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Nesse ensaio analisaremos o poema “De Apolo o carro rodou pra fora” de Ricardo Reis e o poema

“Prometeu” de Goethe. Nosso trabalho busca aproximar as leituras para pensar de que forma os
deuses são representados em cada caso, para disso conseguir depreender uma pequena parte das
possíveis contribuições do imaginário romântico na poesia de Pessoa, assim como os contrastes em
relação à essa tradição literária.

Palavras-chave: poesia; Ricardo Reis; Goethe, Romantismo


In this essay, we will analyze the poem “De Apolo o carro rodou pra fora” and the poem
“Prometeu” of Goethe. Our work seeks to approach the readings to think of how the greek and
latin gods are represented in each case, in order to obtain a small part of the possible contributions
of the romantic imaginary in the poetry of Pessoa, as well as the contrasts in relation to this literary
tradition.

Key-words: poetry; Ricardo Reis; Goethe; Romantism


Este ensaio tem o objetivo de se aproximar da poesia de Fernando Pessoa através
de dois movimentos: a interpretação analítica e a comparação. Nosso percurso seleciona
como objeto os poemas Prometeu de Goethe e a Ode 314 de Ricardo Reis, aproximados pelo
tema do paganismo e da relação com os deuses Greco-latinos. No caso da poesia de
Fernando Pessoa, esse tipo de aproximação pode ser bastante proveitosa. Isso porque a
concepção de poesia e do fazer poético para esse autor muito se aproximam do descrito
por Eliot em “Tradição e talento individual”, Pessoa parece mergulhado num
comprometimento de continuidade da história que o leva a “escrever não somente com a
geração a que pertence seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura
europeia [...] tem uma existência simultânea e constitui uma ordem simultânea” (ELIOT,
1989 p. 39). Desta maneira, o estudo do poeta posto em diálogo com suas referências
ajuda-nos a entender como Pessoa se torna “mais agudamente consciente de seu lugar no
tempo e de sua própria contemporaneidade” (ELIOT, 1989 p. 40).
É evidente que o texto de Eliot cabe, em alguma medida, a todo o poeta, pois os
processos de despersonalização sugeridos por ele são fundamentais para a poesia, caso
contrário, esta se reduziria à expressão confessional pura. Da mesma maneira, o vínculo
com a tradição garante à literatura vida além de seu tempo. Mas no caso de Pessoa, esses
preceitos nos parecem fundamentos quase intransponíveis de sua poesia. A construção da
heteronímia é sem dúvida um esforço de despersonalização – talvez o mais agudo possível
na lírica; e, ao mesmo tempo, é vínculo com a tradição, já que Caeiro faz ecoar Woodworth
e os árcades; Reis clama por Heine e Horácio e Campos chama para si Whitman. Sua
prática de leitor voraz e extremamente erudito possibilita uma percepção atenta da presença
e da pertinência do passado para a compreensão do presente, tomando por par, o largo
espectro da tradição, em plena condição para o diálogo.
O poeta de clara vocação lírica, como Manuel Bandeira, optando por assumir a voz
mais íntima e as experiências mais particulares, nos ajuda a vislumbrar o universal que
cobre a pura subjetividade, talvez bem ao gosto de Hegel. Mas numa poesia como a de
Fernando Pessoa, cuja poética é descrita em “Autopsicografia”, somos afastados, tão
radicalmente, da ideia de experiência pessoal do indivíduo empírico que precisamos nos
dispor a, em seus poemas, encontrar menos o concreto e sensorial da vida e mais a
amplidão de ideias, capazes de abarcar poesia, história, sociedade, por meio de uma
inteligência criadora que apaga seus rastros.
Como toda a poesia nos ensina o modo de lê-la, a comparação de Pessoa com os
grandes poetas que lhe foram referência1 é absolutamente enriquecedora. Talvez porque o
poeta português só se dê através do outro, seja ele inventado ou literário. Se seu lugar de
fala é cercado por uma espécie de andaime, como o próprio poema “Andaime” (1995, p.
230) sugere, sem que a casa (espaço da intimidade) estivesse construída:

[...]
Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.

A tarefa que se apresenta ao crítico é escalar tal andaime, entender do que ele é
feito, e, lá de cima, tentar ver o homem que o construiu e, quem sabe, depreender a
natureza de tal empreitada.
Este trabalho, de dimensões humildes, almeja ver de que forma o panteão de
deuses veio povoar esse andaime na poesia de Ricardo Reis, tendo Goethe e alguns autores
românticos como uma espécie de espelho capaz de aumentar e iluminar aquele em que nele
se mira.

Há um pequeno e interessante apontamento sobre Ricardo Reis, atribuído a Álvaro


de Campos. Nele, Campos comenta a poesia do confrade a partir da ideia de contenção e
altura do tom. Para o audacioso poeta engenheiro, a expressão de sentimentos em frases
determinadas silabicamente as tornava “por duas vezes mais compridas e por duas vezes
mais curtas, e em ritmos escravos que não podem acompanhar as frases súbitas”
(CAMPOS, 1995, p. 141). A crítica, mesmo que atenuada pelo reconhecimento do valor de
Reis, vem no sentido da falta de espontaneidade e da relação, estreita como pensa Campos,
entre altura e tamanho do verso. A grandiosidade do comentário se faz ver durante a leitura

1 Fernando Pessoa também escreveu um Fausto, o que o aproxima de Goethe, certamente seu modelo.
das Odes de Ricardo Reis, não porque nosso Álvaro de Campos acerte na crítica, mas pelo
contrário disso: os fatores apontados como possíveis elementos de enfraquecimento dessa
poesia são na verdade sua força e cerne poético. A beleza de um comentário como esse
ilumina o projeto heteronímico de Pessoa, o qual se mostra muito claro e lúcido, de forma
que seus heterônimos, mesmo no contraste, dão a ver uns aos outros. É esperado que aos
olhos de um poeta moderníssimo, vanguardista, a contenção de feição clássica parecesse
falta de espontaneidade, menor capacidade de expressão subjetiva imediata. Campos, ao
modo de Baudelaire em O pintor da vida moderna, deseja um artista “tiranizado pelas
circunstâncias” (BAUDELAIRE, 2010, p. 39) e não refugiado num mundo antigo de
ritmos e métrica.
De toda a maneira, o próprio Reis esclarece a necessidade de contenção em seu
poema de abertura:
Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.
[...]
(REIS, 1994, p. 13)

Nesse trecho, assim como no seguir do poema, há uma proposição diante da perda
inevitável das horas: o ornamento, que para essa poética será representado através da
contenção silábica e da escolha por temas da tradição greco-latina, principalmente em torno
de Horácio e Virgílio. Nessa poesia, o ornamento deve ser entendido como tentativa de
contenção, artifício usado com a finalidade de se fazer não mutável – se não é possível reter
as horas, pelo menos se controla as sílabas e os assuntos dos versos. A preferência pelo
antigo segue na mesma necessidade, pois o passado e a tradição já não sofrem mudanças,
estão como que estáveis e suprem a angústia de um homem pasmado diante da finitude
humana e da velocidade da vida.

No seu ar de imitar a Antiguidade na sua perfeição idealmente de


mármore inscrito, dialogando com ela e na verdade digna dela, o que
sobressai é um fundo de angústia moderna, como moderna sob cor
antiga, é a resposta para a não-resposta de onde nasce e extravasa. Nós
somos tempo e nada mais, nós somos, como se diz, e depois de
Schopenhauer tantas vezes se repetiu, uma breve luz irrompendo sem
razão no seio de uma Vida desprovida dela e de novo reenviada à pura
Noite? Pois se assim é, seja assim. Aceitemos o jogo e jogue-mo-lo que
só nessa aceitação voluntária “o bem consiste”. (LOURENÇO, 1981, p.
51)

O mérito de Reis, de acordo com Lourenço, é justamente a consciência do tempo e


da morte – padecer onde o projeto Caeiro cresce –, e a espécie de monotonia de temas e
figuras nessa poética são fruto desta certeza inexorável. Acreditamos que a retomada dos
deuses, no apelo de indicar sua não-morte, possa também ser entendida como resistência à
passagem do tempo. Desta forma, um estudo analítico sobre suas representações ilustraria
a síntese entre o desejo (ambição de conter o tempo) e a realização objetiva e possível do
poema.
O aparecimento dos deuses nas Odes é sistemático, concentram-se essencialmente
no início e no fim, como também mostrou Lourenço (1981), e diluem-se durante o livro.
Os deuses de Reis diferem da austera representação feita nos textos latinos e gregos, de
uma forma geral, as divindades parecem enfraquecidas, de atitude melancólica,
aproximadas à padecente condição humana:

Vêm, inúteis forças,


Solicitar em nós
As dores e os cansaços,
Que nos tiram da mão,
Como a um bêbado mole,
A taça da alegria.”

(REIS, 1994, p. 16)

Contudo, seria redução pensar num apagamento ou enfraquecimento completo, os


deuses antigos continuam autônomos e inseridos na natureza:

O deus Pã não morreu,


Cada campo que mostra
Aos sorrisos de Apolo
Os peitos nus de Ceres –
Cedo ou tarde vereis
Por lá aparecer
O deus Pã, o imortal.

(REIS, 1994, p. 19)

O mero apagamento facilitaria nossa interpretação, assim como o pleno resgate


dessas figuras divinas. Mas a grandeza da poesia está nessa tensão, que no seguir das Odes
distende e contrai-se o tempo todo. O poema que selecionamos para análise ilustra esse
aspecto dual da representação dos deuses.

De Apolo o carro rodou pra fora


Da vista. A poeira que levantara
Ficou enchendo de leve névoa
o horizonte;

A flauta calma de Pã, descendo


Seu tom agudo no ar pausado,
Deu mais tristeza ao moribundo
Dia suave.

Cálida e loura, núbil e triste,


Tu, mondadeira dos prados quentes,
Ficas ouvindo, com os teus passos
Mais arrastados,

A flauta antiga do deus durando


Com o ar que cresce pra vento leve,
E sei que pensas na deusa clara
Nada dos mares,

E que vão ondas lá muito adentro


Do que o teu seio sente cansado
Enquanto a flauta sorrindo chora
Palidamente.

(REIS, 1994, p. 21)

O poema é bastante imagético. Ele retrata o entardecer, trazido pelo carro de


Apolo, no campo. O cavalgamento entre o primeiro e o segundo verso indica esse
movimento da carruagem arrastando o Sol até o horizonte (“[...] o carro rodou pra fora/
Da vista [...]”). Por sinal, o poema é repleto desse procedimento, o esparramar-se dos
versos forja o movimento da tarde e a fluidez melancólica da flauta de Pã.
Em compasso com o poente, Pã toca sua flauta enquanto uma mondadeira (mulher
que limpa o solo de ervas) o escuta. A composição da imagem global do poema se dá
através da justaposição das cenas de cada estrofe, o que será bastante distinto do poema de
Goethe, comentado mais abaixo, no qual vemos uma fala contínua, sem construção
espacial determinada, em que a cada estrofe Prometeu conta-nos suas angustias frente à
figura de Zeus. O poema é silabicamente regular, constituído por cinco quartetos com três
versos de nove sílabas e um de quatro.
Na primeira estrofe da ode em questão, somos apresentados ao espaço sobre o
qual se construirá o canto. O ambiente parece embaçado pela poeira levantada com a
passagem de Apolo, que enche de névoa o horizonte. A penumbra que cobra a cena é
intensificada pelo pôr-do-sol, que torna o ambiente ainda menos nítido, uma vez que se
trata de uma pradaria. As especificações do ambiente acabam por lhe trazer um ar de
mistério e suspensão da normalidade, o que condiz o elemento fantástico do aparecimento
dos deuses. Algo semelhante ao que se vê no poema “Deuses da Grécia”, de Heine, em que
o crepúsculo e o aparecimento da Lua, logo nos primeiros versos, enfeitiçam a claridade do
dia, que se abre para o mistério dos deuses.
Reis, através do som da flauta de Pã, dará ao poema um tom de melancolia suave e
delicada, que atenuará todos os elementos da paisagem, com exceção da mondadeira, como
veremos adiante. A produção de música é um atributo de Pã, a qual de tão bela era capaz
de atrair as ninfas para perto de um deus pavoroso. No poema de Reis, o som de Syrinx
está também subordinado ao sentimento crepuscular do dia: “A flauta calma de Pã,
descendo\ Seu tom agudo no ar pausado”. A flauta do deus desce seu tom agudo, que
parece ceder ao clima ao clima constrito, de “ar pausado”. Além do mais, notamos que aqui
a música já não propicia dança2, mas é como gracejo fúnebre ao “moribundo dia suave”.
Na terceira estrofe, conhecemos a mondadeira com quem o eu-lírico fala
diretamente: “Tu, mondadeira dos prados quentes”. A moça é constituída por dois pares de
qualidades: “Cálida” e “loura”, “núbil” e “triste”, em cada um dos pequenos sintagmas há
uma composição complexa. No primeiro deles, o amarelo dos cabelos se intensifica pelo
fervor de cálida, algo já bastante distinto da placidez melancólica de todo o ambiente; já no
segundo, o estado de nubilidade, algo possivelmente positivo para uma campesina do
começo do século XX, é acometido pelo adjetivo triste. Há nessa jovem fervor e tristeza,
desejo e impossibilidade, o que, como pensamos, pode indicar profundidade de uma vida
íntima não pacificada. Ao compasso do entardecer e embebida da triste música de Pã, a
moça se vê mais vagarosa (“com os teus passos\ Mais arrastados”) e como se verá na
quinta estrofe, interiorizada.
O som é arrastado pelo vento, na quarta estrofe, indicando a mobilidade do que
antes estava parado (“ar pausado”, 6º verso e “ar que cresce”, 14º verso). E junto do som
movimenta-se também o olhar do eu-lírico, que já não descreve a realidade externa, mas se

2 Nos Hinos Homéricos, Pã sempre faz dançar as alegres ninfas.


torna capaz de conhecer o que pensa a mondadeira, diz Ricardo Reis: “E sei que pensas na
deusa clara/ Nada dos mares”. Como se sabe a deusa nascida dos mares é Afrodite3, que
aqui se coloca em oposição à mondadeira, uma vez que enquanto uma se caracteriza, no
poema, pelo esforço físico do trabalho, a outra insurge na belíssima imagem do seu
nascimento, tranquila deusa do amor e da beleza, em meio às águas. É claro que a escolha
lexical de “nada” ao invés de “nata”, traz à representação de Afrodite uma espécie de vazio
e também uma distância da mondadeira em relação aos mares.
Ao pensar na deusa, a mondadeira experimenta um processo de interiorização, as
ondas que trouxeram a imagem do nascimento deusa, também reverberam nela própria que
ao se perceber no contraste sente “que vão ondas lá muito adentro/ Do que o teu seio
sente cansado”. O cavalgamento que inicia o poema, mostrando-nos o Sol ao se pôr,
reaparece novamente entre a quarta e a quinta estrofe: “Nada dos mares\ E que vão ondas
lá muito adentro\ Do que o teu seio sente cansado,\ enquanto a flauta sorrindo chora\
Palidamente”. Se no começo da Ode o procedimento fora usado retratar o Sol saindo da
vista, no final, vemos um transbordamento das águas marinhas, que através de suas ondas
chegam até o íntimo (seio cansando) da jovem. Nossa interpretação se ampara no movimento
de “adentramento”, representado formalmente pela repetição das sibilantes (seio sente
cansado), que sugerem a relação entre o som das ondas e a intimidade da moça. O
movimento conduzido pelas ondas faz o poeta ver o cansaço da mondadeira e o saber
oposto à natureza de Vênus, ou seja, o cansaço da mondadeira não pertence ao universo do
amor, das futilidades e jogos amorosos e toda a sorte de gracejo, mas sim, a um trabalho
exigente fisicamente, nesse caso, da mulher que recolhe ervas do solo. Na medida em que
as ondas seguem o caminho para lá muito adentro, o poeta retorna à exterioridade através do
som da flauta de Pã que permaneceu tocando no prado. Todo o ambiente, a canção do
deus e o próprio poema “sorrindo chora palidamente”.
No aparecimento da mondadeira, na terceira estrofe, ela nos parece contaminada
pelo clima do ambiente e também imersa na melancolia da música de Pã e do fim do dia.
Contudo, quando o poeta a vê por dentro, mesmo que não totalmente, ele constata que a
trabalhadora não está harmonicamente inserida no ambiente, o cansaço a afasta de
Afrodite, estereótipo da beleza feminina; seu s seio é território de ondas que tornam seu
íntimo impreciso, fraturado. Desta maneira, sua vida íntima contrasta (pelas dualidades que

3É preciso salientar que a forma “nada” é uma variação do latinismo “nata”, ou seja, nascida. Forma que
advém do particípio latino natus, a, um.
a constituem e pelo aspecto do trabalho) com o ambiente exterior, no qual tudo corrobora
um mesmo sentimento.
De toda a forma, nosso interesse é compreender a ação dos deuses. Como já foi
dito, Pã não se mostra repleto em suas forças. Nos hinos homéricos podemos ver:

E só de tarde,\ ao voltar da caça, flauta, tirando do colmos música\


suave. Nas melodias, não o venceria o pássaro,\ que, nas flores da
primavera multiflorida,\ vertendo seu trenó, faz ressoar meloso canto.\
As ninfas montesas de harmoniosas danças,\ seguindo-o, com os pés
síncronos, perto da negra fonte\ dançam, e o eco da montanha reflete
seu cume. (HOMERO, 2006, p.161) 4

A situação do entardecer é a mesma, porém no texto homérico Pã é superior à


natureza (referente à beleza de sua música), além de possuir o poder de revelá-la até no seu
mistério, já que faz com que a montanha reflita seu próprio cume: “e o eco da montanha
reflete seu cume”. Não é possível verificar a mesma potência no deus de Reis. Ele não é o
deus que se sobrepõe a natureza, mas que se dobra a ela. Se o dia, melancolicamente, está
se pondo, o deus dos bosques, humildemente, assentará sua música ao mesmo sentimento
– sem ferir o dia que termina. Essa espécie de adesão ao estado da natureza não é algo
próprio de um deus. Os deuses coordenam a natureza, ou, então, ela se dobra aos seus
sentimentos, como é o caso da tristeza de Ceres ser capaz de trazer o inverno. Mas como
mostrou Lorenço (1981), a aceitação voluntária é a vitória possível de Ricardo Reis. Se é
insuperável a consciência da morte, já que o próprio findar do dia nos avisa de sua
eminência, resta uma espécie de resignação. Os deuses e a natureza ensinam ao homem a
ação de resignar-se: Pã desce o tom de sua flauta no cair do Sol. Mas, pelo que entendemos,
o homem não é capaz de aprender por completo tal lição e o seio da montadeira parece
dominado por cansaços, desejos e tudo o mais que “lá muito adentro” ressoa e que não
conseguimos alcançar. A melodiosa canção a afeta, mas não a transforma. Acreditamos,
portanto, que o elemento humano destoe do restante da natureza e do deus, não por sua
aparência ou conduta, mas pela profundidade marítima de sua vida íntima.
A mondadeira de Reis realizou uma viagem demasiado longa para dentro de si, e os
processos intensos de subjetivação trazem consigo alguma incomunicabilidade – novelo de
tantas tramas virado para dentro. A mondadeira desta Ode não atingiria o ideal pagão

4Trabalho de doutoramento realizado pela Universidade de São Paulo que se dedica à tradução e comentário
dos Hinos homéricos.
postulado por Antônio Mora, no projeto Regresso dos Deuses: “O paganismo é a religião que
nasce da terra, da natureza diretamente – que nasce da atribuição a cada objeto da sua
realidade verdadeira” (PESSOA, 1996, p. 237). Isso porque sua integração na natureza não
está completa assim como a seguridade de alcançarmos sua realidade objetiva e verdadeira.
Os deuses na poesia de Ricardo Reis, mesmo enfraquecidos, parecem ser parte de
toda a natureza, e junto dela alcançam essa espécie de objetividade. Ainda são os mesmos,
só não mais austeros e poderosos, mas dotados de uma sabedoria necessária, espécie de
indiferença sabida diante de tudo o que padece:
[...]
Altivamente donos de nós-mesmos,
Usemos a existência
Como a vila que os deuses nos concedem
Para esquecer o estio. (REIS, 1994, p. 40)
[...]

Indiferença que a jovem camponesa não aprendeu a ter. Sua aparição no poema é
fonte de suave contraste e nos mostra como esses deuses, construídos precisamente pelo
poeta, são incapazes de resgatar o homem de si mesmo.
No poema de Goethe encontraremos uma estrutura bastante distinta, primeiro por
não ser descritivo e sim discursivo, além de representar uma divindade em toda a sua
potência. Nele o poeta assume a voz do titã Prometeu e o faz discutir a autoridade de Zeus.

Encobre o teu céu, ó Zeus,


Com vapores e nuvens,
E, qual menino que decepa
A flor dos cardos,
Exercita-te em robles e cristas de montes;
Mas a minha Terra
Hás-de-ma deixar,
E a minha cabana, que não construíste,
E o meu lar,
Cujo braseiro
Me invejas.

Nada mais pobre conheço


Sob o sol do que vós, ó Deus!
Mesquinhamente nutris
De tributos e sacrifícios
E hálitos de preces
A vossa majestade;
E morreríeis de fome, se não fossem
Crianças e mendigos
Loucos e cheios de esperança.

Quando era menino e não sabia


Pra onde havia de virar-me,
Voltava os olhos desgarrados
Para o sol, como se lá houvesse
Ouvido para o meu queixume,
Coração como o meu
Que se compadecesse de minha angústia.

Quem me ajudou
Contra a insolência dos Titãs?
Quem me livrou da morte,
Da escravidão?
Pois não foste tu que tudo acabaste,
Meu coração em fogo sagrado?
E jovem e bom – enganado –
Ardias ao Deus que lá no céu dormia
Tuas graças de salvação?!

Eu venerar-te? E porquê?
Suavizaste tu jamais as lágrimas
Do oprimido?
Enxugaste jamais a lágrima
Do angustiado?
Pois não me forjaram Homem
O Tempo todo-poderoso
E o Destino eterno,
Meus senhores e teus?

Pensavas tu talvez
Que eu havia de odiar a Vida
E fugir para os desertos,
Lá porque nem todos
Os sonhos em flor frutificaram?

Pois aqui estou! Formo Homens


À minha imagem,
Uma estirpe que a mim se assemelhe:
Para sofrer, para chorar,
Para gozar e se alegrar,
E pra não te respeitar
Como eu!

Colocados lado a lado, os poemas aumentam um ao outro, novamente, pelo


contraste. A melancolia musical da ode de Ricardo Reis faz o tom altivo e firme de
“Prometeu” ecoar mais forte. No poema de Goethe, o titã também está transformado, o
que discutiremos mais abaixo, mas não perde sua voz poderosa e dignificada. O mito de
Prometeu é bastante relevante dentro da mitologia antiga, e Goethe irá manipulá-lo com
precisão afiada, por isso nos deteremos a um breve comentário, a fim de iluminar a revolta
e a ira que o grande poeta fáustico fará Prometeu cantar.
Neste mito, vemos representada a criação do homem (como o conhecemos) e sua
definitiva separação dos deuses5. Separação que deve ser entendida como diferenciação
radical e não como não-relacionamento. A partir da abertura do jarro e da criação de
Pandora, o homem passa a adoecer, morrer e precisar do sexo para a perpetuação da
espécie. A cisão gerada pelo roubo do fogo sagrado tem três versões mais conhecidas, duas
delas são de Hesíodo e uma de Ésquilo. Na Teogonia, Zeus retira o fogo dos homens por
conta de um presente fraudulento (ossos cobertos com gordura) que lhe é oferecido por
Prometeu. O titã não aceitando a punição do crônida, recupera o fogo para os homens. A
outra versão é apresentada n’ Os trabalhos e os dias, quando Zeus esconde o fogo dos
homens para ensinar-lhes o trabalho e evitar o ócio. Da mesma forma, Prometeu não aceita
a autoridade de Zeus e lhe rouba o fogo. Em ambos os casos, o movimento é o mesmo: o
titã é insolente diante da soberania do deus e acaba sendo castigado por isso.
Parte do castigo prometeico é Pandora. Zeus, ajudado por outros deuses, cria a
mulher, kálon kakón (o belo mal). E com ela, e, por meio dela, espalha o mal (ao abrir o
jarro) e a ambiguidade (por ser bela e má). O castigo de Zeus não se limita a punição de
Prometeu, mas se alarga aos homens.

O “belo mal” é ambíguo pois seduz, atrai afetos e traz todos os males
para a humanidade. Talvez o maior mal trazido por Pandora seja o
surgimento da ambiguidade, a possibilidade de escolha, ou melhor
dizendo, a necessidade de escolha. (LAFER, 2008, p.65)

O homem, desta forma, se tornara frágil não só pelo perecer inevitável e pelos
possíveis sofrimentos ocorridos no decorrer da vida, mas, além disso, seria vítima dos
outros homens e dos objetos ambíguos que lhe exigiriam uma escolha frente à ação –
receber ou não receber Pandora; abrir ou não abrir o jarro. Em síntese, ambos os mitos nos
explicam a condição humana e reafirmam o lugar de poder de Zeus nesta nova ordem de
coisas.
A versão de Ésquilo em Prometeu acorrentado contrasta com os textos hesiódicos.
Nela Zeus é tido como figura arrogante e tirana e Prometeu como protetor que livrou os
homens da destruição, conta o titã: “dos pobres homens não fez conta nenhuma, queria ao
contrário, exterminar-lhes a raça e criar outra nova” (Ésquilo, 2006, p. 47). Prometeu é

5 Lafer (2008) interpreta que o ato sacrificial de Prometeu é uma espécie de tentativa de reaproximação, mas
não muito eficaz porque os deuses e os homens já que não compartilham mais a mesma linguagem.
retratado enquanto injustiçado e vítima das arbitrariedades de Zeus, seu caráter, contudo
não é irado, já que, por crer no poder do fado, aguarda seu momento de justiça6. A
paciência do protagonista da tragédia é fruto da sua certeza no poder do destino sobre o
qual nem os deuses estariam imunes.
No poema que estudaremos, a versão escolhida como texto base para o diálogo é a
da tragédia de Ésquilo, tanto pelo tratamento do assunto (Zeus tirano\Prometeu protetor
dos homens) como também pela representação de Prometeu enquanto aquele que vê além
e consegue vislumbrar o futuro e a razão de cada coisa. Contudo nem só de semelhança se
faz essa relação, no Prometeu goethiano o sentimento de injustiça está aumentado, o que
acaba por gerar ódio. Na tragédia, o protagonista não deseja a plena destruição do deus,
simplesmente espera pelo momento em que Zeus terá que descer dos céus e lhe pedir
ajuda. No texto antigo, o ponto forte de Prometeu é sua crença, seu ímpeto para a
transformação.
Pensando na estrutura formal, o poema de Goethe não tem versificação regular e
também não possui rima7, seu ritmo é o da fala encoleirada e magoada. Há um
distanciamento espacial entre os interlocutores, apresentado na primeira estrofe, Prometeu
parece ocupar o espaço terreno (espaço da cabana, do braseiro e do lar) enquanto Zeus, o das
alturas: “Encobre teu céu, ó Zeus”. Desse modo, a fala tem uma direção, ela vai de baixo
para cima e não obtém nenhuma resposta, se configurando como grito raivoso de um
homem para o céu. Ademais, ainda nessa estrofe, Goethe apresentará todos os elementos
do conflito mostrados no mito. Primeiramente caracterizará o oponente: “E, qual menino
que decepa\ A flor dos cardos”, remetendo à vitória de Zeus sobre Crônos, que o rendeu o
reinado entre os deuses. E depois o seu desejo e a razão da disputa: “Exercita-te em robles
e cristas de montes\ Mas a minha Terra\ Hás-de-ma deixar”.
Prometeu parece exigir que Zeus mantenha-se limitado às regiões altas como robles e
cristas dos montes, sugerindo, através de uma metáfora espacial, o próprio Monte Olimpo,
morada que coube a Zeus na divisão do mundo. Todavia, tudo aquilo que pertencer à
dimensão terrestre e for construído através do trabalho do homem, o titã considera não ser
de direito do deus. Os versos finais da primeira estrofe são bastante provocadores e
instigantes, retomam a ira de Zeus com o roubo do fogo, que, de alguma forma, dá ao

6 Prometeu é alertado por sua mãe, Géia, sobre a vitória de Zeus sobre Cronos e também sobre uma possível
queda do próprio Zeus também através de um filho mais poderoso que ele.
7 Evidente que nossa interpretação é bastante limitada por não lidar com original em alemão.
homem o domínio da técnica e, consequentemente, da criação das coisas, o aproximando
dos deuses.
A segunda estrofe dá continuidade ao crescente tom raivoso que finaliza a estrofe
anterior, chegando nesse momento ao vitupério: “Nada mais pobre conheço\ Sob o sol do
que vós, ó Deuses!”. Prometeu contesta a soberania dos deuses e os considera pobres,
mesquinhos e dependentes do homem, como se sua condição de existência fosse a própria
devoção: “[...] morreríeis de fome, se não fossem\ Crianças e mendigos\ Loucos cheios de
esperança”. Essa espécie de crença nos deuses como seres dependentes, nos recorda a
segunda ode de Ricardo Reis, assim como o poema “Os Deuses da Grécia”, de Heine.
Neles essas divindades parecem enfraquecidas pela falta de fé dos homens e por terem sido
substituídas pelas figuras cristãs. Essa figuração empalidecida é ainda representada em
“Deuses no Exílio”, também de Heine, no qual os seres mitológicos passam a viver
escondidos para garantir sua integridade. É curioso pensar que a ameaça do Prometeu
goethiano, de alguma forma, terá escopo nos poemas de Reis e Heine.
Esta problemática é ainda percebida na relação entre os deuses e o sol. Enquanto
Heine e Reis retratam seus deuses à noite e ao pôr-do-sol, Goethe faz questão de
representá-los sob a forte luz do astro, como se verá na segunda (“Sob o sol”) e na terceira
(“Para o sol”) estrofes. Em Goethe, os deuses são vistos sob a luz clara. E mesmo que
desafiados, sua imagem se mantém austera; nos outros autores, apesar da atitude afetuosa,
vemos os deuses já destronados e quase que envergonhados de serem vistos sob a luz do
dia. Heine chega a dizer: “Deuses abandonados, \Sombras mortas que vagueiam pela
noite,\ Fraqueza de nuvens, que o vento dissipa.”
Na terceira estrofe, a rememoração do passado (“Quando era menino”) atenua a ira
construída nas estrofes anteriores e torna o poema mais choroso. Prometeu lamenta a falta
de acolhimento dos deuses (“[...] como se lá houvesse\Ouvido para o meu queixume,\
Coração como o meu\ Que se compadecesse da minha angústia”) – desprezando a
indiferença que Ricardo Reis considerará sabedoria, como tentamos mostrar acima. A
reação magoada traz matizes interessantes para a composição do tom do poema, que é
predominantemente irado, mas de uma raiva construída a partir do desamor. O ato de
lamentar-se com os deuses e esperar intervenções a favor de suas dores, nos parece algo
mais próximo do universo cristão do que pagão. O que nos faz pensar que há no Prometeu
goethiano uma cuidadosa elaboração que reúne o ethos esperado para esse personagem a
uma espécie de moral cristã, na qual as divindades devem possuir afeição pelo homem.
Essa expectativa unida à ideia da infância dá ao titã nuances bastante humanas8.
Contudo, a atenuação da raiva não dura muito, na estrofe imediatamente posterior
temos uma sequência de interrogações nervosas, que se prolongam até a quinta estrofe.
Nelas o titã, através de exemplos, demonstra a ausência da bondade de Zeus para consigo,
condensadas pela belíssima imagem que reúne a eternidade de seu castigo ao objeto
furtado: “Pois não foste tu que tudo acabaste,\ Meu coração em fogo sagrado?”. Talvez
essa seja uma das imagens mais importantes do poema uma vez que resume em dois versos
a dor daquele que foi magoado por quem esperava ser amado, dilema do Prometeu
goethiano.
Numa espécie de rodamoinho argumentativo, construído por tais perguntas
retóricas, o titã se comparará a Zeus, por meio da ideia de transgressores da ordem: “E jovem
e bom - enganado -\ Ardias as Deus que lá no céu dormia\ Tuas graças de salvação?!”. O
questionamento revoltado que serpenteia esses versos é quanto à diferença dos julgamentos
de Zeus e do próprio Prometeu. Pois se Zeus fora considerado salvador por matar seu pai
que não permitia a liberdade de nenhum dos filhos, porque então ele, Prometeu, seria
punido por oferecer essa mesma liberdade aos homens? O que faz o leitor concluir que
Zeus não admite a mudança no estado de coisas, mesmo devendo a ela sua supremacia.
Na quinta estrofe, seguem as razões para não se venerar o crônida, agora estendidas
a sua postura para com os homens: “Suavizaste tu jamais as lágrimas\ Do oprimido?\
Enxugaste jamais a lágrima\ Do angustiado?” O inquieto encadeamento argumentativo das
perguntas finaliza-se escorado na tragédia de Ésquilo e em tom de ameaça, já que Prometeu
acreditava no poder do Fado para enfim se ver vingado da tirania de Zeus.

Pois não me forjaram Homem


O Tempo todo-poderoso
E o Destino eterno,
Meus senhores e teus?

Contudo, algo importante e muito distinto do mito se dá aqui. Os feixes de


humanidade que iam tocando a pele de Prometeu durante o poema, nesse momento,
acabam por iluminá-lo inteiramente. E a divindade se vê Homem, construído homem pelo
destino e pelo tempo e certamente também por sua condição de suplício. A humanização

8Os deuses pagãos não tinham infância já nasciam adultos e totalmente autônomos, desta forma não é
possível pensar num titã quando criança.
de Prometeu é muito significativa, ela representa o processo de culturalização do homem
através do próprio homem, e não mais pela simpatia de uma divindade. Além disso, a fala
do titã sugere que o tempo e o destino pareiam titãs, deuses olímpicos e homens. Essa
queda de Prometeu, divindade humanizada e punida, não representa para ele razão de
vergonha ou de falta de esperança. Fugir para o infrutífero deserto não se faz opção, assim
como negar sua condição e realidade. Sua escolha, de homem revoltado, será o
enfrentamento.

Pois aqui estou! Formo Homens


À minha imagem,
Uma estirpe que a mim se assemelhe:
Para sofrer, para chorar,
Para gozar e se alegrar,
E pra não te respeitar
Como eu!

Prometeu prediz uma nova estirpe de homens criada a sua imagem e semelhança,
ou seja, homens que não aceitem a tirania dos deuses e acreditem no poder das coisas
construídas pelo homem (a casa, o braseiro). Homens que assumam seu poder de
construtores da cultura e que mesmo diante dos pesares (sofrer e chorar) não recorram aos
deuses, mas a si e a sua capacidade de criação (o presente do fogo sagrado).
A retomada das imagens da fuga para o deserto e da construção do homem à
imagem e semelhança da divindade, nos fazem pensar no texto bíblico. O deus cristão cria
os homens à sua imagem e semelhança, assim também Jesus passa quarenta dias
peregrinando pelo deserto para ser tentado pelo demônio e de lá sair mais forte e pronto
para o suplício final. Prometeu se negará ao deserto, mas criará novos homens. Mais uma
vez se mostra a dualidade desta figura, uma divindade humanizada que diferente do Cristo
não se dará em sacrifício pela salvação do homem, mas o conduzirá, ao modo de um
exército, para a libertação. A aproximação da moral cristã e da mitologia pagã, que
comentamos mais acima, não resulta na supremacia de nenhuma das formas, mas
aparentemente na recusa de ambas. O poema aproveita o ethos da figura prometeica e o
reúne à expectativa cristã fazendo nascer desse encontro a ideia de que o homem é apto e
capaz de enfrentar a vida sem qualquer subterfúgio que não sua própria humanidade.
No fundo o que acontece é que faço dos outros o meu sonho, dobrando-me às opiniões
deles para, expandindo-as pelo meu raciocínio e minha intuição, as tornar minhas e
(eu, não tendo opinião, posso ter as deles como quaisquer outras) para as dobrar a
meu gosto e fazer de suas personalidades coisas aparentadas com os meus sonhos.
(Livro do desassossego)

Que sonhou Pessoa sobre os deuses? Difícil precisar o que Pessoa por meio do
poeta Reis sonhou sobre os deuses antigos. Certamente passou por Heine, e sonhou com
ele, passou por Horácio, e também sonhou com ele. Dobrou-se em Mora e pensou num
novo paganismo. Mas isso é mistério inacessível, o que fica é o poema e ele nos diz bem
mais do que as intenções do poeta, ele nos diz o possível de um homem com sua história
pessoal e coletiva. E ficaremos com isso.
Na ode que analisamos, Pã está totalmente imbricado na natureza, como parte dela.
O deus parece envelhecido, de um envelhecimento que não significa mera perda das forças
áureas da Antiguidade, mas algo como um envelhecimento sabido. Os deuses, durante todo
o livro de Reis, dão lições aos homens sobre a indiferença frente às desventuras ou mesmo
à felicidade, porque qualquer destempero é figura do perecimento e da morte. Como
tentamos mostrar, o que está harmonizado na relação entre o deus e a natureza, não se
verifica na mondadeira. E o homem, sonhando para dentro, não consegue compreender a
lição de aceitação dada pelo fim do dia e pela música de Pã.
Há na poesia de Reis certa força afirmativa em relação à representação dos deuses,
eles não precisam ser imaginados, como sugere Heine em seu poema – optando por ver
suas imagens ao invés das nuvens. Os deuses de Reis existem, ocupam a natureza e com ela
se relacionam em harmônico paganismo. E o projeto de construção de um olhar objetivo e
limpo, que lemos em Mora, tem aqui alguma concretização. A condição possível de sua
existência é o coordenar-se com a natureza, é o saber dobrar-se à tristeza do fim do dia.
Essa atitude resignada, que é a postura de Reis frente à irreparável finitude, é sua força.
Contudo, como tentamos mostrar acima, a jovem camponesa é capaz de tocar-se pela
canção, mas não de acalentar completamente seu seio marítimo. Como nem tudo é
negatividade no mar da poesia de Pessoa, terminamos nós e a mondadeira amolecidos ao
fim do dia – vitória possível dos deuses de Ricardo Reis.
Tanto Goethe como Reis reconfiguram a figura das divindades pagãs, o alemão
para construir um ideal humano, o português como tentativa de resistência às coisas todas
que terminam. A austeridade de Prometeu não cresce ou diminui diante à delicada
passividade de Pã, cada um chama para si diferentes demandas. O titã irado vai propor a
revolução através dos ideais humanistas; Pã, o desejo pela atenuação do sentir, enquanto
forma de melhor viver. Ambas falas de homens e de seus tempos, sonhos sonhados em
conjunto por\para outros homens.

BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Concepção e organização Jérôme


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