Por Uma Análise Do Discurso Sobre o Gênero e A Sexualidade - Efeitos de Sentido, Ideologias e Práticas Discursivas em Questão

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por uma

análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade
efeitos
de sentido,
ideologias
e práticas
discursivas

organização
Wellton
da Silva
de Fatima
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade
efeitos
de sentido,
ideologias
e práticas
discursivas

organização
Wellton
da Silva
de Fatima

2 0 1 9
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados
e a sexualidade Copyright do texto © 2019 as autoras e os autores
Copyright da edição © 2019 Pimenta Cultural

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O conteúdo publicado é de inteira responsabilidade do autor, não representando a
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Comissão Editorial Científica

Alaim Souza Neto, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil


Alexandre Antonio Timbane, Universidade de Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira, Brasil
Alexandre Silva Santos Filho, Universidade Federal do Pará, Brasil
Aline Corso, Faculdade Cenecista de Bento Gonçalves, Brasil
André Gobbo, Universidade Federal de Santa Catarina e Faculdade Avantis, Brasil
Andressa Wiebusch, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
Andreza Regina Lopes da Silva, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Angela Maria Farah, Centro Universitário de União da Vitória, Brasil
Anísio Batista Pereira, Universidade Federal de Uberlândia, Brasil
Arthur Vianna Ferreira, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Beatriz Braga Bezerra, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil
Bernadétte Beber, Faculdade Avantis, Brasil
Bruna Carolina de Lima Siqueira dos Santos, Universidade do Vale do Itajaí, Brasil
Bruno Rafael Silva Nogueira Barbosa, Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Cleonice de Fátima Martins, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil
Daniele Cristine Rodrigues, Universidade de São Paulo, Brasil
Dayse Sampaio Lopes Borges, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro, Brasil
Delton Aparecido Felipe, Universidade Estadual do Paraná, Brasil
Dorama de Miranda Carvalho, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil
Elena Maria Mallmann, Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
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Elizabete de Paula Pacheco, Instituto Federal de Goiás, Brasil
Emanoel Cesar Pires Assis, Universidade Estadual do Maranhão. Brasil
Francisca de Assiz Carvalho, Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil
Gracy Cristina Astolpho Duarte, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil
Handherson Leyltton Costa Damasceno, Universidade Federal da Bahia, Brasil
Heloisa Candello, IBM Research Brazil, IBM BRASIL, Brasil
Inara Antunes Vieira Willerding, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Jacqueline de Castro Rimá, Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Jeane Carla Oliveira de Melo, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Maranhão, Brasil
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Jeronimo Becker Flores, Pontifício Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
e a sexualidade Joelson Alves Onofre, Universidade Estadual de Feira de Santana, Brasil
Joselia Maria Neves, Portugal, Instituto Politécnico de Leiria, Portugal
Júlia Carolina da Costa Santos, Universidade Estadual do Maro Grosso do Sul, Brasil
Juliana da Silva Paiva, Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia da Paraíba,
Brasil
Kamil Giglio, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Laionel Vieira da Silva, Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Lidia Oliveira, Universidade de Aveiro, Portugal
Ligia Stella Baptista Correia, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil
Luan Gomes dos Santos de Oliveira, Universidade Federal de Campina Grande,
Brasil
Lucas Rodrigues Lopes, Faculdade de Tecnologia de Mogi Mirim, Brasil
Luciene Correia Santos de Oliveira Luz, Universidade Federal de Goiás; Instituto
Federal de Goiás., Brasil
Lucimara Rett, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Marcio Bernardino Sirino, Universidade Castelo Branco, Brasil
Marcio Duarte, Faculdades FACCAT, Brasil
Marcos dos Reis Batista, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Brasil
Maria Edith Maroca de Avelar Rivelli de Oliveira, Universidade Federal de Ouro Preto,
Brasil
Maribel Santos Miranda-Pinto, Instituto de Educação da Universidade do Minho,
Portugal
Marília Matos Gonçalves, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Marina A. E. Negri, Universidade de São Paulo, Brasil
Marta Cristina Goulart Braga, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Michele Marcelo Silva Bortolai, Universidade de São Paulo, Brasil
Midierson Maia, Universidade de São Paulo, Brasil
Patricia Bieging, Universidade de São Paulo, Brasil
Patricia Flavia Mota, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Patricia Mara de Carvalho Costa Leite, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Patrícia Oliveira, Universidade de Aveiro, Portugal
Ramofly Ramofly Bicalho, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
Rarielle Rodrigues Lima, Universidade Federal do Maranhão, Brasil
Raul Inácio Busarello, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Ricardo Luiz de Bittencourt, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Brasil
Rita Oliveira, Universidade de Aveiro, Portugal
Rosane de Fatima Antunes Obregon, Universidade Federal do Maranhão, Brasil
Samuel Pompeo, Universidade Estadual Paulista, Brasil
Tadeu João Ribeiro Baptista, Universidade Federal de Goiás, Brasil
Tarcísio Vanzin, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Thais Karina Souza do Nascimento, Universidade Federal Do Pará, Brasil
Thiago Barbosa Soares, Instituto Federal Fluminense, Brasil
Valdemar Valente Júnior, Universidade Castelo Branco, Brasil
Vania Ribas Ulbricht, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Wellton da Silva de Fátima, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Wilder Kleber Fernandes de Santana, Universidade Federal da Paraíba, Brasil
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade Direção Editorial Patricia Bieging
Raul Inácio Busarello
Administrador de sistemas Marcelo Eyng
Capa e Projeto Gráfico Chama7
Camila Clemente
Imagem Projetado por Freepik
Editora Executiva Patricia Bieging
Revisão Organizador e autores(as)
Organizador Wellton da Silva de Fatima

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


________________________________________________________________

P832 Por uma análise do discurso sobre o gênero e a sexualidade:


efeitos de sentido, ideologias e práticas discursivas em
questão. Wellton da Silva de Fatima - organizador. São
Paulo: Pimenta Cultural, 2019. 169p..

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7221-019-5 (eBook PDF)
978-85-7221-018-8 (Brochura)

1. Análise do discurso. 2. Gênero. 3. Ideologia.


4. Sexualidade. 5. Política. 6. Saúde mental. 7. Violência.
I. Fatima, Wellton da Silva de. II. Título.

CDU: 316.77
CDD: 300

DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195
_______________________________________________________________

PIMENTA CULTURAL
São Paulo - SP - Brasil
Telefone: +55 (11) 96766-2200
E-mail: [email protected]
www.pimentacultural.com 2019
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade

É preciso ousar pensar por si mesmo


Michel Pêcheux
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero SUMÁRIO
e a sexualidade

Apresentação................................................................. 8
Wellton da Silva de Fatima

Sobre gestos de análise e ousadias............................. 9


Bethania Mariani

Discurso, (expressão de) gênero e religiosidade:


a mídia impressa neopentecostal em questão........... 13
Wellton da Silva de Fatima

Discurso, gênero e ciência: a opinião do


especialista sobre o masculino e o feminino
na revista Superinteressante........................................ 36
Elisa de Magalhães e Guimarães

Discurso, gênero e divisão sexual do trabalho:


uma análise da soberania masculina
em uma matéria jornalística......................................... 61
Virgínia Carollo da Costa Dias

Discurso, sexualidade e política:


a “heterofobia” de Jean Wyllys com
Jair Bolsonaro – um silenciamento
da homofobia?............................................................. 82
Héliton Diego Lau
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Discurso, gênero e amor: a mulher
e a sexualidade
nos discursos sobre amor........................................... 99
Fernanda Cerqueira de Mello

Discurso, gênero e saúde mental:


a questão da loucura no Diccionario
de Medicina Popular.................................................. 120
Amanda Bastos Amorim de Amorim

Discurso, sexualidade e violência:


entre a “mulher direita” e a “vadia” -
Análise da culpabilização da vítima de violência
sexual em posts no Facebook................................... 140
Ana Cecília Trindade Rebelo

Sobre as autoras e os autores................................... 163

Índice remissivo......................................................... 165


por uma
análise
do discurso
sobre o gênero APRESENTAÇÃO
e a sexualidade

Este livro é uma contribuição de jovens analistas do discurso


de diversos centros de pesquisa espalhados pelo Brasil. Nossa
proposta é fazer circular as mais recentes pesquisas que têm
surgido na perspectiva discursiva em sua interface com os estudos
de gênero e sexualidade.

Apresento, pois, aos leitores, este livro, que conta com sete
SUMÁRIO
capítulos de sete diferentes autoras e autores. Temos, então, dife-
rentes abordagens do funcionamento do discurso, dentro da temá-
tica do gênero e da sexualidade, em relação a diversos domínios
correlatos do saber e das práticas sociais. Assim, tematizamos
a religiosidade, a ciência, o trabalho, a política, o amor, a saúde
mental e a violência.

Ancoramo-nos na Análise de Discurso francesa, filiada aos


domínios teóricos inaugurados por Michel Pêcheux, para pensar
o discurso enquanto efeito de sentido, conforme define o autor, e
também como relação necessária entre a ideologia e a língua. As
reflexões aqui tecidas partem do pressuposto da existência de uma
formação social – e suas formações discursivas – em cujo interior há
efeitos de sentidos que derivam de relações sempre-já-gendradas,
para fazer menção a uma expressão cunhada por Zoppi-Fontana
(2017).

Esperamos que esta leitura, tal como o fazer teórico em


análise de discurso, produza algo da ordem de um movimento,
ou mesmo de um simples incômodo. Movimento do/no discurso,
sempre em curso, atravessando e fazendo atravessar sujeitos no
próprio de seu percurso.

Wellton da Silva de Fatima


O organizador

8
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero SOBRE GESTOS DE ANÁLISE E OUSADIAS
e a sexualidade

Como Wellton da Silva de Fatima afirma na apresentação, este


é um livro que resulta de pesquisas produzidas por jovens pesqui-
sadores de várias instituições universitárias brasileiras. Situados
no campo teórico da Análise do Discurso Materialista francesa e
ousando pensar por si mesmos, esses jovens e talentosos pesqui-
sadores percorreram distintos espaços de significação que cons-
SUMÁRIO tituem processos de produção de sentidos no âmbito do gênero
e sexualidade. Desta forma, tornaram visíveis e audíveis corpos e
vozes muitas vezes silenciados no todo social.

Ao apresentar uma breve síntese dos artigos aqui reunidos a


fim de dar ao leitor uma pequena notícia sobre o que o espera com
a leitura do livro, aproveito para realçar algo que vai além da obra
em si. Mais do que ser uma coletânea de artigos voltados para a
pertinente e atual discussão sobre gênero e sexualidade, o livro Por
uma Análise do Discurso sobre o gênero e a sexualidade: efeitos de
sentido, ideologias e práticas discursivas em questão representa um
modo de trabalho coletivo iniciado a partir de reuniões livres para
estudo teórico. Percebe-se, no conjunto dos textos, a consistência
de uma elaboração que integra, na singularidade de cada um, um
esforço coletivo de reflexões realizadas em conjunto sobre a teoria
e sobre o dispositivo de análise da Análise do Discurso. Aí se depre-
ende a unidade e a relevância desse livro.

Analisando a mídia impressa neopentescostal, Wellton da


Silva de Fatima, com argúcia, estabelece uma reflexão discur-
siva sobre o real do corpo do sujeito, um real que resiste à signifi-
cação. Em sua análise, o autor mostra como essa mídia impressa,
situada sob os efeitos da memória, produz sentidos para tudo que
“não estiver de acordo com um certo padrão cisheteronormativo”,
conforme suas próprias palavras.

9
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Elisa de Magalhães e Guimarães propõe um recorte temá-
e a sexualidade tico bastante original, uma vez que discute os sentidos de gênero e
sexualidade na mídia impressa de divulgação científica. Em termos
específicos, a análise proposta está centrada nos dizeres de espe-
cialistas. Tais dizeres, quando em relação aos demais dizeres que
são constitutivos da produção discursiva de divulgação científica,
produzem efeitos que, conforme nos mostra a autora, vão consti-
tuindo formulações de um novo discurso, ou seja, sobre o que signi-
fica ser homem ou ser mulher.
SUMÁRIO
No terceiro capítulo do livro, o foco é a divisão sexual do
trabalho. Também trazendo como recorte mídia impressa, Virgínia
Carollo da Costa Dias, propõe-se a analisar os processos de signifi-
cação de uma matéria específica que trata de desempenho escolar
e da escolha profissional. A partir de seu fino gesto de análise, a
autora depreende os já-ditos inscritos na memória que reafirmam,
ainda nos dias de hoje, o papel social do homem vinculado a profis-
sões em ciências exatas e, ao mesmo tempo, que ratificam um
lugar de inferioridade para as mulheres. Indo além, a autora mostra
que o funcionamento discursivo desses já-ditos organiza o que, em
análise do discurso, chamamos de memória do futuro.

Héliton Diego Lau, autor do artigo seguinte, objetiva analisar


um corpus constituído por matérias em portais de revistas que
relatam um evento conflituoso entre os deputados Jean Wyllys e
Jair Bolsonaro. Mobilizando a noção de silenciamento de Orlandi,
e, também, as reflexões de Foucault sobre as identidades sexuais,
o autor compara e contrasta de modo eficaz como é construída a
posição sujeito de cada deputado no corpus selecionado e como
essas posições sujeito estão relacionadas aos discursos políticos
nos quais se inscrevem.

Um documentário sobre mulheres que têm envolvimento


amoroso com homens presos é o ponto de partida para que

10
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Fernanda Cerqueira de Mello apresente uma refinada discussão
e a sexualidade sobre o feminino e(m) relações amorosas. Várias noções são mobi-
lizadas discursivamente como subjetividade, memória, inconsciente
e ideologia a fim de dar sustentação não apenas aos gestos de
análise, mas também à conclusão da autora: “Narrar como se veem
dentro de seus relacionamentos é, para essas mulheres, parte do
processo de subjetividade para se constituírem como mulher.”

Mais do que ser um trabalho sobre gênero e saúde mental,


SUMÁRIO o artigo de Amanda Bastos Amorim De Amorim, de forma bastante
original, traz como corpus o Diccionário de medicina popular e,
mais especificamente, a questão da loucura tal como nele é signi-
ficada. Nesta pesquisa, tendo em vista o dicionário como discurso
e, portanto, como presença hegemônica de um conjunto de dizeres
relativos a uma determinada época histórica, a autora realiza uma
análise do funcionamento discursivo do verbete loucura. Com
sua análise, mostra a pertinência da discussão de gênero, pois
os sentidos patológicos de loucura se encontram vinculados aos
sentidos produzidos para as mulheres.

O último artigo da coletânea, o extenso e profundo trabalho


de Ana Cecília Trindade Rebelo, se propõe a analisar posts do
Facebook que atribuem culpa às mulheres vítimas de violência
sexual. A minuciosa análise empreendida mostra um funcionamento
discursivo em que ocorre de forma predominante a construção de
processos de produção de sentidos negativizados para a mulher
que sofreu qualquer forma de violência. Esse tipo de discursividade,
como bem formula a autora, ainda porta a memória de imagens
já-ditas: é uma mulher vadia a mulher que sofre violência e, dessa
forma, é seu próprio corpo o responsável pela violência sofrida.

Em síntese, o fio que tece e trama todos os artigos, dando


unidade à coletânea, é o gesto do analista investido por uma teori-
zação discursiva que desfaz, faz e refaz cadeias de enunciados

11
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero no processo de des-superficialização do corpus analisado. Se o
e a sexualidade objetivo do livro é fazer circular pesquisas recentes sobre discurso,
gênero e sexualidade que vêm sendo realizadas por jovens pesqui-
sadores, posso dizer que em, em seu conjunto, o efeito produzido
vai além. Fazendo eco ao que nos diz Pêcheux, retomo suas pala-
vras: “Face às interpretações sem margens nas quais o intérprete
se coloca como um ponto absoluto, sem outro nem real, trata-se
aí, para mim, de uma questão de ética e política: uma questão de
responsabilidade”.
SUMÁRIO
Que esses jovens pesquisadores em Análise do Discurso
prossigam com ética e responsabilidade.

Bethania Mariani
Abril, 2019.

DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.9-12

12
DISCURSO, (EXPRESSÃO DE) GÊNERO
E RELIGIOSIDADE: A MÍDIA IMPRESSA
Discurso,
NEOPENTECOSTAL EM QUESTÃO (expressão de)
Wellton da Silva de Fatima
gênero
e religiosidade:
a mídia impressa
neopentecostal
em questão
Wellton da Silva de Fatima

DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.13-35
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A ideologia da classe dominante não
e a sexualidade se torna dominante pela graça do céu…
Michel Pêcheux

PRIMEIRAS PALAVRAS

Neste capítulo, trazemos a interface entre o discurso e as


questões de gênero e sexualidade, tendo como pano de fundo a
SUMÁRIO religiosidade. Não uma religiosidade qualquer, e sim aquela que
deriva da experiência litúrgica da Igreja Universal do Reino de Deus
e de sua inserção no lócus religioso por meio das mídias.

Trabalhamos, portanto, o que temos chamado mídia impressa


neopentecostal e a maneira como nela se diz a sexualidade, o
gênero – mais especificamente a expressão de gênero – e, conse-
quentemente, como se os significam.

Entendemos que refletir sobre a expressão de gênero é um


ponto alto da relação desse campo do saber – os estudos de gênero
– com a Análise de Discurso, pois é pela expressão de gênero que
os corpos podem ser lidos socialmente de maneira mais imediata
e, com isso, ser significados na dinâmica do social. Dito de outro
modo, é pela maneira como um sujeito, em sua posição, expressa
seu gênero que, para a grande maioria dos sujeitos interpelados
ideologicamente em suas posições, se determina o lugar desse
outro nas relações de forças, socialmente postas, (d)entre os
gêneros e (d)entre as sexualidades.

Pressupomos, aqui, como condição de produção, o funcio-


namento da heteronormatividade como produto da história em sua
construção ideológica. Conforme propõe Foster (2001), tal conceito
pode ser compreendido como

14
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada
e a sexualidade pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal,
constituição de família (esquema pai-mãe-filho(a)(s)). Na esteira das
implicações da aludida palavra, tem-se o heterossexismo compul-
sório, sendo que, por esse último termo, entende-se o imperativo
inquestionado e inquestionável por parte de todos os membros da
sociedade com o intuito de reforçar ou dar legitimidade às práticas
heterossexuais. (p.19 apud MIRANDA, 2010)

É desse modo que pensamos a ordem do funcionamento da


história em relação ao modo como se apresentam as questões de
SUMÁRIO gênero e sexualidade atualmente. Tais questões são atravessadas
por redes de significações que derivam de experiências com a
censura e com a repressão que se constituem pelo imperativo que
se confere ao seu – assim lido – inverso. Dito de outro modo, é pela
maneira como a heterossexualidade se apresenta no corpo social
que se delineiam, pela ideia do que não é, um lugar de marginali-
dade à pansexualidade, à bissexualidade e à homossexualidade,
por exemplo.

Em busca, portanto, de discutir esse panorama, propomos


este capítulo que traz, além desta introdução, duas pequenas
seções nas quais discutimos alguns pontos de partida e lugares
teóricos para a investigação, respectivamente, da religiosidade e da
expressão de gênero em sua relação com os estudos discursivos;
trazemos, como um caso exemplar, uma análise sobre uma matéria
veiculada no jornal Folha Universal, onde comparecem os sentidos
sobre o gênero e a sexualidade em suas formas de expressão; e,
finalmente, fazemos ainda algumas considerações finais.

DISCURSO E RELIGIOSIDADE

Reflexões sobre a relação entre discurso e as práticas reli-


giosas sempre estiveram presentes na tradição da Análise de

15
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Discurso brasileira, que se estabelece a partir da movimentação
e a sexualidade teórica proposta por Orlandi (1987), por sua vez, alinhada aos domí-
nios teóricos pecheutianos.

Em um capítulo específico do livro A linguagem e seu funcio-


namento, Orlandi (1987) estabelece parâmetros para que se possa
pensar o discurso religioso. Tais parâmetros, de acordo com a
autora, a despeito do fato de ela refletir especificamente sobre o
modo de funcionar do discurso cristão católico, devem servir de
SUMÁRIO base para que pensemos esse objeto – o discurso religioso – de
maneira ampla. Dito de outro modo, a autora estabelece as proprie-
dades às quais todo e qualquer discurso religioso obedecerá, funcio-
nando nos diversos planos seus específicos: o plano temporal, onde
se encontram os homens; e o plano espiritual, onde se encontram
as divindades.

A propriedade inerente ao funcionamento do discurso reli-


gioso, conforme propõe a autora, é a impossibilidade de reversi-
bilidade, isto é, é impossível que as posições-sujeito se situem no
discurso com o mesmo potencial de dizer. Isso porque a maneira
como a posição-sujeito/Deus – o Sujeito absoluto do discurso reli-
gioso – constitui-se principalmente na lógica cristã ocidental impede
que uma posição-sujeito/fiel qualquer estanque a diferença já posta
que fará com que se signifique o que se diz em cada posição de
uma certa maneira. Ainda de acordo com Orlandi (1987), o que
predomina como propriedade do discurso religioso é uma ilusão
de reversibilidade, já que sem ela – ou, pelo menos, sem a ilusão
dela – o fio discursivo se rompe, não sendo possível a produção de
efeitos de sentido.

Conforme demonstramos (FATIMA, 2018a), o discurso


religioso presente no jornal Folha Universal, atende a tal propriedade.
Embora, a partir de nosso corpus, não seja possível demonstrar de
maneira detalhada tal comprovação, entender que as posições-

16
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero sujeito do discurso religioso falam diferentemente é, para nós,
e a sexualidade fundamental. Principalmente pelo fato de haver uma posição-
sujeito/mediador – a do líder religioso – que se constitui pelo
potencial de transitar – discursivamente – entre os planos temporal
e espiritual, portando o “dom” de traduzir a palavra de Deus para
aqueles que não tem acesso a ela.

A inserção dessa posição especificamente no discurso da


Igreja Universal, tomado aqui pela forma como ele se nos apresenta
SUMÁRIO a partir de seu veículo de comunicação impresso, faz retornar no/
sobre o processo de significação elementos que potencializam o
efeito de verdade do que ali se diz. Tal potencialização se dá de
duas maneiras:

1. Porque, de acordo com Orlandi (1987), o discurso reli-


gioso é um discurso autoritário, que tende a estancar
a polissemia, dando forte direção ao sentido que se
pretende para o referente em questão, pois nele fala a
voz de Deus;

2. Porque, de acordo com Mariani (1996), o discurso jorna-


lístico, ao colocar o mundo como objeto e se fazer falar
pela voz de um especialista, também se caracteriza
como um discurso autoritário, investindo o que ali se diz,
seja pela didatização, seja por outros elementos, de um
forte efeito de verdade.

Tendo em vista as teorizações feitas pelas duas autoras, nós


temos compreendido que o que se diz pelas páginas do jornal Folha
Universal está investido de efeitos de verdade tanto pela via do reli-
gioso, quanto pela via do jornalístico.

Na esteira disso que temos dito até aqui, uma reformulação


feita por Orlandi (2007), a respeito do funcionamento do discurso
religioso, faz-se fundamental. Ao teorizar acerca do silêncio, a

17
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero autora afirma que “o que funciona na religião é a onipotência do
e a sexualidade silêncio divino. Mais particularmente, isto quer dizer que, na ordem
do discurso religioso, Deus é o lugar da onipotência do silêncio. […]
E o homem precisa desse lugar, desse silêncio, para colocar uma
sua fala específica: a de sua espiritualidade” (ORLANDI, 2007, p.28,
grifos da autora).

Isso coloca alguns deslocamentos importantes em questão:


se “Deus é o lugar da onipotência do silêncio” e se a posição-sujeito
SUMÁRIO bispo – líder religioso – tem, como vimos, o potencial de “traduzir”
a palavra – ou o silêncio – de Deus para aqueles que não detêm a
Palavra, isso quer dizer que os efeitos decorrentes da imbricação
entre o religioso e o jornalístico produzem mudanças basilares na
maneira como o discurso religioso da Igreja Universal se apresenta
no corpo social.

Acenamos, também, para o fato de funcionar – como condição


de produção do discurso – a proximidade da Igreja Universal com a
Teologia da Prosperidade. Tal aproximação faz trabalhar a maneira
como se dá sentido ao silêncio divino de uma maneira específica.

Em Grigolleto (2003), que retoma as discussões propostas


por Orlandi (1987) para pensar o funcionamento discursivo da reno-
vação carismática no interior da Igreja Católica, há um gesto de
análise parecido com o que temos tentando empreender nos domí-
nios discursivos da Igreja Universal. Há similaridades, especifica-
mente na maneira como se busca domesticar o silêncio divino, a
partir de determinações ideológicas específicas. A autora afirma que
Entre a voz de Deus, que pertence ao plano divino, e a voz do homem,
que pertence ao plano temporal, há um espaço que é preenchido
pelo silêncio e pelas relações imaginárias e simbólicas. E é nesse
espaço que também se constroem os sentidos no discurso religioso.
(GRIGOLETTO, 2003, p.38-39)

O espaço de que fala a autora é um espaço em que se


imbricam as propriedades do discurso religioso, tensionadas

18
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero às condições de produção do discurso e às divisões de sentido
e a sexualidade postas em prática pelo funcionamento das ideologias. Sobre isso,
vale a pena mencionar que os sentidos para diversos elementos
do universo religioso se materializam por diferentes efeitos – sendo,
portanto, semantizados de maneira diferente – quando se está, por
exemplo, no domínio da teologia da prosperidade e quando se está
no domínio da teologia da libertação. O próprio sentido de fé traba-
lhado nos domínios de proximidade com a teologia da prosperidade
inscrevem outros sentidos e convocam outras redes de memória
SUMÁRIO para tal referente discursivo1.

O discurso religioso, então, funciona pela retomada e


pela reinvenção das verdades que o constituem. Embora alguns
elementos possam se deslocar, outros, no entanto, continuam a se
revestir do efeito de verdade universal, que deriva do modo como o
religioso se apresenta discursivamente.

Não pretendemos trabalhar esta questão aqui, mas é impor-


tante ressaltar que, pela maneira como o Cristianismo se constrói
– desde sua origem até a contemporaneidade – a sexualidade
humana, por exemplo, é um desses elementos revestidos de
verdade nos quais não se ousa tocar, sob a pena de se deslegitimar
o próprio estatuto da religiosidade2.

Os porquês de a sexualidade – principalmente aquelas não


heterossexuais – ainda serem um tabu por parte das igrejas cristãs
não nos interessam discursivamente neste trabalho. Podemos, no
entanto, citar que há em Foucault (1988), em sua História da sexuali-
dade, pontos importantes para se refletir sobre o assunto.

1. Discutimos a noção de “fé inteligente”, própria da Igreja Universal em artigo intitulado “A fé


imaginária: uma análise discursiva da fé inteligente no discurso da Igreja Universal do Reino de
Deus” (FATIMA, 2018b)
2. Podemos mencionar, por exemplo, as chamadas igrejas inclusivas. Essas igrejas defendem a
legitimidade de outras sexualidades, que não a heterossexual, mas são constantemente contes-
tadas sobre a “verdade” de sua relação/ligação com Deus.

19
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero De outro modo, filiados à linha pecheutiana de Análise de
e a sexualidade Discurso, interessa-nos mais propriamente o estado atual da
relação entre a ideologia e a língua, e os efeitos de sentido que
dessa relação pungem principalmente levando-se em consideração
o modo específico de funcionar do discurso religioso.

Antes de prosseguir nessa discussão, parece-nos funda-


mental fazer algumas reflexões sobre a forma como se pode – e
como tem se dado até aqui – pensar discursivamente as questões
SUMÁRIO de gênero e sexualidade.

DISCURSO, (EXPRESSÃO DE) GÊNERO E


SEXUALIDADE

Reconsiderar os estudos de gênero pelo ponto de vista


discursivo tem sido entendido como um grande desafio, principal-
mente pelos teóricos e estudiosos da linha pecheutiana de Análise
de Discurso. Isso porque muito do que se produziu, teoricamente,
nos domínios das disciplinas essencialistas ou biologizantes sobre
essa dimensão do ser humano – o seu gênero e a sua sexuali-
dade – não nos cabe, à medida que o que se busca, em Análise
de Discurso, é uma crítica às evidências de sentido e não a estabili-
zação de sentidos (prescrições ou verdades universais) sobre qual-
quer que seja a temática em questão.

Desse modo, pelo terreno no qual se assenta a Análise de


Discurso pecheutiana, temos elementos, a partir de uma ótica
que considera as diferenças como construídas socialmente, para
compreender que a diferença entre os gêneros é construída discur-
sivamente, “efeito de um processo de interpelação complexo e
contraditório” (ZOPPI-FONTANA & FERRARI, 2017).

20
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Defendemos aqui o ponto de vista de que pensar discur-
e a sexualidade sivamente o gênero é, também, refletir sobre certas questões do
domínio da sexualidade, já que é, em grande parte, pela maneira
como o sujeito desempenha o gênero que ele será identificado ou
não em sua sexualidade3, principalmente quando esta sexualidade
não estiver de acordo com um certo padrão cisheteronormativo4.

Sendo assim, se, na esteira do que teorizam Zoppi-Fontana &


Ferrari (2017), a diferença entre os gêneros é efeito de um processo
SUMÁRIO de interpelação completo e contraditório, as sexualidades são signi-
ficadas no bojo desse efeito, constituindo-se não como um lugar de
exercício livre e transparente de algo de um domínio a que não se
tem acesso, mas sim como um lugar significado pelas oposições
(heterossexualidade x homossexualidade, por exemplo) que, no
corpo social, determinam, pelas relações de força, quem, inclusive,
pode ter acesso à cidadania ou não.

Compreendemos a sexualidade, portanto, a partir da ideia de


que algo se marca no corpo do sujeito, como um real que intervém
na constituição daquilo que parecia designado/determinado pelo
biológico, mas que não o é, sobretudo porque os corpos são inves-
tidos de linguagem. Sendo assim, refletimos aqui sobre a expressão
de gênero, por compreender que é por esse modo de (se) expressar
– do qual muitas vezes não se tem consciência ou controle – que
se pode fazer intervir o funcionamento da ideologia, determinando
o lugar de cada sujeito – com relação à sua sexualidade – em uma
determinada formação discursiva.

Tendo feito essas breves considerações acerca de nosso


lugar teórico, passemos, então, para nossas análises nas quais
trazemos um caso exemplar do que temos dito até aqui.

3. Sabemos, no entanto, que há questões específicas do domínio da sexualidade. Essas não nos
interessam teoricamente aqui neste trabalho.
4. Voltaremos a essa noção no momento da análise. Neste mesmo livro, no entanto, há um
capítulo de autoria de Amanda Bastos no qual essas questões são mais fortemente trabalhados.

21
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A MÍDIA IMPRESSA RELIGIOSA SOBRE O
e a sexualidade
GÊNERO E A SEXUALIDADE: UM CASO
EXEMPLAR

A matéria que elencamos como corpus para este trabalho,


circulou na edição 1150 do jornal Folha Universal da Igreja Universal
do Reino de Deus. Trata-se de uma matéria da coluna Antes e
Depois que, como o próprio nome sugere, se põe a contar a história
SUMÁRIO de alguém, comparando sua vida antes e depois do encontro com
a Igreja Universal.

A história narrada nesta edição é de uma pessoa a quem


chamam Juliana Aires, de 25 anos, que dizia “se vestir como homem
para se sentir mais segura”. Tal enunciado, trazido como título, no
entanto, em uma primeira impressão, parece não se confirmar
quando tensionamos o que é dito nele com algumas sequências
enunciadas no corpo da matéria. Dito de outro modo, os motivos
de Juliana parecem bem mais complexos quando se lê a matéria
completa do que quando somente se lê os elementos em destaque
– título, janela, etc. Isso nos dá indícios de que há deslocamentos no
modo de funcionar da mídia impressa religiosa em relação a outros
veículos impressos de mídia.

Percebemos, pela leitura da superfície linguística e nos


primeiros gestos de tratamento teórico desse texto, que havia algo
importante – em termos discursivos – no que se refere aos processos
de descrição que, como efeitos de sentido, se materializam pelos
dizeres do jornal. Descrever, para nós, é um gesto de tomada da
linguagem pelo sujeito que, por sua vez, funciona discursivamente
pela metonimização do outro. Dito de outro modo, esse outro de
quem se fala passa a ser tomado no seu todo por aquela parte
que é dita, no processo de descrição, sobre ele. Optamos, desse
modo, por recortar as sequências discursivas em que comparecem

22
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero enunciados definitórios, isto é, enunciados que buscam definir
e a sexualidade Juliana, já que o que estava em questão era a significação dela
nesse lugar – ou entrelugar (antes e depois) – em que a expressão
de seu gênero está em questão.

Portanto, as seguintes SD compõem nosso corpus:

SD1: Com um histórico de carência, complexo de inferiori-


dade, envolvimento com drogas e agressões físicas, Juliana,
em um momento de raiva, bebeu vinho pensando ser o
SUMÁRIO sangue da própria sobrinha e do namorado dela. Um episódio
que ela lembra com muita dor. “Ouvia uma voz que falava para
matá-la enquanto ela dormia. Na hora não consegui, mas a
voz insistia.”

SD2: Com uma vida vazia, sem objetivos, Juliana se isolava de


todos à sua volta, “vivia de aparência” e aos 10 anos começou
a sentir desejo de ser homem e passou a se vestir como tal,
pois assim se sentia segura e protegida. Levando uma vida
de mentiras, se envolveu com pessoas erradas e chegou a
ser ameaçada de morte pelo pior traficante do bairro onde
morava.

SD3: Toda essa necessidade de se “passar” por homem


escondia o fato de que ela era uma garota carente, sem
referencial de pai e com uma mãe bastante envolvida com o
trabalho, o que fez com que Juliana convivesse apenas com
o seu irmão e amigos dele. Quando sua sobrinha nasceu, a
pouca atenção que recebia da mãe deixou de existir, já que
ela só tinha olhos para a neta. Com raiva disso, Juliana chegou
a agredir a mãe fisicamente e passou a agir exatamente como
um homem.

O funcionamento discursivo das SD acima transcritas nos


direcionam para diversos elementos do modo como o gênero e a

23
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero sexualidade podem ser lidos a partir da expressão do gênero. Há,
e a sexualidade inclusive, vários elementos que aparentemente estão para além
dessas questões, como as relações com criminalidade, fragilidade
física etc. Por uma questão de ênfase, no entanto, e buscando
responder a algumas perguntas por nós formuladas, centramo-nos
em alguns pontos, os quais organizados nos tópicos a seguir.

DAS CONDIÇÕES DE LEITURA


SUMÁRIO
Como dissemos, os dizeres no discurso religioso estão inves-
tidos de um efeito de verdade, pois o que ali se diz deriva da voz
de Deus e, portanto, de sua vontade. O sujeito/leitor do jornal Folha
Universal é projetado imaginariamente pelo jornal como alguém que
tem identificação com o que ali é dito ou alguém que pode vir a ter
identificação com o que ali é dito.

Funciona, desse modo, pela antecipação (ORLANDI, 2013),


no que Pêcheux (2014 [1969]) teoriza como Formações Imaginárias,
uma espécie de leitor ideal para quem se fala. O modo como se fala,
no entanto, é atravessado pelo outro domínio que tratamos aqui
na esteira do que teoriza Mariani (1996), sobre o discurso jornalís-
tico: se o que se fala irrompe pelo religioso, o como se fala irrompe
sobretudo pela forma jornalística de dizer.

Para tanto, o enunciador – A Igreja Universal por meio de


seu jornal – lança mão de um certo modo historicamente engen-
drado pelo qual as mídias de massa se dirigem ao seu interlocutor:
tratam-se de imagens, esquemas, explicações, definições, etc. Dito
de outro modo, o jornal “facilita” a compreensão do que tem a ser
dito e, com isso, diz de um modo e não de outro, inscrevendo-se em
um certo funcionamento da ideologia e não em outro.

24
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero O que salta aos olhos do leitor e intervém diretamente no
e a sexualidade modo como ele lerá os enunciados formulados na coluna “Antes
e Depois” está intrinsecamente relacionado às imagens da pessoa
de Juliana que são dispostas entremeadas à matéria. As imagens
mostram Juliana vestindo-se de maneira masculinizada de um lado
e de outro lado vestindo-se com roupas mais alinhadas a um certo
modo de se estar no feminino: aquele mais característico à feminili-
dade cristã (saia mais comprida, parte superior mais fechada, etc.).

SUMÁRIO O funcionamento das imagens, então, condicionam a leitura


do texto verbal a elas apenso, dando uma certa direção de sentido.
Tal direção de sentido, por sua vez, coloca em circulação a ideia
de transformação. Não uma transformação qualquer, mas aquela
necessária para que uma pessoa alcance a plenitude que pode ser
oferecida pela religiosidade e, por metonímia, pelo próprio Deus.

Mas como se constitui essa evidência sobre a necessidade


de uma transformação? A transformação se inscreve na ordem
da língua já pelo título da coluna – Antes e Depois. Tal enunciado
joga com a língua automatizando um binarismo no funcionamento
da vida dessas pessoas imaginariamente projetadas pelo jornal.
Esse binarismo, conforme demonstraremos adiante, encontra lugar,
também, na maneira como está posto socialmente um binarismo
de gênero, enquanto ideia ou norma que regula a expressão dos
corpos em duas possibilidades – feminino e masculino – ignorando
a possibilidade de trânsitos, intermediários ou “não-lugares” dentro
desse contínuo (que é imaginário).

A evidência sobre a necessidade da transformação, desse


modo, vai sendo construída paulatinamente pela negativização do
“antes”, lugar de onde se deve sair no procedimento de transfor-
mação que, pelo automatismo binário que se cria, deve ser simetri-
camente e antagonicamente posicionado em relação “depois” onde
se quer chegar (ou se quer que chegue).

25
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Ocorre que, já pelas imagens no início da matéria, o “antes” é
e a sexualidade apresentado pela pessoa Juliana vestida de maneira masculinizada,
o que põe em circulação os sentidos não somente sobre a lesbiani-
dade – homossexualidade –, mas também sobre a possibilidade de
“mudança total”5, que seria a transexualidade.

Desse modo, os enunciados verbais são escritos já atraves-


sados pela ideia de que essas categorias de gênero e a sexuali-
dade são contracondição para o exercício da fé. Isto é, é necessário
SUMÁRIO que se livre da lesbianidade (ou da transexualidade, dependendo
de como se lê) para que se dê a transformação e que, enfim, se
alcance – depois – o que Deus pode oferecer a uma pessoa.

Tendo exposto alguns elementos que condicionam a leitura


dos enunciados de nossas SD, passemos a analisar, dentro dos
enunciados definitórios, o funcionamento de alguns fatos de
linguagem.

O funcionamento discursivo dos determinantes:


o processo de adjetivação

Tomamos o processo de adjetivação neste trabalho em sua


propriedade discursiva e não em sua organização linguística. Dito

5. A descrição que fazemos aqui é conduzida pelo funcionamento do imaginário cristão (mas
não somente) sobre a homossexualidade e a transexualidade. Em certos contextos, a transexua-
lidade é entendida como o extremo, isto é, um lugar para onde se caminha por meio da homos-
sexualidade. Não é raro ver, por exemplo, circularem enunciados que se referem a mulheres
transexuais como “viados”. Isso tem relação com o fato de, ainda hoje, não se reconhecer que
pessoas transexuais não “trocam” de gênero e sim o adéquam de acordo com aquilo que se
espera socialmente de um homem ou uma mulher, processo feito com naturalidade por diversas
pessoas cisgêneras, mas que não é lido como troca. A maneira como se apresentam nossas leis
impossibilitam a adequação de gênero antes da puberdade, o que obriga pessoas transexuais
a fazerem tal adequação tardiamente. Tal fato colabora para que se leia socialmente pessoas
transexuais – durante a transição – como homossexuais e não como, de fato, pessoas transe-
xuais em transição. Por um outro lado, essa maneira de perceber a homossexualidade e transe-
xualidade pode levar à crença de que a homossexualidade é uma espécie de “transexualidade
inacabada”. Fora do imaginário cristão, no entanto, sabemos que a homossexualidade é uma
questão de sexualidade e que a transexualidade é uma questão de gênero, não se confundindo
uma coisa com a outra.
26
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero de outro modo, mais do que pensar que, na língua portuguesa, os
e a sexualidade adjetivos exercem a função de caracterizar – geralmente um subs-
tantivo ao qual, na ordem da língua, eles aparecem relacionados –,
pensamos os efeitos de sentido que decorrem do engendramento
de uma certa prática discursiva através do retorno de determinados
domínios de memória sobre aquilo que é definido e denominado –
a pessoa Juliana em relação a sua expressão de gênero – a partir
dos dispositivos de determinação, assumidos pelos adjetivos nos
enunciados definitórios.
SUMÁRIO
Retomemos, portanto, um dos enunciados de nosso corpus:

SD1: Com um histórico de carência, complexo de inferiori-


dade, envolvimento com drogas e agressões físicas, Juliana,
em um momento de raiva, bebeu vinho pensando ser o
sangue da própria sobrinha e do namorado dela. Um episódio
que ela lembra com muita dor. “Ouvia uma voz que falava para
matá-la enquanto ela dormia. Na hora não consegui, mas a
voz insistia.”

O procedimento que adotamos, alinhado ao conceito de efeito


metafórico (PÊCHEUX, 2014 [1969]), permite com que pensemos
não o adjetivo como classe de palavra em si, e sim, a partir de
reformulações do enunciado – paráfrases –, perceber como uma
categoria da língua determina – por meio de caracterização – outra
categoria da língua.

Desse modo, temos, em SD1, a seguinte relação de


equivalências:

Termo enunciado Elemento parafrástico


“histórico de carência” pessoa carente
“histórico de envolvimento com drogas” pessoa drogada
“histórico de agressões físicas” pessoa agressiva
“momento de raiva” pessoa inconstante

27
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A partir desse quadro, é possível visualizar a caracterização
e a sexualidade que se faz para esse “antes” de Juliana. Trata-se de uma pessoa
carente, drogada, agressiva e inconstante. Além disso, alguns
termos caracterizam de maneira mais explícita – linguisticamente –,
por outros dispositivos de linguagem sobre os quais não trataremos
neste trabalho, como, por exemplo, as citações ao complexo de
inferioridade e a questões de ordem mais espiritual, como beber
vinho pensando ser o sangue da sobrinha.

SUMÁRIO É necessário salientar que tal enunciado definitório é dito em


relação ao “antes” de Juliana, e que esse “antes” está, pelas condi-
ções de leitura do texto verbal anteriormente descritas, também
apenso um certo “antes” da expressão de gênero (que engloba
o gênero e a sexualidade da pessoa em questão). Dito isso, reto-
mamos a cadeia parafrástica para perceber que, pela SD1, em seu
processo de determinação do referente discursivo que está sendo
significado, retorna sobre esse “antes” - também do gênero e da
sexualidade – a ideia de carência, de uso de drogas, de agressão e
de inconstância na personalidade.

Chamamos atenção, portanto, ao modo como se vai cons-


truindo um lugar negativo para o “antes” - aparentemente em prol
de incentivar a transformação necessária para o exercício da fé na
igreja em questão –, que sub-repticiamente dá direção de sentido
para a compreensão do gênero e da sexualidade, por meio de sua
expressão, que também estão espacialmente situadas no lugar
ocupado por esse “antes”.

Para melhor demonstrar o que discutimos até aqui, reto-


memos, também, este outro enunciado:

SD2: Com uma vida vazia, sem objetivos, Juliana se isolava de


todos à sua volta, “vivia de aparência” e aos 10 anos começou
a sentir desejo de ser homem e passou a se vestir como tal,
pois assim se sentia segura e protegida. Levando uma vida

28
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero de mentiras, se envolveu com pessoas erradas e chegou a
e a sexualidade ser ameaçada de morte pelo pior traficante do bairro onde
morava.

No caso da SD acima, o processo de caracterização segue


sendo constituído pela maneira como o enunciador – a igreja
por meio de seu jornal – diz e não exatamente pelo que ele diz.
Observemos, no conjunto de adjetivos (e palavras/expressões com
função adjetiva), elencados abaixo, o campo semântico que se
SUMÁRIO constrói em SD2.

Juliana tinha/era Juliana queria Juliana tinha como companhia


(vida) vazia (se sentir) segura (pessoas) erradas
Sem objetivos (se sentir) protegida Pior (traficante)
Isolada -------- Mentiras
Vivia de aparência -------- --------

As palavras utilizadas para a formulação de SD2 apre-


sentadas acima demonstram o campo semântico que enreda o
processo de significação do lugar de Juliana quando da expressão
de sua sexualidade. Vale salientar que estamos considerando o
funcionamento dos sentidos dessas palavras em uma determinada
formação discursiva, aquela filiada aos domínios religiosos neopen-
tecostais e para quem, por exemplo, uma vida vazia, sem objetivos
e isolada, é uma vida ruim. Em outras posições-sujeito não neces-
sariamente essas serão categorias negativizadas.

O procedimento de separar esse processo de caracterização


em três colunas foi necessário para que conseguíssemos demons-
trar um ponto fulcral na maneira de dizer pela qual se inscrevem os
sentidos em circulação no jornal Folha Universal. Na primeira coluna
temos o que Juliana tinha ou era, tais elementos estão relacionados
a um momento anterior à manifestação dessa expressão de gênero
que causa estranheza no processo de significação do jornal. Na

29
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero segunda coluna, temos o que Juliana queria, estando tais elementos
e a sexualidade relacionados ao momento em que Juliana “decide” expressar seu
gênero dessa maneira que causa estranheza. Finalmente, a terceira
coluna, em que se tem aquilo que está junto a Juliana, refere-se a
um momento pós-expressão dessa maneira de se estar no gênero.

Dessa maneira organizado, observamos a relação de centra-


lidade que ganha a expressão de gênero na dispersão de diversos
“males” – assim dito/lido pela posição-sujeito cuja voz predomina
SUMÁRIO no jornal – que assolam Juliana. Trata-se de uma angústia imagina-
riamente projetada para o modo como Juliana expressa seu gênero
por meio do seguinte encadeamento discursivo: Juliana era vazia,
isolada etc., [por isso] expressa o gênero como um homem, [por
isso] está com pessoas erradas, sofre ameaça de traficantes, etc.

Chamamos a atenção, portanto, para a relação de causa e


consequência que vai se engendrado nesse modo específico de
dizer da mídia impressa neopentecostal. Isto é, não é exatamente
por uma estrutura oracional de causa e consequência6 que esse
processo se dá, mas por um conjunto de determinações – também
exteriores à língua (mas inerentes a ela) – que, pela linguagem, ao
caracterizar, vão criando um certo lugar para um certo referente –
neste caso, a expressão de gênero fora do padrão heteronormativo.

Retomemos, finalmente, a nosso último enunciado em


análise.

SD3: Toda essa necessidade de se “passar” por homem


escondia o fato de que ela era uma garota carente, sem
referencial de pai e com uma mãe bastante envolvida com o
trabalho, o que fez com que Juliana convivesse apenas com
o seu irmão e amigos dele. Quando sua sobrinha nasceu, a

6. Referimo-nos ao fato de que, normalmente, atribui-se esse funcionamento às orações subordi-


nadas adverbiais causais ou consecutivas.

30
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero pouca atenção que recebia da mãe deixou de existir, já que
e a sexualidade ela só tinha olhos para a neta. Com raiva disso, Juliana chegou
a agredir a mãe fisicamente e passou a agir exatamente como
um homem.

Na SD supratranscrita, para além do processo de deter-


minação que segue se dando via funcionamento das estruturas
adjetivas, gostaríamos de chamar a atenção para a constante
tensão entre causa e consequência que se estabelece na ordem
SUMÁRIO desse enunciado e que, paulatinamente, vai produzindo efeitos.
Tais efeitos produzidos fazem trabalhar sentidos que, como temos
defendido até aqui, caraterizam Juliana à medida que a descrevem,
mas, também, apresentam causa, isto é, justificativas para determi-
nados acontecimentos.

Um exemplo disso está ao final de SD3, em que temos o


enunciado “Com raiva disso, Juliana chegou a agredir a mãe fisi-
camente e passou a agir exatamente como um homem.”. Tal enun-
ciado, pela maneira como se formula, transcende o funcionamento
do que podemos caracterizar simplesmente como um período
composto por coordenação, fazendo possível compreender que a
agressividade de Juliana é causa de ela ter passado a agir como
um homem.

Essa leitura não se dá somente pela estrutura linguística. Tal


efeito de sentido deriva do funcionamento de um elemento funda-
mental para o discurso religioso, a mistificação, conforme teoriza
Orlandi (1987). A partir desse elemento, o discurso religioso busca
incessantemente dar sentido às coisas inexplicáveis7.

Diversos elementos do domínio da sexualidade e também do


gênero – principalmente quando se foge ao binarismo de gênero

7. Inexplicável no interior da formação discursiva da qual se fala. Neste caso, uma formação
discursiva cristã neopentecostal.

31
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero socialmente posto – são, no discurso religioso cristão, inexplicáveis.
e a sexualidade A mistificação funciona, portanto, produzindo condições para que
isso que é inexplicável faça sentido.

Se não há uma justificativa definitiva do domínio da ciência


– em uma sociedade em que o discurso da medicina é o discurso
da verdade – para a expressão do gênero fora do padrão heteronor-
mativo, o discurso religioso ocupa esse lugar oferecendo suas expli-
cações. Essas explicações, como podemos ver pela formulação
SUMÁRIO de SD3 – mas também pelas anteriores – se engendram por essa
relação de sentido de causa e consequência que, por sua vez, está
para além do que se poderia supor em uma análise estritamente
linguística que se desse a partir do funcionamento das determina-
ções por adjetivação e pelo funcionamento das coordenadas.

Descrição, prescrição e proscrição

O que temos proposto com este caso exemplar – o funcio-


namento da mídia impressa neopentecostal sobre a expressão de
gênero em sua relação com a sexualidade –, é que o ato de descrever,
principalmente quando se dá por meio dos processos de adjetivação
nos enunciados definitórios, está para além da pura descrição.

Tensionando o funcionamento discursivo de tais enunciados


definitórios às condições de produção de sentido do discurso reli-
gioso neopentecostal por meio de suas mídias, percebemos que
se colocam, por meio da descrição, o funcionamento da prescrição
e da proscrição. Na medida em que o jornal descreve Juliana, por
exemplo, como carente, de vida vazia, desprotegida, constrói-se a
relação de causa para a expressão de gênero de seu “antes”. No
momento mesmo em que essa relação de causa – e justificativa,
diga-se – se coloca, prescreve-se o que se deve e o que pode ser
e, também, a maneira como se deve e se pode agir. Dessa forma,

32
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero pelo não-dito (ORLANDI, 2013), portanto, proscreve-se o que não
e a sexualidade se deve e não se pode ser e agir.

A heteronormatividade é sub-repticiamente prescrita pela


mídia impressa neopentecostal enquanto qualquer expressão de
gênero que fuja ao padrão é, como vimos, proscrita, censurada.
Trata-se de um não-possível da expressão do corpo colocada por
uma política do silêncio (ORLANDI, 2007). Dito de outro modo, há
um silêncio local funcionando sobre/no discurso religioso neopen-
SUMÁRIO tecostal que impede que outras expressões do gênero constituam o
semanticamente estável dessa formação discursiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em busca de um efeito de fechamento deste capítulo,


acenamos para o caráter sempre incompleto do sentido e da
linguagem para afirmar que esta é uma análise possível dentre
tantas outras. Certamente, diante de outras perguntas, esse corpus
mostraria diversas outras questões que por conta da especificidade
de nosso gesto analítico não puderam aqui ser discutidas.

Acreditamos, no entanto, que há aqui uma contribuição para


se pensar a linguagem em relação com isso que, no momento,
podemos designar como expressão de gênero. Pensar os enun-
ciados definitórios e, mais propriamente, os processos de descrição
foi fundamental para compreendermos certo modus operandis da
mídia impressa neopentecostal que corrobora o sentido negativi-
zado que ainda paira sobre outras formas de se estar no gênero e
na sexualidade que não a forma cisheteronormativizada.

Esperamos ter deixado aqui algumas inquietações e provo-


cações para o leitor. E, mais do que isso, um incômodo pela maneira

33
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero como esses elementos – o gênero, a sexualidade e suas formas
e a sexualidade de expressão – nos são apresentadas. Que tal incômodo, a partir
desse trabalho, possa se tornar, de um lado, um fazer teórico, e de
outro, também necessário, um fazer prático-político.

REFERÊNCIAS

SUMÁRIO FATIMA, Wellton da S. As sexualidades mal ditas no discurso religioso


neopentecostal. Dissertação de mestrado. Niterói/RJ: UFF, 2018a.

______. A fé imaginária: uma análise discursiva da fé inteligente no


discurso da Igreja Universal do Reino de Deus.  Memento (Três Corações),
v. 9, p. 1-21, 2018b.

FOSTER, David W. Consideraciones sobre el estudio de la


heteronormatividade en la literatura latinoamericana. Letras: literatura e
autoritarismo, Santa Maria, n. 22, jan./jun. 2001.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. 13a


ed. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

MARIANI, Bethania. O comunismo imaginário: práticas discursivas da


imprensa sobre o PCB (1922-1989). Campinas: Unicamp, 1996

MIRANDA, Francielle F. Heteronormatividade: uma leitura sobre a


construção e implicações na publicidade. Goiânia/GO: Revista Fragmentos
de Cultura, 2010.

ORLANDI, Eni. Análise De Discurso: Princípios e Procedimentos, 11 ed.


Campinas/SP: Pontes Editores, 2013.

______. As formas do silêncio no movimento do discurso. 6ª. ed.


Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2007

______. O discurso religioso. In A Linguagem e Seu Funcionamento: as


formas do discurso. 2ª. ed. Campinas/SP: Pontes Editores, 1987

34
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F. e
e a sexualidade HAK, T. (org.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2014 [1969]

______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.


Campinas/SP: Editora da Unicamp, 1995 [1975].

ZOPPI-FONTANA, M. G. & FERRARI, A. J. (Orgs). Mulheres em Discurso:


gênero, linguagem e ideologia. Vol. 1. Campinas: Pontes, 2017.

SUMÁRIO

35
DISCURSO, GÊNERO E CIÊNCIA: A OPINIÃO
DO ESPECIALISTA SOBRE O MASCULINO E O
Discurso, gênero
FEMININO NA REVISTA SUPERINTERESSANTE e ciência: a opinião
Elisa de Magalhães e Guimarães
do especialista
sobre o masculino
e o feminino
na revista
Superinteressante
Elisa de Magalhães
e Guimarães

DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.36-60
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Recluso, inteligente e, por vezes, ignorado nos momentos
e a sexualidade que antecedem uma tragédia, a figura do cientista – quase sempre
do sexo masculino – é figurinha fácil nos produtos midiáticos ficcio-
nais que circulam em nossa formação social. Ora louco e perigoso,
ora um aliado de grande valor para heróis de ação e ficção científica,
ele é sempre dono de um poder incomensurável de aniquilação ou
de uma verdade inconveniente capaz de incomodar homens pode-
rosos que se recusam a enxergar ameaças como a possibilidade
de uma nova epidemia ou até mesmo o fim do mundo. Embora tais
SUMÁRIO imagens não sejam reproduções fiéis do trabalho de produção do
conhecimento científico, são certamente um recorte bem represen-
tativo de um imaginário social sobre a ciência como uma entidade
de grande poder e eficácia – imaginário este que se desenvolve em
concomitância com a ascensão da ciência como uma instituição
produtora de verdades no mundo ocidental.

Baseado em um ideal de racionalidade e objetividade plena,


em métodos de quantificação e qualificação e na formulação de
leis que partem de uma suposta ordem e estabilidade do mundo,
o paradigma científico dominante em nossa formação social se
constituiu a partir do século XVI (SANTOS, 2010) em meio a uma
série de mudanças drásticas nos costumes, nos modos de pensar
e na própria estrutura da sociedade ocidental que deram início ao
que hoje chamamos de Era Moderna. Tal transformação é marcada
principalmente pela descentralização do poder exercido pela Igreja
Católica na determinação dos lugares sociais ocupados pelos
sujeitos. Conforme explica Payer (2005), retomando Haroche (1984):
Na Idade Média, a forma de estrutura social era toda ela organizada
segundo a obediência às leis divinas, de tal modo que era em nome
de Deus que se legitimava a divisão social entre súditos, senhores
e nobreza. Já na Modernidade, com a Revolução Francesa, trans-
feriu-se o Poder de organização social ao Estado. Não mais as leis
divinas, mas as leis jurídicas é que se tornaram base da obedi-
ência que torna possível a organização social na forma do Estado.
Por estas leis jurídicas, os indivíduos deixam de ter o estatuto de

37
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero escravos, de propriedade alheia (de objetos, portanto) para se
e a sexualidade tornarem cidadãos concebendo-se como sujeitos, senhores de si,
livres para circular pela cidade e decidir sobre suas ações. (PAYER,
2005, p. 13-14)

Sem terem mais posições pré-determinadas como nobres,


servos e clérigos dentro de uma rígida pirâmide social – processo
que não se deu da noite para o dia, mas ao longo de séculos –, os
sujeitos tornaram-se responsáveis pela definição de suas próprias
identidades. O poder de atribuição de caráter sai do nome de família
SUMÁRIO e passa para a esfera da ação individual. Institui-se, assim, na Era
Moderna, um primado da personalidade (KEHL, 2008). Controlada
não apenas no âmbito das ações, mas também no do pensamento,
a personalidade é a representação do sujeito livre e unívoco. É
nessas condições de produção que a ciência encontra espaço para
se expandir, substituindo a formação ideológica católica como prin-
cipal forma de explicar o mundo e buscando compreender, por meio
de seu modelo de racionalidade, os fenômenos da natureza – desde
acontecimentos astronômicos até a tão falada natureza humana. Ao
passo que atua em concomitância com a lei jurídica no estabele-
cimento do homem como um indivíduo livre, porém, o discurso da
ciência, com seu apelo à natureza, produz outros efeitos de sentido
no que diz respeito à mulher. Segundo Kehl (idem):
Se o conceito de natureza como explicador universal tem um
valor emancipador em sua conexão com o desencantamento, por
deslocar o homem do centro de um universo projetado por Deus e
eliminar toda causa metafísica para as ações humanas, por outro
lado, quando se trata da mulher, toma-se um argumento poderoso
para escravizá-la às vicissitudes de seu corpo. (p. 54)

Em seu trabalho sobre os discursos sobre a feminilidade


na França pós-revolucionária e o romance Madame Bovary, de
Gustave Flaubert, a autora afirma que, à saída das mulheres do lar
para participar dos movimentos revolucionários dos séculos XVIII e
XIX, seguiu-se uma onda reacionária que visava removê-las nova-
mente do espaço público. Tal reação teve como um de seus pilares

38
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero centrais a ascensão da natureza como elemento de interesse cientí-
e a sexualidade fico. Um fenômeno semelhante é descrito por Friedan (2001 [1963]),
que discute a forma como pesquisas em sociologia, antropologia
e psicanálise, entre outras áreas, foram mobilizadas, nos Estados
Unidos do pós-Segunda Guerra, visando a recuperação de um
determinado imaginário de feminilidade e o incentivo ao retorno à
esfera doméstica das mulheres que haviam saído de suas casas
para ocupar os postos de trabalhado deixados vagos pelos homens
convocados para o combate.
SUMÁRIO
Porém, se Kehl (2008) aponta em sua pesquisa para obras
como o Emílio, de Rousseau, em que o filósofo francês recomenda
que a educação feminina seja conduzida de forma a melhor preparar
as mulheres para seu papel natural, o principal ator do movimento
identificado por Friedan (2001 [1963]) não é apenas o saber cien-
tífico, mas também a mídia. A imprensa, principalmente a denomi-
nada imprensa feminina, teve um papel fundamental no processo
de retorno ao lar ocorrido nos Estados Unidos – bem como no
Brasil (BASSANEZI, 1997) – dos anos 1950. Tanto Friedan (2001
[1963]) quanto Bassanezi (1997) apontam para a centralidade que
a imprensa feminina teve na difusão da ligação entre a felicidade
feminina e os lugares de mãe, esposa e dona de casa, ao mesmo
tempo que reforçavam a aceitação de comportamentos masculinos,
mobilizando, para isso, um dizer sobre a ciência.

Produzido em instituições públicas e privadas de acesso


restrito a não pesquisadores, o conhecimento científico tem como
seu principal meio de difusão junto ao chamado público geral
a mídia, especializada ou não. Tratam-se de minutos de rádio e
TV e páginas de jornais, revistas e sites da internet dedicados à
veiculação de notícias sobre pesquisas realizadas em laboratórios
e universidades. Entre os temas abordados, estão questões rela-
cionadas ao corpo e à natureza humana, entre as quais se encon-
tram questões de gênero. Tais reportagens colocam o discurso da

39
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ciência em relação com outros discursos (o da mídia, o do senso
e a sexualidade comum) na formulação (ORLANDI, 2001) de um novo discurso: o
discurso de divulgação científica, que, por sua vez, põe em circu-
lação um dizer próprio, com efeitos de sentido próprios, a respeito
de ciência e gênero. A esses dizeres é atribuída uma aura de auto-
ridade, derivada de um imaginário da imprensa como lugar da
verdade, dominante em nossa formação social, mas também do
comparecimento constante de dizeres de especialistas no fio do
discurso midiático, na forma de aspas, discurso direto e indireto e
SUMÁRIO glosas – recurso comum no jornalismo, em suas diversas vertentes,
e essencial para o jornalismo de divulgação científica, que, como
veremos mais à frente, entende a si mesmo como uma tradução do
discurso científico.

Lançada em 1987 como uma versão brasileira da revista


espanhola Muy Interesante, dedicada a oferecer “aos leitores uma
visão ampla do que se fez, do que se faz e (...) do que se fará em
termos de pesquisa e realização científica e tecnológica” (CIVITA,
2012 [1987]), a revista Superinteressante é a principal publicação
de divulgação científica para o público não especializado no Brasil.
Segundo dados de julho de 2017, coletados do portal Publiabril8,
a revista tem uma circulação líquida de 233.402 exemplares que
atingem, em média, 3.094.000 leitores. Em um intervalo de dez
anos – entre 2005 e 2015 –, a revista publicou 151 reportagens,
notas, colunas de opinião, crônicas e infográficos sobre gênero
e sexualidade em um total de 120 edições regulares9. Entre as
reportagens de capa, desde o seu lançamento até o ano de 2015,
Superinteressante dedicou dez edições a reportagens como Viva
Afrodite! (outubro/2000), sobre a sexualidade feminina, e Homens x
Mulheres – Por que eles estão ficando para trás? (junho/2011), sobre

8. Portal de publicidade da Editora Abril.


9. Consideramos edições regulares os números mensais da revista, sem as contar edições extra-
ordinários temáticas ou comemorativas lançadas esporadicamente.

40
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero as disparidades no desempenho acadêmico e profissional mascu-
e a sexualidade lino e feminino (GUIMARÃES, 2018).

Amparados pelo quadro teórico-metodológico da Análise do


Discurso desenvolvida por Michel Pêcheux (doravante, AD) – ciência
de entremeios que se constitui a partir da mobilização de conceitos
da psicanálise lacaniana, do marxismo althusseriano e da linguística
estruturalista –, propomos, aqui, uma análise das falas dos espe-
cialistas em 5 reportagens sobre gênero e sexualidade da revista
SUMÁRIO Superinteressante, encontradas na seção Superarquivo do site da
revista. As reportagens foram recortadas de um corpus mais amplo,
de 14 reportagens, trabalhado em sua totalidade na dissertação
Gênero é Superinteressante: efeitos de sentido sobre o masculino e
o feminino no discurso de divulgação científica (GUIMARÃES, 2018).
A partir da análise proposta neste capítulo, procuramos nos deter
sobre um ponto apenas brevemente trabalhado na dissertação:
a forma como o dizer do outro, ao comparecer nas reportagens
da revista, produz determinados efeitos de sentido sobre gênero.
Trata-se não de buscar pistas a respeito dos possíveis efeitos de
sentido gerados pelos trabalhos dos pesquisadores consultados ou
de analisar declarações tomadas em outras condições de produção,
no momento em que foram dadas ou isoladas de outros dizeres,
mas de como, ao serem postas em relação dentro de um todo mais
amplo, as falas dos especialistas constituem um novo discurso a
respeito do que significa ser homem ou mulher10.

10. Tomamos, aqui, o gênero como uma oposição binária por ser essa a posição de
Superinteressante. Em nenhuma das matérias analisadas foi levada em consideração a possi-
bilidade de outras formas de identificação que não homem ou mulher. (Cf. GUIMARÃES, 2018.)

41
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero O DISCURSO SOBRE CIENTISTAS, HOMENS E
e a sexualidade
MULHERES

Conforme já abordado na introdução deste capítulo, em


nossa formação social, o conhecimento científico projeta para si
uma imagem de saber objetivo e imparcial. À ciência é autorizada
a produção de efeitos de verdade, de forma que podemos dizer, na
passagem para a modernidade, o conhecimento científico substi-
SUMÁRIO tuiu a religião “não apenas como um ponto de referência, mas como
lugar de absolutos” (GUIMARÃES, 2018, p. 39). Segundo Pêcheux,
o discurso da ciência – ou o discurso do sujeito da ciência – teria
como característica principal o apagamento próprio do sujeito que
o produz, que se faria “presente por sua ausência, exatamente
como Deus sobre esta terra no discurso religioso” (PÊCHEUX, 1995
[1975], p. 198).

Embora questionadas em momentos de crise política, em


que se multiplicam as acusações de aparelhamento da mídia, a
objetividade e a imparcialidade também são pressupostos básicos
da atividade jornalística amplamente aceitos em nossa formação
social. Jornalistas, bem como cientistas, seriam, nesse imaginário,
sujeitos capazes de falar de fora da interpelação ideológica – meca-
nismo que permite aos sujeitos produzir sentidos a partir de uma
posição dada dentro de uma formação social e ideológica dada.
Tal posição de poder, porém, não é possível no entendimento da
AD, para a qual um discurso só produz efeitos de sentido dentro de
condições de produção dadas. A questão da objetividade jornalís-
tica “não se trata apenas da antiga discussão das diferenças entre
um jornalismo mais opinativo opondo-se a um mais informativo”
(MARIANI, 1996, p. 69), mas de gestos interpretativos que, tomando
a língua como transparente, dividem os acontecimentos noticiados
entre o que é narrado como informativo e opinativo. “Aferrar-se à

42
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero língua como sendo ela o repositório dos sentidos literais e unívocos
e a sexualidade acaba por criar a ilusão de que o que se diz é uma informação e não
uma opinião” (BAALBAKI, 2010, p. 106).

A ciência e a empresa jornalística cumprem a função de


produzir e disseminar “um conhecimento que ofereceria uma
compreensão do mundo natural para que ele pudesse ser melhor
dominado e tornaria todos os homens iguais por partilharem do
mesmo saber empírico, objetivo” (GUIMARÃES, 2018, p. 31).
SUMÁRIO Porém, conforme Mariani (1996), “o discurso jornalístico, enquanto
forma de manutenção de poder, atua na ordem do cotidiano, pois
além de agendar campos de assuntos sobre os quais os leitores
podem/devem pensar, organiza direções de leituras para tais
assuntos” (p. 106).

A divulgação científica emerge, segundo Baalbaki (2010),


como agente da democracia, visando “salvar a sociedade do obscu-
rantismo de um regime não democrático; ela libertaria os cidadãos
e os faria entender o mundo ao seu redor” (p. 72). Em meio às
muitas formas de divulgação possíveis – suplementos escolares,
feiras e exposições etc. –, destaca-se o jornalismo científico, que
se distingue por ter como alvo um público universal (GRIGOLETTO,
2005): sua premissa é levar o conhecimento para toda a sociedade,
utilizando-se de uma linguagem e de recursos que tornariam a
ciência acessível sem perder a fidelidade às informações fornecidas
pelos cientistas e suas instituições de pesquisa. Caberia ao jorna-
lista de ciência e tecnologia, portanto, “traduzir” o jargão científico
sem produzir qualquer tipo de alteração nos sentidos nem permitir
que a suposta linguagem objetiva da ciência seja afetada pela
subjetividade do senso comum.

Além de produzir um efeito de transparência da linguagem e


de hierarquização do discurso da ciência com relação aos discursos
cotidianos – deixando de lado, inclusive, a intercalação dessas duas

43
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ordens e a inserção de ambas e de seus sujeitos produtores em
e a sexualidade uma formação social regida por uma ideologia dominante –, tal
noção do discurso de divulgação científica como uma tradução do
discurso científico produz, também, um apagamento das rotinas de
produção do jornalismo, que envolvem a escolha de pautas a serem
abordadas e de pesquisas e especialistas a serem consultados.
Assim, os acontecimentos noticiados comparecem na mídia, espe-
cializada ou não, como se fossem sempre os mais importantes de
seus campos de estudos, embora a importância de uma pesquisa
SUMÁRIO dentro de uma determinada área não seja sempre o critério central
para que ela seja pautada. Conforme explica Guimarães (2001):
o acontecimento para o jornal, aquilo que é enunciável como
notícia, não se dá por si só, como evidência, mas é constituído pela
própria prática do discurso jornalístico. Enunciar na mídia inclui uma
memória da mídia pela mídia. Valendo-me de conceitos formulados
pela análise de discurso, posso dizer que enunciar na mídia é enun-
ciar segundo a interdiscursividade que determina as formulações da
mídia, por mais que os jornalistas possam ainda afirmar que eles se
pautam pela objetividade dos acontecimentos. (GUIMARÃES, 2001,
p. 15)

Dessa forma, aquilo que constitui um acontecimento jornalís-


tico é aquilo que é considerado noticiável pela mídia de acordo com
critérios que abarcam o que se entende como o interesse público.
Entra em jogo uma série de formações imaginárias (PÊCHEUX, 1997
[1969]) a respeito de quem são os leitores e os espectadores de um
determinado veículo, do que o próprio veículo representa, de qual o
papel do jornalista e do quão importante é o assunto em questão. Tais
formações imaginárias estão, por sua vez, ligadas à própria mídia,
que, como um Aparelho Ideológico de Estado (1987 [1970]), atua
na reprodução das condições de produção, cristalizando sentidos e
criando a ilusão de um universo logicamente estabilizado.

No caso da ciência, a mídia produz um efeito de autoridade


para o conhecimento científico, reforçando o imaginário da ciência
como a-histórica, exterior à ideologia, e capaz de dar respostas

44
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero definitivas para os problemas do mundo e da humanidade. Em vez
e a sexualidade de privilegiar o debate constitutivo do saber científico, o jornalismo
científico da grande mídia
toma um conhecimento produzido por uma longa história como
se ele fosse um acontecimento do presente. A distorção que isso
provoca sobre a ciência é tanto mais importante na medida em que
isto faz com que a sociedade, pelo viés da mídia, passe a tomar
a produção de conhecimento de modo imediatista. (GUIMARÃES,
2001, p. 20)

SUMÁRIO O efeito de autoridade produzido pela mídia não é igualmente


válido para todas as áreas do conhecimento científico. Embora
profissionais e estudiosos da área entendam o jornalismo científico
como um espaço para notícias referentes às mais diversas ciências,
é possível identificar uma preferência pelas ciências exatas, tecno-
lógicas e da vida, dentro das quais emergiu o paradigma dominante
objetivista e classificatório (SANTOS, 2010). Apagam-se a interpe-
lação ideológica dos sujeitos cientistas e as questões, também de
caráter ideológico, que comparecem na produção do saber cientí-
fico das ciências naturais, seja nos embates entre diferentes teorias,
seja na escolha de projetos para financiamento. Ao mesmo tempo,
as ciências sociais e as humanidades são relegadas a uma posição
de pré-paradigmáticas (idem) e, portanto, menos ou até mesmo
não científicas – divisão que tem seu ponto de origem dentro do
próprio campo da ciência.

A hierarquização das ciências naturais e sociais comparece,


também, na revista Superinteressante, onde, mesmo que às vezes
sejam feitas críticas ao entendimento de traços como a agressivi-
dade sexual masculina como instintivos (GUIMARÃES, 2018), é
possível perceber
uma constante evocação do funcionamento cerebral, da genética,
da produção hormonal e do mundo animal como provas de que
homens e mulheres são como são e ocupam determinadas funções
sociais por uma questão de inatismo atrelado ao sexo. Também se

45
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero faz presente uma imagem da natureza e da evolução como enti-
e a sexualidade dades capazes de decidir conscientemente sobre o destino da
humanidade. (idem, p. 117)

A diferenciação entre os gêneros masculino e feminino como


algo natural não é uma novidade do paradigma científico. Embora
tenham sofrido deslizamentos com o passar dos séculos, as
imagens de homem e mulher presentes no imaginário dominante em
nossa formação social guardam, ainda, resquícios do início da Era
Moderna e mesmo dos tempos que a antecederam. Dentro dessa
SUMÁRIO estrutura, homens e mulheres possuem uma “existência relacional”,
conforme aponta Bourdieu (2010 [1998], p. 34)11, constituindo-se
sempre a partir daquilo que o outro não é. Assim, os perce-
bemos como “pertencentes a duas categorias que se contrapõe,
cada uma com suas funções biológicas e sociais bem definidas”
(GUIMARÃES, 2018, p. 59). Dessa forma, em vez de determinada
pela natureza, as imagens do que são um homem e uma mulher
são constituídas por uma memória social de gênero, estruturada no
discursivo e constituída ao longo de séculos a partir de uma regula-
rização regida por paráfrases e práticas sociais (INDURSKY, 2011).
Tais imagens não têm relação com os corpos individuais de sujeitos
empíricos, mas com discursos postos em circulação a respeito de
como agem e pensam os sujeitos em cada lado da divisão sexual
binária dominante. É assim que, apesar das mudanças ocorridas
na ordem social desde o começo da Era Moderna até o século
XXI – por vezes já chamado de pós-modernidade –, resistem, em
nossa formação social, lugares-comuns como “mulher gosta é de
dinheiro, quem gosta de homem é homossexual”, que remonta a
uma memória do pragmatismo dos casamentos arranjados e a uma

11. É importante lembrar, aqui, que o quadro teórico-metodológico no qual se insere Bourdieu
não é e nem dialoga com tanta facilidade com o da análise do discurso pêcheutiana, guardando
divergências no que diz respeito à definição de conceitos como o de simbólico, essencial nas
duas áreas. Porém, dada a importância da pesquisa de Bourdieu, optamos por incluí-la entre as
referências deste trabalho.

46
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero negação do desejo sexual feminino, e “prende as suas cabras que
e a sexualidade o meu cabrito eu crio solto”, que atualiza um discurso sobre a liber-
dade sexual masculina em oposição à passividade e à vitimização
da mulher.

É assim, também, que a ciência, mesmo ao buscar um rompi-


mento com a visão religiosa do mundo e clamar por um conhecimento
objetivo e racional, produz uma atualização de dizeres tradicionais
sobre masculinidade e feminilidade. Historicamente, encontramos
SUMÁRIO exemplos dessa atualização no já mencionado Rousseau; em
Lineu, que considerava abominável o estudo da vagina (BEAUVOIR,
2009 [1949]); e em Lombroso, que “apontava na mulher inúmeras
deficiências, além de atribuir-lhes fortes traços de perfídia e dissimu-
lação” (SOIHET, 1997, p. 69) e teve grande influência na legislação
brasileira do começo do século XX. Como veremos mais adiante,
essa memória ainda se reproduz em um discurso que, embora não
seja da própria ciência, guarda ainda algo da aura de produção de
verdade que cerca o discurso científico.

A HETEROGENEIDADE MOSTRADA E A VOZ DO


ESPECIALISTA NO DISCURSO DE DIVULGAÇÃO
CIENTÍFICA

Ao comentar o discurso de divulgação científica, Authier-


Revuz (1999) afirma que ele representaria a si mesmo como uma
degradação do discurso da ciência, “lugar fantasmático do pensa-
mento uno, absoluto, perfeito, anterior à fala” (p. 14). Assim, em vez
de questionar a suposta homogeneidade do conhecimento cientí-
fico, opondo pesquisadores de diferentes escolas e posições, as
aspas, o discurso indireto e as glosas trabalhariam, no jornalismo
científico, de forma a reafirmá-la.

47
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Tais recursos são frequentemente usados na mídia escrita,
e a sexualidade em suas mais variadas vertentes, como forma de conferir autori-
dade ao que é dito em uma matéria ou de explicar uma questão
para os leitores, ou mesmo para desresponsabilizar o veículo por
um determinado dizer, atribuindo-o a um especialista e produ-
zindo um efeito de distanciamento. Trata-se de uma marcação
do discurso do outro no intradiscurso, derivada de uma ilusão de
univocidade e originalidade do sujeito. Segundo explica Pêcheux
(1995 [1975]), o sujeito se esquece de que não é a fonte originária
SUMÁRIO dos seus dizeres, que são determinados pelo que chama de inter-
discurso – um lugar imaterial em que circulam todos os dizeres
possíveis e ao qual o sujeito precisa recorrer como única forma
de produzir sentido. Afinal, conforme Maingueneau (1997), “um
discurso não nasce, como geralmente é pretendido, de algum
retorno às próprias coisas, ao bom senso, etc., mas de um trabalho
sobre outros discursos” (p. 120). O autor aponta para um primado
do interdiscurso, de forma que
toda formulação estaria colocada, de alguma forma, na intersecção
de dois eixos: o “vertical”, do pré-construído, do domínio de memória
e o “horizontal”, da linearidade do discurso [o intradiscurso ou fio do
discurso], que oculta o primeiro eixo, já que o sujeito enunciador é
produzido como se interiorizasse de forma ilusória o pré-construído
que sua formação discursiva impõe. (idem, p. 115)

A heterogeneidade, portanto, é constitutiva do discurso. Em


dados momentos, porém, ela aparece marcada no fio do discurso,
ou intradiscurso, o que é chamado por Authier-Revuz (1990) de
heterogeneidade mostrada: “face ao ‘isso fala’ da heterogeneidade
constitutiva responde-se através dos ‘como diz o outro’ e ‘se eu
posso dizer’ da heterogeneidade mostrada, um ‘eu sei o que eu
digo’, isto é, sei quem fala, eu ou um outro, e eu sei como eu falo,
como utilizo as palavras” (p. 32). Dessa forma, reconhece-se o outro
ao mesmo tempo em que se apaga o seu caráter constitutivo do
discurso, em um movimento de distanciamento entre o sujeito e o
seu discurso. Ainda conforme Authier-Revuz (1990, p. 33):

48
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero As formas marcadas de heterogeneidade mostrada representam
e a sexualidade uma negociação com as forças centrífugas, de desagregação, da
heterogeneidade constitutiva: elas constroem, no desconhecimento
desta, uma representação da enunciação, que, por ser ilusória, é
uma proteção necessária para que um discurso possa ser mantido.
Assim essa representação da enunciação é igualmente ‘constitutiva’,
em um outro sentido: além do ‘eu’ que se coloca como sujeito de
seu discurso, “por esse ato individual da apropriação que introduz
aquele que fala em sua fala”, as formas marcadas da heterogenei-
dade marcada reforçam, confirmam, asseguram esse “eu” por uma
especificação de identidade, dando corpo ao discurso – pela forma,
pelo contorno, pelas bordas, pelos limites que elas traçam – e dando
SUMÁRIO forma ao sujeito enunciador – pela posição e atividade metalinguís-
tica que encenam.

Entretanto, é importante lembrar que isso não se dá unica-


mente por meio de uma escolha consciente, mas que “[o] sujeito que
enuncia a partir de um lugar definido não cita quem deseja, como
deseja, em função de seus objetivos conscientes, do público visado,
etc. São as imposições ligadas a este lugar discursivo que regulam
a citação” (MAINGUENEAU, 1997, p. 86). Assim, em uma matéria
de jornalismo científico, como as aqui analisadas, não seria possível
a citação a alguém que não fosse um pesquisador de alguma área
– a não ser em casos muito específicos, como para contestar uma
opinião corrente no senso comum, como no caso a seguir:

SD1: Quando ela resolveu pedir ajuda à avó, ouviu que a culpa
havia sido dela. “Você saiu do banho de toalha na frente do seu
avô, que não sabe controlar os instintos.” (Como silenciamos
o estupro, setembro/2015)

A história da adolescente estuprada pelo avô aparece na


reportagem como um de muitos relatos usados para ilustrar o
problema do estupro no Brasil. A fala da avó aparece como parte da
construção de um “outro antagônico” (BAALBAKI, 2010, p. 172) a
ser contestado pela revista. Não é o caso das citações de especia-
listas, às quais é conferida uma autoridade que, em muitos casos, é

49
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero depositada no próprio lugar de cientista com o qual é identificado o
e a sexualidade sujeito, como nas sequências discursivas (SDs)12 a seguir:

SD2: “Ela não queria que seus filhos crescessem achando


que eram diferentes. Por isso, educou o menino e a menina da
mesma maneira: vestiu-os com roupas iguais, deu bonecas
para o filho e carrinhos para a filha. Certo dia ela entrou no
quarto da menina de 3 anos e a flagrou brincando. No colo
estava um caminhãozinho de brinquedo que a menina ninava
SUMÁRIO de um lado para o outro dizendo: ‘Não chore, carrinho. Vai
ficar tudo bem’.” A história é de uma paciente de Louann
Brizendine, neurobióloga de Harvard. (Homens x Mulheres –
Por que eles estão ficando para trás?, junho/2011)

SD3: “A sexualidade da mulher tem foco amplo. Inclui


romance, lençóis bonitos, dançar, jantar, perfumes. A do
homem é concentrada no orgasmo”, diz Helen, a mais desta-
cada autora deste movimento “pós feminista”, que baseia
seus argumentos em pesquisas científicas. (Viva Afrodite!,
outubro/2000)

A história relatada por Louann Brizendine na SD2 não tem


relação com uma pesquisa realizada segundo métodos científicos:
trata-se de uma anedota sobre uma de suas pacientes. O valor atri-
buído ao dizer de Brizendine está, portanto, não na forma como
a neurobióloga conduz suas pesquisas, mas no simples fato de
ela ser uma neurobióloga. Pesa, também, aqui, a instituição à qual
Brizendine está associada: a Universidade de Harvard, uma das
mais renomadas do mundo. Já na SD3, a opinião da antropóloga
Helen Fisher deriva sua autoridade de basear seus argumentos
em pesquisas científicas. Não é necessário que se diga quais nem

12. Conforme Mariani (1996), sequências discursivas são “sequências linguísticas nucleares,
cujas realizações representam, no fio do discurso (ou intradiscurso), o retorno da memória (a
repetibilidade que sustenta o interdiscurso)” (p. 53).

50
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero como foram realizadas as pesquisas em questão – basta que se
e a sexualidade atribua a elas o caráter de científicas. E, assim como Brizendine não
é qualquer neurobióloga, mas uma neurobióloga de Harvard, Fisher
também não é apresentada como qualquer antropóloga, mas como
a mais destacada autora de um movimento pós-feminista identifi-
cado por Superinteressante.

Em outros momentos, porém, o estudo é explicado, mas os


pesquisadores e a instituição responsáveis não são mencionados
SUMÁRIO pela revista. É o caso da SD4, que reproduzimos a seguir:

SD4: Um estudo feito com bebês de 11 meses mostra como


os pais tratam de maneiras diferentes filhos e filhas. Nesse
experimento, os bebês tinham de descer uma rampa incli-
nada engatinhando. Menininhos e menininhas conseguiram
descê-la sem diferenças. Mas, quando o grau de inclinação
da rampa era definido pelas mães, elas sempre expunham os
filhos a inclinações maiores e poupavam as filhas, como se
assumissem que elas não completariam o trajeto. Ou seja, a
ideia de que mulheres são frágeis e homens são audaciosos
pode ser apresentada aos meninos pelas próprias mães.
(Homens x Mulheres – Por que eles estão ficando para trás?,
junho/2011)

Na sequência acima, embora não se aponte a origem da


pesquisa citada, também é marcada a presença do discurso do
outro: ao inserir o “ou seja” antes da interpretação oferecida para
o estudo apresentado, a revista se posiciona como isenta, como
se não fosse ela quem dissesse que “a ideia de que mulheres
são frágeis e homens são audaciosos pode ser apresentada aos
meninos pelas próprias mães”. O mesmo acontece na SD5:

SD5: “A descarga hormonal pode aguçar a competitividade”,


afirma Sônia. Ou seja: as mulheres perceberam que a TPM

51
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero traz coisas boas – não é apenas um momento de fragilidade.
e a sexualidade (Viva Afrodite!, outubro/2000)

Aqui, o “ou seja” marca uma separação entre a fala da espe-


cialista – a ginecologista Sônia Penteado – e o dizer da própria
revista. Não é mais a Superinteressante que explica uma determi-
nada pesquisa, mas uma pesquisadora que oferece seus resul-
tados. O “ou seja” serviria como uma forma de introduzir uma
explicação desses resultados para os leitores. Assim, o juízo de
SUMÁRIO valor emitido – de que a competitividade seria uma coisa boa – é
apresentado como uma conclusão óbvia a ser tirada do dizer da
especialista. Uma separação semelhante pode ser vista na SD6,
reproduzida a seguir, porém, dessa vez, acompanhada por um tipo
diferente de glosa:

SD6: Nos últimos anos, a Ciência “dissecou” a anatomia e a


fisiologia sexual do homem mas quase ignorou o prazer da
mulher. Os médicos alegam que sem a ereção masculina não
há penetração sexual, daí a atenção sobre esse mecanismo.
“Já os órgãos genitais femininos estão sempre prontos para a
relação”, diz Euzimar Coutinho. Além disso, são mais difíceis
de se conhecer, parcialmente embutidos no corpo. (Farmácia
do prazer, setembro/1998)

Ao apontar para a ciência como responsável por dissecar ou


ignorar a anatomia ou a fisiologia associada a um ou outro sexo e
para os médicos como sujeitos que defendem as suas escolhas,
Superinteressante produz um efeito de afastamento com relação ao
discurso científico. Mais uma vez, é como se dissesse que não é
ela a responsável pelas pesquisas noticiadas, demarcando para si
mesma um lugar de divulgadora objetiva e imparcial. Assim, a fala
do ginecologista Euzimar Coutinho – que deixa de lado mecanismos
fisiológicos como a lubrificação da vagina, produzindo um efeito de
sentido da mulher como constantemente disponível para o sexo –

52
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero aparece como uma confirmação do que já foi dito antes, de que são
e a sexualidade a ciência e os médicos os verdadeiros atores do discurso da revista,
que apenas se limitaria a reproduzir suas falas.

O uso do conector “além disso”, porém, produz um efeito


diferente do de “ou seja”, muito parecido com os das seguintes
SDs:

SD7: A mente feminina tanto pode bloquear o prazer


quanto produzi-lo. “Há casos de mulheres que chegam ao
SUMÁRIO orgasmo só com o pensamento”, diz Sônia. (Viva Afrodite!,
outubro/2000)

SD8: Em média as meninas são mais interessadas em intera-


ções sociais, enquanto os garotos concentram sua atenção
em objetos curiosos e brinquedos, em especial os que se
mexem. “Com 6 meses, as meninas olham mais tempo
para rostos e buscam interagir mais. Já os meninos tendem
a desviar o olhar de outras pessoas com muito mais frequ-
ência”, diz Brizendine. (O que sabem os bebês?, agosto/2010)

Tanto na SD7 quanto na SD8, a única separação entre o dizer


de Superinteressante e o do especialista são as aspas abertas no
começo da citação. Ao contrário do que ocorre nas SDs 4 e 6, a
revista não aponta para um estudo específico ou para um conjunto
de pesquisadores antes de apresentar uma afirmação. A ideia de
que a mente feminina pode produzir ou bloquear o prazer ou de
que as meninas se interessam mais por interações sociais do que
os meninos aparecem como parte do dizer da própria revista, e a
ausência de uma separação verbal produz um efeito de continui-
dade, mesmo que, em seguida, as aspas sejam atribuídas a um
dado especialista, conforme mandam as convenções do jornalismo.

O mesmo efeito de continuidade se produz na SD6, com


a locução “além disso”. Ao contrário de “ou seja”, que carrega

53
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero uma ideia de explicação, “além disso” produz um efeito de adição:
e a sexualidade a revista acrescenta alguma coisa ao dizer de Euzimar Coutinho,
porém, sem apontar para um fim do dizer do especialista. É como
se a fala do ginecologista continuasse, mesmo não demarcada
por aspas.

Nos três casos anteriores – SDs 6, 7 e 8 –, o apagamento


da heterogeneidade constitutiva do discurso não se produz da
mesma forma que nas outras sequências recortadas. A identidade
SUMÁRIO do sujeito enunciador se confunde com a do outro citado, eviden-
ciando a produção de um discurso único – um discurso da revista
Superinteressante, constituído, como todos os discursos, de forma
heterogênea. Usamos, ao longo deste capítulo, uma distinção artifi-
cial entre o dizer da revista e o dizer do especialista. Porém, mesmo
nos casos em que a separação entre as duas falas se apresenta
como evidente, ela não é mais do que um efeito, uma ilusão: não é
o cientista que detém o poder de fala, sendo explicado ou mesmo
interpretado pelo jornalismo científico, mas este último que produz
um novo discurso que atualiza o discurso da ciência, colocando-o
em relação com o discurso da mídia e do senso comum e produ-
zindo novos efeitos de sentido.

O que comparece em Superinteressante, portanto, não é um


dizer da ciência a respeito da diferenciação binária entre gêneros,
mas um discurso da própria revista, segundo o qual meninas e
mulheres são maternais, pouco competitivas, mais interessadas em
interações sociais, capazes de controlar seu prazer sexual e donas
de uma sexualidade não focada no orgasmo e de órgãos sexuais
constantemente preparados para o sexo e mais difíceis de estudar
(de forma que não se pode culpar a medicina por tê-los ignorado
por tanto tempo). Ao mesmo tempo, uma vez que os gêneros se
constituem de forma relacional (BOURDIEU, 2010 [1998]), os
homens não teriam tanto traquejo para atividades sociais, seriam
mais competitivos e mais simples e restritos no âmbito sexual,

54
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero com órgãos fáceis de estudar e um desejo voltado apenas para o
e a sexualidade orgasmo. Ilusoriamente separadas do discurso da revista, as falas
dos especialistas são parte integrante dele.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“[T]oda fala é determinada de fora da vontade do sujeito”


SUMÁRIO (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26). Ou seja, o sujeito é constituído por
aquilo que lhe é externo. Inseridos em uma formação social domi-
nada por uma formação ideológica que percebe a ciência como
toda poderosa, capaz de produzir verdades e de apresentar solu-
ções para todos os problemas e dúvidas enfrentados pela huma-
nidade – ou, ainda, de produzir um pensamento “uno, absoluto,
perfeito, anterior à fala” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 14) –, o jorna-
lismo científico reproduz em suas páginas tal imaginário de ciência.
Afinal, seus sujeitos – os repórteres, editores e outros profissionais
que atuam na produção de notícias – não podem produzir efeitos de
sentido senão ao serem interpelados ideologicamente em sujeitos.

Tais sujeitos jornalistas possuem, assim como um imaginário


da ciência, uma determinada imagem de sua própria profissão,
de acordo com a qual seriam responsáveis por apresentar infor-
mações factuais de maneira objetiva e imparcial, atuando, no caso
do jornalismo científico, como tradutores de uma linguagem que
seria supostamente mais objetiva do que a cotidiana. Entretanto, ao
aparecerem na mídia, as pesquisas científicas passam pelas mãos
de jornalistas e editores inseridos em uma rotina de produção que
engloba a escolha de certas pautas e não outras – para não falarmos
na chegada de certas sugestões de pauta e não outras às reda-
ções – e a atualização do discurso científico em uma outra ordem,
o que resulta em um direcionamento da leitura para determinadas
interpretações. O jornalista reformula um discurso constituído sob

55
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero determinadas condições de produção, de uma determinada forma,
e a sexualidade sem perder os efeitos de cientificidade. Assim, a ciência deixa de
ser conhecimento e se transforma em informação. “Informa-se o
que a ciência faz, mas não se faz ciência. ‘Não é o discurso ‘da’, é o
discurso ‘sobre’’ (...) a ciência” (BAALBAKI, 2010, p. 91).

Segundo Mariani (1996), os discursos sobre


são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos,
portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da memória.
SUMÁRIO Os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem
sobre um discurso de (‘discurso-origem’), situam-se entre este
e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral, representam
lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão
de conhecimento, já que o falar sobre transita na co-relação entre
o narrar/descrever um acontecimento singular, estabelecendo sua
relação com um campo de saberes já reconhecido pelo interlocutor.
(MARIANI, 1996, p. 21-22)

Institucionaliza-se, assim, um dizer sobre a ciência, que


passa pela citação de enunciados atribuídos a sujeitos cientistas.
Ao situar ilusoriamente o dizer do pesquisador fora do discurso da
revista, Superinteressante recobre suas matérias com um caráter de
verdade: não é o jornalista quem afirma o que está posto nas maté-
rias, mas um outro sujeito, embasado em pesquisas científicas. Já
ao produzir um efeito de continuidade, a revista coloca sua fala na
mesma posição que a dos cientistas, novamente conferindo um
efeito de autoridade ao seu próprio dizer ao mesmo tempo em que
reforça a imagem da ciência como produtora de verdades. No caso
das matérias analisadas, tais verdades dizem respeito a questões
referentes a gênero.

Uma vez se tratando este de um trabalho de Análise do


Discurso, é sempre importante lembrar, nestas considerações finais,
que este é apenas um gesto de leitura entre muitos e que outra
análise poderia revelar outros sentidos possíveis. Também é válido
apontar que não nos interessa, aqui, criticar a posição tomada por

56
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero cada jornalista de Superinteressante diante de debates a respeito de
e a sexualidade direitos sexuais, feminismo e da educação de meninos e meninas,
entre outros temas, mas da produção de um discurso institucional.
Tal discurso pode sofrer deslizamentos com o passar do tempo,
transformando-se e produzindo efeitos de sentido que não seriam
possíveis em outros momentos. Porém, conforme pudemos depre-
ender a partir desta análise e do trabalho que deu origem a este
capítulo, Superinteressante direciona a interpretação de seu leitor
para a existência de uma oposição binária e relacional entre os
SUMÁRIO sexos, reforçando estereótipos como o da mulher maternal e repro-
dutora de sua própria opressão, e o do homem agressivo e inepto
no que diz respeito a relações interpessoais. Tal direcionamento de
sentidos, por sua vez, é produzido a partir da mobilização das falas
de especialistas, recortadas de forma a ora produzir uma ilusão de
que é o próprio cientista que fala em Superinteressante, ora a dar
continuidade ao dizer da revista.

Em seu artigo sobre a mulher da classe média urbana brasi-


leira dos anos 1950, Bassanezi (1997) cita o seguinte resultado de
um teste publicado em 1952 pelo Jornal das Moças: “Qual mulher
inteligente que deixa o marido só porque sabe de uma infidelidade?
O temperamento poligâmico do homem é uma verdade; portanto,
é inútil combatê-lo. Trata-se de um fato biológico que para ele não
tem importância” (p. 607). Embora não sejam mais exatamente
os mesmos efeitos de sentido produzidos, em Superinteressante,
o comportamento masculino, assim como o feminino, também
aparece como um fato biológico. O dizer do especialista, porém,
produz o efeito de torná-lo ainda mais factual.

57
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero REFERÊNCIAS
e a sexualidade
ACHARD, Pierre. Memória e produção discursiva do sentido. In.: ACHARD,
Pierre et al. (org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 11-21.

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AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Caderno


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SUMÁRIO ______. Dialogismo e divulgação científica. Rua, Campinas, 5, p. 9-15,
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58
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero GUIMARÃES, Elisa. Gênero é Superinteressante: efeitos de sentido sobre
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Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade Federal
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59
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ARTIGOS ANALISADOS
e a sexualidade
HUECK, Karin. Homens x mulheres – Por que eles estão ficando para
trás?, 2011. Disponível em: <https://super.abril.com.br/comportamento/
homens-x-mulheres-por-que-eles-estao-ficando- paratras/>. Acesso em:
31 de outubro de 2017.

HUECK, Karin. Como silenciamos o estupro, 2015. Disponível em:


<https://super.abril.com.br/comportamento/como-silenciamos-o-
estupro/>. Acesso em: 31 de outubro de 2017.
SUMÁRIO LOPES, José. O que sabem os bebês?, 2011. Disponível em: <http://
super.abril.com.br/ciencia/nasce-sabendo/>. Acesso em: 31 de outubro
de 2017.

LUCÍRIO, Ivonete. Farmácia do prazer, 1998. Disponível em: <https://


super.abril.com.br/ciencia/farmacia-do-prazer/>. Acesso em: 31 de
outubro de 2017.

PEIXOTO, Fábio. Viva Afrodite!, 2000. Disponível em: <https://super.abril.


com.br/historia/vivaafrodite/>. Acesso em: 31 de outubro de 2017.

60
DISCURSO, GÊNERO E DIVISÃO SEXUAL DO
TRABALHO: UMA ANÁLISE DA SOBERANIA
Discurso, gênero
MASCULINA EM UMA MATÉRIA JORNALÍSTICA. e divisão sexual
Virgínia Carollo da Costa Dias
do trabalho:
uma análise da
soberania masculina
em uma matéria
jornalística
Virgínia Carollo da Costa Dias

DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.61-81
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero INTRODUÇÃO
e a sexualidade

No presente capítulo, analisamos uma matéria publicada pelo


jornal O GLOBO que trata das diferenças no desempenho escolar
entre meninos e meninas e como isso impacta na escolha profis-
sional dos alunos. Escolhemos esse texto para corpus de análise
deste trabalho porque o consideramos um material interessante
para estudar e compreender como alguns discursos funcionam
SUMÁRIO sustentando uma divisão sexuada de papéis na sociedade.

A divisão sexual do trabalho é definida por Kergoat (2009)


como a forma de divisão social do trabalho decorrente das rela-
ções sociais de sexo. Na nossa sociedade, a divisão do trabalho
entre homens e mulheres é, a princípio, a imputação aos homens do
trabalho produtivo (o trabalho “assalariado”, na esfera pública) – e a
dispensa do trabalho doméstico – e a atribuição do trabalho domés-
tico às mulheres, e, simultaneamente, a ocupação pelos homens
das funções de forte valor social agregado.

Embora esse modelo já venha sofrendo algumas mudanças,


ele ainda se faz presente. Apesar do número crescente das mulheres
no mercado de trabalho, elas ainda se mantêm responsáveis por
todas as tarefas domésticas, ou pela gestão doméstica, bem como
o cuidado com os filhos e idosos.

Além disso, mesmo dentro do mercado assalariado, encon-


tra-se também uma segregação sexual de postos, profissões e
salários na estrutura ocupacional. As mulheres ocupam a maioria
dos postos associados ao universo de reprodução social, tais como
atenção e cuidados, e a minoria dos postos da área de criação e
inovação. A presença feminina se encontra majoritariamente em
setores relacionados à educação, saúde e serviços de um modo
geral. (ABREU; OLIVEIRA; VIEIRA; MARCONDES, 2016).

62
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Seria de se esperar que o maior acesso à educação de nível
e a sexualidade superior diminuísse as diferenças salariais entre homens e mulheres,
porém o que se nota é que ao compararmos a situação de homens
e mulheres com o mesmo grau de escolaridade, observam-se dife-
renciais maiores entre os mais instruídos, ou seja, “os hiatos sala-
riais de gênero agravam-se em alguns segmentos notadamente
entre os grupos mais escolarizados” (LAVINAS, CORDILHA, CRUZ,
2016, p.95).

SUMÁRIO Ademais, a maior presença feminina nas universidades não


garante uma distribuição igualitária nas diversas áreas do conheci-
mento. As mulheres ainda se encontram, em sua maioria, nas áreas
de humanidades, elas “representam metade ou pouco mais nas
ciências sociais e nas ciências de saúde e constituem uma minoria
nas ciências exatas e engenharia – o que não difere do observado
em muitos países” (ABREU; OLIVEIRA; VIEIRA; MARCONDES,
2016, p.151).

Mesmo dentro das engenharias, profissão em que são


minoria, a distribuição das mulheres não é proporcionalmente a
mesma em cada especialidade. Elas são maioria nas engenharias
de alimentos e ambiental, porém quase não estão presentes nas
engenharias mecânica, elétrica e eletrônica, mecatrônica, metalúr-
gica e afins. Desse modo, vemos que “há mais inserção feminina
nas áreas com maior interface com a área de saúde – biologia e
química – e muito menos nas áreas em que predominam a física
e a matemática” (ABREU; OLIVEIRA; VIEIRA; MARCONDES, 2016,
p.154).

Em relação à profissão de docência no ensino superior, em


nove ramos do conhecimento, verifica-se que as mulheres são
maioria nas ciências biológicas e da saúde, formação pedagógica,
línguas, literatura e artes. Pesquisas mostram que elas ainda tem
uma participação restrita como docentes nas áreas de ciências
exatas e naturais (ABREU; OLIVEIRA; VIEIRA; MARCONDES, 2016).
63
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Como podemos observar, a posição da mulher no mercado
e a sexualidade de trabalho ainda está longe de uma condição de igualdade para
com os homens. Diversas áreas do saber como a sociologia, a
economia, a história, antropologia, entre outras, buscam compre-
ender essa problemática. Enquanto analistas do discurso, nosso
objeto teórico de análise é/são o(s) discurso(s), desse modo, nossa
contribuição para as pesquisas sobre esse tema se dá, a partir da
tentativa de compreender como os discursos funcionam susten-
tando essa divisão sexuada do trabalho.
SUMÁRIO

A LEITURA PELO VIÉS DA ANÁLISE DO DISCURSO

A análise do discurso (AD), proposta por Michel Pêcheux


(2008), é uma disciplina que se coloca em oposição às ciências
régias, sendo estas as que trabalham com a existência de um real
(que é visto sistematicamente, tratado como homogêneo e sem
deslizamento de sentidos), buscando apreendê-lo e explicá-lo.
Segundo o autor, tais ciências surgem da nossa necessidade,
enquanto sujeitos pragmáticos, de um mundo lógico e semantica-
mente estabilizado, sem multiplicidade de sentidos. Elas vêm então
estruturar esse real, na tentativa de desvendá-lo, estabilizando seus
sentidos de forma que exista uma univocidade lógica. (PÊCHEUX,
2008, p. 29).

Assim, nessa tentativa de compreensão do real, essas ciên-


cias se constituem do que o autor denomina de “coisas-a-saber”,
que seria uma reserva de conhecimentos acumulados, a serem
geridos e transmitidos socialmente, “isto é, descrições de situações,
de sintomas de atos (a efetuar ou evitar) associados às ameaças
multiformes de um real do qual ninguém pode ignorar a lei porque
esse real é impiedoso” (PÊCHEUX, 2008, p. 34).

64
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A proposta de Pêcheux consiste, então, em uma disciplina de
e a sexualidade interpretação que fuja do fantasma da ciência régia, propondo para
isso, outra forma de se pensar o real:
é supor que – entendendo-se o ‘real’ em vários sentidos – possam
existir um outro tipo de real diferente dos que acabam de ser
evocados, e também um outro tipo de saber, que não se reduz a
ordem das “coisas-a-saber” ou a um tecido de tais coisas. Logo:
um real constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um saber
que não se transmite, não se ensina, e que, no entanto, existe produ-
zindo efeitos. (PÊCHEUX, 2008, p. 43)

SUMÁRIO Colocando-se nesse lugar crítico em relação à própria inter-


pretação, o analista do discurso não procura descobrir uma verdade
oculta atrás do texto, ele o analisa como um objeto simbólico, procu-
rando entender como este funciona produzindo sentidos.

Dentro dessa perspectiva teórica trabalha-se contestando a


ideia de literalidade dos sentidos, para a AD “o sentido não está
fixado a priori como essência das palavras, nem tampouco pode
ser qualquer um: há determinação histórica”, sendo esta pensada
não como evolução e cronologia, “o que interessa não são as
datas, mas os modos como os sentidos são produzidos e circulam”
(ORLANDI, 2004, p. 33).

Ao falar, nos filiamos a sentidos constituídos em outros


dizeres, construídos pelo contexto sócio-histórico. Logo, não somos
a origem do que falamos, pois “quando nascemos os discursos
já estão em processo e nós é que entramos nesse processo”
(ORLANDI, 2013, p. 35). Desse modo, os sentidos que nos parecem
unívocos, foram sendo tecidos pela historicidade e nós, ao inter-
pretar, é que somos atravessados por eles.

Assim, ao dizer, retomamos o que chamamos em AD de


“memória discursiva ou interdiscurso: o saber discursivo que torna
possível todo o dizer e que retorna sob a forma do pré-construído,
o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada palavra

65
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero tomada” (ORLANDI, 2013, p. 31). Todo dizer é, portanto, uma
e a sexualidade posição entre outras em relação a uma memória. Dessa forma, para
que algo faça sentido é necessária a ocorrência anterior de outros
sentidos já fixados na memória discursiva e que possam ser filiados
para o acontecimento presente (MARIANI, 1998).

É assim que, ao acessar essa rede de dizeres, a memória


discursiva, o indivíduo é interpelado em sujeito. O sujeito discursivo
(ORLANDI, 2012), portanto, não se refere à noção psicológica e/ou
SUMÁRIO sociológica de sujeito empírico, pois em AD trabalha-se com a noção
de sujeito descentrado, o sujeito não sendo a causa de si. O sujeito
aqui é entendido como “posição”, ou seja, cada sujeito assume
diversas posições, sem as quais não seria possível o “dizer”, de
modo que sempre falamos de algum lugar e nossas falas sempre
estão inscritas nessas posições. É necessário ressaltar que tais
posições também não possuem seus sentidos em si, as imagens
dos sujeitos significam dentro de um contexto sócio-histórico e de
acordo com a memória discursiva.

O processo de assujeitamento é, desse modo, da ordem


do inescapável, uma vez que “não há forma de estar no discurso
sem constituir-se em uma posição sujeito” (ORLANDI, 2012, p. 55),
portanto, todo indivíduo é “sempre já-sujeito”. Além disso, esse
processo é da ordem do inconsciente, pois é apagado para o sujeito
o fato de ele entrar nessas práticas histórico-discursivas que lhe são
exteriores e pré-existentes (MARIANI, 1998), isto é, o sujeito ignora
sua própria inscrição no interdiscurso.

Pêcheux (2014 [1975]) estabelece ainda que o sujeito é


afetado por dois tipos de esquecimento. O esquecimento número
1, que consiste na ilusão de o sujeito estar na fonte do sentido, de
ser a origem de seu próprio dizer e o esquecimento número 2, que
é da ordem da enunciação. Este último se refere ao fato de que, ao
produzirmos um enunciado, temos a ilusão de que aquilo que foi dito

66
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero só pode ser dito de uma maneira, ignorando toda a rede de famílias
e a sexualidade parafrásticas que indicam que nosso dizer poderia ser outro.

Posto isso, elucidamos que o que se pretende fazer em AD é


uma leitura não subjetiva do texto; tentamos atravessar “o efeito de
transparência da linguagem, da literalidade do sentido e da onipo-
tência do sujeito” (ORLANDI, 2013, p. 61). Em outras palavras, a
AD busca “tornar visível o fato de que ao longo do dizer se formam
famílias parafrásticas relacionando o que foi dito com o que não foi
SUMÁRIO dito, com o que poderia ser dito” (ORLANDI, 2013, p. 78).

Nosso objetivo, ao longo deste trabalho, é justamente fazer


a análise da presença do interdiscurso no intradiscurso, sendo este
entendido como fio do discurso do sujeito falante, aquilo que o sujeito
diz em um momento dado em condições dadas, “o funcionamento
do discurso com relação a si mesmo (o que eu disse agora, com
relação ao que eu disse antes com o que direi depois)” (PECHEUX,
2014a[1975], p. 153). Dito de outro modo, buscamos evidenciar a
inscrição dos dizeres do sujeito do discurso na memória discursiva.

COLOCANDO A TEORIA EM PRÁTICA

Escolhemos como corpus uma reportagem veiculada pelo


jornal carioca O GLOBO13 do dia 19 de abril de 2014, publicada
dentro do caderno “Sociedade”, que traz notícias sobre sexo, reli-
gião, ciência, saúde, tecnologia, educação.

A matéria intitulada “GUERRA DOS SEXOS NA EDUCAÇÃO:


Meninas leem, enquanto meninos fazem contas” traz à tona os
dados de uma pesquisa realizada pelo Programa Internacional de

13. Mídia impressa cujo público-alvo principal é a classe média carioca

67
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Avaliação de Alunos (PISA), com jovens de 15 anos de 65 países
e a sexualidade diferentes, cujos resultados indicam o melhor desempenho dos
meninos em matemática e das meninas em leitura. A reportagem
visa refletir sobre esses dados, problematizando as possíveis
causas para essas diferenças e como elas influenciam na escolha
profissional dos estudantes.

Começamos nossa análise com o parágrafo introdutório da


matéria em questão:
SUMÁRIO SD1: De um lado, meninas com um melhor desempenho em
leitura. Do outro meninos com performance superior em mate-
mática. O quadro que muita gente já observou, é compro-
vado em números numa recente publicação da Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
com base em dados do Programa Internacional da Avaliação
de Alunos (Pisa) 2012 (TINOCO, 2014, p. 22)14.

Depreendemos em SD1 a discursivização de dois grupos de


jovens marcadamente distintos: os meninos e as meninas. Voltamos
aqui, ao que Pêcheux (2008 [1983]) denomina de espaço discursivo
logicamente estabilizado, no qual se fazem presentes as aparências
da coerção lógica disjuntiva. Esses espaços advêm do que o autor
coloca como
técnicas de gestão social dos indivíduos em que eles são marcados,
identificados, comparados, separados segundo critérios definidos, a
fim de colocá-los no trabalho, a fim de instruí-los, de fazê-los sonhar
ou delirar, de protegê-los e de vigiá-los, de levá-los à guerra e de
lhes fazer filhos. (PÊCHEUX 2008 [1983], p. 31).

A partir disso, compreendemos que o efeito de disjunção


lógica em SD1 funciona da seguinte forma: é impossível que tal
pessoa seja menino “e” menina, “ou” se é menino, “ou” se é menina.

14. Os grifos nas SDs são nossos.

68
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Observamos que, ao longo do texto, os termos “jovens” e
e a sexualidade “adolescentes” são usados como sinônimos de “estudantes”, como
se todos os jovens fossem também estudantes. Percebemos, a
partir disso, um efeito de silenciamento de outros sentidos possí-
veis para “jovens” e “adolescentes”. Lembrando que estamos nos
referindo aqui a uma das formas de silêncio definidas por Orlandi
(2007), o silêncio constitutivo, cuja definição é de que todo dizer
cala algum outro sentido necessariamente.

SUMÁRIO Temos então, um efeito de apagamento das desigualdades


sociais entre os jovens brasileiros, todos os sentidos que poderiam
ser atribuídos aos sujeitos “jovens não-estudantes” são silenciados.
Apagam-se várias questões da educação pública brasileira como,
por exemplo, o problema da evasão escolar quando os alunos
chegam ao Ensino Médio. Poderíamos apontar aqui inúmeros
outros apagamentos (inúmeros não-ditos) promovidos pelo uso
dessas nominalizações, mas analisá-las profundamente foge ao
escopo deste capítulo.

Desse modo, reconsideramos os sujeitos representados


na matéria de forma mais específica como sujeitos “estudantes
meninas” e sujeitos “estudantes meninos”, que podemos chamar
de sujeitos “alunas” e de sujeitos “alunos”, aqueles que são jovens
e também são estudantes.

Também verificamos, em SD1, que a lógica disjuntiva por


gênero vem acompanhada de uma divisão da ciência, do “lado dos
meninos” as ciências exatas que, segundo Pêcheux (2008), estão
atreladas às técnicas materiais “que visam produzir transformações
físicas ou biofísicas”. Do “lado das meninas”, a leitura (ciências
humanas), relacionadas às técnicas de adivinhação e de interpre-
tação” (PÊCHEUX, 2008 [1982], p. 30).

Juntamente ao enunciado título da matéria “GUERRA DOS


SEXOS NA EDUCAÇÃO”, tem-se, então, a produção de um efeito

69
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero de sentido de disputa de poder entre esses dois grupos, meninos/
e a sexualidade matemática x meninas/leitura.

Nas sequências a seguir observamos a diferença na apre-


sentação de dados para se referir ao desempenho dos alunos e
alunas.

SD2: (...) garotas superam garotos em leitura numa proporção


que equivale a um ano inteiro de escola, em média. Já os
adolescentes do sexo masculino, por sua vez, estão à frente
SUMÁRIO em matemática cerca de três meses. E 15% dos meninos,
mas apenas 11% das meninas atingem os níveis mais altos
na disciplina. No Brasil, meninos estão 18 pontos à frente em
matemática (TINOCO, 2014, p. 22).

SD3: Apenas 38% das meninas, mas 53% dos meninos


planejam seguir carreira que envolva matemática. Por outro
lado, meninas são representadas em excesso entre estu-
dantes que imaginam trabalhar na área de saúde e ciências
sociais (TINOCO, 2014, p. 22).

Antes de entrar na análise da apresentação dos dados,


gostaríamos de chamar a atenção para o uso de “adolescentes do
sexo masculino”, presente em SD2. Encontramos aí uma definição
para os sujeitos “meninos” que remete a um discurso da biologia
que define homens e mulheres de acordo com o seu papel reprodu-
tivo. O efeito da disjunção lógica encontrado em SD1 é sustentada,
portanto, por esse discurso da biologia.

Voltando ao objetivo principal desse recorte de sequências,


notamos em SD2 que, na proporção em tempo de ano letivo, as
meninas, na atividade na qual têm melhor desempenho, superam
em três vezes os meninos na atividade em que estes têm o melhor
resultado, de forma que elas estariam mais próximas de alcançá-
-los do que o contrário. Porém, reparamos que, no decorrer da

70
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero sequência, uma atenção maior é dada à diferença das meninas em
e a sexualidade matemática, dados numéricos e precisos são trazidos para exaltar
o melhor desempenho dos meninos em matemática. Disso tiramos
a produção de alguns efeitos de sentido: 1) mostrar que os meninos
não são piores, que eles não estão “perdendo” a disputa e são o
“lado” mais forte; 2) a valorização das ciências exatas em detri-
mento das ciências humanas.

Os números são trazidos, então, para comprovar a superiori-


SUMÁRIO dade dos meninos, mas os mesmos não são usados para precisar
a superioridade das meninas em leitura. Descentraliza-se a boa
performance das meninas em leitura, uma vez que esta aptidão nem
é considerada cientificamente relevante, possibilitando a leitura de
que a “verdadeira” inteligência está na matemática.

Verificamos então, um discurso que hierarquiza os diferentes


campos de saber, discurso esse analisado por Guimarães (2001)15,
em seu artigo “A ciência entre as políticas científicas e a mídia”.
Nele, o autor compara programas especiais de apoio à pesquisa
do CNPq (que tem como finalidade apoiar determinados domínios:
biotecnologia, desenvolvimento tecnológico, informática, meio-
ambiente) com algumas produções de divulgação científica na
mídia impressa. Através dessas análises o autor observou que
também na mídia, maior ênfase é dada a tecnologia, ciências exatas
e ciências da vida. Disso conclui que a distinção existente na mídia é
semelhante ao que se encontra no discurso das políticas científicas
do Estado (apud BAALBAKI, 2010, p. 232).

Ou seja, tanto no discurso do Estado quanto no da mídia


há uma divisão dos domínios das Humanidades e das Ciências e
Tecnologia, uma distinção própria de um discurso tradicional que

15. GUIMARÃES, Eduardo. A ciência entre as políticas científicas e a mídia. In:__ (org.) Produção
e Circulação do Conhecimento. v.1. Campinas: Pontes, 2001, p. 73-79.

71
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero privilegia as Ciências Exatas em detrimento das Ciências Humanas,
e a sexualidade sendo que essas nem são pensadas pela mídia como ciência (apud
BAALBAKI, 2010, p. 232).

Em SD3, encontramos também uma diferença na forma como


os dados são apresentados. Para se referir à quantidade de alunos
que deseja seguir a carreira na área de exatas, dados numéricos
e precisos são, novamente, usados. Já nos cursos onde há maior
número de mulheres, elas são representadas sem precisão pela
SUMÁRIO expressão “em excesso”. O Uso dessa expressão produz o efeito
de sentido de que a grande quantidade de mulheres nessas áreas
do conhecimento é algo negativo, elas estão em proporção desme-
dida. Ademais, também podemos remeter a palavra “excesso” à
necessidade de descarte, uma vez que no excesso é necessário se
livrar do excedente. Como podemos observar esse sentido não é
atribuído à maior proporção de homens nos cursos de exatas.

Vemos, então, que em ambos os casos o foco está nas


meninas, se de um lado elas estão em minoria, do outro estão “em
excesso”. Não se questiona, entretanto, o porquê de os meninos
não escolherem as áreas de saúde e de humanas. Diante disso,
pode-se perceber uma produção de efeitos de sentido de que as
Ciências Exatas é o lugar “sempre já-lá” dos meninos. Eles estão
em grande número nesses cursos porque esse é o lugar deles, ao
passo que para as meninas, nenhuma das áreas de conhecimento
é o seu lugar “sempre já-lá”. Esse efeito de sentido nos remete a
uma memória discursiva de que o lugar sempre “já-lá” das mulheres
é o espaço doméstico e não o público.

Em nosso próximo gesto de análise, reunimos as sequências


discursivas em que o fator “autoconfiança” é trazido como funda-
mental para o aprendizado dos jovens:

72
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero SD4: Jovens de 15 anos que vivem em 65 países participam
e a sexualidade da análise e uma das conclusões é que o hiato se deve
menos à capacidade e mais às diferenças de autoconfiança
de meninos e meninas na hora de aprender (TINOCO, 2014,
p. 22).

SD5: A publicação afirma que ‘a confiança de estudantes em


suas habilidades e motivações em aprender tem um papel
central em moldar sua performance em assuntos acadêmicos
SUMÁRIO específicos’, acrescentando que a percepção das meninas a
respeito do seu próprio aprendizado em números determina
quão bem elas motivam a si próprias (TINOCO, 2014, p. 22).

SD6: (...) muitas meninas escolhem não seguir carreiras


de ciência, tecnologia, engenharia e matemática por não
confiarem em suas habilidades na área, “apesar de terem
capacidade e ferramentas para fazer isso” (TINOCO, 2014,
p. 22).

SD7: Na publicação, a OCDE destaca que a diferença entre


sexos no desempenho em matemática se manteve estável na
maioria dos países desde 2003, assim como a diferença de
gênero na autoconfiança (TINOCO, 2014, p. 22).

Em SD4, a reportagem traz a autoconfiança como algo deter-


minante para o aprendizado e indica haver uma diferença no nível de
autoconfiança entre os gêneros. No decorrer de SD5 o texto afirma
que isso é um fator fundamental para o aprendizado dos estudantes
em geral, porém, logo depois observamos que esse argumento é
mobilizado apenas para justificar o mau desempenho das meninas
em matemática. Nada se diz sobre os meninos, produz-se um efeito
de sentido que coloca a falta de confiança como um problema que
afeta somente as meninas, possibilitando a compreensão de que o
mau desempenho dos meninos é causado por outros fatores.

73
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Além disso, em SD6, a falta de confiança é colocada como o
e a sexualidade motivo pelo qual muitas meninas escolhem “não seguir” carreiras de
exatas. Chamamos a atenção aqui para a questão de que, “escolher
não seguir exatas” significa diferente de “escolher seguir humanas
ou área de saúde”. Ao dizer que elas escolhem “não seguir exatas”,
produz-se o efeito de sentidos de que o destino para humanas e
saúde se dá apenas em consequência da falta de suficiente para
escolherem a carreira que seria a de maior dificuldade e prestígio.
Assim sendo elas ficariam com as carreiras mais fáceis e para as
SUMÁRIO quais a autoconfiança não é um requisito necessário.

Dizer que as meninas escolhem as áreas de humanas e/ou


saúde porque se sentem mais confiantes significaria diferente, pois
seria produzido o efeito de sentido de que elas são boas nessas
áreas porque são confiantes e de que este é um lugar “sempre já-lá”
para elas.

Novamente, verificamos que nenhuma justificativa é dada


para o fato de os meninos não escolherem as ciências humanas.
Em SD7 a competência da leitura não é sequer mencionada, reite-
rando o discurso de desvalorização dessa área de conhecimento.

Constatamos então, ao final deste bloco de sequências, que


o enunciado “capazes e sem autoconfiança”, subtítulo da sessão
da matéria, se refere apenas às meninas e ao seu desempenho em
matemática. Tem-se aqui uma aparente “ruptura” com um discurso
sexista segundo o qual as mulheres são naturalmente intelectual-
mente inferiores aos homens e que, por isso, não poderiam ocupar
os mesmos espaços e posições que eles. Entretanto, a “intelectua-
lidade” é deslocada para a “autoconfiança” e o discurso produzido
continua sendo o mesmo: mulheres possuem uma condição “inata”
que as impede de ocupar as mesmas posições que os homens, sua
posição de inferioridade é uma ordem da natureza e não de uma
estrutura social.

74
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Passando para a análise da seguinte e última sequência,
e a sexualidade encontramos o recurso do discurso direto (DD) que produz as
ilusões “de fidelidade à palavra do outro, de objetividade na trans-
crição da palavra outra e de neutralidade por parte de quem relata
esta palavra outra” (MEDEIROS, 2006, p. 43), que se apoiam na
possibilidade do DD funcionar como forma autônoma.

Vejamos como o DD, tomado como relato, funciona em


relação a esses dois métodos de enunciar o desempenho de
SUMÁRIO meninos e meninas:

SD8: É o caso de Giovanna Ribeiro, de 15 anos, aluna no


1 ano do colégio carioca Mopi. Desde pequena, a menina
prefere as lições de história e gramática. Para uma vida
adulta, planeja uma carreira em Direito ou Medicina.

- Eu sempre odiei matemática. Não entra na minha cabeça,


fico nervosa na hora de fazer a prova – conta.

Já Luiz Henrique Alves, do 2 ano do também carioca Pensi,


é o clássico caso do menino que tem notas melhores nas matérias
que envolvem cálculos e sonha com uma faculdade de Engenharia.

- Em matemática costumo tirar 9. Já nas outras matérias em


geral fico entre o 7,5 e 8 – explica o menino, que frequenta
aulas preparatórias para concursos militares, cuja relação é
de 20 rapazes, para cada 10 garotas na sala (TINOCO, 2014,
p. 22).

Em SD8, os relatos são trazidos como forma de validar os


argumentos colocados pelo autor ao longo da matéria, não se trata
mais de alguém falando sobre os estudantes, são eles falando
deles mesmos. O DD funciona, portanto, como testemunho, “o
qual remete a um sujeito que constrói e responsabiliza-se por seu
‘próprio destino’”. (BAALBAKI, 2010, p. 239)

75
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Esse movimento apaga toda uma memória de distinção de
e a sexualidade papéis sexuados, toda uma rede de discursos de ordem filosófica,
religiosa, científica, entre outras, que funciona excluindo as mulheres
do mercado assalariado e das posições de poder. O DD, em SD8,
reforça a ideia de que tudo gira em torno da questão da aptidão
vocacional e da escolha individual de uma profissão, considerando
o “sujeito estudante” senhor de suas escolhas (BAALBAKI, 2010).

Analisando o relato da aluna Giovanna, e tomando-a em sua


SUMÁRIO posição-sujeito, encontramos marcas que funcionam criando uma
linha de vida temporal determinística, na qual o passado é repre-
sentado pela infância, o presente pela adolescência e o futuro pela
vida adulta, em que já se projeta uma profissão com diploma de
nível superior.

Os advérbios “sempre” e “desde” produzem um efeito de


sentido de eternidade, retomando o efeito “já-lá”. Desde criança,
até o presente, na adolescência, a menina prefere as lições de
Gramática e História porque odeia matemática, um sentimento inex-
plicável. Odiava quando criança, odeia na adolescência e continuará
odiando na vida adulta. Tem-se então um efeito de essencialização
da condição feminina, não há explicação para que Giovana não
consiga aprender matemática, segundo a fala da jovem simples-
mente, “não entra na sua cabeça”, além do fato de ela ser menina.

Chamou-nos a atenção também o uso de “fico nervosa”


que produz o efeito de sentido de que a aluna não teria equilíbrio
emocional para lidar com a matemática. Retoma-se aqui uma
memória discursiva que atribui instabilidade emocional à natureza
feminina. Segundo certo discurso científico difundido durante o
século XIX, as mulheres seriam, devido à sua natureza, conside-
radas nervosas, instáveis, predispostas mensalmente a doenças e
perturbações mentais. Decorre daí que, por terem tal constituição
biológica, as mulheres não poderiam exercer atividades físicas e

76
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero intelectuais como os homens, pois não teriam corpo nem cérebro
e a sexualidade adequados e preparados para receber os estímulos que tais ativi-
dades proporcionavam (MARTINS, 2004).

Embora construída de forma distinta, há também uma forma


de naturalização das aptidões do rapaz, ao se colocar que ele “é o
clássico caso do menino que tem notas melhores”. O uso da palavra
“clássico” remete a algo que está em conformidade com um ideal,
com as regras, que tem como base a tradição, designa algo/alguém
SUMÁRIO que está em conformidade com o “que se espera”. Com o uso do
verbo “ser”, tem-se o sentido de algo que constitui essência de uma
pessoa, de qualidade ou característica intrínseca.

Identificamos aí o efeito do que Pêcheux (2014a [1975])


define como “norma identificadora”, que designa, ao mesmo
tempo, através do hábito e do uso, o que é, e o que deve ser o
sujeito. Assim, depreendemos em SD8 o seguinte funcionamento
da “norma identificadora”: se você é um menino, o que de fato você
é, então você deve ter notas melhores em matemática. Se você é
um menino e não tem notas melhores em matemática, você não
é um menino dentro do padrão. Logo, Luiz Henrique é melhor em
matemática apenas por ser menino.

No depoimento de Giovana, um sentimento tido como atem-


poral e inexorável é trazido para justificar sua não aptidão para a
matemática, o que funciona essencializando a condição de mulher
como não apta para as ciências exatas. Já no caso do menino, ele
reporta suas notas e apesar de ter a maior nota em matemática, se
mostra competente nas outras disciplinas, capaz de aprender qual-
quer coisa. Embora prefira os cálculos, não fica nervoso para nada,
afinal os meninos não se abalam emocionalmente.

A engenharia é, portanto, o “lugar sempre já-lá” da posição-


-sujeito representada por Luiz Henrique devido à sua condição de
menino, ao passo que não é o de Giovana devido à sua natureza

77
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero feminina. Verificamos aí, novamente, a retomada de uma memória
e a sexualidade discursiva que foi, durante o século XIX, reatualizada pelas desco-
bertas da medicina e da biologia, que reproduzem, pelo viés do
cientificismo, o discurso naturalista “que insiste na existência de
duas espécies com qualidades e aptidões particulares. Aos homens
o cérebro (muito mais importante que o falo), a inteligência, a razão
lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres o coração, a sensibi-
lidade, os sentimentos” (PERROT, 2017, p. 186).

SUMÁRIO Também remarcamos o uso do verbo “planejar” em oposição


a “sonhar”, o primeiro está no campo dos objetivos, uma decisão
pensada, já o segundo está mais no campo do desejo, algo que se
quer muito. As meninas não sonham com carreiras de humanas ou
saúde, como vimos em SD5, elas não escolhem seguir nas áreas
de humanas ou saúde, elas escolhem não seguir exatas. Desse
modo, suas escolhas profissionais não são movidas pelo desejo,
elas optam pelas profissões que podem e conseguem fazer.

Os meninos, diferentemente das meninas, podem sonhar


com o que quiserem, uma vez que são bons e tem confiança para
fazerem o que desejarem. Pelo processo discursivo que se constitui
na matéria, Luiz, então, é “livre” para sonhar com o que quiser, e
“escolhe sonhar” com engenharia, Luiz é, portanto, “livre” para se
assujeitar à condição de menino padrão.

Encontramos aí uma relação com o que Mariani (1998) define


como uma espécie de “memória do futuro”, a produção de antecipa-
ções produzidas por um dizer que retoma “já-ditos”, uma memória
“tão imaginada e idealizada quanto a museificação do passado em
determinadas circunstâncias” (MARIANI, 1998, p. 38).

Portanto, a partir de nossas análises depreendemos a


presença de um discurso que agenda memórias de futuros
diferentes para os sujeitos “alunos” e “alunas”, através da retomada
de “já-ditos” que estabelecem quais profissões uma “menina

78
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero estudante” pode ou não seguir e quais um “menino estudante”
e a sexualidade deve seguir. O “futuro sempre já-lá” (ZOPPI FONTANA, 1997, p.
160) para as meninas está nas ciências humanas ou na área de
saúde, ao passo que o “futuro sempre já-lá” dos meninos está nas
ciências exatas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
SUMÁRIO
Como apresentado em nossa explanação teórica, objeti-
vamos, através de entradas/marcas linguística presentes no corpus,
identificar a inscrição do sujeito do discurso em uma memória
discursiva. Assim, ao longo de nossas análises, depreendemos
uma retomada de “já-ditos” que funcionam “agendando” memórias
de futuro distintas para os sujeitos “estudantes” de acordo com o
gênero. Para as meninas, o “futuro já-lá” está nas profissões das
ciências humanas e de saúde, ao passo que para os meninos está
nas profissões das ciências exatas.

Lembramos que, no início das análises, abordamos o silen-


ciamento de outros sentidos para “jovens” e/ou “adolescentes”.
Podemos pensar, também, que processo o discursivo materializado
no corpus silencia outros “futuros já-lá” possíveis. Na matéria, os
jovens são tomados como sinônimos de adolescentes de classe
média, estudantes de escola particular; para esses jovens, o futuro
pré-estabelecido é cursar uma Universidade e ter um diploma de
nível superior. Entretanto, este não é o “futuro já-lá” para os estu-
dantes de escola pública e tampouco para os jovens que não são
sujeitos “alunos” ou “alunas”.

Além disso, vimos que o “futuro já-lá” para meninos (de escola
particular), ou seja, uma profissão das ciências exatas, é um lugar
valorizado em detrimento das ciências humanas e que, no decorrer

79
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero das sequências, justificativas são trazidas para tentar compreender
e a sexualidade o porquê de as meninas não conseguirem entrar nessas profissões.

O que se verifica é a produção de efeitos de sentidos de uma


soberania das ciências exatas e da masculinidade. Retoma-se uma
memória segundo a qual mulheres e homens possuem qualidades
inatas distintas e que, por isso, devem ocupar diferentes papéis
sociais. De acordo com esse discurso os homens são naturalmente
mais “racionais” e as mulheres “sentimentais”. Desse modo, para
que as mulheres possam ocupar o lugar destinado aos homens
SUMÁRIO pela natureza, elas precisam ser como eles, racionais.

A partir do exposto acima, constatamos a retomada de um


discurso de repúdio à condição feminina, que define as mulheres
como seres incompletos e as coloca em uma posição de inferiori-
dade. Às mulheres, portanto, “falta algo” para que sejam como os
homens, seres completos.

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(Doutorado) - Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói,
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Alice; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria. Gênero e trabalho no Brasil e na
França: perspectivas interseccionais. São Paulo: Boitempo, 2016.

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80
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: a medicina da mulher nos
e a sexualidade séculos XIX e XX [online]. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004. Disponível
em: SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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In: HIRATA, Helena; LABOIRE, Françoise; DOIRÉ, Héléne Le; SENOTIER,
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ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos.


SUMÁRIO 4ed. Campinas, SP: Pontes, 2013.

______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed.


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_______. Entremeio e Discurso. In:_ Interpretação: autoria, leitura e efeitos


do trabalho simbólico. 11ed. Campinas, SP: Pontes: Vozes, 2004, p.23-35.

______. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 4. ed.


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______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed.


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ZOPPI FONTANA, Mónica G. Cidadãos modernos: discurso e


representação política. Campinas: Unicamp, 1997.

81
DISCURSO, SEXUALIDADE E POLÍTICA: A
“HETEROFOBIA” DE JEAN WYLLYS COM JAIR
Discurso,
BOLSONARO – UM SILENCIAMENTO DA sexualidade
HOMOFOBIA?
e política:
a “heterofobia”
Héliton Diego Lau
de Jean Wyllys com
Jair Bolsonaro –
um silenciamento
da homofobia?

Héliton Diego Lau

DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.82-98
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero PALAVRAS INICIAIS
e a sexualidade

Em todas as relações sociais observadas nos vários campos


da atividade humana, o sujeito é (des)construído por suas identi-
dades, levando-o a assumir diferentes posições na trama social de
acordo com os paradigmas percebidos. Esse processo de (des/re)
construção imposto pelos parâmetros sociais da época, do local e
pelas condições de produção do sujeito agrega ou elimina valores
SUMÁRIO e comportamentos que precisarão ser validados pelo próprio “eu”.

Neste contexto, a definição da própria sexualidade torna-se


um elemento identitário de suma relevância, na medida em que
aquele que está se “descobrindo” sexualmente passa por turbu-
lências em sua cabeça, as quais determinam, em alguns casos,
somente duas direções possíveis: assume sua identidade sexual
considerada “diferente”, “errada”, segundo o viés do discurso
machista ou “emudece”, submetendo passivamente sua identi-
dade sexual e de gênero aos padrões heteronormativos binários,
impostos pela sociedade.

O corpus de análise do presente capítulo é composto por


recortes das revistas Exame e Fórum, ambas veiculadas na internet,
em que a situação foi a respeito do deputado federal do Rio de
Janeiro, Jean Wyllys, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL-RJ)
ter se levantado do seu assento do avião da TAM, porque quem
sentaria ao seu lado seria o deputado federal também do Rio de
Janeiro, Jair Bolsonaro, do Partido Progressista (PP-RJ). Partindo
disso, analiso as marcas enunciativas das mídias que falam a
respeito da “heterofobia”. As comparações dos discursos de ambos
os deputados por meio das diferentes mídias, sendo elas inscritas
em formações ideológicas distintas, mobilizo a noção de silencia-
mento (ORLANDI, 1993) para esta análise.

83
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A NOÇÃO DE SILENCIAMENTO
e a sexualidade

Em sua obra As Formas do Silêncio, Orlandi afirma que “há


um modo de estar no sentido [...]. As próprias palavras transpiram
silêncio” (ORLANDI, 1993, p. 11). Isso quer dizer que o silêncio não
fala: significa. Diferentemente da significação implícita que “aparece
– e algumas vezes se dá – como sobreposta a uma outra signi-
ficação [...] o sentido do silêncio não é algo juntado, sobreposto
SUMÁRIO pela intenção do interlocutor: há um sentido no silêncio” (ORLANDI,
1993, p. 12). Ou seja, através dessa concepção, Orlandi (1993)
defende que é preciso evitar que se presuma o silêncio de forma
a atribuir-lhe um sentido metafórico em relação ao dizer. Porém,
através dessa abordagem, nota-se de que maneira o ato de silen-
ciamento se forma em uma política de sentido.
Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto
do interior da linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história.
É silêncio significante. [...] o silêncio é garantia do movimento de
sentidos. Sempre se diz a partir do silêncio (ORLANDI, 1993, p. 23).

A autora, em seu trabalho, diferencia o silêncio fundador do


silenciamento ou política do silêncio. O silêncio fundador não se
refere à carência de sons e/ou palavras. Este é o “princípio de toda
significação” e tem a ver com o “‘lugar’ que permite à linguagem
significar” (ORLANDI, 1993, p. 70). Esse silêncio não se refere à falta
de sons, palavras, ele é tomado como sentido, como história.
Assim, em face do discurso, o sujeito estabelece necessariamente
um laço com o silêncio; mesmo que esta relação não se estabeleça
em um nível totalmente consciente. Para falar, o sujeito tem neces-
sidade de silêncio, um silêncio que é fundamento necessário ao
sentido e que ele reinstaura falando (ORLANDI, 1993, p. 71).

A política do silêncio ou silenciamento “se define pelo fato


de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos
possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada”

84
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero (ORLANDI, 1993, p. 75). Este subdivide-se em dois: o silêncio
e a sexualidade constitutivo, ou seja, é “o mecanismo que põe em funcionamento o
conjunto do que é preciso não dizer para poder dizer” (ORLANDI,
1993, p. 76); e o silêncio local, o que é proibido de dizer: “Trata-se
da produção do silêncio sob a forma fraca, isto é, é uma estra-
tégia política circunscrita em relação à política dos sentidos: é a
produção do interdito, do proibido” (ORLANDI, 1993, p. 76-77).
A respeito do silêncio local, no decorrer do seu trabalho, Orlandi
(1993) mostra uma censura na sociedade durante o período da
SUMÁRIO ditadura militar brasileira.
[...] quando falamos em censura (silêncio local), não se trata do
dizível sócio-historicamente determinado (o interdiscurso, a memória
do dizer) mas do dizível produzido pela intervenção de relações de
força nas circunstâncias de enunciação: não se pode dizer aquilo
que (se poderia dizer mas) foi proibido (ORLANDI, 1993, p. 108).

Houve uma censura – dada no/pelo discurso da medicina


atrelado ao discurso religioso – da sociedade quanto aos relacio-
namentos da comunidade de assexuais, lésbicas, gays, bisse-
xuais, travestis, transgêneros, transexuais, queer, intersexo e mais
(ALGBTQI+). Tentou-se provar que a homossexualidade era uma
doença passível de cura com terapias psicológicas (FERRARI,
2005), sendo inclusive chamada de “homossexualismo”, palavra
inventada pelo húngaro Karoly Maria Benkert no discurso médico
ocidentalista “para caracterizar uma forma de comportamento
‘desviante’ e ‘perversa’ entre pessoas do mesmo sexo; portanto, o
sujeito homossexual passa a existir, na história humana, apenas a
partir do século XIX” (FURLANI, 2009, p. 153).

Em seus estudos sobre a História da Sexualidade, Foucault


(2011 [1976]) observa que no Ocidente a questão sexual se tornou
scientia sexualis por meio da confissão, tida como condição de
verdade.

85
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Desde a Idade Média, pelo menos, as sociedades ocidentais colo-
e a sexualidade caram a confissão entre os rituais mais importantes de que se
espera a produção de verdade [...]. A própria evolução da palavra
“confissão” e da função que designou já é característica: da
“confissão”, garantia de status, de identidade e de valor atribuído
a alguém por outrem, de suas próprias ações ou pensamentos. O
indivíduo, durante muito tempo, foi autenticado pela referência dos
outros e pela manifestação de seu vínculo com outrem [...]; poste-
riormente passou a ser autenticado pelo discurso de verdade que
era capaz de (ou obrigado a) ter sobre si mesmo. A confissão da
verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individuali-
zação pelo poder (FOUCAULT, 2011 [1976], p. 66-67).
SUMÁRIO
Enquanto o Oriente observava a sexualidade como prazer,
ou seja, pela ars erotica, para Foucault (2011 [1976]), o Ocidente
tomou o sexo apenas como ciência com ajuda da confissão, pois
era a partir do sujeito confessando seus desejos. A partir disso,
o autor cria um dispositivo da sexualidade, ou seja, os discursos
sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado sobre a sexualidade,
instância de organização produzindo diversos discursos que enun-
ciam verdades sobre o sujeito, neste caso, a medicina, em que o
homem casado sentia-se atraído pelo vizinho, por exemplo, ia-se
“patologizar” como praticante do “homossexualismo”, tendo em
vista que a partir do século XIX “criou-se” a homossexualidade e,
através dos discursos sobre ela, a desvalorização desta; e, assim,
criou-se também a heterossexualidade e sua valorização. Por conta
disso, o sexo foi levado para dentro de casa, para a “família tradi-
cional”. Devido a diferentes discursos, pessoas homossexuais eram
consideradas anormais, sendo a palavra “homossexualismo” consi-
derada negativa e, assim, silenciando o sujeito homossexual.
Durante muitos anos ao homossexual foi imposto o silêncio, mas um
silêncio que não o colocava apenas à margem da sociedade hete-
rossexual, mas que o constituía como criminoso-pecador-doente, a
partir dos discursos que podiam lhe dar sentido: jurídico-religioso-
-médico. E ele não fazia sentido se não fosse desse lugar já estabe-
lecido (SOARES, 2006, p. 20).

86
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero O ser humano estar em silêncio, na concepção de Orlandi,
e a sexualidade causa um certo “desconforto”.
Quando alguém se pega em silêncio, se rearranja, muda a
“expressão”, os gestos. Procura ter uma expressão que “fala”.
É a visibilidade (legibilidade) que se configura e nos configura. A
linguagem se constitui para asseverar, gregarizar, unificar o sentido
(e os sujeitos) [...] O silêncio, de seu lado, é o que pode transtornar
a unicidade. Não suportando a ausência das palavras – “por que
você está quieto?, o que você está pensando?” –, o homem exerce
seu controle e sua disciplina fazendo o silêncio falar ou, ao contrário,
supondo poder calar o sujeito (ORLANDI, 1993, p. 36, ênfase da
SUMÁRIO autora).

Ou seja, a relação com a linguagem faz-se importante para


tornar o ser humano visível. O sujeito não suporta a ausência das
palavras, precisa fazer o silêncio falar. “Quando não falamos, não
estamos apenas mudos, estamos em silêncio: há o ‘pensamento’, a
introspecção, a contemplação, etc.” (ORLANDI, 1993, p. 37).

Orlandi (1993) fala em ideologia da comunicação, do apaga-


mento do silêncio, como já comentado, que o sujeito não se sente
confortável em silêncio e sente a necessidade de se expressar,
precisa estar produzindo signos continuamente. A autora parte
do pressuposto de que há uma progressão histórica do silêncio e
discute sobre o tema a partir do mito, da tragédia, da filosofia e das
Ciências Humanas e Sociais. Segundo Orlandi (1993), no primeiro
momento histórico há mais silêncio que vai diminuindo até chegar
ao último momento. No mito, não existe a necessidade de explicitar
por meio de palavras o significado, a significação existe por si só,
isto é, não se dialoga com um mito, pois seus fatos e sua lógica se
encerram nele mesmo. No caso da filosofia, há um diálogo entre
diferentes vertentes, e o significado que se dá a um fato ou um termo
se diferencia de acordo com o aspecto analisado, ou seja, há uma
abertura à discordância e sobreposição de olhares e interpretações.

87
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero O CASO JAIR BOLSONARO X JEAN WYLLYS
e a sexualidade

Como já mencionado no início deste capítulo, o recorte


desta análise é feito a partir dos portais Exame e Fórum na internet.
As matérias selecionadas contemplam a polêmica decorrente do
evento no qual Jean Wyllys se levanta ao saber que Bolsonaro iria
se sentar ao seu lado em um voo do Rio de Janeiro a Brasília pelas
empresas aéreas TAM. Apresento, a seguir, a primeira sequência
SUMÁRIO discursiva (SD) mostrando a notícia a respeito de Bolsonaro:

SD 1

O deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) publicou um vídeo


na internet em que diz ter sido discriminado pelo também
deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ). As imagens mostram o
momento em que Bolsonaro entra num avião e avisa a Jean
Wyllys que estará sentado ao seu lado durante o voo. Wyllys
então se levanta e muda de assento. “Tô me sentindo discri-
minado. Imagine se fosse o contrário”, diz Bolsonaro, com
a câmera na mão. O deputado Bolsonaro é conhecido por
suas posições contrárias aos direitos dos homossexuais e
está no extremo oposto político de seu colega Jean Wyllys.
No Facebook, Bolsonaro escreveu: “Surpreendentemente,
em clara demonstração de intolerância, preconceito, discri-
minação e heterofobia (sic), o deputado Jean Wyllys levan-
tou-se e acomodou-se em outro assento”. “Se fosse eu quem
tivesse praticado tal atitude, pelo PLC 122/2006 (Senado), que
criminaliza a homofobia, estaria sujeito à pena de 1 a 3 anos
de reclusão, além da perda do mandato e o fato seria noti-
ciado pela maioria dos telejornais”, continuou o deputado.
Bolsonaro é contra a criminalização da homofobia (EXAME.
Bolsonaro acusa Jean Wyllys de “heterofobia” em avião; veja.

88
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Disponível em: <https://goo.gl/GtthsF>. Acesso em: 30 maio
e a sexualidade 2018, ênfase minha).

A posição-sujeito, de acordo com Pêcheux (2014), é a relação


de identificação entre o sujeito enunciador e o sujeito do saber, neste
caso, que o deputado federal do PP-RJ ocupa em seu discurso
nesta SD é de vítima, marcando-a através do uso das palavras “into-
lerência”, “preconceito”, “discriminação”. Essas mesmas palavras
também são utilizadas, em alguns casos, por grupos considerados
SUMÁRIO minoritários ideologicamente, como a comunidade ALGBTQI+, que
tem um discurso de resistência. Porém, a inscrição de sua formação
discursiva (FD) pode ser considerada diferente dos grupos minori-
tários pelo acréscimo da palavra “heterofobia” em seu discurso e
até mesmo em contraposição ao do deputado federal do PSOL-RJ.
Ou seja:
[...] as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido
segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam,
o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência
a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas
[...] nas quais essas posições se inscrevem. Chamaremos, então,
formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada,
isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determi-
nada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve
ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de
um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.) (PÊCHEUX,
2014, p. 146-147, ênfase do autor).

A ação que Jean Wyllys tomou (“levantou-se e acomodou-se


em outro assento”) na posição-sujeito de Bolsonaro produz um efeito
de sentido de vitimização. Em seguida, ele utiliza-se do discurso da
comunidade ALGBTQI+ por meio da justificativa do Projeto de Lei
da Câmara (PLC) 122/2006, que criminaliza a homofobia, em seu
sentido inverso, ou seja, silencia a homofobia que existe no Brasil,
tendo dados da Secretaria de Direitos Humanos de 2011 e 2012
em que “o aumento de denúncias e violações relacionadas à popu-
lação ALGBTQI+ foi de 166,09% e 46,6% respectivamente” (LAU,

89
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero 2018, p. 127). Em contrapartida, até o presente momento, não foi
e a sexualidade registrado nenhum crime de “heterofobia” no Brasil.
O funcionamento do silêncio atesta o movimento do discurso que
se faz na contradição entre o “um” e o “múltiplo”, o mesmo e o
diferente, entre paráfrase e polissemia. Esse movimento, por sua
vez, mostra o movimento contraditório, tanto do sujeito quanto do
sentido fazendo-se no entremeio entre a ilusão de um sentido só
(efeito de relação com o interdiscurso) e o equívoco de todos os
sentidos (efeito da relação com a lalangue) (ORLANDI, 1993, p. 17).

Sendo assim, Bolsonaro toma para si a FD da homofobia e a


SUMÁRIO inverte para sua formação ideológica (FI). “As palavras são cheias
de sentidos a não se dizer e, além disso, colocamos no silêncio
muitas delas” (ORLANDI, 1993, p. 14). Ou seja, o sujeito do discurso
silencia todas as agressões e preconceitos que a comunidade
ALGBTQI+ sofre(u), ao falar que sofreu “heterofobia”, tomando
como justificativa a criminalização da homofobia. Nota-se no fim da
SD este fato pelo discurso midiático (“Bolsonaro é contra a crimina-
lização da homofobia”).

Bolsonaro se inscreve na FD de criminalização para sustentar


o início do seu discurso, ou seja, colocar Jean Wyllys como agressor,
mas a mídia mostra a posição que o deputado federal do PP-RJ
defende, tornando a paráfrase feita por ele, contraditória. Sobre a
noção de paráfrase, é “um enunciado, forma ou sequência, e não
um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia refor-
mulá-lo na formação discursiva considerada” (PÊCHEUX, 2014, 161,
ênfase do autor).

A próxima SD foi extraída da revista Fórum, desta vez, sob o


ponto de vista de Jean Wyllys:

SD 2

“Acho curioso que haja gente que cobre de mim que fique ao
lado desse homem. Desculpe, eu nunca vou ficar, nunca, do

90
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero lado dele. Quantas vezes ele sentar ao meu lado no avião,
e a sexualidade vou levantar”, disse Wyllys [...]. “E não é heterofobia. No avião
havia outros tantos héteros e eu vim do lado de uma mulher
hétero maravilhosa, professora da FGV. Primeiro porque ‘hete-
rofobia’ não existe. Segundo, porque o avião está cheio de
héteros. Portanto, as pessoas que estão comprando a tese
de ‘heterofobia’, eu digo para vocês: ponham seus neurônios
para raciocinar. No máximo, o que eu tive foi uma ‘fascisto-
fobia’, uma fobia de fascistas, de escroques”. Wyllys relembra
SUMÁRIO diversos episódios em que Bolsonaro deu não só a ele, mas
a qualquer pessoa, motivos para não querer voar ao seu
lado. [...] “É impossível que as pessoas percam a memória
em relação ao que esse cara fez. Não estou lidando com
amador, estou lidando com um homem perigoso. Ele entrou
no avião já me filmando, ele sabia que sentaria do meu lado”,
acrescentou Wyllys. “É o mesmo que esperar que um judeu
sente ao lado de um nazista que participou da empresa de
extermínio de judeus. É o mesmo que esperar que um negro
sente ao lado de um racista contumaz que ataca a comuni-
dade negra” (FÓRUM. Jean Wyllys: “Nunca vou sentar ao lado
de Bolsonaro”. Disponível em: <https://goo.gl/eFUzYV>.
Acesso em: 30 maio 2018, ênfase minha).

Nesta SD, é possível observar a posição-sujeito que o depu-


tado federal do PSOL-RJ ocupa. Diferente da do deputado federal
do PP-RJ, Wyllys marca em seu discurso o distanciamento de
Bolsonaro, enfatizando (“Desculpe, eu nunca vou ficar, nunca, do
lado dele”). Entendendo que ambos ocupam FIs distintas, assim
como os portais dos quais as SDs que trago, é importante explicitar:
Jean Wyllys, é um político de esquerda, gay, que defende a comu-
nidade ALGBTQI+; já Bolsonaro, de direita, hétero e que é contra
a criminalização da homofobia, como mostrado na SD anterior (“O
deputado Bolsonaro é conhecido por suas posições contrárias aos

91
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero direitos dos homossexuais e está no extremo oposto político de seu
e a sexualidade colega Jean Wyllys”).

O deputado do PSOL-RJ nega a existência da “heterofobia”


silenciando o discurso do Bolsonaro mostrado na Exame em que,
aproximando da noção de silenciamento de Orlandi (1993), essa
inexistência da “heterofobia”, segundo o discurso de Jean Wyllys
(“[...] ‘heterofobia’ não existe”), portanto, mostrando, implicitamente
pelo não-dito, que existe homofobia.
SUMÁRIO [...] todo dizer é uma relação fundamental com o não-dizer. Esta
dimensão nos leva a apreciar a errância dos sentidos (a sua
migração), a vontade do “um” (da unidade, do sentido fixo), o
lugar do non sense, o equívoco, a incompletude (lugar dos muitos
sentidos, do fugaz, do não-apreensível), não como meros acidentes
da linguagem, mas como o cerne mesmo de seu funcionamento
(ORLANDI, 1993, p. 12).

A respeito da “heterofobia”, diferente do deputado federal


do PP-RJ, o deputado do PSOL-RJ justifica a ação que Bolsonaro o
acusou (“No avião havia tantos outros héteros e eu vim do lado de
uma mulher hétero maravilhosa [...]”). Sobre a questão da sexuali-
dade, entende-se que esta afirmação de haver mais héteros e não
apenas o Bolsonaro no avião como único heterossexual, faz trazer
o conceito de matriz heterossexual de Butler, que busca “designar
a grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos,
gêneros e desejos são naturalizados” (BUTLER, 2013, p. 22).
É possível aproximar este conceito, em termos discursivos, pela
noção de pré-construído, a relação exterioridade-anterioridade e
do retorno do saber do pensamento (PÊCHEUX, 2014). Quer dizer,
pressupõe-se que há mais héteros do que gays em determinados
espaços, devido ao discurso heteronormativo. Esse discurso é
sustentado pelos dizeres da medicina que determinam o gênero
e a sexualidade da criança pela genitália. Segundo a FD médica,
a heterossexualidade, como mostrou Foucault (2011) e Furlani
(2009), se tornou mais aceita e foi naturalizada, tornando a homos-

92
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero sexualidade doentia, pecaminosa, de acordo com os discursos
e a sexualidade médico e religioso.
Consideremos a interpelação médica que apesar da emergência
recente das ecografias, transforma uma criança, de um ser “neutro”
em um “ele” ou em uma “ela”: nessa nomeação, a garota torna-se
uma garota, ela é trazida para o domínio da linguagem e do paren-
tesco através da interpelação do gênero. Mas esse tornar-se garota
da garota não termina ali; pelo contrário, essa interpelação fundante
é reiterada por várias autoridades, e ao longo de vários intervalos
de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito naturalizado. A
nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira
SUMÁRIO e também a inculcação repetida de uma norma (BUTLER, 2007, p.
161).

Assim como Butler (2007) apresenta, pelos atos de fala,


como a medicina torna uma criança um ser feminino ou masculino,
Jean Wyllys também pressupõe um público heterossexual maior no
avião por conta dele sentar ao lado de uma mulher heterossexual.
Segundo os estudos culturais (HALL, 2006; WOODWARD, 2007),
a identidade é marcada pela diferença, ou seja, nesta relação de
sexualidade, o sujeito marcado é o homossexual. “Dentro de nós
há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções,
de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas” (HALL, 2006, p. 13). O sujeito empírico, partindo
do discurso do senso comum, percebe-se enquanto a “mesma
pessoa”, mas “diferentes contextos sociais fazem com que nos
envolvamos em diferentes significados sociais” (WOODWARD,
2007, p. 30). Ou seja, o que é imposto social e culturalmente como
“natural”, desde a questão política, religiosa, entre outras ideolo-
gias a que se é exposto, é construído discursivamente, formando
uma determinada identidade a respeito de tais temas, neste caso,
podendo produzir o “Efeito Münchhausen” (PÊCHEUX, 2014).

Como o deputado do PSOL-RJ nega a existência da “hete-


rofobia”, ele denomina sua ação como “fascistofobia”. Ao observar
tanto esta palavra quanto “heterofobia”, utilizada por Bolsonaro,
aponto para

93
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A evidência do sentido – a que faz com que uma palavra designe
e a sexualidade uma coisa – apaga o seu caráter material, isto é, faz ver como
transparente aquilo que se constitui pela remissão a um conjunto
de formações discursivas que funcionam como um dominante. As
palavras recebem seus sentidos das formações discursivas em suas
relações. Este é o efeito da determinação do interdiscurso (memória)
(ORLANDI, 2012, p. 46).

Quando o deputado federal do PP-RJ acusa a ação do depu-


tado federal do PSOL-RJ de “heterofobia”, este o revida falando
que praticou “fascistofobia”. Ao analisar o sufixo -fobia, segundo
SUMÁRIO o discurso gramatical, vemos que este expressa medo, como em
aracnofobia (medo de aranhas), por exemplo. Utilizando essa regra
do discurso gramatical para as palavras utilizadas pelos deputados
federais, isso apenas não basta. O efeito de sentido produzido
pelo enunciado do deputado federal do PP-RJ é o silenciamento da
homofobia que ocorre no Brasil. O deputado federal do PSOL-RJ
justifica sua ação tomada como “fascistofobia” e a explica: “uma
fobia de fascistas, de escroques”.

Porém, as palavras “heterofobia” e “fascistofobia”, aplicando


a regra do discurso gramatical, vão além disso, são palavras que
estão inscritas na FD de aversão (ódio, repulsa), que vale tanto para
o discurso de Jair Bolsonaro como para de Jean Wyllys, inscritas em
suas FIs distintas.
É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo
sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica,
uma greve etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um
enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram,
assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chama-
remos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados
(PÊCHEUX, 2014, p. 145-146, ênfase do autor).

Pelo discurso gramatical, o sufixo -fobia remete a um


(possível) significado (medo), podendo mascarar os diversos efeitos
de sentidos produzidos, que é o caso das palavras utilizadas pelos
deputados federais. Trazendo a noção de materialidade discur-
siva “enquanto nível de existência sócio-histórica, que não é nem

94
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero a língua, nem a literatura, nem mesmo as ‘mentalidades’ de uma
e a sexualidade época, mas que remete às condições verbais de existência dos
objetos [...] em uma conjuntura histórica dada” (PÊCHEUX, 2012,
p. 151-152), pressuponho os neologismos dos deputados federais
pela ordem da língua, escapando do discurso gramatical, obser-
vando a conjuntura histórica do país, especialmente a crise política
polarizada com discursos extremistas em que esses discursos dos
deputados federais estão materializados e inscritos, bem como as
ideologias distintas que cada um defende.
SUMÁRIO

EFEITO DE FIM

Como no discurso não há um começo e, especialmente, um


fim, me filio a esta afirmação para fazer uma retomada sobre os
conflitos teórico-analíticos discutidos neste capítulo.

Os discursos dos deputados federais silenciam um ao outro,


especialmente o de Bolsonaro que silencia a homofobia, a luta da
comunidade ALGBTQI+ por direitos igualitários, especificamente a
lei que ele mesmo cita (PLC 122/2006), mas em seu sentido inverso,
promovendo, mais uma vez, o silenciamento. Já o silenciamento
do deputado federal Jean Wyllys é sobre o discurso de Bolsonaro
sobre ter sido vítima de “heterofobia”.
[...] o silêncio pode ser considerado tanto como parte da retórica
da dominação (a da opressão) como de sua contrapartida, a retó-
rica do oprimido (a da resistência). E tem todo um campo fértil para
ser observado: na relação entre índios e brancos, na fala sobre a
reforma agrária, nos discursos sobre a mulher [...] (ORLANDI, 1993,
p. 31).

Assim, como mostrado por Foucault (2011) e Furlani (2009)


sobre as identidades sexuais homo e hétero, especialmente a
homossexual, numa visão discursiva:

95
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Esses deslocamentos discursivos acerca da(s) homossexualida-
e a sexualidade de(s), segundo o discurso médico, era doença e o termo “homos-
sexualismo” marca(va) isso. Para caracterizar uma não-doença são
trazidos outros termos, sendo o mais comum “homossexualidade”,
em que os discursos sobre este fazem esta orientação sexual a ser
(re)pensada como a heterossexualidade, ou seja, há uma mudança
discursiva. Toda essa mudança foi propiciada por deslocamentos de
discursos para atribuir a homossexualidade hoje. O discurso não é
estagnado, não é mera reprodução, sofre deslocamentos e quando
retomam discursos são (re)significados (LAU, 2018, p. 91-92).

Da mesma forma que a homossexualidade possui (re)signifi-


SUMÁRIO cados, a partir desta análise, é importante notar a questão da crimi-
nalização para uma identidade sexual em minoria, numa questão
ideológica. Já houve projetos de lei (PL) para busca de uma solução,
como o PLC 122/2006, citado por Bolsonaro, bem como também o
PL 7582/2014, de autoria da deputada federal Maria do Rosário do
Partido dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul (PT-RS), ambos
arquivados, pressupondo uma censura para essa discussão no
âmbito político. Por outro lado, setores conservadores utilizam-se
dos mesmos discursos da comunidade ALGBTQI+, assim como
Bolsonaro, para colocarem em pauta projetos com o mesmo teor
de discriminação em seu sentido inverso, ou seja, para proteger
heterossexuais, como o PL 7382/2010, de Eduardo Cunha, do
Partido Movimento Democrático Brasileiro do Rio de Janeiro
(PMDB-RJ), que criminaliza a “heterofobia”, bem como um dia para
se haver um dia para o Orgulho Heterossexual, tanto numa esfera
municipal, como o vereador de São Paulo, Carlos Apolinário, do
Partido Democrático dos Trabalhadores (PDT-SP), como também
numa esfera nacional, lançado pelo deputado federal do PMDB-RJ,
em que mostra nas justificativas de seus PLs o silenciamento da
memória de luta da comunidade ALGBTQI+ para haver o dia do
Orgulho LGBT (LAU, 2018).

96
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero REFERÊNCIAS
e a sexualidade
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do
“sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). Pedagogias da sexualidade. 2
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 151-172.

______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução de Renato Aguiar. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2013.

SUMÁRIO FERRARI, Anderson. Quem sou eu? Que lugar ocupo? Grupos gays,
educação e a construção do sujeito homossexual. 226 f. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP,
Campinas-SP. 2005.

FOUCALT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 21


reimpressão. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A.
Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2011.

FURLANI, Jimena. Mitos e tabus da sexualidade humana: subsídios ao


trabalho em educação sexual. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de


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LAU, Héliton Diego. Pelo direito e orgulho de ser heterossexual no terceiro


domingo de dezembro. São Paulo: Pimenta Cultural, 2018.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio: no movimento dos


sentidos. 2 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993.

______. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 10 ed. Campinas,


SP: Pontes, 2012.

PÊCHEUX, Michel. Metáfora e interdiscurso. In: ______. Análise de


Discurso: Michel Pêcheux. Textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi.
3 ed. Campinas, SP: Pontes, 2012.

______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução:


Eni P. Orlandi et al. 5 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.

97
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero SOARES, Alexandre Sebastião Ferrari. A homossexualidade e a AIDS no
e a sexualidade imaginário de revistas semanais (1985-1990). 235 f. Tese (Doutorado em
Estudos Linguísticos). Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense
– UFF, Niterói. 2006.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica


e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. 7 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p.
7-72.

SUMÁRIO

98
DISCURSO, GÊNERO E AMOR: A MULHER NOS
DISCURSOS SOBRE AMOR
Discurso,
gênero
Fernanda Cerqueira de Mello e amor:
a mulher
nos discursos
sobre amor
Fernanda Cerqueira de Mello

DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.99-119
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Seguindo a orientação de Pêcheux, de que a subjetivi-
e a sexualidade dade não é como algo que “afeta” o sujeito, mas que o constitui
(PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 139), propomos apresentar, neste capí-
tulo, ruminações teóricas que nos acompanham desde a escrita da
dissertação (MELLO, 2018),16 e alguns recortes do que produzimos
pensando como os discursos sobre o amor atravessam a consti-
tuição da subjetividade da mulher. A questão que lançamos é: como
os discursos sobre amor atravessam o modo de constituição da
subjetividade da mulher?
SUMÁRIO
Esclarecemos de antemão que não tratamos aqui de uma
noção universal de “mulher”. Da perspectiva teórica da Análise do
Discurso, teoria em que se inscreve este trabalho, trabalhamos com
a noção de sujeito submetido à ordem do inconsciente e da ideo-
logia, que produz o assujeitamento que marca a subjetividade. Ao
falarmos de mulher, falamos da inscrição de um sujeito em uma
determinada posição, inscrição essa que é social (ideologia) e
também singular (inconsciente).

O que nos interessa é pensar como os sentidos sobre


mulher se constituíram sócio-historicamente de modo a (re)produzir
sentidos sobre o que é o feminino em discursos a respeito do amor.
Para isso, trazemos como material o documentário Cativas: presas
pelo coração, da diretora Joana Ninn, exibido no Brasil em 2014.
O longa apresenta entrevistas com 7 mulheres que mantêm algum
tipo de relacionamento amoroso com homens em situação de
cárcere, na Penitenciária Central do Estado do Paraná, a 40 quilô-
metros de Curitiba.   São 7 mulheres entrevistadas que contam seus
relatos: essas 7 mulheres são acompanhadas em um dia de visita,
em que elas enfrentam fila para entrar no presídio e, quando entram,
passam pela revista íntima, revista em que elas ficam nuas e se

16. Orientada pela Professora Doutora Silmara Dela Silva e intitulada “O amor e a mulher: uma
análise discursiva do documentário Cativas: presas pelo coração”.

100
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero agacham em cima de um espelho para que os agentes confiram se
e a sexualidade elas carregam drogas ou armas em suas partes íntimas. Ao longo
do filme, essas mulheres se expõem, se desnudam física e emocio-
nalmente, ao falarem de si e de suas relações. A partir do material
selecionado, nossa proposta foi analisar sequências discursivas
constituídas por relatos das mulheres a respeito da relação que
estabelecem com seus parceiros presos. E são os recortes que
selecionamos para as análises que apresentaremos neste artigo.

SUMÁRIO Partindo do pressuposto de que a interpelação ideológica


produz o assujeitamento, em que o sujeito, para se constituir, precisa
se inscrever no simbólico e se sujeitar à história, nos dedicaremos a
pensar como se produz o sujeito “mulher” nas declarações dessas
mulheres sobre suas relações amorosas. Orlandi (1999) aponta
que, da perspectiva discursiva, a subjetividade se faz importante
por possibilitar compreender como a língua acontece no homem.
Segundo a autora: “o acontecimento do significante no homem é
que possibilita o deslocamento heurístico da noção de homem para
a de sujeito” (ORLANDI, 1999, s/p), isto é, ao submeter-se à língua,
o sujeito é determinado pela injunção a dar sentido, a significar-se.
Ainda nos termos da autora:
Pensando-se a subjetividade, podemos então observar os sentidos
possíveis que estão em jogo em uma posição-sujeito dada. Isso
porque, como sabemos, o sujeito, na análise de discurso, é posição
entre outras, subjetivando-se na medida mesmo em que se projeta
de sua situação (lugar) no mundo para sua posição no discurso.
Essa projeção-material transforma a situação social (empírica) em
posição-sujeito (discursiva). Vale lembrar que sujeito e sentido se
constituem ao mesmo tempo, na articulação da língua com a história,
em que entram o imaginário e a ideologia. Se, na Psicanálise temos
a afirmação de que o inconsciente é estruturado como linguagem,
na Análise de Discurso considera-se que o discurso materializa a
ideologia, constituindo-se no lugar teórico em que se pode observar
a relação da língua com a ideologia. (ORLANDI, 1999, s/p.)

Tomamos, então, a noção de subjetividade como o processo


pelo qual o sujeito se submete à língua para (se) significar. Ao ser

101
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero interpelado ideologicamente, o sujeito se identifica imaginariamente
e a sexualidade com uma posição em uma dada formação discursiva – que corres-
ponde a um “saber constituído de enunciados discursivos que
representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente,
regulando o que pode e deve ser dito e o que não deve ser dito”
(INDURSKY, 1998, p. 115). De nossa perspectiva teórica, ao signifi-
car(-se), o sujeito já está na ideologia e é, antes de tudo, falado pelo
inconsciente; não há outra maneira do sujeito significar(-se) que não
seja pelo discurso.
SUMÁRIO
Falar é submeter-se à ordem simbólica, é assujeitar-se à
linguagem e à história, por isso consideramos, neste trabalho, a
partir dos relatos das mulheres, que é possível investigar os atra-
vessamentos dos influxos da história no modo como as mulheres
falam de si quando relatam seus relacionamentos. Se pensamos
o sujeito enquanto uma posição: posição sujeito; é essa posição
que delimita os sentidos possíveis para esse sujeito, em função da
sua relação com a história e com a língua. Com isso, buscamos
compreender como essas mulheres em seus relatos se significam
em relação ao amor que sentem por seus parceiros, em que posição
elas se inscrevem quando falam disso que elas se ocupam, o amor.
Buscamos compreender que memórias e imaginários emergem nos
relatos dessas mulheres e que historicidade legitima determinados
dizeres e sentidos e não outros.

A sinopse oferecida pela produção do longa17 caracteriza o


filme como um longa que conta “a história de sete mulheres livres
que se mantêm cativas em nome do amor”. Ainda de acordo com
a sinopse, são mulheres “apaixonadas por presidiários” e “vivem
as limitações do relacionamento e a esperança de um dia consti-
tuir uma família do lado de fora. O filme investiga como são estes
casamentos, o que eles são capazes de construir ou destruir na

17. Disponível no site da produtora Sambaqui responsável pela produção do documentário.


<http://www.sambaquicultural.com.br>

102
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero vida delas”. Trata-se, portanto, de um filme sobre mulheres que
e a sexualidade amam presidiários e que contam as limitações e dificuldades desse
relacionamento. Ainda que a sinopse reconheça as limitações e a
possibilidade de que esse relacionamento provoque destruições
nas vidas dessas mulheres, o eixo temático recortado pelo filme é
o amor que as aprisiona na relação. O recorte dispensado ao tema
já expõe um gesto de leitura sobre mulher e sobre o amor, uma vez
que colocam os dois em relação direta e a mulher submetida ao
sentimento.
SUMÁRIO
A relação entre o amor e o feminino comparece na sinopse na
afirmação de que elas ficam no relacionamento porque se sentem
amadas e valorizadas e por isso elas insistem num relacionamento
cheio de privações e constrangimentos. Roudinesco (2003) afirma
que há diversas formas de abordar relações de dominação, de
igualdade ou de desigualdade entre os homens e as mulheres, e
ela destaca duas: a da sobreposição do sexo sobre o gênero; e
do gênero sobre o sexo. Acerca da sobreposição do sexo sobre
o gênero, a autora aponta que, no século XVIII, uma perspectiva
sustentava a existência de uma “outra natureza feminina invariante”
(ROUDINESCO, 2003). De acordo com Roudisneco, essa teoria:
Tomava como referência as posições expressas por Jean-Jacques
Rousseau na quinta parte do Emílio e na Nova Heloísa. Invertendo
a perspectiva cristã, Rousseau afirmava que a mulher era o modelo
primordial do ser humano. Porém, ao ter esquecido o estado de
natureza, tornara-se um ser artificial e mundano. Para se regenerar,
devia então aprender a viver segundo sua verdadeira origem. A
regeneração devia assumir a forma de um retorno a uma linguagem
anterior às palavras e ao pensamento, que se assemelhasse a uma
essência fisiológica da feminilidade. Nessa perspectiva, a mulher
poderia finalmente voltar a ser um ser corporal, instintivo, sensível,
débil organicamente e inapto para a lógica da razão. (ROUDINESCO,
2003, p. 122-123)

Nesse sentido, a mulher é significada pela sua “natureza”,


que não é da razão, do pensamento, mas sua natureza é sensível,

103
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero é instintiva, ela estaria diretamente relacionada ao seu corpo, que
e a sexualidade é capaz de gerar, mas nada na mulher apontaria para a possibili-
dade de uma entrega a qualquer atividade que inclua o raciocínio,
o intelecto (MELLO, 2018). Sob a perspectiva do sexo anatômico
sobreposto ao gênero, a diferença sexual é pensada em comple-
mentaridade e a mulher seria “um alter ego do homem, dividindo
com ele um prazer carnal e um papel social” (ROUDINESCO,
2003, 111). A divisão do papel social destina ao homem o lugar
de patriarca, responsável pelo sustento da casa e representante
SUMÁRIO social da família e à mulher, o espaço doméstico, responsável por
gerar filhos e cuidar do lar e do marido. Aos homens, pertenciam os
corpos físicos e sociais das mulheres.

No Brasil, conforme aponta Del Priore no livro A história do


amor no Brasil (2012), a igreja católica através do casamento, regu-
lava a vida dos amantes e usava o casamento cristão como forma
de controle das mulheres. Através da obediência, da paciência e
da fidelidade, princípios defendidos fortemente pelo cristianismo,
era possível estabelecer como deveriam ser os casamentos e deter-
minar o papel do homem e da mulher na relação. Esse controle se
dava sobretudo pelos manuais de casamentos que circulavam nas
missas, como os folhetos da missa. De acordo com Del Priore, os
folhetos consistiam em:
“O marido é a cabeça da mulher, e os membros devem acomodar
o mal da cabeça se o há”, insiste um desses manuais. Extensão
orgânica da vontade masculina, da razão do esposo, cabia à mulher
obediente acudir-lhe os males, os desmandos e os desvarios. É óbvio
que entre os “membros” e a “cabeça”, os sentimentos que homem
e mulher se dedicavam eram desiguais. “A mulher deve amar seu
marido com respeito, e o marido deve amá-la com ternura”. (DEL
PRIORE, 2012, p. 23)

Esses manuais tinham uma profunda preocupação em manter


o lugar da mulher submissa ao homem no casamento, a mulher
precisava ser inscrita em um “sistema de hierarquia e obediência”

104
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero (DEL PRIORE, 2012, p. 23). No interior desse sistema, o amor entre
e a sexualidade o homem e a mulher era da ordem familiar, uma vez que a mulher
como esposa deveria amar e obedecer ao seu esposo e o homem
deveria amar a mulher mãe de seus filhos e responsável pelos
cuidados da família como um todo. Assim, o homem deveria amar
sua esposa com ternura, pois era preciso discipliná-la, uma vez que
era vista como “o centro dos apetites, desejosa de muitas cousas
(sic), e se o homem convier (sic) com seus desejos, facilmente cairá
nos maiores precipícios” (DEL PRIORE, 2012, p. 23).
SUMÁRIO
O que esses manuais e o modo como o casamento se institui
no Brasil, conforme exposto por Del Priore, mostram é que a mulher
era associada àquilo que é da ordem dos afetos e dos impulsos e,
por isso, deveria ser contida. Dentro dos relacionamos “amorosos”,
o homem, por ser o cérebro do casal, deveria justamente conter os
instintos da mulher, constituindo junto à esposa uma família da qual
a mulher deveria se ocupar.

Kehl (2016) propõe, a partir do ponto de vista da psicanálise,


entender os modos de que as mulheres dispunham para se cons-
tituir como sujeito no modo de vida burguês (a partir da segunda
metade do século XIX), traçando a passagem da tradição para a
modernidade com o olhar sobre a condição feminina. De acordo
com a autora, a cultura europeia dos séculos XVIII e XIX produziu
inúmeros dizeres acerca da mulher, a fim de promover um conjunto
de atributos e funções que as mulheres deveriam ter. Denominado
como feminilidade, esse conjunto deveria estabelecer uma
adequação entre as mulheres, formando um “conjunto de sujeitos
definidos a partir de sua natureza” (KEHL, 2016, p. 40). Nos termos
de Kehl:
A feminilidade aparece aqui como o conjunto de atributos próprios a
todas as mulheres, em função das particularidades de seus corpos
e de sua capacidade procriadora; a partir daí, atribui-se às mulheres
um pendor definido para ocupar um único lugar social – a família e
o espaço doméstico –, a partir do qual se traça um único destino

105
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero para todas: a maternidade. A fim de melhor corresponder ao que se
e a sexualidade espera delas (que é, ao mesmo tempo, sua única vocação natural),
pede-se que ostentem as virtudes próprias da feminilidade: o recato,
a docilidade, uma receptividade passiva em relação aos desejos e às
necessidades dos homens e, a seguir, dos filhos. (KEHL, 2016, p. 40)    

Ainda segundo a autora, “a fragilidade, a doçura, a submissão


ao homem” (KEHL, 2016, p. 53) deveriam ser atitudes cultivadas
pelas mulheres. Assim, esse conjunto de atributos que deveriam
constituir a feminilidade ainda ecoa no imaginário de que a mulher
é naturalmente afetiva.
SUMÁRIO
Esses sentidos de feminilidade que associam a mulher
àquilo que é da ordem do sentimental são retomados no documen-
tário Cativas: presas pelo coração, retomando essa relação entre o
feminino e o afetivo. Pensando discursivamente, podemos afirmar
que há uma memória de mulher em funcionamento no filme, provo-
cando uma repetição de sentidos em circulação dentro da nossa
formação social. Indursky (2013) afirma que a matriz do sentido se
institui por um processo de repetibilidade e que essa repetição se
dá pela retomada de uma memória regularizada. “São os discursos
em circulação que são retomados, seja em textos, seja em enun-
ciações, e seus sentidos, à força de serem repetidos, são regula-
rizados” (INDURSKY, 2013, p. 93). A memória, portanto, atua e se
inscreve no interior das formulações enunciativas, materializando
a relação entre sujeito, língua e história. Sobre memória, Zoppi-
Fontana afirma que:
Utilizamos, então, o conceito de memória discursiva para designar
as redes de filiação histórica que organizam o dizível, dando lugar
aos processos de identificação a partir dos quais o sujeito encontra
as evidências que sustentam/permitem seu dizer (cf. Pêcheux, 1975;
Courtine, 1982; Orlandi, 1996) . Nesse sentido, a memória discursiva
é o espaço dos efeitos de sentido que constituem para o sujeito
sua realidade, enquanto representação imaginária (e necessária) da
sua relação com o real histórico, no qual ele está inserido. (ZOPPI-
FONTANA, 2002, p. 178)

106
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Assim, o funcionamento do discurso em sua relação com a
e a sexualidade ideologia se faz possível pela existência de uma memória. O que
sustenta o discurso é a relação com sentidos outros produzidos em
outros processos discursivos, ou seja, ao dizer o sujeito se filia a
“todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que deter-
minam o que dizemos” (ORLANDI, 2001, p. 33).

Com isso, o processo de regularização de sentidos nos


interessa porque nos oferece um caminho profícuo para compre-
SUMÁRIO endermos nosso objeto de pesquisa. Partindo do documentário, a
noção de memória nos permite pensar quais as relações de sentido
interdiscursivas que sustentam os sentidos de amor e mulher postos
em circulação pelo filme.

Com a possibilidade de serem responsáveis pelo processo


de procriação, aponta Roudinesco (2003), no final do século XX,
é dado às mulheres o direito de serem mulheres independente da
vontade dos homens. O que provocou uma desestabilização desses
lugares do homem e da mulher, dando à mulher outras possibili-
dades de se constituir enquanto sujeito no escopo social, a posição
de mãe e esposa já não era então a única possibilidade, e as
discussões sobre gênero passam a ganhar espaço. No entanto, os
desdobramentos dessa passagem da emancipação da mulher não
significaram um apagamento dos sentidos de mulher que se fizeram
presentes e hegemônicos durante muito tempo e que seguem atra-
vessando os sentidos outros de mulher que podem advir das mais
diversas posições possíveis disponíveis na atualidade.

GESTOS DE ANÁLISE

Ainda que na teoria em que nos inscrevemos entendamos


que o sujeito não é um indivíduo empírico, mas uma posição

107
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero discursiva, optamos por manter os nomes das mulheres como elas
e a sexualidade são identificadas no documentário. Isso porque acreditamos que,
por mais que teoricamente só haja duas posições possíveis: das
mulheres que se relacionam com presidiários e das mulheres que
não se relacionam mais com presidiários; cada história relatada por
essas mulheres possui seus traços de singularidades, assim como
elas e, por isso, optamos por manter as sequências discursivas
acompanhadas pelos nomes.

SUMÁRIO A primeira sequência discursiva (SD) que trazemos é da fala


de Cida, que, das sete mulheres, é a única que não está mais com
o parceiro e conta a experiência de sua relação depois que o marido
foi solto.

SD1: olha, ele tá lá dentro, esse cara, e a pessoa aqui fora.


a gente tá aqui fora né? ele tá louco pra sair pra fora e não
pode, tá na justiça. a justiça foi feita pra cumprir, tem que
cumprir. se ele arruma uma mulher aqui fora a pena dele cai
mais. igual aconteceu, ele já tinha pensado em tudo, mas eu
não tinha pensado nada disso. eu fui com o amor eu fui com o
coração ele que foi com a cabeça, quer dizer ele foi cabeça,
agora eu não.

Sob a luz do que tratamos na introdução deste artigo, a fala


de Cida retoma o imaginário da mulher de natureza sensível, que
tem suas ações guiadas pelo sentimento e não pela razão. A razão
é posta ao lado do homem, que “pensou em tudo” e agiu com “a
cabeça”, ao contrário dela, que agiu com o “coração”, por “amor”,
portanto, agiu de forma impensada. Os atributos da feminilidade
que Kehl (2016) apontou como constituintes da condição femi-
nina durante o século XVIII, que eram determinantes no como as
mulheres se constituíam como sujeito, atravessam o relato de Cida.

Ao se colocar na posição de pensar na relação e dizer daquilo


que sente, emerge das mulheres todo um constructo sócio-histórico

108
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero que atravessa os sentidos que se produzem imaginariamente sobre
e a sexualidade o amor e, também, sobre as mulheres. A feminilidade, portanto,
parece advir da necessidade de preencher de sentido a mulher e,
assim, ao incorporarem esse lugar da feminilidade, as mulheres
criaram uma posição, projetando uma determinada formação
imaginária de mulher, para a partir dela fazer derivar outros sentidos
possíveis, como faz Cida, na SD1. No entanto, o processo de
interpelação ideológica não funciona igualmente para todos os
sujeitos; esse processo se dá de modo singular pelo atravessamento
SUMÁRIO do inconsciente. Ainda que Cida se filie a esse imaginário de mulher
que não pensa, mas sente, ela consegue deslocar os sentidos de
mulher submissa ao sentimento porque quando ela se dá conta
de que o sentimento do parceiro era interesse, para poder diminuir
a pena, e não amor, ela se desfaz da relação, como vemos na
sequência discursiva a seguir:

SD2: Porque antes ele era bonitão mesmo, mas era bandido,
pinta de bandido, não gosto, eu gosto do homem bonito, mas
bonito por tudo, por dentro e por fora. Esse negócio de bonito
por fora só é lindo, lindo, mas por dentro é um monstro, pra
quê? Pra me devorar? Quero não. Vai me devorar não.

O dizer de Cida comparece como resistência ao imaginário


de mulher que se construiu na feminilidade, ou seja, de mulher que
deveria ser doce e submissa ao homem. Ela aponta o ex-parceiro
como uma figura violenta, expressa na designação “monstro” e, a
partir da negação, ela não se submete à violência e nem ao homem.
É possível afirmar que há uma disputa pelos sentidos atribuídos à
mulher, que a princípio, como mostra Kehl (2016), foi significada
por homens, que construíram a feminilidade para que se servissem
dela, e a mulher, ao ocupar esse lugar que lhe fora atribuído, fez
emergir uma posição discursiva, abrindo a possibilidade de fazer
derivar os sentidos que até aquele momento tinham sido impostos.

109
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A resistência, portanto, possibilita o deslocamento de sentidos já
e a sexualidade estabilizados, conforme aponta Mariani:
E conforme Pêcheux, o que é a resistência, em termos discursivos?
É a possibilidade de, ao dizer outras palavras no lugar daquelas
prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos já esperados. É ressig-
nificar rituais enunciativos, deslocando processos interpretativos
já existentes, seja dizendo uma palavra por outra (na forma de um
lapso, um equívoco), seja incorporando o non sens, ou simples-
mente não dizendo nada. (MARIANI, 1998, p. 26)

A resistência se apresenta como possiblidade do processo


SUMÁRIO polissêmico, que produz uma ruptura na repetibilidade de sentidos
da paráfrase, o embate entre esses dois funcionamentos que coloca
o discurso em movimento, é a partir do atrito entre o já dito e o que
ainda pode ser dito que o sentido pode ser outro, pode deslizar.

A partir da afirmação de Pêcheux de que “não há dominação


sem resistência” (PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 281), podemos pensar
o funcionamento da ruptura no processo de interpelação ideológica,
abrindo espaço para a resistência. Ainda nos termos de Mariani:
Nenhum processo de assujeitamento pode ser completo ou imutável
até porque o sujeito, no todo social, não ocupa apenas (1) posição.
Os mecanismos de resistência, ruptura (revolta) e transformação
(revolução) são, assim, igualmente constitutivos dos rituais ideoló-
gicos. (MARIANI, 1998, p. 25)

As posições discursivas, portanto, não são fixas, elas


derivam, esse é o efeito do inconsciente no processo de subjeti-
vidade. Assim, ainda que a mulher se filie ao imaginário de mulher
que ama e, por isso, se submete ao amado, ela também desloca
esse lugar ao recusar uma relação com um homem que, mesmo
que ela tenha amado e que seja bonito, a violenta. É na contradição,
portanto, a disputa de sentidos, que se instaura a resistência, provo-
cando um deslocamento no sentido de mulher que os sentidos de
feminilidade tentaram homogeneizar.

110
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Cida é a única mulher do documentário que não está mais
e a sexualidade com o parceiro, mas assim como as outras mulheres, ela em algum
momento se submeteu às privações e dificuldades do relaciona-
mento com um presidiário, e essa submissão se sustentava porque
ela amava o parceiro, porque ela se envolveu com o coração. É o
amor das mulheres que sustenta o relacionamento, uma vez que
o esforço de promover o encontro entre os dois amantes é delas,
porque só elas podem fazer o trânsito de entrar e sair da penitenci-
ária. O caráter afetivo das mulheres, portanto, é um fator importante
SUMÁRIO para que esse relacionamento se mantenha e que elas busquem e
aceitem a condição da relação.

Por se tratar de um filme que conta, através de relatos, as


histórias de mulheres que se relacionam com presidiários, eviden-
temente, o que se destaca é a condição de cárcere dos parceiros
como o motivo das privações e dificuldades pelas quais passam
as mulheres. Na sequência discursiva que traremos a seguir, entre-
tanto, há um deslocamento quanto à posição de liberdade das
mulheres em relação aos homens, o que comparece na fala de uma
das mulheres não é a designação presa:

SD3: [...] mulher de cadeia tem isso não pode olhar porque
aquele cara tá olhando, não existe isso, mas no psicológico
da gente não pode, ele tá trancado. Como é que eu tô olhando
pro cara e o cara tá me olhando se eu também tô presa, né?
E isso não é legal. Quando eu ando de moto, com a minha
moto, com o vento no meu rosto me dá uma sensação de
liberdade é o único momento que eu me sinto livre, quando
eu tô andando de moto. Que eu posso sentir o rosto, eu tô
viva, tenho uma liberdade, só nesse momento. Eu cheguei em
casa eu sou presa, no meu serviço eu sou presa, com o meu
marido eu tô presa, então eu sou uma mulher presa, é isso
que eu sinto. [ANDREIA]

111
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Na SD3, extraída do relato de Andreia, temos a afirmação de
e a sexualidade que o único momento em que ela se sente livre é quando anda
de moto, porque é o momento em que ela se sente viva. Quando
ela ocupa todos os outros espaços, no trabalho, em casa e com
o marido ela é uma mulher presa e, consequentemente, sem vida.
A falta de liberdade imposta pela relação com um homem preso
impõe tantas limitações, como o fato de não poder olhar para outro
homem, que faz com que a mulher que está dentro desse relaciona-
mento sinta essa prisão como a morte.
SUMÁRIO
Rougemont, em O amor e o Ocidente, desenvolve um
percurso histórico do amor no Ocidente, desde Platão, aos clás-
sicos medievais, como Tristão e Isolda e Romeu e Julieta. Na obra,
o autor aponta que o amor cristão “é a obediência no presente.
Porque amar a Deus é obedecer a Deus, que nos ordenou amar uns
aos outros” (ROUGEMONT, 1988, p. 57). Assim, o amor, tal como
é entendido na perspectiva cristã, é concebido à imagem do amor
de Cristo, porque o homem ama o outro “em suas formas e limi-
tações” (ROUGEMONT, 1988, p. 57). De acordo com o autor, nas
sociedades ocidentais que possuem o cristianismo como religião, o
casamento é o símbolo maior da concretização do amor. É através
dele que as famílias tradicionais se constituem, pois é por ele que os
filhos de Deus são reproduzidos. O amor é um dever: todos devem
amar e casar-se, formando, deste modo, a família composta pela
boa esposa, o bom marido e os filhos.

Sendo um dever, o amor cristão deve ser sustentado


independente das circunstâncias e dos entraves que se
apresentem. O sentido de amor como um dever se entrelaça a uma
narrativa que se construiu sobre o amor que cristalizou o sentido
de que, por amor, qualquer sacrifício é legítimo, portanto, mesmo
que Andreia se veja no conflito entre ser presa mesmo que ela não
esteja encarcerada e que essa prisão seja um sofrimento pra ela,

112
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero marcado pela sequência em que ela afirma que não se sente viva,
e a sexualidade ela ainda assim se mantém na relação.

Ser uma mulher de cadeia e, consequentemente, ser uma


mulher presa, significa ser também penalizada pelo crime que o
marido cometeu, a pena dada ao marido se estende a ela também.
Se ela e o marido formam uma amálgama a partir da união do casa-
mento, não é possível que a pena seja cumprida apenas por ele, ela
se aplica aos dois. Pensando a memória discursiva como susten-
SUMÁRIO tação do dizer, observamos que a SD3 traz a memória do amor
cristão (ROUGEMONT, 1988), que, pela via do casamento, une os
amantes, transformando-os em uma unidade. Neste caso, essa
memória do amor cristão que torna o homem e mulher um só coloca
a mulher como sujeito capaz de suportar e absorver, em nome do
vínculo afetivo, qualquer condição que se imponha ao marido, logo,
se ele é preso, ela é presa também. Esse amor é legitimado pelo
discurso cristão que supera qualquer forma de coerção externa que
se imponha aos amantes, materializada, por exemplo, na promessa
que celebra a união dos amantes no ritual do casamento cristão: na
saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, na alegria e na tristeza,
até que a morte os separe. A morte é a única força externa que pode
interromper essa união. A mulher, nesse caso, é um indivíduo sem
singularidade, sua existência procede da existência do parceiro.

O documentário Cativas: presas pelo coração, portanto, ao


se definir como um filme sobre mulheres que se mantêm cativas
em nome do amor, (re)produz sentidos sobre a mulher como um
indivíduo naturalmente sentimental. Enunciar um sentimento e dizer
sobre suas relações amorosas é também se constituir numa posição-
sujeito. Narrar como se veem dentro de seus relacionamentos
é, para essas mulheres, parte do processo de subjetividade
para se constituírem como mulher. A mulher discursivizada pelo
documentário e o amor aqui discursivizado por elas são um
construto sócio-histórico atravessado também por uma memória,
por condições de produção específicas e projeções imaginárias.
113
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero CONSIDERAÇÕES FINAIS
e a sexualidade

Propomos neste artigo apresentar alguns dos resultados


que obtivemos com o nosso trabalho de dissertação. Para isso,
recortamos parte de nossas análises em que pensamos discursi-
vamente o processo de subjetividade das mulheres em questão no
documentário.

Em nosso trabalho vimos que durante muito tempo as


SUMÁRIO
mulheres eram significadas por e para homens, e que os sentidos
disponíveis para que elas se significassem eram escassos e
cerceados pelos desejos dos homens. Assim, as posições
de mãe e esposa eram as posições oferecidas e impostas às
mulheres que, como complementares aos homens, deveriam
ser dóceis e submissas. O documentário, portanto, faz funcionar,
discursivamente, a posição-sujeito mulher sentimental, inscrita
historicamente, que, por ser mais sentimental do que racional,
torna-se vulnerável e mais suscetível a se submeter às mais
diversas condições em nome do amor.

Nos dizeres dessas mulheres, os sentidos de mulher que


deve ser submissa ao homem e preocupada com a organização
da vida doméstica (KEHL, 2016), na medida em que elas desejam
para si um amor e se submetem às condições humilhantes que
fazem parte do relacionamento delas com um homem preso. Ao
se inscreverem em uma posição sujeito de mulher que mantém
relação amorosa com presidiário, elas vão retomando e deslocando
os sentidos já cristalizados sobre a mulher e o sobre o amor. Essas
mulheres apostam que a relação amorosa é a condição para que
elas sejam felizes como se o amor “fosse uma entidade separada
do próprio sujeito, como sendo aquilo que é capaz de lhe garantir
a plenitude e algo do qual o sujeito deve se apropriar” (WRONSKI,
2015, p. 12).

114
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Nos recortes que selecionamos sobre as mulheres, esse
e a sexualidade imaginário de amor romântico, institucionalizado pelo cristianismo,
pelo viés do casamento, vai tecendo a submissão dessas mulheres
a esse relacionamento, porque esse “dever” e esse “destino”, que
se estabelece no amor romântico, subordina essas mulheres. Elas
devem suportar o casamento com um homem preso porque elas
amam; se o marido é preso elas são presas também, porque elas
amam. As situações a que essas mulheres se submetem para
estarem com o marido na penitenciária diz respeito a essa expec-
SUMÁRIO tativa do encontro com o amado, à expectativa de ser preenchida
por aquele sujeito por quem elas nutrem um sentimento. Podemos
afirmar, portanto, que o amor, ao ser discursivizado, está ligado a
questões ideológicas, afetando as mulheres que se inscrevem em
uma dada posição discursiva para (se) significar e se constituir
como sujeito.

No entanto, verificamos na SD1 e SD2 que há uma disputa


entre duas posições possíveis, uma que retoma os sentidos da femi-
nilidade e outra resiste a esses sentidos. Nos termos de Dela Silva “a
resistência tende à polissemia, à ruptura no processo de produção
de sentidos, ao deslocamento, que não se dá independentemente
da repetição, mas na retomada de um dizer sempre em curso”
(DELA SILVA, 2015, p. 210), desse modo, ainda que a princípio o
relato de Cida aponte para os sentidos de mulher que sente com o
coração, enquanto o homem pensa com o cabeça, ao dizer que não
se submete a estar com uma pessoa que a violenta, ela provoca um
processo polissêmico de ruptura e deslizamento de sentidos.

Trabalhar com uma teoria linguística de base materialista, ou


seja, que considera a luta de classes em sua constituição, signi-
fica pensar o político na linguagem, em outras palavras, significa
pensar a linguagem enquanto uma prática de e por sujeitos que,
inseridos no contexto de lutas de classes ideológicas disputam os
sentidos. Isso significa, nos termos de Pêcheux, que “no terreno da

115
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero linguagem, a luta de classes ideológicas é uma luta pelo sentido
e a sexualidade das palavras, expressões e enunciados, uma luta vital por cada uma
das duas classes sociais opostas que têm se confrontado ao longo
da história” (PÊCHEUX, [1978] 2011, p. 273). Há no documentário
a materialização das disputas em jogo acerca dos sentidos sobre a
mulher. Essas disputas se materializam nos relatos das mulheres e
no gesto de interpretação do documentário sobre a mulher e sobre
o amor.

SUMÁRIO Considerando que a memória discursiva “é não linear, lacunar,


mas seu efeito é apresentar sentidos que se querem unívocos e
estabilizados no fio do discurso” (MARIANI, 1990, p. 42), assim,
podemos afirmar que o filme retoma dizeres já estabilizados sobre
mulher e sobre o amor, e que a partir do retorno aos já-ditos abre a
possibilidade para que outros sentidos possíveis emerjam.

Produzir uma análise, da nossa perspectiva, implica produzir


um discurso sobre um discurso. Cabe ao analista sustentar sua
análise dentro dos pressupostos teórico-metodológicos de uma
teoria que não retira de cena o sujeito analista. Para que um analista
produza uma análise, é preciso, portanto, que se levante questões
sobre o seu objeto de análise, questões que coloquem em funcio-
namento os conceitos teóricos. Desse modo, os gestos de análise
que desenvolvemos até aqui não são verdades sobre o documen-
tário nem tampouco sobre a mulher e sobre o amor, o que produ-
zimos aqui foi um gesto de leitura sobre um corpus selecionado e
recortado para que pudéssemos desenvolver este trabalho a partir
daquilo que propomos teoricamente.

Nos termos de Orlandi, o analista deve “descrever o funcio-


namento do objeto simbólico, do texto, explicitar como ele produz
sentidos [...] mostrar os mecanismos dos processos de significação
que presidem a textualização de uma discursividade” (ORLANDI,
2004, p.22). A partir do dispositivo teórico da Análise do Discurso,

116
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero tanto neste trabalho quanto na dissertação em que iniciamos esta
e a sexualidade discussão, nos ocupamos em pensar os processos de produção
de sentido para a mulher a partir das discursos sobre o amor no
documentário que compõe nosso corpus, reconhecendo que não
há um único gesto de interpretação possível, mas leituras possíveis
que não se fecham e seguem provocando inquietações.

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SUMÁRIO
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por uma
análise
do discurso
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por uma
análise
do discurso
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ROUGEMONT, De Denis. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Editora


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SUMÁRIO

119
DISCURSO, GÊNERO E SAÚDE MENTAL: A
QUESTÃO DA LOUCURA NO DICCIONARIO DE
Discurso,
MEDICINA POPULAR gênero
Amanda Bastos Amorim de Amorim
e saúde mental:
a questão da loucura
no Diccionario
de Medicina Popular
Amanda Bastos
Amorim de Amorim

DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.120-139
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Se tudo então já foi dito
e a sexualidade Se tudo bem já foi feito
Se há milhões de interditos
Anuviando meu peito
Como pode um sujeito como eu não se despedaçar?

Fiat Lux – 5 a Seco

INTRODUÇÃO E MOTIVAÇÕES
SUMÁRIO
Este ensaio compõe uma pesquisa mais ampla em desen-
volvimento que busca, a partir do aporte teórico-metodológico da
Análise do Discurso de linha francesa, investigar o funcionamento
discursivo de verbetes relacionados a questões de saúde mental,
gênero e sexualidade em dicionários de Medicina e dicionários
de Língua Portuguesa. Essas obras são instrumentos linguísticos,
tais como gramáticas, glossários e outros, na medida em que dão
“acesso a um corpo de regras e de formas que não figuram juntas
na competência de um mesmo locutor” (AUROUX, 2009 [1992], p.
70). Em particular, interessa investigar como, nesses instrumentos,
ocorre o processo de patologização e despatologização de fenô-
menos, ou seja, quando algo deixa de ser considerado normal e
passa a ser ou uma doença, sinal ou sintoma de uma doença, bem
como o processo inverso, quando deixa de se atribuir a um fenô-
meno o estatuto de patológico.

A inquietação que move esta pesquisa surgiu em um momento


anterior da mesma, quando interessava investigar o funcionamento
discursivo de verbetes relacionados à saúde mental de uma forma
mais geral, em que os verbetes relativos à sexualidade funcionariam
como caso exemplar do processo de patologização e despatolo-
gização. Logo foram encontradas referências também ao gênero,
discriminando mulheres e pessoas transgêneras, bem como os

121
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero verbetes relacionados à sexualidade não mostraram o processo
e a sexualidade de despatologização completo, ou seja, não foram abandonados
os termos que operam em uma lógica patologizante de gêneros
e sexualidades dissidentes.18 Uma vez encontrados esses fenô-
menos, a pesquisa foi redirecionada para tratar especificamente de
gênero, sexualidade e como se apresentam regularidades e deslo-
camentos dos sentidos relacionados aos verbetes selecionados
para o corpus nos dicionários de Medicina e de Língua Portuguesa.19
Neste ensaio, será apresentada a análise específica do verbete
SUMÁRIO loucura no Diccionario de Medicina Popular, de Napoleão Chernoviz.
No desenvolvimento, se fará necessário comparar e referir a outros
dicionários que compõem o corpus, o que será feito por meio de
notas de rodapé conforme a necessidade para este texto.

O Diccionario de Medicina Popular, de Pedro Luiz Napoleão


Chernoviz (1890),20 primeiro dicionário de Medicina de ampla circu-
lação no Brasil, cujos verbetes são detalhados e levam a conhecer
não apenas a definição de cada fenômeno, como também a etio-
logia, tratamento e prognósticos das doenças.

18. O termo tem sido adotado para designar experiências e vivências que não correspondem
às normas da heterossexualidade (como pessoas bissexuais, pansexuais, lésbicas e gays) e
da cisgeneridade (pessoas transgêneras). Cf. Duarte e Silva (2014). Embora o dicionário de
Chernoviz aqui analisado trate da dicotomia masculino/feminino na ordem da cisnorma (consi-
derando apenas indivíduos cisgêneros, identificados ao gênero designado no nascimento),
buscamos não excluir a transgeneridade. Por isso, em alguns pontos, foi feita a opção de
empregar terminologias como “sujeitos que ocupam o lugar de mulher”, abarcando mulheres
transgêneras e pessoas não binárias – que estão fora dessa dicotomia –, considerando a leitura
que a sociedade faz de tais sujeitos.
19. Ao passo que alguns sentidos se cristalizam e algumas definições permanecem inalteradas
a partir da formulação em um certo dicionário, alguns sentidos são eventualmente deslocados –
como se verá em particular nos verbetes relacionados à sexualidade.
20. A data corresponde à sexta edição da obra, disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/
dicionario/edicao/4. A primeira edição é de difícil acesso, tornando a consulta inviável. Entretanto,
o prefácio da sexta edição detalha as modificações e acréscimos, que foram muitos, compa-
rados às edições anteriores. Em particular, essa edição se mostra interessante por nela constar
pela primeira vez o verbete histeria.

122
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Feita a contextualização do ensaio dentro da área, serão
e a sexualidade apresentadas as motivações – outros verbetes encontrados no
processo de levantamento dos dados – que foram decisivos para
o encaminhamento da pesquisa neste sentido e que dão notícia de
que há questões de gênero a investigar nos dicionários.

O primeiro caso exemplar desta relação entre o ideológico e


os discursos que circulam nos dicionários foi o excerto a seguir do
verbete língua no Vocabulario Portuguez e Latino, de Bluteau (1712-
SUMÁRIO 1718, p. 137)21:
A lingua da mulher não calla, senão o que não sabe, ou que lhe
convence que se não sayba. Em hum Cemeterio da cidade de
Tolosa em França, onde os corpos naturalmente se myrrhão, & ficão
largos anos como incorruptíveis, se tem observado, que as linguas
das mulheres apodrecem as ultimas: em contendas, & pelejas, a
mulher he a ultima que calla. [...] Mulheres ha, que nem com calhaos
na boca deyxarão de gritar.

O enunciado acima é exemplar do tratamento dado a grupos


sociais desprivilegiados – aqui destaca-se a mulher –, refletindo os
estigmas enfrentados por esses grupos. Nesse caso, é reforçada a
ideia de que a mulher fala demais, sendo sua língua a última parte
do corpo a apodrecer após sua morte. Tornou-se mais interessante,
então, analisar os processos de patologização e eventual despato-
logização de fenômenos nesses instrumentos, analisando verbetes
relacionados a patologias – neste contexto, patologia é entendida
como o que se considera sinal, sintoma ou síndrome em algum
determinado momento, divergindo do que se toma como “normal”.
Esta observação é fundamental, pois de forma alguma se defenderá
aqui que, por exemplo, homossexualidade seja uma condição pato-
lógica, mesmo comparecendo desta maneira na primeira versão do
DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Há,

21. O dicionário de Bluteau é rico no detalhamento das definições, nas quais são impressos traços
ideológicos daquele momento histórico. São trazidas a memória de grandes autores e crenças
populares, próprios dos saberes lexicográficos sobre os quais este dicionário é construído.

123
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ainda, termos dicionarizados ou ainda não dicionarizados segundo
e a sexualidade uma lógica patologizante, predominante nas áreas da saúde, o
que vem a indicar como a Clínica exerce um poder coercitivo sobre
os discursos, através dos dispositivos de poder de que dispõe
(FOUCAULT, 2008 [1971]).

O segundo caso exemplar, já parte do corpus a ser analisado


na pesquisa mais ampla à qual foi feita referência anteriormente,
foi o verbete histeria, que passa a comparecer nos dicionários de
SUMÁRIO Língua Portuguesa somente após sua inserção no dicionário de
Chernoviz, em 1890. Ademais, no dicionário de Figueiredo22 (1899)
encontra-se especificamente o verbete hystérica, marcado com o
asterisco indicativo de que o autor não teve notícia desse mesmo
verbete em dicionário anterior de Língua Portuguesa. O verbete é
classificado como substantivo feminino designado como “mulher
que padece hysterismo [sinônimo de histeria no referido dicio-
nário]; (fig.) mulher caprichosa ou desequilibrada (de hystérico)”.
Nesses mesmos dicionários, comparece o verbete hystérico, como
adjetivo, designado como “relativo à hysteria; que tem hysteria” e,
como substantivo, designado como “aquelle que sofre hysteria”.
Quando retornamos, a partir da retomada que encontramos nesses
verbetes, ao termo hysteria, observamos que a doença é caracteri-
zada “principalmente por convulsões e pêla sensação de uma bola
que subisse do útero à garganta”. Considerando-se que, nesse
momento, sequer se considera a noção de transgeneridade nos
dicionários, fica aí a interdição do sentido de um homem histérico,
sendo a doença ou o comportamento atribuído de capricho ou
desequilíbrio delegado exclusivamente a mulheres.

22.O Novo Diccionário da Língua Portuguesa, de Cândido Figueiredo, data de 1899 é conside-
rado o primeiro dicionário completo de Língua Portuguesa (NUNES, 2013), pois tem por objetivo
ampliar a documentação do léxico da Língua Portuguesa. Ele é particularmente interessante por
ser publicado na virada do século XIX para o século XX e ampliar consideravelmente a ocorrência
de termos da área médica, quando comparado ao dicionário de Moraes.

124
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero As leituras dos primeiros verbetes investigados direcionaram
e a sexualidade a pesquisa para aprofundamentos em relação aos sentidos que
circulam nesses dicionários e tendem a ser silenciados no processo
de construção desses instrumentos. Compreende-se a ideologia
como “a direção nos processos de significação, direção esta que se
sustenta no fato de que o imaginário que institui as relações discur-
sivas (em uma palavra, o discursivo) é político” (ORLANDI, 1990, p.
36). Dadas essas considerações iniciais, segue a análise do verbete
principal deste ensaio.
SUMÁRIO

A LOUCURA NO DICIONÁRIO DE MEDICINA


POPULAR

O Dicionário de Medicina Popular, de Pedro Luiz Napoleão


Chernoviz, foi lançado em sua primeira edição em 1842 e contou
com seis edições, até 1890, vendendo cerca de três mil exemplares.
Segundo Guimarães (2005, p. 502), “O ‘Chernoviz’ foi lido e utilizado
por pessoas de diferentes categorias sociais e profissionais, para
as quais facilitou o entendimento da hermética ciência médica”.23
Embora outros guias e manuais de Medicina tenham sido publi-
cados anteriormente, nenhum deles teve circulação tão ampla.

Ademais, o dicionário foi utilizado efetivamente por profissio-


nais da saúde para diagnóstico e diretrizes para o tratamento das
doenças, mas também contou com amplo uso popular, dialogando
tanto com as crenças populares quanto com o saber médico da

23. Cabe evidenciar que o autor publicou, um ano antes, o Formulário ou guia médico, obra
semelhante e de mesmo impacto, mas destinada aos profissionais da Medicina, contendo infor-
mações sobre as doenças e especificações sobre o preparo dos medicamentos e tratamentos
aplicáveis. Guimarães (2003, 2005) destaca que, embora as obras sejam dirigidas a públicos dife-
rentes, ambos foram chamados “o Chernoviz”, uma imprecisão estabelecida que se sustentou
na literatura. Esta imprecisão não afeta de maneira determinante o recorte desta pesquisa, no
entanto, em particular porque o dicionário é uma obra mais vasta do que o formulário.

125
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero época. Guimarães (2005) destaca que, por exemplo, no verbete lepra
e a sexualidade consta “os médicos árabes davam este nome a todas as moléstias
da pele caracterizadas por formas hediondas”. Desta forma, o autor
define um termo que não estaria em uso pelos médicos acadê-
micos, mas ainda era de amplo uso popular naquele período, esta-
belecendo uma conexão entre os públicos e marcando o propósito
de fixar – para os profissionais da área, como médicos e farmacêu-
ticos de locais mais remotos – as informações sobre cuidados à
saúde, que, naquele momento, eram restritas aos profissionais que
SUMÁRIO atuassem nos grandes centros.

Nesta pesquisa, recorremos à consulta da sexta edição da


obra, dado que ela é expressivamente maior do que as anteriores –
no prólogo, o leitor é informado da ampliação e revisão do conteúdo
com destaque para o aumento de “um quarto de matéria a mais”
(CHERNOVIZ, 1890, p. VI) – e por ser cada vez mais direcionada
ao uso popular, já que o encaminhamento ao médico poderia levar
muito tempo no interior do país. Guimarães (2003) apresenta uma
detalhada comparação entre as edições e atesta que “o Chernoviz”
foi citado como livro obrigatório nas farmácias até o começo do
século XX, mais precisamente 1926, quando aparece a farmaco-
peia brasileira.

Assim, a obra de Chernoviz, que seguiu sendo atualizada


mesmo após o falecimento do autor, quando especialistas eram
convidados para colaborar na revisão do dicionário e do formulário,
constitui uma fonte importante para refletir sobre questões de saúde
mental naquele momento.

Se o dicionário é, ao mesmo tempo, produto de práticas


dentro de uma determinada conjuntura e uma atualização dos
dizeres relacionados a uma memória discursiva,24 é importante tanto

24. Compreende-se memória discursiva como “um espaço móvel de disjunções, de desloca-
mentos e de retomadas, de conflitos de regularização [...] um espaço de desdobramentos,
réplicas, polêmicas e contra-discursos” (PÊCHEUX, 1999, p. 56).

126
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero refletir sobre o que acontece na Clínica em paralelo à publicação dos
e a sexualidade dicionários quanto observar quais discursos são retomados, quais
memórias são evocadas e quais dizeres são silenciados ou perpe-
tuados publicação após publicação. Interessa compreender como
se constitui uma certa memória lexicográfica em torno da loucura
– constituída pelo processo referido de definições, apagamentos,
paráfrases e sinonímias nos dicionários – e quais filiações ideoló-
gicas comparecem nos textos. Desta forma, podemos compreender
o que Nunes (2003) chama de posições de sujeito lexicográfico, ou
SUMÁRIO seja, “lugares enunciativos, historicamente constituídos, a partir dos
quais se diz a significação lexical” nos dicionários.25

Precisamos, portanto, mobilizar conhecimentos tanto sobre a


história da Clínica, em particular no que tange a noção de loucura,
quanto sobre a construção dos dicionários de Língua Portuguesa
e de Medicina como instrumentos linguísticos nos quais circulam
sentidos diversos sobre a loucura no período de publicação dos
mesmos.

Os prefácios dos dicionários colaboram para a compreensão


de como eles foram construídos e a posição desse sujeito lexicó-
grafo tanto em relação ao instrumento quanto em relação à língua.
Dado que a sexta edição do Chernoviz é póstuma, observa-se, no
prólogo assinado pelos editores, uma preocupação relativa à manu-
tenção da credibilidade da obra:
O methodo e as ideias do doutor Chernoviz foram respeitados como
sempre, apenas tratámos de dar a esta nova edição certo desenvolvi-
mento mais lato e muito mais pratico, necessitado pelos progressos
da sciencia, e por conseguinte tornal-a mais util. Tratámos de dar
um caráter mais novo á obra, de modo que fosse consultada com
proveito não só por todos aquelles que desejam se instruir, e, em
caso de necessidade urgente poder socorrer seo semelhante,
como tambem pelos homens da sciencia, pelos medicos, que n’ella
encontrarão as novidades da therapeutica e o mode de praticar as
operações de pequena cirurgia.

25. Disponível em: https://www.unicamp.br/iel/hil/publica/relatos_05.html. Acesso em 16/06/2017.

127
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Neste excerto fica expresso também o caráter generalista da
e a sexualidade publicação, destinada a um público mais amplo, não restrito aos
profissionais da área da saúde.

No Dicionário de Medicina Popular, de Chernoviz, que data


de 1890, o termo loucura está presente e é composto por quatro
páginas nas quais se discorre sobre: (i) a definição; (ii) causas; (iii)
sintomas; (iv) duração e prognóstico e; (v) tratamento. No quadro a
seguir, apresenta-se um recorte deste verbete, com as partes desta-
SUMÁRIO cadas para análise.26

Chernoviz (1890): Dicionário de Medicina Popular


Loucura. Doudice ou Alienação mental. Perturbação das faculdades intellectuaes.
Causas. O sexo feminino, o temperamento nervoso, uma educação viciosa, o
celibato, as profissões que exigem um grande esforço de espírito, que agitam
fortemente põem em lida a vaidade, a ambição etc.; as grandes revoluções
políticas, a superstição, os terroros religiosos, a saciedade de todos os gozos, os
excessos venereos, os licores fortes, a leitura dos romances e dos maos livros, o
ocio, a congestão cerebral, frequente, são as causas que predispõem à loucura.
Mas as causas que a determinam ordinariamente consistem quasi todas nas
affecções moraes vivas ou contínuas, taes como a colera, o susto, uma perda
subita de fortuna, uma felicidade inesperada, um pezar violento, os excessos de
estudos, a ambição malograda, o amor proprio humilhado, o ciume, os aconte-
cimentos políticos, os pezares domesticos, o amor contrariado, o fanatismo, etc.
[...]
Tratamento. Os loucos devem estar isolados, separados de todas as pessoas
com quem viviam, e collocados de maneira que possam ser facilmente vigiados.
É necessário tomar todas as precauções para impedir que se matem, se elles
tem inclinação para o suicidio. Os alienados inquietos ou furiosos devem ser
subjugados com a camisola, e até amarrados, se fôr necessario. Nunca se
devem avivar as ideias ou as paixões d’estes doentes no sentido do seu delírio; é
necessario não combater suas opiniões desarrazoadas pelo raciocínio, discussão
opposição ou zombaria; e convem fixar sua attenção sobre objectos estranhos
ao delírio, e communicar a seu espirito ideias e affecções novas,
O tratamento da loucura é difficil e complicado; e é quasi impossivel que as fami-
lias possam fazer o que convem. Só a presença das pessoas e cousas habituaes

26. Lembramos que este dicionário contém indicações de procedimentos e detalhamentos de


remédios e fórmulas a serem administradas ao paciente, que nem sempre são relevantes para as
questões que abordamos aqui, demandando o recorte.

128
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade é um grande obstaculo á sua cura. Interesses de muitos generos combinam-se
para determinar as famílias a encerrar os alienados nos estabelecimentos
publicos ou particulares. Primeiro que tudo, a segurança publica impõe justa-
mente esta obrigação. A liberdade, qua se deixa a estes doentes em seus domi-
cílios compromette a vida d’elles e a das pessoas que os rodeiam; mil motivos
devem fazer preferir a sua morada em um estabelecimento próprio. A experiencia
prova que um muito maior numero de loucos são curados nos estabelecimentos
do que quando são conservados no seio de suas famílias.
[...]
No Rio de Janeiro, até o anno de 1841, não havia outro asylo para os loucos
senão o hospital de Misericórdia, onde estes infelizes se achavam na mais mise-
rável posição. Já desde o ano de 1830 a Sociedade de Medicina clamava contra
SUMÁRIO tal estado de cousas, e fez a este respeito vivas representações á administração.
O sabio secretario da Academia de Medicina, o Sr. Dr. De-Simoni, em uma
Memoria cheia de convicção e de logica que publicou, fez sentir a necessidade
da creação de um estabelecimento separado em que os loucos pudessem ser
submetidos a um tratamento conveniente. [...]

Note-se que, embora este dicionário date de 1890, só se


observa o estatuto de patologia no verbete loucura nos dicionários
de Língua Portuguesa mais recentes. O principal termo que se usa
para evitar a repetição de “louco” é “alienado”, que comparecerá no
dicionário de Freire,27 em 1957, o que indica uma circulação desta
ideia de alienação entre fins de século XIX e começo de XX. Para fins
didáticos, serão enumeradas as sequências discursivas analisadas:

SD1: Loucura. Doudice ou Alienação mental. Perturbação das


faculdades intellectuaes.

SD2: Causas. O sexo feminino

SD3: o temperamento nervoso, uma educação viciosa, o


celibato, as profissões que exigem um grande esforço de

27. Editado de 1939 a 1944, o Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, de Laudelino
Freire, instaura uma divisão social marcada, por um lado, pela “configuração de um imaginário da
língua dos clássicos” (NUNES, 2013, p. 161) e, por outro, pelos plebeísmos e gírias que devem
ser evitados. Nunes ressalta, ainda, que o autor retoma tanto o dicionário de Moraes quanto o de
Figueiredo, sendo uma paráfrase do segundo e fazendo comparecer em seu prefácio a compa-
ração entre os dois, informando o acréscimo de grande quantidade de termos. Neste exemplo,
Freire não recorre à paráfrase e insere uma nova acepção.

129
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero espírito, que agitam fortemente põem em lida a vaidade, a
e a sexualidade ambição etc.; as grandes revoluções políticas, a superstição,
os terroros religiosos, a saciedade de todos os gozos, os
excessos venereos, os licores fortes, a leitura dos romances
e dos maos livros, o ocio, a congestão cerebral, frequente,
são as causas que predispõem à loucura. Mas as causas
que a determinam ordinariamente consistem quasi todas nas
affecções moraes vivas ou contínuas, taes como a colera, o
susto, uma perda subita de fortuna, uma felicidade inespe-
SUMÁRIO rada, um pezar violento, os excessos de estudos, a ambição
malograda, o amor proprio humilhado, o ciume, os aconteci-
mentos políticos, os pezares domesticos, o amor contrariado,
o fanatismo, etc. [...]

SD4: O tratamento da loucura é difficil e complicado; e é


quasi impossivel que as familias possam fazer o que convem.
Só a presença das pessoas e cousas habituaes é um grande
obstaculo á sua cura. Interesses de muitos generos combi-
nam-se para determinar as famílias a encerrar os alienados
nos estabelecimentos publicos ou particulares.

Observa-se que este verbete inicia com a definição do termo


nos mesmos moldes do dicionário de Moraes, e os posteriores,
com uma definição breve, com indicação de sinônimos, e a única
acepção que se encontra é como figura na SD1 “perturbação das
faculdades intellectuaes”. Em seguida, há o desenvolvimento da
explicação do verbete de acordo com a própria progressão da
doença, iniciando pelas causas. A primeira causa listada, SD2, é
precisamente “o sexo feminino”, acrescido de tudo que possa
ser considerado excesso em relação a uma ordem moral vigente
naquele momento.

Observa-se, então, na SD3, a retomada da noção de loucura


como aquilo que foge, que escapa ao que se considera no domínio

130
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero do juízo e da razão, encontrada regularmente nos dicionários desde
e a sexualidade Bluteau. Dentre as causas que predispõem à loucura ou que servem
como um gatilho que a ativariam, observa-se uma filiação (i) à moral
religiosa, quando se indicam os excessos venéreos, superstição
e “maos livros” como causas; (ii) a uma lógica de mercado, que
demanda sujeitos produtivos, condenando o ócio; (iii) a um conser-
vadorismo político, dado que “grandes revoluções políticas” predis-
põem e acontecimentos políticos podem engatilhar a loucura; (iv) a
uma lógica patriarcal de controle dos corpos, sobretudo dos femi-
SUMÁRIO ninos, quando se afirma, como primeira causa para predisposição
da loucura “o sexo feminino” – desta forma, qualquer pessoa desig-
nada mulher no nascimento é potencialmente louca, o que confi-
gura uma patologização do feminino e será um dos eixos em que
nos concentraremos adiante.

Ao procedermos à leitura do tratamento, na SD4, encon-


tra-se a indicação seguidamente reafirmada de que o sujeito deve
ser internado. Neste ponto, temos um nó essencial para a reflexão
sobre a loucura e será necessário refletir sobre como é tratada pela
Medicina, pois o que se dá a partir do século XV produzirá efeitos
que se estenderão até os dias atuais e serão refletidos também nos
Dicionários de Medicina. A construção do conhecimento médico e
a posterior instauração da Clínica não estão dissociados de cons-
trutos históricos nem de interesses políticos e mercadológicos da
sociedade, em particular a europeia a partir do século XV, em que os
hospitais que acolhiam – e marginalizavam, afastando do convívio
social – os leprosos começam a ficar ociosos, pouco ocupados, não
justificando mais a manutenção do funcionamento. Por um breve
período de tempo, esses locais acolhem portadores de doenças
venéreas, predominantemente homens cisgêneros, mas rapida-
mente estes passam a ser atendidos em hospitais comuns.

Destaca-se aqui o interesse na reintegração dos sujeitos


acometidos por doenças venéreas à sociedade, o que não houve

131
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero no caso dos leprosos nem há no caso dos loucos. Sobre este breve
e a sexualidade tratamento sobre as doenças venéreas, Foucault (2014 [1972], p.
7) afirma: “não são as doenças venéreas que assegurarão, no
mundo clássico [o autor se refere ao fim do século XV] o papel
que cabia à lepra no interior da cultura medieval. Apesar dessas
primeiras medidas de exclusão, elas logo assumem seu lugar entre
as outras doenças”.

De fato, com o passar do tempo, no fim do século XVII se


SUMÁRIO revela que o legado da lepra se transfere à loucura. Foucault (2014
[1972]) narra detalhadamente o processo desde a exclusão adotada
para a erradicação da lepra até as internações. A loucura, neste
contexto, “simboliza toda uma inquietude, soerguida subitamente
no horizonte de uma cultura europeia, por volta do fim da Idade
Média. A loucura e o louco tornam-se personagens maiores em sua
ambiguidade: ameaça e irrisão, vertiginoso desatino do mundo e
medíocre ridículo dos homens” (FOUCAULT, 2014 [1972], p. 14).

Não havia, no entanto, igualdade entre os loucos.


Primeiramente, os loucos e desvalidos recebiam tratamentos dife-
rentes de acordo com a colocação social da família. Refugiados e
estrangeiros eram levados de uma instituição para outra diversas
vezes, em frequente fluxo, sempre enjeitados; os loucos e desvalidos
abastados ou ao menos cidadãos nascidos em cidades que dispu-
nham de instituições que os recebessem eram acolhidos. Sendo
estes últimos exceções, Foucault (2014 [1972], p. 11) afirma que “a
partida dos loucos se inscrevia entre os exílios rituais”. Há, portanto,
um interesse mercadológico para o sustento das internações.
Ademais, seguiram-se nestas instituições todo tipo de experimento
médico, tamanha a dissociação do sujeito louco das suas condições
humanas mais fundamentais. Foucault (1994 [1980], p. VII) narra o
tratamento dado às histéricas no século XVIII – indicando um século,
portanto, das internações dos sujeitos considerados loucos – com

132
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero banhos de 10 a 12 horas que provocavam diversas reações fisioló-
e a sexualidade gicas que eram considerados passos em direção à cura.

Desta forma, a internação passa, assim, a ser uma poderosa


criação institucional com profundas raízes sociais, conforme afirma
Foucault (2014 [1972], p. 78):
A internação é uma criação institucional própria do século XVII.
[...] Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de
invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento deci-
sivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social
SUMÁRIO da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade
de integrar-se ao grupo; o momento em que começa a inserir-se no
texto dos problemas da cidade.

Portanto, a prática da internação dos loucos se estabelece e


segue até o século XIX. Observa-se o efeito dessa prática no dicio-
nário de Chernoviz, como retomaremos a seguir.

Durante o século XIX – quando o dicionário de Chernoviz é


editado –, há a inscrição do discurso jurídico nas questões relativas
às internações. Passa a haver um âmbito jurídico e um social, sendo
o sujeito “cercado simultaneamente pela consciência do escândalo
e pela prática do internamento” (FOUCAULT, 2014 [1972], p. 134),
gerando, de um modo ou de outro, duas formas de alienamento. O
sujeito louco segue no exílio, seja pela condenação ética, seja pela
doença, que é animalizada e esta animalização, será o que justifi-
cará o isolamento, a internação.

Desta forma, a internação mantém sua força como criação


institucional no século XIX, aliado às formas jurídicas que também
determinam os destinos dos sujeitos. Em Chernoviz, vemos que o
louco é considerado sempre um perigo para si e para os outros,
sendo estes familiares próximos ou não.

Na parte dedicada ao tratamento, há referência a Pinel e se


diz que “é quasi impossível que as famílias possam fazer o que

133
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero convem”, afirmando continuamente a necessidade de internação
e a sexualidade e, consequentemente, afastamento da sociedade, uma forma de
exílio, destacando sempre que o louco representa risco constante.
Em seguida, se dá notícia de asilos e técnicas terapêuticas apli-
cadas naquele momento. Por fim, são indicadas as diretrizes para
medicação dos pacientes.

Analisando os sinônimos e paráfrases, em particular na


parte que se dedica ao tratamento, observa-se que para loucos
SUMÁRIO são dados os sinônimos de alienados (que podem ser particular-
mente inquietos ou furiosos), doentes e infelizes. Em parte alguma
do verbete há qualificação de qualquer outra ordem para os loucos,
enquanto familiares e indivíduos próximos são designados também
como pessoas. Os sujeitos loucos são homogeneizados e reco-
menda-se o ajuste destes a um sistema manicomial.

O sujeito louco, em Chernoviz não possui qualquer ingerência


sobre seu destino, que deverá ser traçado mais pelos médicos do
que pela própria família. A posição do médico é soberana sobre
os demais sujeitos envolvidos, seja o louco ou os demais sujeitos
próximos. O Dicionário de Medicina acaba por instaurar um sujeito
lexicógrafo médico, formando uma autoridade que não advirá de
outros autores nomeados, como vimos em alguns dicionários de
Língua Portuguesa, mas de um misto de prática desse sujeito que
produz o dicionário e textos médicos que, conforme a tradição de
escrita da área são impessoais e permeados por discursos de auto-
ridade, acarretando em um efeito de homogeneidade discursiva,
em que não há outras vozes e em que o que ali comparece tem
valor de verdade absoluta.

É possível ilustrar esta questão a partir do excerto “mil


motivos devem fazer preferir a sua morada em um estabelecimento
próprio [asilo]”, em que o autor recorre à hipérbole para argumentar
a favor da internação do sujeito, o que é possível pela construção

134
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero do discurso desse sujeito lexicógrafo médico que é dispensado de
e a sexualidade justificar de forma pormenorizada, dado que o prestígio da profissão
lhe confere autoridade.

A PATOLOGIZAÇÃO DO FEMININO NO
DICCIONARIO DE MEDICINA POPULAR

SUMÁRIO Nesta seção, será mobilizada a noção de “patologização do


sofrimento feminino”, a partir de Duarte e Silva (2017, p. 2). Será
mobilizada também a própria noção de produção de patologias
ligadas ao mal estar psíquico, de que fala Furtado (2014, p. 173):
A medicina, especialmente o campo da psiquiatria, tem participado
da produção de patologias ligadas ao mal estar psíquico e da elabo-
ração das novas formas de busca pela felicidade, determinando as
práticas a serem seguidas pelos indivíduos para que mantenham
sua auto estima e autonomia. O bem estar desponta como recurso
estratégico para a otimização da saúde, da sociabilidade, da produti-
vidade, cujo discurso tem sido amplamente difundido na sociedade.

A noção de uma produção de patologias é interessante pois


desloca a doença de um lugar de imanência, como se o sujeito
fosse doente ou, no caso em análise, fosse imanentemente louco,
sem qualquer interferência do ideológico na própria produção da
loucura. Serão retomadas a seguir algumas das sequências discur-
sivas em que a questão da mulher é evidenciada.

SD2: Causas. O sexo feminino

A SD2 indica que a primeira causa possível para a loucura é que


o indivíduo ocupe o lugar de mulher em nossa sociedade. Portanto,
infere-se que toda mulher é potencialmente louca e passível de ser
alocada nesta doença produzida pela Clínica, podendo ser subme-
tida aos tratamentos descritos a seguir. Ao contrário do que ocorreu
com os asilos durante a ocupação predominantemente masculina

135
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero por conta das doenças venéreas, essa loucura, cuja primeira causa
e a sexualidade poderia ser o sexo feminino, é tratada por internação e alienação da
sociedade. Observe-se a SD3:

SD3: o temperamento nervoso, uma educação viciosa, o


celibato, as profissões que exigem um grande esforço de
espírito, que agitam fortemente põem em lida a vaidade, a
ambição etc.; as grandes revoluções políticas, a superstição,
os terroros religiosos, a saciedade de todos os gozos, os
SUMÁRIO excessos venereos, os licores fortes, a leitura dos romances
e dos maos livros, o ocio, a congestão cerebral, frequente,
são as causas que predispõem à loucura. Mas as causas
que a determinam ordinariamente consistem quasi todas nas
affecções moraes vivas ou contínuas, taes como a colera, o
susto, uma perda subita de fortuna, uma felicidade inespe-
rada, um pezar violento, os excessos de estudos, a ambição
malograda, o amor proprio humilhado, o ciume, os aconteci-
mentos políticos, os pezares domesticos, o amor contrariado,
o fanatismo, etc. [...]

Considerando-se, a partir da SD2, que a primeira causa é


o sexo feminino, então, os sintomas, presentes na SD3, também
refletem este aspecto. Serão destacados alguns que falam dos
discursos que circulavam sobre o sujeito que ocupa o lugar de
mulher e seus efeitos de sentido em um dicionário que fala de um
lugar de autoridade e da Medicina, um campo de controle dos
sujeitos. O sujeito que ocupa esse lugar de mulher é visto como
temperamental, incontrolável, quase uma força da natureza de alta
instabilidade. Estes sentidos comparecem em causas que estão
na SD3, tais como: o temperamento nervoso – ela deve ser dócil e
obediente; os licores fortes – neste ponto da história, ela deve ser
recatada e, caso consuma álcool, não deve se embriagar; a leitura
dos romances e dos maos livros – a educação e a leitura fora dos
padrões permitidos pela família, marido ou autoridade religiosa

136
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero podem levar à loucura; o ócio – embora não seja concedida a ela
e a sexualidade o papel de força produtiva na sociedade, ela não pode descuidar
dos serviços ou da coordenação dos serviços do lar; o ciume –
sentimento que é atribuído frequentemente a elas e que, portanto,
deve ser controlado; o amor contrariado – neste, inferimos que seria
quando o homem não tem seu amor correspondido e, então, a
mulher seria culpada por levar o homem à loucura.

Com base nas reflexões tecidas neste ensaio, a serem


SUMÁRIO desenvolvidas e aprofundadas em outros textos e na tese em
curso, seguem as considerações finais, que geram o efeito de
completude ao mesmo tempo desejável para os textos e inalcan-
çável pelos mesmos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste ensaio, foi analisado o verbete loucura no Diccionario de


Medicina Popular, de Napoleão Chernoviz. Observou-se a circulação
dos sentidos sobre a loucura neste verbete e o gesto de análise abriu
caminhos para a discussão da questão de gênero – em particular, do
sujeito que ocupa o lugar de mulher – naquela obra.

Dicionários posteriores mantêm algumas acepções, deslocam


ou apagam outras, como é do funcionamento destes instrumentos.
Entretanto, as questões sobre saúde mental e saúde de mulheres
cisgêneras e sujeitos dissidentes segue à margem, apagados ou
marcados por ditos pejorativos e patologizantes. Para compreender
este funcionamento, basta lembrar que estes instrumentos linguís-
ticos, conforme dito anteriormente, são produto de práticas dentro
de uma determinada conjuntura e uma atualização dos dizeres rela-
cionados a uma memória discursiva. Ou seja, ao mesmo tempo
estabelecem um certo saber a ser retomado posteriormente. Assim,
as obras posteriores terão marcas dos dizeres de 1890.
137
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A partir da circulação da noção de loucura vinculada à mulher,
e a sexualidade retorna-se à epígrafe deste texto no seguinte deslocamento: então,
na sociedade em que vivemos, como pode o sujeito que ocupa este
lugar de mulher não se despedaçar?

REFERÊNCIAS

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Editora da Unicamp, 2009 [1992].

BLUTEAU, R. Vocabulario Portuguez e Latino. Lisboa: Colégio das Artes da


Companhia de Jesus, 1712-1728.

CHERNOVIZ, P.L.N. Dicionário de medicina popular. 6. ed. Paris: A. Roger


& F. Chernoviz, 1890.

DUARTE E SILVA, M. “Medicalização e patologização do amor e do gênero


feminino”. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s
Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017.

FIGUEIREDO, C. Nôvo Diccionário da Língua Portuguêsa. Lisboa: Livraria


Editôra Tavares Cardoso & Irmão, 1899.

FREIRE, L. Grande e Novíssimo Diccionário da Língua Portuguesa. 5 vols.


Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1957.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2008


[1971].

FOUCAULT, M. História da Loucura. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014


[1972].

FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Forense Universitária. 1994


[1980].

FURTADO, M.A. O lugar do sofrimento na cultura contemporânea:


patologização do mal estar e medicalização da vida. Tese de Doutorado.
Rio de Janeiro: UFRJ: 2014.

GUIMARÃES, M.R.C. Civilizando as artes de curar: Chernoviz e os manuais

138
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero de medicina popular no Império. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro:
e a sexualidade Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2003.

GUIMARÃES, M.R.C. “Chernoviz e os manuais de medicina popular no


Império”. In: História, Ciências, Saúde, v. 12, n. 2, mai-ago, 2005.

NUNES, J.H. “Discurso lexicográfico: as reedições do dicionário da língua


portuguesa de Morais” In: Alfa, São Paulo, 47(1): 37-51, 2003.

NUNES, J.H. “A invenção do dicionário brasileiro: transferência


tecnológica, discurso literário e sociedade”. In: Revista argentina de
historiografia linguística, 2013.
SUMÁRIO
ORLANDI, Eni. Terra à vista! Discurso do confronto: velho e o novo mundo.
São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 3. ed. Trad. de Eni


P. Orlandi. Campinas-SP: Pontes, 1999.

139
DISCURSO, SEXUALIDADE E VIOLÊNCIA: ENTRE
A “MULHER DIREITA” E A “VADIA” - ANÁLISE DA
Discurso,
CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA sexualidade
SEXUAL EM POSTS NO FACEBOOK.
e violência:
Ana Cecília Trindade Rebelo entre a “mulher
direita” e a “vadia” -
análise da
culpabilização
da vítima de
violência sexual
em posts
no Facebook
Ana Cecília Trindade Rebelo

DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.140-162
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero INTRODUÇÃO
e a sexualidade

A rede social Facebook pode ser considerada como um palco


de embate entre discursos antagônicos, no qual se poderia observar
uma disputa de sentidos28 acerca de questões que circulam na
sociedade em nossos dias, assim como palco de alianças e filiação
entre discursos que trazem dizeres consonantes sobre tais ques-
tões, discursos esses que buscariam ressonância de seus efeitos
SUMÁRIO de sentido.

Um exemplo de tais movimentos de disputas e alianças pode


ser observado nas postagens e comentários que narram situações
de violência contra o corpo feminino, especificamente em casos
de violência sexual (recorte do presente capítulo). Em tais posta-
gens e comentários, é possível perceber tanto o embate sobre o
que poderia ser considerado ou não violência sexual e sobre como
é construída a imagem do sujeito mulher que passa por tais situ-
ações (se é tratada como vítima, como responsável pelo que lhe
aconteceu, como sujeito com direito à voz e à contestação do que
lhe aconteceu, ou como somente um corpo que é regrado por seu
exterior, sem voz e sem dizeres sobre o que vivencia em sociedade),
quanto a quais redes de sentidos os diferentes dizeres são entre-
laçados, tendo assim redes conservadoras, tradicionais, cristãs,
patriarcais, machistas, capitalistas – vendo aí o valor de mercado
do corpo feminino e as lutas de classes que permeiam discussões
sobre esse corpo – e os deslocamentos, falhas, e rupturas nessas
redes que poderiam apontar para sentidos outros.

28. Sentido, termo que no presente artigo é recorrente, é tomado aqui como “além de linguís-
tico, [...] social, e, por conseguinte, o centro organizador do domínio nocional, além de semân-
tico, também é ideológico, selecionando certos efeitos de sentido relacionados a um termo e
excluindo outros, de modo que um mesmo termo pode ocorrer em domínios nacionais ideo-
logicamente diferentes, produzindo efeitos de sentido divergentes, instaurando a interincom-
preensão, que consiste em usar a mesma língua, partilhar o mesmo tema, mas não o mesmo
sentido.” (INDURSKY, 2013, p.32, grifo da autora).

141
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Para observar tais movimentos, tomamos como ponto de
e a sexualidade partida para a pesquisa e constituição do corpus as hashtags
utilizadas nas postagens recortadas. As hashtags são usadas
em redes sociais como Twitter, Facebook e Instagram para identi-
ficar mensagens e/ou fotos relacionadas a um tópico específico,
sendo compostas pelas palavras-chaves do assunto antecedida
pelo símbolo #. Elas funcionam como indexadores para facilitar
buscas por uma informação específica dentro da rede. Nos últimos
anos, pode-se observar a intensificação de movimentos de utili-
SUMÁRIO zação de tais indexadores para trazer à esfera de discussão pública
a busca pela conscientização sobre o problema da violência contra
mulheres a partir de narrativas normalmente mantidas na esfera
privada, marcadas por chamadas como #precisamosfalarsobreas-
sedio, #meuamigosecreto e #abusosexual, entre outras. 

Para o presente capítulo, que por si só já é um recorte de uma


pesquisa de doutorado em andamento, recortamos uma postagem
(doravante denominada postagem originária, ou PO) no Facebook
que se utiliza especificamente da hashtag #abusosexual, assim
como comentários em resposta a tal postagem, todos (postagem
originária e comentários) do ano de 2016, para compor nosso corpus
de análise. Tomamos como bases teóricas a Análise do Discurso
Materialista (de acordo com Pêcheux e Orlandi, principalmente, e
doravante AD), da qual Indursky (2013) nos traz a noção de não
pessoa discursiva, e as Teorias Enunciativas, da qual Benveniste
(1991) nos apresenta a noção de não pessoa verbal. Propomos
um caminho entre essas duas noções, observando os movimentos
de disputa de sentidos sobre o tópico estupro, assim como tais
movimentos constroem imagens opostas de um sujeito mulher que
poderia ser considerada “mulher direita”, considerando que esta –
entre outras denominações desse sujeito mulher – produz efeitos
de sentido de que esse sujeito não sofreria tal tipo de violência,
pois sua conduta não abriria brechas para isso (e sofrendo, poderia
talvez ser considerada vítima) e de um sujeito mulher “vadia” (com

142
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero produção de efeitos de sentido similares a outras denominações
e a sexualidade circulantes na sociedade de que tal sujeito, por sua conduta, atraiu
para si a violência sofrida, ou seja, seria culpada de sua má sorte).
Percebe-se como nesses movimentos constrói-se uma imagem de
“ela” como não pessoa, que é trazida ao dizer e nele enunciada,
mas que não necessariamente tem a possibilidade de ser alçada
à posição de pessoa discursiva. Denominamos tal imagem como
não-sujeito, categoria que seria facilmente apagada e silenciada do/
no discurso. Não sendo sujeito de direito, o que acontece a essa
SUMÁRIO mulher não seria imputável moralmente e/ou juridicamente, um
não-ato (não haveria violência nem estupro). Propomos assim uma
reflexão sobre as condições de existência de um sujeito mulher em
nossa sociedade atual, considerando as forças em disputas e as
alianças que sobre tal (não-)sujeito atuam.

PROBLEMA

Tomamos as postagens que tratam de violência sexual come-


tida (ou não, tendo em vista a disputa de sentidos observada) contra
mulheres como recorte a ser analisado. O problema a ser traba-
lhado é a questão do processo de descaracterização da mulher que
sofre violência sexual ao um ponto desse sujeito mulher tornar-se
uma não pessoa discursiva, talvez mesmo um efeito de não-sujeito
(no nível ideológico), através da desqualificação do ato de violência
sofrido que passa pela culpabilização desse (não-)sujeito em cons-
truções do tipo “Mas ela fez por merecer porque fez x, y, z”, “Na
hora ela não reclamou”, “Ela estava gostando”, entre outras, e/ou
a relativização do ato em construções do tipo “As coisas são assim
mesmo”, “É assim que funciona/ que se trata uma mulher”, de forma
que esse “não-sujeito” se reduziria, então, a um corpo, que seria
tomado como objeto, algo do qual se pode dispor de acordo com

143
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero a vontade de quem usa ou de acordo com normas sociais de uso,
e a sexualidade disposição e controle do mesmo.

JUSTIFICATIVA

Retomando Indursky (2013), “[m]uitos poderão indagar o que


determinou a escolha de meu tema. Para responder, direi que, em
SUMÁRIO face da tarefa acadêmica, pareceu-me que ela seria mais leve, caso
fosse fruto do prazer.” (INDURSKY, 2013, p. 13). Em nosso caso, não
é de longe fruto de prazer. Pelo contrário, é visceral, fruto de muito
incômodo e dor, reconhecendo aqui todas as implicações da autora
em seu texto. “Lembrar, nesse caso, é a condição do dizer”, também
nos diz Indursky (2013, p. 15). Considerando nossas implicações e
sua importância, encaramos esse lembrar e dizer como necessários
e fundamentais para trazer uma discussão sobre o corpo feminino e
o que se faz dele – como ele é normatizado, controlado, dominado
– assim como para buscar denunciar as condições de opressão
das mulheres em nossa sociedade, e quem sabe, talvez, possibilitar
que outros sentidos sejam produzidos. Pode-se perceber, por traba-
lhos que tratam do tema, mesmo que tangencialmente, como e nos
próprios movimentos de mobilização e discussão em redes sociais,
que o mesmo é pertinente e atual, e ao mesmo tempo, que não está
esgotado (se é que haveria essa possibilidade de algum dia o ser),
e que é preciso que seja trazido à cena de debate e reflexão cada
vez mais. Isso porque, de acordo com Souza e Adesse (2005),
[o]s estudos e as políticas públicas voltadas para a violência
sexual são recentes e escassas. Esta lacuna é significativa, tanto
no contexto da mobilização nacional contra a violência doméstica,
como no que se sabe sobre iniciativas voltadas para a questão e
a produção de conhecimento no país – sobretudo se comparada
à produção no exterior. Isto revela uma dificuldade inicial de se
trabalhar com as dimensões mais problemáticas da sexualidade,
possivelmente em função da nossa cultura e socialização sexual.
(SOUZA, ADESSE, 2005, p. 19)

144
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero De tal citação tiramos a pretensão de que o presente capí-
e a sexualidade tulo e, principalmente, a tese do qual faz parte possam de alguma
maneira colaborar para o aprofundamento da discussão e reflexão
sobre o corpo feminino, as formas de violência que atuam sobre
ele, e as condições de existência de um sujeito mulher em nossa
sociedade atual.

De todo o exposto, costuramos nossa justificativa de


pesquisa à de Indursky (2013, p.13), chegando ao que nos impul-
SUMÁRIO sionou: a necessidade pessoal de rever uma prática social com o
intuito de iluminar as práticas discursivas a estas relacionadas para
melhor realizar o ritual de fechamento de um ciclo de vida. Gestos
analíticos, gestos de leitura, gestos de interpretação que exorcizam
a memória de tal prática social.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para tornar possível um diálogo entre as concepções de não


pessoa – verbal, em Benveniste (1991), e discursiva, em Indursky
(2013), para assim poder chegar à noção de não-sujeito – faz-se
necessário marcar o reconhecimento de que os primeiros estão em
domínios de conhecimento distintos, mas que podem estabelecer
conexões e assim se aproximar. Reconhecemos, portanto, que a
concepção de subjetividade em Benveniste é distinta da que traba-
lhamos, já que ele a compreende como
a capacidade do locutor para se propor como “sujeito” [...] a unidade
psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que
reúne, e que assegura a permanência da consciência [...] a emer-
gência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem. É
“ego” que diz ego. Encontramos aí o fundamento da “subjetividade”
que se determina pelo status linguístico da “pessoa”. (BENVENISTE,
1991, p. 286, grifos do autor)

145
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Esse locutor se faz sujeito em Benveniste, sendo, dessa
e a sexualidade forma, “um sujeito muito forte, portador soberano e consciente de
intenções e responsável por suas decisões e seu dizer.” (INDURSKY,
2013, p. 35). Como entendemos em AD, o ser “responsável por suas
decisões e seu dizer” (idem),o ser sujeito centrado e origem de seu
dizer, é um efeito de sentido, ocorrendo quando o indivíduo é inter-
pelado em sujeito pela ideologia, que é desde sempre um processo
de assujeitamento. O assujeitamento é entendido, aqui, como
acontecendo através da língua, com o entrar do indivíduo no mundo
SUMÁRIO como sujeito discursivo a partir do momento em que ele responde à
interpelação da ideologia através da língua, em um ritual visto como
sem falhas, como uma “fantasia da totalidade” (MALDIDIER, 2011,
p. 53-54), no qual o sujeito não se percebe assujeitado à ideologia,
e assim se vê como dono de seu dizer e origem do seu sentido.

Isso posto, é um ponto de partida interessante para a questão


apresentada na seção Problema do presente artigo a colocação de
Benveniste (1991) sobre a não-homogeneidade entre as pessoas
verbais, ao contrário do que se poderia acreditar a partir somente
de sua nomenclatura. Entende-se de tal afirmação que existe uma
hierarquia entre as pessoas verbais: o eu (“aquele que fala”) e o tu
(“aquele a quem nos dirigimos”) estão em uma posição distinta do
ele (“aquele que está ausente”) (cf. BENVENISTE, 1991, p. 250),
de tal forma que o autor afirma que a terceira pessoa não é uma
pessoa, “é inclusive a forma verbal que tem por função exprimir a
não-pessoa” (idem, p. 251). Isso porque, ainda segundo o autor:
De fato, uma característica das pessoas “eu” e “tu” é a sua unici-
dade específica: o “eu” que enuncia, o “tu” ao qual “eu” se dirige são
cada vez únicos. “Ele”, porém, pode ser uma infinidade de sujeitos
– ou nenhum. [...] Nenhuma relação paralela é possível entre uma
dessas pessoas e “ele”, uma vez que “ele” em si não designa espe-
cificamente nada nem ninguém. (BENVENISTE, 1991, p. 253, grifo
do autor)

Sendo uma não pessoa, e, assim, não implicando nenhuma


pessoa em específico, “pode tomar qualquer sujeito ou não
146
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero comportar nenhum, e esse sujeito, expresso ou não, nunca é
e a sexualidade proposto como ‘pessoa’.” (BENVENISTE, 1991, p. 253). É nesse
ponto, o de não ser proposto como pessoa, que essa conceituação
nos interessa: o uso da não pessoa verbal, por trazer a possibilidade
de, através do uso da não pessoa verbal, diminuir e até mesmo
anular quem é referido por “ele/ela”, já que
Ele (ou ela) pode servir de forma de alocução em face de alguém que
está presente29 quando se quer subtraí-lo à esfera pessoal do “tu”
(“vós”). [...] em testemunho de menosprezo, para rebaixar aquele
SUMÁRIO que não merece nem mesmo que alguém se dirija “pessoalmente”
a ele. Da sua função de forma não pessoal, a “terceira pessoa” tira
essa capacidade de se tornar [...] uma forma de ultraje que pode
anulá-la como pessoa. (BENVENISTE, 1991, p. 254, grifo do autor)

É, então, a partir dessa capacidade do uso da não pessoa de


anulação como pessoa a quem se refere no dizer que deslizaremos
para uma concepção de mulher que sofre de algum tipo de violência
– no caso, algum tipo de violência sexual – como uma não pessoa
discursiva, até mesmo um efeito de não-sujeito, que, sendo referido
como “ela”, preencheria uma posição sujeito30 “ninguém”, e dessa
forma, sendo construída como inferior, sem voz, no limite de se
tornar um puro objeto – ou seja, sendo (quase) reduzida a um corpo
feminino tomado como objeto da sociedade.

Para isso, no entanto, é necessário dar um passo atrás e trazer


a concepção da pessoa “nós” em Benveniste (1991), para assim
poder apresentar como esse “nós” é concebido em Indursky (2013),
e somente então deslizar no entremeio dessas duas concepções.

A partir da conceituação de Benveniste (1991) da pessoa


verbal plural em línguas indo-europeias – a “pessoa amplificada”

29. Presente aqui entendido como sendo no empírico, pois no discurso, há um efeito de distan-
ciamento, de apagamento – ou seja, de ausência.
30. Entendido aqui como as diferentes posições que podem ser ocupados pelo sujeito discur-
sivo, ou seja, entendido não como “uma forma de subjetividade, mas (…) a posição que deve e
pode ocupar todo indivíduo para ser sujeito do que diz” (ORLANDI, 2013, p.49).

147
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero (BENVENISTE, 1991) –, podemos entender o “nós” como proteção
e a sexualidade de face ao “eu”, como forma de não-responsabilização do dizer,
já que
Esse “nós” é algo diferente de uma junção de elementos definíveis;
a predominância de “eu” é aí muito forte, a tal ponto que, em certas
condições, esse plural pode substituir o singular. A razão está em
que “nós” não é um “eu” quantificado e multiplicado, é um “eu”
dilatado além da pessoa estrita, ao mesmo tempo acrescido e de
contornos vagos. [...] De outro lado, o emprego de “nós” atenua a
afirmação muito marcada de “eu” numa expressão mais ampla e
difusa [...] expressões nas quais se misturam a necessidade de dar
SUMÁRIO a “nós” uma compreensão indefinida e a afirmação voluntariamente
vaga de um “eu” prudentemente generalizado. (BENVENISTE, 1991,
p. 257-258, grifo do autor)

E ao mesmo tempo, o “nós” pode ser entendido como forma


de pertencimento a um conjunto maior, no qual esse “eu-nós” teria
ressonância de seu dizer, visto que
É a própria não-pessoa que, estendida e ilimitada pela sua
expressão, exprime o conjunto indefinido dos seres não pessoais.
Tanto no verbo quanto no pronome pessoal, o plural é fator de ilimi-
tação, não de multiplicação. (BENVENISTE, 1991, p. 258)

Indursky (2013) concorda com essa concepção de “nós”


como “eu” ampliado, “que possibilita ao enunciador integrar outros
enunciadores ao seu dizer” (INDURSKY, 2013, p. 83), e que possi-
bilita que ao locutor possa “associar-se a referentes variados, sem
especificá-los linguisticamente, daí decorrendo a ambiguidade de
seu dizer” (p. 83)(idem). Há, porém, uma diferença entre Benveniste
e Indursky, e isso quanto à conceituação, ao entendimento da cate-
goria de não pessoa. Enquanto que, para Benveniste, a não pessoa
é verbal, e representada/preenchida pela terceira pessoa verbal
(ele/ela), para Indursky, a não pessoa é discursiva, e representada/
preenchida pelo “nós”, isso porque

148
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Dado que nós designa conjuntos lexicalmente não nomeados, nós
e a sexualidade os entendemos como uma não pessoa discursiva. Ou seja, na inter-
locução discursiva, a não pessoa discursiva corresponde ao refe-
rente lexicalmente não especificado ao qual eu se associa para
constituir nós. (INDURSKY, 2013, p. 83, grifos da autora)

Estaremos aqui em “movências” e deslizamentos entre essas


duas concepções de não pessoa, a verbal e a discursiva, conside-
rando, em nosso corpus, o “ela”31 como essa marca linguística-dis-
cursiva que apontaria tanto para uma não pessoa verbal quanto para
uma não pessoa discursiva e, analisando as disputas de sentido
SUMÁRIO
entre a (não) responsabilização/culpabilização do sujeito mulher
que sofre(u)/teria sofrido uma violência sexual e o (não) reconheci-
mento de um ato cometido com esse corpo32 como sendo um ato de
violência. Mais ainda, o “ela” poderia ser visto como (quase) sendo
reduzido a um não-sujeito, e assim tornando-se (quase) um objeto –
uma coisa, algo a ser usado e normatizado.

METODOLOGIA

Tomamos como limite de corte metodológico para a cons-


tituição do corpus empírico o ano de 2016, por ser um marco de
uma década após a promulgação da Lei Maria da Penha (em
2006), que consideramos então como sendo um acontecimento
histórico e discursivo, na medida em que torna possível trazer à
cena discursiva a discussão acerca do que é ou não violência

31. Trabalharemos com “ela” dentro da possibilidade “ele/ela” para marcar que estamos focando
aqui em um sujeito mulher, e em particular um sujeito mulher que é posta no palco dos embates
de sentidos como sendo alvo de disputas entre ser vítima ou culpada pelo que acontece com
seu corpo, ou entre ser reconhecido ou não que algo de errado foi feito desse/com esse corpo.
32. Aqui, recorremos à preposição “com” para não partir de um pressuposto que a preposição
“contra” sugeriria – ainda que, como sujeito empírico, nas relações sociais, encaremos, sim, os
atos que percorrem as narrativas do corpus como sendo atos contra o corpo feminino e reconhe-
çamos, assim, nossas implicações no texto.

149
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero contra o corpo feminino, especialmente nas redes sociais, que
e a sexualidade tomamos como palco frutífero para assistir a disputas de sentidos
nesse campo de discussão.

Decidimos separar a discussão em três eixos temáticos:


1) cantada x assédio sexual, 2) sexo difícil x estupro (aqui, “sexo
difícil” é entendido como aquele que “dá trabalho” ao homem para
concretizar o ato devido a algum tipo de resistência da mulher para
“se fazer de difícil”, e a “resistência” não é entendida como uma
SUMÁRIO negativa da mulher ao ato sexual, que o qualificaria então como
estupro), e 3) briga de marido e mulher (na qual “ninguém mete a
colher”) x violência doméstica (crime que deveria ser reportado). A
partir desses eixos temáticos e utilizando os termos à direita das três
oposições – a saber: assédio sexual, estupro e violência doméstica
– como hashtags (ou seja, como indexadores de pesquisa dentro
do site Facebook), observamos quais outras hashtags estão asso-
ciadas a tais eixos, encontrando uma vasta quantidade de ocorrên-
cias diversas, como as mencionadas na introdução do capítulo.

O próximo passo foi a seleção, a partir do resultado da


pesquisa descrita acima, das postagens que consideramos mais
produtivas para nosso trabalho. Essa etapa realizada, passamos
para a próxima, na qual, por questões de preservação da imagem
dos sujeitos empíricos que fizeram tais postagens/comentários,
assim como questões éticas de pesquisa, decidimos remover
tanto as imagens de perfil quanto os nomes constantes de cada
comentário, substituindo-os por Cn (Comentário número), tendo
assim C1, C2, etc. Mais ainda, como alguns comentários são
respostas postadas dentro de um comentário anterior, conforme o
diagrama a seguir (no qual o balão indica a postagem originária),
tais comentários são denominados Cn.n, tendo assim C1.1, C1.2,

150
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero etc., e quando necessário, Cn.n.n, configurando então uma árvore
e a sexualidade de muitos galhos do qual a postagem originária seria o tronco33.

C1. 1
C1
C1. 2
C2. 1
C2
C2. 2
C3. 1
C3
C3. 2
Cn. n
Cn
Cn. n. n
SUMÁRIO
Figura 1 - Diagrama da estruturação de postagens e comentários

ANÁLISE

Para o presente capítulo, como apontado na introdução,


trabalharemos a questão da violência sexual, em suas nuances
de denominação de “abuso sexual” e “estupro”, e as disputas de
sentido de ser ou não um crime em relatos de tais atos relacio-
nadas a tais atos serem ou não crimes, que se encontram inter-
ligadas com as disputas de sentido entre se ter uma vítima e se
ter alguém responsável pelo ato que sofre(u). Selecionamos aqui
a hashtag #abusosexual dentre as recortadas para comporem o
corpus empírico de nossa tese e analisaremos somente os comen-
tários enviados em resposta a uma postagem contendo tal hashtag.

33. Caberia nessa seção o questionamento da razão de se realizar as análises de uma forma que
poderia ser considerada linear (um comentário após o outro), considerando que a montagem de
um corpus discursivo envolveria a decomposição de um corpus empírico e sua recomposição
visando ao discursivo, que não necessariamente seria de uma forma linear. Defendemos, no
entanto, que a organização dos dizeres no fio discursivo de uma postagem (com seus comen-
tários) se apresenta linear aos olhos, mas, como apontamos na imagem da árvore no parágrafo
anterior, o que se tem são idas e vindas de dizer X e responder a X – e talvez nem mesmo a
imagem de uma árvore frondosa seja a melhor das construções, ficando possivelmente mais
compreensível a imagem de uma planta trepadeira, na qual não se identifica com clareza o fim
nem o começo, já que seus galhos estão relacionados entre si em um emaranhado.

151
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Começaremos, pois, pela apresentação da postagem origi-
e a sexualidade nária e de seus comentários, a seguir35:
34

PO A “cena da manteiga” não é arte, é crime: Admissão de que


houve estupro real em ‘O Último Tango em Paris revolta Hollywood.
Saiba mais [...]: http://bit.ly/2h1LHcd #Hollywood #Cinema
#Abusosexual36

C1 Filmes brasileiros são uns que mais tem cenas de extremo mal
gosto, pra dizer o mínimo, no que concerne à sexo. Dá pra contar
nos dedos os poucos filmes brasileiros que tem bom conteúdo e se
abstém de cenas nojentas ou totalmente despudoradas.
SUMÁRIO C1.1 Se feita com consenso só é de mau gosto, mas no caso em
questão é só crime.

C1.2 Mau gosto ou crime ambos deveriam ser banidos. Deixem isso


para quem quer ver pornô. Tantas coisas mais veladas e bonitas
pra se mostrar de um relacionamento mas parece que só querem
mostrar um bacanal.

C1.3 Mau gosto é mau gosto. Estupro é estupro.

C1.4 Não estou tentando diminuir o absurdo que aconteceu, só


acho que esse outro lado também é ruim... só isso. Não é neces-
sário degradar a imagem da mulher, por mais que seja "só" uma
questão de mau gosto.

C1.5 C1, maU gosto pra um, pode ser bom gosto pro outro. Gosto é
subjetivo. Eu detesto a Vovozona. Tem gente que adora. Mas crime
é crime, não tem a ver com gosto subjetivo.

C2 Toda a elite de Hollywood é satânica pô, vocês acham que eles


estão tristes, eles estão achando o máximo todas essas imorali-
dades sexuais, é difícil entender isso?

C2.1 Verdade. Em Hollywood se não houver coisas nojentas em um


filme ele nunca ganhará um oscar.

34. Em formato textual, sem a estruturação típica de postagens no Facebook, por questões de
restrição de extensão do texto.
35. Vale ressaltar que as postagens e comentários aqui apresentados o são da maneira que foram
postados originalmente, em termos de construções sintáticas, escolhas lexicais e ortografia.
36. Postada na rede social Facebook originalmente em 06 de dezembro de 2016.

152
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero C3 Quanto mi mi mi besta por causa de um filme passado há
e a sexualidade décadas e agora essa merda toda. Que estupro? Como estupro se
foi fictício, uma cena de atores profissionais?

C3.1 Estupro que a vítima falou por anos mas ninguém acreditava


pq sempre culpam as pessoas erradas, que nem você está fazendo
agora. Mas ela teve que morrer e o criminoso admitir o crime com
orgulho pro povo acreditar. Não foi atuação nem ficção. Ela foi estu-
prada e o estupro passa na tv pra quem quiser ver. Se você ler a
história, entende.

C3.1.1 C3.1 pelo que li ninguém admitiu o estupro....

SUMÁRIO C4 Antes tarde do que nunca, o repúdio é necessário para que não
ocorra mais crimes. Sentimento de revolta e nojo!

C5 Eu ví a cena, ela interpretou muito bem, não entendi pq não saiu
do personagem, já que, tratava-se de estupro !!!

C5.1 isso que percebi....curioso

C5.2 Pensei a mesma coisa, C5!

C5.3 Pq quando acontece um estupro, a vítima nunca é protegida


depois. Inclusive é questionada sobre o crime e acusada de viti-
mismo. Sempre. A atriz era nova e não entendeu direito o que estava
acontecendo, pq as pessoas ainda acham que estupro é só quando
um cara desconhecido pega uma vítima em um beco escuro e a
estupra, sendo que existem diversas formas de estupro, como a em
questãom

C5.4 Ela se sentiu mal e disse ao agente mas, imagina ninguém deu


ouvidos, se hoje denunciar é difícil imagina naquela época. Basta ver
a entrevista ela não interpretou estava assustada!

C5.5 O que voce faria se tivesse, apenas 19 anos em 1972, e sendo


este o seu primeiro trabalho ? Palavras da própria Maria Shneider
-> Schneider conta que se sentiu humilhada pela cena na qual ela
foi estuprada de verdade por Marlon Brando, pois uma cena que
envolvia sexo não estava no roteiro e foi proposta por Brando.
“Quando me falaram da cena, eu tive uma explosão de raiva. Eu
joguei tudo que estava à minha volta. Ninguém pode forçar alguém
a fazer algo que não está no script. Mas eu não sabia isso. Eu era
muito jovem. Então, eu fiz a cena e chorei. Minhas lágrimas em cena
eram verdadeiras.”

C5.6 Não acredito que foi estuprada...

153
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero C5.7 Uma pessoa de "apenas 19 anos" sabe o que tá acontecendo
e a sexualidade quando tem o seu anus penetrado por um penis. Ela consentiu, não
há qualquer manifestação de descontentamento.

C6 Mas o estupro não estava no roteiro? o_O

C6.1 Não. Foi combinado apenas entre o Bertolucci e o Brando.


Ligaram a câmera e foi.

C7 - Houve consentimento? - Não! - Então esta errado, é crime.

C8 Baboseira. Não tem nada demais na ceda. Por sinal fraquíssima! 

SUMÁRIO C9 Não houve penetração, mas pelo atual conceito da legislação


de alguns países seria caracterizado estupro. Ainda sim, qual é o
objetivo de se trazer uma questão de 40 anos, em que a vítima e
o agressor já faleceram? Ah... danos morais para a família. Neste
ponto deveríamos considerar a cena, que foi protagonizada com o
consentimento da atriz de 19 anos, maior de idade, ou a capitali-
zação da família sobre a imagem de uma parente falecida?

C9.1 Deve ser discutida e devidamente julgada pra que as pessoas


parem de achar esse tipo de crime normal

C10 Não houve estupro real. O que aconteceu foi que nem o


diretor nem o Marlon Brando informaram pra ela que fariam a
cena de "estupro". Ela não sabia, foi forçada durante a cena, mas
não foi estuprada de verdade. Foi uma violência, mas não foi um
estupro. [PO] deveria se informar um pouco melhor antes de postar
uma coisa grave dessas!

C11 Eu já assistir esse filme... muito nojento faltar respeito com


atriz estava chorando... Coitada jovem atriz de 19 anos sem infor-
mações seus direitos.. tevê fazer cenas com ator Velho nojento e
seboso de 48 anos (Marlon brando)..filme horrível coitada atriz(Maria
Schneider) tevê fazer cena sem está no roteiro por quanta dire-
tor(Bernardo)q obrigou ela fazer cenas de sexo usando manteiga
como lubrificate ..coitadinha atriz após filme tevê depressão e várias
tentativas suicidas... 

C12 Povo exagerado. Bertolucci já explicou no passado e teve que


explicar novamente. A atriz sabia de tudo, menos da manteiga. http://
g1.globo.com/.../ultimo-tango-em-paris-bertolucci...

Por uma questão de organização visual, apresentamos na


próxima página uma tabela com a postagem original e os comentá-
rios organizados por posicionamento discursivo, a saber:

154
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade “Não foi estupro” “Foi estupro” “Foi mau gosto” / “É assim que as coisas
“Foi desnecessário” são” / “Faz parte”/
“É necessário”
C3 C1.1 C1 C2
C3.1.1 C1.3 C1.2 C2.1
C5 C1.5 C1.4
C5.1 C3.1 C11
C5.2 C4

SUMÁRIO C5.6 C5.3


C5.7 C5.4
C6 C5.5
C8 C6.1
C9 C7
C10 C9.1
C12

Tabela 1 - Posicionamentos discursivos em relação à “cena da manteiga”

Começamos a análise pela primeira coluna da Tabela 1 (“Não


foi estupro”). Nesse conjunto, podemos agrupar os comentários
em quatro subconjuntos, a saber: 1) “É mimimi”; 2) “Levanto uma
dúvida quanto ao fato de ser ou não estupro”; 3) “A culpa é dela”; 4)
“Sexo forçado é diferente de estupro”.

No subconjunto 1, “É mimimi”, temos os comentários C3,


C8 e C12. Nos três comentários, temos a expressão “mimimi” (ou
variações que remetem ao termo, como “baboseira”, em C8, e “povo
exagerado”, em C12, utilizada tanto nas redes sociais quanto fora
delas para diminuir a relevância e importância do dizer de outrem.
Um jogo de sentidos possível ao qualificar algo como “mimimi”,
é entre o que é aceitável e o que não é, pois, como dissemos,
“mimimi”, ao ser utilizado para desqualificar a narrativa do outro,
delimita também o que seria “aceitável” a ser publicado em redes
sociais e o que não deveria ser postado – o “inaceitável”, a “perda
de tempo”.
155
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero No subconjunto 2, “Levanto uma dúvida quanto ao fato de
e a sexualidade ser ou não estupro”, que comporta os comentários C3.1.1, C5.6, C6
e C9, temos questionamentos acerca da acusação, de diferentes
formas. Em C3.1.1, “pelo que li ninguém admitiu o estupro”, essa
não pessoa “ninguém” poderia ser ocupada pelo ator, pelo diretor,
por membros da produção, mas não pela atriz, que se pronunciou
quanto ao caso dizendo que sim, foi forçada ao ato – como nos
diz C5.5 – ou seja, nesse caso, “ninguém” tem mais poder de fala,
ou efeito de sentido de trazer a verdade, do que “ela” (a atriz). Em
SUMÁRIO C5.6, temos a dúvida posta pela construção desse sujeito “eu” que
baliza o que é ou não verdade à sua volta: “Não acredito que foi
estuprada...”, ou seja, “(Eu) não acredito que foi estuprada” > Se
eu não acredito, não aconteceu, não é verdade > Não foi estupro”.
Em C6, temos uma construção que remete ao “Não é crime, é arte”,
ao colocar o questionamento de que o estupro, estando escrito
no roteiro, e assim combinado, não poderia passar à categoria de
“prática de sexo forçado/ não-consensual”, ficando só na cate-
goria “representação artística de uma prática social” (com efeito
de sentido de “Se pode na realidade...pode na ficção”). Já em C9,
tem-se o questionamento do motivo da acusação ser discutida no
presente, levantando suspeitas de um interesse monetário na explo-
ração do caso, diminuindo assim o peso do ato “estupro”, e dessa
forma refutando-o.

No subconjunto 3, “A culpa é dela”, contendo os comentá-


rios C5, C5.1, C5.2 e C5.7, temos a desqualificação do ato como
sendo estupro pela culpabilização do “ela”, por sua “boa interpre-
tação”, em um movimento de “Ela fez uma boa cena > Ela não saiu
do personagem > Ela não demonstrou dor ou desconforto > Se
não demonstrou nenhuma reação negativa, ela consentiu > Não
foi estupro”, que remetem a formulações do tipo “Na hora ela não
reclamou / Na hora ela gostou”, que podem ser encontradas em
outras narrativas de violência sexual contra o corpo feminino.

156
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Por fim, no subconjunto 4, “Sexo forçado é diferente de
e a sexualidade estupro”, que comporta o comentário C10, vê-se a contradição
que surge entre um ato de “sexo forçado” ser considerado ou não
estupro. Retomamos, primeiramente, uma definição de estupro,
segundo o Código Penal Brasileiro, a seguir:
O estupro é definido pelo artigo 213 do Código Penal como “cons-
tranger à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”.
Entende-se por ‘conjunção carnal’ o coito vaginal, completo ou não,
com ou sem ejaculação. A “violência ou grave ameaça” consiste no
emprego ou não de força física capaz de impedir a resistência da
SUMÁRIO vítima. (SOUZA, ADESSE, 2005, p. 21, grifos nossos)

Retomamos, agora, o comentário C12: “Não houve estupro


real. O que aconteceu foi que nem o diretor nem o Marlon Brando
informaram pra ela que fariam a cena de ‘“estupro”’. Ela não sabia,
foi forçada durante a cena, mas não foi estuprada de verdade. Foi
uma violência, mas não foi um estupro. [PO] deveria se informar um
pouco melhor antes de postar uma coisa grave dessas!”

Sublinhamos no comentário os dizeres que apontam para


essa contradição entre o que a lei diz sobre estupro e o que muitas
vezes se entende como “sexo forçado” – aquele no qual a mulher
oferece resistência ao ato, ainda que mínima. Ou seja, o sujeito-
comentador37 refuta o ato como tendo sido estupro utilizando
argumentos que, de acordo com o jurídico, caracterizam o ato
como estupro. Mais ainda, o sujeito-comentador remete ao âmbito
jurídico para chamar a atenção sobre uma “falta de informação” do
sujeito-comentador da PO, quanto a uma “propagação de notícia
falsa/errônea”, considerada “coisa grave”, que poderia desvelar
para o terreno da calúnia e difamação.

Passando para segunda coluna da tabela (“Foi estupro”),


também podemos delimitar subconjuntos em seu interior, a saber:

37. Termo utilizado para se referir ao sujeito que materializa seu discurso nas postagens no
Facebook.

157
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero 1) Posição própria; 2) Resposta por rebate; 3) Resposta por
e a sexualidade explicação.

O subconjunto 1, Posição própria, contém o comentário C4, e


nele não há um movimento de resposta a um comentário/postagem
anterior, e sim a definição direta da posição do sujeito-comentador
quanto ao caso: “Não é arte, é crime”.

O subconjunto 2, Resposta por rebate, que contém os comen-


tários C1.1, C1.3 e C7, coloca sua posição sobre o caso e rebate
SUMÁRIO posições contrárias de forma direta e objetiva, como podemos ver
em C1.1 (“Se feita com consenso só é de mau gosto, mas no caso
em questão é só crime.”), C1.3 (“Mau gosto é mau gosto. Estupro é
estupro.”) e C7 (“- Houve consentimento? - Não! - Então esta errado,
é crime.”).

Por fim, o subconjunto 3, Resposta por explicação, contém


os comentários C1.5, C3.1, C5.3, C5.4, C5.5, C6.1, C7 e C9.1.
Nesse subconjunto, assim como no subconjunto 3, os sujeitos-
comentadores colocam o que seria sua opinião (“Foi estupro”),
mas vão além, construindo uma argumentação em uma tentativa
de explicar àqueles com opinião contrária o porquê do ato em
questão ser considerado estupro, e não qualquer outra designação,
recorrendo ao que poderia ser considerado como uma formulação
didatizante, a partir de exemplos (como em C1.5, que traz até mesmo
uma correção ortográfica do comentário ao qual responde, “maU
gosto”), da explicação do contexto da cena (em C6.1), da explicação
das condições de aceitação/refutação do ato como sendo estupro
(em C3.1, C5.3 e C5.4), ou trazendo além da explicação dessas
condições, palavras atribuídas à própria atriz (como em C5.5), em
uma tentativa de reforçar a noção de “Foi estupro”, e, finalmente,
trazendo o porquê da importância e necessidade de se discutir
casos como o do filme nos dias de hoje (em C9.1).

158
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Já os comentários da terceira coluna da tabela (“Foi mau
e a sexualidade gosto” / “Foi desnecessário”), a saber, C1, C1.2, C1.4 e C11, encon-
tram-se na zona do “desnecessário”, que por vezes se mistura com
a coluna “Não foi estupro”, já que iria de encontro à notícia “A ‘cena
da manteiga’ não é arte, é crime” pelos deslocamentos por pará-
frases “O filme é bom > Tem uma cena podre (a do suposto estupro)
> O filme é bom, apesar de ter uma cena desnecessária (de mau
gosto) > A cena da manteiga não é crime, é só desnecessária >
Não foi estupro”. É interessante observar que nesse conjunto, o
SUMÁRIO que incomoda é a agressão visual ao telespectador causada pela
“cena de mau gosto”, e não a agressão do ato em si. Não chegam
a negar que houve estupro, ainda que isso possa ser um efeito de
sentido possível, como mostrado nas paráfrases acima, mas esse
fato é menos importante e relevante do que o fato de o público ser
“afrontado” por cenas sem pudor, como coloca C1.4 (“Não estou
tentando diminuir o absurdo que aconteceu, só acho que esse outro
lado também é ruim...só isso. [...]”) – construção que tem por efeito
justamente essa diminuição do fato, pela estrutura “Não X, mas
Y”, na qual Y é construído como mais importante do que X. Nesse
conjunto, vê-se uma rede de sentidos conservadora, “defensora da
moral e dos bons costumes”, religiosa, que entende uma separação
da sexualidade privada, da que (não) poderia vir a público (como
em um filme de Hollywood) e da que deveria ser restrita ao âmbito
dos filmes pornô, como nos diz C1.2 (“Mau gosto ou crime ambos
deveriam ser banidos. Deixem isso para quem quer ver pornô). É no
mínimo interessante a acepção de que “estupro” estaria na mesma
categoria de “ato de mau gosto”, e de que poderia existir se confi-
nado ao âmbito do pornô (cf. trecho grifado acima). Mais ainda,
nota-se a distinção do âmbito do religioso (“Tantas coisas mais
veladas e bonitas pra se mostrar de um relacionamento”) e do pagão
(“só querem mostrar um bacanal”), e como esses dois âmbitos não
deveriam se misturar a céu aberto (ou seja, nos cinemas e televi-
sões, nesse caso) na sociedade.

159
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Por último, nessa zona do “desnecessário”, temos o C11, que
e a sexualidade ainda que possa reconhecer a “cena da manteiga” como estupro, o
faz dentro do “desnecessário/mau gosto”, com a utilização de termos
dentro desse campo semântico, ou que se aproximariam mais desse
campo do que de outro com o sentido de “estupro/crime”.

Como talvez um reverso da terceira coluna, a zona do


“desnecessário”, temos a quarta coluna, a zona do “necessário”,
de “as coisas são como elas são”, com C2 e C2.1, conjunto que de
SUMÁRIO certa forma refuta a PO em sua afirmação difusa de que “Hollywood
se revolta” ao colocar que “Hollywood não se revolta com suposto
estupro > Hollywood é assim mesmo > É assim que as coisas são
> É preciso ter cenas nojentas/de mau gosto para ser sucesso > O
mau gosto é necessário > Não foi estupro, é só mau gosto > Por
isso Hollywood não está revoltada não”. Aqui, assim como na PO,
vê-se o emprego dessa não pessoa que pode ser todo mundo e
ninguém com o uso de “Hollywood” e seus desdobramentos, “Toda
a elite de Hollywood” e “eles” (esses dois em C2) – ainda que o
“toda a elite” tente dar maior contorno ao grupo ao qual se refere.
A afirmação “Toda elite de Hollywood é satânica pô” (C2) remete
a uma rede de sentidos que traz a religião como parâmetro para
classificar atos e pessoas. No caso, considerando que as pessoas
estão envolvidas em “imoralidades sexuais” e “coisas nojentas”
(esse termo em C2.1), é “óbvio” (um efeito de sentido) para os
sujeitos que trazem esse dizer que essas pessoas (os atores) são
do avesso da religião “certa”, “boa” – são satanistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se pode observar das análises descritas acima é que


há uma dominância de uma construção dessa imagem de “mulher
vadia” em oposição à “mulher direita” em discursos que tratam de

160
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero casos de violência sexual contra o corpo feminino. Ou seja, em
e a sexualidade tais discursos, a “mulher vadia” (a “não mulher direita”), estando
na indústria cinematográfica, participando de projetos no limiar do
pornô, talvez até mesmo sendo satanista, é responsabilizada/culpa-
bilizada pela suposta violência sofrida por seu corpo, ou simples-
mente silenciada, pois, sendo tratada como não pessoa, e assim
sendo constituída como não-sujeito, também o que lhe acontece
é um não-ato e não pode ser encarado como violência propria-
mente dita, não sendo, portanto, passível de julgamento moral e/
SUMÁRIO ou jurídico.

Por fim, o tratar do corpus, com seus gestos de leitura e inter-


pretação nos deixa com a certeza de que há um longo caminho a
ser percorrido na discussão sobre os limites do corpo feminino e do
que dele pode ser feito, e, mais ainda, de quem tem o dizer sobre
o que pode/deve ser feito desse corpo. Mas, retomando a seção
Justificativa deste artigo, por mais longa e incômoda (ou talvez
justamente por ser longa e incômoda) que a caminhada seja, ela se
mostra cada vez mais fundamental e necessária, para que se possa
desestabilizar, o mínimo que seja, sentidos de que o corpo de uma
mulher não é verdadeiramente dela.

#pormimpornóseportodas #nenhumaamenos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação


de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001.

161
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero REFERÊNCIAS
e a sexualidade
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. Campinas: Pontes,
1991, 387 p.

INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. 2 ed. Campinas:


Editora Unicamp, 2013, 354 p.

MALDIDIER, Denise. A inquietude do discurso. Um trajeto na história


da Análise do Discurso: o trabalho de Michel Pêcheux. In: PIOVEZANI,
SUMÁRIO Carlos; SARGENTINI, Vanice. (Org.). Legados de M. Pêcheux. São Paulo:
Contexto, 2011, p. 39-62.

ORLANDI, Eni. Análise de Discurso – princípios & procedimentos. 11. ed.


Campinas: Pontes, 2013.

SOUZA, Cecília de Mello e, ADESSE, Leila (Org.). Violência sexual no


Brasil: perspectivas e desafios. Brasília: Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres, 2005, 188 p.

162
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES
e a sexualidade

ORGANIZADOR

Wellton da Silva de Fatima


É mestre em Estudos da Linguagem pela UFF, pós-graduado em
SUMÁRIO Mídias na Educação pela UFSJ e graduado em Letras/Literaturas
pela UFRRJ. Atualmente é professor efetivo de Língua Portuguesa
em Tanguá/RJ e colaborador do Grupo Somos Educação e do
CEDERJ, atuando junto ao curso EAD de Letras da UFF.

AUTORAS E AUTORES

Amanda Bastos Amorim de Amorim


É formada em letras - português/literaturas - pela UERJ e em letras
- português/inglês pela FIC. Possui mestrado em linguística pela
Unicamp e atualmente cursa doutorado em estudos de linguagem
na UFF. Atua também como professora de português na EJA da
rede municipal de Tanguá.

Ana Cecília Trindade Rebelo


É doutoranda e mestre em Estudos de Linguagem pela UERJ. É
integrante dos grupos de pesquisa “DIVAGAR-Se - Divulgação,
alteridade e gramatização nas relações sociais e epistemológicas”
e “Práticas de Linguagem e Subjetividade – PraLinS”. Desenvolve
pesquisas nas áreas de Análise de Discurso Materialista e Linguística
Aplicada. Possui graduação em Música-Canto pela UFRJ. Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em Ensino de Língua
Estrangeira - Inglês.

163
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Elisa Guimarães
e a sexualidade
É graduada em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, e
mestre em Estudos de Linguagem, ambos pela Universidade Federal
Fluminense. Tem experiência em Análise do Discurso, Jornalismo e
se interessa por questões relacionadas à Divulgação Científica.

Fernanda Mello
Possui graduação em Letras e literaturas da língua portuguesa pela
SUMÁRIO Universidade Federal Fluminense (2016). É mestre em Estudos da
Linguagem (2018), também pela Universidade Federal Fluminense,
na subárea da Análise do Discurso de orientação francesa.

Héliton Diego Lau


É graduado em Letras pela UNICENTRO, especialista em Educação
Especial com Ênfase em Libras pelo ISAM e mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Linguagem, Identidade e Subjetividade, na
área de Linguagem, Identidade e Subjetividade, seguindo a linha
de pesquisa Subjetividade, Texto e Ensino pela UEPG. Atualmente
é doutorando em Letras pela UFPR e membro do grupo “Estudos
do texto e do discurso: entrelaçamentos teóricos e analíticos”
(UFPR-UNICENTRO).

Virgínia Dias
Possui graduação em Engenharia Mecânica pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (2005) e em Letras Português-Francês
pela mesma instituição (2015). Mestre em Letras pelo Programa
de Pós-Graduação em Letras da UERJ (2018). Atua na área como
professora de FLE (français langue étrangère) e se interessa por
pesquisas dos campos de estudos de gênero, análise do discurso
e estudos de tradução.

164
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ÍNDICE REMISSIVO
e a sexualidade
A 47, 52, 53, 54, 55, 56,
afetivo 106, 111, 113 65, 67, 69, 71, 72, 73,
ALGBTQI+ 85, 89, 90, 91, 95, 86, 125
96 ciências biológicas 63
alunas 69, 70, 78, 79 cientista 37, 50, 54, 57
alunos 62, 69, 70, 72, 78, 79 circulação 25, 26, 29, 40, 46,
amor 8, 15, 99, 100, 102, 103, 58, 59, 81, 106, 107,
104, 105, 107, 108, 109, 118, 122, 125, 129, 137,
SUMÁRIO 111, 112, 113, 114, 115, 138
116, 117, 119, 128, 130, cisheteronormativo 21
136, 137, 138 clérigos 38
análise 8, 15, 18, 19, 21, 30, competência 74, 121
32, 33, 34, 35, 41, 44, conservadoras 141
46, 56, 57, 59, 61, 62, corpo 15, 18, 21, 22, 33, 38,
64, 67, 68, 70, 72, 73, 39, 49, 52, 77, 104, 121,
75, 81, 83, 88, 96, 100, 123, 141, 143, 144, 145,
101, 107, 116, 117, 118, 147, 149, 150, 156, 161
122, 125, 128, 135, 137, criminalização 88, 90, 91, 96
142, 155, 164 cristãs 19, 141
Análise de Discurso 8, 14, 15, cultura 105, 132, 138, 144
20, 81, 97, 101, 118, D
162, 163 deputado 83, 88, 89, 90, 91, 92,
antropologia 39, 64 93, 94, 95, 96
autoconfiança 72, 73, 74 descentralização 37
autoridade 40, 44, 45, 48, 49, desigualdade 103
50, 56, 134, 135, 136 despatologização 121, 122, 123
B Deus 14, 16, 17, 18, 19, 22, 24,
binarismo 25, 31 25, 26, 34, 37, 38, 42,
bissexualidade 15 112
Bolsonaro 82, 83, 88, 89, 90, didáticos 129
91, 92, 93, 94, 95, 96 discurso 8, 14, 15, 16, 17, 18,
C 19, 20, 24, 31, 32, 33,
capitalistas 141 34, 35, 38, 39, 40, 41,
cérebro 77, 78, 105 42, 43, 44, 46, 47, 48,
ciência 8, 32, 36, 37, 38, 39, 49, 50, 51, 52, 53, 54,
40, 41, 42, 43, 44, 45, 55, 56, 57, 58, 59, 64,

165
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero 65, 66, 67, 70, 71, 74, 75, 136, 154
e a sexualidade 76, 78, 79, 80, 81, 83, 84, fascistofobia 91, 93, 94
85, 86, 89, 90, 91, 92, 93, feminilidade 25, 38, 39, 47, 103,
94, 95, 96, 97, 101, 102, 105, 106, 108, 109, 110,
107, 110, 113, 116, 117, 115
118, 133, 135, 138, 139, fenômeno 39, 121, 122
143, 147, 157, 162, 164 fidelidade 15, 43, 75, 104
discurso científico 40, 44, 47, Folha Universal 15, 16, 17, 22,
52, 55, 76 24, 29
discurso midiático 40, 90 formação pedagógica 63
SUMÁRIO discurso religioso 16, 17, 18, formação social 8, 37, 40, 42,
19, 20, 24, 31, 32, 33, 34, 44, 46, 55, 106
42, 85 Foster 14
distanciamento 48, 91, 147 G
divino 18 gênero 8, 13, 14, 15, 20, 21,
divisão sexual 46, 61, 62 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28,
docência 63 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35,
doença 85, 96, 113, 121, 124, 36, 39, 40, 41, 46, 56, 61,
130, 133, 135 63, 69, 73, 79, 80, 83, 92,
E 93, 97, 99, 103, 104, 107,
educação 39, 57, 62, 63, 67, 120, 121, 122, 123, 137,
69, 97, 128, 129, 136 138, 164
ensino superior 63 grupos sociais 123
enunciado 22, 25, 27, 28, 30, H
31, 66, 69, 74, 90, 94, hashtags 142, 150
123 heterofobia 82, 83, 88, 89, 90,
escola 70, 79 91, 92, 93, 94, 95, 96
espiritualidade 18 heteronormatividade 14, 33, 34
estrutura social 37, 74 heurístico 101
estudantes 68, 69, 70, 73, 75, homem 18, 22, 23, 26, 28, 30,
79 31, 38, 41, 46, 50, 52, 57,
expressão de gênero 14, 15, 21, 86, 87, 90, 91, 101, 104,
27, 28, 29, 30, 32, 33 105, 106, 107, 108, 109,
F 110, 112, 113, 114, 115,
Facebook 88, 140, 141, 142, 124, 137, 150
150, 152, 157 homofobia 82, 88, 89, 90, 91,
família 15, 38, 86, 102, 104, 92, 94, 95
105, 112, 119, 132, 134, homossexualidade 15, 21, 26,

166
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero 85, 86, 92, 96, 98, 123 131, 136, 145, 161
e a sexualidade humano 20, 87, 103 lesbianidade 26
hysteria 124 linguagem 16, 21, 22, 26, 28,
hysterismo 124 30, 33, 35, 43, 55, 67,
I 84, 87, 92, 93, 94, 101,
identidade 49, 54, 83, 86, 93, 102, 103, 115, 116, 118,
96, 97 145, 163
ideológica 14, 38, 42, 45, 55, linguística-discursiva 149
89, 90, 96, 101, 109, 110 lógica 16, 64, 65, 68, 69, 70,
ideológico 45, 123, 135, 141, 87, 103, 122, 124, 131
SUMÁRIO 143 loucura 120, 122, 125, 127,
Igreja Universal 14, 17, 18, 19, 128, 129, 130, 131, 132,
22, 24, 34 133, 135, 136, 137, 138
imaginário 25, 26, 34, 37, 39, M
40, 42, 44, 46, 55, 59, machistas 141
80, 98, 101, 106, 108, Mariani 17, 24, 43, 50, 56, 78,
109, 110, 115, 117, 125, 110
129 masculinidade 47, 80
interações sociais 53, 54 mediador 17
interdiscurso 48, 50, 65, 66, 67, medicina 32, 54, 78, 81, 85, 86,
85, 90, 94, 97, 118 92, 93, 135, 138, 139
internet 39, 83, 88 memória 19, 27, 44, 46, 47, 48,
intersexo 85 50, 56, 58, 59, 65, 66,
intradiscurso 48, 50, 67 67, 72, 76, 78, 79, 80,
J 85, 91, 94, 96, 106, 107,
já-lá 72, 74, 76, 77, 79 113, 116, 117, 118, 123,
jornal 15, 16, 17, 22, 24, 25, 126, 127, 137, 145
29, 30, 32, 44, 62, 67 mercado 59, 62, 64, 76, 80,
jornalismo 40, 42, 43, 44, 45, 131, 141
47, 49, 53, 54, 55 mídia 13, 14, 22, 30, 32, 33,
jornalismo científico 43, 45, 47, 39, 40, 42, 44, 45, 48,
49, 54, 55 54, 55, 58, 59, 71, 72,
jurídico 86, 133, 157, 161 90, 117
L mídia impressa 13, 14, 22, 30,
leitura 8, 22, 24, 25, 26, 28, 31, 32, 33, 71
34, 55, 56, 64, 67, 68, mistificação 31, 32
69, 70, 71, 74, 81, 103, modelo 38, 62, 103
116, 118, 122, 128, 130, mulher 26, 38, 41, 46, 47, 50,

167
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero 52, 57, 64, 77, 81, 91, 92, queer 85
e a sexualidade 93, 95, 99, 100, 101, 103, R
104, 105, 106, 107, 108, racionalidade 37, 38
109, 110, 111, 112, 113, rede social 141, 152
114, 115, 116, 117, 122, religioso 14, 16, 17, 18, 19, 20,
123, 124, 131, 135, 136, 24, 31, 32, 33, 34, 42, 85,
137, 138, 140, 141, 142, 86, 93, 159
143, 145, 147, 149, 150, reportagem 49, 67, 68, 73
152, 157, 160, 161 reprodução social 62
multiplicidade 64 revista 36, 40, 41, 45, 49, 51,
SUMÁRIO N 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58,
neurobióloga 50, 51 80, 90, 100
O S
objetividade 37, 42, 44, 75 saúde 8, 62, 63, 67, 70, 72, 74,
onipotência 18, 67 78, 79, 113, 120, 121,
Orlandi 16, 17, 18, 31, 59, 69, 124, 125, 126, 128, 135,
84, 85, 87, 92, 97, 101, 137
106, 116, 118, 139, 142 senso comum 40, 43, 49, 54,
P 93
patologia 123, 129 sentidos 8, 15, 18, 19, 20, 26,
patologização 121, 123, 131, 29, 31, 42, 43, 44, 56, 57,
135, 138 59, 64, 65, 66, 69, 74, 79,
patriarcais 141 80, 81, 84, 85, 90, 92, 94,
pirâmide social 38 97, 100, 101, 102, 106,
poder 37, 38, 42, 43, 54, 70, 107, 109, 110, 113, 114,
76, 81, 85, 86, 87, 109, 115, 116, 118, 122, 125,
112, 124, 127, 145, 147, 127, 136, 137, 141, 142,
156 143, 144, 149, 150, 155,
poligâmico 57 159, 160, 161
política 8, 33, 42, 81, 82, 84, ser humano 20, 87, 103
85, 93, 95 serviços 62, 137
posição-sujeito 16, 17, 18, 30, sexualidade 8, 14, 15, 19, 20,
76, 77, 89, 91, 101, 113, 21, 22, 24, 26, 28, 29, 31,
114 32, 33, 34, 40, 41, 50,
pragmatismo 46 54, 82, 83, 86, 92, 93, 97,
práticas sociais 8, 46 121, 122, 140, 144, 159
psicanálise 39, 41, 105, 117 silenciamento 69, 79, 82, 83,
Q 84, 92, 94, 95, 96

168
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero site 41, 102, 119, 150
e a sexualidade social 8, 14, 15, 18, 21, 37, 38,
40, 42, 44, 46, 55, 62, 68,
74, 83, 93, 100, 101, 104,
105, 106, 107, 110, 129,
131, 132, 133, 141, 145,
152, 156
sociedade 15, 32, 37, 43, 45,
58, 59, 62, 83, 85, 86,
122, 131, 134, 135, 136,
SUMÁRIO 137, 138, 139, 141, 143,
144, 145, 147, 159
sociologia 39, 64
sujeito 14, 16, 17, 18, 21, 22,
24, 29, 30, 38, 42, 48, 49,
50, 54, 55, 56, 59, 66, 67,
75, 76, 77, 79, 83, 84, 85,
86, 87, 88, 89, 90, 91, 93,
97, 100, 101, 102, 105,
106, 107, 108, 110, 113,
114, 115, 116, 118, 121,
127, 131, 132, 133, 134,
135, 136, 137, 138, 141,
142, 143, 145, 146, 147,
149, 156, 157, 158, 161
Superinteressante 36, 40, 41,
45, 51, 52, 53, 54, 56,
57, 59
T
transexuais 26, 85
transexualidade 26
transgêneros 85
travestis 85

169
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade

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