Por Uma Análise Do Discurso Sobre o Gênero e A Sexualidade - Efeitos de Sentido, Ideologias e Práticas Discursivas em Questão
Por Uma Análise Do Discurso Sobre o Gênero e A Sexualidade - Efeitos de Sentido, Ideologias e Práticas Discursivas em Questão
Por Uma Análise Do Discurso Sobre o Gênero e A Sexualidade - Efeitos de Sentido, Ideologias e Práticas Discursivas em Questão
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade
efeitos
de sentido,
ideologias
e práticas
discursivas
organização
Wellton
da Silva
de Fatima
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade
efeitos
de sentido,
ideologias
e práticas
discursivas
organização
Wellton
da Silva
de Fatima
2 0 1 9
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados
e a sexualidade Copyright do texto © 2019 as autoras e os autores
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por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade
Apresentação................................................................. 8
Wellton da Silva de Fatima
Apresento, pois, aos leitores, este livro, que conta com sete
SUMÁRIO
capítulos de sete diferentes autoras e autores. Temos, então, dife-
rentes abordagens do funcionamento do discurso, dentro da temá-
tica do gênero e da sexualidade, em relação a diversos domínios
correlatos do saber e das práticas sociais. Assim, tematizamos
a religiosidade, a ciência, o trabalho, a política, o amor, a saúde
mental e a violência.
8
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero SOBRE GESTOS DE ANÁLISE E OUSADIAS
e a sexualidade
9
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Elisa de Magalhães e Guimarães propõe um recorte temá-
e a sexualidade tico bastante original, uma vez que discute os sentidos de gênero e
sexualidade na mídia impressa de divulgação científica. Em termos
específicos, a análise proposta está centrada nos dizeres de espe-
cialistas. Tais dizeres, quando em relação aos demais dizeres que
são constitutivos da produção discursiva de divulgação científica,
produzem efeitos que, conforme nos mostra a autora, vão consti-
tuindo formulações de um novo discurso, ou seja, sobre o que signi-
fica ser homem ou ser mulher.
SUMÁRIO
No terceiro capítulo do livro, o foco é a divisão sexual do
trabalho. Também trazendo como recorte mídia impressa, Virgínia
Carollo da Costa Dias, propõe-se a analisar os processos de signifi-
cação de uma matéria específica que trata de desempenho escolar
e da escolha profissional. A partir de seu fino gesto de análise, a
autora depreende os já-ditos inscritos na memória que reafirmam,
ainda nos dias de hoje, o papel social do homem vinculado a profis-
sões em ciências exatas e, ao mesmo tempo, que ratificam um
lugar de inferioridade para as mulheres. Indo além, a autora mostra
que o funcionamento discursivo desses já-ditos organiza o que, em
análise do discurso, chamamos de memória do futuro.
10
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Fernanda Cerqueira de Mello apresente uma refinada discussão
e a sexualidade sobre o feminino e(m) relações amorosas. Várias noções são mobi-
lizadas discursivamente como subjetividade, memória, inconsciente
e ideologia a fim de dar sustentação não apenas aos gestos de
análise, mas também à conclusão da autora: “Narrar como se veem
dentro de seus relacionamentos é, para essas mulheres, parte do
processo de subjetividade para se constituírem como mulher.”
11
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero no processo de des-superficialização do corpus analisado. Se o
e a sexualidade objetivo do livro é fazer circular pesquisas recentes sobre discurso,
gênero e sexualidade que vêm sendo realizadas por jovens pesqui-
sadores, posso dizer que em, em seu conjunto, o efeito produzido
vai além. Fazendo eco ao que nos diz Pêcheux, retomo suas pala-
vras: “Face às interpretações sem margens nas quais o intérprete
se coloca como um ponto absoluto, sem outro nem real, trata-se
aí, para mim, de uma questão de ética e política: uma questão de
responsabilidade”.
SUMÁRIO
Que esses jovens pesquisadores em Análise do Discurso
prossigam com ética e responsabilidade.
Bethania Mariani
Abril, 2019.
DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.9-12
12
DISCURSO, (EXPRESSÃO DE) GÊNERO
E RELIGIOSIDADE: A MÍDIA IMPRESSA
Discurso,
NEOPENTECOSTAL EM QUESTÃO (expressão de)
Wellton da Silva de Fatima
gênero
e religiosidade:
a mídia impressa
neopentecostal
em questão
Wellton da Silva de Fatima
DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.13-35
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A ideologia da classe dominante não
e a sexualidade se torna dominante pela graça do céu…
Michel Pêcheux
PRIMEIRAS PALAVRAS
14
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada
e a sexualidade pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal,
constituição de família (esquema pai-mãe-filho(a)(s)). Na esteira das
implicações da aludida palavra, tem-se o heterossexismo compul-
sório, sendo que, por esse último termo, entende-se o imperativo
inquestionado e inquestionável por parte de todos os membros da
sociedade com o intuito de reforçar ou dar legitimidade às práticas
heterossexuais. (p.19 apud MIRANDA, 2010)
DISCURSO E RELIGIOSIDADE
15
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Discurso brasileira, que se estabelece a partir da movimentação
e a sexualidade teórica proposta por Orlandi (1987), por sua vez, alinhada aos domí-
nios teóricos pecheutianos.
16
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero sujeito do discurso religioso falam diferentemente é, para nós,
e a sexualidade fundamental. Principalmente pelo fato de haver uma posição-
sujeito/mediador – a do líder religioso – que se constitui pelo
potencial de transitar – discursivamente – entre os planos temporal
e espiritual, portando o “dom” de traduzir a palavra de Deus para
aqueles que não tem acesso a ela.
17
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero autora afirma que “o que funciona na religião é a onipotência do
e a sexualidade silêncio divino. Mais particularmente, isto quer dizer que, na ordem
do discurso religioso, Deus é o lugar da onipotência do silêncio. […]
E o homem precisa desse lugar, desse silêncio, para colocar uma
sua fala específica: a de sua espiritualidade” (ORLANDI, 2007, p.28,
grifos da autora).
18
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero às condições de produção do discurso e às divisões de sentido
e a sexualidade postas em prática pelo funcionamento das ideologias. Sobre isso,
vale a pena mencionar que os sentidos para diversos elementos
do universo religioso se materializam por diferentes efeitos – sendo,
portanto, semantizados de maneira diferente – quando se está, por
exemplo, no domínio da teologia da prosperidade e quando se está
no domínio da teologia da libertação. O próprio sentido de fé traba-
lhado nos domínios de proximidade com a teologia da prosperidade
inscrevem outros sentidos e convocam outras redes de memória
SUMÁRIO para tal referente discursivo1.
19
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero De outro modo, filiados à linha pecheutiana de Análise de
e a sexualidade Discurso, interessa-nos mais propriamente o estado atual da
relação entre a ideologia e a língua, e os efeitos de sentido que
dessa relação pungem principalmente levando-se em consideração
o modo específico de funcionar do discurso religioso.
20
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Defendemos aqui o ponto de vista de que pensar discur-
e a sexualidade sivamente o gênero é, também, refletir sobre certas questões do
domínio da sexualidade, já que é, em grande parte, pela maneira
como o sujeito desempenha o gênero que ele será identificado ou
não em sua sexualidade3, principalmente quando esta sexualidade
não estiver de acordo com um certo padrão cisheteronormativo4.
3. Sabemos, no entanto, que há questões específicas do domínio da sexualidade. Essas não nos
interessam teoricamente aqui neste trabalho.
4. Voltaremos a essa noção no momento da análise. Neste mesmo livro, no entanto, há um
capítulo de autoria de Amanda Bastos no qual essas questões são mais fortemente trabalhados.
21
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A MÍDIA IMPRESSA RELIGIOSA SOBRE O
e a sexualidade
GÊNERO E A SEXUALIDADE: UM CASO
EXEMPLAR
22
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero enunciados definitórios, isto é, enunciados que buscam definir
e a sexualidade Juliana, já que o que estava em questão era a significação dela
nesse lugar – ou entrelugar (antes e depois) – em que a expressão
de seu gênero está em questão.
23
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero sexualidade podem ser lidos a partir da expressão do gênero. Há,
e a sexualidade inclusive, vários elementos que aparentemente estão para além
dessas questões, como as relações com criminalidade, fragilidade
física etc. Por uma questão de ênfase, no entanto, e buscando
responder a algumas perguntas por nós formuladas, centramo-nos
em alguns pontos, os quais organizados nos tópicos a seguir.
24
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero O que salta aos olhos do leitor e intervém diretamente no
e a sexualidade modo como ele lerá os enunciados formulados na coluna “Antes
e Depois” está intrinsecamente relacionado às imagens da pessoa
de Juliana que são dispostas entremeadas à matéria. As imagens
mostram Juliana vestindo-se de maneira masculinizada de um lado
e de outro lado vestindo-se com roupas mais alinhadas a um certo
modo de se estar no feminino: aquele mais característico à feminili-
dade cristã (saia mais comprida, parte superior mais fechada, etc.).
25
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Ocorre que, já pelas imagens no início da matéria, o “antes” é
e a sexualidade apresentado pela pessoa Juliana vestida de maneira masculinizada,
o que põe em circulação os sentidos não somente sobre a lesbiani-
dade – homossexualidade –, mas também sobre a possibilidade de
“mudança total”5, que seria a transexualidade.
5. A descrição que fazemos aqui é conduzida pelo funcionamento do imaginário cristão (mas
não somente) sobre a homossexualidade e a transexualidade. Em certos contextos, a transexua-
lidade é entendida como o extremo, isto é, um lugar para onde se caminha por meio da homos-
sexualidade. Não é raro ver, por exemplo, circularem enunciados que se referem a mulheres
transexuais como “viados”. Isso tem relação com o fato de, ainda hoje, não se reconhecer que
pessoas transexuais não “trocam” de gênero e sim o adéquam de acordo com aquilo que se
espera socialmente de um homem ou uma mulher, processo feito com naturalidade por diversas
pessoas cisgêneras, mas que não é lido como troca. A maneira como se apresentam nossas leis
impossibilitam a adequação de gênero antes da puberdade, o que obriga pessoas transexuais
a fazerem tal adequação tardiamente. Tal fato colabora para que se leia socialmente pessoas
transexuais – durante a transição – como homossexuais e não como, de fato, pessoas transe-
xuais em transição. Por um outro lado, essa maneira de perceber a homossexualidade e transe-
xualidade pode levar à crença de que a homossexualidade é uma espécie de “transexualidade
inacabada”. Fora do imaginário cristão, no entanto, sabemos que a homossexualidade é uma
questão de sexualidade e que a transexualidade é uma questão de gênero, não se confundindo
uma coisa com a outra.
26
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero de outro modo, mais do que pensar que, na língua portuguesa, os
e a sexualidade adjetivos exercem a função de caracterizar – geralmente um subs-
tantivo ao qual, na ordem da língua, eles aparecem relacionados –,
pensamos os efeitos de sentido que decorrem do engendramento
de uma certa prática discursiva através do retorno de determinados
domínios de memória sobre aquilo que é definido e denominado –
a pessoa Juliana em relação a sua expressão de gênero – a partir
dos dispositivos de determinação, assumidos pelos adjetivos nos
enunciados definitórios.
SUMÁRIO
Retomemos, portanto, um dos enunciados de nosso corpus:
27
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A partir desse quadro, é possível visualizar a caracterização
e a sexualidade que se faz para esse “antes” de Juliana. Trata-se de uma pessoa
carente, drogada, agressiva e inconstante. Além disso, alguns
termos caracterizam de maneira mais explícita – linguisticamente –,
por outros dispositivos de linguagem sobre os quais não trataremos
neste trabalho, como, por exemplo, as citações ao complexo de
inferioridade e a questões de ordem mais espiritual, como beber
vinho pensando ser o sangue da sobrinha.
28
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero de mentiras, se envolveu com pessoas erradas e chegou a
e a sexualidade ser ameaçada de morte pelo pior traficante do bairro onde
morava.
29
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero segunda coluna, temos o que Juliana queria, estando tais elementos
e a sexualidade relacionados ao momento em que Juliana “decide” expressar seu
gênero dessa maneira que causa estranheza. Finalmente, a terceira
coluna, em que se tem aquilo que está junto a Juliana, refere-se a
um momento pós-expressão dessa maneira de se estar no gênero.
30
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero pouca atenção que recebia da mãe deixou de existir, já que
e a sexualidade ela só tinha olhos para a neta. Com raiva disso, Juliana chegou
a agredir a mãe fisicamente e passou a agir exatamente como
um homem.
7. Inexplicável no interior da formação discursiva da qual se fala. Neste caso, uma formação
discursiva cristã neopentecostal.
31
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero socialmente posto – são, no discurso religioso cristão, inexplicáveis.
e a sexualidade A mistificação funciona, portanto, produzindo condições para que
isso que é inexplicável faça sentido.
32
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero pelo não-dito (ORLANDI, 2013), portanto, proscreve-se o que não
e a sexualidade se deve e não se pode ser e agir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
33
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero como esses elementos – o gênero, a sexualidade e suas formas
e a sexualidade de expressão – nos são apresentadas. Que tal incômodo, a partir
desse trabalho, possa se tornar, de um lado, um fazer teórico, e de
outro, também necessário, um fazer prático-político.
REFERÊNCIAS
34
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F. e
e a sexualidade HAK, T. (org.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2014 [1969]
SUMÁRIO
35
DISCURSO, GÊNERO E CIÊNCIA: A OPINIÃO
DO ESPECIALISTA SOBRE O MASCULINO E O
Discurso, gênero
FEMININO NA REVISTA SUPERINTERESSANTE e ciência: a opinião
Elisa de Magalhães e Guimarães
do especialista
sobre o masculino
e o feminino
na revista
Superinteressante
Elisa de Magalhães
e Guimarães
DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.36-60
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Recluso, inteligente e, por vezes, ignorado nos momentos
e a sexualidade que antecedem uma tragédia, a figura do cientista – quase sempre
do sexo masculino – é figurinha fácil nos produtos midiáticos ficcio-
nais que circulam em nossa formação social. Ora louco e perigoso,
ora um aliado de grande valor para heróis de ação e ficção científica,
ele é sempre dono de um poder incomensurável de aniquilação ou
de uma verdade inconveniente capaz de incomodar homens pode-
rosos que se recusam a enxergar ameaças como a possibilidade
de uma nova epidemia ou até mesmo o fim do mundo. Embora tais
SUMÁRIO imagens não sejam reproduções fiéis do trabalho de produção do
conhecimento científico, são certamente um recorte bem represen-
tativo de um imaginário social sobre a ciência como uma entidade
de grande poder e eficácia – imaginário este que se desenvolve em
concomitância com a ascensão da ciência como uma instituição
produtora de verdades no mundo ocidental.
37
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero escravos, de propriedade alheia (de objetos, portanto) para se
e a sexualidade tornarem cidadãos concebendo-se como sujeitos, senhores de si,
livres para circular pela cidade e decidir sobre suas ações. (PAYER,
2005, p. 13-14)
38
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero centrais a ascensão da natureza como elemento de interesse cientí-
e a sexualidade fico. Um fenômeno semelhante é descrito por Friedan (2001 [1963]),
que discute a forma como pesquisas em sociologia, antropologia
e psicanálise, entre outras áreas, foram mobilizadas, nos Estados
Unidos do pós-Segunda Guerra, visando a recuperação de um
determinado imaginário de feminilidade e o incentivo ao retorno à
esfera doméstica das mulheres que haviam saído de suas casas
para ocupar os postos de trabalhado deixados vagos pelos homens
convocados para o combate.
SUMÁRIO
Porém, se Kehl (2008) aponta em sua pesquisa para obras
como o Emílio, de Rousseau, em que o filósofo francês recomenda
que a educação feminina seja conduzida de forma a melhor preparar
as mulheres para seu papel natural, o principal ator do movimento
identificado por Friedan (2001 [1963]) não é apenas o saber cien-
tífico, mas também a mídia. A imprensa, principalmente a denomi-
nada imprensa feminina, teve um papel fundamental no processo
de retorno ao lar ocorrido nos Estados Unidos – bem como no
Brasil (BASSANEZI, 1997) – dos anos 1950. Tanto Friedan (2001
[1963]) quanto Bassanezi (1997) apontam para a centralidade que
a imprensa feminina teve na difusão da ligação entre a felicidade
feminina e os lugares de mãe, esposa e dona de casa, ao mesmo
tempo que reforçavam a aceitação de comportamentos masculinos,
mobilizando, para isso, um dizer sobre a ciência.
39
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ciência em relação com outros discursos (o da mídia, o do senso
e a sexualidade comum) na formulação (ORLANDI, 2001) de um novo discurso: o
discurso de divulgação científica, que, por sua vez, põe em circu-
lação um dizer próprio, com efeitos de sentido próprios, a respeito
de ciência e gênero. A esses dizeres é atribuída uma aura de auto-
ridade, derivada de um imaginário da imprensa como lugar da
verdade, dominante em nossa formação social, mas também do
comparecimento constante de dizeres de especialistas no fio do
discurso midiático, na forma de aspas, discurso direto e indireto e
SUMÁRIO glosas – recurso comum no jornalismo, em suas diversas vertentes,
e essencial para o jornalismo de divulgação científica, que, como
veremos mais à frente, entende a si mesmo como uma tradução do
discurso científico.
40
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero as disparidades no desempenho acadêmico e profissional mascu-
e a sexualidade lino e feminino (GUIMARÃES, 2018).
10. Tomamos, aqui, o gênero como uma oposição binária por ser essa a posição de
Superinteressante. Em nenhuma das matérias analisadas foi levada em consideração a possi-
bilidade de outras formas de identificação que não homem ou mulher. (Cf. GUIMARÃES, 2018.)
41
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero O DISCURSO SOBRE CIENTISTAS, HOMENS E
e a sexualidade
MULHERES
42
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero língua como sendo ela o repositório dos sentidos literais e unívocos
e a sexualidade acaba por criar a ilusão de que o que se diz é uma informação e não
uma opinião” (BAALBAKI, 2010, p. 106).
43
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ordens e a inserção de ambas e de seus sujeitos produtores em
e a sexualidade uma formação social regida por uma ideologia dominante –, tal
noção do discurso de divulgação científica como uma tradução do
discurso científico produz, também, um apagamento das rotinas de
produção do jornalismo, que envolvem a escolha de pautas a serem
abordadas e de pesquisas e especialistas a serem consultados.
Assim, os acontecimentos noticiados comparecem na mídia, espe-
cializada ou não, como se fossem sempre os mais importantes de
seus campos de estudos, embora a importância de uma pesquisa
SUMÁRIO dentro de uma determinada área não seja sempre o critério central
para que ela seja pautada. Conforme explica Guimarães (2001):
o acontecimento para o jornal, aquilo que é enunciável como
notícia, não se dá por si só, como evidência, mas é constituído pela
própria prática do discurso jornalístico. Enunciar na mídia inclui uma
memória da mídia pela mídia. Valendo-me de conceitos formulados
pela análise de discurso, posso dizer que enunciar na mídia é enun-
ciar segundo a interdiscursividade que determina as formulações da
mídia, por mais que os jornalistas possam ainda afirmar que eles se
pautam pela objetividade dos acontecimentos. (GUIMARÃES, 2001,
p. 15)
44
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero definitivas para os problemas do mundo e da humanidade. Em vez
e a sexualidade de privilegiar o debate constitutivo do saber científico, o jornalismo
científico da grande mídia
toma um conhecimento produzido por uma longa história como
se ele fosse um acontecimento do presente. A distorção que isso
provoca sobre a ciência é tanto mais importante na medida em que
isto faz com que a sociedade, pelo viés da mídia, passe a tomar
a produção de conhecimento de modo imediatista. (GUIMARÃES,
2001, p. 20)
45
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero faz presente uma imagem da natureza e da evolução como enti-
e a sexualidade dades capazes de decidir conscientemente sobre o destino da
humanidade. (idem, p. 117)
11. É importante lembrar, aqui, que o quadro teórico-metodológico no qual se insere Bourdieu
não é e nem dialoga com tanta facilidade com o da análise do discurso pêcheutiana, guardando
divergências no que diz respeito à definição de conceitos como o de simbólico, essencial nas
duas áreas. Porém, dada a importância da pesquisa de Bourdieu, optamos por incluí-la entre as
referências deste trabalho.
46
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero negação do desejo sexual feminino, e “prende as suas cabras que
e a sexualidade o meu cabrito eu crio solto”, que atualiza um discurso sobre a liber-
dade sexual masculina em oposição à passividade e à vitimização
da mulher.
47
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Tais recursos são frequentemente usados na mídia escrita,
e a sexualidade em suas mais variadas vertentes, como forma de conferir autori-
dade ao que é dito em uma matéria ou de explicar uma questão
para os leitores, ou mesmo para desresponsabilizar o veículo por
um determinado dizer, atribuindo-o a um especialista e produ-
zindo um efeito de distanciamento. Trata-se de uma marcação
do discurso do outro no intradiscurso, derivada de uma ilusão de
univocidade e originalidade do sujeito. Segundo explica Pêcheux
(1995 [1975]), o sujeito se esquece de que não é a fonte originária
SUMÁRIO dos seus dizeres, que são determinados pelo que chama de inter-
discurso – um lugar imaterial em que circulam todos os dizeres
possíveis e ao qual o sujeito precisa recorrer como única forma
de produzir sentido. Afinal, conforme Maingueneau (1997), “um
discurso não nasce, como geralmente é pretendido, de algum
retorno às próprias coisas, ao bom senso, etc., mas de um trabalho
sobre outros discursos” (p. 120). O autor aponta para um primado
do interdiscurso, de forma que
toda formulação estaria colocada, de alguma forma, na intersecção
de dois eixos: o “vertical”, do pré-construído, do domínio de memória
e o “horizontal”, da linearidade do discurso [o intradiscurso ou fio do
discurso], que oculta o primeiro eixo, já que o sujeito enunciador é
produzido como se interiorizasse de forma ilusória o pré-construído
que sua formação discursiva impõe. (idem, p. 115)
48
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero As formas marcadas de heterogeneidade mostrada representam
e a sexualidade uma negociação com as forças centrífugas, de desagregação, da
heterogeneidade constitutiva: elas constroem, no desconhecimento
desta, uma representação da enunciação, que, por ser ilusória, é
uma proteção necessária para que um discurso possa ser mantido.
Assim essa representação da enunciação é igualmente ‘constitutiva’,
em um outro sentido: além do ‘eu’ que se coloca como sujeito de
seu discurso, “por esse ato individual da apropriação que introduz
aquele que fala em sua fala”, as formas marcadas da heterogenei-
dade marcada reforçam, confirmam, asseguram esse “eu” por uma
especificação de identidade, dando corpo ao discurso – pela forma,
pelo contorno, pelas bordas, pelos limites que elas traçam – e dando
SUMÁRIO forma ao sujeito enunciador – pela posição e atividade metalinguís-
tica que encenam.
SD1: Quando ela resolveu pedir ajuda à avó, ouviu que a culpa
havia sido dela. “Você saiu do banho de toalha na frente do seu
avô, que não sabe controlar os instintos.” (Como silenciamos
o estupro, setembro/2015)
49
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero depositada no próprio lugar de cientista com o qual é identificado o
e a sexualidade sujeito, como nas sequências discursivas (SDs)12 a seguir:
12. Conforme Mariani (1996), sequências discursivas são “sequências linguísticas nucleares,
cujas realizações representam, no fio do discurso (ou intradiscurso), o retorno da memória (a
repetibilidade que sustenta o interdiscurso)” (p. 53).
50
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero como foram realizadas as pesquisas em questão – basta que se
e a sexualidade atribua a elas o caráter de científicas. E, assim como Brizendine não
é qualquer neurobióloga, mas uma neurobióloga de Harvard, Fisher
também não é apresentada como qualquer antropóloga, mas como
a mais destacada autora de um movimento pós-feminista identifi-
cado por Superinteressante.
51
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero traz coisas boas – não é apenas um momento de fragilidade.
e a sexualidade (Viva Afrodite!, outubro/2000)
52
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero aparece como uma confirmação do que já foi dito antes, de que são
e a sexualidade a ciência e os médicos os verdadeiros atores do discurso da revista,
que apenas se limitaria a reproduzir suas falas.
53
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero uma ideia de explicação, “além disso” produz um efeito de adição:
e a sexualidade a revista acrescenta alguma coisa ao dizer de Euzimar Coutinho,
porém, sem apontar para um fim do dizer do especialista. É como
se a fala do ginecologista continuasse, mesmo não demarcada
por aspas.
54
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero com órgãos fáceis de estudar e um desejo voltado apenas para o
e a sexualidade orgasmo. Ilusoriamente separadas do discurso da revista, as falas
dos especialistas são parte integrante dele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
55
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero determinadas condições de produção, de uma determinada forma,
e a sexualidade sem perder os efeitos de cientificidade. Assim, a ciência deixa de
ser conhecimento e se transforma em informação. “Informa-se o
que a ciência faz, mas não se faz ciência. ‘Não é o discurso ‘da’, é o
discurso ‘sobre’’ (...) a ciência” (BAALBAKI, 2010, p. 91).
56
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero cada jornalista de Superinteressante diante de debates a respeito de
e a sexualidade direitos sexuais, feminismo e da educação de meninos e meninas,
entre outros temas, mas da produção de um discurso institucional.
Tal discurso pode sofrer deslizamentos com o passar do tempo,
transformando-se e produzindo efeitos de sentido que não seriam
possíveis em outros momentos. Porém, conforme pudemos depre-
ender a partir desta análise e do trabalho que deu origem a este
capítulo, Superinteressante direciona a interpretação de seu leitor
para a existência de uma oposição binária e relacional entre os
SUMÁRIO sexos, reforçando estereótipos como o da mulher maternal e repro-
dutora de sua própria opressão, e o do homem agressivo e inepto
no que diz respeito a relações interpessoais. Tal direcionamento de
sentidos, por sua vez, é produzido a partir da mobilização das falas
de especialistas, recortadas de forma a ora produzir uma ilusão de
que é o próprio cientista que fala em Superinteressante, ora a dar
continuidade ao dizer da revista.
57
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero REFERÊNCIAS
e a sexualidade
ACHARD, Pierre. Memória e produção discursiva do sentido. In.: ACHARD,
Pierre et al. (org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 11-21.
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos Anos Dourados. In: DEL PRIORE, Mary
(org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p.
697-639.
FRIEDAN, Betty. The feminine mystique. Nova York: Norton, 2001 [1963].
58
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero GUIMARÃES, Elisa. Gênero é Superinteressante: efeitos de sentido sobre
e a sexualidade o masculino e o feminino no discurso de divulgação científica. 2018.
Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói.
HAROCHE, Claudine. Fazer dizer, querer dizer. São Paulo: Hucitec, 1984.
59
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ARTIGOS ANALISADOS
e a sexualidade
HUECK, Karin. Homens x mulheres – Por que eles estão ficando para
trás?, 2011. Disponível em: <https://super.abril.com.br/comportamento/
homens-x-mulheres-por-que-eles-estao-ficando- paratras/>. Acesso em:
31 de outubro de 2017.
60
DISCURSO, GÊNERO E DIVISÃO SEXUAL DO
TRABALHO: UMA ANÁLISE DA SOBERANIA
Discurso, gênero
MASCULINA EM UMA MATÉRIA JORNALÍSTICA. e divisão sexual
Virgínia Carollo da Costa Dias
do trabalho:
uma análise da
soberania masculina
em uma matéria
jornalística
Virgínia Carollo da Costa Dias
DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.61-81
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero INTRODUÇÃO
e a sexualidade
62
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Seria de se esperar que o maior acesso à educação de nível
e a sexualidade superior diminuísse as diferenças salariais entre homens e mulheres,
porém o que se nota é que ao compararmos a situação de homens
e mulheres com o mesmo grau de escolaridade, observam-se dife-
renciais maiores entre os mais instruídos, ou seja, “os hiatos sala-
riais de gênero agravam-se em alguns segmentos notadamente
entre os grupos mais escolarizados” (LAVINAS, CORDILHA, CRUZ,
2016, p.95).
64
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A proposta de Pêcheux consiste, então, em uma disciplina de
e a sexualidade interpretação que fuja do fantasma da ciência régia, propondo para
isso, outra forma de se pensar o real:
é supor que – entendendo-se o ‘real’ em vários sentidos – possam
existir um outro tipo de real diferente dos que acabam de ser
evocados, e também um outro tipo de saber, que não se reduz a
ordem das “coisas-a-saber” ou a um tecido de tais coisas. Logo:
um real constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um saber
que não se transmite, não se ensina, e que, no entanto, existe produ-
zindo efeitos. (PÊCHEUX, 2008, p. 43)
65
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero tomada” (ORLANDI, 2013, p. 31). Todo dizer é, portanto, uma
e a sexualidade posição entre outras em relação a uma memória. Dessa forma, para
que algo faça sentido é necessária a ocorrência anterior de outros
sentidos já fixados na memória discursiva e que possam ser filiados
para o acontecimento presente (MARIANI, 1998).
66
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero só pode ser dito de uma maneira, ignorando toda a rede de famílias
e a sexualidade parafrásticas que indicam que nosso dizer poderia ser outro.
67
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Avaliação de Alunos (PISA), com jovens de 15 anos de 65 países
e a sexualidade diferentes, cujos resultados indicam o melhor desempenho dos
meninos em matemática e das meninas em leitura. A reportagem
visa refletir sobre esses dados, problematizando as possíveis
causas para essas diferenças e como elas influenciam na escolha
profissional dos estudantes.
68
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Observamos que, ao longo do texto, os termos “jovens” e
e a sexualidade “adolescentes” são usados como sinônimos de “estudantes”, como
se todos os jovens fossem também estudantes. Percebemos, a
partir disso, um efeito de silenciamento de outros sentidos possí-
veis para “jovens” e “adolescentes”. Lembrando que estamos nos
referindo aqui a uma das formas de silêncio definidas por Orlandi
(2007), o silêncio constitutivo, cuja definição é de que todo dizer
cala algum outro sentido necessariamente.
69
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero de sentido de disputa de poder entre esses dois grupos, meninos/
e a sexualidade matemática x meninas/leitura.
70
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero sequência, uma atenção maior é dada à diferença das meninas em
e a sexualidade matemática, dados numéricos e precisos são trazidos para exaltar
o melhor desempenho dos meninos em matemática. Disso tiramos
a produção de alguns efeitos de sentido: 1) mostrar que os meninos
não são piores, que eles não estão “perdendo” a disputa e são o
“lado” mais forte; 2) a valorização das ciências exatas em detri-
mento das ciências humanas.
15. GUIMARÃES, Eduardo. A ciência entre as políticas científicas e a mídia. In:__ (org.) Produção
e Circulação do Conhecimento. v.1. Campinas: Pontes, 2001, p. 73-79.
71
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero privilegia as Ciências Exatas em detrimento das Ciências Humanas,
e a sexualidade sendo que essas nem são pensadas pela mídia como ciência (apud
BAALBAKI, 2010, p. 232).
72
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero SD4: Jovens de 15 anos que vivem em 65 países participam
e a sexualidade da análise e uma das conclusões é que o hiato se deve
menos à capacidade e mais às diferenças de autoconfiança
de meninos e meninas na hora de aprender (TINOCO, 2014,
p. 22).
73
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Além disso, em SD6, a falta de confiança é colocada como o
e a sexualidade motivo pelo qual muitas meninas escolhem “não seguir” carreiras de
exatas. Chamamos a atenção aqui para a questão de que, “escolher
não seguir exatas” significa diferente de “escolher seguir humanas
ou área de saúde”. Ao dizer que elas escolhem “não seguir exatas”,
produz-se o efeito de sentidos de que o destino para humanas e
saúde se dá apenas em consequência da falta de suficiente para
escolherem a carreira que seria a de maior dificuldade e prestígio.
Assim sendo elas ficariam com as carreiras mais fáceis e para as
SUMÁRIO quais a autoconfiança não é um requisito necessário.
74
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Passando para a análise da seguinte e última sequência,
e a sexualidade encontramos o recurso do discurso direto (DD) que produz as
ilusões “de fidelidade à palavra do outro, de objetividade na trans-
crição da palavra outra e de neutralidade por parte de quem relata
esta palavra outra” (MEDEIROS, 2006, p. 43), que se apoiam na
possibilidade do DD funcionar como forma autônoma.
75
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Esse movimento apaga toda uma memória de distinção de
e a sexualidade papéis sexuados, toda uma rede de discursos de ordem filosófica,
religiosa, científica, entre outras, que funciona excluindo as mulheres
do mercado assalariado e das posições de poder. O DD, em SD8,
reforça a ideia de que tudo gira em torno da questão da aptidão
vocacional e da escolha individual de uma profissão, considerando
o “sujeito estudante” senhor de suas escolhas (BAALBAKI, 2010).
76
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero intelectuais como os homens, pois não teriam corpo nem cérebro
e a sexualidade adequados e preparados para receber os estímulos que tais ativi-
dades proporcionavam (MARTINS, 2004).
77
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero feminina. Verificamos aí, novamente, a retomada de uma memória
e a sexualidade discursiva que foi, durante o século XIX, reatualizada pelas desco-
bertas da medicina e da biologia, que reproduzem, pelo viés do
cientificismo, o discurso naturalista “que insiste na existência de
duas espécies com qualidades e aptidões particulares. Aos homens
o cérebro (muito mais importante que o falo), a inteligência, a razão
lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres o coração, a sensibi-
lidade, os sentimentos” (PERROT, 2017, p. 186).
78
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero estudante” pode ou não seguir e quais um “menino estudante”
e a sexualidade deve seguir. O “futuro sempre já-lá” (ZOPPI FONTANA, 1997, p.
160) para as meninas está nas ciências humanas ou na área de
saúde, ao passo que o “futuro sempre já-lá” dos meninos está nas
ciências exatas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
SUMÁRIO
Como apresentado em nossa explanação teórica, objeti-
vamos, através de entradas/marcas linguística presentes no corpus,
identificar a inscrição do sujeito do discurso em uma memória
discursiva. Assim, ao longo de nossas análises, depreendemos
uma retomada de “já-ditos” que funcionam “agendando” memórias
de futuro distintas para os sujeitos “estudantes” de acordo com o
gênero. Para as meninas, o “futuro já-lá” está nas profissões das
ciências humanas e de saúde, ao passo que para os meninos está
nas profissões das ciências exatas.
Além disso, vimos que o “futuro já-lá” para meninos (de escola
particular), ou seja, uma profissão das ciências exatas, é um lugar
valorizado em detrimento das ciências humanas e que, no decorrer
79
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero das sequências, justificativas são trazidas para tentar compreender
e a sexualidade o porquê de as meninas não conseguirem entrar nessas profissões.
REFERÊNCIAS
81
DISCURSO, SEXUALIDADE E POLÍTICA: A
“HETEROFOBIA” DE JEAN WYLLYS COM JAIR
Discurso,
BOLSONARO – UM SILENCIAMENTO DA sexualidade
HOMOFOBIA?
e política:
a “heterofobia”
Héliton Diego Lau
de Jean Wyllys com
Jair Bolsonaro –
um silenciamento
da homofobia?
DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.82-98
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero PALAVRAS INICIAIS
e a sexualidade
83
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A NOÇÃO DE SILENCIAMENTO
e a sexualidade
84
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero (ORLANDI, 1993, p. 75). Este subdivide-se em dois: o silêncio
e a sexualidade constitutivo, ou seja, é “o mecanismo que põe em funcionamento o
conjunto do que é preciso não dizer para poder dizer” (ORLANDI,
1993, p. 76); e o silêncio local, o que é proibido de dizer: “Trata-se
da produção do silêncio sob a forma fraca, isto é, é uma estra-
tégia política circunscrita em relação à política dos sentidos: é a
produção do interdito, do proibido” (ORLANDI, 1993, p. 76-77).
A respeito do silêncio local, no decorrer do seu trabalho, Orlandi
(1993) mostra uma censura na sociedade durante o período da
SUMÁRIO ditadura militar brasileira.
[...] quando falamos em censura (silêncio local), não se trata do
dizível sócio-historicamente determinado (o interdiscurso, a memória
do dizer) mas do dizível produzido pela intervenção de relações de
força nas circunstâncias de enunciação: não se pode dizer aquilo
que (se poderia dizer mas) foi proibido (ORLANDI, 1993, p. 108).
85
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Desde a Idade Média, pelo menos, as sociedades ocidentais colo-
e a sexualidade caram a confissão entre os rituais mais importantes de que se
espera a produção de verdade [...]. A própria evolução da palavra
“confissão” e da função que designou já é característica: da
“confissão”, garantia de status, de identidade e de valor atribuído
a alguém por outrem, de suas próprias ações ou pensamentos. O
indivíduo, durante muito tempo, foi autenticado pela referência dos
outros e pela manifestação de seu vínculo com outrem [...]; poste-
riormente passou a ser autenticado pelo discurso de verdade que
era capaz de (ou obrigado a) ter sobre si mesmo. A confissão da
verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individuali-
zação pelo poder (FOUCAULT, 2011 [1976], p. 66-67).
SUMÁRIO
Enquanto o Oriente observava a sexualidade como prazer,
ou seja, pela ars erotica, para Foucault (2011 [1976]), o Ocidente
tomou o sexo apenas como ciência com ajuda da confissão, pois
era a partir do sujeito confessando seus desejos. A partir disso,
o autor cria um dispositivo da sexualidade, ou seja, os discursos
sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado sobre a sexualidade,
instância de organização produzindo diversos discursos que enun-
ciam verdades sobre o sujeito, neste caso, a medicina, em que o
homem casado sentia-se atraído pelo vizinho, por exemplo, ia-se
“patologizar” como praticante do “homossexualismo”, tendo em
vista que a partir do século XIX “criou-se” a homossexualidade e,
através dos discursos sobre ela, a desvalorização desta; e, assim,
criou-se também a heterossexualidade e sua valorização. Por conta
disso, o sexo foi levado para dentro de casa, para a “família tradi-
cional”. Devido a diferentes discursos, pessoas homossexuais eram
consideradas anormais, sendo a palavra “homossexualismo” consi-
derada negativa e, assim, silenciando o sujeito homossexual.
Durante muitos anos ao homossexual foi imposto o silêncio, mas um
silêncio que não o colocava apenas à margem da sociedade hete-
rossexual, mas que o constituía como criminoso-pecador-doente, a
partir dos discursos que podiam lhe dar sentido: jurídico-religioso-
-médico. E ele não fazia sentido se não fosse desse lugar já estabe-
lecido (SOARES, 2006, p. 20).
86
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero O ser humano estar em silêncio, na concepção de Orlandi,
e a sexualidade causa um certo “desconforto”.
Quando alguém se pega em silêncio, se rearranja, muda a
“expressão”, os gestos. Procura ter uma expressão que “fala”.
É a visibilidade (legibilidade) que se configura e nos configura. A
linguagem se constitui para asseverar, gregarizar, unificar o sentido
(e os sujeitos) [...] O silêncio, de seu lado, é o que pode transtornar
a unicidade. Não suportando a ausência das palavras – “por que
você está quieto?, o que você está pensando?” –, o homem exerce
seu controle e sua disciplina fazendo o silêncio falar ou, ao contrário,
supondo poder calar o sujeito (ORLANDI, 1993, p. 36, ênfase da
SUMÁRIO autora).
87
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero O CASO JAIR BOLSONARO X JEAN WYLLYS
e a sexualidade
SD 1
88
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Disponível em: <https://goo.gl/GtthsF>. Acesso em: 30 maio
e a sexualidade 2018, ênfase minha).
89
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero 2018, p. 127). Em contrapartida, até o presente momento, não foi
e a sexualidade registrado nenhum crime de “heterofobia” no Brasil.
O funcionamento do silêncio atesta o movimento do discurso que
se faz na contradição entre o “um” e o “múltiplo”, o mesmo e o
diferente, entre paráfrase e polissemia. Esse movimento, por sua
vez, mostra o movimento contraditório, tanto do sujeito quanto do
sentido fazendo-se no entremeio entre a ilusão de um sentido só
(efeito de relação com o interdiscurso) e o equívoco de todos os
sentidos (efeito da relação com a lalangue) (ORLANDI, 1993, p. 17).
SD 2
“Acho curioso que haja gente que cobre de mim que fique ao
lado desse homem. Desculpe, eu nunca vou ficar, nunca, do
90
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero lado dele. Quantas vezes ele sentar ao meu lado no avião,
e a sexualidade vou levantar”, disse Wyllys [...]. “E não é heterofobia. No avião
havia outros tantos héteros e eu vim do lado de uma mulher
hétero maravilhosa, professora da FGV. Primeiro porque ‘hete-
rofobia’ não existe. Segundo, porque o avião está cheio de
héteros. Portanto, as pessoas que estão comprando a tese
de ‘heterofobia’, eu digo para vocês: ponham seus neurônios
para raciocinar. No máximo, o que eu tive foi uma ‘fascisto-
fobia’, uma fobia de fascistas, de escroques”. Wyllys relembra
SUMÁRIO diversos episódios em que Bolsonaro deu não só a ele, mas
a qualquer pessoa, motivos para não querer voar ao seu
lado. [...] “É impossível que as pessoas percam a memória
em relação ao que esse cara fez. Não estou lidando com
amador, estou lidando com um homem perigoso. Ele entrou
no avião já me filmando, ele sabia que sentaria do meu lado”,
acrescentou Wyllys. “É o mesmo que esperar que um judeu
sente ao lado de um nazista que participou da empresa de
extermínio de judeus. É o mesmo que esperar que um negro
sente ao lado de um racista contumaz que ataca a comuni-
dade negra” (FÓRUM. Jean Wyllys: “Nunca vou sentar ao lado
de Bolsonaro”. Disponível em: <https://goo.gl/eFUzYV>.
Acesso em: 30 maio 2018, ênfase minha).
91
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero direitos dos homossexuais e está no extremo oposto político de seu
e a sexualidade colega Jean Wyllys”).
92
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero sexualidade doentia, pecaminosa, de acordo com os discursos
e a sexualidade médico e religioso.
Consideremos a interpelação médica que apesar da emergência
recente das ecografias, transforma uma criança, de um ser “neutro”
em um “ele” ou em uma “ela”: nessa nomeação, a garota torna-se
uma garota, ela é trazida para o domínio da linguagem e do paren-
tesco através da interpelação do gênero. Mas esse tornar-se garota
da garota não termina ali; pelo contrário, essa interpelação fundante
é reiterada por várias autoridades, e ao longo de vários intervalos
de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito naturalizado. A
nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira
SUMÁRIO e também a inculcação repetida de uma norma (BUTLER, 2007, p.
161).
93
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A evidência do sentido – a que faz com que uma palavra designe
e a sexualidade uma coisa – apaga o seu caráter material, isto é, faz ver como
transparente aquilo que se constitui pela remissão a um conjunto
de formações discursivas que funcionam como um dominante. As
palavras recebem seus sentidos das formações discursivas em suas
relações. Este é o efeito da determinação do interdiscurso (memória)
(ORLANDI, 2012, p. 46).
94
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero a língua, nem a literatura, nem mesmo as ‘mentalidades’ de uma
e a sexualidade época, mas que remete às condições verbais de existência dos
objetos [...] em uma conjuntura histórica dada” (PÊCHEUX, 2012,
p. 151-152), pressuponho os neologismos dos deputados federais
pela ordem da língua, escapando do discurso gramatical, obser-
vando a conjuntura histórica do país, especialmente a crise política
polarizada com discursos extremistas em que esses discursos dos
deputados federais estão materializados e inscritos, bem como as
ideologias distintas que cada um defende.
SUMÁRIO
EFEITO DE FIM
95
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Esses deslocamentos discursivos acerca da(s) homossexualida-
e a sexualidade de(s), segundo o discurso médico, era doença e o termo “homos-
sexualismo” marca(va) isso. Para caracterizar uma não-doença são
trazidos outros termos, sendo o mais comum “homossexualidade”,
em que os discursos sobre este fazem esta orientação sexual a ser
(re)pensada como a heterossexualidade, ou seja, há uma mudança
discursiva. Toda essa mudança foi propiciada por deslocamentos de
discursos para atribuir a homossexualidade hoje. O discurso não é
estagnado, não é mera reprodução, sofre deslocamentos e quando
retomam discursos são (re)significados (LAU, 2018, p. 91-92).
96
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero REFERÊNCIAS
e a sexualidade
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do
“sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). Pedagogias da sexualidade. 2
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 151-172.
SUMÁRIO FERRARI, Anderson. Quem sou eu? Que lugar ocupo? Grupos gays,
educação e a construção do sujeito homossexual. 226 f. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP,
Campinas-SP. 2005.
97
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero SOARES, Alexandre Sebastião Ferrari. A homossexualidade e a AIDS no
e a sexualidade imaginário de revistas semanais (1985-1990). 235 f. Tese (Doutorado em
Estudos Linguísticos). Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense
– UFF, Niterói. 2006.
SUMÁRIO
98
DISCURSO, GÊNERO E AMOR: A MULHER NOS
DISCURSOS SOBRE AMOR
Discurso,
gênero
Fernanda Cerqueira de Mello e amor:
a mulher
nos discursos
sobre amor
Fernanda Cerqueira de Mello
DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.99-119
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Seguindo a orientação de Pêcheux, de que a subjetivi-
e a sexualidade dade não é como algo que “afeta” o sujeito, mas que o constitui
(PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 139), propomos apresentar, neste capí-
tulo, ruminações teóricas que nos acompanham desde a escrita da
dissertação (MELLO, 2018),16 e alguns recortes do que produzimos
pensando como os discursos sobre o amor atravessam a consti-
tuição da subjetividade da mulher. A questão que lançamos é: como
os discursos sobre amor atravessam o modo de constituição da
subjetividade da mulher?
SUMÁRIO
Esclarecemos de antemão que não tratamos aqui de uma
noção universal de “mulher”. Da perspectiva teórica da Análise do
Discurso, teoria em que se inscreve este trabalho, trabalhamos com
a noção de sujeito submetido à ordem do inconsciente e da ideo-
logia, que produz o assujeitamento que marca a subjetividade. Ao
falarmos de mulher, falamos da inscrição de um sujeito em uma
determinada posição, inscrição essa que é social (ideologia) e
também singular (inconsciente).
16. Orientada pela Professora Doutora Silmara Dela Silva e intitulada “O amor e a mulher: uma
análise discursiva do documentário Cativas: presas pelo coração”.
100
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero agacham em cima de um espelho para que os agentes confiram se
e a sexualidade elas carregam drogas ou armas em suas partes íntimas. Ao longo
do filme, essas mulheres se expõem, se desnudam física e emocio-
nalmente, ao falarem de si e de suas relações. A partir do material
selecionado, nossa proposta foi analisar sequências discursivas
constituídas por relatos das mulheres a respeito da relação que
estabelecem com seus parceiros presos. E são os recortes que
selecionamos para as análises que apresentaremos neste artigo.
101
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero interpelado ideologicamente, o sujeito se identifica imaginariamente
e a sexualidade com uma posição em uma dada formação discursiva – que corres-
ponde a um “saber constituído de enunciados discursivos que
representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente,
regulando o que pode e deve ser dito e o que não deve ser dito”
(INDURSKY, 1998, p. 115). De nossa perspectiva teórica, ao signifi-
car(-se), o sujeito já está na ideologia e é, antes de tudo, falado pelo
inconsciente; não há outra maneira do sujeito significar(-se) que não
seja pelo discurso.
SUMÁRIO
Falar é submeter-se à ordem simbólica, é assujeitar-se à
linguagem e à história, por isso consideramos, neste trabalho, a
partir dos relatos das mulheres, que é possível investigar os atra-
vessamentos dos influxos da história no modo como as mulheres
falam de si quando relatam seus relacionamentos. Se pensamos
o sujeito enquanto uma posição: posição sujeito; é essa posição
que delimita os sentidos possíveis para esse sujeito, em função da
sua relação com a história e com a língua. Com isso, buscamos
compreender como essas mulheres em seus relatos se significam
em relação ao amor que sentem por seus parceiros, em que posição
elas se inscrevem quando falam disso que elas se ocupam, o amor.
Buscamos compreender que memórias e imaginários emergem nos
relatos dessas mulheres e que historicidade legitima determinados
dizeres e sentidos e não outros.
102
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero vida delas”. Trata-se, portanto, de um filme sobre mulheres que
e a sexualidade amam presidiários e que contam as limitações e dificuldades desse
relacionamento. Ainda que a sinopse reconheça as limitações e a
possibilidade de que esse relacionamento provoque destruições
nas vidas dessas mulheres, o eixo temático recortado pelo filme é
o amor que as aprisiona na relação. O recorte dispensado ao tema
já expõe um gesto de leitura sobre mulher e sobre o amor, uma vez
que colocam os dois em relação direta e a mulher submetida ao
sentimento.
SUMÁRIO
A relação entre o amor e o feminino comparece na sinopse na
afirmação de que elas ficam no relacionamento porque se sentem
amadas e valorizadas e por isso elas insistem num relacionamento
cheio de privações e constrangimentos. Roudinesco (2003) afirma
que há diversas formas de abordar relações de dominação, de
igualdade ou de desigualdade entre os homens e as mulheres, e
ela destaca duas: a da sobreposição do sexo sobre o gênero; e
do gênero sobre o sexo. Acerca da sobreposição do sexo sobre
o gênero, a autora aponta que, no século XVIII, uma perspectiva
sustentava a existência de uma “outra natureza feminina invariante”
(ROUDINESCO, 2003). De acordo com Roudisneco, essa teoria:
Tomava como referência as posições expressas por Jean-Jacques
Rousseau na quinta parte do Emílio e na Nova Heloísa. Invertendo
a perspectiva cristã, Rousseau afirmava que a mulher era o modelo
primordial do ser humano. Porém, ao ter esquecido o estado de
natureza, tornara-se um ser artificial e mundano. Para se regenerar,
devia então aprender a viver segundo sua verdadeira origem. A
regeneração devia assumir a forma de um retorno a uma linguagem
anterior às palavras e ao pensamento, que se assemelhasse a uma
essência fisiológica da feminilidade. Nessa perspectiva, a mulher
poderia finalmente voltar a ser um ser corporal, instintivo, sensível,
débil organicamente e inapto para a lógica da razão. (ROUDINESCO,
2003, p. 122-123)
103
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero é instintiva, ela estaria diretamente relacionada ao seu corpo, que
e a sexualidade é capaz de gerar, mas nada na mulher apontaria para a possibili-
dade de uma entrega a qualquer atividade que inclua o raciocínio,
o intelecto (MELLO, 2018). Sob a perspectiva do sexo anatômico
sobreposto ao gênero, a diferença sexual é pensada em comple-
mentaridade e a mulher seria “um alter ego do homem, dividindo
com ele um prazer carnal e um papel social” (ROUDINESCO,
2003, 111). A divisão do papel social destina ao homem o lugar
de patriarca, responsável pelo sustento da casa e representante
SUMÁRIO social da família e à mulher, o espaço doméstico, responsável por
gerar filhos e cuidar do lar e do marido. Aos homens, pertenciam os
corpos físicos e sociais das mulheres.
104
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero (DEL PRIORE, 2012, p. 23). No interior desse sistema, o amor entre
e a sexualidade o homem e a mulher era da ordem familiar, uma vez que a mulher
como esposa deveria amar e obedecer ao seu esposo e o homem
deveria amar a mulher mãe de seus filhos e responsável pelos
cuidados da família como um todo. Assim, o homem deveria amar
sua esposa com ternura, pois era preciso discipliná-la, uma vez que
era vista como “o centro dos apetites, desejosa de muitas cousas
(sic), e se o homem convier (sic) com seus desejos, facilmente cairá
nos maiores precipícios” (DEL PRIORE, 2012, p. 23).
SUMÁRIO
O que esses manuais e o modo como o casamento se institui
no Brasil, conforme exposto por Del Priore, mostram é que a mulher
era associada àquilo que é da ordem dos afetos e dos impulsos e,
por isso, deveria ser contida. Dentro dos relacionamos “amorosos”,
o homem, por ser o cérebro do casal, deveria justamente conter os
instintos da mulher, constituindo junto à esposa uma família da qual
a mulher deveria se ocupar.
105
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero para todas: a maternidade. A fim de melhor corresponder ao que se
e a sexualidade espera delas (que é, ao mesmo tempo, sua única vocação natural),
pede-se que ostentem as virtudes próprias da feminilidade: o recato,
a docilidade, uma receptividade passiva em relação aos desejos e às
necessidades dos homens e, a seguir, dos filhos. (KEHL, 2016, p. 40)
106
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Assim, o funcionamento do discurso em sua relação com a
e a sexualidade ideologia se faz possível pela existência de uma memória. O que
sustenta o discurso é a relação com sentidos outros produzidos em
outros processos discursivos, ou seja, ao dizer o sujeito se filia a
“todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que deter-
minam o que dizemos” (ORLANDI, 2001, p. 33).
GESTOS DE ANÁLISE
107
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero discursiva, optamos por manter os nomes das mulheres como elas
e a sexualidade são identificadas no documentário. Isso porque acreditamos que,
por mais que teoricamente só haja duas posições possíveis: das
mulheres que se relacionam com presidiários e das mulheres que
não se relacionam mais com presidiários; cada história relatada por
essas mulheres possui seus traços de singularidades, assim como
elas e, por isso, optamos por manter as sequências discursivas
acompanhadas pelos nomes.
108
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero que atravessa os sentidos que se produzem imaginariamente sobre
e a sexualidade o amor e, também, sobre as mulheres. A feminilidade, portanto,
parece advir da necessidade de preencher de sentido a mulher e,
assim, ao incorporarem esse lugar da feminilidade, as mulheres
criaram uma posição, projetando uma determinada formação
imaginária de mulher, para a partir dela fazer derivar outros sentidos
possíveis, como faz Cida, na SD1. No entanto, o processo de
interpelação ideológica não funciona igualmente para todos os
sujeitos; esse processo se dá de modo singular pelo atravessamento
SUMÁRIO do inconsciente. Ainda que Cida se filie a esse imaginário de mulher
que não pensa, mas sente, ela consegue deslocar os sentidos de
mulher submissa ao sentimento porque quando ela se dá conta
de que o sentimento do parceiro era interesse, para poder diminuir
a pena, e não amor, ela se desfaz da relação, como vemos na
sequência discursiva a seguir:
SD2: Porque antes ele era bonitão mesmo, mas era bandido,
pinta de bandido, não gosto, eu gosto do homem bonito, mas
bonito por tudo, por dentro e por fora. Esse negócio de bonito
por fora só é lindo, lindo, mas por dentro é um monstro, pra
quê? Pra me devorar? Quero não. Vai me devorar não.
109
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero A resistência, portanto, possibilita o deslocamento de sentidos já
e a sexualidade estabilizados, conforme aponta Mariani:
E conforme Pêcheux, o que é a resistência, em termos discursivos?
É a possibilidade de, ao dizer outras palavras no lugar daquelas
prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos já esperados. É ressig-
nificar rituais enunciativos, deslocando processos interpretativos
já existentes, seja dizendo uma palavra por outra (na forma de um
lapso, um equívoco), seja incorporando o non sens, ou simples-
mente não dizendo nada. (MARIANI, 1998, p. 26)
110
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Cida é a única mulher do documentário que não está mais
e a sexualidade com o parceiro, mas assim como as outras mulheres, ela em algum
momento se submeteu às privações e dificuldades do relaciona-
mento com um presidiário, e essa submissão se sustentava porque
ela amava o parceiro, porque ela se envolveu com o coração. É o
amor das mulheres que sustenta o relacionamento, uma vez que
o esforço de promover o encontro entre os dois amantes é delas,
porque só elas podem fazer o trânsito de entrar e sair da penitenci-
ária. O caráter afetivo das mulheres, portanto, é um fator importante
SUMÁRIO para que esse relacionamento se mantenha e que elas busquem e
aceitem a condição da relação.
SD3: [...] mulher de cadeia tem isso não pode olhar porque
aquele cara tá olhando, não existe isso, mas no psicológico
da gente não pode, ele tá trancado. Como é que eu tô olhando
pro cara e o cara tá me olhando se eu também tô presa, né?
E isso não é legal. Quando eu ando de moto, com a minha
moto, com o vento no meu rosto me dá uma sensação de
liberdade é o único momento que eu me sinto livre, quando
eu tô andando de moto. Que eu posso sentir o rosto, eu tô
viva, tenho uma liberdade, só nesse momento. Eu cheguei em
casa eu sou presa, no meu serviço eu sou presa, com o meu
marido eu tô presa, então eu sou uma mulher presa, é isso
que eu sinto. [ANDREIA]
111
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Na SD3, extraída do relato de Andreia, temos a afirmação de
e a sexualidade que o único momento em que ela se sente livre é quando anda
de moto, porque é o momento em que ela se sente viva. Quando
ela ocupa todos os outros espaços, no trabalho, em casa e com
o marido ela é uma mulher presa e, consequentemente, sem vida.
A falta de liberdade imposta pela relação com um homem preso
impõe tantas limitações, como o fato de não poder olhar para outro
homem, que faz com que a mulher que está dentro desse relaciona-
mento sinta essa prisão como a morte.
SUMÁRIO
Rougemont, em O amor e o Ocidente, desenvolve um
percurso histórico do amor no Ocidente, desde Platão, aos clás-
sicos medievais, como Tristão e Isolda e Romeu e Julieta. Na obra,
o autor aponta que o amor cristão “é a obediência no presente.
Porque amar a Deus é obedecer a Deus, que nos ordenou amar uns
aos outros” (ROUGEMONT, 1988, p. 57). Assim, o amor, tal como
é entendido na perspectiva cristã, é concebido à imagem do amor
de Cristo, porque o homem ama o outro “em suas formas e limi-
tações” (ROUGEMONT, 1988, p. 57). De acordo com o autor, nas
sociedades ocidentais que possuem o cristianismo como religião, o
casamento é o símbolo maior da concretização do amor. É através
dele que as famílias tradicionais se constituem, pois é por ele que os
filhos de Deus são reproduzidos. O amor é um dever: todos devem
amar e casar-se, formando, deste modo, a família composta pela
boa esposa, o bom marido e os filhos.
112
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero marcado pela sequência em que ela afirma que não se sente viva,
e a sexualidade ela ainda assim se mantém na relação.
114
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Nos recortes que selecionamos sobre as mulheres, esse
e a sexualidade imaginário de amor romântico, institucionalizado pelo cristianismo,
pelo viés do casamento, vai tecendo a submissão dessas mulheres
a esse relacionamento, porque esse “dever” e esse “destino”, que
se estabelece no amor romântico, subordina essas mulheres. Elas
devem suportar o casamento com um homem preso porque elas
amam; se o marido é preso elas são presas também, porque elas
amam. As situações a que essas mulheres se submetem para
estarem com o marido na penitenciária diz respeito a essa expec-
SUMÁRIO tativa do encontro com o amado, à expectativa de ser preenchida
por aquele sujeito por quem elas nutrem um sentimento. Podemos
afirmar, portanto, que o amor, ao ser discursivizado, está ligado a
questões ideológicas, afetando as mulheres que se inscrevem em
uma dada posição discursiva para (se) significar e se constituir
como sujeito.
115
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero linguagem, a luta de classes ideológicas é uma luta pelo sentido
e a sexualidade das palavras, expressões e enunciados, uma luta vital por cada uma
das duas classes sociais opostas que têm se confrontado ao longo
da história” (PÊCHEUX, [1978] 2011, p. 273). Há no documentário
a materialização das disputas em jogo acerca dos sentidos sobre a
mulher. Essas disputas se materializam nos relatos das mulheres e
no gesto de interpretação do documentário sobre a mulher e sobre
o amor.
116
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero tanto neste trabalho quanto na dissertação em que iniciamos esta
e a sexualidade discussão, nos ocupamos em pensar os processos de produção
de sentido para a mulher a partir das discursos sobre o amor no
documentário que compõe nosso corpus, reconhecendo que não
há um único gesto de interpretação possível, mas leituras possíveis
que não se fecham e seguem provocando inquietações.
REFERÊNCIAS
SUMÁRIO
DEL PRIORE, M. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
117
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ORLANDI, E.P. Análise de Discurso. In: LAGAZZI-RODRIGUES, S.;
e a sexualidade ORLANDI, E.P. (Orgs.). Introdução às ciências da linguagem. Discurso e
textualidade. Campinas-SP: Pontes, 2006.
119
DISCURSO, GÊNERO E SAÚDE MENTAL: A
QUESTÃO DA LOUCURA NO DICCIONARIO DE
Discurso,
MEDICINA POPULAR gênero
Amanda Bastos Amorim de Amorim
e saúde mental:
a questão da loucura
no Diccionario
de Medicina Popular
Amanda Bastos
Amorim de Amorim
DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.120-139
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Se tudo então já foi dito
e a sexualidade Se tudo bem já foi feito
Se há milhões de interditos
Anuviando meu peito
Como pode um sujeito como eu não se despedaçar?
INTRODUÇÃO E MOTIVAÇÕES
SUMÁRIO
Este ensaio compõe uma pesquisa mais ampla em desen-
volvimento que busca, a partir do aporte teórico-metodológico da
Análise do Discurso de linha francesa, investigar o funcionamento
discursivo de verbetes relacionados a questões de saúde mental,
gênero e sexualidade em dicionários de Medicina e dicionários
de Língua Portuguesa. Essas obras são instrumentos linguísticos,
tais como gramáticas, glossários e outros, na medida em que dão
“acesso a um corpo de regras e de formas que não figuram juntas
na competência de um mesmo locutor” (AUROUX, 2009 [1992], p.
70). Em particular, interessa investigar como, nesses instrumentos,
ocorre o processo de patologização e despatologização de fenô-
menos, ou seja, quando algo deixa de ser considerado normal e
passa a ser ou uma doença, sinal ou sintoma de uma doença, bem
como o processo inverso, quando deixa de se atribuir a um fenô-
meno o estatuto de patológico.
121
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero verbetes relacionados à sexualidade não mostraram o processo
e a sexualidade de despatologização completo, ou seja, não foram abandonados
os termos que operam em uma lógica patologizante de gêneros
e sexualidades dissidentes.18 Uma vez encontrados esses fenô-
menos, a pesquisa foi redirecionada para tratar especificamente de
gênero, sexualidade e como se apresentam regularidades e deslo-
camentos dos sentidos relacionados aos verbetes selecionados
para o corpus nos dicionários de Medicina e de Língua Portuguesa.19
Neste ensaio, será apresentada a análise específica do verbete
SUMÁRIO loucura no Diccionario de Medicina Popular, de Napoleão Chernoviz.
No desenvolvimento, se fará necessário comparar e referir a outros
dicionários que compõem o corpus, o que será feito por meio de
notas de rodapé conforme a necessidade para este texto.
18. O termo tem sido adotado para designar experiências e vivências que não correspondem
às normas da heterossexualidade (como pessoas bissexuais, pansexuais, lésbicas e gays) e
da cisgeneridade (pessoas transgêneras). Cf. Duarte e Silva (2014). Embora o dicionário de
Chernoviz aqui analisado trate da dicotomia masculino/feminino na ordem da cisnorma (consi-
derando apenas indivíduos cisgêneros, identificados ao gênero designado no nascimento),
buscamos não excluir a transgeneridade. Por isso, em alguns pontos, foi feita a opção de
empregar terminologias como “sujeitos que ocupam o lugar de mulher”, abarcando mulheres
transgêneras e pessoas não binárias – que estão fora dessa dicotomia –, considerando a leitura
que a sociedade faz de tais sujeitos.
19. Ao passo que alguns sentidos se cristalizam e algumas definições permanecem inalteradas
a partir da formulação em um certo dicionário, alguns sentidos são eventualmente deslocados –
como se verá em particular nos verbetes relacionados à sexualidade.
20. A data corresponde à sexta edição da obra, disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/
dicionario/edicao/4. A primeira edição é de difícil acesso, tornando a consulta inviável. Entretanto,
o prefácio da sexta edição detalha as modificações e acréscimos, que foram muitos, compa-
rados às edições anteriores. Em particular, essa edição se mostra interessante por nela constar
pela primeira vez o verbete histeria.
122
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Feita a contextualização do ensaio dentro da área, serão
e a sexualidade apresentadas as motivações – outros verbetes encontrados no
processo de levantamento dos dados – que foram decisivos para
o encaminhamento da pesquisa neste sentido e que dão notícia de
que há questões de gênero a investigar nos dicionários.
21. O dicionário de Bluteau é rico no detalhamento das definições, nas quais são impressos traços
ideológicos daquele momento histórico. São trazidas a memória de grandes autores e crenças
populares, próprios dos saberes lexicográficos sobre os quais este dicionário é construído.
123
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ainda, termos dicionarizados ou ainda não dicionarizados segundo
e a sexualidade uma lógica patologizante, predominante nas áreas da saúde, o
que vem a indicar como a Clínica exerce um poder coercitivo sobre
os discursos, através dos dispositivos de poder de que dispõe
(FOUCAULT, 2008 [1971]).
22.O Novo Diccionário da Língua Portuguesa, de Cândido Figueiredo, data de 1899 é conside-
rado o primeiro dicionário completo de Língua Portuguesa (NUNES, 2013), pois tem por objetivo
ampliar a documentação do léxico da Língua Portuguesa. Ele é particularmente interessante por
ser publicado na virada do século XIX para o século XX e ampliar consideravelmente a ocorrência
de termos da área médica, quando comparado ao dicionário de Moraes.
124
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero As leituras dos primeiros verbetes investigados direcionaram
e a sexualidade a pesquisa para aprofundamentos em relação aos sentidos que
circulam nesses dicionários e tendem a ser silenciados no processo
de construção desses instrumentos. Compreende-se a ideologia
como “a direção nos processos de significação, direção esta que se
sustenta no fato de que o imaginário que institui as relações discur-
sivas (em uma palavra, o discursivo) é político” (ORLANDI, 1990, p.
36). Dadas essas considerações iniciais, segue a análise do verbete
principal deste ensaio.
SUMÁRIO
23. Cabe evidenciar que o autor publicou, um ano antes, o Formulário ou guia médico, obra
semelhante e de mesmo impacto, mas destinada aos profissionais da Medicina, contendo infor-
mações sobre as doenças e especificações sobre o preparo dos medicamentos e tratamentos
aplicáveis. Guimarães (2003, 2005) destaca que, embora as obras sejam dirigidas a públicos dife-
rentes, ambos foram chamados “o Chernoviz”, uma imprecisão estabelecida que se sustentou
na literatura. Esta imprecisão não afeta de maneira determinante o recorte desta pesquisa, no
entanto, em particular porque o dicionário é uma obra mais vasta do que o formulário.
125
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero época. Guimarães (2005) destaca que, por exemplo, no verbete lepra
e a sexualidade consta “os médicos árabes davam este nome a todas as moléstias
da pele caracterizadas por formas hediondas”. Desta forma, o autor
define um termo que não estaria em uso pelos médicos acadê-
micos, mas ainda era de amplo uso popular naquele período, esta-
belecendo uma conexão entre os públicos e marcando o propósito
de fixar – para os profissionais da área, como médicos e farmacêu-
ticos de locais mais remotos – as informações sobre cuidados à
saúde, que, naquele momento, eram restritas aos profissionais que
SUMÁRIO atuassem nos grandes centros.
24. Compreende-se memória discursiva como “um espaço móvel de disjunções, de desloca-
mentos e de retomadas, de conflitos de regularização [...] um espaço de desdobramentos,
réplicas, polêmicas e contra-discursos” (PÊCHEUX, 1999, p. 56).
126
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero refletir sobre o que acontece na Clínica em paralelo à publicação dos
e a sexualidade dicionários quanto observar quais discursos são retomados, quais
memórias são evocadas e quais dizeres são silenciados ou perpe-
tuados publicação após publicação. Interessa compreender como
se constitui uma certa memória lexicográfica em torno da loucura
– constituída pelo processo referido de definições, apagamentos,
paráfrases e sinonímias nos dicionários – e quais filiações ideoló-
gicas comparecem nos textos. Desta forma, podemos compreender
o que Nunes (2003) chama de posições de sujeito lexicográfico, ou
SUMÁRIO seja, “lugares enunciativos, historicamente constituídos, a partir dos
quais se diz a significação lexical” nos dicionários.25
127
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Neste excerto fica expresso também o caráter generalista da
e a sexualidade publicação, destinada a um público mais amplo, não restrito aos
profissionais da área da saúde.
128
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade é um grande obstaculo á sua cura. Interesses de muitos generos combinam-se
para determinar as famílias a encerrar os alienados nos estabelecimentos
publicos ou particulares. Primeiro que tudo, a segurança publica impõe justa-
mente esta obrigação. A liberdade, qua se deixa a estes doentes em seus domi-
cílios compromette a vida d’elles e a das pessoas que os rodeiam; mil motivos
devem fazer preferir a sua morada em um estabelecimento próprio. A experiencia
prova que um muito maior numero de loucos são curados nos estabelecimentos
do que quando são conservados no seio de suas famílias.
[...]
No Rio de Janeiro, até o anno de 1841, não havia outro asylo para os loucos
senão o hospital de Misericórdia, onde estes infelizes se achavam na mais mise-
rável posição. Já desde o ano de 1830 a Sociedade de Medicina clamava contra
SUMÁRIO tal estado de cousas, e fez a este respeito vivas representações á administração.
O sabio secretario da Academia de Medicina, o Sr. Dr. De-Simoni, em uma
Memoria cheia de convicção e de logica que publicou, fez sentir a necessidade
da creação de um estabelecimento separado em que os loucos pudessem ser
submetidos a um tratamento conveniente. [...]
27. Editado de 1939 a 1944, o Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, de Laudelino
Freire, instaura uma divisão social marcada, por um lado, pela “configuração de um imaginário da
língua dos clássicos” (NUNES, 2013, p. 161) e, por outro, pelos plebeísmos e gírias que devem
ser evitados. Nunes ressalta, ainda, que o autor retoma tanto o dicionário de Moraes quanto o de
Figueiredo, sendo uma paráfrase do segundo e fazendo comparecer em seu prefácio a compa-
ração entre os dois, informando o acréscimo de grande quantidade de termos. Neste exemplo,
Freire não recorre à paráfrase e insere uma nova acepção.
129
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero espírito, que agitam fortemente põem em lida a vaidade, a
e a sexualidade ambição etc.; as grandes revoluções políticas, a superstição,
os terroros religiosos, a saciedade de todos os gozos, os
excessos venereos, os licores fortes, a leitura dos romances
e dos maos livros, o ocio, a congestão cerebral, frequente,
são as causas que predispõem à loucura. Mas as causas
que a determinam ordinariamente consistem quasi todas nas
affecções moraes vivas ou contínuas, taes como a colera, o
susto, uma perda subita de fortuna, uma felicidade inespe-
SUMÁRIO rada, um pezar violento, os excessos de estudos, a ambição
malograda, o amor proprio humilhado, o ciume, os aconteci-
mentos políticos, os pezares domesticos, o amor contrariado,
o fanatismo, etc. [...]
130
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero do juízo e da razão, encontrada regularmente nos dicionários desde
e a sexualidade Bluteau. Dentre as causas que predispõem à loucura ou que servem
como um gatilho que a ativariam, observa-se uma filiação (i) à moral
religiosa, quando se indicam os excessos venéreos, superstição
e “maos livros” como causas; (ii) a uma lógica de mercado, que
demanda sujeitos produtivos, condenando o ócio; (iii) a um conser-
vadorismo político, dado que “grandes revoluções políticas” predis-
põem e acontecimentos políticos podem engatilhar a loucura; (iv) a
uma lógica patriarcal de controle dos corpos, sobretudo dos femi-
SUMÁRIO ninos, quando se afirma, como primeira causa para predisposição
da loucura “o sexo feminino” – desta forma, qualquer pessoa desig-
nada mulher no nascimento é potencialmente louca, o que confi-
gura uma patologização do feminino e será um dos eixos em que
nos concentraremos adiante.
131
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero no caso dos leprosos nem há no caso dos loucos. Sobre este breve
e a sexualidade tratamento sobre as doenças venéreas, Foucault (2014 [1972], p.
7) afirma: “não são as doenças venéreas que assegurarão, no
mundo clássico [o autor se refere ao fim do século XV] o papel
que cabia à lepra no interior da cultura medieval. Apesar dessas
primeiras medidas de exclusão, elas logo assumem seu lugar entre
as outras doenças”.
132
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero banhos de 10 a 12 horas que provocavam diversas reações fisioló-
e a sexualidade gicas que eram considerados passos em direção à cura.
133
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero convem”, afirmando continuamente a necessidade de internação
e a sexualidade e, consequentemente, afastamento da sociedade, uma forma de
exílio, destacando sempre que o louco representa risco constante.
Em seguida, se dá notícia de asilos e técnicas terapêuticas apli-
cadas naquele momento. Por fim, são indicadas as diretrizes para
medicação dos pacientes.
134
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero do discurso desse sujeito lexicógrafo médico que é dispensado de
e a sexualidade justificar de forma pormenorizada, dado que o prestígio da profissão
lhe confere autoridade.
A PATOLOGIZAÇÃO DO FEMININO NO
DICCIONARIO DE MEDICINA POPULAR
135
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero por conta das doenças venéreas, essa loucura, cuja primeira causa
e a sexualidade poderia ser o sexo feminino, é tratada por internação e alienação da
sociedade. Observe-se a SD3:
136
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero podem levar à loucura; o ócio – embora não seja concedida a ela
e a sexualidade o papel de força produtiva na sociedade, ela não pode descuidar
dos serviços ou da coordenação dos serviços do lar; o ciume –
sentimento que é atribuído frequentemente a elas e que, portanto,
deve ser controlado; o amor contrariado – neste, inferimos que seria
quando o homem não tem seu amor correspondido e, então, a
mulher seria culpada por levar o homem à loucura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
138
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero de medicina popular no Império. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro:
e a sexualidade Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2003.
139
DISCURSO, SEXUALIDADE E VIOLÊNCIA: ENTRE
A “MULHER DIREITA” E A “VADIA” - ANÁLISE DA
Discurso,
CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA sexualidade
SEXUAL EM POSTS NO FACEBOOK.
e violência:
Ana Cecília Trindade Rebelo entre a “mulher
direita” e a “vadia” -
análise da
culpabilização
da vítima de
violência sexual
em posts
no Facebook
Ana Cecília Trindade Rebelo
DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.195.140-162
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero INTRODUÇÃO
e a sexualidade
28. Sentido, termo que no presente artigo é recorrente, é tomado aqui como “além de linguís-
tico, [...] social, e, por conseguinte, o centro organizador do domínio nocional, além de semân-
tico, também é ideológico, selecionando certos efeitos de sentido relacionados a um termo e
excluindo outros, de modo que um mesmo termo pode ocorrer em domínios nacionais ideo-
logicamente diferentes, produzindo efeitos de sentido divergentes, instaurando a interincom-
preensão, que consiste em usar a mesma língua, partilhar o mesmo tema, mas não o mesmo
sentido.” (INDURSKY, 2013, p.32, grifo da autora).
141
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Para observar tais movimentos, tomamos como ponto de
e a sexualidade partida para a pesquisa e constituição do corpus as hashtags
utilizadas nas postagens recortadas. As hashtags são usadas
em redes sociais como Twitter, Facebook e Instagram para identi-
ficar mensagens e/ou fotos relacionadas a um tópico específico,
sendo compostas pelas palavras-chaves do assunto antecedida
pelo símbolo #. Elas funcionam como indexadores para facilitar
buscas por uma informação específica dentro da rede. Nos últimos
anos, pode-se observar a intensificação de movimentos de utili-
SUMÁRIO zação de tais indexadores para trazer à esfera de discussão pública
a busca pela conscientização sobre o problema da violência contra
mulheres a partir de narrativas normalmente mantidas na esfera
privada, marcadas por chamadas como #precisamosfalarsobreas-
sedio, #meuamigosecreto e #abusosexual, entre outras.
142
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero produção de efeitos de sentido similares a outras denominações
e a sexualidade circulantes na sociedade de que tal sujeito, por sua conduta, atraiu
para si a violência sofrida, ou seja, seria culpada de sua má sorte).
Percebe-se como nesses movimentos constrói-se uma imagem de
“ela” como não pessoa, que é trazida ao dizer e nele enunciada,
mas que não necessariamente tem a possibilidade de ser alçada
à posição de pessoa discursiva. Denominamos tal imagem como
não-sujeito, categoria que seria facilmente apagada e silenciada do/
no discurso. Não sendo sujeito de direito, o que acontece a essa
SUMÁRIO mulher não seria imputável moralmente e/ou juridicamente, um
não-ato (não haveria violência nem estupro). Propomos assim uma
reflexão sobre as condições de existência de um sujeito mulher em
nossa sociedade atual, considerando as forças em disputas e as
alianças que sobre tal (não-)sujeito atuam.
PROBLEMA
143
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero a vontade de quem usa ou de acordo com normas sociais de uso,
e a sexualidade disposição e controle do mesmo.
JUSTIFICATIVA
144
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero De tal citação tiramos a pretensão de que o presente capí-
e a sexualidade tulo e, principalmente, a tese do qual faz parte possam de alguma
maneira colaborar para o aprofundamento da discussão e reflexão
sobre o corpo feminino, as formas de violência que atuam sobre
ele, e as condições de existência de um sujeito mulher em nossa
sociedade atual.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
145
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Esse locutor se faz sujeito em Benveniste, sendo, dessa
e a sexualidade forma, “um sujeito muito forte, portador soberano e consciente de
intenções e responsável por suas decisões e seu dizer.” (INDURSKY,
2013, p. 35). Como entendemos em AD, o ser “responsável por suas
decisões e seu dizer” (idem),o ser sujeito centrado e origem de seu
dizer, é um efeito de sentido, ocorrendo quando o indivíduo é inter-
pelado em sujeito pela ideologia, que é desde sempre um processo
de assujeitamento. O assujeitamento é entendido, aqui, como
acontecendo através da língua, com o entrar do indivíduo no mundo
SUMÁRIO como sujeito discursivo a partir do momento em que ele responde à
interpelação da ideologia através da língua, em um ritual visto como
sem falhas, como uma “fantasia da totalidade” (MALDIDIER, 2011,
p. 53-54), no qual o sujeito não se percebe assujeitado à ideologia,
e assim se vê como dono de seu dizer e origem do seu sentido.
29. Presente aqui entendido como sendo no empírico, pois no discurso, há um efeito de distan-
ciamento, de apagamento – ou seja, de ausência.
30. Entendido aqui como as diferentes posições que podem ser ocupados pelo sujeito discur-
sivo, ou seja, entendido não como “uma forma de subjetividade, mas (…) a posição que deve e
pode ocupar todo indivíduo para ser sujeito do que diz” (ORLANDI, 2013, p.49).
147
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero (BENVENISTE, 1991) –, podemos entender o “nós” como proteção
e a sexualidade de face ao “eu”, como forma de não-responsabilização do dizer,
já que
Esse “nós” é algo diferente de uma junção de elementos definíveis;
a predominância de “eu” é aí muito forte, a tal ponto que, em certas
condições, esse plural pode substituir o singular. A razão está em
que “nós” não é um “eu” quantificado e multiplicado, é um “eu”
dilatado além da pessoa estrita, ao mesmo tempo acrescido e de
contornos vagos. [...] De outro lado, o emprego de “nós” atenua a
afirmação muito marcada de “eu” numa expressão mais ampla e
difusa [...] expressões nas quais se misturam a necessidade de dar
SUMÁRIO a “nós” uma compreensão indefinida e a afirmação voluntariamente
vaga de um “eu” prudentemente generalizado. (BENVENISTE, 1991,
p. 257-258, grifo do autor)
148
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Dado que nós designa conjuntos lexicalmente não nomeados, nós
e a sexualidade os entendemos como uma não pessoa discursiva. Ou seja, na inter-
locução discursiva, a não pessoa discursiva corresponde ao refe-
rente lexicalmente não especificado ao qual eu se associa para
constituir nós. (INDURSKY, 2013, p. 83, grifos da autora)
METODOLOGIA
31. Trabalharemos com “ela” dentro da possibilidade “ele/ela” para marcar que estamos focando
aqui em um sujeito mulher, e em particular um sujeito mulher que é posta no palco dos embates
de sentidos como sendo alvo de disputas entre ser vítima ou culpada pelo que acontece com
seu corpo, ou entre ser reconhecido ou não que algo de errado foi feito desse/com esse corpo.
32. Aqui, recorremos à preposição “com” para não partir de um pressuposto que a preposição
“contra” sugeriria – ainda que, como sujeito empírico, nas relações sociais, encaremos, sim, os
atos que percorrem as narrativas do corpus como sendo atos contra o corpo feminino e reconhe-
çamos, assim, nossas implicações no texto.
149
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero contra o corpo feminino, especialmente nas redes sociais, que
e a sexualidade tomamos como palco frutífero para assistir a disputas de sentidos
nesse campo de discussão.
150
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero etc., e quando necessário, Cn.n.n, configurando então uma árvore
e a sexualidade de muitos galhos do qual a postagem originária seria o tronco33.
C1. 1
C1
C1. 2
C2. 1
C2
C2. 2
C3. 1
C3
C3. 2
Cn. n
Cn
Cn. n. n
SUMÁRIO
Figura 1 - Diagrama da estruturação de postagens e comentários
ANÁLISE
33. Caberia nessa seção o questionamento da razão de se realizar as análises de uma forma que
poderia ser considerada linear (um comentário após o outro), considerando que a montagem de
um corpus discursivo envolveria a decomposição de um corpus empírico e sua recomposição
visando ao discursivo, que não necessariamente seria de uma forma linear. Defendemos, no
entanto, que a organização dos dizeres no fio discursivo de uma postagem (com seus comen-
tários) se apresenta linear aos olhos, mas, como apontamos na imagem da árvore no parágrafo
anterior, o que se tem são idas e vindas de dizer X e responder a X – e talvez nem mesmo a
imagem de uma árvore frondosa seja a melhor das construções, ficando possivelmente mais
compreensível a imagem de uma planta trepadeira, na qual não se identifica com clareza o fim
nem o começo, já que seus galhos estão relacionados entre si em um emaranhado.
151
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Começaremos, pois, pela apresentação da postagem origi-
e a sexualidade nária e de seus comentários, a seguir35:
34
C1 Filmes brasileiros são uns que mais tem cenas de extremo mal
gosto, pra dizer o mínimo, no que concerne à sexo. Dá pra contar
nos dedos os poucos filmes brasileiros que tem bom conteúdo e se
abstém de cenas nojentas ou totalmente despudoradas.
SUMÁRIO C1.1 Se feita com consenso só é de mau gosto, mas no caso em
questão é só crime.
C1.5 C1, maU gosto pra um, pode ser bom gosto pro outro. Gosto é
subjetivo. Eu detesto a Vovozona. Tem gente que adora. Mas crime
é crime, não tem a ver com gosto subjetivo.
34. Em formato textual, sem a estruturação típica de postagens no Facebook, por questões de
restrição de extensão do texto.
35. Vale ressaltar que as postagens e comentários aqui apresentados o são da maneira que foram
postados originalmente, em termos de construções sintáticas, escolhas lexicais e ortografia.
36. Postada na rede social Facebook originalmente em 06 de dezembro de 2016.
152
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero C3 Quanto mi mi mi besta por causa de um filme passado há
e a sexualidade décadas e agora essa merda toda. Que estupro? Como estupro se
foi fictício, uma cena de atores profissionais?
SUMÁRIO C4 Antes tarde do que nunca, o repúdio é necessário para que não
ocorra mais crimes. Sentimento de revolta e nojo!
C5 Eu ví a cena, ela interpretou muito bem, não entendi pq não saiu
do personagem, já que, tratava-se de estupro !!!
153
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero C5.7 Uma pessoa de "apenas 19 anos" sabe o que tá acontecendo
e a sexualidade quando tem o seu anus penetrado por um penis. Ela consentiu, não
há qualquer manifestação de descontentamento.
154
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade “Não foi estupro” “Foi estupro” “Foi mau gosto” / “É assim que as coisas
“Foi desnecessário” são” / “Faz parte”/
“É necessário”
C3 C1.1 C1 C2
C3.1.1 C1.3 C1.2 C2.1
C5 C1.5 C1.4
C5.1 C3.1 C11
C5.2 C4
156
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Por fim, no subconjunto 4, “Sexo forçado é diferente de
e a sexualidade estupro”, que comporta o comentário C10, vê-se a contradição
que surge entre um ato de “sexo forçado” ser considerado ou não
estupro. Retomamos, primeiramente, uma definição de estupro,
segundo o Código Penal Brasileiro, a seguir:
O estupro é definido pelo artigo 213 do Código Penal como “cons-
tranger à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”.
Entende-se por ‘conjunção carnal’ o coito vaginal, completo ou não,
com ou sem ejaculação. A “violência ou grave ameaça” consiste no
emprego ou não de força física capaz de impedir a resistência da
SUMÁRIO vítima. (SOUZA, ADESSE, 2005, p. 21, grifos nossos)
37. Termo utilizado para se referir ao sujeito que materializa seu discurso nas postagens no
Facebook.
157
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero 1) Posição própria; 2) Resposta por rebate; 3) Resposta por
e a sexualidade explicação.
158
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Já os comentários da terceira coluna da tabela (“Foi mau
e a sexualidade gosto” / “Foi desnecessário”), a saber, C1, C1.2, C1.4 e C11, encon-
tram-se na zona do “desnecessário”, que por vezes se mistura com
a coluna “Não foi estupro”, já que iria de encontro à notícia “A ‘cena
da manteiga’ não é arte, é crime” pelos deslocamentos por pará-
frases “O filme é bom > Tem uma cena podre (a do suposto estupro)
> O filme é bom, apesar de ter uma cena desnecessária (de mau
gosto) > A cena da manteiga não é crime, é só desnecessária >
Não foi estupro”. É interessante observar que nesse conjunto, o
SUMÁRIO que incomoda é a agressão visual ao telespectador causada pela
“cena de mau gosto”, e não a agressão do ato em si. Não chegam
a negar que houve estupro, ainda que isso possa ser um efeito de
sentido possível, como mostrado nas paráfrases acima, mas esse
fato é menos importante e relevante do que o fato de o público ser
“afrontado” por cenas sem pudor, como coloca C1.4 (“Não estou
tentando diminuir o absurdo que aconteceu, só acho que esse outro
lado também é ruim...só isso. [...]”) – construção que tem por efeito
justamente essa diminuição do fato, pela estrutura “Não X, mas
Y”, na qual Y é construído como mais importante do que X. Nesse
conjunto, vê-se uma rede de sentidos conservadora, “defensora da
moral e dos bons costumes”, religiosa, que entende uma separação
da sexualidade privada, da que (não) poderia vir a público (como
em um filme de Hollywood) e da que deveria ser restrita ao âmbito
dos filmes pornô, como nos diz C1.2 (“Mau gosto ou crime ambos
deveriam ser banidos. Deixem isso para quem quer ver pornô). É no
mínimo interessante a acepção de que “estupro” estaria na mesma
categoria de “ato de mau gosto”, e de que poderia existir se confi-
nado ao âmbito do pornô (cf. trecho grifado acima). Mais ainda,
nota-se a distinção do âmbito do religioso (“Tantas coisas mais
veladas e bonitas pra se mostrar de um relacionamento”) e do pagão
(“só querem mostrar um bacanal”), e como esses dois âmbitos não
deveriam se misturar a céu aberto (ou seja, nos cinemas e televi-
sões, nesse caso) na sociedade.
159
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Por último, nessa zona do “desnecessário”, temos o C11, que
e a sexualidade ainda que possa reconhecer a “cena da manteiga” como estupro, o
faz dentro do “desnecessário/mau gosto”, com a utilização de termos
dentro desse campo semântico, ou que se aproximariam mais desse
campo do que de outro com o sentido de “estupro/crime”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
160
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero casos de violência sexual contra o corpo feminino. Ou seja, em
e a sexualidade tais discursos, a “mulher vadia” (a “não mulher direita”), estando
na indústria cinematográfica, participando de projetos no limiar do
pornô, talvez até mesmo sendo satanista, é responsabilizada/culpa-
bilizada pela suposta violência sofrida por seu corpo, ou simples-
mente silenciada, pois, sendo tratada como não pessoa, e assim
sendo constituída como não-sujeito, também o que lhe acontece
é um não-ato e não pode ser encarado como violência propria-
mente dita, não sendo, portanto, passível de julgamento moral e/
SUMÁRIO ou jurídico.
#pormimpornóseportodas #nenhumaamenos
161
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero REFERÊNCIAS
e a sexualidade
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. Campinas: Pontes,
1991, 387 p.
162
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES
e a sexualidade
ORGANIZADOR
AUTORAS E AUTORES
163
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero Elisa Guimarães
e a sexualidade
É graduada em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, e
mestre em Estudos de Linguagem, ambos pela Universidade Federal
Fluminense. Tem experiência em Análise do Discurso, Jornalismo e
se interessa por questões relacionadas à Divulgação Científica.
Fernanda Mello
Possui graduação em Letras e literaturas da língua portuguesa pela
SUMÁRIO Universidade Federal Fluminense (2016). É mestre em Estudos da
Linguagem (2018), também pela Universidade Federal Fluminense,
na subárea da Análise do Discurso de orientação francesa.
Virgínia Dias
Possui graduação em Engenharia Mecânica pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (2005) e em Letras Português-Francês
pela mesma instituição (2015). Mestre em Letras pelo Programa
de Pós-Graduação em Letras da UERJ (2018). Atua na área como
professora de FLE (français langue étrangère) e se interessa por
pesquisas dos campos de estudos de gênero, análise do discurso
e estudos de tradução.
164
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero ÍNDICE REMISSIVO
e a sexualidade
A 47, 52, 53, 54, 55, 56,
afetivo 106, 111, 113 65, 67, 69, 71, 72, 73,
ALGBTQI+ 85, 89, 90, 91, 95, 86, 125
96 ciências biológicas 63
alunas 69, 70, 78, 79 cientista 37, 50, 54, 57
alunos 62, 69, 70, 72, 78, 79 circulação 25, 26, 29, 40, 46,
amor 8, 15, 99, 100, 102, 103, 58, 59, 81, 106, 107,
104, 105, 107, 108, 109, 118, 122, 125, 129, 137,
SUMÁRIO 111, 112, 113, 114, 115, 138
116, 117, 119, 128, 130, cisheteronormativo 21
136, 137, 138 clérigos 38
análise 8, 15, 18, 19, 21, 30, competência 74, 121
32, 33, 34, 35, 41, 44, conservadoras 141
46, 56, 57, 59, 61, 62, corpo 15, 18, 21, 22, 33, 38,
64, 67, 68, 70, 72, 73, 39, 49, 52, 77, 104, 121,
75, 81, 83, 88, 96, 100, 123, 141, 143, 144, 145,
101, 107, 116, 117, 118, 147, 149, 150, 156, 161
122, 125, 128, 135, 137, criminalização 88, 90, 91, 96
142, 155, 164 cristãs 19, 141
Análise de Discurso 8, 14, 15, cultura 105, 132, 138, 144
20, 81, 97, 101, 118, D
162, 163 deputado 83, 88, 89, 90, 91, 92,
antropologia 39, 64 93, 94, 95, 96
autoconfiança 72, 73, 74 descentralização 37
autoridade 40, 44, 45, 48, 49, desigualdade 103
50, 56, 134, 135, 136 despatologização 121, 122, 123
B Deus 14, 16, 17, 18, 19, 22, 24,
binarismo 25, 31 25, 26, 34, 37, 38, 42,
bissexualidade 15 112
Bolsonaro 82, 83, 88, 89, 90, didáticos 129
91, 92, 93, 94, 95, 96 discurso 8, 14, 15, 16, 17, 18,
C 19, 20, 24, 31, 32, 33,
capitalistas 141 34, 35, 38, 39, 40, 41,
cérebro 77, 78, 105 42, 43, 44, 46, 47, 48,
ciência 8, 32, 36, 37, 38, 39, 49, 50, 51, 52, 53, 54,
40, 41, 42, 43, 44, 45, 55, 56, 57, 58, 59, 64,
165
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero 65, 66, 67, 70, 71, 74, 75, 136, 154
e a sexualidade 76, 78, 79, 80, 81, 83, 84, fascistofobia 91, 93, 94
85, 86, 89, 90, 91, 92, 93, feminilidade 25, 38, 39, 47, 103,
94, 95, 96, 97, 101, 102, 105, 106, 108, 109, 110,
107, 110, 113, 116, 117, 115
118, 133, 135, 138, 139, fenômeno 39, 121, 122
143, 147, 157, 162, 164 fidelidade 15, 43, 75, 104
discurso científico 40, 44, 47, Folha Universal 15, 16, 17, 22,
52, 55, 76 24, 29
discurso midiático 40, 90 formação pedagógica 63
SUMÁRIO discurso religioso 16, 17, 18, formação social 8, 37, 40, 42,
19, 20, 24, 31, 32, 33, 34, 44, 46, 55, 106
42, 85 Foster 14
distanciamento 48, 91, 147 G
divino 18 gênero 8, 13, 14, 15, 20, 21,
divisão sexual 46, 61, 62 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28,
docência 63 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35,
doença 85, 96, 113, 121, 124, 36, 39, 40, 41, 46, 56, 61,
130, 133, 135 63, 69, 73, 79, 80, 83, 92,
E 93, 97, 99, 103, 104, 107,
educação 39, 57, 62, 63, 67, 120, 121, 122, 123, 137,
69, 97, 128, 129, 136 138, 164
ensino superior 63 grupos sociais 123
enunciado 22, 25, 27, 28, 30, H
31, 66, 69, 74, 90, 94, hashtags 142, 150
123 heterofobia 82, 83, 88, 89, 90,
escola 70, 79 91, 92, 93, 94, 95, 96
espiritualidade 18 heteronormatividade 14, 33, 34
estrutura social 37, 74 heurístico 101
estudantes 68, 69, 70, 73, 75, homem 18, 22, 23, 26, 28, 30,
79 31, 38, 41, 46, 50, 52, 57,
expressão de gênero 14, 15, 21, 86, 87, 90, 91, 101, 104,
27, 28, 29, 30, 32, 33 105, 106, 107, 108, 109,
F 110, 112, 113, 114, 115,
Facebook 88, 140, 141, 142, 124, 137, 150
150, 152, 157 homofobia 82, 88, 89, 90, 91,
família 15, 38, 86, 102, 104, 92, 94, 95
105, 112, 119, 132, 134, homossexualidade 15, 21, 26,
166
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero 85, 86, 92, 96, 98, 123 131, 136, 145, 161
e a sexualidade humano 20, 87, 103 lesbianidade 26
hysteria 124 linguagem 16, 21, 22, 26, 28,
hysterismo 124 30, 33, 35, 43, 55, 67,
I 84, 87, 92, 93, 94, 101,
identidade 49, 54, 83, 86, 93, 102, 103, 115, 116, 118,
96, 97 145, 163
ideológica 14, 38, 42, 45, 55, linguística-discursiva 149
89, 90, 96, 101, 109, 110 lógica 16, 64, 65, 68, 69, 70,
ideológico 45, 123, 135, 141, 87, 103, 122, 124, 131
SUMÁRIO 143 loucura 120, 122, 125, 127,
Igreja Universal 14, 17, 18, 19, 128, 129, 130, 131, 132,
22, 24, 34 133, 135, 136, 137, 138
imaginário 25, 26, 34, 37, 39, M
40, 42, 44, 46, 55, 59, machistas 141
80, 98, 101, 106, 108, Mariani 17, 24, 43, 50, 56, 78,
109, 110, 115, 117, 125, 110
129 masculinidade 47, 80
interações sociais 53, 54 mediador 17
interdiscurso 48, 50, 65, 66, 67, medicina 32, 54, 78, 81, 85, 86,
85, 90, 94, 97, 118 92, 93, 135, 138, 139
internet 39, 83, 88 memória 19, 27, 44, 46, 47, 48,
intersexo 85 50, 56, 58, 59, 65, 66,
intradiscurso 48, 50, 67 67, 72, 76, 78, 79, 80,
J 85, 91, 94, 96, 106, 107,
já-lá 72, 74, 76, 77, 79 113, 116, 117, 118, 123,
jornal 15, 16, 17, 22, 24, 25, 126, 127, 137, 145
29, 30, 32, 44, 62, 67 mercado 59, 62, 64, 76, 80,
jornalismo 40, 42, 43, 44, 45, 131, 141
47, 49, 53, 54, 55 mídia 13, 14, 22, 30, 32, 33,
jornalismo científico 43, 45, 47, 39, 40, 42, 44, 45, 48,
49, 54, 55 54, 55, 58, 59, 71, 72,
jurídico 86, 133, 157, 161 90, 117
L mídia impressa 13, 14, 22, 30,
leitura 8, 22, 24, 25, 26, 28, 31, 32, 33, 71
34, 55, 56, 64, 67, 68, mistificação 31, 32
69, 70, 71, 74, 81, 103, modelo 38, 62, 103
116, 118, 122, 128, 130, mulher 26, 38, 41, 46, 47, 50,
167
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero 52, 57, 64, 77, 81, 91, 92, queer 85
e a sexualidade 93, 95, 99, 100, 101, 103, R
104, 105, 106, 107, 108, racionalidade 37, 38
109, 110, 111, 112, 113, rede social 141, 152
114, 115, 116, 117, 122, religioso 14, 16, 17, 18, 19, 20,
123, 124, 131, 135, 136, 24, 31, 32, 33, 34, 42, 85,
137, 138, 140, 141, 142, 86, 93, 159
143, 145, 147, 149, 150, reportagem 49, 67, 68, 73
152, 157, 160, 161 reprodução social 62
multiplicidade 64 revista 36, 40, 41, 45, 49, 51,
SUMÁRIO N 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58,
neurobióloga 50, 51 80, 90, 100
O S
objetividade 37, 42, 44, 75 saúde 8, 62, 63, 67, 70, 72, 74,
onipotência 18, 67 78, 79, 113, 120, 121,
Orlandi 16, 17, 18, 31, 59, 69, 124, 125, 126, 128, 135,
84, 85, 87, 92, 97, 101, 137
106, 116, 118, 139, 142 senso comum 40, 43, 49, 54,
P 93
patologia 123, 129 sentidos 8, 15, 18, 19, 20, 26,
patologização 121, 123, 131, 29, 31, 42, 43, 44, 56, 57,
135, 138 59, 64, 65, 66, 69, 74, 79,
patriarcais 141 80, 81, 84, 85, 90, 92, 94,
pirâmide social 38 97, 100, 101, 102, 106,
poder 37, 38, 42, 43, 54, 70, 107, 109, 110, 113, 114,
76, 81, 85, 86, 87, 109, 115, 116, 118, 122, 125,
112, 124, 127, 145, 147, 127, 136, 137, 141, 142,
156 143, 144, 149, 150, 155,
poligâmico 57 159, 160, 161
política 8, 33, 42, 81, 82, 84, ser humano 20, 87, 103
85, 93, 95 serviços 62, 137
posição-sujeito 16, 17, 18, 30, sexualidade 8, 14, 15, 19, 20,
76, 77, 89, 91, 101, 113, 21, 22, 24, 26, 28, 29, 31,
114 32, 33, 34, 40, 41, 50,
pragmatismo 46 54, 82, 83, 86, 92, 93, 97,
práticas sociais 8, 46 121, 122, 140, 144, 159
psicanálise 39, 41, 105, 117 silenciamento 69, 79, 82, 83,
Q 84, 92, 94, 95, 96
168
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero site 41, 102, 119, 150
e a sexualidade social 8, 14, 15, 18, 21, 37, 38,
40, 42, 44, 46, 55, 62, 68,
74, 83, 93, 100, 101, 104,
105, 106, 107, 110, 129,
131, 132, 133, 141, 145,
152, 156
sociedade 15, 32, 37, 43, 45,
58, 59, 62, 83, 85, 86,
122, 131, 134, 135, 136,
SUMÁRIO 137, 138, 139, 141, 143,
144, 145, 147, 159
sociologia 39, 64
sujeito 14, 16, 17, 18, 21, 22,
24, 29, 30, 38, 42, 48, 49,
50, 54, 55, 56, 59, 66, 67,
75, 76, 77, 79, 83, 84, 85,
86, 87, 88, 89, 90, 91, 93,
97, 100, 101, 102, 105,
106, 107, 108, 110, 113,
114, 115, 116, 118, 121,
127, 131, 132, 133, 134,
135, 136, 137, 138, 141,
142, 143, 145, 146, 147,
149, 156, 157, 158, 161
Superinteressante 36, 40, 41,
45, 51, 52, 53, 54, 56,
57, 59
T
transexuais 26, 85
transexualidade 26
transgêneros 85
travestis 85
169
por uma
análise
do discurso
sobre o gênero
e a sexualidade