Portuguesa, 2017. p. 13.
900
QUEIROZ, Eça. Prefácio [1886]. In: ARNOSO, Conde. Azulejos. Coordenação de Ângela Correia.
Lisboa: Bibliotrónica Portuguesa, 2017. p. 16-18.
316
901
Sobre o romance e o mundo privado, ver: ARMSTRONG, Nancy. A moral burguesa e o paradoxo do
individualismo. In: MORETTI, Franco (Org.). O Romance: a cultura do romance. Tradução Denise
Bottmann. Vol. 1. São Paulo: Cosacnaify, 2009; ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (Dir.). CHARTIER,
Roger (Org.) História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das
Letras, Vol. 3. 2009. A preocupação com a “multidão” parece refletir a divisão entre natureza e cultura, o
privado e o público, o íntimo e o civilizado, que segundo Richard Sennet passa a prevalecer nesse
momento histórico. SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade.
Tradução de Lygia Araujo Watanabe. Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, 2015.
902
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionário da Lingua Portugueza. Oitava edição revista e melhorada.
V. II. F-Z. Rio de Janeiro: Editora – Empreza Litteraria Fluminense, 1891. p. 599.
317
Porém, como vimos, até o século XVIII ainda se utilizava o termo privado no
mundo Luso-brasileiro. Este significado do passado convivia com outros, que se
tornavam preponderantes. O mesmo dicionário de Morais Silva dizia muito brevemente
que “privado” era “não público, particular”, e que “pessoa privada” era “sem emprego
ou caráter público”. O atributo de “não público” demarca claramente que a relação
prévia de complementaridade fixava-se agora no sentido do binarismo em oposição: um
se define na ausência ou negação do outro.
Quanto ao conceito de “privacidade”, até o final do século XIX ele não se
manifesta nos dicionários. O conceito, e a realidade que ele pretende descrever e
condensar, parece emergir apenas no século XX, período em que o “privado” (aquilo
que é particular, do indivíduo) e o “íntimo” (aquilo que está dentro) se associaram. Ao
mesmo tempo, o conceito sugere o surgimento de uma esfera de proteção enquanto uma
contraparte do fenômeno histórico do alargamento do público e da publicidade. Daí
derivou a necessidade de substantivação do adjetivo privado por meio do sufixo “–
dade”. O contexto de urbanização, as mudanças políticas, econômicas e sociais durante
as primeiras décadas da república e as políticas higienistas de controle social
desempenharam um papel fundamental no sentido da “privacidade”. Novas experiências
seriam condensadas por meio do conceito.
Assim, na imprensa periódica dos oitocentos o conceito era praticamente
ausente. Ele surge apenas nos anos 1930, sobretudo nas revistas de arquitetura e nas
notícias sobre as novas moradias que eram tendências na Europa. O periódico O Jornal,
do Rio de Janeiro, em 1938, trazia uma notícia intitulada “As habitações proletárias na
Europa e nos E.E. Unidos”, escrita por Armando de Godoy, na qual se dizia:
defendia que os edifícios deviam ser construídos com um afastamento mínimo de quatro
metros e cinquenta entre eles, não apenas pela questão da ventilação e da iluminação,
mas pela “privacidade”:
904
O BRAZIL-MÉDICO: REVISTA SEMANAL DE MEDICINA E CIRURGIA, Rio de Janeiro, 25 de
novembro de 1933. Era redigido por Luiz Sodré. Publicou-se entre 1887 e 1971, com intervalos e
diferentes redatores.
319
Isso significa que quando falamos do “privado” no século XIX não estamos nos
referindo aos sentidos que os “particulares” tinham no Antigo Regime. A ideia de
individuo e os seus direitos naturais alteraram a percepção sobre a pessoa e seu papel na
sociedade. Contudo, a designação de “privado” como um setor, um agrupamento de
interesses econômicos, ou como sinônimo de “mercado”, parece caminhar muito
lentamente. Constatação que pretende atenuar a lógica da dicotomia “público” e
“privado” em prol de uma visão que reforce o caráter dos conceitos como construções
históricas, conceituais e políticas.
320
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entre os séculos XVIII e XIX operou-se uma mutação profunda nos imaginários,
valores e crenças políticas. Tais mudanças eram resultado de novas práticas e
concepções acerca do papel dos indivíduos, da sociedade e do poder. Os conceitos
políticos, por meio dos quais os atores históricos buscam sintetizar e, igualmente, agir
na realidade, também acompanharam esse processo.
O objetivo principal desta tese era refletir sobre os diferentes significados de
público, particular e privado em uma longa duração. Buscou-se uma aproximação que
colocasse em primeiro plano os usos realizados pelos atores históricos em diferentes
contextos, lidando com distintos problemas e questões. Do ponto de vista da história
conceitual, não se trata de definir, de fato, o significado de público e privado, mas
entende-los nos processos históricos de que fazem parte.
No entanto, não basta, simplesmente, apenas apontar para esses usos
diversificados. É preciso buscar construir uma narrativa histórica acerca dos seus
desenvolvimentos e da sua evolução semântica, levando em consideração o processo
histórico mais amplo. No caso em questão, a transição de uma cultura jurisdicionalista
para um tipo de modernidade política. Conforme Javier F. Sebastián, é preferível tratar
das modernidades e dos processos de transição para as modernidades, sempre no plural.
Os seus ritmos não foram lineares e não podem ser reduzidos somente a algumas
experiências políticas de determinados países. O que não impede de pensar certos eixos
articuladores dessas diversas experiências, como a criação de um novo marco
simbólico, de um novo vínculo social, de uma forma de legitimidade alternativa e de
uma nova experiência do tempo, acompanhados, por sua vez, de uma série de conceitos
emergentes. Do mesmo modo, “antigo regime”, “tradição”, “modernidade”, precisam
ser pensados enquanto ferramentas heurísticas e não como descrições fechadas, ideais e
normativas905.
Nesse sentido, público, particular e privado, na cultura jurídica portuguesa,
desempenhava papeis distintos daqueles que lhes foram atribuídos posteriormente.
Conforme procurei demonstrar, o principal aspecto em relação aos conceitos de público
e particular no Antigo Regime luso-brasileiro era o seu tratamento como conceitos
905
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