Karina Gomes Giusti: A Medicalização Da Infância

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Karina Gomes Giusti

A MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA:
UMA ANÁLISE SOBRE A
PSIQUIATRIZAÇÃO DA INFÂNCIA
E SUA INFLUÊNCIA NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Sociologia
Política da Universidade Federal de
Santa Catarina, para obtenção do
título de Mestre em Sociologia
Política, sob orientação da Prof. Dra.
Sandra Noemi Cucurullo de Caponi.

Florianópolis
2016
2
 

Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor


no Programa de Geração Automática da
Biblioteca Universitária da UFSC.

Giusti, Karina Gomes


A medicalização da infância : uma análise sobre a psiquiatrização da
infância e sua influência na instituição escolar / Karina Gomes Giusti ;
orientadora, Sandra Noemi Cucurullo de Caponi - Florianópolis, SC, 2016.
220 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro


de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Política.

Inclui referências

1. Sociologia Política. 2. Infância. 3. Medicalização. 4. Educação. 5.


Biopolítica. I. Caponi, Sandra Noemi Cucurullo de. II. Universidade Federal de
Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. III. Título.
3
 

Karina Gomes Giusti

A MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA:
UMA ANÁLISE SOBRE A PSIQUIATRIZAÇÃO DA INFÂNCIA
E SUA INFLUÊNCIA NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR

Esta Dissertação foi julgada adequada para obtenção do Título de


“Mestre em Sociologia Política, e aprovada em sua forma final pelo
Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade
Federal de Santa Catarina

Florianópolis, _____ de _______ de 2016.

_______________________
Prof. Dr. Jacques Mick
Coordenador do Curso

Banca Examinadora:

________________________
Prof. Dr.ª Marcia da Silva Mazon
Universidade Federal de Santa Catarina

________________________
Prof.ª Dr.ª Marta Inez Machado Verdi
Universidade Federal de Santa Catarina

________________________
Profª. Drª. Sandra Noemi Cucurullo de Caponi
Universidade Federal de Santa Catarina
4
 
5
 

A Pedro, expressão máxima do amor.


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7
 

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, ao meu filho Pedro que, mesmo


pequenino, me estimula a ser melhor e a lutar por uma vida e um mundo
mais humano.
Agradeço aos membros do Departamento do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia Política da UFSC a acolhida a esta pesquisa, e
ao CNPq o apoio financeiro que tornou possível sua realização.
Agradeço especialmente à Albertina Buss Volkman por sua inefável
paciência e ajuda nesses anos todos.
A Prof. Dra. Sandra Noemi Cucurullo de Caponi pela
generosidade que é própria dos grandes. Seu envolvimento em cada
discussão fez dessa orientação uma verdadeira parceria.
Este trabalho deve muito às correções, sugestões e orientações
valiosas da Prof. Dra. Fabíola Stolf Brzozowski.
Agradeço aos Professores Jacques Mick, Marta Verdi e Marcia
da Silva Mazon as valiosas contribuições dadas durante o exame de
qualificação.
Todos os colegas do Núcleo de Sociologia, Filosofia e História
das Ciências da Saúde (NESFIS – UFSC) e as nossas sempre
riquíssimas discussões colaboraram para a construção de cada etapa
deste trabalho.
Agradeço às pessoas entrevistadas que tiveram suas rotinas
interrompidas para tratar de temas árduos que colocavam “sobre a mesa”
questões delicadas a respeito do atual processo de medicalização.
A todos os meus amigos e familiares que torceram por mim e me
ajudaram, cada um à sua maneira, a chegar até aqui.

 
 
   
8
 

 
9
 

RESUMO

O presente estudo de mestrado discute a psiquiatrização da infância e


sua influência no cotidiano escolar. A pesquisa procurou evidenciar que
a medicalização de comportamentos próprios da infância está fortemente
presente nas instituições escolares, bem como nos discursos dos agentes
educacionais. Nossa pesquisa evidencia que a descrição dos
comportamentos infantis em termos biológicos e neuroquímicos
contribui para a patologização da vida e da infância. Essa pesquisa
aponta que o discurso médico encontra-se enraizado no campo
educacional, assentado em propostas aventadas pela psiquiatria desde o
início do século XVIII. Além da revisão teórica, esse trabalho buscou
seu fundamento nos estudos realizados por Michel Foucault, Peter
Conrad e Pierre Bourdieu. Procuramos analisar a expansão de categorias
diagnósticas na atualidade e seu impacto no campo educacional. Para a
realização dessa pesquisa, foram selecionadas oito instituições de ensino
público e privado da cidade de Florianópolis/SC e, através de entrevistas
realizadas com dezessete agentes educacionais, procuramos entender
como o processo de medicalização adentrou o campo educacional
utilizando, nos dias de hoje, o medicamento como instrumento de
solução para os problemas que ali se manifestam. A análise dos dados
permitiu reconhecer que os problemas e dificuldades que se manifestam
no cotidiano escolar têm aderido a uma descrição fisicalista e
biologizante. A infância capturada pelos transtornos desloca a procura
de soluções políticas e educativas para o campo das soluções
biologizantes e medicalizantes. Ainda que a instituição de ensino adote
uma metodologia diferenciada ou alternativa, os instrumentos de
diagnóstico médico são ferramentas que os agentes educacionais
utilizam para decifrar as problemáticas apresentadas pelos alunos. Na
esteira desses fatores, essa pesquisa pôde concluir que a grande
quantidade de alunos por sala de aula mostrou-se uma variável
significativa no processo de medicalização do contexto escolar. Além
disso, a ação organizada e sistemática da indústria farmacêutica
influencia os profissionais, tanto da saúde como da educação e a própria
família sobre as soluções que os medicamentos podem oferecer para as
dificuldades que se manifestam nas etapas de aprendizado, bem como no
desenvolvimento comportamental das crianças de modo geral.

Palavras-chave: medicalização – infância – educação – psicofármacos


– biopolítica  
10
 

 
11
 

ABSTRACT

This master's study discusses the psychiatryzation of childhood and its


influence on the school routine. The survey sought to highlight that the
medicalization of childhood own behavior is strongly present in schools
and in the speeches of educational agents. Our research shows that the
description of children's behavior in biological and neurochemical terms
contributes to the pathologizing of life and childhood. This research
points out that the medical discourse is rooted in the educational field,
seated on proposals suggested by psychiatry since the early eighteenth
century. In addition to the literature review, this study sought its
foundation in studies by Michel Foucault, Peter Conrad and Pierre
Bourdieu. We tried to analyze the expansion of diagnostic categories
today and its impact in the educational field. To carry out this research,
we selected eight public and private education institutions in the city of
Florianópolis/SC and through interviews with seventeen educational
agents, we seek to understand how the medicalization process entered
the educational field using, these days, the drug as a solution tool for the
problems that there are manifest. Data analysis allowed us to recognize
that the problems and difficulties that arise in everyday school life have
joined a physicalist and biologizing description. The captured by
childhood disorders shifts the demand for political and educational
solutions for the field of biologizing and medicalized solutions.
Although the educational institution adopts a different methodology or
alternative, the medical diagnostic tools are tools that educational agents
use to decipher the problems presented by the students. In the wake of
these factors, this research could conclude that the large amount of
students per class proved to be a significant variable in the school
context medicalization process. In addition, the organized and
systematic action of the pharmaceutical industry influences the
professionals, both health and education and the family itself on the
solutions that medicine can offer to the difficulties that arise in the
learning stages, as well as behavioral development generally children.

Keywords: medicalization – childhood – education – psychoactive


drugs – biopolitics
 
12
 

 
13
 

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Projetos de leis e ações públicas sobre o TDAH ....................... 23  


Quadro 2 – Escolas participantes da pesquisa, quantidade de alunos por
sala, metodologia de ensino adotada na instituição e cargo do funcionário
entrevistado ................................................................................................... 28  
Quadro 3 – Sistematização do DSM-IV-TR e Sistematização do DSM-5 ... 86  
Quadro 4 – Transtornos mentais e sintomas (DSM IV e 5) ......................... 91  
Quadro 5 – Técnicas de marketing utilizadas pelo mercado
farmacêutico ............................................................................................... 123  
14
 
15
 

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APA – American Psychiatric Association


CDC – Centro de Controle e Prevenção de Doenças
CID – Classificação Internacional de Doenças
DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mentais)
FDA – Food and Drug Administration
INPD – Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Psiquiatria do
Desenvolvimento para a Infância e Adolescência
NIMH – National Institute of Mental Health
PA – Instituição Pública A
PA1 – Pública A Professora do ensino fundamental I
PA2 – Pública A Professora do ensino fundamental II
PAC – Pública A coordenadora
PB – Instituição Pública B
PB1 – Pública B Professora do ensino fundamental I
PB2 – Pública B Professora do ensino fundamental II
PBC – Pública B coordenadora
PC – Instituição Privada C
PC1- Privada C Diretor pedagógico
PD – Instituição Privada D
PD1 – Privada D Professora do ensino fundamental I
PE – Instituição Privada E
PE1 – Privada E Professora do ensino infantil
PE2 – Privada E Professora do ensino fundamental II
PF – Instituição Pública F
PF1 – Pública F professora do ensino fundamental I
PF2 – Pública F Professora do ensino fundamental II
PG – Instituição Pública G
PG1 – Pública G Professora do ensino fundamental I
PG2 – Pública G Professora do ensino fundamental II
PH – Instituição Privada H
PH1 – Privada H Professora do ensino infantil
PH2 – Privada H Professora do ensino fundamental I
Psi – Psicóloga
SAEDE – Serviço de atenção em educação especial
SNGPC – Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados
TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade
TGD – Transtorno global do desenvolvimento
THB – Transtorno do humor bipolar
TOC – Transtorno obsessivo-compulsivo
TOD – Transtorno Opositivo Desafiador
16
 

 
   
17
 

SUMÁRIO

1 Introdução: infância e educação medicalizadas .................................. 19


1.2 Metodologia ..................................................................................... 25
1.2.1 Participantes do estudo e técnica de coleta de dados .................... 27
1.2.2 Análise dos dados.......................................................................... 31
1.2.3 A cidade de florianópolis, suas características.............................. 32
1.2.4 Suas escolas................................................................................... 33

2 As origens da psiquiatria moderna ...................................................... 43


2.1 O saber psiquiátrico ......................................................................... 44
2.2 A teoria da degenerescência e as explicações biológicas dos
transtornos mentais ................................................................................ 50
2.2.1 Regeneração e higiene .................................................................. 57
2.2.2 A idiotia e o início da medicalização da infância ......................... 61
2.3 Da degeneração ao desequilíbrio – medicalização de
comportamentos e anomalias sociais ..................................................... 70

3 Faces da medicalização da vida: poder, disciplina, risco e indústria


farmacêutica ........................................................................................... 81
3.1 História do DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders) ............................................................................................... 81
3.1.2 O lançamento do DSM-5 .............................................................. 85
3.2 O processo de medicalização ........................................................... 95
3.2.1 A natureza relacional do poder ..................................................... 99
3.2.2 A disciplina como dispositivo de poder ...................................... 104
3.3 Os riscos na contemporaneidade e sua relação com os transtornos
mentais: melhor prevenir do que remediar versus melhor prevenir e
medicalizar ........................................................................................... 107
3.3.1 Riscos e transtornos mentais na infância .................................... 119
3.4 A indústria farmacêutica e os interesses na medicalização da
vida ....................................................................................................... 120

4 A medicalização do campo educacional ........................................... 129


4.1 A escola na era da medicalização .................................................. 130
4.1.2 Escola, família e sistema disciplinar ........................................... 132
4.1.3 A instituição escolar .................................................................... 144
4.2 A nascente biológica na educação escolar ..................................... 152
4.2.1 A questão da hiperestimulação e os dispositivos
eletroeletrônicos ................................................................................... 157
4.2.2 A intromissão do modelo médico nas instituições escolares ...... 163
4.3 Comportamentos desviantes e o olhar sociológico ........................ 173
18
 

4.4 O avanço da biomedicina na medicalização da vida e da infância


e seus reflexos na esfera escolar – biopolítica no século XXI ............. 190

5 Considerações finais ......................................................................... 201

Referências ........................................................................................... 205

Apêndice A – Carta de Apresentação e Termo de Compromisso ........ 219

 
19
 

1 INTRODUÇÃO: INFÂNCIA E EDUCAÇÃO MEDICALIZADAS

[...] ter saúde não é não adoecer. É poder


adoecer e se recuperar. Poder sofrer e
ultrapassar o sofrimento engendrando novas
formas de lidar com a vida. Uma vida que não
se depara com o intolerável, com o assombro,
com o sem-sentido, é uma vida empobrecida,
normatizada, incapaz de agir criativamente
(CANGUILHEM apud BEZERRA JR., 2004,
p. 6).

Nas sociedades ocidentais, problemas inerentes à vida são


deslocados para o campo médico, assim, nos encontramos em plena Era
dos Transtornos. Com essa reflexão, Moysés (2013) problematiza sobre
alguns dilemas que enfrentamos atualmente num processo denominado
de “medicalização da vida”1.
Vivemos em uma sociedade onde problemas coletivos e sociais
são gerenciados pelo processo de medicalização que, atualmente, avança
a passos largos sobre todas as esferas da vida, diagnosticando fatos
cotidianos e ocultando desigualdades. Os problemas de origem social,
histórica e política são transformados em problemas individuais,
inerentes ao sujeito e solucionados no plano biológico e, no que tange à
infância, os campos de aprendizagem e comportamentais são o grande
cenário de atuação. No âmbito educacional, a hegemonia do discurso
psiquiátrico atua sobre dificuldades comportamentais e cognitivas
através das invenções das “doenças do não aprender” e das “doenças do
não-se-comportar”. No caso do Brasil, esse processo se fortaleceu a
partir da década de 1980 e, paulatinamente, as esferas sociais, histórica,
política e cultural foram dominadas pelo poder médico que se utilizava
do discurso de hipotéticas disfunções neurológicas. Hoje, quase todos os
discursos do campo da medicina psiquiátrica se referem a doenças
neurológicas ou psiquiátricas, e as que mais se destacam nas instituições
de ensino são a Dislexia, a Depressão, o Transtorno por Déficit de
Atenção e Hiperatividade (TDAH), o Transtorno Opositor Desafiante
(TOD) e o Transtorno do Espectro Autista (MOYSÉS, 2013).  
Foi nesse contexto que a pesquisa para esse trabalho teve seu
início. Procuramos investigar como o saber médico passou a influenciar
e a controlar as esferas da vida social e política e de que forma ele
adentrou o âmbito escolar. Analisamos as práticas que sustentaram a
                                                                                                                       
1
O termo medicalização surgiu na da década de 1970 para se referir à crescente
apropriação dos modos de vida do homem pela medicina (CONRAD, 2007).
2
Implantação do Programa de Identificação e Tratamento do Transtorno do Déficit de
Atenção e Hiperatividade nas escolas públicas dos estados: Rio de Janeiro (Lei Nº 5.416
20
 

intervenção médica na população e que, na atualidade, possibilitam sua


ingerência em grande escala na educação; seu envolvimento com a
indústria e sua parceria na psiquiatrização da infância.
Conscientes de que uma investigação como essa não é inédita,
este trabalho retoma algumas das produções que já foram realizadas a
respeito do poder-saber médico e sua influência no âmbito escolar, mas
procura compreender como a medicalização de comportamentos
próprios da infância se apresenta atualmente nesse âmbito. Procuramos
analisar como a prescrição e utilização de psicofármacos atua no
cotidiano escolar.
Iniciamos nossa revisão teórica a partir da discussão de alguns
autores, como Ivan Illich, Michel Foucault e Peter Conrad (2007) que
problematizaram a questão da cultura medicalizada em uma dimensão
social e política. Illich (1975) analisou as problemáticas desencadeadas
pela sociedade industrial e as tecnologias médicas que irromperam nesse
contexto. Em seus estudos, ele afirmava que a medicina moderna
provocava inúmeras ameaças à saúde e mostrava que os indivíduos
deveriam superar a necessidade da intervenção médico-profissional e
agir contra o consumo intensivo da medicina moderna.
Peter Conrad (2007) mostra que o processo de medicalização
pode ser classificado como reducionista, já que converte questões sociais
a fenômenos de causalidade orgânica. A medicina passa a organizar a
própria vida e a descontextualizar as questões históricas, culturais e
sociais.
Foucault (1979), por sua vez, apesar de não fazer uso sistemático
do termo medicalização, faz referência ao processo quando aponta para
a constituição de uma sociedade na qual o indivíduo e a população são
entendidos e manejados por meio da medicina. A medicina moderna –
que nasceu no final do século XVIII, se apresentou como uma prática
social e transformou o corpo individual em força de trabalho com o
objetivo de controle da sociedade. Primeiramente, o investimento era
realizado diretamente nos indivíduos por intermédio da ação sobre o
biológico e, posteriormente, controlavam-se as consciências e
ideologias. Neste sentido, Foucault fala do desenvolvimento de um
poder sobre a vida – um biopoder – que é exercido sobre os corpos por
meio da tecnologia disciplinar (FOUCAULT, 2006, 2001). Através de
suas análises sobre a biopolítica, Foucault demonstra o controle sob o
qual a população está submetida. O autor contrapõe o poder que era
exercido na soberania a essa nova noção que surge, como alvo de
intervenção sobre os fenômenos que se prescrevem na esfera da
população (FOUCAULT, 2008b).
Esse poder de controle adentrou o campo da infância e pode ser
verificado no encaminhamento de um grande número de crianças e
21
 

adolescentes aos consultórios psiquiátricos na busca de explicação e


resposta para problemas comuns do cotidiano e essa resposta está
fortemente associada à prescrição de psicofármacos. Atualmente, na
esfera escolar, crianças sem nenhum comprometimento cognitivo são
consideradas alunos com problemas e, via-de-regra, recebem tratamento
a base de medicamentos.
Conrad (2005) afirma que, desde a introdução do primeiro
psicofármaco sintetizado e utilizado em tratamentos psiquiátricos em
1952, a indústria farmacêutica investe maciçamente em pesquisas e
marketing na área da psicofarmacologia e lançamento de novos
medicamentos. O início da medicalização aconteceu pelo que o autor
chamou de “colonização médica”, já que a cultura médica influenciou
totalmente a esfera social. O passo seguinte foi a definição em termos
médicos de quase todos os fenômenos sociais. Na década de 1980, a
gestão de cuidados com a saúde e o controle de custos ocupou a cena
pública e, apesar do poder exercido pela medicina ainda ser muito forte,
outros fatores entraram em cena. Os pacientes não eram mais vistos
como doentes em vias de tratamento, mas sim, como consumidores em
potencial. A indústria farmacêutica tornou-se a mais lucrativa da
América, lançando novas drogas no mercado em uma velocidade cada
vez maior, e os problemas relacionados à infância passaram a ser seu
grande alvo. O conhecimento médico e a medicalização nas sociedades
ocidentais se transformaram pela biotecnologia, pelos consumidores de
psicofármacos e também pelos cuidados com a saúde. Atualmente, as
indústrias farmacêuticas e de biotecnologia são a força motriz da
medicalização e esse mercado tem se valido das dificuldades e
problemas relacionados ao campo da infância.
Ao longo desse trabalho, veremos que os transtornos que validam
o processo de medicalização da vida e da infância adentram cada vez
mais o âmbito escolar. Agentes educacionais e profissionais da saúde
mental demandam por um diagnóstico médico que nomeie os problemas
comportamentais e de aprendizado apresentados pelas crianças. Esse
processo teve seu início na passagem do século XIX para o século XX a
partir da consolidação das produções teóricas da medicina e da
psicologia que partiam da construção de categorias universais a respeito
do comportamento humano. Até o século XX, a criança era objeto da
pedagogia e foi dentro desse campo do saber que a medicina começou a
analisar os problemas relacionados ao desenvolvimento infantil.
Segundo Guarido (2007), a preocupação inicial era de que as crianças
não atingissem a idade adulta com o pleno funcionamento de suas
capacidades mentais. A partir de então, a criança passou a ser
constantemente vigiada pela psiquiatria e o domínio do saber sobre a
infância se transferiu do campo pedagógico para o médico-psicológico.
22
 

A medicina higienista do século XX passou a exercer grande


influência no seio familiar e escolar orientando suas práticas a respeito
da saúde e prevenção de doenças. Sendo assim, essa pesquisa procurou
investigar as raízes históricas da presença do saber médico no âmbito
escolar a fim de compreender como o ensino tornou-se essa ponte para o
processo de medicalização.
Através dos discursos dos profissionais que atuam na educação,
nossa pesquisa procurou analisar como o saber médico apresenta-se na
escola e atua como explicação para os problemas que se manifestam em
seu cotidiano. Verificamos que com o lançamento da última versão do
DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais em
2013, inúmeras patologias foram acrescentadas e sua maioria recai sobre
a infância e adolescência, apresentando-se de forma marcante nos
discursos dos professores, coordenadores e diretores das instituições de
ensino que, diante das dificuldades de aprendizado e de certos
comportamentos considerados inapropriados, preconizam suas
categorias diagnósticas.
Ao assumir e validar os discursos psiquiátricos a respeito das
dificuldades de aprendizagem e dificuldades comportamentais das
crianças, a Educação desresponsabiliza a escola e culpabiliza as crianças
e suas famílias pelos seus problemas (GUARIDO, 2007). Na maioria das
vezes, o espaço escolar é o segundo lugar que a criança irá frequentar e
travar laços de amizade, interagir socialmente e construir noções de
responsabilidade. Nesse espaço, também a aprendizagem e as regras de
convívio, instituídas pela escola, cobram dos alunos determinadas
posturas. Caso os alunos não correspondam ao que se espera
institucionalmente, os professores tendem a classificar suas atitudes em
termos patológicos.
Esse fenômeno pode ser verificado no âmbito legal, onde alguns
estados brasileiros, como Rio de Janeiro e Santa Catarina2 aprovaram a
Lei para implementação do programa de diagnóstico de dislexia e
TDAH para estudantes de ensino básico. O programa prevê as diretrizes
que deverão ser adotadas para orientação das famílias e capacitação de
professores e demais agentes educacionais das escolas públicas do
Estado de Santa Catarina e do Município do Rio de Janeiro, para a
identificação precoce dos transtornos citados, bem como o atendimento
educacional necessário. Após a identificação dos transtornos por parte

                                                                                                                       
2
Implantação do Programa de Identificação e Tratamento do Transtorno do Déficit de
Atenção e Hiperatividade nas escolas públicas dos estados: Rio de Janeiro (Lei Nº 5.416
de 29 de maio de 2012 – disponível no Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro) e
Santa Catarina (Lei Nº 15.113, de 19 de janeiro de 2010 – disponível no Diário Oficial do
Estado de Santa Catarina).
23
 

dos agentes educacionais, os alunos são encaminhados pela diretoria da


escola para diagnóstico e tratamento no Sistema Único de Saúde – SUS.
Em diversos outros estados brasileiros, o Projeto de Lei que dispõe sobre
o diagnóstico e o tratamento do TDAH e dislexia está em trâmite e
espera aprovação.
A tabela abaixo apresenta um resumo dos projetos de leis em fase
de tramitação e ações públicas sobre o TDAH:

Quadro 1 – Projetos de leis e ações públicas sobre o TDAH

Projeto de Proposição Origem Relator Situação


Lei Atual
PL nº Dispõe sobre o SENADO Deputada Aprovado
7081/2010 diagnóstico e FEDERAL Mara nas 3
(Câmara tratamento do Projeto de Gabrilli – comissões do
dos TDAH e Lei do PSDB/SP Senado.
Deputados) Dislexia na rede Senado (Comissão Encontra-se
pública de 402/2008, de de Educação na Câmara
Educação autoria do e Cultura) aguardando
Básica Senador votação na
Gerson Comissão de
Camata – Educação e
PMDB/ES. Cultura
Recebido (CEC)
pela Câmara
dos
Deputados
em 7/4/10
PLC nº Dispõe sobre a Câmara dos Senador Pronta para a
118//2011 obrigatoriedade Deputados Luiz pauta na
(Senado) de exames físico PL- Henrique Comissão de
e mental para 7483/2010 (PMDB-SC) Constituição,
detectar TDAH de autoria do (Comissão Justiça e
em motociclistas Deputado de Cidadania
Osmar Terra Constituição (CCJ)
– PMDB- e Justiça –
RS. CCJ)
Apresentado
ao Senado
em
08/11/2011
PL nº Dispõe sobre o Câmara dos Deputado Aguardando
909/2011 aperfeiçoamento Projeto de Eduardo Parecer na
(Câmara da política autoria do Barbosa Comissão de
dos educacional na Deputado PSDB/MG Educação
Deputados) rede pública Gabriel (CEC)
24
 

para os alunos Chalita –


com Transtornos PSB/SP
de
Aprendizagem
PL Nº Dispõe sobre a Câmara dos Deputado Aguardando
3092/2012 obrigatoriedade Deputados Dr. Aluizio Parecer na
de fornecimento Projeto de PV-RJ Comissão de
gratuito de autoria do Seguridade
medicamentos Deputado Social e
p/ TDAH Dimas Família
através dos SUS Fabiano – (CSSF)
PP/MG

Fonte: Informações obtidas no Portal da Câmara dos Deputados e no site da


Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA)3

Constata-se, então, que a infância é um grande campo de atuação


da medicalização e dos diagnósticos descritivos, e a esfera escolar
participa ativamente nesse processo. Tanto para os adultos como para as
crianças, as explicações das causas dos transtornos mentais voltam-se
para as disfunções biológicas ou, como mostrou Foucault (2001, 2006)
para a herança familiar e os riscos que trazem em si.
As próprias discussões a respeito da medicalização da vida e da
infância estão delineadas à noção de riscos. Os perigos que cercam o
campo mental da infância estão reproduzidos nos discursos psiquiátricos
como um problema que pode não só afetar a própria criança, como
afetar a sociedade em geral. A expansão de diagnósticos e a prescrição
de psicofármacos na infância são uma das consequências do processo de
medicalização (CASTEL, 1983; CONRAD; SCHNEIDER, 1992).
Digamos, por fim que a divulgação de supostos riscos que
derivariam do fato de que um problema caracterizado como transtorno
mental não seja corrigido a tempo tem levado inúmeras crianças aos
consultórios psiquiátricos. Os critérios diagnósticos descritos no DSM
são amplamente utilizados tanto por especialistas da saúde como por
educadores. Problemas cotidianos, comportamentais e sofrimentos
passageiros são categorizados como transtornos mentais. A desatenção
ou comportamento agressivo são os sintomas mais frequentes do
diagnóstico de crianças em fase escolar, e o tratamento mais adotado é à
base de psicofármacos.

                                                                                                                       
3
Para maiores informações acessar:
<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/757400.pdf>
<http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/legislacao/item/225-
legisla%C3%A7%C3%A3o.html>.
25
 

Surge, então, a seguinte indagação: Como a medicalização de


comportamentos próprios da infância se apresenta no âmbito escolar e
que discussões podemos tecer a respeito de uma educação que codifica
fenômenos subjetivos como disfunções químicas cerebrais?
Para responder essas questões, essa pesquisa se propõe, como
objetivo geral, entender de que modo o processo de medicalização
adentrou o campo educacional utilizando, nos dias de hoje, o
medicamento como instrumento de solução para os problemas que ali se
manifestam. Os objetivos específicos propostos, considerando a análise
teórica a respeito do processo de medicalização da vida e da infância
como estratégias de controle das populações, e a proliferação de
diagnósticos configurados no DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística
dos Transtornos Mentais) são: a) investigar, por meio da fala de 17
profissionais do corpo docente de 8 colégios da rede de ensino pública e
privada de Florianópolis/SC, como a medicalização de comportamentos
próprios da infância se apresenta no âmbito escolar; b) conhecer as
estratégias utilizadas para a definição de diagnósticos; c) identificar as
estratégias terapêuticas e o uso de psicofármacos prescritos para os ditos
transtornos mentais da infância, nos âmbitos escolares estudados; d)
levantar a percepção dos docentes sobre os comportamentos que
levaram a escola e as famílias a procurarem ajuda psiquiátrica.

1.2 METODOLOGIA

Esta pesquisa procura entender como a questão da medicalização


permeia as relações escolares. Para tal, fazem-se necessárias análises
aprofundadas, que passarão por crenças e valores dos entrevistados. Por
essa razão, trata-se de uma pesquisa qualitativa que, segundo Triviños
(1987), possibilita a compreensão de aspectos culturais, políticos e
sociais do problema a ser analisado, e seu desenvolvimento estará
atrelado ao referencial teórico do pesquisador.
Segundo Triviños (1987), a pesquisa qualitativa é descritiva,
pois pretende compreender os fenômenos e seus significados, as causas
de sua existência, origem, relações e consequências para a vida humana.
Acreditamos que este estudo é de suma importância para a compreensão
da descontextualização sociopolítica a partir do momento que o discurso
psiquiátrico tenta reduzir tais contextos ao campo biológico
Bourdieu (2004), afirma que todo campo científico é um campo
de forças e lutas para conservar ou transformar essas forças, e cada
agente inserido no campo age sob a pressão da estrutura do espaço que
se impõe a ele. Sabemos do poder de ingerência que a psiquiatria exerce
sobre todas as esferas da vida, ou sobre todos os campos da vida. A
26
 

instituição escolar não escapa a isso. A medicalização se faz cada vez


mais presente no cotidiano escolar.
Para o delineamento das pesquisas de campo optamos pela
entrevista com roteiro semiestruturado realizadas em 8 escolas de
Florianópolis/SC. Sobre essa etapa, Triviños (1987, p. 128) afirma que
os resultados “são expressos, por exemplo, em retratos (ou descrições),
em narrativas, ilustradas com declarações das pessoas para dar o
fundamento concreto necessário, com fotografias etc., acompanhados de
documentos pessoais, fragmentos de entrevistas etc.”.
A escolha das escolas foi um fator muito relevante para essa
pesquisa, pois levou em consideração:

a) diferentes metodologias de ensino para que


pudéssemos observar se existe uma diferenciação de
abordagem do tema da medicalização em diferentes
contextos pedagógicos;
b) diferentes classes sociais, a fim de compreendermos as
diferenciações de abordagem sobre a medicalização.

Apoiando-se nas teorias de Bourdieu (2002) sobre a noção de


campo que comandam e orientam as opções práticas da pesquisa,
observamos que nosso objeto de estudo está inserido num conjunto de
relações. Segundo o autor, o objeto de estudo relaciona-se com as
condições objetivas de sua existência, ou seja, com um conjunto de
elementos que lhe são pertinentes e que estão vinculados a sua esfera
social e temporal. A análise do objeto deve levar em conta o campo em
que estão inseridos seus agentes e as instituições que produzem,
reproduzem e difundem a arte, literatura ou a ciência. Dessa maneira,
nossa análise buscou compreender de que maneira a medicalização se
articula nas instituições escolares e como o processo de medicalização é
retraduzido num campo dado, a instituição de ensino.
Os campos sociais, segundo Bourdieu (2004) seguem suas
próprias leis sociais.

A noção de campo está aí para designar esse


espaço relativamente autônomo, esse
microcosmo dotado de suas leis próprias. Se,
como o macrocosmo, ele é submetido a leis
sociais, essas não são as mesmas. Se jamais
escapa as imposições do macrocosmo, ele dispõe,
com relação a este, de uma autonomia parcial
mais ou menos acentuada. E uma das grandes
questões que surgirão a propósito dos campos
(ou dos subcampos) científicos será precisamente
27
 

acerca do grau de autonomia que eles usufruem.


Uma das diferenças relativamente simples, mas
nem sempre fácil de medir, de quantificar, entre
os diferentes campos científicos, isso que se
chamam as disciplinas, estará, de fato, em seu
grau de autonomia.   A mesma coisa entre as
instituições [...]. Um dos problemas conexos
será, evidentemente, o de saber qual é a natureza
das pressões externas, a forma sob a qual elas se
exercem, créditos, ordens, instruções, contratos, e
sob quais formas se manifestam as resistências
que caracterizam a autonomia, isto é, quais são
os mecanismos que o microcosmo aciona para se
libertar dessas imposições externas e ter
condições de reconhecer apenas suas próprias
determinações internas (BOURDIEU, 2004, p.
20-21).

Para discutirmos essas questões, este trabalho se apresenta da


seguinte maneira: no primeiro capítulo investigamos, a partir da leitura
dos autores que a analisam, as raízes históricas da psiquiatria e sua
relação com o campo da infância. No segundo capítulo, analisamos a
noção de riscos que permeia o processo de medicalização, o
envolvimento da indústria farmacêutica e as categorias diagnósticas
descritas no DSM e no terceiro capítulo analisamos as relações
históricas entre saúde e escola.

1.2.1 Participantes do estudo e técnica de coleta de dados

O local de estudo foi a cidade de Florianópolis, mais


especificamente, oito escolas (privadas e públicas) da cidade. Os
participantes deste estudo foram treze professores(as), uma
psicopedagoga, duas coordenadoras e um diretor, totalizando dezessete
profissionais do corpo docente das escolas elegidas para a realização
dessa etapa do trabalho. A opção por dezessete integrantes do corpo
docente escolar se fundamenta na hipótese de que, através do discurso e
prática dos profissionais que estão à frente das instituições de ensino,
teremos uma visão ampla sobre a questão da medicalização da infância,
da dinâmica que a medicação ocupa no âmbito escolar e de como a
questão dos transtornos mentais é abordada na escola. Acreditamos
também que a escola é o ambiente onde se concentra a maior parte das
crianças medicalizadas e/ou diagnosticadas com transtornos mentais,
sendo assim, os profissionais do corpo docente nos forneceram
28
 

informações muito relevantes sobre as articulações a respeito da


medicalização em sala de aula.
Procuramos selecionar as instituições de ensino de maior
importância no campo educacional da cidade de Florianópolis, levando
em conta o público que ela atende, as diferentes etapas e metodologias
de ensino, bem como a quantidade de alunos(as)/sala de aula e a
capacitação dos profissionais que ela comporta para que, assim,
pudéssemos obter um bom panorama de como o tema em questão é
trabalhado no âmbito escolar. Assim, as instituições de ensino
escolhidas dividem-se em quatro escolas de rede pública de ensino
fundamental e médio, e quatro escolas de rede privada com ensino
infantil, fundamental e médio.
O quadro abaixo apresenta uma breve descrição das instituições
escolhidas, quantidade de alunos por sala, metodologia de ensino e
função institucional ocupada pelo sujeito de pesquisa:

Quadro 2 – Escolas participantes da pesquisa, quantidade de alunos por


sala, metodologia de ensino adotada na instituição e cargo do funcionário
entrevistado
 
Instituição Etapas de Metodologia de Função do sujeito de
de Ensino ensino e ensino pesquisa ocupada na
Pública ou quantidade instituição
Privada de alunos
por sala
Pública A Ensino Sócio- – Coordenadora do SAEDE
fundamental Interacionista (serviço de atenção em
I, II e ensino educação especial) (PAC)
médio com – Professora do ensino
35/45 alunos fundamental I (PA1)
por sala – Professora do ensino
fundamental II (PA2)
Pública B Ensino Plural – Coordenadora do Ensino
fundamental Fundamental (PBC)
I, II e ensino – psicóloga do NAE
médio com (Núcleo de Apoio ao
30/35 alunos Ensino) (Psi.B2)
por sala – Professora fundamental I
(PB1)
– Professora do ensino
fundamental II (PB2)
Privada C Ensino Construtivista – Diretor Pedagógico (PC1)
infantil, apoiado em
ensino material
fundamental apostilado
29
 

I, II e ensino
médio com
20/25 alunos
por sala
Privada D Ensino – Professora do Ensino
infantil e Waldorf Fundamental I (PD1)
ensino
fundamental
I e II com
15/20 alunos
por sala
Privada E Ensino – Professora do Ensino
infantil e Criacionismo infantil (PE1)
ensino – Professora do ensino
fundamental fundamental II (PE2)
I e II com
20/25 alunos
por sala
Pública F Ensino Sócio- – Professora do ensino
fundamental Interacionista fundamental I (PF1)
I e II com – Professor do ensino
30/35 alunos fundamental II (PF2)
por sala
Pública G Ensino Plural – Professora do ensino
fundamental fundamental I (PG1)
I e II com – Professora do ensino
30/35 alunos fundamental II (PG2)
por sala
Privada H Berçário, Montessoriana – Professora do ensino
ensino infantil (PH1)
infantil e – Professora do ensino
ensino fundamental I (PH2)
fundamental
I e II com
20/30 alunos
por sala

Fonte: Elaborado pela autora (2015).

A coleta de dados foi realizada a partir de entrevistas com roteiro


semiestruturado e todas as entrevistas foram gravadas com a autorização
dos entrevistados. Segundo Gil (2008, p. 109), “a entrevista é uma das
técnicas de coleta de dados mais utilizada no âmbito das ciências
sociais”. Dessa maneira, o autor afirma que a entrevista na pesquisa
social é um instrumento que possibilita a obtenção de várias dimensões
da vida, bem como a profundidade de informações a respeito do
30
 

comportamento humano. A escolha da entrevista semiestruturada é


interessante para a coleta de dados, pois:

Podemos entender por entrevista


semiestruturada, em geral, aquela que parte de
certos questionamentos básicos, apoiados em
teorias e hipóteses que interessam à pesquisa, e
que, em seguida, oferecem amplo campo de
interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão
surgindo à medida que se recebem as respostas
do informante. Desta maneira, o informante,
seguindo espontaneamente a linha de seu
pensamento e de suas experiências dentro do
foco principal colocado pelo investigador,
começa a participar na elaboração do conteúdo
da pesquisa (TRIVIÑOS, 1987, p. 146).

Os procedimentos das entrevistas foram executados da seguinte


maneira: primeiramente entramos em contato por telefone ou e-mail
com a instituição, e comunicamos o desejo de realizarmos uma
entrevista com algum profissional do corpo docente a respeito de
crianças diagnosticadas com transtornos mentais4, fazendo uso ou não de
medicação, e como esse tema era abordado naquela instituição. Todas as
instituições que procuramos, com exceção de uma, foram muito
receptivas e se mostraram abertas a conversar sobre o tema proposto.
Nenhuma instituição exigiu comprovação do vínculo dos entrevistadores
com a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) ou carta de
apresentação com os temas ou questões que seriam abordadas.
Primeiramente, o diretor ou coordenador de cada escola foram
contatados, e indicaram as pessoas do corpo docente para realizarem a
entrevista. Buscou-se a presença de profissionais diversos (professores,
coordenadores pedagógicos, psicólogos), a fim de termos uma ideia
mais abrangente de como o tema é abordado em cada instituição
selecionada, porém privilegiamos a maior quantidade de entrevistas com
os professores, por acreditarmos serem eles o que têm um contato mais
direto com os alunos.
As entrevistas foram realizadas com o consentimento dos
entrevistados após terem assinado um termo de sigilo onde nos
comprometemos em não citar nomes de entrevistados, instituição ou
alunos. Os temas abordados durante as entrevistas não passaram pelo

                                                                                                                       
4
Das quatro instituições pesquisadas, apenas uma referia-se a crianças com transtornos
mentais. As outras três instituições não faziam menção a essa classificação, preferindo
“transtornos de comportamento”.
31
 

Comitê de Ética, entretanto, antes de realizarmos as entrevistas,


enviamos uma carta de apresentação para a instituição, descrevendo o
conteúdo do trabalho, os temas que seriam abordados durante as
entrevistas e nosso comprometimento de sigilo em relação à
identificação dos entrevistados, alunos e instituição. Todos os
entrevistados leram e assinaram a carta que está no APÊNDICE A –
Carta de apresentação e termo de compromisso, página 94.

1.2.2 Análise dos dados

Todas as entrevistas foram gravadas, transcritas e referenciadas.


Os dados colhidos permitiram uma análise detalhada de como é
abordado o tema da medicalização da vida e da infância no campo
educacional, bem como a relação que a medicalização ocupa dentro da
escola.
Para manter o anonimato dos participantes, bem como das
instituições de ensino no registro da pesquisa, os nomes dos
entrevistados aparecem com as letras correspondentes às instituições de
ensino. Assim, transcrevemos as entrevistas da seguinte maneira: A
instituição de ensino pública ou privada pela inicial “P” e acompanhadas
pelas letras A, B, C, D, E, F, G, H que correspondem a cada uma das
instituições, conforme a figura 2. Os agentes educacionais entrevistados
seguiram a mesma sequência, então:

1. Instituição de Ensino Pública A – profissionais: PAC


(coordenadora), PA1 (professora do ensino fundamental I)
e PA2 (professora do ensino fundamental II.
2. Instituição de Ensino Pública B – profissionais: PBC
(coordenadora), Psi (psicóloga) PB1 (professora do ensino
fundamental I) e PB2 (professora do ensino fundamental
II.
3. Instituição de Ensino Privada C – profissionais: PC1
(diretor pedagógico).
4. Instituição de Ensino Privada D – profissionais: PD1
(professora do ensino fundamental I).
5. Instituição de Ensino Privada E – profissionais: PE1
(professora do ensino infantil) e PE2 (professora do ensino
fundamental II)
6. Instituição de Ensino Pública F – profissionais: PF1
(professora do ensino fundamental I) e PF2 (professora do
ensino fundamental II)
32
 

7. Instituição de Ensino Pública G – profissionais: PG1


(professora do ensino fundamental I) e PG2 (professora do
ensino fundamental II)
8. Instituição de Ensino Privada H – profissionais: PH1
(professora do ensino infantil) e PH2 (professora do
ensino fundamental I)

Na etapa dos resultados, relacionamos os dados colhidos nas


entrevistas à luz da bibliografia utilizada para nos aproximarmos do
nosso problema de pesquisa e compreendermos como a medicalização
de comportamentos próprios da infância se manifesta na instituição
escolar.

1.2.3 A cidade de Florianópolis, suas características

A fim de compreendermos como se deu o processo de


medicalização da vida e da infância e suas repercussões no âmbito
escolar, elegemos oito instituições de ensino da cidade de Florianópolis
e realizamos entrevistas com o seu corpo docente. Foram meses de
conversa em que revelações ricas e importantes foram levantadas para a
realização dessa pesquisa. Nesse primeiro capítulo, iremos descrever
alguns dados censitários do crescimento populacional da cidade de
Florianópolis nos últimos 5 anos, as características das escolas
selecionadas e, também, apresentaremos algumas falas de professores e
professoras do seu corpo docente.
Vale ressaltar que, a princípio, pensamos partir do pressuposto de
que as diferentes perspectivas pedagógicas pudessem ser um ponto
central na diferenciação de abordagem da questão da medicalização,
porém, com o avançar de nossa pesquisa, observamos que um fator
destacava-se mais nessa questão: o número de alunos por sala de aula.
Quanto maior o número de alunos por sala de aula, maiores os
problemas apresentados pelos professores e maiores os índices de
crianças diagnosticadas/medicadas.
Segundo dados do Censo Demográfico do IBGE5, a região de
Florianópolis possuía em 2010 uma população de 994.095 habitantes, o
que representa uma proporção de 15,91% da população do estado de
Santa Catarina. Em 2000, esse percentual era de 14,99%. Sendo assim, a
região de Florianópolis é a que possui a maior densidade demográfica,
com uma taxa de 135,58 hab./km². Esse é um aumento considerável,
quando comparado aos dados de 2000, que eram de 107,43 hab./km².

                                                                                                                       
5
Informações obtidas no site: <http://www.ibge.gov.br>.
33
 

De acordo com a versão preliminar do Plano Municipal de


Educação de Florianópolis (2015), o crescimento populacional
expressivo nos últimos cinco anos, exigiu a criação e reformulação de
políticas públicas voltadas às novas necessidades desta população, bem
como daquelas que aqui já residem. Esse fenômeno vem impactando a
cidade de modo geral, modificando a forma de vida das populações, sua
educação e costumes. O crescimento da cidade demandou parcerias com
outros entes federados no que diz respeito à ampliação do atendimento
da população em idade escolar.
Os dados censitários mostram que na primeira década do século
XXI, houve um crescimento populacional na ordem de 23%, o que
equivale a 2,3% ao ano. Os números apurados na versão preliminar do
Plano Municipal de Educação de Florianópolis apontam que esse
crescimento se deu mais na faixa etária acima dos 18 anos, o que mostra
uma maior imigração do que propriamente um crescimento de
natalidade local.
Atualmente, a cidade conta com 350 instituições de educação
básica e 15 instituições de ensino superior, contemplando as esferas
federal, estadual, municipal e privada.
O crescimento da cidade causou um impacto nos
estabelecimentos de ensino, em sua estrutura física, dinâmica em sala de
aula e tudo isso refletiu na maneira como os profissionais do campo da
educação lidam com sua prática. Escolas que antes eram formadas por
um pequeno grupo de pais e associações, atualmente contam com um
número expressivo de alunos, chegando a quase 350. Professores
relataram que há dez anos, escolas que contavam com uma média de 20
alunos por sala de aula, hoje contam com uma média de 40 a 45 alunos
por sala. Muitas escolas enfrentam tensões para dar continuidade ao seu
projeto pedagógico e resistências por parte desse novo público. Esse
conjunto de tensões e resistências que incide na escola é relativo a uma
transformação social importante da composição da cidade.

1.2.4 Suas escolas

O processo pelo qual os indivíduos são submetidos à


normalização médica ao ponto de que qualquer aspecto de suas vidas
possa ser regulado pelo discurso médico adentra o universo escolar com
ávida rapidez. As escolas, mesmo aquelas com uma pedagogia mais
alternativa ou diferenciada, parecem não escapar dessa lógica
medicalizante da atualidade. Nesse sentido, nosso enfoque será a
psiquiatrização da infância e suas repercussões no âmbito escolar, pois
entendemos a necessidade de um estudo mais aprofundado sobre o
34
 

histórico do saber-poder médico como estratégia de poder e criação de


matrizes norteadoras na produção de discursos escolares.
Assim, a escolha da instituição de ensino pública A se deu pelo
fato de que esta atende há quase 20 anos, em sua maioria, alunos de
classes mais desfavorecidas. Esse fator foi o grande atrativo para a
escolha dessa instituição, já que gostaríamos de observar as diferentes
abordagens e implicações sobre a questão da medicalização entre as
diferentes classes sociais. Essa escola adota a metodologia de ensino
sócio-interacionista, e trabalha a educação como processo
interdiscursivo que pressupõe ações compartilhadas no cotidiano. Sua
equipe docente procura interagir com a comunidade de alunos e suas
famílias, através de palestras e grupos de apoio. Seus profissionais
trabalham com o SAEDE (Serviço de Atenção em Educação Especial)
que atende crianças com deficiências visuais, auditivas e físicas,
denominadas “deficiências típicas” As questões dos transtornos mentais
são classificadas como “deficiência intelectual e/ou transtorno global do
desenvolvimento”. Para atender essas crianças, os profissionais realizam
anualmente, cursos de especialização e atualização profissional. Nessa
instituição, percebemos que, apesar do corpo docente incentivar outras
terapias, como a psicoterapia e a prática de esportes, acreditam no poder
da medicação como forma de normalizar comportamentos e melhorar o
rendimento dos alunos.

Nosso público é bastante delicado. Noventa por


cento dos nossos alunos moram no morro e a
maioria dessas crianças tem contato com drogas,
prostituição, trabalho infantil, sabe? Todos eles
têm contato com isso e isso interfere na vida
deles. A maioria, a maioria gritante é de alunos
com problemas familiares, pais que não moram
juntos, alcoolismo na família. Eles trazem uma
bagagem emocional muito delicada e isso reflete
totalmente no seu comportamento aqui dentro
[...] Nós encaminhamos essas crianças pro
SAEDE e tem toda uma avaliação, a escola
observa as características que passaram do
limite e, então, chamamos a família e ela leva
essa criança ao médico. A gente sabe que muitos
comportamentos são reflexos da realidade que
eles vivem, mas a medicação ajuda essa criança
na sua vida escolar. Talvez sem a medicação,
muitos alunos não conseguiriam nem ser
alfabetizados. (PAC)
35
 

A escola pública B adota a metodologia de ensino plural e atende


alunos de diversas classes sociais. Esse foi um fator importante para a
seleção dessa escola, já que procuramos compreender o fenômeno da
medicalização na escola levando em conta as diferentes classes sociais.
A política educacional adotada por essa instituição procura contemplar o
ensino, a pesquisa e a extensão. Seus profissionais estão conectados às
mais diversas metodologias de ensino, bem como às questões que
permeiam a sociedade. Esse fator foi um dos motivadores que nos levou
a escolhê-la, por entender que o fenômeno da medicalização poderia ser
compreendido nesse universo por profissionais engajados em pesquisas
e práticas pedagógicas inovadoras. Os profissionais que trabalham nessa
instituição mostraram que entendem os riscos do uso de medicação em
crianças e acompanham as pesquisas sobre esse tema, porém, a
medicação ainda é um forte aliado, pois facilita o desenvolvimento do
trabalho dos professores, no sentido de acalmar os alunos e, assim, os
professores conseguem cumprir suas metas pedagógicas.

Nesses anos de trabalho, vejo que a maiorias dos


casos são contextuais, tem muita coisa para além
da necessidade de medicar. Os contextos
familiares são bastante complicados, famílias
com baixa estrutura emocional, baixa renda e,
mesmo aqueles que a família é bastante
instruída, os pais não tem tempo para
acompanhar o desenvolvimento dos seus filhos e
essas crianças apresentam diversos problemas
de comportamento e baixo rendimento escolar. A
dinâmica familiar expõe a criança num ambiente
que não é saudável e isso ressoa na escola. Daí a
gente tenta o máximo possível não rotular ou
estigmatizar, a gente tenta adequar a
metodologia, mas tem aquelas crianças que
destoam demais da fase de desenvolvimento que
estão [...] A gente percebe nitidamente que sem a
medicação, por exemplo, alguns
comportamentos exacerbam em termos de
agitação, de tirar a dinâmica da sala de aula
toda, de desestabilizar e com a medicação a
capacidade de concentração aumenta e fica mais
acessível, a gente consegue acessar mais o
aluno. (PB2)

A escola privada C adota a metodologia de ensino Construtivista


e foi escolhida por sua atuação de longa data na cidade de Florianópolis,
sendo considerado um colégio de referência. A escola compreende um
36
 

público de classe média/alta, e esse fator é relevante para


compreendermos as possíveis diferenças de abordagem sobre a
medicalização em comparação às instituições que atendem as classes
mais desfavorecidas. A escola oferece cursos de especialização para
seus profissionais, a fim de atualizá-los em temas que permeiam a
sociedade e aprimorar o trabalho em sala de aula. Essa instituição
procura utilizar a medicação em último caso, porém ela está presente na
vida de muitos de seus alunos e funciona como uma ferramenta de apoio
nos casos considerados extremos pela instituição.

Temos alunos que são sobreviventes de situações


familiares delicadas. Na verdade, muitas vezes, a
gente tem que se envolver um pouco mais pra
conhecer a realidade, pra ter uma abordagem
mais criteriosa com a criança. Pra nós, isso
também é um desafio, o tempo todo, é um
desgaste muito grande, mas a gente reluta até o
fim, a gente procura orientar os pais e
procuramos resolver os problemas por outros
caminhos. Agora mesmo eu estava resolvendo
um problema com uma criança. Conversamos,
porque chega uma hora que tu não tem mais
argumentos. Tu não tem [...] tem crianças que
agridem o professor. Daí tu tem que sentar com
ela, tu tem que saber pegar, porque quando dá o
agito tu tem que orientar até o professor, porque
não pode machucar e tu tem que conter se não a
criança agride mesmo. Então, tudo isso na
verdade é um desgaste muito grande. Mas claro,
chega um limite que também o professor, o
profissional que está junto também diz ‘olha, não
aguento mais’. Então a gente tem que tomar
outro tipo de encaminhamento. Coloca pro pai,
coloca pra família a forma como a gente deveria
agir com aquela criança e, muitas vezes, não
consegue e aí sim o medicamento se faz
necessário. (PC1)

A escola privada D foi eleita por trabalhar com uma pedagogia


diferenciada e um público de classe média/alta. Essa escola adota a
pedagogia Waldorf, que tem por princípio a unidade harmônica físico-
anímico-espiritual do ser humano e sobre esta base se fundamenta toda
sua prática educativa. A escola conta com a atuação de um médico
escolar que desenvolve tratamentos a base de florais e remédios
homeopáticos. Esse fator nos estimulou a escolhê-la, para melhor
37
 

compreender como a medicalização é abordada numa instituição que já


conta com a presença de um médico em seu espaço físico. A
medicalização não se encontra muito presente nessa escola, já que o
saber médico – idealizado e valorizado como solução para todos os
problemas da vida – não é um fator relevante no desenvolvimento de sua
conduta pedagógica. Entretanto, quando os alunos apresentam
comportamentos considerados atípicos e que conturbam o andamento do
grupo, a escola os encaminha ao médico antroposófico que atua em seu
interior. Sendo assim, ainda que a medicação utilizada não seja um
psicofármaco, a medicalização se faz presente de outras formas.

Nós procuramos olhar a criança em todas as


suas fases rítmicas de desenvolvimento e
entender os motivos de muitos comportamentos.
O objetivo da pedagogia Waldorf é conduzir a
criança para que ela mesma se eduque. Não
adianta falar que o mundo está com seus valores
invertidos, se eu mesma, se a mãe ou o pai
também estão. Então, a gente procura o tempo
todo fazer essa auto-avaliação e levar a criança
para esse mesmo caminho. Não é que a gente
aceite tudo como sendo normal, mas, também
não queremos ir pro extremo de achar que tudo é
anormal, que tudo é sinal de doença, de
problema. Por exemplo, aqui na escola, quando
uma criança do maternal está mais agressiva,
mais agitada, a gente entende que isso faz parte
de sua auto-afirmação, como se ela estivesse
demarcando seu território, entende? Em outros
lugares isso já é sinal de que tem alguma coisa
errada, já partem pra questão do remédio. Isso é
muito complicado [...] A gente sabe que uma
criança reage aos estímulos que recebe. Se ela
recebe mais estímulos negativos do que positivos
isso vai repercutir no seu comportamento.
Nesses casos, a gente procura trabalhar com a
família e, se houver necessidade, ela passa pelo
médico que trabalha com a gente. Nos casos de
crianças que já tomam medicação, a gente tenta
trabalhar outra abordagem com a família. Mas
tem casos que só mesmo um psicólogo, um
psiquiatra pode avaliar, mas isso tem que ser
uma coisa muito extrema mesmo. (PD1)

A escola privada E adota a metodologia de ensino Criacionista e


atende um público de classe média. De cunho religioso, essa instituição
38
 

tem como princípio o desenvolvimento de uma visão crítica que


confronte as teorias apresentadas pelo modelo evolucionista e pelo
modelo criacionista. Além das etapas iniciais, do ensino médio e do
ensino superior, a escola também conta com colégios em regime de
internato em vários estados do Brasil e, em Santa Catarina, existe uma
unidade na cidade de Araquari. Os profissionais que atuam nessa
instituição procuram desenvolver atividades de integração entre os
alunos, como a prática esportiva, grupos de escoteiros e comemorações
religiosas que incluam as famílias. Entretanto, a medicalização se faz
muito presente nessa instituição. Ainda que seus profissionais procurem
abordar os problemas que se manifestam no cotidiano escolar por outras
vias, a utilização dos psicofármacos é vista como uma ferramenta de
auxílio no desenvolvimento dos conteúdos.

A gente entende que o mundo está passando por


muitas transformações e muitas delas são bem
negativas. O homem está perdendo seu contato
com Deus, está se distanciando da família cada
vez mais. É nesse sentido que a gente procura
resgatar esses valores, pois a gente acredita que
esse resgate é extremamente necessário para o
desenvolvimento de uma vida espiritual,
intelectual, física e social saudáveis. E por a
gente entender que o mundo está se distanciando
cada vez mais dos valores cristãos, do
comprometimento com Deus, a gente entende
que isso gera muitos conflitos entre as famílias e
isso deságua na escola. A criança reflete muitos
desses problemas, mas também não podemos
achar que tudo é um reflexo, que tudo está
apenas ligado ao contexto que essa criança vive.
Aqui mesmo na nossa escola, tem muitas famílias
bem estruturadas, com valores cristãos, unidas
mesmo e que seus filhos fazem uso de medicação
por ‘n’ motivos. Essas crianças têm uma infância
boa, uma boa criação e educação e mesmo assim
desencadearam coisas que fizeram elas
precisarem de uma ajuda médica. Hoje em dia a
ciência tem desenvolvido muitos estudos que
mostram que temos questões que são genéticas,
que independente do contexto familiar e social,
existem doenças que prejudicam o intelectual, e
a vida escolar é a primeira a ser afetada [...]
Quando um aluno está muito agitado,
apresentando questões que a gente vê que
ultrapassam, que não são normais, a gente
39
 

chama a família e se mesmo assim não tiver


melhora, essa criança é encaminhada pro
psicólogo e, dependendo do caso, pra um neuro.
A medicação ajuda sim, bastante. Mas é como eu
te falei, só um especialista é que pode dizer
certinho o que é e de onde vem isso. (PE1)

A escola pública F trabalha com a metodologia Sócio-


Construtivista e atende um público de baixa renda. Situada num bairro
carente da cidade de Florianópolis, a escola é o grande referencial de
lazer, esporte e cultura para os moradores que residem na comunidade.
Os professores procuram modificar o espaço físico das salas de aula
constantemente, a fim de despertar o interesse dos alunos para a
realização de suas atividades. Além disso, desenvolvem atividades nos
diversos ambientes da escola e também no seu entorno. Uma das
atividades de maior destaque e que procura agregar pais, alunos,
professores e sociedade é aquela que trabalha com o tema da
sustentabilidade e por meio dela, são desenvolvidos projetos de horta
escolar, oficinas de sabão, reciclagem de papel e compostagem de lixo
orgânico. Apesar de todo esforço e empenho dos profissionais dessa
instituição em diversificar as estratégias de ensino, agregar as famílias e
atender as necessidades particulares de cada aluno, muitas crianças
fazem uso de medicação e alguns de seus professores demandam por um
diagnóstico médico que nomeie os problemas apresentados pelos alunos.

Essa escola mudou muito com o passar dos anos.


Trabalho há um tempo aqui e percebo que o
bairro cresceu muito e com isso os problemas
sociais também cresceram. É um bairro muito
carente. A escola pra essas crianças acaba
sendo sua única opção de lazer, de vida mesmo.
Aqui eles têm a oportunidade de participarem de
uma vida que mostra outro horizonte pra eles, a
gente desenvolve muitos debates, pesquisas,
muitas saídas de estudo [...] No mês passado
desenvolvemos uma série de apresentações e
exposições artísticas e isso foi aberto a toda
comunidade. É uma oportunidade das famílias
participarem da vida dos filhos, acompanharem
sua vida escolar. Mas essa questão da
medicalização é muito forte, muito poderosa.
Não é mais a família, a escola que tenta entender
a criança e achar meios pra resolver os
problemas. Agora é a medicina, a psiquiatria, e
tudo vira doença. Ninguém tenta ouvir essas
40
 

crianças, saber de suas dores, de suas


dificuldades, suas lutas. Até mesmo quando a
gente encaminha um aluno pra um
acompanhamento psicológico, achando que ali
ele vai ter um espaço de escuta, eles também
estão na mesma direção da medicalização e logo
mandam essa criança pra um neuro, e ela
começa a tomar remédio. Dificilmente uma
criança que passa por um neuro, por um
psiquiatra sai de lá sem uma caixinha de
remédios. Mas também tem o lado difícil do
professor que tem que lidar com uma série de
questões que extrapolam o universo escolar. São
crianças que têm uma vida familiar e emocional
muito complicada e explodem na escola, batem
até mesmo no professor, eu já passei por isso.
Nesses casos, reconheço que a medicação ajuda,
mas é só um paliativo, entende? No fundo, não tá
resolvendo nada, porque não tem nada ali que
aquele remédio possa resolver. O problema é de
outra ordem. (PF2)

A escola pública G adota a metodologia de ensino Plural. Ela se


situa na parte continental da cidade de Florianópolis e atende um público
de baixa renda. A escola enfrenta alguns problemas de infraestrutura,
como ausência de laboratório de ciências e falta de manutenção de
diversos computadores, o que inviabiliza a realização de aulas de
informática e pesquisas. A escola conta com alimentação proveniente da
agricultura familiar e, paralelamente, desenvolve projetos com os alunos
sobre alimentação e nutrição produzidas em âmbito local,
principalmente das comunidades tradicionais indígenas e remanescentes
de quilombolas. Aos finais de semana, a escola abre suas portas para a
comunidade, onde são desenvolvidas atividades de lazer, cultura e
prática de esportes. Muitos alunos dessa instituição encontram-se em
situação de vulnerabilidade social e frequentemente se envolvem com o
tráfico de drogas e brigas. Os maiores problemas enfrentados pelo corpo
docente diz respeito à violência entre os alunos e a falta de respeito para
com os professores. Segundo os professores, o número de alunos que
fazem uso de medicação cresceu significativamente, inclusive, essa foi
uma das instituições pesquisadas com maior número de diagnósticos de
TOD (Transtorno Desafiador Opositivo) com um total de nove casos.

A violência e o desrespeito é muito grande.


Chega a sair do nosso controle mesmo. A sala da
diretoria sempre está cheia, porque os alunos
41
 

não conseguem deixar o professor dar aula,


então a gente tem que resolver, tem que fazer
alguma coisa. A gente manda pra lá [...] É
celular o tempo todo ligado, eles ligam música
na sala de aula nesses celulares e pronto, acaba
a aula. Isso quando o professor não está em aula
e de repente um aluno começa a brigar com
outro. As meninas [...] pegamos uma menina
tendo relação sexual com um colega de classe no
banheiro. A gente sabe que essa questão da
medicalização está ‘over’, mas o que a gente vai
fazer? Tem aluno aqui que tem problema
psiquiátrico difícil mesmo, que precisa da
medicação. A gente vê uma melhora, nossa, e
como vê. Mas é aquela coisa, né, tem épocas que
de repente tá melhor, tem épocas que não. Não
dá pra avaliar até que ponto esses remédios
estão ajudando de verdade ou se estão só
camuflando um problema. (PG2)

A escola privada H adota a metodologia de ensino Montessoriana


e atende um público de classe média alta. Um dos princípios
educacionais dessa instituição está no respeito à individualidade e
autonomia do educando e sua pedagogia procura contemplar a criança
além de um organismo vital, como um ser espiritual que é animado por
uma força vital divina. O cotidiano dessa instituição é marcado por
normas e limites estabelecidos dentro daquilo que o corpo docente
considera adequado. Ordem e disciplina estão presentes em todas as
atividades desenvolvidas, inclusive no espaço físico. A agitação e a falta
de concentração foram os maiores problemas relatados pelas professoras
entrevistadas. Essa instituição atende crianças do berçário (4 meses) até
o 9º ano (14/15 anos) e as professoras relataram que crianças do ensino
infantil, com idade de 5 anos fazem uso de medicação, mas a maior
concentração de alunos medicados encontra-se no fundamental I e II
(entre 6 e 14 anos).

Nossa escola procura atender todas as


necessidades dos alunos, partindo da realidade
concreta, das necessidades do dia a dia. Nós
temos um trabalho muito importante com a
sistematização da leitura e escrita nos anos
iniciais e nosso diferencial, no 6º e 9º ano são as
aulas de empreendedorismo [...] Os alunos têm
atividades que ajudam a montar sua própria
empresa. Eles fazem grupos e montam
microempresas [...] Aqui a gente entende que
42
 

pra criança aprender, ela deve ser respeitada,


ela tem que ter iniciativa própria, deve partir
dela. Desde cedo, eles entram em contato com
atividades que desenvolvem os 5 sentidos, muita
atividade de coordenação motora, auditiva,
visual. A gente parte do concreto pro abstrato.
Eles aprendem a matemática, por exemplo,
utilizando blocos de madeira, aprendem a
língua, usando letras móveis [...] Nós prezamos
a disciplina, o silêncio e a organização do
espaço. Quer dizer, a gente dá liberdade pra que
o aluno cresça, se desenvolva, escolha o que
quer fazer, mas quem tá direcionando esse aluno
é o professor [...] Tem criança com TDAH, que
foi diagnosticada pelo médico. Aqui a gente não
medica ninguém sem um laudo médico e
autorização da família. Ela tem que trazer esse
laudo. Na verdade, essa questão da
medicalização está muito forte ultimamente né,
por isso, a gente sempre procura observar bem,
analisar o comportamento da criança, pedir
ajuda da psicóloga, conversar com a família
antes de pedir o encaminhamento pro médico.
No infantil nós temos alguns casos de crianças
com TDAH e um com depressão, no ensino
fundamental a coisa está mais forte. Temos casos
de depressão e ansiedade. Estou há 3 anos no
ensino fundamental, antes eu ficava no infantil.
Lá a coisa é mais a agitação, aqui a depressão
tem sido mais forte, e tem a ansiedade também,
alunos com problema de insônia, muito
nervosismo [...] tem muita criança com pais
separados, pai que não mora no Brasil e vê a
criança uma vez a cada 3 meses. Isso pesa
bastante. (PH2)

Esse breve panorama serve para nos situarmos em relação às


escolas que analisamos, bem como suas maneiras em abordar a questão
da medicalização e alguns dos problemas enfrentados pelos professores
no cotidiano escolar. No próximo capítulo, analisaremos os percursos
que a psiquiatria efetuou e que possibilitaram sua ingerência nas esferas
da vida, culminando no campo da infância.
43
 

2 AS ORIGENS DA PSIQUIATRIA MODERNA

Na realidade, como se espera demasiado da


ciência, ela é concebida como uma feitiçaria
superior (GRAMSCI, 1985, p. 143).

Nas sociedades ocidentais, problemas inerentes à vida são


transferidos para o campo médico, assim, vivemos em plena Era dos
Transtornos. Com essa reflexão, Maria Aparecida Affonso Moysés
(2013) transcorre sobre alguns dilemas que enfrentamos atualmente num
processo denominado de ‘medicalização da vida’.6 Esse processo avança
sobre todas as esferas da vida, e desqualifica as diferenças que nos
caracterizam e nos constituem.
A era dos transtornos, era sombria de medicalização
psicofarmacológica do mal-estar, insere os conflitos e dificuldades
inerentes à vida no campo dos problemas médicos, especificamente
psiquiátricos. Mal-estares ínfimos como agitação, nervosismo, falta de
concentração são vistos como indicadores de patologias psiquiátricas
que devem ser tratadas a fim de se evitar uma mazela maior7.
Nessa nova configuração, onde as teorias biológicas sobre as
disfunções químicas cerebrais passam a explicar quase todos os
problemas da vida humana, a busca por um diagnóstico psiquiátrico que
revele as origens e os motivos de determinadas dificuldades tem se feito
presente no âmbito escolar. Cada vez mais, a escola forma uma
verdadeira parceria com o saber médico em busca de explicações para os
problemas comportamentais e de aprendizagem que cercam o seu
cotidiano. De onde vem esse fenômeno? Como ele surgiu, ao ponto de,
hoje, vivermos em plena era dos transtornos, onde quase tudo é
patologizado e categorizado como doença? Essas são algumas questões
que animam esse capítulo.
Partindo dos degeneracionistas do século XIX, realizaremos uma
análise sobre os percursos efetuados pela psiquiatria que possibilitaram
sua ingerência nas esferas da vida humana na atualidade. Em seguida,
discutiremos o início da psiquiatrização infantil na perspectiva de
Michel Foucault e a expansão de categorias diagnósticas na infância
atual. A questão do risco será analisada na perspectiva sociológica, a
fim de compreendermos como a psiquiatria preventiva se apropriou
desse conceito para intervir na sociedade e, por fim, discutiremos a
influência do uso das estatísticas na expansão das técnicas psiquiátricas
                                                                                                                       
6
O termo medicalização surgiu no final da década de 1960 para se referir à crescente
apropriação dos modos de vida do homem pela medicina (CONRAD, 2007).
7
Sandra Caponi (2012) trabalha a ideia de cronificação de patologias mentais inerentes à
lógica da prevenção.
44
 

no tecido social e sua aplicação na atualidade em projetos da psiquiatria


do desenvolvimento. Ao longo do trabalho, colocaremos as falas dos
profissionais de educação que foram entrevistados e faremos uma
análise à luz de nossa bibliografia.

2.1 O SABER PSIQUIÁTRICO

Segundo Caponi (2012), o saber psiquiátrico foi alargando suas


fronteiras, separando-se do campo “psi” e vinculando-se ao terreno do
“bio”. Essa mudança sustentou a normalização via medicalização. Tudo
o que antes era visto como pertencente ao campo da variabilidade
humana passou a ser patologizado. É o que podemos chamar de
patologização da normalidade, pois:

Limitar nossos sofrimentos decorrentes de


problemas sociais a explicações neurológicas ou
hereditárias contribuirá para obscurecer os
problemas concretos que, em muitos casos,
provocaram os sofrimentos. Essas explicações
reducionistas levarão a minimizar nossa
capacidade de refletir sobre nós mesmos e
restringirão as possibilidades de criar estratégias
efetivas para dar reposta a nossos problemas
(CAPONI, 2012, p. 16).

No curso ministrado por Michel Foucault em 1973/74 que dá


origem ao O poder psiquiátrico, observamos que a psiquiatria não
nasceu como consequência de um novo progresso no conhecimento da
loucura, mas dos dispositivos disciplinares nos quais se organizaram o
regime imposto à loucura. O autor estava interessado em entender os
meandros das relações de poder dentro da psiquiatria e como ela se
legitima dentro da medicina. Segundo ele:

Tendemos a pensar que a psiquiatria aparece pela


primeira vez como uma especialidade no interior
do domínio médico [...]. Entretanto, entre os
fundadores da psiquiatria, a operação médica que
realizam quando tratam de um paciente não tem
em sua morfologia ou em sua disposição geral
virtualmente nada a ver com aquilo que está se
transformando na experiência, na atividade
diagnóstica e no processo terapêutico da
medicina. Seus procedimentos são absolutamente
irredutíveis aos da medicina (FOUCAULT,
2006, p. 221).
45
 

A psiquiatria, como bem demonstra Foucault (2006) trabalha


com a ausência do corpo. Ainda que ela trabalhe com diagnósticos, o
que realmente está em questão é saber se o paciente está ou não doente.
O autor classifica essa conduta de ‘diagnóstico absoluto’. Caponi (2012)
afirma que a psiquiatria, desde sua gênese, se ocupará em encontrar
correlações entre doenças mentais e lesões. E é justamente nesse âmbito
que ela se diferencia da medicina. Enquanto a medicina estabelece
diagnósticos diferenciais, localizando as lesões no corpo, este mesmo
feito não pode se dar na psiquiatria8.
A importância do saber sobre a loucura esteve diretamente
relacionada ao poder médico. Segundo Foucault (2010), o médico não
tem conhecimento acerca da loucura, mas domínio. O médico não fazia
parte do espaço do asilo e, somente ao final do século XVIII é que sua
figura se faz presente e transforma esse espaço em lugar médico. Isso
não se dá porque o médico detenha um saber, mas “se a profissão
médica é requisitada, é como garantia jurídica e moral, e não sob o título
da ciência” (FOUCAULT, 2010, p. 497).
A figura do médico atinge o status de importância muito mais
pela influência e poder que exerce com os doentes e com o próprio
espaço asilar, do que pelo conhecimento a respeito da loucura. A
personagem do médico entra em cena no mesmo momento em que o
conhecimento acerca da doença mental busca sentido de positividade. O
médico e o louco passam a formar uma unidade através de dependências
que se assentavam nas estruturas e valores da sociedade burguesa, como
a moral, a autoridade e a família; “e é daí que o médico retira seu poder
de cura, e é na medida em que através de tantas velhas ligações o doente
se vê alienado no médico, no interior do par médico-doente, que o
médico tem o poder quase milagroso de curá-lo” (FOUCAULT, 2010, p.
500). E será na qualidade de médico que ele será visto pelo doente como
detentor desses poderes.
E, enquanto o positivismo encara essa realidade como figura de
objetividade, Foucault mostra que isso é apenas a vertente da
dominação. Assim,

Esse aprofundamento da busca no campo da


objetividade científica já se fazia, no decorrer de
todo o século XIX, com o estudo das causas da
doença mental, por meio de uma etiologia que
                                                                                                                       
8
Ainda sobre esse tema, Caponi (2012) aponta que a biopolítica das populações, com
início no século XVIII, possibilitou que o biológico entrasse para o campo do político. A
estratégia dos biopoderes tem como objetivo o melhoramento dos corpos, das populações e
das raças. Para isso, multiplicam-se os espaços biopolíticos de intervenção.
46
 

faria a teoria psiquiátrica penetrar tanto mais nos


moldes científicos da época quanto conseguisse
ligar o caráter subjacente da doença a causas
objetivas, ou seja, orgânicas, atribuindo-as a
lesões físicas (PORTOCARRERO, 2002, p. 46).

A psiquiatria, tal como nos mostra Caponi (2012) buscava


construir provas que substituíssem as constatações que a medicina
conseguia realizar, dessa maneira ela elaborou outros métodos. A busca
por diagnósticos verdadeiros e convincentes encontrou espaço, não no
interior do corpo, nos tecidos ou nos órgãos, mas sim, através dos
interrogatórios psiquiátricos sobre as condutas e hábitos, histórias de
vida e antecedentes familiares9.
E a função dos interrogatórios psiquiátricos para Foucault era
disciplinar. De acordo com Caponi (2009), os interrogatórios
procuravam desvendar o passado e a trajetória de vida do indivíduo. Na
impossibilidade em se encontrar no corpo do doente um substrato
orgânico para sua doença, a psiquiatria foi buscar na família a existência
de patologias. É o que Foucault (2006) chama de “corpo ampliado”, já
que, para o autor, trabalhar com a noção de hereditariedade foi o modo
que a psiquiatria encontrou de dar corpo à doença.
Esse fato pode ser visto nos consultórios psiquiátricos. Através
do histórico de vida do doente, o psiquiatra irá esquadrinhar os sintomas
de sua doença e tentar vinculá-la a algum episódio, idêntico ou similar,
que tenha acometido um parente familiar. Exemplo disso pode ser dado
por meio de diversos transtornos que são apregoados pela sociedade
psiquiátrica, como o transtorno bipolar, em que a herança genética tem
enorme prevalência e metade da população dos portadores apresenta
pelo menos um familiar afetado, e filhos de portadores apresentam risco
aumentado de apresentar a doença, quando comparados com a
população geral10. Outro exemplo que acentua a noção de
hereditariedade é associado ao TDAH . Os genes aparecem como
responsáveis pela predisposição do transtorno, já que a ideia difundida é
de que nas famílias de portadores de TDAH, haviam parentes afetados
em maior quantidade do que nas famílias que não tinham crianças com o

                                                                                                                       
9
Caponi (2012) mostra que o saber psiquiátrico se reorganizou para que o discurso médico
sobre as condutas pudesse ser aceito. A medicina estudava o corpo em termos de órgãos e
tecidos e estabelecia diagnósticos diferenciais que localizavam as lesões no próprio corpo.
A psiquiatria procura o corpo ‘neurológico’ e se empenha em estabelecer correlações entre
as lesões encontradas no organismo e os sintomas apresentados pelo paciente.
10
Informações obtidas no site da Associação Brasileira de Transtorno Bipolar. Disponível
em: <http://www.abtb.org.br/transtorno.php.>. Acesso em: 10 mar. de 2015.
47
 

transtorno. A prevalência da doença na família de crianças afetadas é de


10 vezes mais do que na população em geral11.
Para traçar o histórico da psiquiatria, Caponi (2012) recorre às
suas origens. Seus estudos partem dos alienistas e psiquiatras do século
XVIII. Segundo a autora, foi Phillipe Pinel, médico francês, que
consagrou a psiquiatria clássica. Em sua obra Traité médico-
philosophique sur l’alienation mentale, datada no ano de 1809, a
herança patológica aparece como um dos múltiplos elementos que
compõem a teia explicativa das patologias mentais.
Pinel (1809) acreditava que em toda loucura existia sempre um
resto de razão, e para encontrar a razão perdida em meio à loucura,
qualquer método era válido. Para que as paixões desenfreadas
encontrassem a luz da razão, era necessário o uso de uma terapêutica
dotada de instrumentos de intervenção. Pinel, juntamente com Jean-
Étienne Dominique Esquirol12, seu discípulo, acreditava que o
asilamento dos loucos garantiria a segurança pessoal e familiar, os
libertaria das influências exteriores, os fariam vencer suas resistências
pessoais, os submeteriam a um regime médico, além da imposição de
novos hábitos intelectuais e morais (CAPONI, 2012).
Quer se tratasse de mania, melancolia, demência ou idiotismo,
todas as patologias derivavam do mesmo conjunto de causas físicas e
morais e todas apresentavam alterações nas funções intelectuais. O
interesse de Pinel era o de definir os modos pelos quais se manifestava
uma mesma patologia, que ele denominava de alienação mental. A
alienação era proveniente de causas múltiplas, dentre elas as paixões
contrariadas, como a dor profunda, o amor contrariado, o fanatismo
religioso. Seu discurso não estava interessado em lesões de órgãos ou
tecidos, mas sim na trama de redes causais que gerariam a alienação.
Pinel acreditava que o asilamento do alienado era necessário, pois
somente naquele espaço, longe da família e imerso num regime moral e
físico, sob constante vigilância, a conquista da razão perdida poderia
acontecer (CAPONI, 2012).
Os estudos de Caponi (2009; 2011; 2012) nos mostram que a
psiquiatria clássica de Pinel e Esquirol viam no tratamento moral
aplicado no asilo, o caminho para o controle das paixões desenfreadas e

                                                                                                                       
11
Informações obtidas no site da Associação Brasileira do Déficit de Atenção. Disponível
em: <http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/o-que-e-o-tdah.html.>. Acesso em: 3 jan. de
2015.
12
Alienista francês nascido na cidade de Tolouse, precursor da psiquiatria científica
iniciada por Philippe Pinel (1745-1826) e um dos principais representantes da psiquiatra
alienista francesa do século XIX, consolidou a ideia de loucura como doença. Disponível
em: <http://www.dec.ufcg.edu.br/ biografias/JeanEDEs.html>. Acesso em: 10 abr. 2015.
48
 

toda a espécie de perturbação. A distinção binária entre normalidade e


loucura encontrava seu universo na institucionalização asilar.
Robert Castel (1978), ao analisar a questão do alienismo e do
asilamento, afirma que:

O asilo é o lugar existencial do exercício da


psiquiatria porque é o mais apto a opor; ao meio
natural (isto é, familiar e social), patogênico
porque anômico, um meio construído,
terapêutico porque sistematicamente controlado.
No asilo, uma pedagogia da ordem pode se
desenrolar em todo o seu rigor. Nele o exercício
da autoridade pode ser mais enérgico, a
vigilância mais constante, a rede de coerções
mais estreita. Camisa de força moral, válida
como qualquer outra. O asilo, convenientemente
organizado, constitui para eles (os doentes), uma
verdadeira atmosfera médica: sua ação incessante
é quase imperceptível, mas eles a respiram por
todos os poros e ela os modifica, finalmente,
muito mais fortemente do que se poderia
acreditar, na medida em que sejam modificáveis
(CASTEL, 1978, p. 80).

Sobre isso, Foucault, na conferência de 28 de março e 3 de abril


de 1977, disserta sobre Castel e seus apontamentos sobre o nascimento
da psiquiatria e do internamento asilar. De acordo com Foucault, Castel
não acredita que a psiquiatria tenha nascido no asilo, mas que ela sempre
foi imperialista e sempre fez parte de um projeto social global. Castel
(1978) mostra que os alienistas do século XIX buscaram o posto de
“especialistas”. Porém, essa especialidade centrava-se no perigo geral
que corre pelo corpo social trazendo ameaças por todos os lados, uma
vez que ninguém está livre da loucura. Para Foucault, Castel,
acertadamente, afirma que os alienistas eram encarregados de um perigo
e assumiram a posição de “sentinelas de uma ordem que é a da
sociedade em seu conjunto” (FOUCAULT, 2010b, p. 325).
Segundo Foucault, o que Castel levanta em seus estudos é que o
projeto psiquiátrico está ligado aos problemas criados pela sociedade
pós-revolucionária, industrial e urbana. Este projeto estava, em sua
origem, integrado às estratégias de regularidade, normalização,
assistência, habilitação de vigilância, tutela das crianças, dos
delinquentes, dos pobres e principalmente dos operários. O discurso do
alienista, segundo Foucault (2010b, p. 325) dizia que “a medicina não
tem somente como objeto estudar ou curar as doenças; ela tem relações
íntimas com a organização social”.
49
 

As análises que Foucault realiza sobre a obra de Castel mostram


que a medicina caminhava cada vez mais para configurar-se como uma
tecnologia geral do corpo social. O asilo serviu apenas como esconderijo
para a psiquiatria, que tinha o intuito de conquistar uma função
permanente e universal. Todo o funcionamento do asilo, que se
assemelhava ao hospital, salvaguardava o caráter médico do psiquiatra e
suas terapêuticas mostravam cada vez mais a ambição da psiquiatria em
intervir infindavelmente na sociedade.
Para Foucault, os estudos de Castel são revolucionários, pois:

Ele permite ter-se a dimensão de um fato


essencial: a partir do século XIX, todos nos
tornamos psiquiatrizáveis; a mais técnica, a mais
racionalizante das sociedades colocou-se sob o
signo, valorizado e temido, de uma loucura
possível. A psiquiatrização não é alguma coisa
que aconteça aos mais estranhos, aos mais
excêntricos dentre nós; ela pode nos surpreender
a todos e por toda parte, nas relações familiares,
pedagógicas, profissionais (FOUCAULT, 2010b,
p. 326).

Sobre o asilo, podemos ver que Foucault (2006) comparava esse


espaço disciplinar a um presídio devido à sua organização interna, com
regras voltadas ao corpo, organização de tempo e espaço, normas
impostas e repetição de tarefas. Naquele espaço, o tratamento moral que
Pinel acreditava ser capaz de reestabelecer o paciente, devolvendo-lhe a
lucidez, justificava sua natureza. Esse tratamento criaria estratégias para
dominar as paixões e recuperar a razão. Assim, o paciente poderia ver-se
livre novamente (CAPONI, 2012).
Caponi explana que, na segunda metade do século XIX, houve
um aumento de alienados dentro dos asilos e que o tratamento moral
proposto por Pinel e Esquirol mostraram-se insuficientes para solucionar
tal demanda. Nesse contexto, surge a teoria de Morel13, como tentativa
de responder aos problemas que a psiquiatria encarava. Ela não se
vinculava ao corpo ampliado, como buscavam os teóricos da
degeneração, mas era abordada como um dos múltiplos componentes
que explicam as causas das patologias mentais, não diminuindo a
                                                                                                                       
13
Sobre o tratado de Morel, Caponi (2012) esclarece que, de acordo com o autor, os signos
externos como a cor da pele, cabelo ou altura não eram indicativos de degeneração. Para
ele, uma das causas proeminentes da degeneração estaria ligada à ingestão de substâncias
tóxicas como drogas (haxixe ou ópio), determinados tipos de alimentos e o álcool. Porém,
o álcool é visto como uma das principais causas de degeneração com consequências
irreversíveis, tanto para o alcoólatra como para suas futuras gerações.
50
 

importância e influência da educação na infância ou do contexto familiar


que o alienado faz parte. A teoria da degeneração acreditava que “a
herança patológica deixa marcas no corpo que se transmitem por
gerações, sendo a causa principal das patologias mentais” (CAPONI,
2012, p. 39).

2.2 A TEORIA DA DEGENERESCÊNCIA E AS EXPLICAÇÕES


BIOLÓGICAS DOS TRANSTORNOS MENTAIS

Caponi (2012) esclarece que é possível observar em Morel e seus


seguidores, que a hereditariedade passa a ocupar o lugar de explicação
das causas das doenças mentais. Morel (1858) trabalha com o
pressuposto de que a psiquiatria deveria agir por meio de uma profilaxia
preventiva no combate às causas da doença e seus efeitos. Sendo assim,
o mundo externo e seus eventos, nada mais seriam do que válvulas
propulsoras de uma predisposição mórbida existente que se transmitia de
geração em geração.
Segundo Caponi (2012), os degeneracionistas partiam do
pressuposto de que as degenerescências eram desvios doentios do tipo
normal da humanidade, transmitidos hereditariamente. Elas poderiam ter
causas diversas, como: intoxicações, influências do meio social ou da
hereditariedade, doenças adquiridas ou congênitas. Quando instalada, a
doença seguia seu curso e era transmitida a seus descendentes, até a
extinção da linhagem. O programa de profilaxia estudado por Morel
abrangia a higiene física e moral e dirigia-se igualmente ao conjunto
social. Sua profilaxia referia-se ao social, mas aproxima-se muito da
medicina e de suas tendências organicistas. O trabalho de Morel tinha
como objetivo ligar a alienação mental à medicina geral.
A teoria da degenerescência realiza uma transformação radical na
concepção de doença mental. Para Caponi (2012), a partir do momento
em que as degenerescências tiveram suas causas atribuídas a uma lesão
orgânica, ocorreu um deslocamento no modo de se pensar os
desequilíbrios sociais para o tronco comum da medicina. Os critérios
para estabelecer as entidades nosológicas não são mais determinados
pelos sintomas de ordem moral, mas a partir de uma causalidade física.
Sobre isso, Portocarrero (2002) discute que as mudanças que o
conceito de degenerescência operou, seguiram o seguinte caminho:
primeiramente, a degeneração das células do sistema nervoso foi
atribuída à intoxicação alcoólica, cocaínica, etc., e mais adiante utilizou-
se a clínica médica para o tratamento da alienação em relação aos
componentes fisiológicos dos transtornos mentais. Em segundo lugar, os
transtornos psíquicos não mais se restringiram apenas ao campo da
doença mental propriamente dita, mas estenderam-se a todas as
51
 

anormalidades passíveis de se degenerar em psicopatologia, ou seja,


como afirmava Foucault (2006), anormalidades passíveis de produzir a
loucura.
Nesse contexto, os epiléticos, os alcoólatras e os sifilíticos, que
não são doentes mentais propriamente ditos, passaram a ser encarados
como um entrave para o progresso; eles representavam um grande risco
para a ordem social, na medida em que, durante as crises, eram
improdutivos, atentavam contra a disciplina e concorriam para a
transmissão de seu mal a seus descendentes (PORTOCARRERO, 2002).
Portocarrero (2002) afirma que os transtornos mentais passaram a
ser estudados no contexto social. A teoria da degeneração passa a se
interessar não apenas pelos alienados, mas por toda a espécie de
degenerados. Utilizando-se da medicina geral, a psiquiatria alarga suas
fronteiras e passa a se ocupar do desenvolvimento físico e intelectual das
raças.
Assim, Caponi (2012) mostra que a teoria da degeneração vê-se
diante da necessidade de definir novas enfermidades e enquadrá-las no
campo nosográfico. Esse alargamento serviu como justificativa de
difusão do saber psiquiátrico por todo o campo da chamada
anormalidade.
Foucault (2001) conclui que tanto os indivíduos anormais e suas
famílias, quanto às camadas populares e as diversas raças consideradas
como desvio do tipo originário, passam a ser vistas como objetos de
estratégias de controle14. O autor nos mostra que a psiquiatria não surgiu
como especialidade do saber ou da teoria médica, mas como um braço a
serviço da higiene pública. Ela se institucionalizou com o objetivo de
proteger a sociedade dos perigos provenientes da doença mental e como
higiene do corpo social. Inicialmente, ela codificou a loucura como
doença, tornando patológicos todos os distúrbios e o que era considerado
anormal. Assim, segundo Foucault, a loucura foi codificada como
portadora de perigo e, então, a psiquiatria, que detinha o poder-saber da
doença mental, pode atuar como higiene pública.
A degeneração permitiu o isolamento e trouxe à memória uma
“zona de perigo social” (FOUCAULT, 2001, p.150). Não somente do
louco enquanto louco, mas também da família do louco. A psiquiatria
passou a psiquiatrizar todas as condutas e perturbações existentes no
seio familiar. A família passa a ser o lugar de investigação psiquiátrica.
                                                                                                                       
14
Na conferência do dia 29 de setembro de 1970, realizada por Foucault, o autor afirma
que a situação dos loucos mudou no final do século XVIII, pois no início do século XIX,
houve um grande crescimento industrial e, com isso, um aumento de proletários
desempregados. Os que foram considerados aptos para o trabalho, saíram dos asilos. Os
que ficaram eram considerados incapazes para o trabalho e foram classificados como
doentes com distúrbios de natureza psicológica ou algum desvio de caráter.
52
 

E o psiquiatra torna-se o médico da família, aquele que irá tratar, do


ponto de vista médico, das dificuldades e distúrbios que ocorrem ali
dentro (FOUCAULT, 2001).
E qual seria o caminho que levaria a psiquiatria ao encontro das
doenças mentais? Segundo Caponi (2012), para encontrar as possíveis
patologias mentais, a psiquiatria adotará o interrogatório como
mecanismo de busca15. Foucault (2006) nos esclarece que a função do
interrogatório psiquiátrico era a de encontrar, nas condutas passadas,
indícios que apontassem para a existência de uma patologia mental, ou
seja, mostrar que a loucura já existia antes mesmo que a doença criasse
corpo, como ele afirma:

Em primeiro lugar, um interrogatório


psiquiátrico clássico, isto é, tal como vocês o
veem funcionar a partir dos anos 1820-1830,
sempre comporta a chamada pesquisa de
antecedentes. O que é pesquisar antecedentes? É
perguntar ao doente quais foram as diferentes
doenças que seus antecedentes ou seus colaterais
puderam ter (FOUCAULT, 2006, p. 351).

E mais adiante:

A hereditariedade é certa maneira de dar corpo à


doença no momento mesmo em que não se pode
situar essa doença no nível do corpo individual;
então inventa-se, demarca-se uma espécie de
grande corpo fantasmático que é o de uma
família afetada por um grande número de
doenças: doenças orgânicas, doenças não-
orgânicas, doenças constitucionais, doenças
acidentais, pouco importa; se elas se transmitem
é porque possuem um suporte material e, se se
alcança assim o suporte material, então se tem o
substrato orgânico da loucura, um substrato
orgânico que não é o substrato individual da
anatomia patológica. É uma espécie de substrato
metaorgânico, mas que constitui o verdadeiro
corpo da doença. (IDEM, p. 352).

                                                                                                                       
15
Caponi (2012) trata extensamente desse tema e afirma que o interrogatório procurava
despertar memórias do paciente diante do saber psiquiátrico. Durante o interrogatório, os
devaneios do paciente evidenciavam os sinais da loucura e o psiquiatra era quem iria, de
certa forma, provocar a sua confissão a respeito de sua própria loucura.
53
 

Na perspectiva de Foucault, a técnica do interrogatório, que terá o


aval final do psiquiatra, só pode ser entendida na lógica das estratégias e
mecânicas de poder, quando ele afirma: “Eu já lhes assinalei o aspecto
disciplinar desse interrogatório, na medida em que se trata de vincular,
pelo interrogatório, o indivíduo à sua identidade, de obrigá-lo a se
reconhecer no seu passado, num certo número de acontecimentos da sua
vida” (FOUCAULT, 2006, p. 351). E, para Foucault, é justamente na
existência de tais estratégias que a psiquiatria encontra sua legitimação
(CAPONI, 2012).
Foucault esclarece que o interrogatório, ou seja, as questões que
serão realizadas com o objetivo de se obter informações a respeito do
doente, sua biografia, sua relação familiar e seu círculo pessoal, na
verdade não levarão em conta as questões de vida do doente para
realizar um determinado diagnóstico. O que acontece de fato é que o
doente é levado a somente responder perguntas previamente
estabelecidas. Ele é de certo modo induzido a responder àquilo que o
médico deseja saber para concluir um diagnóstico. O interrogatório “é
uma maneira de substituir discretamente as informações tiradas do
doente, de substituí-las pela aparência de um jogo de significações que
proporcione ao médico uma ascendência sobre o doente” (FOUCAULT,
2006, p. 231).
E o que podemos observar atualmente nos casos de crianças
diagnosticadas, ou encaminhadas para diagnóstico? Seu histórico de
vida e suas questões familiares são retirados de seu contexto social,
histórico e político. Realiza-se o diagnóstico com base nos sintomas
apresentados. O psiquiatra, munido de uma espécie de lista de sintomas
referentes a determinado distúrbio, enquadra o paciente no seu checklist
e, invariavelmente, prescreve uma medicação psicofarmacológica.
Esse processo está amparado no que Conrad e Schneider (1992)
apresentam a respeito da medicalização. O problema do paciente é
definido pela racionalidade médica e tratado por intervenções dessa
categoria. Conrad mostra que categorias médicas que não existiam
passaram a existir e tornaram-se mais elásticas. Atualmente esse fato é
observado nos diagnósticos infantis e no que a psiquiatria define como
“espectro”16; o que amplia significativamente a gama de sintomas que
fazem parte de determinado distúrbio.

                                                                                                                       
16
Sobre o termo “espectro”, que apresenta uma gama de comportamentos que se
manifestam em diversos graus e de diferentes maneiras, Luciano Isolan (2008) mostra que
o termo é frequentemente utilizado pela psiquiatria para definir grupos nosológicos
distintos, porém com um quadro sintomatológico semelhante.
54
 

Com a atual proliferação dos diagnósticos e o englobamento


quase que total de problemas que faziam parte de processos comuns da
vida, os diagnósticos psiquiátricos estão inflacionando ainda mais o
número de casos diagnosticados. Conforme as informações apresentadas
até o momento pode-se perceber que a psiquiatria adentrou o corpo
social, intervindo em quase todos os campos da vida humana. A
ingerência da psiquiatria na vida humana pode ser verificada através do
conceito de biopoder fundamentado por Foucault.
O conceito de biopoder é colocado por Foucault (1988) em
oposição ao direito de morte que caracteriza o poder do soberano. O
direito de vida e de morte estava nas mãos do soberano:

De qualquer modo, o direito de vida e morte, sob


esta forma moderna, relativa e limitada, como
também sob sua forma antiga e absoluta, é um
direito assimétrico. O soberano só exerce, no
caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu
direito de matar ou contendo-o; só marca seu
poder sobre a vida pela morte que tem condições
de exigir. O direito que é formulado como ‘de
vida e morte’ é, de fato, o direito de causar a
morte ou deixar viver (FOUCAULT, 1988, p.
128).

Para o autor, houve uma transformação desses mecanismos de


poder e o “direito de morte tenderá a se deslocar ou, pelo menos, a se
apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar em
função de seus reclamos” (FOUCAULT, 1988, p. 128).
O poder de morte passa a ser exercido juntamente com um poder
que age positivamente sobre a vida. As guerras que eram travadas em
nome do soberano, passam a ser travadas em nome de todos e de uma
instância de vida, “poder matar para poder viver, que sustentava a tática
dos combates, tornou-se princípio de estratégia entre os estados; mas a
existência em questão já não é aquela – jurídica – da soberania, é outra –
biológica – de uma população” (FOUCAULT, 1988, p. 129).
Foucault aponta “que o velho direito de causar a morte ou deixar
viver foi substituído por um poder de fazer viver ou deixar morrer”
(FOUCAULT, 1988, p. 130). Nesse sentido, as disciplinas do corpo e
regulações da população possibilitou a organização do poder sobre a
vida de que o autor se refere.
Os teóricos da degeneração trabalham com esse discurso,
reproduzindo e multiplicando estratégias biopolíticas sobre as
populações. A psiquiatria de Pinel e Esquirol distancia-se em muito
daquela que se construirá a partir de 1857 com os teóricos da
55
 

degeneração. Eles irão procurar novas formas patológicas e


comportamentos associados que passarão, pouco a pouco, a ser
classificados como doenças psiquiátricas (CAPONI, 2012).
De acordo com Caponi (2012), o que poderia ser considerado
como ameaça de uma alienação mental em Pinel, na teoria da
degeneração passará a ser o precursor de patologias. O corpo, que não
ocupava o lugar central de observação em Pinel, será a íris da
psiquiatria. O corpo ampliado17 da família ou das populações, carregado
de patologias, será o cerne da psiquiatria. Na segunda metade do século
XIX, “o discurso de localização de patologias no corpo, particularmente
no cérebro, se transforma em hegemônico” (CAPONI, 2012).
A partir desse momento, o corpo ampliado, que carrega as
heranças mórbidas, passará a procurar em seu interior as possíveis
disfunções. Para isso, irá postular as bases biológicas, anatômicas,
funcionais e genéticas que expliquem as mais variadas patologias
(CAPONI, 2012).
Como bem mostra Cabanis:

[...] existe no homem outro homem interior,


dotado das mesmas faculdades, das mesmas
afecções, suscetível de determinações análogas
às manifestações exteriores. Mais ainda, os fatos
da vida não fazem mais que manifestar no
exterior suas disposições secretas. Esse homem
interior é o órgão cerebral (CABANIS, 1802, p.
184 apud CAPONI, 2012, p. 61).

A procura pelas patologias no interior do corpo direciona seus


olhares a um órgão específico. O cérebro passa a ocupar o centro das
explicações das condutas morais sem, no entanto, se dissociar do eixo
temático da degeneração e da herança. E será Jean Pierre George
Cabanis o responsável por articular o discurso médico da
anatomopatologia aos estudos sobre geração e degeneração relacionados
às influências climáticas.
O fisiologista e filósofo francês irá abrir o caminho para os
estudos fundamentados nas explicações biológicas de comportamentos e
doenças mentais. Cabanis retoma a tradição de Buffon18 no século XVIII
                                                                                                                       
17
Sobre o corpo ampliado, Foucault, em O poder psiquiátrico (2006), mostra que,
quando não é possível encontrar no corpo do doente um substrato orgânico para sua
doença, busca-se na família algumas evidências patológicas. Mesmo que essas evidências
sejam de outra natureza, elas apontam para a existência de uma base patológica. Esse seria
o alongamento do corpo de que Foucault faz menção em vários pontos de seus estudos.
18
Georges Louis Leclerc, Conde de Buffon – filósofo e biólogo naturalista francês, autor
de relatos sobre história geral, biologia e geologia não baseados na Bíblia. Seus estudos
56
 

sobre a influência dos fatores climáticos nas alterações físicas e morais


dos indivíduos. Ele analisa como fatores externos (frio, calor e umidade)
alteram os organismos humanos, determinando algumas formas de
caráter (CAPONI, 2012).
De acordo com Caponi (2012), a doutrina clássica e hipocrática
que entrelaça clima, humores, organismos e comportamentos foi
recuperada e atualizada por Cabanis. A da teoria humoral (REZENDE,
2009) nos mostra que as doenças estiveram ligadas a um desequilíbrio
entre os humores. Os humores eram classificados como o sangue, a
fleuma, a bílis amarela e a bílis negra. Cada um destes humores teria
diferentes características: o sangue seria quente e úmido; a fleuma, fria e
úmida; a bílis amarela, quente e seca; e a bílis negra, fria e seca. A partir
do momento que um destes humores predominasse na formação do
indivíduo, surgiriam os diferentes tipos fisiológicos: o sanguíneo, o
fleumático, o bilioso ou colérico e o melancólico. Entretanto, Caponi
(2012) afirma que, para Cabanis, a origem das diferenças entre saúde e
doença, deveria ser buscada nos órgãos e tecidos, e não nos fluidos
como propunha a teoria hipocrática. Além disso, os comportamentos não
se reduziriam a quatro tipos – o sanguíneo, o bilioso, o melancólico, e o
fleumático, mas a seis tipos. O quinto corresponderia ao predomínio do
sistema nervoso sobre o sistema muscular que se reflete nos indivíduos
com grande capacidade intelectual, e o sexto comportamento, o sistema
motor prevalece sobre o nervoso e incide sobre os fortes e esportistas.
Segundo a autora, não seria na história natural e nem na medicina
clássica que Cabanis encontraria as explicações que revitalizariam a
teoria dos humores, mas nos estudos de anatomia e patologia realizados
por Morgagni e Bichat. Assim, os estudos clássicos passam a ser
discutidos levando em consideração as lesões, os órgãos, as funções e
cadáveres. Cabanis acreditava na intrínseca relação entre o cérebro e o
sistema nervoso com o físico e o moral. Qualquer desequilíbrio que
acontecesse em algum órgão teria influência tanto no sistema nervoso
como no cérebro. Daí sua confiança de que a reconstituição da saúde
possibilitaria a restituição da moralidade. Desse modo, Cabanis abre
espaço para a busca de determinadas patologias no cérebro, já que é ali
que se produzem os pensamentos e que se determina a vontade
(CAPONI, 2012).
Ainda que o filósofo se valha das descrições de Buffon sobre os
efeitos do clima no físico e no moral dos humanos, e retome as teses

                                                                                                                                                                                                                                               
representam um avanço na classificação dos seres vivos. Suas teorias anteciparam algumas
ideias evolutivas que seriam defendidas posteriormente por Lamark e Darwin. Foi
nomeado, na França, por Luis XV, Conde de Buffon em 1773. (Informações disponíveis
em: <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/GeorgsLo.html> Acesso em: 19 fev. 2015).
57
 

elaboradas pela tradição hipocrático-galênica, ele se volta para o interior


do organismo para buscar a chave da compreensão da degeneração
(CAPONI, 2012).

Mas se a degeneração se produz no foco


principal de captação das impressões, o cérebro,
o indivíduo sofrerá as mais graves alterações de
comportamento, do delírio momentâneo até a
loucura irreversível. Será, pois, por referência ao
cérebro, as suas lesões e disfunções, que os
alienistas deverão explicar o surgimento das
patologias mentais (CAPONI, 2012, p. 77).

O conceito de “regeneração” pode ser visto na obra de Cabanis


no que diz respeito ao aprimoramento do homem. Cabanis defendia a
higiene pública por acreditar que ela modificaria os efeitos nocivos
causados pelo clima. Esse aperfeiçoamento encontraria seus objetivos
através da medicina. A higiene será a estratégia de regeneração, e mais
tarde esse discurso será apropriado pelos programas eugênicos.

2.2.1 Regeneração e higiene

Em Foucault (2001), a higiene está vinculada a um processo de


proteção social contra todos os perigos oferecidos pelas doenças. Na
obra Segurança, Território e População (2008b), Foucault cita o caso
da cidade de Nantes que se encontrava, no século XVIII, em pleno
desenvolvimento comercial. Essa cidade apresentava uma aglomeração
desordenada, dificuldades nas funções econômicas e administrativas,
problemas de regulamentação com o entorno rural, etc. Seu projeto de
reconstrução contemplava algumas funções, dentre elas a higiene, já que
suas ruas acumulavam dejetos, significando perigo à população. A
reconstrução de Nantes é apresentada por Foucault como sendo um
projeto que se movia dentro das categorias de disciplina e segurança. O
objetivo era o de minimizar o risco, como o roubo e as doenças.
O problema de higiene era uma das grandes questões do século
XVIII. Foucault (1979) afirma que:

A velha noção de regime, entendida como regra


de vida e como forma de medicina preventiva,
tende a se alargar e a se tornar o “regime”
coletivo de uma população considerada em geral,
tendo como tríplice objetivo: o desaparecimento
dos grandes surtos epidêmicos, a baixa taxa de
morbidade, o aumento da duração média de vida
58
 

e de supressão de vida para cada idade. Esta


higiene, como regime de saúde das populações
implica, por parte da medicina, um determinado
número de intervenções autoritárias e de medidas
de controle (FOUCAULT, 1979, p. 201).

O espaço urbano era considerado o meio mais perigoso para a


população. A mortalidade estava estritamente associada a fatores como:
localização dos bairros, dos cemitérios e matadouros, umidade e
arejamento, sistemas de esgoto e evacuação de água (FOUCAULT,
1979).
Batistella (2007), ao estudar o conceito saúde e doença, analisa as
pestes e epidemias que acometeram a população europeia na Idade
Média. O autor traça todo um histórico sobre a questão da higiene e de
como isso afetava a população medieval. Ele nos mostra que os burgos
medievais viviam sob constante medo de doenças, principalmente a
lepra e a peste bubônica, consideradas castigos de Deus. As cidades
medievais, sem pavimentação, sem rede de esgoto e com péssimas
condições de higiene, ainda recebiam a população advinda da zona rural,
que trazia como hábito a criação de animais (porcos, gansos, patos),
cujos excrementos acumulavam-se nas ruas. Inicia-se, então uma das
primeiras ações de saúde pública: para garantir o suprimento de água
para beber e cozinhar proibiu-se a lavagem de peles e o despejo de
resíduos e animais mortos na corrente dos rios. Segundo o autor, os
primeiros códigos sanitários foram criados somente no final da Idade
Média como medida de normatizar a localização de chiqueiros,
matadouros, o despejo de restos, o recolhimento do lixo, a pavimentação
das ruas e a canalização de dejetos para poços cobertos.
Os primeiros hospitais também surgiram na Idade Média, por
iniciativa das ordens monásticas. Inicialmente, estavam destinados a
acolher os pobres e doentes. Para Foucault (2010a), antes do século
XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos
pobres. Eram mantidos por ordens religiosas e havia uma grande
preocupação burguesa em colocar ordem no mundo da miséria, um
misto de ajuda e repressão. Instituição de assistência, mas que também
funcionava como mecanismo de separação e exclusão.
Para Foucault, a existência dessa instituição se justificava na
afirmativa de que o pobre, carente de assistência, carregava doenças
contagiosas, por isso ele se tornava perigoso. O hospital serviria de
acolhimento e também de proteção à sociedade:

Ainda durante muito tempo a casa de correção ou


os locais do Hospital Geral servirão para a
59
 

colocação dos desempregados, dos sem trabalho,


e vagabundos. Toda vez que se produz uma crise,
e que o número de pobres sobe verticalmente, as
casas de internamento retomam, pelo menos por
algum tempo, sua original significação
econômica (FOUCAULT, 2010, p. 67).

A partir do século XVI, a Europa viveu o que Foucault designa


como a grande Internação. O internamento, em suas formas primitivas
funcionou, então, como um mecanismo social de exclusão e
organização. Eliminavam-se aqueles sujeitos classificados com “a-
sociais”, distribuindo-os nas prisões, casas de correção, hospitais
psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas. Todas essas medidas
visavam à normatização e higienização das cidades. Segundo Foucault:

Pois o internamento não representou apenas um


papel negativo de exclusão, mas também um
papel positivo de organização. Suas práticas e
suas regras constituíram um domínio de
experiência que teve sua unidade, sua coerência e
sua função. Ele aproximou, num campo unitário,
personagens e valores entre os quais as culturas
anteriores não tinham percebido nenhuma
semelhança. Imperceptivelmente, estabeleceu
uma gradação entre eles na direção da loucura,
preparando uma experiência – a nossa – onde se
farão notar como já integrados ao domínio
pertencente à alienação mental (FOUCAULT,
2010, p. 83).

O século XVII foi marcado pela criação de inúmeras casas de


internamento. Para lá eram levados aqueles que eram encaminhados pela
autoridade real ou judiciária, mas também os que se apresentavam por
conta própria. Para Foucault, a criação do Hospital revela a substituição
das medidas de exclusão por uma medida de detenção. O desempregado,
uma vez no asilo, é alimentado e, em troca, aceita a coação física e
moral do internamento. Porém, passado os períodos de crise,

O internamento adquire um outro sentido. Sua


função de repressão vê-se atribuída de uma nova
utilidade. Não se trata mais de prender os sem
trabalho, mas de dar trabalho aos que foram
presos, fazendo-os servir com isso à prosperidade
de todos. A alternativa é clara: mão-de-obra
barata nos tempos de pleno emprego e de altos
60
 

salários; e em período de desemprego,


reabsorção dos ociosos e proteção social contra a
agitação e as revoltas (FOUCAULT, 2010a, p.
67).

Segundo Foucault (2006), o poder dentro dos asilos, que estava


sob o comando da Igreja e do Estado, irá passar para a medicina assim
que a psiquiatria adentra seus portais no final do século XVIII.
Caponi (2012) analisa que a concepção médica de moralidade
permitiu o nascimento de um discurso otimista sobre as possibilidades
de aperfeiçoamento do gênero humano. A autora enfatiza que Cabanis
faz uso do termo “regeneração” referindo-se ao melhoramento das
condições físicas e morais de indivíduos e grupos. O fisiologista reitera
uma das teses de Descartes, que apontava a medicina como um dos
meios de aperfeiçoamento da espécie humana.
A medicina passa a buscar as leis que regem os órgãos,
principalmente o cérebro, e a traçar caminhos de cura para seus de
desequilíbrios. Cabanis será o responsável pela inauguração de uma
série de estratégias de intervenções sobre os corpos. A higiene ocupará
papel central na educação e regeneração das classes populares,
principalmente na segunda metade do século XIX com os teóricos da
degeneração, que buscavam explicações médicas e biológicas para as
condutas humanas, sofrimentos e moralidade (CAPONI, 2012).

[...] por um lado, imagina poder encontrar no


mau funcionamento de nosso organismo,
particularmente de nosso cérebro, a explicação
precisa para cada um de nossos atos. Por outro,
sonha com a regeneração moral de indivíduos,
povos e raças pela mediação de princípios
higiênicos aplicados ao meio externo. Essas duas
tradições, que de um ou outro modo
permanecem, compartilham com Cabanis a
crença ingênua em um saber médico capaz de se
transformar na abordagem privilegiada e
exclusiva para a resolução de nossos conflitos
morais. (CAPONI, 2012, p. 80)

A teoria da degeneração e, mais adiante, o Tratado de Morel,


trouxeram um novo horizonte para a psiquiatria. A conexão entre as
disfunções cerebrais e a transmissão hereditária, ou seja, a repetição de
temperamentos em determinadas famílias, que acarreta as degenerações
nos descendentes foi, segundo Caponi (2012), um passo marcante para a
61
 

psiquiatrização das anomalias e dos desvios de comportamentos, pois


trabalha com a ideia de prevenção.
O tratamento moral, que Morel analisava na ação do médico para
com os degenerados, assentava-se na “aplicação e propagação de uma
série de regras de higiene moral destinadas não só aos alienados, mas
também às populações em geral” (CAPONI, 2012, p. 96).
Caponi nos mostra que a partir desse momento, a teoria da
degeneração possibilitou à psiquiatria alçar voos para além das
fronteiras asilares. A nova estrutura discursiva que essa teoria trazia,
abria as portas para a entrada dos mais variados fatos e condutas no
campo da psiquiatria. Ela se manteve como marco do discurso
psiquiátrico até o século XX, fornecendo suporte teórico ao que
chamamos de psiquiatria ampliada.
Sendo assim,

[...] cada caso de degeneração, do mais leve ao


mais grave, é visto como resultado de causas
físicas (lesões cerebrais), intelectuais, sociais e
morais inter-relacionadas, sendo que a causa
principal será a predisposição degenerativa
(mórbida) vinculada à herança patológica. Nesse
marco teórico, o sucesso da psiquiatria será dado
pela prevenção e antecipação da loucura, e seu
espaço de intervenção privilegiado estará fora
dos muros do asilo, onde habitam os casos
irreversíveis (CAPONI, 2012, p. 98).

Atualmente, ao analisarmos a questão da medicalização da vida e


da infância, podemos observar claramente o quanto a teoria da herança
mórbida contribuiu com o olhar médico e a ingerência de quase todos os
assuntos relativos aos fatos sociais. Quando uma criança é diagnosticada
com algum transtorno mental, essa patologia estará ligada a alguma
lesão ou mau funcionamento cerebral e, muito provavelmente essa causa
será vinculada à sua genética familiar. O passo seguinte será o
tratamento via medicação, visto como único caminho para prevenir ou
impedir que a doença se cronifique.

2.2.2 A idiotia e o início da medicalização da infância

O argumento utilizado pela psiquiatria atual é o da prevenção.


Prevenir que as patologias mentais se cronifiquem é a primeira etapa
para a intervenção medicamentosa dos pequenos desvios de conduta. A
lista de problemas que podem desencadear graves patologias parece
englobar quase que a totalidade de assuntos humanos. E, via de regra, a
62
 

intervenção terapêutica medicamentosa é predominante (CAPONI,


2012).
Longe de negar o sofrimento que muitas experiências e sensações
provocam nos indivíduos, o fato que queremos clarear é o de que
problemas comuns da vida estão se transformando em diagnósticos
psiquiátricos e, consequentemente, desencadeando a via medicamentosa
como única alternativa de mediação e resolução. Para Caponi (2012), ao
medicar o mal-estar cotidiano, a prática médica atual negou a própria
natureza subjetiva do mal-estar como experiência individual e o
transformou em uma entidade nosológica.
Sobre esse processo, Moysés (2013) disserta que,
invariavelmente, as pessoas que se diferenciavam por questionar ou não
seguirem as normas sociais foram segregadas ou até mesmo eliminadas.
Nos anos de 1770, segundo a autora, a perseguição era baseada e
justificada por critérios religiosos. Os perseguidos carregavam os rótulos
de hereges, ateus, endemoniados, bruxas, etc. Nesse período, a medicina
afirmava que as doenças eram produzidas por miasmas e humores que se
propagavam e penetravam nos corpos porosos dos seres humanos.
A partir dos anos 1770, a autora nos mostra que a medicina passa
por um processo de ruptura e se constitui como ciência moderna em
pouco mais de 50 anos.
Ao dissertar sobre Foucault, Moysés (2013) aponta que a
medicina foi o primeiro campo a dedicar-se ao estudo do homem que se
constituiu na modernidade. Seu nascimento estava vinculado às
seguintes crenças: “i) mito de profissão médica nacionalizada,
organizada como o clero e investida, no plano da saúde e do corpo, de
poderes semelhantes aos que este exercia sobre as almas e ii) mito do
desaparecimento total da doença em uma sociedade sem distúrbios e
sem paixões, restituída à sua saúde de origem” (MOYSÉS, 2013, p. 25).
No que tange o universo infantil, a psiquiatria adentrou por outro
caminho. Foucault (2006) nos mostra que até o final do século XVIII, a
psiquiatria não procurava a cura da loucura nos primórdios do indivíduo,
ou seja, na infância. Seu caminho buscava encontrar já no indivíduo
adulto os sinais que poderiam confirmar a predisposição hereditária da
doença. O que se chamava de imbecilidade, estupidez e idiotia não se
distinguia da loucura em geral. A idiotia, segundo Foucault, poderia ser
mais facilmente encontrada em crianças e a demência, nos adultos. A
partir do século XIX, precisamente com Esquirol, a idiotia passa a ser
classificada como um atraso no desenvolvimento intelectual sem o risco
de evolução, e não mais uma doença. Já a demência, ainda que apresente
sinais de um não desenvolvimento, é considerada uma doença mental
que pode evoluir. Outra característica apresentada nos estudos de
Foucault mostra que a idiotia está ligada a vícios orgânicos e de
63
 

constituição19 Assim, a idiotia passa a pertencer ao campo da


enfermidade20, já a demência é uma doença relacionada a lesões
orgânicas e que tem seu aparecimento tardio, ou seja, aparece depois de
certa idade.
Uma diferença em relação aos sintomas da idiotia e da demência
em Esquirol é apresentada por Foucault (2006) da seguinte maneira:
enquanto na demência existe a possibilidade de se encontrar algo
anterior a este estado, ou seja, vestígios de inteligência, de delírio; o
idiota não carrega vestígios de passado.
A partir do século XIX acontece uma distinção entre as crianças
idiotas e as retardadas. A idiotia apresenta a interrupção de
desenvolvimento fisiológico e psicológico, e o retardo apresenta um
desenvolvimento inferior aos demais. Essas definições, segundo
Foucault (2006), terão grande importância na prática da psiquiatrização
da criança. A partir desse momento, a noção de desenvolvimento passa a
representar um processo que afeta a vida orgânica e psicológica entrando
numa dimensão temporal21. O desenvolvimento “é, portanto uma espécie
de norma em relação à qual nos situamos, muito mais do que uma
virtualidade que possuímos em nós” (FOUCAULT, 2006, p. 263).
O desenvolvimento traz outra característica, a de dupla
normatividade. O idiota parou em certo estágio e o retardado, alguém
que foi freado na velocidade do seu desenvolvimento. Assim, “a idiotia
será medida em relação a uma certa normatividade, que será a do adulto.
O adulto vai aparecer como o ponto ao mesmo tempo real e ideal do
término do desenvolvimento; o adulto vai funcionar portanto como
norma” (FOUCAULT, 2006, p. 264). A lentidão do desenvolvimento,
característica do retardado, será definida em relação a outras crianças, ou
seja, as crianças serão a outra normatividade que situa o retardado.
Ambas as categorias não são mais vistas como doenças e se situam num
grau inferior à própria norma e sua cura encontra-se na imposição do
esquema educacional, como afirmou Foucault (2006, p. 265) “a
terapêutica da idiotia será a própria pedagogia, uma pedagogia mais

                                                                                                                       
19
Sobre vícios de constituição, o autor apresenta uma nota que esclarece que, nas
autópsias, os indivíduos considerados idiotas ou imbecis, apresentavam vícios de
conformação cerebral, ou seja, a formação cérebro estava em desvantagem em relação aos
outros órgãos do corpo.
20
A enfermidade, em Esquirol, é vista como uma falta, algo que não teve formação normal
de desenvolvimento. A noção de desenvolvimento possibilita a definição do que é doença
e do que é considerada uma enfermidade, monstruosidade da não doença (FOUCAULT,
2006, p. 262).
21
Para Foucault (2006), a noção de desenvolvimento representa, a partir de então, uma
repartição das organizações neurológicas. O autor chama de temporal, por não ser mais
uma espécie de faculdade atribuída ao indivíduo.
64
 

radical, que irá buscar mais longe, que remontará mais arcaicamente
nisso tudo, mas afinal uma pedagogia”.
Foucault (2006) nos mostra que essa lentidão ou parada no
desenvolvimento se manifesta por algo denominado por Seguin22, de
“instinto” e pode ser definido como algo em estado selvagem ou não
integrado. Foucault descreve o instinto da seguinte maneira:

É certa forma anárquica de vontade que consiste


em nunca querer se dobrar à vontade dos outros;
é uma vontade que se recusa a se organizar com
base no modo da vontade monárquica do
indivíduo, que recusa, por conseguinte qualquer
ordem e qualquer integração ao interior de um
sistema. O instinto é uma vontade que “quer não
quer” e que se obstina a não se constituir como
vontade adulta – caracterizando-se a vontade
adulta, para Seguin, como uma vontade capaz de
obedecer. O instinto é uma série indefinida de
pequenas recusas que se opõem a toda vontade
alheia (FOUCAULT, 2006, p. 273).

Atualmente a psiquiatria construiu uma nova categoria de


transtorno mental, o Transtorno Opositivo Desafiador que se enquadra
muito bem na descrição que Foucault realizou a respeito do instinto.
Segundo informações contidas no DSM IV4 – TR (2002), esse
transtorno pode ser detectado pelo comportamento negativo, desafiador,
hostil e desobediente, e se manifesta na relação com os adultos e figuras
de autoridade em geral. Seus sintomas são: desafio e recusa em obedecer
a solicitações ou regras e se manifestam em várias situações,
principalmente no seio familiar e na escola. De acordo com as próprias
descrições do DSM IV4 – TR (2002), uma vez que esse transtorno não é
tratado, pode haver uma evolução para outro tipo de transtorno, o de
conduta na adolescência. Mais uma vez a ingerência da medicina se faz
presente no universo infantil, categorizando como doença mental os
comportamentos inerentes ao desenvolvimento infantil se valendo de
uma lógica descontextualizante, que suprime os contextos familiares,
sociais e escolares onde o indivíduo está inserido e passa a medicalizar
as condutas humanas. Esse fator pode ser confirmado na fala de uma
                                                                                                                       
22
Édouard Séguin (1812 – 1880), iluminista francês e o primeiro especialista em
deficiência mental e ensino. Autor de “Traitement Moral, Hygiène, et Education des
Idiots” considerado o trabalho mais antigo e sistemática a respeito de crianças com
deficiência intelectual. (Informações disponíveis em:
<http://sed.sagepub.com/content/1/3/220.refs>. – The Journal of Special Education.
Acesso em: 15 de mar. de 2015.)
65
 

professora, quando aponta a possibilidade de doenças como explicação


para o comportamento dos alunos:

A agressividade é muito forte, batem no


professor e sempre estão envolvidos em brigas.
Parece que nada que a gente faz adianta.
Chamar a família, encaminhar para a psicóloga,
diretoria, suspender. Chega uma hora que a
gente percebe que aquilo não é mais uma
questão de falta de limites, de respeito, tem
alguma coisa a mais. (PG2)

Nessa perspectiva, segundo Foucault, é possível observar


especificações no universo infantil que não são propriamente doenças,
mas comportamentos desviantes em relação às duas normatividades, a
das outras crianças que são tomadas como exemplo, e do adulto. Esse é
considerado o fator de nascimento da anomalia, “a criança idiota ou a
criança retardada não é uma criança doente, é uma criança anormal”
(FOUCAULT, 2006, p. 266). Enfim, “é precisamente o confisco dessa
nova categoria da anomalia pela medicina, é a psiquiatrização desta que
é o princípio de difusão do poder psiquiátrico” (FOUCAULT, 2006, p.
267).
Surge, então, a psiquiatrização da criança anormal. Assim como a
psiquiatria do adulto, essa nova psiquiatria irá afastar-se da doença e
ocupar-se com o comportamento inscrito em critérios normativos. Para a
realização dessa tarefa, a psiquiatria cria uma nova nosografia que
sistematiza as síndromes de anomalias, como os comportamentos
considerados anormais. O termo delírio, que era utilizado pelos
alienistas para diagnosticar a loucura, a partir de então, passa a ser
reutilizado com fins médicos (SILVA; PIRES; SCISLESKI,
HARTMANN, 2010).
Data do período de 1835-1841 o surgimento de alas asilares para
crianças23 no interior do espaço psiquiátrico e a divisão entre alienação
(loucura)24 e idiotia. No entanto, o espaço reservado para crianças que
sofriam de deficiência mental localizava-se nas instituições de surdos-
mudos, ou seja, instituições de cunho pedagógico (FOUCAULT, 2006).
No fim do século XIX, a educação primária passou a se ocupar da

                                                                                                                       
23
Foucault (2006) analisa que o internamento de crianças aconteceu devido a questões
econômicas, já que os pais não conseguiam trabalhar por terem que cuidar dos filhos.
24
No fim do século XVIII, Foucault nos mostra que existia a classificação da categoria
“imbecis” ocupando os espaços de internação, e que mais adiante seriam chamadas de
dementes. Nessa época, a questão da imbecilidade passa a ser colocada em termos
médicos.
66
 

debilidade mental e as pesquisas sobre esse tema se desenvolvem no


meio escolar juntamente ao corpo de professores:

Quando Rey, por exemplo, fizer no departamento


de Bouches-du-Rhône, nos anos de 1892-1893,
uma pesquisa sobre a debilidade mental, ele se
dirigirá aos professores e perguntará, para
identificar os idiotas, os imbecis, os débeis, quais
são as crianças que não acompanham
devidamente a escola, quais são as que se fazem
notar por sua turbulência e, enfim, quais as que
não podem mais nem sequer frequentar a escola.
É a partir daí que se estabelecerá a grande colcha
de retalhos. O ensino primário serve, portanto, na
realidade, de filtro e de referência a esses
fenômenos de retardo mental. (Foucault, 2006, p.
269-270)

Dessa forma, através da psiquiatrização do anormal, o poder


psiquiátrico expandiu suas fronteiras para além do hospital e da loucura,
e essa expansão se valeu da criança. A instituição hospitalar e a
instituição de ensino foram coadjuvantes desse processo de alargamento
do poder psiquiátrico, e a criança anormal passou a ser objeto da
psiquiatria, possibilitando, assim, a entrada do psiquiatra no espaço
escolar (SILVA; PIRES; SCISLESKI; HARTMANN, 2010). Ainda que
o tratamento pedagógico direcionado às crianças anormais tenha sido
diferente daquele oferecido aos alienados, Foucault (2006) nos mostra
que os idiotas acabavam tornando-se um problema no interior dos
estabelecimentos escolares e, progressivamente, eram alocados nos
asilos. O grande problema que a atualidade traz em relação à
medicalização da vida e da infância, e que é um dos propósitos desse
estudo é justamente a questão das crianças consideradas anormais no
espaço educacional. A partir do momento que a criança apresenta um
comportamento indesejado, baixo rendimento escolar ou defasagem em
relação aos demais, essa criança é encaminhada a um especialista da
área da saúde. Assim, a escola e a medicina categorizam os
comportamentos indesejados como desviantes e encaminham essa
criança a um consultório psiquiátrico.
Da mesma maneira que o desenvolvimento delimitava a idiotia e
o retardo mental, o desenvolvimento intelectual de uma criança que não
acompanha os demais em sala de aula delimita, hoje, não mais o que era
chamado de idiotia ou retardo, mas um transtorno. Exemplo disso é o
transtorno específico de aprendizagem neurobiológica, conhecido como
67
 

Dislexia25. De acordo com o DSM IV4 – TR (2002), a dislexia é descrito


como um transtorno na área da leitura e escrita e que possui condições
hereditárias, alterações genéticas e no padrão neurológico. A criança
que, em seu processo de aquisição de linguagem e escrita está aquém do
grupo, facilmente será encaminhada para algum profissional da saúde,
como fonoaudiólogo, psicólogo e psiquiatra, sendo que, em muitos
casos, esse problema será associado a outros transtornos como o TDAH
(Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), resultando em
tratamento medicamentoso. Os relatos de uma das professoras
entrevistadas nos mostram como um comportamento considerado
inapropriado ou uma dificuldade pedagógica pode ser transferido para o
campo médico. Ela descreve os sintomas de duas crianças de turmas
distintas, que foram diagnosticadas com dislexia e TDAH. Em sua fala
podemos identificar a atuação do discurso médico e a crença na solução
dos problemas através do uso de medicamentos:

Ele entrou no primeiro ano, mas já veio com


diagnóstico de dislexia. Seu caso era grave. Ele
escrevia espelhado, demorava muito para fazer
as provas. Geralmente terminava as provas na
sala da diretoria ou da supervisão. No terceiro
ano ele era bem agressivo. Acho que se encheu
de tanto que os amigos zombavam [...]. Hoje ele
está no quinto ano e toma medicamentos para
TDAH. A dislexia melhorou, mas ele sempre
precisa de um acompanhamento mais de perto. A
questão mesmo é a agressividade e a falta de
concentração. (PH2)

Ela sempre estava atrás do grupo. Desde o


primeiro ano. No terceiro ano a família levou
para um psicoterapeuta e foi diagnosticada a
dislexia. Agora no quarto ano ela foi
diagnosticada com TDAH. Tomou medicamento,
mas a mãe tirou por conta própria e os sintomas
voltaram [...] Muitas vezes os pais têm medo de
dar continuidade ao tratamento, mesmo com
                                                                                                                       
25
A Dislexia do desenvolvimento é considerada um transtorno específico de aprendizagem
de origem neurobiológica, caracterizada por dificuldade no reconhecimento preciso e/ou
fluente da palavra, na habilidade de decodificação e em soletração. Essas dificuldades
normalmente resultam de um déficit no componente fonológico da linguagem e são
inesperadas em relação à idade e outras habilidades cognitivas (Definição adotada pela
IDA – International Dyslexia Association, em 2002. Essa também é a definição usada pelo
National Institute of Child Health and Human Development – NICHD) – Disponível em:
<http://www.dislexia.org.br/> – último acesso em 01/05/2013.
68
 

diagnóstico médico, mesmo com a palavra do


neuro. (PH2)

Assim, as origens da psiquiatrização da infância remontam aos


sinais de um comportamento possivelmente comprometido, e “toda essa
família assim reconstituída em torno do idiota que constitui exatamente
a infância anormal” (FOUCAULT, 2006, p. 280).
Essa é uma passagem extremamente importante na obra de
Foucault, pois foi por intermédio da categoria da anomalia que o poder
psiquiátrico se generalizou. No século XIX, o louco era o adulto e a
criança, o anormal. Foucault nos mostra como a idiotia marca a
expansão da psiquiatria:

[...] é através dos problemas práticos suscitados


pela criança idiota que a psiquiatria está se
tornando algo que já não é o poder que controla,
que corrige a loucura, ela está se tornando algo
infinitamente mais geral e mais perigoso, que é o
poder sobre o anormal, poder de definir o que é
anormal, de controla-lo, de corrigi-lo
(FOUCAULT, 2006, p. 280).

Portanto, a partir do momento que a psiquiatria passa a atuar


sobre a loucura e sobre a anomalia, ela se liga a toda uma série de
instâncias disciplinares, como a escola, o exército, a família e etc. E,
fator não menos importante, ela passa a definir as relações entre a
criança anormal e o adulto louco. Essa relação terá a noção de
degenerescência e a noção de instinto como fio condutor. O instinto,
como elemento natural em essência e anormal, na medida em que não é
controlado, será o que a psiquiatria utilizará para traçar o percurso da
infância até a idade adulta desta relação. E, paralelamente, se utilizará do
conceito de degenerescência (FOUCAULT, 2006).
Podemos observar esse fato nos dias de hoje através de projetos
que propõem, na linha da psiquiatria preventiva, o tratamento antecipado
de possíveis patologias mentais em crianças ainda no período de
gestação. Os projetos do INPD (Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia de Psiquiatria do Desenvolvimento para a Infância e
Adolescência) atuam nessa direção e serão explicitados mais adiante.
Segundo Caponi (2012), ao longo do tempo, o conceito de
degeneração se vinculou com a medicalização de comportamentos, bem
como a multiplicação dos diagnósticos que hoje adentram o universo
infantil.
69
 

A degenerescência, termo que posteriormente foi apropriado pelo


evolucionismo biológico26, será o outro elemento que a psiquiatria
utilizará para traçar a relação da criança anormal com o adulto louco.
Além de anormal, a criança degenerada é aquela “sobre a qual pesam, a
título de estigmas ou de marcas, os restos da loucura dos pais ou dos
ascendentes” (FOUCAULT, 2006, p. 282). E a anomalia, na criança
degenerada pode desencadear a loucura.
A degenerescência se apresenta como resquício da loucura dos
pais e assim sucessivamente. Foucault (2006) trabalha com a ideia de
que a degenerescência é o efeito da anomalia e esta, por sua vez, se
difere da doença. A anomalia libera o instinto, que o autor explica como
sendo algo que aparece na infância e pode ser entendido como aquilo
que não se integra e que está em seu estado selvagem. A criança
considerada como anormal é aquela que foi retirada do mundo moral e
entregue a seus instintos.
Foi em torno da noção de idiotia que a criança anormal foi
reconstituída e, a partir daí, a psiquiatria pode controlar o que era
considerado loucura e o que era considerado anomalia27 na infância. A
noção de idiotia se reconstitui a partir de problemas práticos suscitados
pela criança idiota, de modo que a criança degenerada carrega os restos
da loucura dos pais ou de sua ascendência. Para Foucault,

A degenerescência é, portanto, de certo modo, o


efeito de anomalia produzido na criança pelos
pais. E, ao mesmo tempo, a criança degenerada é
uma criança anormal, cuja anomalia é tal que
pode produzir, em certo número de
circunstâncias determinadas e após certo número
de acidentes, a loucura. A degenerescência é,
portanto, a predisposição para a anomalia que, na
criança, vai tornar possível a loucura do adulto, e
é na criança a marca em forma de anomalia da
loucura dos seus ascendentes (Foucault, 2006, p.
282).

                                                                                                                       
26
Foucault (2006) afirma que a degenerescência não é uma projeção do evolucionismo
biológico sobre a psiquiatria, mas que ele se apropriou deste termo no momento que
passou a interferir no campo da psiquiatria, ampliando suas conotações.
27
Na obra de Foucault, O poder psiquiátrico, o autor faz uma distinção do que era
considerado loucura e o que era anomalia. O idiota ou o retardado que Foucault analisa nas
obras de Seguin, é aquele está situado em um patamar inferior do desenvolvimento tido
como esperado ou normal. Assim, a criança idiota ou retardada não é uma criança doente,
mas anormal, já que traz desvios em relação ao que foi estabelecido pela norma.
70
 

Assim, o campo de ingerência da psiquiatria define uma série de


transtornos da infância, que são identificados por meio de sintomas
anunciadores de patologias mentais graves e irreversíveis. Esses
transtornos têm sua origem na infância, e configuram a categoria de
crianças de risco, ou seja, aquelas que devem ser tratadas antes que a
doença se instaure, evitando assim o que a psiquiatria atual denomina de
“cronificação da patologia”. Os profissionais de educação e as próprias
famílias demandam por uma explicação através de um diagnóstico
médico que nomeie os problemas apresentados pelos alunos e uma
solução capaz de, se não eliminá-los, ao menos controlá-los:

Sua família era bastante complicada. Pai


esquizofrênico, a mãe também tinha alguma
coisa [...] Ela sempre estava com sua mesa
bagunçada. Olhava umas 20 vezes embaixo da
carteira e pedia pra ir ao banheiro a cada 15
minutos. Não parava quieta, sabe, não
conseguia. No recreio, ficava com aqueles fones
de ouvido o tempo todo, não falava com
ninguém. Chamamos a família e na mesma hora
a gente percebeu uma cara de alívio neles.
Parecia que eles estavam esperando por isso,
sabe? Levaram a menina pro neuro e na semana
seguinte ela já estava tomando remédio [...] Ela
melhorou, ficou mais concentrada, até suas
notas melhoraram. (PE1)

2.3 DA DEGENERAÇÃO AO DESEQUILÍBRIO –


MEDICALIZAÇÃO DE COMPORTAMENTOS E ANOMALIAS
SOCIAIS

O final do século XIX é marcado pela busca de uma classificação


única de patologias que fosse universalmente aceita pela psiquiatria. As
premissas fundamentais da teoria da degeneração passam a circular por
toda sociedade psiquiátrica. Os estudos de Caponi (2012) que fazem
parte desse item mostram que:

No momento em que a teoria da degeneração se


consolida como programa de pesquisa, a
psiquiatria poderá começar a estabelecer vínculos
diretos entre um desvio de conduta e um estado
anormal (herdado e definitivo) que reclama uma
intervenção psiquiátrica (CAPONI, 2012, p. 26).
71
 

De acordo com a autora, a problemática da medicina se ocupava


em agrupar as patologias em razão de suas causas e não de seus
sintomas. A teoria da degeneração passa a ser o novo paradigma de
análise social que legitimava as intervenções médicas sobre as condutas
de indivíduos e grupos. O pensamento médico das últimas décadas do
século XIX está atrelado à ideia de que os desvios de conduta estão
enraizados no interior do corpo, especificamente no cérebro.
O psiquiatra e discípulo de Morel, Valentin Magnan, defendia o
tipo ideal de sociedade, com indivíduos que agissem de acordo com
normas sociais estabelecidas, não se submetendo aos seus impulsos ou
desejos involuntários. Magnan descrevia os comportamentos bizarros,
relatava os sintomas clínicos, em seguida descrevia os estudos de
anatomopatologia cerebral realizados em cadáveres daqueles afetados
pelos mesmos males. Foi Magnan quem introduziu a ideia de
equilíbrio/desequilíbrio mental. Mais tarde, o termo ‘desequilibrado’
substituirá o ‘degenerado’. Sendo assim, para o psiquiatra francês, todo
degenerado é um desequilibrado, e suas características sintomáticas se
dividem em: estigmas físicos, estigmas psíquicos ou delírios. Os
estigmas psíquicos, que aparecem na forma de comportamentos bizarros,
não deixam dúvidas sobre a existência de patologias cerebrais
(CAPONI, 2012).
Ainda para Magnan, entender o desequilíbrio significa entender a
diversidade sintomática das degenerações. Possibilita, também, a
compreensão da existência de diversos sintomas em um mesmo sujeito,
pois “para ele, todo degenerado é um desequilibrado, isto é, um sujeito
cujas funções cerebrais encontram-se desvinculadas entre si ou estão
desvinculadas das funções do sistema nervoso central” (CAPONI, 2012,
p. 107). O desequilíbrio tem formas múltiplas e configura diversos
quadros sintomáticos que Magnan classifica como síndromes, e estas
seriam evolutivas e irreversíveis (CAPONI, 2012).
Em um debate sobre degeneração ocorrido na Sociedade Médico
Psicológica de Paris, em 1885, o médico e psiquiatra Jules Falret diverge
das teses apresentadas por Magnan. Caponi (2012) afirma que os
problemas identificados por Falret persistem na psiquiatria até os dias
atuais. São eles:

dificuldades para demarcar os limites pouco


claros e difusos, que separam os pequenos
desvios cotidianos dos sofrimentos psíquicos
profundos; a insistência em pensar as patologias
mentais como uma sucessão de entidades
mórbidas que se manifestam em um mesmo
indivíduo ao longo da vida (fazendo de cada
72
 

pequeno desvio a advertência de uma grave


patologia por vir); a busca reiteradamente
fracassada pela localização cerebral de uma
multiplicidade de síndromes pouco claras e
definidas (CAPONI, 2012, p. 114).

No momento em que Magnan institui o delírio como um sintoma


do quadro patológico, a psiquiatria muda seu objeto de estudo. Como o
delírio pode ou não ocorrer dentro deste quadro, o desvio representa um
desequilíbrio em relação às regras de ordem e conformidades que estão
definidas dentro de um marco de regularidade administrativa de
obrigações familiares ou de normatividade política e social (CAPONI,
2012). O interesse da psiquiatria será o de antecipar qualquer
possibilidade de anomalia, desordem, indisciplina, agitação,
indocilidade, caráter reativo, falta de afeto. A partir desse momento tudo
poderá ser psiquiatrizado (FOUCAULT, 2001).
Em fins do século XIX, Emil Kraepelin, considerado o pai da
psiquiatria moderna, manteve a tradição fundada pelos higienistas de
pensar os problemas cotidianos e sociais através das categorias médicas
e orgânicas. Seu interesse em aprofundar os estudos de
anatomopatologia cerebral, o uso de estudos comparativos entre
diferentes populações e regiões (psiquiatria comparativa) e
hereditariedade mórbida ocupam espaço na psiquiatria até hoje
(CAPONI, 2012).
Entretanto, os interesses de Kraepelin nos fenômenos patológicos
são peculiares. Caponi mostra que seu objetivo é o de compreender as
alterações biológicas responsáveis pelas patologias psiquiátricas. Ele
busca compreender as relações entre os fatos sociais a as transformações
biológicas que produzem toda uma série de enfermidades. Kraepelin dá
continuidade aos estudos dos médicos alienistas no início do século
XIX.
Segundo Caponi (2012), a preocupação com uma possível
vinculação entre fatos sociais e doenças mentais esteve presente entre os
médicos e psiquiatras no início do século XX, porém ela reaparece no
discurso de Kraepelin de forma a traçar o que podemos chamar de
biologização dos fatos sociais. Os fatos sociais entram no discurso
vinculado a processos biológicos. Para Kraepelin, os eventos negativos
que ocorrem nas vidas dos sujeitos são o produto e não as causas das
doenças. Elas acontecem, porque há uma condição preexistente para sua
manifestação e dependem exclusivamente da constituição biológica do
sujeito. Ou seja,
73
 

O acúmulo de exigências sociais e a falta de


capacidade para terminar as tarefas exigidas
podem constituir o ponto de partida para o
surgimento de determinadas ‘loucuras de
degeneração’, mas para que isso ocorra será
necessário que essas condições atuem sobre uma
constituição biológica deficitária ou debilitada.
(CAPONI, 2012, p. 131)

Mais adiante, a autora afirma que “tanto para Kraepelin como


para Morel, resulta necessário postular um substrato orgânico
patológico, uma ‘causa predisponente’ com um forte componente
hereditário” (CAPONI, 2012, p. 131).
Ainda que a Alemanha, no início do século XX, tenha sido
fortemente influenciada pelas ideias do darwinismo social, as premissas
de Kraepelin não se apoiavam em relação à luta pela vida ou à
sobrevivência dos mais capacitados, mas nas impressões que os fatos
sociais deixam nos corpos. Isso afetaria o sistema nervoso e as células
germinais, facilitando o aparecimento de traços contidos na herança
mórbida.
Porém, foi somente com o uso das estatísticas que a questão da
degeneração conseguiu, finalmente, validação científica. Kraepelin
realiza estudos estatísticos comparativos em grande escala, a fim de
compreender a herança mórbida que se desenvolve em um ambiente
insano. Os estudos estatísticos tinham a função de expansão de técnicas
psiquiátricas por todo tecido social, além de fundamentar
cientificamente a questão das patologias mentais e degeneracionistas.
Seus métodos incluíam questionários (cartas) que coletavam
grande quantidade de dados sobre os pacientes em diferentes partes do
mundo, em seguida comparava-os com a intenção de antecipar e
prevenir possíveis patologias. Kraepelin classificou esse método de
psiquiatria preventiva. A preocupação com a herança mórbida abre
caminhos infindáveis para intervenções psiquiátricas precoces, o que
denominamos, hoje, de identificação precoce de situação de risco
(CAPONI, 2012).
Esse processo pode ser contemplado em alguns projetos na área
da psiquiatria do desenvolvimento28 que se utilizam de tecnologias de
prevenção. O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Psiquiatria
do Desenvolvimento para a Infância e Adolescência (INPD) realiza
                                                                                                                       
28
A psiquiatria do desenvolvimento pretende trazer veracidade à doença. Sua tarefa é
buscar sinais que apontem possíveis desvios e condutas patológicas antes que se
cronifiquem. Suas bases epistemológicas trabalham com conceitos fisicalistas e biológicos
(NASCIMENTO; COIMBRA; LOBO, 2012).
74
 

projetos na área de psiquiatria da prevenção como esse que teve início


no ano de 2009:

O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de


Psiquiatria do Desenvolvimento para a Infância e
Adolescência (INPD) realizou nos dias 19 e 20
de março [de 2009] o seu evento inaugural. Na
oportunidade, o anfiteatro principal do Instituto
de Psiquiatria da USP foi palco de apresentações
e debates sobre os projetos que serão realizados
pelo instituto [...]. O INPD integra um projeto do
Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) que
disponibilizou o maior aporte de recursos já
destinados para a área de pesquisa no Brasil (R$
520 milhões). As verbas foram divididas entre os
101 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia
(INCT) aprovados para participar do programa
(INPD, 2009). O INPD propõe um conjunto
coeso e sólido de iniciativas e projetos de
pesquisa [...] que, integrados, almejam dois
grandes objetivos para a área de saúde mental no
Brasil: 1) testar ferramentas e métodos para
promover o desenvolvimento saudável da criança
e do adolescente, preparando-os para a vida
adulta; 2) introduzir um novo paradigma para a
psiquiatria brasileira – o da Psiquiatria do
Desenvolvimento (MIGUEL et al. 2009 apud
NASCIMENTO; COIMBRA; LOBO, 2012).

Os estudos realizados por Nascimento, Coimbra e Lobo (2012)


sobre essa temática dentro da psiquiatria atual, partiram de uma análise
crítica, tendo como fio condutor as teorias de Foucault, na tentativa de
compreender o controle da vida pela psiquiatria nos dias de hoje.
Puderam perceber o caráter preventivo da medicina em relação à
administração dos hábitos morais e na reordenação sanitária da cidade.
Os autores mostraram que os projetos propostos pelo INPD
atingem crianças e adolescentes de até 18 anos no Brasil. Os objetivos
do projeto são o de identificar as populações de risco e intervirem antes
da cronificação das doenças. O que está em questão não é apenas o
alívio sintomatológico da doença, mas a interrupção de seu
desenvolvimento. O conjunto de quatro projetos do INPD visa realizar
intervenções precoces nos diagnósticos de transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade (TDAH), transtornos de conduta, transtornos de
ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), esquizofrenia,
75
 

transtorno do humor bipolar (THB), transtornos globais do


desenvolvimento (TGD) e transtornos de aprendizagem. E suas
pesquisas retomam a investigação, já desenvolvida nas teorias
degeneracionistas, da interação entre fatores ambientais e marcadores
genéticos.
Segundo os autores, um dos projetos do Instituto investigará, não
somente crianças e adolescentes, mas indivíduos de 0 a 3 anos, ou seja,
desde o período gestacional, a fim de encontrar a interação gene-
ambiente e a conectividade neuronal responsáveis por alterações que
afetam o desenvolvimento. Esse projeto mostra a psiquiatrização da
infância, que busca na gestação os primeiros vestígios de anormalidade,
valendo-se de diagnósticos construídos por critérios, muitas vezes
subjetivos, o que evidencia os propósitos de uma psiquiatria, que desde
o século XVIII, classifica o comportamento indesejado como anormal.
Ainda que o projeto proponha intervenções psicossociais, sua
linha de atuação possui caráter organicista que busca prevenir falhas
comportamentais que tenham origens biológicas. Diversos laboratórios
financiam os projetos, daí o uso de fármacos terem suma importância
nos tratamentos realizados. Além disso, os projetos do INPD não se
restringem somente ao corpo doente dos indivíduos, mas, seguindo a
linha foucaultiana da expansão psiquiátrica, buscam interação com
pessoas que fazem parte do universo da criança, como professores,
familiares e etc., realizando treinamento de professores e médicos
pediatras para a observação de possíveis transtornos mentais
principiantes (NASCIMENTO; COIMBRA; LOBO, 2012).

A criança dá sinais muito precoces de que a


saúde dela não está bem e muitas vezes isso só
vai aparecer como um transtorno na adolescência
ou no adulto. Se nós pudermos identificar esses
sinais na infância será melhor para a criança,
para a família, para a escola, para todos (Lúcio
Simões de Lima, Coordenador do Departamento
de Psiquiatria da Infância e Adolescência da
ABP e conselheiro da Associação Brasileira de
Neurologia e Psiquiatria Infantil. Integrante do
INPD. Revista Debate, 2009 apud
NASCIMENTO; COIMBRA; LOBO, 2012).

Os estudos identificam questões genéticas e ambientais como


fatores de riscos que atuam no desenvolvimento dos transtornos mentais.
Esse é um dos pontos contemplados no desenvolvimento dos projetos do
INPD. Segundo os autores,
76
 

O levantamento de fatores genéticos e ambientais


e o acompanhamento à gestante, sob o pretexto
da saúde mental quanto à prevenção de riscos,
vêm aperfeiçoando mecanismos eugênicos de
controle da vida, que recaem, sobretudo, nos
filhos da pobreza [...] Atualmente, a partir do
mapeamento do genoma humano, amplia-se o
campo das propostas eugênicas. Se a eugenia
desde sua emergência foi uma técnica de
prevenção, hoje adquiriu instrumentos científicos
antes inexistentes (NASCIMENTO; COIMBRA;
LOBO, 2012).

De acordo com os autores, as propostas dos projetos trabalham de


maneira a diagnosticar precocemente as possíveis patologias mentais e,
segundo o INPD, as informações genéticas ajudariam nas intervenções
ambientais das populações de risco. As análises dos autores deixam
claro que tais propostas reforçam novas formas de exclusão através
dessa recente eugenia. Isso pode ser constatado num dos itens do projeto
que foi verificado pelos autores, e que será implementado nas cidades de
São Paulo e Porto Alegre:

[...] propõe em sua segunda fase a coleta de


saliva dos familiares biológicos das 2500
crianças que estariam sendo acompanhadas em
cada uma das escolas públicas dessas cidades. Ou
seja, o INPD, ao afirmar que o conhecimento das
informações genéticas tornará "possível
desenvolver intervenções ambientais específicas
para aquelas pessoas que possuem um risco
aumentado", está patologizando as diferenças,
tentando uniformizar modos de existência
aceitáveis, multiplicando separações e práticas
divisoras cujo efeito é mais exclusão, ou melhor,
exclusão perpetrada pela inclusão no estigma de
um diagnóstico (NASCIMENTO; COIMBRA;
LOBO, 2012).

Mais uma vez podemos observar o que já foi analisado até agora
nesse estudo. A psiquiatria, em sua lógica preventiva e excludente, se
generaliza por todos os campos sociais. Sua atuação ignora os contextos
sociais em que os indivíduos estão inseridos. A esfera social, histórica e
política são excluídas de sua ingerência, e o indivíduo passa a ser o
responsável pelos riscos que “pode” oferecer à população.
77
 

Uma criança, por exemplo, tá fazendo


acompanhamento psiquiátrico. Ele foi adotado
com três anos. Agora ele está no 9º ano. Então, a
família, meu deus, faz de tudo, acompanha, faz o
que a escola pede. Ele é de uma família muito
bem de vida. Mas ele tem um problema
psiquiátrico difícil, ele toma medicação. Ele
bate, briga, grita [...] Ele foi diagnosticado com
TOD e agora o médico suspeita de bipolaridade
também. Uma vez o pai veio aqui, ele disse ‘você
vê como são as coisas, a gente faz de tudo
querendo ajudar, mas parece que nada adianta’.
Eu fiquei, assim, morrendo de medo que ele
dissesse ‘ai meu deus, me arrependi dessa
adoção’, entendeu? Porque eu não sei se isso
passou pela cabeça dele. Daí ele falou ‘a gente
sabe que o médico suspeita que ele desenvolva
problemas mais sérios amanhã, por isso a gente
tá fazendo o que pode hoje’. (PCB)

Segundo Nascimento, Coimbra e Lobo (2012), projetos que


seguem a linha proposta pelo INPD trabalham com a lógica da
prevenção, onde o futuro sempre apresenta características de risco
eminente e somente a atuação de especialistas poderia contê-lo e até
mesmo modificá-lo. Os estudos sobre a questão do risco se fazem cada
vez mais presentes, assim:

Reencontra-se na segurança o mesmo apetite


insaciável de saber: a partir do momento em que
é submetida a um risco, uma população será
incessantemente vigiada, controlada, observada,
decomposta, recomposta (EWALD, 1993, p. 111
apud NASCIMENTO; COIMBRA; LOBO,
2012).

A proposta de projetos do INPD traz à tona uma série de temas


que perduram desde o século XIX, e dizem respeito à apropriação
biológica pela medicina para o tratamento de questões de cunho social,
histórico e político. Essa atuação médica visa a normalização de
comportamentos. A análise dos autores esclarece que doenças orgânicas
que podem atingir e infectar a população e devem receber tratamento
preventivo, como no caso das vacinas contra paralisia infantil, rubéola e
etc., não podem ser tomadas como modelo médico para a mesma
terapêutica no caso das doenças mentais que se valem de sinais
comportamentais como indícios de futuras doenças. A psiquiatria
78
 

moderna, como vimos, foi adentrando por caminhos onde a escuta dos
relatos de angústias ou sofrimentos dos pacientes foi perdendo cada vez
mais seu espaço. A teoria dos higienistas e degeneracionistas que se
fundamentava no caráter hereditário de determinadas patologias, aliado
ao caráter evolutivo dos sofrimentos psíquicos, possibilitou que a
psiquiatria passasse a diagnosticar pequenos desvios de conduta, estados
alterados de humor ou sofrimentos relacionados às mazelas da vida,
como síndromes ou transtornos mentais. Para isso, a psiquiatria valeu-se
da construção de uma classificação cada vez mais unificada a respeito
dos transtornos mentais. As classificações nosológicas conquistadas por
Pinel, Esquirol, Morel, Magnan e Kraepelin continuam sendo os
referenciais norteadores da psiquiatria até hoje (CAPONI, 2012).
Diagnosticar passou a ser a palavra-chave da psiquiatria.
Diagnosticar, no sentido literal, significa “conhecimento ou
determinação duma doença pelos seus sintomas, sinais e/ou exames
diversos” (FERREIRA, 2004, p. 316). Os diagnósticos estarão presentes
em todo e qualquer tratamento médico/psiquiátrico ainda que possam se
referir a etiologias diferentes. No caso da psiquiatria, os diagnósticos são
realizados com base em sinais que nem sempre são objetivos e sua
etiologia não é evidente.
Na década de 1970, as teses de Kraepelin são retomadas por um
grupo de cientistas denominados neokraepelinianos. Esse evento trouxe
grandes mudanças para a psiquiatria, no que tange à classificação e
definição de diagnósticos e influenciou diretamente na elaboração do
terceiro Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais
(DSM) em 1952 pela Associação Americana de Psiquiatria (APA)
(MAYES; HORWITZ, 2005).
Os neokraepelinianos adotaram as bases epistemológicas de
Kraepelin e introduziram um novo modo de pensar as patologias
psiquiátricas que se distinguiam de como elas eram abordadas nos
manuais até então. Os neokraepelinianos privilegiavam as pesquisas
psiquiátricas empíricas, focadas na biologia onde não havia espaço para
as perguntas etiológicas. Esse novo modo de abordar as patologias
tornou-se referência no campo da psiquiatria mundial. Paralelamente, o
interesse pelos estudos da genética só aumentaram na década de 1970,
aliados à introdução dos psicofármacos (CAPONI, 2011).
Dessa forma, podemos observar que a psiquiatria atual manteve
as velhas preocupações dos degeneracionistas em criar uma classificação
confiável, objetiva e universal a respeito das doenças mentais, baseadas
nos axiomas das ciências biológicas. As pesquisas buscam evidências
biológicas e excluem os estudos sociológicos. A procura pela origem das
doenças mentais continua seguindo o mesmo caminho de investigação
das lesões cerebrais ou dos desequilíbrios dos neurotransmissores,
79
 

excluindo tudo aquilo que não pode ser considerado biológico para a
construção diagnóstica (CAPONI, 2011).
Nessa lógica, os comportamentos que não são aceitos
socialmente, os objetivos escolares que não têm o êxito esperado, a
adequação à instituição escolar que não acontece do modo planejado e
outros eventos sociais, são vistos sob a ótica médica e suas causas
sociais e políticas são retiradas de questão. O relato abaixo nos mostra
que as questões hereditárias e biológicas estão muito imbricadas nos
discursos dos profissionais que atuam na educação como explicação
para os comportamentos considerados inapropriados e coadunam com
tudo o que analisamos até o presente momento:

Eu trabalho há mais de 30 anos com escola. Já


fui professora, orientadora e hoje sou
coordenadora. Uma coisa que eu percebo nesses
anos todos é que a coisa vem do berço, vem da
barriga. Se a gente pensar que uma criança
herda a cor dos olhos, do cabelo, da pele, a
fisionomia, porque não vai herdar os
comportamentos também? Já peguei muitos
alunos adotados. Eu tive alunos que eram irmãos
e foram adotados. A família deles era
maravilhosa, mas eles eram terríveis...de onde
vinha isso? Com certeza vinha da gravidez. Vai
saber o que essa mãe passou, se usou droga, se
foi abandonada pelo marido, se rejeitou a
criança...vai saber se ela mesma ou o pai não
tinha algum problema mental [...] Eles eram
agitados, não obedeciam ninguém, roubavam e
destruíam as coisas. Aí eles foram encaminhados
para o setor de psicologia e elas chamaram a
família. Eles passaram pelo psiquiatra e
tomaram remédio, melhorou no começo, sabe,
mas depois voltou tudo de novo. Trocaram a
medicação. Mas curar mesmo, não curou, não
tem cura. (PB1)

No próximo capítulo, aprofundaremos a discussão a respeito do


termo da medicalização da vida e sua relação com a biopolítica de
Michel Foucault.
80
 
81
 

3 FACES DA MEDICALIZAÇÃO DA VIDA: PODER,


DISCIPLINA, RISCO E INDÚSTRIA FARMACÊUTICA

[...] ter saúde não é não adoecer. É poder


adoecer e se recuperar. Poder sofrer e
ultrapassar o sofrimento engendrando novas
formas de lidar com a vida. Uma vida que não
se depara com o intolerável, com o assombro,
com o sem-sentido, é uma vida empobrecida,
normatizada, incapaz de agir criativamente
(CANGUILHEM apud BEZERRA JR., 2004,
p. 6)

Moysés (2013), nos mostra que vivemos em uma sociedade onde


problemas coletivos e sociais são gerenciados pelo processo denominado
“medicalização”. Como vimos no capítulo anterior, esse processo
procura abarcar todas as esferas da vida, diagnosticando fatos cotidianos
e ocultando desigualdades. Ao realizar essa empreitada, a medicalização
transforma problemas individuais, inerentes ao sujeito, em problemas de
ordem médica e os delega ao plano biológico. Para entendermos como
isso acontece, utilizaremos as teorias de Michel Foucault sobre os
mecanismos de poder e sobre a biopolítica a fim de compreender a
questão da medicalização da vida e da infância e sua relação com a
proliferação dos diagnósticos configurados no DSM (Manual de
Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais) que serão abordados
no próximo item. Em seguida, discutiremos a questão do risco e a
contingência na modernidade, associados aos diagnósticos precoces de
transtornos mentais em crianças e adolescentes como estratégia
biopolítica adotada pela psiquiatria preventiva e, por fim, analisaremos a
participação da indústria farmacêutica na produção das publicações
médicas sobre os resultados e aplicações de medicamentos, bem como o
ajustamento do discurso médico aos seus interesses.

3.1 HISTÓRIA DO DSM (DIAGNOSTIC AND STATISTICAL


MANUAL OF MENTAL DISORDERS)29

O certo é que a existência inevitável de


fronteiras instáveis, difusas e ambíguas entre
o normal e o patológico no campo da saúde
mental parece ter possibilitado o crescente
processo de medicalização de condutas
consideradas socialmente indesejáveis, que

                                                                                                                       
29
O Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), é um documento
que define e descreve as diferentes doenças mentais. É considerado a “bíblia” dos
psiquiatras, sendo revisado periodicamente.
82
 
passaram a ser classificadas como anormais
(CAPONI, 2014, p. 744).

Com a análise histórica do DSM, manual que se tornou bússola


de uma prática reducionista, buscamos problematizar a lógica sobre a
qual este instrumento transforma comportamentos comuns da sociedade
em transtornos mentais, desencadeando um processo de medicalização
da vida e da infância.
De acordo com Araújo e Neto (2013), em 1840, os EUA criaram
um censo que se utilizava da categoria “idiotia/loucura”, como norte
para o registro da incidência das doenças mentais. A partir de 1880, as
doenças mentais foram divididas nas seguintes categorias: mania,
melancolia, monomania, paresia, demência, dipsomania e epilepsia. De
acordo com os autores, o propósito dessas primeiras classificações de
transtorno mental era estatístico.
Em 1948, a Organização Mundial de Saúde (OMS), utilizando-se
de categorizações ambulatoriais desenvolvidas pelo exército norte-
americano, que prestavam atendimento a ex-combatentes, incluiu no seu
sistema de Classificação Internacional de Doenças – CID-630, um
segmento reservado aos transtornos mentais.
No ano de 1953, a APA – Associação Psiquiátrica Americana
publicou a primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais. Esta seria uma revolução no campo da psiquiatria,
pois o DSM era o primeiro manual de transtornos mentais com enfoque
clínico. A primeira edição continha uma lista de diagnósticos divididos
em categorias. Essa primeira versão tratava as doenças mentais em uma
abordagem psicossocial, com uma forte influência psicanalítica, já que
se utilizava de termos como “mecanismos de defesa”, “neurose” e
“conflito neurótico” (Russo; Venâncio, 2006).
A segunda edição do DSM (DSM-II), desenvolvida juntamente
com a CID-8, veio em 1968 e não continha quase nenhuma alteração em
relação ao DSM-I (Araújo; Neto, 2013). Segundo Russo e Venâncio
(2006), a ênfase psicanalítica no DSM-II ficou mais perceptível, e as
doenças mentais passaram a ser consideradas como níveis de
desorganização psicológica do indivíduo que traziam em seu interior
características que deveriam ser analisadas durante o tratamento.
O lançamento do DSM-III aconteceu em 1980, e trouxe
modificações em sua estrutura e metodologia que são preservadas até a
última edição do manual, o DSM-5. Essas modificações romperam com
as classificações que eram utilizadas, e se deram da seguinte maneira:

                                                                                                                       
30
CID é a classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados com
a saúde, frequentemente designado por essa sigla (SPITZER et al., 1996).
83
 

Essa ruptura se deu em três níveis, que se


articulam entre si, como veremos a seguir: no
nível da estrutura conceitual rompeu com o
ecletismo das classificações anteriores presentes
nos livros-texto clássicos majoritariamente
utilizados na clínica psiquiátrica, propondo não
apenas uma nomenclatura única, mas, sobretudo,
uma única lógica classificatória; no nível da
hegemonia dos campos de saberes concorrentes,
representou uma ruptura com a abordagem
psicanalítica dominante no âmbito da psiquiatria
norte-americana; e, por fim, no nível das
representações sociais relativas ao indivíduo
moderno, forjou não apenas novas concepções
sobre o normal e o patológico, mas também
participou do engendramento de grupos
identitários (RUSSO; VENÂNCIO, 2006, p.
465).

De acordo com Araújo e Neto (2013), o DSM-III trouxe uma


mudança significativa na abordagem multiaxial31 para a elaboração de
diagnósticos, e se refere a um sistema que contempla a descrição e o
registro em cinco eixos:

1) Síndromes clínicas;
2) Transtorno da personalidade e do desenvolvimento;
3) Condições e transtornos físicos;
4) Gravidade dos estressores psicossociais;
5) Avaliação global do desenvolvimento.

Os três primeiros se referem à avaliação formal do diagnóstico, e


os dois últimos fornecem informações para complementar o diagnóstico,
podendo ser usados também no planejamento do tratamento do paciente.
O DSM-III foi uma das edições de maior impacto na psiquiatria e
construção de diagnósticos. A ruptura que essa edição trouxe, quanto ao
modo de classificar os transtornos mentais, também refletiu no campo
teórico dos transtornos. As deduções empiricistas relacionam-se com
uma visão fisicalista dos transtornos mentais, o que possibilitou a

                                                                                                                       
31
Segundo Spitzer et al. (1996), o diagnóstico multiaxial fundamenta-se em cinco eixos,
essa divisão possibilita uma avaliação mais adequada e aprofundada dos pacientes. O
paciente é diagnosticado de acordo com as características de cada eixo.
84
 

“ascensão da psiquiatria biológica como vertente dominante no


panorama psiquiátrico mundial” (RUSSO; VENÂNCIO, 2006, p. 465).
A partir de 1994, a APA lançou o DSM-IV. Essa edição
representou um aumento de dados e a criação de novos diagnósticos.
Surgiram então 82 novas categorias de transtornos mentais. Em 2000,
foi realizada uma revisão dessa edição e publicação intitulada de DSM-
IV-TR, sendo utilizada até o início de 2013 (ARAÚJO; NETO, 2013).
O objetivo do DSM, como um manual comumente utilizado pela
psiquiatria e profissionais da saúde é o de normalizar e homogeneizar os
comportamentos tidos como desviantes. As diferenciações entre os
transtornos aumentaram o número de categorias diagnósticas. O DSM-II
contava com 180 categorias passando para 250 no DSM-III e 350 no
DSM-IV. O DSM e suas várias versões têm recebido inúmeras críticas
sobre a baixa confiabilidade na construção desses diagnósticos (RUSSO;
VENÂNCIO, 2006).
O DSM-I e o DSM-II dividiam os transtornos em orgânicos e não
orgânicos, deixando clara a posição da psiquiatria em relacionar os
transtornos a problemas de origem biológica, que se manifestavam
especificamente no cérebro. A partir do DSM-IV, o grupo classificado
como transtornos orgânicos não se fez mais presente. Isso não significa
que a relação biológica deixou de existir, ao contrário, essa classificação
foi retirada justamente para que não houvesse mais diferenciação entre
os transtornos, e toda e qualquer patologia psíquica fosse
automaticamente relacionada à origem biológica.

Isto é, não se está mais produzindo identidades


desviantes ou definindo novos sujeitos na cena
pública (como foi o caso, por exemplo, da
homossexualidade), mas alargando e
pavimentando o caminho para uma compreensão
biomédica das perturbações mais ou menos
corriqueiras da vida cotidiana (RUSSO;
VENÂNCIO, 2006, p. 474).

Nessa perspectiva, toda e qualquer problemática comportamental


passa a ser trabalhada no campo biológico. Os comportamentos, que
antes eram vistos como pertencentes ao próprio desenvolvimento do ser
humano ou vinculados a um determinado acontecimento pelo qual o
indivíduo está passando, progressivamente vêm sendo percebidos como
indícios de uma patologia em fase inicial. A cada ano, os critérios
diagnósticos de transtornos mentais sofrem uma expansão de suas
categorias, permitindo, assim, que uma grande quantidade de indivíduos
seja diagnosticada. No próximo tópico, analisaremos como foi feita a
85
 

construção do DSM-5 e as dificuldades que a psiquiatria encontra em


validar os próprios diagnósticos que são construídos a cada versão do
manual, bem como as mudanças e os novos diagnósticos que constam
em sua última versão.

3.1.2 O lançamento do DSM-5

‘Então existe um nome para o que sou!’ –


pensei comigo mesmo, com alívio e excitação
crescentes. Há um termo para isso, um
diagnóstico, uma condição real, e eu que
sempre pensei que fosse meio abobalhado.
[...] Era como se tivesse tirado um grande
peso de minhas costas. Eu não era todos
aqueles nomes pelos quais era chamado na
escola primária – ‘preguiçoso’, ‘alienado’,
‘tonto’, ‘lunático’ – e também não tinha
qualquer conflito inconsciente reprimido que
me tornava impaciente e voltado para a ação
(Edward M. Hallowell, Tendência à distração,
1998 apud LIMA, 2005).

A revisão do DSM-IV teve início em 1999, ano em que foi


realizada a Conferência de Pesquisa e Planejamento do DSM-5. Em
2002, o American Psychiatric Institute for Research and Education
(APIRE), realizou eventos de pesquisa e planejamento para a revisão de
itens do DSM-IV. O primeiro deles aconteceu em 2004, já com
propostas para a elaboração do DSM-5. Foram discutidas questões que
se referiam às abordagens categorial e dimensional, bem como a
comorbidade dos transtornos mentais. Além dessas questões, os
organizadores, médicos e pesquisadores afins, abordaram o tema da
identificação das patologias mentais e constataram a importância da
criação de um modelo conceitual para uma melhor definição nosológica
(BURKLE, 2009).
O DSM-5 foi oficialmente publicado em 18 de maio de 2013,
sendo a mais nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana. Esta nova
versão trouxe mudanças conceituais, além da incorporação de diversas
categorias diagnósticas. Na tabela abaixo, Araújo e Neto (2013)
apresentam algumas das principais modificações que foram realizadas
na versão do DSM-IV-TR para o DSM-5.
A análise o quadro construído pelos autores nos mostra as
lacunas presentes nos critérios diagnósticos, o que dá margem para
interpretações subjetivas e, principalmente, a inclusão de uma
quantidade imensurável de pessoas num quadro de patologias mentais.
86
 

Quadro 3 – Sistematização do DSM-IV-TR e Sistematização do DSM-5


Capítulos do DSM-IV-TR Capítulos do DSM-5
Transtornos geralmente diagnosticados Transtornos do
pela primeira vez na infância ou na neurodesenvolvimento
adolescência
Delirium, demência, transtorno Espectro da esquizofrenia e outros
amnéstico e outros transtornos cognitivos transtornos psicóticos
Transtornos mentais causados por uma Transtorno bipolar e outros
condição médica geral não classificados transtornos relacionados
em outro local
Transtornos relacionados a substâncias Transtornos depressivos
Esquizofrenia e outros transtornos Transtornos de ansiedade
psicóticos
Transtornos do humor Transtorno obsessivo-compulsivo e
outros transtornos relacionados
Transtornos de ansiedade Trauma e transtornos relacionados
ao estresse
Transtornos somatoformes Transtornos dissociativos
Transtornos factícios Sintomas somáticos e outros
transtornos relacionados
Transtornos dissociativos Alimentação e transtornos
alimentares
Transtornos sexuais e da identidade de Transtornos da excreção
gênero
Transtornos da alimentação Transtornos do sono-vigília
Transtornos do sono Disfunções sexuais
Transtorno do controle dos impulsos não Disforia de gênero
classificados em outro local
Transtornos da adaptação Transtornos disruptivos, controle
dos impulsos e conduta
Transtornos da personalidade Transtornos relacionados a
substâncias e adição
Outras condições que podem ser foco de Transtornos neurocognitivos
atenção clínica
Transtornos de personalidade
Transtornos parafílicos
Outros transtornos mentais
Transtornos do movimento
induzidos por medicamentos
Outros efeitos adversos de
medicamentos
Outras condições que podem ser
foco de atenção clínica
Fonte: A nova classificação americana para os transtornos mentais (ARAÚJO;
LOTUFO NETO, 2014, p. 71).
87
 

Baseando-se nas classificações diagnósticas do quadro,


percebemos que não há margens para possíveis questionamentos sobre o
histórico de vida do paciente. O tratamento aplicado segue uma lista de
sintomas apresentados pelo paciente que permitem o seu enquadramento
num campo categorial de transtorno mental, e que não leva em
consideração seu contexto social, político ou histórico para a realização
do diagnóstico.
Widiger e Crego (2015), da Universidade de Kentucky e
coordenadores de pesquisas do DSM-IV, afirmam que diversos
colaboradores que participaram da elaboração do DSM-5 admitiram
falhas no que diz respeito à classificação diagnóstica. Além disso, tanto
na elaboração do DSM-I e II, quanto na criação do DSM-III, não foram
realizadas pesquisas sistemáticas e quase nenhum ensaio clínico a
respeito dos critérios diagnósticos que constam nos manuais. A
elaboração do DSM-5 gerou muitas controvérsias. Os maiores
problemas enfrentados pelos autores nessa versão do manual, podem ser
apontados em relação aos contratos de confiabilidade sem padrão-ouro32
e a documentação inadequada de suporte empírico.
Os contratos de confiabilidade dizem respeito a algumas etapas
que facilitam a aplicação dos caracteres nos manuais. Essas etapas
constam de entrevistas clínicas não-estruturadas e, posteriormente a
divisão das categorias diagnósticas em módulos. Porém, quando alguns
critérios diagnósticos não são preenchidos, há uma supressão de
questões durante a entrevista. Isso diminui a confiabilidade e a validez
das próprias avaliações diagnósticas, já que o que computará a
pontuação final de determinado critério, não é a resposta apresentada
pelo paciente, mas o julgamento clínico do entrevistador. Widiger e
Crego ainda afirmam que a insuficiência de documentação sobre a
validação dos diagnósticos em transtornos mentais, possibilita que a
decisão final sobre seus critérios recaiam sobre os clínicos. Ou seja, a
ausência de um padrão-ouro permite que os médicos decidam se
determinado quadro de sintomas pode ou não ser classificado como
transtorno mental, isentando a necessidade de uma revisão crítica e
análise empírica.
Segundo a publicação de Widiger e Crego (2015, p. 164) “não há
nenhuma medida de laboratório para documentar objetivamente a
existência de um transtorno mental. A decisão de considerar uma
                                                                                                                       
32
Os instrumentos utilizados para a avaliação de diferentes aspectos da saúde mental
precisam ser validados e seus resultados devem ser comparados com os de um padrão de
qualidade reconhecida, o chamado “padrão-ouro”. Para os instrumentos utilizados na
identificação de transtornos mentais, o padrão se baseia em critérios diagnósticos
internacionais (DUARTE; BORDIN, 2000).
88
 

condição ou comportamento como transtorno mental é uma questão de


opinião”. No DSM-5 houve uma revisão do critério estabelecido para o
transtorno do autismo e para a Síndrome de Asperger (variação do
autismo), o que abriu margem para que os diagnósticos que haviam sido
realizados com base no DSM-IV – mesmo tendo sido definido que seu
limiar estava equivocado – continuassem tendo validade a partir do
DSM-5.
O mesmo fato ocorreu quanto ao critério do luto, que passou a ser
considerado no DSM-5 como doença mental ou transtorno depressivo
maior, porém, de acordo com Widiger e Crego (2015), caberia ao clínico
decidir se o paciente com luto seria ou não diagnosticado como portador
de um transtorno mental. Sendo assim, o autor confirma que, na falta de
um padrão-ouro, certeza clara e confiabilidade, os autores do DSM-5
deixaram nas mãos dos médicos a decisão de diagnosticar ou não um
paciente com determinada patologia no momento do tratamento, o que
mostra claramente as questões subjetivas que incidem sobre os
diagnósticos e, principalmente, a ausência de validação científica para os
mesmos.
Para Widiger e Crego (2015), há uma grande dificuldade no que
diz respeito ao diagnóstico das parafilias33 e também muita controvérsia
em relação ao diagnóstico de depressão e ansiedade. Os autores afirmam
que a cada edição do DSM, um grande número de novos diagnósticos
são elaborados sem critérios bem definidos e nenhuma comprovação
científica. Os critérios diagnósticos estão assentados em opiniões,
sintomas complexos e subjacentes que convertem problemas comuns da
própria vida em patologias mentais.
De acordo com Lima (2005, p. 57), a cada versão do DSM, novas
categorias psiquiátricas são incorporadas e as descrições das patologias
têm “avançado sobre áreas que nem sempre eram tidas como passíveis
de abordagens fisicalistas, sendo, no máximo, alvo de compreensões ou
intervenções psicológicas”.
Esses fatores nos mostram que esse manual é o instrumento mais
utilizado no momento da realização de um diagnóstico, e suas
categorizações nosológicas traduzem uma concepção objetiva de
uniformização, embasadas em critérios naturalizados e
descontextualizados de qualquer determinação social, histórica ou
política. Dessa maneira, desconsideram-se as histórias de vida, pois:

                                                                                                                       
33
A atual versão do manual reconhece as Parafilias como interesses eróticos atípicos, mas
evita rotular os comportamentos sexuais não-normativos como necessariamente
patológicos.
89
 

Imaginar que nossos sofrimentos psíquicos


podem ser tratados como uma úlcera ou uma
infecção significa simplesmente negar que os
sofrimentos devam inscrever-se numa história de
vida, que esses sofrimentos se transformarão ao
longo de nossas vidas e que nesta transformação
tem papel fundamental o modo como somos
ouvidos e as intervenções e terapêuticas que nos
são propostas (CAPONI, 2014, p. 748).

Em uma recente entrevista realizada para o jornal espanhol El


País (2014), Allen Frances, psiquiatra americano conhecido por
presidir o grupo de trabalho que produziu a quarta revisão do Manual
Diagnóstico e Estatístico (DSM-IV), questiona o fato de a principal
referência acadêmica da psiquiatria contribuir para a crescente
medicalização da vida. O psiquiatra atacou os interesses da indústria
farmacêutica, que introduzem novas entidades patológicas a cada
edição e de sua enorme influência sobre médicos, pais e pacientes a
respeito dos transtornos mentais. Segundo ele, os maiores danos
recaem sobre a psiquiatria infantil.
Ao ser questionado sobre a possibilidade de uma banalização na
produção de diagnósticos, com o risco de abarcar uma grande
quantidade de pessoas no rol de doentes mentais, Frances admitiu que
a psiquiatria, com a colaboração da indústria farmacêutica, criou um
sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais
da vida em transtornos mentais.
Allen Frances critica o poder que é exercido pela indústria
farmacêutica, por intermédio da propaganda. Segundo o psiquiatra, a
publicidade dos medicamentos é um engano para o público, mas não se
pode descartar a utilização de medicamentos em transtornos mentais
severos e persistentes. Sua crítica é sobre a utilização de fármacos para
problemas cotidianos, já que não existe tratamento mágico contra o mal-
estar. Como ele afirmou:
 
Os seres humanos sobrevivem há milhões de
anos, graças à capacidade de confrontar a
adversidade [...] Se vivermos imersos em uma
cultura que lança mão dos comprimidos diante de
qualquer problema, vai se reduzir a nossa
capacidade de confrontar o estresse e também a
segurança em nós mesmos. Se esse
comportamento se generalizar, a sociedade
inteira se debilitará frente à adversidade
(FRANCES, 2014).
90
 

Frances revela que o DSM-IV incorporou o TDA e a síndrome de


Asperger (variação do autismo) existentes no DSM-III, porém o TDA
foi substituído por TDAH, levando a uma ampliação de sua categoria
diagnóstica. Após esse feito, os laboratórios lançaram novos fármacos
no mercado, e os diagnósticos de autismo e de hiperatividade triplicaram
desde 1997.
Um dado alarmante da entrevista apresenta uma grande
quantidade de crianças, com menos de três anos que fazem uso de
psicofármacos para tratamento de TDAH. Frances aponta uma perda de
controle por parte da psiquiatria. Sobre o uso descomedido de
psicofármacos, ele afirma:

Sobre isto tenho três coisas a dizer. Primeiro não


há evidência em longo prazo de que a medicação
contribua para melhorar os resultados escolares.
Em curto prazo, pode acalmar a criança,
inclusive ajudá-la a se concentrar melhor em suas
tarefas. Mas em longo prazo esses benefícios não
foram demonstrados. Segundo: estamos fazendo
um experimento em grande escala com essas
crianças, porque não sabemos que efeitos
adversos esses fármacos podem ter com o passar
do tempo. Assim como não nos ocorre receitar
testosterona a uma criança para que renda mais
no futebol, tampouco faz sentido tentar melhorar
o rendimento escolar com fármacos. Terceiro:
temos de aceitar que há diferenças entre as
crianças e que nem todas cabem em um molde de
normalidade que tornamos cada vez mais
estreito. É muito importante que os pais protejam
seus filhos, mas do excesso de medicação
(FRANCES, 2014).

A partir dessa entrevista, um ponto que foi assinalado por


Frances é que não se tem conhecimento sobre as consequências do uso
indiscriminado de psicotrópicos em longo prazo, tanto em crianças e
adolescentes, que estão em formação e pleno desenvolvimento, quanto
em adultos que já atingiram um patamar biológico mais estável, mas
ainda assim vulnerável aos efeitos das drogas.
Caponi (2014, p. 742) em seu estudo sobre os impactos do DSM-
5, observou as inúmeras críticas geradas pela última versão desse
manual. Esta versão repetiu o mesmo padrão das anteriores, e trouxe
debilidades epistemológicas “limitando-se a elencar uma lista de
91
 

sintomas pouco claros para um conjunto cada vez maior de patologias


mentais”.
A crítica proferida por Tomas Insel, diretor do National Institute
of Mental Health (NIMH), assegurava que o instituto não faria mais uso
das classificações propostas pela APA (American Psychiatric
Association) e que o DSM não seria mais a referência para as pesquisas
financiadas pelo NIMH, pois os sintomas que os manuais apresentavam
não tinham respaldo científico. Entretanto, Caponi (2014) mostra que
essa crítica ratificava as buscas biológicas das patologias mentais nas
entrelinhas ditas por Insel: “ainda não foi possível atingir os resultados
esperados, mas um futuro promissor se anuncia para a explicação
biológica de patologias mentais”. Ou seja, a psiquiatria ainda espera
encontrar no sofrimento humano algum indício de alteração orgânica,
seja pela genética ou com base em diagnósticos por imagem.
No campo educacional é muito comum ouvirmos os profissionais
de educação preconizar explicações biológicas a respeito dos
comportamentos dos alunos. Muitas dessas explicações se fundamentam
nas descrições do DSM. A tabela abaixo apresenta resumidamente os
principais transtornos que se manifestam na infância e seus sintomas de
acordo com o DSM-IV e DSM-5 e as descrições dos profissionais
entrevistados a respeito dos mesmos.

Quadro 4 – Transtornos mentais e sintomas (DSM IV e 5)


 

Principais transtornos mentais que Descrição dos profissionais de


acometem a infância e adolescência educação
segundo DSM IV e 5
Transtornos da aprendizagem: referem- - Dislexia e Discalculia
se a dificuldades no processo de leitura e - Deficiência Intelectual
escrita e dificuldades no campo do - Transtorno fonológico e da
raciocínio lógico-matemático. O DSM-5 Fluência
passou a considerar a dislexia e a - TDAH
discalculia. São as dificuldades que a criança
Principais sintomas: atraso para sentar, apresenta no momento da escrita
engatinhar, caminhar, deixar cair coisas, ou quando realizam atividades de
fraco desempenho nos esportes ou matemática e na concentração
caligrafia insatisfatória. Na linguagem, Principais sintomas: lateralidade
podem apresentar vocabulário limitado, indefinida, escrever espelhado,
erros na conjugação de verbos, linguagem não acompanha a
dificuldade para evocar palavras ou escrita, dificuldade na pronúncia e
produzir frases condizentes com sua na escrita e no raciocínio lógico
idade cronológica. matemático. Falta de concentração
e muita agitação. Falta de
organização, baixo rendimento
escolar.
92
 

Transtornos do Comportamento - TOD


Disruptivo: transtornos diretamente - Transtorno Disruptivo
relacionados ao comportamento. São - Transtorno de Conduta
denominados de transtornos de oposição São os comportamentos
e desafio e Transtorno de Conduta. extremamente agressivos,
Principais sintomas: padrão repetitivo e desafiadores e incontroláveis.
persistente de comportamento agressivo, Principais sintomas: agressão
desafiador e contrário às regras de extremada, raiva, inclinação a
convivência social. O Transtorno de brigas, desrespeito, impulsividade,
oposição e desafio (TOD) tem maior crueldade, vandalismo,
incidência na faixa etária dos 4 aos 12 envolvimento com drogas e álcool,
anos, sendo mais frequente no sexo rebeldia.
masculino. Os critérios diagnósticos do
DSM-IV para Transtorno de Conduta
aplicam-se a indivíduos com idade
inferior a 18 anos e devem conter ao
menos três dos comportamentos
descritos nos últimos 12 meses:
frequentemente inicia lutas corporais,
persegue, atormenta, ameaça ou intimida
os outros; há crueldade para com os
animais e pessoas, inclusive ferindo-as
fisicamente; apresentam características
sexuais cruéis, envolvimento em furtos,
roubos, fuga de casa, não
comparecimento à escola. Provoca
incêndios deliberadamente com intenção
de provocar sérios danos, destrói
propriedade alheia deliberadamente,
arromba e invade casas, prédios ou
carros, mente constantemente, passa
noites fora de casa.
Transtornos Depressivos: ocorrem tanto - Depressão
em meninos quanto em meninas. - Transtorno do Humor
Principais sintomas: isolamento, calma - Distimia
excessiva, agitação, condutas agressivas, Comportamentos que revelam
intensa busca afetiva, alternando muita tristeza e isolamento.
atitudes prestativas com recusas de Principais sintomas: tristeza,
relacionamento, dificuldade do sono isolamento, reclusão, acessos de
(despertar noturno, sonolência diurna), raiva, sonolência, dor de cabeça
alteração no padrão alimentar, falta de persistente, desinteresse, apatia,
ar, dores de cabeça e no estômago, dispersão, falta ou excesso de
problemas intestinais e suor frio também apetite, desleixo, timidez
são frequentes. Interesse diminuído ou excessiva.
perda de prazer para realizar atividades
de rotina, dificuldade de concentração,
fadiga ou perda de energia. Agitação ou
93
 

retardo psicomotor.
Transtornos Globais do - Transtorno Global do
Desenvolvimento (Autismo Infantil): Desenvolvimento
grupo de transtornos caracterizado por - Síndrome de Asperger
severas anormalidades nas interações - Síndrome de Down
sociais recíprocas, nos padrões de - Autismo
comunicação estereotipados e Comportamentos que revelam
repetitivos, além de um estreitamento deficiências intelectuais e de
nos interesses e atividades da criança. aprendizado.
Costumam se manifestar nos primeiros Principais sintomas:
cinco anos de vida. características físicas específicas,
Principais sintomas: dificuldades em dificuldades de sociabilização,
se relacionar com outras crianças, ou até gestos repetitivos, inteligência
mesmo com seus pais, atraso ou acima da média, hiperfoco,
ausência total da fala; prejuízo na irritabilidade, clausura.
capacidade de iniciar ou manter uma
conversa, movimentos repetitivos ou
complexos do corpo. Outras formas de
transtornos globais do desenvolvimento
são: Autismo atípico, Síndrome de Rett,
Transtorno desintegrativo da infância e
Síndrome de Asperger.
Transtornos de Tique: A manifestação - TOC
predominante nessas síndromes é - Mania
alguma forma de tique. Um tique é uma - Transtorno obsessivo-compulsivo
produção vocal ou movimento motor Comportamentos exagerados e
involuntário, rápido, recorrente manias repetitivas.
(repetido) e não rítmico (usualmente Principais sintomas: manias
envolvendo grupos musculares exageradas, lavar as mãos ou ir ao
circunscritos), sem propósito aparente e banheiro muitas vezes, medos
que tem um início súbito. exagerados, mania de limpeza,
Principais sintomas: piscar os olhos, acumulação de objetos, repetir
balançar a cabeça, fazer caretas, tossir, movimentos com as mãos ou
pigarrear, fungar, bater-se, saltar. pernas, bater ou balançar os pés
incessantemente, falar a mesma
coisa várias vezes, produzir sons
em momentos inapropriados.

Transtornos da Excreção: Esse - Incontinência Urinária


transtorno inclui a enurese e a - Descontrole dos esfíncteres
encoprese. A enurese é caracterizada por - Transtorno de Eliminação
eliminação de urina de dia e/ou noite, a Caracterizado pela falta de controle
qual é anormal em relação à idade da dos esfíncteres.
criança e não decorrente de nenhuma Principais sintomas: escape da
patologia orgânica. A enurese pode estar urina, defecar várias vezes, defecar
presente desde o nascimento ou pode em locais inapropriados,
surgir seguindo-se a um período de nervosismo, impaciência,
94
 

controle vesical adquirido. A enurese ansiedade.


não costuma ser diagnosticada antes de a
criança completar cinco anos de idade e
requer, para ser caracterizada, uma
frequência de duas vezes por semana,
por pelo menos três meses.
A encoprese é a evacuação repetida de
fezes em locais inadequados (roupas ou
chão), involuntária ou intencional. Para
a realização do diagnóstico é preciso que
esse sintoma ocorra pelo menos uma vez
por mês, por no mínimo três meses em
crianças com mais de quatro anos.
Transtorno de Ansiedade na Infância: - Transtorno do Pânico
transtorno acompanhado de um - Fobia Social
sentimento de medo e apreensão, - Transtorno de Ansiedade
caracterizado por tensão ou desconforto Comportamentos que demonstram
derivado de uma antecipação de perigos. muita ansiedade e medo.
Principais sintomas: medo excessivo, Principais sintomas: medos
fobias, tremor, sudorese, crises de choro. exagerados, medo exagerado de um
determinado objeto ou situação,
olhar esbugalhado, tremedeira,
sudorese nas mãos, palpitação no
coração, tontura, ataques de pânico,
desespero, agitação.

Transtorno de Ansiedade de - Ansiedade de separação


Separação: caracteriza-se pela - Transtorno de apego reativo
experimentação de ansiedade excessiva - Medo da separação
em função do afastamento de casa ou de Comportamento que demonstra
figuras de vinculação. medo de separar-se dos pais ou de
Principais sintomas: ansiedade não casa.
apropriada e excessiva em relação à Principais sintomas: muito medo
separação do lar (pais) ou de figuras de ficar longe da mãe, choro
importantes cuidadoras para a criança e excessivo, soluço acompanhado de
inadequada para a fase do choro, morder a mão ou roer unhas,
desenvolvimento da criança. Medo agressividade, irritabilidade.
excessivo do inesperado, como
acidentes, sequestros, assaltos ou
doenças. Apego excessivo aos seus
cuidadores, manifestações somáticas de
ansiedade (dor abdominal, dor de
cabeça, náusea, vômitos, palpitações,
tonturas e sensação de desmaio).
Fonte: DSM-IV-TR™ (2002); DSM-5 (2013).  
95
 

Vale relembrar que os critérios definidos pelo DSM são os mais


utilizados para diagnosticar os transtornos mentais em crianças,
adolescentes e adultos. Entretanto, no momento de avaliação
comportamental de um aluno, nenhum profissional da educação
entrevistado nessa pesquisa, afirmou buscar informações em
compêndios médicos ou no próprio DSM. Todos afirmaram que fazem
suas buscas nas mídias sociais, jornais, televisão e revistas ou através de
material apostilado que recebem nos cursos de formação continuada,
como podemos observar nas falas de duas profissionais entrevistadas:

Ler o DSM mesmo eu nunca li, mas sempre


procuro me informar sobre o assunto com a
revista Escola que praticamente traduz para o
professor as informações desses manuais, a
gente tá sempre fazendo curso, participando de
debates e congressos. Tem muito congresso na
área da educação e psicologia sobre esse tema.
(PE2)

Basicamente revistas e artigos científicos. Fora


isso, tem os próprios livros de psicologia que
tratam dessa questão, que detalham mesmo,
todos os transtornos [...] Eu sempre participo de
congressos, palestras. Agora mesmo fiz um curso
sobre diagnósticos de infância que basicamente
só tratou dessa questão. (Psi. B2)

3.2 O PROCESSO DE MEDICALIZAÇÃO

O conceito de ‘medicalização’ surge no início da década de 1970


no campo da sociologia da saúde e aponta seus estudos para o enorme
crescimento do número de problemas da vida que passaram a ser
definidos em termos médicos. Os autores que se debruçaram sobre esse
tema criticavam negativamente a ação desmedida da medicina em áreas
que atravessavam o campo tradicional de ação direta sobre as moléstias.
Os estudos sobre o processo de medicalização analisam a ingerência da
medicina sobre a sociedade através da introdução de normas e
comportamentos. Foi com o nascimento da medicina moderna e da
Higiene no século XVIII, que a medicina passou a atuar na vida privada
com o auxílio dos serviços de profissionais da saúde e educadores
(GAUDENZI; ORTEGA, 2012).
Conrad e Schneider (1992) examinam as questões sobre o
processo de medicalização e controle social. Suas análises demonstram
que o processo de medicalização pode ser compreendido quando
96
 

problemas não médicos passam a ser definidos e tratados como


problemas médicos, em termos de doenças ou distúrbios. Os autores
mostram que os diversos estudos sobre a questão da medicalização
apontam para a mesma vertente, àquela que direciona os problemas
humanos para o campo da jurisdição médica.
De acordo com os autores, a medicalização pode ocorrer em três
níveis: o conceitual, o institucional e os níveis de interação. No plano
conceitual, o vocabulário médico é utilizado para definir o problema; no
nível institucional, as organizações abordam o problema em termos
médicos, e no nível da interação, os médicos estão diretamente
envolvidos. Em outras palavras, a medicalização acontece quando a
medicina define um problema social com um formulário médico e o
trata através de seus termos, com ou sem prescrição de medicamentos.
Para compreendermos melhor o avanço substancial da medicina,
tanto sobre os comportamentos desviantes, como sobre os processos
naturais da vida, Conrad e Schneider (1992) trazem exemplos desses
dois campos. No campo dos comportamentos desviantes, a medicina se
apropriou das seguintes categorias: a loucura, o alcoolismo, a
dependência de drogas, hiperatividade e dificuldade de aprendizagem
em crianças, obesidade e anorexia, abuso sexual de crianças,
infertilidade, transexualismo e etc. No campo dos processos vitais, as
categorias que se tornaram medicalizados são: alimentação, sexualidade,
parto, desenvolvimento infantil, TPM (tensão pré-menstrual),
menopausa, envelhecimento e morte.
Para os autores, essas questões vêm sendo examinadas pelos
sociólogos ao longo do tempo, e dois aspectos podem ser apontados para
a compreensão desse processo: a secularização e as mudanças que
ocorreram dentro da profissão médica. O processo de secularização,
segundo Conrad e Schneider (1992), pode aclarar alguns aspectos, mas
mostra-se insuficiente. Já a organização e a estrutura da profissão
médica, apresenta um terreno mais firme no campo das explicações para
o processo de medicalização. Na área da pediatria, por exemplo, os
médicos mudaram o foco de suas práticas e isso levou à medicalização
de uma enorme gama de problemas infantis.
A medicalização que se opera pelo controle social da medicina é
um ponto importante. Independente de a classe médica implantar algum
tipo de controle social34 sobre a população, e este controle ser
impulsionado pela tecnologia, isso só terá legitimação através da
medicalização. Ou seja, uma técnica de controle social pode preceder a

                                                                                                                       
34
Sobre técnicas de controle social médico, Conrad e Schneider (1992) mostram o uso de
psicofármacos como exemplo.
97
 

medicalização de um problema, mas sua implementação necessita de


algum tipo de definição médica (CONRAD; SCHNEIDER, 1992).
De acordo com os autores, o campo da psiquiatria reforça suas
reivindicações através do controle social medicalizado. As categorias
médicas se expandiram, incorporando uma variedade de outros
problemas. Alguns exemplos que tiveram expansão diagnóstica são
citados pelos autores, como o alcoolismo, doença de Alzheimer e
Hiperatividade. No que diz respeito à Hiperatividade, Conrad e
Schneider afirmam que, inicialmente, esse distúrbio fazia referência
apenas à impulsividade e distração, principalmente nos meninos. A
mudança de Hiperatividade para TDAH (Transtorno do Déficit de
Atenção com Hiperatividade) permitiu a inclusão de outras categorias,
como meninas, adolescentes e adultos, e a consequência disso foi uma
explosão no consumo de psicofármacos utilizados para seu tratamento.
As críticas que surgiram a respeito da medicina moderna e do
processo de medicalização eclodiram na década de 1970. Ivan Illich
(1975) no livro “Nêmesis da Medicina”, faz uso do termo “imperialismo
médico”, referindo-se ao movimento de medicalização de problemas
sociais. Illich trabalha com a noção de iatrogênese para explicar as
doenças causadas pela própria medicina. A definição para esse termo
deriva do grego e significa – iatros (médico) e genia (origem), ou seja,
“em sentido estrito, uma doença iatrogênica é a que não existiria se o
tratamento aplicado não fosse o que as regras da profissão recomendam”
(ILLICH, 1975, p. 23).
A noção de iatrogênese atua em três níveis que são explicados
por Illich da seguinte maneira: i) o primeiro nível (iatrogênese clínica)
faz menção às doenças derivadas do próprio cuidado com a saúde ou às
consequências biomédicas do ato técnico, e podem estar relacionadas
com os efeitos colaterais de medicamentos, negligência com a própria
saúde, intervenções cirúrgicas desnecessárias e etc; ii) nível da
iatrogênese social, onde a saúde do indivíduo é afetada pela
medicalização social. Esse nível revela uma dependência da população
para com os medicamentos; dependência dos cuidados médicos
rotineiros. O autor mostra que mesmo com um aumento orçamentário
destinado às despesas médicas, a saúde não apresenta melhorias. Nesse
nível há também o problema do alto consumo de medicamentos, que
pode ser apontado como um controle social exercido pelo diagnóstico e
a medicalização da prevenção. Para Illich, o diagnóstico precoce traz
problemas que antes não existiam. O indivíduo que antes se sentia bem,
após o diagnóstico passa a sofrer de ansiedade, por exemplo; iii) o nível
da iatrogênese estrutural, acontece quando a medicina “retira do
sofrimento seu significado íntimo e pessoal e transforma a dor em
problema técnico” (ILLICH, 1975, p. 104). O autor considera este
98
 

processo como uma regressão estrutural do nível da saúde. O indivíduo


perde sua capacidade de lidar com as transformações da vida, que são a
doença, a dor e até a morte.
Os estudos de Ivan Illich (1975) revelam uma crítica à medicina
moderna e à epidemia de doenças que ela mesma provoca. A medicina é
apontada por ele como uma ameaça à própria vida, já que retira dos
indivíduos a capacidade para lidarem com as transformações e as etapas
próprias da vida. E mais ainda, sua cultura medicalizada expropria os
indivíduos de sua intrínseca capacidade de autonomia sobre si mesmos.
Outra crítica em relação à medicina e à própria medicalização da
vida pode ser apontada nos estudos de Foucault. Embora ele não utilize
muito o termo medicalização, em vários momentos de seus estudos
podemos observar alusões à questão da medicalização da vida. De
acordo com Gaudenzi e Ortega (2012), a teoria de Foucault se
fundamenta na noção de uma sociedade governada pela medicina.
Como reiterou Foucault:

A medicina como técnica geral de saúde, mais do


que como serviço das doenças e arte das curas,
assume um lugar cada vez mais importante nas
estruturas administrativas e nessa maquinaria de
poder que, durante o século XVIII, não cessa de
se estender e de se afirmar. O médico penetra em
diferentes instâncias de poder. A administração
serve de ponto de apoio e, por vezes, de ponto de
partida aos grandes inquéritos médicos sobre a
saúde das populações; por outro lado, os médicos
consagram uma parte cada vez maior de suas
atividades a tarefas tanto gerais quanto
administrativas que lhes foram fixadas pelo
poder. Acerca da sociedade, de sua saúde e suas
doenças, de sua condição de vida, de sua
habitação e de seus hábitos, começa a se formar
um saber médico-administrativo que serviu de
núcleo originário à economia social e a
sociologia do século XIX (FOUCAULT, 1979, p.
202).

Com essa afirmação, Foucault revela que a ascensão da medicina


sobre a população perpassa os campos que dizem respeito à saúde e
doença, atingindo todas as formas de existência e comportamento
humanos.
Segundo Gaudenzi e Ortega (2012), no final do século XVIII,
momento histórico do desenvolvimento da economia capitalista e
expansão do mercado, a medicina surge como uma prática social que
99
 

transforma o corpo dos indivíduos em força de trabalho. Esse processo


tem o objetivo de controlar a sociedade. A medicina, engendrada como
uma prática social que transforma o corpo individual em força de
trabalho, opera na gestão e maximização da vida. Esse processo é
denominado por Foucault de biopoder e pode ser entendido como um
poder sobre a vida. Nesse contexto, o exercício do poder não segue mais
a via jurídica e repressora. Sua maneira de atuação será através da
disciplina.
Assim, para os autores, a racionalidade médica passa a operar na
máquina governamental, exercendo poder sobre a população. A
medicina passa a controlar os comportamentos e formas de vida,
coletivas e individuais e institui regras que dizem respeito, não somente
aos campos biológicos, como saúde e doença, mas também no campo
comportamental, como a sexualidade, a fertilidade, a fecundidade e etc.
A vida humana é agora analisada em termos médicos, como nos mostra
Foucault:

[...] o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo


que, na espécie humana, constitui suas características
biológicas fundamentais vai poder entrar numa
política, numa estratégia política, numa estratégia
geral de poder. Em outras palavras, como a
sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a
partir do século XVllI, voltaram a levar em conta o
fato biológico fundamental de que o ser humano
constitui uma espécie humana (FOUCAULT, 2008b,
p. 3).

Para melhor compreendermos o conceito de biopolítica


trabalhado por Foucault, vamos adentrar na natureza do poder e como o
autor o articula em suas teorias.

3.2.1 A natureza relacional do poder

[...] o poder não é, justamente, urna


substância, um fluido, algo que decorreria
disto ou daquilo, mas simplesmente na medida
em que se admita que o poder é um conjunto
de mecanismos e de procedimentos que tem
como papel ou função e tema manter- mesmo
que não o consigam – justamente o poder. É
um conjunto de procedimentos, e é assim e
somente assim que se poderia entender que a
análise dos mecanismos de poder dá início a
algo como uma teoria do poder
(FOUCAULT, 2008b, p. 4).
100
 

O poder, fenômeno que transcende a realidade objetiva dos


homens, segundo Spinoza, pode ser descrito como fonte imanente. O
filósofo aponta o poder como uma potência que se manifesta através das
relações de forças no campo social (CHAUI, 2006). Nesse mesmo
campo está assentado o pensamento de Foucault e suas análises sobre o
poder.
Foucault não tem uma teoria geral do poder. Ele não está
preocupado em analisar a origem mesmo do poder, mas sim, através de
uma perspectiva descritiva, o autor pretende identificar e explicitar os
diferentes mecanismos de relações de poder em sociedade. Para
Foucault (2008b), o poder pode ser compreendido como um conjunto de
mecanismos e procedimentos, cuja função é simplesmente manter o
próprio poder.  
A linha metodológica utilizada por Foucault para realizar a
análise do poder psiquiátrico, da sexualidade infantil, dos sistemas
políticos e etc., é definida da seguinte maneira: ao invés de estudar o
poder de acordo com os moldes jurídicos da soberania e do Estado,

[...] deve-se orientá-lo para a dominação, os


operadores materiais, as formas de sujeição, os
usos e as conexões da sujeição pelos sistemas
locais e os dispositivos estratégicos. É preciso
estudar o poder colocando-se fora do modelo do
Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania
jurídica e pela instituição estatal. É preciso
estudá-lo a partir das técnicas e táticas de
dominação. (FOUCAULT, 1979, p. 186)

Segundo Nascimento (2012), o conceito de poder em Foucault


passou por uma série de transformações. Rompeu com o pensamento
clássico aristotélico de desigualdade natural dos homens, e trouxe a ideia
moderna de direitos naturais. Posteriormente rompeu com o pensamento
cristão ao apresentar a sociedade política, não como resultado da razão
divina, mas como resultado da razão humana.
Para compreender a origem do poder em Foucault tomaremos
como ponto de partida a obra Segurança, território e população
(2008b), em que o autor disserta que na filosofia de Hobbes, a natureza
havia concedido igualdade aos homens e esse estado proporcionava-lhes
os mesmos direitos na luta pela preservação da vida. Assim, essa
condição os transformava em guerreiros que lutavam pela igualdade.
Guerreiros de uma luta de todos contra todos, que se estabelecia a todo
instante. Essa situação gerava um estado de constante ameaça, mesmo
101
 

depois da constituição do Estado e se revelava a todo instante como


potência.
Essa guerra teria sua origem e desenvolvimento no seio da
própria igualdade e seria a consequência de uma não diferença ou de
diferenças insuficientes. O medo estaria na raiz dessa relação entre os
homens, e a paixão seria o carro-chefe da sociabilidade, a fonte geradora
da vida organizada e elemento de sua manutenção. Para o autor, a guerra
foi o berço de um discurso histórico.
Para Foucault (1979), a análise a ser feita sobre o poder, qualquer
que seja, deve contemplar o jogo de forças múltiplas que, ao se
entrecruzarem, configuram a dominação de uns sobre os outros. Sendo
assim, essa análise deve ser feita sob o prisma de um movimento
indefinido de relações de dominação e compreender que “o que faz com
que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não
pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz
coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT,
1979a, p. 8). Essa relação de forças passa a ser um objeto histórico que
pode se situar e determinar a própria história de um indivíduo. Sendo
uma prática social, é constituído historicamente e, não somente o
soberano, mas os indivíduos são capazes de incorporá-lo em sua própria
história.
O poder não é uma coisa, para Foucault. Não é algo que alguém
possui ou uma natureza que possua uma realidade. No máximo, como
dirá Foucault em diversas ocasiões (2003b, 2005, 2008b), o poder, como
tal, não existe. Ele é o sistema das relações que tece e que mantém sob
tensão. Como afirma o autor:

Ora, o estudo desta microfísica supõe que o


poder nela exercido não seja concebido como
uma propriedade, mas como uma estratégia, que
seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a
uma “apropriação”, mas a disposições, a
manobras, a táticas, a técnicas, a
funcionamentos; que se desvende nele antes uma
rede de relações sempre tensas, sempre em
atividade, que um privilégio que se pudesse
deter; que lhe seja dado como modelo antes a
batalha perpétua que o contrato que faz uma
cessão ou a conquista que se apodera de um
domínio. Temos em suma que admitir que esse
poder se exerce mais que se possui, que não é o
“privilégio” adquirido ou conservado da classe
dominante, mas o efeito de conjunto de suas
posições estratégicas — efeito manifestado e às
102
 

vezes reconduzido pela posição dos que são


dominados (FOUCAULT, 1987, p. 30).

Para Foucault, esse conjunto de procedimentos e de relações, tem


a função de manter e transformar os mecanismos de poder. E esses
mecanismos não podem ser entendidos como complemento das relações,
sejam elas familiares, de produção, sexuais, etc. Os mecanismos de
poder são “parte intrínseca de todas essas relações, são circularmente o
efeito e a causa delas” (FOUCAULT, 2008b, p. 4).
Antônio Maia (1995) realiza algumas considerações a respeito da
análise foucaultiana do poder. Segundo o autor, é a lei da interdição e da
censura que atravessa todo o corpo social. O exercício de poder se faz
presente em todas as esferas da vida pública e privada. O próprio
indivíduo e o conhecimento que ele tem de si mesmo tem origem nas
relações de poder.
De acordo com Maia, é a partir dessa perspectiva que Foucault
demonstra que a concepção jurídica do poder guarda influência da
representação de poder monárquico e que, apesar das diferenças de
época e de objetivos, a representação do poder permaneceu marcada pela
monarquia. As relações de poder pressupõem um eterno enfrentamento e
o poder só pode funcionar através de estratégias.
No que tange o Estado, sua análise mostra que em qualquer
modelo de sociedade, o poder estará sempre presente nas relações de
poder. Maia conclui que, a partir da ótica foucaultiana, o Estado não
detém o privilégio de ser a matriz das relações de poder, já que a
dominação e suas inúmeras relações de poder o antecedem. Em
Foucault, há uma captura de focos de poder pelo Estado em sua
fundação, porém, nas sociedades contemporâneas, ele não é uma das
formas específicas do exercício do poder, mas todas as formas de
relação de poder se referem a ele. Foucault não negligencia o papel do
Estado, mas este papel muda de foco. Segundo Maia, fixar o problema
em termos de Estado significa continuar fixando-o em termos de
soberano e soberania.
A partir da análise de Foucault, é possível observar inúmeras
relações de poder na sociedade atual que se colocam fora do Estado. O
próprio autor ressalta a presença dessas relações em cada corpo social,
desde os membros de uma família até as próprias relações de trabalho e
vizinhança (FOUCAULT, 1979, 2008b). O poder que a psiquiatria e os
profissionais de saúde exercem sobre os indivíduos e a sociedade como
um todo é exemplo disso.
Para Foucault (1979), o Estado não tem condições de ocupar todo
o campo de relações de poder, além disso, para que o seu funcionamento
possa acontecer, ele necessita de outras relações de poder existentes.
103
 

Sendo assim, o poder não pode ser visto emanando de um ponto central,
mas de uma rede. As próprias relações de poder devem ser
compreendidas através do conceito de rede. Foucault entende por rede
todo o corpo social e seus diferentes focos de poder: Estado, prisão,
hospital, asilo, família, escola, etc. A rede permeia todo esse corpo,
articulando e integrando esses diferentes focos. Como disse Foucault
(1979, p. 183), “o poder deve ser analisado como algo que circula, ou
melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado
aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como
uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede”.
O poder em Foucault só pode ser concebido como algo que existe
em relação, envolvendo forças que se chocam e se contrapõem. Os
mecanismos ou estruturas de poder só são concebidos onde as pessoas
exercem poder umas sobre as outras. E Foucault reitera:

Nas suas malhas os indivíduos não só circulam,


mas estão sempre em posição de exercer este
poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo
inerte ou consentido do poder, são sempre
centros de transmissão. Em outros termos, o
poder não se aplica aos indivíduos, passa por
eles. Não se trata de conceber o indivíduo como
uma espécie de núcleo elementar, átomo
primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder
golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo
os indivíduos ou entrelaçando-os (FOUCAULT,
1979, p. 183).

Maia (1995) afirma que a liberdade é um elemento fundamental


no exercício do poder em Foucault. As relações de poder pressupõem
um lugar onde a liberdade se faça presente. A existência da liberdade
garante a possibilidade de reação por parte daqueles sobre os quais o
poder é exercido. Não existe poder sem liberdade e sem potencial de
revolta. Assim, para que o poder seja exercido, é imprescindível que
haja liberdade entre os indivíduos. Se o poder é definido como um modo
de ação sobre a ação dos outros, pressupõe-se que a liberdade existe. O
poder só pode ser exercido entre os sujeitos livres e na medida em que
forem livres para que suas condutas, reações e diversos modos de
comportamentos possam se manifestar. Como Foucault afirma em
diversas oportunidades, a contraface do poder é a resistência, e para
poder exercê-la é preciso postular um marco de liberdades mínimas.
As análises de Pierre Bourdieu a respeito do poder seguem
direção oposta às análises realizadas por Foucault e faz-se necessário
destacar brevemente algumas dessas diferenças. Segundo Bourdieu
104
 

(2001), as relações de poder inscritas em um campo social, possuem


estreitas relações com as formas implícitas de dominação de classes nas
sociedades capitalistas. A base do conceito de poder em Bourdieu
encontra-se no que ele definiu como campo e habitus, sendo o campo
uma estrutura social considerada como um campo de forças e lutas pelo
poder e o habitus esquemas de percepção, pensamento e ação. Para
Bourdieu, o poder que opera dentro do campo educacional, é o poder
simbólico, “poder invisível que só pode se exercer com a cumplicidade
daqueles que não querem saber que a ele se submetem ou mesmo que o
exercem” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 31). Tal poder só se
impõe como legítimo justamente por ser simbólico e só é inculcado
quando reconhecido.
O autor afirma que os agentes e instituições dominantes tentam
impor a cultura dominante, de modo a reproduzir o habitus e as
desigualdades sociais. Cada campo possui interesses próprios e
específicos que são comuns a todos os agentes e esses interesses são
intrínsecos à própria existência do campo e às diversas formas de
capital. Além do capital econômico, Bourdieu considera o capital
cultural (o conhecimento e habilidades produzidas intelectualmente e
transmitidas pela família e pelas instituições escolares); o capital social
(correspondente ao conjunto de acessos pessoais, a rede de
relacionamento dos agentes) e o capital simbólico (correspondente ao
prestígio e a honra e abarca tanto o capital econômico, como o cultural e
o social).

3.2.2 A disciplina como dispositivo de poder

Foucault (1979) analisa as diversas transformações que


atravessaram os séculos XVII e XVIII. O autor aponta que uma das
grandes mudanças ocorreu no seio das relações de soberania. Essas
relações aconteciam diretamente entre soberano-súdito e recobriam a
totalidade do corpo social. Entre os séculos XVII e XVIII, surge uma
nova mecânica de poder, que se apresenta totalmente discordante do
modo como as relações de soberania operavam até então. A soberania
passou a ser substituída pelo poder disciplinar e as monarquias passaram
a operar como sociedades disciplinares. Durante esses dois séculos, o
corpo social foi colonizado por instituições disciplinares como as
fábricas, escolas, e prisões.
A reconstituição histórica dos dispositivos disciplinares é feita
por Foucault (2006) da seguinte maneira: os dispositivos disciplinares
existem antes mesmo dos séculos XVII e XVIII, e atuam desde muito
tempo no interior das relações de soberania. Podiam ser vistos nas
comunidades religiosas regulares, ou seja, comunidades estatuárias
105
 

reconhecidas pela igreja ou mesmo nas comunidades espontâneas. Os


séculos XVII e XVIII marcam o início da extensão desses dispositivos.
A gênese do que se pode chamar de disciplinarização acontece dentro da
ordem religiosa, passando pelos povos colonizados através dos jesuítas35
até chegar na figura dos delinquentes, mendigos, prostitutas e etc. “Em
todos os casos, os dispositivos disciplinares, digamos assim, são
instalados, e vemos com muita nitidez que derivam diretamente das
instituições religiosas” (FOUCAULT, 2006, p. 87). Pouco a pouco, a
versão exterior das disciplinas religiosas foi se aplicando em setores
mais centrais do sistema social.
Os dispositivos disciplinares, sem apoio religioso, foram se
instalando ao ar livre, dando início, assim, ao que Foucault (2006)
chama de sistemas disciplinares. Primeiro com o exército e seus
exercícios corporais, até a ocupação total do tempo. Depois, com as
classes operárias nas grandes oficinas do século XVIII, até o momento
que toda a sociedade é colonizada por elementos disciplinares, e ocorre
o que Foucault denomina de “apropriação do corpo singular por um
poder que o enquadra e que o constitui como indivíduo, isto é, como
corpo sujeitado” (FOUCAULT, 2006, p. 89).
O poder disciplinar não se materializa na figura do rei, mas nos
corpos dos indivíduos através de técnicas disciplinares. Esse poder não
pode ser transferido para outrem e nem se apropriar dos bens de outrem.
Sua função é disciplinar para retirar. Ao contrário das relações de poder
congruentes à soberania, este novo mecanismo de poder aumenta a
utilidade dos indivíduos, dinamizando suas aptidões, suas forças, seus
rendimentos. Ele está fundamentado mais nos corpos e atitudes dos
sujeitos, do que na terra e seus produtos. Dessa maneira, esse poder
“deve propiciar simultaneamente o crescimento das forças dominadas e
o aumento da força e da eficácia de quem as domina” (FOUCAULT,
1979, p. 188).
Esse poder não está mais assentado na figura do soberano. Na
sociedade dominada por mecanismos de disciplina, o poder não ocupa
um centro único e tampouco existe uma única figura que o detenha.
Agora, ele situa-se nas periferias e multiplicado em toda parte e ao
mesmo tempo. Seu centro não mais se localiza na figura do soberano,

                                                                                                                       
35
A disciplinarização dos povos colonizados é detalhadamente observada por Foucault em
O poder psiquiátrico (2006). Os jesuítas impuseram entre os povos guaranis, através de
um sistema disciplinar, um tipo de controle e exploração. As aldeias eram
permanentemente vigiadas e existia uma espécie de individualização, onde cada um
recebia um alojamento que ficava sob o olhar da vigilância. Havia também um sistema de
punição, diferentemente do sistema penal europeu, mas que era atento às más tendências,
más propensões.
106
 

mas nos corpos dos indivíduos e seu funcionamento prescinde de uma


invisibilidade (FOUCAULT, 1979).
As análises de Foucault (1987) recaem sobre as técnicas de poder
que incidem no corpo. O autor nos mostra que o corpo passa a ser
observado como uma máquina e, através das técnicas disciplinares, ele
será adestrado e sua utilização, amplificada. O resultado desse processo
será a maximização de sua força para o aperfeiçoamento do trabalho.
Pogrebinschi (2004) realiza uma análise da proliferação dos
dispositivos disciplinares e nos mostra que Foucault os descreveu como
sendo o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e o exame.
A autora faz uma breve descrição da função de cada um desses
dispositivos da seguinte maneira: (i) o olhar hierárquico consiste na ideia
de vigilância. Os indivíduos submetidos à disciplina devem saber que
são potencialmente vigiados. Isso, segundo Foucault, permite que o
poder disciplinar exerça domínio sobre os indivíduos, já que faz com
que eles disciplinem-se a si mesmos, adestrando-se e ajustando-se. Esse
processo de vigilância, segundo o autor, sobrepõe à violência e à força;
(ii) a sanção normalizadora, como o próprio termo mostra, normaliza as
condutas. A penalidade perpétua de que trata Foucault, atravessa todos
os pontos, controla, compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza,
exclui. Em uma palavra, ela normaliza; iii) o exame pode ser descrito
como sendo a conexão entre a vigilância e a sanção normalizadora.
Primeiramente o indivíduo é constituído como objeto para análise e,
subsequentemente sucede a comparação. Sendo assim, Pogrebinschi
(2004, p. 194) esclarece que, em Foucault,

o exame é o resultado da somatória entre


objetivação e sujeição, já que ele manifesta a
sujeição dos que são percebidos como objetos e a
objetivação dos que se sujeitam. Contudo, tal
objetivação opera simultaneamente entre a
visibilidade dos sujeitos e a invisibilidade da
disciplina. Pelo exame, o indivíduo passa a ser
efeito e objeto do poder e do saber.

O processo de medicalização da vida e da infância, seguindo a


lógica foucaultiana, tem como objetivo criar um dispositivo de
normalização do comportamento infantil tendo em vista um futuro
repleto de riscos. Isso se dá por meio dos saberes e práticas construídos
por profissionais da saúde, e incidem diretamente sobre o corpo dos
indivíduos. Nesse contexto, os indivíduos estão submetidos ao campo de
poder que se constitui em torno da medicalização. Sendo assim,
podemos afirmar que o controle exercido sobre os comportamentos é a
107
 

consequência desse processo de medicalização. E, dentro da esfera


escolar, a normalização dos comportamentos da criança é vista como
necessária para que as regras estabelecidas institucionalmente, ou seja,
para que o controle permita que o processo de aprendizagem se articule.
Nesse contexto, como já explicitado anteriormente nas análises
de Foucault, podemos proferir que a medicalização seria a justificativa
científica para a normalização da vida, com o objetivo de obtenção
máxima das capacidades individuais para o desempenho esperado
socialmente. Esse fato se dá pela assunção dos comportamos
considerados desviantes como transtornos médicos e que, portanto,
devem ser diagnosticados e tratados como patologias.
A questão dos riscos que a psiquiatria se utiliza para disseminar
sua lógica preventiva e medicalizante, através da normalização da vida,
alerta a população para um perigo sempre eminente. Um comportamento
desviante, que se não for tratado em sua origem, pode desencadear
problemas mais sérios na vida adulta. O caráter polifônico que o termo
“risco” traz, revela sua natureza política. Esse termo propaga um ideário
padronizante que configura diferentes contextos sociais para uma via de
mão única, a via da medicalização.

3.3 OS RISCOS NA CONTEMPORANEIDADE E SUA RELAÇÃO


COM OS TRANSTORNOS MENTAIS: MELHOR PREVENIR DO
QUE REMEDIAR VERSUS MELHOR PREVENIR E MEDICALIZAR

Se Deus não existe, tudo é permitido


(paráfrase de trecho da obra Os irmãos
Karamázov. DOSTOIÉVISKI, 2008).

O trecho da obra Os irmãos Karamázov de Fiódor Dostoiéviski,


em que Ivan discute com seu irmão Aliocha sobre a existência ou não de
um Deus, parece propícia para este item. Aqui, coloco Deus como sendo
a própria personificação da certeza, tranquilidade e segurança. Então,
numa sociedade de riscos, se o conceito “Deus” é inexistente, tudo é
permitido e passível de acontecer.
Segundo Neves e Jeolás (2012), o conceito de risco refere-se a
várias categorias, como riscos industriais e ambientais, riscos
econômicos e políticos, riscos financeiros, riscos na saúde e etc. O
conceito de risco assumiu o cerne das questões sociais, políticas,
econômicas, jurídicas, éticas e médicas na atualidade.
Nesse item, abordaremos a categoria de risco e seus usos diversos
na contemporaneidade relacionando-o à questão da medicalização.  
Assim, em concordância com Neves e Jeolás (2012), podemos aferir
que, no que compete à medicina, esse fato se manifesta no alargamento
108
 

do conceito de saúde e normas de vida, que engloba a sua totalidade e a


predispõe a um futuro sempre obscuro e temeroso. Os inúmeros
diagnósticos que a psiquiatria lança em seus manuais de tempos em
tempos, nada mais são do que a possibilidade de um desenvolvimento
predisponente a doenças mentais sempre presentes.
Nessa mesma assertiva, Castel (1983) discute que, para a
psiquiatria, o conceito de risco sempre foi visto como um perigo que
rodeava a esfera do mental, colocando o paciente sempre disposto a
atitudes violentas. O risco é uma noção que carrega a qualidade
imanente sobre o perigo e se baseia em simples probabilidades
assentadas em dados aleatórios. Ou seja, “embora existam temores de
uma recorrência, há sempre um fator de incerteza entre o diagnóstico de
periculosidade e a realidade de atuação” (CASTEL, 1983, p. 120). O
autor ainda alerta para os problemas das políticas de prevenção que
podem caracterizar indivíduos que, a partir de um diagnóstico
psiquiátrico, passam a ser classificados como perigosos e associais.
Castel analisa que a noção de risco passou a influenciar
politicamente as estratégias preventivas. As políticas de saúde, aplicando
a noção do risco sobre o conceito epidemiológico, que responsabiliza os
indivíduos por suas próprias doenças, empreendem terapêuticas
exageradas que trazem consequências éticas e políticas (NEVES;
JEOLÁS, 2012).
Pensar o presente e o futuro pela lógica do risco foi uma temática
analisada sob muitos pontos de vista em diversas áreas de conhecimento.
Na área da Sociologia, o conceito de risco foi tomado como objeto de
análise sobre fenômenos e problemas sociais. Daremos ênfase às
análises realizadas por Robert Castel, Ulrich Beck, Zygmunt Bauman e
Michel Foucault na tentativa de compreender o conceito de risco
atrelado ao processo de medicalização.
Ulrich Beck, sociólogo alemão, baseou-se em acontecimentos
como o terrorismo, crise ecológica e financeira para explicitar seu
conceito de uma sociedade global de risco. O sociólogo defendia a teoria
de que uma profunda ruptura dentro da modernidade a teria afastado da
sociedade industrial clássica, deixando em seu lugar uma sociedade de
risco. Esta sociedade se caracteriza em dois momentos, que o autor
classificou de modernização da tradição e modernização reflexiva. A
sociedade industrial questiona a práxis social exercida pela tradição e a
sociedade de risco realiza o movimento contrário, questionando os
axiomas da sociedade industrial, ou seja,

a modernização simples (ou ortodoxa) significa


primeiro a desincorporação e, segundo, a
reincorporação das formas sociais tradicionais
109
 

pelas formas sociais industriais, então a


modernização reflexiva significa primeiro a
desincorporação e, segundo, a reincorporação das
formas sociais industriais por outra modernidade
(BECK, 1977, p. 12).

Segundo o autor, a sociedade industrial clássica suscitou diversas


ameaças contra a própria vida, como enfermidades, escassez dos
recursos naturais, dentre outras, ou seja, o dinamismo da sociedade
industrial acabou com suas próprias fundações, O progresso construtor
se transformou em autodestruição e um tipo de modernização, que
outrora existia, destruiu-se e modificou-se, gerando outro estado em seu
lugar. Esse novo estágio é o que Beck chama de modernidade reflexiva.
Os riscos produzidos pela sociedade industrial estruturam a
segunda modernidade. Nesse novo estágio de desenvolvimento, os riscos
adquirem outra dimensão e gravidade. São riscos ecológicos como a
contaminação do ar e da água, riscos químicos como o envenenamento
relacionado à produção de alimentos, riscos de constante ameaça de uma
explosão nuclear e os riscos associados à genética.
Como ele mesmo afirmava, “este conceito designa uma fase no
desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais,
políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das
instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial”
(BECK, 1997, p. 15).
Na sociedade de risco, segundo Beck, as instituições de controle
da sociedade industrial viram-se frente à incompetência para administrar
problemas de origens sociais, políticos e industriais gerados pelo próprio
avanço tecnológico. Em contrapartida, as instituições políticas da
sociedade moderna dos séculos XIX e XX, nascem com a habilidade
para gerenciar os riscos e as incertezas que esse processo de
modernidade configura na atualidade. Beck (1997, p. 16) denomina esse
processo de modernização reflexiva que significa “autoconfrontação
com os efeitos da sociedade de risco que não podem ser tratados e
assimilados no sistema da sociedade industrial”. O autor analisa a
sociedade de risco como sendo aquela que está engendrada numa
produção acelerada de riscos e infortúnios, antagonizando com as
sociedades pré-modernas ou mesmo com a modernidade clássica, que
era marcada pela produção de bens e riqueza. Esse processo não se deu
por escolhas individuais ou coletivas. Segundo Beck,

A transição do período industrial para o período


de risco da modernidade ocorre de forma
indesejada, despercebida e compulsiva no
despertar do dinamismo autônomo da
110
 

modernização, seguindo o padrão dos efeitos


colaterais latentes. Pode-se virtualmente dizer
que as constelações da sociedade de risco são
produzidas porque as certezas da sociedade
industrial (o consenso para o progresso ou a
abstração dos efeitos e dos riscos ecológicos)
dominam o pensamento e a ação das pessoas e
das instituições na sociedade industrial. A
sociedade de risco não é uma opção que se pode
escolher ou rejeitar no decorrer de disputas
políticas. Ela surge na continuidade dos
processos de modernização autônoma, que são
cegos e surdos a seus próprios efeitos e ameaças.
De maneira cumulativa e latente, estes últimos
produzem ameaças que questionam e finalmente
destroem as bases da sociedade industrial
(BECK, 1997, p. 16).

Essa transição impactou as bases culturais que a sociedade


industrial assentava sua rede de significados coletivos e específicos e,
como consequência, desencadeou um processo de individualização. Esse
processo não tem as características daquele em que as pessoas saíram do
campo de certezas feudais e religiosas-transcendentais para a sociedade
industrial, mas é um processo marcado pelo trânsito da sociedade
industrial para a sociedade de risco global. O que significa que o
indivíduo, agora, não passa de indivíduo. Suas dificuldades, seus
problemas, enfim, toda sua biografia não está mais atrelada a um grupo
familiar ou social ao qual ele se reconhece e se volta para superar seus
contratempos. Na sociedade de risco, o indivíduo interpreta e resolve
seus conflitos pela perspectiva do próprio risco. Como Beck (1997, p.
19) afirma: “no autoconceito da sociedade de risco, a sociedade torna-se
reflexiva (no sentido mais estrito da palavra), o que significa dizer que
ela se torna um tema e um problema para ela própria”.
Quanto às incertezas oriundas do próprio “viver em risco”, Beck
afirma:

O cerne dessas irritações é que poderia ser


caracterizado como o "retorno da incerteza à
sociedade". O "retorno da incerteza à sociedade"
significa aqui, antes de tudo, que um número
cada vez maior de conflitos sociais não é mais
tratado como problemas de ordem, mas como
problemas de risco. Tais problemas de risco são
caracterizados por não terem soluções ambíguas;
ao contrário, são distinguidos por uma
111
 

ambivalência fundamental, que pode em geral ser


compreendida por cálculos de probabilidade, mas
que não podem ser resolvidos dessa maneira. É
sua ambivalência fundamental que distingue os
problemas de risco dos problemas de ordem, que
por definição estão voltados para a clareza e a
faculdade de decisão. Em face da crescente
ausência de clareza – e este é um
desenvolvimento que vem se intensificando –
desaparece quase obrigatoriamente a fé na
factibilidade técnica da sociedade (BECK, 1997,
p. 19).

O autor distingue o que ele chama de risco, da seguinte maneira:


o risco seria a antecipação da catástrofe. As catástrofes situam-se no
tempo e no espaço, já os riscos não têm a dimensão espaço-temporal ou
social. Eles se situam no campo das probabilidades futuras, ameaçam o
presente e se configuram como realidade. Para o sociólogo, somente
pelo que ele chama de presentificação ou pela encenação dos riscos
globais, o futuro das catástrofes se transforma em presente (BECK,
2010).
Dessa maneira, Beck mostra que o que importa não é a certeza de
estarmos num mundo mais seguro que antigamente, mas sim, que a
encenação de catástrofes antecipadas obriga a ação. Para o autor, são os
próprios especialistas que sabem que o risco não é uma grandeza
mensurável. A própria realidade do risco reside no seu caráter duvidoso
e discutível. Os riscos não apresentam uma realidade abstrata por si só,
mas tornam-se reais nas avaliações contraditórias de grupos e
populações. Os riscos, segundo o autor, estão numa vertente discutível.
Não existe possibilidade de saber se eles se intensificaram ou se foi a
nossa visão sobre eles que se acentuou.
Bauman (1999) também realizou análises sobre os impactos da
modernidade e sua relação com o risco. Nas palavras do autor (1999, p.
66) “na melhor das hipóteses, a incerteza produz confusão e desconforto.
Na pior, carrega um senso de perigo”.
O autor faz uma analogia da sociedade de risco com os
relacionamentos atuais. Existe, no ser humano atual, a vontade de estar
junto, mas ao mesmo tempo não; ao mesmo tempo há o temor de
estabelecer relações duradouras. A característica da ambivalência é o
distintivo da modernidade, que se apresenta sempre repleta de incertezas
e inseguranças oriundas do risco. Na modernidade, ou modernidade
líquida como o autor a denomina, o conceito de risco atravessa as
relações estabelecidas entre as pessoas.
112
 

Ainda que o risco seja imanente às relações e isso provoque


flutuações, ou seja, o ato de não investir no aprofundamento das
relações, não significa que as relações de poder tenham sido suprimidas
da vida em sociedade. O que de fato aconteceu, segundo Bauman
(1999), foi que a sociedade moderna vivia a ilusão da incontingência.
Desde o seu início, a modernidade carregou a pretensão da dominação
de tudo o que pudesse configurar em contingência e ambivalência.
Quanto mais se buscava a uniformidade, mais se produzia a
ambivalência:

A oposição, nascida do horror à ambiguidade,


torna-se a principal fonte de ambivalência. A
imposição de qualquer classificação significa
inevitavelmente a produção de anomalias (isto é,
fenômenos que são percebidos como “anômalos”
apenas na medida atravessam as categorias cuja
separação é o significado da ordem). Assim,
qualquer cultura dada deve enfrentar eventos que
parecem desafiar suas suposições. Ela não pode
ignorar as anomalias que seu esquema produz,
exceto com o risco de perder a confiança
(BAUMAN, 1999, p. 70).

A contingência à qual Bauman (1999) se refere significa uma


realidade carente de certezas. O risco do fracasso, do terror, de eventos
cataclísmicos, de doenças, de morte prematura, enfim, de uma série de
infortúnios marca a sociedade moderna e seu destino contingente.
A modernidade, em sua ânsia de eliminar todos os padrões de
vida irregulares ou desviantes, enfim, de eliminar toda a ambivalência e
contingência como plano de melhoria social, pretendia remoldar o
mundo para que seu percurso seguisse uma ordem perfeita (BAUMAN,
1999).
Na perspectiva de Bauman, podemos afirmar que o processo de
medicalização da vida e da infância, protagonizado pela psiquiatria,
segue a mesma lógica da prevenção ao risco. Eliminar o comportamento
desviante e toda contingência que ele engendra, significa tecer um
mundo onde o perigo, ainda que iminente, possa ser controlado. A via de
controle atual empregada na modernidade é a medicalização. Medicar o
comportamento tido como anormal, ainda que este não tenha de fato se
manifestado, é o meio de controlar riscos e proteger o corpo social de
um futuro indesejável. A criança, pelos olhos da psiquiatria, carrega o
perigo em seu cérebro. E esse perigo significa desordem, descontrole,
ameaça.
113
 

A antecipação e prevenção de riscos, que norteiam a lógica


psiquiátrica, alicerçam o processo de medicalização da vida.
Diagnosticar precocemente a população em risco de doença mental é
uma práxis operacionalizada através do controle e disciplina das
condutas da infância em benefício da saúde mental.
Em Beck, o risco e os infortúnios, são gerados pelo próprio
processo tecnológico das sociedades modernas. Podemos fazer um
paralelo de sua teoria com a questão da medicalização da vida. Sabemos
que o uso de medicamentos que atuam no sistema nervoso desenvolvem
diversos sintomas colaterais em crianças, como obesidade, nervosismo,
insônia, inapetência, problemas no crescimento, entre outros. No
próximo item abordaremos com mais detalhes os efeitos colaterais
provocados pelo uso de psicofármacos em crianças, como os estudos
realizados pela Agência Española del Medicamento, que revelam que o
uso de psicofármacos desencadeia uma série de efeitos colaterais
negativos, inclusive o óbito. E também as denúncias de Marcia Angell,
ex-diretora do New England Journal of Medicine, sobre a perturbação
causada pelo uso de drogas psicoativas nos neurotransmissores, que
coadunam com os estudos de Illich (1975) sobre a iatrogenia que foram
analisados no ponto 3.2.
Os efeitos colaterais que a modernidade e seu desenvolvimento
tecnológico trazem, só podem ser resolvidos com mais tecnologia
(BECK, 2010). Processo semelhante ocorre na questão da
medicalização. O uso de psicofármacos desencadeia inúmeros efeitos
colaterais que só podem ser combatidos ou limitados com mais
medicação e, ao final, temos um efeito dominó: um indivíduo inicia seu
tratamento a base de psicofármacos para “aplacar” uma disfunção
neuronal, desenvolve sintomas desagradáveis decorrentes de tal
medicação e que, muitas vezes, não estavam previstos; passa a fazer uso
de mais medicação e assim sucessivamente. É a maneira de atuação que
a medicalização exerce sobre os corpos. Os indivíduos passam a ser
governados em prol da segurança, e a medicação, que geralmente é
prescrita por um tempo longo, tem a promessa de tirar o indivíduo da
zona de perigo.
Foucault (2008b) analisa politicamente a insegurança que está na
base da sociedade, e afirma que a lógica do risco e da segurança é o que
possibilita o governo das populações. O autor disserta sobre o sistema
penal do século XVIII e a questão da segurança. O sistema disciplinar
compreende aspectos que são da ordem da segurança, e a tarefa de
correção que é exercida pelo sistema penal tem como objetivo evitar os
riscos de recidiva. Como o autor afirma:
114
 

Porque, afinal de contas, para de fato garantir


essa segurança é preciso apelar, por exemplo, e é
apenas um exemplo, para toda uma série de
técnicas de vigilância, de vigilância dos
indivíduos, de diagnóstico do que eles são, de
classificação da sua estrutura mental, da sua
patologia própria, etc., todo um conjunto
disciplinar que viceja sob os mecanismos de
segurança para fazê-los funcionar (FOUCAULT,
2008b, p. 11).

A relação que Foucault (2008b) coloca com a tecnologia da


segurança é mais ampla que a do sistema penal. A questão da tecnologia
da segurança inflacionou e revolucionou as técnicas disciplinares e as
técnicas jurídico-legais. Porém, não há uma sequência onde a lei surge,
depois a disciplina e por último a segurança. A questão da segurança é
que ela se acrescenta às obsoletas estruturas da lei e da disciplina
colocando-as em funcionamento. Elas podem emergir dentro dos
próprios mecanismos de controle social e até mesmo nos mecanismos
que modificam o futuro biológico da espécie.
A análise tecida por Foucault (2008b) a respeito dos dispositivos
de segurança recai sobre os espaços de segurança, sobre a contingência,
a normalização e a população. Para entendermos as análises que ele
realiza sobre a questão da segurança, e de como é dada sua atuação nos
diversos espaços, vamos recorrer ao tema da governamentalidade. Esse
conceito esclarece uma separação entre o poder governamental e o poder
soberano. Foucault (1979) nos mostra que a soberania busca o poder
acima de tudo e de todos, e esse poder recai sobre o povo. A soberania,
segundo o autor, é um fim em si mesmo. Já a governamentalidade faz
surgir um Estado administrador ou, nas palavras do autor, um Estado
gestor, que relaciona a arte de governar à arte de “exercer o poder
segundo o modelo da economia” (FOUCAULT, 1979, p. 281). O
governo não concentra sua forma de atuação sobre um território ou a
propriedade, mas sobre um conjunto de homens e suas relações com as
coisas, e essas coisas são definidas pelo autor como sendo as riquezas,
os recursos, os meios de subsistência e, também, os costumes, a cultura,
os acidentes, as epidemias e a morte.
Foucault (1979) faz uma distinção entre a obediência às leis
dentro da soberania e dentro do governo. Na soberania, a lei e o poder
soberano eram indissolúveis; o bem era a obediência à lei, seja do
próprio soberano terreno ou do soberano absoluto, no caso, Deus. A
diferença reside justamente quando Foucault coloca a palavra “dispor”.
O governo deve dispor corretamente as coisas para melhor governá-las,
115
 

ou seja, “utilizar mais táticas do que lei, ou utilizar ao máximo as leis


como táticas” (FOUCAULT, 1970, p. 284).
Esta arte de governar irá se solidificar na passagem do século
XVI para o século XVII, principalmente quando o Estado busca
fundamentar-se em sua própria racionalidade. Através do
desenvolvimento da economia política é que os problemas da população
puderam ser calculados estatisticamente, e sistematizados fora da esfera
jurídica da soberania. Nesse aspecto, foi possível observar que a
população tinha sua própria regularidade. A estatística quantificou
fenômenos, como número de mortos, de doentes, proporção de
acidentes, demografia, consumo e etc. Essa regularidade permitirá que o
governo atue de forma a melhorar as condições de vida da população,
fazendo uso de instrumentos como campanhas que operam diretamente
sobre a população, aumentando, por exemplo, a taxa de natalidade e o
controle de epidemias. A população será, como afirma o autor, um
objeto nas mãos do governo.
A ideia que Foucault nos apresenta sobre a questão da seguridade
social36 é o ponto que iremos nos deter. O governo se responsabiliza por
um conjunto de homens e coisas. Isso quer dizer que a população está
sujeita ao controle racional e administrativo do Estado, ou seja, que a
população está subordinada ao biopoder. Nessa perspectiva, Foucault
(2008b) nos mostra que as técnicas de poder poderão atuar no destino
biológico da espécie.
Foucault (2003a, 2003b), ao analisar os problemas sobre a
questão da segurança, afirma que a relação entre o Estado e a população
se estabelece por meio de acordos de segurança. Na época da soberania,
este acordo era feito em relação ao território. Atualmente, os acordos
que o Estado estabelece dizem respeito à segurança; a garantia contra
tudo que possa ser visto como incerteza ou risco. E isso é realizado
através da criação de mecanismos que administrem a questão das
contingências, como seguridade social, fundos de solidariedade,
qualidade na segurança pública, etc. O autor discute sobre os

                                                                                                                       
36
De acordo com a Constituição Federal (1988), artigo 194 e seguintes, a seguridade social
é o conjunto de ações e instrumentos por meio do qual se pretende alcançar uma sociedade
livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades
sociais e promover o bem de todos. O sistema de seguridade social, em seu conjunto, visa
a garantir que o cidadão se sinta seguro e protegido ao longo de sua existência, provendo-
lhe a assistência e recursos necessários para os momentos de infortúnios. É a segurança
social, segurança do indivíduo como parte integrante de uma sociedade.
116
 

mecanismos de controle que são impostos aos indivíduos e domesticam


seus corpos, sua linguagem e seus hábitos.
Portanto, essas novas noções, como risco, perigo e crise,
solicitam uma série de intervenções. As estatísticas permitirão que se
calculem os riscos relacionados a doenças e taxas de mortalidade.
Tomando como exemplo o caso da varíola, Foucault afirma que:

A partir do momento em que, a propósito da


varíola, passam a ser feitas análises quantitativas
de sucessos e insucessos, de fracassos e de
êxitos, quando passam a calcular as diferentes
eventualidades de morte ou de contaminação,
então a doença não vai mais aparecer nessa
relação maciça da doença reinante com o seu
lugar, seu meio, ela vai aparecer como uma
distribuição de casos numa população que será
circunscrita no tempo e no espaço (FOUCAULT,
2008b, p. 79).

A noção de caso seria uma maneira de individualizar o fenômeno


coletivo da doença de modo quantitativo, ou seja, colocar na esfera do
coletivo os eventos individuais. A noção de risco surge quando é
possível identificar em cada indivíduo ou grupo, o risco que cada um
tem de contrair a doença ou vir a óbito. O cálculo dos riscos traz o
conhecimento de que o nível de sujeição que os indivíduos estão
expostos à doença não são os mesmos, assim é possível identificar o que
é perigoso. A possibilidade de uma doença se multiplicar em
determinado momento e lugar, e essa proliferação requerer um controle
advindo de uma medida artificial, geraria a crise. Dentre essas noções
que Foucault (2008b) estabelece, há certa normalidade considerada
aceitável em relação ao contágio da doença e em relação à mortalidade.
Caberá à técnica reduzir as normalidades mais negativas. Nesse
contexto, a medicina preventiva tem seu campo de atuação, como
afirmou Foucault:

é nesse nível do jogo das normalidades


diferenciais, do seu desmembramento e do rebate
de umas sobre as outras que – ainda não se trata
da epidemiologia, da medicina das epidemias – a
medicina preventiva vai agir (FOUCAULT,
2008b, p. 82).

Nessa perspectiva, a noção de risco em Foucault pode ser vista


como uma ferramenta de cálculo e previsibilidade. Pela lógica
117
 

foucaultiana, a medicina acredita poder calcular e antecipar o risco de


um indivíduo apresentar comportamentos considerados como
desviantes, por exemplo. Através das tecnologias de poder empregadas
pela psiquiatria, os indivíduos podem ser colocados em grupos de risco
de desenvolver transtornos mentais. E, por meio de intervenções
preventivas e estratégias de normalização, a psiquiatria pode intervir
antes que a doença mental se cronifique.
Nesse contexto, os diagnósticos precoces de transtornos mentais
em crianças e adolescentes se revelam como uma estratégia biopolítica.
A identificação de anomalias e problemas cotidianos como precursores
de doenças mentais, será a práxis adotada pela biopolítica na psiquiatria
preventiva. Podemos observar esse olhar preventivo no campo da
educação e nos discursos de seus profissionais, que parecem estar
orientados para a detecção do risco, do problema que pode vir a se
agravar no futuro e da atuação no presente:

O importante é fazer o diagnóstico certo e em


tempo. Essa é uma grande dificuldade. Um aluno
foi diagnosticado com depressão e tomou
antidepressivo por um tempo. Ele piorou, ficou
muito mais agressivo, tinha uns ‘repentes’, se
agitava e batia nos colegas, depois ficava um
tempo calmo. Aí a família, na verdade uma tia
dele começou a achar que tinha alguma coisa
errada e pediu pra mãe levar em outro médico,
era um médico lá de São Paulo. Lá ele foi
diagnosticado com bipolaridade. Começou a
tomar o remédio certo e era outra pessoa. Até os
problemas de insônia que ele tinha
desapareceram. (PH2)

Robert Castel (1983, 1984) analisa o surgimento desse novo


espaço para o risco que estava dissociado da noção de perigo. Segundo o
autor, “um risco não resulta da presença de um perigo específico,
realizado por um indivíduo ou até mesmo um grupo concreto. É uma
conexão de dados abstratos ou fatores que tornam mais ou menos
provável o aparecimento do comportamento indesejável” (CASTEL,
1983, p. 122). Nessa via, as políticas preventivas supervisionam o
aparecimento de um evento, como doença, anormalidade,
comportamento desviante, etc., e essa forma de monitoramento, que o
autor chama de rastreio sistemático, prescinde da presença física, ou
seja, do contato entre o supervisor e aquele que é supervisionado. Nesse
ponto o autor se vale do modelo do panóptico de Foucault para elucidar
sua teoria.
118
 

Castel (1983) afirma que a forma de atuação das políticas


preventivas não recai sobre o indivíduo para corrigi-lo, mas sua atuação
se dá sobre fatores de correlação de elementos heterogêneos. Sendo
assim, o autor mostra que há uma desconstrução do sujeito concreto da
intervenção e uma combinação dos fatores que produzem o risco. O
principal objetivo não é o enfrentamento de uma situação específica de
perigo, mas sim, antecipar os próprios riscos.
Seguindo a mesma lógica, Foucault (2005a) já havia teorizado
sobre a desconstrução do sujeito concreto, no que tange à prevenção e
antecipação de riscos. Para o autor, a antecipação dos riscos é a
preocupação da biopolítica. A partir do momento que fenômenos
aleatórios são observados, não mais individualmente, mas em termos de
população, as possibilidades de intervenção de riscos emergem. Esse
processo, onde os fenômenos de contingência se referem a fatos sociais,
possibilita a instauração de mecanismos reguladores que tem como
objetivo manter um estado de equilíbrio.
A prevenção em Castel é relacionada ao cálculo de
probabilidades. Um sujeito é considerado suspeito por apresentar
características que os especialistas responsáveis pelas políticas
preventivas consideram como fatores de risco, e essas características
estão se expandindo cada vez mais. O espaço generalizado de fatores de
risco que está se construindo multiplica infinitamente as possibilidades
de intervenção. O autor questiona a possibilidade de existência de
alguma situação que possa estar livre de qualquer risco e discute o fato
de que o mito da erradicação absoluta do risco criado pelas ideologias
modernas acaba criando uma série de categorias de risco que são alvos
para diversos modos de intervenções preventivas. Um dos problemas
gerados pelas intervenções médicas diz respeito à falta de reflexão sobre
os efeitos iatrogênicos que tais intervenções podem causar na população.
Como já discutido anteriormente e, fazendo um enlace entre os
pontos de vista dos autores que estudamos sobre a questão dos riscos,
podemos afirmar que a modernidade ainda busca no corpo biológico as
razões para os problemas que são originados por ela própria. A lógica da
prevenção gera inúmeras categorias de risco que têm como objetivo
normalizar comportamentos e obter o controle total das populações e de
todos os fenômenos que possam representar qualquer tipo de infortúnio.
Ainda que, biologicamente, nada se tenha comprovado a respeito dos
transtornos mentais que colocam esses grupos em risco, a medicina
segue nessa busca (BRZOZOWSKI, 2013).
No que tange à medicalização e patologização da infância,
segundo Collares & Moysés (1985, p. 10), esse processo “consiste na
busca de causas e soluções médicas, a nível organicista e individual,
para problemas de origem eminentemente social”. No entanto, até o
119
 

momento presente não existem comprovações científicas da existência


de tais transtornos, como o TDAH, por exemplo. Sobre isso,

[...] podemos afirmar que até hoje, cem anos


depois de terem sido aventados pela primeira vez
por um oftalmologista inglês, os distúrbios
neurológicos não tiveram suas existências
comprovadas, é uma longa trajetória de mitos,
estórias criadas, fatos reais que são
perdidos/omitidos. Trata-se de uma pretensa
doença neurológica jamais comprovada;
inexistem critérios diagnósticos claros e precisos
como exige a própria ciência neurológica; o
conceito é vago e abrangente demais
(COLLARES; MOYSÉS, 1994, p. 29).

De acordo com Moysés (2007), a justificativa para a


medicalização e intervenção utilizada pela psiquiatria e profissionais de
saúde, repousa na criação de patologias que nomeiem os desvios que são
ou não considerados normais. Dessa forma, a vida passa a ser controlada
pelo discurso biomédico. A autora discute o fenômeno da naturalização,
a partir de um discurso médico, de comportamentos transformados em
anormalidades:
Nessa década, comprovou-se que a
agressividade era biologicamente determinada
por cérebros disfuncionais, e a solução proposta e
implantada para a violência nos guetos foi a
psicocirurgia, eufemismo para a lobotomia;
também foi provado que a inteligência é
geneticamente determinada, e que os negros são,
naturalmente, inferiores aos brancos; provou-se
ainda que, geneticamente, as mulheres
desenvolvem menos os raciocínios matemático e
abstrato, o que explicaria sua maior dificuldade
de inserção no mercado de trabalho e a ocupação
em cargos de chefia. Isso sem falarmos das
teorias de Lombroso e, em especial, de suas
releituras recentes (MOYSÉS, 2007, p. 165).

3.3.1 Riscos e transtornos mentais na infância

Exemplo dessa naturalização de patologias pode ser visto com a


atual proliferação de diagnósticos psiquiátricos, que dizem respeito a
comportamentos cotidianos. Segundo Moysés (2013), vivemos, hoje,
uma pandemia de transtornos mentais. As novas classificações
120
 

psiquiátricas que estão presentes nos manuais e diagnósticos, rotulam


uma gama gigantesca de pessoas como portadoras de transtorno mental.
Nessa perspectiva, a análise foucaultiana é muito precisa quando
trata da questão do poder que é exercido pela psiquiatria. A criação de
novos diagnósticos que constam nos manuais, e que classificam como
anormais os comportamentos comuns da sociedade, mostram que a
psiquiatria preventiva pode ser entendida como a grande aliada do
processo de medicalização da vida.
O risco e a identificação precoce de indivíduos com a suposta
probabilidade de patologias psiquiátricas é a grande sombra da
psiquiatria moderna. Essa dinâmica tem desencadeado um amplo
processo de medicalização da infância, originado no nascimento da
psiquiatria moderna e perpetuado até os dias de hoje (CAPONI, 2009).
Nesse cenário está se formando uma nova configuração de vida,
com novos hábitos, medidas preventivas e observação de
comportamentos desviantes.

Podemos acrescentar que, com a naturalização de


patologias historicamente criadas e de
comportamentos tornados periculosos, a lógica
da prevenção do risco passa a ser instituída e
move a medicalização. Tendência e propensão
tornam-se palavras de ordem. Pais, mestres e
Estado precisam estar cada vez mais atentos, em
nome do bem-estar geral, a qualquer sinal de que
a doença bate à porta. Mais do que isso, há que
se prevenir tal visita. Para tanto, existe uma
escolha: a escolha da vida saudável, dos hábitos
saudáveis, das medidas preventivas, do
conhecimento/ reconhecimento de condutas
inadequadas (DECOTELLI; BOHERE;
BICALHO, 2013, p. 455).

Além dos critérios diagnósticos construídos no DSM alargarem-


se cada vez mais e trabalharem com a lógica da prevenção e risco, há um
forte interesse das indústrias farmacêuticas por trás dos discursos
médicos. Veremos como o lobby farmacêutico trabalha conjuntamente
na elaboração e comercialização de seus produtos junto à classe médica,
fator que alavanca o processo de medicalização da vida e da infância e a
banalização dos diagnósticos em transtornos mentais.

3.4 A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA E OS INTERESSES NA


MEDICALIZAÇÃO DA VIDA
 
121
 
A produção de saber sobre o sofrimento
psíquico encontra-se associada à produção da
indústria farmacêutica de remédios que
prometem aliviar os sofrimentos existenciais.
O consumo em larga escala dos medicamentos
e o crescimento exponencial da indústria
farmacêutica tornam-se elementos
indissociáveis do exercício do poder médico
apoiado em um saber consolidado ao longo do
século XX (GUARIDO, 2007, p. 158).

Em 1989, a companhia médica norte-americana Woodbine House


publicou um livro audiovisual intitulado Shelley, a tartaruga
hiperativa37. O vídeo apresenta claramente como as manifestações
infantis são capturadas pela indústria farmacêutica. A tartaruguinha
apresenta um comportamento agitado e agressivo e as tartarugas adultas,
de imediato, supõem a existência de um problema médico. Shelley era
vista como um menino mal educado, até o momento que sua mãe o leva
ao neurologista e este encontra a resposta para tudo e o diagnostica
como hiperativo. O restante da história é previsível: a partir das pílulas
brancas, como são chamadas no vídeo, Shelley torna-se uma boa
criança, mais calma, feliz e cheia de amigos.
O que importa aqui é destacar o conteúdo benéfico que o
medicamento ocupa na animação. A ideia de que existem medicamentos
capazes de apaziguar as dores dos sofrimentos inerentes à vida e, com
isso, devolver a paz e a felicidade aos homens é a promessa contida nas
caixinhas dos psicofármacos. A banalização da prescrição de
psicofármacos não pode ser vista desvinculada dos interesses da
indústria farmacêutica. Interesses ávidos por expansão e lucros devem
ser considerados quando nos referimos ao processo de medicalização da
vida.
O poder do mercado farmacêutico é uma realidade indiscutível.
Cada vez mais as corporações mundiais investem na comercialização de
psicofármacos. Utilizando-se do marketing farmacêutico, os
investimentos gastos com pesquisa e desenvolvimento proporcionam um
retorno milionário aos seus fabricantes. O complexo industrial médico,
formado pelas empresas e corporações farmacêuticas é alimentado pela
tecnologia e intervenções farmacêuticas (DAS, 2011).
Os estudos de Anindya Das fazem um retrospecto da história dos
medicamentos desde a criação de remédios caseiros, que faziam uso de
ervas e conhecimentos tradicionais, até o advento da industrialização e

                                                                                                                       
37
O livro Shelley, The Hyperactive Turtle, está disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=tkTdx-U0_NE> e foi traduzido para o espanhol como
Sheli, la tortuga hiperactiva.
122
 

urbanização, que transformou a arte da manipulação caseira em uma


profissão especializada em fabricar e distribuir drogas de acordo com
normas e critérios estabelecidos.
A partir do século XVIII, a Worshipful Society of Apothecaries of
London conquistou o monopólio do fornecimento de medicamentos para
o Exército, Marinha e Colônias da Índia. Progressivamente foram sendo
descobertas vacinas, utilização de morfina e quinina para fabricação de
remédios e uma produção em grande escala permitiu a padronização
desses medicamentos. O século XIX trouxe uma grande inovação com a
descoberta dos compostos sintéticos, e isso possibilitou um crescimento
exponencial da indústria farmacêutica, além de grandes investimentos na
produção de conhecimento médico e intervenções clínicas. Em meados
do século XX, o boom econômico que se seguiu, atraiu investimentos
que possibilitaram a expansão da indústria farmacêutica. Esse contexto
histórico é marcado pela profissionalização e forte especialização da
medicina, bem como o estabelecimento e elaboração das novas práticas
médicas nos hospitais, clínicas e consultórios privados (DAS, 2011).
O crescimento da economia globalizada abre espaço para o
investimento mundial das empresas farmacêuticas, principalmente nos
países desenvolvidos, os chamados BRICS38. O objetivo é o de
aproximar cada vez mais os mercados consumidores. O marketing é o
grande aliado da indústria farmacêutica para aumentar as vendas nos
mercados em que atua (HEKIS et al., 2014).
Os propagandistas e representantes farmacêuticos são as maiores
estratégias de marketing e também o maior elo entre a indústria e os
médicos. A propaganda médica é definida pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) como aquela que engloba “todas as atividades
informativas e de persuasão por parte dos fabricantes e distribuidores,
cujo efeito é o de influenciar a prescrição, fornecimento, compra ou uso
de medicamentos” (NORRIS et al., 2007 apud HEKIS et al., 2014).
Segundo Hekis et al. (2014), o setor farmacêutico investe
fortemente nos medicamentos utilizados para o tratamento de doenças
crônicas, ou seja, aqueles que necessitam de um longo período de
tratamento. O quadro abaixo apresenta algumas técnicas e ações
estratégicas de marketing utilizadas pelo mercado farmacêutico para
venda de seus produtos.

                                                                                                                       
38
De acordo com as informações do Ministério das Relações Exteriores, BRICS é um
acrônimo que identifica cinco economias emergentes e se refere aos países Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul que juntos formam um grupo político de cooperação. Mais
informações, acessar:
<http://www.itamaraty.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3672&ca
tid=159&Itemid=436&lang=pt-BR>.
123
 

Quadro 5 – Técnicas de marketing utilizadas pelo mercado farmacêutico


 

ESTRATÉGIA AÇÃO
Propaganda direta ao Meios de comunicação (mídia impressa, rádio,
consumidor televisão, internet etc.).
Propaganda Médica Visita de propagandistas de medicamentos aos
consultórios médicos, clínicas e hospitais.
Anúncios em Publicações Anúncios pagos em publicações médicas, não
médicas, revistas e jornais.
Matérias na imprensa leiga Matérias escritas por jornalistas veiculando
assuntos de interesse da indústria farmacêutica.
Merchandising Propaganda de modo ostensivo ou subliminar
de um produto (medicamentos). Muito utilizado
em filmes e novelas.
Eventos Médicos Realização de reuniões, simpósios e patrocínio
de congressos médicos.
Fonte: Hekis et al. (2014).

Marcia Angell, ex-editora-chefe do conceituado periódico


científico New England Journal of Medicine e pesquisadora do
Departamento de Medicina Social da Harvard Medical School, trabalha
com temas relacionados à indústria farmacêutica e ao conflito de
interesses nas investigações científicas. Em 2004, Angell publicou o
livro A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos em que
denunciava a manipulação de resultados em ensaios científicos,
condutas antiéticas, conflitos de interesses na classe médica, etc. Esse
livro causou furor na comunidade médico-farmacêutica e repercussão
mundial (PALMA, 2008).
A autora discute o conflito de interesses envolvendo os
laboratórios e a produção científica. Segundo Angell, as indústrias
farmacêuticas são grandes patrocinadoras de pesquisas envolvendo
medicamentos e produtos médico/farmacêuticos, cooptando médicos e
instituições. Ela revela que a política de marketing tem grande poder na
divulgação e venda dos medicamentos, tanto que na Alemanha, Grã-
Bretanha, França e Estados Unidos, existe em média um promotor de
venda para cada sete médicos.
Em um artigo publicado em 2009 no The New York Review of
Books, Marcia Angell faz a seguinte denúncia:

Ninguém sabe o quanto a indústria gasta com


médicos, mas calculo, por seus balanços anuais,
que o gasto das maiores empresas chegam a
dezenas de bilhões de dólares. Por estes meios, a
indústria farmacêutica ganhou enorme controle
124
 

sobre o modo como os médicos avaliam e usam


seus produtos. Seus laços com médicos,
especialmente catedráticos em escolas médicas
de prestígio, afetam os resultados da pesquisa, o
modo de praticar a medicina e até a definição do
que é doença (ANGELL, 2009, web).

Em relação aos testes de novos medicamentos, Angell mostra


que, para que uma nova droga entre no mercado, ela precisa passar por
ensaios clínicos que provem sua segurança e eficácia à FDA (Food and
Drug Administration)39. Atualmente, a maior parte desses estudos são
patrocinados pela indústria farmacêutica.
Segundo Brozozowski (2013), os ensaios clínicos comparam os
resultados do novo medicamento com o medicamento que era utilizado
anteriormente. Caso o medicamento analisado seja novo, e não exista
medicamento anterior para a realização de estudos comparativos, a nova
droga é comparada a um placebo. Ocorre que há uma grande publicação
de resultados positivos ao novo medicamento, justamente porque seus
critérios de cientificidade preenchem os requisitos estabelecidos pela
medicina. Assim, somente os artigos que preenchem esses critérios
acabam sendo publicados, suprimindo aqueles que apresentavam
resultados desfavoráveis, críticas e fragilidades nas hipóteses
trabalhadas. A autora afirma que a indústria farmacêutica participa de
todas as etapas de realização dos testes clínicos de novos medicamentos,
o que evidencia a tendenciosidade na publicação dos estudos e os
interesses para futuras comercializações medicamentosas.
Um fato importante apontado por Angell (2009) é que os
patrocinadores das indústrias demonstram preferência pela realização
dos ensaios clínicos nas escolas médicas, principalmente pelo acesso a
professores-médicos influentes, considerados como formadores de
opinião. São eles que irão publicar livros e artigos em periódicos,
compêndios e manuais que estarão nos painéis consultivos da FDA,
além de determinarem o conteúdo do DSM. Segundo Angell, eles são a
melhor equipe de vendas que a indústria poderia ter. Os estudos são
direcionados pelas empresas, pois:

Como as empresas insistem, como condição para


financiamento, que estejam intimamente

                                                                                                                       
39
FDA é o órgão governamental dos EUA responsável pelo controle dos alimentos (tanto
humano como animal), suplementos alimentares, medicamentos (humano e animal),
cosméticos, equipamentos médicos, materiais biológicos e produtos derivados do sangue
humano.
125
 

envolvidas em todos os aspectos da pesquisa que


patrocinam, elas podem facilmente direcionar o
estudo para que mostrem seus medicamentos
melhores e mais seguros do que são. Antes da
década de 1980, professores pesquisadores
tinham total responsabilidade pela condução dos
trabalhos, mas agora os empregados das
empresas ou seus agentes frequentemente
concebem os estudos, analisam, escrevem os
papers e decidem se e como publicar os
resultados (ANGELL, 2009, web)

A pesquisadora revela que a indústria farmacêutica subsidia as


reuniões da APA e outras conferências psiquiátricas. Cerca de um quinto
do financiamento da APA vem da indústria farmacêutica. Angell afirma
ainda que esse enlace entre a academia e a indústria farmacêutica atinge
seu clímax na psiquiatria. As drogas psicoativas justificam suas
generalizações na teoria de que as condições psiquiátricas resultam de
um desequilíbrio bioquímico, porém essa teoria nunca foi comprovada.
Os principais alvos dos psicoativos são as crianças, já que os pais
“nunca ousariam dizer não quando o médico afirma que seu filho(a) está
doente e recomenda tratamento com drogas” (ANGELL, 2009, web).
A pesquisadora sustenta que estamos no meio de uma epidemia
de doença bipolar em crianças, ultrapassando o TDAH. Ela mostra que
este diagnóstico cresceu 40 vezes entre 1994 e 2003, e o tratamento
inclui a prescrição de múltiplas drogas com efeitos sedativos e
potenciais efeitos colaterais.
Em outro artigo publicado na revista Piauí (2011), Angell analisa
os estudos de Irving Kirsch, psicólogo da Universidade de Hull no Reino
Unido, diretor associado do Programa em Estudos Placebo e professor
de medicina na Harvard Medical School e Beth Israel Deaconess
Medical Center; o renomado jornalista Robert Whitaker, conhecido por
seus artigos e livros denunciando os abusos da indústria farmacêutica e
os malefícios do uso de psicofármacos, e do psiquiatra de Boston,
Daniel Carlat, crítico de terapias a base de medicamentos. Nenhum dos
três concorda com a teoria de que a doença mental é decorrente de um
desequilíbrio químico no cérebro.
Para esses pesquisadores, essa teoria surgiu pouco depois que os
psicotrópicos foram introduzidos no mercado. O primeiro deles, lançado
em 1954 foi o Amplictil (clorpromazina) para acalmar pacientes de
hospitais psiquiátricos. No ano seguinte, foi lançado o Miltown
(meprobamato) indicado para ansiedade em pacientes ambulatoriais e,
em 1957 foi lançado o Marsilid (iproniazida) para tratar a depressão. No
entanto, essas drogas não haviam sido desenvolvidas para tratar doenças
126
 

mentais. Elas foram derivadas de substâncias destinadas ao combate de


infecções e, por acaso, veio a descoberta de que alteravam o estado
mental.
Segundo Angell, foi dessa maneira que surgiu a teoria de que a
causa da doença mental é uma anormalidade da concentração cerebral de
elementos químicos. Drogas que diminuíam os níveis de dopamina no
cérebro serviram de bases para a afirmação de que doenças, como a
esquizofrenia, eram causadas por excesso de dopamina. Por outro lado,
aquelas que aumentavam os níveis de serotonina, embasaram a teoria de
que a depressão é ocasionada pela escassez dessa substância. Assim, em
vez de desenvolver um medicamento para tratar um problema, um
problema foi postulado para se adequar a um medicamento.
Marcia Angell conclui que as drogas psicoativas perturbam os
neurotransmissores, provocando alterações substanciais e de longa
duração na função neural. Citando os estudos de Whitaker, ela disserta
que o uso de psicofármacos provoca um efeito dominó no cérebro. O
uso de um antidepressivo, por exemplo, aumenta os níveis de serotonina
nas sinapses e estimula mudanças compensatórias por meio de um
processo chamado feedback negativo. Em reação aos altos níveis de
serotonina, os neurônios que a secretam liberam menos dela, e os
neurônios pós-sinápticos tornam-se insensíveis a ela. Na verdade, o
cérebro está tentando anular os efeitos da droga. O mesmo efeito em
cadeia acontece com o uso de antipsicóticos. Há um bloqueio de
dopamina, mas os neurônios pré-sinápticos realizam a compensação,
liberando mais dopamina. Após o uso prolongado de substâncias
psicoativas, os esforços de compensação do cérebro começam a falhar e
surgem os efeitos colaterais. Estes, por sua vez, são tratados por outros
medicamentos.
Em seu artigo, Angell mostra que para Daniel Carlat, os
diagnósticos na psiquiatria são subjetivos e expansíveis. Ao contrário
das enfermidades tratadas pela maioria dos outros ramos da medicina, a
psiquiatria não trabalha com sinais ou exames objetivos para as doenças
mentais, já que não existe nenhum dado de laboratório ou descoberta por
ressonância magnética. E é justamente isso que possibilita a expansão
das fronteiras do diagnóstico ou até mesmo a criação de novos
diagnósticos, o que seria impossível, por exemplo, em um ramo como a
cardiologia. Os estudos e declarações de Marcia Angell documentam a
proliferação de diagnósticos, o uso excessivo de medicamentos com
efeitos colaterais devastadores e os conflitos de interesse generalizados.
Outro estudo realizado pelo Sistema Nacional de Gerenciamento
de Produtos Controlados (SNGPC) no portal da Anvisa (Agência
Nacional de Vigilância Sanitária) apresenta a publicação do boletim
informativo no Brasil, nos anos de 2009 a 2011 sobre a prescrição e
127
 

consumo de psicotrópicos, dentre eles o metilfenidato. Os dados


mostram que o TDAH é tido como um dos transtornos neurológicos do
comportamento mais comuns da infância, afetando de 8 a 12% das
crianças no mundo, sendo o motivo mais frequente de consulta nos
serviços de saúde mental envolvendo esses pacientes. De acordo com o
Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos,
em 2007, considerou-se que aproximadamente 9,5% (5,4 milhões) de
crianças e adolescentes americanos de 4 a 17 anos tinham TDAH.
Estimativas de prevalência de TDAH em crianças e adolescentes
bastante discordantes foram encontradas no Brasil, com valores de 0,9%
a 26,8% (ANVISA, 2012).
O boletim analisou o consumo de metilfenidato (Ritalina® e
Concerta®) no Brasil, nos anos de 2009 a 2011. Conclui-se que todas as
capitais brasileiras tiveram uma estimativa de aumento percentual real
no consumo de metilfenidato no período analisado. Em relação aos
gastos com a medicação, o estudo revelou que no ano de 2011, o gasto
direto total estimado das famílias brasileiras com a aquisição de
metilfenidato foi de aproximadamente R$ 28,5 milhões, gerando um
valor de R$ 778,75 por 1.000 crianças com idade entre 6 e 16 anos
(ANVISA, 2012).
Ao final, o boletim conclui que:

O uso do medicamento metilfenidato tem sido


muito difundido nos últimos anos de forma,
inclusive, equivocada, sendo utilizado como
“droga da obediência” e como instrumento de
melhoria do desempenho seja de crianças,
adolescentes ou adultos. Em muitos países, como
os Estados Unidos, o metilfenidato tem sido
largamente utilizado entre adolescentes para
melhorar o desempenho escolar e para moldar as
crianças, afinal, é mais fácil modificá-las que ao
ambiente (ANVISA, 2012).

Diversos estudos estão sendo realizados no mundo inteiro,


denunciando os laços entre a academia e as indústrias farmacêuticas, as
fraudes nas publicações dos ensaios clínicos, os abusos de prescrições
médicas, banalização de diagnósticos, além dos bilhões que são
faturados anualmente pelas indústrias farmacêuticas.
Em 2004, foi realizada uma pesquisa na Agencia Española del
Medicamento, com apoio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) e da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e
Cultura (UNESCO), a respeito dos psicofármacos. O estudo apresentou
algumas análises realizadas por John Newcomer, da Universidade de
128
 

Washington, que mostravam diversos efeitos colaterais provocados pelo


uso indiscriminado de psicofármacos, inclusive óbitos. Porém, esses
dados quase não são revelados pelas indústrias farmacêuticas. O
pesquisador denunciou que o setor farmacêutico investe milhões em
atividades de promoções e vendas, inclusive concedendo brindes e
prêmios aos consumidores. A grande maioria dos médicos aceitam
dinheiro, presentes e convites de viagens patrocinados por laboratórios
e, em troca, receitam seus remédios. Comenta-se, ainda, que os
laboratórios interferem na pauta de eventos e publicações médicas em
troca de patrocínio e que, em eventos científicos, médicos falam
favoravelmente sobre drogas de empresas que estão financiando suas
viagens e estadias.
Essa pesquisa trouxe à tona uma declaração de Roberto Luiz
D’Ávila, presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), que
revelava que a relação entre médicos e a indústria farmacêutica é
promíscua e que muitos se transformam em garotos-propaganda de luxo
dos laboratórios. Além disso, os diagnósticos colocaram os sintomas das
doenças de forma tão genérica, que qualquer indivíduo é facilmente
enquadrado em algum deles.
Podemos concluir, nessa seção, que a indústria farmacêutica
possui grande poder nas pesquisas científicas e que o discurso médico
está ajustado às demandas dos grupos hegemônicos. A lógica da
medicina, que se fundamenta na ideia de que seria preciso primeiro
comprovar uma doença para depois tratá-la, está invertida com a
banalização e proliferação de diagnósticos em transtornos mentais. Este
fenômeno da atualidade obedece mais à lógica do mercado do que a da
própria saúde.
 
129
 

4 A MEDICALIZAÇÃO DO CAMPO EDUCACIONAL

A seleção das escolas procurou contemplar diferentes


metodologias de ensino, pois acreditávamos que em cada uma delas a
relação com o processo de medicalização receberia uma abordagem
diferente. Ao avançarmos nossa pesquisa, percebemos que a
medicalização de comportamentos próprios da infância se apresentava
de forma mais intensa em escolas que contavam com um grande número
de alunos por sala de aula. Escolas que contavam com mais de 30 alunos
em sala de aula apresentavam mais problemas relacionados com a
indisciplina, e os professores demonstravam maiores dificuldades em
aplicar os conteúdos pedagógicos do currículo da instituição. As
diferentes perspectivas pedagógicas não se mostraram suficientes para
que a questão da medicalização recebesse uma abordagem diferenciada.
Até mesmo as escolas com uma metodologia de ensino alternativa
demonstraram que em situações extremas, recorrem a intervenções
biomédicas.
Em todas as escolas que entrevistamos, a equipe docente nos
recebeu muito bem, colaborando com interesse nas entrevistas.
Percebemos que esse tema incomoda todos os profissionais da educação
que entrevistamos e que, em sua maioria, sentem-se perdidos em relação
ao aumento de crianças que fazem uso de psicofármacos, entretanto, por
mais que procurem outros métodos para solucionar os problemas que
relataram a respeito do comportamento dos alunos, o remédio ainda é
um recurso muito utilizado.
Em relação ao espaço físico das escolas selecionadas,
observamos que a maioria dispõe de espaço para brincadeiras e práticas
esportivas, amplas salas de aula bem conservadas e estruturadas; área
verde com gramado, árvores e parquinhos, brinquedos, biblioteca, sala
de computação e laboratório bem equipado. Em duas escolas públicas,
as carteiras se encontram em más condições, grande parte dos
computadores não funciona e, em uma delas, não existe laboratório de
ciências.
O número de alunos por sala de aula é maior nas escolas públicas
quando comparado às de rede privada. Nas escolas de rede privada, o
ensino infantil comporta duas professoras para cada sala de aula e uma
média de 15 alunos por turma; uma professora e uma assistente para
cada sala do ensino fundamental e médio e cerca de 30 alunos por turma.
Já nas escolas de rede pública, as salas de aula possuem uma média de
40 a 45 alunos por turma e somente uma professora em sala de aula e
uma assistente para cada duas turmas. Em uma das escolas de rede
pública, a diretora nos informou que o número de alunos por sala está
acima do que a mesma comportaria.
130
 

Em todas as instituições entrevistadas, o comportamento


desviante é o critério de avaliação. Em apenas uma das instituições, a
abordagem é diferenciada, mesmo assim, a professora me relatou um
caso de um aluno que foi encaminhado para o psiquiatra. A forma de
abordagem que essa instituição utiliza baseia-se na antroposofia com
utilização de florais e homeopatia, além das terapias musicais e
artísticas.
De acordo com a fala de professores, diretores, coordenadores e
psicólogos, a ideia de herança familiar ou genética ainda é fortemente
utilizada como explicação para os comportamentos agressivos, agitados
ou apáticos. A medicação é utilizada como último recurso, porém o
aluno diagnosticado e medicado tende a “acompanhar” as regras da
instituição.
Os profissionais que atuam nessas instituições percebem que o
uso de medicação, inicialmente, ameniza os efeitos dos transtornos, mas
com o tempo, os alunos voltam a apresentar os mesmos comportamentos
que o levaram ao diagnóstico. Nesse momento é realizada a troca de
medicação, ou agregado outro psicofármaco para amenizar os efeitos
colaterais do primeiro medicamento, provocando um efeito dominó:
diagnóstico + medicação + substituição da medicação + medicação.
 
4.1 A ESCOLA NA ERA DA MEDICALIZAÇÃO

[...] queria que todos tivessem a sua altura e,


para tanto, mandava que se deitassem no seu
leito os viajantes detidos. Se ultrapassassem a
medida do leito, cortavam-se lhes as
extremidades, se, pelo contrário, fossem
demasiadamente pequenos, puxavam-no
mediante cordas, até que atingissem o
comprimento exigido (MÉNARD, 1997, p.
188).

De acordo com a mitologia grega, o leito de Procusto tinha o


tamanho exato de um corpo harmônico e ideal, porém, como ninguém se
ajustava a essa imposição, todos estavam condenados (MÉNARD,
1997).
Procusto pode ser representado como símbolo de intolerância do
ser humano para com seu semelhante. Em uma recente palestra sobre a
medicalização da vida e da infância, ministrada em março de 2015 na
UFSC por Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular do
Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fundadora do Fórum
131
 

de Estudos sobre a Medicalização de Crianças e Adolescentes, foi citado


o mito de Procusto. Moysés analisou metaforicamente o mito como
sendo uma tentativa de imposição de padrões em vários campos do
saber. A educação e a própria medicalização da infância, apresentam-se
como um verdadeiro leito de Procusto, infligindo indistintamente um
modelo homogeneizante.
Analisar o processo de medicalização da vida na infância nos faz
adentrar os muros das instituições de ensino, pois é ali, no segundo
berço da criança, que ele se inicia. Muitos estudiosos como Lev
Vygotsky, Jean Piaget, Emilia Ferrero, Paulo Freire entre outros, já
destacaram a importância da escola como sendo o segundo ambiente de
formação social do ser humano capaz de despertar potenciais criativos,
formação de pensamento crítico, curiosidades e interação social.
Para compreendermos como a medicina expandiu suas fronteiras
e atravessou os muros das instituições de ensino, esse capítulo procura
discutir o espaço escolar como o lugar de normatização e
disciplinamento dos comportamentos. Através dos discursos de
profissionais que atuam no campo educacional, analisamos a presença
do saber médico nas escolas como explicação para os problemas que se
manifestam em seu cotidiano e como a medicalização de condutas se
apresenta nesse campo.
Acreditamos ser importante levar em consideração as práticas
pedagógicas adotadas em cada uma das escolas analisadas, já que, ao
menos teoricamente, as diferentes metodologias de ensino influenciam a
conduta dos agentes educacionais e da escola como um todo.
Observamos que, apesar das diferentes metodologias, os professores têm
metas a seguir e um plano pedagógico a desenvolver e, nesse sentido,
percebemos que na maioria dos casos a medicação favorece esse
desenvolvimento, já que permite que o plano pedagógico possa ser
concluído, como afirmou uma coordenadora:

Nós temos todo um trabalho a desenvolver.


Realmente fica muito complicado quando temos
alunos que não se interessam e que não
conseguem acompanhar o ritmo do grupo [...]
eles acabam distraindo até mesmo aqueles que
querem, que estão afim. A gente percebe
nitidamente que sem a medicação, por exemplo,
alguns tipos de comportamentos ficam
completamente exacerbados, em termos de
agitação e de tirar a dinâmica da sala toda, de
desestabilizar, desorganizar [...] fica muito mais
agitado, agressivo. A medicação nesses casos
132
 

ajuda muito a reorganizar a dinâmica da sala e


do próprio aluno. (PAC)

Nas investigações realizadas por Bourdieu (1996), fica claro que


o sentido das ações não pertence ao agente que as realiza, mas ao
sistema completo de relações a que pertencem e é por meio dele que se
realizam. A dinâmica social acontece no interior de um campo onde seus
agentes têm disposições específicas que o autor denominou de habitus40.
O campo é sustentado pelos valores ou formas de capital e a dinâmica
no interior desse campo se dá por intermédio de lutas travadas entre os
agentes que procuram manter ou alterar as relações de força e a maneira
pela qual o capital específico é distribuído. As condutas dos agentes são
determinadas pelas posições que ocupam na estrutura de relações.
Nessa concepção, o sujeito encontra-se inserido na estrutura e ao
mesmo tempo constitui-se a força estruturante de um campo. Entretanto,
para Bourdieu (1983, 1996), a estrutura não é a-histórica e nem estática,
mas dinâmica e fruto de um conjunto de relações históricas. Ela é
produto e produtora de ações; condicionada e condicionante e deriva da
sobreposição das estruturas mentais dos agentes e do mundo dos objetos
constituídos pelos mesmos. As estruturas mentais só são inteligíveis
porque são pensadas a partir das estruturas objetivas, ou do mundo dos
objetos e esse é um movimento que se reproduz continuamente. Sendo
assim, a percepção individual é formada de acordo com as estruturas do
campo em que se encontram. Nessa perspectiva, os agentes educacionais
de nossa pesquisa são sujeitos da estrutura estruturada do campo
educacional ao qual pertencem, e é dentro desse campo que suas
condutas e formas de pensar são constituídas. Seu habitus são
engendrados pela lógica desse campo e trazem em si o conhecimento e
as regras do mesmo, de modo que suas escolhas e ações são
automatizadas por essa mesma lógica e pela posição que ali ocupam.
Avançando nessa direção, nossa investigação nos permitirá
compreender como os agentes educacionais reproduzem a estrutura
desse campo que foi historicamente influenciado por práticas médicas.

4.1.2 Escola, família e sistema disciplinar

Com o paulatino fortalecimento de um moderno


sentimento de infância e de família, a escola ganharia,
desde o século XVII, novo lugar institucional. Havendo
um aumento da procura por parte de populações
urbanas e mercantis, organizam-se redes escolares,
ainda que, muitas vezes, sob a égide clerical: a família

                                                                                                                       
40
O conceito de habitus de Bourdieu será melhor analisado mais adiante nesta pesquisa.
133
 
delegara à escola a parcela de sua responsabilidade
educativa concernente a uma dada cultura letrada – o
ler, o escrever, e o contar. O território da escola é o
primeiro espaço seu que a criança tem. A escola é o
tempo da juventude. Na escola, as famílias deixam de
ter o protagonismo, e a criança passará a lidar com um
outro repertório, com outros códigos e signos de saber
e de poder. A escola, em certa medida, retrata e
recompõe a vida social. Por outro lado, a escola cria e
produz essa mesma vida social mediante o descortinar
de símbolos e de valores que são, a cada nova geração,
recompostos e reatualizados. Se a escola, efetivamente,
reflete a vida coletiva, essa mesma sociabilidade
poderá ser sempre alterada por decisão do conjunto de
seus atores sociais. A escola exerce, pois, no ser
humano, o papel de adesão a valores que ele mesmo se
impõe. A sociedade escolhe seu repertório e seu script;
a escola talvez ensaie a peça (BOTO, 2002, p. 12).

Philippe Ariès (2011) realizou um brilhante estudo sobre as


mudanças históricas ocorridas na passagem do medievo para a
modernidade que permitiram a constituição de um sentimento de
infância. Ariès se debruça sobre os estudos da família e da infância a
partir de fontes como diários e dossiês de família, registros de batismo,
inscrições em túmulos e, principalmente, a iconografia religiosa e
leiga. Com extremo detalhamento, o autor nos mostra a fragilidade e
desvalorização que as crianças estavam submetidas. Na sociedade
medieval não havia espaço para infância, “a passagem da criança pela
família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para
que a família tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a
sensibilidade, razão pela qual a velha sociedade tradicional mal
vislumbrava a criança e menos ainda o adolescente” (ARIÈS, 2011, p.
10).
Entretanto, a invisibilidade das crianças na sociedade medieval
se modifica de forma definitiva e imperativa a partir do século XVII.
Segundo Ariès, essa modificação pode ser compreendida de duas
maneiras: a escola substituiu a aprendizagem como meio de educação
e, nesse mesmo período, surgiu um afeto familiar entre pais e filhos.
Antes disso, as crianças recebiam atendimento precário e havia um
grande índice de mortalidade infantil devido ao grande risco de morte
pós-natal e às péssimas condições de saúde e higiene da população.
Em relação à escola, o autor nos mostra que esta surge como um
recurso para separar as crianças dos adultos em consequência do
grande movimento de moralização dos homens promovidos pelos
reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja, às Leis e ao
Estado. Já, sobre o surgimento do afeto familiar, este emerge devido à
134
 

importância que é agora atribuída à escola. Antes, os filhos eram


estabelecidos em função dos bens e da honra, com essa mudança, os
pais passam a se interessar pelos estudos de seus filhos e os
acompanhar em seu desenvolvimento, fato que, até então não era
conhecido. A partir de então, a família passa a se organizar em torno
da própria criança, retirando-lhe da invisibilidade.
No período entre a Idade Média e a Revolução Francesa, o
reconhecimento da infância era tão inexistente que se pode afirmar que
“essa consciência não existia. Por essa razão, assim que a criança tinha
condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua
ama, ela ingressava na sociedade dos adultos, e não se distinguia mais
destes” (ARIÈS, 1981, p. 99).
A partir do momento que a constituição da família se configura
como um lugar privado, o lugar da formação passa a ser partilhado pela
família e pela escola, que se desloca para um meio igualmente isolado. É
justamente nesse contexto que as características das crianças irão se
distinguir dos adultos, originando as representações sociais e práticas de
distinção. As mentalidades, de acordo com Ariès passam a contemplar a
criança em si, não mais como um adulto incompleto e não desenvolvido.
Para Norbert Elias (1998), o processo de descoberta da infância é
longo e ainda não se findou. Não se trata apenas de descobrir que as
crianças não são mini adultos, mas que atingem a fase adulta por meio
de um processo civilizador que está intrinsecamente ligado aos
respectivos modelos sociais de civilização.41 Apesar dos enormes
esforços rumo a uma maior compreensão dessa etapa da vida, ainda não
sabemos como lidar com crianças em sociedades tão complexas como as
nossas, que estão alicerçadas na previsão e no autocontrole. A
problemática a respeito do melhor encaminhamento de crianças no
processo civilizador individual até sua fase adulta, sem que suas
possibilidades de gozo e alegria se deteriorem ainda está fortemente
presente.

                                                                                                                       
41
Elias critica as análises realizadas por Ariès, pois compreende a separação das crianças
do mundo dos adultos como uma transformação que se deu na própria estrutura social que
aconteceu desde a Idade Média. Na concepção de Elias, quando Ariès lamenta o fato de
que nas sociedades modernas, as crianças já não são mais vistas como mini-adultos, ele
demonstra uma falta de compreensão justamente dessas mudanças estruturais. Para Elias,
os modelos atuais de educação escolar oferecidos às crianças e adolescentes, são
questionáveis quanto à sua eficácia preparatória para a vida concreta. Entretanto, para
poder se sustentar, enquanto adulto, numa sociedade desse tipo, Elias assegura a
incontestável necessidade de uma capacidade diferenciada de autocontrole e de regulação
afetiva. Essas capacidades são desenvolvidas ao longo de muitos anos de aprendizagem e
estão imbricadas num prolongamento da vida individual.
135
 

Na modernidade, a criança é alocada a um universo à parte dos


adultos. O quarto, a escola e toda a sua vida estudantil adquirem certo
distanciamento dos adultos. Essas mudanças foram analisadas por Ariès,
inclusive no que diz respeito à escola que, segundo o autor, está
encarregada da tarefa de formação para a vida:

No decorrer desse processo, se reconhece que a


criança não está preparada para enfrentar a vida,
que é preciso submetê-la a um regime especial, a
uma quarentena, antes de deixá-la ir viver com os
adultos. Esse interesse novo pela educação se
implantará, pouco a pouco, no núcleo da
sociedade e a transformará completamente. A
família deixa de ser, unicamente, uma instituição
de interesse privado para transmissão de bens e
sobrenomes e assume uma função moral e espi-
ritual, será a encarregada de formar os corpos e
as almas. Os pais já não se contentam em gerar
filhos, com cuidar de alguns deles,
desinteressando-se dos outros. A moral de uma
época os exige a dar a todos os seus filhos, e não
só ao maior, inclusive ao final do século XVII às
filhas, uma formação para vida. Supostamente, a
escola é a encarregada por essa preparação.
Substitui-se a aprendizagem tradicional pela
escola, uma escola transformada, instrumento de
disciplina severa, protegida pela justiça e pela
polícia (ARIÈS, 1981, p. 277).

De acordo com Ariès, a escola encerrou a infância em um regime


disciplinar cada vez mais restrito, conduzindo à reclusão do internato
nos séculos XVIII e XIX. A criança foi privada da liberdade que outrora
gozava entre os adultos.
A introdução da criança nesse novo universo não pode ser vista
como uma simples passagem de uma esfera privada para outra, agora
pública. Ao entrar pela primeira vez numa instituição escolar, a criança
se depara com um novo universo, distinto daquele que ela conhecia até
então. Seu aprendizado, muito além da alfabetização e da contagem de
números, abrange regras de convívio, posturas comportamentais e
limites aos quais ela terá que se moldar. Independente da metodologia de
ensino adotada pela instituição, o contexto educacional exerce o controle
sobre o corpo e o comportamento das crianças através de padrões de
normalidade ou do que é considerado aceitável de acordo com as normas
que foram estabelecidas dentro daquela instituição de ensino. Diversas
regras de comportamento são exigidas das crianças durante a execução
136
 

das atividades, dos jogos e brincadeiras, como a permanência nos


lugares pré-determinados pelos professores, a atenção constante durante
as explicações e realização de atividades, a organização, a paciência
entre outros quesitos. O não cumprimento dessas exigências tem levado
professores e familiares a interpretar tais atitudes como “anormais”.
Esses e outros fatores, como baixo rendimento escolar,
agressividade, timidez e etc., impulsionam o fenômeno de classificação
e medicalização de um número cada vez maior de crianças a ser
diagnosticado com diversos transtornos mentais, principalmente o
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), que está em
voga ultimamente.
Nesse sentido, a disciplina é o dispositivo utilizado para manter o
controle e a norma. Através dela, os indivíduos são colocados em uma
forma ou molde criado pela sociedade. Esse espaço não possibilita
possíveis desvios que podem acontecer e, quando acontecem, como no
leito de Procusto, a medida adotada atualmente para a volta à
normalidade é a medicalização. Como afirma Foucault:

[...] a disciplina estabelece os procedimentos de


adestramento progressivo e de controle
permanente e, enfim, a partir daí, estabelece a
demarcação entre os que serão considerados
inaptos, incapazes e os outros. Ou seja, é a partir
daí que se faz a demarcação entre o normal e o
anormal. A normalização disciplinar consiste em
primeiro colocar um modelo, um modelo ótimo
que é construído em função de certo resultado, e
a operação de normalização disciplinar consiste
em procurar tornar as pessoas, os gestos, os atos,
conformes a esse modelo, sendo normal
precisamente quem é capaz de se conformar a
essa norma e o anormal quem não é capaz
(FOUCAULT, 2008b, p. 75).

No âmbito escolar, foram sendo instituídas descrições,


mensurações e normatizações com objetivo de identificar aqueles que
divergiam das normas estabelecidas ou, dito de outro modo, não cabiam
na forma. De acordo com Cirino (2001, p. 19),

a proposta educativa – que faz com que a escola


ganhe a importância de continuação do lar – visa
a produzir ‘adultos convenientes’ aos ideais da
sociedade que eles constituem. O projeto é claro:
trata-se de harmonizar a criança para preparar o
adulto.
137
 

O autor ressalta que o estabelecimento de regras e normas


possibilitou uma estreita relação entre educação e saúde, e todos os
profissionais que atuam na escolarização orientam-se para o treinamento
dos corpos dos alunos.
Como observou Foucault (2008b), o treinamento dos corpos é
efetivado por intermédio da disciplina. Para o autor, a disciplina
normaliza. Ela “analisa, decompõe os indivíduos, os lugares, os tempos,
os gestos, os atos, as operações, Ela os decompõe em elementos que são
suficientes para percebê-los, de um lado, e modificá-los, de outro”
(FOUCAULT, 2008b, p. 74).
Quando falamos em medicalização da vida e da infância, estamos
nos dirigindo para o controle e normalização não só das crianças, mas
também da família. Nesse ponto, acreditamos ser necessário dissertar
sobre a instituição familiar, para compreendermos que ela é uma peça
fundamental ao sistema disciplinar.
De acordo com Caponi (2000) o núcleo familiar pode ser
considerado um campo de ações da biopolítica. A família burguesa,
nuclear e reduzida, surgiu no final do século XVIII. Esse período é
marcado pelo início da preocupação com a saúde, a longevidade, a
procriação e a sexualidade. A autora afirma que os objetivos da família
passam a centrar-se na saúde e higiene tanto do corpo de seus
integrantes, como para com o espaço ocupado por eles. A partir de
então, a família é vista como o principal núcleo da sociedade, berço da
educação e da assistência; da segurança e da felicidade de todos os seus
membros.
E será nesse núcleo que a concepção de infância terá seu berço.
Assim como Ariès historicizou a origem do sentimento de infância,
Conrad e Schneider (1992), também afirmaram que durante dois séculos
após a Idade Média, as crianças foram ignoradas e exploradas. Elas
interagiam e trabalhavam juntamente com os adultos e não havia
dispêndio de energia e nem de cuidados para salvaguardar o universo
infantil. A vida de dois terços da população não ultrapassavam os 20
anos, e as crianças que sobreviviam, muito cedo ingressavam no
universo adulto do trabalho.
A descoberta da infância será a linha divisória das crianças do
mundo adulto. Data dos séculos XVI e XVII os primeiros vestígios de
cuidados especiais para com a criança como garantia de um ingresso
saudável na vida adulta. Nesse período, a criança passou a ser vista
como um ser inocente e dependente, e para que o seu desenvolvimento
fosse saudável, sua educação deveria contemplar uma constante
supervisão, um bom tratamento e rigorosa disciplina desde o início da
vida (Conrad e Schneider, 1992).
138
 

A instituição familiar do século XIX, responsável pela educação


e disciplinarização das crianças, exercia seu poder comparativamente ao
poder do soberano. A família seria o sistema de soberania em ação na
sociedade, e os pais, mais precisamente a figura do pai, era quem exercia
o controle e disciplina no seio familiar. As relações de dominação,
pertencimento e vínculos de suserania que estavam presentes na
soberania, foram transferidas para relação homem-mulher e pais-filhos
através do código civil. “A família não é um resíduo, um vestígio de
soberania, ela é, ao contrário, parece-me, uma peça essencial, e cada vez
mais essencial ao sistema disciplinar” (FOUCAULT, 2006, p. 100).
Foucault (2006) dirá que a família possibilita o funcionamento de
todos os sistemas disciplinares. A família é o sistema de obrigações e
compromissos agindo e impulsionando os indivíduos de seu núcleo para
a fixação no sistema disciplinar. Os exemplos dados por Foucault nos
mostram que é através da família que a criança se vê na obrigação de
ingressar na escola, e quando adulto, no serviço militar, no trabalho, etc.
“Ela é o ponto de intercâmbio, de junção que garante a passagem de um
sistema disciplinar ao outro, de um dispositivo a outro” (FOUCAULT,
2006, p. 101).
Portanto, a família será o elemento de garantia de funcionamento
do sistema disciplinar. Quando esse elemento se enfraquece, surgem
outros dispositivos disciplinares para substituí-lo e agirem de forma
quase pseudo-familiar. Esses substitutos nascem no seio da psiquiatria, e
Foucault (2006) os denomina de função-psi. Eles seriam: a função
psiquiátrica, psicopatológica, psicossociológica, etc. Seu objetivo é
justamente restabelecer o indivíduo que escapou à soberania familiar. O
enfraquecimento da família possibilitou o surgimento de orfanatos e
casas para crianças delinquentes, e os indivíduos que para lá eram
mandados, passavam por um processo de adestramento e
disciplinarização psiquiátrica, para, então, serem refamiliarizados.
Entretanto, o autor nos mostra que o campo de atuação da função-psi
não se restringiu somente ao hospital psiquiátrico. No início do século
XX, a função-psi estendeu-se a todos os sistemas disciplinares, como
escola, exército, prisão, etc.

Cada vez que um indivíduo era incapaz de seguir


a disciplina escolar ou a disciplina da oficina, ou
a do exército, no limite a disciplina da prisão, a
função-psi intervinha. E intervinha com um
discurso no qual ela atribuía à lacuna, ao
enfraquecimento da família, o caráter
indisciplinável do indivíduo [...] Essa função-psi
foi o discurso e a instituição de todos os
esquemas de individualização, de normalização,
139
 

de sujeição dos indivíduos no interior dos


sistemas disciplinares (FOUCAULT, 2006, p.
106).

Sendo assim, a incumbência de cuidados para com as crianças


ficou a cargo dos pais, da escola e dos médicos. A atuação da função-psi
no interior da disciplina, principalmente da psiquiatria e da
psicopedagogia na disciplina escolar, forma “uma espécie de par em
relação à família” (FOUCAULT, 2006, p. 106). Essas duas funções
atuantes na esfera da educação têm como referencial a família, ou seja,
fazem o próprio discurso da família. Segundo o autor, houve uma
transferência do modelo familiar para dentro desses sistemas
disciplinares, como a escola.
Se a família soberana não buscava encontrar em seu seio os
indivíduos considerados anormais ou desviantes, a família
disciplinarizada irá procurar estabelecer as divisões entre eles. Caberá à
família, através de técnicas disciplinares, controlar em seu interior a
normalidade e patologia. De acordo com Foucault (2006), o olhar
familiar tornou-se o olhar psiquiátrico e, a partir do momento que a
família desempenha a instância que decide se o comportamento de um
de seus membros é normal ou patológico, os estabelecimentos
disciplinares, como a escola ou os próprios consultórios psiquiátricos,
irão capturá-los e se empenharão em normalizá-los. Como afirma o
autor:

Em linhas gerais, a psiquiatria diz: deixem vir a


mim as criancinhas loucas. Ou: não se é jamais
demasiado jovem para ser louco. Ou ainda: não
esperem ficarem maiores ou adultos para serem
loucos. E isso tudo se traduz por essas
instituições ao mesmo tempo de vigilância, de
detecção, de enquadramento, de terapêuticas
infantis, que vocês veem desenvolver-se no fim
do século XIX (FOUCAULT, 2006, p. 155).

Surge o que Foucault chama de psicologização da criança dentro


da própria família burguesa. Seu comportamento, caráter e sexualidade
passam a ser constantemente vigiados, possibilitando, assim, a
introdução dos mecanismos de controle psiquiátrico nas famílias,
transformando a criança em objeto de ingerência desse saber.
A instituição escolar, nesse contexto, é o local onde a norma e a
disciplina se fazem presentes. Cabe à família preparar as crianças para a
entrada na vida adulta, e a escola se incumbe de prepará-las para a
sociedade. Porém, como apontou Foucault (2008b), o bom
140
 

funcionamento da sociedade depende de uma população saudável. Logo,


qualquer desvio comportamental significa uma ameaça. A criança que
manifesta um comportamento indesejado ou tido como anormal, é
ajustada aos moldes disciplinares da instituição. Segundo Guarido
(2007), a estratégia disciplinar que exercerá essa função é o próprio
diagnóstico psiquiátrico. Após o enquadramento diagnóstico, a criança
entra para o campo das explicações biológicas e passa a fazer uso do
dispositivo médico-disciplinar em forma de medicamento, reintegrando-
se ao grupo com o comportamento desejado. Ou, como analisou
Foucault, a criança é refamiliarizada.
Norbert Elias (1998) discute as dificuldades que se apresentam
nesse processo que ele denominou de civilizador. O processo de
civilização de toda a criança para atingir um alto grau de autorregulação
acarretou num crescente isolamento do indivíduo, principalmente no
seio da família. A organização social de moradia, o compartilhamento
dos leitos e dormitórios, a nudez noturna, o pudor dos contatos físicos
muito próximos, enfim, a domesticação das necessidades naturais,
transformou-se nos estados industrializados mais desenvolvidos,
chegando ao extremo do isolamento dos indivíduos para a realização de
suas necessidades.
Para o autor, a época moderna pode ser definida pela
individualização, em que o desenvolvimento social seguiu na mesma
direção, levando as famílias a criarem um espaço reservado para as
crianças. Elias aponta alguns problemas decorrentes dessa separação e
criação de um universo à parte para as crianças. O isolamento precoce e
a restrição de contato físico podem ser os responsáveis pelo alto grau de
individualização que hoje se espera dos adultos nas sociedades
industriais. Entretanto, “as crianças têm uma forte necessidade animal de
contato corporal com outras pessoas que, no processo de crescimento,
toma um tom mais sexual” (ELIAS, 1998, p. 482).
Ainda para o autor, a baixa compreensão de que os problemas
apresentados pelas crianças possuem raízes, por um lado, na interação de
um processo biológico de maturação, e por outro de um processo social
de civilização de ajustamento, levam à crença de que tais problemas são
de ordem biológica ou, nas palavras de Elias (1998, p. 483) “como fatos
naturais imutáveis”.
Dessa maneira, Elias mostra que numa sociedade com essa
estrutura, os indivíduos necessitam de uma medida muito alta de
previsão e contenção dos impulsos momentâneos, de seus afetos e
pulsões para o alcance de seus objetivos a longo prazo. Porém, esse
controle não é dado pela natureza, antes, ele se desenvolve durante o
crescimento da própria criança a partir de sua interação com outros
indivíduos. O processo civilizador individual trata de regular os afetos e
141
 

pulsões de acordo com as prescrições da sociedade que os desenvolveu.


Assim, “da criança incivilizada vai se fazendo um adulto mais ou menos
civilizado” (ELIAS, 1998, p. 483).
O processo civilizador apontado por Elias, não foi um processo
planejado conscientemente. Ele se relaciona com mudanças sociais mais
amplas e uma delas diz respeito ao emprego da violência física como
forma de repressão das crianças por parte de seus pais. A educação
relativamente livre de violência não significa um relaxamento do
autocontrole individual. Para Elias, quanto mais complexas forem as
sociedades, mais rigorosamente organizadas e mais pacificadas, maiores
serão as exigências de autocontrole e autorregulação para com os
indivíduos:

Um dos inúmeros exemplos da complexidade do


movimento civilizatório de nossos dias é o fato
de que a informalização da relação pais-filhos e o
relaxamento dos tabus tradicionais no trato entre
as gerações vão de encontro com o aumento do
tabu vinculado à violência nessa relação,
exigindo, assim, um maior grau de autocontrole
de ambas as partes e, talvez, até mesmo,
forçando-o. (ELIAS, 1998, p. 489)

A família moderna, ressalta Elias, não deve ser vista como uma
figuração autônoma dentro de uma figuração mais ampla da sociedade-
Estado, já que esta última assume cada vez mais funções que antes
recaíam sobre a família. Nesse contexto, Elias mostra que a família
cedeu diversas funções para outras instituições, inclusive para o Estado.
Nos dias de hoje, as principais funções assumidas pelas famílias
encontram-se no campo afetivo e emocional. A família seria o lugar
social confiável, o porto de ancoragem emocional dos indivíduos.
Entretanto, Elias assegura que mesmo com o conhecimento que se tem
hoje a respeito da infância e de suas necessidades distintas em relação ao
mundo dos adultos, não se pode afirmar que os pais compreenderam a
natureza desse processo civilizador. Esse também seria um dos motivos
que levam tantos pais e instituições escolares a buscarem ajuda médica
para problemas que estão intrinsecamente ligados ao processo
civilizador? A individualização é um dos efeitos de tal processo, e Elias
acredita que as crianças que não se tornam independentes no momento
esperado são estigmatizadas no interior dessas sociedades. De acordo
com o autor, as famílias vêm experimentando profundas transformações
que são decorrentes do processo social não planejado que se encontra
repleto de problemas e, até o momento, sem soluções aparentes.
142
 

Nesse sentido, podemos traçar um paralelo com as ideias de Elias


e o processo de medicalização da vida e da infância que a sociedade
moderna vivencia como em nenhum outro período da história. A
medicalização da vida pode ser apontada como mais um dos problemas
decorrentes do processo social não planejado e cujas soluções são
delegadas, não mais ao Estado ou às famílias, mas ao campo da
psiquiatria. A dominação do modelo médico está fortemente presente em
muitas das escolas que pesquisamos, com exceção das escolas que
adotam a pedagogia Waldorf. Percebe-se que não há respostas para os
problemas que as crianças apresentam, e também não se tem clareza se o
que as crianças apresentam pode ser chamado de problema. Nesse
cenário, o que se encaixa com mais facilidade é a explicação médica
para os comportamentos inapropriados para aquela instituição. Por outro
lado, as famílias também se encontram perdidas sobre qual é o melhor
caminho a ser trilhado quando seus filhos não agem conforme o
esperado. É o que nos apresentaram essas duas professoras de
instituições distintas:

A gente sabe que ficar em uma sala de aula por 5


e até 8 horas é desgastante. Todo dia é
desgastante. Mas esse é o modelo de educação
que nós temos. Mas tem crianças que se agitam
demais e atrapalham todo o resto da classe. Não
é só porque é desgastante, a gente vê que tem
alguma coisa por trás daquilo. É uma agitação,
uma aceleração fora do comum. E não podemos
negar que quando tomam medicamento
melhoram do dia pra noite. (PE2)

Em relação à família, a fala dessa professora traduz o sentimento


de angústia que muitos pais enfrentam:

Os pais nos procuram desesperados, sem saber


mais o que fazer. Nós temos duas reuniões por
ano com os pais, mas quando existe algum
problema sério, nós marcamos reuniões fora da
agenda. Tem pais que estão tão perdidos e
desesperados que marcam mais de 4 reuniões
por ano. Eles chegam e falam que o filho não
obedece, grita, se joga no chão, não quer ficar
sentado pra comer [...] Mas são crianças de 8
anos, de 7 anos. Não adianta falar que isso faz
parte da idade, parece que eles não acreditam.
Porque o filho da amiga, o priminho não se
comporta assim, então tem alguma coisa errada
143
 

com o filho deles. Na minha sala tem uma aluna


que estava muito isolada, não se juntava com as
outras crianças. A mãe estava muito preocupada
com isso e levou numa psicóloga. A psicóloga
mandou a mãe procurar um neuropediatra e hoje
essa aluna toma antidepressivo. Ela continua do
mesmo jeito, continua sem procurar os amigos.
Será que ela tinha mesmo depressão? Não sei.
(PB3)

De acordo com Kamers (2013), as instâncias que cuidam do


desenvolvimento das crianças, como no caso da instituição escolar, ao se
depararem com as dificuldades de aprendizagem ou indisciplina da
criança, recorrem à família em busca de uma possível intervenção. Se
esta família apresenta-se incapaz de ajudá-la ou sua ajuda não for
considerada suficiente, a própria escola encaminha a criança ao
neurologista ou ao psiquiatra que identifica o transtorno e, na maioria
dos casos, prescreve tratamento farmacológico. A professora dessa
instituição pública confirma isso:

A gente se sente muito sozinho. O governo faz


política, ele faz discurso muito bom, né? Mas na
prática mesmo, é como se a gente tivesse
obrigação de educar essas crianças, de ser a
família delas [...] Na verdade a gente não
consegue educar como seria uma família, mas a
gente percebe, a gente tenta, mas a base é dada
pela família, entende? Então, quando não é
dada, aqui na escola as crianças vão fazer
aquilo que fazem em casa. Quando a coisa foge
do controle a gente encaminha pro psicólogo. A
gente tenta sempre o psicólogo primeiro, mas ele
é quem decide, ele é quem sabe se dá pra
resolver ali ou se precisa do neuro. (PG1)

Como a escola se tornou essa ponte de acesso para o processo de


medicalização? Para responder essa questão, teremos que examinar a
história dessa instituição e de que maneira aconteceu seu relacionamento
com a psiquiatria moderna. Nosso objetivo é o de tentar entender como
o processo de medicalização adentrou o campo educacional utilizando,
nos dias de hoje, o medicamento como instrumento de solução para os
problemas que se manifestam no cotidiano escolar e como a
medicalização se apresenta nesse campo.
144
 

4.1.3 A instituição escolar

Dizer, pois, que a educação é um fenômeno


próprio dos seres humanos significa afirmar
que ela é, ao mesmo tempo, uma exigência do
e para o processo de trabalho, bem como é,
ela própria, um processo de trabalho
(SAVIANI, 2000, p. 15).

A medicalização da vida e da infância expandiu suas fronteiras


desde a segunda metade do século XX, a partir do desenvolvimento das
pesquisas em biologia e neurologia. Desde então, evidenciou-se a
biologização dos fenômenos sociais, fato que repercutiu nas
experiências escolares. Ao reduzir questões que deveriam ser analisadas
em conjunto com diversas disciplinas, como sociologia, antropologia,
economia, ciências políticas, história, entre outras, ao campo da
medicina, a escola, em vez de enxergar o aluno a partir da sua história e
de sua singularidade, está sendo uma ponte de acesso ao processo de
medicalização de crianças e adolescentes consideradas desviantes.
A fim de compreendermos como aconteceu o processo de
envolvimento da educação com a psiquiatria, buscaremos primeiramente
definir algumas características desse estabelecimento social e,
posteriormente alguns aspectos dessa prática educacional de acordo com
autores que se dedicaram ao estudo de suas bases e fundamentos.
Como todas as instituições, a escola pode ser definida como um
local que congrega um grande número de indivíduos e possui regras que
administram formalmente suas atividades. Goffman (2015) define toda
instituição como um espaço com tendências de fechamento e, na
sociedade ocidental, algumas instituições são mais fechadas que outras.
O fechamento é simbolizado pela dificuldade de relação social com o
mundo externo e por algumas proibições que, no caso das instituições
totais42, privam os indivíduos de contato com o mundo fora de suas
paredes e mantêm uma limitada mobilidade social entre os dois estratos,
equipe dirigente e internados. O autor enumera as instituições em cinco
agrupamentos: as instituições destinadas a cuidar de pessoas incapazes e
inofensivas, como os asilos; as instituições que cuidam de pessoas
incapazes de cuidar de si mesmas e que representam uma ameaça à
sociedade, como os hospitais e hospícios; aquelas destinadas a cuidar de
pessoas que oferecem perigo à sociedade, como as cadeias e

                                                                                                                       
42
Goffman (2015) define como instituições totais aquelas que mantêm os indivíduos em
confinamento, como as prisões, manicômios, conventos e internatos. Com proibições de
saídas e contato com o mundo externo e todas, ou a grande maioria das atividades dos
indivíduos, são realizadas num mesmo local e sob a mesma autoridade.
145
 

penitenciárias; as instituições que realizam alguma tarefa de trabalho,


como os quartéis, os navios, as escolas e, por último, as instituições que
congregam aqueles que desejam se isolar do mundo, como os mosteiros,
conventos e abadias.
Goffman ressalta que as características das instituições são
semelhantes, mesmo naquelas que ele denomina de instituições totais, o
que as diferencia é o grau de rigidez e autoritarismo com que suas
normas são impostas. No entanto, todas as instituições apresentam
atividades de determinado tipo, dentre elas, aquelas que são obrigatórias;
todas as instituições possuem regras de comportamento, horários pré-
definidos, espaços para refeições em conjunto, recursos de distração
para seus participantes, etc. Essas características são encontradas nas
instituições escolares e, como afirmou Goffman (2015, p. 16), “toda
instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes
e lhes dá algo de um mundo; em resumo, toda instituição tem tendências
de fechamento".
No interior das instituições escolares que Goffman caracteriza
como estabelecimento “fechado”, encontramos regras de convívio,
horários para a realização de atividades, espaços apropriados para aulas,
esportes, recreação, reuniões, biblioteca, sala da diretoria, dentre outros.
Independente da metodologia de ensino adotada pela instituição, o
caráter normativo se faz presente no cotidiano escolar em todas as suas
atividades, relação social com a equipe dirigente e entre os alunos.
Dentre as escolas que selecionamos para a realização deste estudo,
percebemos que as que adotam uma metodologia mais tradicional e,
principalmente, nas escolas grandes, com cerca de 40 ou 45 alunos por
sala, as normas tendem a ser mais rígidas e os comportamentos
considerados inapropriados, mais severamente punidos ou, quando a
escola e a família “perdem o controle”, o encaminhamento ao psiquiatra
rapidamente se faz presente. Nas instituições com proposta pedagógica
mais alternativa ou diferenciada e com um número reduzido de alunos,
cerca de 20 por sala, há rigidez nas normas, porém observamos uma
tendência em interligar os comportamentos inapropriados aos eventos de
vida extraescolar, como familiares e/ou histórico de vida. Em último
caso, o encaminhamento ao psiquiatra é efetuado pela instituição
concomitante com a família. Podemos confirmar esses dados na fala de
um diretor de uma escola particular que trabalha com cerca de 30 alunos
por sala no ensino fundamental e médio, e 15 a 20 alunos por sala no
ensino infantil:

Todas as escolas grandes têm uma metodologia


mais tradicional, na verdade, assim, muitas vezes
a gente tem que passar pelo tradicional. A gente
146
 

sendo uma escola com uma metodologia


diferenciada, na verdade a gente passa muitas
vezes pelo tradicional. E quando a gente recebe
essas crianças aí que isso vem muito à tona. Mas
o que acontece? Quando vêm de escolas muito
grandes, quase todos chegam tomando
medicamento, por quê? Porque, na verdade, o
que importa pra escola não é a questão
cognitiva, o que importa é a comportamental.
Então, se tu coloca uma criança dentro de uma
sala e ela tem um comportamento, um distúrbio,
um desequilíbrio, então é mais fácil dar o
medicamento, deixar ela num canto e pronto.
Porque a escola não tá preocupada. Porque a lei
ampara isso, a lei dá validade do ciclo que ele tá
estudando. Uma criança dessa não passa por
uma reprovação assim, na questão legal. Porque
ela tem o amparo do diagnóstico profissional,
porque se tá tomando medicamento,
normalmente tem um profissional que deu o
diagnóstico. Então, tendo o diagnóstico eu posso
aprovar ela em qualquer série, desde que eu faça
as devidas adequações e muitas vezes ninguém
fica sabendo. Então eu posso dizer ‘ah, deixo ela
num canto e pronto, acabou’. O que a escola
particular ganha? Ganha matrícula. Então, isso
acontece muito, então assim, as escolas grandes
não tem tempo pra gerenciar isso. Quando um
pai vai matricular, eles colocam ‘é desse jeito e
desse, queres?’. É assim, se não a escola não
tem como cuidar de todo o resto. Imagina 40
alunos numa sala com metade deles com
transtornos, distúrbios, como a professora dá
conta de ensinar e educar? Só com remédio. É
assim que elas funcionam, em massa. (PC1)

A extensão do processo de medicalização da vida que adentrou os


muros das escolas possibilitou ampliar o próprio uso da abordagem
médica. O espaço escolar, enquanto instância de incentivo e promoção
de ações, visando à construção de conhecimento para a formação de
sujeitos críticos e participativos, na contemporaneidade tornou-se uma
importante instância que tem priorizado a ação de homogeneizar,
adequando os indivíduos às concepções e comportamentos coletivos.
Esse processo passa a ser tomado pelas práticas e discursos médicos.
147
 

Uma breve análise a respeito da reorganização do quadro das


instituições educacionais no Brasil e da prática educacional que se
instituiu será útil para a compreensão do nosso objeto de estudo.
Segundo Meinerz e Caregnato (2011, p. 44), a escola é:

[...] uma invenção da humanidade, uma


instituição social, histórica e civilizatória com
pretensão universal, e deve ser compreendida
através das especificidades de cada contexto em
que se desenvolve também como prática cultural.
Isso quer dizer que ela também é reinventada
socialmente para atender às demandas da
dinamicidade que corresponde à vida em
sociedade.

Os processos de escolarização atuais respondem às


transformações das sociedades contemporâneas que são decorrentes das
demandas da industrialização e da urbanização, e podem ser alterados de
acordo com a aceleração desses processos e também pelas ações dos
sujeitos sociais sobre eles. Historicamente, a escola pública, laica e
gratuita surge na modernidade europeia com a missão de transmitir os
fundamentos e ensinamentos da ciência. No contexto brasileiro, ela é
fruto da diversidade cultural e da desigualdade social. Esse processo tem
suas especificidades diferenciadas do contexto europeu e encontra-se
marcado como um processo inacabado, fruto do desenvolvimento
capitalista dependente e marcado pelo acirramento da desigualdade
social (MEINERZ; CAREGNATO, 2011).
De acordo com Kuhlmann Junior (2001), as construções teóricas
e práticas em torno da educação que se difundiram na Europa do século
XIX e XX, chegaram ao Brasil a partir da segunda metade do século
XIX compreendendo diversas modalidades como creche, jardim-de
infância, escola primária, ensino profissional.
No Brasil, até meados do século XIX, a criança não frequentava
creches ou jardins de infância, sendo seu atendimento realizado dentro
do núcleo familiar. As mudanças políticas, econômicas e sociais que se
deram no país, como a abolição da escravatura, proclamação da
república, migração rural tiveram forte influência na construção de
propostas educacionais do Movimento das Escolas Novas. Uma das
principais mudanças pode ser apontada na criação dos jardins-de-
infância, que surgiram com o intuito de atender os filhos das classes
mais abastadas e das creches, que se destinavam a atender os filhos das
classes operárias (OLIVEIRA, 2005).
Entender o processo que consolidou as instituições escolares
como hoje a conhecemos, pressupõe compreender a instauração da
148
 

escola dentro de um modelo moderno que foi adotado pelos


republicanos. De acordo com Oliveira (2005), a consolidação do projeto
republicano no Brasil ligava-se à ideia de que a escola era uma
instituição propícia para a disseminação do conceito de cidadania e
civilidade. O agrupamento de alunos em estabelecimentos específicos,
projetados para servir de lugar de aprendizagem de uma nova ordem e
postura social e política, iniciou-se no estado de São Paulo. Mais do que
estabelecer práticas pedagógicas que viabilizassem a circulação de ideias
e construção de conhecimentos, o principal objetivo era o de transformar
os antigos súditos do império em cidadãos aptos para a vida urbana.
Saviani (2000) trata da questão da prática educacional e afirma
que a educação limita-se à categoria do “trabalho não-material”43. A
produção não-material distingue-se em dois tipos: aquela que o produto
se separa do produtor e aquela que não se separa. A educação encontra-
se nesse tipo de produção, ou seja, a natureza da educação não é dada ao
homem, mas é produzida por ele. Os indivíduos assimilam diferentes
elementos do saber para tornarem-se humanos, assim, o ato de
aprendizagem se faz por intermédio da troca que o homem realiza
coletivamente, pois:

[...] o homem não se faz homem naturalmente;


ele não nasce sabendo ser homem, vale dizer, ele
não nasce sabendo sentir, pensar, avaliar, agir.
Para saber pensar e sentir; para saber querer, agir
ou avaliar é preciso aprender, o que implica o
trabalho educativo. Assim, o saber que
diretamente interessa à educação é aquele que
emerge como resultado do processo de
aprendizagem, como resultado do trabalho
educativo. Entretanto, para chegar a esse
resultado, a educação tem que partir, tem que
tomar como referência, como matéria-prima de
sua atividade, o saber objetivo produzido
historicamente (SAVIANI, 2000, p. 11-12)

Segundo o autor, o homem foi se desenvolvendo


progressivamente através de processos educativos que, ao longo do
tempo foram se diferenciando até tornarem-se institucionalizados no
surgimento da escola, transformando esse espaço que chamamos de
escola no principal modelo dominante de educação. A passagem da
                                                                                                                       
43
A produção material para Saviani (2000) é aquela que o homem garante sua subsistência
material pela força de trabalho. Entretanto, antes de concretizar a produção material, o
homem a planeja; antecipa os objetos da ação por meio das ideias e essa é a produção não-
material, ou produção do saber.
149
 

escola para a forma dominante de educação aconteceu durante o


processo em que as relações sociais sobrepujaram as relações naturais.
“Em consequência, o saber metódico, sistemático, científico, elaborado
passa a predominar sobre o saber espontâneo, natural, assistemático,
resultando daí que a especificidade da educação passa a ser determinada
pela forma escolar” (SAVIANI, 2000, p. 12).
Entretanto, a educação não pode ser reduzida ao ato de ensinar; o
ensino é apenas um aspecto da educação. Para que a educação aconteça,
ela necessita da presença de um professor e de um aluno, assim, a
produção prática de aula é inseparável de seu consumo. Ela é produzida
pelo professor e consumida pelos alunos. Se a instituição escolar se
fundamenta na socialização de um saber sistematizado, esse saber se
diferencia do conhecimento espontâneo e se aproxima da ciência, já que
um dos pressupostos da ciência é o saber metódico e sistematizado
(SAVIANI, 2000).
Vale ressaltar que no século XIX, período fortemente marcado
pela visão positivista da ciência, a educação emergiu no interior desse
processo de racionalização. Ela surge, então, como uma ciência da
educação. Por outro lado, a educação parte da premissa de ser
constitutiva do sujeito e da sociedade e de se fundamentar em questões a
respeito do sentido humano, ou seja, em questões que envolvem a ética,
a política, a ciência, o campo experiencial, emocional e afetivo. Ela é um
espaço aberto ao pluralismo de ideias e reflexões que são determinados
historicamente. Nesse contexto, o fenômeno educativo não pode se
encerrar na visão simplificadora e positivista de ciência, mas deve
centrar-se em projetos que democratizem a própria educação (AMADO,
2011).
No entanto, o sistema educacional opera numa lógica de
interesses que reproduz as desigualdades sociais e fazem minar a própria
democratização escolar. Os sistemas de ensino estão alicerçados e
justificados pela meritocracia escolar. Ainda que a ideologia da
igualdade de oportunidades seja o que se prega no sistema educacional,
Bourdieu e Passeron (1982) mostram que a escola, não somente a
francesa, mas todo o sistema de ensino que se universalizou, não leva
em conta o contexto político e social dos alunos e, com isso, perpetuam
as desigualdades. Os autores afirmam que o sistema de ensino parte
premissa de que os alunos são iguais em direitos e deveres, no entanto
essa lógica gera mais desigualdades, já que nivela diferentes contextos
sociais.
O início dessa desigualdade encontra-se desde cedo na
transmissão do capital cultural que cada família proporciona aos seus
filhos. Essa herança cultural marcará a gênese da desigualdade das
crianças dentro da instituição escolar, pois aquelas que estiveram
150
 

envolvidas num rico universo cultural, com acesso a teatros, museus,


concertos e etc., mostrarão maior facilidade e desenvoltura nas
atividades escolares, desde a infância até o ensino universitário. É
importante ressaltar que, até meados do século XX, a escola era vista
como o espaço de garantia de acesso à educação e oportunidades iguais
de formação. Os estudantes, desde os anos iniciais de educação,
competiriam livremente dentro desse espaço e, aos mais aptos, seria
dado o prêmio de uma carreira promissora. Bourdieu e Passeron (2014)
nos mostram que esse acesso, além de não ser justo e democrático, é
marcado pela reprodução e legitimação das desigualdades sociais. A
educação não ocupa o papel de instância transformadora e
democratizadora, mas de instituição que mantêm e legitima os
privilégios sociais. O sucesso ou fracasso escolar está estritamente
atrelado à origem social dos alunos e não aos seus dons individuais, sua
constituição biológica ou psicológica.
Quando esse indivíduo entra na escola, o que ele encontra é a
transmissão de um sistema de ensino da cultura de elite que, através de
seus métodos, reafirma seus privilégios sociais. A escola, longe de ser
uma instância neutra, legitima e reproduz a dominação das classes
dominantes. Para Bourdieu (2007), não há como definir uma cultura
superior à outra, já que seus valores são arbitrários, ou seja, não se
encontram fundamentados em nenhuma razão objetiva. Entretanto, esses
valores são vivenciados pelos indivíduos que pertencem à determinada
cultura como sendo os únicos possíveis ou legítimos. Essa mesma
realidade se manifesta no universo escolar, pois os valores que ela
transmite são arbitrários, ou seja, não são superiores a nenhum outro e
não se encontram fundamentados em nenhuma verdade absoluta. E
mesmo sendo arbitrários, os valores transmitidos pela escola são
socialmente reconhecidos como legítimos e universalmente válidos.
Esse fenômeno só pode ser compreendido se considerado em relação aos
vários arbitrários que existem socialmente e as relações de força que
estabelecem entre as classes sociais. Um arbitrário cultural só pode ser
legitimado quando alicerçado por determinada classe social e, no caso
da escola, os arbitrários culturais são alicerçados pela classe dominante
que os impõem como cultura legítima. Mas essa relação não se mostra
claramente, ao contrário, o caráter arbitrário da cultura escolar se
apresenta como sendo uma cultura neutra, pois só assim a legitimação e
reprodução das desigualdades sociais podem operar livremente. A escola
ignora as desigualdades culturais entre os alunos das diferentes classes
sociais no conjunto dos conteúdos pedagógicos que transmite.
A conclusão é que não somente as desigualdades econômicas,
mas a herança cultural e o ambiente familiar irão desempenhar um papel
preponderante no percurso escolar dos alunos. Quanto mais
151
 

desfavorecida for a classe social, maior será a eliminação que esse


sistema meritocrático irá operar (BOURDIEU; PASSERON 2014). Esse
fato acontece principalmente pela comunicação pedagógica que é
travada dentro da instituição entre o sistema de ensino e os alunos.
Para que uma comunicação cultural seja compreendida e
assimilada, ela necessita de subsídios anteriores que a torne acessível e
melhor aproveitada. Qualquer comunicação cultural se vale de códigos
que a produzem e a tornam passíveis de compreensão e assimilação, e
para que a comunicação pedagógica seja compreendida, ela depende do
nível cultural dos alunos. Para Bourdieu (2007), esse nível está ligado ao
arbitrário cultural que existe entre o aluno e sua cultura familiar, e os
alunos oriundos da cultura de elite dominam os códigos culturais
transmitidos pela escola com muito mais facilidade, já que estes se
aproximam de sua própria cultura.
Os alunos oriundos do chamado “berço da cultura”, utilizam o
seu capital cultural para investir nas atividades econômicas, enquanto os
filhos de agricultores, pequenos comerciantes, enfim, toda classe
desfavorecida, recebem o ensino por meio do que os autores chamam de
processo de aculturação. Esse processo se dá pela transmissão de um
conjunto de conhecimentos e técnicas intrínsecas aos valores sociais da
cultura de elite e que, por sua vez, estão distantes de sua própria
realidade. Nessa perspectiva, a escola “transforma as desigualdades de
fato em desigualdades de direito, as diferenças econômicas e sociais em
distinção de qualidade, e legitima a transmissão da herança cultural”
(BOURDIEU, 1999, p. 58).
O sistema de ensino analisado por Bourdieu na década de 1960
assentava-se no modelo positivista, fortemente marcado pelas ciências
naturais e pelo fisicalismo. Na busca pela compreensão dos princípios da
meritocracia escolar, o autor observa essa questão através da noção do
habitus, conceito que pode ser traduzido pelos sistemas ou estruturas
que são transmitidos e estruturam as próprias práticas de ensino. Esse
conceito norteia a condição em que o aluno se encontra dentro da
estrutura. Os indivíduos assimilam que o êxito ou fracasso é
determinado pela sua condição social. Nesse contexto, a escola reafirma
a estrutura das relações de classe e a divisão desigual do capital cultural
(BOURDIEU, 1999). O conceito de habitus será mais bem explorado na
página 145 dessa pesquisa.
A escola, longe de uma neutralidade em relação às estruturas de
classe, opera pela lógica seletiva, escolhendo os mais aptos dentro da
hierarquia de valores para perpetuar esse sistema de dominação
(BOURDIEU, 2014). O autor afirma que o fracasso escolar está
estritamente ligado ao próprio discurso pedagógico que reforça e
legitima os valores da cultura dominante, ampliando as desigualdades
152
 

sociais, pois “tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam
eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é
levado a dar a sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura”
(BOURDIEU, 2007, p.53).

4.2 A NASCENTE BIOLÓGICA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

Diversos pesquisadores do campo educacional atribuíram o


fracasso escolar à baixa qualidade de ensino, à desatualização das
práticas escolares, ao descaso do próprio Estado com a educação das
classes populares e a toda a reprodução da cultura dominante como
explicitado por Bourdieu e seus colaboradores.
Entretanto, o cenário que se apresenta na educação atual, parece
nivelar todos os problemas analisados por Bourdieu em problemas
biológicos. A lógica do processo de medicalização que observamos na
sociedade ocidental, transforma os problemas de aprendizagem e
comportamentais das crianças, tanto da cultura de elite, quanto das
classes mais desfavorecidas em doenças que devem ser medicalizadas e
tratadas. Independente da herança cultural trazida pela criança ou de sua
posição na estrutura de classes, as dificuldades em interpretar os códigos
que a comunicação pedagógica transmite, são tomadas como problemas
biológicos e tratadas no campo da medicina. Se, como afirmava
Bourdieu, o habitus norteava a própria condição que o aluno ocupava
dentro da estrutura de ensino, e a escola, por sua vez, ignorava as
desigualdades culturais dos alunos oriundos das classes mais
desfavorecidas, diante da prática medicalizante, esses fatores não são
mais determinantes para explicar o fracasso ou o êxito dos alunos frente
ao ensino. A psiquiatria não seleciona os alunos de classes
desfavorecidas ou de elite para exercer seu poder de controle, e
tampouco coloca em pauta os contextos político-sociais para a execução
de suas práticas. Ao contrário, o que vemos é um número cada vez
maior de crianças e adolescentes de diferentes classes e contextos sociais
receberem os mesmos diagnósticos e tratamentos psicofármacos.
O que percebemos é uma diferenciação em relação ao tipo de
assistência médica, se pública ou privada que irá atender essa criança,
dependendo de seu poder econômico, grau de instrução de seus
familiares e instituição de ensino que ela frequenta. Porém, em relação
ao diagnóstico psiquiátrico, ambas as crianças, tanto as de elite quanto
as de classes mais baixas, serão classificadas dentro das mesmas
categorias diagnósticas: TDAH, TOD, depressão, bipolaridade, entre
outros. Esse fato pode ser percebido na fala de uma professora de escola
da rede privada que entrevistamos:
153
 

Antigamente, só as crianças do morro eram


encaminhadas para o psiquiatra. Elas eram as
mais agressivas, porque traziam muitos
problemas de casa [...] mãe que trabalhava fora
o dia inteiro, pai alcoólatra. Essas crianças
tinham muitos problemas e iam mal nas provas,
não faziam lição de casa, brigavam com os
colegas e professores. Eu já trabalhei em escola
pública e dei aula no [colégio conceituado de
elite de Florianópolis]. Hoje, qualquer criança
mais agitada ou que bate num coleguinha já
começa a tomar remédio. Aqui, onde as crianças
têm maior poder aquisitivo, muitas tomam
remédio porque não conseguem ficar paradas,
são agitadas [...] e eu estou falando de crianças
de 6, 7 e 8 anos. (PH1)

Segundo Zucolotto (2007), os conflitos sociais são reproduzidos


no cotidiano escolar, entretanto a esfera política dessas questões não faz
parte das discussões quando se atribui às próprias crianças e às suas
famílias os problemas relacionados ao baixo desempenho escolar. A
criança que apresenta dificuldades comportamentais na escola, que
prejudicam seu desempenho pedagógico ou relação com outros alunos e
professores, passa a ser um problema de esfera biológica, portanto,
psiquiátrica.
O discurso científico ignora os determinantes políticos e sociais,
e patologiza as crianças com dificuldades de aprendizagem ou que
apresentam um comportamento abaixo do esperado pela instituição de
ensino. As explicações para os problemas que as crianças manifestam no
âmbito escolar, recaem no campo biológico das origens genéticas. Se,
nas análises de Bourdieu, a escola ignorava os determinantes culturais
dos alunos, a psiquiatria ignora não somente a cultura, mas todo e
qualquer determinante que não seja o biológico.
Esse processo avança em grande escala nas instituições de ensino
ocidentais. Segundo Collares e Moysés (1994) a medicalização dos
conflitos sociais recorre ao reducionismo biológico responsabilizando o
próprio indivíduo pelos seus problemas e desresponsabilizando o
sistema sociopolítico. Nessa lógica, as questões sociais, políticas,
econômicas, culturais e históricas não influenciam o destino dos alunos
que apresentam dificuldades comportamentais ou de aprendizado. As
autoras apresentam dados estatísticos com índices de 50 a 70% de
fracasso escolar no Brasil. O aluno ou no máximo a sua família são os
pontos centrais do diagnóstico, e nunca a instituição escolar ou a política
educacional.
154
 

A medicalização dos problemas que os alunos apresentam nas


escolas de ensino infantil, pré-escola e fundamental I e II44 no Brasil, era
realizada por profissionais médicos que atuavam na Rede Pública de
Saúde, em consultórios particulares ou nas universidades. Atualmente,
existem outros profissionais atuando dentro das instituições escolares e
que estão envolvidos no processo de medicalização. E são os psicólogos,
os fonoaudiólogos, os enfermeiros e psicopedagogos (COLLARES;
MOYSÉS, 1994).
A introdução da medicina e suas ramificações nas instituições
escolares podem ser vistas, não só como debates gerados na disputa
entre os especialistas, mas como mapa que possibilita a compreensão da
construção do saber médico aplicado a todas as esferas da vida, inclusive
às questões morais. Dessa forma, assim como Bourdieu (1983) analisou
que a construção de um campo específico apresenta disputas e
controvérsias inerentes a esse universo, podemos apontar a afirmação da
competência de um determinado saber médico – a psiquiatria – e suas
especializações disputando espaço dentro do campo educacional.
De acordo com Collares e Moysés, o processo de medicalização
dos problemas que os alunos apresentam nas escolas acontece por duas
vertentes:

O fracasso escolar seria uma consequência da


desnutrição; obviamente, essa apresentação só
ocorre para as crianças da classe trabalhadora. O
fracasso escolar seria o resultado da existência de
disfunções neurológicas, incluindo-se aqui a
hiperatividade, a disfunção cerebral mínima, os
distúrbios de aprendizagem, a dislexia;
inicialmente essa forma restringia-se às crianças
das classes média e alta, porém, atualmente, está
disseminada inclusive entre a classe trabalhadora,
criando uma situação no mínimo esdrúxula –
uma mesma criança ser rotulada de deficiente
mental por desnutrição e de disléxica
(COLLARES; MOYSÉS, 1994, p. 27).

O problema da desnutrição como causa do fracasso escolar, já foi


muito discutida. O tipo mais grave, aquela considerada de terceiro grau
que acomete o indivíduo no momento do desenvolvimento de seu
sistema nervoso central e por um longo período da vida, era apontada

                                                                                                                       
44
De acordo com o MEC (Ministério da Educação, <http://portal.mec.gov.br/>) a faixa
etária para as etapas de ensino são as seguintes: Ensino infantil – até 3 anos; Pré-Escola: 4
e 5 anos; Ensino Fundamental I e II: de 6 a 15 anos.
155
 

como explicação para os problemas de aprendizagem que as crianças


apresentavam anos mais tarde, durante o processo de alfabetização. Os
outros tipos de desnutrição, aqueles considerados mais leves, não teriam
repercussão no desenvolvimento cognitivo. Segundo Collares e Moysés
(1994, p. 27), as funções intelectuais superiores e mais complexas do ser
humano “nem ao menos estão desenvolvidas aos sete anos de vida;
portanto, não podem constituir substrato necessário para a
alfabetização”.
Nesse contexto, os resultados das pesquisas das autoras anulam a
relação entre desnutrição e problemas de aprendizagem. Ademais, o
processo de alfabetização, segundo as autoras, não exige o
funcionamento das funções intelectuais mais complexas, mas somente o
uso de funções intelectuais superiores, ou seja, aquelas que não foram
afetadas pelo problema da desnutrição. Inclusive, as crianças das escolas
analisadas em suas pesquisas, passaram por exames clínicos que não
provaram a existência de nenhum tipo de desnutrição severa e, mesmo
assim, essas crianças eram apontadas como portadoras de problemas
cognitivos e comportamentais e recebiam diagnóstico psiquiátrico.
Ainda que o problema da desnutrição tenha sido apontado por
muitos anos como explicação para o problema do “não aprender” e do
“não se comportar”, as pesquisas realizadas por Collares e Moysés
(1994) mostram que a explicação para os problemas pedagógicos e
comportamentais reside no campo das questões relacionadas às
disfunções neurológicas que se manifestam como distúrbios de
aprendizagem, TDAH, dislexia, entre outros.

A patologização da aprendizagem constitui um


processo em expansão, que se dissemina
rapidamente, com grande aceitação geral. Os pais
das crianças reagem a seus resultados como se a
uma fatalidade. Para os professores, representa
um desviador de responsabilidades – "Eu faço o
que posso, mas eles não aprendem!”. A
instituição escolar, parte integrante do sistema
sociopolítico, legitima suas ações e suas não
ações, pois o problema decorreria de doenças que
impedem a criança de aprender (COLLARES;
MOYSÉS, 1994, p. 29).

O processo de patologização da educação traz em sua nascente


um reducionismo biológico ao explicar questões políticas e pedagógicas
através das particularidades apresentadas pelos indivíduos. O campo
individual, e não mais o social e político, passa a ser o responsável por
toda e qualquer dificuldade que se apresente. Podemos até mesmo aferir
156
 

que, ao transferir os problemas sociais para o campo individual, a


medicina ocidental opera em sua lógica biologizante: o indivíduo é
transformado em objeto de estudos e seu corpo passa a ser tratado como
objeto de investigação. Na perspectiva aventada pelos degeneracionistas,
o corpo era o receptáculo onde se desenvolviam as doenças e estas se
relacionavam com os órgãos e suas funções, transparecendo sua
morbidez através de seus sintomas, porém a doença em si não era
conhecida. A partir do século XIX, Foucault (2011) nos mostra que os
sintomas constituem a própria doença. Essa reorientação do olhar
médico sobre as doenças permitiu que elas fossem ordenadas e
classificadas. A psiquiatria moderna, fundamentada em bases
sintomáticas, elimina as questões que não pertencem à esfera biológica,
diagnostica e medicaliza os comportamentos individuais tidos como
sintomas de transtornos mentais.
As questões sintomatológicas que caracterizam os transtornos
mentais estão presentes nos discursos dos profissionais da educação,
conforme é evidenciado na fala:

Os sintomas mostram o que o aluno deve ter.


Basicamente a questão da agitação, que é a
história do TDAH pra todos os lados, né? Mas
basicamente é muita agitação, a falta de
concentração, essa superatividade de estar
agitado o tempo inteiro, de fazer, de pular, de
correr, de caminhar, de bate num, incomoda o
outro, aí já tá sentado, daí já levanta, daí já foi
no banheiro, já voltou, já sentou, já passou
embaixo da mesa da professora, já quebrou o
lápis. Em segundos. E tem outros sintomas
também, criança muito nervosa, que briga e bate
no colega do nada [...] que joga os materiais no
chão. Tem vários sintomas que a gente observa
que destoa demais do grupo. (PA1)

Esse relato evidencia as influências da medicina nas questões


pedagógicas que, partindo dos sintomas comportamentais, buscam
explicações e soluções médicas para os problemas que se apresentam no
cotidiano escolar. Os sintomas comportamentais são os maiores indícios
de algum transtorno mental e os profissionais de educação tendem a
avaliar seus alunos baseados exclusivamente nos sintomas, excluindo os
contextos familiares e outras questões que não pertençam ao campo
biológico. A agitação e falta de concentração são os principais
problemas relatados pelos profissionais de educação no momento das
entrevistas, sendo assim, faz-se necessário analisar uma questão
157
 

comumente colocada por professores e famílias a respeito da chamada


“agitação” das crianças: a utilização dos dispositivos eletroeletrônicos e
sua relação com o cotidiano escolar.

4.2.1 A questão da hiperestimulação e os dispositivos


eletroeletrônicos

É fato que os profissionais que atuam no campo educacional,


sejam eles professores, coordenadores, diretores ou psicólogos,
reclamem por uma explicação que solucione os problemas apresentados
pelos alunos, tanto em nível de aprendizado como em nível
comportamental. Como vimos até o presente momento, essa solução tem
sido colocada através de um diagnóstico médico. Os próprios
profissionais da educação deixam escapar em seus discursos, que
determinadas dificuldades comportamentais são provenientes das
variações bioquímicas cerebrais. A partir dos transtornos mentais e suas
características, difundidos pela mídia ou presentes nos cursos de
formação de professores a respeito dos transtornos mentais e seus
sintomas45, o discurso médico ganha espaço e poder na identificação de
que esse ou aquele comportamento possa ser diagnosticado como indício
de doenças em fase inicial ou já em estado avançado.
A busca por uma explicação que acalme os corações e mentes de
tantos pais e professores parece encontrar um caminho mais florido e
menos pedregoso dentre aqueles oferecidos pelos médicos. Muitos pais
anseiam por um diagnóstico que solucione os problemas apresentados
pelas crianças. É o que mostra a fala de uma professora da instituição
privada E:

O que eu percebo quando converso com os pais,


é que muitos não se satisfazem com a ideia de
que a criança passa por períodos de tensão e
isso reflete no seu comportamento e
aprendizagem. Esse período, muitas vezes está
relacionado com algum evento que a criança

                                                                                                                       
45
A Associação Brasileira de Déficit de Atenção <www.tdah.org.br> disponibiliza
questionários baseados nos critérios do DSM-IV, que auxiliam os professores na
identificação do TDAH e outros transtornos. O Hospital das Clínicas de São Paulo,
vinculado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – HFCMUSP, oferece
cursos online para professores escolares, bem como o Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo – IPUSP, disponibiliza uma revista eletrônica que auxilia os
professores na identificação de crianças com dificuldades de interação social ou com
problemas na constituição psíquica. Tanto a revista como os cursos que são oferecidos
podem ser acessados pelos sites: <https://www.facebook.com/revistapsico.usp>,
<http://www.ip.usp.br/revistapsico.usp/>.
158
 

está passando, a morte de um parente, o caso da


separação dos pais afeta muito [...] Tenho visto
pais recorrerem a mais de 3 consultórios e só se
acalmarem quando um médico diagnostica seu
filho com TDAH ou alguma outra coisa. Ainda
que a gente fale que a agitação faz parte daquela
faixa etária ou da própria personalidade da
criança, eles parecem que não aceitam, tem que
ter algo a mais. Semana passada uma mãe me
procurou dizendo que não sabia mais o que
fazer, pois seu filho não dormia direito. Na
conversa ela me disse que ele passa horas na
frente da televisão e do celular. Aí, né, é querer
demais. Essa superestimulação que as crianças
de hoje têm quase não é questionada. Claro que
isso também colabora pra essa agitação toda.
(PE2)

Uma questão que é muito frequente nas escolas e famílias diz


respeito ao uso dos aparelhos eletroeletrônicos na infância. Além das
dificuldades nos processos de ensino e aprendizagem que são relatados
pelos professores e equipe docente, a contemporaneidade, desde meados
da década de 1990 encontra-se sob a emergência de um novo cenário
social: o mundo virtual. O desenvolvimento dos meios de comunicação
vem ganhando espaço considerável no que diz respeito à vida social e
cotidiana das pessoas, tanto no Brasil quanto no mundo. Existe um
aumento avassalador do consumo de equipamentos relacionados aos
avanços tecnológicos, tais como celulares, computadores, televisões e
eletroeletrônicos em geral. A tecnologia faz parte do cotidiano de muitas
famílias, e as crianças obtêm acesso cada vez mais precoce a estes
aparelhos. Esse fator provoca uma mudança radical no lazer e atividades
das crianças na atualidade (COSTA, 2004).
De acordo com Levin (2007), as brincadeiras infantis se
modificaram e os brinquedos, outrora confeccionados pelas próprias
crianças, foram substituídos por aparatos que utilizam as mais variadas
tecnologias. Não são mais as crianças que dirigem as brincadeiras, mas
os próprios brinquedos e aparelhos eletroeletrônicos. As brincadeiras e
jogos estão determinados eletronicamente do começo ao fim. Por esse
motivo, o autor conceituou a fase da infância como infância virtual.
A influência que os jogos e aplicativos de celulares exercem
sobre as crianças impacta diretamente o desenvolvimento da
personalidade infantil. Segundo Levin (2007), a criança que se relaciona
com o mundo através dos aparelhos eletroeletrônicos, tem sua
159
 

experiência infantil completamente marcada. Além da ruptura no


imaginário infantil, a criança adota uma passividade corporal.
Rowan (2010) afirma que entre 0 e 2 anos de idade, o cérebro da
criança triplica de tamanho, continuando em desenvolvimento acelerado
até os 21 anos de idade. O problema da estimulação de um cérebro em
desenvolvimento causado pela superexposição a tecnologias, como
internet, celulares e TV é associado à diminuição da capacidade de se
autorregular, diminuição da capacidade de atenção, atrasos cognitivos e
excitação. A autora também traz dados que correlacionam o uso de
tecnologia a um déficit de sono, fator impactante na qualidade de vida e
rendimento escolar.
Um dos maiores prejuízos do uso de tecnologias por crianças
apresentados por Rowan, diz respeito à emissão de radiação. A autora
mostra que o cérebro e os sistemas imunológicos das crianças ainda
estão em desenvolvimento e isso os torna mais sensíveis que os adultos
frente à emissão de radiação dos aparelhos eletroeletrônicos. O uso
dessas tecnologias por crianças está associado a diversos problemas de
aprendizagem, agitação, isolamento e obesidade.
Em todas as escolas que visitamos, a questão dos dispositivos
eletroeletrônicos estão presentes, seja na própria escola ou dentro das
casas dos alunos. Muitas crianças têm livre acesso à televisão,
computadores, celulares e jogos eletrônicos com o aval da própria
família. O maior problema, no que diz respeito ao âmbito escolar, é
quando o uso demasiado desses aparelhos atrapalha o cotidiano escolar e
as relações sociais que os alunos travam com seus pares. Nas escolas
públicas A e B, a equipe pedagógica relatou que a dinâmica da sala de
aula é fortemente afetada, já que não existe uma regra que proíba o uso
desses aparelhos em sala de aula:

O desrespeito hoje é muito grande, muito maior.


Há 20 anos em sala de aula, posso afirmar que a
coisa perdeu o controle. A criançada, os
adolescentes entram com celular dentro da sala
de aula. Eles têm whatsApp e ficam em contato
com isso o tempo inteiro, inclusive com pessoas
que nem conhecem. As crianças estão com a
cabeça em outro lugar na sala de aula. Eles
passam o tempo todo brincando, não se
importam [...] Acho que está faltando limites.
Muitos pais chegam aqui e falam que não sabem
mais o que fazer. Mas ao mesmo tempo não
colocam limites, deixam [...] compram celulares
e dão nas mãos deles. (PB2)
160
 

Na instituição privada D, o uso de dispositivos eletroeletrônicos é


completamente desestimulado entre as crianças menores de 12 anos. As
atividades desenvolvidas dentro e fora da sala de aula não utilizam
nenhum tipo de tecnologia e esse hábito é muito bem aceito pela
comunidade de pais de alunos. A fala de uma professora explicita os
motivos pelos quais os dispositivos eletroeletrônicos e sala de aula não
se coadunam:

As atividades que nós desenvolvemos trabalham


com a criatividade. As crianças têm que colocar
a mão na massa, enfrentar desafios, resolver
problemas, explorar o próprio corpo e o
ambiente. Uma criança que está parada na
frente de uma tela é uma criança parada. Nossa
matemática é ensinada com objetos reais, no
concreto. Eles aprendem fração cortando frutas,
bolos; as habilidades linguísticas são realizadas
em roda, cantadas, recitadas ao mesmo tempo
em que brincamos de esconde-esconde ou pega-
pega. É assim, nossa atualidade está toda
invertida, os valores estão invertidos. Você vê
crianças em plena fase de desenvolvimento e
descoberta, em plena fase de interação,
completamente absorta em uma tela de televisão,
celular, não conversam, não interagem. Daí as
crianças não sabem se relacionar, são
agressivas, agitadas, não respeitam ninguém.
Onde é que está a chave desse problema? Nós
procuramos atuar de forma que o pensar, o
sentir e o agir caminhem juntos. Procuramos
meios de tratar a criança em sua singularidade,
seu aspecto cognitivo, seus sentimentos. (PD1)

Entre as escolas entrevistadas, somente na instituição de


pedagogia Waldorf o uso de dispositivos é desestimulado. Em todas as
outras, tanto as públicas quanto as privadas fazem uso de computadores
em sala de aula, jogos didáticos eletrônicos e vídeos. Nas escolas
públicas o uso de celulares não é proibido, e esse é um dos grandes
fatores de dispersão entre os alunos. Já na instituição privada E, o uso de
celulares é permitido, porém os alunos só têm permissão para utilizarem
nos momentos de intervalo (recreio).
Não podemos associar o uso de dispositivos eletroeletrônicos ao
aumento de diagnósticos em transtornos mentais a partir de nossas
entrevistas, porém, nas instituições que faziam uso de tecnologias, os
professores percebiam maior agressividade e agitação entre seus alunos.
161
 

[...] às vezes eles brigam porque um não jogou


do jeito que o outro queria. É muito complicado.
Pior ainda é quando a professora está dando
aula e o aluno está lá, com o celular na cara
dela, no maior desrespeito. Pedimos pra
guardar, mas não adianta. É muita agitação,
muita falta de concentração. Se fosse proibido
[...] porque não adianta pedir pra usar só no
recreio, tem que proibir. Se proibisse as coisas
mudariam muito. (PF2)
 
Ainda que as atividades que se utilizam de ferramentas
tecnológicas em sala de aula sejam direcionadas com fins
exclusivamente pedagógicos, crianças que têm livre acesso ao uso de
dispositivos eletroeletrônicos apresentam um comportamento
diferenciado dos demais. É o que podemos observar na fala de duas
professoras das instituições abaixo:

Nós temos algumas atividades com vídeos


educativos, tem joguinhos que as crianças
adoram e desenvolvem várias habilidades,
raciocínio lógico, linguístico, coordenação
motora, identificação de cores e formas. Tudo
muito supervisionado e planejado
pedagogicamente. A atividade tem um objetivo,
entende? Quando usamos esse tipo de material é
com objetivo pedagógico. Mas tem aquelas
crianças que em casa usam o computador, jogam
outros tipos de coisas [...] Dá pra perceber
quando a criança não tem um controle por parte
da família [...] Ela é mais agressiva sim. Brinca
de luta, faz movimentos que nós, como
educadores, percebemos que não é típico
daquela idade, que é algo que ela viu por outros
meios. Infelizmente tem crianças que assistem
novela e trazem essa linguagem mais
sensualizada pra dentro da sala de aula. Nós
procuramos controlar, mas não podemos
interferir na maneira como os pais educam,
entende? (PH1)

Nessa outra instituição, a professora relata que o uso de


tecnologias atrapalha o rendimento pedagógico dos alunos:
162
 

São poucos os pais que controlam o que os filhos


assistem, jogam, que controlam o tempo disso.
Tem aluno que chega caindo de sono porque
ficou assistindo filme até de madrugada, que tem
televisão no quarto. Tem uma aluna do 9º ano de
idade de 13 anos que fica até tarde com celular
no whatsapp, falando sabe lá com quem. Ela é
muito ansiosa, parece que está sempre aérea,
não presta atenção em nada [...] O rendimento
em sala é baixo, está sempre atrasada, pode até
ser por causa disso que ela está sempre ansiosa,
ela é muito cobrada pela mãe por causa das
notas. (PG2)

A realidade atual é marcada pela tecnologia, e um dos grandes


desafios que delineiam a área escolar é justamente o de tentar contribuir
para que crianças e jovens não sejam meros usuários passivos e
consumidores compulsivos dessas ferramentas, mas criativos e críticos
quanto à sua utilização.
Segundo Levin (2007), o estudo contínuo sobre formas criativas e
construtivas de se aprender e ensinar utilizando dispositivos
eletroeletrônicos é tarefa que a escola deve perseguir diariamente, para
que essas ferramentas não acabem condicionando o papel do trabalho
criador e impactando negativamente o cotidiano escolar.
Os alunos podem e devem desenvolver habilidades de
comunicação das mais diversas maneiras. O uso crítico e bem
direcionado das tecnologias em sala de aula é apontado por Kalinke
(1999) como um fator positivo. Longe de superestimular ou desestimular
os alunos no processo de aprendizagem, o autor ressalta a importância
dos alunos poderem trabalhar com alunos de outras culturas, ampliando
sua visão de mundo a respeito das diferentes formas e maneiras de
conhecimento. Para que esse processo se efetive de maneira construtiva,
os professores devem trabalhar com metas comuns tendo em vista que a
cooperação em sala de aula é um dos caminhos para a cooperação
global.
A questão dos dispositivos eletroeletrônicos e sua influência
negativa na dinâmica escolar é apenas uma das facetas do quadro de
problemas que a escola enfrenta na atualidade. Além disso, há uma
gama de questões estruturais que estão na base do problema, como a
infraestrutura material das escolas, a questão salarial que define o
recrutamento dos professores, a origem de classe dos estudantes,
envolvendo o seu capital cultural, professores assumindo múltiplas
funções, dentre outros (Leher, 2013). A educação no Brasil não faz parte
da agenda estratégica dos governos – no final da década de 1980,
163
 

quando ficou claro que a reforma do Estado era necessária para o


desenvolvimento sustentável, a educação não foi incluída. Isso só
aconteceu na década de 1990. Depois de 1930 e principalmente a partir
do ciclo desenvolvimentista de 1950, a expansão quantitativa se deu ao
sabor de pressões populares, sem uma estratégia sustentável de revisão
da organização e conteúdos da escola. Os embates políticos que se
estruturam ano após ano trazem novas reformas, novas ideias, mas sua
prática é ainda muito frágil e duvidosa.
Esses e outros problemas abrem caminho para que a escola vá ao
encontro do modelo médico. Não é difícil perceber que o âmbito escolar
encontra-se sob um solo fértil para que o saber médico surja como um
aliado na identificação dos problemas encontrados pelos alunos. Diante
da crise do sistema escolar e de seus crescentes fracassos, passou-se a
considerar que a resposta para seus problemas estaria no âmbito da
medicina, mais especificamente, a psiquiátrica.
No próximo item, analisaremos como o discurso médico adentrou
os muros das instituições escolares e, atualmente, se utiliza da prescrição
de psicofármacos para solucionar os problemas que surgem no cotidiano
escolar.
 
4.2.2 A intromissão do modelo médico nas instituições escolares

Uma coisa que eu sempre me questionei, desde a


época do meu mestrado foi essa relação da
violência com as doenças psiquiátricas. Que nem
eu te falei, em todo meu trabalho, peguei muitas
crianças de lares bem complicados, crianças que
foram abandonadas, que sofreram abuso, que
apanharam. Uma pergunta que sempre me vinha
à cabeça é porque tem criança que passa por
tudo isso e não desenvolve esse tipo de doença?
Já tive aluno que tinha sido achado numa caixa
de papelão e era o melhor aluno da classe, era
um amor. O que explica isso? Foi aí que cheguei
na neuropediatra que me dava aula e falei:
“Tem uma questão que eu quero falar com você,
tem muitas correntes que falam uma coisa, e eu
gostaria de ver o seu parecer”, ela falou; “Ah,
aparece no meu consultório”. Eu fui. Era em
Porto Alegre e daí eu coloquei isso pra ela, e daí
ela assim: “Olha, você tem toda razão. A
natureza é pródiga, ela dá tempo, ela dá pra uma
mãe, por exemplo, que tá esperando um bebê,
que ficou grávida sem querer, ela dá quatro
meses pra que essa mãe passe a aceitar esse
164
 

bebê, passe a viver com ele de uma forma


harmoniosa, querida. Porque a partir do quarto
mês, o hipotálamo começa a funcionar nesse
bebê. E o hipotálamo é a sede do prazer, da dor,
da raiva, da angústia, ansiedade, medo [...] tudo
o que essa mãe sente, ela passa pra esse bebê e
aí começa tudo. Então a coisa vem lá de trás,
tem a genética, mas também tem a gravidez. Tem
relação com a barriga que tava te falando.
(PCB)

A fala dessa coordenadora transmite muito a respeito de tudo o


que vimos nesse estudo até agora. Seu discurso, imbricado de teorias
degeneracionistas da psiquiatria do século XIX está muito presente no
ideário educacional da atualidade. A demanda que observamos dos
professores – um diagnóstico médico explicativo – foi validada como
prática necessária e importante no âmbito escolar, e os mesmos
professores se agarraram ao diagnóstico como um instrumento de
solução dos problemas que se manifestam ali. Quando e como os
problemas que se manifestavam no cotidiano escolar foram traduzidos
em termos biológicos, passíveis de correção pelo uso de medicamentos?
Segundo Zucolotto (2007), a explicação hegemônica de que os
alunos apresentam dificuldades de aprendizagem e comportamentais
porque são incapazes ou porque possuem algum transtorno mental, gera
grande demanda por profissionais de saúde no campo escolar.
Entretanto, a constituição histórica do discurso médico no âmbito
escolar se deu através dos higienistas. Inicialmente, a interferência do
discurso médico nas escolas visava o controle de epidemias, já que este
era mais um espaço de agregação populacional que apresentava riscos de
contaminação epidemiológica.
A racionalidade médica se utilizou de argumentos, cálculos,
procedimentos e técnicas para controlar as doenças vigentes e impor seu
programa civilizatório no século XVIII e XIX (GONDRA, 2003).
Segundo o autor, os pontos estratégicos para a atuação dessa lógica
higienista foram os hospitais, os presídios, as igrejas, os cemitérios e a
própria escola. A higiene passa a fazer parte da formação médica e a
medicina, através da difusão do ideário de promoção do bem estar físico
e moral da humanidade, caracterizava-se como ciência do social. Esse
fato se apresenta nas teorias do higienista brasileiro Renato Kehl (1926):

Arte de conservar a saude, e si é verdade, como


diz a sabedoria antiga, que a saude é o primeiro
dos bens, a hygiene deve ser a primeira das artes.
Sim é arte e não sciencia; representa a aplicação
165
 

de todos os conhecimentos com o objectivo


coordenado de proteger a saude, prolongando a
vida dentro dos limites optimos de sua duração
normal. E é arte victoriosa, conseguindo aos
poucos expurgar o planeta das pestes, das
infecções, sanear regiões insalubres, valorizar o
solo e beneficiar a vida humana em todos os
sentidos (KEHL, 1926, p. 16 apud GONDRA,
2003, p. 28)

No Brasil, a racionalidade médica passa a operar nas escolas a


partir do projeto da Escola Nova, orientadas para as perspectivas
sanitárias e eugênicas da plataforma do governo Vargas. Em 1930, com
o Governo Provisório, foi criado o Ministério da Instrução e Saúde
Pública tendo como principal objetivo o saneamento físico e moral
através de campanhas voltadas para a educação sanitária e difusão do
ensino público. Desde a era varguista, o civismo estreita seus laços com
o ideário de aperfeiçoamento físico, moral e intelectual da raça. A
educação eugênica teve seu ápice na Constituição de 1934, sendo
incluída como uma obrigação do Estado (HORTA, 1994).
De acordo com Gondra (2003), a higiene apresentou-se como arte
de conservar e aperfeiçoar a saúde, estendendo-se na esfera pública e na
esfera privada. O saber médico, assentado na lógica higienista, passa a
colonizar as instituições e práticas sociais. A higiene buscava o
reconhecimento como ciência mais adequada para a gestão dos
comportamentos púbicos e privados, visando a excelência da formação
humana. Desde a mais tenra idade, caberia à higiene suprimir
comportamentos e atitudes viciosas e instaurar hábitos saudáveis que
preservariam a infância da debilidade e das doenças. Pelo
disciplinamento da infância, a escola seria o espaço privilegiado que
corroboraria com as práticas higienistas na prevenção e preservação da
saúde (Rocha, 2003).
Os estudos de Gondra (2003) trazem trechos de livros da doutrina
higienista dedicados a mães, pais, professores e professoras sobre a
instauração de hábitos saudáveis que deveriam ser seguidos na educação
integral das crianças. Fica claro que a meta da medicina era a de
popularizar o saber médico higiênico e expandir suas fronteiras além da
ordem médica, abrangendo a família e a própria instituição escolar. Os
textos dos livros higienistas visavam à uniformização desse saber
médico e instruíam as famílias e as escolas sobre a educação das
meninas e meninos, cada qual com suas peculiaridades e advertências
sobre os perigos dos maus hábitos. Os temas abordados iam desde os
padrões adotados no interior da esfera privada, como a higiene com o
corpo, com os afazeres domésticos, com os próprios brinquedos, a
166
 

alimentação e, no caso das meninas, a maternidade; até recomendações


concernentes à esfera pública, como a leitura de livros adequados,
educação física e modalidades esportivas, bem como a sexualidade e
regras de convívio.
A partir do momento que o discurso higienista se articula em
torno da educação, mensagens de higiene passam a ser veiculadas entre
os professores, agentes de saúde pública, alunos e suas famílias, e a
preocupação para com os problemas sanitários que poderiam afetar o
futuro da população, torna-se tema de conferências, atividades escolares
com as crianças, textos de manuais e panfletos. Os médicos higienistas
se viam na missão de paralisar a ameaça gerada pelo rápido crescimento
das cidades e pelas condutas descomedidas dos indivíduos. Para isso,
estabeleceram um programa de disciplinamento que articulava higiene e
moral, cuja obediência deveria ser severamente seguida pela população.
Uma vez que, na lógica higienista, os problemas sanitários estavam
atrelados ao modo de vida que os indivíduos levavam, a solução seria
dada pela criação de hábitos saudáveis de acordo com a ciência e a
escola seria a grande precursora dessa educação (Rocha, 2003).
A formação de hábitos saudáveis deveria começar nos primeiros
anos da educação escolar, através de uma educação sanitária. Esse
argumento se apropriaria da infância como período singular de
intervenção, tanto para a formação dos primeiros hábitos das próprias
crianças, como de suas famílias, e a escola seria a base para a inculcação
da lógica higienista que, partindo da premissa de que só as crianças eram
realmente educáveis por possuírem maior plasticidade cerebral e
facilidade de modelagem, a educação dos adultos só serviria para
reforçar os hábitos que foram formados na infância. O melhoramento e
transformação dos homens pela higiene e moral deveriam começar no
berço, assim, a infância passa a ocupar o lugar privilegiado como o
berço de uma humanidade saudável (ROCHA, 2013).
Esse ideário ainda se encontra presente no campo educacional,
conforme é evidenciado na fala de uma das coordenadoras entrevistadas:

[...] não adianta nada a família dar de tudo,


oferecer os melhores colégios e não educar
dentro de casa, nos primeiros anos de vida, não
ensinar a criança a respeitar os outros, a cuidar
de suas coisas. Tem criança de família rica que
não tem o menor cuidado com suas coisas, vem
com roupa rasgada, livro estragado, só quer
saber de bagunçar. E agora com essa história de
celular, a coisa tá sem controle. A escola se vê
no papel de ter que educar as crianças a fazer
coisas que deveriam ter aprendido em casa.
167
 

Escovar os dentes, tomar banho, arrumar o


cabelo [risos]. Lá nos anos iniciais, as
professoras trabalham com um tema para cada
semana: arrumar a mochila, escovar os dentes,
limpar a sala de aula. Aqui no fundamental,
existem equipes médicas que trabalham
diariamente na escola, a gente tem dentistas,
educação sexual, nutricionista. (PB1)

A introdução da prática higienista nas escolas brasileiras veio


acompanhada de diversas recomendações de como os mestres e os
alunos deveriam se portar. De acordo com Lima (1983), o professor
seria o modelo de virtude que os alunos deveriam imitar, e o ambiente
físico da instituição, deveria apresentar limpeza e ordem impecáveis:

A higiene escolar prescreveu uma escola


adaptada ao aluno. Da altura dos degraus e
ângulos das curvas das escadas à altura e
espaçamento das carteiras, à redução das horas
de trabalho em classe e à redução da extensão
dos currículos. Prescreveu-se a frequente
interposição de recreios e o uso de uma ginástica
recreativa e restauradora (LIMA, 1983, p. 102).

Os alunos passariam por revistas físicas que observariam o asseio


com o corpo, roupas e materiais escolares. As dependências da escola
também seriam vistoriadas pelos próprios alunos para que, assim,
pudessem formar um olhar crítico sobre a limpeza, e esse olhar
“panóptico” pudesse alcançar o âmbito doméstico, ou seja, suas próprias
casas.

Selecionando, classificando, ordenando e


exibindo práticas exemplares forjadas a par da
ação eficaz da escola sobre a infância, Dr.
Almeida Junior compõe um modelo de
intervenção pedagógica, configurado segundo
uma gramática do controle, cujas prescrições
deveriam ser obedecidas tanto pelas crianças
como pelos seus mestres (ROCHA, 2003, p. 48).

As práticas higienistas nos remetem às obras de Foucault (1979,


1987, 1988, 2008b) que já foram abordadas ao longo desse trabalho.
Não se trata simplesmente de educar as crianças para serem adultos
felizes e controlados, mas sim, trata-se da forma de governo sobre as
populações que coloca a dimensão biológica e subjetiva na produção de
168
 

ideais que garantam um comportamento saudável a nível coletivo. A


inculcação de hábitos higiênicos e morais relacionam-se com a
moralidade das condutas e o governo dos homens de que falava
Foucault. Os sujeitos passam a operacionalizar um conjunto de técnicas
sobre seus próprios corpos, condutas e pensamentos através de
vigilância constante e conformação aos ideais morais de sua sociedade.
Essa articulação do mecanismo disciplinar dos corpos e do controle
dirigido à população, que se configuram na forma de biopoder, está nas
bases do pensamento higienista. A biopolítica, dominando e ordenando
a vida e suas esferas, como a sexualidade, a saúde, as relações e as
questões individuais, atua sob o pretexto de formar e potencializar o bem
estar dos indivíduos e da população em geral. Dessa maneira, não é
difícil compreender a importância da medicina na ordem dos discursos
sobre a saúde, o bem estar físico e moral, as condutas de vida, enfim, a
administração da própria vida.
O ideário higienista que foi introduzido na escola, não tinha outro
objetivo se não o de controlar os indivíduos no plano físico e moral com
vistas à população. A educação sanitária que se fez presente nas
instituições escolares do século XIX e XX reduziu o modelo de
educação à lógica do biopoder, e a criança passou a ser o próprio
vigilante de sua saúde, condutas e moral a partir das práticas vivenciadas
na instituição escolar que lhe admoestava as formas que considerava
corretas para a vida. Esse mecanismo disciplinar não se restringia às
salas de aula, mas se estendia à esfera familiar. Assim, de acordo com
Foucault, o maior objetivo era o de regenerar e transformar os modos de
vida da população.
A inculcação de hábitos saudáveis no terreno da infância, tida
como idade maleável e de fácil apreensão de normas e valores,
possibilitou o enlace da pedagogia com a psicologia e psiquiatria. Nesse
contexto, a psicologia, considerada como uma das ciências capazes de
perscrutar o caráter da natureza infantil começou a fazer parte dos
discursos escolares sobre a formação de atitudes e comportamentos
cognitivos da criança (ROCHA, 2003).
Postel e Quétel (1987) defendem que desde Victor de Aveyron, o
menino lobo encontrado no sul da França na passagem do século XVIII
para o XIX, e que despertou o interesse de Jean Itard e Philippe Pinel, a
medicina passou a investigar o universo infantil e a formalizar a
psiquiatria infantil do século XX. Esse feito trouxe inúmeras
repercussões para o tratamento moral das crianças e abriu espaço para o
diálogo entre medicina e pedagogia. Ainda que o pensamento da época
priorizasse as causas orgânicas sobre as afecções mentais, esse período
marca o início das investidas sobre os tratamentos pedagógicos para a
reeducação e inculcação de hábitos nas crianças.
169
 

A questão da higiene foi muito além da preocupação com o meio.


Seus objetivos eram de higienizar as teorias sociais e humanas, e a
educação estava entre seus principais pontos estratégicos. O
cumprimento da ordem higienista era dado pelo Estado, que criava as
condições legais, materiais e institucionais e as legitimava em
concordância com as exigências da ordem política e econômica vigentes.
Do mesmo modo que os estudos sobre as doenças seguiam seu curso
cientificamente sem obstáculos políticos ou sociais, o estudo das
sociedades passou a ser realizado com métodos da Biologia, num
processo de biologização do social que o despolitizava (HORTA, 1994).
As medidas higienistas de Oswaldo Cruz no início do século XX
não tiveram êxito, suas estratégias coercitivas foram desastrosas do
ponto de vista político. Portanto, inculcar a higiene pelo caminho da
educação, era uma tarefa que visava à persuasão pelo convencimento,
sem o uso da força. Essa tarefa, segundo Horta (1994) se dava pela
justificativa embasada no conhecimento científico que se utilizava de
uma via mais próxima dos indivíduos, a via médica.
A educação escolar que se apresenta na atualidade segue
fortemente influenciada pelos ideais higienistas. A profilaxia e
sanitarismo que se referiam tais ideais justificaram e legitimaram a
atuação de profissionais do campo médico, como pediatras, psicólogos e
psiquiatras no campo da educação, justamente por este ser considerado o
ambiente de formação do caráter e criação de hábitos. A infância ainda é
vista como período primordial de prevenção das doenças mentais e, cabe
aos professores e agentes da educação identificá-las e corrigi-las a
tempo.

A escola não é o lar da criança, mas é o lugar


onde a gente trabalha pra formá-la para a
sociedade. Hoje em dia, os pais delegam à
escola a educação que deveriam dar aos seus
filhos. Muitas vezes, os pais nem sabem o que
acontece com seus filhos. É aqui que a gente
percebe se a criança está com um
comportamento estranho, diferente dos outros.
Toda equipe de professores passa por cursos
para poder identificar se um comportamento é
normal ou não. Porque eu sou formada em
pedagogia com habilitação em educação
especial. As deficiências que eu estudei eram
deficiências sensoriais. Quando eu cheguei no
Estado, passei por cursos de formação pra
reconhecer aluno com TDAH, dislexia, coisa que
não tive na minha formação acadêmica. No
170
 

próximo semestre, nós teremos uma palestra


para os professores sobre identificação de outras
doenças fora o TDAH e a dislexia. (PA1)

A institucionalização da educação e dos cuidados da infância


possibilitou o enlace entre o higienismo, a psiquiatria, a psicologia e a
pedagogia. Segundo Tavares (1996), o desenvolvimento e o aprendizado
das crianças apoiaram-se em técnicas científicas que quantificavam e
controlavam seus níveis e padrões de normalidade. A psicologia e a
psiquiatria forneceram as medidas de desenvolvimento considerado
saudável para a pedagogia, e deslocaram os problemas de aprendizado
ou comportamentais para o campo individual, desconsiderando as
variações que fazem parte do próprio desenvolvimento infantil. A
influência da medicina, da psiquiatria e psicologia no âmbito escolar foi
possível graças à aplicação de controle e medida sobre os
comportamentos e desenvolvimento pedagógicos.
Lima (2004) afirma que a partir da década de 1920, a escola
passou a ser influenciada pela ideia de que o potencial individual
poderia ser conhecido cientificamente. O lema científico partia da
prerrogativa de que tudo existe em certa quantidade e medida, e isso
repercutiu na avaliação quantitativa das aptidões e conhecimentos
adquiridos na escola. Dessa maneira, os professores foram influenciados
a observarem as variações comportamentais dos alunos e a alertarem
suas famílias sobre as disparidades encontradas.
A psicologia e psiquiatria deram à educação escolar um olhar
terapêutico sobre o indivíduo, no sentido de normalizar e transformar a
vida:

Quem trabalha com educação sabe que a maior


tarefa da escola é formar o indivíduo para a
sociedade. Pra isso, temos que avaliar não só
seu desenvolvimento pedagógico, mas seu
comportamento, sua conduta, seu modo de agir
com os outros. É aqui que ele passa a maior
parte do tempo, às vezes mais do que passa com
a própria família. Se a gente percebe que um
aluno vai mal, está com um comportamento
inadequado, não dá conta disso e daquilo, ou a
gente vê, ‘ah’, ele tem essas e essas
características e deve ser por causa disso que
não alcança isso [...] a gente tem que
encaminhar essa criança pro setor de psicologia
da escola, pra eles avaliarem o que está
acontecendo e encaminhar pra terapia ou pra
outro tipo de tratamento se for o caso. O que não
171
 

se pode fazer é deixar esse aluno sem um


acompanhamento. (PA1)

O relato acima revela que as raízes de uma pedagogia-médica ou


pedagogia-higiênica ainda permeiam a escolarização, e o pensamento
vinculado à formação moral que circundava a educação no início do
século XX, ainda se mantêm nos discursos escolares. Como vimos, foi
por meio da atuação dos médicos higienistas e suas práticas
disciplinadoras e normalizantes que a educação se tornou a “ponte” para
a psiquiatrização do cotidiano escolar.
Como analisamos em Bourdieu (1983, 1996), o conceito de
habitus se refere a um campo dado e molda as ações e instituições. Todo
campo se estrutura por agentes dotados de um mesmo habitus, por isso
Bourdieu (1992) fala que o campo estrutura o habitus e o habitus
constitui o campo. O habitus é a incorporação da estrutura social e o
campo é a exteriorização do habitus. Em sua definição, o campo é tanto
um campo de forças que constrange os agentes que nele se encontram,
como um campo de lutas em que esses mesmos agentes atuam para
conservar ou transformar sua estrutura.
O campo educacional foi moldado por práticas médico-
pedagógicas e seus agentes ainda operam nessa lógica atualmente. O
habitus de seus agentes – suas condições sociais de existência – é
interiorizado sob a forma de princípios inconscientes de ação e reflexão
e, por sua vez, é externalizado em suas práticas diárias, em seus relatos e
suas buscas por uma solução médica para os problemas que se
manifestam no âmbito escolar. Dito de outro modo são estruturas
estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes.
Essa prática, como vimos, foi construída historicamente a partir do
momento em que a medicina passou a intervir no cotidiano escolar e
vem se intensificando significativamente. Como afirmava Bourdieu, os
objetos de disputa de um campo são irredutíveis aos de outros campos,
sendo percebidos somente pelos agentes dotados do mesmo habitus,
portanto, os interesses de disputa do campo educacional coadunam com
os interesses do campo médico, ou seja, a busca por respostas biológicas
para questões que são eminentemente sociais, políticas, históricas e
culturais.
A realidade do campo educacional vai ao encontro dos princípios
biologizantes que são oferecidos pela psiquiatria. Para Bourdieu, no
interior de todo campo, existe uma dinâmica de conflito permanente
onde os indivíduos e grupos buscam defender seus privilégios, e esses
conflitos resultam da tendência que o campo tem de se reproduzir. Ele
trouxe como exemplo o próprio sistema de ensino, analisando-o como
um empreendimento da cultura de classes que reproduz as ilusões
172
 

necessárias para o seu funcionamento e manutenção, e afirmou que essas


eram as “crenças compartilhadas” em um campo dado. Nesse sentido,
todo campo desenvolve o que ele denominou de doxa, ou seja, aquilo
sobre o que todos os agentes concordam, os seus sistemas de
classificação, resumidamente tudo aquilo que é aceito como “sendo
assim mesmo”. Os agentes que ali se encontram, reconhecem seus
valores fundamentais, suas regras de funcionamento e aceitam seus
pressupostos cognitivos e valorativos que conformam o habitus do
campo.
Ainda que alguns de seus agentes discordem das soluções via
psicofármacos, a grande maioria aceita que o funcionamento desse
campo se dê por essa via e, muitas vezes, demanda esse tipo de solução,
como podemos observar na fala de uma professora:

Nossas salas de aula comportam uma média de


20 a 30 alunos e nosso corpo docente é muito
bem preparado para lidar com diversas
situações [...] quando um aluno está se
prejudicando e prejudicando o andamento da
classe, nós chamamos a família para tentar
entender se existe alguma mudança na estrutura
daquela família, como ele está se comportando
em casa, se em casa ele também está muito
agitado, muito agressivo. Quando é um
problema estrutural, nós tentamos resolver essa
questão junto da família, mas quando o
problema é de outra ordem, essa criança é
encaminhada para um neuro. Ele avalia,
examina e se tiver que tomar medicação, a
escola trabalha isso junto dessa família, ampara
essa família. Posso te dizer que a criança
melhora muito. Temos casos de alunos que
mudaram bruscamente [...] Passam a participar,
melhoram as notas, se empenham nos trabalhos.
Mas acho que tem que avaliar, né, tem que ter a
avaliação certa. Não pode ser igual pra todos,
cada caso é um caso. (PH2)

Nesse contexto, em que qualquer alteração comportamental de


uma criança ou, mais precisamente, qualquer alteração que se manifeste
no próprio DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais), pode levar inúmeros sujeitos ao campo da anormalidade.
Assim, como podemos observar a influência da medicina no âmbito
escolar atualmente?
173
 

Sabemos que no fim do século XX e início do século XIX, os


campos das biociências e neurociências produziram novos
conhecimentos a respeito da natureza humana, seus comportamentos e
funções cerebrais. Tais conhecimentos pautaram-se na busca por
explicações sobre as subjetividades e sofrimentos humanos, e no que
tange à esfera escolar, podemos observar sua forte influência nas
explicações dos problemas enfrentados no cotidiano dos alunos no que
diz respeito à biologização de seus comportamentos.
No próximo item, investigaremos a maneira pela qual o saber
médico é difundido atualmente e quais suas implicações sobre a esfera
escolar. Faremos uma breve consideração sobre a abordagem
sociológica do desvio segundo Howard Becker e Erving Goffman, a fim
de compreendermos como comportamentos considerados “problemas”
levam tantas crianças a transitarem da instituição escolar para os braços
da psiquiatria.

4.3 COMPORTAMENTOS DESVIANTES E O OLHAR


SOCIOLÓGICO

Analisamos que até o século XX a pedagogia tinha o interesse de


prevenir possíveis problemas infantis que pudessem desencadear
maiores dificuldades na vida adulta. Nesse período, o saber médico
direcionou seu olhar para o desenvolvimento infantil, procurando formas
de tratamento para as crianças com dificuldades no meio escolar. Data
dessa época o surgimento de testes de inteligência com fins a selecionar
os indivíduos apropriados ao modelo de aprendizado estabelecido pela
instituição escolar em voga. Especialidades como a fonoaudiologia,
psicologia e psicopedagogia, passaram a fazer parte do campo escolar de
modo a contribuir para que a responsabilidade pelo fracasso escolar
fosse atribuída à esfera familiar e ao próprio aluno. A significativa
intervenção do pensamento médico na instituição escolar levantou
barreiras que dificultaram a gerência dos problemas escolares que não
fosse pelo viés biológico, assim, Guarido (2007) afirma que a visão dos
profissionais da educação está fortemente marcada pela psiquiatria.
O espaço escolar tornou-se uma “ponte” para o processo de
medicalização dos comportamentos infantis e, de acordo com Collares e
Moysés (2014), este espaço deveria ser o campo de reflexões e
mudanças sociais, porém o que ocorre atualmente são as primeiras
intervenções psiquiátricas na infância como tentativa de normalizar e
disciplinar os alunos. A missão escolar, que em sua origem parte do
princípio de formação de indivíduos para a atuação crítica na sociedade,
encontra-se ofuscada pelo ato de diagnosticar e tratar comportamentos
tidos como problemas para as normas institucionais.
174
 

Qual seria a origem dos comportamentos que não são aceitos


dentro das instituições escolares e que despertam os olhares de
professores e famílias para uma suposta anormalidade inerente à
criança? Sabemos que os critérios para a realização diagnóstica de
transtorno mental, sejam do TDAH, fobias, depressão, dislexia, etc., são
genéricos e subjetivos e resultam de uma decisão social:

[...] baseado única e exclusivamente em um elenco


de comportamentos que se destacam do normal [...].
Entretanto fica claro que o “anormal” estaria
definido em função de comportamentos desviantes
daqueles esperados. Isto implica que tal diagnóstico
está sujeito às variações dos limites de tolerância dos
observadores (SUCUPIRA, 1985, p. 33).

O estudo científico do comportamento desviante não é tarefa fácil


de ser realizada, pois a ausência de elementos sólidos, fatos e
informações que sustentem as teorias são seus maiores entraves. No
entanto, a sociologia apresentou inúmeros trabalhos nesse campo com
investigações relevantes que abordaram esse tema. Becker (2008)
procurou analisar a relação existente entre os comportamentos e as
regras sociais a fim de compreender sociologicamente o termo
designado por desvio. Segundo o autor, todos os grupos sociais
constroem regras e tentam impô-las e, quando algum de seus membros
as transgredi, ele passa a ser visto como um outsider, ou aquele que não
condiz com as regras o grupo. Essas regras, que inclusive são muitas,
podem ser publicadas em forma de lei ou serem baseadas em acordos
informais. Infringir uma regra legalmente estabelecida provoca a
correção por parte da polícia do Estado. De maneira semelhante,
infringir uma regra estabelecida por consenso provoca uma reação do
grupo ao qual a regra faz parte. Entretanto, para o autor, os diferentes
grupos consideram diferentes condutas como desviantes, já que cada
grupo irá constituir seu próprio conjunto de regras.
O desvio é compreendido em termos estatísticos, assim, desviante
seria tudo o que varia em relação à média:

Ao analisar os resultados de um experimento


agrícola, um estatístico descreve o pé de milho
excepcionalmente alto e o pé excepcionalmente
baixo como desvios da média. De maneira
semelhante, podemos descrever como desvio
qualquer coisa que difere do que é mais comum
[...] Ao avaliar qualquer caso particular, basta-
175
 

nos calcular a distância entre o comportamento


envolvido e a média. (BECKER, 2008, p.18)

O desvio também pode ser compreendido em termos patológicos


e, nesse caso, não há discordância em relação às doenças que afetam o
organismo, mas muita discussão em relação aos comportamentos
considerados patológicos, já que dizem respeito ao campo do mental:

A partir de coisas como sífilis, tuberculose, febre


tifóide, carcinomas e fraturas, criamos a classe
“doença”. De início, essa classe era composta
apenas de alguns itens, todos os quais
partilhavam o traço comum da referência a um
estado de estrutura ou função perturbada do
corpo humano como uma máquina físico-
química. Com o passar do tempo, no entanto,
outros itens foram adicionados a essa classe. Eles
não foram acrescidos, contudo, por serem
doenças físicas recém-descobertas. A atenção do
médico havia se desviado desse critério e passara
a se concentrar, em vez disso, na incapacidade e
no sofrimento como novos critérios de seleção.
Assim, a princípio lentamente, coisas como
histeria, hipocondria, neurose obsessivo-
compulsiva e depressão foram adicionadas à
categoria de doença. Depois, com crescente zelo,
médicos e especialmente psiquiatras passaram a
chamar de “doença” (isto é, evidentemente,
doença mental) absolutamente tudo em que
podiam detectar qualquer sinal de mau
funcionamento, com base em não importa que
regra. Portanto, a agorafobia é doença porque
não se deveria ter medo de espaços abertos. A
homossexualidade é doença porque a
heterossexualidade é a norma social. Divórcio é
doença porque indica o fracasso do casamento.
Crime, arte, liderança política indesejada,
participação em questões sociais ou o abandono
dessa participação – todas essas e muitas outras
coisas foram consideradas sinais de doença
mental (H. BROTZ apud BECKER, 2008, p. 19-
20).

Em uma ou outra vertente, o desvio é considerado como uma


infração de uma regra socialmente criada, já que “os grupos sociais
criam o desvio ao fazer regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar
176
 

essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders”


(BECKER, 2008, p. 22). O desvio seria, portanto, o resultado das
reações de outras pessoas a uma atitude cometida por um dos integrantes
do grupo ou por um conjunto de pessoas desse grupo.
No caso da educação escolar, percebemos que alguns
comportamentos são considerados desviantes quando um aluno ou um
grupo de alunos demonstra atitudes que são consideradas impróprias
àquela instituição, como não permanecer sentado nos momentos em que
essa regra diz que deveriam; ser mais agitado do que a maioria dos
outros alunos; apresentar um comportamento violento em determinados
momentos; concentrar-se menos do que os outros na realização de
alguma atividade, entre outras situações e, caso isso aconteça, a escola
tentará enquadrar essa criança em suas regras. Se a abordagem escolar
não surtir o efeito desejado pela instituição, caberá ao psiquiatra e à via
medicamentosa corrigir o comportamento desviante, como relata uma
psicóloga da instituição pública B:

[...] essa aluna comia borracha, era desatenta o


tempo todo, inquieta. Eu fiz a avaliação e disse
que ela estava muito inquieta e que ela não
conseguiria fazer aquisições, porque não
conseguia prestar atenção. A mãe resistiu, não
queria levar ao psiquiatra, entende? Ela não
queria, dizia: ‘ai, eu tenho medo, eles vão
receitar isso’. Daí eu disse, ‘eu entendo, de
repente isso vai acontecer, mas com o tempo
também isso pode ser retirado, com
acompanhamento sério do médico’. Ela levou e
daí, claro, eles deram medicação. Ela tomou
durante uns 6 meses, ela mudou totalmente o
comportamento [...] mudou pra melhor, ficou
atenta, ligada. Mas a mãe com medo retirou por
conta própria, achou que já estava na hora.
Retirou e voltou tudo de novo [...] eles têm muita
resistência em seguir regras. Querem fazer do
jeito deles. Não é assim, né? Numa escola
existem regras que devem ser seguidas, se uma
criança destoa muito do grupo, a escola tenta
trazer ela de volta. A gente sempre tenta o
caminho do diálogo. Como profissional da área,
acredito que a psicoterapia sempre é o melhor
caminho e sei que tem casos que são pra
medicação mesmo. (Psi.B2)
177
 

As regras são criadas quando algo provoca sua imposição e isso


ocorre pelas premissas que Becker (2008) denomina de
“empreendimento”. Tais premissas podem ser descritas quando alguém
tem a iniciativa de punir o infrator, ou por conhecimento público da
infração – quando os interessados na imposição da regra levam à público
a infração – ou ainda a imposição necessária da regra, quando há
interesse pessoal nessa imposição. Os criadores das regras são os
empreendedores morais que, segundo Becker, são aqueles que têm o
desejo de corrigir o mundo e, para isso, convencem a maioria de que
suas regras são boas. Geralmente, isso ocorre pela aproximação de uma
classe dominante em relação aos menos favorecidos, o que significa que
“eles acrescentam ao poder que extraem da legitimidade de sua posição
moral o poder que extraem de sua posição superior na sociedade”
(BECKER, 2008, p. 155).
Em relação à psiquiatria, Becker afirma que quanto mais a sua
ideologia é aceita pela sociedade, mais a influência do psiquiatra torna-
se evidente, o que faz com que o empreendedor moral recorra cada vez
mais à figura desse especialista para formular as regras de maneira mais
adequada.
Já discutimos a questão sobre as formulações das categorias de
doenças e critérios diagnósticos que compõem os manuais utilizados por
médicos, professores e tantos outros profissionais. Vimos também que
tais formulações fundamentam-se nas opiniões dos médicos e
organizadores desses manuais e que, até o momento presente, não
existem dados científicos que comprovem a existência dos inúmeros
transtornos mentais que ali se encontram. Como, então, os
comportamentos descritos nos manuais podem ser classificados em
termos de desvio e desencadear o processo de medicalização de
inúmeras crianças? Essa é uma pergunta para a qual não existe somente
uma única resposta.
De acordo com Becker (2008), os fenômenos desviantes são
estudados há muito tempo no campo da sociologia sob a perspectiva da
ação coletiva do cometimento e não-cometimento de um ato dado.
Também podem ser analisados como uma construção de reafirmação de
significados da vida moral cotidiana ou, ainda, são estudados os atos que
outros definem como desviantes. O que nos importa aqui é compreender
que os comportamentos classificados como desviantes, anormais ou
patológicos aparecem no tecido social com certas discrepâncias em
relação ao que é “certo” ou “errado”, já que os próprios atores que
participam das construções nosológicas discordam quanto ao que é
patológico ou não.
A coleta e análise de dados que realizamos nas escolas
entrevistadas dessa pesquisa nos mostram que, muitas vezes, um
178
 

comportamento é encarado como anormal em uma dada instituição e não


é visto sob o mesmo prisma em outra, como podemos observar no relato
de profissionais de duas instituições distintas. O primeiro relato, nos
mostra que o comportamento de uma criança pode se apresentar agitado
em alguns momentos e/ou apático em outros, e isto não é um fator que
reclame a atenção médica por parte da instituição:

Todos nós possuímos nosso lado sombra.


Acontece que cada vez mais o ser humano perde
sua relação com o mundo ao seu redor, perde a
relação com a família, com a natureza, com as
outras pessoas e com o lado espiritual. E o que
acontece? Essa solidão que a gente vê por aí,
essa incompreensão em relação a si mesmo e em
relação ao outro. O mundo está cada vez mais,
as pessoas estão cada vez mais egoístas e
autodestrutivas. Ninguém consegue aceitar o
outro como ele é. Antes, uma pessoa mais
agressiva ou agitada era colocada num esporte
mais competitivo, numa atividade física mais
agitada, hoje todo mundo tem que ser igual. E
como deixar todo mundo igual? Hoje o remédio
faz isso. O que estamos criando? Que mundo
estamos criando? (PD1)

Neste segundo relato, a coordenadora da instituição deixa claro


que a escola possui suas regras e que o aluno que não se enquadra em
seus moldes, desperta a atenção dos agentes educacionais para as
questões neurológicas como explicação para tais comportamentos:

O que mais chama a atenção é o comportamento


que é persistente. Uma criança que não olha no
olho, por exemplo, que se isola ou se incomoda
com barulhos e algumas coisas [...] aí demora
pra se socializar ou é mais agressivo e desatento.
E, cognitivamente, digamos, em termos de
apropriação do conhecimento, ele tem zero de
dificuldade ou até mais facilidade que outras
crianças. Quando a gente vê que a família não
toma nenhuma atitude, a gente vê que está
prejudicando de fato o desenvolvimento da
criança, a escolarização e tudo mais, a gente
precisa encaminhar. E a gente percebe que tem
comportamento que realmente não é normal,
digo, não é normal de uma criança, a gente lê,
tem um monte de sites sobre isso, estuda, faz
179
 

cursos e percebe que aquilo não é normal que


tem alguma coisa por trás. (PAC)

Becker (2008) nos mostra que o problema em se encontrar


categorias nítidas que expliquem o desvio não é técnico, mas teórico. O
erro está que querer coincidir definições de ações cometidas por
determinadas pessoas com as categorias particulares de desvio tal qual o
mundo as define, porque elas pertencem a dois sistemas distintos de
ação coletiva: o das pessoas que cooperam para produzir determinado
ato, e o outro das pessoas que cooperam para a produção da moralidade
que determina o ato como desviante. O autor afirma que existe a
intenção, por parte de alguns analistas, de que o desvio caracterize
atitudes que:

[...] para qualquer membro “sensato” da


sociedade, ou por uma definição consensual
(como violação de uma regra alegadamente
existente, raridade estatística ou patologia
psicológica), são errados. Eles querem se
concentrar no sistema de ação em que esses atos
ocorrem. Os mesmos analistas também
pretendem aplicar a palavra às pessoas detidas e
tratadas como se tivessem cometido esse ato.
Nesse caso, querem se concentrar no sistema de
ação em que tais juízos ocorrem. Esse equívoco
com relação ao termo não causa nenhuma
imprecisão quando, e somente quando, aqueles
que cometem o ato e aqueles detidos forem os
mesmos. Sabemos que não são. Portanto, se
tomamos como nossa unidade de estudo aqueles
que cometeram o ato, incluímos necessariamente
alguns que não foram detidos e rotulados; se
tomamos como nossa unidade aqueles que foram
detidos e rotulados, incluímos necessariamente
alguns que nunca cometeram o ato mas foram
tratados como se o tivessem feito (BECKER,
2008, p. 186).

Dessa maneira, podemos buscar uma resposta para a questão


colocada acima a respeito de como os comportamentos desviantes que
constam nos manuais, podem desencadear a medicalização de inúmeras
crianças e adolescentes.
O processo de medicalização da infância pode ser descrito como
um fenômeno que atinge diversas crianças que apresentam
comportamentos típicos da infância, e sem nenhum comprometimento
180
 

cognitivo, a serem considerados alunos com problemas, encaminhados a


consultórios psiquiátricos e receberem tratamentos “corretivos” a base
de psicofármacos. Nosso trabalho não procurou negar a existência dos
transtornos mentais e nem questionar a veracidade dos mesmos, mas
compreender que o processo de medicalização passou a tratar
patologicamente todos os atos que não estão dentro do que é aceito ou
esperado dentro de um conjunto de regras estabelecidos pela medicina e
que, paulatinamente, foi se incorporando às práticas escolares.
Reconhecemos que as atividades coletivas e os atos desviantes
distinguem-se em relação ao tempo, ou seja, podem ser considerados
desviantes em um momento e não em outro. O que antes era aceito como
pertencente a determinado contexto, atualmente passa a ser definido
como patológico. Se em algum momento da história, o luto pela morte
de um ente querido era aceito e compreendido de maneira natural, após
o DSM-5 ele passou a ser caracterizado como transtorno de humor, caso
não atingisse melhora significativa no prazo de duas semanas. Se a
agitação e a impulsividade eram características comportamentais
próprias da infância, em 1980, com o DSM-III, elas foram classificadas
como transtorno neurobiológico de origem genética denominado de
TDAH. Na mesma conjuntura, a fase da adolescência, que outrora era
vista como a época em que se desejava liberdade e busca pela
autoafirmação, com o DSM-5, comportamentos característicos dessa
fase da vida foram classificados como TOD (Transtorno Desafiador
Opositivo). E nessa lógica, seguem inúmeros outros casos.
Nessa perspectiva, podemos concluir que se um ato passou a ser
considerado desviante ou, no caso da medicalização, passou a ser
considerado como transtorno mental, isso ocorreu porque foram criadas
novas regras nesse ínterim que permitiram essa determinação. Segundo
Becker (2008), isso acontece quando um participante dessa relação é
provido de poderes que permitem a imposição de suas vontades acima
das objeções dos outros, porém tais imposições aparentam facetas de
justiça e racionalidade. A aliança entre a psiquiatria e a indústria
farmacêutica, e o poder que essas duas instâncias exercem sobre as
esferas da vida, permitem que suas determinações sejam aceitas e
propagadas como verdades que atuam na prevenção de que os
indivíduos adoeçam mentalmente ou que, uma vez acometidos por
alguma espécie de transtorno, possam voltar à normalidade. A cada
versão do DSM, as novas categorias diagnósticas, que rotulam
comportamentos e subjetividades humanas em doenças, se fazem
presentes nos discursos dos médicos, agentes educacionais, psicólogos e
etc., como podemos observar na fala de uma professora das escolas
entrevistadas:
181
 

Eu acho que nos 4 anos que eu trabalhei ao


longo da minha carreira, tem tido um aumento
de crianças com transtornos. Eu acho que de uns
tempos pra cá, a facilidade de você diagnosticar
um TDAH, uma depressão ou até um caso de
bipolaridade, sei lá [...] não sei se é a indústria
farmacêutica, se é também a quantidade de
informações ou se os professores também estão
extremamente cansados e tem uma hora que a
gente já não sabe mais o que fazer e aí ‘vamos
procurar um especialista porque alguma coisa tá
errada’. Antes a gente não sabia, não tinha
informação que uma criança com determinados
sintomas tinha determinada doença, hoje a gente
já sabe. Hoje a gente já bate o olho e percebe se
aquela criança é muito diferente dos outros, se
ela mudou o comportamento e pode ter alguma
coisa que foge de um simples comportamento de
infância. (PG1)

De acordo com Goffman (1963), a compreensão do


comportamento diferente ou desviante encontra-se justamente em
comparação com aquilo que é comum, já que “a questão das normas
sociais é, certamente, central, mas devemos nos preocupar menos com
os desvios pouco habituais que se afastam do comum do que com os
desvios habituais que se afastam do comum” (GOFFMAN, 1963, p.
108). O autor ressalta que a vida social tem como condição o
estabelecimento de que seus participantes dividam um único conjunto de
expectativas normativas que foram incorporadas. Quando o desvio
acontece, logo aparecem medidas que restauram a condição de outrora.
O autor trabalha com o conceito de identidade e acredita que o desviante
adota, na estrutura social, a postura de conformidade em relação às
normas ou, uma vez que se vê incapacitado em sustentá-la, assume o
comportamento desviante. Esse fato pode ser confirmado na fala de uma
entrevistada:

Sabe o que eu acho curioso, é que tem criança


que parece que sabe que tem um comportamento
diferente dos demais e abusa disso, tipo, faz de
propósito. Ela é agitada ou nervosa e depois que
passou pelo psiquiatra, e a escola passou a
tratar de um jeito diferente, tentando criar
condições pra ela não ficar atrás do grupo, ela
não toma isso de uma maneira positiva. Ela
parece agir de maneira mais agressiva ainda e
jogar toda a culpa disso na doença. Então eu me
182
 

pergunto até que ponto esse tipo de tratamento e


toda essa medicação realmente estão ajudando,
se esse é realmente o caminho. (PE1)

Uma das escolas selecionadas para esse trabalho procura


desenvolver uma metodologia que não patologize os comportamentos
considerados inapropriados de acordo com normas preestabelecidas.
Porém, mesmo com uma perspectiva pedagógica alternativa, a
professora me relatou dois casos de alunos que foram encaminhados
para tratamento psiquiátrico. Os problemas mais relatados dizem
respeito ao comportamento agressivo e agitado e essa escola procura
abordar essa questão de maneira diferente das outras instituições. Eles
acreditam que a criança traz em si características que aprenderam em
casa, no modelo de relação familiar, mas que também já nascem com
elas e as desenvolvem ao decorrer da vida. Todas essas características,
agressivas, agitadas, amorosas e etc., fazem parte de um
desenvolvimento geral de cada fase da vida e devem ser respeitadas e
não encaradas como um problema.
Por outro lado, ainda que o encaminhamento ao psiquiatra não
seja uma rotina incorporada pela instituição, o processo de
medicalização adota outras vias. Ele se faz presente na figura do médico
antroposófico que atua diretamente dentro da instituição, receitando
medicações quando a criança apresenta um comportamento diferente dos
demais. Os remédios aplicados são florais ou homeopáticos e são
prescritos ali mesmo na escola, com autorização das famílias.

Existe um grupo de apoio que trabalha com


terapia, fonoaudiologia, terapia artística e
musical para atender as crianças que estão mais
agitadas, mais tristinhas ou mais nervosas. Tem
crianças que são mais agressivas. Quer dizer,
que estão passando por um período de
desenvolvimento que a agressividade se aflora
mais, entende? A gente chama essa criança,
conversa com ela, chama a família e tenta
entender se tem algum outro problema por trás,
brigas em casa, separação. Nós desenvolvemos
um trabalho com essas crianças e elas tomam a
medicação antroposófica. Geralmente passa,
porque são fases, são etapas de desenvolvimento.
O absurdo é querer que uma criança de 3, 4
anos seja calminha, fique sentadinha [....] isso
não existe. Isso é um atentado contra o próprio
desenvolvimento do ser humano. Nessa fase a
criança está em pleno desenvolvimento cerebral
183
 

e querendo explorar o mundo ao seu redor.


Como é que vão ficar calminhos, sentadinhos
igual um boneco? (PD1)

Sendo assim, independente da via de acesso que a medicalização


de comportamentos possa seguir dentro das escolas, percebemos que os
comportamentos que fogem ao padrão daquilo que é aceito ou esperado
para os indivíduos, são vistos como algo ameaçador, seja do andamento
do grupo que, acredita-se, ficará prejudicado em seu cotidiano
normativo, seja do próprio indivíduo que não conseguirá se desenvolver
cognitivamente e, futuramente, poderá ver-se preso a uma doença da
qual não poderá mais se libertar. Ainda que tais comportamentos se
manifestem após a ocorrência de algum evento na própria família dos
indivíduos, como uma separação ou morte, ou mesmo quando tais
comportamentos se manifestem em determinadas situações e não em
outras, a medicalização assume o papel de corretivo e arauto da
normalização.
Nossa investigação também nos mostrou que nas escolas com
maior número de alunos por sala de aula, principalmente as escolas
públicas, a medicalização tende a ser mais empregada. A escola pública
A, com uma média de 35 a 40 alunos por sala de aula, há em torno de 8
a 12 alunos que recebem medicação. Já na escola privada E, com uma
média de 20 a 25 alunos por sala de aula, as crianças que recebem
medicação giram em torno de 1 a 3 alunos por sala. Os relatos de alguns
profissionais que atuam nessas instituições apontam a dificuldade em
lidar com um grande número de alunos e ao mesmo tempo conseguirem
atingir suas metas pedagógicas, bem como a dificuldade de alguns
alunos em se adequar às normas impostas naquelas instituições:

[...] temos salas com 40 alunos e um cronograma


de atividades para ser desenvolvido durante o
ano. Os alunos que são mais agitados, mais
bagunceiros, acabam levando o grupo todo junto
e isso prejudica a aula, os professores e todo o
andamento da rotina. Nós procuramos
desenvolver atividades para tentar entender o
que está acontecendo, entramos em contato com
as famílias dessas crianças, mas às vezes, a
coisa não caminha. Eu tenho contato, por
exemplo, semanal com as famílias, mando e-
mail, telefono. Faço um trabalho junto com os
representantes de turma. Nós tentamos de todo
jeito, entende, mas tem situações que parece que
só a medicação resolve. (PAC)
184
 

O relato abaixo apresenta a dificuldade dos alunos em se


adaptarem às normas institucionais:

Eu percebo que existe muita resistência por


parte dos alunos em entender as regras que
existem dentro da escola, principalmente os
alunos do fundamental I e II. Eles apresentam
essa resistência devido à idade, mas também
porque em casa não tem limites, podem fazer o
que querem e na hora que querem, daí quando
entram na escola, têm dificuldades em
compreender as regras, os horários, o que pode,
o que não pode. (PG2)

De acordo com Goffman (1963, p. 117), “o normal e o


estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em
situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não
cumpridas que provavelmente atuem sobre o encontro”. Dessa forma,
podemos inferir que os comportamentos desviantes que levam crianças e
adolescentes ao encontro do processo de medicalização, estruturam-se
em normas socialmente impostas e estereótipos culturalmente
estabelecidos, seja pelo grupo a qual ela pertença ou a própria instituição
escolar, e que uma vez em relação, os comportamentos que fogem ao
que é esperado, passam a ser vistos como doença ou prenúncio de
doença. Ainda que os métodos adotados para a suposta cura ou retorno à
normalidade, se apoiem em tratamentos menos agressivos do que
aqueles que se utilizam de psicofármacos, o ato de medicalizar as
condutas indesejáveis está presente e o papel interpretado pelo normal,
que dita as regras ou observa seus desvios, e o papel do desviante, que
foge ao que é comumente aceito, estão em cena no cotidiano escolar.
Esse alinhamento do comportamento desviante com o
comportamento “normal” ou com o comportamento padrão socialmente
esperado é denominado por Conrad (2007) de normalização.
Atualmente, cabe à biomedicina o emprego de melhorias para efetuar o
alinhamento e alcançar ou chegar o mais próximo possível da média
normal da população. O autor cita diversos exemplos de como a
biomedicina trabalha para realinhar o corpo, os comportamentos e
atitudes de acordo com o que é convencionalmente estabelecido pela
sociedade e seus padrões culturais. Assim como o que é estabelecido
social e culturalmente sofre inúmeras transformações ao longo do
tempo, as categorias diagnósticas dos transtornos mentais também
passam por um processo semelhante, que o autor chama de contração e
expansão. Esse processo explica porque muitos comportamentos que
185
 

eram aceitos socialmente, foram capturados pela medicina e tratados


como doenças. A expansão diagnóstica abordada por Conrad expande
seus limites, justamente no intuito de incluir novos problemas ou itens
relacionados a eles e também incorporar populações adicionais.
O comportamento considerado perigoso ou moralmente
inapropriado é erigido ao campo da doença ou da delinquência, o que é
explicado pelo autor como um deslize de significantes que transforma o
pecado em crime e posteriormente em doença. No contexto escolar, a
análise dos significantes efetuada por Conrad (2007) se faz presente, já
que a educação ocupou o papel daquele que dita as regras e observa seus
desvios com o objetivo de alinhar e normalizar os comportamentos ao
que é moralmente aceito, em parceria com a psiquiatria na tentativa de
encontrar os ajustes necessários.
Os principais comportamentos considerados “problemas”, que
levam tantas crianças a transitarem da instituição escolar para os braços
da psiquiatria são a desatenção, a impulsividade, a agressividade e a
hiperatividade. Existem outras características que levam pais e
professores a recorrerem aos consultórios psiquiátricos, porém essas são
as mais comuns e com maior prevalência, conforme explicitado na fala
do diretor de uma das escolas entrevistadas:

Tem criança que de uma hora pra outra muda de


comportamento da água pro vinho. Porque o
medicamento anestesia, eu não sei, na verdade
eu não sou um profissional específico da área
médica, mas ele anestesia algumas sinapses,
aparentemente anestesia. Então, determinadas
reações que a criança tinha, ela para de ter.
Olhar pro lado, reclamar [...] ou então uma
atividade que ele vai pegar, vai focar e não tirar
os olhos dali de cima, antes não. Passava uma
mosca, ele olhava. Existem determinadas séries
que são chaves na questão do comportamento. É
no quinto ano, no oitavo ano. Então assim, o
quinto ano é a idade de 10 anos e o oitavo é de
12 pra 13 anos. Uma das coisas que os
professores reclamam muito nesses anos é o
afastamento do grupo, alienação total e
agressividade. Eles querem mostrar que já são
diferentes, batem, xingam. Tem alguns alunos
que tem uma espécie de TOC [...] tem um que
olha embaixo da carteira umas 15 vezes antes de
sair da sala. Outra aluna pedia pra ir ao
banheiro uma 4 vezes durante a aula. Então é
basicamente isso, uma agressividade e muita
186
 

agitação [...] distração de não conseguir


começar e terminar uma atividade, de esquecer
tudo. (PC1)

Em todas as escolas entrevistadas, as características


comportamentais que despertam a atenção dos agentes educacionais e
suas famílias são as mesmas, com uma ou outra pequena diferença em
relação à média, como no caso de crianças que são mais tímidas ou
aquelas que não apresentam nenhum dos comportamentos considerados
desviantes, porém ficam aquém do grupo na questão cognitivo-
pedagógica:

[...] ele era excelente. Um guri super


comportado, querido, que vivia abraçando as
professoras e nunca se envolvia em brigas, mas
no quesito pedagógico ele não ia, não
acompanhava [...] a gente via que tinha alguma
coisa errada ali. Ele tinha dificuldade nas coisas
básicas que envolviam raciocínio lógico, escrita.
Um dia a gente chamou a família, tentamos
outros métodos, mas a coisa só deslanchou
quando ele foi num neuropediatra e foi
constatada a dislexia. Ele fez tratamento com
fono, mas sempre teve dificuldades. Com a
medicação, ele melhorou bastante. (PB1)

Em outra situação, a criança era muito retraída, não se envolvia


em atividades com o grupo, não conversava e quase nunca se
manifestava em sala de aula. Os professores alertaram sua família, e esta
procurou um psicólogo:

[...] nós esperamos os comportamentos normais


de acordo com idade criança. Mas a guria era
demais. Não conversava no recreio, ficava
sempre sozinha e quando a gente perguntava
alguma coisa pra ela, ela sempre respondia
baixinho, parecia que tinha medo de falar. Nós
chamamos a família [...] assim, aparentemente
não tinha nada de errado com aquela família. Os
pais levaram num psicólogo e depois ela passou
por um psiquiatra. Era depressão. Ela tomou um
antidepressivo [...] ela passou a conversar, vira
e mexe a gente via a guria brincando e rindo.
Era outra criança. (PB1)
187
 

Ainda que o professor exerça sua disciplina de formação, a


pedagogia, o que nos chama a atenção é o fato de que essa categoria
está, cada vez mais, orientada a atuar como especialista em questões
psicológicas e/ou psiquiátricas. Em todas as escolas que participaram
dessa pesquisa, com exceção de apenas uma, seus agentes educacionais
apresentaram um discurso psicologizante a respeito da criança e dos
problemas escolares, fato que é reforçado através de cursos de formação,
palestras e seminários que estreitam os laços entre a pedagogia e a
psiquiatria. O olhar psiquiátrico sobre toda sorte de questões
relacionadas à infância e adolescência, está fortemente presente na
instituição escolar, e seus agentes educacionais apoiam-se cada vez mais
em explicações médicas sobre o funcionamento do cérebro e suas
disfunções como resposta a todos os problemas comportamentais e
cognitivos.
Os transtornos mentais que explicam os motivos de determinados
comportamentos e dificuldades que as crianças apresentam na escola,
bem como o nome de alguns psicofármacos utilizados para o tratamento
dos mesmos, fazem parte do vocabulário dos professores. O mais
comum, como já dissemos, é o TDAH e o psicofármaco empregado em
seu tratamento é o metilfenidato (Ritalina® e Concerta®). Os agentes
educacionais, imbuídos de teorias psicologizantes subsidiadas por
informações a respeito das problemáticas da infância e adolescência,
pautam-se em critérios diagnósticos descritos no DSM que são
divulgados em sites, revistas e artigos:

[...] É como eu te falei, nós passamos por cursos


de formação e palestras sobre essas questões. No
último curso, recebemos material apostilado com
endereço de vários sites. E também a gente vai
atrás, pesquisa, se informa pra poder saber o
que pode estar acontecendo [...] tem um site, não
lembro o nome agora, mas tem um site que fala
tudo sobre déficit de atenção, ah, acho que o site
é déficit de atenção.com, acho que é isso, mas lá
explica muita coisa, até de outras doenças. Isso
ajuda a identificar, a bater o olho e entender o
que é isso, o que é aquilo [...] tem muito
congresso, muita coisa acontecendo nessa área.
O professor tem que ir atrás, se atualizar. E hoje
em dia, não tem como ficar alheio a essas coisas.
A internet tem tudo, basta procurar. (PA1)

Segundo as características contidas no DSM-5 (2013), os


critérios para o diagnóstico do TDAH passam pelos seguintes crivos:
188
 

desatenção, agitação (hiperatividade), irritação e impulsividade. Tais


critérios eram utilizados por profissionais da educação e da saúde para o
diagnóstico em crianças a partir de 6 anos no DSM -IV. Porém, um dado
alarmante é que a partir do DSM – 5 o TDAH, não necessariamente é
observado a partir dos 6 anos, mas já está presente desde o nascimento.
Tais afirmações confirmam as teses de herança patológica, normalização
de comportamentos e riscos.
Muitos professores e profissionais que atuam na educação
relataram que encontram informações a respeito dos transtornos, como o
TDAH, na própria internet, inclusive nos deram o endereço de alguns,
dentre eles o site do Instituto Paulista de Déficit de Atenção (IPDA)46, e
o site da Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA)47. O que
nos chamou a atenção é que esse site oferece cursos online para pais e
professores com crianças e bebês portadores de TDAH, e fazem clara
apologia ao uso de psicofármacos.

Muitas crianças com hiperatividade já


apresentavam os sintomas desde bebês, desde
que eram crianças bem pequenas. Mas também
muitos daqueles meninos agitados e hiperativos,
com o tempo acabam equiparando-se às outras
crianças. Se o TDAH é um transtorno de base
orgânica – genética (herdada de seus pais) ou
congênita (decorrente de problemas da gestação
ou parto), ele deve estar presente na criança
desde seu nascimento (IPDA, 2015).
 
No site da Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA),
o TDAH é definido como um transtorno neurobiológico de causas
genéticas que aparece na infância e frequentemente acompanha o
indivíduo por toda a sua vida. Nesse mesmo site  é apresentado um
questionário denominado SNAP-IV48, cujo objetivo é auxiliar a
identificação de possíveis sintomas do TDAH em alunos e no qual
constam as seguintes afirmações: "não consegue prestar muita atenção a
detalhes ou comete erros por descuido nos trabalhos da escola ou
tarefas; tem dificuldade de manter a atenção em tarefas ou atividades de
lazer; parece não estar ouvindo quando se fala diretamente com ele; não
                                                                                                                       
46
Maiores informações acessar: IPDA – Instituto Paulista de Déficit de Atenção.
Disponível em <http://www.dda-deficitdeatencao.com.br/instituto/index.html>.
47
Maiores informações acessar: ABDA – Associação Brasileira de Déficit de Atenção.
Disponível em: <http://www.tdah.org.br/>.
48
Segundo informações do site da ABDA, esse questionário foi formulado de acordo com
os sintomas apresentados no DSM-IV e foi divulgado em cursos online oferecidos pelo
mesmo.
189
 

segue instruções até o fim e não termina deveres de escola, tarefas ou


obrigações; tem dificuldade para organizar tarefas e atividades; evita,
não gosta ou se envolve contra a vontade em tarefas que exigem esforço
mental prolongado; perde coisas necessárias para atividades; distrai-se
com estímulos externos; é esquecido em atividades do dia a dia; mexe
com as mãos ou os pés ou se remexe na cadeira; sai do lugar na sala de
aula ou em outras situações em que se espera que fique sentado; corre de
um lado para outro ou sobe demais nas coisas em situações em que isto é
inapropriado; tem dificuldade em brincar ou envolver-se em atividades
de lazer de forma calma; não para ou frequentemente está a ‘mil por
hora’; fala em excesso; responde às perguntas de forma precipitada antes
de elas terem sido terminadas; tem dificuldade de esperar sua vez;
interrompe os outros ou se intromete”.
Investigamos esses dois sites, pois são os que os profissionais da
educação que foram entrevistados se baseiam para avaliar o
comportamento de seus alunos, inclusive realizando cursos de formação
complementar. Raramente um profissional da educação procura
informações mais específicas e próprias do campo da psiquiatria, como
as que se encontram no próprio DSM. Em todas as entrevistas, nenhum
profissional afirmou ter lido o DSM ou realizado qualquer tipo de
consulta em suas versões. Eles se baseiam em informações difundidas
em sites, revistas, blogs e nos cursos dos quais participam.
Os sintomas que o site descrito acima divulga são ferramentas
utilizadas, não só por profissionais da saúde, mas por professores no
momento da avaliação dos alunos. As descrições dos transtornos e seus
sintomas mostram a ausência de análise crítica sobre as relações das
problemáticas que se manifestam no cotidiano escolar e o contexto
sociopolítico que as determinam. A ausência de tais reflexões possibilita
o diagnóstico de muitas crianças como sendo portadoras de doenças
genéticas, as quais seriam as únicas responsáveis pelos comportamentos
considerados desviantes.

O discurso médico difundido na mídia leiga, em


forma de artigos simplistas que naturalizam o
sofrimento da criança e seus ‘problemas de
aprendizado', apresenta-se atualmente na escola
de forma marcante. É comum que professores e
coordenadores professem diagnósticos diante da
observação de certos comportamentos das
crianças, especialmente de Transtorno de Déficit
de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e as
encaminhem para avaliação psiquiátrica,
neurológica e/ou psicológica. É comum também
que agentes das equipes escolares insistam em
190
 

perguntar aos pais, quando se encontram diante


de alguma manifestação não conhecida (ou não
desejada) de uma criança que está em tratamento,
se ela foi corretamente medicada naquele dia.
Tais procedimentos nos permitem entrever que
estão crentes de que a variação no uso do
remédio é responsável pela variação dos
comportamentos e estados psíquicos das
crianças, e que esta não teria nenhuma relação
com variações, mudanças ou experiências no
interior do cotidiano escolar (GUARIDO, 2007,
p. 157).

A escola tem se tornado palco dessa tragédia aferrada às


disfunções neurológicas, e as formas de patologização do ensino-
aprendizagem, do TDAH, passando pela dislexia, depressão, TOD entre
outros, recaem sempre na padronização do comportamento que foge
àquilo que é socialmente estabelecido (COLLARES; MOYSÉS, 1996).
Essa análise nos permitiu compreender como o saber médico é
difundido e se faz presente no cotidiano escolar, influenciando suas
práticas pedagógicas, assim como seus agentes educacionais. Pudemos
compreender sociologicamente a maneira como alguns comportamentos
passam a ser considerados inapropriados ou desviantes em um grupo e
não em outro e como essa relação está sujeita às variações histórico-
temporais. Os conhecimentos médicos atuais, fundados na biomedicina e
neurociências estão cada vez mais presentes em nossa sociedade
explicando uma gama de sentimentos, atitudes, comportamentos e
dificuldades que os sujeitos experimentam ao longo de sua vida. No
próximo item, analisaremos as mudanças ocorridas nos conhecimentos
médicos do final do século XX, bem como seus avanços na biomedicina
e neurociências e suas influências na instituição escolar atualmente.

4.4 O AVANÇO DA BIOMEDICINA NA MEDICALIZAÇÃO DA


VIDA E DA INFÂNCIA E SEUS REFLEXOS NA ESFERA
ESCOLAR – BIOPOLÍTICA NO SÉCULO XXI

O processo de medicalização de praticamente


todos os aspectos da vida chega a tornar
plausível a crença de que toda insatisfação ou
mal-estar é indicação de um desvio, e como
tal deve ser suprimido. Transformada em
ideologia, a saúde física ou mental é extraída
do campo das interrogações filosóficas e
políticas acerca da “boa vida”, para
ingressar na esfera das habilidades e
competências a serem demonstradas no
191
 
mercado da subjetividade (BEZERRA JR.,
2002).
 
Já discutimos que no final do século XIX e início do século XX,
os campos das biociências e neurociências produziram novos
conhecimentos a respeito da natureza humana, seus comportamentos e
funções cerebrais. Entretanto, faz-se necessário uma análise sobre alguns
aspectos desses avanços e como seus reflexos podem ser vistos na esfera
escolar.
Constantemente observamos na mídia e no meio científico, a
divulgação de estudos genéticos da neurologia e da biomedicina sobre o
funcionamento do cérebro e seus neurotransmissores. Tais estudos
apresentam incontáveis tentativas em mapear o genoma humano e
encontrar a chave explicativa dos comportamentos e suas origens. De
acordo com Nikolas Rose (2013), há aqueles que pregam a possibilidade
de aplacar os sofrimentos humanos através de uma extensa lista de
psicofármacos lançados no mercado anualmente. Outros versam sobre a
teoria celular, sua constituição e divisão com enfoque na reprodução
humana e hereditariedade. O estudo dos genomas e da reprodução
trouxe ao mundo a possibilidade da clonagem humana e detecção de
problemas genéticos antes mesmo do nascimento. Outros ainda
concentram-se na biomedicina e tratam da biologia molecular e da
genética, decodificando suas informações sobre o funcionamento dos
neurônios, sinapses e neurotransmissores. Todos esses novos
conhecimentos, teorias e avanços científicos nos permitem refletir sobre
as características de atuação da biopolítica na atualidade. Marcada por
estudos moleculares, a biopolítica hoje se apresenta como poder de
manipular a vida humana em todas as suas faces vitais e transformá-la
através da genética. Se os séculos XVIII e XIX foram marcados por uma
política da saúde, do saneamento das cidades, dos controles das taxas de
natalidade, mortandade e epidemias, no século XX:

[...] essa preocupação com a saúde da população


e sua qualidade foi impregnada por uma
compreensão particular da herança de uma
constituição biológica e das consequências de
reprodução discriminatória de diferentes
subpopulações; isso pareceu obrigar os políticos
de muitos países a tentar administrar a qualidade
da população, muitas vezes coercitivamente e, às
vezes, mortiferamente, em nome do futuro da
raça. No entanto, a política de vida de nosso
século parece bem diferente. Não está delimitada
nem pelos polos de doença e saúde, nem
192
 

focalizada em eliminar patologias para proteger o


destino da nação. Ao contrário, está preocupada
com nossas crescentes capacidades de controlar,
administrar, projetar, remodelar e modular as
próprias capacidades vitais dos seres humanos
enquanto criaturas viventes (ROSE, 2013, p. 16).

Nesse contexto, a vida humana está sob controle do governo e


das novas formas de conhecimento do terreno “bio”: biomedicina,
bioeconomia, biotecnologia, bioética, biocapital, biovalor. A biopolítica
do século XXI encontra-se intrinsecamente ligada à bioeconomia e,
consequentemente, as dinâmicas médicas sofreram grandes e
importantes mudanças. A jurisdição médica não se ocupa somente das
doenças e acidentes, mas também administra as doenças crônicas, a
reprodução, o risco e a otimização da saúde. A grande mudança recai
principalmente no que o autor chama de autoadministração dessas
categorias, já que os indivíduos e famílias tornaram-se os responsáveis
pelos cuidados de si mesmo, o que os transformou de pacientes em
consumidores de medicamentos (Rose, 2013).
A medicina, altamente dependente de evidências e exigências do
uso de diagnósticos e procedimentos de prescrições médicas
padronizadas, encontra-se capitalizada e aliada à inovação técnica, à
exploração econômica e a formas de bioeconomia. As análises de Rose
(2013) apresentam a atualidade da biomedicina, que visualiza a vida no
nível molecular e os termos usados para descrevê-la, ocupam esse
mesmo campo semântico valendo-se de conceitos, referências e relações
que incluem expressões como codificação de bases nucleotídeas,
propriedades funcionais das proteínas, topografia molecular, genes
transportadores, entre outros. Tais mudanças recaíram também sobre os
distúrbios psiquiátricos que foram fragmentados em subgrupos,
analisados em bases moleculares e tratados à base de psicofármacos
molecularmente desenvolvidos, como afirma Rose (2013, p. 28): “Na
indústria farmacêutica e na pesquisa terapêutica, de maneira mais geral,
é no nível molecular que os agentes terapêuticos são selecionados,
manipulados, testados e desenvolvidos e, em termos moleculares que
seus modos de ação são explicados”.
Para o autor, é por meio das novas tecnologias de visualização
que a vida tem se tornado maleável ao pensamento molecular. No século
XX e início do século XXI, os exames de Raios-X e outros exames de
imagens, como mamografias, eletroencefalograma, tomografia,
ressonância, possibilitavam a visualização do corpo. Atualmente, as
visualizações técnicas reconstroem a vida a nível molecular, como
tecidos, células e fragmentos de DNA, que podem ser isolados,
193
 

decompostos e armazenados em bancos de recursos biológicos,


comercializados e transportados de um laboratório para outro. Nesse
novo nível molecular, “a vida em si se torna aberta à política” (ROSE,
2013, p. 31).
A contemporaneidade da biopolítica, opera na lógica dos riscos,
como já analisamos. Rose (2013) mostra que a busca da biologia
sistêmica (aliada à psiquiatria) – que se utiliza de informações geradas
pelo Projeto Genoma Humano49, onde profissionais de diversas áreas
trabalham juntos para modelar as interações entre os componentes
básicos dos sistemas biológicos, como as sequências de DNA e as
proteínas – está justamente em prever estados vitais futuros,
possibilitando possíveis intervenções nesses sistemas. O autor afirma
que uma mudança epistemológica e ontológica está em curso. Nesse
enredo, a biomedicina contemporânea está engajada num
replanejamento biológico da vitalidade: “tecnologias médicas
contemporâneas não buscam simplesmente curar doenças uma vez elas
tendo se manifestado, mas controlar os processos vitais do corpo e da
mente. Elas são, concluo, tecnologias de otimização” (ROSE, 2013, p.
32).
O replanejamento biológico da vitalidade pode ser visto em
algumas mudanças que ocorreram no campo nas neurociências. As
versões do DSM possuem uma sintonia fina entre suas diretrizes
diagnósticas e as teorias neurocientíficas dos transtornos mentais com
uma clara interpelação fisicalista do problema e exclusão dos contextos
sociais, históricos e políticos. Ortega (2008), afirma que houve uma
notória transformação da abordagem do cérebro, antes um importante
órgão de nossa constituição biológica, agora quase que um ator social na
contemporaneidade. Essa transformação deve-se a vários fatores, como
o aperfeiçoamento tecnológico dos aparelhos de produção de imagens –
PET scans, o próprio sequenciamento do genoma humano tratado por
Rose, a eclosão da indústria farmacêutica de psicofármacos, etc.
Conforme já abordamos, desde o século XIX procura-se uma linguagem
técnica que vincule os estados mentais a uma estrutura neurológica. Essa
procura, como sugere Rose (2013), focava os sentidos humanos e a
aprendizagem numa abordagem neurológica, e continuou seu caminho
na busca do entendimento dos transtornos mentais em um correlato
material, ainda que sem grandes sucessos.

                                                                                                                       
49
O maior objetivo do Projeto Genoma Humano (PGH) é o mapeamento do genoma
humano e a identificação de todos os nucleotídeos que o compõem. Segundo informações
do National Institutes of Health (NIH) – <http://www.nih.gov/> –, laboratórios de todo o
mundo se uniram à tarefa de sequenciar, um a um, os genes que codificam as proteínas do
corpo humano e também as sequências de DNA.
194
 

Atualmente, as neurociências alargaram seu campo de interesses,


antes restrito ao perímetro dos sentidos e movimento das doenças
neurológicas, agora abrange o perímetro das emoções e dos
comportamentos sociais. Segundo Ortega (2008), as neurociências
criaram novas áreas de atuação em seu campo, como a neuroarte,
neuroteologia, neuroética, neuroeconomia, neuropolítica. De acordo com
Ehrenberg (2004), as neurociências possuem dois projetos de
intervenção na vida humana. O primeiro, que o autor chama de fraco,
teria o objetivo de avançar no tratamento das doenças neurológicas,
como fizeram com a descoberta de aspectos neuropatológicos em
problemas mentais como a esquizofrenia. O segundo, denominado pelo
autor de programa forte, procura identificar o conhecimento do
funcionamento cerebral ao conhecimento de nós mesmos como sujeitos
que, segundo Ehrenberg, culminaria numa neurobiologia da
personalidade.
Nesse contexto, as atualíssimas neuroimagens surgem com o
intuito de fortalecer a já intensa correlação entre imagem e verdade. As
imagens de “cérebros com transtornos” comparados a imagens de
“cérebros normais” seriam a prova cabal que tanto se esperava. A partir
de então, passou-se a postular que os transtornos mentais seriam uma
disfunção dos neurotransmissores (substâncias químicas que atuam nas
sinapses e são o ponto de junção do neurônio com outra célula), ou seja,
proveniente de um transtorno químico. Segundo Horwitz e Wakefield
(2007), ainda não foi comprovada a relação causal de deficiência
química cerebral e transtornos mentais como a depressão. Além da
hipótese de deficiência química, a associação dos transtornos mentais a
uma possível herança genética se fortaleceu a partir das imagens obtidas
através dos PET-Scans50 e da ressonância magnética. Conforme os
autores, a relação dos transtornos mentais e problemas anatômicos em
regiões cerebrais como a do córtex pré-frontal, do hipocampo ou da
amígdala ainda não foi comprovada e seus resultados continuam
bastante contraditórios. As imagens obtidas através de um PET-Scan
ainda não são suficientes para comprovar tais relações, já que o cérebro
de um indivíduo em estado de tristeza profunda são muito parecidas com
as de um indivíduo “diagnosticado” com Transtorno Depressivo
Maior51, o que leva a crer que determinadas alterações de humor
provocam contrapartidas físicas.
                                                                                                                       
50
PET-Scan ou Positron Emission Tomography é uma modalidade de diagnóstico por
imagem que permite o mapeamento de diferentes substâncias químicas no organismo.
51
De acordo com o DSM-5, o Transtorno Depressivo Maior é o transtorno conhecido
como depressão. Apresenta os seguintes sintomas: humor triste, vazio ou irritável,
acompanhado de mudanças somáticas e cognitivas que afetam significativamente a
capacidade de funcionamento do indivíduo.
195
 

De acordo com Uttal (2002), os exames de neuroimagens tentam


freneticamente localizar funções cognitivas no cérebro. A tentativa de
construir uma ponte entre o cognitivo e o neural culmina num
neuroreducionismo, e o desejo de encontrar respostas fáceis para
questões profundas da experiência humana pode levar a um conjunto de
suposições incorretas sobre as relações entre comportamento, atividade
mental e atividade cerebral.
Os discursos de verdade provenientes do campo das
neurociências, a utilização dos critérios do DSM para determinação dos
diagnósticos baseados apenas nos sintomas apresentados e a procura
pelo estabelecimento de bases neurológicas para as classificações
psiquiátricas reduzem a experiência subjetiva a simples comportamento.
Não se trata de negar as inúmeras contribuições das pesquisas biológicas
que foram e continuam sendo realizadas em prol da vida humana. São
inegáveis as contribuições da produção de pesquisas para a melhoria de
vida de indivíduos que sofrem de doenças degenerativas, por exemplo.
O problema, como mostra Bezerra (2002), reside justamente no
equívoco epistemológico e ético do essencialismo fisicalista:

A hegemonia do mito científico como fonte de


sentido invade o modo como os indivíduos se
apropriam de sua experiência subjetiva. Por
exemplo: a difusão, no imaginário social, de
explicações fisicalistas do funcionamento da
mente e do sofrimento psíquico estimula o
privilégio concedido à dimensão biológica da
vida subjetiva em detrimento da psicológica ou
intersubjetiva. No vocabulário do cotidiano,
palavras comuns e despidas de conotação médica
ou científica, como ‘tristeza’, ‘desencanto’ ou
mesmo ‘angústia’, cedem rapidamente lugar a
expressões como “depressão” ou ‘distimia’, ou
‘síndrome do pânico’, supostamente mais
precisas ou objetivas (BEZERRA JR., 2002).

A compreensão dos indivíduos com bases exclusivamente


fisicalistas, ou como afirma Rose (2013), com parâmetros
exclusivamente selfs neuroquímicos, precisa ser urgentemente
problematizada. A difusão da retórica fisicalista no vocabulário
cotidiano de professores e agentes educacionais orienta a educação de
crianças dentro e fora da escola. Ainda que o pensamento fisicalista e a
lógica medicalizante estejam intrinsecamente ligadas às práticas de vida
da atualidade, sabe-se que um cérebro não é um órgão isolado. Ele
pertence a um corpo que age e interage num mundo construído por
196
 

valores históricos, sociais, políticos e culturais. As imagens oferecidas


pelos PET-Scans nada traduzem de nossa experiência e inter-relação
com esse mundo (BEZERRA JR., 2002). A ideia redutora de que as
causas dos sofrimentos estão atreladas ao cérebro, nada mais é do que
um retorno aos postulados localizacionistas e deterministas que
caracterizaram a psiquiatria biológica do século XVIII e XIX.
A influência desse discurso pode ser observada pela demanda,
tanto da escola como das famílias, por um diagnóstico médico que avalie
os comportamentos tidos como inapropriados.

[...] Por exemplo, minha filha de 14 anos sempre


foi extremamente agitada. Piorou muito quando
eu me separei e mais ainda quando meu pai
faleceu. Eu levei essa menina em tudo quanto foi
médico. Até que no ano passado, ela foi para os
Estados Unidos e lá fez um exame de imagem do
cérebro [...] Foi caríssimo, mas nós finalmente
descobrimos que ela tinha TDAH associado com
depressão. Você não tem ideia de como ela
melhorou. Faz um ano que ela toma medicação e
ela mudou completamente. Hoje ela consegue
estudar, não tem mais aqueles ataques de raiva
que tinha antes [...] Se nós soubéssemos que
seria tão fácil resolver isso, teríamos levado há
muito mais tempo. (PA1)

O conjunto de especialidades científicas e a produção de


discursos de verdade no campo da psiquiatria consolidaram diversas
práticas de intervenção, bem como a orientação educacional de crianças
e adolescentes dentro e fora da escola. A fala dessa professora carrega o
que comumente se escuta nas ruas, nas escolas e nas festas infantis, a
retórica de que a agitação, a hiperatividade, o isolamento, a timidez, a
agressividade dentre outras características, são reflexos de possíveis
transtornos mentais. A consideração biológica das experiências humanas
torna-se o alicerce de entendimento do processo de ensino-aprendizagem
que traduz comportamentos típicos da infância como sintomas de
doença.
O que podemos dizer a respeito de comportamentos considerados
inapropriados para determinada idade ou instituição de ensino, bem
como dificuldades relacionadas ao processo de aprendizagem que são
traduzidos em termos biológicos e corrigidos através de psicofármacos?
Como a medicalização de comportamentos próprios da infância atua na
instituição escolar? Essas foram as indagações que motivaram esse
trabalho.
197
 

A princípio, a medicalização de comportamentos, em algumas


instituições que entrevistamos, é vista com bons olhos. Há certa
esperança de que aquela caixinha de pílulas resolva, senão todos os
problemas, ao menos os que se manifestam no cotidiano escolar e
conturbam a padronização que tanto se espera. A partir do momento que
o diagnóstico entra em cena e a dimensão técnica se impõe através dos
psicofármacos, a educação deixa de ser o ator principal. Não sobra
muito espaço para questionamentos a respeito do modelo educacional
que temos na atualidade, para reformas políticas de base, enfim, para
intervenções potentes e transformadoras. As dimensões simbólicas das
relações educativas e o olhar crítico a respeito da própria prática de
ensino se esvaziam quando o remédio passa a ser visto como solução.

Como educadores, nós sabemos que a situação


não está adequada. O ensino vai de mal a pior.
Ao menos aqui no estado, a situação é bastante
complicada. Falta muita coisa [...] Lidamos com
uma série de problemas que fogem da alçada da
educação. São salas com 40, 45 alunos e todo
um conteúdo para aplicar [...] As crianças
trazem muitos problemas de casa que se
manifestam aqui dentro. É muita indisciplina,
muita falta de respeito, chega a ser um descaso
mesmo. (PF2)

A solução para uma série de problemas que se manifestam no


cotidiano escolar está fortemente ligada ao discurso médico que reduz o
fenômeno subjetivo à lógica do funcionamento orgânico. A medicação
atua como reguladora da subjetividade, reordenando os comportamentos
não adaptados aos ideais instituídos. Segundo Guatari (1992), a
subjetividade é uma produção histórica e social e pode ser pensada como
um conjunto de condições que possibilita que instâncias individuais e
coletivas possam emergir “como território existencial auto-referencial,
em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela
mesma subjetiva” (GUATTARI, 1992, p. 19). A subjetividade se
estrutura nuclearmente no desejo e este impulsiona o agir do indivíduo
sobre o mundo. O processo de subjetivação, segundo o autor, se dá
quando acontece uma mudança nesse núcleo e isso pode alterar
significativamente a intencionalidade de atuação dos indivíduos sobre a
vida. Ademais, a subjetividade pode ser alterada ou ser levada a isso.
Os remédios aparecem como um recurso a mais para que o
cotidiano escolar possa funcionar e o processo de aprendizagem se
realize conforme o planejado. A reordenação das subjetividades no
198
 

âmbito escolar a partir da medicação reduz a própria experiência da


aprendizagem enquanto instância transformadora.

O crescimento exponencial das crianças e jovens


que supostamente necessitam de ‘correções’ em
seu processo de aprendizado está relacionado
com a consolidação de um ethos escolar e,
sobretudo com uma lógica de eficiência esperada
do sistema educacional. A pretendida eficiência
do fluxo escolar exige tecnologias – entre as
quais os medicamentos – reparadoras do que é
disfuncional (LEHER, 2013).

Como vimos no decorrer desse trabalho, o discurso médico


trouxe mudanças estruturais para as práticas pedagógicas; mudanças
disciplinadoras e normalizantes. As propostas dos higienistas no âmbito
escolar, aventadas no início do século XX visavam o futuro de uma
nação moralmente disciplinada e saudável, resultando numa pedagogia
médica.
Entretanto, o saber médico na atualidade não se encontra mais
ligado apenas a um conjunto moral como fora na época dos higienistas.
A atuação do saber médico atual encerra-se no que podemos chamar de
um conjunto de procedimentos que controlam a vida cotidiana, aliados a
psicofármacos como forma de remediar o mal-estar contemporâneo.
Vivemos aquilo que Foucault (2006) previu quando afirmou que
o saber psiquiátrico se limitaria a hipnose, aos interrogatórios e as
drogas. A infância capturada pelos transtornos desloca a procura de
soluções educativas, no âmbito escolar, para o campo das soluções
medicalizantes e catalogadoras. Como mostra Leher (2013), as
tecnologias do não-aprender conferem ao que é político o caráter de
técnica, e isso só é possível porque a ação organizada e sistemática da
indústria farmacêutica influencia profissionais, tanto da saúde como da
educação e a própria família sobre os efeitos positivos que o uso de
medicamentos podem exercer sobre o aprendizado e o desenvolvimento
das crianças de modo geral. Junte-se a isso o imperativo de cumprir
metas de avaliação e o resultado final será a medicalização nutrindo-se
da biologização do social.
A tentativa de apaziguar o comportamento humano via
medicamentosa leva ao caminho oposto da aprendizagem que nos
constitui como sujeitos críticos em relação ao mundo em que vivemos.
O reducionismo ao biológico pode trazer a calmaria e a sensação de
alívio frente às incertezas da vida, frente a um futuro de incertezas. Mas,
se desde cedo somos ensinados a eliminar nossas dores e incertezas com
uma pílula mágica, o que restará de nossa capacidade criadora, tão cara à
199
 

nossa espécie? A ideia de que os conflitos podem ser resolvidos através


de psicofármacos, retira do ser humano o poder de acreditar em sua
própria capacidade de superação e lança para as sombras uma das
grandes virtudes da humanidade: a resiliência.
O discurso médico infiltrado nas escolas influencia, não só as
práticas pedagógicas, mas toda a maneira de se lidar com a vida. Ele
silencia os conflitos negando sua pertença à subjetividade e ao encontro
humano. Esse mesmo discurso constrói, tijolo a tijolo, a existência de
crianças incapazes de aprender – não somente a ler e a escrever, senão a
lidar com a própria vida a menos que submetidas a uma intervenção
técnica. Enquanto nossas práticas se reduzirem a apenas remediar os
conflitos inerentes à nossa condição humana, continuaremos no
“subsolo”, desacostumando-nos paulatinamente da vida como tão
lindamente nos mostrou Dostoiévski:

[...] um romance precisa de herói e, no caso,


foram acumulados intencionalmente todos os
traços de um anti-herói, e, principalmente, tudo
isto dará uma impressão extremamente
desagradável, porque todos nós estávamos
desacostumados da vida, todos capengamos, uns
mais, outros menos. Desacostumamo-nos mesmo
a tal ponto que sentimos por vezes certa repulsa
pela ‘vida viva’, e achamos intolerável que
alguém a lembre a nós. Chegamos a tal ponto que
a ‘vida viva’ autêntica é considerada por nós
quase que um trabalho, um emprego, e todos
concordamos no íntimo que seguir os livros é
melhor. E por que nos agitamos às vezes, por que
fazemos extravagâncias? O que pedimos? Nós
mesmos não sabemos. Será pior para nós
mesmos se forem satisfeitos os nossos
extravagantes pedidos. Bem, experimentai, por
exemplo, dar-nos mais independência,
desamarrai a qualquer de nós as mãos, alargai o
nosso círculo de atividade, enfraquecei a tutela e
nós... eu vos asseguro, no mesmo instante
pediremos que se estenda novamente sobre nós a
tutela. Sei que talvez ficareis zangados comigo
por causa disso, e gritareis, batendo os pés: ‘Fale
de si mesmo e de suas misérias no subsolo, mas
não se atreva a dizer ‘todos nós’. Mas com
licença, meus senhores, eu não me estou
justificando com este todos. E, no que se refere a
mim, apenas levei até o extremo, em minha vida,
aquilo que não ousastes levar até a metade
200
 

sequer, e ainda tomastes a vossa covardia por


sensatez, e assim vos consolastes, enganando-vos
a vós mesmos. De modo que eu talvez esteja
ainda mais ‘vivo’ que vós. Olhai melhor! Nem
mesmo sabemos onde habita agora o que é vivo,
o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos,
sem um livro, e imediatamente ficaremos
confusos, vamos perder-nos; não saberemos a
quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que
odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós
é pesado, até, ser gente, gente com corpo e
sangue autênticos, próprios; temos vergonha
disso, consideramos tal fato um opróbrio e
procuramos ser uns homens gerais que nunca
existiram. Somos natimortos, já que não
nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada
vez mais. Em breve, inventaremos algum modo
de nascer de uma ideia. Mas chega; não quero
mais escrever “do Subsolo” (DOSTOIÉVSKI,
2000).
201
 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, investigamos as interferências da psiquiatria no


cotidiano escolar e procuramos analisar como a medicação de
comportamentos próprios da infância se manifesta nesse campo.
Procuramos analisar o processo de medicalização da vida e da infância e
suas repercussões no âmbito escolar a partir dos estudos de Michel
Foucault sobre a biopolítica; de Peter Conrad sobre a expansão das
categorias diagnósticas e de Bourdieu sobre a herança, habitus e campo.
Reconhecemos que o processo de medicalização de condutas
consideradas socialmente indesejáveis, e os esforços por encontrar uma
explicação neuroquímica que os solucione, tem levado à lógica crescente
da intervenção biomédica.
Nosso objetivo foi o de tentar entender como o processo de
medicalização adentrou o campo educacional utilizando, nos dias de
hoje, o medicamento como instrumento de solução para os problemas
que ali se manifestam. A princípio, pensamos partir do pressuposto de
que as diferentes perspectivas pedagógicas influenciavam o modo de
abordagem a respeito da medicalização de comportamentos próprios da
infância. Entretanto, ao longo de nossa pesquisa, percebemos que as
diferentes perspectivas pedagógicas não influenciavam
significativamente a questão de como a instituição lidava com a
medicalização, mas a quantidade de alunos por sala era um fator
importante. Quanto maior o número de alunos por sala de aula, mais a
medicalização de condutas estava presente.
Nosso trabalho nos mostrou a presença do discurso médico
enraizado no campo educacional e, ainda que existam práticas e modos
de observar os comportamentos dos alunos de maneiras diferentes, as
explicações para os problemas que se manifestam no cotidiano escolar
são analisadas em termos médicos. Quando o corpo docente julga ter
perdido o controle da situação, os psicofármacos entram em ação, ou o
que é mais grave, quando suspeitam que determinado comportamento
possa desencadear um mal maior, a prevenção torna-se vigente. Os
professores e demais profissionais que atuam na educação procuram
uma descrição biológica dos fenômenos humanos e uma tradução dos
problemas comportamentais e de aprendizagem em termos
neuroquímicos.
Dessa maneira, nosso trabalho seguiu o seguinte percurso: na
segunda seção, procuramos analisar os discursos e estratégias de poder
que edificaram a psiquiatria. Investigamos os caminhos trilhados pela
psiquiatria, desde o fim do século XVIII e início do século XIX, que
possibilitaram sua ingerência nas esferas da vida humana; o início da
psiquiatrização infantil e a atual expansão das categorias diagnósticas.
202
 

Constatamos que a teoria da degeneração, iniciada por Morel no século


XIX, continua influenciando o pensamento de profissionais da saúde e
da educação a respeito dos comportamentos considerados inapropriados.
A ideia de hereditariedade está presente tanto na construção dos
pressupostos localizacionistas, como são propaladas em manuais e
compêndios médicos, manifestando-se fortemente no âmbito escolar.
As discussões que realizamos na terceira seção, tiveram como
objetivo analisar a participação da indústria farmacêutica na produção
das publicações médicas sobre os resultados e aplicações de
medicamentos, bem como o ajustamento do discurso médico aos seus
interesses. Apresentamos os transtornos mentais e sintomas mais
discutidos no campo educacional, bem como os projetos vigentes da
área da psiquiatria do desenvolvimento. Investigamos a apropriação do
conceito de risco pela psiquiatria como justificativa para realizar
intervenções precoces nos diagnósticos de transtornos mentais.
Percebemos um forte envolvimento das indústrias farmacêuticas na
produção de pesquisas a respeito de medicamentos e produtos
médico/farmacêuticos, bem como a cooptação de médicos e instituições.
Constatamos que o DSM expande suas categorias diagnósticas a cada
versão, o que possibilita que um número cada vez maior de crianças seja
diagnosticado e medicalizado.
Na última seção, realizamos uma análise das influências do
discurso médico no campo educacional. Nosso objetivo foi o de
compreender como o saber-poder médico se apresenta atualmente
difundido no cotidiano escolar, influenciando suas práticas pedagógicas
e seus agentes educacionais. Apontamos a reordenação das
subjetividades no âmbito escolar a partir da utilização de psicofármacos.
Constatamos que um conjunto de especialidades científicas orientou a
educação das crianças, e os profissionais da educação buscam no
diagnóstico médico a solução para os problemas que se manifestam no
campo educacional.
Através de entrevistas realizadas com dezessete profissionais que
atuam em oito instituições de ensino da cidade de Florianópolis,
tentamos nos aproximar dos efeitos que o processo de medicalização da
vida e da infância ocupa no âmbito escolar. Constatamos que, apesar das
diferentes metodologias de ensino adotadas pelas instituições, o discurso
médico encontra-se fortemente enraizado nas práticas pedagógicas,
excluindo as narrativas dos sujeitos, bem como os contextos
socioeconômicos e políticos. As entrevistas possibilitaram compreender
como os profissionais da educação lidam com a questão da
medicalização no cotidiano escolar e a influência que a psiquiatria
exerce sobre as práticas pedagógicas. Percebemos que os profissionais
de educação estão cada vez mais orientados a atuarem como
203
 

especialistas em questões psicológicas e/ou psiquiátricas. Munidos de


um discurso psicologizante a respeito das crianças e dos problemas
escolares, se apoiam em explicações médicas a respeito do
funcionamento do cérebro e suas disfunções químicas como resposta a
todos os problemas comportamentais e cognitivos. Com isso, pudemos
constatar que, tanto os profissionais da educação como as famílias,
demandam por um diagnóstico que nomeie os problemas apresentados
pelos alunos e os solucione através de psicofármacos.
Nossa pesquisa nos mostrou que o olhar psiquiátrico sobre
questões relacionadas à infância e adolescência está fortemente presente
na instituição escolar, retraduzindo a subjetividade humana em termos
neuroquímicos. Esse reducionismo ao biológico possibilita a exclusão da
dimensão simbólica da nossa constituição como sujeitos, e solapa nossa
condição crítica em relação ao mundo que vivemos. As entrevistas
realizadas nos mostraram que tanto os profissionais da educação como
as próprias famílias procuram explicações e soluções a respeito dos
problemas que as crianças apresentam nas escolas e no dia a dia. Porém,
essas explicações recaem sobre as disfunções neurológicas,
desresponsabilizando o tipo de educação que as crianças recebem de
suas famílias, a qualidade da educação oferecida pela escola e as
possíveis mudanças que poderiam ser feitas pela via não
medicamentosa. O discurso sobre as disfunções químicas cerebrais
parece deixar pouco espaço para que a educação seja vista como
instância transformadora. Ainda que alguns profissionais que
entrevistamos se mostrem preocupados com a quantidade cada vez
maior de crianças diagnosticadas e medicalizadas, a maioria dos
profissionais parece acreditar – em última instância, que os problemas
apresentados residem no campo biológico.
Das oito instituições que selecionamos, apenas duas se
mostraram críticas a respeito do processo de medicalização. Nas
entrevistas, seus profissionais relataram que quando recebem crianças
que fazem uso de medicação psicotrópica, realizam um trabalho junto às
famílias para tentar entender os motivos que levaram ao diagnóstico e
procuram retirar a medicação. No entanto, nas outras seis instituições,
por mais que os profissionais de educação tenham objeções a respeito da
via medicamentosa, a dimensão técnica parece exercer a palavra final.
Esta dimensão, muito presente no discurso pedagógico da atualidade,
não leva em conta a dimensão formativa da educação, as subjetividades
e a impossibilidade de antecipações e adequações das relações humanas.
Como relatado por alguns dos profissionais que entrevistamos, as
próprias famílias estão imersas na lógica que torna a vida maquinal e
optam por remediar os efeitos gerados pelas anomalias de um ensino
inadequado, de uma vida familiar conturbada, da ausência de um bom
204
 

relacionamento entre pais e filhos e da falta de participação familiar na


vida dessas crianças. Remediar esses efeitos significa delegar para a
medicina as responsabilidades sobre as falhas educacionais, tanto das
instituições como das próprias famílias. Nesse sentido, a via
medicamentosa é a expressão que revela a maneira de se negar
problemas estruturais. Essa via nega as impossibilidades enquanto limite
estrutural do homem, e traz a ideia de que as impotências um dia serão
superadas através do esforço pessoal ou de novas conquistas
tecnológicas.
Esta investigação, assim, procurou refletir sobre a questão da
medicalização da vida e da infância, bem como a expansão das
categorias diagnósticas de transtornos mentais numa perspectiva crítica.
Buscamos compreender a intromissão do discurso médico no campo
educacional como uma estratégia biopolítica de controle das populações.
Para além da medicalização da infância, analisamos a medicalização do
espaço escolar.
Concluímos que as crianças são os instrumentos desse processo;
os profissionais da educação atuam como intermediadores disciplinares
e as famílias são as legitimadoras da medicalização. O que antes eram
considerados “comportamentos próprios da infância”, recentemente
abandonaram a esfera que adjetivava a própria infância, e adentraram a
esfera das patologias. A falsa solução apregoada pelos psicofármacos
está minando a capacidade de escrevermos nossa própria história;
minando nosso olhar crítico a respeito de problemas que cercam o
cotidiano educacional no Brasil.
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218
 

 
219
 

APÊNDICE A – Carta de apresentação e termo de compromisso

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA


CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA

Prezados colegas

Venho por meio desta, solicitar sua participação na pesquisa “A


medicalização da vida e da infância – um estudo sobre a apropriação
médica da infância e sua relação com a educação” que será realizada no
Colégio Aplicação. Esta pesquisa é desenvolvida por mim, Karina
Gomes Giusti, aluna regularmente matriculada no Mestrado em
Sociologia Política da UFSC sob orientação da Professora Dra. Sandra
Noemi Cucurullo de Caponi.
O objetivo desse estudo é analisar o fenômeno crescente de
diagnósticos de transtornos mentais em crianças e adolescentes, e
consequentemente o processo de medicalização da vida no âmbito
escolar.
Esse estudo está sendo realizado no Programa de Mestrado em
Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
em parceria com a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior).
A entrevista com profissionais que atuam na área da educação é
parte de uma das etapas da pesquisa. Os temas que serão abordados
na entrevista tangenciam as seguintes problemáticas:

- Discussão entre pais e professores a respeito de transtornos


mentais em crianças e adolescentes, como TDAH (Transtorno de Déficit
de Atenção com Hiperatividade), TOD (Transtorno Opositor Desafiador),
TC (Transtorno de Conduta), Bipolaridade, Depressão entre outros;
- Critérios utilizados para o diagnóstico desses transtornos que
envolvem os sintomas manifestados pelos alunos em sala de aula como
na esfera familiar;
- Dificuldades enfrentadas pelos(as) professores(as) com relação
ao comportamento hiper/hipoativo e/ou desatento e ao desempenho
insuficiente dos alunos com transtornos;
- Comportamento em sala de aula dos alunos que fazem uso de
medicação.
220
 

Este trabalho se compromete em manter sigilo absoluto quanto


ao nome da instituição de ensino, dos alunos e familiares mencionados,
bem como dos entrevistados que participarão dessa pesquisa.

Florianópolis, 14 de maio de 2015.

____________________ ____________________

Prof. Sandra Caponi Karina G. Giusti


Orientadora Mestranda no PPGSP
(UFSC)

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