A Irrepetibilidade Da Arte

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A irrepetibilidade da arte

Estevan de Negreiros Ketzer1

Morgana Rech2

E, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.

João Guimarães Rosa

Introdução

Antes da passagem à segunda tópica, em 1920, Freud não havia vinculado arte e
violência psíquica. Em quase todas as menções que faz à experiência artística, antes disso, a
ideia predominante é de que a relação do psiquismo com o objeto artístico é a de realização de
um desejo inconsciente. Esta questão se mostra em, pelo menos, dois registros distintos: o do
estudo da criatividade do artista e o do estudo do efeito causado pelas obras de arte em quem
as observa ou interage com elas.
Sendo uma constante no legado freudiano, a investigação sobre a experiência artística
sofre diversas modificações. Na primeira tópica, aparece subordinada às leis do princípio do
prazer: o prazer de fruição. Com a introdução do narcisismo, Freud vai, pouco a pouco,
assumindo que a relação humana com o objeto artístico pode ir além da mera contemplação,
associando sua face de angústia e excesso à incidência na inquietante estranheza3.
Associar a experiência artística à inquietante estranheza corresponde a considera-la
como uma manifestação particular da compulsão à repetição, veiculada pela pulsão de morte.
Entretanto, se há algo que caracteriza o objeto artístico é a sua irrepetibilidade. O que o artista
busca é nunca se repetir, embora afirmem alguns poetas, por exemplo, que a literatura é uma
sucessão de cópias.
Para refletir sobre este problema, abordaremos “O Estranho” (Das Unheimlich), seguido
de um retorno a três momentos em Freud que mostram possíveis raízes da ideia da arte
enquanto terreno da inquietante estranheza. Tomaremos como referência as proposições do
poeta contemporâneo Alberto Pimenta, que ajudam a compreender que a arte entendida nestes
moldes é uma arte de intenção estética, que guarda o paradoxo: repetir compulsivamente para
não se repetir nunca.
1
Psicólogo clínico. Doutor em Letras. Professor da FAMERCO/RS. E-mail: [email protected].
2
Psicóloga. Mestre em Teoria da Literatura. Doutoranda em Teoria Psicanalítica. E-mail: [email protected]
3
O termo Unheimlich contém em suas diversas acepções estas ideias, conforme a nova tradução de Paulo César
de Souza (1919/2010).
1. Duas Observações

I. Se levarmos em consideração a teoria de que criação e apreensão de arte são


partes do mesmo processo, somos inclinados a pensar que Freud, em suas
investigações, procurava por uma explicação para a arte de intenção estética,
isto é, capaz de provocar movimentação pulsional. A arte dita de “raiz
estética”, para a crítica literária, é um conceito que fica visível e teorizado
principalmente na modernidade, quando artistas dão voz à dimensão violenta
das expressões artísticas4.

II. Freud, por seu turno, mais interessado em investigar o psiquismo do que a
especificidade da arte, analisou especialmente esculturas renascentistas e obras
literárias modernas, com relevo para a literatura fantástica, dada a sua essencial
familiaridade com os mistérios dos processos inconscientes que o cercavam.
Além disso, articulou a questão da arte a outros temas, como, principalmente, a
manifestação do chiste e do sonho. Todos estes objetos de estudo do autor
remetem ao que seria o “campo da estética”, no qual a inquietante estranheza
exerce papel fundamental, correspondendo a uma região de indiferenciação
entre o eu e o outro, com tendência a se repetir. No segundo dualismo
pulsional, Freud admite que a experiência artística se realiza particularmente
nesta região.

2. “O Estranho” e a arte.

Pouco tempo antes de formalizar a pulsão de morte, em 1920, Freud publicava “O


Estranho”, texto no qual faz uma análise do conto O Homem de Areia (Der Sandmann),

4
A título de circunscrição do tema, alguns teóricos defendem que tal dimensão tem início com o romantismo
alemão e culmina com o Manifesto Surrealista de André Breton, especialmente o Segundo, em que Breton
escreve: “O ato surrealista mais simples consiste em sair à rua com dois revólveres e atirar ao acaso sobre a
multidão” (Breton, 1930/2001, p. 155). Não podemos deixar de lado também a contribuição da assim chamada
escola do Formalismo Russo, com o grupo OPOJAZ – Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética – ao
reconhecerem que a arte é o pensamento por imagens e a fundamental contribuição de Victor Chklóvski (2013,
p. 86): “(...) o caráter estético do objeto, o direito de relacioná-lo com a poesia, é resultado de nossa maneira de
perceber; chamaremos de objeto estético, no sentido próprio da palavra, os objetos criados mediante
procedimentos particulares, cujo objetivo é garantir para tais objetos uma percepção estética.”
escrito por Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, em 1915. O conto é classificado dentro do
gênero fantástico, o que permite a Freud realizar uma análise tipicamente psicanalítica.
Porém, mais importante do que apresentar suas habilidades de crítico literário, Freud
parece interessado em entender a natureza do efeito de estranhamento que este tipo de texto
provoca. Será pelo caráter misterioso e dúbio, típico deste tipo de narrativa? Esta primeira
hipótese é logo descartada, ao passo que o autor a considera demasiado simplista. Será pelo
fato de que o texto convoca o complexo de castração – ou seja, o retorno do recalcado? Esta,
mais fundamentada e desenvolvida, é a hipótese que leva Freud até a teoria a respeito do
duplo e da compulsão à repetição. A leitura evoca a presença do recalcado que, por sua vez, é
sentida como estranha por ser e não ser, ao mesmo tempo, familiar. Isto pressupõe que há uma
cisão no ego, sendo que uma das partes de seu duplo possui tendência a se repetir
compulsivamente: “há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu. E, finalmente, há o
retorno constante da mesma coisa – a repetição dos mesmos aspectos, ou características, ou
vicissitudes, dos mesmos crimes, ou até dos mesmos nomes” (Freud, 1919/2006, p. 252).
A partir daí, outro problema aparece aos olhos de Freud. Então, se as obras de arte
possuem a capacidade de produzir a sensação do estranho. Será porque elas carregam em si o
cerne da repetição? As obras de arte são criadas com esse objetivo ou a compulsão à repetição
é a própria matéria-prima da criação artística? “Existem muito mais meios de criar efeitos
estranhos na ficção, do que na vida real.” (Freud, 1919/2006, p. 266) O autor afirma, situando
assim a ficção como uma possibilidade ímpar de expressão da inquietante estranheza ou, dito
de outro modo, um de seus terrenos privilegiados.
A literatura, neste contexto, aparece como um espaço intermediário entre o que hoje
podemos considerar uma investigação psicanalítica e uma investigação estética, ambas
desenvolvidas por Freud, o que traz uma complexidade no cerne do método psicanalítico. O
que auxilia Freud a diferenciar outras questões referentes ao limite entre ficção e realidade, de
modo a entender que a arte opera uma espécie de prolongamento do espaço da inquietante
estranheza, também limítrofe em sua essência.
Antes de ir em frente com nossas considerações, vejamos três momentos anteriores
que indicam os pilares desta construção freudiana acerca do fenômeno estético e sua estranha
repetição.

3. Três momentos anteriores


Antes mesmo da introdução do narcisismo, Freud já levantava pontos importantes em
torno da questão da experiência artística, que parecem estar na base do próprio entendimento
da inquietante estranheza. Estes pontos ficam evidentes, pelo menos, em três textos: “Os
Chistes e sua Relação com o Inconsciente”, de 1905; “Delírios e sonhos na Gradiva de
Jensen”, de 1907 e “O Moisés de Michelangelo”, de 1914, mesmo ano da “Sobre o
Narcisismo: uma introdução”.
Com relação aos chistes, o que Freud propõe é a ideia de prazer estético intimamente
relacionado à particularidade da forma, sugerindo que um chiste possui o caráter de
rompimento na cadeia do princípio do prazer, justamente pelas características formais
específicas. Não sendo considerado pelo autor como uma “necessidade vital” ou “séria”, um
chiste produz a espécie de prazer descompromissado, com um fim em si mesmo. Trata-se,
sim, de um auxiliar ao prazer; um prazer estético, de fruição, é um prazer lúdico,
independente de uma dimensão mais primitiva. A natureza deste prazer estético, no chiste, é
da ordem dos mesmos mecanismos presentes no sonho: o deslocamento e a condensação, os
quais Freud também associará à criação artística.
Pouco tempo depois, o autor publica uma análise do conto “Gradiva”, do escritor
Wilhelm Jensen, que narra uma experiência de deslocamento e condensação, elementos do
processo primário (Laplanche & Pontalis, 1967/1970), entre uma imagem que afeta
psiquicamente o personagem – a obra de arte – e a imagem idealizada de uma figura de sua
infância. Trata-se de uma trama complexa promovida por Freud, que inclui uma série de
elementos que formariam o efeito estético: o escritor, o personagem, a produção onírica e a
obra de arte, apoiados sob a mesma base de mármore, isto é, sob a mesma forma: a primitiva
“Gradiva”, escultura que data da metade do século II a.C., e que, aparentemente, deixa o
próprio Freud impressionado. Com efeito, podemos dizer que um dos objetivos do texto é
investigar o enigma da atividade de escrita literária, incluindo a dele próprio, Freud escritor,
como podemos ver no trecho seguinte:

Nessa disputa sobre a avaliação dos sonhos, os escritores parecem estar do lado dos
antigos, do público supersticioso e do autor da Interpretação dos Sonhos. Quando
fazem sonhar as personagens que sua fantasia criou, obedecem à experiência
cotidiana de que os pensamentos e afetos dos indivíduos prosseguem durante o sono,
e buscam retratar os estados de alma de seus heróis mediante os sonhos que eles
têm. (Freud, 1907/2015, p. 14-15).

Como fica claro, a experiência estética da escrita e da leitura, neste momento do


pensamento freudiano, atenderiam ao processo de elaboração onírica, regido pelo princípio do
prazer. Nesta elaboração, o conflito que está em causa é o clássico conflito do primeiro
dualismo pulsional, qual seja o entrave entre pulsões sexuais e pulsões do ego, que trazem
como efeito o delírio de natureza onírica: “O que nele se desenvolveu foi uma luta entre o
poder do erotismo e o poder das forças que o reprimiam, luta esta que se manifesta como
delírio” (Freud, 1907/2015, p. 51)
O efeito estético do leitor também é destacado na reflexão, questionando a posição
ativa da leitura, questão que nos leva até uma estética da recepção ou à ideia de que a
literatura existe apenas quando se estabelece a comunicação efetiva entre autor e leitor. Como
se sabe, Freud não se furta em manifestar suas experiências como leitor e expectador das
obras de arte que analisa: “Nesse ponto, a tensão em que até agora nos mantém o autor
transforma-se por um momento numa dolorosa perplexidade. Evidentemente não foi só o
nosso herói quem perdeu o equilíbrio. Também ficamos desorientados com o aparecimento de
Gradiva” (Freud, 1907/2015, p. 26).
O texto da Gradiva precede a publicação de Escritores Criativos e Devaneios, também
de 1907, no qual Freud procura esclarecer alguns pontos da discussão acima, promovendo
uma articulação com o brincar infantil. O autor afirma que a natureza da atividade artística
tem bases na atividade lúdica da infância, cujo fim é substitutivo, qual seja o de expressar
uma sensação imaginativa desprazerosa em forma de uma realidade objetiva prazerosa. De
modo geral, é uma hipótese que situa a experiência com a literatura no registro do devaneio.
A experiência artística, tanto a de criação como a da leitura imaginativa, causa prazer
enquanto um pseudodevaneio. O pseudodevaneio causa um prazer que Freud chama de
fruição.
Se até este momento do legado freudiano, a arte em sua dimensão estética ainda não se
encontrava inserida na ordem das necessidades (Loureiro, 2003), a partir de 1914, precedendo
a introdução do narcisismo, a relação entre arte e necessidade começa a aparecer. Em “Moisés
de Michelangelo”, nesse mesmo ano, Freud introduz elementos mais complexos à atividade
artística, principalmente em função da admissão da onipotência humana. Ao verificar que a
obra de Michelangelo permite uma multiplicidade de leituras, Freud conclui que não é só à
realização de desejos inconscientes que a arte se submete; o artista empreende uma realização
narcísica na obra, provocadora da pulsão de domínio, como assinala Schneider (2008).
Sentindo-se num estado de “paralisia” pela escultura de Michelangelo, Freud sente como se
“pertencesse à turba sobre a qual seus olhos [os de Moisés] estão voltados – a turba que não
pode prender-se a nenhuma convicção, que não tem fé nem paciência e que se rejubila ao
reconquistar seus ilusórios ídolos” (FREUD, 1914/200, p. 255). Desta forma, passa a admitir
que a experiência artística abrange uma dimensão de arcaísmo, ou melhor dizendo, Freud
percebe que na arte há a urgência de sensações primitivas, para além da elaboração de
conteúdos recalcados.

4. Inquietante estranheza e repetição

Nos três momentos que sublinhamos, nota-se que a evolução do pensamento de Freud
tende a considerar a arte como um objeto pelo qual não se passa indiferentemente. Nesta
construção que apresentamos, a experiência artística se situa em um registro bastante
primordial do desenvolvimento psíquico, cuja tendência a se repetir é permanente.
No pensamento freudiano, sonhos, atos falhos e jogos são elementos que fazem parte
da vida psíquica primitiva, na qual o campo sensorial é convocado em função de haver, diante
deles, uma hesitação do campo representativo, resultando numa espécie de “vacilo de si”,
expressão de uma parte do ego que se torna estranha a si própria. Culminando na inquietante
estranheza, como vimos, na visão de Freud este fenômeno é empreendido pela pulsão de
morte, cuja atuação é repetitiva no psiquismo, por engendrar uma energia libidinal de cunho
anárquico, oposta à pulsão de vida que visa à ligação. Esta articulação entre arte e pulsão de
morte é um ponto complexo, do qual uma série de autores discordam.
Michel de M´Uzan, por exemplo, um autor que rejeita a existência da pulsão de morte,
admite a leitura freudiana sobre “O Estranho”, em seu acontecimento estético, porém define
este evento como um fenômeno que caracteriza o estado naturalmente móvel das fronteiras
psíquicas. A tendência a se repetir não ocorre, segundo M´Uzan, pela ação da pulsão de
morte, mas pela permanência do encontro com a alteridade e, diante dela, do impulso pela
afirmação identitária. A estranheza, nesta leitura, é uma zona intermediária que favorece a
relação permanente entre os registros eu-outro e eu-corpo, como uma espécie de “negociação”
(Gagnebin, 2015, p. 151) desta fronteira. A atividade artística, de acordo com M´Uzan, se
daria justamente neste território. O artista é, para este autor, um negociador constante, o que o
torna um adicto à abertura permanente da região da estranheza. De certa maneira, é uma ideia
implícita em Freud, evidente, por exemplo, em 1917, na conferência XXIII, em que o autor
afirma que o artista não deixa de testar a realidade e que a arte, diferentemente do sintoma,
não se repete da mesma maneira.
Alguns autores utilizam a ideia de “sentimento oceânico” para designar a inquietante
estranheza (Loureiro, Lehalle, Gagnebin), indicando o fenômeno fusional característico da
atividade artística. O retorno ao estado de consciência “de tipo oceânico”, de acordo com
Lehalle (1981, p. 166), é comum às experiências de criação artística como consequência da
relação de unificação que ocorre entre obra, em sentido material, e artista.
A obra de arte, neste sentido, opera como um instrumento de negociação nesta zona
limítrofe entre vida e morte, eu e outro, interno e externo, material e psíquico. De acordo com
M´Uzan, a produção de uma obra literária, por exemplo, tem como fim último uma forma de
documentação do seu autor, que serve-se de estados de “despersonalização” para que a obra
exista. Nas palavras de Terrapon (2012, p. 167),

a atividade artística [...] é um modo de se afirmar vivo ao tentar entrar em contato


com o motor da vida. É também um modo de descobrir sua própria relatividade face
à imensidão [...] pelo hábito de sonhar acordado, pelo trabalho artesanal da matéria
gravada, eu sinto a verdade da alternância da vida à morte, e da morte à vida.

A transgressão linguística, social e política que a arte empreende, responde, nesta


perspectiva, a uma busca identitária compulsivamente reaberta e, neste contexto, todo o
projeto freudiano de associar arte e narcisismo é base fundamental. Responde pela via de uma
intensidade inominável, experiência tão clara e lúcida para aquele que a recebe, porém,
imensamente complexa de ser traduzida ou mesmo transmitida para o outro. Isto ocorre com
toda a experiência que se mostra maior do que nossa apreensão cognitiva, o excelso que está
tão ligado à linguagem da psicanálise, o que ele é? Pergunta impossível, como já falamos,
mas talvez nas fissuras de seu acontecimento inominável possamos ter uma ideia de sua
entrega, pois ali algo do profundo canal de sua abertura nos foi permitido ter acesso. Este
aspecto é parte do famoso dilema do perto e distante que parece conduzir a experiência de
quem caminha em busca de si e o que encontra são pesados temores pelas descobertas durante
a análise: por um lado perto, pois nos acompanha; por outro lado distante, pois teremos de
fazer um esforço de repetição contínua quando a coisa se mostra praticamente inacessível pela
consciência. Eis que recebemos os efeitos de um toque inconsciente, assim como a asa da
loucura que pousou sobre a cabeça de Stéphane Mallarmé após a leitura da Fenomenologia
do Espírito, de Hegel. Esta descoberta do outro em nós mesmos, descoberta vívida de
partículas autorais e sensíveis a serem desbravadas, enfrentadas, captadas por máquinas que
pensam, exteriores a nós, e a serem desenvolvidas por nossa internalidade.
5. O objeto do olhar e sua aparente repetição

De uma maneira ou de outra, o que parece assente é que a arte é, de fato, um objeto
que entraria nesta cadeia repetitiva de negociação entre fronteiras: “o tal centro poético do
indizível, a tal presença não muito evidente desse desiquilíbrio entre a inquietante suspensão
de forças de vida e de morte” (Pimenta, 2003, p. 99). Nesta leitura, tal negociação pretende
fazer com que o eu permaneça, repetindo-se.
Contudo, paradoxalmente, em seu plano material, o objeto artístico em si é,
justamente, irrepetível. No campo da arte, a irrepetibilidade é o que afirma a intenção estética
da obra: causar mais impressões, mas impressões que dentro da pessoa que a sente sejam
reais, autênticas. A busca da autenticidade no trabalho daquilo que avança para além das
tentativas conceituais e de colocar a palavra como elegância ou erudição. A palavra passa em
um instante se seu fator não se fizer tocar na correspondente sensibilidade daquele que
experimenta a obra. Isto significa romper com uma ideologia da arte como entretenimento,
pois a arte exige uma libertação do nível abstrato para o concreto. Ela se concretiza quando
suas relações se dispõe a serem percebidas ainda que não compreendidas. Quando a
necessidade do outro se faz ouvida em algum nível. Ali o pensar se torna um pesar, quando
aquilo que pensa se mostra irrealidade e espessura que corroem dentro uma ausência plena,
um desencontro.
Neste ponto, pensamos no termo francês désaisissement (abandono ou
desinvestimento) pode ser pensado tal como a perda do objeto e, portanto, à necessária
alienação que vemos crescer em volta do estatuto da arte na vida das pessoas em nossos
tempos atuais. Désaisissement, tal como a tentativa de Antonin Artaud (DERRIDA, 1967, p.
271) ao chamar o Nome de Deus em vão. Esta é metáfora do abandono da linguagem na era
em que se acreditou alcançar o absoluto através de sua crença em conceitos anteriores aos
acontecimentos mais ruidosos de nossos tempos. E, estranhamente, quando Deus se manifesta
é na forma de Satanás que o asco e a sujeira sujeitam à realidade, uma mesma realidade que
não reconhece sua aparição como efeito estético.
Nesta sombra mais escura de todas, ranhura da cavidade rachada, ali também se repete
como para expurgar os temores das sombras. Não menores são as dificuldades de uma
resistência que se aproxima fortemente quando o corpo se assusta com o que encontra de seu
impossível. Ele se desvincula, entre lágrimas, paralisias ou raiva. O corpo adormece no
aconchego do efeito que lhe acompanha tamanha a gravidade do encontro. Um encontro que
toca quando menos se espera e sem convite, “me tocou antes que desejasse ver” (DERRIDA,
2011, p. 19, tradução nossa). Tocar na esperança de se sentir tocado também é parte do que
vemos no panorama da arte, pois é quando justamente a arte começa a nos tocar por via de
nossa incapacidade de nos sentirmos tocados por ela tal como os nossos sentidos estão
acostumados. Esta experiência de uma cegueira que atinge também o filósofo argelino
Jacques Derrida (2010) quando diante da morte de sua mãe ele reflete.

A aperspectiva obriga-nos então a considerar a definição objetiva, a anátomo-


fisiologia ou a oftalmologia do “punctum caecum”, por sua vez como uma simples
imagem, um índex analógico da própria visão, da visão em geral, daquela que,
vendo-se ver, não se reflete no entanto, não se “pensa” no modo especular ou
especulativo – e que, por isso mesmo, assim se cega, neste ponto do “narcisismo”,
nisso mesmo que ela se vê olhar. (DERRIDA, 2010, p. 59)

Isso diz respeito a, justamente, todo o traçado da superfície que cega aquele que a
produz. E não será esta também parte da irremediável loucura que a obra de arte é capaz de
deslocar nossa visão? E como captar a parte da matéria que se eximiu de se pensar? O
retraimento das coisas que nos faz suspeitar de que a sensibilidade engana a razão, mas o
espectro sensível que se adianta a nós, na promessa do encontro. Talvez nesse ponto nossa
insistência em dar um nome para o que vemos se apresse a ponto de subverter o que é visto. O
que enxergamos nos atravessa justamente na parte que não conseguimos denominar. O que
vemos projeta nossa ilusão sobre um ideal de ver: “ver só se pensa e só se experimenta em
última instância numa experiência do tocar” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31). E por isto há
uma aprendizagem através do ver o ver do outro, em resposta ao nosso desejo de ver como a
totalidade da experiência que se acreditava imparcial ou mesmo neutra, a partir do lugar em
que se é observado.
Se por um lado esse efeito estético traduz bem aquilo que remove o olhar de sua
aparente atmosfera de proprietária do ver, temos de levar em conta que essa insistência,
repetição persecutória, oprime também o que é visto. É quando o visto se revela nas mãos do
artista a invenção criativa que temos o momento mais importante de descentramento da obra
de arte do discurso. Discursos que por vezes são etéreos e estéreis, falando apenas do pré-
conceito e não do encontro que envolve o evento (évènement).

6. Um caso de desvalia
Para nós tem sido importante dar o contorno estético acerca de considerações em nossa
clínica. Estamos tratando da questão da desvalia (désaisissement) e do que inquieta diante de
um sutil abandono do olhar, fato este que gera uma repetição em seu mostrar-se ao mundo.
Não por nada em nosso mais recente trabalho (RECH & KETZER, 2017) levantamos o
problema do saisissement (apreensão ou captura) do estético diante do retorno de um ego
corporal, num ir e voltar de si mesmo (M’UZAN, 2010). Já no presente artigo queremos fazer
o caminho inverso e mostrar o que sofre o abandono desse olhar, porém, sem poder anular seu
vestígio. Para tanto temos a intenção de realizar uma breve resenha clínica acerca de um
paciente que atendemos. Não é nosso interesse simplesmente assinalar sua passagem em
fenômenos clínicos, mas também mostrar o horizonte de sua sensibilidade e de sua arte.
Jaco vem de muito longe, lá de onde as violas tocam. O olhar e o cenho sempre
enrugados, demonstram um certo cansaço com a vida. Na verdade, sua história não lhe rendeu
grandes frutos e por isso o melhor que conseguiu fazer foi estudar. Também caiu de skate
muitas vezes até esse momento. Por ser músico popular, parecia que a madeira de seu
instrumento sempre empenava e com isso brincava “metade da vida afinando, e a outra
metade da vida reclamando que está desafinado” (sic.). A piada (anedota?) era boa, realmente,
representa muito bem a condição das coisas sem mobilidade em sua vida (na vida do
paciente? Na vida de Jaco?).
Tudo parecia enormemente desconfortável e, ao mesmo tempo, controlável por certas
concessões que vinha fazendo. Quem não as faz? O mais interessante é que algumas delas não
envolviam apenas recursos financeiros esparsos, mas sim as pessoas à sua volta. Jaco
precisava delas e, quando elas não se aproximavam, ele se sentia solitário.
- Fui ao show do Egberto Gismonti na Sala São Paulo sozinho.
- E como foi ter ido? – perguntamos para ele.
- Foi incrível!
- O que te chamou mais atenção lá no show?
Jaco se cala, confessa não se lembrar do show. Não faz tanto tempo, mas este fato se
relaciona muito com uma dificuldade que já se apresentava em nossos encontros acerca do
que Jaco parecia sempre tão animado a se aproximar, mas sem poder estar pleno (pleno ou
presente?) para aproveitar o que tanto o animava.
- Repare que você não se recorda o que aconteceu durante a apresentação. É como se
você simplesmente não percebesse o que acontece contigo. – Dissemos para ele. (ou até,
parece que ele não estava lá!)
- Quando venho aqui, pareço tremer o tempo todo.
Ele disse isso já em nossos primeiros meses de trabalho. Eram comuns os momentos em
que não conseguia deixar a música fluir e por vezes sentia-se sozinho, achando que seus
colegas eram muito mais superiores em conhecimentos sobre música do que ele. Mais do que
isso era sua fala muito racional, que por vezes não aceitava nossa participação. Era como se
fôssemos atrapalhar, “tremer”, aquilo que ele gostaria que continuasse do mesmo jeito.
Perceber a sua música também passava por nossa percepção, mas o discurso sobre a sua
música parecia convencê-lo e inclusive protegê-lo da desafinação que o acompanha o tempo
todo (que lindo!). E as dimensões que o acompanham, ao invés de aumentarem sua
capacidade de elaboração, o aprisionam dentro de si, o desqualificam, como coisas, tornam-se
previsíveis e pouco prazerosas. Logo ficou mais nítida a culpa pelas coisas que carregava
consigo.
- Beethoven pode ter ficado surdo para não escutar sua própria música. – Dissemos para
ele em um momento em que nossos encontros já tinham chegado a um ano e também
poderíamos pensar com ele em termos musicais. – Porque por mais que ele tocasse música,
era a música que deveria tocar ele de algum jeito.
Nesta muito breve resenha clínica, foi nosso intento mostrar o desvio da percepção do
objeto estético em si para uma cegueira de si, em que também o objeto estético não pode se
aproximar da consciência de Jaco. Ele costumava denominar as coisas, para ter algum tipo de
controle, mas o fazia porque não tinha condições de transformar em si mesmo. O uso da razão
obstaculiza o sentir fluído dos sentidos. Logo o imprevisível não pode acontecer como uma
possibilidade a mais de ser visto, e a dificuldade de investir em si mesmo para adquirir um
prazer genuíno. Jaco está à espera que os outros digam o que ele precisa fazer. E isso também
acontecia em nossos encontros. Essa repetição é o ensaio de uma lenta música que um dia
Jaco nos trouxe, gravada por ele e tocada com um colega na viola de dez cordas. Uma música
como um conto de Guimarães Rosa (2001), A Terceira Margem do Rio, margem que fala de
um tempo desconhecido, rio do tempo que espera um momento que supere a percepção como
o encontro com o incalculável da experiência humana: a loucura que afronta família, Igreja,
Exército e mesmo a Imprensa não é capaz de ter prova do que é. “Foi pai que um dia me
ensinou a fazer assim...” (ROSA, 2001, p. 83). Aparição apofântica de um fantasma, talvez. E
no ensinado das coisas a intensidade por vezes se perde num tempo mais antigo que o passado
da memória é capaz de nomear.
Considerações finais

Neste artigo ensaiamos que o lugar do estético na repetição que o artista busca é o
efeito estético no outro, pois só assim alcança o efeito estético em si, e expande-se com sua
obra. É parte do estético que não nomeia, mas antes ensaia um estranhamento necessário para
si mesmo. Estranhamento que também tentamos ver como um esgotamento das fórmulas
utilizadas, como foi o caso de Jaco e do olhar que se termina por causar um cegamento.
Tal efeito estético, válido como forma de conhecimento da realidade, não é palpável
conceitualmente, mas opera em uma zona intermediária, ou uma “terra de ninguém” (Pimenta,
2003), sugerindo uma associação com a própria teoria freudiana a respeito do terreno do
estranho. Lê-se como terra de ninguém um espaço “de onde só pode ser recuperado por um
observador que o realize também esteticamente; não de modo simbólico, mas dentro do
espaço do seu horizonte estético” (Pimenta, 2003, p. 157). Este caráter configura a
irrepetibilidade da arte.
Se analisarmos bem, estas considerações não parecem tão distantes dos
questionamentos freudianos, embora evidentemente inseridos noutro discurso, uma outra
leitura do discurso freudiano, tal como empreendida atualmente por autores como Roudinesco
& Derrida (2001). Por exemplo, Freud (1907b) levanta indagações relacionadas à forma e ao
gênero da obra escrita, que parecem sondar a seguinte questão: como e por qual motivo
algumas formas escritas causam a sensação prazerosa e outras não? Não queremos com isso
restringir o estético apenas ao prazer da leitura, mas colocar ele entre mais um de muitos
prazeres, talvez o prazer mesmo que está na base da psicanálise e que diz respeito à formação
de imagens inconscientes, tal como ocorre em A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900).
Aqui temos em mira imagens não acústicas, impressões antes de representações psíquicas, os
lugares onde as coisas não estão determinadas por discursos. Contudo, não podemos afirmar
que diante das indagações sobre o prazer as respostas vão além da hipótese de que o fato se
deve à mera manifestação do desejo inconsciente de seu autor. Caso contrário, para que
repetir tanto? Parece haver uma repetição que ela também entra no círculo das coisas
arruinadas, da barbárie da experiência humana após o fracionamento do eu que a psicanálise
faz questão de salientar. E não é menor a nossa preocupação uma vez que a cultura também é
parte responsável e cega da composição coletiva das pessoas. “Nunca houve um documento
de cultura que não fosse simultaneamente um documento de barbárie” (BENJAMIN, 2012, p.
245). Também este esfacelamento da cultura na qual a psicanálise também se mostra
responsável para além das escolas e dos sistemas que obrigam a uma retirada (désaisissement)
do objeto que se supõe poder conhecer como um todo. Talvez aqui a repetição mostre como
cada tentativa é mais uma entre tantas de estabelecer uma aproximação com o desconhecido
que nos envolve.

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