Langdon, Esther Grisotti, Márcia. Políticas Públicas

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Esther Jean Langdon

Márcia Grisotti
organização

POLÍTICAS PÚBLICAS
Reflexões antropológicas
COLEÇÃO
BRASIL
PLURAL

editora ufsc
POLÍTICAS PÚBLICAS:
reflexões antropológicas
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Reitor
Ubaldo Cesar Balthazar
Vice-Reitora
Catia Regina Silva de Carvalho Pinto

EDITORA DA UFSC
Diretora Executiva Interina
Flavia Vicenzi
Conselho Editorial
Agripa Faria Alexandre
Antonio de Pádua Carobrez
Carolina Fernandes da Silva
Evelyn Winter da Silva
Fábio Augusto Morales Soares
Fernando Luís Peixoto
Ione Ribeiro Valle
Jeferson de Lima Tomazelli
Josimari Telino de Lacerda
Luis Alberto Gómez
Marília de Nardin Budó
Núbia Carelli Pereira de Avelar
Priscila de Oliveira Moraes
Sandro Braga
Vanessa Aparecida Alves de Lima

COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO BRASIL PLURAL


Vânia Zikán Cardoso (Coordenadora da Coleção)
Alicia Castells
Esther Jean Langdon
Márcia Grisotti

COMITÊ GESTOR DO INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISA BRASIL PLURAL


Deise Lucy Montardo (UFAM)
Eliana Elisabeth Diehl (UFSC)
Esther Jean Langdon (UFSC)
Sônia Weidner Maluf (UFSC)
Vânia Zikán Cardoso (UFSC)

Editora da UFSC
Campus Universitário – Trindade
88040-900 – Florianópolis-SC
Fone: (48) 3721-9408
[email protected]
www.editora.ufsc.br
Esther Jean Langdon
Márcia Grisotti
Organização

POLÍTICAS PÚBLICAS:
reflexões antropológicas

2021
© 2021 (e-book) Editora da UFSC [Nota do Editor = mesmo conteúdo]
© 2016 (impresso)

Coordenação editorial:
Cristiano Tarouco
Capa e editoração:
Paulo Roberto da Silva
Revisão:
Júlio César Ramos

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina

P769 Políticas públicas [recurso eletrônico] : reflexões antropológicas / orga-


nização Esther Jean Langdon, Márcia Grisotti. – Florianópolis :
Editora da UFSC, 2021.
288 p. : il., mapas. – (Coleção Brasil Plural)
E-book (PDF)
Disponível em: https://doi.org/10.5007/978-65-5805-029-2
ISBN 978-65-5805-029-2
1. Antropologia – Visão política e social. 2. Políticas públicas –
Aspectos antropológicos. I. Langdon, Esther Jean. II. Grisotti, Marcia.
III. Série.
CDU: 304.4

Ficha catalográfica elaborada por Fabrício Silva Assumpção – CRB-14/1673

Este livro está sob a licença Creative Commons, que segue o princípio do acesso
público à informação. O livro pode ser compartilhado desde que atribuídos os
devidos créditos de autoria. Não é permitida nenhuma forma de alteração ou a
sua utilização para fins comerciais.
br.creativecommons.org
Sumário

Apresentação | Reflexões antropológicas sobre as políticas


públicas ............................................................................... 7
Esther Jean Langdon
Márcia Grisotti
Sônia Weidner Maluf

PARTE I | REFLEXÕES TEÓRICAS E ANALÍTICAS DA REDE


SAÚDE: PRÁTICAS LOCAIS, EXPERIÊNCIAS E
POLÍTICAS PÚBLICAS......................................................... 14
Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as
políticas públicas em saúde indígena........................................................ 15
Esther Jean Langdon

Entre teoria, estética e moral: repensando os lugares da


Antropologia na agenda social da produção de justiça.......................... 40
Theophilos Rifiotis

Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas


de saúde........................................................................................................ 60
Márcia Grisotti

Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar..... 80


Eliana E. Diehl

Ética e política em pesquisa: os métodos qualitativos e seus


resultados ................................................................................................... 102
Esther Jean Langdon
Sônia Weidner Maluf
Carmen Susana Tornquist
PARTE II | ESTUDOS DE CASOS......................................................... 121
A tensão visibilizada: políticas públicas e pessoas com deficiência........122
Éverton Luís Pereira

Pescadoras artesanais no litoral de Santa Catarina, Brasil: algumas


reflexões sobre reconhecimento e (in)visibilidades.............................. 142
Rose Mary Gerber

Vó Nadir e as políticas públicas de saúde: por uma clínica plural...... 156


Alberto Groisman

Entre reformas e revoluções: tensionamentos no campo da


política de saúde e saúde mental no Brasil............................................. 173
Ana Paula Müller de Andrade

Suicídio é suicídio e ponto final? Será? .................................................. 189


Maximiliano Loiola Ponte de Souza
Jesem Douglas Yamall Orellana

Discriminação, impasses sociais em Mato Grosso do Sul e o


bem-viver Kaiowá e guarani.................................................................... 204
Nádia Heusi Silveira

Povos indígenas e políticas públicas no Brasil: os Xavánte e o


Programa Nacional de Alimentação Escolar......................................... 221
Renata da Cruz Gonçalves
Maurício Soares Leite

O “perro del hortelano” e os impactos de uma metáfora política


em territórios indígenas........................................................................... 246
Evelyn Schuler Zea

Migrantes indesejados? A imigração haitiana e os desafios à


política migratória brasileira.................................................................... 260
Gláucia de Oliveira Assis
Sidney Antônio da Silva

O INCT Brasil Plural e o PPGAS da UFAM.......................................... 279


Deise Lucy Oliveira Montardo

Sobre os autores......................................................................................... 287


Apresentação

Reflexões antropológicas sobre


as políticas públicas

Esther Jean Langdon


Márcia Grisotti
Sônia Weidner Maluf

Este livro é o resultado do Colóquio “Reflexões sobre Pesquisa


Antropológica e Políticas Públicas no Instituto Nacional de Ciência
e Tecnologia (INCT) Brasil Plural (IBP), que foi realizado entre 18 e
20 de novembro de 2013, na Universidade Federal de Santa Catarina,
em Florianópolis. O Colóquio visava fazer um balanço das pesquisas,
realizadas pelo IBP, que tenham contribuído para subsidiar as políticas
públicas, debater as controvérsias e estimular novas ideias. Por isso,
propusemos que as exposições priorizassem o debate das seguintes
questões: Em que sentido as pesquisas, dos pesquisadores individualmente
e em redes, contribuem para as diversas políticas públicas? É possível
articular os trabalhos com as políticas públicas? De que maneira seus
projetos conseguiram algum impacto social ou político?
O Instituto Nacional de Pesquisa Brasil Plural (IBP) foi criado a
partir da iniciativa de pesquisadores da Universidade Federal de Santa
Catarina e da Universidade Federal do Amazonas em 2009 com o
intuito de construção de um projeto de ciência contemporânea e plural.
O Instituto conta atualmente com mais de 200 pesquisadores associados,
que se articulam em sete redes,1 e que, por sua vez, reúnem 37 subprojetos.

1
1) Arte, performance e sociabilidades; 2) Migrações no Brasil contemporâneo: fluxos,
processos sociais e gênero; 3) Museus, coleções e patrimônio; 4) Navegando em imagens:
Políticas públicas: reflexões antropológicas 8

O IBP é um dos 11 INCTs no campo das Ciências Humanas e Sociais


Aplicadas e um dos três na área de Antropologia.2 Desde a sua fundação,
tem recebido apoio do CNPq, FAPESC, FAPEAM e CAPES. É coordenado
pelas professoras Esther Jean Langdon e Sônia Weidner Maluf (UFSC),
com o apoio do comitê gestor composto dos professores Deise Lucy
Montardo (também coordenadora do IBP Amazonas), Márcia Calderipe
(UFAM), Sidney da Silva (UFAM) e Eliana E. Diehl (UFSC).
Em comparação com a grande maioria dos INCTs, o IBP tem
uma particularidade que é a de estimular a consolidação de redes
de pesquisas que atuem em temáticas centrais da antropologia
brasileira contemporânea e articular, de forma transversal e por meio
de uma metodologia inovadora, diferentes temáticas que através da
contribuição da pesquisa e do conhecimento antropológicos possam
subsidiar a construção de uma ciência plural e um Brasil plural,
democrático e inclusivo de suas diversas populações, respeitando suas
diferenças e pluralidades.
Entre as diretrizes gerais do IBP, duas assinalamos como
prioritárias, que resumem nossa missão: 1) construir uma ciência
plural, tanto no seu modo de operar quanto no reconhecimento de
outros modos de conhecimento e de ação no mundo e na perspectiva
dialógica e simetrizante da pesquisa junto às diferentes populações;
2) construir e consolidar um programa de pesquisas que busque não
somente mapear, cartografar, descrever ou retratar, a partir de uma
perspectiva antropológica, diferentes realidades brasileiras em toda sua
complexidade, mas também que procure contribuir para a constituição
de políticas sociais que garantam o direito à diferença e que respeitem
a diversidade e a pluralidade da sociedade e da cultura no Brasil. Essas
diretrizes desdobram-se nos três objetivos do Instituto: desenvolver
um programa articulado e de qualidade de pesquisa comparada entre
o Norte e o Sul do Brasil; fomentar a formação de recursos humanos;
promover a transferência de conhecimento para a sociedade brasileira.
O tema do Colóquio realizado em 2013 visou contribuir prima-
riamente para a segunda diretriz, com um segundo Colóquio exami-
nando a construção de uma ciência plural a ser programada no futuro.

patrimônio ambiental e antropologia visual; 5) (Políticas e redes) x (Heterogêneas e


comparadas); 6) Rede de saberes: arte, educação, línguas, território e etnicidades
indígenas; 7) Saúde: práticas locais, experiências e políticas públicas.
2
Disponível em: <http://www.cnpq.br/programas/inct/_apresentacao/index.html>.
Acesso em: 16 mar. 2012.
Apresentação 9

De um ponto de vista histórico é possível localizar, no Brasil, o


reconhecimento e a promulgação de direitos sociais importantes nas
áreas de Saúde, Educação, Patrimônio, entre outras, por exemplo, através
da Constituição de 1988; porém, a implementação, acompanhamento e
avaliação de alguns desses direitos ainda dependem das conjunturas e
interesses políticos setoriais. Paralelamente aos direitos já conquistados,
outras demandas sociais emergiram.
Nesse contexto, a Antropologia e as outras Ciências Sociais, por
meio de suas peculiares ferramentas teóricas e metodológicas, têm
problematizado as novas configurações e demandas envolvidas nas políticas
públicas, focalizando o caráter relacional e as múltiplas vozes que integram
o cenário social, reconhecendo os saberes e práticas plurais, a autonomia
dos atores e os fatores globais que estão presentes nas situações locais.
Esse tipo de proposta encontra suporte nos debates atuais sobre
as estratégias científicas de resolução de problemas complexos que
focalizam o caráter interdependente das práticas dos agentes e das
instituições, pois os planos e políticas de desenvolvimento falham muitas
vezes por não considerarem as expectativas, experiências e percepções
daqueles que serão usuários dessas políticas.
Os esforços dados pelo investimento nos impactos sociais da
pesquisa feita no âmbito do IBP estão voltados, de um lado, às políticas
públicas e sociais; de outro, às populações e comunidades estudadas,
articulando ambas as dimensões.
Em relação às políticas públicas, cabe salientar os diferentes
aspectos do impacto da pesquisa antropológica: um primeiro é aquele
de subsidiar a elaboração de políticas públicas e sociais, seja diretamente
pela presença e atuação de profissionais (antropólogos, sociólogos,
médicos, farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e outros
pesquisadores associados ao IBP) nos órgãos públicos (por meio de
laudos antropológicos, relatórios de impacto social etc.), seja pela
produção de dados e resultados de pesquisa que possam ser transferidos
mais diretamente; um segundo aspecto é o de construir uma reflexão
sobre as políticas públicas, da macropolítica dos planos e plataformas de
ação à micropolítica das práticas cotidianas dos profissionais e agentes
que atuam em nome do Estado e da política pública, contribuindo para
uma avaliação desta; o terceiro é o de confrontar a política pública
com as experiências sociais dos sujeitos que são alvos dessas políticas,
buscando uma contribuição crítica e construtiva da ação governamental
e da atuação do Estado nas mais diversas esferas, como a saúde, a
educação, as políticas de patrimônio cultural, entre outras.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 10

Em relação às comunidades estudadas, é necessário pensar as


diferentes dimensões do que seria “transferência de conhecimento”.
A primeira delas é a de fornecer instrumentos para uma apropriação
por parte dessas populações do conhecimento produzido pela pesquisa
científica no sentido de reforçar sua autodeterminação e seus modos
de empoderamento. A segunda dimensão seria de contrapor à noção
de “transferência” de conhecimento uma perspectiva dialógica e/ou
simétrica, ou da práxis de uma ciência plural, no sentido da produção de
um conhecimento compartilhado. Pensar os diferentes vetores e direções
do fluxo da ciência e dos diferentes saberes é uma das contribuições
da antropologia e de nossas iniciativas interdisciplinares (e vocação
de nosso Instituto) para o campo científico brasileiro. Quando nos
propusemos a construir um projeto e um programa de INCT nesse
campo, essa foi uma das questões que motivaram nosso investimento,
que hoje se traduz de forma mais clara pelo corpo denso e extenso de
pesquisas comparativas realizadas no âmbito do IBP nos últimos três
anos, em diversos locais e com diferentes populações.
Com este livro, pretendemos ilustrar as contribuições das
pesquisas do IBP na análise das políticas públicas no contexto da
inclusão social, diversidade cultural e pluralismo, bem como no do
diálogo entre antropólogos na América Latina que vêm desenvolvendo
modelos para contribuir com a interdisciplinaridade necessária à
intervenção em várias políticas sociais.
Cabe ressaltar que o eixo teórico-metodológico de antropologia
como o campo principal das investigações do Instituto não elimina o
diálogo e inclusão dos pesquisadores e saberes de outras disciplinas.
O trabalho interdisciplinar e de formação de redes que inclua
pesquisadores de outras áreas, relevantes às problemáticas do IBP, são
estratégias importantes para atingir nossa missão. Reconhecemos que,
apesar de essas estratégias serem consensualmente reforçadas pelas
agências de fomento à pesquisa científica, a interdisciplinaridade e o
trabalho em rede não são empreitada fácil de ser colocada em prática,
devido ao processo de formação disciplinar e especializado aos quais os
pesquisadores têm, historicamente, sido submetidos.
A perspectiva interdisciplinar e a formação de redes de pesquisas
envolvem muito mais do que a junção de áreas acadêmicas e pessoas
interessadas; envolvem compromissos assumidos coletivamente a
partir de uma linguagem comum que possa ser sustentada a longo prazo,
mesmo com as diferenças de abordagens teórico-metodológicas e de
pontos de vistas pessoais dos pesquisadores. Como será evidenciado
Apresentação 11

em vários capítulos deste livro, as redes do IBP representam trajetórias


de investigações com colegas de outras áreas fora e dentro das Ciências
Sociais. Vários dos participantes no Colóquio com formação em
campos tais como nutrição, farmacologia, psiquiatria, saúde coletiva e
outros, procuraram experiências de pós-graduação em Antropologia
para aperfeiçoar sua capacidade de compreender as complexidades
sociais e as falhas das políticas públicas.
O trabalho em rede, a inovação científica e a produção de uma
ciência de excelência e plural, os impactos sociais da produção científica e a
sua visibilidade são os eixos norteadores das atividades do IBP e todos esses
aspectos se fizeram presentes no Colóquio. Os debates foram propiciados
pelas quatro mesas-redondas, nas quais os pesquisadores apresentaram
as pesquisas por meio de dois vídeos sobre as experiências das redes de
pesquisa e pelas palestras de pesquisadores estrangeiros, da Colômbia e da
Itália. As instituições-membros do IBP (UFSC, UFAM, FIOCRUZ/AM e
UDESC) estavam representadas e cinco das suas sete redes participaram
com apresentações de 17 pesquisadores e uma plateia de aproximadamente
30 ou mais pessoas. Pesquisas realizadas no âmbito de rede “Saúde: práticas
locais, experiências e políticas públicas” predominavam.
Esta coletânea apresenta uma seleção das 17 apresentações do
Colóquio “Reflexões sobre Pesquisa Antropológica e Políticas Públicas
no INCT Brasil Plural” (IBP) e está organizada em duas partes.
A primeira parte trata de reflexões teóricas e analíticas dos
subprojetos no âmbito da rede Saúde: práticas locais, experiências e
políticas públicas. A professora do Departamento de Antropologia
Social da UFSC, Esther Jean Langdon, debate o campo da antropologia
da saúde no Brasil, com foco nas contribuições que seu grupo de pesquisa
tem propiciado no âmbito do desenvolvimento da saúde indígena bem
como aborda a contribuição do IBP para expansão da rede Saúde.
O professor do Departamento de Antropologia Social da UFSC,
Theophilos Rifiotis, apresenta reflexões teóricas e éticas que se fazem
presentes nas pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Estudos das
Violências (LEVIS) da UFSC. Esse grupo compartilha com a rede Saúde
a diretriz de contribuir com as políticas públicas. No âmbito do LEVIS,
as pesquisas têm problematizado os lugares que a Antropologia vem
assumindo nos debates públicos no campo da produção de justiça,
violência e direitos humanos, colocando em perspectiva a abordagem
dos direitos do sujeito, a judicialização e a construção do sujeito-vítima.
A professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da
UFSC, Márcia Grisotti, apresenta uma discussão sobre as bases teóricas e
Políticas públicas: reflexões antropológicas 12

conceituais das duas linhas de investigação desenvolvidas no âmbito do


IBP pelo grupo de pesquisa em Ecologia Humana e Sociologia da Saúde
(ECOS): 1) as políticas públicas de saúde em relação às doenças infecciosas
emergentes; 2) saúde e alimentação no contexto do discurso da promoção da
saúde, bem como uma descrição dos subprojetos de pesquisa (mestrandos
e doutorandos) vinculados à primeira linha de investigação.
Através de uma diálogo interdisciplinar, a professora do
Departamento de Ciências Farmacêuticas da UFSC, Eliane Diehl, aborda
as perspectivas teóricas e metodológicas sobre o uso dos medicamentos
partindo das contribuições dos campos disciplinares da antropologia,
saúde pública/saúde coletiva e ciências farmacêuticas, mostrando as
possíveis inter-relações entre a Antropologia e as Ciências da Saúde.
As descrições de seu grupo de pesquisa enfocam o campo da chamada
“antropologia dos medicamentos” e sua contribuição para refletir sobre o
conceito de atenção à saúde.
Encerramos esta parte do livro com o artigo sobre ética em
pesquisa elaborado por três pesquisadoras de IBP, Esther Jean Langdon,
Sônia W. Maluf, e Carmen Susana Tornquist. Apesar de o artigo constar
previamente em outra publicação (Ética nas pesquisas em ciências
sociais e humanas na saúde, organizada por Iara Coelho Zito Guerriero,
Maria Luisa Sandoval Schmidt, Fabio Zicker, São Paulo, Editora Hucitec,
2008), julgamos que a reflexão sobre ética em pesquisas qualitativas
complementa as discussões gerais sobre as pesquisas em políticas
públicas realizadas no IBP.
A segunda parte do livro está composta por estudos de casos.
Éverton Luís Pereira examina os direitos de pessoas com
deficiência numa pequena comunidade rural do sertão do Piauí
caracterizada por um alto número pessoas surdas. A pesquisa
produzida nessa comunidade dialoga com diferentes políticas
públicas que versam sobre surdez e deficiência e traz releituras locais
de políticas nacionais e internacionais.
Rose Mary Gerber apresenta sua pesquisa com pescadoras
embarcadas na pesca artesanal em Santa Catarina, sul do Brasil, com
reflexões sobre reconhecimento e (in)visibilidades como profissionais
da pesca quando se deparam com instituições públicas que, por
desconhecerem sua existência, negam seus direitos trabalhistas.
Alberto Groisman, professor do Departamento de Antropologia
Social, traz uma reflexão sobre o tema da saúde mental envolvendo
os participantes das religiões ayahuasqueiras e profissionais de saúde,
destacando a necessidade de uma clínica plural.
Apresentação 13

Continuando com o tema da saúde mental, a pós-doutoranda


Ana Paula Müller de Andrade realiza uma análise crítica da reforma
psiquiátrica brasileira do ponto de vista dos usuários dos serviços de
saúde mental enfocando nas experiências desses sujeitos em suas rotinas
ordinárias e extraordinárias.
Em outra pesquisa em saúde mental realizada pelos pesquisadores
da FIOCRUZ (AM), o médico-psiquiatra e pesquisador Maximiliano
Loiola Ponte de Souza e o sanitarista e mestre pela ENSP/FIOCRUZ Jesem
Douglas Yamall Orellana relatam os achados relacionados ao projeto
suicídio indígena no estado do Amazonas: uma abordagem interdisciplinar,
articulando perspectivas epidemiológicas e antropológicos.
A doutora Nádia Heusi Silveira, com formação em Nutrição e
mestrado e doutorado em Antropologia, explora as relações entre os
povos kaiowá-guarani e a sociedade envolvente em Mato Grosso do
Sul, destacando a situação de mal-estar vivida por esses grupos como
resultado de um projeto desenvolvimentista iniciado na primeira
metade século XX pelo governo federal.
Renata da Cruz Gonçalves, mestre em Nutrição, e Maurício
Soares Leite, professor do Departamento de Nutrição da UFSC, avaliam
a adequação do Programa Nacional de Alimentação Escolar numa
comunidade do povo xavánte.
Evelyn Schuler Zea, professora do Departamento de Antropologia
Social da UFSC, analisa os discursos públicos do presidente do Peru
sobre as populações indígenas e a relação desses discursos com a
percepção dos direitos dos indígenas na Amazônia.
Com base na Resolução Normativa Específica do Conselho
Nacional de Imigração, que institui o “visto humanitário”, o qual
regula a entrada de haitianos no país, Gláucia de Oliveira Assis e
Sidney Antônio da Silva discutem questões significativas sobre a
política migratória brasileira.
O último artigo do Colóquio trata das atividades desenvolvidas
na sede da UFAM, coordenadas pela professora de Antropologia Deise
Lucy Montardo. O Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da UFAM iniciou em 2008, contando com professores formados
no PPGAS/UFSC. Essa associação entre UFSC/UFAM forneceu as
bases para a criação do Instituto Brasil Plural em 2009. O IBP fez uma
contribuição altamente importante para a consolidação desse Programa,
apoiando o financiamento de pesquisadores estrangeiros, pesquisas dos
alunos e professores, organização de eventos e auxílio na participação
de indígenas em eventos nacionais e internacionais.
PARTE I

REFLEXÕES TEÓRICAS E ANALÍTICAS


DA REDE SAÚDE: PRÁTICAS LOCAIS,
EXPERIÊNCIAS E POLÍTICAS PÚBLICAS
Os diálogos da antropologia
com a saúde: contribuições para as
políticas públicas em saúde indígena1

Esther Jean Langdon

Quais são os diálogos possíveis entre a antropologia e a


saúde coletiva? Qual é a relevância das pesquisas antropológicas no
desenvolvimento e execução das políticas públicas? As antropologias
médicas, ou antropologias da doença e da saúde, têm se desenvolvido e
consolidado como subespecialidades desde a década de 1960. Porém, o
diálogo entre a medicina e a antropologia (e as ciências sociais em geral)
não tem sido fácil e nem sempre bem-sucedido, como apontam análises
recentes (HERZLICH, 2005; LOYOLA, 2008). A rede de pesquisa do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), Instituto Brasil
Plural (IBP) “Saúde: Práticas Locais, Experiências e Políticas Públicas”,
composta de pesquisadores com formação em Antropologia e em
outras disciplinas, como Nutrição, Farmácia, Sociologia, Psiquiatria,
Medicina e Enfermagem, vem contribuindo para a construção do
campo da antropologia da saúde. Uma das preocupações em comum é
a articulação entre os resultados de pesquisa sobre práticas de atenção
à saúde e políticas públicas em saúde. Essa proposta de uma rede de
pesquisa em saúde no Instituto originou-se das colaborações anteriores
de seus pesquisadores seniores, iniciadas mais que 20 anos atrás,

1
Agradeço a meus colegas de pesquisa, particularmente a Nádia Heusi Silveira e Isabel
Santana de Rose, por sua colaboração na construção do projeto “Práticas de autoatenção,
redes, itinerários e políticas públicas”, que serve como base deste artigo.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 16

visando a explorar os processos de saúde e doença de uma perspectiva


antropológica, com o fim de contribuir para a discussão teórico-analítica
e para as políticas em saúde.
Tomo esta oportunidade para esboçar o contexto histórico
do campo de antropologia da saúde no Brasil com o intuito de
ressaltar a contribuição dos pesquisadores dos núcleos de pesquisa da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Fundação Osvaldo
Cruz (FIOCRUZ), em Manaus, para a compreensão das condições de
saúde, dos serviços e da política direcionada aos povos indígenas. Um
destes, o Núcleo de Estudos sobre Saúde e Saberes Indígenas (NESSI/
UFSC), tem suas origens há três décadas e, desde então, suas atividades
se orientam para o desenvolvimento do campo de saúde indígena e
das políticas públicas. Desde o final da década de 1990 colaboramos
com pesquisadores da FIOCRUZ da Amazônia, compartilhando uma
abordagem antropológica, mas em diálogo com as ciências de saúde. O
enfoque desse grupo, composto por membros do NESSI e da FIOCRUZ,
não é exclusivamente limitado à questão indígena, incluindo também
outras populações. Cabe destacar que temos uma articulação estreita
com a problemática teórico-analítica da rede geral do IBP que examina
a relação entre saúde, sociedade e as políticas públicas. Além de expor
como esse grupo de pesquisadores, com enfoque na questão indígena,
alinha-se aos objetivos do IBP e ao tema desse Colóquio, pretendo
mostrar suas contribuições para o desenvolvimento da antropologia da
saúde no Brasil, as quais são ignoradas nas revisões sobre a antropologia
da saúde brasileira (DINIZ, 1997; LEIBING, 2007; QUEIROZ;
CANESQUI, 1986a, 1986b; SARTI, 2010).2
O apoio do Instituto Brasil Plural, desde 2008, vem permitindo
a expansão da rede de pesquisadores em saúde indígena para outras
instituições do Brasil e também para outros países da América Latina.
Essa expansão significa não só a ampliação da rede de pesquisadores,
mas também a ampliação de diálogos sobre os paradigmas adequados
para compreender as complexidades dos processos epidemiológicos,
das práticas de saúde, como ainda dos processos de doença e da atenção
à saúde na América Latina. Através de visitas e convênios com apoio
do IBP,3 estabelecemos contatos com pesquisadores da Colômbia e

2
Ou ignoram a existência desses esforços ou relegaram tais pesquisas ao estudo da
etnomedicina.
3
Alguns exemplos dos muitos eventos no âmbito internacional com apoio de IBP:
“Políticas comparadas em saúde indígena na América Latina”, na IX Reunião de
Os diálogos da antropologia com a saúde 17

do México, como também com pesquisadores do Chile, da Argentina


e da Venezuela. Buscamos a inovação em conceitos analíticos, que
sejam adequados para o contexto latino-americano, tais como
“etnoepidemiologia” (PORTELA GUARIN, 2008; GHIGGI JÚNIOR,
2013), “epidemiologia sociocultural” (HARO, 2010) e “práticas de
autoatenção” (MENÉNDEZ, 2003; OSÓRIO, 2010-2011). Visamos
construir um diálogo sobre a antropologia da saúde na América Latina
e suas contribuições para as políticas públicas, numa perspectiva
comparativa (CARDOSO; LANGDON, no prelo). A metodologia está
ancorada em pesquisa qualitativa (MENÉNDEZ, 2012) e no potencial
de seus resultados para a atenção à saúde e para o desenvolvimento de
políticas públicas em contextos de diversidade de saberes e culturas.
A rede vem privilegiando os paradigmas antropológicos para a
compreensão de modelos de atenção à saúde bem como a perspectiva
dos atores nos contextos locais. Não temos, até agora, examinado
as teorias que enfocam a saúde sob uma visão macro ou global, nem
as que analisam a relação entre fatores epidemiológicos e práticas
culturais de uma perspectiva biológica. Ambas as linhas de investigação
são relevantes e trazem importantes contribuições, porém não fazem
parte da abordagem de nossas pesquisas. Procuramos entender como
as pessoas se organizam e orientam sua atenção aos problemas de
saúde percebidos e, não necessariamente, às doenças definidas pela
biomedicina. Os estudos que propomos também visam examinar
práticas de atenção à saúde em contextos de “intermedicalidade”, nos
quais a articulação e apropriação de saberes plurais são marcadas por
negociações e relações de poder.
Fundamental na perspectiva antropológica é o deslocamento
do olhar sobre o corpo, delimitado nas ciências médicas, para olhar
a construção social e relacional do corpo e para as diversas formas
através das quais os sistemas terapêuticos são acionados na produção
de saberes sobre processos de saúde/doença. O enfoque no caráter
relacional, na interação e nas múltiplas vozes que integram o cenário
social vincula-se a uma compreensão das relações sociais envolvidas no

Antropologia do Mercosul (2011); Simpósio Especial “Políticas comparadas em saúde


indígena na América Latina”, na 28a Reunião Brasileira de Antropologia (2012); “El
sufriento y el bienestar: pacientes, sufrientes, terapeutas y la búsqueda de la felicidad
en las culturas Psi de Argentina, Brasil y Colombia”, na X Reunião de Antropologia do
Mercosul (2013); “Una mirada antropológica sobre la investigación cualitativa y políticas
públicas de salud: por una reflexión acerca de los usos de las metodologias cualitativas”, no
VI Congreso Iberoamericano de Investigación Cualitativa en Salud (2014).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 18

processo de saúde/doença como emergentes e dinâmicas. Ao mesmo


tempo, a ênfase na perspectiva do ator social e em sua capacidade de
agência aponta para o fato de que é a partir dos sujeitos e/ou grupos
sociais que são construídas as articulações entre os diferentes conceitos
e práticas ligados à saúde/doença.
A perspectiva da saúde como construção sociocultural, e não
biológica, permite uma análise crítica de três aspectos do processo
de saúde/doença que são relevantes para as políticas e os serviços
em saúde: práticas terapêuticas, especialistas em cura e a emergência
de novas formas de atenção; dinâmicas envolvidas nas práticas de
autoatenção em contextos etnográficos específicos; e relações entre a
atenção biomédica e as práticas locais. Procuramos, assim, identificar
as formas de atenção à saúde de diferentes grupos indígenas e não
indígenas a partir de pesquisa qualitativa em distintos contextos
etnográficos, contribuir para a compreensão da saúde/doença
como um processo amplo e contextual e fornecer subsídios para a
constituição de políticas públicas de saúde no Brasil.

História do campo no Brasil e na América Latina

No intuito de apresentar nossas atividades de pesquisa realizadas


nos últimos cinco anos com o apoio do IBP, parto do diálogo entre
antropólogos, principalmente da América Latina, que vêm desenvolvendo
modelos para contribuir com a interdisciplinaridade necessária às
políticas e ações em saúde. Esses antropólogos argumentam que os
processos de saúde e doença precisam ser entendidos através das noções
de práticas de autoatenção, intermedicalidade, autonomia, coletividade,
agência e práxis em oposição à perspectiva biomédica caracterizada
como universalista, biologista, individualista e a-histórica. Assim, não
desenvolvo aqui outras discussões relevantes sobre os processos de saúde
e doença originadas nos Estados Unidos e na França que encontram
reflexo no diálogo antropológico no Brasil (BECKER et al., 2009;
CSORDAS, 2008; RODRIGUES, 1975; DUARTE, 2003; ALVES, 1993,
2006; LANGDON, 2014b; LANGDON; FOLLÉR, 2012; LANGDON;
FOLLÉR; MALUF, 2012; LANGDON; WIIK, 2010; NATIONS, 2010).
Esses debates são importantes, mas já foram apresentados em outros
momentos. Julgo mais importante, neste texto, direcionar a discussão
para a relação “sul-sul” que caracteriza a rede de pesquisa que estamos
desenvolvendo com o apoio do IBP.
Os diálogos da antropologia com a saúde 19

Saúde como política

Durante a década de 1980 e, principalmente, nos anos 1990,


inicia-se nos Estados Unidos a “antropologia médica crítica” (BAER;
SINGER; JOHNSEN, 1986), visando analisar os processos de saúde
como consequências da globalização e de estruturas político-econômicas
(BRIGGS, 2005; FARMER, 2005; PARKER; CAMARGO JÚNIOR,
2000). É importante ressaltar que a visão crítica faz parte da perspectiva
“latina” décadas antes de a antropologia médica eurocêntrica incluir os
conceitos de poder e inequidade em seus modelos analíticos (BONFIL,
1966; SEPPILLI; OTEGUI, 2005). O desenvolvimento das ciências
sociais na América Latina está relacionado aos contextos políticos e
históricos particulares dessa região e com a posição do continente
nos processos de expansão do industrialismo, do capitalismo e dos
poderes mundiais. As ciências sociais latino-americanas emergiram e se
consolidaram no século XX preocupadas e engajadas com as realidades
sociais e econômicas de seus países.
Esses teóricos mencionados acima reconhecem que as condições
de saúde e as práticas dos atores são resultantes dos processos
hegemônicos e das forças de poder, não de práticas culturais estáticas ou
da falta de conhecimento. Essa perspectiva, inspirada pelos pensadores
como os da Escola de Frankfurt, Foucault, Gramsci e os mais atuais como
Bibeau (1997), Seppilli (1996), Fassin (2004) e Menéndez (1992) é a base
do enfoque metodológico para pesquisa e interpretação das políticas
em saúde. Seus interesses foram desenvolvidos junto à consolidação da
saúde coletiva, à redemocratização e à reforma sanitária na América
Latina e distanciam-se do papel de antropólogos trabalhando em
antropologia aplicada, definidos como profissionais tradutores da
cultura, sem questionar a hegemonia do modelo biomédico.
O período da transição para a democracia, no final dos anos 1970
até a promulgação da nova Constituição Federal do Brasil, em 1988,
marca uma fase importante para os estudos antropológicos sobre saúde.
Um dos projetos preliminares, mais relevantes para o desenvolvimento
da antropologia da saúde, abordou o tema dos hábitos alimentares
e da ideologia em diversos segmentos da população brasileira
(WOORTMANN, 1997). O foco desse projeto foi direcionado para
as representações culturais e a organização dos hábitos alimentares,
analisados principalmente a partir dos paradigmas do estruturalismo
francês e da antropologia simbólica, a fim de entender como as forças
políticas e econômicas influenciavam as estratégias de subsistência.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 20

Foram realizados estudos entre camponeses, comunidades de


pescadores e trabalhadores da agricultura e da indústria. Esses estudos
estabeleceram uma agenda de pesquisa em saúde, delineada a partir de
conceitos e paradigmas contemporâneos, com poucas referências aos
discursos que circulavam na antropologia médica dos Estados Unidos.
Até o final dos anos 1980, as pesquisas antropológicas foram
se multiplicando, estimuladas pela criação de políticas públicas e pelo
movimento brasileiro da reforma sanitária. Marcos Queiroz (1982) e
Maria Andréa Loyola (1984), pesquisadores em saúde com doutorados
realizados na Inglaterra e na França, respectivamente, voltaram ao Brasil
e foram incorporados a escolas de medicina. A afiliação de Queiroz
e Loyola aos programas de medicina social e saúde coletiva reflete
uma tendência interdisciplinar e uma preocupação com a política no
incipiente campo de estudos sobre saúde em antropologia.
Em suma, as atividades antropológicas foram se desenvolvendo em
interação com a saúde coletiva e sua crítica a respeito da epidemiologia
quantitativa e da valorização das ciências sociais. Ademais, houve uma
receptividade maior às vertentes marxistas. Numa revisão do campo das
pesquisas que estavam sendo realizadas, Queiroz e Canesqui, ambos
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), salientaram
a necessidade de se desenvolverem paradigmas capazes de analisar
a subordinação ao modelo capitalista de processos sociais locais
relacionados à saúde (QUEIROZ; CANESQUI, 1986a, 1986b). Junto
com o movimento da saúde coletiva, antropólogos preocupados com as
relações entre a biomedicina e as práticas locais de saúde procuraram
desenvolver paradigmas alternativos à abordagem biológica e quantitativa
dominante na saúde pública e em pesquisas epidemiológicas.
Após a reforma constitucional e a subsequente implantação de
programas de saúde orientados para populações específicas (mulher,
família, indígena etc.), temos visto nas últimas duas décadas, além do
aumento no financiamento para a pesquisa pelo Ministério da Saúde,
um crescimento significativo das pesquisas antropológicas voltadas
para o subsídio das políticas públicas em saúde e para contribuir
com a realização dos princípios de acesso universal, controle social e
humanização em serviços oferecidos a comunidades específicas.

Pesquisa em saúde indígena

Pesquisadores de nossa rede acompanham e participam no


desenvolvimento desse campo desde a década de 1980, realizando
Os diálogos da antropologia com a saúde 21

pesquisas e contribuindo para os paradigmas antropológicos sobre


saúde esboçados acima, com enfoque na saúde indígena e voltados
para o subsídio das políticas públicas. No caso do NESSI, sua criação se
origina da Primeira Conferência Nacional de Saúde Indígena, em 1986.
Essa Conferência, da qual participei, juntou antropólogos, médicos,
indigenistas e índios na defesa dos direitos dos povos indígenas à saúde
nos debates para a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS)
(CEBES, 1988) e estimulou, desde então, outras reuniões (BUCHILLET,
1991). Subsequentemente, a preocupação com a política de saúde
indígena diante das mudanças legislativas decorrentes da Constituição
Federal de 1988 estimulou a formação de uma rede interdisciplinar
que se propõe a diagnosticar a situação epidemiológica, identificar as
práticas de saúde e contribuir para os serviços de saúde e a política em
saúde indígena. As considerações voltadas para a atenção básica em
culturas diferenciadas, expressas no princípio de atenção diferenciada
contido no documento sobre a Política Nacional de Atenção à Saúde
dos Povos Indígenas (BRASIL, 2002), são resultados das pesquisas,
reuniões e outras atividades4 em que participamos durante a década de
1990 (COIMBRA JÚNIOR, 1991; COIMBRA JÚNIOR; SANTOS, 1996;
LANGDON, 1991, 1992, 1997, 1998a, 1998b; LANGDON; ROJAS,
1991; SANTOS; COIMBRA JÚNIOR, 1994). Com a implantação do
Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, em 1999, os membros da
atual rede de saúde do IBP tornaram-se figuras-chave nas atividades de
pesquisa e avaliação em saúde indígena (GARNELO; BRANDÃO, 2003;
GARNELO; MACEDO; BRANDÃO, 2003; GARNELO; LANGDON,
2005; GARNELO; SAMPAIO, 2005; GARNELO; PONTES, 2012;
LANGDON, 2004, 2005, 2013a; LANGDON; GARNELO, 2004).
A aprovação da criação do IBP, em 2008, reforçou as atividades e as
colaborações já em andamento nesse campo e seu apoio foi fundamental
para estender essa rede para outras instituições brasileiras e de outros
países da América Latina. Esses novos intercâmbios influenciaram o
direcionamento das bases teórico-analíticas em nossas pesquisas.
Com os pesquisadores estrangeiros estamos trocando
discussões metodológicas e teórico-analíticas sobre os paradigmas
propostos por Hugo Portela, Jesús Armando Haro e, particularmente,
Eduardo Menéndez. Várias de nossas pesquisas têm adotado os

4
Por exemplo, participação na Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (CISI),
Grupo de Trabalho de ABRASCO Saúde Indígena; Reuniões regionais, macrorregionais
e nacionais organizadas pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 22

conceitos de “modelos de atenção à saúde” e “práticas de autoatenção”


(MENÉNDEZ, 1992, 2009) para identificar não somente as atividades
de tipo biomédico, mas todos os recursos terapêuticos empregados
na busca de prevenção, tratamento, controle, alívio e/ou cura de
uma determinada enfermidade. O modelo médico hegemônico,
identificado com a biomedicina oficial, caracteriza-se por uma série
de pressupostos: biologicismo, a-historicidade, aculturalidade, eficácia
pragmática, orientação curativa e medicalização dos padeceres. Os
outros modelos correspondem às práticas terapêuticas populares e
“alternativas”, que englobam conhecimentos populares sobre saúde;
etnomedicinas de grupos indígenas; práticas terapêuticas new age;
grupos centrados na autoajuda; práticas oriundas de outras tradições
médicas acadêmicas, entre outros.
As práticas de autoatenção são definidas como “as representações
e práticas que a população utiliza no nível do sujeito e do grupo social
para diagnosticar, explicar, atender, controlar, aliviar, aguentar, curar,
solucionar ou prevenir os processos que afetam sua saúde em termos
reais ou imaginários, sem a intervenção direta, central e intencional de
curadores profissionais” (MENÉNDEZ, 2009, p. 48). Menéndez sublinha,
portanto, o caráter autônomo dessas práticas. Segundo ele, existem
dois níveis em que as práticas de autoatenção podem ser pensadas. O
primeiro, mais amplo, está ligado a todas as formas de autoatenção
necessárias para assegurar a reprodução biossocial dos sujeitos e grupos
no nível dos microgrupos, em especial do grupo doméstico. Assim, a
autoatenção nesse nível inclui não somente o cuidado e a prevenção
das enfermidades, mas também uso de recursos corporais e ambientais,
dietética, normas de higiene pessoal e coletiva, organização social,
rituais e assim por diante. Esse conceito remete às práticas de saúde
como parte da práxis e da cosmologia. O segundo nível, mais restrito,
refere-se principalmente às estratégias, científicas e não científicas, de
representação da doença e de práticas de cura e cuidados.
Menéndez (2012) defende que a pesquisa etnográfica centrada
nos sujeitos e grupos sociais revela a forma pela qual esses diferentes
modelos de atenção se articulam nos itinerários terapêuticos
individuais, nos quais muitas vezes aparecem combinadas práticas
terapêuticas e noções sobre saúde/doença que em outras instâncias
são definidas como antagônicas ou excludentes. Através dos atores
sociais, inseridos em redes de trocas de conhecimentos, constroem-
se influências mútuas entre diferentes modelos de atenção à saúde.
Dessa maneira, as práticas e concepções a respeito de saúde/doença
Os diálogos da antropologia com a saúde 23

são construídas e reconstruídas num processo contínuo, dando lugar


à emergência de novos modelos de atenção.
Resumindo, “autoatenção” aponta para o reconhecimento da
autonomia e da criatividade da coletividade, principalmente da família,
como o núcleo que articula os diferentes modelos de atenção ou cuidados
de saúde. Diferente do conceito médico de “autocuidado”, o conceito de
Menéndez desloca o foco da ação do profissional de saúde para os atores na
posição de coletividade. Enquanto o primeiro conceito trata da adequação
do paciente em incorporar os valores e instruções da biomedicina, o
segundo trata de sua autonomia na articulação dos recursos terapêuticos
acessíveis, independente de sua origem, e da criação de novas articulações.
Outro conceito que procura ressaltar os aspectos políticos,
econômicos e ideológicos envolvidos nas práticas e conhecimentos
relacionados à saúde e à doença se expressa no termo intermedicalidade.
Este procura dar conta de contextos caracterizados pela convivência de
sistemas médicos distintos e diversas estratégias de poder, originando
sistemas médicos “híbridos” (GREENE, 1998; FOLLÉR, 2004). A noção
de intermedicalidade analisa a realidade social como constituída por
negociações entre sujeitos politicamente ativos, destacando que nessas
negociações todos os sujeitos envolvidos são dotados de agência social.
Ambos os conceitos, intermedicalidade e práticas de autoatenção,
mostram que, apesar da sua contínua expansão, a biomedicina não
suplanta outras formas de conhecimento sobre saúde/doença. Pelo
contrário, ao mesmo tempo que a biomedicina se expande, as práticas
de saúde populares e alternativas também florescem nos países da
América Latina bem como em outras partes do mundo (MENÉNDEZ,
1994, 2003). Dessa maneira, as dinâmicas relacionadas à saúde/doença
são caracterizadas por uma negociação entre diferentes práticas e
formas de conhecimento, sendo comum nesse processo formarem-se
novas sínteses e hibridações.
Com base nessas premissas, os paradigmas atuais da antropologia
da saúde procuram dar conta das diversas formas de atenção que acionam
e aglutinam os mais variados sistemas terapêuticos em processos de
saúde/doença. Procura-se ressaltar aspectos como a interação e a
relacionalidade inerentes às práticas sociais. As práticas, conceitos
e ações dos indivíduos que compõem os grupos sociais articulam-
se na ordem sociocosmológica, mas também se encontram ligados à
reelaboração de diferentes aspectos do social. O enfoque no caráter
relacional e nas múltiplas vozes que integram o cenário social vincula-
se a uma compreensão das relações sociais ligadas ao processo de saúde/
Políticas públicas: reflexões antropológicas 24

doença como emergentes e dinâmicas. Ao mesmo tempo, a ênfase na


perspectiva do ator social e em sua capacidade de agência (ORTNER,
2007) aponta para o fato de que é a partir dos sujeitos e/ou grupos
sociais que são construídas as articulações entre os diferentes conceitos
e práticas relacionados ao processo de saúde/doença e, muitas vezes,
essas articulações se dão através de ações que recombinam elementos
das mais variadas esferas e produzem outros aspectos do social. Esses
paradigmas ressaltam, tanto no campo da saúde coletiva quanto para a
elaboração e execução das políticas públicas, a importância do coletivo
e do social, reconhecendo os saberes plurais, a autonomia dos atores e
fatores globais que estão presentes nas situações locais.

As atividades de pesquisa em saúde indígena no


âmbito do IBP

Podem-se identificar três eixos relacionados ao processo de saúde/


doença nas pesquisas da rede do IBP que pretendem contribuir para um
diálogo entre saúde e política. O primeiro eixo compreende as dinâmicas
envolvidas nas práticas de autoatenção empreendidas pelos sujeitos
em contextos etnográficos específicos, ressaltando as relações dessas
práticas com processos sociocosmológicos e vivenciais. Esse primeiro
eixo de nossas pesquisas referencia a noção de práticas de autoatenção no
sentido lato de Menéndez (2003), ou seja, são as práticas que contribuem
para a reprodução social e biológica da coletividade. O segundo eixo
enfatiza as práticas terapêuticas e os especialistas em cura, assim como a
emergência de novas formas de atenção à saúde. Por fim, o terceiro eixo
privilegia a articulação entre a biomedicina e as práticas locais de saúde,
especialmente entre as políticas de saúde e/ou inclusão empreendidas pelo
Estado e as formas através das quais populações específicas respondem
a essas mesmas políticas. É importante lembrar que estes eixos não são
mutualmente exclusivos e que certas problemáticas como relações de poder,
identidade e saúde, entre outras, são características transversais da relação
entre nossa perspectiva de saúde e as políticas públicas.

Práticas de autoatenção em contextos


etnográficos específicos

Este eixo parte dos paradigmas que analisam o processo de


saúde/doença (LANGDON, 2014b) como socialmente construído,
Os diálogos da antropologia com a saúde 25

contextual e interacional (MENÉNDEZ, 2003) bem como da premissa


de que os diferentes modelos médicos possuem especificidades
e estão em constante reconfiguração e interlocução (GREENE,
1998; FOLLÉR, 2004; MENÉNDEZ, 1994). Com concentração
especificamente em povos indígenas, as pesquisas ressaltam o caráter
dinâmico e processual das práticas ligadas ao cuidado da saúde, bem
como as ações que articulam diferentes conhecimentos e saberes,
com o intuito de descrever e analisar as particularidades, interações,
negociações e conflitos existentes nos processos sociais. Essas
pesquisas se caracterizam por sua natureza clássica de etnografia,
com longos períodos de campo, de convivência com o grupo, para
entender as preocupações e práticas de autoatenção no sentido
lato, as quais remetem à perspectiva maior de processos corporais,
sociocosmológicos e identitários. Duas apresentações desse colóquio
são resultado de pesquisas neste eixo, a de Everton Pereira (2013) sobre
os meios de comunicação dos surdos num povoado do Piauí e a de
Nádia Heusi Silveira (2011) sobre a relação entre práticas alimentares
e cosmologia xamânica dos Guarani na sua tese de doutorado.
Essas pesquisas, como outras deste eixo, exploram os saberes
“outros” revelados pela pesquisa qualitativa e reafirmam o objetivo do
IBP de reconhecer a pluralidade de conhecimentos deles e o direito a
eles (PORTELA GUARIN, 2008). Tania Solar (2013) analisa a percepção
que os Mapuche têm sobre a alta taxa de suicídios em sua comunidade
e como eles associam suas causas às perdas que vêm sofrendo em
termos de políticas governamentais, projetos de desenvolvimento e
atividades extrativistas. Essa pesquisa revela a clara consciência que os
Mapuche têm sobre as consequências negativas da exploração florestal
e da ausência do Estado na proteção dos direitos indígenas. Também
pesquisando os Mapuche no Chile, Barbara Bustos Barrera (2014)
explora as complexidades da relação entre a comunidade cosmográfica
e os rituais comunais num contexto igualmente marcado por conflitos
com o Estado e pela devastação ambiental de seus territórios ancestrais.
Os Guarani do Brasil têm sido objeto de várias pesquisas que
procuram compreender a relação das práticas de autoatenção no sentido
lato com a cosmologia. Isabel Santana de Rose (2010) morou numa aldeia
guarani no litoral de Santa Catarina e analisa as mudanças nas práticas
rituais e o fortalecimento da liderança local, num contexto de políticas
públicas que procuram responder à necessidade de atenção diferenciada
em saúde e educação. Essa comunidade adotou novas práticas rituais
através de relações com não indígenas, as quais contribuíram para
Políticas públicas: reflexões antropológicas 26

a revitalização das práticas tradicionais comunitárias e também se


constituíram como fontes econômicas e de prestígio alternativas. Dando
ênfase especial aos saberes tradicionais, Diogo de Oliveira (2011)
contribui com uma pesquisa sobre cosmologia e práticas ecológicas
nessa mesma aldeia. Em escala bem menor, no contexto de saberes
tradicionais, Acácio Oriques Júnior (2010) documenta as práticas de
caça de pequenos animais com armadilhas numa comunidade pequena
que vive na periferia de Florianópolis, um grupo guarani caracterizado
pelos vizinhos como bêbados e preguiçosos.
Finalmente, um casal de antropólogos tem feito uma contribuição
importante para a perspectiva deste eixo (SCOPEL, 2013; DIAS-SCOPEL,
2014; SCOPEL; DIAS-SCOPEL; WIIK, 2012). Resultado da pesquisa de
campo por quase um ano entre os Munduruku no Amazonas, a tese de
Daniel Scopel explora a relação entre a cosmografia da comunidade e
suas percepções sobre problemas de saúde e práticas de cura. Sua esposa,
Raquel Dias-Scopel, pesquisou as práticas de autoatenção durante a
gravidez entre as mulheres Munduruku e a articulação dessas práticas
com os serviços de saúde. A metodologia de observação participante
guiou essa investigação no sentido literal, dado que a pesquisadora
estava grávida durante sua estadia em campo. Esse fato estimulou um
diálogo simétrico e profundo com as mulheres Munduruku, tanto que a
tese ganhou o Prêmio ABA/GIZ como melhor tese de doutorado sobre
Gênero e Povos Indígenas na Amazônia em 2014.

Práticas terapêuticas e especialistas, emergência de


novas formas de atenção à saúde

O conjunto de pesquisas neste eixo compartilha as preocupações


com o anterior, mas com atenção particular para as dinâmicas nos en-
contros de saberes resultantes em novas configurações de práticas e redes
sociais. Procura ressaltar a criatividade das formas consideradas tradicio-
nais e a emergência de novas formas de atenção. As pesquisas deste eixo
são conduzidas em contextos urbanos, no âmbito de serviços de saúde, e
menos entre povos indígenas em contextos rurais. A problemática espe-
cífica desafia as caracterizações generalizantes dos serviços biomédicos,
argumentando que estes também devem ser objeto de pesquisa etnográ-
fica em situações locais. As pesquisas examinam, por um lado, como a
atenção básica prestada pelos serviços de saúde se articula aos saberes
locais e, por outro, como se dá a apropriação, por parte dos membros das
comunidades, dos saberes médicos em situações de intermedicalidade.
Os diálogos da antropologia com a saúde 27

As pesquisas de Pedro Musalem e Ari Ghiggi Júnior estão


entre as poucas, neste eixo, realizadas com povos indígenas. A
pesquisa de doutorado de Musalem, ainda em andamento, trata
das práticas xamânicas associadas a políticas de identidade entre os
Siona da Colômbia. Esse projeto visa contribuir para a compreensão
das transformações ocorridas nas práticas xamânicas desse grupo
(LANGDON, 2012, 2014a) e como estes fundamentam os esforços
atuais de suas afirmações de identidade indígena e de revitalização da
cultura estimulados pelas políticas públicas na Colômbia. Compartilha
com os Guarani, citados antes, a característica de identificar a
medicina tradicional como capital simbólico que os atores indígenas
expressam nas afirmações identitárias perante a sociedade envolvente
(LANGDON, 2013b; LANGDON; ROSE, 2012a, 2012b, 2013, 2014;
ROSE; LANGDON, 2010, 2013).
A pesquisa de Ari Ghiggi Júnior entre os Kaingang de Santa
Catarina segue uma longa tradição do NESSI de realizar pesquisas com
esse grupo para analisar implicações na política de saúde indígena,
assunto que exploro mais adiante, no terceiro eixo. No caso da pesquisa
de doutorado de Ghiggi Júnior, o objetivo principal foi identificar os
especialistas terapêuticos kaingang e suas relações com não indígenas fora
da terra indígena onde vivem. Essa problemática, de explorar as relações
sociais e práticas de autoatenção que não se limitam ao espaço comunitário
nem a um grupo específico, surge como resultado de outras pesquisas
em saúde realizadas por ele e outros membros do Núcleo na UFSC. Nos
anos 1990, Conceição de Oliveira (1997) acompanhou a Igreja da Saúde
na TI Xapecó e examina sua emergência como “tradição” pelos Kaingang,
apesar da presença marcante de práticas da medicina e do catolicismo
popular. Já com apoio do IBP, a pesquisa de Philippe Hanna de Oliveira
(2009) também registra relações de intercâmbio entre os Kaingang e os
não indígenas em relação a práticas alimentares e atividades festivas. Ari
Ghiggi Júnior, que realizou pesquisas prévias com o grupo, observou
o mesmo entre os evangélicos na TI Xapecó. As práticas de cura dos
especialistas terapêuticos kaingang, bem como suas práticas alimentares e
religiosas, demostram uma forte articulação com tradições não indígenas
e também com as redes sociais além das fronteiras étnicas.
Numa pesquisa semelhante, mas não entre indígenas, o mestrando
Harold Wilson González Jiménez estudou a diversidade de especialistas
populares procurados, bem como as práticas de autoatenção, entre
residentes de uma pequena cidade na Colômbia (JIMÉNEZ, 2014).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 28

Este eixo engloba várias pesquisas que vêm indagando sobre a


emergência de novos modelos de atenção à saúde no âmbito urbano e
não indígena. A dissertação de Aline Ferreira Oliveira (2012) trata de
uma pesquisa multissituada sobre uma rede religiosa alternativa não
indígena que congrega indígenas para a realização de seus rituais. Ela
examina a emergência de rituais híbridos que usam substâncias sagradas
que são resultados dessas articulações. Waleska de Araújo Aureliano
(2011) explora as práticas emergentes numa instituição espírita dedicada
ao tratamento de pessoas diagnosticadas com câncer. Além de realizar
cirurgias espirituais de modo mimético às hospitalares, os tratamentos
incorporam também algumas representações da Nova Era, incluindo
altares e símbolos referenciando o culto neoincaico ao sol. Diogo Teixeira
(2013) pesquisou a história da naturologia, um campo médico fundado
no final do último século. A disciplina iniciou com a intenção de formar
pessoas em práticas da medicina natural ou holística, por parte de um
grupo pequeno de profissionais, e hoje a naturologia é legitimada pelo
Ministério da Educação (MEC), que aprovou cursos em universidades, e
pelo SUS, que incorporou seus praticantes nos postos de saúde.
A dinâmica das práticas terapêuticas incorporadas aos serviços
prestados no SUS é foco de duas pesquisas em andamento, ambas em
Florianópolis. A mestranda Gabriela Prado Siqueira está realizando uma
investigação sobre a incorporação de práticas fisioterapêuticas em postos
de saúde e Helio Barbin Júnior está reconstruindo a história da introdução
de práticas complementares nos serviços do SUS. Como médico, Barbin
Júnior participou desse processo que pretende documentar na sua
pesquisa de Doutorado em Antropologia. Esses estudos sobre novas
práticas no sistema oficial de saúde fazem uma contribuição importante
no sentido de demonstrar que todas as práticas terapêuticas, inclusive as
biomédicas, são situadas entre histórias e locais específicos.

Relações entre a política, os processos estruturais


e a saúde

Neste eixo, os objetivos da pesquisa e suas implicações para as


políticas e serviços de saúde são mais evidentes. Todas as pesquisas
descritas acima são relevantes para avaliar a operacionalização dos
princípios de humanização e atenção diferenciada nos serviços e em
relação aos problemas específicos de saúde. Porém, este último eixo, que
busca examinar a articulação das práticas locais no contexto da atenção a
saúde, tem uma abordagem mais direcionada para as políticas públicas.
Os diálogos da antropologia com a saúde 29

A relevância dessas pesquisas é mais reconhecida pelos profissionais e


gestores de serviços em saúde do que aquelas que tratam das práticas
de autoatenção no sentido lato (por exemplo, as que exploram saberes
cosmológicos ou sobre o corpo), pois nesses casos não existem analogias
óbvias com o saber de biomedicina.
Podemos citar dentro deste eixo as pesquisas que indagam
sobre práticas e percepções de pessoas portadores de doenças-alvo
de programas de saúde. Sandra Carolina Portela Garcia (2010) e
Fabiane Francioni (2010) pesquisaram as práticas de autoatenção de
pessoas com diabetes e hipertensão em comunidades indígenas e não
indígenas, respectivamente. Ambas demostram como a percepção dos
portadores dessas doenças difere da dos profissionais de saúde e como
os doentes se apropriam de programas dirigidos a eles sem perder
sua autonomia. Maurício Leite, com formação em nutrição e saúde
pública, pesquisa a nutrição indígena com um olhar epidemiológico e
antropológico (ABRASCO, 2009; LEITE, 2012). Sua aluna no curso de
nutrição da UFSC, Renata da Cruz Gonçalves, pesquisou as práticas
de nutrição entre os Xavánte e as limitações do Programa Nacional
de Alimentação Escolar (PNAE) para a comunidade estudada. Os
resultados da pesquisa são apresentados nesta coletânea. Eliana Diehl
e seu grupo vêm pesquisando a distribuição e o uso de medicamentos
em terras indígenas (veja também seu trabalho nesta coletânea). Entre
outros resultados, essas pesquisas ressaltam problemas associados às
relações assimétricas e de comunicabilidade entre os profissionais
de saúde e a população-alvo de suas ações, demonstrando a
heterogeneidade em perspectivas e poderes.
Várias pesquisas examinam os problemas crônicos, identificados
como críticos e urgentes na saúde indígena, tais como “alcoolismo” e
saúde mental. Seguindo a abordagem geral da rede Saúde do IBP, usam-
se paradigmas processuais, tais como “alcoolização” (MENÉNDEZ,
1982; SOUZA, 2013; LANGDON, nesta coletânea), para analisar as
situações a partir de uma perspectiva coletiva. Esses problemas são vistos
como resultados de contextos históricos e da relação do grupo com a
sociedade envolvente (GHIGGI JÚNIOR, 2010; GHIGGI JÚNIOR;
LANGDON, 2013, 2014; SILVA; LANGDON; RIBAS, 2013, 2014;
SOLAR, 2013; SOUZA, 2013; SOUZA; DESLANDES; GARNELO, 2010;
SOUZA; ORELLANO, 2012a, 2012b; SILVEIRA, nesta coletânea); e não
como déficit situado em um corpo biológico individual. Os problemas
de saúde mental em populações indígenas estão entre as questões mais
complexas para uma compreensão que gere possíveis soluções. O grupo
Políticas públicas: reflexões antropológicas 30

vem argumentando que as soluções de tais problemas para os povos


indígenas não se encontram no modelo biomédico ou no Diagnostic
and Statistical Manual of Mental Disorders (APA, 1987).
Entre as pesquisas que pretendem uma relevância mais direta para
políticas públicas em saúde indígena se encontram aquelas com enfoque
no princípio de atenção diferenciada; em questões específicas dos
serviços de saúde, tais como a capacitação dos profissionais e o papel do
agente indígena de saúde e demais profissionais de saúde (DIEHL et al.,
2012; LANGDON et al., 2014; DIAS-SCOPEL; LANGDON; SCOPEL,
2008); na participação indígena em conselhos de saúde e na execução
da assistência a saúde (DIEHL; LANGDON, 2015); e, no programa
nacional de medicina tradicional do Projeto VIGISUS II (FERREIRA,
2010, 2013a; 2013b).

Considerações finais

A rede de pesquisa do IBP “Saúde: práticas locais, experiências e


políticas públicas” vem realizando investigações com enfoques no local,
no método etnográfico e na interação. Seus resultados revelam fatores
mais amplos, de ordem política, econômica e ideológica (GREENE,
1998; FOLLÉR, 2004; FRANKENBERG, 1980), a influenciar a saúde e
as escolhas de diferentes populações, sejam esses fatores as hierarquias
presentes nos processos de comunicabilidade entre o profissional de
saúde e a comunidade assistida, sejam as condicionantes inerentes à
posição socioeconômica do grupo estudado. As interações e práticas
locais refletem os contextos mais globais, revelando as relações de poder
nas questões que dizem respeito à vida e à morte ou que ameaçam o
tecido social. As análises etnográficas ressaltam as intersecções e
articulações entre os fatores de ordem macroestrutural e as formas
que saúde/doença são pensadas localmente. Dessa maneira, as análises
produzidas no âmbito da rede e sua abordagem antropológica exploram
as especificidades dos sistemas médicos particulares como processos
regionais, nacionais e globais que transcendem o caráter local.
Estas partem e contribuem para o desenvolvimento de paradigmas
antropológicos e, ainda mais, para as políticas públicas e coletividades
que são alvo dos serviços de saúde.
Os diálogos da antropologia com a saúde 31

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Entre teoria, estética e moral:
repensando os lugares
da Antropologia na agenda social
da produção de justiça1

Theophilos Rifiotis

Introdução

A proposta do presente texto é compartilhar um conjunto de


inquietações teóricas e éticas que reiteradamente se fazem presentes
nas pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Estudos das Violências
(LEVIS) da Universidade Federal de Santa Catarina e cuja amplitude
e pertinência gostaríamos de colocar em debate. Trata-se de um
exercício preliminar de sistematização de questões relativas aos lugares
da Antropologia na agenda social da produção de justiça no Brasil.
Procuro refletir sobre a Antropologia e seus atravessamentos com a
agenda social (movimentos sociais e as políticas públicas) no campo
da violência, justiça e Direitos Humanos. Concretamente, apresento
uma sistematização dos atravessamentos que me permitiram colocar

1
Trabalho publicado na revista Antropologia em Primeira Mão, UFSC, n. 141,
2014. Trata-se de um texto apresentado numa primeira versão no Grupo de Trabalho
“Muertes, violencias y territorio: sentidos y escenarios en América Latina”, na X Reunión
de Antropología del Mercosur (Córdoba, 2013), tendo sido posteriormente discutido
no Colóquio “Reflexões sobre Pesquisa Antropológica e Políticas Públicas” no INCT/
CNPq – Brasil Plural, Florianópolis, 2013.
Entre teoria, estética e moral 41

em perspectiva os fundamentos que têm orientado nossos trabalhos


através da problematização de três eixos analíticos inter-relacionados
e complementares:
1) produtividade e o caráter moral das violências;
2) judicialização das relações sociais e o sujeito de direito;
3) construção do sujeito-vítima. 
Para tanto, procuro refletir sobre os lugares da Antropologia na
agenda social a partir da minha trajetória de pesquisa no campo da
“violência”. Afinal, como na clássica narrativa de A carta roubada, de
Edgar Allan Poe, em que o perspicaz detetive recupera o objeto roubado
considerando que o ladrão, em vez de escondê-lo em lugares improváveis
e de difícil acesso, pode deixá-lo em lugar demasiadamente evidente e,
assim, torná-lo invisível para o observador, os lugares da Antropologia
nos estudos da “violência” constituem a parte mais evidente e menos
visível da nossa ligação com a agenda social.
Os lugares a que estamos nos referindo envolvem questões
complexas com implicações ética e políticas que exigem um diálogo
franco e aberto internamente na disciplina e uma postura efetivamente
dialógica e cooperativa com os nossos interlocutores de pesquisa. Por
isso, considero da maior importância para o desenvolvimento dos
estudos das violências, justiça e direitos humanos, a reflexão sobre
a produção antropológica com um espaço para a “observação dos
observadores observando” (RABINOW, 2003). Em outros termos, a
discussão sobre os lugares da Antropologia é aqui entendida como
uma condição essencial para o autoconhecimento e reflexividade do
próprio campo que pode/deve orientar o fazer antropológico – o que
me parece apontar uma saída importante para a solução dos impasses
entre esteticização e indignação, a que as pesquisas no nosso campo
parecem condenadas. Assim, cabe colocar em debate, desde logo e
permanentemente, a dupla injunção da Antropologia: monitorar o
respeito a direitos e investigar suas práticas e fundamentos, como bem
observou Messer (1993).
A complexidade das temáticas da violência, justiça e Direitos
Humanos não reside apenas na diversidade de eventos e fenômenos
(mortes violentas, drogas, crime organizado, massacres, violência
de gênero, lutas por reconhecimento, acesso à justiça, luta contra a
impunidade, entre tantos outros), mas nos atravessamentos políticos e
éticos da pesquisa, nos lugares que ocupamos e desejamos ocupar no
cenário político. Tal complexidade se espelha na condição problemática
Políticas públicas: reflexões antropológicas 42

da antropologia engajada e nos modos como atuamos na qualidade


de experts (laudos e perícias), nas “assessorias”, na “antropologia
humanitária” etc., mas também nas atividades em comitês de ética,
participação em órgãos governamentais e entidades dos movimentos
sociais. Cada atuação tem suas próprias especificidades e, por isso,
está longe de o presente texto propor algo como um novo lugar para a
Antropologia; o que objetivamos aqui é desenhar lugares que, a partir
de nossas experiências de pesquisa, entendemos que ocupamos, nem
sempre de modo consciente e planejado, na construção da narrativa
do tempo presente. Ou seja, nos perguntamos sobre quais narrativas
reforçamos, que posicionamentos assumimos e qual o lugar de fala
reivindicamos? Será possível sair do script da indignação? Como
criar uma narrativa não moralizante nem contratualista que apenas
venha reforçar a volúpia punitiva atualmente dominante no campo da
produção da justiça?
Para conferir concretude aos argumentos avançados até aqui,
tomemos como ponto de partida os Direitos Humanos: qual narrativa
atravessa e estrutura nossos trabalhos no campo da violência, justiça
e Direitos Humanos sobre o Brasil hodierno? Podemos afirmar
categoricamente que o cenário político-social brasileiro nas duas
últimas décadas está marcado por uma significativa ampliação do
sistema protetivo de direitos? Sabendo que seria sem sentido propor
uma resposta geral para essas questões, exponho aqui uma visão
baseada nas atividades que tenho desenvolvido no campo dos Direitos
Humanos no últimos anos.2 Atualmente, é evidente que há mais
leis e instituições voltadas para a promoção e garantia dos direitos
no Brasil. Há mais debates e entidades organizadas atuantes. O país
é signatário dos mais importantes pactos, acordos e convenções
internacionais. Temos uma legislação reconhecida internacionalmente
como “avançada”, como é tipicamente o caso do Estatuto da Criança
e Adolescente. O Estatuto do Idoso também é um marco importante.
A Lei no 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, também
desperta a atenção dos pesquisadores internacionais pelo modo

2
Trata-se de um conjunto de atividades desenvolvidas em projetos de pesquisas e de
extensão, além de orientações acadêmicas, participação no Comitê de Ética da ABA,
na Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (ANDHEP),
coordenação do projeto Educação e Direitos Humanos em Santa Catarina – SECAD/MEC-
SEDH, fundação do Comitê de Educação e Direitos Humanos de Santa Catarina, atuação no
desenvolvimento de diretrizes para a Educação em Direitos Humanos para o MEC.
Entre teoria, estética e moral 43

sistêmico como aborda a questão da “violência de gênero”.3 Nesse


quadro deve-se destacar também o intenso trabalho organizativo
e propositivo das ONGs. O quadro da narrativa dos “avanços” se
consolida institucionalmente com a criação da Secretaria Especial
de Direitos Humanos da Presidência da República, em 1997, e seus
Programas Nacionais de Direitos Humanos e de Educação em Direitos
Humanos, replicados nos municípios e estados. Também se consolida
com as conferências municipais, estaduais e nacionais de segurança,
dos direitos das pessoas portadoras de deficiência, de conselhos
municipais, estaduais e nacionais de direitos da pessoa idosa, da
pessoa portadora de deficiência, da mulher, da criança e adolescente.
No seu conjunto, os elementos destacados acima compõem
um cenário marcado por lutas sociais e pela “democratização
institucional” que fizeram convergir a multivocalidade da expertise e
da militância política, gerando textos normativos e criando instituições
a eles ligadas que apontam para o caráter central que ocupam as
lutas por reconhecimento, especialmente, por direitos na sociedade
contemporânea. Há “avanços” por todos os lados, e os Direitos
Humanos se tornaram ícone das lutas sociais. A defesa e a promoção
dos Direitos Humanos hoje estão presentes nos textos normativos e
nas instituições. Os Direitos Humanos no Brasil vêm se tornando o fio
com o qual se tece e se recompõe o próprio “tecido social”, impondo-
se de per si como elemento central da agenda política. Os Direitos
Humanos dão fundamento, coerência e legitimidade aos movimentos
sociais e às próprias políticas públicas.
No entanto, não há como falar em “avanços” sem fazer menção
ao fato de que ao lado deles persistem graves violações dos Direitos
Humanos. Para cada elemento virtuoso há um contraponto na prática
cotidiana. O sistema prisional, por exemplo, é certamente o mais
visibilizado. De um modo mais amplo, as desigualdades sociais e o
desrespeito aos próprios direitos também são partes desse contraponto,
assim como as chamadas “dificuldades” e “impasses” na promoção da
equidade social no Brasil.
Não me proponho a relatar problemas específicos; cada qual
saberá melhor fazê-lo na sua área de atuação. Interessa-me, sim,
elucidar um contexto geral para tais “dificuldades” e “impasses”. De fato,
no Brasil, no campo dos Direitos Humanos, são recorrentes as queixas
sobre “falta de meios” e de recursos para implementar políticas públicas,

Cf. BRASIL, 2006.


3
Políticas públicas: reflexões antropológicas 44

a “falta de vontade política”, ou mesmo o simples cumprimento de


determinações legais. Vivemos num hiato, num cenário entre “avanços”
e “violações”, no qual toda conquista desvela sempre a outra face. É o que
poderia chamar o “paradoxo brasileiro dos Direitos Humanos”; porém,
tal expressão parece simplificar questões importantes e aproxima-
se de um discurso naturalizado, uma espécie de retórica recorrente
que se impõe automaticamente como “avaliação” do momento social
brasileiro. Como venho procurando mostrar nos meus trabalhos, o
“paradoxo” tornou-se uma espécie de categoria “autoexplicativa” que
coloca à margem questões centrais para o debate político. Para começar,
lembro que “problemas”, “paradoxos”, “dilemas”, “contradições” para os
quais convergem as explicações do “paradoxo brasileiro” pressupõem,
implícita ou explicitamente, a sua superação, uma solução, em uma
palavra uma síntese que permitiria superar o quadro atual. Creio
que a dialética envolvida aqui não nos permite pensar numa síntese.
Na verdade, proponho tratar tais questões como aporias, o que nos
permitirá colocar em suspensão conceitos-chave como “violência” e
“justiça” sem nos tornamos reféns de uma homogeneidade pressuposta,
diante da pluralidade e das disputas em jogo pela definição de modos
de conceber e vivenciar direitos e justiça, além de nos possibilitar
sair do “impasse” entre esteticização ou engajamento como apontado
anteriormente (RIFIOTIS, 2008b, 2011).
No campo dos Direitos Humanos, pelo menos desde 1998,
quando tivemos a primeira Comissão de Direitos Humanos da
Associação Brasileira de Antropologia, a Antropologia vem colocando
uma série importante de questões, “problemas”, “contradições”,
“dilemas”, “paradoxos” relativos aos Direitos Humanos e ao acesso à
justiça.4 Pode-se considerar que os esforços realizados até o presente
momento consolidaram o lugar da Antropologia nos debates sobre
Direitos Humanos; falta-nos, talvez, dar um passo mais crítico.
Afinal, consideradas em conjunto, as “questões” expostas aqui
configuram tipicamente aporias, sobretudo nos debates recorrentes
entre universalismo e relativismo, costume e lei, volúpia punitiva/
prisão, cosmopolitismo, institucionalização dos movimentos sociais, a

4
Refiro-me aos cinco volumes da coleção intitulada “Antropologia e Direitos
Humanos” e, mais recentemente, ao volume “Antropologia e Direito. Temas
Antropológicos para Estudos Jurídicos” que demonstram o compromisso da
Antropologia com o campo dos Direitos Humanos.
Entre teoria, estética e moral 45

judicialização das relações sociais.5 Mais radicalmente, não seria hora de


enfrentarmos os debates sobre a condição de imperativo categórico que
os Direitos Humanos vêm ocupando na agenda social brasileira?
Pelas razões apontadas acima, considero importante revermos os
termos nos quais os debates sobre violência, justiça e Direitos Humanos
têm sido colocados e quais suas implicações políticas para uma possível
mudança dos debates. Procuro, a seguir, trabalhar três eixos articulados
da questão envolvendo moralidade, judicialização e vitimização.

Violência, violências e moralidade

Nos últimos anos temos procurado consolidar uma reflexão


sobre o campo das violências fundamentalmente em torno da ideia da
construção social da “violência”, ou seja, a sua leitura como objeto e como
problema, a identificação de uma gramática moral que lhe dá suporte
e que está baseada na negatividade, homogeneização e exterioridade
(RIFIOTIS, 1997, 199, 2008a, 2008b, RIFIOTIS, CASTELNUOVO,
2011). Lembremos que:

“Violência” é uma palavra singular. Seu uso recorrente a tornou de


tal modo familiar que parece desnecessário defini-la. Ela foi trans-
formada numa espécie de significante vazio, um artefato sempre
disponível para acolher novos significados e situações. O seu cam-
po semântico tem uma regra de formação: a constante expansão.
A aparente unidade deste termo resulta de uma generalização im-
plícita dos diversos fenômenos que ela designa sempre de modo
homogeneizador e negativo. (RIFIOTIS, 1999, p. 28).

Colocar em suspensão o termo “violência” tem nos permitido


refletir sobre o campo conceitual e sua matriz moral que estão implícitos
na negatividade que lhes é aplicada também como uma espécie de
dever-ser, de princípio geral de conduta, obliterando-se, assim, a própria
determinação simbólica do significante e a metáfora contratualista que
a fundamenta. Os nossos estudos sobre “violência intrafamiliar” e de
gênero têm sido importantes para consolidar a ideia de que mesmo uma
tipologia que procura sublinhar o caráter polifônico da “violência” é

5
Trata-se de problemas trabalhados em outra publicação que aqui lembro
apenas para sublinhar a necessidade de sairmos do debate dos termos, mudando
os termos do debate (RIFIOTIS, 2008b, 2011).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 46

refém da mesma gramática e que os efeitos produzidos pela adjetivação


engendram uma espécie da substantivação da “violência”:

A primeira consequência da reflexão crítica sobre o campo da


“violência”, aplicada às discussões sobre gênero e família, seria
então nos perguntarmos sobre os limites e efeitos produzidos
por noções recorrentes nos nossos trabalhos em “violência
intrafamiliar” e “violência conjugal” ou “violência de gênero”.
Pode-se considerar, por exemplo, que a expressão “violência
conjugal” tem na sua composição uma categoria descritivo-
qualificadora; “violência”, é um substantivo que tem uma função
qualificadora e que passa nessa expressão por uma operação
linguística deixando de ser uma qualificação, para tornar-se – no
mesmo movimento – uma realidade substantiva. Tal operação
discursiva instaura para o pensamento uma nova realidade que
passa a ser descrita e qualificada como “violência conjugal”. Tal
processo pode ser estendido a um vasto conjunto de expressões
em curso que operam justamente a substantivação da “violência”.
(RIFIOTIS, 2008a, p. 226-227).

Nesse quadro, é fundamental ter-se em conta que há uma


significativa expansão do campo semântico das violências e uma
crescente especialização dos saberes socialmente reconhecidos como
“competentes”, o que tem implicações na noção de justiça e na atuação
dos tribunais. Em trabalhos anteriores, procuramos delimitar o quadro
teórico dos estudos sobre as violências, sublinhando particularmente
as dificuldades e os dilemas éticos enfrentados pelos pesquisadores
para não reduzir o estudo a um discurso exclusivamente denunciatório
(RIFIOTIS, 1997, 1999, 2008a, 2008b). Procuramos nesses trabalhos
sistematizar as matrizes teóricas básicas para um discurso analítico sobre
as violências, tomando como referência as contribuições teóricas de
Georg Simmel, Georges Sorel, Max Gluckman, Pierre Clastres, Hannah
Arendt, Michel Maffesoli, René Girard, Walter Benjamin, Jacques
Derrida, Jack Katz, John Keane e autores brasileiros como Alba Zaluar,
Luiz Eduardo Soares, Sérgio Adorno, Roberto DaMatta, entre outros,
sempre procurando compreender a contribuição de cada trabalho na
composição de referenciais teóricos para o estudo das violências.
De um ponto de vista geral, acreditamos que é possível afirmar
que o campo de estudos das violências, pela sua visibilidade social, por
seus atravessamentos políticos e éticos, incorporando e dialogando
permanentemente com a agenda social, tornou-se um território estra-
Entre teoria, estética e moral 47

tégico para os discursos da contemporaneidade (KEANE, 2000). Hoje,


os estudos das violências ocupam um lugar central na definição da
nossa visão de mundo; eles são como instrumentos  analíticos com
os quais lutamos pela posse do tempo presente,  pela compreensão
das experiências contemporâneas, com seus mundos marginais, sua
dimensão episódica e fragmentária, num tempo marcado pela diferença
e contingência, pela falta de finalidade das formações sociais. 
As violências, sob as suas múltiplas formas, são um domínio da
experiência social que permeia as brechas da crise da modernidade e a
busca de alternativas interpretativas para as sociedades contemporâneas
e permitem colocar em perspectiva os projetos racionalizantes e
contratualistas modernos, no sentido que tenho defendido quando afirmo
que a “violência” é ícone da crise da modernidade (RIFIOTIS, 1999).
Nas duas últimas décadas, os estudos e as intervenções sociais
no âmbito da “violência” têm-se multiplicado enormemente e têm
acumulado valiosas informações e experiências no campo das políticas
chamadas de inclusão, judiciárias e policiais. No entanto, os impasses
teóricos persistem e vêm se acumulando sem que tenhamos avançado
na discussão do “paradigma da violência” (WIEVIORKA, 1997, 1999,
2005). O mesmo observamos nos problemas encontrados pelos agentes
sociais responsáveis pela promoção da cidadania e da segurança pública
e justiça, os quais continuam atuando marcadamente na linha da
judicialização, quando não da simples repressão. Os impasses sociais
nesse campo têm levado a um crescente descrédito na capacidade de
intervenção social.
Nossa experiência no campo da “violência” e das práticas
policiais e jurídicas têm apontado para a necessidade de uma revisão
teórica desse campo de estudo. Entendemos que “violência” é uma
espécie de problema social herdado pelas Ciências Sociais e para o qual
não temos ainda um quadro teórico para a sua análise que ultrapasse
os discursos do próprio social, ou seja, a indignação, a exterioridade, a
homogeneização e a negatividade do complexo e heterogêneo “conjunto”
de fenômenos abrangidos pela noção. Neste artigo enfatizo a necessidade
de repensarmos as matrizes de socialidade6 nos seus modelos atuais e
procurarmos tirar as consequências teóricas que nos permitam superar
os limites atualmente colocados e discutir novas direções de intervenção
social. Acredito que possamos afirmar que a análise das pesquisas no

6
Evito aqui o termo “sociabilidade” e sua conotação que chamaria de contratualista,
seguindo a crítica feita por Strathern (1999).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 48

campo da “violência” tem apontado para a necessidade de uma revisão


teórica desse campo de estudo, pois conceitualmente, ainda há uma
forte marca da sua origem como “problema social em contraposição à
falta de um quadro conceitual que ultrapasse os discursos do próprio
social, ou seja, a indignação, a exterioridade, a homogeneização e a
negatividade do complexo “conjunto” de fenômenos abrangidos no
termo “violência” (RIFIOTIS, 1997, 1999, 2008b). Defendo ainda
que é necessário aprofundarmos o debate teórico sobre a “violência”
e Direitos Humanos, articulando-o com a dimensão moral de nossa
implicação com os nossos interlocutores e a dimensão ética da pesquisa.
Entendemos que “a violência” encontra-se atualmente numa “crise de
paradigma”, sobretudo no que tange a noções como “exclusão”, “pobreza”,
“periferia”, “grupos jovens”, ou mesmo “masculinidade” e o “ethos
guerreiro” etc., quando tomadas como categorias autoexplicativas.
Trata-se de modelos explicativos cujos limites já foram atingidos e que
não têm permitido uma leitura renovada das formas de socialidade
contemporânea e, portanto, encontram-se esgotados de antemão na
sua capacidade analítica e mesmo propositiva, sobretudo, porque a
gramática analítica é caudatária da semântica jurídica, tipicamente no
vocabulário “vítima”, “agressor” e suas polaridades. Isso nos remete ao
próximo eixo do artigo: a judicialização das relações sociais.
No âmbito das pesquisas realizadas no LEVIS, podemos afirmar
que repensar a “violência” tem importantes implicações no campo
político e, sobretudo, desdobramentos na análise das agências e dos
atores sociais envolvidos. Portanto, cabe ainda destacar que as discussões
sobre as configurações do sujeito contemporâneo são centrais para
compreendermos os debates em torno da vitimologia e da exclusão dos
atores de atos ditos “violentos” (“monstros”, o outro radical da nossa
humanidade) que seriam estrangeiros ao cenário das relações sociais
e sua apreensão apenas na forma de “agressor”. Assim como, no outro
polo, teríamos o “sujeito-vítima” como duas configurações de sujeito.
Entendo que se trata de uma armadilha, um encapsulamento na estética
normativa penal, num dever-se e, no limite, numa ortopedia social.

Judicialização das relações sociais

O ponto de partida para chegar à pertinência da noção de


“judicialização das relações sociais” foram pesquisas etnográficas
realizadas nas delegacias da mulher de João Pessoa e Florianópolis,
Entre teoria, estética e moral 49

anteriores à Lei no 11.340/2006, chamada Lei Maria da Penha, e os


estudos que fazemos sobre as políticas de enfretamento da “violência de
gênero” no Brasil e no Canadá (RIFIOTIS, 2004, 2008b, 2012).
Numa primeira aproximação, defini a judicialização nos seguintes
termos:

[...] a “judicialização” é como um conjunto de práticas e valores,


pressupostos em instituições como a Delegacia da Mulher, e
que consiste fundamentalmente em interpretar a “violência
conjugal” a partir de uma leitura criminalizante e estigmatizada
contida na polaridade “vítima-agressor”, ou na figura jurídica
do “réu”. A leitura criminalizadora que apresenta uma série
de obstáculos para a compreensão e intervenção nos conflitos
interpessoais é teoricamente questionável, não corresponde às
expectativas das pessoas atendidas nas delegacias da mulher
e tampouco ao serviço efetivamente realizado pelas policiais
naquelas instituições. (RIFIOTIS, 2004, p. 89).

A noção de judicialização vem se difundindo nas Ciências


Sociais e ocupando uma posição central da análise social. Como bem
apontam Maciel e Koerner (2002), essa noção tem sido utilizada para
indicar efeitos da expansão do Poder Judiciário no processo decisório
das democracias, definindo-se mais tipicamente como “judicialização
da política”.7
Gostaria de lembrar aqui o trabalho de Luiz Werneck Vianna,
que, seguindo as pistas de Antoine Garapon, trata a judicialização das
relações sociais nos seguintes termos:

[...] mulheres vitimizadas, aos pobres e ao meio ambiente,


passando pelas crianças e pelos adolescentes em situação de risco,
pelos dependentes de drogas e pelos consumidores inadver-
tidos –, os novos objetos sobre os quais se debruça o Poder
Judiciário, levando a que as sociedades contemporâneas se vejam,
cada vez mais, enredadas na semântica da justiça. É, enfim, a essa
crescente invasão do direito na organização da vida social que
se convencionou chamar de judicialização das relações sociais.
(VIANNA, 1999, p. 149).

7
Apenas para citar um exemplo corriqueiro, lembro os recentes eventos no cenário
nacional brasileiro que colocam a questão de modo contundente mostrando como o
debate político se traduz em disputas – amplamente divulgadas (e midiatizadas) – entre
juízes do Supremo Tribunal Federal.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 50

A judicialização é um processo atual e controverso que tem se


revelado um campo promissor para a compreensão das sociedades
contemporâneas, especialmente no que tange às políticas públicas
e à prevalência das intervenções jurídicas. Os processos ligados à
judicialização incluem as lutas no campo dos Direitos Humanos e sua
tradução normativa (RIFIOTIS, 2008a), assim como, por exemplo, a Lei
no 11.340. A judicialização não é apenas um contexto em que eventos
e comportamentos ocorrem, mas um enquadramento geral em que
se formam os próprios eventos e comportamentos. Logo, a discussão
sobre judicialização procura, portanto, elucidar um contexto para
os contextos da centralidade jurídica, das lutas de reconhecimento
centradas nos “ganhos jurídicos”, da institucionalização dos Direitos
Humanos, do lugar do legislativo, do protagonismo de Estado e das
políticas públicas fundadas nos “direitos violados” (RIFIOTIS, 2008b,
2007).8 Trata-se de uma matriz fundamental para a compreensão
da sociedade brasileira contemporânea, que marca a passagem de
discursos e práticas voltados para os direitos do sujeito.
A ênfase das políticas públicas no Brasil não estaria cada vez
mais voltada para os “direitos violados”, focando-se nos direitos do
sujeito? Não estaria havendo uma inversão capital que nos parece um
“ganho” (muitas vezes normativo), mas que invisibiliza os problemas
da dimensão vivencial dos sujeitos? Assim como as políticas de estado,
as lutas sociais não estão cada vez mais se concentrando nos “ganhos”
normativos? Como podemos nos posicionar nesse campo de luta
política? Uma primeira resposta vem da ideia de “dádiva ambivalente”
que pode representar o reconhecimento normativo, como nos
referimos em outro trabalho (RIFIOTIS, 2014b). Porém, há questões
fundamentais para as políticas públicas que apenas me permito colocar
em debate, pois, como destacou muito corretamente Butler (2009), a
norma não constitui o sujeito como seu efeito necessário. A norma
inaugura a reflexividade do sujeito e dá a ele uma forma reconhecida/
legitimada socialmente. Para complexificar: a norma é um dispositivo
no sentido foucaultiano, ou seja, não apenas um mecanismo de
coerção, mas a própria possibilidade de reação e emergência de
sujeitos. Tomando uma certa liberdade metafórica, diria que se trata
de um equivalente do clássico “Princípio de Arquimedes” ou “Teoria

8
A centralidade, às vezes exclusividade, da intervenção jurídica nas relações sociais
circunscreve modos de pensar e agir socialmente aceitáveis, abstratos, delimitando
lugares fixos para os sujeitos que me interessa aqui discutir.
Entre teoria, estética e moral 51

da Alavanca Simples”: “Dai-me um ponto de apoio e uma alavanca, e


eu moverei o mundo”.9
Para mim, a judicialização implica configurações de sujeitos
constituídas de modo antecipatório a partir da ideia de “direitos violados”
e/ou “vulnerabilidade” (miséria, abandono, maus-tratos etc.). Nessa
chave, a potência de ação dos sujeitos parece tornar-se secundária, quando
não é obliterada. Sem pretender voltar aos argumentos já avançados nos
textos referidos acima, seria interessante lembrar a tensão existente entre
a figura do sujeito de direito, ao qual se dirige o ordenamento jurídico
(para atribuir o exercício de direitos e responsabilidade) e o cumprimento
de obrigações, com os múltiplos e contingentes processos de subjetivação.
Esse tem sido ponto central das minhas pesquisas para pensarmos como
as configurações de sujeito dadas pelos discurso jurídico podem tornar-se
objetos da pesquisa antropológica, naturalizando-se a singularidade do
sujeito e de suas experiência

Sujeito-vítima

O campo em que atuamos envolve centralmente questões ligadas


ao Direito; por essa razão, é fundamental lembrar que “sujeito de direito”
é uma figura central que se refere a uma faculdade subjetiva de exercício

9
Abordei tais questões em trabalhos anteriores: 1) A primeira referência à noção de
judicialização da violência foi artigo sobre a Delegacia da Mulher na Revista Estado
e Sociedade, UnB, 2004 (RIFIOTIS, 2004). 2) Em “Judiciarização das relações sociais
e estratégias de reconhecimento: repensando a ‘violência conjugal’ e a ‘violência
intrafamiliar’”. Revista Katálisys (RIFIOTIS, 2008a), procurei articular as lutas de
reconhecimento (HONNETH, 2003) e judicialização das relações sociais. 3) As aporias
foram apresentadas em “Direitos Humanos e outros direitos: aporias sobre processos
de judicialização e institucionalização de movimentos sociais”, no livro que organizei
com Thiago Hyra intitulado Educação em Direitos Humanos: discursos críticos e temas
contemporâneos (RIFIOTIS, 2011a). Em “Direitos humanos: sujeito de direitos e direitos do
sujeito” (RIFIOTIS, 2007), procurei mostrar a importância de refletirmos sobre o sujeito,
pensando nas configurações de sujeito envolvidos nos debates sobre “violência” e Direitos
Humanos. Tomei como emblemático naquele trabalho a história de João e Maria, que os
Irmãos Grimm tornaram mundialmente conhecida e as novas edições tornaram, se posso
me permitir “mais palatável”. Procurei mostrar que a nossa leitura atual daquela narrativa
está enviesada pela percepção das crianças como vítimas às quais emprestamos pouca
ou nenhuma agência, no sentido de Ortner (2007a, 2007b). Pouca ênfase se dá ao modo
como João e Maria reagem ao abandono, como enganam e matam a “bruxa”, apropriando-
se dos bens que encontram na casa dela. Suas estratégias e ação desaparecem, sobretudo
as de Maria. A leitura hodierna centra-se exclusivamente nas vítimas, obliterando-se a
capacidade de ação expressa e realizada por elas na narrativa.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 52

dos direitos e deveres, pressupondo uma espécie de aptidão para ser


titular de direitos e devedor de prestações. “Sujeito de direito”, “pessoa
jurídica”, é entendido como indivíduo autônomo e racional ou incapaz e
tutelado. É uma noção atravessada pela dimensão moral e política para
ser também jurídica.
O sujeito dos direitos remete ao campo teórico e político dos
fundamentos da ação social e, portanto, não se reduz à uma entidade
fixa e já dada. Considero que falar em sujeito de direitos remete a
uma construção histórica e analítica característica de um importante
movimento teórico e político que se poderia chamar “a volta do sujeito”.
Essa “volta”, nas Ciências Sociais, a partir dos anos 1980, torna-se
um marco da maior importância, pois recoloca o lugar do sujeito, ou
melhor, a relação entre a estrutura e a “intervenção humana” (ORTNER,
1993). De fato, cada vez mais as Ciências Sociais têm-se defrontado com
a prevalência do conceito de agência sobre o de sociedade. Segundo
Castro (2002), há uma ênfase atualmente na:

[...] pragmática das agências capazes, em teoria, de promover


uma recuperação do sujeito ou agente sem cair no subjetivismo
ou no voluntarismo. [...] Em suma: crise da “estrutura”, retorno
do “sujeito”. Tal retorno pôde se mostrar teoricamente alerta,
como nas propostas que parecem estar desembocando em uma
auspiciosa superação das antinomias sócio-cosmológicas do
Ocidente. Mas ele significou também, em não poucos casos, uma
retomada nostálgica de várias figuras em boa hora rejeitadas
pelos estruturalismos das décadas recém-passadas: filosofia
da consciência, celebração da criatividade infinita do sujeito,
retranscendentalização do indivíduo etc. (CASTRO, 2002, p. 16).

Apesar de que a retomada do sujeito pode trazer de volta debates


considerados superados, como apontou Castro (2002), refletir a partir
da chave analítica do sujeito e, em particular, de sujeito de direitos,
implica o resgate da ação e das práticas sociais como elementos centrais
da análise. É a dimensão pragmática, a agência do sujeito que se procura
problematizar. Para marcar mais claramente a questão, lembramos que a
agência, nessa perspectiva, torna-se uma espécie de matriz que o sujeito
internaliza, mas também reflete sobre e (re)age em relação a ela. Nas
palavras de Ortner (2006, p. 110):
Entre teoria, estética e moral 53

In particular I see subjectivity as the basis of “agency”, a necessary part


of understanding how people (try to) act on the world even as they
are acted upon. Agency is not some natural or originary will; it takes
shape as specific desires and intentions within a matrix of subjectivity
– of (culturally constituted) feelings, thoughts, and meanings.

Quando me refiro a “sujeito de direitos”, busco pensar mais


efetivamente na condição de sujeito e sua agência. O sujeito não se reduz
a um ator com um background a partir do qual ele organiza e realiza as
suas práticas. O sujeito é aquele que atua diante das lógicas externas,
avaliando-as e situando-as, identificando e operando sobre contradições
que estas geram em outros contextos. Sujeito não é ator, não é indivíduo.10
Sem podermos avançar numa revisão conceitual, que certamente seria
importante numa argumentação específica, chamamos a atenção para a
possibilidade de revisitar essas categorias procurando mostrar a ênfase
e as propriedades que cada uma delas permite e limita. No presente
texto, apenas podemos avançar na ideia da agência do sujeito, buscando
identificar as implicações e problemas que tal opção aponta para os Direitos
Humanos. Em resumo, quero lembrar, como afirmei em outro lugar, que
“[...] a configuração do sujeito está em estreita correspondência com um
jogo tácito, uma estratégia de estar no mundo que tem implicações sobre
o exercício de cidadania e que não pode estar ausente no debate sobre
Direitos Humanos (RIFIOTIS, 2007, p. 239-240).
A questão que estamos esboçando aqui refere-se a uma pergunta
mais ampla relacionada ao modo de produção da vitimização e da sua
problematização. Entendemos o alcance e a dificuldade de enfrentar
os desdobramentos de tal questão. Antes de mais nada, digamos que o
que chamamos de “sujeito-vítima” é uma referência conceitual ligada
a uma economia moral, e a uma antropologia moral, no sentido de
Fassin (2008), na qual também os pesquisadores estão imersos, e é
nessa condição que ela deve ser utilizada. “Sujeito-vítima é, então,
uma construção epistêmico-política com a qual precisamos aprender
a dialogar para situar os nossos próprios trabalhos sobre violência,
justiça e Direitos Humanos. Aliás, como lembra o próprio Didier Fassin
num trabalho publicado com Richard Rechtman intitulado L’empire

10
Tampouco esta noção se confunde com a de pessoa. Na longa tradição antropológica
deste debate, interessa aqui lembrar que a categoria “pessoa” é seminal e apresenta,
ainda hoje, enorme complexidade teórica, como no clássico texto de Mauss (1974)
“Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção de ‘Eu’” ou na noção de
“divíduo” (STRATHERN, 2006).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 54

du traumatisme: enquête sur la condition de victime (2007), falar em


vítima atualmente é remeter-se, direta ou indiretamente, à noção de
trauma. Essa é a noção difundida pelos psiquiatras que produziu, após
os anos 1950, uma inversão radical no modo de conceber a vítima e a
vitimização, pois se antes a vítima e o seu sofrimento eram vistos com
desconfiança, através da noção de trauma constrói-se uma verdade
sobre a continuidade temporal do sofrimento, que se torna uma verdade
inconteste e um objeto inconteste da análise e das políticas sociais.
Os estudos de Fassin (2010) e Fassin e Retchman (2007) sobre
a economia moral e a condição de vítima trazem uma contribuição
fundamental para uma leitura renovada da dimensão moral nos
estudos da “violência” que há vários anos temos procurado desenvolver
(RIFIOTIS, 2008a, 2008b). As nossas interrogações sobre a “violência”
como categoria descritivo-qualificadora e sua relação com a moralidade
e os limites da leitura dicotômica da “vítima-agressor”, a partir da
leitura dos trabalhos de Didier Fassin, ganha uma nova formulação:
o “sujeito-vítima” como ícone de uma nova economia moral na qual
estamos imersos e a partir da qual nomeamos a própria condição de
vítima. Apenas para trazer uma referência no campo da judicialização,
a contribuição de Fassin ultrapassa a mera crítica, a denúncia de limites
e impasses próprios da tipificação penal, das fronteiras que separam
a causa do caso, a obliteração da dimensão vivencial da “violência”, a
leitura estigmatizante dos sujeitos. Ela nos situa como produtores de
uma moralidade com suas ambiguidades e riscos, inclusive políticos,
como ele bem lembra no texto publicado com Rechtman:

Il est aujourd’hui de bon ton, à propos des demandes de


reconnaissance des victimes de l’apartheid, de la traite ou de la
colonisation, de dénoncer une “ncurrence des victimes”, de même
qu’il est d’usage – à propos des femmes subissant le harcèlement
sexuel de leurs collègues ou de leurs supérieures, des jeunes
discriminés à l’embauche en raison de leur couleur de peau ou
de leur patronyme, et plus généralement de celles et ceux qui
transforment leurs revendications en plaintes – de se gausser
d’une tendance à la victimisation. Nous n’acceptons pas d’entrer
dans cette lecture, qui n’est au fond qu’une manière sophistiquée
mais classique de pratiquer le déni à l’encontre des inégalités et des
violences. (FASSIN; RECHTMAN, 2007, p. 408).
Entre teoria, estética e moral 55

Escapando de uma postura objetivista que em nome de um


pressuposto rigor epistêmico ou ética deixaria a moral de lado, Fassin
(2008) faz, ao contrário, uma defesa política da antropologia moral,
fazendo prevalecer uma vontade de diálogo com os nosso interlocutores
de pesquisa a partir do nosso lugar de fala.
Quais as consequências da consciência do mecanismo discursivo
e político do trauma sobre o nosso trabalho e nosso diálogo com movi-
mentos sociais, assessoramento a órgãos de estado, na nossa análise?
Como estabelecer um diálogo com os movimentos sociais e suas lutas
por reconhecimento fundadas na vitimidade?
Considero emblemáticos para essa discussão os trabalhos de
Oliveira (2008) por nos questionar sobre o lugar das moralidades na
tradução jurídica dos litígios e na compreensão dos sujeitos que deles
tomam parte.11 Portanto, mais do que denunciar uma falta nas práticas
jurídicas, por exemplo, no campo da “violência de gênero”, creio que
seria mais produtivo apontar a existência de um resto da produção da
justiça. Um resto que parece persistir para além dos quadros normativos
específicos. Um resto em que se misturam em graus distintos justiça,
direito, política e moral (RIFIOTIS, 2012).
“Resto” é o que escapa à polaridade vítima-agressor. É a dimensão
relacional dos conflitos. Quando me refiro a um “resto”, penso não
apenas naquilo que foi obliterado pelo processo de tradução, a redução
a termo, mas na gramática das práticas de produção da justiça e como
estas operam a impossibilidade de lidar com o vivencial e seus múltiplos
atravessamentos.12 Os “restos” também envolvem os conceitos e teoria e as
questões éticas da pesquisa e da intervenção social. Afinal, cabe lembrar
que os estudos de produção da justiça não estão povoados exclusi-

11
Penso aqui especialmente em “Existe violência sem agressão moral?” (OLIVEIRA,
2008).
12
Na perspectiva que tenho adotado na análise da centralidade do campo normativo
nas lutas sociais, enfatizo que, por um lado, ela é vetor de acesso à justiça, de visibilidade
social, de reconhecimento e de promoção da equidade; por outro, afirma uma forma de
politização da justiça baseada nos direitos dos sujeitos. É, portanto, dando continuidade a
tais argumentos que apresento aqui uma releitura de trabalhos anteriores que enfocam a
judicialização das relações sociais no campo da “violência de gênero” e problematizando
a estratégia da chamada “politização da justiça”. Considero “politização da justiça” em
termos do reconhecimento de que instituições como a Delegacia da Mulher e mais
recentemente a Lei Maria da Penha são expressões de lutas sociais no sentido de promoção
do acesso à justiça e da agenda igualitária feminista (DEBERT; GREGORI, 2008). Trata-se
como da conquista de “ganhos jurídicos” e da “aposta” numa potência transformadora da
normatividade e no sistema de justiça criminal.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 56

vamente por legisladores, textos normativos, instituições e operadores


do direito.13 O estudo dos modos de produção de justiça possibilita um
retorno importante sobre os sujeitos como agentes sociais.

Considerações finais

Em conclusão, gostaria de repensar a dupla injunção da


Antropologia: monitorar e investigar práticas e fundamentos da
justiça e dos Direitos Humanos, e a nossa participação nas lutas sociais
e na construção de políticas públicas como experts da “violência” e
dos Direitos Humanos. Para tanto, volto a afirmar que o objetivo do
presente texto é apontar a pertinência de situarmos o lugar da pesquisa
e do pesquisador num campo temático atravessado por questões
conceituais, éticas, políticas e morais.
Por isso, voltando à questão inicial dos lugares da Antropologia,
para nos inscrevermos na agenda pública como atores de novas
ortopedias sociais, devemos problematizar o duplo movimento de
entrada da política na pesquisa e da pesquisa na política. O que
certamente pode ser produtivo, mas parece que tal relação seria ainda
mais promissora se compartilhássemos nossas experiências não apenas
entre nós, mas com nossos interlocutores de pesquisa.14
Para finalizar, cabe reafirmar que o texto pretendeu trazer para
o debate uma questão urgente, mas que precisa ser equacionada e que
aqui foi possível apenas apontar suas grandes linhas. São questões que
apenas começamos a entrever e cujo alcance parece hoje ser maior do que
aquele que entrevia no ponto de partida. Se pode parecer um exercício

13
Cf. o artigo de Roberts e Pires (1992) sobre as mudanças do Código Penal canadense
em 1993 no campo das agressões sexuais, com um aumento das penas e a eliminação
das categorias “estupro” e “atentado ao pudor” e seus vieses sexistas; elas produzem uma
“ambiguidade simbólica”. Ou ainda mais especificamente, sobre a entrada da “opinião
pública” no domínio jurídico, o trabalho de Pires (2004) intitulado “A racionalidade penal
moderna, o público e os Direitos Humanos”.
14
O escopo de questões abordadas mostra a relevância de trabalharmos numa
perspectiva crítica, visando desenvolver estratégias de pesquisa éticas e engajadas.
Pretendemos em trabalhos futuros ampliar a perspectiva analítica aqui adotada em duas
vertentes complementares: a ideia de uma “antropologia diplomática” (LATOUR, 2004),
defendendo a ideia de que a pauta e os sentidos do que é relevante não nos pertencem e
nem estão dados de início, mas são resultados possíveis da interlocução, e a necessidade
de a pesquisa manter-se num estado de permanente autorreflexão e numa postura que
valorize a simetrização.
Entre teoria, estética e moral 57

paralisante para alguns, para mim elas funcionam como uma janela
que permite, sobretudo, considerar o confronto aqui desenhado como
heurístico no sentido de uma antropologia moral como a define Fassin
(2008). Em resumo, dentre todas as questões levantadas e que precisam
ser trabalhadas especificamente, destaco uma de ordem mais geral
que poderia estar presente nos nossos debates sobre os fundamentos
dos Direitos Humanos e que é consequência dos atravessamentos que
colocamos em debate: como operar analítica, política e eticamente entre
a solidariedade, a vitimização e a agência do sujeito?

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Interfaces entre ciências sociais
e saúde e reflexões
sobre políticas de saúde

Márcia Grisotti

Os resultados das experiências propiciadas pelas pesquisas em


redes vão além da soma dos trabalhos executados e do cumprimento
das metas planejadas, assim como a construção do conhecimento não
se dá unicamente pondo “pedra sobre pedra”, como na construção de
um edifício. Nesse processo, há um fluxo de aprendizagem que, muitas
vezes, não é visibilizado nos artigos e relatórios finais das pesquisas.
No início da década de 1990, iniciei um projeto de pesquisa,
vinculado ao Mestrado em Sociologia Política da UFSC, que tinha como
objetivo analisar as políticas de saúde tendo como foco o processo de
implantação dos princípios da atenção básica do Sistema Único de
Saúde em unidades de saúde na cidade de Florianópolis. A emergência
do princípio constitucional de saúde como um direito social garantido
pelo Estado, no início da década de 1990, colocava em questão se o
acesso aos serviços de saúde seria suficiente para garantir a melhoria
nas condições de saúde da população brasileira.
As disciplinas – Antropologia Simbólica e Antropologia da
Saúde – que fiz durante o mestrado com a professora Esther Jean Langdon
contribuíram para mostrar que, apesar da hegemonia do sistema oficial
de saúde, indivíduos ou grupos sociais procuram, através de canais
heterogênos, formas (ou práticas) alternativas e/ou complementares de
cura e prevenção, e que as diferenças entre a eficácia fisiológica/biológica
Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde 61

pretendida pela biomedicina e a busca de sentido para o adoecimento


são reveladoras nas interpretações sobre os diferentes saberes e práticas
em relação aos processos saúde/doença.
Grisotti (2003) seguiu esse aprendizado e abordou a construção
médica e popular de uma doença infecciosa emergente (angiostrongilíase
abdominal) na Região Oeste do estado de Santa Catarina. Na tese,
trabalhei sobre as diferenças e interfaces entre os conhecimentos
médicos e populares sobre essa doença e como as políticas de saúde
desconsideraram ou negligenciaram esses conhecimentos.
Vinte anos depois, a professora Esther Jean Langdon me convida
para participar da rede Saúde do IBP e, nessa rede, encontro um campo
fértil para pensar novos referenciais teóricos, entre eles, os conceitos
de práticas de autoatenção e intermedicalidade e suas contribuições
para refletir sobre as políticas públicas em saúde, os quais têm servido
para reorientar muitos dos subprojetos de pesquisa e extensão que
estão sob minha supervisão.
Neste artigo, pretende-se apresentar uma discussão sobre
as bases teóricas e conceituais das duas linhas de investigação
desenvolvidas no âmbito da rede Saúde do IBP pelo grupo de pesquisa
em Ecologia Humana e Sociologia da Saúde (ECOS): 1) as políticas
públicas de saúde em relação às doenças infecciosas emergentes; e 2)
saúde e alimentação no contexto do discurso da promoção da saúde.
No interior de cada uma dessas duas grandes linhas de pesquisa,
outros projetos desenvolvidos por alunos de mestrado e doutorado
foram, ou estão sendo, executados como se verá mais adiante.

As políticas públicas de saúde em relação às doenças


infecciosas emergentes

As expectativas de controle e erradicação de doenças infecciosas


e parasitárias – com o advento da teoria da origem microbiana das
doenças infecciosas, seguida pela produção de soros e vacinas no fim do
século XX bem como pela descoberta de sulfas e antibióticos no século
XX – não se confirmaram. A emergência da AIDS e de um número de
doenças zoonóticas no final do século XX fragilizaram o conceito de
transição epidemiológica no qual as doenças infecciosas e parasitárias
dariam lugar às condições crônicas e degenerativas como as principais
causas de mortalidade e morbidade humana (GRISOTTI, 2010).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 62

Além disso, os micro-organismos são versáteis e possuem um


amplo alcance de adaptação às condições ambientais adversas. Avanços
em nosso entendimento sobre os seus processos biológicos, na produção
de novas gerações de medicamentos e vacinas e no melhoramento de
barreiras sanitárias para impedir sua dispersão, têm se mostrado mais
lentos do que a capacidade de mutação, recombinação e dispersão
demonstrada pelos micro-organismos (OCHMAN; LAWRENCE;
GROISMAN, 2000).
Certamente a era bacteriológica foi um período áureo de
nossa história e, do ponto de vista estritamente científico e médico, a
bacteriologia foi um dos mais importantes eventos de um século de
descobertas. A produção de medicamentos eficientes, especialmente
antibióticos, e de soros e vacinas prometia a erradicação das doenças
infecciosas. No entanto, como haviam advertido Henle e Virchow no
século XIX, há uma grande diferença entre as causas e os processos
das doenças. Outros fatores devem ser considerados além do simples
encontro mecânico de um micro-organismo com o hospedeiro
suscetível, como foram apontados por diferentes abordagens teóricas e
épocas. Ackerknecht (1982) chamou a atenção sobre os fatores sociais,
econômicos, geográficos e de constituição que poderiam tornar-se
determinantes no processo de saúde e doença e, por esse motivo,
precisavam ser reconsiderados.
Outras áreas acadêmicas, especialmente a Antropologia e a
Sociologia da saúde, têm fornecido inúmeras contribuições para
compreender as dimensões estruturais envolvidas nos processos
decisórios e nos dinâmicos sistemas de valores simbólicos produzidos
pelos agentes (leigos, peritos e institucionais). Essas abordagens
enfatizam o reconhecimento do caráter interdependente dos sistemas
sociais e naturais e, portanto, da integração de pesquisas básicas e
aplicadas em várias áreas do conhecimento científico, e não apenas na
área da Saúde. O impacto das desigualdades sociais na emergência de
doenças tem sido pouco investigado (FARMER, 1996), ao mesmo tempo
que se reconhece que os fatores sociocomportamentais têm contribuído
tanto para a emergência de doenças quanto para o seu possível controle
(INHORN; BROWN, 2004). Rituais, tabus, crenças, tradições são
fatores que intermedeiam as relações interpessoais com o meio ambiente
(AVILA-PIRES, 2005). Além disso, entre os membros de um grupo,
nem todos possuem o mesmo conhecimento/percepção e aderem aos
mesmos tratamentos, por causa de fatores como, por exemplo, idade,
sexo, papel social, redes sociais bem como representações, experiências
Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde 63

e interesses. Em situações de pluralidade de grupos étnicos e sistemas


médicos, é preciso conhecer e saber lidar com os diferentes diagnósticos
e tratamentos (LANGDON, 2003). Com base nessas perspectivas de
análise sobre a emergência das doenças infecciosas, parece lógico que
sociólogos e antropólogos que trabalham com o tema da saúde assumam
um papel significativo nos esforços globais para compreender e auxiliar
no controle dessas doenças.
O crescimento populacional e a pressão sobre os recursos naturais,
o aumento da pobreza, o aparecimento de resistências aos antibióticos,
as migrações forçadas (por questões ambientais, econômicas ou
políticas), o processo de urbanização, os deslocamentos de populações
rurais para as cidades e a sua instalação em zonas sem saneamento
básico são razões que podem ser identificadas como tendo contribuído
para a emergência de doenças infecciosas. O comércio e a circulação
rápida de pessoas, animais, plantas, micro-organismos e mercadorias
explicam a intensificação da disseminação de agentes patogênicos e sua
emergência em escala global. (GRISOTTI; AVILA-PIRES, 2010, 2011).
A globalização enquanto conceito e experiência tem gerado
respostas e situações ambivalentes. Ao mesmo tempo que o processo
de globalização é colocado como facilitador e dispersor de agentes
patogênicos, ele também tem possibilitado o desenvolvimento de
processos de diplomacia e regulações internacionais bem como
permitido a produção e difusão de conhecimentos sobre doenças
e vetores, aumentando, assim, as chances de uma consciência de
interdependência requerida para a governança global em saúde.
Ao mesmo tempo que a globalização implica a revisão das
diferenças conceituais entre doenças de países desenvolvidos e doenças
de países subdesenvolvidos, já que, dadas as atuais características da
globalização, todos os países vivem situações de risco (GRISOTTI, 2010;
GIDDENS, 2000), por outro lado, alguns países (especialmente os mais
pobres e com baixo poder de influência nas decisões internacionais) são
mais vulneráveis às doenças. Por que algumas doenças são eleitas como
foco de atenção em detrimento de outras? Por que algumas doenças
são consideradas problema de saúde pública enquanto outras passam
pela periferia do debate acadêmico e das políticas de atenção à saúde?
Quem tem o poder e como são feitas as escolhas políticas em relação
aos processos de tomada de decisão que envolvem riscos à saúde? Em
nossas pesquisas destacamos que os processos de tomada de decisão em
saúde são definidos em função dos interesses do establishment político;
por isso as escolhas são seletivas e, portanto, as decisões políticas são
Políticas públicas: reflexões antropológicas 64

socialmente construídas. O debate acadêmico e a aplicação pragmática


do conceito de risco estão permeados (muitas vezes, sem se dar conta)
pelo uso seletivo e oportunista desse termo, gerando mais confusão,
preconceitos e decisões equivocadas.
Mesmo reconhecendo que os fatores socioeconômicos têm
contribuído tanto para a emergência e disseminação de doenças quanto
para o seu possível controle (INHORN; BROWN, 2004), a redução das
desigualdades sociais não tem sido alvo de propostas concretas nas
políticas de saúde global, assim como os impactos socioeconômicos
decorrentes do processo de diagnóstico e de divulgação da “existência”
das doenças emergentes não são avaliados. Como a doença é percebida
pelos sujeitos afetados? Quais as mudanças sociais e econômicas
vivenciadas por esses sujeitos? A recorrência na literatura dos termos
doenças negligenciadas (HOTEZ et al., 2007) e desigualdades sociais
em saúde (FARMER, 1996) são ilustrativas dessa ambiguidade bem
como reforça a necessidade de análise interdependente das dimensões
estruturais e culturais no estudo da história social das doenças. As
explicações das doenças emergentes apenas pelos fatores culturais e
comportamentais têm gerado interpretações equivocadas e, muitas
vezes, situações de estigma e preconceito.
Um bom exemplo que ilustra essas ambivalências encontra-
se nos esforços empreendidos nas tentativas globais de controle da
epidemia do Ebola em comparação com a negligência em relação às
milhões de mortes por causa da diarreia no mesmo continente. No
caso do Ebola, o foco na atribuição dos riscos de contágio do ponto
de vista biomédico e a imediata crítica (e supressão) da forma como as
comunidades locais organizavam os funerais escondiam a história de
um longo processo que iniciou em 1976, quando o vírus foi identificado
e o médico descobridor, já naquela época, alertava para as poucas
medidas que seriam necessárias para se evitar uma epidemia no Zaire.
Somente quando os casos de Ebola romperam as fronteiras dos países
africanos, atingindo os EUA e Europa, ele passou a ser encarado como
um problema de saúde pública global, e medidas práticas para a sua
contenção foram adotadas (não isentas de questionamentos, mas que
não serão tratadas neste artigo).
Em contraposição, a morte causada pelas diarreias em vários
países africanos permanece silenciosa: mais de quatro milhões de casos
de diarreia ocorrem todo ano, com uma média de 2,2 milhões de mortes,
sendo 37% dos casos na África subsariana, com uma média de 7,7% de
todas as mortes registradas anualmente (KONÉ et al., 2014); no entanto,
Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde 65

ela não faz parte das escolhas políticas sobre as doenças a serem tratadas
como um problema de saúde pública global.
Nesse cenário complexo do debate sobre saúde global, doenças
consideradas negligenciadas (para as quais há pouco interesse em
pesquisa científica e recursos destinados à sua vigilância e controle) e/ou
endêmicas em muitos países convivem com outras consideradas de alto
impacto para a saúde pública global, como por exemplo, a AIDS, febres
hemorrágicas (Ebola, Lassa, Nipah, Hanta, Marburg), SARS, algumas
gripes causadas pelos agentes influenza (H1N1 e H5N1), Encefalopatia
espongiforme bovina (BSE) entre tantas outras epidemias e pandemias
chamadas de doenças infecciosas emergentes.
Em artigo publicado na coletânea Advances in Medical Sociology
(GRISOTTI; AVILA-PIRES, 2010), identificamos o uso inadequado da
expressão doenças infecciosas emergentes e chamamos a atenção para
as diferenças entre a abordagem pragmática do conceito pelo Centro
de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) e a
abordagem histórico-epistemológica realizado por Grmek (1993,
1995). Na perspectiva do CDC, as doenças infecciosas emergentes são
aquelas que apareceram recentemente em uma população ou aquelas
que já existiam, mas que, por algum motivo, estão se espalhando mais
rapidamente, em termos de incidência ou distribuição geográfica
(LEDERBERG et al., 1992). Tal disseminação pode ter ocorrido
por causa de uma introdução recente de um novo agente etiológico
ou de uma mutação de um agente existente, seguida pela sua rápida
disseminação entre a população (MORSE, 1995).
Pelo fato de nem sempre podermos saber se uma doença é nova
ou se é existente, mas não detectável, Grmek (1993, p. 285) expandiu
o conceito de doenças emergentes apresentando quatro situações nas
quais as doenças poderiam ser assim denominadas: 1) ela existia antes
de ser reconhecida pela ciência (o caso da doença de Chagas é exemplar:
investigações epidemiológicas revelaram que ela afetava milhões de
pessoas antes de ser descoberta pelos cientistas em 1909); 2) ela já
existia mas aumentou seu grau de letalidade em função de mudanças
qualitativas e quantitativas em seu ambiente (o caso da Legionella, uma
bactéria simples mas letal quando concentrada em precários sistemas
de refrigeração/calefação); 3) ela foi introduzida em uma região onde
não existia anteriormente (o caso das diversas doenças ditas tropicais);
4) ela emerge a partir da passagem de um reservatório não humano para
humano (o caso das inúmeras doenças zoonóticas). Para Grmek (1993),
a única possibilidade de uma doença ser considerada nova advém da
Políticas públicas: reflexões antropológicas 66

possibilidade de acidentes ocasionados por manipulação de organismos


patogênicos em laboratório, bioterrorismo ou manipulações genéticas.
Porém, mesmo nessa possibilidade, Grmek reconhece a existência de
uma certa continuidade com o passado, pois nenhum organismo pode
originar-se de geração espontânea (GRISOTTI; AVILA-PIRES, 2010).
Como as ações em saúde pública global dependem do conhecimento
sobre a incidência e prevalência de doenças (ou, em outras palavras,
do que circula no ambiente), paralelamente às situações apontadas
por Grmek, incluímos, no artigo citado, uma sexta situação que
consideramos crucial para determinar a emergência de uma doença:
o papel da subnotificação das doenças de notificação obrigatória e a
falência no reconhecimento e registro de doenças incomuns.
Esse aspecto tem sido um dos maiores limitadores do processo
de vigilância e controle das doenças, pois essas ações somente são
possíveis de serem planejadas e executadas com êxito se os dados de
registro foram corretos. Como eles dependem das esferas locais de
gestão do sistema de vigilância em saúde, isso afeta consideravelmente
as expectativas em torno das atividades em saúde global. Apesar dos
acordos e regulações internacionais sobre a segurança global em saúde,
os dados que alimentam o sistema são produzidos localmente e, nessa
esfera, fatores extraepidemiológicos influenciam o interesse em registrar
e notificar doenças. Por exemplo, um governo pode atrasar a divulgação
de um surto de doença por medo de repercussões econômicas. Santos
(2013), por exemplo, mostrou os impasses e dificuldades das políticas
públicas brasileiras para cumprir as exigências em sanidade animal
exigidas pelo mercado internacional de carne bovina no contexto das
doenças zoonóticas emergentes, tendo em conta as especificidades da
realidade rural brasileira e a falta de integração entre os sistemas de
vigilância epidemiológica humana e animal no Brasil.
O projeto de pesquisa em andamento1 está analisando os
limites e potencialidades do sistema de vigilância epidemiológica no
Brasil, tendo como foco o processo envolvido no registro, notificação e
investigação dos casos de doenças infecciosas emergentes da Secretaria
de Saúde do Estado de Santa Catarina. Para isso, estamos descrevendo o
itinerário percorrido pelos profissionais da vigilância epidemiológica na
realização das notificações de doenças infecciosas emergentes a partir
do acompanhamento dos casos suspeitos, realizado pelos profissionais
de saúde. Com base nessa descrição funcional do sistema, a pesquisa

Projeto: As políticas públicas de saúde em relação às doenças infecciosas emergentes.


1
Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde 67

pretende avançar ao tentar responder questões mais complexas: Por que


algumas doenças são eleitas como foco de atenção em detrimento de
outras? Por que algumas doenças são consideradas problemas de saúde
pública enquanto outras passam pela periferia do debate acadêmico e
das políticas de atenção à saúde? Quem tem o poder e como são feitas
as escolhas políticas em relação aos processos de tomada de decisão que
envolvem riscos à saúde? Qual o sistema de valores que norteia a cultura
dos processos decisórios e dos dispositivos de vigilância em saúde?
Dentro ainda dessa linha de pesquisa (políticas de saúde pública
no contexto das doenças emergentes), outros pesquisadores realizaram
suas teses de doutorado no contexto das políticas públicas de saúde:
1) Proteção social em saúde para famílias vulneráveis com
monoparentalidade feminina via Estratégia de Saúde da
Família, de Carmen Rosario Ortiz Gutierrez Gelinski. Essa
tese recebeu Menção Honrosa no Prêmio de Ciência e
Tecnologia para o SUS, em 2011.
No contexto de mudança do modelo de atenção em saúde (do
modelo hospitalocêntrico para o modelo da atenção básica), o Ministério
da Saúde criou, em 1994, o Programa Saúde da família e, posteriormente,
em 1997, a Estratégia Saúde da Família (ESF), com foco nas famílias. Além
da mudança no modelo de atenção, essa perspectiva na família também
foi condicionada por transformações nos modelos de proteção social que
convocam a sociedade (famílias, empresas e terceiro setor) para assumir
parte desses encargos. Porém, as famílias são chamadas no momento
em que elas próprias estão passando por profundas mudanças, com
destaque para o ingresso maciço das mulheres no mercado de trabalho
e o aumento das famílias chefiadas por mulheres. Nesse sentido, esse
trabalho teve por objetivo verificar se a ESF, enquanto mecanismo-chave
da atenção básica no Brasil, atende às necessidades de proteção social das
novas configurações familiares, em particular das famílias vulneráveis
com chefia feminina (GELINSKI, 2010).
O trabalho de Gelinski (2010) foi norteado pela discussão de
quatro elementos teóricos e analíticos: a reestruturação produtiva,
as transformações dos sistemas de proteção social, a reorientação do
modelo de atenção em saúde para os cuidados primários e as mudanças
ocorridas no âmbito da família. A partir desses elementos, essa tese
buscou compreender as condições que as famílias têm para dar conta
da corresponsabilidade dos cuidados que a configuração mais recente
do sistema de proteção em saúde lhes atribui. Para isso, foi realizada
Políticas públicas: reflexões antropológicas 68

pesquisa de campo junto às famílias monoparentais atendidas por


duas unidades básicas de saúde localizadas em áreas de risco da cidade
de Florianópolis/SC. O trabalho salienta que a falta de percepção
das novas configurações familiares por parte das políticas de saúde
pode ter impacto negativo na eficácia das ações em saúde da ESF;
e isso por dois motivos: primeiro, porque impossibilita dimensionar
de maneira adequada as consequências que têm a transferência de
responsabilidades sobre as famílias, as quais recaem principalmente
sobre a mulher chefe de família, já sobrecarregada em relação àquelas
mulheres que compartilham os cuidados com os cônjuges; segundo,
porque o desconhecimento a respeito da diversidade de situações que
se abrigam na categoria “monoparentalidade feminina” e das redes de
suporte que essas mulheres encontram disponíveis pode impedir que o
sistema de saúde saiba quais os itinerários terapêuticos que as famílias
seguem na busca por tratamento médico. Além disso, o trabalho
também concluiu que enquanto os profissionais envolvidos com a
saúde da família têm suas responsabilidades claramente definidas,
não há o mesmo grau de conhecimento a respeito de quais seriam
as responsabilidades que cabem às famílias executar. Outra questão
a ser enfatizada é que o leque de opções que as mulheres da pesquisa
consideram como práticas de saúde não reflete necessariamente
o itinerário terapêutico pretendido pela ESF, acarretando um
desencontro entre o itinerário terapêutico escolhido pelas famílias e
aquele preconizado pelo sistema oficial de saúde (GELINSKI, 2010).
2) Os caminhos e descaminhos da vigilância das doenças
transmissíveis no Brasil: um estudo de caso num município em
Santa Catarina, de Silvia Leone Quaresma.
Através de uma análise histórica e um estudo de caso, Silvia L.
Quaresma (2012) analisou os percursos das políticas e das instituições
que estavam relacionados à vigilância das doenças transmissíveis
no Brasil no período anterior à década de 1990 e posterior a esta,
identificando os possíveis elementos remanescentes que estruturam
essas políticas atualmente e avaliou como um município de Santa
Catarina está absorvendo as mudanças ocorridas nas políticas de saúde
com relação à municipalização das ações e serviços da vigilância das
doenças transmissíveis. Para isso, entrevistou sanitaristas/pesquisadores
que atuaram na saúde pública do Brasil entre as décadas de 1960 e 1990,
técnicos da vigilância epidemiológica de SC e alguns profissionais das
unidades de vigilância epidemiológica, ambiental e sanitária de um
Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde 69

município catarinense considerado exitoso em termos de gestão da


vigilância em saúde. Encontrou vários problemas a serem superados,
como, por exemplo, a falta de estrutura dos municípios diante das novas
responsabilidades que acabam acentuando uma grande diversidade de
níveis de organização setorial no país; a carência de profissionais de nível
superior capacitados, inclusive, em Epidemiologia nos municípios; falta
de políticas intersetoriais que tenham como prioridade sanar problemas
em relação à prevenção e o controle das doenças transmissíveis; e um
aumento considerável das subnotificações das doenças transmissíveis,
que acabam distorcendo a qualidade dos dados no Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e comprometendo toda
a análise realizada pelos órgãos competentes para a tomada de decisão
e definição de políticas de saúde. No entanto, há municípios, como o
pesquisado neste trabalho, que estão conseguindo superar esses entraves
por meio de um comprometimento e interdependência das ações tanto
dos profissionais das vigilâncias (ambiental, epidemiológica e sanitária)
quanto dos gestores (QUARESMA, 2012).
3) Doenças infecciosas emergentes: um estudo de caso sobre a
tuberculose como uma zoonose, de Claudio A. dos Santos.
A convivência entre humanos e animais sempre esteve presente
ao longo do desenvolvimento da humanidade; entretanto, determinadas
formas dessa convivência tendem a criar condições propícias para o
surgimento de certas doenças, denominadas de zoonoses. O aumento
das relações comerciais, as viagens de turismo, bem como as formas
de produção intensivas de alimentos, fizeram com que novas doenças
surgissem ou doenças que estavam controladas reaparecessem. Dentro
deste último contexto encontramos a tuberculose, que, segundo a
Organização Mundial da Saúde, é uma das doenças infecciosas que
mais mata no mundo e, em alguns casos, tem ressurgido de forma
diferenciada das características patológicas tradicionais, além de ter
sua ocorrência junto com outras doenças, no caso a AIDS. Os agentes
causadores da tuberculose são do gênero Mycobacterium. Em humanos,
a espécie é M. tuberculosis; em bovinos, é a espécie M. bovis; entretanto,
pode ocorrer que o agente causador da doença em animais infecte
humanos, caso em que a doença é considerada uma zoonose. Em países
onde é feito o diagnóstico diferencial do agente causador em humanos,
os índices de infecção de origem animal variam de 8% a 12%. No Brasil,
contudo, essa diferenciação não é realizada. O objetivo desse trabalho
(dissertação de Mestrado) foi compreender a dinâmica das políticas
Políticas públicas: reflexões antropológicas 70

em saúde através do processo de notificação da tuberculose bovina e


humana realizada pela Secretaria da Agricultura e pela Secretaria da
Saúde no estado do Rio Grande do Sul, bem como compreender as
percepções das famílias produtoras de leite e carne na transmissão da
doença. Foram realizadas entrevistas com produtores de leite e carne,
médicos veterinários, médicos humanos e gestores políticos envolvidos
no controle da doença, bem como acompanhamento do cotidiano de
produtores de leite e carne. A pesquisa mostrou que os produtores
de leite e carne pesquisados desconhecem as formas de transmissão
e as funções do Estado brasileiro no caso de animais soropositivos.
O processo de notificação e o diálogo entre os órgãos institucionais
(saúde humana e saúde animal) não ocorrem como preconizam as leis
e normativas. Outro aspecto é que tanto os profissionais da iniciativa
privada quanto os da rede pública, vinculados à medicina humana,
preocupam-se apenas com o tratamento da doença, desconsiderando
os fatores socioambientais relacionados a seu controle. Não existe
uma articulação entre os órgãos públicos (de saúde humana e saúde
animal) envolvidos no caso de tuberculose, o que fragiliza o processo
de notificação e identificação (e tratamento) dos casos. Além disso, as
informações e o suporte social e econômico às famílias produtoras de
leite (por causa do seu trabalho cotidiano próximo de possíveis animais
contaminados) não são efetivamente realizados. O êxito das políticas
de vigilância epidemiológica e sanitária no caso estudado depende da
incorporação de aspectos socioculturais e econômicos da vida e da
experiência dos produtores de carne e leite, especialmente aqueles que
têm contato direto com o rebanho bovino; o que, por sua vez, destaca
a importância do trabalho interdisciplinar e integrado com as ciências
sociais (SANTOS, 2009).
Na sua tese de doutorado, Santos (2013) continuou os estudos
sobre o processo de articulação institucional entre saúde humana e
saúde animal analisando os impasses e as possibilidades de as políticas
públicas brasileiras serem capazes de cumprir as exigências em sanidade
animal do mercado internacional de carne bovina no contexto das
doenças zoonóticas emergentes, tendo em conta as especificidades
da realidade rural brasileira e do sistema de vigilância em saúde no
Brasil. Santos acompanhou as inspeções federais e internacionais em
propriedades situadas em alguns municípios do Rio Grande do Sul e
realizou entrevistas com gestores do Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento, da Secretaria Estadual da Agricultura de Porto Alegre
e Secretaria Federal da Defesa Sanitária Animal; gestores do Ministério
Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde 71

da Saúde; médicos veterinários do Ministério da Agricultura, do


Ministério da Saúde e da iniciativa privada, responsáveis pela realização
de diagnósticos sorológicos e laboratoriais das respectivas patologias;
médicos veterinários que realizam ações de prevenção e controle do
agente causador da raiva da Secretaria Estadual do Rio Grande do Sul;
produtores de carne inclusos no Sistema de rastreamento; produtores
de carne que realizaram todos os procedimentos, que estavam com
suas propriedades credenciadas e se retiraram do programa; produtores
de carne que estão realizando o processo de inclusão no programa;
responsáveis pelas certificadoras que realizam o processo burocrático
(procedimentos para a entrada da propriedade no programa de
rastreamento e certificação, lançamento de informações na base de
dados, entre outras atividades) e frigoríficos.
Nessa tese, foram identificadas as dificuldades que se apresentam
na implantação de programas de sanidade animal a partir de exigências
internacionais; nas relações estabelecidas (ou não) entre instituições
públicas e privadas para execução desses programas; na aplicação das
normativas internacionais pelos órgãos responsáveis pela saúde animal,
bem como as diferenças práticas que existe entre a fiscalização da carne
para o consumo interno e para a exportação.
De acordo com Santos (2013), as dificuldades advindas do clima
e da geografia repercutem na execução de atividades a serem realizadas
pelas equipes técnicas, tais como a identificação dos animais, o acesso
à unidade produtiva, a movimentação de animais para vistorias, entre
outras ações. Associados a esses aspectos, o manejo dos animais, a
complexidade e as diferentes formas de criação dos bovinos brasileiros,
bem como a presença de animais silvestres que podem ser portadores de
agentes causadores de doenças, são fatores determinantes na aplicação
dessas medidas. Para os produtores, a dificuldade central é o manejo
dos animais, pois em períodos chuvosos é impossível realizar muitas
tarefas, inclusive o próprio acesso às propriedades fica impossibilitado.
As terras onde estão localizadas as unidades produtivas rurais, em sua
grande maioria, principalmente no Rio Grande do Sul, são várzeas de
rio, ou planícies, também chamadas de terras baixas, como é o caso
do “pampa gaúcho”. Essas terras, no inverno, apresentam altos índices
pluviométricos (muita chuva), além de baixas temperaturas, o que
dificulta a ação dos homens e mulheres no campo. Muitas propriedades,
em invernos rigorosos, ficam até quatro meses sem conseguir realizar
qualquer prática de manejo (essa característica estende-se ao pantanal
mato-grossense, um grande produtor de carne bovina). Nessas
Políticas públicas: reflexões antropológicas 72

condições, alguns animais morrem por diferentes causas e não se


consegue fazer o diagnóstico das doenças, nem adotar as medidas
exigidas pelas organizações internacionais. No caso da tuberculose,
foi relatado pelos profissionais que realizam os diagnósticos o fato
de a doença reaparecer, mesmo em propriedades controladas. Essa
enfermidade pode estar infectando outras espécies de animais, como os
animais silvestres, ou ainda a própria população humana, tornando o
seu controle mais complexo (SANTOS, 2013).
Os fundamentos que norteiam o programa é um dos fatores
determinantes de dificuldades. Segundo a grande maioria dos
entrevistados, e isso foi constatado também na análise documental e
na observação participante de Santos (2013), a forma como o programa
foi formulado, desconectado das reais condições das propriedades
rurais brasileiras, praticamente inviabiliza a sua execução. Isto é, há
um descompasso entre os princípios do programa e a situação das
propriedades rurais. A unidade produtiva brasileira é extensa e muitas
vezes não possui estrutura, como instalações para manejos, estradas,
pontes e energia elétrica para colocar em execução um programa
com grande número de especificações, como é o Sistema Nacional de
Certificação e Identificação de Origem Bovina e Bubalina (SISBOV).
Outro aspecto referente à propriedade relaciona-se à operacionalidade
do sistema, pois são poucos os trabalhadores rurais com conhecimento
e acesso às novas tecnologias, como exige o sistema de informação
preconizado pelo programa de certificação e rastreamento. Também,
quando nos referimos ao programa, estão presentes as questões materiais
que envolvem o projeto. Falta fiscalização da qualidade dos materiais, o
que prejudica o andamento do processo (SANTOS, 2013).
Nessas condições, programas “copiados” ou que procuram
seguir determinações internacionais não conseguem ser implantados,
e a eficácia dos programas, para o controle de zoonoses estudadas
nesta tese, seja para satisfazer o mercado internacional da carne
bovina, seja para o mercado interno, dependerá de uma visão e de
uma prática que articulem os fatores interdependentes que envolvem a
cadeia produtiva e as políticas setoriais dos serviços de saúde humana
e veterinária (SANTOS, 2013).
Ainda dentro dessa linha de pesquisa, acrescento outros projetos
de pesquisa que estão em andamento:
Ricardo J. Neiva (2014) está pesquisando as percepções e
histórias de vida de mulheres ex-pacientes de hanseníase, moradoras
da cidade de Araçuaí, no vale do Jequetinhonha/MG. Trata-se de uma
Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde 73

interpretação das marcas do estigma social, da exclusão, do preconceito


e da religiosidade associados à doença, assim como das manifestações
culturais, artísticas e literárias produzidas no Vale do Jequitinhonha
como forma de pontuar referências regionais à doença.
Francisca S. Santos (2014) está pesquisando os conflitos entre a
liberdade individual e o direito coletivo à saúde em relação à transmis-
sibilidade da tuberculose pulmonar, tendo como foco de estudo os
saberes, as práticas e a gestão de conflitos nos casos de não adesão dos
pacientes ao tratamento da tuberculose, por parte dos profissionais de
saúde do município de Araçuaí/MG. A pesquisa vai contribuir para
identificar de que maneira o risco à saúde coletiva implica o processo
de judicialização da saúde.
Clara C. Melo e Lima (2014) está pesquisando a relação entre a
estima pelo animal doméstico e o risco à saúde, tendo como foco de
análise os saberes e as experiências vivenciadas pelos proprietários de
cães em relação ao tratamento e/ou eliminação de animais portadores
de leishmaniose na cidade de Montes Claros/MG, considerada como
um dos mais altos índices da doença no Brasil.
Janiffer T. G. Zarpelon (2014) está pesquisando as ações de
cooperação técnica internacional do Brasil na área da Saúde na gestão
do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Durante esse
período, a política externa brasileira esteve pautada na autonomia
pela diversificação representando no enfoque do país pela Cooperação
Sul-Sul (ou cooperação técnica entre os países em desenvolvimento).
Segundo o discurso político brasileiro, essa cooperação teve como
base a troca de capacidades orientada pela solidariedade, consenso e
equidade. No entanto, as ações do Brasil nem sempre foram guiadas
por esses aspectos, mas sim por uma gama de interesses que resultaram
em condicionalidades na formulação e execução dos acordos
internacionais na área da Saúde. O trabalho evidencia a complexidade
das iniciativas brasileiras e a relevância das políticas setoriais na área
da Saúde do Brasil na implementação desses projetos internacionais.
Essas ações internacionais do Brasil na área da Saúde tiveram como
resultado o aumento do destaque do país no cenário internacional
e o incremento de sua liderança no contexto da cooperação Sul-Sul.
A pesquisa tem como objetivos: a) identificar o contexto histórico da
Cooperação Sul-Sul bem como suas definições; b) analisar a cooperação
técnica internacional brasileira na área da Saúde no governo Lula; e 3)
problematizar os interesses por trás do discurso político brasileiro no
contexto da Cooperação Sul-Sul.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 74

Saúde e alimentação no contexto do discurso de


promoção da saúde

A definição de saúde como um estado de completo bem-estar


físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças (WHO,
1946), teve uma grande influência nas políticas públicas de saúde
mundiais, expandindo a estrutura conceitual dos sistemas de saúde de
várias nações para além das fronteiras estabelecidas pelas condições
físicas dos indivíduos e suas doenças e tornou possível evidenciar o que
atualmente denominamos como determinantes sociais da saúde. Porém,
a generalidade e a falta de operacionalidade prática desse conceito
e o caráter universal embutido na palavra completo bem-estar, têm
possibilitado a emergência de estratégias mercadológicas não previstas.
Por exemplo, com o objetivo de reduzir os riscos de doenças
crônicas, como diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, câncer e
obesidade, a OMS e a FAO propuseram novas diretivas em direção
à melhoria dos estilos de vida e dieta promovendo o consumo de
alimentos considerados “saudáveis” e a prática de atividade física. Uma
das consequências desse discurso de promoção da saúde foi a introdução
e difusão pelas indústrias de “novos” produtos alimentares, chamados
de alimentos funcionais – embora não esteja claro exatamente o seu
significado, como foi analisado em Grisotti et al. (2014).
Para as finalidades deste artigo, enfatizamos que a falta de
reconhecimento do caráter contextual (e cultural) da definição das
doenças, bem como a falta de reconhecimento dos diferentes níveis
de complexidade envolvidos na correlação ideal entre doenças e
alimentos específicos (construídos e válidos apenas para parâmetros
epidemiológicos), explicam a incorreta interpretação e aplicação, pelos
médicos, de dados epidemiológicos (válidos para o mapeamento de
populações), na prática clínica de casos individuais. Sachs (1996) discute
a utilização de dados epidemiológicos sobre os níveis de colesterol no
contexto das doenças cardiovasculares em casos individuais, já que dados
que mostram uma correlação entre altos níveis de colesterol no sangue
e infarto são válidos apenas no nível da população. No nível individual,
fatores biológicos (por exemplo, como as pessoas individualmente
acumulam gorduras nas paredes das artérias), sociais e psicológicos
devem ser levados em consideração. Sachs (1996) mostrou como os
pacientes foram estigmatizados e pressionados pelos profissionais de
saúde por não conseguirem reduzir os níveis de colesterol, mesmo
seguindo estritamente a dieta prescrita pelos médicos.
Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde 75

Na mesma direção, Pollan (2008) cita o exemplo dos cortadores


de cana em Cuba que consomem 6.000 calorias/dia; essa quantidade
faria qualquer um de nós um diabético, enquanto para eles esse
consumo não resulta necessariamente em obesidade ou em outras
doenças relacionadas aos alimentos, na medida em que os cortadores
de cana estariam “queimando” calorias no trabalho. Nesse sentido,
qualquer padrão universal de dieta, descontextualizado das práticas
dos sujeitos, tende a gerar mais desentendimentos e confusão do que
melhorias na saúde.
Um estudo de caso realizado entre 1993 e 1998 em clínicas médicas
nos Estados Unidos (com uma amostra de controle randomizada de
48.835 mulheres entre 50 e 79 anos de idade, após período de menopausa)
testou a hipótese apresentada em vários estudos epidemiológicos, sobre
o fato de que uma intervenção dietética diminuiria o risco de doenças
cardiovasculares, câncer de colo de útero e de mama. Analisando uma
intensa mudança comportamental de um grupo, guiada para a redução
de gorduras e aumento do consumo de vegetais, frutas e grãos, comparada
com o comportamento de outro grupo, que mantinha uma dieta sem
essa mudança, os autores concluíram uma insignificante redução dos
riscos daquelas doenças (HOWARD et al., 2006; PRENTICE et al., 2006;
BERESFORD et al., 2006).
Portanto, qualquer classificação alimentar, que tente indicar
se algum alimento/nutriente é saudável ou não, representa uma
simplificação da complexa relação dos vários fatores que conjuntamente
poderiam auxiliar para definir uma dieta saudável. Um padrão dietético
não é determinado apenas pela composição de um produto, mas também
pela quantidade consumida, a posição do produto dentro da dieta total,
as atividades e tipo de metabolismo do consumidor e, principalmente,
pelo significado cultural dos alimentos em cada contexto social.

Alimentos com selo de aprovação de entidades


médicas e percepção dos consumidores2

As correlações derivadas do discurso de promoção de saúde,


por exemplo a correlação entre certos alimentos/nutrientes e
prevenção e/ou redução de riscos de problemas cardíacos, fazem parte
de uma complexa rede formada por experts (cientistas), formuladores
de políticas públicas, indústrias alimentares, associações médicas

Para mais detalhes, ver Grisotti et al. (2010).


2
Políticas públicas: reflexões antropológicas 76

e consumidores. Nessa pesquisa focamos nos pontos de vista dos


dois últimos atores citados dessa rede. Escolhemos analisar a
relação estabelecida entre alguns tipos de alimentos e problemas
cardíacos, pelo fato de muitos desses alimentos, vendidos em redes de
supermercados, conterem o selo de aprovação da Sociedade Brasileira
de Cardiologia. Utilizamos um questionário com os desenhos de
alguns produtos alimentares com esse selo, grupos focais, observação
de oficinas terapêuticas e entrevistas em profundidade com grupo de
pessoas idosas que participavam de um programa de atividade física
em duas unidades de saúde e com pacientes de uma clínica privada de
cardiologia que tinham passado por problemas cardíacos e estavam
participando de um grupo coletivo de apoio psicológico.
Com base nas perguntas: O que você deixou de comer? O que
você passou a comer? O que você gostaria de comer?, encontramos uma
percepção mais ampla da relação entre saúde e dieta e o papel da dieta
no processo saúde-doença; quem guia essas mudanças alimentares;
as dificuldades para fazer essas mudanças e as estratégias usadas para
combinar a escolha individual e as recomendações médicas; o impacto
do conhecimento científico na padronização dos modelos dietéticos
e na caracterização do que significa ter uma “alimentação” e uma
“vida saudável”; e a percepção pública das controvérsias e incertezas
relacionadas ao alimento/nutriente enquanto um medicamento.
Nessa pesquisa constatamos que o discurso institucional de
promoção à saúde, amplamente incorporado nas políticas de saúde
no Brasil, teve um alto impacto na indústria alimentar e na sociedade.
Se, por um lado, esse discurso difundiu uma concepção mais ampla
(e por isso, difusa) do processo saúde-doença, por outro lado, ele
permitiu a proliferação de fracas correlações de causalidade (com
ou sem financiamento e suporte das indústrias alimentares), como
por exemplo, a correlação entre determinados alimentos/nutrientes
e prevenção de doenças crônicas. Mesmo que essas correlações
funcionem em condições de laboratório, isso não significa que elas
funcionarão para a população em geral ou individualmente, porque
os benefícios dos nutrientes representam apenas uma pequena
parte de um complexo mecanismo de funcionamento do corpo
(e mente), sendo impossível separá-los de outras variáveis envolvidas na
ocorrência de doenças crônicas. A contingência e o caráter provisório
do conhecimento científico (especialmente na área de nutrição) são
frequentemente esquecidos pelos profissionais de saúde, e a aplicação
dessas fracas correlações (baseadas em uma autoridade epistêmica de um
Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde 77

conhecimento supostamente científico) a casos clínicos individuais tem


gerado padrões normatizados de comportamento alimentar e confusões
na percepção pública do que poderia significar uma dieta saudável.

Referências

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Estudos sobre medicamentos
em uma perspectiva interdisciplinar

Eliana E. Diehl

Introduzindo o tema

Este texto busca contemplar três campos disciplinares trazendo


como exemplo algumas pesquisas desenvolvidas em contextos locais
indígenas no sul do Brasil, mais especificamente em Santa Catarina, que
abordam os usos dos medicamentos. Procuro ampliar, por meio de um
diálogo interdisciplinar, a compreensão de realidades específicas, tendo
em conta, como salientou Hahn (1999), que as culturas locais não são
sistemas autônomos ou independentes.
Os campos disciplinares nos quais as pesquisas estão baseadas
são antropologia, saúde pública/saúde coletiva e ciências farmacêuticas,
tomadas a partir de determinados aspectos teóricos e metodológicos,
ou seja, não se trata de considerá-las nos seus arcabouços completos,
mas sim de evidenciar elementos que permitem observar interfaces
úteis, por exemplo, para as políticas públicas em saúde. Também
esclareço que quando me refiro a “medicamento” estou querendo dizer
os produtos desenvolvidos pela indústria farmacêutica, que contêm
fármacos em sua forma isolada e que devem cumprir, sob a definição das
ciências farmacêuticas, requisitos de segurança, eficácia e qualidade. Já
“remédio” refere-se a variados recursos terapêuticos, sejam chás e outras
preparações oriundas de vegetais, animais e/ou minerais, benzeduras
etc. (os medicamentos também podem ser incluídos na categoria mais
ampla de “remédio”, desde que atendendo os requisitos já citados).
Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar 81

De maneira bastante resumida, podemos dizer que a cooperação


entre a antropologia e a saúde pública iniciou nos anos 1950,
originando a antropologia médica, associada à clínica, à epidemiologia
e à etnociência/etnomedicina. Nos anos 1970, a abordagem simbólico-
interpretativa foi incorporada à antropologia médica, representada
por antropólogos como Alan Young, Arthur Kleinman e Byron Good.
Trostle e Sommerfeld (1996) assinalaram que as trocas que se observam
estão na apropriação e redefinição de conceitos-chave, sociais e culturais
(mudança cultural, estratificação social, risco), no nível metodológico (a
antropologia auxiliando na compreensão e “medida” das características
subjetivas, que são de difícil quantificação), nos estudos descritivos e de
intervenção e no uso de conceitos epidemiológicos pela antropologia,
facilitando a generalização de algumas conclusões antropológicas.
Mesmo com o desenvolvimento da antropologia médica, os
antropólogos não dedicaram maior atenção até o final dos anos 1980 ao
que Van der Geest (1988, p. 330) chamou de “‘hard core’ da biomedicina:
os medicamentos”, quando então esse símbolo da moderna medicina
tornou-se um dos focos centrais nas pesquisas, principalmente naquelas
conduzidas em países não desenvolvidos e emergentes.
Uma nova perspectiva trazida por esses estudos, denominada
“antropologia farmacêutica” (VAN DER GEEST, 1988) ou “antropologia
dos medicamentos”, enfatiza os contextos locais de distribuição e uso
dos medicamentos (VAN DER GEEST, 1987; ETKIN et al., 1990;
VAN DER GEEST et al., 1996), já que abordagens macropolíticas
e macroeconômicas produzidas em países não desenvolvidos e
emergentes não são suficientes para explicar por que, por exemplo,
o consumo de medicamentos é prática relevante mesmo onde os
serviços de saúde são deficientes, os medicamentos de venda sob
prescrição são disponíveis livremente e a automedicação é importante
recurso de cuidado. Diehl e Rech (2004, p. 56) enfatizaram que uma
análise focada no contexto local buscando os variados modos de
prescrição, de indicação e de consumo de medicamentos irá auxiliar
“sobremaneira o desenvolvimento de intervenções capazes de mudar
comportamentos que de fato constituem ameaças à saúde”.
Sob um olhar cultural e social, os medicamentos têm um caráter
concreto, pois podem ser ingeridos, injetados, esfregados, negociados:
ao objetivar a doença, a concretizam, proporcionando elementos para
negociar com o problema e com os atores. Segundo Van der Geest
(1989), o encanto dos medicamentos em diferentes contextos surge de sua
concretude como substâncias, são coisas, são mercadorias que facilitam
Políticas públicas: reflexões antropológicas 82

processos simbólicos e sociais particulares. Além disso, estão presentes


em todo o mundo, convêm à biomedicina e a outros sistemas de saúde e,
portanto, são bons para pensar sobre as relações entre o local e o global. A
antropologia dos medicamentos é útil na medida em que, nos episódios
de doença, os sujeitos e grupos sociais muitas vezes elaboram explicações
baseadas no tipo, quantidade e “poder” dos medicamentos e/ou remédios
utilizados (NICHTER; VUCKOVIC, 1994).
As ciências farmacêuticas – aqui representadas pelos medi-
camentos, um de seus objetos centrais –, por sua vez, em geral1 constroem
seu campo de pesquisa e ação sobre a biomedicina, assumindo-a
como possuidora de conhecimentos e técnicas superiores a outros
sistemas médicos e aplicáveis aos mais diversos contextos e populações.
A realidade na biomedicina é o biológico, as patologias do indivíduo,
baseada na prática clínica e na pesquisa científica, aceitando-se aquilo
que é provado pela ciência. Duas vertentes complementares que buscam
conhecer, analisar e avaliar o impacto dos medicamentos sobre as
populações humanas compõem os estudos farmacoepidemiológicos:
a farmacovigilância e os estudos de utilização de medicamentos
(EUM)2 (OSÓRIO-DE-CASTRO, 2000). A farmacovigilância estuda
principalmente as reações adversas aos medicamentos (RAM).
Os estudos de utilização de medicamentos englobam saberes referentes “à
comercialização, distribuição, prescrição e uso de medicamentos em uma
sociedade, com ênfase especial sobre as consequências médicas, sociais
e econômicas resultantes” (WHO, 1977 apud OSÓRIO-DE-CASTRO,
2000, p. 25), constituindo uma das estratégias para a racionalização do
uso de fármacos. Esses estudos trazem um amplo número de aspectos,
enfatizando questões políticas e econômicas, representando instrumentos
essenciais na elaboração das políticas governamentais na área da Saúde,
sendo também um meio capaz de avaliar a efetividade e a eficiência
da utilização de medicamentos pela população e medir o seu impacto,
se positivo ou negativo (OSÓRIO-DE-CASTRO, 2000). No entanto, a
abordagem epidemiológica dos medicamentos mantém a perspectiva
biomédica, baseada em uma visão biológica, reducionista e fragmentada

1
Há áreas nas ciências farmacêuticas que incorporam perspectivas sociais e humanas
para a compreensão do papel dos medicamentos, como a farmácia social – para saber
mais, ver Hassali et al. (2011) – em vários países e a assistência farmacêutica no Brasil –
ver, por exemplo, Santos (2011).
2
Alguns autores ainda citam a farmacoeconomia (que se ocupa com o impacto
econômico e os benefícios à saúde produzidos pelos fármacos) como uma abordagem
inserida nos EUM (OSÓRIO-DE-CASTRO, 2000).
Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar 83

sobre a doença, na eficácia instrumental, na explicação mecanicista do


funcionamento do corpo e do medicamento.
Embora haja avanços nas pesquisas colaborativas (HAHN, 1999),
questões ligadas ao relativismo cultural permanecem como desafios
importantes no diálogo entre a antropologia e as ciências da saúde em
geral. Essa postura etnocêntrica é refletida nas políticas de saúde e na
implementação dos serviços. Para superar o impasse, tanto as medicinas
indígenas quanto a biomedicina devem ser “relativizadas”, tratando
ambas como sistemas médicos (KLEINMAN, 1978, 1980) ou formas de
atenção (MENÉNDEZ, 2003) que podem ser complementares. Como
afirmado por Langdon (2000), relativizar a biomedicina significa que
seus profissionais precisam reconhecer as suas limitações e admitir
que existem outros sistemas médicos que podem contribuir para o
conhecimento e a implementação de projetos e programas em saúde. Essa
é a premissa fundamental para o respeito às especificidades de cada grupo
populacional, como por exemplo povos indígenas.

Estudos sobre medicamentos em contextos locais


indígenas de Santa Catarina
Como já salientei em outro texto (DIEHL, 2013),
comparativamente às pesquisas antropológicas realizadas em outros
países entre grupos étnicos e/ou comunidades nativas, em nosso país
ainda são muito poucos os estudos que buscam compreender os usos
e percepções que têm os indígenas quando se trata de medicamentos,
podendo citar Novaes (1996, 1998), Pellegrini (1998), Diehl (2001), Diehl
e Grassi (2010), Lima (2011) e Diehl e Almeida (2012). Esses estudos
demonstram a dependência dos povos indígenas pelos medicamentos
e pela biomedicina de modo mais amplo. Também permitem dizer que
mesmo com um maior acesso aos medicamentos, as condições de saúde
não necessariamente melhoraram.
Aqui, quero explorar conjuntamente os dados coletados em três
contextos indígenas de Santa Catarina, referentes aos três principais
grupos étnicos desse estado, a saber: Kaingáng, Xokleng e Guarani.
Essas pesquisas procuram revelar o papel dos serviços biomédicos no
acesso aos medicamentos e os usos que os indígenas fazem deles na
perspectiva da autoatenção (MENÉNDEZ, 2003).3

3
Para Menéndez (2003), a autoatenção (sentido restrito) é a primeira forma de atenção
no âmbito familiar e é um processo que inclui os conhecimentos e práticas de sujeitos
Políticas públicas: reflexões antropológicas 84

Os indígenas de Santa Catarina

Santa Catarina, um estado do sul do Brasil, tem 6.248.436


habitantes (IBGE, 2010a), com uma população indígena estimada
em 16.041 pessoas (IBGE, 2010b), sendo que 7.055 vivem em Terras
Indígenas (IBGE, 2010c), pertencentes majoritariamente às etnias
Kaingáng, Xokleng e Guarani. Uma característica importante desses três
povos é que estão em contato constante e permanente com a sociedade
não indígena, seja porque suas aldeias estão muito próximas (ou mesmo
dentro) das cidades ou porque transitam cotidianamente entre as Terras
Indígenas e as sedes dos municípios.
Os Kaingáng vivem nos estados de Santa Catarina, Rio Grande
do Sul, Paraná e São Paulo, constituindo uma das maiores populações
indígenas do Brasil. Pertencem ao tronco linguístico Macro-Jê, à
semelhança de outros grupos da região central do Brasil, como os Xavánte
e os Kayapó. A maioria dos Kaingáng de Santa Catarina entende e fala o
português, sendo os mais velhos, em geral, bilíngues; os jovens em idade
escolar têm recebido na escola o ensino do idioma. É importante ressaltar
que os Kaingáng não mantêm em seu cotidiano sinais que indicariam,
no senso comum, uma identidade indígena (como marcas e adornos no
corpo, rituais tradicionais de cura, uso cotidiano da língua etc.), o que
reflete diretamente na conduta das equipes de saúde, que ao perceberem
que não há uma diferenciação em relação à sociedade envolvente, não
veem como necessários ações e serviços culturalmente adequados.
Os Xokleng estão concentrados em uma única Terra Indígena,
somente em Santa Catarina, tendo se autodeclarado indígenas 1.071
pessoas no último Censo nacional (IBGE, 2010c). Também pertencem
ao tronco linguístico Macro-Jê e da mesma forma que os Kaingáng,
não usam no seu dia a dia sinais que os identificariam como indígenas,
repercutindo no modo como as EMSIs prestam os serviços de saúde.
Os Guarani correspondem a uma população transnacional,
distribuída no Paraguai, Argentina e Brasil, pertencendo ao tronco
linguístico Tupi-Guarani. No Brasil, encontram-se no Rio Grande
do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito
Santo e Mato Grosso do Sul, divididos nos subgrupos Kaiowá, Mbyá

e seus grupos sociais na busca de resolver os problemas que afetam a saúde. Nesse
processo, os sujeitos e grupos sociais articulam diferentes formas de atenção de maneira
autônoma dos especialistas, incluindo a automedicação, que é usar determinados
fármacos sem a intervenção direta e/ou indireta dos profissionais de Saúde, mas também
utilizar ervas, álcool, maconha, ventosas, massagens, cataplasmas etc.
Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar 85

e Nhandeva; em Santa Catarina predomina a parcialidade Mbyá, com


população estimada em torno de 500 indivíduos vivendo em várias
Terras Indígenas (IBGE, 2010c). Em geral, são todos falantes da língua
guarani; o português e a escrita guarani passaram a ser ensinados às
crianças com a implantação das escolas nas aldeias.

Sobre o trabalho de campo


Entre os Kaingáng, a investigação foi realizada na Terra Indígena
Xapecó (TIX), especialmente na aldeia Sede, em dois períodos: durante
sete meses em 1999-2000 e 38 dias entre 2007 e 2008. Entre os Xokleng
da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, foram 77 dias entre 2008 e 2009, sob
a responsabilidade do antropólogo Ledson Kurtz de Almeida. O campo
com os Guarani da Terra Indígena Morro dos Cavalos aconteceu entre os
anos de 2006 e 2008, totalizando 103 dias, conduzido por Francielly Grassi
e por mim. Utilizamos a observação participante em diferentes situações,
como no cotidiano das famílias, na prestação de serviços de saúde, em
reuniões que tratavam da saúde, entre outros. Também entrevistamos
indígenas direcionando para o tema dos medicamentos e aplicamos um
questionário padrão sobre a “farmácia caseira” (informações sobre os
medicamentos existentes nas casas, juntamente com dados demográficos),
além de conversas informais sobre aspectos mais amplos do proceso saúde-
doença-atenção. As análises constaram de uma descrição da “farmácia
caseira”, a partir de um banco de dados em planilha Excel® e cálculos de
frequência e percentual pelo Statistical Package for the Social Sciences
(SPSS®), considerando a Classificação Anatomical Therapeutic Chemical
(ATC) do WHO Collaborating Centre for Drug Statistics Methodology
nos níveis 2 (grupo terapéutico) e 5 (nome do fármaco), e contextual,
levando em conta a prescrição, distribuição e/ou uso dos medicamentos,
a organização dos serviços de saúde e a organização social e política nas
três Terras Indígenas. Todas as pesquisas cumpriram com as exigências
legais para povos indígenas no Brasil: aprovação por Comitê de Ética em
Pesquisa (local), pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)
e pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

Os medicamentos entre os Kaingáng da Terra


Indígena Xapecó

Em 1999 e início de 2000, os auxiliares e atendentes de


enfermagem ficavam a maior parte do tempo na Enfermaria, como era
Políticas públicas: reflexões antropológicas 86

chamado o posto de saúde, cuja coordenação era de uma pessoa ligada


à liderança indígena. Médicos e dentistas prestavam a assistência em
poucos períodos da semana. Os medicamentos sempre tiveram uma
sala reservada e nessa época não faltavam.
A partir de 2000, o modelo de atenção4 passa a ser organizado,
contando com a Equipe Multiprofissional de Saúde Indígena, formada
por: médico, dentista, enfermeiro, auxiliar e/ou técnico em enfermagem,
agente indígena de saúde (AIS) e agentes indígena de saneamento
(AISAN). Posteriormente, foram incorporadas à Equipe uma nutricio-
nista e uma auxiliar de consultório dentário. Na aldeia Sede, um prédio
foi construído para abrigar o posto de saúde, e os medicamentos
ganharam uma sala mais ampla, existindo ainda uma outra sala para o
armazenamento de quantidades maiores.
Na pesquisa de 1999/2000, saliento os seguintes pontos:
1) Na análise das prescrições médicas, de entrega de medica-
mentos sem receita pelos auxiliares e atendentes da
Enfermaria e dos medicamentos encontrados nas casas
(“farmácia caseira”), os antibacterianos, os analgésicos,
os antiparasitários, os ansiolíticos e os anticonvulsivantes,
entre outros, foram as classes farmacológicas que chamaram
muito a atenção. Durante um mês, os médicos prescreveram
medicamentos em 85% das consultas; os auxiliares e atendentes
entregaram sem receita 417 medicamentos em um mês. Nas
190 casas pesquisadas (totalidade das casas da aldeia Sede),

4
No final de 1999, as ações e serviços de saúde para os povos indígenas foram
organizados na forma de um subsistema vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS),
constituído de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) distribuídos por
todo o país. Os DSEIs contam com uma estrutura para a atenção primária nas Terras
Indígenas, atendidas por Equipes Multiprofissionais de Atenção Básica à Saúde
Indígena (EMSIs), e os serviços de maior complexidade são referenciados na rede mais
ampla do SUS. Esse modelo é respaldado pela Política Nacional de Atenção à Saúde
dos Povos Indígenas (PNASPI) (BRASIL, 2002), que além dos princípios do SUS de
universalidade, equidade, integralidade e participação comunitária, inclui o princípio
da atenção diferenciada. Idealmente, esse princípio deve permear todas as diretrizes
da PNASPI, sendo uma de suas definições “o respeito às concepções, valores e práticas
relativos ao processo saúde-doença próprios a cada sociedade indígena e a seus diversos
especialistas” (BRASIL, 2002, p. 18). Estudos (LANGDON et al., 2006; DIEHL et al.,
2012; PONTES et al., 2012) têm demonstrado que a definição e operacionalização da
atenção diferenciada se mostram ambíguas e confusas, destacando-se nesse cenário os
papéis dos agentes indígenas de saúde e da participação e controle social por parte dos
povos indígenas, que estão longe de se realizarem na prática.
Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar 87

em 71% existiam medicamentos. Entre os 525 medicamentos


encontrados nas casas, 21,5% eram antibacterianos; 14,7%
analgésicos, principalmente dipirona; 6,7% anti-inflamatórios,
em especial diclofenaco.
2) A disponibilidade na Enfermaria estimulava a demanda e a
atitude dos médicos, prescrevendo muito, legitimava e encora-
java os Kaingáng na busca de medicamentos sintomáticos.
3) Os auxiliares e atendentes de enfermagem, que ficavam a
maior parte do tempo na Enfermaria, tomavam decisões
baseadas em seus conhecimentos e experiências prévias.
4) A coordenação, sendo de pessoa ligada à liderança, gerava
conflitos pelas disputas de poder e de interesses pessoais. Os
conflitos ficavam evidentes na questão dos medicamentos,
pois se havia autonomia para os médicos prescreverem, isso
não significava que o indígena iria receber exatamente o que
fora receitado. A avaliação era baseada na experiência ou ainda
em critérios de existência ou não no estoque. Por exemplo,
troca de paracetamol por dipirona; ampicilina prescrita pelo
médico para tomar de 6/6 h teve sua posologia mudada para
8/8 h porque a atendente considerava que tomar quatro vezes
ao dia era muito forte.
5) A coordenação da Enfermaria podia usar da autoridade
e solicitar consulta para um paciente, mesmo com todas as
fichas já tendo sido distribuídas. Também solicitava receita de
medicamentos psicotrópicos (ansiolíticos, antidepressivos e
anticonvulsivantes) sem a presença do paciente.
Na pesquisa de 2007/2008, destaco os pontos:
1) As consultas médicas eram basicamente de demanda
espontânea, principalmente para infecção respiratória aguda,
diarreia, desnutrição, infestações parasitárias, doenças de pele
e hipertensão.
2) Alcoolismo e doenças sexualmente transmissíveis eram
importantes agravos, porém não faziam parte das demandas
espontâneas e não havia um perfil epidemiológico registrado.
3) As ações e serviços de saúde eram executados de forma
complementar pelos dois municípios onde se localiza a TIX e
por uma Organização Não Governamental (ONG) indígena,
o que resultava em diferentes formas de contratação dos
profissionais.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 88

4) Na área da TIX localizada em Ipuaçu, que possui a maior parte


da população indígena (em torno de 2/3), existia um posto
de saúde na aldeia Sede, um na aldeia Pinhalzinho e outro
na aldeia Fazenda São José. No período entre 2007 e 2008,
atuavam 31 profissionais ligados à Equipe Multiprofissional.
Além da equipe de saúde, havia três auxiliares de serviços
gerais contratadas pelo município e cinco motoristas.
5) Desde a implantação do subsistema, observa-se uma alta
rotatividade dos profissionais, especialmente dos AIS e dos
médicos.
6) Não havia coordenação local formalmente instituída, cargo
normalmente ocupado por enfermeiro.
7) As principais atividades realizadas no posto de saúde eram:
consultas médicas e odontológicas, coleta de preventivo,
pesagens, acompanhamento de hipertensos e diabéticos,
curativos, nebulização, encaminhamentos a especialistas
e para hospitalização, imunização, acompanhamento do
sistema de vigilância alimentar e nutricional e entrega de
medicamentos.
8) Na análise da “farmácia caseira”, em 2007 os medicamentos
foram prescritos especialmente pelos médicos do posto de
saúde da aldeia Sede (70,4%) e adquiridos majoritariamente
nesse local (85,7%); em 2008, em torno de 50% foram prescritos
pelos médicos e a maioria (96%) adquirida no mesmo posto.
9) Segundo os entrevistados, a automedicação com medicamentos
representou 5,8% em 2007 e em torno de 25% em 2008.
10) O padrão de prescrição e o tipo de medicamento encontrado
nas casas não diferiram nesses últimos 7-8 anos: entre os
568 medicamentos encontrados em 2007 em 150 casas
(aproximadamente metade do número de casas da aldeia Sede),
os analgésicos (dipirona novamente em primeiro lugar), os
antibacterianos e os anti-inflamatórios (novamente o diclo-
fenaco) foram as classes farmacológicas mais significativas.
Os Kaingáng buscavam serviços biomédicos e medicamentos
e também procuravam os especialistas nativos e usavam remédios do
mato. O termo nativo “venh-kagta” designa tanto o remédio da farmácia
quanto o remédio do mato. Segundo um velho Kaingáng, “Medicamento
é venh-kagta. [...] Primeiro diz venh-kagta, depois diz pra quê e no caso
do remédio branco é a receita que diz o nome.” Noções de força e dieta
Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar 89

permeiam a utilização de medicamentos e remédios. Para os Kaingáng,


força é ter saúde, e a fraqueza traz como consequência a doença. A força
dos remédios é dada pelo tipo e quantidade. Um Kaingáng ensinou
que qualquer remédio “não faz mal se souber tomar, só não pode tomar
muito”. Uma das informantes que se mostrou mais à vontade para
falar dos medicamentos afirmou que interrompe o uso de um remédio
quando observa que a cura ou a melhora se deram. Para uma curandeira
Kaingáng, a força de um remédio, seja ele do mato ou da farmácia,
estava relacionada à quantidade que se usa. Outra mulher considerava o
remédio da farmácia muito mais forte que o do mato.
Os alimentos podiam ser os causadores de determinado evento,
ou os alimentos modernos eram responsáveis pela atual natureza fraca
dos índios; ou seja, estão na gênese das doenças. Segundo os Kaingáng,
o uso dos remédios do mato exige dietas específicas, enquanto que os
remédios da farmácia é o médico que diz se tem dieta ou não.
Noções próprias de eficácia permeavam o uso de venh-kagta.
Comparações de cor, odor, sabor definiam se o medicamento
ou remédio era bom. Os medicamentos comprados na farmácia
eram melhores que aqueles sem caixa e que traziam o nome pela
Denominação Comum Brasileira ou Internacional. As injeções ou
outras formas farmacêuticas eram avaliadas de acordo com o poder
de cura ser mais ou menos rápido. As injeções, ao mesmo tempo
que eram mais fortes que comprimidos e líquidos e tinham efeito
rápido, causavam dor e endurecimento do membro, o que podia
impedir para o trabalho e até causar outras doenças. Assim, o caráter
ambíguo das injeções pode auxiliar na compreensão de por que
muitas vezes os Kaingáng não levavam a termo o tratamento prescrito.
Os antiparasitários não eram bons porque “não derrubavam as bichas
na obra”, isto é, não era possível observar os parasitas nas fezes. Para
uma mãe Kaingáng, a ampicilina, um antibacteriano, era boa para a
gripe; porém, quando a criança não tinha febre, diferentemente da
amoxicilina, outro antibacteriano, recomendada quando a febre estava
presente; já a eritromicina, também um antibacteriano, ela considerava
quase a mesma coisa que a Ampicilina→. O conhecimento dessa mãe
permitiu julgar a força desses antibacterianos: “O mais forte, qual seria
o mais forte... O certo acho que era amoxilina. Acho, não sei. É porque
amoxilina... ele é... acho que o melhor, amoxilina do que ampicilina e
eritromicina”.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 90

Os medicamentos entre os Xokleng da Terra Indígena


Ibirama-Laklãnõ

A EMSI, contratada por uma ONG não indígena e formada por


médico, dentista, enfermeiro, técnicos de enfermagem, AIS e AISAN, se
revezava entre as sete aldeias da TI, atendendo a demandas espontâneas
como diarreias, gripes, dores de cabeça, dor no corpo, entre outras, e
motivava a busca pelo serviço no posto de saúde. Além disso, havia
acompanhamento de casos de hipertensão, de diabetes bem como de
outros casos de uso de medicação contínua e controlada. Destacavam-
se também os casos de doenças sexualmente transmissíveis, sendo no
ano de 2007 identificados cinco casos de HIV positivo.
Os postos de saúde locais procuravam atuar em um nível de triagem
das demandas gerais de atendimento. Realizavam acompanhamento de
gestantes, auxiliando na coleta de exames de sangue e de material para
o preventivo de câncer do colo do útero e pesagem das crianças de 0 a 5
anos, além dos procedimentos cotidianos, como realização de curativos,
entrega de medicamentos, aplicação de injeções, encaminhamentos às
consultas especializadas e para internação, entre outros. Havia também
participação nas campanhas de vacinação.
Com relação especificamente aos medicamentos, estes eram
disponibilizados em um estoque nos postos de saúde das aldeias e,
quando faltavam nesses locais, havia um estoque na farmácia do Polo
Base. Esse estoque seguia a lista básica organizada pela ONG não
indígena e Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), contando com
cerca de 150 especialidades farmacêuticas. Quando necessário, havia
aquisição de medicamentos através de contrato estabelecido entre a
ONG e uma farmácia de Ibirama.
No levantamento da “farmácia caseira” em uma das aldeias,
destaco:
1) Em 40 casas (95% do total) foram identificados 456 medi-
camentos, sendo 20,2% para o trato alimentar e metabolismo,
destacando-se os antiespasmódicos com ou sem associação
a analgésicos (5,3% de butilescopolamina) e os antieméticos
(4,4% para metoclopramida); 17,5% eram medicamentos
para o sistema nervoso, sendo 12,7% outros analgésicos e
antipiréticos (dipirona, paracetamol e ácido acetilsalicílico);
11% eram para o sistema músculo-esquelético, principalmente
os anti-inflamatórios e antirreumáticos não esteroidais (10,8%
Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar 91

para diclofenaco e nimesulida); os anti-infecciosos de uso


sistêmico corresponderam a 10,7%, a maioria antibacterianos
betalactâmicos (2,9% de amoxicilina e ampicilina) e cefalos-
porinas de primeira geração (2,4% para cefalexina).
2) Os medicamentos foram prescritos pelo médico do posto de
saúde (44,5%) e por outros médicos (22,6%), entre outros
profissionais de saúde.
3) Segundo os entrevistados, 6,6% foram obtidos por autome-
dicação; para 14,7% não foi informado quem os indicou. A
aquisição dos medicamentos foi majoritariamente (75,9%) no
posto de saúde da aldeia ou no Polo-Base.
4) Muitos dos medicamentos nas “farmácias caseiras” estavam
com pouco uso ou até mesmo lacrados.
Em relação a esse último ponto, algumas observações podem ser
feitas:
■ Ao ir ao posto de saúde da aldeia, o paciente, após fazer a
consulta e constatar a necessidade de medicação, verificava se
havia em estoque naquele local. Em não havendo, a receita
era encaminhada para aquisição pelo Polo Base na farmácia
conveniada, um processo geralmente demorado. Quando
o remédio retornava ao paciente, mesmo que o problema
diagnosticado não existisse mais ou ele tivesse resolvido a
situação de outra forma, recebia o medicamento, levava para
casa e guardava. Em algumas situações, esse medicamento
seguia nas redes das famílias extensas de acordo com o
aparecimento de doenças identificadas como comuns àquela
para a qual ele havia sido obtido. Assim, a circulação de
medicamentos reforçava os laços familiares e possibilitava o
acesso direto a eles fora do fluxo normal de atendimento que
devia iniciar pela consulta com o médico do posto de saúde
da aldeia.
■ Algumas vezes o paciente obtinha o medicamento no tempo
determinado, mas não era identificado por ele como de
eficácia. Isso era comum em situações em que o paciente
estava acostumado com um medicamento e, diante de uma
embalagem diferenciada, não o reconhecia. Às vezes o
sintoma passava e o medicamento rechaçado permanecia sem
ser consumido. Era comum isso ocorrer em casos de aquisição
de genéricos ou fórmulas equivalentes.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 92

■ Quando mudava a dosagem por alguma observação do médico,


o paciente não consumia e resolvia adquirir o anteriormente
utilizado através de seus próprios meios, deixando o do posto
guardado.
■ Certas vezes determinado medicamento causava desconforto
ao paciente: ou ele retornava ao posto para reclamar,
realizando nova consulta e obtendo outro medicamento
equivalente, ou simplesmente abandonava o tratamento; em
ambas as situações, o primeiro permanecia guardado na caixa,
fora de uso.
■ Era muito comum o uso de um medicamento somente enquanto
o paciente estava com os sintomas. Após esse período, o restante
da quantidade receitada permanecia guardado.
Entre os Xokleng, o processo de estabelecimento dos postos de
saúde nas aldeias se deu de um sentido externo para uma apropriação
interna, na medida em que os Xokleng passaram a ocupar os cargos
possíveis e formar profissionais de saúde para dar conta da demanda.
A administração dos postos ficava ao encargo de técnicas indígenas de
enfermagem que assumiam a responsabilidade pela manutenção. Eram
tratadas com prestígio pela comunidade, mas, mesmo assim, estavam
dentro do sistema hierárquico local, devendo se submeter à liderança.
As atividades dos postos, bem como a atuação dos profissionais,
eram acompanhadas e avaliadas pelas lideranças. Em situações de
insatisfação de indivíduos da comunidade, era a elas que recorriam
para o estabelecimento do controle da saúde. O profissional indígena
de saúde ficava entre o sistema oficial e o sistema local, estando mais
sujeito a este último, já que dependia das relações interpessoais ali
estabelecidas. Com relação aos medicamentos, o profissional do posto
não podia ser considerado sovina, pois era constantemente pressionado
para administrar medicamentos, mas, por outro lado, era cobrado
pelo sistema oficial para estabelecer um controle rigoroso. Os médicos
que atendiam nos postos também eram cobrados pelos pacientes para
realizarem encaminhamentos para consultas especializadas e para
administrarem determinados tipos de medicamentos.
Grande parte dos Xokleng que acionava o sistema de saúde
local buscava uma relação dialógica com os profissionais de saúde para
uma série de problemas que iam além dos sintomas. A justificativa
era o sintoma e, se não se desenvolvia uma negociação de significados
sobre a doença (por meio de um maior conhecimento das causas e dos
Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar 93

problemas mais profundos pelos quais o paciente estava passando),


o atendimento resultava no valor do sintoma relacionado com a
especialidade e tratamento respectivo. Cumpre dizer que havia certos
pacientes que “sempre estão doentes”, buscando incessantemente por
tratamento especializado.
No campo da saúde, a apropriação de elementos externos era
evidente. Os Xokleng diziam que queriam o melhor atendimento com
base no discurso da biomedicina. Os postos de saúde reproduziam um
atendimento convencional, mesmo que todos eles fossem administrados
por profissionais indígenas de saúde. Contudo, seguia em um sentido
de autonomia de uso dos elementos do sistema de saúde oficial,
gerando muitas contradições e conflitos da sociedade indígena com esse
atendimento. O discurso sobre a eficácia da medicina curativa era mais
frequente, sustentando a crença nos processos de cura biomédicos, o que
não significava a inexistência de alternativas de recursos de cura acionadas
pelos habitantes das aldeias, como uso de plantas e dietas, por exemplo.
Com frequência as causas de adoecimentos e mortes eram atribuídas
à ineficácia do sistema oficial de saúde em desenvolver a qualidade de
atendimento concebida na lógica xokleng: equipes médicas, veículos e
quantidade suficiente de medicamentos nas aldeias, por exemplo.
Portanto, muito do sistema oficial de caráter assistencialista e
biomédico era apropriado dentro da lógica xokleng em sua perspectiva
de valor. Procurava-se reproduzir na aldeia a imagem do sistema
acionado pelos não indígenas em um processo semelhante a outros
de apropriação e inclusão de elementos externos como valorização da
identidade étnica indígena. O que se destaca na saúde convencional,
como uso de medicamentos, consultas especializadas e exames de alta
complexidade, fazia parte de um discurso apropriado pelos indígenas;
mas a lógica interna das aldeias permanecia: hierarquia nas relações
locais, acesso direto e imediato aos serviços e medicamentos bem como
a inclusão da saúde em um sistema sociocultural global representado
pela articulação dos campos da religião, política e economia.

Os medicamentos entre os Guarani da Terra


Indígena Morro dos Cavalos

A EMSI, contratada pela mesma ONG não indígena que atuava


entre os Xokleng, era formada por médico, dentista, enfermeiro,
técnicos de enfermagem, AIS e AISAN. Essa equipe se deslocava
ao posto de saúde da única aldeia da TI uma vez por semana, e os
Políticas públicas: reflexões antropológicas 94

Guarani a procuravam apresentando as mais variadas queixas, com


ênfase para gripe, tosse e diarreia, o que se retratava nos principais
fármacos encontrados nos domicílios. Outros motivos para a busca
pelo serviço também foram observados e relatados pelos indígenas,
como a curiosidade, a atenção recebida pela equipe e a oportunidade
de encontrar parentes e vizinhos, servindo o posto de saúde como um
local de sociabilidade. Um dos pontos levantados como mais favorável
para os indígenas em relação à presença da equipe e à existência do
posto na aldeia era que não precisavam mais enfrentar filas nos postos
de saúde dos municípios vizinhos, razão também mencionada para não
desejarem a municipalização do atendimento.
Nos levantamentos da “farmácia caseira” guarani, saliento:
1) Entre as nove casas (aproximadamente 50% do total de
casas) visitadas em 2006, oito delas tinham medicamentos,
totalizando 38 unidades (média de 4,2 medicamentos por casa).
Em 2007 e em 2008 todas as casas habitadas foram visitadas
(20 e 19 casas respectivamente) e em 15 e 10 delas foram
encontrados medicamentos, respectivamente, totalizando 45
(média de 2,2 medicamentos por casa em 2007) e 22 (média
de 1,2 medicamento por casa em 2008) unidades.
2) Considerando-se as três pesquisas domiciliares, a armaze-
nagem nas casas era predominantemente na cozinha (43,8%)
e no quarto (41,9%), mantendo-se de maneira geral as
embalagens originais.
3) Os analgésicos foram a classe terapêutica predominante em
2006 (n = 7, 18,4%) e em 2007 (n = 7, 15,6%) e os antianêmicos
(n = 5, 22,7%) em 2008. Entre os 38 medicamentos encontrados
em 2006, conforme ATC 5o nível, destacaram-se o ambroxol
(n = 7, 18,4%), o paracetamol e o sulfato ferroso, entre outros;
o ambroxol (n = 6, 13,3%) também foi o mais representativo
dos 45 medicamentos encontrados em 2007, seguido pela
dipirona, diclofenaco e paracetamol, entre outros; em 2008,
dos 22 medicamentos encontrados, o sulfato ferroso foi o mais
observado (n = 4, 18,2%), seguido pela dipirona, paracetamol
e ambroxol, entre outros.
4) O médico da equipe de saúde foi o principal prescritor nos
três momentos (81,6% em 2006; 77,8% em 2007 e 91,0%
em 2008). A aquisição dos medicamentos pelos Guarani foi
basicamente quando da visita da equipe, no posto de saúde da
Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar 95

aldeia (84,2% dos medicamentos em 2006; 77,8% em 2007 e


91,0% em 2008). A farmácia particular, o Polo Base, o hospital,
o AIS e o vizinho/parente também foram citados como fontes
de acesso aos medicamentos.
5) A automedicação com medicamentos não foi relevante nas
três pesquisas domiciliares, tendo sido 10,6% em 2006, 8,9%
em 2007 e nenhuma referência em 2008.
Na pesquisa entre os Guarani, foi possível analisar as prescrições
emitidas em seis meses pelo médico da equipe, quando da visita à TI.,
destacando:
1) Entre janeiro e junho de 2008, a equipe foi 17 vezes à aldeia,
sempre com a presença do médico. O tempo de permanência
era em média de duas horas. Foram realizadas 236 consultas
(média de 13,9 consultas por dia, sendo o mínimo de duas
consultas e o máximo de trinta em um período de atendimento),
que resultaram em 458 medicamentos prescritos (média de
1,9 medicamentos por consulta e 26,9 medicamentos por
cada ida da equipe). No período analisado, o médico atendeu
109 pessoas, a maioria (57 pessoas) tendo ido uma vez para
consultar, duas delas foram sete vezes e as restantes variaram
entre duas e seis vezes. Receberam prescrição 58 mulheres
(53%) e 51 homens (47%); para 53 crianças (48,7%) de 0 a
14 anos foram prescritos medicamentos e para 22 pessoas
(20,2%) não havia indicação da idade nas receitas.
2) As classes terapêuticas predominantes foram as preparações
para tosse e resfriado (n = 80, 17,5%), os analgésicos, os
anti-helmínticos, os antibacterianos para uso sistêmico e os
anti-inflamatórios e antirreumáticos, seguidas por outras.
Entre os 458 medicamentos prescritos, segundo ATC 5o nível,
destacaram-se o ambroxol (n = 62, 13,5%), o albendazol, o
paracetamol, a dipirona e a azitromicina, entre outros. Destes
medicamentos, 53,9% (n = 247) constavam na Relação
Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) 2006.
Para os Guarani, a escolha do tratamento normalmente era
definida pelo karai (pajé), que decidia qual recurso terapêutico a
ser utilizado. A busca pelos medicamentos acontecia a partir do
diagnóstico feito pelo karai para o tratamento das “doenças de djuruá”
(o termo djuruá designa todas as pessoas da sociedade envolvente,
chamadas de maneira abrangente de “brancos”). Estas doenças, junto
Políticas públicas: reflexões antropológicas 96

com as “doenças espirituais”, compõem as duas classes de moléstias que,


segundo os Guarani, os afetavam. A origem das “doenças espirituais”
está intimamente relacionada com o desrespeito à natureza, a influência
exercida por determinadas pessoas sobre outras e os pensamentos
nocivos. A confirmação se de fato são “doenças espirituais” era
feita somente pelo karai. No entanto, algumas manifestações eram
reconhecidas como sinais indicativos dessa categoria de doença.
Mesmo reconhecendo os sintomas, o karai era considerado apto
para tratar essas doenças. Já as “doenças de djuruá” são provenientes
principalmente da má alimentação e do contato com os não indígenas
e são reconhecidas como tendo suas manifestações preditas. Também
quando são exibidas no físico, como as feridas, ou quando são
transmitidas de um indivíduo para outro, como a gripe. Os recursos
utilizados pelo karai podem também alcançar os resultados desejados
para o tratamento das “doenças de djuruá”. É importante salientar que
essa categorização entre “doenças de djuruá” e “doenças espirituais”
era feita pelos informantes; no contexto local, essa polarização não
era tão clara, já que, dependendo da situação os remédios, sejam eles
remédios de branco/medicamentos ou remédios do mato e rezas,
podiam ser utilizados independentemente do problema.
Entre as razões que levavam a comunidade a procurar os
medicamentos também estava a dificuldade para encontrar remédio do
mato, visto que a aldeia está localizada em uma pequena área muito
próxima da cidade, com o meio ambiente degradado.
A eficácia dos medicamentos era reconhecida para o tratamento
da gripe, tosse e diarreia, entre outros sintomas físicos. A grande
maioria apontou para o fato de interromper o tratamento quando havia
uma melhora no estado de saúde. Além da avaliação da eficácia, o
profissional de saúde também podia influenciar a adesão ao tratamento,
principalmente quando dava informações sobre efeitos adversos, que
eram interpretados pelos indígenas como algo muito ruim associado ao
uso dos medicamentos.

Algumas considerações para finalizar

Nossos dados indicam que a estrutura, a organização e a


operacionalização das ações e serviços em saúde a partir do subsistema
e da criação dos DSEI têm contribuído para um contexto marcado pelo
intenso contato entre diferentes saberes e diversas formações e práticas
Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar 97

em saúde. A biomedicina tem papel central no contexto intercultural.


As políticas públicas, mesmo incorporando conceitos e princípios,
como da atenção diferenciada, na prática são implementadas de
maneira que ignoram os contextos locais. As pesquisas etnográficas,
que buscaram dialogar com três campos disciplinares, indicam
que os problemas estão relacionados principalmente com a falta de
preparação dos gestores e dos profissionais de saúde para atuarem
em contextos interétnicos e com relações políticas locais e regionais
marcadas pelo preconceito. A práxis é caracterizada por uma forte
institucionalização, centralização e burocracia, sob a hegemonia do
modelo biomédico, enquanto aos indígenas restam suas interpretações
do que seja necessário para adequar suas ações e aproveitar as novas
oportunidades oferecidas pelo sistema.
O estudo sobre medicamentos em um contexto local tem
mostrado que não há uma medicina essencial, independente da história
de interação entre diferentes sociedades. Os profissionais da saúde,
fortemente impregnados por noções de eficácia e de racionalidade
biomédica, sistematicamente ignoram que o comportamento coti-
diano dos indígenas na busca por atenção à saúde é orientado pelos
conhecimentos e normas culturais locais, experiência individual,
juntamente com conflitos de poder que intervêm no acesso ao serviço
e na distribuição de medicamentos, além das influências políticas e
econômicas mais amplas.
As pesquisas sob a abordagem da antropologia dos
medicamentos têm importância para a compreensão do papel e do
uso dos medicamentos em diferentes sociedades. Nossas investigações
demonstram que a pluralidade de opções terapêuticas disponíveis para
os indígenas permitem a busca de diferentes recursos de cuidados,
evidenciando o uso de medicamentos nas práticas de autoatenção.
Além disso, os medicamentos representam um foco privilegiado no
entendimento da inserção da biomedicina, pois ocupam um espaço
notável no cotidiano dos povos indígenas.
É fundamental que a hipermedicalização entre indígenas (e não
indígenas) seja compreendida não como um ato isolado de busca de
cuidado, mas como parte de um processo que inclui atos dos sujeitos e
grupos, além dos diferentes curadores que intervêm no processo. Como
salientou Yoder (1997), não basta propor intervenções que relacionam
mudança de conhecimento, usando a biomedicina como modelo
normativo, com mudança de comportamento. É necessário ir além,
buscando nas inúmeras interações entre os diferentes atores envolvidos
Políticas públicas: reflexões antropológicas 98

e setores de saúde os elementos que condicionam determinados


comportamentos em saúde. Nesse sentido, as intervenções, incluindo
as ações em saúde pública, devem ser consideradas como processos
de troca cultural e social (HAHN, 1999), em que a comunidade, os
pacientes e suas famílias são participantes ativos.
Ainda segundo Yoder (1997), um desafio significativo para
a colaboração entre a antropologia e a saúde pública é negociar as
informações que são relevantes para o programa ou projeto específico
em saúde, bem como evidenciar a importância dos conhecimentos
locais no seu planejamento e execução. O antropólogo, portanto, deixa
de ser neutro ou simples mediador para se tornar um membro crítico e
reflexivo (LANGDON, 2001). Ele deve facilitar o entendimento de que
a cultura é heterogênea, emergente e dinâmica e que o comportamento
em relação à saúde e aos processos de doença e cura não está ligado
somente aos aspectos cognitivos (conceitos locais, crenças, atitudes e
valores), mas também às interações sociais que caracterizam o contexto
interétnico, intercultural e intermédico.

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Ética e política em pesquisa:
os métodos qualitativos
e seus resultados

Esther Jean Langdon


Sônia Weidner Maluf
Carmen Susana Tornquist

Introdução

O objetivo deste artigo é discutir as especificidades da pesquisa


qualitativa em saúde e sua contribuição ao debate sobre ética na pesquisa.
A pesquisa qualitativa tem como ponto de partida: 1) a ideia de que,
para entender melhor o processo de saúde e doença e o processo e o
significado de curar, é preciso abordar a experiência da doença como
processo subjetivo e buscar entender o mundo do sofredor; 2) a visão
de que, para pensar as políticas públicas em saúde, questões como o
acesso universal, a equidade, a humanização e o respeito à cultura e ao
conhecimento do outro, é preciso pensar que saúde também é política, na
medida em que é um problema coletivo e social; 3) a constatação de que as
pesquisas em locais e culturas específicos, como as sociedades indígenas,
têm revelado, em relação à questão da saúde, processos micropolíticos
e de relações de poder (dados que permitem a avaliação dos serviços
prestados em saúde, a relação da equipe profissional com os pacientes, a
avaliação dos princípios dos serviços na atenção diferenciada, as relações
de poder envolvidas na aplicação de políticas e programas de saúde), que
Ética e política em pesquisa 103

não aparecem em outras formas de pesquisa. Essas questões nos levam


a discutir o quanto os procedimentos exigidos pelas resoluções sobre
ética em pesquisa não levam em consideração essas especificidades; 4)
a percepção de que a pesquisa qualitativa traz contribuições não apenas
para a pesquisa em saúde em geral, mas também para a elaboração de
políticas públicas e sociais voltadas à saúde, assim como para a prática
cotidiana dos profissionais e agentes de saúde.
Partimos do entendimento de que a antropologia e as demais
ciências humanas não devem se furtar a discutir as questões de ética
na pesquisa ou simplesmente estar ausentes dos Comitês de Ética na
Pesquisa (CEPs), mas que temos uma contribuição importante a dar
nesse campo, pelas próprias características da pesquisa antropológica e
qualitativa.
Este artigo foi feito a seis mãos e reúne reflexões que apresentamos
separadamente em diferentes eventos, entre eles dois encontros sobre
ética em pesquisa qualitativa em saúde,1 realizados em 2006 e 2007,
coordenados pela Dra. Iara Guerriero,2 e um debate sobre o mesmo tema
no evento “Diálogos transversais em antropologia”, realizado em junho de
2007, no qual debatemos o Relatório sobre ética em pesquisa qualitativa
produzido no primeiro encontro em Guarujá.3 O Relatório (SÃO PAULO,
2007) demonstrou ser altamente frutífero para pensar, do ponto de vista
da pesquisa qualitativa, as limitações da atual regulamentação sobre ética
na pesquisa e apontar para modificações nesta.

1
O primeiro, “Ética em pesquisa qualitativa em saúde”, organizado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo com o apoio do Programa
Especial para Fortalecimento da Pesquisa em Doenças Tropicais da Organização
Mundial da Saúde (TDR/WHO), foi realizado em Guarujá, São Paulo em agosto de
2006. O segundo, “I Seminário sobre ética nas pesquisas nas Ciências humanas e sociais
e na saúde, foi organizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de
Saúde de São Paulo e pelo Instituto de Psicologia da USP, também com o apoio do TDR/
WHO”.
2
Os dois textos iniciais que deram origem a este são: LANGDON, Esther Jean. “Dados
qualitativos como um dos resultados”, apresentado no encontro de 2007; MALUF, Sônia
W. “Do organismo à cultura: onde estão os sujeitos”, apresentado no debate dos Diálogos
Transversais, UFSC, e posteriormente modificado em MALUF, S. W.; TORNQUIST,
Carmen Susana. “Pedras no meio do caminho ou o caminho das pedras: os Comitês
de Ética na Pesquisa e a vocação crítica da antropologia”, enviado para apresentação
na Abanne, 2007. Na forma final deste artigo, modificamos o estilo oral dos dois textos
anteriores, mas tentamos manter as referências aos relatos de campo de cada uma das
autoras.
Nesse debate, Esther Jean Langdon apresentou o Relatório de Guarujá e Sônia W.
3

Maluf debateu o documento.


Políticas públicas: reflexões antropológicas 104

Somos antropólogas que pesquisam no campo de antropologia


da saúde. Jean Langdon tem experiência, principalmente, mas não
exclusivamente, com a temática da saúde indígena há quarenta
anos. Iniciou com estudos sobre os sistemas médicos tradicionais
e xamânicos dos indígenas amazônicos e nas últimas décadas tem
se dedicado à política de saúde indígena e à avaliação de serviços e
programas de saúde através dos métodos qualitativos. Entre os mais
recentes, tem pesquisado o papel dos agentes indígenas de saúde e os
programas especiais orientados para resolver problemas de nutrição,
abuso de álcool, hipertensão e tuberculose. Sônia Weidner Maluf tem
pesquisado no campo das chamadas terapias alternativas, incluindo
curas rituais e itinerários terapêuticos. Atualmente participa de
uma pesquisa sobre gênero, subjetividade e saúde mental, focada na
comparação entre políticas públicas, ativismo e experiências sociais
nesse campo, com ênfase nos itinerários terapêuticos e nas concepções
locais de sofrimento, aflição e cura. Carmen Susana Tornquist
trabalhou com a experiência do parto humanizado e atualmente
participa da mesma pesquisa sobre gênero e saúde mental.4
Observamos nos últimos anos mudanças significativas nos
fundamentos teórico-metodológicos da antropologia, que têm
impactado o papel do antropólogo em programas e pesquisas sobre
saúde tanto quanto sua relação com os pesquisados ou “colaboradores”.
Também a relação com o pesquisado tem sido alvo de novas
considerações éticas diante das questões centrais do quadro político
mundial dos últimos trinta anos, relacionadas à situação colonial
(iniquidade), à desigualdade do acesso aos serviços de saúde, ao direito,
ao respeito das particularidades e das práticas culturais e ao respeito aos
direitos humanos das mulheres e de grupos minoritários.
No período posterior à Segunda Guerra Mundial, o antropólogo
que participava de programas de saúde tinha sua maior responsabilidade
voltada aos profissionais que estabeleceram as prioridades em saúde, uma
situação na qual a biomedicina operou como hegemônica. Foi esperado
que ele identificasse os costumes e as práticas dos nativos para que os
médicos pudessem julgá-las ou modificá-las. Um segundo papel foi o de
ajudar na comunicação entre os profissionais de saúde e a comunidade
para conseguir melhor adesão da comunidade às orientações da equipe
médica. Na contramão disso, pesquisas concebidas como puramente

4
Participamos, enquanto representantes de nossos centros de ensino, em momentos
distintos, nos Comitês de Ética da UFSC e da UDESC.
Ética e política em pesquisa 105

científicas sobre saúde, conduzidas por médicos ou antropólogos, não


visavam assumir a responsabilidade nos cuidados da saúde da população
estudada. O debate sobre a atuação de Neel e outros de sua equipe de
pesquisa na epidemia de sarampo entre os Yanomami nos anos 1970 gira
em torno desse dilema ético e de outros dilemas produzidos quando a
equipe realiza “pesquisa pura” sem levar em consideração os direitos ou
necessidades do grupo estudado (DINIZ, 2007).
Na pesquisa de Langdon realizada em 1970 entre os índios
Sibundoy da Colômbia, ficaram evidentes as diferenças de visão sobre
a relação com os pesquisados entre a antropóloga e a equipe médica.
A pesquisa objetivava comparar o diagnóstico médico (pesquisa
epidemiológica e quantitativa) com o diagnóstico indígena (pesquisa
subjetiva e qualitativa) sobre as doenças (LANGDON; MACLENNAN,
1979). A metodologia envolvia duas etapas: na primeira, a equipe médica
passou nas casas da amostra para examinar os residentes que queriam ser
examinados por algum problema de saúde. Realizou-se um exame clínico
e tomaram-se amostras laboratoriais quando necessário. Langdon seguia
alguns dias depois conduzindo uma entrevista aberta sobre o diagnóstico
e o histórico da doença segundo a perspectiva dos índios. A sua tarefa
era de ouvir os índios sobre suas experiências com a doença em questão
e verificar como eles diagnosticaram a doença, ao contrário dos médicos,
que não escutaram os pacientes e realizaram seu próprio diagnóstico. Além
disso, a antropóloga havia chegado ao local da pesquisa com um mês de
antecedência para conhecer a comunidade e estabelecer relações com os
índios. Logo do início da estadia na comunidade, tornou-se evidente que
os índios esperavam dos médicos não só os exames médicos, mas também
orientações e medicamentos, interpretando a visita médica como consulta
médica. No entanto, os médicos não previram dar nenhum retorno
à comunidade por sua colaboração na pesquisa, até que a antropóloga
convenceu-os sobre a responsabilidade de indicar o tratamento e fornecer
os medicamentos quando possível, não só como reconhecimento da
colaboração, mas também como parte da ética médica.
Desde o momento em que essa pesquisa foi realizada, as reflexões
e teorias antropológicas têm se transformado de maneira bastante
significativa (ORTNER, 1994, 2000). Nossos paradigmas teórico-
metodológicos mudaram em face do mundo pós-colonial, pós-moderno
e multicultural. O objeto de nossas pesquisas, “o outro”, virou sujeito
político, com capacidade de agir e de decidir sobre sua vida. Em vez de
padrões normativos de cultura ou de uma visão de cultura com fronteiras
claras, hoje nos preocupamos com a práxis, como as pessoas percebem
Políticas públicas: reflexões antropológicas 106

e agem diante de situações vividas. A cultura hoje é caracterizada como


um fenômeno heterogêneo e resultado de uma pluralidade de visões.
Em contextos relacionados com a saúde, há uma pluralidade de atores,
representando interesses e poderes diferenciados, tais como profissionais
de saúde, pessoas em posições de planejamento, gerenciamento e execução
dos serviços, burocratas, ativistas de Organizações Não Governamentais
(ONGs), políticos nacionais, consultores, antropólogos e membros da
comunidade – estes também representando uma heterogeneidade de
interesses, conhecimentos e poderes.
Outra tendência importante nas mudanças teórico-metodoló-
gicas trata da ideia do conhecimento como uma construção
sociocultural, situado num contexto histórico particular (FOUCAULT,
2006) e de uma visão crítica em que os contextos de interação social são
caracterizados por conflitos e negociações de poder, mais do que por
processos de consenso. A dimensão política da saúde torna-se alvo de
nossas pesquisas, e nossas pesquisas se orientam para a avaliação das
políticas públicas, inclusive as de saúde.
Essas tendências têm um impacto importante na antropologia
da saúde e nas relações com as pessoas que estão sendo estudadas.
Primeiro, o conhecimento da biomedicina, previamente visto com a
autoridade científica objetiva, foi relativizado e hoje muitos de nós o
percebemos, assim como outros sistemas de conhecimentos, como
uma construção sociocultural que tem uma visão particular e limitada
sobre os processos de saúde e doença (KLEINMAN, 1980). Sua
epistemologia nasce de processos históricos e sociais (LATOUR, 1994)
e está centrada no paradigma biológico, em que saúde e doença são
vistos como processos biológicos e não como processos contextuais.
A antropologia, diferentemente da biomedicina, procura entender
os processos de saúde e doença como experiências particularizadas,
contextualizadas e marcadas pela subjetividade da experiência vivida.
Nesse sentido, adotamos a visão do médico e antropólogo Castiel
(1994) sobre a “singularidade do adoecer humano”. A pesquisa sobre
saúde em antropologia busca a subjetividade e os impactos específicos
dos contextos locais nos processos de saúde e doença, objetivos bem
distantes dos da medicina, que descontextualiza a doença e a concebe
como estado e processo universais. Para isso, os procedimentos
metodológicos diferem bastante daqueles da pesquisa epidemiológica
ou quantitativa, como veremos abaixo.
Segundo, do mesmo modo que antropólogos e pesquisadores de
outras áreas das Ciências Humanas reconhecem que todas as ciências
Ética e política em pesquisa 107

são produtos de processos histórico-culturais, é necessário reconhecer


também que princípios éticos têm sua especificidade cultural.
Esse, aliás, é um dos aspectos que parece afastar pesquisadores de
diferentes áreas de conhecimento nos espaços dos Comitês de Ética
estabelecidos no Brasil, já que essa perspectiva histórico-cultural do
próprio conhecimento científico não é compartilhada por todos. Ao
contrário, muitas das dificuldades de interlocução no âmbito dos
Comitês devem-se ao fato de que para muitos dos nossos colegas o
conhecimento científico é superior aos demais e incontestável em suas
bases e, portanto, em suas metodologias.
Anos atrás, como participante de um curso sobre bioética
apoiado pela National Endowment for the Humanities nos Estados
Unidos (SMITH, 1979), Langdon constatou como os princípios de
ética expressam valores como democracia, autonomia do indivíduo
e a hegemonia da ciência “objetiva” ou racional, fora de seu contexto
cultural. Enquanto a regulamentação nacional sobre ética em pesquisa
implica um modelo único de pensar a ética, nossas experiências indicam
que isso não é o caso em se tratando de sociedades e culturas particulares.
Especificamente, podemos citar o caso do estatuto da confidência de
resultados dos exames sobre HIV. Nossa cultura, baseada em valores
como a autonomia do indivíduo e o direito à privacidade, proíbe a
divulgação dos resultados para outros. Porém, em oficinas visando
à prevenção da doença realizadas pelos profissionais da Fundação
Nacional de Saúde em grupos indígenas, observamos que os índios têm
manifestado que os direitos da coletividade têm prioridade sobre os do
indivíduo e demandam que o grupo seja informado. Sua lógica se baseia
no impacto potencial para o grupo como um todo antes de reconhecer
o direito à privacidade do indivíduo.
Em terceiro lugar, observamos que a própria metodologia
positivista manifestada através de pesquisas quantitativas e questionários
fechados também reflete valores culturais da ciência europeia, que
estabelece as normas de objetividade e uma relação de hegemonia e
superioridade do pesquisador sobre o pesquisado. Na sua procura
de “objetividade”, as metodologias quantitativas eliminam fatores
subjetivos e culturais que possam impactar os processos de saúde e
doença. Portanto, o contexto é eliminado como determinante nos
estados de saúde tanto quanto nas respostas dos entrevistados. A técnica
de entrevista conduzida através de um questionário fechado privilegia
as preocupações do pesquisador, ignorando o pesquisado como possível
contribuinte ao processo de conhecimento. Segundo Briggs (2007),
Políticas públicas: reflexões antropológicas 108

as entrevistas modulam as relações sociais que são estruturadas por


estratégias de conhecimento e poder. Para ele, o formato de entrevistas
é o resultado da ideologia comunicativa, em que o pesquisador, de uma
maneira artificial, exerce seu poder sobre o pesquisado por limitar as
respostas possíveis do entrevistado. Não existe uma relação dialógica,
mas uma interação unidirecional e hierarquizada. O pesquisador
pergunta de acordo com seus interesses e o pesquisado deve responder
honestamente sobre o que é solicitado. Assim, esse tipo de entrevista se
aproxima da consulta médica (TANNEN; WALLET, 1998).
Igualmente, se as entrevistas se estruturaram por ideologias
comunicativas, podemos dizer o mesmo sobre a forma do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), exigido atualmente pela
resolução no 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Implica
uma ideologia de poder e produção de conhecimento que nega a relação
dialógica que a antropologia tenta estabelecer com os colaboradores da
pesquisa. A relação dialógica na antropologia procura um encontro
entre iguais, na qual o antropólogo procura ouvir o outro (OLIVEIRA,
2000). Essa relação é um processo incapaz de ser definido e compactuado
através de um contrato pré-assinado no primeiro momento do
encontro. O TCLE já estrutura a relação e sua hierarquia, limitando as
possibilidades de mudar em função dos interesses do entrevistado. O
estabelecimento de relações de iguais é um processo.

Dados qualitativos como resultados: alguns exemplos

Apesar de a pesquisa antropológica visar objetivos bem distantes


dos da medicina, os dados e resultados obtidos através de métodos
qualitativos informam aspectos essenciais dos processos de saúde, doença
e cura que não são possíveis de se obter com pesquisas quantitativas.
Em particular, os dados qualitativos têm várias implicações importantes
para a saúde pública e os serviços primários, perante as atuais políticas
públicas de saúde que visam fornecer atenção médica humanizada
respeitando as particularidades culturais de cada grupo (MACHADO,
2007). A pesquisa qualitativa gera dados que nos informam sobre os
processos de autocuidado (MENÉNDEZ, 2003) e ajuda a compreender
o sentido positivo de outras práticas terapêuticas e as escolhas feitas
pelas pessoas entre diferentes alternativas terapêuticas, estas sendo
compostas não só dos serviços biomédicos mas também das terapêuticas
tradicionais e emergentes que coexistem numa sociedade complexa
Ética e política em pesquisa 109

moderna. A adesão às instruções e a manipulação dos pacientes dos


medicamentos prescritos pelos profissionais de saúde, problemática
bastante importante, não podem ser entendidas apenas do ponto de visto
do médico (ETKIN, 1992; CONRAD, 1985; SILVEIRA, 2000; TROSTLE,
1988). Um bom exemplo dos resultados dos dados qualitativos são as
pesquisas etnográficas que procuram compreender o abandono do
tratamento de tuberculose no Brasil, que, além de ser gratuito, não
envolve os problemas de filas e esperas característicos dos serviços de
SUS (GONÇALVES. 1998; GONÇALVES et al. 1999). Sem compreender
o ponto de vista do paciente e suas ações na busca de solução de seus
problemas e de cura não é possível melhorar a atenção à saúde.
Saúde é também política, e as pesquisas qualitativas remetem
aos contextos locais nos quais os poderes e as relações sociais são
negociados continuamente. Os contextos locais não envolvem só
processos entre o indivíduo e o profissional de saúde, mas também
as instâncias micropolíticas em que as relações de poder emergem
da interação. Ainda mais, os contextos locais podem ser pensados
também como um entrecruzamento das forças locais e globais. Assim,
a instância local não está separada das políticas nacionais e globais
de saúde e de direitos humanos. Além disso, os processos locais são
consequência de todos os atores envolvidos no planejamento, na
gestão e na execução dos serviços. Só as pesquisas qualitativas geram
dados adequados para entender essas forças, para avaliar os serviços
de saúde e seus impactos nos dados epidemiológicos.
Um bom exemplo de como os dados qualitativos contribuem
para entender a resistência aos programas de saúde é a pesquisa sobre
a campanha do controle da cólera entre os favelados de Fortaleza
(NATIONS, 1996). Os dados colecionados por métodos qualitativos
sobre a recepção da campanha educacional em torno da cólera
demonstraram que a população-alvo da campanha se sentia acusada
de ser pobre, suja e ignorante nas suas práticas de higiene. Assim, a
campanha não resultou na adesão às práticas sugeridas, mas de fato
gerou estratégias de resistência. Entre estas, a negação da existência
da doença. A avaliação, por meio de métodos qualitativos, de curso
de prevenção em DST/AIDS direcionado às lideranças e aos agentes
indígenas de saúde no Alto Rio Negro, também demonstrou que os
índios duvidaram da AIDS e acusaram que mais uma vez os não índios
estavam conspirando contra eles (GARNELO et al., 1997).
Pesquisa entre os índios de Santa Catarina (LANGDON et al.,
2006) apontou preocupações semelhantes por parte dos usuários diante
Políticas públicas: reflexões antropológicas 110

dos esforços educacionais dos profissionais de saúde. Especificamente,


eles expressaram que se sentirem acusados por um enfermeiro do posto
de saúde de serem sujos, quando ele tentou eliminar o uso tradicional
do fogo de chão nos seus abrigos e casas. Numa conferência sobre a alta
taxa de mortalidade infantil das crianças guarani-kaiowá causada pela
desnutrição, ouvi uma nutricionista acusar as mães de serem culpadas
pela falta de atenção e de cuidados na alimentação das crianças. Por meio
de dados qualitativos, Diehl (2001) conseguiu identificar os processos
micropolíticos de poder entre os membros de um posto indígena que
resultaram alterações do que era prescrito nas receitas médicas quando
os medicamentos foram entregues pelo auxiliar de saúde. Num período
anterior, quando os medicamentos foram comprados de uma farmácia
local, constatamos que a farmácia que vendeu mais medicamentos
para o posto de saúde pertencia a um membro da equipe de saúde.
Tais resultados têm criado, em certas instâncias, resistências entre os
gestores e membros das equipes de saúde indígena em colaborar com
nossas pesquisas qualitativas nas terras indígenas.

O problema do Termo de Consentimento Livre e


Esclarecido (TCLE)

Grande parte da argumentação dos antropólogos articula


questões de ética com questões do método da pesquisa antropológica.
O método etnográfico já incluiria, pelos seus procedimentos de diálogo
com o outro e respeito às concepções e visões locais, uma forma de
consentimento, não formal, mas presente na condição para a realização
de qualquer pesquisa de campo. Ou seja, o método da pesquisa resolveria
em grande parte as questões de ética, na medida em que, como coloca
Luiz Roberto Cardoso de Oliveira, ao contrário da pesquisa no campo
biomédico, os antropólogos não pesquisam em seres humanos, mas
com seres humanos – diferença que não é apenas semântica. Como ele
próprio explicou, na pesquisa com seres humanos “o sujeito de pesquisa
deixa a condição de cobaia (ou de objeto de intervenção) para assumir
o papel de ator (ou de sujeito de interlocução) (OLIVEIRA, 2004, p. 34).
Nessa visão da pesquisa de campo como um processo construído
conjuntamente entre pesquisador e pesquisado, de forma dialógica e
fundada no respeito ao conhecimento e aos valores locais, até o objeto
da pesquisa e sua abordagem acabam sendo “negociados” durante
a própria pesquisa – desde definir quem vai ser pesquisado, quantas
Ética e política em pesquisa 111

pessoas, qual o recorte, qual a duração exata da pesquisa etc. Essa


especificidade da pesquisa qualitativa coloca em questão também a
forma como o consentimento informado tem aparecido nas resoluções
sobre ética e nas próprias exigências do Comitê: trata-se de um termo
oficial, assinado pelo indivíduo que será entrevistado, em geral dentro
de um padrão bastante fechado. Os questionamentos colocados a essa
determinação têm a ver com o fato de que grande parte da pesquisa
etnográfica é feita através de entrevistas não formais, de conversas
informais, estabelecidas num processo de convivência de longa duração
com os pesquisados, do diálogo, do compartilhamento de determinadas
experiências, procedimentos que não estão presentes nas pesquisas
quantitativas e nem previstas nas resoluções sobre ética. Cabe ainda
ressaltar que, nessas pesquisas qualitativas, o consentimento livre e
esclarecido é um processo de contínua interação entre o pesquisador e
os pesquisados (MEDEIROS et al., 2007, p. 110).
A antropologia, mais do que um “consentimento esclarecido”
burocrático e formal, busca o consentimento do(s) pesquisado(s)
obtido durante a própria convivência e diálogo entre pesquisadores e
pesquisados, em momentos e de formas muito particulares e distintas
dos moldes postulados pelos Comitês.
Mas, além disso, parte significativa das pesquisas antropológicas são
feitas com grupos ou pessoas que não partilham do éthos do pesquisador,
com especificidades culturais que colocam problemas em face do rito do
consentimento informado nos moldes da Resolução no 196/96: como
fazer com a assinatura do termo no caso de populações não letradas?
Como lidar com a situação de intimidação de grupos subalternizados,
temerosos diante de “formulários com palavreado difícil, como é comum
entre classes populares brasileiras? Até que ponto a pesquisa antropológica
pode ser concebida em termos de uma individualização tão absoluta de
seu “sujeito de pesquisa”? A noção de indivíduo embutida nesse formato
de termo de consentimento é bastante subordinada a uma visão ocidental
moderna do sujeito de direito e da biomedicina, duas das formações
mentais mais poderosas da cultura ocidental moderna (DUARTE, 2004,
p. 126). Como sabemos, essa noção não é compartilhada por todos os
grupos sociais, como indígenas, classes populares etc. Nesse sentido, não
causam espanto os inúmeros relatos de situações descritas por etnógrafos,
depois da Resolução no 196/96, que vêm corroborar a inadequação desse
procedimento (TCLE) entre grupos indígenas e outros.
Por fim, o mais importante: a questão do que realmente está
sendo autorizado ao pesquisador fazer, no momento em que o termo é
Políticas públicas: reflexões antropológicas 112

assinado pelo pesquisado. Uma das questões que têm sido colocadas em
pauta pelos antropólogos é, justamente, que o TCLE ou o Consentimento
Informado (CI) beneficiariam muito mais os “direitos” do pesquisador
(como garantia formal a ele), tal qual um “cheque em branco” que lhe
é conferido pelo sujeito pesquisado ou informante, e menos como
uma preservação de seus direitos individuais e coletivos (OLIVEIRA,
2004). Esse “tom defensivo”, não incomum no âmbito dos Comitês de
Ética, sugere que, mais do que “preservar” direitos das populações e dos
indivíduos, o TCLE garante direitos aos pesquisadores e às instituições
a que eles pertencem, diante de possíveis processos judiciais que
“informantes” insatisfeitos possam vir a instaurar.
O pesquisador, ao se tornar portador do termo e com a aprovação
do Comitê de Ética, teria, então, “resolvido” as questões éticas de sua
pesquisa apenas num nível instrumental, liberando-o para, então,
abandonar preocupações muito mais amplas que deveriam acompanhá-
lo sempre e que se situam muito além da relação intersubjetiva dele com
seu(s) informante(s).
Ao que tudo indica, muitos desses Comitês acabam servindo
para controlar as pesquisas que justamente denunciariam (como já
denunciaram antes) os abusos cometidos pelas instituições médicas,
como coloca, veementemente, Duarte (2004).
Como bem coloca o Relatório de Guarujá, publicado em 2007, esse
tipo de dificuldade é reveladora da hierarquia interna ao campo científico
e mostra que, muito embora pesquisadores das áreas humanas ou que
trabalham com metodologias qualitativas tenham direito à representação
em todos os Comitês, essa representação tem sido insuficiente, pois as
reivindicações feitas pelos cientistas sociais (e filósofos, historiadores,
críticos de arte, entre outros) não é compreendida, quando não é sequer
“legitimada”, em função das hierarquias e relações de poder internas
ao próprio campo científico. Assim, os Comitês têm servido, não raro,
como forte desestímulo à realização de pesquisas qualitativas.
Um exemplo foi o que ouvimos, durante as inúmeras e
morosas idas e vindas para conseguir a aprovação do Comitê de
Ética da UFSC ao projeto “Gênero, subjetividade e saúde mental”,
de um dos responsáveis pela questão da ética em pesquisa em um
órgão do governo municipal: que primeiro “seria necessário avaliar
o interesse da prefeitura” nessa pesquisa, o que deixa claro o quanto
as “populações” e seus direitos – alvo das preocupações éticas, nem
sempre são os “destinatários” das preocupações dos Comitês – são
vistos como espécies de “propriedades” de seus gestores.
Ética e política em pesquisa 113

Outro exemplo vem da pesquisa que uma de nós desenvolveu


em uma maternidade pública, na Grande Florianópolis, na qual foram
necessárias muitas tentativas de entrada na instituição, para o início do
trabalho de campo, mesmo após a aprovação da pesquisa pelo Comitê
de Ética da instituição e pelo Comitê de Ética da Universidade: a chefe
da enfermagem dificultava a entrada dos pesquisadores, alegando
motivos dos mais diversos, tais como “necessidade de adequar a equipe
para receber mais gente, motivos de assepsia, horários inadequados etc.
Somente após um moroso processo de convencimento dessa profissional
– que não era o alvo da pesquisa nem a autoridade formal da qual
dependia a autorização – finalmente pudemos adentrar em campo. Em
pesquisa anterior, realizada em outra maternidade, também encontramos
dificuldades dessa ordem, uma vez que os profissionais pareciam não
estar convencidos de que, naquele caso também, nosso interesse de
pesquisa não era “a qualidade” dos serviços prestados – provável fonte de
seu desconforto – mas sim, as usuárias atendidas pela instituição e como
vivenciavam suas experiências de parto e de abortamento (TORNQUIST,
2003). E aqui, cabe destacar que, mesmo quando nosso foco são os
usuários dos serviços, é, de fato, impossível não “prestar” atenção nas
relações que estes estabelecem, por força daquelas circunstâncias, com os
profissionais e com as políticas de saúde daquele setor.
Nesse caso, temos atores na cena da pesquisa que não seriam,
em princípio, “objetos” da pesquisa, mas que, por estarem envolvidos
naquele contexto e estabelecerem relações com todos os demais
“atores”, acabam por fazer parte da observação etnográfica. Devemos,
então, pedir-lhes o consentimento informado? E, além disso, até que
ponto esses atores (não raro, gestores e administradores) podem, de
fato e de direito, complicar nosso acesso aos pesquisados “principais”?
Se muitos pesquisadores reclamam – com razão – da morosidade dos
processos nos Comitês de Ética, o que dizer desses “empecilhos” que
se colocam antes da entrada, de fato, no campo, quando se tratam de
instituições de saúde pública?
Nesse sentido, a crítica de Luis F. D. Duarte é altamente procedente,
pois mostra que as bases de sustentação moral da própria Resolução no
196/96 do CNS estão presas de tal forma à ideologia liberal que qualquer
voz dissonante que busque relativizar procedimentos e instrumentos
(tal como TCLE, mas não só), soam absurdas e francamente contrárias
aos princípios dos Comitês.
Como colocamos anteriormente, no campo das políticas
de saúde e das instituições públicas, há uma miríade de dimensões
Políticas públicas: reflexões antropológicas 114

e de sujeitos que atravessam essa relação e a enquadram; e é nesse


sentido que pensamos que, além de flexibilizar a normalização atual
acerca do TCLE, adaptando-a também às pesquisas qualitativas e às
especificidades de cada campo disciplinar, seria muito importante
recuperar, num nível mais amplo, as preocupações políticas que estão
na origem da Resolução no 196/96.
As razões para que muitos antropólogos e outros colegas das
ciências sociais se coloquem em uma postura defensiva diante dos
Comitês e da Resolução no 196/96 são, certamente, compartilhadas
por nós, sobretudo no que tange à inadequação do TCLE e à falta
de escuta genuína por parte da maioria dos hard colegas e de seus
representantes nos Comitês.

Além do TCLE , mais problemas e algumas “conclusões”

O Relatório produzido em Guarujá, em 2006, é uma novidade


no debate sobre a ética na pesquisa qualitativa em saúde e na pesquisa
antropológica em geral. Por que novidade? Porque ele se retira de um
certo tom defensivo do discurso antropológico recente em relação
à Resolução no 196/96, em relação à Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (CONEP) e aos CEPs nas universidades e à exigência de que
todos os projetos de pesquisa em/com seres humanos – não apenas
sobre a temática da saúde – sejam submetidos aos Comitês de Ética. Essa
exigência não é só algo burocrático ou formal, mas hoje determina que
inclusive Projetos de Iniciação Científica e monografias de graduação,
por exemplo, devam passar pelos Comitês, e influenciou a decisão de
alguns periódicos de só aceitarem artigos baseados em pesquisa de
campo feita com pessoas que tenham passado pelos Comitês de Ética e
utilizado o consentimento informado.
O Relatório de Guarujá situa como origem das preocupações com
a ética na pesquisa médica o Código de Nuremberg, de 1947, que, a
partir da investigação e da condenação pelo tribunal dos experimentos
médicos realizados pelos nazistas com seres humanos, criou algumas
diretrizes éticas – entre as quais a mais importante é a questão do
“consentimento voluntário do sujeito de pesquisa” (HARDY et al., 2004,
p. 457). Essas diretrizes passaram por uma série de adequações, entre
elas a Declaração de Helsinque, feita pela Associação Médica Mundial,
em 1964, revisada em 1975 e em 2000: nessa última versão, a Declaração
regula também a composição dos Comitês de Ética, determinando que
Ética e política em pesquisa 115

a proposta de pesquisa seja submetida à “aprovação de um comitê de


avaliação ética especialmente designado, que deve ser independente do
pesquisador, do patrocinador ou de qualquer outro tipo de influência
indevida” (apud HARDY et al., 2004, p. 457). O artigo “Comitês de
Ética em pesquisa: adequação à Resolução 196/96”, publicado na
Revista da Associação Médica Brasileira em 2004, resgata essa história
e traz uma análise do histórico dos Comitês no Brasil, antes de fazer
uma análise sobre o funcionamento de 17 Comitês brasileiros, a partir
de questionários aplicados aos seus respectivos presidentes. Um dado
interessante é que os primeiros Comitês de Ética no Brasil surgiram nos
anos 1980, a partir de uma Resolução do Conselho Federal de Medicina,
e se chamavam Comitês de Ética Médica. Em 1988, o Conselho Nacional
de Saúde (Resolução no 1/88) determina que toda instituição de saúde
que realiza pesquisa com seres humanos deveria ter um Comitê de Ética
(HARDY et al., 2004, p. 457) que deveria atuar juntamente com o Comitê
de Segurança Biológica (ou seja, aqui vale a avaliação de Luiz Roberto
Cardoso de Oliveira sobre o que denomina “biocentrismo” dos Comitês
de Ética, que está ligado à própria origem e formação desses Comitês).
Um dado interessantíssimo, também apontado nesse artigo, é o fato de
que durante os anos 1980 e 1990 ocorreu uma série de denúncias de
abusos em algumas pesquisas médicas, na grande maioria pesquisas
sobre contraceptivos envolvendo mulheres e na área de regulação
da fecundidade. De onde vêm essas denúncias? Elas aparecem, por
exemplo, na Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, em
1987, e em artigos publicados por pesquisadoras feministas, da área da
Saúde e das Ciências Humanas em geral. Ou seja, denúncias feitas não
só por ativistas, mas também por pesquisadoras da área de Saúde e das
Ciências Sociais, reforçam a necessidade de regulação e controle ético
das pesquisas feitas na área das Ciências Biomédicas e da Saúde.
Ironicamente, após essas denúncias e a revisão da resolução de
1988, o Conselho Nacional de Saúde publica a Resolução no 196/96,
que determina que “toda e qualquer pesquisa com seres humanos, não
somente as da área biomédica, devem ser aprovadas por um Comitê de
Ética em Pesquisa (CEP)” (HARDY et al., 2004, p. 458). Ocorre então
um alargamento não apenas das áreas de alcance dos Comitês (para
além da pesquisa das áreas médicas), mas também um alargamento
temático (não mais apenas pesquisas sobre saúde, mas toda pesquisa
que envolva seres humanos), que é a situação atual.
Enfim, essas questões e críticas à regulamentação sobre ética
e sua utilização indiscriminada em relação ao tipo de pesquisa
Políticas públicas: reflexões antropológicas 116

realizada já compõem uma espécie de consenso entre a comunidade


antropológica e certamente informaram em muito o documento
produzido na reunião de Guarujá.
No entanto, um dos pontos que podemos pensar como vulnerável
no argumento antropológico até agora sustentado é o fato, já descrito
acima, de reduzir a discussão ética à questão metodológica. Ou seja, a
questão ética, ou de uma ética marcada pelo respeito ao “ponto de vista
nativo”, uma “ética da alteridade”, tem sido um ponto nodal para pensar
o método da pesquisa antropológica, mas isso não parece garantir que as
questões metodológicas resolvam todas as questões éticas colocadas na
pesquisa antropológica. Prova disso é a grande produção crítica no interior
da própria antropologia, dos anos 1980 para cá, sobre questões éticas
que a aplicação pura e simples dos ensinamentos clássicos da pesquisa
etnográfica não garantiu: questões como a de efetivamente pensar os
indivíduos e grupos pesquisados como “sujeitos” da pesquisa e não
somente fonte de informação e de dados sobre a cultura pesquisada (ou
seja reduzidos a “mediadores” ou “meios” para se chegar ao “verdadeiro
objeto” da antropologia: a cultura); questões relacionadas ao uso de
etnografias para a construção de políticas e ações governamentais que
acabam prejudicando os grupos pesquisados (o exemplo mais conhecido
é o uso do livro de Chagnon sobre os Yanomami pelo governo militar
brasileiro para justificar a fragmentação da terra yanomami (DINIZ,
2007)); outro exemplo é o dos direitos autorais sobre os registros da
pesquisa de campo, sobretudo o registro de imagens e de sons – debate
atual para quem trabalha com esses instrumentos; a questão dos laudos
antropológicos e do reconhecimento do “patrimônio cultural material e
imaterial” – em que os antropólogos têm um papel central, e uma série
de outras situações que não são simples de resolver se nos restringirmos
ao aspecto metodológico stricto sensu.
O reconhecimento de que, no cerne do fazer antropológico,
existem questões éticas presentes desde o surgimento da antropologia
como campo de saber, as quais não nos colocam em uma posição
confortável de acreditar que, ao aplicarmos o “método etnográfico”, essas
questões estão tacitamente resolvidas: não estão. Pois o nosso método
não é uma questão de “aplicação” de uma série de procedimentos (como
parece ser entendido em muitos Comitês), mas é, sobretudo, a adoção
de uma postura reflexiva e crítica no que diz respeito à própria pesquisa,
a partir de um distanciamento que só pode ser garantido na relação
com uma comunidade de pares: a produção teórica e etnográfica no
campo antropológico e a avaliação das pesquisas pelos próprios pares.
Ética e política em pesquisa 117

Se o Consentimento Informado não deve ser tomado como um “cheque


em branco” para o pesquisador, tampouco o uso do chamado “método
etnográfico” deve ser tomado como um “cheque em branco” para os
antropólogos. Ou seja, além da dimensão metodológica, que constrói,
junto com a ética, o tripé de uma antropologia crítica e comprometida,
temos que trabalhar com a questão política, em parte abordada no
início deste texto, envolvendo questões como os desdobramentos da
“situação colonial” e, especificamente em relação à questão da saúde,
respeito à cultura e ao conhecimento local; a desigualdade e inequidade
nas relações pesquisadores-pesquisados, ou entre agentes de política
pública, gestores e sujeitos dessa (a essa) política, como o direito ao
acesso universal à saúde, à humanização e à equidade, como a forma
como os processos políticos de elaboração dos programas de gestão da
saúde são conduzidos etc.
Como trabalhar a questão política num contexto em que os
chamados “gestores públicos”, particularmente aqueles da área da
Saúde, podem negar-se a “ceder” seu aceite e inviabilizar pesquisas
fundamentais para a sociedade? Como nos posicionamos diante da
subalternidade histórica das ciências sociais e humanas no campo
científico brasileiro, de onde nos parece emergir a dificuldade de escuta
e de compreensão – para não dizer, ausência de vontade política, por
parte de nossos “pares” nos Comitês e instâncias ligadas à pesquisa?
Quais os limites do sigilo e do silêncio dos pesquisadores de situações
observadas em campo, que atentam contra os direitos humanos? Esses
desafios não são novidades para o antropólogo, que vive a eterna tensão
entre a defesa das especificidades e dos modos de pensar e viver locais e
a defesa dos direitos humanos universais.
Diante disso, e esses são apenas alguns aspectos desta discussão,
entendemos que não seria prudente desertar ou abandonar os Comitês
de Ética – até porque muitas pesquisas têm sido modificadas a partir
de exigências burocráticas, ou mesmo inviabilizadas, em função da
ingerência dos Comitês sobre pesquisas já legitimadas em seus campos
disciplinares – mas, antes, devemos neles permanecer e insistir na
legitimação das ciências humanas como fundamentais e essenciais na
garantia de direitos humanos, e na importância de levar para dentro
dos comitês (assim como para dentro dos espaços de elaboração das
políticas públicas, por exemplo) nossas reflexões e nossas críticas.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 118

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PARTE II

ESTUDOS DE CASOS
A tensão visibilizada: políticas
públicas e pessoas com deficiência

Éverton Luís Pereira

Cada vez mais, nós, antropólogos, estamos sendo chamados para


dar opiniões sobre as mais diferentes facetas da vida social, econômica,
política e histórica do país e do mundo. Sejam os governos, sejam as
organizações da sociedade civil, vários atores da contemporaneidade
nos requisitam como uma das várias peças do imenso quebra-
cabeças de falas que explicariam determinadas “realidades” ou que
proporcionariam possíveis ações para a “resolução” das mais variadas
questões que estão postas na agenda nacional e internacional.
Uma coisa hoje é inegável: existe uma profusão sem tamanho de
usos das palavras “cultura”, “diferença”, “diversidade”, entre tantas outras
que, em um olhar rápido pelas políticas nacionais em voga, chegam a
causar certo estranhamento por parte de um antropólogo preocupado
com definições. Essa apropriação e uso não é diferente no objeto que será
aqui trabalhado: as políticas que versam sobre a questão da deficiência
também adentram essas discussões e vêm ganhando cada vez mais força
as ideias de “diferença” ou de “cultura”, tão caras a determinadas áreas
da antropologia.
Minhas discussões neste artigo estão centradas em dois grandes
eixos que mesclam uma série de experiências que tive antes, durante
e depois da defesa de minha tese de doutorado. Todas elas falam
sobre pessoas com deficiência e estão marcadas por diferentes graus
de envolvimento com as políticas públicas e atendem, de diferentes
maneiras, às agendas propostas pelos conceitos trazidos pelo Estado.
A tensão visibilizada 123

A tensão inerente de minha argumentação caminha nas formas como


a antropologia, ou um antropólogo, dialoga com as políticas elaboradas
em nível nacional.
Em um primeiro momento, faço uma breve explanação sobre
algumas políticas públicas em voga hoje no Brasil que trabalham com
a questão da deficiência, abordando, principalmente, conceitos que são
de extrema importância para o debate, tendo como foco a surdez. A
proposta, neste momento, é demonstrar a profusão de discursos sobre
deficiência em nosso país e as estratégias utilizadas nos últimos anos para
padronizar conceitos e, com isso, criar certas hegemonias discursivas.
O segundo momento é dedicado ao uso de meus dados de
campo, construídos em uma pequena localidade rural no sertão
piauiense. O material produzido nessa comunidade dialoga com
diferentes políticas públicas que versam sobre surdez e deficiência e
traz releituras locais de políticas nacionais e internacionais. Com essas
informações, que versam sobre as apropriações e os usos de diferentes
formas das políticas públicas, exponho a existência de uma profusão
de discursos sobre a deficiência e um limite muito tênue entre as
políticas da diversidade e reconhecimento da diferença e a produção
de hegemonias “em um segundo plano”.
Para finalizar, trago a problemática: é por antropólogos ou pela
antropologia que as políticas públicas almejam e clamam? Uma das
possíveis contribuições que tenho visto, principalmente nas pesquisas
em nível nacional nas quais estou envolvido recentemente, é que
temos como auxiliar na reconstrução de certos padrões hegemônicos
de produção de política que vão além dos conceitos já previamente
consolidados. Porém, ainda nos faltam algumas ferramentas (ou
mecanismos) que são essenciais quando falamos de Estado: quais são,
de fato, nossos mecanismos de intervenção?

A visibilidade expandida

O Brasil hoje vive uma difusão de discursos e de ações sobre


pessoas com deficiência e para elas. De um canto a outro do país
ouvimos termos que até então não estavam em uso nas políticas
públicas, como, por exemplo, diversidade, acessibilidade, inclusão social,
funcionalidade. Até mesmo o termo para se referir a essa população
vem sofrendo mudanças ao longo dos anos, passando a ser adotada a
Políticas públicas: reflexões antropológicas 124

expressão “pessoas com deficiência” (ou “PcDs”)1 como a forma mais


correta de se referir a esse grupo populacional.
Podemos analisar essa questão sob, pelo menos, duas
perspectivas: uma delas, do ponto de vista histórico, que colocou
diferentes segmentos (ou “parcelas”) das pessoas com deficiência em
evidência no Brasil. Penso em como, por exemplo, diferentes leis e
decretos para a inclusão de populações como “cegos” ou “surdos” no
sistema educacional provocaram algumas mudanças antes mesmo da
consolidação de uma política global para as “pessoas com deficiência”.
A outra perspectiva é aquela que diz respeito à tomada de posição do
Estado quando da retificação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa
com Deficiência por meio do Decreto Legislativo no 186, de 9 de julho
de 2008. Nessa etapa, é o sujeito abstrato “pessoa com deficiência” que
adentra as políticas públicas.
Uma das mudanças essenciais que ocorrem com a “tomada
de posição” do Estado é a unificação de um conceito de deficiência
e a garantia constitucional de que este seja implantado em todas
as políticas públicas nacionais, visto o peso constitucional que a
Convenção assumiu após a sua retificação. Se antes tínhamos uma série
de normativas diferentes, que não estabeleciam critérios do que estava
sendo considerado pessoa com deficiência, com a Convenção temos um
conceito constitucional pelo qual todos os demais atos do Poder público
devem (ou deveriam) se ajustar.
Para não me delongar, considerarei na primeira perspectiva
apenas as políticas que versaram sobre a surdez, e na segunda
pontuarei algumas questões mais gerais sobre esse novo conceito da
Convenção. Trago as reflexões sobre a surdez por considerá-las, de
certa forma, paradigmáticas: apontam para as inúmeras estratégias
de diferenciação utilizadas pelos diferentes agentes nos processos
de nomeação e, ao mesmo tempo, para uma constante produção de
hegemonias em termos de políticas públicas.
Em 24 de abril de 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso
assina a Lei no 10.436, que dispõe sobre a constituição da Língua
Brasileira de Sinais (Libras) como língua oficial no território da nação.
Essa Lei é vista, especialmente por membros de grupos organizados de
surdos no país, como propulsora de uma série de ações que, em longo

1
Pontuo aqui as expressões sem problematizar quais seriam os melhores termos
para serem empregados. Essas discussões são feitas em vários âmbitos, e as mudanças
conceituais seguem uma agenda de transformação que engloba questões de outras ordens.
A tensão visibilizada 125

prazo, buscam inserir esses indivíduos em espaços até então de difícil


acesso, como escolas e universidades. A referida Lei vem em consonância
com uma série de outros documentos publicados em níveis nacional e
internacional, que versam sobre a igualdade e o respeito “às diferenças”,
sejam elas étnico-raciais, sexuais ou corporais.
Como documento complementar à Lei no 10.436, o governo
brasileiro, já tendo Luiz Inácio Lula da Silva à frente do executivo, lança o
Decreto no 5.626, em dezembro de 2005, que implanta as diretrizes para
a inclusão da Libras nos espaços gerenciados pelos organismos do Estado
nacional, especialmente aqueles vinculados à educação e à saúde. Ainda
nesse decreto, faz-se uma distinção entre sujeitos surdos e deficientes
auditivos: os primeiros seriam aquelas pessoas que, por “não escutarem”,
interagem com o mundo e “expressam sua cultura” por meio da Língua
Brasileira de Sinais; os segundos, aqueles que possuem a “perda bilateral,
parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por
audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz.”
É interessante que a diferenciação trazida na “Lei de Libras”
está em consonância com uma série de discussões realizadas em
diferentes âmbitos. Há um debate profícuo nos meios acadêmicos
em torno da surdez e dos surdos. Denominações diferenciadas com
relação às definições aparecem, por algumas vezes, lançando mão do
termo deficiente auditivo; por outras, sinalizando a categoria surdez (e
surdo) como formas de se referir a essas pessoas. De um lado, temos
aqueles que relacionam a surdez com outras deficiências e exigem o
uso da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade
e Saúde (CIF), em detrimento da Classificação Internacional de
Doenças (CID);2 de outro, pessoas e organizações que preferem
pontuar a surdez como uma diferença linguística e negam o uso do
termo deficiência no seu cotidiano.
O grupo daqueles que designam como deficiência é composto
principalmente por profissionais da saúde e de alguns ramos da educação.
É também essa nomenclatura, como veremos, a mais utilizada em termos
de políticas globais que engendram os sujeitos “surdos” no mesmo
espectro de “outras deficiências”. Deficiência auditiva surge com a mesma

2
Good (1993) demonstra como a medicina também é social e historicamente
construída. Mostra como esse ramo do conhecimento possui suas “crenças” e sua
metodologia própria (que condiz com sua epistemologia e com seus “objetivos”), fato
este que o assemelha a outras formas de lidar com a saúde e a doença. É interessante
pensar, nesse sentido, como, com o passar dos anos, as concepções sobre o que é e o que
não é doença vão se modificando.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 126

eficácia semântica que as demais deficiências, diferenciando-se apenas em


se tratando de outra “sensorialidade”. Teríamos, nessa conceitualização,
deficiência física, visual, múltipla e, na mesma seara, deficiência auditiva.
No outro extremo, há aqueles que se dedicam à contestação da
designação deficiente auditivo, preferindo a utilização do termo surdo.
Surdo aparece, especialmente, nos movimentos sociais organizados,
para designar não apenas uma diferença “sensorial”, mas também uma
“cultura própria” (SACKS, 1998).3 A diferença entre ouvintes e não
ouvintes não é, dessa forma, apenas pensada no plano corporal, mas
também é vista como uma questão de identidade, trazendo, assim, a
designação de comunidade e cultura.4
A complexidade da definição das categorias que nomeiam os
sujeitos que “não escutam” aponta para pelo menos uma similaridade
entre essas polaridades da definição de deficiente auditivo (surdo)
e Surdo: ambos trabalham com a ideia de que há a vivência de uma
experiência diferente por parte desses indivíduos. Não quero com
isso reduzir as discussões a esse quesito, muito menos minimizar as
reivindicações políticas tanto de um lado quanto do outro; apenas
problematizar tanto uma perspectiva quanto a outra e unir as
questões que giram em torno das problemáticas da linguagem e das
identificações linguísticas.
As duas trabalham no sentido de produzir sujeitos em torno de
diferentes pontos de vista, sempre com o intuito de construir um padrão
de grupo que dialogue com perspectivas que adentram o espectro
comum como, sendo do âmbito do dado, do objetivo. De alguma forma,
os defensores da deficiência auditiva ou da surdez enquanto termos

3
Segundo alguns autores, o fato de não ouvir constitui culturas ou comunidades.
Sobre o assunto, ver Strobel (2008), Coleção Estudos Surdos I, II e III da Editora Arara
Azul (QUADROS, 2006; QUADROS; PERLIN, 2007; QUADROS, 2008), entre outros.
Esses estudos apontam que, seguindo as considerações de teóricos como Padden (1999),
deve existir uma diferenciação entre Surdos e surdos, sendo os primeiros aqueles
identificados com a “cultura” expressa pelas línguas de sinais, e os segundos aqueles
que não se identificam e que, grosso modo, poderíamos comparar com o que em outros
espaços é chamado de “deficiência auditiva”.
4
Diniz (2003) apresenta um caso que leva essa discussão a um ponto interessante,
já que, um casal de lésbicas surdas norte-americanas, ao realizar uma inseminação
artificial, luta na justiça pelo direito de gerar um filho surdo por considerar isso não
um problema, mas uma cultura e uma identificação. A autora argumenta em relação
à proposta do movimento surdo de gerar crianças surdas como forma de manter uma
identidade cultural, porém questiona com relação a essa liberdade reprodutiva poder,
em certo sentido, limitar os futuros filhos.
A tensão visibilizada 127

definidores, do ponto de vista acadêmico ou das políticas públicas,


apontam para a construção de hegemonias. Voltarei a essa questão no
decorrer do texto. Neste momento cabe frisar que as duas perspectivas
padronizam sujeitos de formas particulares e possibilitam poucas
entradas para a diversidade das experiências.
Essa disputa pela definição e categorização dos sujeitos em torno
dos conceitos de Surdo ou deficiente auditivo foi intensificada com a
promulgação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.
Vejamos a definição da Convenção em seu Artigo 1:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de


longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial,
os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2008).

É necessário perceber que nessa nova definição, a categoria


“surdo” (ou Surdo) não é utilizada como diferenciação. A distinção
é feita a partir das sensorialidades e não, necessariamente, das
representações ou experiências. Além disso, é impossível pensarmos
que esse conceito deve ser utilizado apenas para fins de designação do
que estaria em nível corporal. Nele, deficiência é o resultado entre uma
série de fatores que influenciam na participação dos indivíduos em
sociedade. Com essas novas visões, que passam do que chamamos de
“modelo médico” para o “modelo social” (DINIZ, 2007) da deficiência,
outros elementos precisam (mesmo que teoricamente) ser postos em
jogo para as análises.
No novo modelo, é a totalidade da vida em sociedade que deve
ser pensada e analisada para conseguirmos refletir sobre deficiência e
pessoas com deficiência. O foco único das funções corporais é retirado
e é colocado na interação entre pessoas particulares e uma sociedade
geral, com suas desigualdades de oportunidades, sua história e suas
políticas mais ou menos progressistas.
Temos duas mudanças igualmente importantes quando da
vigência desse novo conceito na legislação brasileira: a primeira é de
que os enfoques dados não são, necessariamente, nas propriedades
físicas dos indivíduos. Isso nos leva a crer que as avaliações sobre
“deficiências”, ao longo das políticas públicas, podem oscilar,
dependendo das diferenças encontradas no nível sociocultural.
Parece, pelo menos nesse primeiro momento e ainda do ponto de vista
Políticas públicas: reflexões antropológicas 128

teórico, que as definições podem ser muito mais abertas e passíveis


de transformação, dependendo de onde, como e quem será avaliado.5
Podemos dizer que essa diferença é significativa dos modelos
apresentados com (e na) Lei de Libras. Na normativa que institui a
Libras como oficial, temos duas definições igualmente válidas: uma
que definiria pela experiência e pelo compartilhamento de uma
“cultura” (os Surdos); e outra que pressupõe uma diferença corporal
que caracterizaria certa deficiência. Na promulgação da Convenção,
essas duas possibilidades se unem na designação de que “pessoa com
deficiência” seria uma definição que requer refletir sobre as interações
com barreiras socioestruturais.
A segunda mudança é que no chamado “modelo social” (base
para a definição da Convenção), não é mais o saber médico que seria o
responsável, única e exclusivamente, pela designação do que seria pessoa
com deficiência, mas a articulação de uma série de perspectivas sobre o
mundo. Nessas definições, os saberes das ciências humanas são chamados
para opinar sobre o que seria “pessoa com deficiência”, principalmente o
serviço social, a psicologia, a sociologia e a antropologia.
O conceito de deficiência da Convenção também mexe com as
configurações de força na produção dos saberes sobre as pessoas e na
consequente instrumentalização deste em políticas públicas. Como
sabemos, as políticas públicas exigem protocolos para definições e
para encaminhamentos, e isso vem sendo fornecido historicamente
pelo conhecimento biomédico. Se usarmos a Lei de Libras, podemos
ver que as definições passam pelo uso de uma língua comum (a Língua
Brasileira de Sinais) ou pela definição dos padrões “audiométricos”.
O primeiro seria dado pela autoidentificação: eu “sou Surdo” e reivindico
uma certa língua e/ou uma certa identidade. O segundo: “você é pessoa
com deficiência” em função da perda de sua capacidade auditiva.
Porém, quando dizemos que a deficiência é caracterizada,
principalmente, em sua articulação com aspectos socioestruturais,
exigimos outros padrões de legitimação em termos de política, o
que, muitas vezes, as ciências humanas não possuem para fornecer.
Assim, quando falamos em uma mudança conceitual promovida pela
Convenção e em instrumentalização pelo Estado brasileiro, falamos
também de uma disputa inerente de conhecimentos sobre a temática

5
Como veremos adiante, já temos pelo menos duas políticas públicas que adotam o
novo conceito trazido pela Convenção. Entretanto, não podemos fazer avaliações mais
densas a esse respeito.
A tensão visibilizada 129

e uma demanda crescente de outros profissionais (para além dos


biomédicos) nas definições e encaminhamentos das políticas.
No Brasil, o novo conceito de deficiência, teoricamente,
deveria guiar todas as ações do Estado. Entretanto, não é o que vem
acontecendo: a Lei de Libras, por exemplo, ainda serve como um
indicativo de definição de “deficientes auditivos” ou de “Surdos”. É a
Língua Brasileira de Sinais (Libras) a língua oficial dos “Surdos” do
Brasil e ela é privilegiada em termos de acesso a recursos e tecnologias
do estado nacional para essa população.
O conceito da Convenção é trabalhado em, pelo menos, duas
políticas. Trata-se da concessão do Benefício de Prestação Continuada
(BPC), garantido pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) – Lei
no 8.742, de 7 de dezembro de1993 – e da Aposentadoria Especial da
Pessoa com Deficiência (Lei Complementar no 142, de 8 de maio de
2013. As duas ações são executadas pelo Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS), mesmo tendo origens diferentes.6
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é concedido para
pessoas com deficiência e idosos que, por uma série de motivos, não
contribuíram para a Previdência Social e que não possuem condições
de inserção no mercado de trabalho. Esses sujeitos precisam comprovar
que estão em situação de pobreza ou extrema pobreza, ou seja, vivendo
com menos de ¼ de salário mínimo per capita. O BPC é garantido
constitucionalmente e vem sendo instrumentalizado pelo INSS, mesmo
a verba sendo oriunda do Fundo Nacional de Assistência Social.
As formas de concessão do BPC mudaram ao longo dos
anos, desde sua implementação no ano de 1996. Da comprovação
da deficiência a partir de diagnósticos biomédicos, orientados
pela Classificação Internacional de Doenças (CID), o BPC passou
a ser concedido sob a orientação da Classificação Internacional

6
Estive envolvido diretamente com as duas políticas. Com o BPC, por ter atuado
como consultor na Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), do Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) na construção de orientações
técnicas sobre o Programa BPC Trabalho. Esse Programa busca a inserção das
pessoas com deficiência, beneficiárias do BPC, na rede socioassistencial, em cursos
profissionalizantes e no mundo do trabalho. Na LC 142 venho atuando como
pesquisador do grupo vinculado à Universidade de Brasília (UnB) e responsável pela
validação do Índice de Funcionalidade Brasileiro Aplicado à Aposentadoria (IFBrA). O
desafio da validação é perceber o quão aplicável é o instrumento utilizado para fins da
concessão da aposentadoria especial. A pesquisa é uma cooperação entre o Ministério
da Previdência Social e a Fundação Universidade de Brasília (FUB), por meio do Centro
de Desenvolvimento Tecnológico (CDT) da UnB.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 130

de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e as definições da


Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.7
Assim, o INSS adotou, desde o ano de 2009, a avaliação
“multiprofissional” da deficiência para a concessão do BPC. Não
apenas critérios biológicos e corporais são avaliados, mas também as
barreiras socioestruturais que influenciam nas definições de deficiência.
De alguma forma, o que o Instituto faz é a instrumentalização das
definições apresentadas anteriormente e pela Convenção. Para que isso
fosse possível, não apenas os médicos realizam “perícias” que orientam a
concessão, como também os assistentes sociais produzem diagnósticos
com critérios próprios que, somados às definições médicas, definem se
determinado sujeito é uma “pessoa com deficiência” e, acima de tudo, se
ela é um sujeito de direito do BPC.
A Lei Complementar no142/2013 garante a aposentadoria especial
para as pessoas com deficiência, dentro do Regime Geral da Previdência
Social (RGPS), com a redução do tempo de contribuição em dois, seis ou
dez anos. Para que o segurado8 faça jus à redução de dois, ele precisa ser
avaliado como “pessoa com deficiência leve”; para redução de seis anos,
deverá ser considerado pessoa com deficiência moderada; e dez anos,
pessoa com deficiência grave. Pela primeira vez é inserida a questão
dos “graus” de deficiência na legislação brasileira e, de repente; por esse
motivo, não existia qualquer índice para tal mensuração.
A aposentadoria especial está em vigor desde 2013, porém, o
instrumento que é utilizado para a avaliação foi publicado em 27 de
janeiro de 2014, por meio da Portaria Interministerial AGU/MPS/MF/
SEDH/MP no 1. Nessa Portaria, o Índice de Funcionalidade Brasileiro
Aplicado à Aposentadoria (IFBrA) é apresentado como forma de
avaliação “médica e funcional” das pessoas com deficiência para fins de
concessão da aposentadoria.
O IFBrA faz uso também das definições da CIF com 41 domínios
que devem ser pontuados pelos profissionais. Assim como o BPC, dois
profissionais assumem esse desafio: um médico perito e um assistente
social. Ambos utilizam o mesmo instrumento, mas são autônomos em
suas pontuações. A somatória dos dois profissionais indicará o “grau”

7
Para inúmeras análises sobre o BPC, a proteção social e outras interações, consultar
o livro organizado por Diniz, Medeiros e Barbosa (2010).
8
Segurado é o nome utilizado pela Previdência Social para se referir aos indivíduos
que contribuíram ao RGPS e que podem usufruir das garantias constitucionais para esse
grupo populacional.
A tensão visibilizada 131

da pessoa com deficiência e, consequentemente, o direito que terá


em se tratando de redução do tempo de contribuição e concessão da
aposentadoria.
Além das duas políticas citadas acima, que buscam
instrumentalizar o conceito de deficiência trazido pela Convenção,
temos outras iniciativas em nível federal. O Plano Nacional Viver Sem
Limite, implantado por meio do Decreto no 7.612, de 17 de novembro
de 2011, pretende agregar diferentes ações que buscariam dar conta de
transformar a problemática das pessoas com deficiência em políticas
públicas, tangenciando as preocupações nas diferentes esferas dos
Ministérios. Quatro grandes eixos foram propostos no tal plano: acesso
à saúde, acesso à educação, inclusão social e acessibilidade. Com
essas transversalidades, várias ações são propostas em nível nacional
para serem executadas pelos Ministérios, buscando, de certa forma, a
“totalidade” da inserção das pessoas com deficiência no mundo social
(e reconhecendo a desvantagem histórica sofrida por esse segmento).
O que é interessante nas ações do Viver Sem Limite (proposto
após a regulamentação da Convenção) é a tentativa de unificação desse
conceito no Brasil. Não mais uma série de conceitos é lançada (como
foi o caso das leis citadas anteriormente), mas temos uma definição
global do que seria pessoa com deficiência e que, teoricamente, seria o
que guiaria todas as ações.
Se por um lado vivemos atualmente uma profusão de discursos
sobre deficiência e pessoas com deficiência nas políticas públicas em
nível nacional, por outro, percebemos um duplo aspecto que pode
tensionar suas elaborações: primeiro, de que existem certos conceitos
hegemônicos que ainda persistem e que, grosso modo, apresentam o
desejo universalista das políticas a partir do momento que definem quem
é a sua população específica; segundo, de que a profusão de discursos
e de ações (e essa mudança conceitual provocada pela Convenção)
também gera uma certa tensão entre os conhecimentos envolvidos,
exigindo respostas de diferentes campos de atuação.
Falo aqui, neste segundo momento, do desafio que nós das
ciências humanas temos de auxiliar na construção das formas de fazer
as políticas públicas para pessoas com deficiência. Acima de tudo, da
possibilidade (e desafio) de produzir (e auxiliar a construir) propostas
diferenciadas que valorizem outros aspectos para as definições do
que seriam pessoas com deficiência. Evidentemente, esse desafio é
também problemático se formos levar em consideração os desejos
sempre universalistas das políticas públicas e as formas como, de uma
Políticas públicas: reflexões antropológicas 132

maneira ou de outra, hegemonias são constantemente produzidas e/


ou reproduzidas.

A invisibilidade inerente

Agora apresento algumas questões trazidas pela minha pesquisa


de doutorado, realizada na localidade de Várzea Queimada, zona rural
do município de Jaicós, estado do Piauí. Essa pesquisa foi realizada
com o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS)
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e foi apoiada pelo
Instituto Nacional de Pesquisas Brasil Plural (INCT Brasil Plural –
CNPq/CAPES/FAPESC/FAPEAM).9
Várzea Queimada é uma pequena localidade rural no interior do
Piauí. Sua população é de aproximadamente 900 habitantes, que vão e
que vêm de outras cidades, como é o caso de Jaicós, de São Paulo e
de outras que estão emergindo como alternativa válida para a busca de
melhores condições de vida ou para acumular recursos para a compra
de bens de consumo sonhados por diferentes gerações. Lá nasceram 34
surdos, localmente designados como mudos.
Na comunidade, todos fazem “Cena” com os “mudos”. Cena é a
palavra designada para falar sobre a forma específica de comunicação
gesto-visual constituída na comunidade e utilizada pelos seus
membros na comunicação com mudos e entre estes. A Cena pode ser
vista como um intervalo criativo entre o contexto social, o uso prático
e a vivência/experiência histórico-cultural na localidade. Ela ancora
e está ancorada nas relações sociais e nos participantes do ato de fala
que, de alguma forma, produzem o significado a partir da manipulação
das informações dadas pela própria Cena.
Cabe lembrar que a Cena é uma língua de sinais diferente
da Língua Brasileira de Sinais (Libras), legitimada pelo estado
brasileiro e carro-chefe das ações do estado para a “inclusão” dos
surdos na sociedade. É pela Cena, e não pela Libras, que as pessoas
se comunicam em Várzea Queimada. E foi na tensão entre Cena e
Libras que eu cheguei na comunidade, a partir de uma das inúmeras
ações de inclusão dos surdos, realizada por uma instituição católica
de São Paulo nos sertões do Piauí. Para muitos, os surdos de Várzea
Queimada “não tinham língua” antes do curso realizado, e a Cena é

Descrições mais detalhadas podem ser encontradas em Pereira (2013).


9
A tensão visibilizada 133

vista como inferior, que necessita de certo refinamento tendo como


base a Libras e as outras conceitualizações das políticas públicas.
Na comunidade, a Cena “é dos mudos”. Ou seja, Cena é um dos
sinais diacríticos que caracterizam um grupo. Ser mudo é, acima de
tudo, fazer uso da Cena, em detrimento da oralidade. Porém, como
todos na localidade são aptos a fazer Cena, não são os mudos tidos
como “diferentes”. Eles sempre estiveram inseridos no processo social
e respondem, em menor ou maior grau, aos anseios sociais a eles
direcionados. O que quero argumentar é que, diferentemente de uma
história hegemônica sobre a surdez no Brasil (e no mundo), os surdos
em Várzea Queimada estão inseridos no processo social.
Eles fazem parte da comunidade de prática que constitui a
Várzea Queimada, compartilhando os afazeres cotidianos, os rituais e
as “regras” sociais. Eles estão na história da comunidade, seja do ponto
de vista experiencial (vivenciando e partilhando histórias sobre ela),
seja enquanto personagens: existe uma história nativa sobre a origem
da surdez na localidade.10 Os surdos são categorizados por uma série
de elementos que os transformam enquanto sujeitos liminares, mas isso
não os coloca em desigualdade com os demais. Eles sofrem os mesmos
desafios que seus parentes: falta d’água, dificuldade de acesso a recursos
financeiros, não letramento histórico, entre vários outros que marcam
as comunidades sertanejas brasileiras.
Historicamente, eles são mudos pois fazem Cena. Fazendo
Cena, colocam a comunidade de prática em ação. Todos fazendo
Cena, a diferença se transforma em insignificante do ponto de vista
relacional. Se todos fazem Cena, não há, teoricamente, barreiras que
os diferenciam. Com a interação coletiva “na Cena”, os mudos não
podem ser enquadrados como pessoas com deficiência da forma como
encararíamos em outros contextos. Os mudos, em Várzea Queimada,
precisam ser analisados de outras perspectivas e não necessariamente
do ponto de vista do conceito hegemônico de “pessoa com deficiência”.
Porém, como já anunciado no início deste texto, a expansão
da “visibilidade” da deficiência, a partir de políticas públicas, marcou
também a pequena localidade no sertão piauiense. No ano de 2005, uma
equipe de “doutores de São Paulo”11 realizou o primeiro diagnóstico

10
Mais detalhes sobre as teorias nativas sobre a origem da surdez na Várzea Queimada
podem ser obtidos em Pereira (2012).
11
“Doutores de São Paulo” é a expressão utilizada no vilarejo. Trata-se de um conjunto
de pesquisadores vinculados à Universidade de São Paulo que se dirigiram até a
Políticas públicas: reflexões antropológicas 134

biomédico de deficiência auditiva na comunidade. Essa história está


marcada no cotidiano dos moradores da Várzea Queimada e serve
como um disparador de uma série de releituras das práticas sociais da
(e na) comunidade.
O diagnóstico trouxe um nome para os mudos: eles são deficientes
auditivos e o “problema” está ancorado no parentesco. Com a leitura da
equipe de São Paulo sobre a surdez bilateral profunda, as causas foram
averiguadas e o veredicto disparado: é pelo excesso de casamentos
entre consanguíneos que a surdez seria predominante na comunidade.
Com o veredicto, vieram também algumas indicações: proibições de
casamento entre primos (uma das formas preferenciais na comunidade)
e a necessidade de inserção de “políticas de inclusão”.
Após a visita dos pesquisadores de São Paulo, várias ações foram
disparadas em Várzea Queimada. No ano de 2008, uma reconhecida
instituição de educação de surdos da cidade de São Paulo iniciou o
primeiro curso de Língua Brasileira de Sinais (Libras). Instrutoras da
metrópole foram para o interior do Piauí ensinar “uma língua” para a
comunidade. O objetivo era ensinar a língua de sinais oficial brasileira
para aquela população e também fomentar outras políticas de inclusão
social para o que elas chamavam de “comunidade surda” de Várzea
Queimada.
O intuito das educadoras de São Paulo estava de acordo com
o ponto de vista das políticas públicas: trabalhava com conceitos
hegemônicos (e em voga) de surdez, enquanto uma “diferente cultura” e
de língua de sinais, vista a Libras enquanto oficial do Brasil, e com o fato
de os surdos necessitarem aprender uma língua única para a inserção
na comunidade surda nacional. Para elas, era indispensável fomentar a
“autoestima” dessas pessoas a partir do fortalecimento delas enquanto
grupo diferente dos demais da localidade. Ou seja, ensinando a Língua
Brasileira de Sinais, a cultura surda seria garantida e existiria uma maior
coesão do grupo de surdos da localidade. O que essa primeira ação do
Estado na localidade fala é mais do que o ensino de uma língua oficial:
é o pressuposto da construção homogênea de formas de “ser” surdo.
Essas ações nos falam, pelo menos, três coisas: surdo se comunica em
Libras, surdo “é diferente” e tem uma cultura, e surdo precisa de ações

comunidade com o intuito de conhecer e estudar os motivos do nascimento de um


número expressivo de “deficientes auditivos” em Várzea Queimada. Esse fato é bastante
importante nas histórias dos moradores de Várzea Queimada, especialmente quando o
assunto é a surdez.
A tensão visibilizada 135

de inclusão. Pois bem, parece que essas ações dialogam muito mais com
pressupostos globais sobre surdez e deficiência do que com as formas
locais de pensar e se relacionar com o mundo.
Mas, as inserções de políticas públicas na localidade não param
nessa ação da referida instituição. A prefeitura do município, tendo como
base as ações nacionais e estaduais, lança uma série de ações para “as
pessoas com deficiência em Jaicós”. Vale ressaltar que o estado do Piauí
cria uma Secretaria Especial para inclusão da pessoa com deficiência, visto
o envolvimento pessoal do governador e sua esposa com essas questões:
uma de suas filhas é uma pessoa com deficiência, Daniele Dias, que dá o
nome para um famoso centro de reabilitação na cidade de Teresina.
O interessante é que vivenciei exatamente essa efervescência
da questão da deficiência no município de Jaicós. Em quase todos
os eventos do municípios, os “surdos” de Várzea Queimada eram
chamados para participar. Eles eram lembrados nos discursos oficiais
do prefeito e de outros secretários. Ações de “resgate da autoestima” e
de “inclusão” dos surdos eram amplamente divulgadas e promovidas
pela administração pública.
O discurso era o mesmo que o da maioria das políticas: criou-
se um sujeito específico, nomeado como “pessoa com deficiência”,
que precisaria de ações do estado para a promoção do seu bem-estar.
Esse sujeito, notadamente homogeneizado e hegemônico, precisaria
ser atingido pelas políticas públicas. E os mudos de Várzea Queimada
foram o foco privilegiado das ações. Porém, nada foi pensado sobre a
realidade local para a aplicação de tais políticas.
Por exemplo, criou-se uma turma de Alfabetização de Jovens
e Adultos (EJA) para letrar os surdos, agora pensados enquanto os
sujeitos macro das políticas. O dilema era grande quanto às formas de
alfabetização: contratava-se uma professora de Libras ou se utilizaria
como recurso humano uma professora nativa que dominava a língua
local? Mesmo tendo escolhido a segunda opção, a ação não foi bem
recebida, nem pelos mudos, nem pela comunidade em geral. Nos
discursos dos moradores de Várzea Queimada, escola é coisa de
“criança”, e os surdos não eram crianças. Além disso, eles estavam em
uma turma específica, composta exclusivamente por surdos, o que
provocou uma segregação e era vista como a “sala dos mudos”. Antes,
eles eram iguais aos demais adultos não alfabetizados. Depois das
ações, era “tudo para os mudos”.
E isso se repetiu com a Dança de São Gonçalo, manifestação
tradicional da comunidade. Durante as ações da instituição de educação
Políticas públicas: reflexões antropológicas 136

de surdos de São Paulo, um dos agentes da prefeitura municipal


“percebeu a potencialidade” dos surdos na Dança de São Gonçalo e
propôs, como uma forma de inserção social e resgate da cultura local,
que fosse formado um “Grupo de São Gonçalo por Pessoas Surdas”.12
Mais uma vez, cabe relacionar isso com as propostas do
governo do estado do Piauí de resgate de uma “identidade nacional”
e de identidades regionais a partir de ações que contemplem coisas
“tipicamente piauienses”. O governo do estado lançou a campanha e
um vídeo com o hino estadual. Nele, figuras folclóricas do Piauí são
trazidas em imagens como “os vaqueiros”, o São João, algumas comidas
típicas como o baião de dois e a “margarida na manteiga”. Junto com
essa proposta, vem uma série de investimentos nesse tipo de ações, que
contemplam, enaltecem e visibilizam a “cultura piauiense”.13
O grupo foi criado, primeiramente, para fazer uma apresentação
para a presidente da Fundação Nacional de Cultura, que estaria na cidade
de Jaicós. Para prestigiar os “surdos de Várzea Queimada”, ela passaria
uma noite na localidade para assistir à apresentação do grupo. Depois
da primeira apresentação, o grupo virou uma das ações de “resgate da
autoestima” dos deficientes auditivos da comunidade.
Porém, a Dança de São Gonçalo não é dançada por todos. Ela
é um processo ritualístico em que as mulheres dançam para o santo
agradecendo ou solicitando casamento. Os homens apenas assistem.
No “São Gonçalo por pessoas surdas”, todos os surdos de Várzea
Queimada são chamados a dançar: homens e mulheres, de todas as
idades. Mais uma vez, a ideia de um grupo homogêneo, os surdos,
daria o suporte teórico da ação.
Além das ações municipais, outras políticas públicas federais
reconfiguraram as relações locais e as formas de a comunidade encarar os
mudos. Na esteira das novas definições de “pessoa com deficiência” trazida

12
Rodas de São Gonçalo são formas utilizadas pela população de Várzea Queimada
para pagar uma promessa feita ao santo. Geralmente são promessas para arrumar
relações maritais, feitas por mulheres. Elas devem “pagar” tantas rodas de São Gonçalo
quantas foram acordadas com o santo casamenteiro. Na forma tradicional, mulheres da
comunidade são chamadas para dançar, sendo aos homens reservado o direito de assistir,
exceto quatro deles que são responsáveis pela condução da música (os “caqueiros”).
O que legitima essa ação são discursos de que o Piauí sempre fora um estado esquecido
13

pela nação e faz um chamamento aos governos municipais para o resgate da cultura local.
Não menos importante é o vídeo, semelhante ao produzido pelo estado do Piauí, com
o Hino Nacional Brasileiro vinculado a imagens que “valorizam a cultura nacional”,
enfocando diferentes aspectos regionais (danças gaúchas, carnaval, “baianas” etc.).
A tensão visibilizada 137

pela Convenção, os anos de 2009 e 2010 foram marcantes para os mudos


de Várzea Queimada. Quase todos obtiveram o Benefício de Prestação
Continuada (BPC), ampliando em um salário mínimo a renda familiar
mensalmente. Considerando a realidade de Várzea Queimada, esse dinheiro
os coloca em um status diferenciado na localidade: eles acabam assumindo
grande parte das obrigações financeiras da família e transformam-se em
“superiors” do ponto de vista da renda familiar. Além disso, a concessão ou
não do BPC para os mudos é fruto de várias especulações na comunidade.
Se o Bolsa Família, um benefício também bastante comum (e
importante) na localidade tem os seus critérios quase que universalizados
(a maioria absoluta das famílias recebe “o cartão”) e bem definidos, os
motivos de obtenção do BPC não estão tão evidentes para os habitantes
de Várzea Queimada. Com isso, várias suposições são feitas, que
jogam com diferentes opiniões sobre por que determinado indivíduo
recebeu o Benefício e outros não. Mais uma vez, uma série de critérios
de diferenciação é acionada e gera, de alguma forma, pressupostos de
“exclusão”. “Agora é tudo para os mudos” é a frase da vez quando se trata
das políticas públicas na localidade.
Quando se propõe a mudança nas formas tradicionais de
organização, seja com a implantação do São Gonçalo por pessoas
surdas, seja pelo privilégio da “surdez” enquanto fator diacrítico para a
construção de políticas, está-se valorizando a construção de um grupo
que, antes disso, não era encarado enquanto passível de classificação
“pela surdez”, mas sim pelas características liminares que o vinculavam.
Mas essas ações vão além e produzem também perigos para o
desenvolvimento e a manutenção da Cena, língua de sinais local. Quando
as políticas públicas produzem saberes hegemônicos que auxiliam na
produção de grupos, elas trabalham com certos conceitos que, em sua
esteira, trazem outras questões como a necessidade de padronizar a
língua de sinais por meio da Libras.14
Nonaka (2011) já pontuava o risco de assistirmos, em pouco
tempo, ao desaparecimento de um número incontável de línguas de

Não podemos esquecer das considerações de inúmeros autores sobre os elementos que
14

são indispensáveis para a produção de uma “língua”. Bourdieu (1996) e Gumperz (1972)
argumentam sobre isso, ressaltando que para que haja uma língua é necessário o “código”
e também os falantes. Esses falantes constituiriam a “comunidade de fala” responsável
pela manutenção dessa língua. Tratando-se da constituição da Língua Brasileira de Sinais
(Libras) como oficial no país, faz-se necessário também a constituição de um grupo, qual
seja, o que é nomeado como pertencente à “cultura surda”. Fiz algumas considerações
sobre o papel da Libras na consolidação da nação (PEREIRA, 2009).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 138

sinal pelo mundo. Sem dúvida, a extinção de várias línguas de sinais já


ocorreu. Entretanto, como não existiram pesquisas, não conseguimos
nem mesmo precisar os locais onde elas existiram, como e quando
elas desapareceram. Essas formas locais estão sendo englobadas pelas
políticas de “inclusão dos surdos”, que, geralmente, trabalham com
perspectivas hegemônicas sobre o que seria uma língua e como se daria
a educação ou a inserção dos surdos nas sociedades globalizadas.
A autora nos fala da fragilidade das relações sociais que mantêm
vivas as línguas de sinais rurais ou indígenas (aquelas não oficiais nos
países). Da mesma forma que as demais línguas de sinais não oficiais, é
na complexidade das relações sociais em Várzea Queimada que a Cena
se mantém acesa. É na produção cotidiana, dentro dos encontros face
a face, que essa linguagem se perpetua, se complexifica, se aprimora e
se torna passível de reprodução. É na relação imbricada entre cultura e
linguagem que ela continua viva.
Revisando a literatura sobre as línguas rurais ou indígenas
de sinais, podemos ver que a grande maioria das comunidades nas
quais essas formas de comunicação se desenvolveram vem sofrendo
a influência de políticas públicas. Em quase todas as comunidades, a
linguagem local tende a ser substituída pelas línguas nacionais, com a
argumentação de que é necessária a inserção dos surdos nas “culturas
surdas nacionais”, sendo a língua a primeira forma de aproximação.
Devemos pensar, assim, que ao mesmo tempo que as políticas
vêm aumentando significativamente a qualidade de vida de uma
parcela significativa da população, especialmente surdos, elas também
homogeneízam formas de vida. No embate da produção de políticas globais
aplicadas em nível local, os modos de vida das comunidades acabam sendo
os menos privilegiados, o que acarreta profundas transformações. Quando
pensamos em uso da língua, e aqui saliento a Cena de Várzea Queimada,
devemos pensar que nem sempre a homogeneização proposta pela Libras
(ou por outras políticas) pode ser aplicada com todos os seus elementos.
É nesse sentido que urge uma reflexão sobre a Cena enquanto
uma língua que corre sérios riscos de desaparecer. Autores já apontaram
essas questões e demonstraram a importância de nós, cientistas,
assumirmos a responsabilidade da descrição, documentação e reflexão
sobre essas formas específicas de comunicação que estão na berlinda.
Como argumenta Nonaka (2009, p. 214) “Indigenous sign languages tend
to arise suddenly, spread rapidly, and disappear quickly”.
Para que possamos assumir de vez o desafio de documentar essas
outras línguas, os autores apontam a importância de estudos etnográficos
A tensão visibilizada 139

que descrevam as comunidades onde essas formas de comunicação


nasceram. É a antropologia, e suas formas clássicas de trabalho, que está
sendo chamada para contribuir nessa questão.
As descrições etnográficas das comunidades onde as línguas
de sinais não oficiais surgiram e se mantêm podem auxiliar também
no estabelecimento de políticas públicas que levem em consideração
o pluralismo linguístico entre os surdos no território. Já tivemos
inúmeros avanços com a criação da Lei de Libras, mas ainda precisamos
pensar em como transformar a diversidade em material de elaboração
de políticas públicas; diversidade não apenas no nível discursivo, mas
também em seu uso prático, a começar pelo respeito à preservação e
ao uso de uma língua de sinais específica no território nacional, com a
elaboração de estratégias educacionais, sociais, entre outras, que levem
em consideração essas nuances.

O retorno às políticas ou das formas possíveis de


interlocução

O desafio deste artigo é trazer elementos de diferentes esferas


para compor um quadro sobre as políticas para pessoas com deficiência
no Brasil, seus marcos legais e suas “consequências” em uma pequena
localidade no sertão piauiense. Como argumentei, existe um desafio
constante em produzir políticas para um grupo específico, fazendo
uso de um arcabouço clássico e teórico em que a antropologia tem
contribuições históricas, porém, sem levar em consideração as
realidades locais para tal aplicação.
Dessa forma, volto ao questionamento: as políticas públicas
querem antropólogos ou a antropologia?
Isso parece fazer sentido tomando como base de análise o
que expus anteriormente: existe uma profusão de discursos sobre
diversidade e um chamamento das novas definições de deficiência de
profissionais para além do corpo médico e pedagógico. Demandam-
se profissionais de outras áreas, como vimos com as novas definições
trazidas pela Convenção e a inserção de assistentes sociais, por exemplo,
para a realização de avaliações no INSS. Demanda-se também o saber
teórico e metodológico da antropologia.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO), por exemplo, desde 2011, reconheceu as línguas
de sinais como passíveis de serem inseridas em seu atlas sobre as línguas
Políticas públicas: reflexões antropológicas 140

em risco de desaparecimento. Desde então, a organização insere em seu


catálogo línguas de sinais de todo o mundo que, grosso modo, podem ser
extintas caso não sejam elaboradas políticas de valorização e revitalização
dessas formas de comunicação. Para que essas línguas não sejam perdidas
ao longo dos anos, antropólogos também estão sendo convidados a realizar
etnografias como forma de documentar as sociabilidades características
desses locais. Ao mesmo tempo que profissionais de diferentes áreas
estão sendo chamados a participar de debates públicos, o arcabouço
teórico e metodológico da antropologia é visto como uma das possíveis
contribuições na elaboração de políticas públicas.
Porém, pelo que parece, as respostas esperadas seguem a mesma
lógica anterior: ao mesmo tempo que temos uma evolução conceitual
no que tange às pessoas com deficiência, ainda temos dificuldade em
instrumentalizar alguns conceitos ou formas de ver em nível de política
pública. Ou seja, temos uma dificuldade em colocar a antropologia “a
funcionar” quando estamos nas esferas da elaboração das intervenções.
Assim, parece que, antes de respostas de cunho antropológico,
o que se espera é a atuação de antropólogos para, de alguma forma,
legitimar certos discursos. O desafio da diversidade está posto; porém,
levar essa diversidade a sério ainda não acontece de fato quando da
construção das novas estratégias de intervenção. Se, por um lado,
temos novas definições, por outro, temos as mesmas respostas que
eram dadas anteriormente.
O sujeito hegemônico e homogêneo das políticas públicas
continua imperando, mesmo com os discursos socioantropológicos
sendo proclamados em várias frentes no país. Cabe a nós, agora,
repensar o papel da antropologia (ou dos antropólogos) nesses espaços
de construção de políticas.

Referências

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Pescadoras artesanais no litoral
de Santa Catarina, Brasil: algumas
reflexões sobre reconhecimento
e (in)visibilidades

Rose Mary Gerber

Introdução

Este artigo advém de meu doutoramento em Antropologia


Social pelo PPGAS/UFSC, cuja pesquisa foi realizada com pescadoras
no litoral de Santa Catarina, sul do Brasil, entre os anos de 2010 e
2012, em uma experiência em que exercitei um deixar-me afetar
(FRAVET-SAADA, 2005) pela vida e pelo cotidiano dessas mulheres.
Nesse empreendimento em que quis ficar tão próxima quanto uma
sombra (GERBER, 2013), emergiram questões densas relacionadas
às dificuldades com as quais essas mulheres se defrontam para serem
reconhecidas como profissionais.
A igualdade “não é a ausência ou a eliminação da diferença,
mas sim o reconhecimento da diferença e a decisão de ignorá-la ou
de levá-la em consideração” (SCOTT, 2005, p. 15). Por ser vista como
feita por homens, não se vê como possível que mulheres possam ter na
pesca uma experiência individual que diz respeito não apenas a uma
experiência profissional, mas social; seu modo de ser e estar no mundo.
Quando técnicos ignoram ou desconsideram essa possibilidade
singular de ser e existir, ou não a reconhecem como possível, de uma
forma ou de outra, contribuem para que seja cortada qualquer forma
de visibilidade de mulheres pescadoras.
Assim fazendo, “retiram da vida o sentido de experimentação e de
criação coletiva. Retiram do ato de viver o caráter pleno de luta política
e o da afirmação de modos singulares de existir” (BAPTISTA, 1999,
Pescadoras artesanais no litoral de Santa Catarina, Brasil 143

p. 49). Quando o sistema, que poderíamos considerar um poderoso


amolador de facas (BAPTISTA, 1999) contemporâneo, é alimentado e
automaticamente classifica sujeitos, a mulher pescadora não encontra
seu reconhecimento porque estaria fora dos enquadramentos possíveis.
Em assim sendo, fica alijada do que seria um direito inalienável – o
direito que todos têm a ter direito – posto que erga (para) omnes (todos).

Sobre reconhecimento de direitos

A referência de que o mundo da pesca é eminentemente masculino


se pauta por um olhar hierárquico que não reconhece a existência, e
que, portanto, invisibiliza, as pescadoras, cuja trajetória de busca por
direitos e reconhecimento é ainda incipiente. Enquanto as agricultoras
já podem computar resultados advindos de uma longa caminhada de
luta, as pescadoras iniciam-se nesse percurso. Para efeito de direito
aos benefícios previdenciários e à aposentadoria, a pesca artesanal
está classificada como atividade que, junto com a agricultura, define
seus membros como Segurados Especiais, aí incluindo pescadores,
agricultores e indígenas que vivem do que é denominada atividade
rural. A condição de Segurado Especial (SE), que deveria abrigar as
pescadoras em decorrência das especificidades de atividades exercidas
em situações distintas de trabalhadores urbanos, como horário
diferenciado e exposição constante às intempéries, à periculosidade e
ao desgaste físico precoce, na fala de técnicos do INSS que encontrei
no decorrer de minha pesquisa, emergia revelando uma visão segundo
a qual essa classificação – especial – dar-se-ia pelo fato de se tratar de
trabalhadores qualificados como coitadinhos, pequenininhos.
Entendo que para compor a trajetória de busca por seus
direitos como sujeitos profissionais da pesca é central desconstruir a
homogeneização e construir o aporte de uma diferença que difere de
outras categorias profissionais que possam compor o chamado espaço
rural. Trata-se de pescadoras, cujos contextos de trabalho nos quais
as muitas atividades ocorrem implicam diferenças cruciais quando
comparados aos de outras profissões, como a agricultura. Para Abu-
Lughod (1991), um dos problemas centrais com a generalização são
seus efeitos em não considerar as diferenças existentes. Isso porque a
generalização preza pelo homogêneo que, por sua vez, simula coerência
e atemporalidade, ambos produzidos visando melhor criar uma situação
sobre a qual se pretenda dar conta e manter sob controle.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 144

Enquanto as agricultoras lidam com a terra, as pescadoras


trabalham com o mar e nele. Esta é a primeira grande diferença.
A segunda diz respeito ao fato de que as agricultoras têm como espaço
de trabalho a terra, local fixo que lhes dá uma segurança maior do
que a das pescadoras, para as quais “há ausência de posse do recurso
explorado” (MALDONADO, 1994, p. 29). Embora em ambas as
atividades se conviva com um tempo Cronos (LEACH, 1974) e com os
efeitos de intempéries e imprevistos, o mar é investido de mobilidade.
Mesmo que se tenha o reconhecimento do que chamam pontos de pesca,
em princípio, o mar é de todos e a circulação é livre. Terceira diferença:
na agricultura se planta, cuida, limpa; se cultiva e espera o tempo da
colheita; na pesca artesanal não há cultivo, há extração em que todo dia
é dia de observar como foi a pescaria.
Em comum, um calendário anual imbuído de uma ritmanálise
(BACHELARD, 1994) que diz respeito aos ciclos de plantio e colheita
por um lado; de épocas de diferentes peixes por outro. Pescadoras e
agricultoras vivem a partir de ciclos que dizem respeito a épocas de
mais ou menos produção. Ambas têm jornadas de trabalho extenuantes,
cuidam da casa e dos filhos; porém, uma tem a terra, outra tem o mar como
seu referencial. São exemplos breves que dizem respeito às diferenças
e aproximações que precisam ser consideradas para que as pescadoras
sejam plenamente reconhecidas como trabalhadoras, tendo acesso aos
direitos previdenciários e às linhas de crédito, vindo a adquirir aparelhos,
embarcações e equipamentos. Um reconhecimento que diz respeito às
especificidades e formas de vida e trabalho. Há ainda, portanto, um longo
percurso quando pensamos em reconhecimento profissional. É preciso
mostrar as diferenças visando conquistar direitos iguais.

Acerca de (in)visibilidades e anonimatos

Anônimo é, em princípio, aquele que não tem nome. Anonimato


diz respeito a todos e a tudo quanto existe, mas não se vê, posto que
não apareça quando diluído em alguma categoria genérica. O exemplo
que eu gostaria de discutir é o da expressão autônoma sugerida por
uma instituição como o INSS, responsável pelos trâmites exigidos
e relacionados à aposentadoria de trabalhadores brasileiros, para
as pescadoras se registrarem e terem direito à aposentadoria. A
simplificação sugerida por meio da categoria autônoma faz desaparecer
a diversidade com que mulheres se exercem como pescadoras.
Pescadoras artesanais no litoral de Santa Catarina, Brasil 145

Na obra intitulada Pode o subalterno falar? Gayatri Spivak


(2010) aborda centralmente a situação da mulher, pobre, trabalhadora,
habitante do terceiro mundo e migrante, em que a condição global de
subalternidade encontra seu emblema, apontando que o lugar da teoria
é masculino. Porém, mais do que a teoria, eu diria que há um âmbito
bem mais amplo que a tudo abrange e que a tudo vê e classifica dentro
e a partir da ótica do masculino. Em uma sociedade pautada por essa
lógica, torna-se impensável considerar que há mulheres pescadoras. Tal
pressuposto vai repercutir em uma das exigências do INSS, segundo a
qual, para se aposentar, a mulher deve provar que é esposa ou filha de
pescador. Ou seja, sozinha, como um sujeito, trabalhadora, ela não é
pescadora. Autônoma, portanto, engloba e homogeneíza o que não se
enquadra, o que diz respeito ao que Abu-Lughod (1991) se refere como
efeito da generalização. Uma homogeneização que faz desaparecer
qualquer indício de diversidade.
Embora previsto em nossa Constituição Federal de 1988, em
seu artigo 5o, Inciso I, que “homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações”, na prática obrigações e direitos não encontram a igualdade
tão propalada. Nos espaços em que circulei e participei em reuniões
viabilizadas pela Epagri envolvendo pescadores e pescadoras com técnicos
do INSS, cujo objetivo era que os primeiros conhecessem seus direitos e
obrigações ligados aos processos de aposentadoria, pude perceber que a
mulher pescadora não tem sua autonomia profissional reconhecida.
Cabe aqui um breve parêntese para recorrer rapidamente ao
que se define por pesca e pescador. No Grande dicionário Houaiss da
língua portuguesa (HOUAISS, 2001, grifo nosso), podemos encontrar
que pescador é “adjetivo singular masculino; que ou aquele que pesca”.
Pesca “é o ato de pescar; pescaria; arte ou técnica dos pescadores;
aquilo que se pescou; ato de retirar algo da água; ação de procurar,
de pesquisar”. Por outro lado, artesanal é definido como “relativo ou
próprio de artesão ou artesanato; diz-se das coisas feitas sem muita
sofisticação; rústico”. No Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa
(FERREIRA, 1986, grifo nosso), lê-se que “pescador (latim piscatore);
que pesca; aquele que pesca”.
No New International webster’s Student Dictionary of the English
Language (LANDAU, 1997), encontramos: “fish is to catch or try to
catch fish in (a body of water); fisherman, one who fishes for sport or as
an occupation”. Não encontrei em dicionários a denominação clara de
pescadora, mas nesse dicionário de língua inglesa ainda se pode ler:
“fishwife: a woman who sells fish” (LANDAU, 1997). Ou seja, é difícil
Políticas públicas: reflexões antropológicas 146

encontrar a definição reconhecida de pescadora, ou fishwoman, para a


mulher que vive em atividades que compõem os processos de pesca.
Porém, observa-se em verbetes que, sendo uma mulher de pescador,
uma fishwife, cabe a ela, em decorrência, a venda de peixes.
É interessante atentarmos que nos dicionários pesquisados há
uma definição que não nos deixa dúvida: masculino singular: aquele
que pesca. Não se cogita em nenhum dos dicionários, que são obras
referenciais sobre a escrita, mas também reflexo de como uma sociedade
pensa e se vê, uma conceituação mais ampla. Ainda hoje é considerado
pescador – substantivo masculino – o homem que embarca e vai para
o mar, rio ou lagoa, ou seja, retira da água e traz o produto de sua
respectiva pescaria, seja ela industrial ou de pequeno porte quando
falamos de pesca profissional.
Por sua vez, as pescadoras são vistas – e aqui me detenho em
destacar o INSS por estar falando da temática aposentadoria, mas quero
deixar claro que não se trata de uma postura exclusiva desse órgão – a
partir de um homem. Necessariamente, para conseguir se aposentar com
a denominação pescadora, a mulher deve estar inserida no chamado
grupo familiar, mas não porque aí estando seja prontamente visibilizada
como uma pescadora daquela família. É aposentada como pescadora
quando consegue provar sua ligação com um pescador.
Ao questionar um dos técnicos do INSS sobre a possibilidade
de a mulher, por exemplo, não ser casada, como ficaria, ele respondeu:
“Mas tem que ser, tem que ter alguma ligação; ou ela é filha, ou é
mulher. Sozinha, ela não é. Ela é em função dele. Então tem que
provar que é mulher, filha etc.”. Aqui me parece plausível dialogar
com Rosaldo (1995, p. 22), quando afirma que “gênero, em todos os
grupos humanos, deve ser entendido em termos políticos e sociais
com referência não a limitações biológicas, mas sim às formas locais
e específicas de relações sociais e particularmente de desigualdade
social”. E uma das formas de desigualdade social joga com a dupla (in)
visibilidade e reconhecimento.
Se considerarmos a visibilidade como o conhecimento que
as comunidades têm sobre as mulheres que trabalham nas pescas
(SEMPERE; SOUSA, 2008, p. 74), podemos dizer que oscila entre a
visibilidade mais expansiva que as mulheres que embarcam desfrutam
tendo em vista o viés de gênero que tradicionalmente pauta essa
atividade como sendo feita por homens. Elas teriam, portanto, um
prestígio que as que atuam em atividades feitas em terra não têm. No
entanto, ainda é muito forte reconhecer oficialmente as mulheres como
Pescadoras artesanais no litoral de Santa Catarina, Brasil 147

pescadoras, mais em relação ao seu estatuto de casadas com pescador


do que como profissionais que efetivamente são. É inegável que se
avançou em termos de se garantir o registro de mulheres nas colônias
de pesca quando elas passaram a acessar o direito ao seguro desemprego
e à aposentadoria. Porém, há muito ainda a ser feito no intuito de
reconhecê-las como profissionais, independentemente de serem filhas
ou esposas de pescadores.
Nas experiências de pescadoras, encontrei exemplos alusivos
ao despreparo de alguns técnicos do INSS que, imbuídos do poder de
representar o Estado, exercitam vigilância e punição (FOUCAULT,
2009), não as reconhecendo como sujeitos. Seus atos e ações diziam
respeito à hierarquia de gênero, a uma visão estigmatizada (GOFFMAN,
1993) sobre essas mulheres que eles supunham não ter condições de ser
o que são: pescadoras; impasses, dificuldades, que elas denominavam de
situações de humilhação pelas quais passaram quando alguns técnicos
entendiam ser impossível uma mulher trabalhar na pesca e, portanto,
ter direito à aposentadoria como pescadora.
Wolf (2003) considera o poder como um aspecto das relações
entre as pessoas ao afirmar que, “ao tratar das relações de grupos de uma
sociedade complexa, não podemos esquecer de enfatizar o fato de que
o exercício do poder por algumas pessoas sobre outras entra em todas
elas, em todos os níveis de integração” (WOLF, 2003, p. 75). Tanto aquele
que se imbui do poder quanto o que sofre a ação estão impregnados do
poder. Técnicos que agem em nome de uma instituição e pescadoras
que, diante dessa ação, reagem. Ou seja, reconhecem no poder que em
nome do Estado é exercido a própria constituição do poder estatal.
Continuando, um dos técnicos do INSS, em uma reunião, afirmou
que para o Direito o que vale é o fato. Para o fato, vale a prova. Também
falou que há o que denominam de Cadastro Específico de Segurado
Especial, que objetiva que o Governo do Brasil tenha controle sobre os
trabalhadores brasileiros, aí incluídos os pescadores. O referido técnico
comentou categoricamente: “o Segurado Especial é o último estágio que
a Previdência chegou para automatizar o controle. Alguns casos já estão
automatizados. Está cada vez mais automático. Não é mais possível fazer
com o jeitinho”. “É o fim do jeitinho”, corroborou um pescador.
A fala diz respeito não apenas a um jeitinho identificado como da
malandragem (DAMATTA, 1990), mas, mais do que isso, aponta para
o fim do tete a tete, das possibilidades de conversa e de diálogo, pois é
o sistema informatizado que passa a deter o poder de definir sim ou
não. Com o atendimento do segurado de forma direta com os técnicos
Políticas públicas: reflexões antropológicas 148

do INSS, poderia haver tentativas e a consequente compreensão sobre


as trajetórias dessas pescadoras, cujos meandros estão, para além e
fora dos enquadramentos (FOUCAULT, 2009, p. 143), formalizados e
previstos nos questionários.

Cada vez mais sai da mão do servidor e vai para o sistema.


Agora é o sistema que define. Chega à frente do computador e vai
respondendo, e o sistema vai negar ou aceitar. O sistema não é
uma pessoa, mas é ele que define. Depois, chega lá, no presidente
do INSS, que assina aquilo que o sistema definiu. O Segurado
Especial é o último estágio da sociedade. Todos estão enquadrados
no sistema. (Técnico do INSS).

Podemos analisar a fala do técnico num diálogo contundente


com Foucault (2009), já que o autor preconiza que o poder disciplinar
é um poder que tem como função maior adestrar, de forma que todos,
em algum momento, estejam enquadrados dentro da normatização
prescrita. Ou se está fora. Punição, vigilância e disciplina são poderes
destinados a fazer com que as pessoas cumpram normas, leis e exigências
de acordo com o preconizado. A vigilância é uma maneira de observar o
cumprimento dos deveres. Portanto, um poder que regulamenta gestos,
atividades, aprendizagens e constitui-se mais em um enredamento do
qual não se consegue sair. Uma espécie de prisão sem paredes.
Fazendo alusão às muitas redes, no universo da pesca seria uma
rede feiticeira em que nada escapa. Nas palavras anteriormente ditas
pelo técnico: todos estão enquadrados; parafraseando a linguagem da
pesca, todos estão enredados. E trata-se de uma rede poderosa: quem
entra não consegue sair. O mar talvez seja, dessa forma, um dos últimos
territórios a ser domesticado, enquadrado. O mar e os que pescam talvez
sejam dos últimos redutos livres.
A partir da fala de um dos técnicos do INSS, a solução para as mu-
lheres seria o uso do registro profissional como autônomas. Porém, foi na
sequência, que sua ênfase denotou uma espécie de aversão e total despre-
paro para lidar com os ditos Segurados Especiais, além de demonstrar
claramente sua visão a respeito dos pequenos produtores rurais, entre os
quais se incluem os ligados à pesca. Afirmava o referido técnico: “Tem que
parar com essa coisa do pequenininho, coitadinho, inho. Tem que buscar ser
um EI [Empresário Individual]. Sair desse negócio de especial”.
Essa fala aponta para outro aspecto do despreparo de muitos pro-
fissionais de instituições públicas para atuar com as pescadoras. Um des-
preparo que tem a ver com a desconsideração e/ou desconhecimento de
Pescadoras artesanais no litoral de Santa Catarina, Brasil 149

diferentes formas de vidas; de ser e estar no mundo. Esses técnicos alu-


diam à assimilação de um discurso que poderíamos reconhecer como “se-
braeniano”1 de que todos devem se tornar um Empresário Individual (EI)
e deixar de se considerar e agir no diminutivo, como se o fato de querer
ser, ou ser um pequeno pescador, o tornasse um ser a menos. Algo “inho”.
Parece-me que o raciocínio poderia e deveria ser outro. O amparo
da lei, segundo a qual se pauta o Segurado Especial, não é pelo “inho,
de coitadinho, pequenininho”, mas pelo tipo de trabalho diferenciado,
pautado por um contínuo desgaste físico e realizado em situações
de insalubridade, entre outros aspectos, que fazem com que esses
profissionais tenham conquistada a prerrogativa do direito garantido de
se aposentar com um menor tempo de trabalho do que um assalariado
urbano que tem outras condições e horários.
Fui a uma das comunidades da grande Florianópolis 15 dias depois
dessa reunião com o INSS e, ao conversar com uma das pescadoras que
lá havia estado, ela comentou que no período da tarde iria ao referido
órgão. Perguntei a ela: Para quê?

Vou dar baixa de minha situação como Segurada Especial, pois


estou com medo. Se vier alguma fiscalização, como fico? O moço
lá falou aquilo tudo. Todo mundo saiu desconfiado, com medo.
Falei com o pai e ele concordou em dar baixa. Eu não sou mais
considerada como grupo familiar, pois sou casada. Quer dizer,
vivo junto. Então vou pagar como autônoma. (Jussara).

Mesmo ponderando com ela para que pensasse melhor, esperasse


um pouco, ela não se demoveu da ideia de deixar de ser Segurada Especial.
Parece que o poder exercido pela grande torre pan-óptica chamada INSS,
vigilante e presente no cuidado de si do qual alude Foucault (2009),
estava resumida na decisão e na fala dessa pescadora, que deixava de o
ser: “E se a fiscalização vem?”. A sua reação e decisão foram decorrência
de uma mensagem passada sobre uma pretensa ilegalidade em que a
maioria das mulheres da pesca se encontraria, pois não comporiam
mais o quadro de economia familiar, não sendo, portanto, reconhecidas

1
Sebrae é uma empresa cujo objetivo central é transformar pequenos produtores em
microempresários. Percebi nas falas dos técnicos uma forte alusão a um discurso que
podemos denominar de “sebraeniano” que diz respeito claramente ao empreendedorismo
que aponta que é mais interessante se constituir em empresariado. Resta saber para
quem isso é mais interessante, haja vista que há, por trás desse discurso, uma série de
exigências que se referem à legalização de empreendimentos bem como à padronização
dos produtos e de formas de vida.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 150

e consideradas pescadoras. O trabalho informal que faziam ganhava, na


fala de técnicos que, em princípio, lhes orientariam sobre seus direitos,
um tom de ilegalidade, cuja saída sugerida era invisibilizar a si por meio
da assimilação de uma categoria ampla: autônoma.
A categoria autônoma, assim como do lar, que muitas vezes usam
para responder a itens de formulários em lojas, órgãos governamentais
ou nas certidões de casamento às quais tive acesso, depõe contra
a visibilidade dessas mulheres, pois, ao assim se autodenominar,
desaparecem como pescadoras. Pescadoras estas que, além de agregar
valor aos produtos e de fazer parte da linha de produção necessária para
que o setor pesqueiro funcione e seja visível, muitas delas embarcam.
É preciso, pois, repensar a definição de pesca como uma atividade
genérica, e a de pescador, para além de um substantivo masculino.
A denominação autônoma esconde a visibilidade de mulheres que
atuam/vivem/são na/da pesca, mas não se enquadram nos preceitos do
INSS como pescadoras, não havendo, portanto, como constituir provas
centrais. Encontrei em campo mulheres que não vivem mais com suas
famílias de origem, não estando algumas legalmente casadas. Outras são
casadas com homens que não são pescadores. São elas as que pescam.
Para melhor entender os trâmites necessários para a aposen-
tadoria, conversei com algumas secretárias das colônias de pescadores,
pois percebi que são elas que detêm o conhecimento a esse respeito,
tendo em vista que se encarregam dos processos. Suas falas confirmaram
as narrativas sobre as dificuldades que algumas enfrentam quando
recorrem ao INSS. Segundo uma das secretárias, “tudo depende de quem
a gente pega para atender, porque a burocracia define, mas quem faz é o
técnico do INSS. Alguns atendem melhor, escutam, mas a maioria não
sabe, não foi preparado para lidar com a pesca”.
Ao se reportarem aos processos burocráticos, as pescadoras
demonstravam conhecê-los e ter noção de que o poder pelas decisões
que lhes afetavam vem de níveis mais altos na hierarquia burocrática e,
portanto, de locais mais distantes. Ao responderem sobre suas trajetórias
de vida e momentos que denominavam de tristeza ou humilhação,
aproveitavam para solicitar o envio do que chamavam recado para as
autoridades, para a Dilma:2

[...] Eu digo que o governo. Na verdade, a Dilma devia. Eu digo pra


ti Dilma: devias olhar para as mulheres pescadoras porque aqueles

Dilma Rousseff, presidenta do Brasil.


2
Pescadoras artesanais no litoral de Santa Catarina, Brasil 151

540 reais são muito pouco. Podias fazer um pouco mais pela classe
pescadora, porque a gente escuta na televisão que ela vai ajudar
a mulher da pesca. Que Deus abençoe! Que ela possa ter muita
luz no coração dela, mas que faça logo porque muita mulher
vai morrer, como já estão morrendo, sem ter o reconhecimento.
(Judith, Balneário Camboriú).

A burocracia apareceu durante a pesquisa como uma grande


agente que define como as pessoas devem a ela se submeter, limitando
possibilidades e determinando enquadramentos. Como uma forma
leviana e ardilosa, ela respalda a ação de alguns burocratas que
exercem posições de poder que, se por um lado, não levam em conta
as consequências de suas decisões, decretos, atitudes nas vidas a serem
afetadas, por outro não medem esforços para mostrar o quanto podem
interferir, desestabilizar, alterar rumos de vidas em meio aos possíveis
meandros dos poderes que, em nome da burocracia, detêm.
Em sendo o sistema, conforme informou um dos técnicos do
INSS, o detentor do poder de decidir quem se enquadra ou não se
enquadra dentro das prerrogativas ali definidas, ele não deixa dúvidas,
haja vista ter sido criado para definir o destino de aposentadoria de uma
pessoa. Ele é transparente. Não há espaço para dúvidas, alegavam os
representantes do referido Instituto. No entanto, e ironicamente, sendo
transparente, ele não permite visibilidade para quem não se enquadra: as
pescadoras. Como constituir provas se o reconhecimento desse sujeito,
mulher pescadora, por si só não existe? Se órgãos públicos entendem
o trabalho dessas mulheres como ilegal, ou como não existente, até
quando continuarão invisíveis, diluídas na categoria autônoma, ou do
lar? Não haveria para essas mulheres mais do que um devir pescadora?

Considerações finais

Entre todas as redes, uma das consideradas mais perversas, tendo


em vista que dela nada escapa, é a rede feiticeira. No formato cônico de
um funil, ela arrasta tudo nos fundos por onde passa. Nela, o que entra,
não consegue sair. Dela, nada foge. Por um lado, me inspirei nessa rede,
que, tudo o que pode, captura. Por outro, me alio aos pressupostos de
Foucault (2009), segundo os quais a vigilância é uma função definidora
dos processos reguladores e de controle, “uma peça interna no aparelho
de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar”
(FOUCAULT, 2009, p. 169).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 152

A partir de ambos, considero que se faz possível falar de


enredamentos de controle e vigilância vinculados aos processos de
cadastramento e recadastramento de trabalhadores brasileiros visando
à futura aposentadoria. Falo do que considero os enredamentos das
classificações trabalhistas que compõem os enquadramentos pelos
quais se pauta o INSS, entendendo que esta discussão se faz central
quando nos propomos a tentar entender algumas das implicações que
perpassam a busca por reconhecimento de mulheres como profissionais
da pesca. Portanto, como pescadoras, cujos (a)sujeitamentos dizem
respeito ao que Maluf (2009, 2011, 2012) considerou “modos e regimes
de subjetivação no contemporâneo, pensando o sujeito não apenas
como objeto da análise antropológica, mas como categoria analítica e
paradigma para uma abordagem antropológica do contemporâneo”
(MALUF, 2012, p. 2).
Tais modos de subjetivação se relacionam com as trajetórias de
mulheres pescadoras na busca por suas conquistas como profissionais,
repercutindo no processo e nas dificuldades de aposentadoria em que
emerge, perante o critério definido pelo INSS de Segurado Especial, a
questão central do anonimato e da invisibilidade da mulher no setor da
pesca; posturas e visões de órgãos públicos e de pessoas que, de forma
geral, não sabem de suas existências e desconfiam de suas capacidades
de vivenciar uma “experiência subjetiva” (MALUF, 2009, p. 13).
Finalmente, inspirando-me em Nancy Fraser, 2007, eu afirmaria
que é preciso mais do que uma quebra da invisibilidade via um
princípio de reconhecimento tímido que ora avança, outras retrocede
ou fica estagnado. Ao se propor a pensar como se poderá revigorar a
teoria e a prática da igualdade de gênero sob as condições atuais, Fraser
(2007) aponta o que deveria ser descartado ou preservado para as lutas
que virão. Ao discutir a questão dos direitos das mulheres, a autora
enfatiza que a representação não é apenas uma questão de assegurar voz
política igual às das mulheres em comunidades políticas já constituídas.
É necessário reenquadrar as disputas sobre justiça que não podem ser
propriamente contidas nos regimes estabelecidos. Em contestando o
mau enquadramento, o feminismo transnacional estaria reconfigurando
a justiça de gênero como um problema que Fraser (2007) denomina
de tridimensional. Ou seja, composto por uma tríade a ser pensada
de forma conjunta e que implica redistribuição, reconhecimento e
representação (FRASER, 2007, p. 305).
Em outra obra, a proposta de Fraser já apontava para o sentido
de buscar um equilíbrio que alie tanto a questão do reconhecimento
Pescadoras artesanais no litoral de Santa Catarina, Brasil 153

quanto a da redistribuição e da representação, e no qual as situações


devem ser analisadas dentro do contexto em que estão inseridas.

Nos casos em que o não reconhecimento envolve a negação


da humanidade comum de alguns participantes, o remédio
é o reconhecimento universalista; assim, a primeira e mais
fundamental compensação para o apartheid sul-africano foi a
cidadania universal “não racializada”. Ao contrário, quando o
não reconhecimento envolve a negação daquilo que é distintivo
de alguns participantes, o remédio pode ser o reconhecimento
da especificidade. (FRASER, 2001, p. 120, grifo do autor).

A autora defende que é possível aproximar ética e justiça, justiça e


boa vida, perspectiva tanto de Charles Taylor quanto de Axel Honneth,
lembra Fraser. Para ela, há uma questão central que precisa ser olhada
de frente, de forma rápida e livre de dicotomias desnecessárias.

Se falharmos em formular essa questão, se nos agarrarmos,


ao invés, a falsas antíteses e dicotomias enganadoras,
perderemos a chance de vislumbrar arranjos sociais que
possam compensar injustiças econômicas e culturais. Apenas
olhando para abordagens integrativas que unem redistribuição e
reconhecimento, nós podemos alcançar as exigências da justiça
para todos. (FRASER, 2001, p. 137).

Se os argumentos de Fraser (2001, 2007) se fazem bons para


pensar, eu diria que quando o não reconhecimento envolver a
negação da humanidade comum das pescadoras, o acionamento de
um reconhecimento universalista visibilizado em uma expressão
generalizada como mulheres do campo pode ser acionado. No entanto,
quando o não reconhecimento envolver a negação do que lhes é
distintivo – ser pescadora – minha proposta corrobora com Fraser
(2001): que se reconheça a especificidade.

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Vó Nadir e as políticas públicas
de saúde: por uma clínica plural

Alberto Groisman

Anotações introdutórias1

1) Este artigo é baseado no paper proposto ao Colóquio “Pesquisa


Antropológica e Políticas Públicas”, do INCT-IBP, que ocorreu entre 18
e 20 de novembro de 2013, na UFSC. Mais especificamente, este paper
foi apresentado na mesa-redonda “Políticas Públicas e Saúde”, que tinha
como debatedoras as professoras Sônia Maluf e Márcia Grisotti. Nesta
versão procuro ampliar ainda que singelamente os horizontes de reflexão,
apresentando considerações que na apresentação original no dia 19
de novembro de 2013 não era possível incluir. Talvez essas inclusões
contribuam para avançar sobre algumas questões suscitadas. Não penso
que este debate possa terminar, e, mais ainda, que possa ser encerrado de
forma simples ou fácil num documento com recomendações. Penso que
a contribuição mais direta que cientistas sociais podem fazer no campo
das políticas públicas é o que chamo de “ativismo epistemológico”.

1
Agradeço às pessoas que participaram, colaboraram e contribuíram para a realização
da pesquisa de campo, particularmente os participantes das religiões do daime, por sua
generosidade, mas particularmente aos que me interpelaram e/ou compartilharam
comigo os momentos de convivência, o interesse genuíno no conhecimento produzido
pela pesquisa, a disponibilidade e o estímulo. Agradeço ainda às agências que financiaram
o projeto, CNPq e INCT – Instituto Brasil Plural, e especialmente às organizadoras desta
publicação, às contribuições das debatedoras e dos demais participantes da sessão da
mesa-redonda em que o paper original foi apresentado
Vó Nadir e as políticas públicas de saúde 157

Sumariamente essa forma de ativismo consiste em refletir


criticamente sobre atitudes e agenciamentos do ponto de vista de
praticar e cobrar a autorreflexividade, um valor importante da contem-
poraneidade da antropologia, e de parte das ciências sociais. Essa
autorreflexividade se desdobra de uma preocupação de que a
produção do conhecimento deve sempre estar sob autocrítica, que não
se resumiria a analisar resultados de pesquisa e adequação formal dos
instrumentais de estudo. A expectativa aqui é a permanente reflexão
sobre o que pesquisadores e pesquisadoras fazem, como fazem,
e por que fazem do ponto de vista das relações, particularmente
as sociopolíticas, éticas e analíticas, que estabelecem com demais
participantes de suas pesquisas e com as informações que administram
ao estabelecer enfoques e escolhas analíticas.
Lamentavelmente, embora tenha procurado manter o espírito da
contribuição, que era levantar questões que a meu ver ainda padecem
de discussão e reflexão quando se trata de analisar “saúde e políticas
públicas”, a sensação é ainda de fragmentação e frustração. Mas
considero que se as questões e eventos levantados aqui possam ajudar
ou estimular alguma ressonância, me dou por conformado.
2) Apresento e abordo neste trabalho um evento que acompanhei
na religião do daime mais conhecida como Barquinha, organizada em
torno do Centro Espírita e Obras de Caridade Príncipe Espadarte. Esse
evento ocorreu durante pesquisa de campo em agosto de 2011. Trata-se
então de uma reflexão sobre a experiência de ter desenvolvido projeto de
pesquisa envolvendo o tema da “saúde mental”, primeiramente planejado
para ser abordado com participantes das religiões ayahuasqueiras e
profissionais de saúde. Com a posição do Centro Espírita Beneficente
União do Vegetal de não autorizar a coleta de dados em suas entidades
filiadas, passei a considerar somente os participantes do que chamei
“religiões do daime” como interlocutores de pesquisa. As religiões do
daime incluem igrejas e centros cuja fundação está associada à tradições
de Daniel Pereira de Mattos e Raimundo Irineu Serra. Escolhi as cidades
de Florianópolis (SC) e Rio Branco (AC) por abrigarem agrupamentos
consolidados das religiões, e por estarem em “dois polos” de uma linha
contínua cujo conteúdo seria a apuração das etapas de implementação
da Reforma Psiquiátrica no Brasil.2

2
A implementação da Reforma Psiquiátrica no Brasil tem sido avaliada regionalmente
e a partir, de um lado, da desativação de manicômios ou redução da população
internada, ou a chamada desinstitucionalização, ou desospitalização, e, por outro lado,
Políticas públicas: reflexões antropológicas 158

Particularmente aqui meu enfoque é a Barquinha. A Barquinha é


um dos agrupamentos religiosos, fundados a partir do início do século
XX na Amazônia brasileira. A cosmoteologia da Barquinha é conhecida
e atribuída por pesquisadores como Costa (2008) à experiência com a
espiritualidade do fundador da primeira organização cuja inspiração
está no mar, Daniel Pereira de Matos, um ex-marinheiro. Em suma,
ele sugere que o daime nos leva a “navegar” no plano espiritual, um
mar sagrado. O trabalho pioneiro sobre os grupos tributários da
obra doutrinário-musical de Daniel Pereira de Matos foi elaborado
por Wladimyr Sena Araújo (ARAÚJO, 1999), que argumentou que a
cosmologia da Barquinha está “em construção”, procurando refletir num
modelo teórico a dinamicidade e a criatividade presentes nessa tradição
de uso do daime. Outros dois trabalhos relevantes foram elaborados
por Sandra Lucia Goulart (2004) e Marcelo Simão Mercante (2006).
Muito resumidamente, eu diria que as reflexões deste trabalho foram
inspiradas de forma central em evento que presenciei de incorporação
de uma entidade do plano espiritual, a Vó Nadir, uma Preta Velha que se
dedica a ajudar e orientar jovens participantes de uma religião daimista
e nos quais intervém ritualmente em suas dificuldades e problemas.
3) Por daime podemos reconhecer a bebida fabricada com as
plantas Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis. Não se sabe quando pela
primeira vez essas plantas foram combinadas pelas populações locais da
Amazônia, e nem mesmo se foram efetivamente as “populações locais”
que experimentaram pela primeira vez a combinação a partir de sua
própria exploração do mundo, que me parece a hipótese menos “provável”,
mas mais “plausível”. O que parece evidente é que no decorrer dos
séculos XVIII, XIX e XX, pesquisadores e viajantes registraram que eram
populações indígenas e outras residentes na Amazônia que a utilizavam.
Essas plantas, encontradas na Amazônia, produzem e carregam,
digamos, agentes conhecidos pela farmacologia como alcaloides, que

da criação dos chamados Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS). Seguindo


critérios e concepções associados ao número de habitantes, e indiretamente vinculado à
noção de “complexidade” – categoria elaborada no sistema e saúde oficial para classificar
os tipos de serviços oferecidos e investimentos realizados. Os CAPS são classificados
numérica e crescentemente conforme a especialização (CAPS I, CAPS II, CAPS III,
CAPS i II e CAPS ad II). Sumariamente, enquanto Florianópolis havia sido considerada
a primeira cidade no país a implantar um Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS)
precursor dos CAPS e contar com CAPS I e II e CAPS ad, e assim ser considerada “em
estágio avançado” de desinstitucionalização, Rio Branco tinha um hospital psiquiátrico
público em pleno funcionamento e nenhum CAPS (os CAPS existentes no estado do
Acre ficavam em outros municípios).
Vó Nadir e as políticas públicas de saúde 159

em determinada quantidade e circunstâncias, e conjuntamente, podem


produzir, particularmente em mamíferos, experiências de mudança de
estados de relação com o mundo e percepção dele. Entre os daimistas
e outras pessoas que provaram o daime, há outras formas de ver esses
agentes para além da farmacologia e da neuroquímica. Nesse sentido, há
pessoas que o reconhecem como uma combinação de plantas que são ou
contêm “mestres”, ou espíritos. Essa perspectiva deriva das experiências
que as pessoas podem ter e dos enunciados que as populações de
usuários elaboram em suas trajetórias.
Essas plantas processadas (no caso dos daimistas, cozinhadas
num evento especial) resultam no daime. A palavra daime é o que se
poderia chamar de um dispositivo semântico e evoca uma “fórmula
cultural”3 para referir-se à bebida, que é tomada nos chamados
“trabalhos”, organizados pelos chamados daimistas. Não são só os
daimistas que tomam o daime, mas seria inviável num trabalho como
este fazer uma distinção entre o que me expressaram aquelas pessoas
que poderiam ser consideradas “daimistas” e as que não, mesmo
porque não perguntei explicitamente como definiam sua relação com
os grupos em cujos “trabalhos” tomavam a bebida.
4) Registro aqui que faço considerações e reflexões digamos
“metodológicas” no artigo procurando incluir o que penso ser
incontornável na pesquisa qualitativa contemporânea e que já mencionei
como fundamental: a autorreflexividade.

Equilíbrio na (e desequilíbrio da) biomedicina(?)

É importante ressaltar que à parte a grande profusão de reflexões


que consideram fundamental a necessidade de revisão dos princípios
dos sistemas de saúde e das propostas de multidisciplinaridade,
particularmente as políticas de saúde mental, sempre encerram em seus
conteúdos, intenções e aplicações, a premissa de que não se pode abrir mão
de uma dominância última e definitiva do ponto de vista de autoridade
biomédica e, na reflexão que faço aqui, da autoridade psicológico-
psiquiátrica, como fundamental e estruturante de todo o sistema. É claro
que o papel de outros agentes é reconhecido, mas essa visão dominante,

3
Aqui elaborei esta expressão “fórmula cultural” para tensionar e problematizar
perspectivas etnocêntricas que pensam o daime como uma substância que resulta de uma
formulação “bioquímica”, ou seja, que o concebem como uma “fórmula farmacológico-
terapêutica”, e que relevam particularmente suas “propriedades terapêuticas”.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 160

por sua vez, está fundamentada por um paradigma unilinear – mesmo


que encerre variações – de que as doenças e o sofrimento que podem
ser tratados pelo sistema de saúde são aspectos de um epifenômeno do
corpo, como um mecanismo bioquímico, e da “natureza”, no sentido
de que esse mecanismo funcionaria predominantemente a partir de
uma lógica biológica. Esta, por sua vez, é condicionada por condições
morfológicas, fisiológicas e dinâmicas, que, por sua vez, derivam e
mesmo são determinadas por um estado de, ou por uma tendência à,
“normalidade”. Em suma, o sistema funciona para “reestabelecer” um
tal “equilíbrio homeostático”.
A “homeostase do corpo humano”, segundo a popular e
reconhecida Wikipedia é

A capacidade de sustentar a vida dos fluidos [...] afetada por


todo um leque de fatores, como a temperatura, a salinidade, o
pH, ou as concentrações de nutrientes, como a glicose, vários
íons, oxigênio, e resíduos, como o dióxido de carbono e a ureia.
Dado que estes fatores afetam as reações químicas que mantêm
o corpo vivo, este inclui mecanismos fisiológicos para os manter
dentro dos limites desejáveis. (HOMEOSTASE, 2013).

Já encontrei na internet uma defesa da possibilidade de constituir


um equilíbrio homeostático da personalidade, o que penso que de
certa forma deriva da ideia geral de que doença é “desequilíbrio”. Esse
princípio e o ponto de vista biomédico se articulam quando se pensa
que a intervenção profissional é em geral efetivada para restabelecer
um equilíbrio, condição importante do rol de critérios de diagnóstico
da “normalidade”.
Colocada dessa forma, a situação que envolve mal-estar e
sofrimento requer uma intervenção equilibrante, que é condicionada
conforme esse ponto de vista pela ideia de que o desequilíbrio se
constitui e é causado por uma característica genética ou modificação
ecológica do funcionamento do corpo, e que se configura digamos
bioquimicamente. Nesse sentido, quando se trata de abordar “saúde
mental”, o desequilíbrio é causado por uma espécie de “descompensação”
bioquímica, considerando que a teoria mais aceita sobre a dinâmica
do sistema de substâncias do corpo humano é a que estabelece, com
significativa demonstração de eficiência, que neurologicamente,
nosso corpo funciona compensando a necessidade de determinadas
substâncias, particularmente a serotonina e a dopamina e outras menos
mencionadas, que afinal “equilibrariam” os estados mentais. Nesse
Vó Nadir e as políticas públicas de saúde 161

sentido, como ser humano comum que lê enunciados na internet, ou


seja, sob o risco de se equivocar, o que sei sobre os diagnósticos de
depressão é que envolvem uma produção e/ou circulação problemática
de serotonina, na que o medicamento vai atuar.
Além disso, o encadeamento das noções de “desequilíbrio” e
“reequilíbrio”, como metaforizantes da experiência do sofrimento, sugere
que a intervenção terapêutica é provedora de uma espécie de reversão
da transformação que a pessoa experimenta. Ou seja, de certa forma
legitima a concepção de que a transformação deve ser ou é indesejada.
Essa abordagem serve para situar a reflexão em relação ao
princípio de que somente o psiquiatra pode efetivamente intervir em
situações de crise e sofrimento de forma efetiva, pois ele pode “intervir”
nessa dinâmica de “equilíbrio bioquímico”. Esse princípio, embora
muito questionado, condiciona o sistema de saúde mental no Brasil e em
muitos países do chamado ocidente, criando um parâmetro instrumental
e pragmático difícil de romper, ou o apelo à necessidade de resolução
das crises e das eventuais ameaças à ordem pública (GOFFMAN, 1978).
Assim, esse condicionamento também se desdobra nas relações de poder
e controle no sentido de que um paradigma individualizante se constitui,
apagando nas abordagens “psicoterapêuticas” dimensões fundamentais
dos eventos que se desdobram dos processos de sofrimento e conflito e
que se projetam efetivamente na vida das pessoas, modificando aspectos
centrais de sua volição no mundo.

Sobre monopólios e biopoderes

Um outro aspecto a ser considerado aqui é que a articulação entre


(bio)medicina e ciência criou num primeiro momento um monopólio
dos médicos em relação à morte. Como afirma José Carlos Rodrigues, ao
agenciar o prolongamento da vida e substituir sacerdotes nas cabeceiras
dos moribundos, os médicos passaram a controlar a morte e legalmente
tornaram-se quem reconhece legalmente a morte de uma pessoa.
Da mesma forma, historicamente no que chamamos ocidente, os
psiquiatras passaram a monopolizar a abordagem das chamadas “doenças
mentais” e assim passaram a deter prerrogativas legitimadas pelo estado
que os colocaram numa posição central no que Foucault chamou
de biopoder, nesse caso especificamente sobre a chamada “doença
mental”. A principal implicação que considero aqui é que a legitimação
do controle psiquiátrico emergiu da atuação biomedicalizada dos
Políticas públicas: reflexões antropológicas 162

psiquiatras sobre o chamado “sofrimento psíquico”. Este foi semantizado


e instrumentalizado pela relação direta da psiquiatria de um lado com
a biomedicina e, de outro, com a psicologia e a psicanálise freudiana.
Nesse sentido, essa articulação mesmo que se expresse com variações
e ponderações – muitas ocasionadas por uma espécie de movimento
inverso, o da sociologização dos sistemas de saúdes oficiais – se desdobra
numa ideia de que o sofrimento é um evento “individualizado” e que
de certa forma parece, ao fim e ao cabo, desprezar o sofrimento como
uma experiência fundamentalmente relacional. Ou seja, que ao ser
medicalizado e encarado como um evento individualizado, o sofrimento
– ou se considerarmos a conversão biomédica da aflição para a categoria
“doença” – e seu “tratamento” se constituem, por exemplo, e se efetivam,
pela intervenção face a face, bem apelidada criticamente por Erving
Goffman como relação “cabine telefônica” (GOFFMAN, 1978) ou por
atendimento centrado e instrumentalizado no “indivíduo sofredor”.
Reflexões contemporâneas4 entretanto argumentam que o
sofrimento se constitui não só como evento do indivíduo “biopsi-
cológico”, mas como experiências e processos, que se constituem
socioculturalmente nas relações sociais e cósmicas, e através de
negociações específicas e genéricas que envolvem redes de relações e de
poder. Assim, essas experiências e processos de doença e sofrimento se
projetam na vida relacional, e mesmo a constituem. Essa vida relacional
abarca/faz parte de uma espécie de economia existencial. Esta que chamo
aqui de “economia existencial” envolve processos e experiências que nem
sempre estão associados à saúde, mas com as formas e conteúdos com os
quais os seres (aqui tanto humanos quanto não humanos) estabelecem
as relações sociais e cósmicas, a partir de processos de tensão, distensão
e acomodação característicos das circunstâncias e contingências que
constituem o mundo tal qual o percebemos.
Nesse sentido, este artigo procura abordar a questão das
políticas públicas de saúde mental, primeiro como expressão do poder
psiquiátrico na forma da administração dos fluxos bioquímicos dos
indivíduos; segundo, como forma de gerenciamento de um suposto
sofrimento individualizado, que despreza o aspecto fundamental do
sofrimento como experiência relacional.
Experiências e relações entre “saúde mental” e religião têm
sido bastante exploradas entre pesquisadores de diversos campos de
conhecimento. O recurso à etnografia como inspiração e instrumento

Ver, por exemplo, Langdon (2003).


4
Vó Nadir e as políticas públicas de saúde 163

do trabalho empírico tem sido fundamental. Registra-se e se analisar de


forma “densa”, inspirados pelas leituras localizadas de Clifford Geertz
(1978). Parte-se do princípio que a abordagem etnográfica permite
analisar não só o discurso, mas sua articulação com os dados de
observação (direta e/ou participante) e da convivência. Aliás, cabe aqui
registrar que não há pesquisa sem participação; somente pesquisa em
que a participação passa a ter status empírico-analítico. Nesse sentido,
considero que a convivência ou a socialidade são fundamentais tanto
metodológica quanto epistemologicamente para as reflexões e as ações
no campo da chamada “saúde mental”.
Por outro lado, é relevante considerar a possibilidade de eventuais
(ou a ausência de) interlocuções entre profissionais de “saúde mental” e
agentes religiosos. Parte-se – quase sempre – do princípio que são “sistemas
de pensamento” e “campos de intervenção”  absolutamente distintos, e
mesmo incompatíveis. Para o primeiro, atribui-se “cientificidade”; para
o outro, “eficácia mística” como razões de sucesso – ou fracasso – na
prevenção ou na resolução de situações problemáticas. Esta questão tem
sido significativamente levantada particularmente com a expansão do
uso ritual-religioso da ayahuasca, uma bebida psicoativa, que envolve um
argumento de que seu uso tem “propriedades curativas”, particularmente
para os “problemas espirituais”. Ou seja, o uso da ayahuasca tem uma
extraordinária potencialidade de reflexão, já que reúne aspectos bastante
relevantes como o fato de ser ingerida eventualmente como uma
“medicina”, ser encarada como um “sacramento”, ou ainda ser tomada
como uma “droga” e assim estar sob a mira da indústria farmacêutica por
suas chamadas “propriedades terapêuticas”.
Com o projeto mencionado, procurei investigar fronteiras,
interstícios, articulações e interlocuções entre participantes desses
que considero preliminar e hipoteticamente “campos semânticos”
implicitamente articulados, o que tenho chamado de religiões do
daime e os serviços de saúde mental, mas explicitamente distinguidos
por critérios exclusivistas.
A abordagem considera particularmente uma perspectiva de re-
flexão sobre esses aspectos num período de implementação da Reforma
Psiquiátrica no Brasil. A partir de uma inspiração etnográfica, acompa-
nhei e participei de eventos, entrevistei “profissionais de saúde mental” e
“agentes religiosos”, ou participantes das religiões do daime, particular-
mente na cidade de Rio Branco (AC). Nesse sentido, convivi, comparti-
lhei momentos e conversei muito também com outros participantes de
eventos que testemunhei no decorrer da pesquisa de campo.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 164

Procuro aqui analisar um dos eventos da pesquisa e problematizar


aspectos importantes das condutas empírica, analítica e epistemológica,
no sentido de levantar questões sobre a opção pela etnografia
como inspiradora das escolhas instrumentais de pesquisadores e
pesquisadoras, particularmente no campo da saúde. Assim, um dos
dirigentes da Barquinha me sugeriu que conversasse com os médiuns
Hita e Luiz, que “trabalham espiritualmente”, como se diz na Barquinha,
com um espírito, uma preta velha chamada Vó Nadir. Pretas e Pretos
Velhos são entidades espirituais vinculadas aos escravos negros mortos,
que vêm do plano espiritual para ajudar os seres humanos encarnados.

Vó Nadir, Hita e Luiz: cuidado espiritual e “política


pública”

O evento5 que vou abordar aqui é um bom exemplo para apoiar


a perspectiva de que, antes de tudo, há uma pluralidade de formas
possíveis para lidar sistematicamente com as situações associadas ao
que chamamos “saúde mental”, e nesse sentido, para além dos serviços
de saúde oficiais, que em geral são avaliados como tendo desempenho
muito problemático, existe uma espécie de cuidado que me parece é
sintetizado pela ideia do “trabalho espiritual”. Procurando levantar
e pensar esse “cuidado espiritual”, percorri organizações daimistas e
na Barquinha, liderada pela Sra. Francisca, fui orientado por um dos
dirigentes da casa a entrar em contato com dois médiuns, Hita e Luiz.
Um relato sucinto e esquemático, mas muito significativo da
sequência do que foi acontecendo, espero, dará uma noção da relevância
do evento que acompanhei e testemunhei.6 Assim, alguns dias depois de
saber de Hita e Luiz, entrevistei os médiuns, e em uma de nossas reuniões
eles me convidaram para vir a um trabalho espiritual especial. Nesse
trabalho espiritual, me contaram, Vó Nadir ajuda jovens participantes
da comunidade da Barquinha com seus problemas. Muito brevemente,
são vários os tipos de trabalho espiritual realizados na Barquinha, mas

5
Tenho procurado reproduzir a narrativa sobre esse evento de certa forma padronizada
nos trabalhos que tenho elaborado, para que se estabeleça o que eu chamaria de “ciclo da
análise”, ou seja, para que os parâmetros de reflexão sejam mantidos até que as formas
de abordagem se esgotem e a narrativa tenha que ser modificada em razão de novas
perspectivas.
6
Este relato é recorrente em outros trabalhos, pois se constitui numa narrativa
sintética e relevante para ser abordada de diferentes perspectivas.
Vó Nadir e as políticas públicas de saúde 165

um deles, que de fato é parte dos trabalhos gerais, é chamado Obras de


Caridade. Nas Obras de Caridade, entidades espirituais incorporam em
médiuns desenvolvidos para atender as pessoas.
Eles também me contaram sobre uma situação que aconteceu
com Hita, relevante para entender em que contexto eles decidiram
organizar e realizar esse trabalho espiritual especial. Hita me disse que
ele estava percebendo que sua filha não estava tendo boas experiências
usando seu telefone celular. Então, ele decidiu apreender o celular.
Não foi uma decisão fácil. Mas um dia, após a apreensão, quando Vó
Nadir incorporou nas Obras de Caridade, a filha de Hita, dirigiu-se à
entidade para consultá-la sobre um problema que estava enfrentando,
na verdade mencionando que seu pai (Hita), havia confiscado o seu
celular. Vó Nadir comprometeu-se a resolver a situação, mas exigiu que
a sua consulente se comprometesse a não se envolver nos problemas que
seu pai achava que ela estava se envolvendo. A filha de Hita concordou,
e em geral eles não tiveram mais problemas, afinal.
Essa situação estimulou os médiuns a dar a mesma oportunidade,
de ter Vó Nadir ajudando outros participantes jovens da comunidade,
principalmente aqueles que estariam enfrentando situações conflitivas
como aquela. Então, a ideia era abrir um espaço ritual diferente para
ajudar os participantes da Barquinha. Assim, o desdobramento
interessante dessa experiência fez Hita e Luiz consolidarem a sua ideia
sobre a organização do trabalho com Vó Nadir no Mutum, área da
Barquinha que fica na periferia rural de Rio Branco.
Então, chegamos a Mutum no início da noite. Cerca de vinte
jovens estavam lá, além de mim, Hita e Luiz. Fique surpreso e pensei
o que se pode fazer para ter vinte jovens (provavelmente de 15 a 30
anos) lá, numa sexta-feira à noite, em um lugar remoto e não muito
confortável. Além disso, para tomar o daime, que tem um sabor
amargo e desagradável para muitos, e que, na maioria das vezes, faz
uma “limpeza espiritual-corporal”.
As pessoas colocaram roupas brancas. Tomamos o daime e nos
sentamos na área à frente da pequena edificação de madeira. Alguns
dos participantes armaram suas redes numa área contígua. Hita se
concentra em um lugar remoto e começamos a orar. Então, seguindo
esse momento, uma voz que me fez lembrar de uma avó, sintonizada,
soou alto na floresta silenciosa.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 166

Eu venho de Aruanda nestas matas trabalhar


Eu venho de Aruanda nestas matas trabalhar
Só se vê a quebradeira, é fogo no canaviá
Só se vê a quebradeira, é fogo no canaviá
Chegou a Preta Guerreira eu chego pra trabalhar
Eu sou a Preta Guerreira que cheguei pra trabalhar

Vó Nadir tinha acabado de chegar do plano espiritual. Vó Nadir


chegou cantando seu ponto, ou um canto com o qual que se identifica
e conta um pouco sobre quem ela é. Eu devo dizer que eu filmei a sua
chegada, mas não posso mostrar o filme aqui, porque mesmo tendo a
permissão de Hita e Luiz, eu queria também a permissão de Vó Nadir,
que ainda não tenho, e pela qual tenho que voltar para o Rio Branco
para obter. Então vocês têm que imaginar. Em minha frente está um
homem de quase um metro e oitenta, vestindo uma saia e falando como
uma avó. Em seguida, ele coloca uma estola no pescoço. Agora é só Vó
Nadir que podemos reconhecer como presente. Ela continua cantando
e executando sua coreografia cadenciada. Logo, ela desafia em voz alta
e individualmente, alguns participantes, mencionando coisas sobre suas
vidas – de uma forma enigmática para aqueles que não conheço, mas de
uma maneira direta e muito afetiva, para aqueles que já sabiam que ela
está se referindo à recorrência de suas “falhas”.
Vó Nadir particularmente menciona eventos sem identificação
direta. Esses eventos indicam que a pessoa estava negligenciando
as relações com as pessoas mais próximas, mas sempre, mesmo com
jocosidade, com “carinho” e familiaridade, como se espera de uma vó
querida que está ali para nos auxiliar em nossa caminhada na vida. A
entidade se refere a cada pessoa em particular, sugerindo que conhecia
todo mundo também individualmente.
Depois, Vó Nadir começou um atendimento individualizado. Ela
fazia perguntas inaudíveis e também dava passes com sua estola. Nesse
caso, os processos eram geralmente em silêncio, eventualmente com
diálogos curtos e sussurros, e gestos controlados. Ela passava sua estola
em torno do corpo de cada pessoa e a sacudia, como se estivesse tirando
algo que estava percebendo e que precisa ser eliminado. Parecia uma
limpeza e eliminação do que devia ser descartado.
Sobre a inspiração e organização desses trabalhos espirituais,
Hita me disse:
Vó Nadir e as políticas públicas de saúde 167

[...] Depois de este trabalho com esta entidade, eu comecei a ver os


nossos defeitos, nossa falta de atenção, a nossa falta de cuidado, de
amor, de ternura, de cuidado com nossas famílias [...]. Talvez esse
questionamento abriu margem para a ação desse espírito benfeitor,
que se apresentou de uma forma: “Olha, você vai conhecer esta
mulher negra velha” [...] Trata-se de reuniões de duas pedras
preciosas [...].

Ele se refere aos jovens que perceberam que não estavam


indo bem, e a ideia de ter Vó Nadir para ajudar de uma forma mais
frequente. Também é importante notar aqui a relevância conferida a um
interessante processo de interação. Que pode ser que entre a contingência
da participação de um médium no cotidiano político-social-espiritual
de uma organização religiosa, e o que tem a ver com a contribuição,
incorporação e presença de pretas e pretos velhos num determinado
contexto, e uma habilidade para lidar digamos sociorritualmente com
os problemas sociais pessoais.
Concentro-me na nota final, então, a partir da reflexão sobre
esse evento, em três aspectos que considero relevantes: a etnografia
como inspiração empírico-analítica, a agência, ou os agenciamentos
envolvidos numa pesquisa como esta, e as interlocuções relevantes neste
campo de articulações, mas também desarticulações.

Nota final

Procurei neste artigo reunir minhas anotações, ainda que rústicas,


devo dizer, sobre aspectos que considero relevantes e que emergiram
particularmente na pesquisa de campo que estou concluindo. De
um lado, minha intenção não era fazer uma abordagem exaustiva,
mas levantar questões relevantes para reflexão. Penso que, nessas
oportunidades, levantar as questões para reflexão é tão produtivo quanto
apresentar resultados depurados. Nesse sentido, procurei destacar estas
três dimensões que a pesquisa qualitativa com inspiração etnográfica
suscita. Uma primeira, suas implicações analíticas e epistemológicas.
Ou seja, que ao fim e ao cabo, deve-se ter cuidado em não reificar o
esforço etnográfico na atribuição de valor empírico apenas para as
“representações”, “significados simbólicos” do que está “contido no
discurso” dos sujeitos de pesquisa. E também que tanto discurso (que é
elaborado e expresso pelo interlocutor) quanto a atribuição do estatuto
epistemológico de “representação” (este elaborado pelo pesquisador) são
Políticas públicas: reflexões antropológicas 168

atos relacionais, que se desdobram para além da simplificação de tomá-


los exclusivamente como “significados” a serem organizados em sistemas
cosmoideológicos ou modelos empíricos, articulados artificialmente,
desses sistemas. E que um dos recursos para transcender esse simplismo,
penso, é encontrar um lugar empírico, analítico e epistemológico para
o convívio que qualquer pesquisador(a) estabelece em campo, e que em
geral é tratado apenas como anedotário de pesquisa.
O segundo aspecto, ainda no mesmo sentido, é pensar o projeto
de pesquisa como um agenciamento, que se desdobra de, e em, outros
agenciamentos, aqui particularmente é importante reconhecer que a
pesquisa qualitativa é um projeto acadêmico, mas fundamentalmente
é um projeto relacional, ou contém implícita em sua formulação
e desenvolvimento estabelecer relações com outros, e pensar essas
relações. Nessa formulação, pesquisador ou pesquisadora estabelecerá
implícita ou explicitamente o status do “outro”, seja ele (a) “nativo”,
“informante”, “sujeito”, “interlocutor” ou “interator”. Esse status que
tem como motivação estabelecer uma assimetria, ou projetar simetria,
é constituído particularmente pela forma que encaramos o “saber” do
outro. E o último aspecto que destaquei refere-se à noção de interlocução,
consolidada por Roberto Cardoso de Oliveira (1998). A forma com
que encaramos o “outro”, ou fundamentalmente com que trabalhamos
em nossas pesquisas, e como menciono acima, está vinculada a esse
status que atribuímos ao outro, ou seja, seu lugar empírico, analítico
e epistemológico, em nosso projeto. Ou como o tratamos: se como um
“arquivo vivo” de informações, do qual coletamos o que nos interessa, e
gentilmente agradecemos e levamos para nossos gabinetes para analisar,
ou se o tratamos como alguém que está apto a intervir em nossa
atuação e transformá-la. São dois caminhos legítimos, não há certo ou
errado. Entretanto, a condição de consistência do caminho escolhido é
reconhecer e tratar analiticamente nossa escolha.
Esses três aspectos da formulação e desenvolvimento do projeto de
pesquisa podem muito bem ser projetados analiticamente tanto para as
relações que profissionais de saúde mental, quanto de agentes religiosos
estabelecem com as pessoas que atendem. Ou seja, acho que há uma
correspondência entre os dilemas que pesquisadores e pesquisadoras
vivenciam e os dilemas que vivenciam profissionais de saúde e agentes
religiosos e experimentam em seu dia a dia. Por que então é tão difícil
que se estabeleçam diálogos e partilhas?
Essa é uma questão que deixo ao final deste trabalho como um
problema sobre o qual possamos refletir aqui e em outras oportunidades.
Vó Nadir e as políticas públicas de saúde 169

Não para resolver esta questão, penso aqui em um epistemological healing


(cura epistemológica), com que Gregory Bateson via as repercussões do
método descondicionante da organização Alcoholics Anonymous, nos
Estados Unidos, na passagem dos anos 1960 para os anos 1970. A ideia
de healing aqui não se refere à cura dos sintomas que a biomedicina
enfoca, mas a uma abordagem ampla e irrestrita de diversas dimensões
da experiências das pessoas que buscam “saúde”. Ou uma abordagem
da “cura” como promoção do conhecimento e/ou reconhecimento
de um tipo de alteridade. Talvez uma alteridade que se desdobra em
um levantamento, uma relativização ou talvez a supressão dos efeitos
deletérios que certos condicionamentos assumem nas trajetórias de
vida das pessoas, e que promovem problemas que se convertem em
limitações, dificuldades, falta de fluidez pessoal e social, e outros que as
singularidades estabelecem e que não há como prever numa perspectiva
crítica da sintomatologia convencional.
De outro lado, penso que seria interessante aqui, “abrir” a
noção de “clínica”, como fazem, por exemplo, alguns antropólogos
como Marcio Goldman, quando aborda a forma problemática com
que o trabalho extraordinário de Jeanne Favret-Saada (1977, 2005) foi
recebido – com uma “incompreensão entusiasta” (GOLDMAN, 2005,
p. 151) –, e projeta de certa forma o trabalho antropológico do ponto de
vista do “clínico” médico e psicanalítico:

Para fazê-lo seria preciso abandonar de vez o paradigma


cientificista no qual ainda nos movemos em benefício de um
método “clínico”, no sentido médico e psicanalítico do termo.
Na primeira opção, as escolhas são limitadas: ou procedemos
indutivamente, generalizando a partir do maior número possível
de casos empíricos, ou dedutivamente, por meio da aplicação a
qualquer caso concreto de alguns princípios gerais previamente
estabelecidos. Favret-Saada, por outro lado, procede por meio
da observação, exame e constituição de casos cuja singularidade
não elimina o fato de que cada um pode compartilhar com outros
certos elementos e características. Isso faz com que, aos olhos do
clínico, cada caso seja, ao mesmo tempo, uma síndrome única
e parte de síndromes mais gerais, e que cada um se beneficie
indiretamente das anamneses anteriores e contribua para as
futuras. (GOLDMAN, 2005, p. 151).

E aqui se projetam outras formas de intervenção que não


são “antropológicas” ou “biomédicas”. Penso assim que numa
Políticas públicas: reflexões antropológicas 170

militância pelo epistemological healing com todas as suas implicações,


controvérsias, riscos e paradoxos, e me esforçando para encontrar
formas de contribuir para a avaliação e a implementação de políticas
públicas, tarefa ou missão autoatribuída por nós ao IBP, repenso as
“práticas” do cuidado como práxis clínica, e manejo amplo e inclusivo
de singularidades e pluralidades. E corro outro risco: reconheço o
caráter prescritivo de minha contribuição.
Embora pareça que o prognóstico de Foucault (2008) sugere, ou
que a desmedicalização e a despsiquiatrização da clínica seria o único
caminho para que tenhamos um cuidado efetivo e consistente em saúde
mental, penso que não se pode “jogar o bebê fora junto com a água
do banho”. Para os efeitos esperados dessa reflexão, penso que incluir
outros saberes, a meu ver tão ou mais relevantes que a biomedicina, na
práxis clínica, pode ser uma forma efetiva para se lidar com as situações
do que eu chamaria de sofrimento e, particularmente, o sofrimento
relacional. Dessa forma, o manejo dessas situações pode ser abordado a
partir de um ponto de vista que de fato considere um número cada vez
mais ampliado de singularidades e pluralidades, a serviço do cuidado.
Assim pensando, chego à ideia de pluralizar a clínica.
Tento então aqui projetar esta expectativa de “pluralizar a clínica”
na elaboração da noção de “Clínica Plural”. Não estou aqui propondo
uma iniciativa de arquitetura ou engenharia, mas a consideração de uma
configuração da noção de clínica. O intuito é promover uma ampliação
dos horizontes de reflexão. Minha motivação não é só o embate
epistemológico relacionado a desconstruir pontos de vista reificadores
e restritivos, mas também enfrentar os problemas que trazem uma
postura de considerar a biomedicina e a psiquiatria como únicas formas
efetivas e consistentes de tratar as questões e situações que implicam
considerar o conhecimento sobre a chamada “saúde mental”.
Apenas como recurso heurístico, eu penso que a inscrição de
uma concepção como a de “Clínica Plural” nas reflexões sobre políticas
públicas poderia permitir criar serviços públicos que envolvessem
o que hoje existe como recurso privativo: as chamadas “clínicas de
práticas integrativas”; e, assim, viabilizaria uma formulação do que se
tem chamado de “prática”, mas que eu chamaria de práxis integrativa.
A Clínica Plural não substituiria a Clinica Médica existente, mas seria
menos um “local de oferta de serviços biomédicos e seus derivados”,
mas sim um espaço para que outros saberes pudessem ocupar o espaço
das escolhas. Não me atrevo a dizer como seria composta essa clínica
plural, mas certa e semanticamente teríamos que repensar o projeto
Vó Nadir e as políticas públicas de saúde 171

implícito de saúde no Brasil, ou o princípio de existir somente um único


sistema – sistema único de saúde legal e legitimamente habilitado.

Referências

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Políticas públicas: reflexões antropológicas 172

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Entre reformas e revoluções:
tensionamentos no campo da política
de saúde e saúde mental no Brasil

Ana Paula Müller de Andrade

“ah... a reforma psiquiátrica... pra mim a reforma psiquiátrica


anda igual um caranguejo, vai assim... depois vai assim...”. Foi assim
que Daniel, colocando seu corpo em movimento para demonstrar idas
e vindas, respondeu ao ser questionado sobre o que pensava sobre o
processo da reforma psiquiátrica brasileira logo no início do trabalho de
campo da pesquisa intitulada “Sujeitos e(m) movimentos: uma análise
crítica da reforma psiquiátrica na perspectiva dos experientes”.1
O processo da reforma psiquiátrica está em curso no Brasil há
aproximadamente trinta anos e tem como objetivo principal transformar
a assistência psiquiátrica no país, através da criação de uma rede de
serviços de saúde mental que permita a extinção progressiva e planejada
dos leitos em hospitais psiquiátricos e da crítica aos saberes instituídos,
em especial o saber psiquiátrico, bem como aos modelos tradicionais,
privatizantes e hospitalocêntricos de saúde/saúde mental.
O objetivo da pesquisa foi realizar uma análise crítica da reforma
psiquiátrica brasileira do ponto de vista dos usuários e das usuárias

1
Tal pesquisa subsidiou a tese de doutorado, de mesmo título, da autora, desenvolvida
sob a orientação da Dra. Sônia Weidner Maluf. Compôs a pesquisa Gênero, Subjetividade
e Saúde Mental: políticas públicas, ativismo e experiências sociais, coordenada pelas
professoras Dra. Sônia Weidner Maluf e Dra. Carmen Susana Tornquist e foi realizada
com apoio da CAPES-CNPq e do Instituto Brasil Plural.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 174

dos serviços de saúde mental e, para tanto, o foco do trabalho de


campo voltou-se para as experiências desses sujeitos em suas rotinas
ordinárias e extraordinárias. A escolha por essa interlocução se deu
pelo entendimento de que é através das experiências que conduzem
esses sujeitos aos serviços de saúde/saúde mental e os “usos” que fazem
destes que tais pessoas se constituem bem como constituem os serviços
e tensionam a política pública.
A experiência desses sujeitos foi entendida, a partir do
argumento de Scott (1999, p. 27) de que “não são os indivíduos
que têm experiência, mas os sujeitos é que são constituídos através
da experiência.” Foram inúmeras as experiências compartilhadas,
através das narrativas escutadas como também nas observações feitas
durante as atividades acompanhadas. Em sua maioria diziam respeito
a experiências e trajetórias marcadas por algum tipo de “crise” que
variaram em seus contextos, mas que se aproximavam nas suas
resoluções. O que as aproximava era o fato de terem como “resolução”
a procura ou encaminhamento para algum tipo de serviço de saúde,
em geral, saúde mental.
Daniel e os demais interlocutores da pesquisa eram adultos,
pertencentes às classes populares e não fossem os serviços de saúde
mental criados e legitimados pela política nacional de saúde mental
brasileira, estariam internados em algum hospital psiquiátrico, já que
haviam recebido diagnósticos denominados pela biomedicina como
“transtornos mentais graves e persistentes”.2 Com a criação de tais
serviços, viam-se diante de possibilidades de ir e vir e de construir
outros significados para suas experiências no campo da saúde mental.
No texto da Política Nacional de Saúde Mental, em atividades
científicas e acadêmicas, em conferências e reuniões técnicas de saúde
mental, entre outros, tais pessoas são denominadas pela expressão
“pessoas portadoras de transtornos mentais”. No âmbito da reforma
psiquiátrica brasileira são comumente denominadas como “usuárias”,
por “usarem” o Sistema Único de Saúde (SUS), sendo essa expressão
muitas vezes confundida com os também chamados “usuários e
usuárias”, porém de drogas.

2
Os transtornos mentais são classificados na literatura biomédica como leves,
moderados ou graves. Eles são classificados pelo Código Internacional de Doenças
(CID), ordenado pela Organização Mundial de Saúde. Também são classificados no
Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais (DSM) organizado pela
Associação Americana de Psiquiatria.
Entre reformas e revoluções 175

Para Amarante (1995) a expressão “usuário” surge no interior


do processo de reforma psiquiátrica brasileira e pretende substituir as
expressões: louco, doente mental ou cliente, “que passam a ser restritivas
e inadequadas” diante do protagonismo dessas pessoas nesse processo.
Contudo, para o autor, em pouco tempo se percebe que a expressão
usuário remete às mesmas consequências anteriores. O autor não sugere
outra expressão capaz de substituí-la.
No primeiro item da “Carta de Direitos e Deveres dos Usuários
e Familiares dos Serviços de Saúde Mental”, produzida no III Encontro
Nacional de Entidades de Usuários e Familiares da Luta Antimanicomial,
na cidade de Santos-SP, em dezembro de 1993, eles fazem referência a
tal expressão e explicam:

Utilizamos a expressão “usuário”, assim como se utiliza a


expressão “técnicos”, para designar situações específicas. Na
verdade nós, usuários entre aspas, somos pessoas, seres humanos
totais integrais, acima das condições circunstanciais dos Serviços
de Saúde Mental. Entretanto, as pessoas neste movimento não
se chamam uns aos outros de usuários, mas companheiros,
participantes e amigos. (USUÁRIOS E FAMILIARES DOS
SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL, 1993).

Como resultado das reflexões produzidas durante a pesquisa e


da relevância das experiências desses sujeitos, passamos a denominá-
los de experientes.3 Além disso, outro aspecto significativo para a
escolha da interlocução com tais sujeitos partiu do entendimento de
que em suas experiências de suposta “desrazão” bem como em suas
estratégias micropolíticas de resistência ao modelo hegemônico que
os captura enquanto “não sujeitos” – aqueles que não sabem quem são,
nem o que fazem – eles se produzem enquanto sujeitos e informam
sobre um plano importante da política, que é o da ordem do vivido, da
produção de sentidos e de saberes.
Ao conferir um estatuto epistemológico ao saber desses sujeitos
– pessoas que ocupam um lugar paradoxal de ser o centro das ações
da política pública e ao mesmo tempo manterem-se “à margem” – foi
possível ampliar a capacidade de análise crítica não apenas pelo ponto
de vista a partir do qual foi possível perceber o processo da reforma
psiquiátrica brasileira, mas também porque foi possível perceber outros

Para uma discussão mais aprofundada desta denominação, ver Andrade (2012).
3
Políticas públicas: reflexões antropológicas 176

processos construídos por esses sujeitos no emaranhado de relações,


práticas e discursos que conformam a política nacional de saúde mental.
Do conjunto da análise realizada foi possível antever uma
tensão entre os processos institucionais e aqueles das experiências das
pessoas, dos lugares pelos quais transitam e que são visibilizados de
variadas maneiras na concretude de suas vidas. Como será discutido
aqui, o processo da reforma psiquiátrica brasileira é complexo e
composto de alguns planos situados entre o âmbito institucional e o
âmbito das experiências singulares dos sujeitos, que foram articulados
durante a construção da análise crítica realizada e que subsidiaram as
discussões aqui apresentadas.
Ao confrontar o plano institucional com o plano das experiências
dos sujeitos, talvez o processo da reforma psiquiátrica brasileira pudesse
receber outras interpretações, tal como fez Daniel ao dizer que a
reforma psiquiátrica se parece com um caranguejo. Também poderia
ser denominado como “as” reformas, considerando a heterogeneidade
do processo e a pluralidade de práticas presentes no contexto brasileiro.
Outra denominação também poderia ser a de “revoluções”, se
considerarmos a potência das experiências de tais pessoas, suas práticas
cotidianas, seus contatos com os serviços de saúde mental, enfim, seus
agenciamentos, desagenciamentos, produções de fazeres e saberes que
emergem em acontecimentos diversos.
Considerando as possibilidades de reflexão que a intersecção
entre os diferentes planos das políticas públicas colocam, a intenção
aqui é discutir os tensionamentos presentes nos planos e entre eles, no
âmbito da política pública de saúde/saúde mental no Brasil.

Entre reformas e revoluções

O campo da saúde mental, especialmente aquele relacionado à


política nacional de saúde mental, tem sido palco de muitas reformas,
colocadas em curso no Brasil nas últimas décadas. São muitas
reformas não apenas pela diversidade de práticas, teorias e ideologias
emergentes desse contexto, mas sobretudo por seus objetos e/ou aquilo
que pretendem reformar.
No trabalho em que discutem a reforma psiquiátrica brasileira
como um processo rizomático, Fonseca et al. (2007) a apresentam
como uma obra plural, composta de tensões e “inquietudes”, para usar
as palavras das autoras. Ao usarem o conceito de rizoma, as autoras
Entre reformas e revoluções 177

demonstram os infinitos percursos, tensões, embates e movimentos


presentes nesse processo. Tal conceito advém das reflexões de Deleuze
e Guattari (2007, p. 32), que definem que um rizoma “não tem começo
nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda”.
Na perspectiva de Amarante (1996, p. 14), a reforma psiquiátrica
“trata-se de um processo bastante inovador, original e prolífero,
permeado por inúmeras iniciativas práticas de transformação, com o
surgimento de novos atores e protagonistas e uma emergente produção
teórica [...]”. Para o autor, a reforma psiquiátrica abrange quatro
dimensões: teórico-conceitual ou epistemológica, técnico-assistencial,
jurídico-política e sociocultural, que ora se entrelaçam, ora são
conflitantes e/ou consensuais. Pelo movimento que mobilizam, geram
tensões, contradições e paradoxos.
Como processo rizomático (FONSECA et al., 2007) é difícil definir
seu começo, sabe-se de sua época: final dos anos 1970 e desenrolar dos
anos 1980, quando algumas pessoas se articulavam em diferentes lugares
do Brasil para construir possíveis respostas aos problemas relacionados às
práticas assistenciais de saúde mental. Cabe lembrar que no final dos anos
1970 e início dos 1980, o Brasil vivia seu processo de redemocratização,
abertura política, e os movimentos sociais apresentavam alternativas aos
modelos hegemônicos em diferentes áreas. A assistência psiquiátrica
brasileira, no bojo das discussões sobre a reforma sanitária e também
situada no contexto de transformações que aconteciam em outros
países, foi alvo de críticas ao seu modelo vigente, baseado na custódia e
isolamento dos considerados loucos nos hospitais psiquiátricos.
O movimento da reforma psiquiátrica, assim como o movimento
da reforma sanitária, foi protagonizado por diferentes atores sociais,
desde profissionais da saúde e de outras áreas até familiares, usuários
e usuárias, artistas, dentre outros, assumindo o caráter interdisciplinar,
intersetorial, híbrido e complexo da saúde.
A proposta da reforma sanitária representava à época um projeto
de saúde contra-hegemônico que criticava as precárias condições de
saúde bem como a mercantilização e apontava para a saúde como um
direito de todos os cidadãos. Com a proposta da criação de um sistema
único de saúde na Oitava Conferência Nacional de Saúde e a sua
aprovação na Constituição Federal de 1988, a saúde, enquanto política
pública passou a ser norteada pelos princípios da integralidade do
cuidado, da universalidade do acesso, da equidade, da descentralização
como forma de organização e, por fim, do controle social.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 178

Tais propostas desencadearam várias transformações no campo da


saúde, especialmente no da saúde mental. As transformações provocadas
por essas propostas modificaram e possibilitaram outras configurações
nas relações até então estabelecidas em torno da assistência psiquiátrica
e suas terapêuticas diante da “doença mental”, ou melhor, da loucura
tornada objeto, até hoje bastante impreciso. Foram mudanças de diferentes
ordens e níveis, do coletivo ao singular, do institucional ao individual, que
impactaram e/ou afetaram muitas pessoas.
Essas transformações se concretizaram como resultado do
movimento da reforma sanitária e da consolidação do Sistema Único
de Saúde como política pública no Brasil, que colocaram no centro
de suas propostas uma concepção ampliada dos processos de saúde
e doença, compreendidos como processos históricos, culturais e
multideterminados. Tal concepção apresentou como um de seus
pressupostos a ideia de que seria o sujeito e não a doença que deveria
ser o centro das práticas de/em saúde/saúde mental.
Contudo, esse pressuposto ainda encontra uma série de desafios
para sua consolidação no campo da saúde mental. Um desses desafios
está relacionado ao fato de a política pública de saúde mental estar situada
no campo da saúde mental, reconhecido como de maior discordância
no âmbito da saúde, especialmente no que se refere ao próprio conceito
de “saúde mental”, alvo de muitas críticas.
Na discussão que faz em A outra saúde: mental, psicossocial, físico-
moral? Luiz Fernando Duarte (1994) argumenta que o conceito “saúde
mental”, assim como o de “doença mental” e “distúrbio psicossocial”
além de culturalmente específicos, representa uma dinâmica
eminentemente psicológica, própria das sociedades modernas.
A proposta de Duarte (1994) traz à tona elementos que ajudam a
entender algumas concepções – muitas vezes pouco relativizadas –
presentes no processo da política de saúde mental no país.
Na interlocução com os interlocutores da pesquisa, foi possível
tensionar algumas categorias significativas do plano institucional da
política pública – tais como a de “doença mental” e mesmo a de “uma
reforma psiquiátrica” – com aquelas presentes no plano das experiências
dos sujeitos, especialmente as relacionadas aos processos de saúde,
doença e suas possíveis terapêuticas, onde foi possível reconhecer o seu
caráter heterogêneo e rizomático.
O tensionamento entre esses planos permitiu reconhecer a
importância dos movimentos minoritários, das pequenas rupturas e
resistências provocadas pelos sujeitos que acionam os serviços de saúde
Entre reformas e revoluções 179

mental constituídos pela política pública, fazendo pensar na ideia de que


o que é denominado de “reforma” psiquiátrica poderia ser denominado
ou de “reformas” ou de “revoluções”. Considerando os argumentos de
Deleuze e Guattari (2007), cabe ressaltar que dizer que os movimentos
são minoritários não significa dizer que eles têm menos importância ou
que são inferiores, mas sim que estão fortemente relacionados com o
devir e se realizam através de movimentos rizomáticos.
A ideia de revolução se apoiou nos argumentos de Guattari (1987)
sobre revolução molecular. Para o autor, tal revolução “não se refere
apenas às relações cotidianas entre homens, mulheres, homossexuais,
heterossexuais, crianças, adultos etc. Ela intervém também no interior
da produção econômica enquanto tal” (GUATTARI, 1987, p. 220, grifo
do autor).
Assim, não se trata de processos descolados do contexto cultural
e institucional em que ocorrem, mas ainda que relacionados a estes,
provocam pequenas resistências e rupturas neles. Por isso não podem
ser interpretados sem levar em consideração a articulação entre a
dimensão sociocultural e a conduta singularizada das pessoas.
A ideia de que no contexto da política de saúde mental haveria
“reformas” e/ou “revoluções” também encontra respaldo no reconhe-
cimento de que no campo da reforma psiquiátrica brasileira existem
muitas reformas acontecendo. Elas são heterogêneas, caracterizam-
se pela multiplicidade de práticas e teorias construídas em diferentes
contextos socioculturais e são rizomáticas, considerando a sua
dinâmica e seu caráter inventivo.
Assim, ao dizer que existem múltiplas reformas e revoluções
acontecendo, estou dizendo que além das reformas sanitária e
psiquiátrica, que ganharam legitimidade através da consolidação da
política pública de saúde/saúde mental, outras reformas acontecem
cotidianamente. Tais reformas se dão no dia a dia dos sujeitos, nas
relações que eles estabelecem com seus vizinhos, seus familiares e com
a sociedade da qual fazem parte. Especificamente no campo da saúde
mental, os sujeitos com história de longas e sucessivas internações
psiquiátricas realizam reformas e revoluções ao compartilharem o
transporte coletivo, ao frequentarem restaurantes, ao ocuparem os
espaços públicos da cidade, entre outras atividades que realizam em
seus cotidianos.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 180

Os diferentes planos e processos da política: as


contribuições da antropologia

Como discutido até aqui, o processo da reforma psiquiátrica


brasileira é complexo, composto de planos, atravessamentos e configu-
rações. Para realizar uma análise crítica que contemplasse seus diferentes
planos, foi preciso percorrer alguns tempos e espaços que compõem o
contexto da política pública de saúde mental.
Tais planos foram contemplados em diferentes tempos e espaços.
O trabalho de campo foi desenvolvido durante nove meses na cidade de
Joinville-SC, escolhida como o “local” de onde seria possível analisar
o processo “nacional” de reforma psiquiátrica brasileira. Entretanto,
também foi realizada uma pequena incursão etnográfica na cidade de
Barbacena-MG e visitas aos serviços de saúde mental das cidades de
Torino, Trieste e Gorizia, na Itália.
Em um dos planos, que talvez possa ser denominado institucional,
participei das Conferências de Saúde Mental realizadas no ano de
2010 em algumas cidades de Santa Catarina bem como do Grupo de
Desinstitucionalização do Colegiado de Políticas Públicas e Atenção
Psicossocial da Secretaria de Saúde do Estado de Santa Catarina, de 2008
a 2010, que se constituíram como espaços institucionais mais amplos.
Além disso, frequentei serviços de saúde mental, um grupo de autoajuda
mútua e um núcleo da luta antimanicomial, que também podem ser
considerados espaços institucionais, porém num plano diferente.
Outro plano está constituído pelas experiências singulares que
acompanhei com as interlocutoras e interlocutores em suas rotinas ordi-
nárias e extraordinárias, em seus percursos pelas cidades, em visitas que
fiz a suas casas, nas caminhadas que fizemos juntos, enfim, nas atividades
que compartilhamos ao longo do trabalho de campo da pesquisa. Tais
planos estão interligados, conectam-se de distintas maneiras e se mos-
tram relevantes pelos deslocamentos e perspectivas que permitem vis-
lumbrar a complexidade das reformas colocadas em curso no país.
Esses planos estão em relação e ganham sentido nas práticas que
são conjugadas de diferentes maneiras pelos sujeitos. Como sugeriu
Marcus (1995), os locais, ou os sítios, para usar a expressão do autor,
fazem parte de uma complexa rede tramada pela confluência de práticas,
de processos, conexões e justaposições que conformam as dinâmicas
locais e rompem com a dicotomia entre o local e o global, uma vez que
estes estão imbricados.
Entre reformas e revoluções 181

Nesse sentido, a pesquisa poderia ser descrita como um estudo


multissituado, levando em consideração os argumentos de Marcus (1995)
de que as pesquisas que visam analisar mudanças culturais ultrapassam
fronteiras e lugares e colocam o etnógrafo em movimento. Ele, o etnógrafo,
deve perceber e percorrer linhas, trajetos e estabelecer conexões entre os
diferentes “sítios”, espaços aos quais tem acesso. Para o autor:

Pesquisas multissituadas são desenvolvidas em torno de cadeias,


padrões, fios condutores, conjunções ou justaposições de locais
nos quais o etnógrafo estabelece alguma forma de presença
literal, física, com uma lógica explícita e postulada de associação
ou conexão entre lugares que, de fato, define o argumento da
etnografia.4 (MARCUS, 1995, p. 105).

No entanto, como argumentou Sônia Maluf (2011) sobre as pes-


quisas de campo que envolvem sujeitos, elas não são apenas multissituadas
pois “combinam planos e platôs diferenciados”, que a autora chama
de “platôs etnográficos”. Além dos lugares (sítios) percorridos pelo
pesquisador, importam também os atravessamentos, os fluxos, os
agenciamentos que podem ser colocados em conexão. Para Maluf,

Se as experiências contemporâneas não são capturadas na


circunscrição da aldeia, ou de várias aldeias, são os fluxos, os
vários planos de realidade aos quais os sujeitos estão expostos,
os diferentes agenciamentos (centrais e periféricos) que se
cruzam e confrontam, que implicam nessa outra perspectiva
metodológica de reconhecer essas diferenças e rastreá-las, de
imaginar que esses diferentes planos podem eventualmente ter
alguma autorresolução (como os platôs de Deleuze) ou se dispor
como partes que contêm em si mesmas essa multiplicidade do
todo. (MALUF, 2011, p. 10).

O desafio dessa estratégia metodológica foi conseguir


inicialmente perceber tais planos e, logo, construir uma análise e
uma narrativa que permitissem conectar as perspectivas, situações,
experiências e as diferentes configurações que as constituem. A fim
de enfrentar o desafio e construir uma análise que possibilitasse uma

4
“Multi sited research is designed around chains, paths, threads, conjunctions or
justapostions of locations in wich the etnographer establishes some forms of literal, physical
presence, with an explicit, posited logic of association or connection among sites that in fact
defines the argument of the etnography” (MARCUS, 1995, p. 105).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 182

articulação dos dados, também tomei como referência o conceito de


platô, como entendido por Deleuze e Guattari (2007).
Os autores chamam de platô “toda multiplicidade conectável com
outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender
um rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 33). A ideia de trabalhar
com tal conceito foi agenciar, colocar em conexão os enunciados (que
conformam os discursos) emergentes em determinados tempos e
espaços (regimes de enunciados/formações discursivas) nos quais pude
estar, na tentativa de perceber as coisas pelo meio, rizomaticamente.
Cabe destacar a importância do trabalho etnográfico nesse
processo, uma vez que foi a partir de seus pressupostos que consegui
me aproximar das experiências dos sujeitos, estabelecer um diálogo
horizontal entre os discursos “nativo” e “científico” e dar a ele uma
qualidade perspectiva, no sentido de perceber que existiam outros
pontos de vista que não olhavam necessariamente para o mesmo
processo, mas também construíam outros processos.
Considerando o impacto social e político da pesquisa, bem como
a contribuição para as políticas públicas, entre outros aspectos, destaco
também a relevância dos sujeitos da pesquisa para a análise crítica
realizada e para as discussões aqui apresentadas.

Tensionamentos da política de saúde mental


brasileira

A constituição de uma rede de serviços de saúde mental capaz de


substituir o hospital psiquiátrico é um dos objetivos centrais do processo
da reforma psiquiátrica brasileira. Essa rede vem se consolidando ao
longo dos anos, promovendo processos de desinstitucionalização
importantes. Pensada enquanto política pública, a rede de serviços de
saúde mental é acionada e tensionada pelos sujeitos que dela fazem
parte. As suas configurações e interpretações são variadas, mas ela
mantém como referência comum estar em casa ou em “internamento”.
Trata-se não apenas de uma rede de cuidado, mas de um
emaranhado de ofertas, possibilidades e negociações. Como
argumentam Alves e Souza (1999, p. 133): “Uma coisa é o significado
objetivo de um dado fenômeno sociocultural definido por um padrão
institucionalizado; outra coisa, o modo particular como o indivíduo
define a sua situação nos seio dele”.
Entre reformas e revoluções 183

Para a maioria das pessoas que ajudaram a pensar as questões aqui


discutidas, a atual política nacional de saúde mental representa ao menos
a possibilidade de acesso a serviços de saúde mental com propostas de
atendimento psicossocial,5 abertos e inseridos nas cidades. Seu Adão, um
dos interlocutores da pesquisa, considerando seu histórico de longas e
sucessivas internações em hospitais psiquiátricos, argumentou que “bom
mesmo é ficar em casa, com as coisinhas da gente [...]”.
“Ficar em casa com as coisinhas da gente” significa para essas pessoas
a possibilidade de não romper vínculos sociais e familiares importantes,
não se afastar daquelas pessoas com quem estão familiarizadas bem
como não estar sujeito aos desdobramentos (em geral preconceituosos)
que uma internação em hospital psiquiátrico desencadeia.
Entretanto o internamento é possível não apenas no hospital
psiquiátrico, mas também nos demais serviços que se querem abertos.
Eva, interlocutora da pesquisa, por exemplo, contou que havia sido
internada no “hospital, dia, aqui atrás”, se referindo ao Centro de
Atenção Psicossocial localizado próximo de onde estávamos, revelando
um tipo de lógica de funcionamento que, para ela, se assemelhava ao do
hospital psiquiátrico.
Eva, assim como Seu Adão, é da geração das pessoas que tiveram
suas primeiras “crises” quando só existiam os hospitais psiquiátricos
para atendê-los. Ela, além de ter um histórico longo de internações
psiquiátricas e ser considerada incapaz para os atos da vida civil pelo
Estado, teve suas experiências atravessadas por outras dimensões, como
o sexo, a raça e a classe, já que era uma mulher, negra e que pertencia
às classes populares. Segundo ela, o fato de frequentar os serviços da
rede de saúde mental haviam-na ajudado a evitar novas internações
no hospital psiquiátrico. Contudo, suas percepções sobre os serviços
da rede apontavam para uma lógica semelhante entre estes e o hospital
psiquiátrico, ao menos no que diz respeito às suas “internações”. A partir
das considerações de Eva, foi possível pensar que o que os diferencia é
que os serviços da rede têm a intenção de funcionar a partir de uma
lógica que não tem como princípio o isolamento e a custódia das
pessoas, ainda que mantenham algumas das suas características.
Algumas características da reforma psiquiátrica brasileira foram
reconhecidas pelos sujeitos da pesquisa e, de maneira geral, estavam
situadas no fato de ter a opção de cuidar-se em casa e tudo que isso

5
Para uma discussão sobre o paradigma psicossocial e o paradigma manicomial, ver
Costa-Rosa (2000).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 184

podia representar na concretude de suas vidas. Também o afastamento


temporal dos tempos das longas internações e das impossibilidades que
estar “doente” e dentro de um hospital psiquiátrico impõem.
Cabe dizer que os interlocutores vivenciavam, na época da
pesquisa, esse processo do lado de fora dos hospitais psiquiátricos que
(infelizmente) ainda existem no Brasil, ainda que alguns tenham tido
– e ainda tenham – experiências de internações neles. A partir de suas
experiências e de suas perspectivas, o processo institucional, amplo,
nacional da reforma psiquiátrica, se desdobra e se declina em práticas
cotidianas em que uma série de acontecimentos é possível.
Do ponto de vista deles, ao menos para alguns, tais níveis
(social/institucional e individual) do processo são bastante visíveis, em
especial, para aqueles que participam mais ativamente do movimento
político coletivo da saúde mental, como o Movimento Nacional da Luta
Antimanicomial e a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial.
Para eles, o processo da reforma psiquiátrica significou poder estar em
outros lugares, estar em contato com outras pessoas e também provocar
mudanças mais amplas na cidade e no país. Alguns deles foram delegados
nas conferências de saúde mental e, para muitos destes, a reforma
psiquiátrica oferece a possibilidade de ampla participação em espaços
políticos e públicos onde podem fazer uso da palavra e expressar seus
desejos, ainda que entre eles se discuta sobre o eco de tais possibilidades.
Essas possibilidades não estão necessariamente ligadas a estar ou
não no hospital psiquiátrico (ali, para a maior parte deles não existem
possibilidades), mas estão relacionadas às possibilidades de “agência”,
dadas pela abertura e algumas rupturas com os saberes hegemônicos.
De um modo geral não se fala de “reforma psiquiátrica”, mas sim de
embates, debates e combates entre estar no hospital ou no Centro de
Atenção Psicossocial, poder falar ou não o que sente, poder escolher
sobre o uso ou não da medicação prescrita e, algumas vezes, fazer uso
do diagnóstico para falar, reivindicar ou negociar a própria existência.
Outro aspecto importante diz respeito à categoria “doença mental”,
pouco relativizada pela política pública de saúde, mas tensionada pelos
sujeitos. Mateus, outro interlocutor, enquanto discutia em um grupo
quais os motivos que os reunia naquele momento, perguntou: “Isso que
não aparece em raio-x, não aparece em exame de sangue, que que pode
ser?”. Sua pergunta trazia à tona uma inquietação a respeito de que tipo
de adoecimento era esse, denominado “doença mental”.
Quando Basaglia (1985) sugeriu colocar a “doença mental” entre
parênteses para pensar as instituições psiquiátricas, referia-se ao fato de
Entre reformas e revoluções 185

colocar “entre parênteses todos os esquemas, para ter a possibilidade de


agir em um território ainda não codificado ou definido” (BASAGLIA,
1985, p. 29). Respondendo à pergunta do jornalista italiano Nino Vascon
sobre o fato de ele e seu grupo prescindirem da doença, como se ela não
existisse, Basaglia respondeu:

Não, nós não prescindimos da doença, mas pensamos que,


para estabelecer uma relação com um indivíduo, é necessário
considerá-lo independentemente daquilo que pode ser o rótulo
que o define. [...] O diagnóstico tem um juízo discriminatório, o
que não significa que procuremos negar o fato de que o doente
seja, de alguma forma, um doente. É este o sentido de colocarmos
o mal entre parênteses, ou seja, colocar entre parênteses a
definição e o rótulo. (BASAGLIA, 1985, p. 28).

A questão da “doença mental” também foi discutida por


Amarante (1996, 2007) a partir das concepções de Basaglia, mostrando
que colocá-la entre parênteses significava uma importante inversão para
o processo da reforma psiquiátrica brasileira. Para o autor

[...] a necessidade de colocar a doença entre parênteses significa


a negação, isto sim, da aceitação da elaboração teórica da
psiquiatria em dar conta do fenômeno da loucura e da experiência
do sofrimento; significa realizar uma operação prático-teórica de
afastar as incrustações, as superestruturas, produzidas tanto no
interior da instituição manicomial, em decorrência da condição
do estar institucionalizado, quanto no mundo externo, em
consequência da rotulação social que é fortemente autorizada
pelo saber psiquiátrico. (AMARANTE, 1996, p. 80).

É a partir do argumento de que não é preciso negar a existência


da doença, mas de compreender como a experiência de sentir-se
“doente” é significada pelos sujeitos, que entendo ser necessária
a discussão. Nesse sentido, penso que em vez de de colocá-la entre
parênteses, seria mais adequado colocá-la entre aspas, como se faz
com aquelas palavras ou expressões que precisam ser relativizadas e
questionadas incessantemente.
Como apontaram os dados da pesquisa “Sujeitos (em)
movimentos”, dada a complexidade do campo da política nacional de
saúde mental e da chamada “saúde mental”, é possível dizer que este
é permeado por diferentes modelos interpretativos, que guardam
diferentes concepções sobre o que seria a “doença mental” e suas
Políticas públicas: reflexões antropológicas 186

terapêuticas. Tais modelos apresentam fronteiras tênues e porosas.


Convivem, dialogam, se visibilizam, são reconhecidos ou não,
dependendo dos contextos em que se apresentam. Como disse Foucault
(2000), em seu texto sobre loucura e cultura, “a doença só tem realidade
e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal”
(FOUCAULT, 2000, p. 71).
Contudo, numa sociedade em que o modelo biomédico é
hegemônico, a “doença mental” é naturalizada, reconhecida como uma
categoria universal e pouco problematizada. Decorre daí que o louco
segue sendo aquele que não é, já que ao ser uma pessoa “portadora de
uma doença mental” e, por isso destituída da condição de sujeito, já que
destituída de Razão, outro valor central nessa mesma sociedade. Assim,
são consideradas “não sujeitos” não apenas porque são percebidas como
destituídas da razão e por isso muitas vezes consideradas incapazes para
os atos da vida civil, como Eva, interlocutora citada anteriormente, mas
também porque ocupam o lugar da subalternidade e são invisibilizadas
nas complexas relações de poder nas quais estão envolvidas. Ocupam,
em geral, o lugar da “subalternidade” (SPIVAK, 1998), daqueles que não
podem falar, que têm o encargo simbólico de corporificar a loucura
(PELBART, 1990) e/ou de ser a “carta fora do baralho” (GUATTARI;
ROLNIK, 2008). Para Guattari e Rolnik (2008, p. 416),

[...] ao transformar a loucura em doença, classificada no quadro


de uma nosografia e confinada em espaços médicos, o saber
psiquiátrico produz tanto a identidade de tais pessoas quanto
o ponto de vista desde o qual a sociedade as vê e com elas se
relaciona. No jogo de cartas marcadas instituído pelo dispositivo
da psiquiatria, o “louco” é para sempre uma carta fora do baralho.

Ainda assim, são tais sujeitos que questionam as categorias


da política, as subvertem de várias formas e, de maneira persistente,
criam resistências, escapam aos regimes hegemônicos de subjetivação,
protagonizam processos e projetos de vida. Como discutido em
Andrade (2012), apesar de o enunciado de “louco” ter muita
importância na constituição dos sujeitos e na fixação de seus lugares
na hierarquia própria do modelo biomédico, estes lidam com isso
de diferentes maneiras. Os sujeitos utilizam estratégias diversas que
vão desde a utilização do diagnóstico para negociar com o mundo;
o seu uso para sobreviver economicamente em um mundo marcado
por desigualdades de todo tipo e também a sua relativização, ou seja,
Entre reformas e revoluções 187

as pessoas entendem por que foram diagnosticadas dessa ou daquela


maneira e não acatam passivamente tais diagnósticos.
Por fim, destaco que existem movimentos minoritários capazes
de subverter regimes hegemônicos de subjetivação por parte dos
sujeitos que frequentam os serviços de saúde mental instituídos pela
atual política de saúde mental no Brasil e que são, sobretudo, esses
movimentos que tensionam a rede de cuidados em saúde/saúde mental
e são capazes de produzir reformas e revoluções.

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reforma psiquiátrica brasileira na perspectiva dos experientes. 2012. Tese
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In: ALVES, P. C.; MINAYO, M. C. S. (Org.). Saúde e doença: um olhar
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DA LUTA ANTIMANICOMIAL, 3., 1993. Santos. Anais... Florianópolis:
Abrasme, 1993. Disponível em: <http://www.abrasme.org.br/conteudo/
view?ID_CONTEUDO=642>. Acesso em: 1o dez. 2014.
Suicídio é suicídio
e ponto final? Será?

Maximiliano Loiola Ponte de Souza


Jesem Douglas Yamall Orellana

Introdução

O projeto “Suicídio indígena no estado do Amazonas: uma


abordagem interdisciplinar” compõe a rede “Saúde: práticas locais,
experiências e políticas públicas” do Instituto Nacional de Pesquisa
Brasil Plural. Esse projeto surgiu a partir de uma parceria entre
pesquisadores que estão ancorando suas práticas investigativas nos
campos da epidemiologia e da antropologia da saúde, e vem sendo
operacionalizado com efetiva participação de estudantes de graduação
e pós-graduação. Um dos principais propósitos desta iniciativa de
investigação é fomentar o diálogo interdisciplinar para a melhor
compreensão do suicídio indígena no estado do Amazonas, afastando
nossos pressupostos de pesquisa de abordagens fragmentadas e
contribuindo para a superação da notável dicotomia existente entre
abordagens quantitativas e qualitativas no campo da saúde.
Esforços de pesquisa com este recorte parecem necessários
e oportunos quando, a exemplo de Minayo (1998, p. 423), encara-
se o suicídio como um fenômeno de natureza histórica, cultural,
individual e coletiva que se expressa “numa síntese biopsicossocial”.
Ou seja, a importância se explicita quando entendemos que o suicídio
é um daqueles objetos rebeldes aos limites disciplinares, que demanda
Políticas públicas: reflexões antropológicas 190

tanto uma “‘compreensão/explicação’ em profundidade”, como uma


“explicação em extensão” (DESLANDES; ASSIS, 2002, p. 195).
No Brasil, apesar de o suicídio não ser considerado um problema
de saúde pública (LOVISI et al., 2009; BRZOZOWSKI et al., 2010), há
algum tempo autores já chamavam a atenção para a importância do
suicídio em certos grupos indígenas nacionais (POZ, 2000; ERTHAL,
2001; COLOMA et al., 2007). Não obstante, em tempos recentes, há
quase um clamor em determinados contextos nacionais para a definição
de políticas públicas para o enfrentamento do suicídio entre indígenas.
Idealmente, políticas públicas deveriam ser direcionadas para problemas
claramente definidos, buscando adequações ao contexto sociossanitário
e cultural, assim como soluções para o enfrentamento dos múltiplos
condicionantes associados ao alvo da intervenção. Entretanto, de forma
recorrente no Brasil, elaboram-se políticas públicas para populações
indígenas sem levar em consideração a diversidade e as especificidades
dos contextos culturais existentes (GARNELO, 2012).
O projeto “Suicídio indígena no estado do Amazonas: uma
abordagem interdisciplinar” vem enfrentando o desafio de investigar
em extensão e em profundidade o fenômeno do suicídio, com o
objetivo de contribuir na elaboração de políticas públicas mais sensíveis
e culturalmente adaptadas para o enfrentamento desse agravo em
contextos indígenas. Assim, a proposta deste texto é apresentar e analisar
de forma integrada e sintética os principais achados de um conjunto de
publicações que de algum modo estão relacionadas a este projeto.1

Síntese dos achados


O suicídio no município mais indígena do Brasil

São Gabriel da Cachoeira, município de 29.947 habitantes,


localizado no noroeste do estado do Amazonas, é conhecido como o
“município mais indígena do Brasil”, em virtude de aproximadamente
76% de sua população se autodeclarar indígena (IBGE, 2012). Há
tempos circulam comentários na mídia, nos meios acadêmicos e nos
serviços de saúde sobre a ocorrência relativamente elevada de suicídios
em São Gabriel da Cachoeira. Entretanto, até muito recentemente

1
Incluímos aqui outros artigos já publicados dos autores do presente artigo, com ou
sem outros parceiros, e uma dissertação de mestrado orientada pelo primeiro autor
deste texto.
Suicídio é suicídio e ponto final? Será? 191

não havia dados sistematizados que evidenciassem esse importante


acontecimento de saúde.
A partir dessa constatação, o ponto de partida desse projeto
foi realizar um estudo epidemiológico exploratório para estimar a
magnitude do suicídio nesse município no período de 2000 a 2007
(SOUZA; ORELLANA, 2012b). Os dados sobre os suicídios utilizados
nessa pesquisa são oriundos das declarações de óbito preenchidas por
profissionais de saúde, que estão acessíveis no Sistema de Informação
sobre Mortalidade do Departamento de Informática do Sistema Único
de Saúde.
No período investigado, analisaram-se 44 casos de suicídio.
A taxa de mortalidade é um indicador utilizado para estimar o risco de
morte por uma causa específica em determinado período e população,
permitindo a comparação da sua importância relativa em diferentes
cenários.2 Neste estudo optamos pela utilização da taxa bruta de
mortalidade por suicídio (TBMS), que consiste na divisão do total
de óbitos por suicídio ocorridos em São Gabriel da Cachoeira, pela
população do período, que é finalmente multiplicado por 100 mil.
Para a população geral de São Gabriel da Cachoeira, a taxa bruta
de mortalidade por suicídio foi alta, de 16,8/100 mil. Observamos
ainda importantes variações da TBMS entre sexos e grupos etários. Na
população masculina, a taxa bruta de mortalidade por suicídio foi de
26,6/100 mil, e na feminina foi de 6,3/100 mil. As taxas mais elevadas
foram observadas nas faixas etárias 15-24 e 25-34 anos, com taxa
bruta de mortalidade por suicídio de 43,1 e 30,2/100 mil habitantes,
respectivamente.
Em diferentes contextos não indígenas, apesar de o maior
número de óbitos por suicídio ocorrer entre jovens, as taxas mais
elevadas costumam ser observadas entre idosos (BORGES et al., 2010;
VICHI et al., 2010; MINAYO; CAVALCANTE, 2010). Cabe lembrar que
a maior frequência de óbitos por suicídio entre jovens se deve ao fato de
a população juvenil, em geral, ser bem mais numerosa que a de idosos.
Porém, após a relativização desses mesmos dados, ou seja, após a sua
interpretação a partir de taxas e não mais a partir de números absolutos,
nota-se que o suicídio em idosos é relativamente mais importante.

2
Uma forma amplamente aceita para classificar a magnitude do suicídio em uma
população foi proposta por Diekstra e Gulbinat (1993), que classifica a taxa de mortalidade
por suicídio em quatro categorias: baixas (< 5 mortes/100 mil); médias (5 a 14 mortes/100
mil); altas (15 a 29 mortes/100 mil) e muito altas (30 ou mais mortes/100 mil).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 192

Apesar disso, em diferentes contextos indígenas (SILVIKEN,


2009; MULLANY et al., 2010; KIRMAYER et al., 2007), observa-se que
o suicídio é um problema eminentemente juvenil, caracterizado não só
por elevadas taxas de mortalidade, mas também por ser o grupo etário
que concentra as maiores taxas em relação às demais faixas etárias.
Desta feita, nesse trabalho demonstramos que em São Gabriel
da Cachoeira o suicídio é um importante problema social e de
saúde pública, na medida em que a taxa bruta de mortalidade por
suicídio encontrada apresenta valores considerados não só altos,
como atípicos no contexto regional. É importante destacar que neste
estudo utilizamos como denominador para o cálculo da taxa bruta de
mortalidade por suicídio o somatório da população de todas as faixas
etárias. No entanto, considera-se que a população de menores de 5
anos não comete suicídio (WHO, 2011). Dessa forma, tal opção, que
foi revista em trabalhos posteriores, subestimou a taxa, na medida em
que usamos para compor o denominador uma parcela da população
que não concorre para o numerador.

O suicídio indígena é um problema de saúde


pública no Brasil?

Após a constatação de que São Gabriel da Cachoeira, município


com a mais elevada proporção de autodeclarados indígenas do Brasil,
apresentava altas taxas de mortalidade por suicídio, optamos por
verificar se tal situação era ou não encontrada em outras localidades/
regiões do país. Consideramos essa etapa relevante por entendermos
que o adequado conhecimento dos padrões de mortalidade em
populações humanas prescinde não só da elucidação de sua magnitude
em um contexto ou localidade específica, como também da verificação
de sua distribuição em uma perspectiva mais ampla, como é o caso do
comportamento das taxas de suicídio no nível regional e nacional.
Nesse sentido, realizamos outra investigação (SOUZA;
ORELLANA, 2012a) cujo objetivo foi comparar as taxas de mortalidade
por suicídio entre as populações indígenas e não indígenas, das cinco
macrorregiões do país durante o período de 2006 a 2010. As fontes
de dados e os procedimentos metodológicos foram semelhantes aos
descritos no trabalho anterior, com a diferença de que as taxas de
mortalidade por suicídio foram calculadas para os diferentes estados,
macrorregiões e para o país como um todo, excluindo os menores de
5 anos.
Suicídio é suicídio e ponto final? Será? 193

Nesse trabalho, precursoramente, demonstramos que a taxa


de mortalidade por suicídio entre as populações indígenas do Brasil
(12,6/100 mil) foi mais do que o dobro da não indígena (5,3/100 mil). No
Centro-Oeste, a taxas de mortalidade por suicídio entre as populações
indígenas (42,5/100 mil) foi 7,0 vezes maior que a não indígena (6,1/100
mil); para o estado do Mato Grosso do Sul, a taxa de mortalidade por
suicídio entre as populações indígenas foi de 76,4/100 mil, enquanto
entre as não indígena foi de 6,9/100.000 mil. Na macrorregião Norte
a taxa de mortalidade por suicídio entre as populações indígenas foi
de 15,1/100 mil, 3,8 vezes maior que a não indígena (4/100 mil). Nos
estados do Amazonas e de Roraima, a taxas de mortalidade por suicídio
entre as populações indígenas foram de respectivamente 20,0 e 20,2
por 100 mil – ou seja, 5,0 e 2,5 vezes maiores que as não indígenas. No
entanto, cabe frisar que nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, as taxas
de mortalidade por suicídio entre as populações não indígenas foram
ligeiramente maiores que as indígenas.
De modo geral, esse trabalho permitiu evidenciar que apesar
de a taxas de mortalidade por suicídio entre as populações indígenas
e nacional ter sido consistentemente maior do que a não indígena,
a sua ocorrência não é homogênea no território nacional. Isto é
particularmente verdadeiro nas regiões Centro-Oeste e Norte do país,
mais especificamente nos estados de Mato Grosso do Sul, Amazonas
e Roraima, onde se encontram as mais elevadas taxas de mortalidade
por suicídio indígena do Brasil. Concluímos esse trabalho apontando
para a necessidade de uma maior atenção por parte das autoridades
nacionais e locais para a questão do suicídio entre os povos indígenas e a
necessidade de desenvolver estratégias de enfrentamento culturalmente
sensíveis e adequadas para os contextos socioculturais e sanitários.

Qual é a extensão e padrão da diferença entre o


suicídio de indígenas e não indígenas no estado do
Amazonas?

A próxima investigação que realizamos (ORELLANA et al.,


2013) foi motivada por três questões principais: o Amazonas, nosso
lócus preferencial de investigação no contexto amazônico, foi um dos
estados nos quais se observaram elevadas taxas de mortalidade por
suicídio entre indígenas; São Gabriel da Cachoeira, um município com
elevada proporção de autodeclarados indígenas, apresentava também
Políticas públicas: reflexões antropológicas 194

elevadas taxas de mortalidade por suicídio; além da existência de um


conjunto de evidências que apontavam para diferenças importantes nas
taxas de mortalidade e características dos suicídios entre indígenas e
não indígenas (KIRMAYER et al., 2007).
Dessa forma, buscamos nesse estudo analisar as taxas
de mortalidade e descrever as características demográficas e
epidemiológicas dos suicídios registrados no estado do Amazonas
durante o período 2005-2009.
Sem diferir dos estudos anteriores quanto às fontes de dados,
este trabalho avança na medida em que investiga a ocorrência de óbitos
por suicídio de modo desagregado nos 62 municípios do Amazonas.
Explora também a sua ocorrência nos municípios que apresentaram,
simultaneamente, alta proporção de população autodeclarada indí-
gena (superior a 25% no ano de 2010)3 e taxas de mortalidade por
suicídio altas ou muito altas (DIEKSTRA; GULBINAT, 1993). O
município de Manaus, capital do estado, também foi explorado, numa
perspectiva comparativa, por apresentar um percentual muito baixo de
autodeclarados indígenas (0,2%), e por não ter sido observado nenhum
suicídio entre autodeclarados indígenas. Essa estratégia constituiu-se
em um indicador indireto para investigar possíveis diferenças entre o
suicídio entre indígenas e não indígenas no Amazonas.
Em três municípios amazonenses (aqui chamados de
municípios selecionados) encontraram-se simultaneamente elevada
proporção de autodeclarados indígenas e taxas de mortalidade por
suicídio altas/ou muito altas: Tabatinga (25,2/100 mil), São Gabriel da
Cachoeira (27,6/100 mil) e Santa Isabel do Rio Negro (36,4/100 mil).
Já em Manaus, a taxa foi baixa, de 4,6/100 mil. Tanto nos municípios
selecionados como em Manaus, as taxas de mortalidade por suicídio
mais elevadas foram observadas entre jovens de 15 a 24 anos, embora
apenas nos primeiros observem-se valores muito altos. A maior
relevância epidemiológica do suicídio entre jovens no contexto dos
municípios selecionados quando comparados a Manaus pode ser
demonstrada quando verificamos que em todos eles o suicídio foi a
principal causa de morte nesse grupo etário.4 Em Manaus, por outro

3
No mesmo ano, a proporção de autodeclarados indígenas no estado no Amazonas foi
4,84%, e no Brasil, de 0,43% (IBGE, 2012).
4
Aqui utilizamos outro indicador epidemiológico chamado de “mortalidade
proporcional por causa específica de óbito”, o qual se propõe a medir a participação
relativa das principais causas de morte no total de óbitos com causa definida. Dentre os
Suicídio é suicídio e ponto final? Será? 195

lado, o suicídio sequer configura como um das três principais causas


de morte entre os jovens da faixa etária de 15 a 24 anos.
Também se observaram importantes diferenças entre os suicídios
ocorridos nos municípios selecionados e os que se deram em Manaus,
na medida em que nos municípios selecionados observou-se, entre as
pessoas que cometeram suicídio, um maior percentual de indígenas; de
indivíduos mais jovens; da maior ocorrência de óbitos no domicílio e
nos dias de final de semana;5 assim como a notável preponderância do
enforcamento como método para lograr o ato suicida.
Em síntese, nesse trabalho pudemos evidenciar que o suicídio
desponta como um sério problema de saúde pública em alguns
municípios do Amazonas, particularmente naqueles com alto
percentual de autodeclarados indígenas, afetando de forma mais intensa
a população juvenil. Ademais, nesses municípios o suicídio apresenta
características particulares, sugerindo possíveis especificidades nesses
contextos. Entende-se que as diferenças observadas entre as taxas e
características do suicídio entre os municípios selecionados e Manaus
possam ser tomadas como um indicador aproximado das diferenças
desse fenômeno entre indígenas e não indígenas.

Questionando a ampla adequação do conceito do


suicídio no contexto indígena

Simultaneamente ao exercício de descrever a extensão e as


características da mortalidade por suicídio entre indígenas em
diferentes cenários, tivemos também a preocupação de buscar
empreender o exercício teórico de analisar possíveis limitações do uso
dessa categoria no contexto indígena.
Dessa forma, realizamos um estudo teórico com o propósito de
refletir sobre as dificuldades para utilização do conceito de suicídio

seus principais usos destacamos a sua utilidade como indicador que permite a comparação
de distintas populações; a identificação de situações de desigualdade; assim como método
auxiliar em processos de planejamento, gestão e avaliação de políticas públicas visando à
adoção de medidas preventivas e assistenciais relativas a cada grupo de causas.
5
Consideramos como óbitos ocorridos no final de semana aqueles que foram
consumados em dias de sexta-feira, sábado e domingo. Usamos essa estratégia como
um indicador indireto, para buscarmos acessar uma eventual ligação entre o suicídio
e o consumo abusivo de álcool. Essa estratégia pautou-se em alguns estudos de cunho
etnográfico que evidenciaram o maior consumo abusivo de álcool em populações
indígenas nos dias de final de semana (SOUZA; GARNELO, 2007; SOUZA et al., 2010).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 196

no contexto indígena (SOUZA; FERREIRA, 2014). Para alcançarmos


esse objetivo, recorremos ao chamado “estranhamento antropológico”,
que pode ser compreendido como a postura teórico-metodológica de
buscar transformar aquilo que lhe é familiar em algo exótico, diferente
ou inusitado (PEIRANO, 1995). O que propusemos “estranhar” foi o
próprio conceito biomédico contemporâneo de suicídio, que a um
primeiro olhar pode ser concebido como uma definição simples,
inequívoca e de aplicabilidade universal.
O conceito biomédico de suicídio, apesar de algumas pequenas
variações, se assenta sobre três ideias principais: (1) É um ato
intencional, (2) que leva à morte e (3) é praticado pelo próprio sujeito
(OMS, 2000). Apesar de não ser muito extenso, há um conjunto de
estudos etnográficos, sobretudo entre os Guarani Kayowá e Nhandeva,
os Tikuna e os Sorowaha, que abordam de forma mais ou menos direta
a questão do suicídio. O desafio então foi explorar o quanto as ideias que
compõem o conceito biomédico de suicídio encontram dificuldades de
transposição para o universo simbólico e das práticas culturais desses
povos indígenas brasileiros, tendo como guia as seguintes questões
norteadoras: (1) Quem se mata quer morrer?; (2) Quem se mata morre?;
(3) Quem mata quem se mata?
Através da análise realizada, demonstramos três dos principais
desafios na transposição do conceito biomédico de suicídio para o
contexto indígena. O primeiro foi a amplificação das dificuldades de
se falar de intencionalidade no contexto indígena. Essa amplificação é
observada na medida em que em diferentes contextos há a associação
do suicídio ao uso de bebidas alcoólicas, que estaria por sua vez
associado em certos grupos indígenas, como os Tikuna, à ideia de
perda de razão (ERTHAL, 2001).
A segunda dificuldade verificada foi a existência de diferentes
concepções indígenas sobre morte e morrer. Ou seja, existe um conjunto de
estudos antropológicos (POZ, 2000; CASTRO, 1986; CESARINO, 2011)
que apontam para o fato de que vários povos indígenas não consideram a
morte o fim da vida e da pessoa. Nesse caso, a morte por suicídio também
poderia, pelo menos em tese, remeter à transformação do status da pessoa
indígena no contexto sociocósmico do qual ela faz parte. Desse modo,
foi possível evidenciarmos o quão é difícil em contextos culturalmente
diferenciados avaliarmos o que, de acordo com as concepções nativas,
ocorreria com a pessoa quando ela comete suicídio.
Já a terceira dificuldade que demarcamos foi a complexa
correlação entre suicídio e homicídio nos sistemas etiológicos nativos.
Suicídio é suicídio e ponto final? Será? 197

Pudemos verificar em diferentes estudos etnográficos (ERTHAL, 2001;


LEVCOVITZ, 1998; POZ, 2000) a ideia de que nem sempre o sujeito
que se mata é realmente reconhecido como o autor de sua morte,
visto que o suicídio de modo recorrente seria concebido como fruto
da ação de um terceiro (inveja, feitiço, encantos xamânicos, ataques
de seres de outros mundos etc.), e não exclusivamente da pessoa que
morreu. Tal entendimento é amplamente difundido entre os indígenas
das terras baixas sul-americanas que tendem a conceber que doença e
a morte são em última instância fruto da agência exercida por terceiros
(BUCHILLET, 2004).
Por meio da abordagem teórica empreendida, pudemos
apresentar alguns apontamentos potencialmente úteis à prática da
pesquisa em torno da temática do suicídio entre indígenas. No que
se refere às estratégias qualitativas, apontamos a necessidade de um
aprofundamento teórico-conceitual para a abordagem do suicídio
entre povos indígenas bem como a importância de se indagar se,
do ponto de vista nativo, aqueles que induzem a sua própria morte
estão realmente se suicidando. Apontamos que um possível caminho
para buscarmos compreender o suicídio a partir do ponto de vista
nativo seria a própria utilização das três perguntas que construímos
para operacionalizar o estranhamento do conceito biomédico de
suicídio. Demarca-se que não se trata simplesmente de apresentar
essas perguntas para eventuais entrevistados, mas de tê-las em
mente durante todo o processo de investigação, buscando estratégias
criativas para respondê-las. Dentre essas estratégias, destacamos a
busca de termos em língua nativa que designem ou estejam de algum
modo correlacionados com a temática do suicídio; a investigação
de narrativas míticas e suas possíveis correlações com a temática da
morte; explorar sistematicamente narrativas de familiares (e de outros
atores sociais relevantes) sobre os momentos que antecederam e
sucederam a morte, bem como a forma específica como foi efetuada.
Tais aspectos têm a potencialidade de revelar as especificidades que a
morte por suicídio pode adquirir em contextos específicos.
Em relação às estratégias de corte quantitativo-epidemiológico,
defendemos que a transposição sem qualquer mediação do conceito
biomédico de suicídio de corte individual para os universos indígenas
que se guiam por outras premissas pode colaborar de um algum
modo para a subnotificação do suicídio. Por exemplo, um jovem que
foi a óbito por enforcamento pode ter sua morte compreendida pelos
indígenas como consequência de um feitiço que foi lançado contra
Políticas públicas: reflexões antropológicas 198

ele por uma terceira pessoa; portanto, uma espécie de assassinato.


Do ponto de visto biomédico, a despeito dessa compreensão nativa, a
morte desse jovem continuaria sendo por suicídio. Por outro lado, os
indígenas, ao relatarem o ocorrido a partir de suas concepções para
profissionais de saúde, poderiam destacar, sobretudo a questão da
externalidade da morte, contribuindo para que aquele caso não fosse
classificado como suicídio pelos profissionais de saúde que estavam
investigando aquela causa de morte.
Operacionalmente propomos que pesquisas quantitativas de
campo sejam precedidas por investigações prévias de corte qualitativo.
As informações coletadas preliminarmente podem não apenas auxiliar
na compreensão do suicídio, mas também fornecer subsídios para
delinear uma abordagem quantitativa que, ao ser orientada por uma
perspectiva que valora e incorpora o ponto de vista indígena, tem o
potencial de atenuar eventuais dificuldades mútuas de comunicação
entre pesquisadores e sujeitos da pesquisa.

Em busca de um modelo explicativo para o suicídio


indígena em São Gabriel da Cachoeira

O estudo seguinte teve o propósito de realizar uma investigação


qualitativa em São Gabriel da Cachoeira explorando as representações
sociais a respeito do suicídio indígena. Para realizarmos esse estudo,
partimos do pressuposto de que as pessoas que vivem e atuam
profissionalmente numa região têm um conjunto de informações
potencialmente úteis para a compreensão desse importante problema
social e de saúde pública.
Entendemos que um estudo como o realizado seria potencial-
mente importante por pelo menos dois motivos. O primeiro seria
constituir-se, tal como sugerido anteriormente, como uma etapa
qualitativa prévia a uma investigação quantitativa. As reflexões ori-
undas dessa pesquisa qualitativa poderão fornecer elementos para
construção de um instrumento padronizado, tipo autópsia psicológica,6
que possibilite a investigação do suicídio, que incorpore aspectos
considerados relevantes pelas próprias pessoas, indígenas e não

6
A autópsia psicológica é um instrumento estruturado ou semiestruturado
que busca reconstituir retrospectivamente o status da saúde física, mental e as
circuntâncias sociais das pessoas que se suicidaram, a partir de entrevistas com
familiares e informantes próximos às vítimas (WERLANG, 2012).
Suicídio é suicídio e ponto final? Será? 199

indígenas, que vivem na região. Já o segundo motivo seria permitir o


acesso às diferentes formas circulantes de compreender o suicídio em
São Gabriel da Cachoeira, o que forneceria subsídio para uma análise
em profundidade do fenômeno.
Assim, uma das pós-graduandas de nosso grupo realizou
uma pesquisa cujo objetivo foi analisar as representações sociais de
diferentes grupos locais a respeito do suicídio indígena em São Gabriel
da Cachoeira (PEREIRA, 2013). Para tanto, realizou um conjunto de
grupos focais e entrevistas em profundidade com profissionais de saúde,
de assistência social e de educação, bem como com religiosos, linguistas
e lideranças indígenas. O material obtido por meio desses instrumentos
foi analisado tendo como horizonte teórico a proposta de Helman (2003)
para a sistematização das teorias leigas de doença. Nessa proposta, as
formas como as pessoas compreendem o infortúnio poderiam estar
situadas em quatro diferentes universos: a) individual; b) natural; c)
social; e d) sobrenatural. Embora proponha essas diferentes instâncias,
o autor aponta que a etiologia da doença costuma ser atribuída pelos
indivíduos a combinações multicausais de duas ou mais interações entre
estes universos (HELMAN, 2003).
A análise empreendida pela autora, juntamente como esforços
posteriores (SOUZA; PEREIRA, 2013), permitiu que elaborássemos a
proposta de um modelo explicativo para o suicídio indígena em São
Gabriel da Cachoeira. Nesse modelo, o suicídio foi relacionado aos
atributos do mundo individual, social e sobrenatural. Em relação aos
atributos do mundo individual, a condição de serem indígenas jovens
do sexo masculino vulnerabilizaria para suicídio. Essa vulnerabilidade
se configura na medida em que sofreriam uma “concorrência desleal”
(uma espécie de desvantagem a priori no mercado matroimonial/
afetivo) por parte de não indígenas pela preferência das jovens indígenas
e estariam em um momento de aprendizado do consumo de álcool, o
qual “daria coragem para se matar”.
Essa fase da vida, nesse cenário específico, seria marcada por
atributos “psicológicos” de falta de controle, falta de crença no futuro e
de desobediência a prescrições rituais e aos conselhos dos mais velhos.
No que se refere aos atributos do mundo social, destacam-se os possíveis
conflitos familiares, as dificuldades em adaptar-se ao mundo urbano e a
possibilidade de serem vítimas de “sopro ou estrago” (encanto xamânico,
em geral motivado por inveja). Haveria uma grande vulnerabilidade
juvenil a esse tipo de agressão, pois os jovens não conheceriam as
estratégias de proteção ou deliberadamente não seguiriam os conselhos
Políticas públicas: reflexões antropológicas 200

dos mais velhos, deixando de tomar medidas preventivas contra esse


tipo de ataque. Haveria, ainda, a influência de atributos do mundo
sobrenatural, na medida em que espíritos de jovens mortos viriam
buscar outros jovens. Assim, em São Gabriel da Cachoeira atuariam
diferentes fatores, vulnerabilizando os jovens indígenas ao suicídio.
Em síntese podemos afirmar que o suicídio é representado de
um modo complexo, articulando diferentes modelos explicativos e
fatores que atuariam de modo sinérgico, vulnerabilizando a população
local ao suicídio. Destacamos ainda que por meio dessas análises
evidenciamos especificidades psicológicas dos suicidas em São Gabriel
da Cachoeira e algumas motivações particulares, possivelmente
associadas ao contexto étnico e social local. Por fim, entendemos que
foi possível também obter subsídios para construção de instrumentos
(tipo “autópsia psicológica”) que permitirão o aprofundamento da
compreensão de suicídio no contexto local.

Considerações finais

Embora as taxas de mortalidade por suicídio na população geral


do Brasil sejam baixas, há fortes evidências de que em indígenas esse
fenômeno se expresse de modo diverso, apresentando valores bem
mais elevados.
As macrorregiões Centro-Oeste (com destaque para o estado do
Mato Grosso do Sul) e Norte (especialmente em Roraima e no Amazonas)
concentram o maior contingente e as maiores taxas de mortalidade por
suicídio em indígenas, sendo significativamente superiores ao observado
em não indígenas. No estado do Amazonas, as taxas de mortalidade por
suicídio são particularmente elevadas nos municípios de Tabatinga, Santa
Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, caracterizados pela
elevada proporção de autodeclarados indígenas.
Em termos teóricos, demonstramos que existem importantes
dificuldades para transposição da categoria suicídio para os contextos
indígenas, dadas as especificidades no modo como os diferentes povos
se relacionam com o tema. Destacamos que tais especificidades devem
ser levadas em consideração ao se propor quaisquer estratégias de
intervenção sobre essa questão.
Por meio da investigação qualitativa, foi possível evidenciar que o
suicídio é representado de forma complexa, de maneira que diferentes
fatores atuariam de modo inter-relacionado, vulnerabilizando a população
Suicídio é suicídio e ponto final? Será? 201

indígena, principalmente a jovem. Tal aspecto, por sua vez, indica que
o suicídio deve ser entendido para além do campo da “saúde mental”,
e que estratégias para seu enfrentamento deveriam se pautar em ações
intersetoriais, que respeitem os conhecimentos e práticas tradicionais e se
orientem pelo compromisso com o protagonismo político dos indígenas.

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WHO – World Health Organization. Country reports and charts web page.
Disponível em: <http://www.who.int/mental_health/prevention/suicide/
country_reports/en/index.html>. Acesso em: 1o nov. 2011.
Discriminação, impasses sociais
em Mato Grosso do Sul e o bem-viver
kaiowá e guarani

Nádia Heusi Silveira

Este artigo vai destacar alguns aspectos das relações entre os


índios e a sociedade envolvente em Mato Grosso do Sul para tratar
de certo mal-estar vivido pelos Kaiowá e Guarani, o qual perdura há
algumas décadas. O impasse instalado nesse estado com respeito aos
povos indígenas1 deriva de um projeto desenvolvimentista iniciado
na primeira metade do século XX pelo governo federal, que objetivou
expandir a fronteira agrícola para o centro-oeste brasileiro. À época,
o então estado de Mato Grosso era considerado um imenso vazio
populacional, uma região com grandes áreas de floresta e cerrado não
exploradas comercialmente.
O projeto governamental teve êxito, pois hoje Mato Grosso do
Sul é um dos principais produtores de commodities agrícolas do Brasil,
com destaque para a soja e a cana-de-açúcar. O agronegócio é um
setor em franca expansão na última década e o estado vem assumindo
maior peso nas exportações brasileiras (CASAROTTO, 2013). Essa
ampliação do agronegócio implica uma intensificação dos conflitos
fundiários envolvendo os produtores rurais e os povos indígenas. No
caso dos Kaiowá e Guarani, além da violência armada que sofrem nas

1
Além dos Kaiowá e Guarani, vivem em Mato Grosso do Sul os Terena, Kadiweu,
Kinikinau, Ofaié, Guató, Atikum e Kambá.
Discriminação, impasses sociais em Mato Grosso do Sul e o bem-viver kaiowa e guarani 205

terras em litígio, os procedimentos de regularização fundiária em curso


na Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e no Ministério da Justiça
são sistematicamente judicializados por representantes dos ruralistas
e de subgovernos locais, tornando a posse plena de seus territórios já
identificados um processo extremamente moroso.
É nesse enquadramento sócio-histórico, esboçado muito
brevemente, que quero chamar atenção para um fenômeno com efeitos
muito intensos, porém difusos, difícil de avaliar e quantificar, que é a
discriminação com que são tratados os Kaiowá e Guarani pelo restante
da população regional. O esforço é no sentido de dar visibilidade a um
tema que não está forte na agenda governamental e tampouco aparece
problematizado nas pesquisas de antropólogos que trabalham com
povos indígenas.
Para tanto, proponho uma leitura dos efeitos da discriminação
social correlacionando-os ao histórico de expropriação territorial
vivenciado pelos Kaiowá e Guarani. Postulo que a discriminação
pode ser entendida como uma nuance relacional de um processo de
etnocídio em curso, inspirada no conceito de violência estrutural
(FARMER, 2004).2

Intensidades e mudanças no viver Kaiowá e guarani

A discriminação despertou-me a atenção desde que comecei a


trabalhar com os Kaiowá e os Guarani. Quando fui morar em Campo
Grande, em 2004, fiquei perplexa com o grau de discriminação contra os
índios em Mato Grosso do Sul, que atingia a mim pelo fato de trabalhar
com eles! Eu havia morado e trabalhado com índios no Amazonas e
lá, onde a população indígena também é muito grande, onde também
existem vários desafios a serem superados na relação entre índios e não
índios, nunca tive essa clara sensação de ser discriminada por estar
profissionalmente associada aos índios. O que está em jogo não é o que
me atinge, nesse caso, uma espécie de repulsa por ter relações com o que

2
Essas ideias foram surgindo e se ampliando ao longo de dez anos, quando conheci
os Kaiowá e Guarani da Terra Indígena Caarapó (Te’yikue), trabalhando no Núcleo de
Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas da Universidade Católica Dom Bosco.
Posteriormente, já associada ao INCT Brasil Plural como pesquisadora da rede de
pesquisa em saúde, tive uma breve experiência como agente da FUNAI, quando lidei
exclusivamente com a pauta dos Kaiowá e Guarani. Este último trabalho foi crucial para
consolidar as reflexões apresentadas neste artigo.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 206

se tem localmente como um tipo de pessoa considerada qualquer coisa


menos. Os juízos de valor preconcebidos e de ampla circulação sobre os
índios incluem variadas incapacidades, de caráter, inteligência, moral
etc., e ausência de atributos civilizantes, entre os quais, a vontade de
prosperar economicamente.
A questão essencial é que a discriminação me parece ser uma
das dimensões fundamentais a se ter em conta para pensar ações
direcionadas aos problemas abordados pelas políticas públicas no
campo da saúde mental entre os Kaiowá e Guarani. Não que entenda a
discriminação como um processo restrito à problemática da saúde; bem
ao contrário, esse fenômeno evidencia o campo de disputas envolvendo
o próprio sentido de cidadania num país cujo modelo jurídico é
pluriétnico (MONTERO, 2012).
Contudo, esse propósito de enfocar a saúde mental entre os
Kaiowá e Guarani se explica por um quadro social em que despontam
altos índices de abuso de álcool e outras substâncias entorpecentes,
desnutrição infantil, suicídio de jovens e manifestações violentas que,
em muitos casos, culminam em homicídio, entre outros. Embora tenha
evidências etnográficas desses problemas, as estatísticas de saúde dos
povos indígenas não são facilmente acessíveis aos pesquisadores no
Brasil. Entretanto, alguns indicadores estão disponíveis em Rangel
(2014).3 Por exemplo, em 2013, o coeficiente de mortalidade infantil
das crianças menores de 5 anos no Distrito Sanitário de Mato Grosso do
Sul, incluindo todos os povos que vivem nesse estado, foi de 45,9/1.000
nascidos vivos. No mesmo ano, esse coeficiente para a população
brasileira foi, em média, 19,6/1.000 nascidos vivos, conforme o
IBGE. Entre os Kaiowá e Guarani, houve 72 suicídios registrados pela
SESAI em 2013, cujas taxas em série histórica são cerca de vinte vezes
superiores à taxa de suicídios nacional.
Neste artigo, considero discriminação um conjunto de
comportamentos que são identificados pelo tratamento desigual de
pessoas ou grupos em razão da sua origem étnica, os quais criam,
mantêm ou reforçam uma situação de desvantagem social, de

3
Na criteriosa avaliação estatística do Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
todas as denúncias de violações aos direitos dos povos indígenas são classificadas
como violências. Assim, as questões territoriais são violência contra o patrimônio;
manifestações de violência física e/ou simbólica são violência contra a pessoa praticada
por particulares e agentes do poder público; indicadores de saúde insatisfatórios,
incluindo o uso abusivo de bebidas alcoólicas, são violências por omissão do poder
público; e por fim há violências praticadas contra os povos isolados (RANGEL, 2014).
Discriminação, impasses sociais em Mato Grosso do Sul e o bem-viver kaiowa e guarani 207

acordo com a definição dada por Bastos e Faerstein (2012). Embora


a discriminação esteja associada ao preconceito, diferente deste, que
é um processo subjetivo-cognitivo, a discriminação é observável.
Esses autores se propõem a estudar a discriminação desde o campo
da saúde pública e defendem que o tema necessita de uma abordagem
interdisciplinar, o que vai ao encontro do que penso, embora não
comungue a metodologia que propõem.
Para associar a discriminação à questão da saúde mental, irei
abordar duas consequências do processo de expropriação territorial.
A primeira é a reterritorialização forçada das parentelas Kaiowá e
guarani no período de expansão econômica do centro-oeste brasileiro
até os dias atuais. A segunda consequência é a degradação ambiental, o
desmatamento que ocorreu em paralelo.
Os Kaiowá e Guarani habitam a faixa da fronteira Brasil-Paraguai
há pelo menos três séculos (BRAND, 1997; VIETTA, 2007). No lado
brasileiro, a maioria deles vive em Mato Grosso do Sul, são hoje
aproximadamente 45 mil pessoas,4 em cerca de cinquenta pequenos
assentamentos pulverizados na região meridional do estado. É a
segunda maior população indígena no Brasil, segundo o Censo de 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
De acordo com o estudo pioneiro de Brand (1997), o território
tradicional dos Kaiowá e dos Guarani passa a ser explorado pelo Estado
brasileiro após a Guerra do Paraguai, a partir de 1870. O primeiro
empreendimento sistemático de exploração econômica em Mato Grosso
do Sul foi a extração de erva-mate nativa (Ilex paraguaiensis), quando
a Companhia Matte Laranjeira ganhou uma concessão pública para
atuar com exclusividade na região. Com o início do extrativismo nas
últimas décadas do século XIX, a mão de obra empregada na extração
e produção da erva-mate incluía, em muitas regiões, a participação dos
índios. Embora tenha contribuído para a difusão de algumas epidemias,
o trabalho nos ervais parece não ter tido grande impacto na organização
social dos Kaiowá e Guarani, segundo Brand (1997). Do mesmo modo,
as primeiras fazendas de gado que no final do século XIX e início
do século XX se instalaram nas regiões de campos naturais, entre
os municípios de Amambai, Ponta Porã e Bela Vista, não trouxeram
grandes mudanças para a vida dos Kaiowá e dos Guarani, pois seus

4
Conforme estimativas da FUNAI, esse segmento da população indígena sul-mato-
grossense usufruía de pouco mais de 40 mil hectares de terras (2012), o que corresponde
a menos de 1% do território do estado.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 208

tekoha, os espaços habitados por um grupo de parentes e aliados,5 se


localizavam, preferencialmente, nas regiões de mata. Foi após a criação
da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, em 1943, que começam a
operar mudanças radicais em seu modo de vida.
Em relação ao processo de reterritorialização, mais forte a partir
da década de 1950 em diante, sabemos que o órgão indigenista (primeiro
o Serviço de Proteção aos Índios, SPI, e posteriormente a FUNAI) tinha
a tarefa de liberar as terras para os produtores rurais. Não importava
aos agentes indigenistas a organização social dos Kaiowá e dos Guarani,
era apenas o caso de tirar famílias que viviam dispersas pela região,
em seus tekoha, e recolocá-las de um modo mais ou menos aleatório
nas reservas indígenas.6 A própria relação entre os grupos Kaiowá e
os grupos guarani, que se mantinham menos misturados, redefiniu-se
nesse processo. Ao mesmo tempo, os Kaiowá e Guarani foram perdendo
paulatinamente a possibilidade de circular livremente por um vasto
território, como faziam até então, para visitar parentes ou explorar os
recursos da mata. É importante termos em mente que a configuração
social que encontramos nas aldeias hoje é fruto desse processo
compulsório de reordenamento territorial. Então, especialmente nas
aldeias que são as antigas reservas, muitos Kaiowá e Guarani dividem
espaços de convivência com pessoas de parentelas que não são aliadas
e que, se tivessem tido opção, com elas jamais iriam viver junto. Esse
fato pode ser diretamente correlacionado aos conflitos internos que
ocorrem em grande escala nos dias atuais.

5
Há uma acepção estrita de tekoha como aldeia, que emerge no campo interétnico
com a retomada dos territórios tradicionais e passa a ser usada, no século XX, pelas
lideranças Kaiowá e guarani. No entanto, tekoha é um conceito polissêmico que não se
limita à noção espacial e que não é fácil abarcar de modo sintético, ainda mais diante
das transformações já apontadas. Penso que conceito de tekoha se define principalmente
por constituir-se a partir de relações preponderantemente amistosas tanto com as
entidades invisíveis (jára) que habitam a floresta como também no interior do grupo
local, permeadas por alianças políticas, rituais e de casamento. Aspectos físicos da
paisagem também determinam esse conceito. Por isso não trato aldeia e tekoha como
sinônimos, mas uso aldeia ao longo do texto no sentido que é dado localmente pelo
senso comum: um lugar (qualquer) onde vive um grupo de índios. Não cabe falar
de terras indígenas para se referir a toda essa população porque aproximadamente a
metade das comunidades Kaiowá e guarani no MS habita seu território na condição
provisória de “acampados”.
6
Entre 1915 e 1928, o SPI demarcou oito Reservas Indígenas, com uma superfície
total de terras de 17.632 hectares. São atualmente conhecidas como TI Dourados, TI
Amambai, TI Caarapó, TI Limão Verde, TI Taquapiry, TI Pirajuy, TI Porto Lindo e TI
Sassoró. TI é a abreviatura de terra indígena, que será utilizada ao longo do artigo.
Discriminação, impasses sociais em Mato Grosso do Sul e o bem-viver kaiowa e guarani 209

Soma-se a isso o dado de que hoje os Kaiowá e Guarani já não


podem lançar mão de um recurso cultural historicamente utilizado
para evitar os conflitos, que é se afastar ou viver em outro lugar, de
modo temporário ou definitivo. Ir para o mato caçar ou coletar alguma
matéria-prima, ou simplesmente caminhar à toa, ajudava a amenizar
os conflitos do dia a dia (PEREIRA, 2004). Mas se entrarem em uma
propriedade privada nos dias atuais, os Kaiowá e os Guarani correm
risco de vida.7 Mudar o lugar de moradia para minimizar conflitos
entre si também é uma possibilidade restrita. O grupo de parentes que
decide sair assume que, nesse caso, provavelmente terá que enfrentar
conflitos de outra ordem – os conflitos fundiários. Hoje fundar um
tekoha não é necessariamente uma boa solução, embora saibamos que
muitas parentelas estão vivendo acampadas em Mato Grosso do Sul, em
condições precárias, com a esperança de recompor um modo de viver
parecido com o de seus pais e avós.
Ao mesmo tempo, temos o dado da pressão populacional
no interior das terras indígenas. A TI Dourados, que é a situação
emblemática, tem mais de 300 habitantes/km² vivendo nas duas
aldeias que ela engloba, Jaguapiru e Bororo, enquanto no município
de Dourados, do qual faz parte, a densidade demográfica não chega
a 48 habitantes/km². A superpopulação, mais evidente nas antigas
reservas indígenas, associada a essa configuração social de certa forma
imposta pelo Estado, é capaz de gerar muito mal-estar nas pessoas
que costumavam ter possibilidade de mais facilmente escolher com
quem viver. Melià et al. (2008) descrevem como os Kaiowá (Tavyterã)
costumavam viver em pequenos grupos no meio da mata, para situar
as mudanças que ocorriam em seu território, no Paraguai, na década
de 1970.8 Para essa situação contemporânea dos Kaiowá e dos Guarani
no Brasil, é coerente usar a metáfora de um corpo social enfermo, cujos
sintomas, citados antes, são identificáveis e inequívocos.
Quanto à degradação ambiental, ela também é inextricavelmente
ligada a esse enfraquecimento do corpo social, uma vez que os Kaiowá
e os Guarani têm uma relação profunda e essencial com a mata e seus

7
Isso ocorreu no início de 2013 a um jovem da TI Caarapó, de 16 anos, assassinado
quando foi pescar na propriedade vizinha à aldeia com outros meninos. Seu corpo foi
encontrado numa estrada da região e suspeita-se que o fazendeiro responsável por
sua morte (que conseguiu responder ao processo em liberdade) quisesse simular um
atropelamento.
Ver também Grünberg (2002).
8
Políticas públicas: reflexões antropológicas 210

elementos. Sua concepção cosmológica do mundo, o xamanismo


e a reprodução social passam por essa relação. É ilustrativo que Eliel
Benites, um intelectual Kaiowá, numa palestra em que explicava sobre
cosmologia, referiu-se a essa “relação com a natureza” (nas palavras
dele) como o que caracteriza o teko marangatu, um conceito que
qualifica o bem-viver, o qual Melià et al. (2008) traduzem como “modo
de ser religioso”. O que podemos entender também como as práticas
xamânicas que dão unicidade a aspectos econômicos, rituais, políticos e
sociais na constituição de um tekoha. Mas, qual é a paisagem ambiental
de que dispõem os Guarani e Kaiowá atualmente?
Falta terra e mata para a produção econômica com o mínimo de
autossuficiência e também para a realização do ciclo ritual do milho,
ao qual se ligam os ritos de nominação das crianças e o de furação dos
lábios dos meninos. Muita gente das duas últimas gerações de adultos
já não tem um nome guarani. E para alguns ñanderu e ñandesy, xamãs
Kaiowá e guarani, vários dos problemas que remetemos ao campo da
saúde mental são explicados pela ausência do nome, que é um modo
de fortalecer o caráter da pessoa, como também os laços de parentesco.
Vietta (2007) entende que no processo de se adequar às
mudanças históricas, uma das consequências foi a diluição do poder
xamânico que sustentava a liderança política ampliada entre os
Kaiowá e Guarani. Isto é, o xamanismo como princípio de agregação
da parentela se reduziu concomitantemente ao desaparecimento dos
hexakara, os xamãs Kaiowá mais poderosos. Esses hexakara, que
sabem identificar o nome das crianças, são hoje muito poucos. Entrar
em contato com a divindade e saber o nome e o dom que a criança
traz, por parte do xamã, facilita a manutenção do vínculo cosmológico
da pessoa. Juntamente com a transmissão do nome, segundo a autora,
dá-se o assentamento de pássaros celestes no peito da criança, o que é
fundamental para a prática do bom modo de viver.
Entretanto, a manutenção desse vínculo cosmológico depende da
observação de cuidados ao longo da vida, tanto por parte dos pais quanto
pela própria pessoa depois que cresce. O consumo alimentar adequado9
e as práticas rituais são fundamentais para fortalecer a comunicação com
as divindades e dependem de esforços coletivos da parentela. Porém
sabemos que há muito poucas aldeias Kaiowá e guarani em condições de
manter uma produção de alimentos que lhes permita consumir a comida

9
Veja Silveira (2011) para uma descrição das práticas rituais no ciclo da vida e das
dietas alimentares indicadas em cada situação.
Discriminação, impasses sociais em Mato Grosso do Sul e o bem-viver kaiowa e guarani 211

guarani tal como preconizado. Também, o cultivo do milho guarani


(avati ete) é irrisório atualmente, pois na maioria das aldeias a terra está
degradada e não há espaço para abrir novas roças. Essa impossibilidade
de ter abundância do milho-branco10 é um dos fatores cruciais para o
enfraquecimento dos rituais entre os Kaiowá e Guarani, que culminou no
desaparecimento do rito de furação labial dos meninos.
Trago esses dados não para enfatizar um processo de perda
cultural. O intuito é revelar uma dinâmica sociocultural, pode-se dizer,
beirando o caos. É essencial considerar que essas mudanças drásticas
estão acontecendo muito rápido. Ainda vivem os Kaiowá e Guarani que
testemunharam o esbulho territorial e, agora, as novas gerações têm que
lidar com toda a complexidade que resultou disso em suas vidas.
A opção adotada aqui é analisar certa perspectiva macrossocial
para apreender o contexto de violência estrutural. Todavia é preciso
lembrar que essa população é grande e que há muitas e significativas
nuances na vida contemporânea dos Kaiowá e dos Guarani. O grau das
mudanças que cito, bem como as estratégias encontradas para lidar
com esse processo histórico de expropriação por cada parentela, em
cada aldeia, dependendo das variáveis sociais e ambientais do entorno
imediato, são muito diversas.

Alteridade: boa e má diferença

A despeito das profundas mudanças em seu modo de viver


decorrentes do desenvolvimento econômico de Mato Grosso do Sul,
que se valeu dos territórios indígenas para a produção agrícola de larga
escala, os Kaiowá e os Guarani permanecem socialmente organizados
a partir de fogos domésticos e parentelas,11 porém, de acordo com a

O avati moroti é a variedade do milho branco utilizada para a produção de kãgui ou


10

chicha, a bebida fermentada necessária a esses rituais.


11
Pereira (2004) define fogo doméstico (che ypyky kuera) como um grupo de
corresidentes que compartilha alimentos e grande intimidade, ponto focal de
descendência e ascendência, formado por um casal, seus filhos e, às vezes, outros
parentes consanguíneos. A parentela (te’yi) é um grupo de parentes oriundos de vários
fogos domésticos, cuja identidade é vinculada à subordinação política a uma liderança.
No passado esse grupo dividia a mesma casa comunal e cultivava uma roça coletiva.
O homem (hi’u) que encabeça uma parentela, junto com sua esposa (ha’i), cria um
estilo próprio, baseado em seus conhecimentos do tempo antigo, motivado por agregar
reconhecimento e prestígio social. Menciono em algumas passagens o grupo de parentes
referindo a essa definição de parentela.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 212

brilhante análise de Pereira (2014), de modo cada vez mais heterogêneo


e experimental. Se o sistema social não se modificou, ele sofre impactos
profundos, de onde se origina o mal-estar, os quais se expressam em
variações significativas. Entre essas variações o autor destaca a tendência
de autonomização dos fogos domésticos, que no passado exprimiam
grande coesão em termos de parentela e praticavam maior unidade
política, com diminuição simultânea da solidariedade grupal. Soma-
se a isso a crescente heterogeneização derivada das novas modalidades
de inserção econômica dos Kaiowá e dos Guarani – que se expressa
inclusive na diversificação dos papéis de gênero –, como também do
efeito induzido pelas políticas públicas e seus agentes, que propicia a
redução do controle do grupo de parentes sobre seus membros.
Um dado essencial para compreender a flexibilidade do sistema
social Kaiowá e guarani diante das mudanças drásticas descritas
neste texto é o grau de polimorfismo que o institui (PEREIRA, 2014),
sua matriz geradora de socialidade. O avareko, que remete à ideia de
tradição, engloba uma multiplicidade de estilos de ser e se relacionar dos
diversos grupos de parentes, os quais são criados pelo casal que articula
cada parentela, fundamentado em seus conhecimentos e experiência
de vida. Vários fogos domésticos, unidades correspondentes em geral
à família nuclear, se unem para formar uma parentela. No entanto,
tendo em vista a bilateralidade do parentesco, esse pertencimento
tem certo dinamismo, o que também ocorre com as redes de aliança
entre as parentelas que formam um tekoha. A diferenciação de estilos
entre as parentelas liga-se à legitimação da hierarquia que opera no
interior de uma rede de parentelas, por sua vez ligada diretamente ao
casal articulador da parentela mais prestigiada, sendo essa alteridade
um elemento fundamental para a constituição de redes de aliança. Os
múltiplos estilos das parentelas Kaiowá exprimem, assim, prerrogativas
econômicas, políticas e rituais. No que se refere às relações diárias entre
fogos e parentelas não relacionados, mesmo que residam na mesma
aldeia, elas são marcadas por sentimentos de rivalidade e disputas
políticas conforme Pereira (2014). Disputas estas que no passado
estimulavam a reconfiguração de alianças e agora são exacerbadas em
função da pressão demográfica nas aldeias, potencializando a violência.12

Na etnografia de Cariaga (2011) aparece a crescente preocupação dos Kaiowá e dos


12

Guarani que vivem na TI Caarapó com o abuso de bebidas alcoólicas e violência na


aldeia. Ele cita a narrativa de um homem mais velho em que o aumento da violência
é explicado como resultado da proximidade com os fantasmas dos mortos, os angue.
Discriminação, impasses sociais em Mato Grosso do Sul e o bem-viver kaiowa e guarani 213

Na atualidade, tendo em vista as novas experimentações que têm


como referência o contato com os não índios, essa multiplicação de estilos
está próxima ao limite de ordenamento do mundo. Pereira identifica duas
tendências dominantes, cujos gradientes de alteridade variam dos estilos
xamânicos àqueles da “vivência do índio”, como se referem os Kaiowá e
os Guarani. Para os primeiros, o avareko se origina apenas das práticas
vinculadas aos conhecimentos do ymaguare, o tempo antigo, como rezas
e cantos xamânicos. A outra tendência, mais presente entre os jovens le-
trados, expressa a positividade da alteridade dos não índios. Nesse caso, a
sociedade regional não é vista em relação de oposição, porém de comple-
mentaridade, do mesmo modo que opera a alteridade entre os próprios
Kaiowá e os Guarani. Pereira (2014) cita a categoria teko reta, o modo de
ser múltiplo, descrita por Benites (2009). Essa vivência contemporânea os
permitiria transitar entre o avareko e o karaireko, o sistema do Kaiowá e
o sistema do branco, como os Kaiowá dizem em português, concebidos
como campos permeáveis e intercambiáveis. É fato que a opção pela tra-
dição ou pela inovação por parte de um fogo doméstico ou do casal de
articuladores de uma parentela é antes de tudo política e pode se alternar
em curto espaço de tempo. Mas, definitivamente, essas experimentações
não se dão sem crises sociais e sem conflitos, com prejuízos sobretudo
para a concretização de redes de aliança entre as parentelas.
Cabe então voltarmos ao etnocídio, pois se trata, como definiu
Clastres (2004, p. 56, grifo nosso), “da destruição sistemática dos modos
de vida e pensamento de povos” que poderiam ser transformados,
melhorados, ou segundo o imaginário regional, integrados ao sistema
econômico brasileiro, após prévia destituição cultural. Não é mera
coincidência que esse conceito tenha sido cunhado a partir da realidade
indígena na América do Sul. Essa imagem é a que vimos nos parágrafos
anteriores. Os Kaiowá e os Guarani resistem com grande dignidade ao
intento de solapar sua cultura, que varia em intensidade desde que se
iniciou o povoamento de Mato Grosso do Sul, e mesmo antes, com as
Missões Jesuíticas, a Guerra do Paraguai e a extração de erva-mate.

No passado, quando morria alguém, os parentes abandonavam o lugar de residência


ou queimavam a casa para construir outra nova, a certa distância. Hoje essa prática é
inviável e especialmente as crianças ficam vulneráveis a uma espécie de contaminação
violenta por parte de fantasmas de pessoas que morreram brutalmente. Em minha
experiência etnográfica, como nos dados de Cariaga, também percebi a inadequada
construção corporal (não observação de ritos de passagem e cuidados diários) como
causa de comportamentos violentos. A espacialidade e a cosmologia se imbricam na
produção de violência entre os Kaiowá e os Guarani.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 214

Ainda segundo Clastres (2004), a prática etnocida é orientada por


dois axiomas: primeiro, uma hierarquia entre as culturas em questão;
segundo, uma relação de negação com aquela que é desvalorizada
(nesse caso, a cultura Kaiowá e guarani), a qual deve ser suprimida.
Para ele, é justamente o sistema de produção econômica que torna a
civilização ocidental tão fortemente etnocida, pois não há limites para
o capitalismo. Por outro lado, a “improdutividade originária” constitui
uma afronta aos olhos daqueles para quem o ambiente é somente uma
imensa fonte de recursos econômicos.
Se os Kaiowá e os Guarani transformaram sua percepção dos
não índios, vendo-os como boa diferença a fim de buscar alternativas
de bem-viver, o contrário não é verdadeiro. Os primeiros migrantes
que chegaram para povoar Mato Grosso do Sul, basicamente do Sul e
sudeste do Brasil, tornaram-se, aos poucos, da terra. De acordo com
Lima (2012), esses produtores rurais afirmam em suas biografias ter
transformado, com seu trabalho e esforço, a floresta desabitada e
hostil em celeiro de produção, restando aos índios uma invisibilidade
quase total. Nessas histórias, os Kaiowá e Guarani foram perdendo
espaço para as pessoas de fora que se estabeleceram em Mato Grosso
do Sul, apesar de figurarem sempre e até hoje como mão de obra
fundamental para manter a economia regional. Assim, os pioneiros
são “heróis civilizadores”, figuras proeminentes na história do estado,
onde curiosamente os índios foram tornados de fora, do Paraguai por
exemplo. Desse modo, conforme Lima (2012), um fazendeiro é hoje uma
figura paradigmática e admirada em Mato Grosso do Sul, ao passo que
o índio tornou-se seu contraexemplo, percebido como fonte de atraso
regional e ameaça à propriedade. A discriminação contra os Kaiowá e os
Guarani espelha essa má diferença que precisa ser suprimida.

Saúde mental e discriminação étnica

Como disse antes, esta abordagem dos problemas de saúde mental


privilegia o viés macrossocial e, portanto, não será necessariamente uma
análise colada às ideias que os próprios Guarani e Kaiowá têm sobre
o assunto. Muito embora a perspectiva deles, ligada aos efeitos sociais
e individuais da retração do xamanismo e da intensificação da relação
com não índios, tal como descrevem Silva et al. (2013, 2014), faça parte
desta análise. Enfoco a dimensão da vida diária no tocante a tendências
dominantes das mudanças históricas.
Discriminação, impasses sociais em Mato Grosso do Sul e o bem-viver kaiowa e guarani 215

Vimos que os Kaiowá e os Guarani têm vivenciado, nos últimos


50 ou 60 anos, mudanças agudas e dissociantes em seu modo de vida.
De ter seus tekoha no meio da mata e liberdade para circular em
seu território, eles passaram a viver em pequenas aldeias, boa parte
localizada no perímetro urbano dos municípios sul-mato-grossenses,
com a mobilidade limitada pela privatização das terras no estado. No
decurso dessas mudanças formou-se também um forte esteriótipo
negativo13 sobre os índios. De acordo com a definição de Farmer (2004),
podemos identificar a violência estrutural14 nessa expressão da ordem
política e econômica, historicamente arraigada, que toma a forma de
eventos adversos na vida dos Kaiowá e dos Guarani.
Embora a abordagem de Farmer possa ser criticada por certa
falta de refinamento epistemológico, no sentido de não exprimir as
nuances da relação entre as forças globais de mercado e o sofrimento
íntimo (BOURGOIS; SCHEPER-HUGUES, 2004), credito sua validade
para o campo da saúde mental a partir de dois aspectos. Primeiro,
porque sua concepção de violência estrutural supõe fundamental o
cruzamento de dados históricos, antropológicos e biológicos (clínicos ou
epidemiológicos) para entender os processos vividos. Já que todos esses
dados sobre os Kaiowá e Guarani existem, entendo que essa abordagem
poderia ser prontamente implementada desde que haja vontade política.
Segundo, que a proposta de Farmer tem como intuito desenvolver
intervenções que sejam estruturais, para além da assistência à saúde
(FARMER et al., 2006). Ou seja, a ideia é propor um leque de ações
simultâneas que vão desde assistência médica e psicológica, passando
por ações de fomento para produção econômica, valorização cultural,
qualificação técnica e educação, até a efetivação do direito à terra.
Então, partindo do fato de que em Mato Grosso do Sul grande par-
te das terras indígenas está perto dos núcleos urbanos, como é o caso de

13
Diria que a negação do reconhecimento da diferença cultural, nesse caso, passa por
três oposições no campo semântico da discriminação, identificadas por Feres Júnior
(2006) ao analisar o racismo no Brasil moderno: falta de certos costumes, falta de
sincronia com o presente histórico e falta de certos atributos psicológicos.
14
O termo violência estrutural foi cunhado, a partir da ótica marxista, como crítica à
definição da paz durante a Guerra Fria, para dar conta dos prejuízos físicos e psicológicos
provocados em setores da população, em função de arranjos institucionais que se
estabeleceram entre os países, como explicam Graeber (2012) e Bourgois (2009). Esses
autores, além de Farmer, que têm trabalhado nessa linha de análise, entendem se tratar de
mecanismos invisibilizados, de efeitos sutis, fundados em desigualdades de poder no âmbito
de uma ordem social transnacional, mas divergem quanto ao conceito de violência estrutural
e em sua abordagem.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 216

Dourados, Caarapó e outras, observei e tive relatos de que os jovens quan-


do saem para estudar, trabalhar ou se divertir na cidade são discriminados
com frequência. Podemos vislumbrar, assim, uma situação em que os va-
lores culturais estão constantemente postos em questão, desde fora, pois
o preconceito contra os índios se manifesta de muitas maneiras. Como
exemplo, cito um evento acontecido no município de Antônio João. Um
grupo de estudantes Kaiowá e guarani foi retirado da sala de aula, em uma
escola da rede pública em que frequentavam o ensino médio, em fevereiro
de 2013, sob a alegação de que estavam com os pés sujos. As lideranças
da aldeia foram conversar com os diretores da escola e tiveram confirma-
ção do que os jovens haviam contado quando voltaram da cidade. Esse
fato gerou polêmica na aldeia Campestre, pois os estudantes ficaram com
vergonha de voltar para escola e alguns quiseram abandonar os estudos.
Os índios são discriminados nas relações pessoais – o que pode
acontecer de um modo que varia desde comentários insinuantes até
aquelas atitudes de repulsa e xingamentos explícitos –, na mídia, em
alguns órgãos públicos e privados, muitas vezes caracterizando um
posicionamento institucionalizado, como foi o caso dos estudantes
em Antônio João, e por aí afora. A mídia sul-mato-grossense tem sido
majoritariamente um veículo para desqualificação dos índios. Em
dezembro de 2008, um advogado e articulista publicou o artigo “Índios
e o retrocesso”,15 em que questiona a demarcação de terras indígenas em
Mato Grosso do Sul. No texto ele afirma:

Quanto a mim, sou daqueles que comungam com o mesmo


pensamento, pois no século vinte e um, são bem poucos os
indígenas que podem ser tipificados como selvagens. Portanto,
a preservação de costumes que contrariam a modernidade, são
retrocessos e devem acabar. Quanto a uma civilização indígena
que não deu certo e em detrimento disso foi conquistada pela
inteligência cultural dos brancos, também é retrógrada a atitude
de querer preservá-la.16 (BARROS JÚNIOR, 2008).

15
O texto do jornal O Progresso, de Dourados, foi bastante criticado à época pelo
discurso altamente discriminatório. O Ministério Público Federal denunciou o advogado
por ofensa e incitação à discriminação e ao preconceito. Ele foi condenado por crime
de preconceito a dois anos de reclusão, em 2011, mas essa a pena foi substituída por seis
horas semanais de prestação de serviços à comunidade durante dois anos e mais uma
multa insignificante.
16
Trecho do texto de Isaac Duarte de Barros Júnior publicado no jornal O Progresso, de
27 de dezembro de 2008.
Discriminação, impasses sociais em Mato Grosso do Sul e o bem-viver kaiowa e guarani 217

Assim temos, de um lado, comportamentos discriminatórios bas-


tante frequentes, por parte da população sul-mato-grossense e, de outro
lado, pode-se constatar que uma boa parte do conhecimento e experiên-
cia do mundo das gerações Kaiowá e guarani mais velhas, dos pais, avós
e bisavós, se ajusta mal, ou não se ajusta, a essa realidade contemporâ-
nea. A terra perdeu fertilidade, pois a agricultura de coivara tornou-se
impraticável; não há ingredientes para formular remédios caseiros; não
há lenha suficiente para produzir alimentos no fogo de chão; não há es-
paço suficiente nas aldeias para evitar conviver com as pessoas que não
se deseja; etc. Assim, as gerações mais velhas que deveriam articular suas
parentelas, acabam por comer alimentos que dizem ser inadequados, bri-
gar com frequência, adotar certos costumes dos brancos que eles mesmos
consideram inapropriados. Não bastasse isso, muitos acabam abusando
das bebidas alcoólicas, talvez para afastar a tristeza ou esquecer o presen-
te. Arduamente podem demonstrar o que dizem a respeito do bem-viver
em ações diárias, perdendo o respeito aos olhos dos jovens.
Nos períodos que estive na TI Caarapó, ouvi inúmeras vezes
queixas de que os jovens Kaiowá e guarani já não respeitam os mais
velhos e não querem ouvir conselhos. Conforme Pereira (2014), as
pessoas que eles procuram orientar dividem a atenção com outras
influências e relações estabelecidas com os não índios. Mas não se pode
responsabilizar este ou aquele segmento da população. De fato, estamos
diante de um processo maior que inibe a atualização de certas práticas
culturais com efeitos sobre o bem-estar coletivo. E o aconselhamento
é uma dessas práticas que enfraqueceu, eu creio, não apenas por
desinteresse, mas também porque para os Kaiowá e Guarani não basta
orientar, é preciso mostrar, dar o exemplo com atitudes.
O que nos interessa daí é apreender uma situação desfavorável
que atinge os povos Kaiowá e guarani como um todo, decorrente de
um processo que perdura no presente. Minha hipótese, nessa análise
preliminar, é que as gerações mais jovens precisam lidar com essa
dupla desvalorização – aquela que se expressa na discriminação e
a que se origina dessa mudança radical no modo de vida. Assim,
essas experiências vão se retroalimentando, tornando as referências
socioculturais cada vez menos valorizadas.

Considerações finais

Procurei demonstrar que estamos diante de um processo


etnocida que afeta os Kaiowá e Guarani. Por viverem em maioria
Políticas públicas: reflexões antropológicas 218

confinados em pequenas áreas superpopulosas, com recursos


ambientais extremamente escassos e em um padrão de relações
entre si impelido pelo Estado, os prejuízos sociais são enormes.
As consequências marcantes nos dias atuais são a dissolução das
redes de reciprocidade que uniam as parentelas e o retraimento do
xamanismo na organização econômica e política dos tekoha e entre
os tekoha. Assim, constatamos que para desenvolver ações de longo
alcance, no que diz respeito ao campo da saúde mental, é preciso ter
em vista a dimensão estrutural dos problemas que eles enfrentam e o
transbordamento das diferenças no interior do seu sistema social.
As mudanças mencionadas neste artigo, no que diz respeito
à dimensão ambiental, são praticamente irreversíveis. Contudo, é
possível reverter o mal-estar vivenciado pelos Kaiowá e Guarani.
Tudo indica que os impasses sociais vão perdurar no futuro próximo,
portanto, tornam-se urgentes políticas públicas específicas que visem
ao fortalecimento de seu corpo social, tais como políticas sanitárias,
educacionais, culturais, fundiárias, entre outras já comentadas nos
parágrafos precedentes. Esta contextualização antropológica sugere
que é essencial desenvolver um conjunto de ações, direcionadas não
somente à população Kaiowá e guarani, mas, considerando-se os
efeitos da discriminação, tais políticas precisam abarcar a população
sul-mato-grossense como um todo.

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Povos indígenas e políticas públicas
no Brasil: os Xavánte e o Programa
Nacional de Alimentação Escolar

Renata da Cruz Gonçalves


Maurício Soares Leite

Introdução

O Estado brasileiro vem progressivamente reconhecendo, por


meio dos textos oficiais que definem e orientam políticas públicas
em saúde, a diversidade sociocultural da população brasileira e
incorporando o respeito à diversidade cultural como diretriz específica
(LANGDON, 2007). No campo da alimentação e nutrição, a aplicação
de uma perspectiva de direitos humanos às questões alimentares e
nutricionais no país, oficialmente reconhecida e descrita como a do
“Direito Humano à Alimentação Adequada”, vem propondo o respeito
à diversidade sociocultural, principalmente a partir dos anos 1990
(LEÃO; CASTRO, 2007; VALENTE et al., 2007; BURLANDY, 2011).
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) constitui,
particularmente, um exemplo de tal trajetória.
Em vigor desde os anos 1950, passando por diversas mudanças
desde então, o PNAE tem, em sua versão mais recente, a proposta de
respeito à diversidade sociocultural entre suas diretrizes (BRASIL, 2009a;
2009b). No que se refere a minorias étnicas, especificamente à parcela
indígena das escolas atendidas, em 2003 é proposta e considerada “a
necessidade de se oferecer alimentação saudável e adequada, respeitando-
Políticas públicas: reflexões antropológicas 222

se os hábitos alimentares e culturais particulares de cada etnia”


(BRASIL, 2003, p. 2, grifo nosso). Com tal proposição, o Programa
se comprometeria a atender, de forma diferenciada, as especificidades
daquilo que são, atualmente, nada menos que 305 etnias oficialmente
reconhecidas no Brasil (IBGE, 2012). Essa amplitude, por si só, tornaria
essa proposta, no mínimo, desafiadora e de difícil execução.
As dificuldades não se limitam à expressão e diversidade do uni-
verso representado pelos povos indígenas no país. Estudos sobre o PNAE
em contextos indígenas vão, gradativamente, delineando a complexidade
da proposta e os impasses à sua adequada execução, em estudos de
caso específicos (ALVARES, 1999; OLIVEIRA, 2009; VERONA, 2009;
GIORDANI et al., 2010). Através de uma análise crítica e epistemológica
do Programa, Leite (2010, 2012a) chega a descrever como “paradoxais”
os termos de documentos que o norteiam, no que concerne à diretriz
do respeito à sociodiversidade. Como considera o autor, isso acontece
na medida em que o “respeito” a essas particularidades é submetido, em
uma relação de anterioridade obrigatória, à própria definição biomédica
sobre o que é e o que torna a “alimentação saudável e adequada”. Assim,
o conjunto de desafios práticos e teóricos à implementação da proposta
aponta possivelmente para a fragilidade do diálogo entre o que seriam
distintas epistemologias sobre temas como “comida”, “saúde”, “corpo” e
“sociedade”, temas estes especialmente caros à própria especificidade
analítica dos povos indígenas sul-americanos.1
Dando continuidade à essa perspectiva crítica, este artigo
mantém como foco as nuances que permeiam tanto os termos em
que é formulado esse “projeto” como sua própria execução, através de
um estudo etnográfico sobre as diversas perspectivas envolvidas na
alimentação escolar xavánte; leiam-se aquelas propriamente do Estado
tanto quanto aquelas dos indígenas. Busca-se, com isso, estabelecer um
diálogo produtivo entre a antropologia e as políticas públicas direta
ou indiretamente relacionadas à saúde no país, mais especificamente
aquelas destinadas aos povos indígenas.
Dessa forma. e em termos mais amplos, as reflexões aqui descritas
fazem parte de uma linha de pesquisa que vem sendo desenvolvida na
última década (LEITE, 2004, 2007, 2010, 2011, 2012b; LEITE; ATHILA,
2009, 2010; LEITE; DIEHL, 2012), sobre alimentação, nutrição,
transformações, condições de saúde e a atenção à saúde indígena no país.
No âmbito do Instituto Brasil Plural, a linha de pesquisa está inserida na

Cf. LANGDON, 1974; OVERING, 1977; SEEGER et al., 1979; CASTRO, 1996.
1
Povos indígenas e políticas públicas no Brasil 223

“Rede Saúde”/“Autoatenção e Políticas Públicas: contextos locais, práticas


e experiências”. Este capítulo é, assim, fruto dessa linha de reflexões.
Mais especificamente, ele procura sumarizar alguns dos resultados da
dissertação de Mestrado de Renata da Cruz Gonçalves no Programa de
Pós Graduação em Nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina,
então realizada sob a orientação de Maurício Soares Leite.

A pesquisa

Em termos mais amplos, o alcance de uma diretriz que


proponha o respeito à sociodiversidade no âmbito das políticas
públicas direcionadas aos povos indígenas vem sendo descrito como
um grande desafio – tanto para gestores como para seus executores
– em diferentes áreas (LEITE et al., 2007; LANGDON; WIIK, 2010;
MALUF, 2010; GUGELMIN, 2011). Isso somado à presença do PNAE
em 84% das comunidades indígenas aldeadas em todo o país (BRASIL,
2010) nos motivou a examinar, no contexto de uma escola indígena
xavánte, as particularidades locais e os desdobramentos da proposta
estatal de respeito à diversidade cultural no âmbito desse programa.
O caso xavánte incluía dois aspectos fundamentais para o
entendimento desse tipo de proposta: em primeiro lugar, o fato
de a alimentação constituir um campo fértil para as intervenções
governamentais em saúde; em segundo lugar, a chamada “população-
alvo”, como usualmente a literatura biomédica se refere àqueles a quem
se destinam intervenções ou programas de saúde. Por se tratar de uma
etnia indígena, era também o exemplo evidente, para o senso comum,
da alteridade e da especificidade socioculturais referidas por diversos
textos oficiais das políticas de saúde no país. O exame do caso xavánte
nos traria elementos, desse modo, para o entendimento dos termos
em que se concretiza a proposta oficial de contemplar, no âmbito de
um programa de amplitude nacional, as especificidades socioculturais
da população brasileira – o que quer que isso significasse para os
idealizadores e gestores e demais atores envolvidos em sua execução.
Tratou-se, assim, de um estudo de cunho etnográfico, baseado
em métodos e técnicas de pesquisa antropológica, como a observação
participante e relações com informantes-chave (OLIVEIRA, 1998). O
trabalho envolveu visitas à Secretaria Municipal de Educação (SME) do
município de Campinápolis, em Mato Grosso, quando foram realizadas
entrevistas abertas com membros da gestão do programa e também do
Políticas públicas: reflexões antropológicas 224

Conselho de Alimentação Escolar (CAE) Municipal, instância do seu


controle social. Além disso, houve a permanência da pesquisadora em
uma aldeia xavánte, na Terra Indígena (TI) Parabubure. A pesquisa
de campo foi realizada entre maio e junho de 2012, período no qual a
investigadora viveu em um domicílio xavánte.
Durante o trabalho de campo na aldeia, como requerido aos
estudos antropológicos, a pesquisadora partilhou tanto o cotidiano da
comunidade como, mais especificamente, aquele da escola situada na
aldeia. Para além dessas experiências, registradas em diários de campo,
foram realizadas entrevistas informais com atores-chave que, durante
o trabalho de campo, iam sendo identificados e selecionados. Entre
os interlocutores indígenas na escola estavam a merendeira, o diretor,
alguns dos professores e membros da comunidade, todos Xavánte e
moradores da aldeia. Havia um representante xavánte no CAE, que
também foi entrevistado.
É preciso mencionar que a coordenação pedagógica da escola
ficava a cargo de um profissional não indígena. Entre os interlocutores
não indígenas envolvidos com a gestão/coordenação (sob a responsa-
bilidade da SME), estavam dois coordenadores, sendo um deles também
membro do CAE.
A gestão do PNAE do município de jurisdição da TI
Parabubure, Campinápolis, adotava a modalidade “centralizada” para
a operacionalização nas escolas municipais sob sua responsabilidade,
entre elas as escolas indígenas. Isso significa que as secretarias de
educação ou prefeituras recebem os recursos monetários e ficam por eles
responsáveis, administrando-os e posteriormente realizando a prestação
de contas junto ao órgão federal. Essas entidades são, portanto, aquelas
formalmente responsáveis pela aquisição, distribuição dos alimentos e
pela elaboração dos cardápios (BRASIL, 2009b).
À época da pesquisa, a coordenação da alimentação escolar na
SME era composta por um coordenador geral e um outro coordenador
exclusivamente dedicado às escolas indígenas. No momento da pesquisa,
não havia nutricionista atuando naquela secretaria. A entrega dos
alimentos nas escolas indígenas era realizada bimestralmente, estando
sob a responsabilidade de um dos coordenadores.

Sobre os Xavánte

Pertencentes ao tronco linguístico macro Jê, os Xavánte se


autodenominam A’uwẽ Uptabi – o que significa “povo verdadeiro”
Povos indígenas e políticas públicas no Brasil 225

(MAYBURY-LEWIS, 1984). O estabelecimento do contato definitivo


dos diversos subgrupos xavánte com a sociedade nacional envolvente
se deu ao longo da década de 50 do século XX. Em 2013 totalizavam
cerca de 17.400 indivíduos, distribuídos em 12 Terras Indígenas (TI)
oficialmente reconhecidas e/ou em processo de reconhecimento
(ISA, 2012; SIASI, 2012, 2014). As TIs estão situadas ao leste do
Mato Grosso, região de cerrado que vem, historicamente, sofrendo
consequências ambientais principalmente pelo avanço da monocultura
de soja, algodão, milho e da pecuária (WELCH et al., 2014). O estudo
foi realizado na aldeia São Pedro, na TI Parabubure. Essa TI foi
homologada oficialmente em 1991, com uma extensão de 224.447
hectares, perpassando grande parte do município de Campinápolis e
uma pequena parte no município de Água Boa, ambos no estado do
Mato Grosso (BRASIL, 1991). De um conjunto de aproximadamente
100 aldeias na TI, a aldeia São Pedro era em 2010 a mais populosa,
totalizando 70 famílias e 330 habitantes (SIASI, 2012).

“Comida Xavánte”, “comida da escola”: divisões,


transformações e demandas contemporâneas

As intensas transformações na alimentação xavánte, observadas


por diversos autores nas últimas décadas (VIEIRA FILHO, 1997;
GUGELMIN; SANTOS, 2001; LEITE et al., 2003), têm-se constituído
em uma questão relevante também para os Xavánte de São Pedro.
Ali, tanto quanto apontavam para uma valorização dos produtos de
uso “tradicional”, procuravam também adquirir, consumir e mesmo
produzir alimentos introduzidos a partir dos primeiros contatos com
não indígenas. Havia, notadamente entre os mais velhos, uma ênfase no
valor dos alimentos provenientes de expedições de caça e coleta e dos
produtos da roça, a despeito de sua presença na alimentação cotidiana
ser frequentemente mencionada como cada vez menor.
A caça, praticada em diversas modalidades, sempre representou
uma atividade central à sociocosmologia xavánte e tem sido francamente
atingida pela expansão agrícola predatória, de impacto importante
sobre o “frágil” ecossistema do cerrado (WELCH et al., 2014, p. 186).
A carne, em geral, é classicamente descrita como o alimento “por
excelência” e preferencial (MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 79), enquanto a
coleta de raízes, cocos e frutas chegou a ser considerada como a base de
sua alimentação (MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 87), na medida em que
Políticas públicas: reflexões antropológicas 226

seriam particularmente concebidas como alimentos “particularmente


benéficos à saúde” (WELCH et al., 2014, p. 109, grifo nosso).
Durante a pesquisa, os alimentos consumidos no quotidiano
da aldeia eram fundamentalmente provenientes da compra na cidade
e, em menor proporção, da agricultura familiar, coleta, caça e pesca.
Parte dos adultos mais jovens associava as mudanças na alimentação a
mudanças mais amplas na vida dos Xavánte, como visto na fala de um
homem adulto, de 35 anos:

As coisas na vida do Xavánte tá mudando. Os mais novos não


querem mais raiz do mato. Não faz mais parte da vida. A criança
já tem outras escolhas, outras prioridades, outra vida... Ela não
vive no passado dos velhos [...] Eu devia comprar alimento do
mato. Só que eu compro na cidade... A vida mudou. (Xavánte,
morador da aldeia).

Essa noção, que contrasta a alimentação adotada em um ou outro


momento do tempo, era também evocada por muitos dessa geração,
quando o assunto era especificamente a alimentação na escola:

Eu vou falar pra colocar raiz e coquinho na merenda? Não vou,


nem eu gosto. Não tem mais lugar no dia a dia, na vida do Xavánte
de hoje. Na escola também não. Pai e mãe vão para a cidade fazer
compra, a comida vem de lá também. Eles querem fazer assim! Só
os velhos buscam alguma raiz. (Xavánte, diretor da escola).

Os Xavánte descreviam as escolas como ambientes essencialmente


não indígenas, embora frequentados por eles e formalmente destinados
a eles. Nessa medida, a presença de alimentos descritos por eles como
“dos brancos” era esperada. Ao mesmo tempo, vale assinalar que hoje,
cerca de 60 anos após o estabelecimento de contato definitivo com não
índios, a presença de itens alimentares de introdução recente é cada vez
mais frequente e valorizada, seja através da alimentação escolar, seja
nas idas a Campinápolis e outros centros urbanos. Se o acesso a esses
alimentos pode ser, em termos gerais, descrito como recente na história
xavánte e de outros povos indígenas no país, para mais de uma geração
de indivíduos xavánte tais alimentos estão presentes em suas vidas desde
que nasceram, fazendo parte de seu repertório alimentar.
Este exemplo indica que, em escolas indígenas, uma alimentação
que considere suas particularidades socioculturais inevitavelmente
irá lidar com a incorporação contemporânea de alimentos ditos “não
Povos indígenas e políticas públicas no Brasil 227

tradicionais” ao seu sistema alimentar. Assim, a oposição “comida


indígena versus comida não indígena” ou “tradicional versus não
tradicional” nem sempre esgota ou contempla adequadamente as
dinâmicas de incorporação de novos elementos aos sistemas alimentares
nativos (LEITE, 2007; VERONA, 2009).
Essas particularidades colocam em questão exatamente a
proposta estatal de respeito às especificidades socioculturais, claramente
formulada no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)
e estritamente associada a determinadas concepções de “cultura” e
“tradição”. Vale assinalar que, nos termos em que é proposta, ela não
se limita aos povos indígenas, mas se estende a qualquer segmento da
população brasileira. As concepções que permeiam as políticas públicas
de alimentação e nutrição, usualmente nos remetem a uma visão
estática e cristalizada da “cultura”, informada por uma noção romântica
do passado, o que tem resultado, conforme aponta Leite (2010), em
uma proposta reiterada de resgate de práticas que o Estado ou alguma
entidade exógena à coletividade considera “tradicionais”, conquanto
sejam elas também consideradas “saudáveis”. Não surpreendentemente,
no caso de povos indígenas, ela será associada a práticas reconhecidas
ou descritas como indígenas, mas tão somente no plano textual do
programa.
A proposta está registrada em dispositivos legais, como a Lei
no 11.947, que prevê o “emprego da alimentação saudável e adequada,
compreendendo o uso de alimentos variados, seguros, que respeitem
a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis” (BRASIL,
2009a, grifo nosso), e na Resolução/FNDE no 45/2003, que considera a
necessidade de respeito aos “hábitos alimentares e culturais particulares
de cada etnia” (BRASIL, 2003, grifo nosso).
Conforme sugerimos, essas definições podem ser problemáticas
bem como guardar contornos e definições que, do ponto de vista do
Estado, poderiam ser consideradas antagônicas. Entre os Xavánte, o
desafio de pensar o caráter dinâmico das particularidades socioculturais
emerge nas falas sobre a alimentação fornecida pela escola: “[...] tem
coisa que eu acho errado. As crianças gostam de repolho, de tomate,
milho-branco... Mas não vêm por quê? Por que só vem arroz, arroz,
arroz? Tem outra coisa também: o frango também não vem (Xavánte,
diretor da escola, grifo nosso).
O diretor apresentava um tipo de demanda que dificilmente
seria entendida por gestores do PNAE como “indígena”, ao solicitar
itens alimentares que dificilmente seriam descritos, no senso comum
Políticas públicas: reflexões antropológicas 228

ou mesmo no âmbito de políticas públicas, como de uso “tradicional”,


como o frango. Como visto na fala acima, os Xavánte questionavam,
inclusive, a marcante diferença entre o que esperavam receber e o que a
prefeitura disponibilizava à escola.
O cardápio adotado, vale mencionar, poderia ser considerado
inadequado tanto à luz de uma alimentação “tradicional” – “só arroz” –,
quanto às expectativas sustentadas pelos Xavánte em torno da
alimentação escolar ideal. Ao mesmo tempo, contudo, os profissionais
da Secretaria Municipal de Educação (SME) pareciam não reconhecer
os questionamentos indígenas sobre a pouca variedade de itens. Nesse
momento, a “cultura” podia ser acionada como justificativa daquela
precariedade. O atributo de “aquiescência” dos indígenas era vertido
em uma espécie de pseudocompreensão sobre seu “modo de ser” e
suas “preferências alimentares”, como ilustra a seguinte fala: “[...] eles
[os Xavánte] se contentam com pouca variedade... Se servir só arroz
com macarrão já tá bom. Gostam de carne, muito... Mas do resto não
reclamam, sobre a variedade e essas coisas... (Não indígena, profissional
da SME, grifo nosso).
Entre os profissionais da SME, era generalizada a ideia de que
os Xavánte gostavam pouco de verduras e frutas. O mesmo não era
dito sobre a carne, que era reconhecida como uma preferência. Sobre o
assunto, um profissional da SME explicou:

Não vai verdura para as aldeia, não tem como guardar... carne
também não tem como guardar, ainda não temos como mandar...
e, mesmo assim, eles não são muito chegados em verdura.
A gente tenta melhorar a alimentação deles, mas não aceitam
muita variação... Eles não gostam de verdura, legumes... É de carne
que eles gosta... Se mandar verdura eles vão jogar tudo fora. (Não
indígena, profissional da SME, grifo nosso).

Em última instância, o caso xavánte aponta para a existência


de uma desigualdade marcante, ao nível regional, entre a alimentação
escolar indígena e não indígena. Às dificuldades de ordem logística que
indiscutivelmente representam complicadores à gestão do PNAE entre
povos indígenas, somam-se também, com efeitos expressivos sobre
sua alimentação escolar, relações interétnicas desiguais, marcadas por
equívocos compreensivos e preconceitos. Isso resultará, igualmente,
em “equívocos” alimentares que em tudo demonstram a completa
inadequação da alimentação escolar às perspectivas que os Xavánte
possam ter sobre ela, como veremos a seguir.
Povos indígenas e políticas públicas no Brasil 229

“Soja não é carne”: a queima da proteína texturizada


de soja no Warã

Um evento paradigmático e repetidamente narrado por diferentes


tipos de interlocutores era relativo aos conflitos ocasionados pelo
envio de soja para a alimentação escolar ocorrido na aldeia São Pedro,
anteriormente à realização da pesquisa.
Vale recordar que o envio de soja para as escolas da rede pública
brasileira foi uma estratégia adotada pelo modelo de gestão que o PNAE
assumia na época dos anos 1960. Tal modelo era marcado, entre outros
aspectos, pelo recebimento de excedentes de cereais e soja doados
por agências internacionais, sendo assim incluídos nos cardápios dos
escolares (STEFANINI, 1997). Depois daquela década, a utilização de
produtos à base de soja alcançou grandes proporções e seu consumo nas
escolas foi incentivado nacionalmente, repercutindo até a atualidade,
especialmente na forma do chamado “leite aromatizado” de soja.
Ressaltamos que a região em que estão situadas as TIs xavánte, ao leste
do Mato Grosso, vem sofrendo graves consequências socioambientais,
principalmente pelo avanço da monocultura de soja, sendo marcada
por intensos conflitos resultantes do cercamento dessas TIs por grandes
fazendas (WELCH et al., 2014).
A soja, na forma de “proteína texturizada”, fora enviada para as
escolas municipais indígenas de Parabubure com o intuito de oferecer aos
escolares proteínas por meio de um alimento que poderia ser facilmente
transportado e armazenado. Em São Pedro, os Xavánte se recusaram
terminantemente a comê-la. Depois de muitos protestos, sem que fossem
atendidos, decidiram queimar a soja no centro da aldeia, no Warã, o
conselho xavánte de reuniões dos homens adultos e de tomada de decisões
nos assuntos que afetam a coletividade (MAYBURY-LEWIS, 1984).
O diretor da escola, Xavánte, faz a seguinte narrativa sobre o
evento, que extrapolou a escola, atingindo o próprio espaço comunitário:

[...] Uma vez veio uma carne de soja, a gente não conhecia e
ninguém gostou. Rejeitamos muito e não queremos mais. Fizemos
documento pra parar, pedimos, pedimos e continuou vindo mais,
mais, mais. Os velhos também ficaram bravos e fizemos reunião
com a comunidade. A gente reuniu tudo e queimamos tudo lá no
meio da aldeia. (Xavánte, diretor da escola).

Em patente contraste e desacordo com as formulações xavánte,


os profissionais não indígenas, os mesmo que em outras ocasiões
Políticas públicas: reflexões antropológicas 230

pareciam reconhecer a centralidade da carne para seu sistema alimentar,


frequentemente descreviam o acontecimento como um “absurdo”, um
“desperdício de comida”. Passando ao largo de qualquer consideração de
ordem sociocultural ou soberania alimentar xavánte, criticavam o que
caracterizavam como um “não entendimento” dos Xavánte diante da
suposta importância “nutricional” do item. Afinal, como a carne, a soja
seria também “proteína”:

Na época que compramos a carne de soja, a nutricionista que


tinha aqui foi junto para ensinar o preparo, mas mesmo assim
não foi aceito. A soja é uma opção para suprir as proteínas que
as crianças precisam. Era isso que a nutricionista tentava ensinar
para eles, mas não teve jeito... Eles avisaram que iam jogar fora...
Nós tentamos por um tempo, mas não deu. Na São Pedro mesmo,
que eles entendem mais, por causa do trabalho que as missionárias
fazem, eles rejeitaram muito... Fizeram até uma fogueira lá, com
plástico e tudo... Imagina só! (Não indígena, profissional da SME).

Se de um lado o evento da queima da soja constitui um caso


emblemático para representar a inadequação da alimentação escolar
sob a ótica dos Xavánte, por outro lado caracteriza um dos desafios
encontrados pelos profissionais que atuam na gestão do Programa
naquele contexto. Para a gestão, o alcance das recomendações
nutricionais propostas pelo PNAE materializava-se em problema
diante da estrutura local disponível, como a falta de eletricidade e
equipamentos para armazenar gêneros alimentícios perecíveis. A
tentativa de introduzir a proteína de soja apresentava-se como uma
possibilidade resolutiva de parte do problema. Fundamentalmente de
ordem “logística” e “nutricional”, a justificativa para sua adoção não
parecia evocar ou sequer tangenciar qualquer reflexão acerca da diretriz
da PNAE com relação ao respeito aos hábitos alimentares locais.

O Conselho de Alimentação Escolar (CAE)

De acordo com a legislação federal, os CAEs são órgãos de


caráter fiscalizador, permanente, deliberativo e de assessoramento.
Eles devem ser constituídos, em cada instância, por um representante
indicado pelo Poder Executivo; dois representantes das entidades de
trabalhadores da educação e de discentes; dois representantes de pais e
alunos e dois representantes indicados por entidades civis organizadas
Povos indígenas e políticas públicas no Brasil 231

(BRASIL, 2009a). A não constituição do CAE apresenta-se inclusive


como justificativa para a suspensão do repasse de verbas do FDNE para
os estados, o Distrito Federal ou para os municípios.
No entanto, a atuação do CAE do município apresentava grandes
limitações, as quais ficaram mais visíveis pelo fato de os interlocutores
indígenas da aldeia São Pedro desconhecerem as atividades do
Conselho. O CAE não alcançava a comunidade para fazer seu papel de
facilitador – enquanto espaço de debates, de troca de informações, de
fortalecimento da participação da comunidade. Na composição atual
do CAE, existia apenas um representante indígena que, assim como os
demais conselheiros, estava envolvido em outras tantas atividades, o que
parecia limitar as reuniões com diretores e representantes das escolas
indígenas. Além disso, à época da realização da pesquisa, as atividades
do CAE estavam temporariamente suspensas, segundo os informantes,
porque a prefeitura estava sob auditoria fiscal.
O diretor da Escola São Pedro mostrou-se surpreso quando
perguntado sobre o trabalho do CAE, dizendo desconhecer o trabalho
da atividade do Conselho: “Não conheço esse Conselho (CAE). Quero
saber, conhecer, mas nunca ouvi falar. Eu quero falar da comida também,
mas ninguém convida, não sei como estão pensando as coisas, nunca
perguntam nada” (Xavánte, diretor da escola).
O representante xavánte no CAE referia a dificuldade de
conhecer e representar os interesses das comunidades atendidas pelo
PNAE. Eram 51 escolas municipais indígenas, nas quais a modalidade
de ensino variava da pré-escola até o ensino fundamental, com um total
de 1.320 alunos matriculados. Existiam ainda escolas estaduais na TI,
estando vinculadas ao estado do Mato Grosso. O representante indígena
do CAE descrevia a sua atuação e assumia a dificuldade de aproximação
e vínculo com todas as escolas das aldeias:

Eu não gosto de dar a minha opinião individual... Eu gosto de ouvir


a ponta e trazer a opinião construtiva para o Conselho. Tanto os
pontos positivos quanto os negativos também. Tudo para construir
e melhorar. Sempre quero ouvir se estão aceitando a merenda...
O que estão achando sobre tudo, mas também tenho dificuldade
de reunir com todo mundo e de fazer visita. (Xavánte,
representante indígena no CAE municipal, grifo nosso).

Ao mesmo tempo, há que se assinalar que o modelo de


participação no CAE, baseado na representação das comunidades por
indivíduos escolhidos, compondo os conselhos, tem pouca ou nenhuma
Políticas públicas: reflexões antropológicas 232

correspondência com a organização política e o conhecido faccionalismo


xavánte.2 Não se trata aqui, assinale-se, de a organização política xavánte
resultar em problemas para a atuação do CAE, mas do inverso, isto é, de
uma estrutura proposta de controle social não se adequar e, em última
instância, ignorar as formas nativas de organização.

“Muito além do nutricional”: a partilha da alimentação


escolar e os modos de comer das crianças na escola

Não apenas a seleção de itens para a alimentação escolar


representaria inadequações, sob a perspectiva dos Xavánte, mas também
as formas de comensalidade e critérios de partilha de alimentos. Ou
seja, não se tratava apenas de “o que” comer, mas também de “como” e,
sobretudo, “com quem” comer. Nos primeiros dias do trabalho de campo,
a alimentação escolar era, no máximo, partilhada com os funcionários
e oferecida à etnógrafa. Apenas no decorrer dos dias passou a ser visível
que alguns idosos iam até a escola com vasilhas para recolher comida.
Logo que os idosos chegavam, prontamente os mais novos cediam sua
vez na fila e a merendeira os servia, sem nenhuma hesitação.
Entre os alunos, no momento das refeições, era possível perceber
duas outras situações, de certo modo surpreendentes, que demonstravam
também o papel fundamental da partilha de alimentos para os Xavánte:
alguns levavam comida para suas casas no momento em que era servida
e outros buscavam a comida quando não estavam em seu turno de aula.
A prática da partilha de alimentos era amplamente valorizada entre os
Xavánte, e isso claramente estendia-se ao ambiente escolar.
No entanto, parecia haver certo receio, por parte dos Xavánte,
em tratar dessa questão, principalmente nos primeiros dias de
pesquisa. Aos poucos ficou claro que o receio se baseava na clareza
que possuíam acerca do olhar negativo de não indígenas com relação à
partilha da alimentação escolar com outros membros da comunidade.
Para a gestão local do PNAE, uma das grandes preocupações com a
prática era a possibilidade de os alimentos não chegarem aos escolares,
público-alvo do Programa.
A prática nativa era entendida, assim, como um obstáculo para
a gestão do PNAE, na medida em que se tratava de gêneros e recursos

2
Sobre o faccionalismo xavánte, ver Maybury-Lewis (1984), Silva (1986), Delgado
(2008).
Povos indígenas e políticas públicas no Brasil 233

obviamente limitados e que não poderiam ou deveriam ser estendidos a


toda a comunidade. Entretanto, essas comunicações e intersecções entre
o espaço doméstico e aquele escolar, se indesejáveis pela SME, afirmavam-
se como irremediáveis para os indígenas. Nesse sentido, apresentava-se
à gestão uma espécie de dilema, em que o cumprimento de um de seus
objetivos – o fornecimento de alimentação ao público escolar – poderia
ser inviabilizado justamente pelo cumprimento de outra das diretrizes
do PNAE – o respeito às especificidades socioculturais locais. Trata-se
aqui de um dilema enfrentado também em outros contextos indígenas
(TRUJILLO BANIWA, 2012).
No caso xavánte, assim como acontece entre outros coletivos
indígenas, vale reafirmar que a prática da partilha de alimentação
escolar se dava entre eles próprios, de forma comunitária e quotidiana,
e não do “favorecimento” de indivíduos específicos, em detrimento
dos estudantes. Dentro dessa lógica relativamente coletiva e que abarca
o espaço escolar, o consumo de alimentos da escola por membros da
comunidade que não a frequentavam, embora inadequado do ponto de
vista de formuladores e executores do Programa, deve ser entendido a
partir da ótica xavánte. O mesmo se aplica a uma esperada circulação dos
alimentos destinados à comunidade, notando que o estudo demonstra
que ela inclui e acontece também através da escola.
A importância tanto da partilha de alimentos quanto da
comensalidade para os Xavánte já foi discutida por etnógrafos como
Maybury-Lewis (1984). Conforme a sua descrição, ainda que a partilha
obedeça a determinados critérios, não sendo exatamente generalizada,
ela pode envolver diversos segmentos sociais, como companheiros de
clãs, de facção ou mesmo parentes de diferentes clãs. Todos eles podem,
e geralmente têm, alguma modalidade de “direito” aos alimentos uns
dos outros (MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 241).
Giaccaria e Heide (1972) destacaram, igualmente, a importância
da reciprocidade nas relações sociais entre grupos e domicílios xavánte,
que estimula e praticamente obriga a circulação de diversos tipos de
“bens” pela coletividade. Comportamentos como “comer sozinho” ou não
ser “mutuamente generoso” (MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 150) podem
representar uma grave violação dos ideais de sociabilidade nativos,
acirrando conflitos potenciais entre diferentes segmentos sociais. Ao
chegarem à aldeia, independentemente de serem provenientes de dons
“privados” realizados a “pessoas” ou por parte de instituições, seguindo
a etiqueta social recomendada, os alimentos acabavam por circular por
diferentes domicílios e grupos de parentes.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 234

Neste ponto cabe, mais uma vez, uma reflexão sobre a


capacidade e os desafios do PNAE em lidar com as especificidades
socioculturais de povos indígenas. Eles não se limitam, simplesmente,
a uma escolha adequada de itens particulares do repertório alimentar
xavánte, mas também deveriam contemplar as concepções, práticas e
etiquetas sociais em torno da partilha e comensalidade, indissociáveis
do domínio propriamente alimentar.
Este ponto específico, efetivamente, tem sido considerado
pela SME como um imenso obstáculo ao planejamento dos recursos
necessários às unidades escolares indígenas, realizado de acordo com
o número de estudantes. O profissional responsável pela entrega dos
alimentos nas escolas da TI explicava o caso, destacando a preocupação
com as crianças:

Na maioria das aldeias, a merenda não fica na escola, eles levam


pra casa. Isso é deles e não tem jeito, tem pouca aldeia, umas
cinco ou seis, que guarda e faz a merenda na escola. Nas outras,
vão pra casa, alguns dizem que distribuem só entre famílias de
alunos, mas a maioria distribui com toda a aldeia mesmo... E aí o
aluno nem come da comida que vai. (Não indígena, profissional
da SME, grifo nosso).

A não aceitação do exercício das práticas nativas no espaço


escolar por parte dos não indígenas foi também observada por Alvares
(1999) entre os Maxakali de Minas Gerais. Em determinada ocasião,
os professores indígenas foram orientados a coibir que familiares dos
alunos e demais membros da comunidade fossem para a escola comer
e a observar que a comida seria destinada exclusivamente aos alunos
matriculados, que deveriam comer sozinhos na escola. Alvares (1999)
frisa que tal atitude ocasionou protestos entre os Maxakali, pois a
partilha de alimentos era uma das regras básicas de sociabilidade para
aquelas pessoas. Com o passar do tempo, a comunidade foi adaptando
essa normativa aos moldes nativos:

Se a família não pode mais vir à escola para comer com os seus,
o alimento vai às famílias, através das crianças, para que seja
partilhado com os parentes. A partir de então, todas as crianças
trazem consigo um saquinho plástico, onde colocam a merenda
recebida, depois de comerem um pouco na escola, e a levam para
casa no final da aula. (ALVARES, 1999, p. 3).
Povos indígenas e políticas públicas no Brasil 235

Para além da partilha da alimentação escolar, as “maneiras à


mesa” no momento da refeição, no sentido analisado por Lévi-Strauss
(2006), também ilustravam a relação contrastiva entre as práticas e
formas de consumo xavánte e aquelas dos brancos. Não raro, elas são
hierarquicamente concebidas, sendo as práticas xavánte não reconhecidas
enquanto “modos de comer” legítimos e que, portanto, deveriam ser alvo
de “aprendizagem”. Esses “modos”, além de alvo de critérios sociais formais
– por mais que comer sentado ao chão, ou em bancos, com ou sem o
uso de “talheres” ou outros objetos mediadores, possam sugerir aos não
indígenas uma ausência de “modos” –, podem também variar de acordo
com “aquilo” que se está consumindo ou mesmo com “quem” se está
consumindo, se mulheres ou homens, adultos, velhos ou crianças. Utilizar
o conceito de “maneiras à mesa”, como algo que é indissociavelmente
parte de qualquer etnografia da alimentação, da cozinha ou culinária é,
sobretudo, reconhecer um determinado universo de significação para
então tratar do tema e da multiplicidade de aspectos a ele associados.
Havia uma preocupação por parte dos não indígenas atuantes na
escola para que os alunos comessem no refeitório, local com três grandes
mesas e bancos. Apesar das orientações dos funcionários não indígenas,
gentis e cuidadosos, muitos alunos não entravam no refeitório; em
lugar disso, sentavam-se no chão ao redor da escola e/ou no pátio da
aldeia, comendo com seus pratos ao colo. Muitos dos que entravam no
refeitório sentavam-se de costas para a mesa. Poucos, geralmente mais
velhos, utilizavam a mesa como apoio para o prato.
É importante frisar que nos domicílios xavánte usualmente não
havia mesas e as crianças menores, por vezes, sentavam-se ao chão,
partilhando a comida com outras crianças, em um mesmo recipiente,
sem o uso de talheres. Comer com o apoio da mesa e de talheres fazia,
assim, parte de um conjunto de regras exógenas, que se procurava
fomentar no dia a dia da escola. O descumprimento e a não adaptação
a essas regras eram geralmente atribuídos aos “costumes de casa” e
mesmo ao que não indígenas podem identificar como a “natureza” ou,
paradoxalmente, a “cultura” atribuída aos indígenas, vista negativamente
e devendo ser alvo de um processo necessário de “aprendizado”, com
ditames “civilizatórios”. Esse processo é pensado, ainda, como uma das
atribuições primordiais da escola e, não coincidentemente, acaba por
ser associado também à “evangelização”:

[...] eles vão aprendendo com o tempo. Mas, por exemplo, aqui
temos o refeitório da escola, né... Há pouco tempo não tinha as
Políticas públicas: reflexões antropológicas 236

mesas, só os bancos. E agora conseguimos as mesas, mas mesmo


assim as crianças saem do refeitório para comer no chão, no
pátio ou lá fora. A gente ensina, orienta mas ainda é difícil. Eles
ainda estão aprendendo a sentar à mesa. [...] É, nas casas não
têm esse costume, por isso as crianças trazem isso pra escola, o
costume de casa. Mesma coisa o costume de comer com a mão,
hoje alguns já acostumaram a comer com a colher... A escola tem
essa função de ensinar... Mas, infelizmente, a cultura é mais
forte que a evangelização. Eles já sabem que precisam aprender,
mas são difíceis... É a natureza deles! (Não indígena, funcionária
da escola, grifo nosso).

A alimentação na escola – um contexto de relações


interétnicas

De acordo com a descrição etnográfica de seus diversos atributos,


o contexto da alimentação escolar xavánte pode ser caracterizado
como uma arena de relações interétnicas, marcadas por conflitos,
desentendimentos e incompreensões de ambas as partes. Em meio aos
atritos, as expectativas dos gestores não indígenas eram direcionadas a
atender à demanda de entrega dos alimentos nas aldeias, visando evitar
mais problemas com os Xavánte. O sentimento de “medo” em visitar
as aldeias e/ou interagir com os Xavánte na cidade era citado e parecia
interferir no trabalho realizado pela gestão. As diferenças entre os
modos de vida nativo e não nativo eram descritas pelos profissionais da
SME, mas em termos francamente negativos e etnocêntricos. O mesmo
acontecia com as diferenças, enfim, com a “diversidade sociocultural”
que, de acordo com a PNAE, deveria ser resguardada por esses Entes.
Entre os Xavánte, como é comum a outros povos indígenas
brasileiros, tratar e respeitar o domínio alimentar incluirá lidar,
também, com modos de vida não diretamente voltados à “produção”
e “consumo”, e mesmo com formas próprias de educar suas crianças,
de acordo com o que consideram ser adequado. Essas especificidades,
entretanto, aparecem usualmente como obstáculo nas narrativas de não
indígenas, algo a ser superado ou alvo de um “aprendizado”, do qual
nem sempre são julgados capazes de assimilar:

[...] respeitar a cultura deles [dos Xavánte] é respeitar o jeito. Mas


tem hora que sai do controle... tem Xavánte que é difícil! É o jeito
deles, é difícil de lidar. Com aqueles menos estudados é pior. São de
Povos indígenas e políticas públicas no Brasil 237

falar alto e bater na mesa, querer mandar e reclamar de tudo. Daí


fica difícil. Tem que colocar algumas regras porque se não nada dá
certo [...] O problema deles é que pegam tudo de ruim dos hábitos
dos brancos. Coisa boa não pega, que é plantar e cultivar... Parece
que não entendem... preferem passar fome ou depender de cesta
básica. (Não indígena, profissional da SME).

Em vários momentos, as condutas indígenas eram descritas


como inadequadas, o que incluía aspectos tão diversos como o modo
pelo qual os Xavánte administravam seus bens, a forma como cuidavam
da higiene pessoal e da educação dos filhos e, ainda, o que comiam,
como e o quanto comiam. O fato de as crianças Xavánte comerem
sozinhas (sem o auxílio de adultos), brincarem com objetos cortantes e
“viverem soltas”, por exemplo, era descrito como evidências do grau de
“descuido” por parte dos adultos. Na medida em que os Xavánte agiam
e pensavam com uma lógica diferente daquela considerada como
correta ou aceitável pelos não indígenas, prevaleciam os julgamentos
de ordem moral que, mesmo implicitamente, suscitavam posturas
etnocêntricas. Essas posturas acabavam por ter expressão na qualidade
e nas modalidades de consumo direta e indiretamente relacionadas à
alimentação escolar, como na atitude reprobatória a suas “maneiras à
mesa” ou formas usuais de partilha e comensalidade.
Assim, a ideia de que “a escola tem essa função de ensinar”,
não se limitava aos ensinamentos curriculares de sala de aula, sendo
indissociável tanto das avaliações negativas dos valores nativos como
dos esforços empreendidos para modificá-los através da formação
escolar, numa proposta que assume ares civilizatórios. Portanto, o
reconhecimento das diferenças socioculturais resulta em esforços
direcionados a adaptar os comportamentos nativos, em última instância,
aos moldes ocidentais e, na medida em que aplicados princípios de
ordem “nutricional” à alimentação escolar, como no caso da malsucedida
tentativa de introdução à proteína de soja, aos moldes biomédicos.
No âmbito do PNAE, essa proposta de “adequação” ia além da
dieta stricto sensu, estendendo-se aos modos de comer dos escolares.
Tal postura contempla os objetivos do PNAE de intervir na formação de
hábitos alimentares dos escolares, estipulando o que seria considerado
“saudável” para o desenvolvimento deles, como visto nas referências de
bases estritamente biomédicas encontradas na Portaria Interministerial
no 1.010, que institui as diretrizes para a Promoção da Alimentação
Saudável (BRASIL, 2006).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 238

Portanto, quando as ações, mesmo que sutis, tentam moldar o


comportamento, indicam que o reconhecimento formal da diferença
não tem se traduzido em efetivo respeito à diversidade cultural. No
cotidiano da escola, para citar o exemplo da prática da partilha de
alimentos, havia o controle por meio de um estoque chaveado, que ficava
sob a responsabilidade da coordenadora não indígena. Tal ação era
justificada pela necessidade de restringir o acesso à comida aos alunos
matriculados na escola, de modo a garantir que os recursos chegassem
ao seu público-alvo:

[...] tem que administrar tudo, controlar mesmo, porque eles são
difíceis... Aqui [na Escola da São Pedro] já vêm controlando
estoque há tempos. Só assim para controlar e garantir que não vai
sumir tudo... Nós tentamos ensinar que essa comida é da criança.
(Não indígena, funcionária da escola).

Os discursos de não indígenas sobre os Xavánte muitas vezes


assumiam, assim, cunho moral, extrapolando a visão negativa da
partilha de alimentos na escola para outros domínios e aspectos da
vida xavánte, para além daquele propriamente escolar. As práticas
nativas eram, assim, avaliadas a partir da ótica ocidental. Não havia
o reconhecimento da legitimidade dos modelos de organização e
sociabilidade nativos, baseados fundamentalmente na circulação antes
que na acumulação privada, seja de capital, seja de outros tipos de bens,
onde podemos incluir os recursos ditos “alimentares”, ou seja, a comida
(MAYBURY-LEWIS, 1984).
Nos discursos dos funcionários da SME, apenas a administração
realizada por não indígenas seria capaz de garantir a comida para os
matriculados na escola. A avaliação, de cunho evidentemente moral,
julgava os Xavánte como incapazes de administrar seus bens, ou de, em
termos mais amplos, tomarem decisões coerentes, como observado no
discurso de uma funcionária não indígena:

Eles não têm o costume de armazenar, de guardar, nem comida


e nem dinheiro. Gastam tudo quando recebem, ou têm que dar
para os parentes também... Daí acaba logo. Quando um recebe
ou compra comida, todos já sabem e vão visitar, tem que dar
um pouco... É assim que eles fazem com tudo [...]. A cabeça deles
[dos Xavánte] funciona assim: os velhos decidem e interferem
no trabalho aqui da escola. A gente [coordenação] se organiza,
planeja as atividades... Mas as discussões daqui são levadas para
Povos indígenas e políticas públicas no Brasil 239

os demais e os velhos falam, os professores voltam e aí muda tudo.


Eles são assim, de uma hora para outra mudam de opinião. (Não
indígena, funcionária da escola).

É difícil precisar em que medida esse tipo de avaliação se traduzia


em um acesso restrito a cargos de maior responsabilidade no âmbito
escolar: os Xavánte ocupavam, à época, as posições de direção da escola,
professores e cozinheira, mas a coordenação da educação indígena no
município ficava a cargo de um profissional não indígena.

Conclusões

Apesar dos avanços quanto ao reconhecimento da diversidade


cultural da população brasileira no âmbito do PNAE, a proposta ainda
apresenta lacunas importantes, que exigem maior debate acerca de
seu alcance e de seus desdobramentos teóricos e práticos. É marcante
a enorme distância entre o planejamento e a execução das políticas
públicas em alimentação e nutrição, quando estão em questão povos
indígenas. A proposta oficial, ainda que inovadora, não inclui a
instrumentalização dos gestores e demais profissionais envolvidos para
a sua operacionalização em nível local. Relações interétnicas regionais
pregressas, quase sempre contrastivas e desiguais, acabam por prevalecer
nesse vácuo de atuação do Estado.
O caso xavánte revela, além disso, grandes limitações de ordem
logística e estrutural. Os problemas enfrentados pela gestão municipal
não comprometem apenas as diretrizes oficiais relacionadas ao respeito
à cultura alimentar xavánte, mas também aquelas de caráter nutricional,
relacionadas à variedade alimentar, à composição das refeições e ainda
às disposições em direção à compra e aproveitamento de alimentos
provenientes da produção local.
Especialmente surpreendente e preocupante, no contexto de
Parabubure, é que a compreensão e o atendimento das especificidades
xavánte não se apresentavam como uma questão ou preocupação
para os interlocutores não indígenas, tanto em suas falas como em
seu quotidiano de trabalho. Em lugar disso, os modos xavánte de
se alimentar, enfim, de viver e se relacionar coletivamente, eram
frequentemente vistos como problemas de difícil superação, e que
em última instância constituíam obstáculos para o funcionamento do
programa em nível local. Os esforços empreendidos em direção a uma
Políticas públicas: reflexões antropológicas 240

“reformulação” das práticas nativas eram ancorados em uma postura


que pode ser descrita como parte de uma pedagogia etnocêntrica, na
medida em que guiada por valores alheios aos nativos e que lhes devem
ser, por essa via, “ensinados”.
A alimentação escolar indígena aparece, assim, como campo
produtivo para a observação das relações do Estado brasileiro com a
alteridade. Conforme acontece a outras políticas públicas devotadas a
povos indígenas, como aquelas relacionadas à saúde desses segmentos,
e seguindo as reflexões de Leite (2011), nesse vácuo acaba por subsistir
a importância das relações interétnicas. Nessa arena, a diferença é
considerada em termos essencialmente negativos, contrariando as
disposições formalmente previstas na formulação daquelas políticas. No
contexto xavánte, o que se observa são relações muitas vezes marcadas
pela hostilidade, hierárquicas e com objetivo civilizatório.
Para além disso, mesmo os recursos materiais destinados às
escolas indígenas sequer atendem aos princípios nutricionais previstos
na legislação, nisso revelando-se, igualmente, inadequados. Nem bem
há o respeito à sociodiversidade, nem bem o cumprimento de diretrizes
biomédicas e/ou nutricionais.
A etnografia demonstrou, ainda, ser inadequada a adoção de
uma categorização ortodoxa dos alimentos entre aqueles que possam
ser considerados “indígenas” ou “não indígenas”, “tradicionais” ou “não
tradicionais”. Uma tal classificação é insuficiente para a compreensão dos
sistemas alimentares nativos contemporâneos e suas transformações,
não correspondendo ao caráter reconhecidamente dinâmico das práticas
alimentares e dos princípios e valores que as permeiam, conforme
anteriormente registrado por Leite (2007), com base no caso dos índios
Wari’, da Amazônia brasileira. Não cabe, portanto, limitar a proposta de
atendimento às especificidades socioculturais nativas à inclusão de itens
usualmente vistos, no senso comum, como “indígenas” ou “tradicionais”.
O olhar direcionado à alimentação escolar indígena deve ser ainda
mais amplo. Conforme demonstrado, ela necessariamente vai envolver
aspectos outros, como maneiras de comer e interagir recomendáveis
pela etiqueta social que devem acontecer não apenas no espaço escolar,
mas também em outros espaços e domínios da sociabilidade aldeã.
Quanto ao controle social, a despeito das dificuldades e das
dinâmicas próprias que possam caracterizar a representação indígena
junto às instâncias cabíveis, ele deve efetivamente constituir uma das
metas prioritárias do Programa. O que a alimentação escolar xavánte
vem a ser, na prática, seus modos de formulação e mecanismos de
Povos indígenas e políticas públicas no Brasil 241

decisão, em muito têm se distanciado desse mecanismo, praticamente


inexistente, no caso aqui abordado. Não há diálogo, apenas o
“aprendizado” em um sentido único e indiscutível.
É possível dizer que, se entendida a cultura em seu caráter
dinâmico, e ainda diante da imensa sociodiversidade indígena no país, a
proposta de respeito à diversidade cultural e a efetividade das diretrizes
do PNAE não poderá ser realizada por meio de protocolos rígidos
e com validade universal, ainda que sejam pensados para atender
especificamente ao segmento indígena da população ou a qualquer
outro. As estratégias devem ser, ao menos em parte, construídas
localmente, com a participação efetiva não apenas da comunidade
escolar, mas da coletividade como um todo, segundo seus próprios
protocolos políticos de discussão e tomadas de decisão. É indispensável,
igualmente, o fortalecimento da participação de setores da sociedade
civil em espaços que também debatam o tema para além da esfera local,
possibilitando que se estabeleça o diálogo entre esses diferentes “modos
de ser”, de modo que sejam repensados os pressupostos que possam
fundamentar as ações de intervenção.
Por fim, considerando-se ainda que a proposta de respeito à
cultura no âmbito do PNAE não se limita às minorias étnicas, é urgente
a ampliação do debate acerca da alimentação escolar em nível local,
observando-se de que modo essas especificidades socioculturais estão
sendo contempladas localmente, tratem-se de contextos indígenas ou não.

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O “perro del hortelano” e os impactos
de uma metáfora política
em territórios indígenas

Evelyn Schuler Zea

Cada eleição política no Peru geralmente é impregnada por


uma ou várias metáforas que buscam sintetizar ou capturar as figuras
e dinâmicas do poder. Assim, por exemplo, o imprevisível Fujimori foi
visto em seu momento como um tsunami iminente, a puxada repentina
de Alejandro Toledo foi identificada com um huayco ou avalanche andina
e Alan García foi comparado em sua inconstância com a corrente do
Niño. Essas imagens irradiam sinais múltiplos, entre elas, por exemplo,
a percepção da política como um campo não tanto de deliberação,
mas antes liberado ao domínio de forças quase naturais, ou seja uma
visão catastrofista da política que num país com vasta experiência em
terremotos e outros desastres pode resultar eventualmente significativa.
Apesar de seu alcance, essas sugestões ficam, no entanto,
rapidamente negligenciadas ou desativadas por efeito dos filtros
pelos quais geralmente as metáforas políticas são acolhidas. De forma
implícita, tudo se passa como se as metáforas fossem percebidas como
simplesmente instrumentais, a serviço de mera transmissão ou, pelo
contrário, para encobrir conteúdos que, de qualquer forma, elas não
chegam a determinar.
Na contramão dessa percepção, o texto que segue se vale de uma
circunstância particular para sondar o que agenciam as metáforas,
sobretudo na esfera pública. Trata-se da formulação da metáfora do “perro
O “perro del hortelano” e os impactos de uma metáfora política em territórios indígenas 247

del hortelano”1 por parte do então presidente peruano Alan García, que
desencadeou com a utilização dessa figura, embora involuntariamente,
um debate cheio de implicações. O seguimento deste debate em torno
a imagens do poder – onde o genitivo é tanto subjetivo como objetivo –
visa falar dos efeitos que, através de uma série de mediações, chegam a
atingir comunidades indígenas na região amazônica de Madre de Dios,
na fronteira entre Peru e Brasil.2
Pelo lado teórico, este enfoque toma como referência algumas
vertentes do campo da metaforologia, que põem ênfase na potência
condutora das imagens, considerando inclusive que elas desafiam
formas conceituais ou registros quantificados. A partir deste ponto
de vista, metáforas não são meramente ornamentos, substituições
ou complementes de conceitos, mas dão orientação aí onde estes
últimos resultam excedidos. Elas não apenas viabilizam ou facilitam
a circulação, mas são fatores constitutivos de práticas diversas e, entre
elas, particularmente da intervenção política.3
O que estou propondo, por conseguinte, é prestar atenção a uma
fórmula simbólica, um modo de expressão ou figura discursiva, algo tão
leve como aparenta ser uma metáfora – a do perro del hortelano4 – que,
no entanto, tem antecedentes e consequências muito concretas. Trata-
se, no que segue, da genealogia e irradiação de uma figura amplamente
gravitante no que diz respeito à política indígena no Peru e, ao que tudo
indica, não apenas aí.5

Artigo publicado no jornal El Comercio, 28 out. 2007, Lima, Peru.


1

2
Este texto aborda um dos ângulos do projeto de pesquisa “Genealogia das relações
políticas nos corredores entre as terras altas e baixas na região de Madre de Dios
(fronteira Peru-Brasil)”, que contou com o apoio do IBP, pelo qual agradeço.
3
Mais ainda, a suposta sujeição das metáforas no discurso dá lugar a que elas escapem
desse controle e, inclusive, o revertam. Cf. SCHEFFLER, 1988, em particular the myth of
ownership.
4
A figura retórica do perro del hortelano é de antiga data e uso corrente no âmbito do
espanhol. Circula nessa forma resumida e, apenas quando se quer ser enfático, é seguida
pelo complemento: que no come ni deja comer. Vem do século de ouro espanhol e existe uma
obra de teatro famosa com esse nome escrita por Lope de Vega. No Peru, no entanto, essa
formulação de origem ibérica se cruza com as conotações detestáveis que frequentemente
acompanham a figura do cachorro em sua transposição humana tanto na zona andina
como em partes da Amazônia, onde os allqorunas (homens-cachorro) são precisamente
os brancos, descendentes de espanhóis; de tal modo que, como fez notar o antropólogo
Rodrigo Montoya, há um fator agravante ao usar essa figura canina em relação aos índios.
5
Essa opção por rastrear a genealogia de uma metáfora política, ou seja, por explorar sua
procedência assim com suas eventuais variações, não obedece a nenhuma simplificação ou
Políticas públicas: reflexões antropológicas 248

O assédio às comunidades

Dado que as referências e os processos relativos ao problema da in-


tervenção em terras indígenas variam de país para país – e até mesmo regio-
nalmente –, convém uma aproximação preliminar ao contexto peruano.
Na atual constituição peruana, de 1993, comunidade é o
termo genérico que designa o estatuto jurídico dos povos andinos e
amazônicos. Durante muito tempo esse reconhecimento estava restrito
a comunidades andinas e só recentemente, a menos de meio século, se
estendeu para as comunidades amazônicas. Historicamente, tal denomi-
nação e configuração socioeconômica remonta aos tempos coloniais.6 Seu
antecedente são as reducciones do virreynato, onde os espanhóis aglome-
ravam numa mesma localidade diferentes ayllus – formações tradicionais
constituídas por laços de parentesco – para fins de doutrinação e de
captação de impostos e mão de obra. Embora precários, esses limites
territoriais que os espanhóis cederam às reducciones foram usados mais
tarde pelas comunidades andinas para legitimar parte de suas reivin-
dicações territoriais.7
A visibilidade política dos povos amazônicos é notoriamente tardia
no Peru. Ainda durante o primeiro governo de Belaunde (1963-1968)
prevalece uma ideologia segundo a qual a floresta amazônica peruana
é vista como um território desabitado e com grandes recursos, cuja
exploração é a meta de projetos de colonização conduzidos sob slogans
como “la conquista del Perú por los peruanos” ou, mais cruamente, “tierras
sin hombres, para hombres sin tierra”. Tais campanhas de colonização
se materializaram particularmente no início da construção de vastas
estradas vicinais como a “Marginal de la Selva”. Só em 1974, já no governo
militar de Velasco, foi emitido o primeiro decreto de lei (DL 20.653)
que trata especificamente dos povos amazônicos, dando-lhes o nome de
“comunidades nativas”.8

recorte unilateral do campo de forças concreto onde ela se movimenta, mas, pelo contrário,
à percepção da grande complexidade de tal contexto e dos desafios que apresenta.
6
Inclusive um escritor estreitamente ligado ao mundo andino, como José María
Arguedas, dedicou sua tese em Antropologia ao estudo de semelhanças entre as comu-
nidades andinas e as de Castilla-León.
7
Vejo operar uma estratégia nativa que poderia chamar “tirar forças da fraqueza”, na
medida em quem transforma inclusive as condições mais adversas em suporte de suas
reivindicações.
Apenas um decreto de alcances restritos, expedido em 1957, ocupava-se do que
8
O “perro del hortelano” e os impactos de uma metáfora política em territórios indígenas 249

Embora atualmente as assim chamadas comunidades nativas


(amazônicas) e comunidades campesinas (andinas) compartilham
o rótulo de comunidades, a conformação delas é bastante diferente,
mesmo sendo possível traçar algumas analogias entre elas.
De acordo com Chirif e García (2007, p. 159-167), as comunidades
nativas (amazônicas) procedem do que eles considera como reducciones
modernas: as esferas das missões, das escolas – principalmente do
Summer Institute of Linguistics (SIL) e jesuítas – e das propriedades
agrárias (com seus diversos contingentes de mão de obra indígena). Seja
por separado, seja sobrepostas, esses focos induziram um processo de
longa duração de concentração de povos amazônicos. A partir dessas
aglomerações heterogêneas, foram realizadas ações de reconhecimento
de comunidades e a titulação de territórios nos termos da Lei de
comunidades de 1974 e de sua versão modificada em 1978 (DL 22.175).
Por impulso e gestão de algumas ONGs e, sobretudo, de organizações
indígenas como a Asociación Interétnica para el Desarrollo de la Selva
Peruana (AIDESEP), criada em 1980, conseguiu-se que as comunidades
amazônicas recebessem títulos de propriedade para 9.750.526 hectares,
aos quais se somam 2.799.901 hectares de reservas territoriais (CHIRIF;
GARCÍA, 2007, p. 136). Na atualidade, no entanto, esses territórios
estão enfrentando graves problemas decorrentes, por um lado, da falta
de presença do Estado para fazer valer os seus direitos,9 expondo-os
às incursões de mineração informal ou a exploração florestal por
madeireiras e, por outro lado, a intervenção arbitrária do mesmo Estado,
através de mudanças na normativa e das concessões que outorga sobre os
recursos do subsolo desses territórios. Tal articulação das comunidades
nativas com a engrenagem política é, evidentemente, crucial e uma
indagação possível nela é a que foi entreaberta pela imagem do “perro
del hortelano”.
Para pensar essa problemática regional, é preciso considerar o efeito
de fatores conflitivos específicos. Assim, no cenário da região de Madre
de Dios, na fronteira com o Acre, que aqui se toma como referência,
convergem exasperadamente o explosivo problema da mineração informal
e ilegal, que invadiu e invade territórios indígenas e zonas protegidas,

denominava “tribus selvícolas”.


9
A “falta de presencia del gobierno para hacer cumplir la ley” é uma reclamação
persistente das comunidades em relação às Reservas Comunales no Peru e
particularmente da RN Amarakaeri, em Madre de Dios (NEWING; WAHL, 2004).
Políticas públicas: reflexões antropológicas 250

provocando também uma intensa onda migratória das regiões vizinhas;10


o impacto da estrada transoceânica, que canaliza por sua vez uma
multiplicidade de fatores tecnológicos e ecológicos; a concessão extensiva e
sem consulta por parte do governo peruano de lotes petroleiros sobrepostos
a reservas e territórios indígenas; assim como a iminência de megaprojetos
hidroelétricos muito controvertidos que, assim como as redes rodoviárias e
lotes petroleiros, estão em grande medida a cargo de empresas brasileiras.
Tudo isso sugere um panorama denso e exacerbado que, entre outros
enfoques, considero que também pode ser analisado a partir do ângulo
suplementar da colisão de discursos e do conflito de imagens ao mesmo
tempo imersas e dinamizadoras dos referidos processos.

O capital e as “riquezas escondidas” da Amazônia

Em seu artigo El Perro del Hortelano,11 Alan García afirma


– em síntese – que grande parte dos males do Peru se explica pelo
fato de ter “caído na ilusão de entregar pequenos lotes de terra para
famílias pobres que não têm nenhum centavo para investir”,12 e que,
além disso, também não estão dispostas a vender suas propriedades
modestas ao capital internacional. Elas são “el perro del hortelano”, o
cão do jardineiro que não aproveita nem deixa aproveitar as riquezas
escondidas em seu território. Recusam a quem? Em particular às
grandes empresas, impedindo que os capitais e tecnologias destas
cumpram suas funções aparentemente demiúrgicas, tornando
produtivas terras comunais qualificadas de “ociosas”.
À margem de tudo o que há aí de questionável, me parece que não
se pode negar a García o mérito de resumir abertamente o que muitos –

10
A mineração e as correntes migratórias que ativa dependem por sua vez de um
indicador muito preciso como é o preço do ouro. Na década de 1970, o preço do ouro
se quintuplicou e a migração chegou a umas 20 mil pessoas (MOORE apud ALVAREZ
DE CASTILLO, 2012, p. 194). Outro preço recorde foi alcançado ao final da década de
2000, intensificando a migração que na atualidade corresponde a 40% do total de 112
mil habitantes de Madre de Dios.
11
Este artigo foi seguido por outros dois: Receta para acabar con el perro del hortelano
e El perro del hortelano contra el pobre, mas foi o primeiro que mostrava maiores
pretensões programáticas.
Trata-se aqui principalmente dos comuneros, tanto campesinos como amazônicos, já
12

que no Peru, como se indicou acima, as comunidades conseguiram títulos de propriedade


sobre seus territórios, embora com fortes restrições tais como as referentes aos recursos
do subsolo e, inclusive, recursos florestais.
O “perro del hortelano” e os impactos de uma metáfora política em territórios indígenas 251

antes e depois dele, dentro e fora do Peru – pensam intimamente sobre


as medidas que supostamente demanda o desenvolvimento econômico.
Nos artigos de García estão explícitas, quase até a obscenidade, várias
destas disposições: parcelamento e venda de terras comunais, acesso
não imediato, mas “progressivo” aos direitos trabalhistas, diminuição da
tributação para quem investe e privatização de serviços e recursos básicos,
entre várias outras medidas. Nessa síntese crua a partir do poder da visão
dos “recursos” e das divisórias da pobreza e da riqueza, é onde me parece
que radica sua particular significação para entender tanto uma forma de
gestão pública como os eventuais modos de resistência a ela.
A figura do perro del hortelano na versão de García motivou no
Peru diversos e numerosos, embora breves em sua maioria, comentários
e interpretações. Políticos, acadêmicos, lideranças indígenas, ativistas e
críticos de diferentes disciplinas se manifestaram e tomaram posição
num debate sem precedentes, seja pretendendo descobrir a identidade do
hortelano, seja convocando diferentes raças de cachorros e especulando
em cada caso sobre suas motivações, ensaiando dessa forma variantes
do que alguém batizou de “perro politics” ou política canina.13
A ramificação politicamente mais ressaltante do texto de García me
parece, no entanto, encontrar-se nas iniciativas do economista Hernando
de Soto. Já antes da publicação do Perro del Hortelano, era visível a
complementaridade entre esses dois referentes da política peruana, mas
isso se tornou ainda mais evidente quando De Soto tentou estender
agressivamente seus projetos de formalização jurídica aos territórios
dos povos amazônicos. De Soto é o líder e gestor de um programa
internacional inicialmente desenvolvido no Instituto de Libertad y
Democracia (ILD) de Lima e logo estendido a mais de 20 países, que
consiste basicamente em instituir reformas legais que permitam uma
maior inserção na economia de mercado, sobretudo através da titulação
da propriedade. Os livros de De Soto de amplia circulação, como El otro
Sendero y El misterio del capital, foram seguidos no ano 2009, numa
variante algo surpreendente, por um vídeo do ILD intitulado “The
mystery of capital among the indigenous peoples of the Amazon”. Nesse
vídeo programático, em troca da inclusão das comunidades amazônicas
nos benefícios das garantias legais e opções que ofereceria o mercado,

13
Há inclusive um site exclusivamente destinado a este fim (disponível em: <www.
delhortelanosuperro.com>), que simula em sua denominação invertida a forma de
falar que os limeños atribuem de modo estereotipado aos povos amazônicos. Aí foram
reunidos mais de 120 artigos polêmicos.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 252

reclama-se de elas assumirem a single law e as condições da economia


global e, consequentemente, o abandono dos títulos tradicionais da
comunidade nativa, já que, segundo De Soto, estes não são mais que
“pedaços de papel que não têm nenhuma função” e que “apenas valem
dentro dos limites da comunidade” (DE SOTO, 2009). Essa visão foi
minuciosamente criticada, entre outros, por aqueles que consideravam
que apresentar esses títulos como desprezíveis era parte de uma ofensiva
contra uma das defesas históricas da vida comunitária (MONTOYA,
2009). Por efeito dessas e de outras críticas, após um tempo de agitação,
a campanha de De Soto ficou aparentemente congelada, mas nada
descarta que volte a se ativar numa ocasião política mais vantajosa.14

Os outros, os pobres

Além dessas conexões mais ou menos explícitas, vejamos mais de


perto o que García chama de síndrome – ou conjunto de sintomas – do
perro del hortelano, a fim de atender a suas articulações e justaposições
formais, que numa metáfora usualmente são tudo ou quase tudo, toda
vez que seu conteúdo depende estreitamente delas.
O artigo de García traz uma imagem do nativo, do comunero,
inclusive do trabalhador, mas entendo que se refere – fazendo certamente
uma colossal redução – a todos aqueles que ele considera como o pobre.
Eis o seu interlocutor figurado. Enquanto que outras análises buscam
fazer distinções e atender às especificidades da alteridade, vemos que
o comum denominador dos outros a partir da ótica de García, ou seja,
da perspectiva do poder, é a pobreza. O problema aí não é apenas que
García obvia as circunstancias concretas de vida muito diversas, mas
também que opera com uma concepção, que lhe serve de figura de fundo,
segundo a qual a causa da pobreza radica nos pobres mesmos, que não
sabem aproveitar seus recursos nem deixam que outros o façam por
eles. É crucial que a partir desse enfoque se chegue inclusive a justificar
a exploração da força de trabalho de um trabalhador em função de que
ele, deixado a si mesmo, passaria a engrossar as filas dos – como diz
García, numa formulação antológica – “trabalhadores que não existem”.
Essa figura do trabalho inexistente pretende justificar a exploração e o
lucro que o investidor faz da força do trabalho do trabalhador alegando

14
De Soto é, no Peru, um ator político próximo tanto a Alan García quanto à dinastia
Fujimori.
O “perro del hortelano” e os impactos de uma metáfora política em territórios indígenas 253

que – para existir – o trabalhador supostamente precisa entrar na


engrenagem do investidor.
A síndrome ou a sintomatologia de García mostra também que
a pobreza é, nessa perspectiva, uma doença, uma patologia, inclusive
uma de caráter singular, pois o responsável por ela é o mesmo paciente.
No Peru, esse diagnóstico permite ao mesmo tempo reconhecer uma
genealogia ou, ao menos, os traços de uma matriz de pensamento
que tem ramificações em De Soto, mas também nos Vargas Llosa –
Mario e seu filho Álvaro – e se remonta, entre outras fontes, a um
ideólogo neoliberal como Jean François Revel. Entre todos eles
tem circulado aquele tipo de argumentação que busca as causas do
subdesenvolvimento, sobretudo nos seus mesmos efeitos.
A metáfora, usualmente, nos diz tanto sobre seus sujeitos quanto
sobre seus pressupostos objetos. Nesse caso, mais que dos supostos
perros del hortelano, nos provê de uma sintomatologia da ideologia de
García e associados. Seu artigo é pródigo e transparente nesse sentido,
e aqui farei apenas uma seleção de alguns trechos. Por exemplo, logo
após pretender resumir a figura do perro del hortelano numa frase: “Si
no lo hago yo que no lo haga nadie”, nos diz em seguida: “El primer
recurso es la Amazonía [peruana]. Tiene 63 millones de hectáreas y
lluvia abundante […]” (GARCÍA PÉREZ, 2007).
No avesso dessas frases, como se fora a chave que as ordena,
acho que é possível perceber o perfil furtivo do grande investidor
guiado na versão de García por uma divisa complementária: “(se os
pobres não podem) eu o faço porque eu posso fazer isso que eles não
podem, eu o faço porque eu tenho o poder de fazê-lo e esta é a minha
maior justificação” – concepção com a que ademais se corresponde
estreitamente a percepção da natureza como uma pletora de recursos
disponíveis para quem sabe ou pode usufruir deles. De tal maneira que
a figura do perro del hortelano aparece como uma projeção invertida
da vontade do poder, da lógica arbitrária do poder ou do poder pelo
poder, justificado por ele mesmo. O que é ratificado um pouco mais
adiante, quando García admite que as concessões apenas existem
porque “dependen de la voluntad del Gobierno y del funcionario que
puede modificarlas” (GARCÍA PÉREZ, 2007). Voltarei sobre esse ponto.
No Peru, a figura do perro del hortelano tem um parente
metafórico pelo qual se entende melhor grande parte de sua ressonância.
Trata-se da imagem do mendigo sentado en un banco de oro.15 Ambas as

Esta frase é usualmente atribuída ao pesquisador italiano Antonio Raimondi, que


15
Políticas públicas: reflexões antropológicas 254

figuras dialogam entre si, ainda que o motivo desse diálogo possa ser
formulado de maneiras muito diferentes. Assim, tal como foi apontado
em relação ao perro del hortelano, aparentemente também na imagem
do mendigo sentado num banco de ouro age como subtexto ou figura
latente a iminência de que essa riqueza seja expropriada por quem – e já
sabemos quem – pode aproveitá-la ou aproveitar-se melhor dela.
Metáforas, no entanto, não se deixam reduzir univocamente,
sempre dizem mais do que se pretende dizer com elas ou sempre
admitem um rodeio suplementar. No caso, a figura do mendigo parece
circular no Peru mais ou menos livremente, dando lugar, por exemplo,
às expectativas de que o mendigo finalmente se levante ou disponha sua
riqueza ou inclusive recupere o roubado. Mas, além disso, essa persistência
da imagem parece também transportar e traduzir discretamente uma
tenaz inquietação em torno do estatuto da propriedade no Peru, suas
incongruências e intrínseca instabilidade. Segundo essa conjectura,
postas em circulação, tais figuras estariam questionando a seu modo
o regime de propriedade e nos estariam falando, através de múltiplos
rodeios, sobre a impropriedade da propriedade. Se for assim, ainda
quando essa perspectiva nos exceda, o discorrer dessas imagens estariam
retomando as polêmicas da posse (territorial) em que Rolena Adorno
(2007) viu o tema central dos umbrais da literatura ameríndia, aquele –
entre outros – do Inca Garcilaso e Guamán Poma de Ayala.
Formulado em outras palavras, as metáforas tematizadas seriam
ambas (embora cada uma a seu modo) imagens que mostram, na parte
de seus efeitos fora de controle, a instabilidade e inconsistência do
regime da propriedade vigente, retomando com isso uma inquietação
de longa data e de respostas ainda pendentes.

Uma metáfora recalcitrante: Os no contactados

Rastreando essas conjunções e disjunções num plano mais


concreto, passo a duas configurações que me parecem dizer respeito,
ainda que por motivos diferentes, à dinâmica do perro del hortelano.
A primeira é a figura jurídico-econômica da concessão que se
tornou – ao menos no Peru – a chave guia da apropriação dos territórios
amazônicos, em especial daqueles supostamente sob proteção,
extrapolando dessa maneira os alcances do poder. A segunda é a figura

visitou o Peru no século XIX, embora não seja certo que ele a pronunciou; no Equador,
onde esta frase também circula fazendo referência a esse país, é atribuída a Humboldt.
O “perro del hortelano” e os impactos de uma metáfora política em territórios indígenas 255

dos no contactados que, pelo contrário, a partir de uma exterioridade


irredutível, recalcitrante, se mostra incompatível com essa dinâmica e,
enquanto figura de exceção, demanda a abertura de novas opções.
A vigente Constituição Política do Peru estabelece no artigo 55
da seção relativa ao meio ambiente e aos recursos naturais, o seguinte:

Los recursos naturales, renovables y no renovables, son patrimonio


de la Nación. El Estado es soberano en su aprovechamiento.Por
ley orgánica se fijan las condiciones de su utilización y de su
otorgamiento a particulares. La concesión otorga a su titular un
derecho real, sujeto a dicha norma legal. (PERÚ, 2013).

Das perplexidades que provoca essa formulação legal derivam


tanto a instituição da figura da concessão quanto sua impugnação. A
norma abre a porta à adjudicação a particulares de um direito efetivo
sobre os recursos naturais, mas isso compromete não apenas a soberania
do Estado, que não admite outro poder por cima de si, mas também
o patrimônio da Nação peruana, que justamente está constituído por
esses recursos. Tais tensões motivaram diversas análises e mediações.
De acordo com uma delas, a concessão receberia atribuições unicamente
sobre “los frutos y productos de los recursos naturales”, mas não sobre
estes mesmos. No entanto, que é o que distingue efetivamente essa fina
linha: é que o Estado dispõe dos recursos unicamente enquanto eles não
sejam usufruídos? De fato, os recursos rendem frutos apenas quando
entram num processo produtivo que, de acordo com a regulamentação,
bem poderia estar inteiramente nas mãos de terceiros. E, ainda mais, se
os frutos são gerados unicamente na cadeia de exploração, como pode
o Estado adjudicar produtos ainda não existentes? Tem-se sugerido,
assim, que a concessão é uma espécie de propriedade transitória que
reverte ao Estado enquanto se extingue, mas se o que se extingue é o
produto, ou seja, o fruto do recurso, que é o que efetivamente recobra
o Estado e, em geral, de que estão conformadas suas reservas naturais?
Dessa soma de contradições – várias delas formuladas e
questionadas pelo antropólogo peruano Juan Alvarez em seu
doutorado de 2012 – está feita a figura da concessão e, tendo isso em
vista, se entende melhor a frase antes citada de García no sentido de
que as concessões apenas existem porque “dependen de la voluntad del
Gobierno y del funcionario que puede modificarlas”. Já que, a despeito de
que essas questões críticas fiquem abertas, o certo é que as concessões
não apenas se instauram, mas também se expandem e são capazes de
cobrir boa parte da Amazônia peruana e, inclusive, de sobrepor-se
Políticas públicas: reflexões antropológicas 256

a territórios de reservas comunais previamente constituídas e assim


terminar por desvirtuá-las (ALVAREZ, 2006).
O que soma um paradoxo mais, dado que a existência das
concessões é, em princípio, puramente virtual; como assinala Alvarez de
Castillo, a exploração dos recursos naturais é meramente a consumação
de uma forma de propriedade preestabelecida que inclusive antes disso
já é reconhecida como figura jurídica de total validade no mercado
de títulos (ALVAREZ, 2012, p. 278). Com efeito, a concessão pode ser
operada plenamente no sistema financeiro ainda antes de resolver suas
inconsistências ou de confrontar-se com outras pretensões sobre o
mesmo território. A eficácia dessa figura é o que o Hernando de Soto
chama um supertítulo, que certamente desperta seu entusiasmo, vendo
justamente aí o caminho a seguir:

Fíjense como lo hacen las compañías que explotan recursos


naturales en el Perú y otros países del tercer mundo. Primero
obtienen una concesión, un título de propiedad privado sobre el
territorio que quieren desarrollar. Luego fortalecen su derecho
acogiéndose a las garantías otorgadas por tratados internacionales
firmados en el Perú y el país donde ha sido constituida su
empresa. Esto les da un supertítulo de propiedad porque el Perú
se ha comprometido internacionalmente a permitirles elegir la
modalidad de producción que más le conviene para hipotecar sus
concesiones, remesar utilidades, y no les pueden cambiar la ley ni
la tasa de los impuestos acordados. Con todas estas protecciones
van a los mercados de capitales y convierten sus títulos peruanos
en dinero para la inversión. (DE SOTO, 2009).

O balanço que Alvarez (2012, p. 284) faz desse modelo é bastante


mais crítico, na medida em que aponta para o fato que “la riqueza
alcanzada con este régimen de propiedad es completamente privada,
mientras que el costo de los daños que produce se hace pública”. O que,
por minha parte, gostaria de ressaltar é que o modelo da concessão
se constitui – e atua – peculiarmente pela justaposição sobre outros
territórios e direitos, de tal modo que, indiferentemente se o perro
del hortelano continue latindo ou que o mendigo siga sentado sobre
seu banco de ouro, o modelo consegue despojá-los de suas riquezas e
impor suas condições e pretensões.
E é aqui que emerge outra figura diante da qual, por encontrar-se
fora de seu alcance, García não consegue ocultar sua irritação, alegando
que se trata de uma invenção puramente retórica. Escreve assim em seu
artigo: “Y contra el petróleo han creado [os antropólogos e, em geral,
O “perro del hortelano” e os impactos de uma metáfora política em territórios indígenas 257

os supostos opositores do desenvolvimento do país] la figura del nativo


selvático ‘no conectado’ [sic]; es decir, desconocido pero presumible, por lo
que millones de hectáreas no deben ser exploradas” (GARCÍA PÉREZ,
2007). Não podemos descartar que é contra essa imagem, precisamente,
que García gera e lança o perro del hortelano, porque as diferenças
efetivamente se radicalizam através dessas figuras.
Como fez notar o antropólogo Rodrigo Montoya (2009), a defesa
explícita dos interesses dos índios não contatados (que constituem
oito grupos no Peru) por parte das organizações indígenas constitui
uma “lição de generosidade” e uma forma de pensar o futuro que
está completamente ausente nas instâncias do Governo. Mais ainda,
poderíamos dizer que esse gesto condensa uma forma de pensar os
outros – mesmo quando estes optam em manter-se a distância – e revela
uma abertura no modo de tratar as diferenças que permitem entrever o
potencial de uma alternativa indígena no que diz respeito ao modo de
conceber e praticar suas políticas. De tal modo que no destino dessas
imagens irredutíveis, dessas figuras recalcitrantes obstinadas de vida
separada, é que também parece se jogar uma abertura em direção a
outros desenvolvimentos possíveis.16 Para ser conduzidos, desta vez, já

16
A modo de anexo, gostaria de citar e comentar ainda umas declarações de García
Perez disponíveis em vídeo, no qual realiza um forte ataque ao que ele chama de “formas
primitivas de religiosidade” e, especialmente, contra algumas formas de veneração dos
antepassados. Essa crítica é formulada a partir dos interesses conjuntos da modernidade
e, claro, das possibilidades de extração de recursos que, justamente, encontra obstáculos
nos lugares destinados aos ancestrais. Diz no vídeo: Derrotar as ideologias absurdas,
panteístas, que creem que as paredes são deuses, e a luz é deus, e enfim, que voltam a essas
formas primitivas de religiosidade, nas quais se diz “não toque nesse morro, porque ele é um
Apo, e está cheio de espíritos milenares e não sei que coisas. Se chegamos a isso, então não
fazemos nada, nem mineração, e “não toque nesses peixes, porque são criaturas de deus, e
são a expressão de deus Poseidon […]” Voltamos a este animismo primitivo. Eu penso que
necessitamos mais educação. E isso é um trabalho de longo prazo, não se faz assim. Porque
você pode ir a qualquer lugar onde a população, de boa-fé e de acordo com a sua educação,
diz “não, não toque nesta zona, porque é um santuário”. E alguém poderia perguntar
“santuário do que?”, não? Se é um santuário do meio ambiente, veja bem, “é um santuário
porque aí estão as almas dos antepassados”, mas as almas dos antepassados estão no
paraíso, seguramente, não estão aí! E então deixe os que agora vivem ou trabalham investir
nesses morros! Então veja, é um longo trabalho, e que temos avançado não significa que
todas as nossas formas um pouco antigas de pensamento foram superadas (Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=YLryNjy-ZUo>. Acesso em: 31 out. 2013).
Pouco tempo depois, no entanto, vemos o mesmo Alan García Pérez fazendo questão de
instalar um Cristo monumental – parece que foi um presente da Odebrecht, de modo
que aí se juntam outros cabos – no litoral de Lima. Isso não parece um gesto político
em consonância com a aplanadora modernidade que ele mesmo defendia, ao menos
Políticas públicas: reflexões antropológicas 258

não pela dinâmica avassaladora do poder, mas pela convicção de que


em cada parte mora um novo ponto de partida.

Referências

ADORNO, R. The polemics of possession in Spanish American narrative. New


Haven: Yale University Press, 2007.
ALVAREZ, A. La propiedad compleja gobernanza de la tierra y conservación en
la Amazonia: la reserva comunal Amarakaeri Madre de Dios, Perú. 2012. Tese
(Doutorado em Estudos do Desenvolvimento) – Universidade de Geneva,
Geneva, 2012.
ALVAREZ, A. Las políticas públicas del Territorio Amazónico de la Región
del Cuzco: una aproximación para su estudio. Estudios Amazónicos: minorías
en la sociedad global, Lima, n. 4, 2006.
CHIRIF, A.; GARCÍA, P. Marcando territorio progresos y limitaciones de la
titulación de territorios indígenas en la Amazonía. Copenhague: IWGIA, 2007.
DE SOTO, H. The mystery of capital: why capitalism triumphs in the West and
fails everywhere else. London: Black Swan, 2000.
DE SOTO, H. El misterio del capital de los indígenas amazónicos. 2009.
Concebido e escrito por Hernando de Soto. Dirigido por James Becket.
Produzido por Bernardo Roca Rey e Hernando de Soto. Direção das
pesquisas: Ana Lucia Camaiora. Editado e produzido pelo Instituto Libertad
y Democracia, Lima (Peru). Disponível em: <http://www.youtube.com/
watch?v=zWhoLP2MDQY>. Acesso em: 30 out. 2013.
GARCÍA PÉREZ, A. El síndrome del perro del hortelano. El Comercio, Lima,
28 out. 2007. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/26539211/Alan-
Garcia-Perez-y-el-perro-del-hortelano>. Acesso em: 30 out. 2013.
MONTOYA, R. “Con los rostros pintados”: tercera rebelión amazónica. 2009.
Disponível em: <http://www.cetri.be/spip.php?article1305, http://alainet.org/
active/32540&lang=es>. Acesso em: 30 out. 2013.

que seja uma demonstração dos buracos e contaminações desse projeto, identificados,
entre outros, por Latour. Poderíamos pensar que o Cristo de García Pérez, inscrevendo-
se na mesma trajetória dos extirpadores de idolatrias da conquista, concorre com as
huacas do litoral peruano... De qualquer maneira, vê-se que as impurities, os buracos
por onde se filtram formas simbólicas, são parte constitutiva do discurso político, em
que raramente contam apenas meras abstrações, mas também as metáforas e a eficácia
destas não deve ser apenas levada secundariamente em consideração, pois tudo indica
que é crucial concebê-las como operadores políticos plenos de implicâncias.
O “perro del hortelano” e os impactos de uma metáfora política em territórios indígenas 259

NEWING, H.; WAHL, L. Benefiting local populations?: communal reserves in


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PERÚ. Constitución Política del Perú. 1993. Disponível em: <http://www4.
congreso.gob.pe/ntley/Imagenes/Constitu/Cons1993.pdf>. Acesso em: 30 out.
2013.
SCHEFFLER, I. Symbolic worlds. Cambridge: Cambridge University Press,
1997.
SCHEFFLER, I. Ten myths about metaphor. The Journal of Aesthetic
Education, v. 22, n. 1, Spring 1988.
Migrantes indesejados? A imigração
haitiana e os desafios à política
migratória brasileira

Gláucia de Oliveira Assis


Sidney Antônio da Silva

O Brasil, que construiu ao longo do século XX uma autoimagem


de país de imigração, vivencia, neste início de século XXI, um duplo
movimento: desde os anos 1980 há um significativo movimento de
brasileiros para o estrangeiro e um novo fluxo de coreanos, chineses,
bolivianos e outros latinos para o Brasil. Tais fluxos se intensificaram
a partir da nova posição do Brasil no cenário internacional, que, no
momento em que a Europa e os Estados Unidos vivenciavam uma grave
crise econômica, passava por um cenário de estabilidade econômica.
Nesse contexto, o Brasil voltou a aparecer no cenário internacional como
uma terra de oportunidades, atraindo imigrantes internacionais. São os
novos migrantes internacionais do e para o Brasil (ASSIS; SASAKI, 2001).
Conforme observa Patarra (2012, p. 7):

O crescimento e a estabilidade econômica do Brasil têm atraído


imigrantes de todo o mundo. Em 2011, o Ministério da Justiça
registrou 1,466 milhão de estrangeiros regulares vivendo no
país. Em 2010, eram 961 mil. Esse contexto demanda que órgãos
governamentais e entidades que lidam com o tema trabalhem
na elaboração e implementação de ações visando à proteção dos
direitos fundamentais aos migrantes, com vistas à integração
social.
Migrantes indesejados? 261

Nesse cenário promissor, pelo menos do ponto de vista econômi-


co, haitianos começaram a chegar nas fronteiras amazônicas no início
de 2010, particularmente, nas cidades fronteiriças de Tabatinga (AM)
e Brasiléia (AC), solicitando “refúgio” (SILVA, 2012, p. 302). Com a
intensificação do fluxo, a presença deles naquelas fronteiras converteu-
se em um “problema” humanitário e jurídico, que suscitou uma tomada
de posição do governo brasileiro através de uma Resolução Normativa
Específica do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que pela
primeira vez, desde a Segunda Guerra Mundial, estabeleceu cotas para
a entrada de uma nacionalidade no país. A publicação dessa Resolução
Normativa1 que institui o “visto humanitário” que regulamenta a entra-
da de haitianos no país tem levantado questões significativas sobre a
política migratória brasileira.
Nessa perspectiva, este artigo pretende discutir em que medida
essa Resolução evidencia as contradições da política migratória
brasileira, que, por um lado, pede tratamento humanitário e reconhe-
cimento de direitos dos emigrantes brasileiros no exterior, e que, por
outro, num primeiro momento, restringe a entrada daqueles que fogem
da crise e instabilidade, agravadas pelo terremoto de 2010 no Haiti,
e que depois suspende tal restrição, porém, sem criar as condições
para a entrada deles no Brasil, livres da mediação dos “coiotes”.2 Se
a seletividade tem sido uma marca da política migratória brasileira
durante o século XX, deixando explícito no Estatuto do Estrangeiro
de 1980 quem são os migrantes desejáveis, cabe perguntar, então, por
que o Brasil oferece um tratamento diferenciado aos haitianos, já que
outras nacionalidades também enfrentam situações de vulnerabilidade
análogas à deles. Seria apenas por uma questão humanitária, ou tal
medida estaria ocultando, na verdade, outras questões, nem sempre
explicitadas pelo discurso oficial.

1
Resolução Normativa no 97, de 12 de janeiro de 2012, que dispõe sobre a concessão
de visto permanente previsto no artigo 16 da Lei no 6.815, de 19 de agosto de 1980 aos
nacionais do Haiti.
2
O termo “coiote” foi inicialmente empregado para se referir aos atravessadores que
cobravam para fazer a travessia de imigrantes indocumentados na fronteira do México
com os Estados Unidos. No caso dos haitianos, o termo tem sido empregado para se
referir aos atravessadores que cobravam até quatro mil dólares para fazer a travessia que
passa pela República Dominicana, Equador e Peru, cujas rotas podem ser definidas de
acordo com os custos e interesses dos “coiotes” que atuam na região.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 262

Breve histórico das políticas migratórias no Brasil


– os migrantes “desejados” no final do século XIX
e início do século XX

As levas de imigrantes que chegaram ao Brasil no final do século


XIX trouxeram uma importante contribuição demográfica, econômica
e cultural na formação da população brasileira. Esses fluxos migratórios
de portugueses, espanhóis, italianos, alemães, sírio-libaneses, japoneses,
entre outros fluxos, contaram com políticas migratórias que favoreceram
sua chegada e estabelecimento no Brasil.
Segundo Seyferth (1996), a política imigratória nesse período
representava uma estratégia que se iniciou no Império e permaneceu
durante a Primeira República, principalmente após a abolição da
escravatura, e que consistiu em articular a política imigratória com os
interesses de povoamento e de fornecimento de mão de obra livre e
branca numa tentativa de aproximar o Brasil dos padrões de eugenia
europeus. Nessa mesma direção, Carlos Vainer (1995) destacou que as
políticas migratórias que foram implementadas tanto durante o Império
(1882-1899) quanto as que ocorrem logo após a proclamação da
República (1899) priorizavam imigrantes europeus numa clara opção
de empregar gente branca, livre e industriosa (grifo do autor).
Esse período de intensa migração, que poderemos situar entre 1870
e 1930, quando chegaram ao país cerca de cinco milhões de imigrantes, é
chamado imigração histórica e contou, conforme observam Póvoa Neto
e Sprandel (2010), com apoio oficial de políticas de direcionamento de
imigrantes para o mercado de trabalho e para áreas de colonização, no
sentido de promover uma europeização do Brasil, que visava aproximar a
população brasileira de padrões étnicos e culturais europeus entendidos
naquela época como desejáveis para a constituição da população.
Entretanto, já nesse período havia políticas seletivas para imigrantes, pois
os japoneses só vieram para o Brasil em 1908, após amplo debate sobre
as suas possibilidades de assimilação. Situação diferente foi a de negros
americanos que tentaram vir para o Brasil emigrando a partir dos Estados
Unidos e não conseguiram aportar no país.
As primeiras medidas restritivas à migração são publicadas a
partir de 1930, num contexto da crise mundial de 1929 e da crise do
café. Na Constituição de 1934 e na de 1937 foram estabelecidas cotas
para imigrantes no país, o que fez reduzir a imigração para o Brasil
Migrantes indesejados? 263

(PATARRA, 2012; GERALDO, 2009).3 Por fim, durante a Segunda Guerra


Mundial, são estabelecidas medidas restritivas para receber imigrantes,
principalmente aqueles que fugiam das perseguições da guerra, e são
estabelecidas cotas de imigração que reduzem significativamente a
entrada de imigrantes no Brasil.
No pós-guerra diminuíram significativamente os fluxos de imi-
grantes para o Brasil. Nesse período, nas décadas de 1950 e 1960, cessaram
as políticas dirigidas para atrair imigrantes e o Estado volta-se para atrair
imigrantes qualificados e para setores específicos da economia (PÓVOA
NETO; SPRANDEL, 2010). É também um período marcado por intensa
migração interna. Durante o regime militar (1964-1984), conforme obser-
varam Póvoa Neto e Sprandel (2010), as políticas de Estado não mais se
direcionavam a atrair imigrantes como estratégia de desenvolvimento, pois
a presença do estrangeiro passou a ser observada sob a ótica da segurança
nacional. Assim, a política migratória desse período não apenas deixou de
acolher migrantes econômicos, como também exilados e solicitantes de
asilo que também fugiam de regimes autoritários.
Nos anos 1980, o país passou a vivenciar um quadro novo em
seus movimentos de população, quando há um significativo fluxo
de brasileiros para o exterior. Segundo dados do Ministério das
Relações Exteriores, em 2013, estimava-se que houvesse em torno de
2.547.079 brasileiros no exterior (BRASIL, 2013). Tal fluxo iniciou-se
direcionado principalmente para os Estados Unidos, Japão, Paraguai
e Europa, mas desde meados da década de 1990, e principalmente
após os atentados de 11 de setembro de 2011, tem se direcionado
para a Europa. Esse movimento migratório colocou novas questões
para as políticas migratórias brasileiras4 visando atender às demandas
dos brasileiros que na segunda metade do século XX enocntraram
na migração internacional uma alternativa para seus projetos de
mobilidade social (SALES, 1999).

3
Conforme observam Patarra (2012) e Geraldo (2009), a Constituição de 1934
estabelecia restrições à imigração, visando garantir a integração étnica e capacidade
física e civil do imigrante. Foi fixada a cota de 2% de imigrantes de cada nacionalidade
que haviam chegado nos últimos cinquenta anos ao país. Essas leis fizeram reduzir
significativamente a imigração de japoneses, alemães e outros grupos imigrantes e se
tornaram mais restritivas durante o Estado Novo. A Constituição de 1937 era mais
restritiva ainda, pois limitava a entrada no país de certas raças ou origens, privilegiando
abertamente a imigração europeia.
4
Ver em Reis (2011) uma análise das políticas migratórias para os brasileiros no
exterior.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 264

No mesmo período ocorre um fluxo de imigrantes para o Brasil –


coreanos, chineses, bolivianos, libaneses, imigrantes latino-americanos
chilenos, uruguaios, argentinos, colombianos e africanos, que aponta
para um perfil sociocultural distinto das migrações que ocorreram
no século XIX e início do século XX. A partir da crise econômica
na Europa e da estabilidade econômica e política no Brasil, mais
recentemente, portugueses, espanhóis e outros migrantes, “fugindo”
da crise europeia, veem no Brasil uma “terra de oportunidades”, pois
iria abrigar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olimpicos de 2016.
Assim como os europeus que buscavam oportunidade de trabalho
no Brasil, os haitianos, que se depararam com o agravamento de sua
situação econômica e política após o terremoto de 2010, começaram
a chegar pela fronteira norte do país. Segundo Patarra (2012), no
período de 2008 a 2011, o número de estrangeiros que obtiveram
visto de trabalho/residência no Brasil aumentou em 60%, passando
de 43.993 solicitações atendidas em 2008 para 70.524, em 2011, o que
indica a intensificação desse movimento de entrada de imigrantes
estrangeiros (PATARRA, 2012, p. 9).
Como o Estado brasileiro trata esses novos imigrantes? Embora
estejamos falando de fluxos que se iniciaram na década de 1980
e se intensificaram nos últimos anos, a lei que regula a entrada e
permanência desses imigrantes permanece sendo aquela elaborada nos
anos 1980, no contexto da ditadura militar: o “Estatuto do Estrangeiro”
ou Lei no 6.815/1980. Esse marco regulatório, ainda em vigor no país, é
de cunho autoritário e nele está presente a lógica da segurança nacional,
não contemplando, portanto, uma perspectiva de direitos humanos
dos imigrantes e tampouco a questão da emigração (PÓVOA NETO;
SPRANDEL, 2010; REIS, 2011).
Os imigrantes que chegam ao país nesse início de século XXI
fazem parte de movimentos transnacionais de mão de obra, pessoas
que buscam circular no mundo globalizado em busca de melhores
condições de vida. Ao chegarem ao Brasil, esses imigrantes se deparam
com um Estatuto do Estrangeiro que é da década de 1980, considerado
anacrônico em relação à Constituição de 1988 e ao Plano de Direitos
Humanos do governo brasileiro. A sociedade civil, por sua vez, aguarda
há décadas a aprovação de um novo marco regulatório e políticas
migratórias, conforme tem sido apontado por vários estudiosos da
questão, entidades que trabalham com migrantes, associações, igrejas
etc. Segundo Reis (2011, p. 59):
Migrantes indesejados? 265

A principal crítica das organizações que defendem os interesses


dos imigrantes no Brasil diz respeito ao fato de que muitas
das disposições presentes na lei de 1980 estão em flagrante
descompasso com as disposições relativas ao respeito dos
direitos humanos presentes na Constituição de 1988. A
inconsistência da legislação de 1980 é apontada como um ponto
fraco das demandas do Estado brasileiro para tratar a questão
dos emigrantes brasileiros em negociações e fóruns bilaterais e
multilaterais. (ACNUR et al., 2007).

Com relação à proposição de uma nova Lei de Estrangeiros,


tramita no Congresso Nacional desde 2009 o Projeto de Lei (PL) no
5.655/2009, sem previsão para ser votado. Entre as principais inovações
desse projeto, destaca-se a permissão para que os estrangeiros
participem de administração de sindicatos, de associações profissionais
e de entidades fiscalizadoras do exercício de profissões regulamentadas.
A proposta também extingue a exigência de boa saúde para entrada e
permanência no país. Apesar desses avanços, esse PL ainda mantém a
desconfiança da legislação atual em relação ao estrangeiro, ao proibi-
lo de exercer “atividade político-partidária”, assim como de “organizar,
criar ou manter associação ou quaisquer entidades de caráter político”
(art. 8o). Além disso, amplia de quatro para dez anos o prazo mínimo
para solicitar a naturalização (VENTURA; ILLES, 2012).
Essas são algumas das contradições da nova proposta observadas
por Ventura e Illes (2012), que destacam que esse PL reconhece que
a migração é um direito humano, a importância da regularização
migratória para inserção dos migrantes na sociedade e sua contribuição
para o desenvolvimento do país; no entanto, mantém procedimentos
burocráticos e mecanismos de expulsão contradizendo os pressupostos
iniciais do documento. Ventura e Illes (2012) ressaltam ainda que,
enquanto não temos uma nova Lei de Estrangeiros, a orientação do
Conselho Nacional de Imigração é estender aos emigrantes os mesmos
direitos fundamentais concedidos aos brasileiros.
Por conseguinte, ao mesmo tempo que tramita a proposta do novo
Estatuto do Estrangeiro, em 2010 o Conselho Nacional de Imigração
(CNIg) submeteu à avaliação pública uma proposta de “Política
Nacional de Imigração e Proteção ao(à) Trabalhador(a) Migrante”, cujo
proposta nos remete à Convenção Internacional da ONU de 1990 sobre
“A proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes e membros de sua
família”, a qual ainda não foi ratificada pelo Brasil.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 266

Nesse vai e vem de propostas e desencontros de posições sobre


a questão do ingresso de estrangeiros no Brasil em diferentes esferas
do governo, em 2013 o Ministério da Justiça indicou uma comissão de
notáveis e lhes incumbiu a tarefa de formular um Anteprojeto de Lei de
Imigração pautado na perspectiva dos direitos humanos. O resultado
foi apresentado em 2014, e entre as mudanças mais controversas temos
a criação da Autoridade Nacional Migratória (ANM), vinculada ao
Ministério da Justiça, e a transformação do Conselho Nacional de
Imigração (CNIg) em Conselho Nacional sobre Migração (CMIg), para
dar conta também de uma política voltada para emigrantes brasileiros.
De um modo geral, a proposta de Projeto de Lei representa
um avanço em relação ao anterior (2009), cuja preocupação principal
era ainda a da “Segurança Nacional”. Contudo, ela ainda mantém
algumas ambiguidades, como a dicotomia entre estrangeiro/imigrante;
temporário/permanente; interesses nacionais/direitos do imigrante.
Com relação à dicotomia entre estrangeiro e imigrante, é preciso deixar
claro o que se entende por imigrante, pois “todo estrangeiro que transite
no país” é muito vago, já que um turista que esteja visitando o Brasil não
pode ser considerado um imigrante. Já no caso da ambiguidade entre o
visto temporário e permanente, a proposta é ainda mais contraditória,
pois como pode ser considerado “permanente” um visto que tem prazo
de validade especificado, ou seja, dez anos? Nesse caso, o imigrante
continua na condição de estrangeiro, com sua cidadania regulada.
Com relação ao conceito de “interesses nacionais”, não fica claro que
interesses são esses, pois isso remete à já tão criticada ideologia da
“Segurança Nacional”. Nesse caso, o imigrante continua sendo visto
como uma possível ameaça ao Estado.
Embora o atual projeto incorpore a categoria imigrante nas suas
dimensões sociais, culturais e econômicas, ele silencia na sua dimensão
política, ou seja, o direito ao voto em nível local, aliás, uma antiga
reivindicação dos imigrantes e  de suas organizações, como condição
para o exercício pleno da cidadania.
Outra questão ambígua diz respeito ao visto humanitário,
que pode ser concedido por até um ano, podendo ser prorrogado.
O visto humanitário não seria um eufemismo para conceder um visto
“temporário” àqueles que não são os desejáveis do ponto de vista social e
cultural, porém, necessários à reprodução econômica de alguns setores
da economia brasileira, já que, segundo Gaudemar (1977), é o capital
que coloca em movimento a força de trabalho.
Migrantes indesejados? 267

Com relação aos refugiados, após a aprovação do Estatuto dos


Refugiados (Lei no 9.474/97), bem como a criação do Comitê Nacional para
os Refugiados, pode-se observar que ocorreu um crescimento do número
de pedidos de refúgio no país. Esse Conselho é um órgão deliberativo
tripartite com representação do governo, da sociedade civil e do Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Dentre
os grupos que buscam refúgio no Brasil, destacam-se os provenientes de
Bangladesh, Senegal, Líbano e Síria, homens e mulheres que fogem de
guerras e conflitos políticos no Oriente Médio. Em 2013, os sírios foram
os que obtiveram mais concessões de refúgio, seguidos pelos congoleses
e colombianos. No caso dos haitianos, que começaram a chegar em
número significativo após o terremoto no Haiti em 2010, inicialmente eles
entraram com pedidos de refúgio que foram analisados até fevereiro de
2012. No entanto, a partir da Resolução no 97/2012 do Conselho Nacional
de Imigração, que passou a conceder visto humanitário aos haitianos,
eles passaram a não se enquadrar na categoria de refúgio, embora a
generalizada situação de violação dos direitos humanos no Haiti seria
mais que suficiente para serem tratados como tal.
Nesse sentido, o tratamento que está sendo dispensado aos
haitianos e outros imigrantes contrapõe-se a uma autoimagem de um
país de acolhimento de imigrantes. Segundo os dados do Censo de
2010, estariam residindo no Brasil, 286.468 imigrantes. Os haitianos
representam uma parcela pequena desse contingente, pois é um
movimento mais recente que ainda não foi apreendido pelo Censo.
Para esses imigrantes estrangeiros, conforme observaram Reis (2011)
e Patarra (2012), recentemente ocorreram três anistias realizadas
pelo governo brasileiro: a primeira em 1988; a segunda em 1998; e,
finalmente, a terceira em 2009, todas visando regularizar a situação de
imigrantes indocumentados. Nessa última, a Lei no 11.961 possibilitou
que, entre 2009 e 2011, se regularizassem 43 mil estrangeiros, entre
os quais 17 mil bolivianos e mais de quatro mil paraguaios. Ainda
segundo Reis (2011, p. 61):

Se, por um lado, as anistias demonstram a “boa vontade” oficial


para lidar com a questão dos indocumentados, por outro
lado revelam a persistência do problema ao longo dos anos e a
necessidade de uma política mais abrangente. Idealmente, com a
implementação dos acordos de livre circulação e a nova legislação
de estrangeiros, o número de indocumentados no país deve cair.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 268

Nessa breve análise da legislação brasileira, constata-se que é


fundamental a discussão e aprovação de um novo marco regulatório
em sintonia com a percepção da migração a partir da ótica dos direitos
humanos que não veja o estrangeiro como uma ameaça à “Segurança
Nacional”. Enquanto isso não ocorre, a saída tem sido a emissão de
resoluções normativas, como a que estabeleceu o visto humanitário
para os haitianos, revelando as ambiguidades da política migratória
brasileira, pois enquanto vemos com preocupação a entrada de haitianos
e africanos pelas fronteiras amazônicas, continuamos favorecendo a
entrada de imigrantes qualificados que fogem da crise europeia.

Haitianos e africanos nas fronteiras amazônicas:


uma “invasão”?

Historicamente a região amazônica atraiu estrangeiros que


chegavam através dos rios e das migrações transatlânticas para trabalhar
em Belém e também em Manaus em busca das oportunidades criadas
pelo ciclo da borracha e outras indústrias extrativas. (XAVIER, 2012).
Nos anos 1980 e 1990 se intensifica o fluxo na fronteira com
incremento de migrantes sul-americanos na capital amazonense.
Segundo Xavier (2012), esse movimento migratório estaria relacionado
aos grandes projetos em Manaus na década de 1970, entre eles a criação
da Zona Franca de Manaus, em 1969. Grande parte desse fluxo era de
nordestinos, mas há um contingente considerável de sul-americanos
que circulam pela região pan-amazônica.
Os peruanos e colombianos que chegaram a Manaus nos anos
1980 e 1990 já encontraram, segundo Xavier (2012), o país num
processo de redemocratização. Isso pode ter tido peso na decisão
de migrar, destacando-se nesse contexto uma dimensão política nos
fluxos migratórios. Nesse sentido, peruanos e colombianos chegaram
ao Brasil em busca de uma condição cidadã, em busca de refúgio.
Conforme o autor, muitos que chegaram à Amazônia e solicitaram
refúgio não se enquadravam na definição estrita de refúgio, que
implica “possuir fundamentado temor de perseguição em função de
religião, raça, opinião pública, pertencimento a determinado grupo
social, nacionalidade”. Segundo Silva (2011), o objetivo da vinda
de peruanos e colombianos para o Amazonas não é, obviamente, o
“turismo ecológico”, mas a busca de oportunidades no mercado de
trabalho e de proteção, no caso dos refugiados.
Migrantes indesejados? 269

No entanto, há um grupo cada vez maior de pessoas que se


encontram em situação de deslocamento, em decorrência de catástrofes
ambientais, e que buscam “refúgio” em países como o Brasil, como é
o caso dos haitianos que passaram a emigrar mais significativamente
após o terremoto que assolou o Haiti. Diferentemente das notícias que
apontavam para uma “invasão” de haitianos nas fronteiras brasileiras,
há um fluxo contínuo desses imigrantes que começou a se intensificar a
partir de 2010, atingindo o seu ápice em 2012 e 2013.
Considerando a situação dos haitianos que buscaram “refúgio”
no Brasil, Fernandes, Milesi e Farias (2011) destacam que, no que se
refere a considerar uma nova categoria de refúgio para deslocamentos
provocados por catástrofes ambientais, não há consenso da
comunidade internacional sobre ampliar o conceito de refúgio para
incluir também aqueles que fugiram de seu país em decorrência de
catástrofes naturais ou questões ambientais. No entanto, segundo os
autores “quando se junta uma situação política caótica, com um fator
de catástrofe natural, não há como obter respostas às necessidades
mínimas da população. Esta situação de extrema vulnerabilidade é
que deve ser entendida como o fator que leva os haitianos a tomarem
a decisão de emigrar”. Para esses autores é sob essa ótica que o governo
brasileiro deveria procurar uma solução humanitária para a questão
dos haitianos; mas, como veremos no decorrer da análise da situação
dos haitianos, as medidas tomadas pelo governo brasileiro, em alguns
contextos, têm dificultado, em vez de possibilitar o melhor acolhimento
desses migrantes em situação de extrema vulnerabilidade.
Se a presença haitiana no Brasil é um fato novo tanto para o gover-
no brasileiro quanto para os brasileiros, particularmente para aqueles que
vivem no norte do país, quais seriam as razões para que o Brasil passasse
a fazer parte da rota de migração dos haitianos? Um breve olhar sobre
a situação social do Haiti nos indica que se trata de um dos países mais
pobres da América Latina, com um dos piores índices de desenvolvimento
humano. A instabilidade política vivenciada pelo país há décadas levou
à intervenção da ONU por meio de uma missão de paz chefiada pelo
Brasil, em 2004: Missão das Nações Unidas para a Estabilização do
Haiti (MINUSTAH). A esse cenário de instabilidade associam-se as
consequências do terremoto de 2010, que matou mais de 150 mil pessoas
e ruiu com as já precárias estruturas habitacionais e governamentais do
país. Esse quadro dramático acabou impulsionando e intensificando
a emigração, já tradicional entre os haitianos, que têm a migração
como parte constitutiva de suas trajetórias como uma população em
Políticas públicas: reflexões antropológicas 270

diáspora. Dessa forma, o Brasil se torna um dos locais de destino, dadas


as dificuldades encontradas pelos haitianos de se dirigir a destinos mais
tradicionais como Estados Unidos, Canadá, França e Guiana Francesa.
O Brasil emerge como “terra de oportunidades” não apenas por causa da
presença brasileira a partir da missão de paz, mas também pelas imagens
positivas como um país em crescimento, que iria sediar dois grandes
eventos: a Copa do Mundo e as Olimpíadas, convertendo-se, portanto,
num destino possível para os haitianos nesse contexto de dificuldade
de emigrar para outros países. Segundo dados do Banco Mundial (2011
apud FERNANDES; CASTRO, 2014), estima-se que aproximadamente
10% da população do país teria emigrado (1.009.400 pessoas), mas outras
fontes indicam que a diáspora haitiana já tenha ultrapassado a casa de três
milhões de pessoas (FERNANDES; CASTRO, 2014).
Sendo assim, a diáspora haitiana se espalha por vários países:
Estados Unidos, país de maior afluxo de migrantes; República Domini-
cana; outros países da América e do Caribe, com destaque para Canadá,
Cuba e Venezuela. Assim, o Brasil não era o destino preferencial desses
migrantes, mas num contexto em que medidas restritas dificultam cada
vez mais a emigração para os Estados Unidos, República Dominicana
e Europa, o país que tem uma boa imagem no Haiti passou a ser um
dos destinos desses imigrantes.5 Contribuíram para a construção dessa
imagem: o jogo da Paz entre a seleção brasileira e a seleção haitiana de
futebol, a atuação do Brasil no Haiti, liderando a missão humanitária
da ONU, a estabilidade política e econômica do Brasil em meio a um
cenário de crise econômica mundial e o anúncio pelo governo brasileiro,
logo após o terremoto, de ajuda humanitária do Brasil no processo de
reconstrução do Haiti – medidas que não ocorreram efetivamente,
como pode se observar no artigo de Thomaz e Nascimento (2012)6 –
tornaram o Brasil um dos destinos dos emigrantes da diáspora haitiana,
embora anteriormente não tenha sido um destino preferencial.

Para maiores informações sobre a diáspora haitiana e sua cultura migratória, ver
5

Caffeu e Cutti (2012); Continguiba e Pimentel (2012); Fernandes (2010); Godoy (2011);
Handerson (2010); Silva (2011, 2012).
6
Segundo Thomaz e Nascimento (2012), após o terremoto o governo brasileiro
anunciou projetos ambiciosos de intercâmbio e formação de quadros haitianos em
áreas estratégicas como a Saúde e a Educação, para os quais dotações orçamentárias
foram rapidamente aprovadas, mas cuja execução nunca aconteceu. Da mesma forma,
anunciou a oferta de 500 bolsas a estudantes da rede universitária haitiana, para os quais
se candidataram cerca de 3.500 estudantes, dos quais apenas 80 conseguiram as bolsas.
Migrantes indesejados? 271

Como destacam Thomaz e Nascimento (2012), o estranhamento


pela chegada de cerca de quatro mil haitianos no país em 2011 não faria
sentido, tendo em vista o volume dezenas de vezes maior de imigrantes
europeus no período. Conforme destacam os autores,

O Brasil nunca foi e segue não sendo destino preferencial de uma


migração cuja dinâmica o Itamaraty e outros ministérios insistem em
ignorar. Há por volta de 3 milhões e meio de haitianos espalhados por
dezenas de países em três continentes, todos abrigando comunidades
consideravelmente maiores e infinitamente mais bem acolhidas que no
Brasil. (THOMAZ; NASCIMENTO, 2012).

Vale notar que a chegada dos haitianos pelas fronteiras amazônicas


não constitui uma opção a mais que eles dispõem para a emigração, mas
para a maioria é a única via disponível, já que os entraves burocráticos
e a demora na concessão do visto na Embaixada Brasileira de Porto
Príncipe tornam inviável a vinda pela rota mais curta e mais barata, que
seria através de algum aeroporto brasileiro. Nesse sentido, para os que não
querem esperar meses por um visto, a saída é percorrer rotas mais longas
e custosas, além de estarem sujeitos a diferentes riscos, como a violência
e a extorsão exercida por guardas de fronteiras. Sendo assim, eles passam
por diferentes países, por via aérea, entre eles República Dominicana,
Equador e Peru; depois, por trajeto terrestre e fluvial chegam à fronteira
norte do Brasil, principalmente nas cidades de Assis Brasil e Brasiléia
(AC), Tabatinga (AM), ou em alguns casos, pela Região Centro-Oeste
ou Sul, num trajeto mais longo, entrando por Corumbá (MS) ou Foz do
Iguaçu (PR). As principais rotas encontram-se no mapa a seguir:
Políticas públicas: reflexões antropológicas 272

Principais rotas do fluxo migratório de haitianos para o Brasil

Fonte: Fernandes, Milesi e Farias (2011, p. 81)

Contudo, essas rotas foram se alterando ao longo do tempo.


Enquanto a rota via Tabatinga (AM) deixou de ser a principal porta de
entrada deles, talvez em razão das dificuldades de acesso à cidade de
Manaus, em geral feito em barco, e também pela diminuição das ofertas
de emprego no mercado de trabalho local, em contrapartida a rota via
Brasiléia, passando por Rio Branco (AC), passou a ser mais interessante,
Migrantes indesejados? 273

em razão do apoio do governo daquele estado, o qual mantém uma casa de


acolhida nos arredores da capital acriana, além de oferecer passagens para
os que querem ir a São Paulo em busca de trabalho. Outras possibilidades
de entrada pela fronteira norte são via Pacaraima (RR), para os que já
estavam na Venezuela e decidiram reemigrar para o Brasil, ou ainda por
Georgetown, a capital da República Cooperativista da Guiana, passando
depois por Lethen, na fronteira com o Brasil, no estado de Roraima.
Depois eles seguem via terrestre até Boa Vista e, em seguida a Manaus.
Até 2012, quando chegavam nas fronteiras brasileiras, esses
imigrantes solicitavam refúgio alegando a impossibilidade de viver
no pais após o terremoto de 2010. Como o Brasil é signatário da
convenção da ONU sobre refugiados, essas solicitações eram acolhidas
e encaminhadas ao Comitê Nacional para Refugiados (CONARE),
vinculado ao Ministério da Justiça. Enquanto aguardavam a tramitação
do pedido de refúgio, os imigrantes recebiam uma documentação
provisória: Cadastro de Pessoa Física (CPF) e Carteira de Trabalho, que
lhes permite circular pelo país na busca por trabalho. O que ocorreu
no CONARE é que, como esses imigrantes não atendiam aos requisitos
estabelecidos pela convenção de 1951 para refugiados, eles tiveram suas
solicitações recusadas. Diante dessa recusa de acolhimento ao pedido
de refúgio, os processos foram encaminhados ao Conselho Nacional de
Imigração, que também não encontrou amparo na Resolução no 8/64,
que concede visto por razões humanitárias a estrangeiros.
Dessa forma, os haitianos continuavam chegando sem amparo
e ficavam à espera de uma decisão que garantisse seu acolhimento.
Conforme destaca Patarra (2012), o apoio da sociedade civil,
principalmente a atuação da Pastoral da Mobilidade Humana e de
vários setores da sociedade e de esferas do governo estadual e federal,
possibilitou que o CNIg concedesse, em 16 de março de 2011, visto de
permanência por razões humanitárias a 199 haitianos. Ainda Segundo
Patarra (2012, p. 14), até o início do ano 2012 haviam sido concedidos,
aos haitianos, 2.296 vistos humanitários, e foram expedidas 4.543
carteiras de trabalho, atendendo não só aos que já estavam regulares,
mas também àqueles que aguardavam parecer sobre o pedido de refúgio.
Ao longo de 2011, o fluxo de haitianos continuou a crescer
regularmente e a gerar as matérias que apareceram na imprensa sobre
a “invasão dos haitianos”, dadas as dificuldades das cidades fronteiriças
como Tabatinga, Assis Brasil e Brasiléia de acolherem os imigrantes, em
razão da pressão que a chegada contínua de imigrantes passou a exercer
sobre os serviços públicos já precários nessas cidade, gerando uma “crise
Políticas públicas: reflexões antropológicas 274

humanitária”, bem como da atuação de redes de tráfico de migrantes, que


chegavam a cobrar entre dois e quatro mil dólares para trazer imigrantes.7
Diante desse quadro de aumento do número de imigrantes haitianos
na fronteira e da suspeita de atuação de “coiotes” na travessia, bem como
da possibilidade de utilização por imigrantes de outras nacionalidades do
pedido de refúgio, seguindo a mesma estratégia dos imigrantes haitianos,
o governo brasileiro publicou em janeiro de 2012 a Resolução CNIg
no 97/2012, com o objetivo de regular a concessão de visto humanitário
aos haitianos. Tal resolução estabeleceu uma cota de 1.200 vistos de
permanência pela embaixada em Porto Príncipe e o prazo de cinco anos
para a permanência e a taxa de 200 dólares para emissão do visto.
O que chama a atenção nessa medida, que gerou questionamentos
de entidades de apoio aos migrantes e acadêmicos pesquisadores da
área, é que desde a Segunda Guerra Mundial o país não estabelecia uma
medida que limitasse a entrada de imigrantes de uma nacionalidade
específica (VENTURA; ILLES, 2012). Ao mesmo tempo o governo
noticiava que estaria formulando uma política para atrair cérebros e
estabelecer limites para os estrangeiros que chegam fugindo da pobreza
de seus países. Em matéria de Simon Romero, o sociólogo Sebastião
Nascimento diz que as novas políticas remetem a esforços realizados no
fim do século XIX e no começo do século XX, quando o Brasil enfatizou
a imigração europeia como uma forma de “embranquecimento” do
país, após a abolição da escravidão em 1888. “O que existe agora”, diz
nascimento, “é uma tentativa de reviver essa infeliz tradição histórica de
imigração seletiva” (ROMERO, 2012).
Após a publicação da Resolução no 97/2012 pelo CNIg,
situações ainda mais dramáticas ocorreram, pois vários haitianos que
se encontravam em trânsito no momento de publicação das medidas
permaneceram na fronteira peruana. Um grupo de 245 imigrantes
haitianos aguardou três meses na fronteira peruana na cidade de
Iñapari, no Peru, para obter permissão de entrada no Brasil. Esse
grupo estava a caminho do Brasil, quando, em 12 de janeiro, o governo
mudou os procedimentos migratórios para haitianos e passou a barrar
nas fronteiras os que não tivessem visto. A situação em Iãnpari foi

7
Alessi (2013, p. 84) destaca que, em maio de 2013, o Ministério das Relações
Exteriores divulgou nota sobre a migração de cidadãos haitianos para a América do Sul,
dizendo ser possível comprovar a atuação de redes criminosas no tráfico de migrantes
nesse roteiro. Nesse sentido, o governo brasileiro decidiu ampliar ainda mais a concessão
de vistos permanentes especiais para nacionais haitianos, como forma de valorizar a
imigração legal e segura e combater o tráfico de imigrantes.
Migrantes indesejados? 275

considerada a mais dramática enfrentada pelos haitianos, pois os


imigrantes literalmente não tinham onde ficar e se estabeleceram
numa praça da cidade, contando com a ajuda da população local para
conseguir o que comer e lugar para dormir.
Segundo Patarra (2012), a questão das cotas para concessão de
vistos pode ser considerada um retrocesso quando avaliada à luz da
história, pois o país aplicou esse mesmo procedimento pela última
vez em 1934, no governo de Getúlio Vargas, e deveria, no momento
atual, buscar mecanismos que permitissem atender de forma ampla e
democrática aqueles que quisessem imigrar. No entanto, fica patente
que, de forma diversa ao que ocorre em outros países, principalmente
da Europa, a solução encontrada garantiu o respeito aos direitos
humanos daqueles imigrantes haitianos que já estavam em território
brasileiro e conseguiu equacionar a situação daqueles que, em trânsito
pelo território peruano, antes da entrada em vigor da exigência de visto
para haitianos naquele país, fossem também acolhidos.
No entanto, em que pese essa observação da autora, o que se pode
observar é que a nova regra diminuiu drasticamente a emissão de vistos
para haitianos e sob o discurso de protegê-los colocou os imigrantes em
situação de vulnerabilidade. A questão que se coloca, portanto, é: se o
Brasil é um país de imigração, por que ser seletivo justamente como os
que mais necessitam de políticas de acolhimento?
Felizmente, depois de forte pressão de entidades que defendem
os interesses dos imigrantes, intelectuais e associações de migrantes,
o regime de cotas foi anulado pela Resolução no 102, de 26 de abril de
2013, e os haitianos continuaram a entrar pelas fronteiras amazônicas
sem o requerido visto de entrada. Se, por um lado, não havia o
impedimento jurídico, por outro havia o desafio do acolhimento
com um mínimo de dignidade, já que, tanto em Tabatinga, quanto
em Brasiléia, as condições de alojamento eram precárias, situação
denunciada pela Pastoral do Migrante de Porto Velho e pela imprensa
nacional, fato que obrigou a governo brasileiro a optar pelo fechamento
do alojamento de Brasiléia, em abril de 2014.
Seguindo a rota dos haitianos, outros imigrantes também
adotam a mesma estratégia de solicitar refúgio ao chegarem em algum
ponto da extensa fronteira brasileira. A questão que se coloca é: como
ficará a situação deles, caso o a solicitação de refúgio lhes seja negada,
já que em algumas situações, como é o caso dos dominicanos, não
haveria uma situação explícita de conflito político, religioso ou étnico
Políticas públicas: reflexões antropológicas 276

que a justifique? Na falta de um aparato jurídico que os incorpore, a


indocumentação seria a condição que lhes é imposta.
Esses fatos reforçam a perspectiva de que é necessário um novo
marco regulatório e políticas migratórias pautadas não mais na lógica
da segurança nacional e da criminalização da migração, mas sim numa
perspectiva que entenda a mobilidade como um direito humano, para o
qual deve-se dar as garantias necessárias.

Referências

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CONTINGUIBA, Geraldo C.; PIMENTEL, Marília L. Apontamentos sobre o
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O INCT Brasil Plural
e o PPGAS da UFAM

Deise Lucy Oliveira Montardo

Nossos comentários sobre o INCT Brasil Plural e sua relação


com políticas públicas serão tecidos sob o ponto de vista do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFAM ressaltando a
importância que essa rede de pesquisadores teve e continua tendo na sua
consolidação. A contribuição do INCT se deu e se dá nos mais variados
níveis, desde questões de infraestrutura básica, como a compra de
móveis, passando pelo inestimável aporte para a pesquisa, intercâmbios
de pesquisadores e formação de recursos humanos.
Iniciaremos abordando alguns aspectos da instalação do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFAM
(PPGAS/UFAM), dando ênfase ao papel da constituição do INCT Brasil
Plural nesse processo, que, em 2014 completou seis anos.
Em maio de 2006 foi realizado um concurso público para carreira
docente com dez vagas: cinco para Etnologia Indígena, quatro para
Antropologia Cultural e uma para Linguística Indígena, oriundas de
um processo de demanda induzida surgida a partir da identificação
de uma lacuna, a inexistência de um Programa de Pós-Graduação
em Antropologia no norte do país até aquele momento. A UFAM iria
receber os professores e apoiar a instalação do Programa. Os docentes
que organizaram o concurso decidiram realizar a prova em São Paulo,
o que garantiu o sucesso da iniciativa. Os dez professores que passaram
em duas etapas do concurso tomaram posse em setembro daquele
ano e estão atuando até o momento na UFAM. Muitos deles foram
Políticas públicas: reflexões antropológicas 280

para Manaus tomar posse sem conhecer a cidade. O projeto que se


colocou para o grupo, no entanto, foi tão desafiador e sedutor que todos
abraçaram a atividade de elaborar o projeto da Pós-Graduação.
A resposta positiva para a criação do mestrado e doutorado saiu
em meados de 2007 e em março de 2008 dávamos início à primeira aula
do PPGAS/UFAM. Encontramos porém, um outro desafio: financiar as
pesquisas que, na Amazônia, demandam muitos recursos. Movidos por
essa preocupação, estavam os professores atentos a todas as possibilidades
de cooperação acadêmica e/ou outras modalidades de editais que fossem
lançados. A primeira cooperação aprovada após a instalação do PPGAS
foi o PROCAD/Capes com o PPGAS da USP, intitulado “Paisagens Ame-
ríndias”. No mesmo ano de 2008, foi lançado o Edital para os INCTs, o
qual tinha como um dos temas a Amazônia. Esse Edital apareceu como
uma possibilidade boa para alavancar pesquisas e outras atividades no
Programa; no entanto, havia uma limitação, a UFAM não contava em seus
quadros com pesquisadores 1A ou 1B do CNPq, condição exigida. Em
agosto, três professoras da UFAM foram à UFSC participar do Seminário
Internacional Fazendo Gênero e solicitaram uma reunião com a professo-
ra Sônia Weidner Maluf, então coordenadora do PPGAS/UFSC. Baseadas
em uma história pregressa de redes de pesquisa unindo alguns professo-
res da UFAM e da UFSC e no grande número de amazonistas atuantes na
UFSC, as visitantes sugeriram que pensássemos em propor um INCT que
unisse nossas pesquisas num diálogo norte/sul do país. Imediatamente a
professora se identificou com a proposta e convidou o colegiado do PP-
GAS/UFSC para uma reunião no dia seguinte, à qual compareceu um nú-
mero grande de professores, incluindo um da UFPR que estava na UFSC
na ocasião. Iniciou-se, então, a formulação da proposta, que após mais
alguns desdobramentos, constituiu o INCT Brasil Plural, tendo como co-
ordenadora proponente a professora Esther Jean Langdon.
Não iremos listar exaustivamente os eventos, mas foram
intensíssimas as trocas propiciadas pela visita de pesquisadores do
estado de Santa Catarina, do Brasil e de outros países.
Citamos algumas dessas visitas que foram muito significativas para
o contexto de Manaus. Uma delas foi na programação feita na UFAM, do
antropólogo Roy Wagner. Pela rede do INCT Brasil Plural, o renomado
pesquisador esteve em vários centros de antropologia do país, mas em
Manaus sua estadia teve uma repercussão sobre a qual vale tomar nota.
A imprensa local deu ampla divulgação, pois era um nome da ciência
internacional que visitava o recente PPGAS da UFAM, e a prioridade dada
foi o encontro com os pesquisadores e sábios indígenas. Esse fato chamou
O INCT Brasil Plural e o PPGAS da UFAM 281

a atenção, pois, como já discutido em outros momentos do Colóquio, as


regiões onde estão presentes os povos indígenas são os locais em que o
preconceito é mais acirrado. E isso não é diferente em Manaus, capital de
um estado com um contingente populacional indígena expressivo, mas
cuja universidade federal, por exemplo, até a presente data, não tinha
formulado uma política de ação no que se refere à questão de políticas
afirmativas de acesso de indígenas, ou afrodescendentes ao ensino
superior. Existiram no decorrer da sua história projetos individuais e
dois programas de pós-graduação que instituíram uma política de cotas,
o Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia
(PPGSCA) e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS), mas a instituição em si, até hoje, não tem uma política oficial
implantada referente aos povos indígenas.
Roy Wagner proferiu a aula magna no Instituto de Ciências
Humanas e Letras da UFAM, para a comunidade universitária, mas
as atividades mais importantes foram a mesa-redonda, intitulada
“Conversações entre Melanésia e Amazônia”, com a participação de
conhecedores e mestrandos indígenas, e a visita às comunidades do Tupé
e de Santa Maria, na qual se participou de mostras de rituais da etnia
tukano. Destaco a participação do intelectual Tuiuka professor Higino
Tenório, que proporcionou um diálogo muito rico com o antropólogo
convidado. Quero destacar aqui a importância de qualquer ação que
coloque os indígenas num patamar simétrico aos cientistas, não apenas
em Manaus, mas na universidade brasileira como um todo.
Outro visitante foi o professor Stephen-Hugh-Jones, da
Universidade de Cambrigde, que pesquisa há mais de quarenta anos
as etnias do Alto Rio Negro. O professor participou também de uma
mesa-redonda com conhecedores indígenas e foi membro da banca de
dissertação de mestrado do primeiro indígena formado no PPGAS/
UFAM, Rivelino Barreto, Tukano, o qual teve a sua pesquisa de campo
financiada pelo INCT Brasil Plural.
No tocante aos museus, consideramos que o intercâmbio entre
os da UFSC e da UFAM foi muito importante para os dois. Até o
momento realizamos a exposição “Ticuna em dois tempos”, fruto da
pesquisa e diálogo entre os acervos dos dois museus, os quais possuem
acervo ticuna de origens diversas. O acervo do Museu de Arqueologia e
Etnologia Oswaldo Rodrigues Cabral, da UFSC, o MArquE,1 foi reunido

1
O MArquE é a nova denominação do Museu Universitário Oswaldo Rodrigues
Cabral, que inaugurou seu Pavilhão de Exposições, em 2012, justamente com a abertura
da exposição “Ticuna em dois tempos”.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 282

pelo antropólogo Sílvio Coelho dos Santos, na década de 1960; e o acervo


do Museu Amazônico da UFAM, pelo artista plástico Jair Jacquemont,
nos anos 1980. A exposição foi montada primeiramente no MArquE,
Florianópolis, em 2012, e depois no Museu Amazônico, em Manaus, em
2013, e gerou também a confecção do catálogo Ticuna em dois tempos
(INCT BRASIL PLURAL, 2013). No processo de montagem, houve a
participação dos ticuna residentes no bairro Cidade de Deus, periferia
de Manaus. A mestre Nilza Silvana Teixeira (2012), que realiza pesquisa
com os Ticuna, organizou um trabalho de discussão com a comunidade
a partir das fotos do acervo de Sílvio Coelho dos Santos, e as imagens
desse trabalho, editadas, integraram a exposição.
Ainda sobre museus, fizemos uma programação com o
pesquisador Vicenzo Pagliani, que veio da Itália pelo INCT Brasil Plural,
uma mesa da qual ele participou juntamente com Nino Fernandes,
diretor do Museu Maguta, o primeiro museu indígena ticuna do Brasil,
localizado em Benjamin Constant, no Alto Solimões. Numa parceria
com a Secretaria de Estado da Cultura do Amazonas, reunimos todas
as pessoas envolvidas com museus nesse estado para discutir sobre
pequenos museus etnográficos.
Recebemos ainda os professores Paulo Raposo e Felipe Reis, do
ISCTE, Portugal; Anne-Marie Losonczy e Patrick Menget, da Escola
Prática de Altos Estudos, França, que ministraram cursos no PPGAS/
UFAM; e Jonathan Hill, da Universidade de Illinois, EUA, que participou
do Colóquio Arte e Sociabilidades realizado em 2012.
A coordenadora do INCT, Esther Jean Langdon, participou de
várias atividades no PPGAS da UFAM, assim como Sônia Weidner
Maluf e muitos outros pesquisadores, numa intensa troca, em eventos
organizados ao redor dos temas da saúde, migração, arte performance
e sociabilidade, patrimônio e educação indígena, alguns deles gerando
publicação de coletânea, como a de Montardo e Dominguez (2014).
Participação em bancas, conferências, cursos e colóquios foram
exemplos de atividades realizadas.
Sobre o tema das políticas públicas na área da cultura, das artes e
projetos de revitalização, o INCT Brasil Plural tem desenvolvido várias
atividades em conjunto com o INCT Inclusão na Pesquisa e no Ensino
Superior. Promovemos em conjunto com eles atividades no Encontro
Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia, em João Pessoa,
em maio de 2014. Organizamos uma mesa com os mestres e intelectuais
indígenas Mestre Ancião  Secundo  Tôhtat  Krahô, da Aldeia Manoel
Alves da Terra Indígena Krahô, Tocantis; Dodanin Alves Pereira Kraho,
O INCT Brasil Plural e o PPGAS da UFAM 283

professor, pesquisador e tradutor indígena da Aldeia Manoel Alves, TI


Krahô, correalizador do filme  “Sustentando o cerrado na respiração
do maraca: conversas com os mestres Krahô”; Valério Vera Gonçalves,
rezador da Aldeia Panambi, Douradina, Mato Grosso do Sul; Izaque
João, mestre em História pela UFGD, autor da dissertação Jakaira reko
nheypyrũ marangatu mborahéi: origem e fundamentos do canto ritual
Jerosy Puku entre os Kaiowá de Panambi, Panambizinho e Sucuri’y, Mato
Grosso do Sul; Vherá Poty Benites da Silva, kyringüé ruvixá  (mestre
das crianças), coordenador de grupos de cantos e danças tradicionais
Mbyá-Guarani, professor e cacique; e a mestre e liderança quilombola
Ana Lúcia R. do Nascimento. O impacto dessa presença e participação
foi muito grande entre os associados e participantes do encontro,
comprovando a importância de promovê-las nos meios acadêmicos.
Outro evento no qual fomos coparceiros do INCT Inclusão e
Museu do Indío foi o Seminário “A cosmociência guarani, Mbya e
Kaiowá e o reconhecimento acadêmico dos seus intelectuais”, realizado
na UFMG em dezembro de 2012. Os temas norteadores foram
concebidos pelo antropólogo Tonico Benites, e os convidados foram
25  indígenas  rezadores e acadêmicos. São ações pontuais, mas que
considero servirem de modelos para o incremento da presença dos
povos tradicionais nesses espaços no Brasil, ainda muito restritos. Esse
grupo de pesquisadores está junto também em um projeto de registro e
formação de acervo de músicas indígenas, coordenado pela professora
Rosângela Tugny, no Museu do Indio/FUNAI, com financiamento da
Unesco. Está prevista a produção de material didático e cada grupo vai
decider se irá priorizá-lo para ser utilizado na educação do grupo ou
para a sociedade envolvente. Possibilitamos a participação de Isaque
João, kaiowá que fez seu mestrado sobre música guarani, no Primeiro
Congresso Internacional “Os povos indígenas da América Latina, séculos
XIX-XXI: avanços, perspectivas e desafios”, que se realizou em outubro
de 2013 no Instituto Cultural Oaxaca na cidade de Oaxaca, México.
Outro assunto relacionado e no qual vejo a contribuição dessas
ações do INCT Brasil Plural diz respeito à Lei no 11.645, que torna
obrigatório o estudo da história e da cultura afro-brasileira e indígena,
e à Lei no 11.769, que obriga o ensino da música como conteúdo nos
diversos níveis do ensino básico. A situação que se coloca é dramática,
pois ao mesmo tempo que essas leis representam um avanço e uma
conquista, uma situação de despreparo por parte dos professores para
ministrar esse conteúdo se coloca. E tudo o que foi discutido durante o
colóquio “Reflexões sobre Pesquisa Antropológica e Políticas Públicas
Políticas públicas: reflexões antropológicas 284

no INCT Brasil Plural (IBP), da perversidade da tendência normativa


na implantação de políticas públicas, está acontecendo na implantação
dessas leis. Vamos lá, implantar a música em todas as escolas! Ótimo, mas
fica a pergunta: que música será essa? Vamos tratar a temática indígena
e afro-brasileira, com que material didático e com que formação dos
professores no que diz respeito a esses assuntos?
No caso da música, a situação que se coloca iminente é a
repetição do que aconteceu em décadas passadas, mais precisamente
no Estado Novo, quando houve um grande movimento pela educação
musical, liderado por Heitor Villa-Lobos, o qual ficou conhecido como
o projeto canto orfeônico, que propunha o ensino da música sem
considerar as diversidades da vivência musical dos alunos. A formação
dos educadores para tratar a pluralidade das realidades brasileiras é
fundamental no momento da implantação dessas leis. Antes mesmo
disso, na discussão de implantação que vem sendo feita no Ministério
da Educação, pesquisadores ligados às associações profissionais da
música, como a Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM)
e pesquisadores da Associação Brasileira de Etnomusicologia
(ABET), buscam abrir espaço para criar mecanismos que propiciem
a visibilidade e o respeito à diversidade, permitindo, por exemplo que
mestres da cultura popular possam atuar nas escolas.
Tanto no caso do ensino da música quanto no do ensino dos temas
e conteúdos referents aos afro-brasileiros e indígenas, é importante que
se pense na produção de material didático de apoio, informados por
pesquisas de fôlego, bem como na formação em curso de professores e
em cursos de atualização de professores nessas temáticas, evitando que
na esteira dessa política uma versão hegemônica passe como um trator
sobre os alunos e suas variadas experiências.
A produção de material didático, que é outra das nossas metas,
depende de pesquisa; sendo assim, alguns pesquisadores que já tinham
pesquisas consolidadas conseguiram partir para essa etapa, como é
o caso da Jean Langdon, que está retornando o seu material para os
Siona e colaborando com eles na elaboração para uso na educação
indígena. No nosso caso em Manaus, onde estávamos começando
as pesquisas, o que posso citar aqui é a produção de documentários
em vídeo, em colaboração, como o Documentário Podáali, no qual
trabalhamos com os Baniwa de São Gabriel da Cachoeira, produzido
no âmbito de um edital de patrimônio do Programa Petrobras Cultural
(PODÁALI, 2011). Esse projeto foi todo gerido pelos Baniwa através
da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e
O INCT Brasil Plural e o PPGAS da UFAM 285

da Associação Cultural Casa do Conhecimento de Itacoatiara Mirim


(ACCIC) (SILVA et al., 2012).
Na nossa política de ação afirmativa, contamos com cinco vagas
no mestrado. Nesses cinco anos de PPGAS da UFAM, contamos até
o momento com cinco mestrados de indígenas concluídos e com dez
em andamento, das etnias Tukano, Wahikanã, Wapichana, Ticuna,
Macuxi e Cocama. Tivemos vários pesquisas que originaram mestrados
e doutorados, cujas pesquisas foram feitas no âmbito do INCT, muitos
com dissertações já concluídas.
Termino este texto comentando a dissertação Criando gente
no Alto Rio Negro: um olhar waíkhana, sobre a temática da criança,
desenvolvida por Rosilene Pereira (2013), no seu Mestrado em
Antropologia no PPGAS/UFAM. Nesse estudo o povo waíkhana teve
destaque em decorrência do pertencimento étnico da pesquisadora. O
povo waíkhana pertence à família linguística Tukano Oriental e ocupa as
Terras Indígenas Alto Rio Negro I e Médio Rio Negro I e II, situadas no
estado do Amazonas. De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA),
o povo indígena waíkhana compõem-se de cerca de 1.300 pessoas do
lado brasileiro e 400 na Colômbia (CABALZAR; RICARDO, 2006). Na
sua dissertação foram apresentadas as formas de compartilhamento de
saberes relacionados à agricultura, entre os adultos e crianças de 0 a 12
anos, tanto no que diz respeito às narrativas míticas quanto à captura e
ao consumo de pequenos animais e à manufatura dos instrumentos de
trabalho. Pereira mostra como uma das principais atividades das famílias
indígenas do Alto Rio Negro é a criação e manejo das roças e como as
crianças estão presentes nestas. A pesquisadora detecta inquietações de
duas gerações distintas, os mais velhos e os jovens. “A geração mais velha,
que tem o domínio do saber milenar acerca do sistema agrícola, questiona
nos postulados do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), termos
como ‘exploração de trabalho infantil’.” (PEREIRA, 2013). Essa questão
é problematizada como contraditória pelas populações tradicionais na
Amazônia, sobretudo pelos povos indígenas. Levar uma criança para
atividades no roçado, na coleta de fibras, castanha, no pescado entre
outras, é interpretado pelo ECA como exploração. E a geração jovem
apoia-se no discurso do ECA argumentando que “trabalhar na roça é
exploração”, bem como “só trabalha na roça quem não é escolarizado”.
No entorno urbano de Santa Isabel e São Gabriel essa contraposição
mencionada acima é mais comum do que nas comunidades.
A pesquisa de Rosilene Pereira mostra que essas horas que as crianças
passam com a família na roça são momentos de intenso aprendizado, não
Políticas públicas: reflexões antropológicas 286

apenas de conhecimentos relacionados as atividades agrícolas, propria-


mente, mas também de aprendizado contínuo das narrativas míticas,
por exemplo. Após a pesquisa que desenvolveu no mestrado, ao voltar
para sua cidade, São Gabriel da Cachoeira, a autora reuniu uma série de
propostas para a realização de materiais didáticos e de documentários
sobre essa temática. São Gabriel, da Cachoeira apesar de ser o município
mais indígena do Brasil, carece muito da aplicação de políticas que
levem efetivamente à pluralidade das mais de vinte etnias da região.
Advogamos, em consequência disso, pela continuidade do INCT
Brasil Plural, pois pensamos que agora estamos atingindo a matu-
ridade suficiente para um incremento nas metas referentes à produção
de materiais didáticos, documentários, criação de banco de dados,
publicações de coletâneas, enfim, atividades para além das metas de
realização de pesquisa e formação de recursos humanos, estas plena-
mente atingidas nestes primeiros anos de existência.

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prática das artesãs ticuna do Alto Solimões. 2012. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2012.
Sobre os autores

Alberto Groisman
Professor do Departamento de Antropologia da UFSC.
Ana Paula Müller de Andrade
Doutora em Ciências Humanas pelo Programa de Pós-Graduação Interdis-
ciplinar em Ciências Humanas e bolsista de Pós-Doutorado da Universidade
Federal de Pelotas.
Carmen Susana Tornquist
Professora do Departamento de Ciências Humanas da UDESC.
Deise Lucy Oliveira Montardo
Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
UFAM e pesquisadora do INCT Brasil Plural/CNPq/FAPEAM/FAPESC.
Eliana E. Diehl
Professora do Departamento de Ciências Farmacêuticas e do Programa de
Pós-Graduação em Assistência Farmacêutica da Universidade Federal de
Santa Catarina.
Esther Jean Langdon
Professora do Departamento de Antropologia da UFSC e coordenadora do
INCT Brasil Plural. Pesquisadora I-B CNPq.
Evelyn Schuler Zea
Professora do Departamento de Antropologia da UFSC.
Éverton Luís Pereira
Professor na Universidade de Brasília (UnB), é mestre e doutor em
Antropologia Social pelo PPGAS/UFSC.
Gláucia de Oliveira Assis
Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Professora do Departamento
de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Pesquisadora do
Instituto Brasil Plural
Jesem Douglas Yamall Orellana
Sanitarista. Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Pesquisador do Laboratório
de Estudos Interdisciplinares em Saúde Indígena e Populações Vulneráveis,
Instituto Leônidas e Maria Deane, Fiocruz.
Políticas públicas: reflexões antropológicas 288

Márcia Grisotti
Professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC,
coordenadora do Núcleo de Ecologia Humana e Sociologia da Saúde e
pesquisadora do CNPq.
Maurício Soares Leite
Professor do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC).
Maximiliano Loiola Ponte de Souza
Médico psiquiatra. Doutor em Ciências pelo Instituto Fernandes Figueira da
Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz). Chefe do Laboratório de Estudos
Interdisciplinares em Saúde Indígena e Populações Vulneráveis, Instituto
Leônidas e Maria Deane, Fiocruz.
Nádia Heusi Silveira
Mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de
Santa Catarina.
Renata da Cruz Gonçalves
Mestre em Nutrição pelo Programa de Pós-Graduação em Nutrição da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Rose Mary Gerber
Trabalha na Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa
Catarina (Epagri).
Sidney Antônio da Silva
Doutor em Antropologia Social pela USP. Professor da Universidade Federal
do Amazonas (UFAM) no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social. Pesquisador do Instituto Brasil Plural. Coordenador do Projeto.
Sônia Weidner Maluf
Professora do Departamento de Antropologia da UFSC, coordenadora
executiva do INCT Brasil Plural e pesquisadora do CNPq.
Theophilos Rifiotis
Professor do Departamento de Antropologia, Laboratório de Estudos das
Violências (LEVIS), Universidade Federal de Santa Catarina.
Este livro foi editorado com as fontes
Minion Pro e TheSerif. Publicado on-line
em: editora.ufsc.br/estante-aberta
A Coleção Brasil Plural tem como objetivo
dar visibilidade às pesquisas realizadas pelo
Instituto Nacional de Pesquisa Brasil Plural
(INCT/CNPq). Busca retratar as diferentes
realidades brasileiras em toda a sua comple-
xidade e contribuir para a elaboração de
políticas sociais que levem em consideração
as perspectivas das populações e comuni-
dades estudadas. Além disso, visa formar
pesquisadores e profissionais que atuem com
essas populações.

InstitutoNacionaldePesquisa
BRASILPLURAL

MCTI
Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação

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