Trechos Do Livro ARROZ DE PALMA

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Trechos do livro:

"O Arroz de Palma"


Francisco Azevedo. 4ª ed. Editora Record, RJ. 2014
"Família é prato difícil de preparar”.

São muitos ingredientes.


Reunir todos é um problema...
Não é para qualquer um.
Os truques, os segredos, o imprevisível.
Às vezes, dá até vontade de desistir...
Família é prato que emociona.
E a gente chora mesmo.
De alegria, de raiva ou de tristeza.
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita.
Bobagem!
Tudo ilusão!
Família é afinidade, é à Moda da Casa.
E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
Há famílias doces.
Outras, meio amargas.
Outras apimentadíssimas.
Há também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você
suporta só para manter a linha.
Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo.
Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
Enfim, receita de família não se copia, se inventa.
A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia.
Muita coisa se perde na lembrança.
Aproveite ao máximo.
Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete!
Família:
Feliz quem tem e sabe curtir, aproveitar e valorizar..."
Família é projeto de Deus!
Então...
Amem-se,
Perdoem -se,
Aceitem-se,
Tolerem-se
e vivam como se hoje fosse o último dia, que vocês vão estar com a sua família!

“Família é prato difícil de preparar”

Eu aqui na fazenda. Eu aqui na cozinha, quatro e pouco da manhã. Isabel


ainda dorme, o sol ainda demora. Eu aqui, um velho de 88 anos. Para os mais
novos, o Avô Eterno, o que não teve começo nem terá fim, o que já veio ao
mundo com esta cara enrugada. Eu aqui, de avental branco, picando o tempero
verde. Preparo o almoço de família. Terei forças? 88: dois infinitos verticais. É
boa idade, será uma bela festa. Tenho prática. Tia Palma me ensinou a
cozinhar, eu era jovem. Por onde andará Tia Palma? Às vezes, fica tempo sem
aparecer. Às vezes, vejo-a perambulando pela casa com mamãe e papai e
nem preciso dos óculos. Chegam com diferentes idades, alegres ou
preocupados, falantes ou silenciosos. Depende do dia, da hora em que os vejo.
Imaginação? Senilidade? Perco noção. Perco? Me pego conversando com
esse menino que era eu. Ou escrevendo alto comigo mesmo. Falo com meus
queridos já distantes no tempo e no espaço. Às vezes, sinto medo, assobio no
escuro. De repente, luz. Cinema! Me projeto histórias. Revejo meus irmãos na
infância, nítidos, pulando uns nos outros, correndo e voltando para embolar
feito cachorro novo. Revejo aquela minha Isabel apaixonada. Revejo meus
filhos quando ainda estavam perto e eram meus. Lembranças vivas em todos
os sentidos: paladar, olfato, audição, visão e tato. Sigo em frente. Para o hoje
— que eu amo! — e depois para onde o nariz aponta e a vista alcança e para
mais além, aonde só a esperança vai. Sou passado, presente, futuro — três
pessoas distintas reunidas numa só, mistério da terreníssima trindade. Confio
em você, que agora me faz companhia e me lê os pensamentos. Velho sente
saudade de mãe e de pai. Tudo faz tanto tempo! Velho quer colo, quer colher
na boca vindo de longe com motor de aviãozinho, quer — banho tomado —
que o ponham na cama, o aconcheguem com lençol limpo e travesseiro macio.
Uma história conhecida, uma cantiga de ninar, um beijo de boa-noite. A porta
do quarto um pouquinho aberta, com a luz do corredor acesa — o ponto de
referência é sempre bom. Velho sente falta de instância superior. Quem o
julgará com isenção e sabedoria? Quem, melhor que ele, saberá, imparcial,
examinar o mérito da questão? Velho é criança de fôlego diferente. Já não lhe
interessam as correrias nos jardins, o sobe e desce das gangorras, o vaivém
dos balanços. É tudo muito pouco. O que ele quer agora é desembestar no
céu, soltar os bichos que colecionou a vida inteira. Os bichos todos —
domésticos, selvagens, úteis e nocivos. Os pesados répteis que ainda guarda
no coração e as borboletas, peixes e passarinhos, tudo solto lá em cima! Tia
Palma dizia que velho na horinha da morte conhece o máximo e o mínimo de si
mesmo. É ao mesmo tempo elefante e louva-deus. É sequoia e flor-do-campo,
oceano e poça de chuva, cordilheira e grão de sal. Ela garantia que a gente
sabe direitinho quando acontece a transformação. A alma começa a emitir
todos os sons da natureza: ventos, águas, passos de gente no cascalho, fogo
que arde, madeira que estala, respirações variadas e, de repente, um bater
rápido de asas. Aí entra o coral — as vozes dos animais. A alma do velho
rosna, ameaçadora — segundo movimento do concerto. A alma urra, uiva,
grita, relincha e muge. Depois zumbe, trina e gorjeia. A alma se liberta rumo ao
infinito e, aí sim — soprano, tenor, contralto e baixo —, canta a mais bela ária
da mais bela ópera! Eu, criança, piamente acreditava. Depois, homem feito,
achava graça. Faz algum tempo voltei a acreditar. É na cozinha que eu
desembesto e solto os bichos. É na cozinha que eu viajo sem passaporte, sem
bilhete, sem revista em aeroportos. As autoridades querem minhas digitais?
Elas estão na massa do pão. Querem minha foto? Tenho várias, de frente e de
lado com meus pais e irmãos e com os que vieram depois. Retratos falados —
em voz alta, a família toda ao mesmo tempo. Destrambelhada família. Sagrada
família... Preciso me concentrar. É essencial. Por quê? Ora, que pergunta!
Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um
problema — principalmente no Natal e no Ano-Novo. Pouco importa a
qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência.
Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá
até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm a
preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele
fastio. Mas a vida — azeitona verde no palito — sempre arruma um jeito de nos
entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de
cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana sai a
mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e
comunicativo, unanimidade. Sicrano — quem diria? — solou, endureceu,
murchou antes do tempo. Este, o mais gordo e generoso, farto, abundante.
Aquele o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a
mais consistente. E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio
aqui me fazer companhia. Como saiu no álbum de retratos? O mais prático e
objetivo? A mais sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o
trabalho? Seja quem for, não fique aí reclamando do gênero ou do grau
comparativo. Reúna essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da
sua vida. Não há pressa. Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo. Agora, ponha
o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo,
logo, você também estará cheirando a alho e a cebola. Não se envergonhe se
chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de
raiva ou de tristeza. Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do
parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza, essas especiarias — que
quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar
— tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa. Atenção
também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou daquilo e,
pronto, é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente sensível. Tudo
tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra coisa: é preciso ter
boa mão, ser profissional. Principalmente na hora que se decide meter a
colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha
desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada.
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita.
Bobagem. Tudo ilusão. Não existe “Família à Oswaldo Aranha”, “Família à
Rossini”, “Família à Belle Meunière” ou “Família ao Molho Pardo” — em que o
sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é “à
Moda da Casa”. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito. Há
famílias doces. Outras, meio amargas. Outras, apimentadíssimas. Há também
as que não têm gosto de nada — seriam assim um tipo de “Família Diet”, que
você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve
ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável,
impossível de se engolir. Há famílias, por exemplo, que levam muito tempo
para serem preparadas. Fica aquela receita cheia de recomendações de se
fazer assim ou assado — uma chatice! Outras, ao contrário, se fazem de
repente, de uma hora para outra, por atração física incontrolável — quase
sempre de noite. Você acorda de manhã, feliz da vida, e quando vai ver já está
com a família feita. Por isso é bom saber a hora certa de abaixar o fogo. Já vi
famílias inteiras abortadas por causa de fogo alto. Enfim, receita de família não
se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e
transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro ali, de alguém
que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se
perde na lembrança. Principalmente, na cabeça de um velho já meio caduco
como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem
graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que
experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas.
Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio
ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba,
nunca mais se repete.

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