Ebook Direito Agrario Ambiental

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DIREITO AGRÁRIO

AMBIENTAL

COORDENADORES

Belinda Pereira Cunha


Fernando Joaquim Ferreira Maia

ORGANIZADORES

Breno Marques de Mello


Iranice Muniz
Nálbia Roberta Araújo da Costa
Direito Agrário Ambiental

Direito Agrário Ambiental

COORDENAÇAO: Belinda Pereira Cunha, Fernando Joaquim Ferreira Maia

ORGANIZADORES: Nálbia Roberta Araujo da Costa, Iranice Muniz e Breno Marques


de Mello

1
Direito Agrário Ambiental

Belinda Pereira Cunha, Fernando Joaquim Ferreira Maia


(Coordenadores)

Nálbia Roberta Araujo da Costa, Iranice Muniz e Breno Marques de Mello


(Organizadores)

Direito Agrário Ambiental


Belinda Pereira Cunha João Arthur Brito da Cruz
Fernando Joaquim Ferreira Maia João Victor Ximenes Monteiro
Breno Marques de Mello Júlia Carla Duarte Cavalcante
Iranice Muniz Julianna Angélica Wanderley
Nálbia Roberta Araujo da Costa Juliana Correia Rodrigues Behar
Alex Jordan Soares Mamede Juliana Leite de Medeiros
Alícia Ferreira Gonçalves Lizandra Xavier da Silva
Amanda de Oliveira Almeida Karla Leal Barbosa
Amanda Sinfronio Jacob Laíla Shaira Diniz Pereira
Augusto Cézar Lopes Cunha Lorena Freitas
Bruna Denise Gosson Barbosa Marcela Moysés Poletti
Caroline Vargas Barbosa Marcella Ribeiro d’Avila Lins Torres Maria
Daniel Macedo Soares Amanda Alves de Melo
Danilo Moura de Moura Bastos Maria Angélica A. Moura de Oliveira
Débora dos Santos Ferreira Pedrosa Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega Marina
Eduardo Frade Soares de Pontes
Eduardo Sanberg Nara Raquel Alves Göcks
Élida Evelyn de Lira Serpa Nuhara Viana Assis Nóbrega
Elisabete Maniglia Paulo César Corrêa Borges
Erick Martins Norat Filho Paulo Vinícius
Fábio Matos Ferraz Priscilla Cristina Pereira de Lacerda
Fábio Roberto Cavalcante Bizerra Flávio da Rafael Fonseca Moreira de Andrade
Silva Lacerda Rafaela Angela Accioly Martínez
Francisco Lúcio de Assis Neto Rafaela Maria e Silva Ferreira
Gustavo de Sousa A. Galisa Rayssa Vieira Henriques
Helder Iuri Dias Queiroz Teixeira Renan Spinelli Pessoa
Heloísa Clara Araújo Rocha Gonçalves Renata Monteiro
Hertha Urquiza Baracho Richelle de Macêdo Monteiro
Hugo Gomes Ximenes Rodrigo Nóbrega de Souza
Iaci Katshéra Souza Reis Samuel José Cassimiro Vieira
Iasmin Barbosa Rodrigues de Oliveira Sérgio Augustin
IldeciVieira Tavares Pourre Simone Karla
Isabella Negreiros de Medeiros Soraya Giovanetti El-Deir
Isis Lima Trindade Thaise Ribeiro
Ive Fróes Cândido Vanessa de Araújo Porto
Jedaías Nunes Messias Júnior Vibérica Gonçalves da Costa
Jéssica Dias de Arruda Yuri Martiniano Silva

2
Profª. Maria José de Sena — Reitora
Prof. Marcelo Brito Carneiro Leão — Vice-Reitor

Conselho Editorial
Presidente Marcelo Brito Carneiro Leão
Diretor da Editora da UFRPE Bruno de Souza Leão
Diretora do Sistema de Bibliotecas da UFRPE Maria Wellita Santos
Conselheiros Andréa Carla Mendonça de Souza Paiva
Bruno Benetti Junta Torres
Fernando Joaquim Ferreira Maia
Maria do Rosario de Fátima Andrade Leitão
Monica Lopes Folena Araújo
Rafael Miranda Tassitano
Renata Pimentel Teixeira
Soraya Giovanetti El-Deir
Positivo e negativo

Filiada a

Manual de Identidade Visual ABEU 07

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Sistema Integrado de Bibliotecas da UFRPE
Biblioteca Central, Recife-PE, Brasil

D598 Direito agrário ambiental / Belinda Pereira Cunha, Fernando


Joaquim Ferreira Maia, coordenadores; Nálbia Roberta Araujo
da Costa, Iranice Muniz, Breno Marques de Mello,
organizadores; Alex Jordan Soares Mamede ... [et al.]. – 1. ed. –
Recife: EDUFRPE, 2016.
437 f.: il.

Inclui referências.

1. Direito agrário 2. Direito ambiental 3. Sustentabilidade


I. Cunha, Belinda Pereira, coord. II. Maia, Fernando Joaquim
Ferreira, coord. III. Costa, Nálbia Roberta Araujo da, org.
IV. Muniz, Iranice, org. V. Mello, Breno Marques de, org.
VI. Mamede, Alex Jordan Soares

CDD 346.044

ISBN: 978-85-7946-256-6
Direito Agrário Ambiental

Epígrafe

O projeto social ambientalista confronta a racionalidade


econômica dominante e a lógica de mercado, que se
converteram num mecanismo homogeneizante, hierarquizante,
polarizador e excludente, gerando processo de desapropriação e
marginalização social na exploração da natureza (LEFF,
Enrique. Ecologia, capital e cultura: a territorialização da
racionalidade ambiental. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 342).

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Direito Agrário Ambiental

ÍNDICE

PREFÁCIO: O DIREITO AGRÁRIO E A TERRA ........................................................ 6


Carlos Frederico Marés de Souza Filho

CAPÍTULO I – A LUTA PELO DIREITO À IGUALDADE DE GÊNERO E O


DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL NO SEMIÁRIDO COMO ESTRATÉGIA DE
CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA RACIONALIDADE AMBIENTAL ...................... 11
Belinda Pereira Cunha, Júlia Carla Duarte Cavalcante, Breno Marques de Mello,
Nálbia Roberta Araujo da Costa

CAPÍTULO II – COMUNIDADES QUILOMBOLAS AGRÁRIAS E


ETNODESENVOLVIMENTO: REFLEXÕES SOBRE OS FUNDAMENTOS
JURÍDICOS ................................................................................................................... 30
Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega

CAPÍTULO III – AGREGADOS MINERAIS DESTINADOS À CONSTRUÇÃO


CIVIL E O NOVO MARCO REGULATÓRIO DA MINERAÇÃO BRASILEIRA .... 55
Nara Raquel Alves Göcks, Eduardo Sanberg, Sérgio Augustin

CAPÍTULO IV - O DIREITO COMUNITÁRIO À TERRA: A BASE


INTERPRETATIVA ESSENCIAL PARA A GENÊSE DE UM DIREITO AGRÁRIO
FORMAL ....................................................................................................................... 77
Caroline Vargas Barbosa

CAPÍTULO V – A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA LEGISLAÇÃO AGRÁRIA


BRASILEIRA .............................................................................................................. 102
Fernando Joaquim Ferreira Maia

CAPÍTULO VI - PAGAMENTOS POR SERVIÇOS AMBIENTAIS DE RECURSOS


HÍDRICOS NA ZONA RURAL, O CASO BRASILEIRO ………………………… 125
Débora dos Santos Ferreira Pedrosa, Soraya Giovanetti El-Deir

CAPÍTULO VII – POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O FORTALECIMENTO DA


AGRICULTURA FAMILIAR E OS DESAFIOS DA SUSTENTABILIDADE ……. 137
Vibérica Gonçalves da Costa, Alícia Ferreira Gonçalves

CAPÍTULO VIII - VARIAÇÕES SOBRE O CONCEITO, OS PRINCÍPIOS E A


IMPORTÂNCIA DO DIREITO AGRÁRIO NO SÉCULO XXI …………………… 161
Elisabete Maniglia

CAPÍTULO IX - NOVOS DESAFIOS NO TRATO DOS DIREITOS HUMANOS: AS


TENSÕES ENTRE MERA FORMALIDADE E DEMANDAS POR SUA
EFETIVIDADE: UMA ANÁLISE DA QUESTÃO AGRÁRIA SOB VIÉS CRÍTICO-
REALISTA ………………………………………………………………………… 187
Lorena Freitas

5
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO X - O ESTADO SOCIOAMBIENTAL DO DIREITO AGRÁRIO E O


TRABALHO RURAL ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO ………………… 203
Belinda Pereira da Cunha, Nálbia Roberta Araujo da Costa, Alex Jordan Soares
Mamede

CAPÍTULO XI - SEGURANÇA ALIMENTAR E A FUNÇÃO AMBIENTAL DA


PROPRIEDADE RURAL: MANIFESTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO
SÉCULO XXI ……………………………………………………………………… 218
Elisabete Maniglia, Paulo César Corrêa Borges

CAPÍTULO XII - EMPRESA AGRÁRIA E EMPRESA RURAL: EXPRESSÕES DE


UM MESMO SUJEITO? ………………………………………………………….. 233
Hertha Urquiza Baracho, Eduardo Frade

CAPÍTULO XIII - PROPRIEDADE RURAL E OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS


NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 …………………………………………………… 250
Iranice Gonçalves Muniz

CAPÍTULO XIV - OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E AGRÁRIOS E SUA


IMPORTÂNCIA NA PROTEÇÃO AMBIENTAL ………………………………… 264
Iasmin Barbosa Rodrigues de Oliveira, Isabella Negreiros de Medeiros, Isis Lima
Trindade, Karla Leal Barbosa, Rayssa Vieira Henriques, Vanessa de Araújo Porto

CAPÍTULO XV – ASPECTOS DO DIREITO AGRÁRIO EM FACE DO


BIOCOMBUSTÍVEL NO BRASIL ………………………………………………... 284
Jedaías Nunes Messias Júnior, João Victor Ximenes Monteiro, Erick Martins Norat
Filho, Danilo Moura de Moura Bastos, Renan Spinelli Pessoa, Rafael Fonseca Moreira
de Andrade

CAPÍTULO XVI – A EXPLORAÇÃO MINERAL E SUA FUNÇÃO AGRÁRIA .... 305


Bruna Denise Gosson Barbosa, Daniel Macedo Soares, Francisco Lúcio de Assis Neto,
João Arthur Brito da Cruz, Marcela Moysés Poletti, Marcella Ribeiro d’Avila Lins
Torres

CAPÍTULO XVII – EVOLUÇÃO DOS TRANSGÊNICOS EM BENEFÍCIO AO


DIREITO AGRÁRIO NA AGROINDÚSTRIA ......................................................... 322
Julianna Angélica Wanderley, Nuhara Viana Assis Nóbrega, Paulo Vinícius, Renata
Monteiro, Rodrigo Nóbrega de Souza, Simone Karla, Thaise Ribeiro

CAPÍTULO XVIII – JURISDIÇÃO AGRÁRIA E FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA


RURAL: DIFICULDADES JURISPRUDENCIAIS NA CONCRETIZAÇÃO DO
DIREITO À TERRA ………………………………………………………………… 336
Gustavo de Sousa A. Galisa, Hugo Gomes Ximenes, Ive Fróes Cândido, Lizandra
Xavier da Silva, Maria Angélica A. Moura de Oliveira

CAPÍTULO XIX – DIREITO AGRÁRIO, ESTATUTO DA TERRA E CONTRATOS


AGRÁRIOS: LIMITES E CONTRADIÇÕES ............................................................ 352
Fábio Roberto Cavalcante Bizerra, Flávio da Silva Lacerda, Laíla Shaira Diniz
Pereira, Maria Amanda Alves de Melo

6
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XX – DIREITO AGRÁRIO E DIREITO À ÁGUA ............................... 370


Élida Evelyn de Lira Serpa, Juliana Correia Rodrigues Behar, Priscilla Cristina
Pereira de Lacerda, Rafaela Maria e Silva Ferreira

CAPÍTULO XXI – FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE, DIREITO E


DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO .......................................................................... 385
Amanda Sinfronio Jacob, Iaci Katshéra Souza Reis, IldeciVieira Tavares Pourre,
Marina Soares de Pontes, Richelle de Macêdo Monteiro

CAPÍTULO XXII – FUNDAMENTOS DO DIREITO AGRÁRIO PARA OS NOVOS


DIREITOS DE 3ª A 5ª GERAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE SUA EVOLUÇÃO
NO DIREITO CIVIL ................................................................................................... 401
Amanda de Oliveira Almeida, Heloísa Clara Araújo Rocha Gonçalves, Jéssica Dias de
Arruda, Juliana Leite de Medeiros, Samuel José Cassimiro Vieira

CAPÍTULO XXIII – IMPACTOS DO DIREITO AGRÁRIO EMPRESARIAL PARA


A SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL ..................................................... 421
Augusto Cézar Lopes Cunha, Fábio Matos Ferraz, Helder Iuri Dias Queiroz Teixeira,
Rafaela Angela Accioly Martínez, Yuri Martiniano Silva

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Direito Agrário Ambiental

Prefácio: O Direito Agrário e a Terra

Os Manuais de Direito Agrário em suas primeiras páginas ensinam que foi a


Emenda Constitucional nº 10, de 9 de novembro de 1964, que alterou a Constituição de
1946, que introduziu o direito agrário como campo privativo de competência federal
para legislar. Alguns festejam o fato porque, dizem, isto deu independência a este ramo
do direito. Menos de 20 dias depois era promulgado o Estatuto da Terra, Lei 4.504, de
30 de novembro de 1964.
O golpe de Estado, a ruptura da ordem constitucional que rasgara a
Constituição de 1946, havia ocorrido em 1º de abril daquele não. Assim, tanto a
introdução do direito agrário como ramo independente e privativo da União, como as
regras internas de seu funcionamento são obra não de uma ordem democrática, mas do
império da tirania.
Entender este aspecto histórico nos remete à importância do direito agrário. O
golpe em 1964 foi dado contra os movimentos sociais que avançavam em organização e
propostas de transformações sociais apoiados, até certo ponto, pelo Governo de João
Goulart. Das diversas propostas de reforma,a agrária estava muito presente nas
mobiliações da época e o grande capital temia os movimentos sociais do campo muito
especialmente. Foi por isso que os trabalhadores foram duramente reprimidos logo após
o golpe, com prisões, perseguições e assassinatos. Dentre os trabalhadores, os do campo
sofreram uma aberta perseguição em suas organizações de base, proibidas, com
suaslideranças presas de forma violenta e exemplar. A violência sofrida por Gregório
Bezerra nas ruas do Recife em 1964 é reveladora do ódio que se estabeleceu contra a
militância camponesa. Preso e arrastado pelas ruas, o tenente-coronel que comandava a
atrocidade incitava, sem êxito, a população a linchá-lo.1 Infelizmente, esse processo de
violência no campo não parou com o fim da ditadura.
Assentado no poder, o Governo militar organizou uma ofensiva para conter o
descontentamento no campo. Ao mesmo tempo que mantinha uma política altamente
repressiva aos movimentos sociais, elaborou uma lei de reforma agrária ao gosto da
aliança para o progresso, programa dos Estados Unidos para responder às propostas de
reformas dos governos não alinhados e do avanço da revolução socialista. Entretanto,

1
• BEZERRA, Gregório Lourenço. Memórias (segunda parte: 1946-1969). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. 1980.

8
Direito Agrário Ambiental

temendo que o exemplo do estatuto animasse os Governos Estaduais a formular leis


próprias de Reforma Agrária e as executassem, incluiu na autoritária Constituição de
1967 a exclusividade da União para legislar sobre Direito Ambiental, que continua até
hoje.
Como a política econômica foi no sentido de introduzir o capitalismo no campo
transformando-o em consumidor de produtos industrializados, fertilizantes, máquinas,
agrotóxicos e, posteriormente, a semente transformada em mercadoria da propriedade
intelectual cultivares, e com a proibição dos governos estaduais de atuarem, o debate da
Reforma Agrária somente voltou após a democratização e duramente na Constituinte da
década de 80. As mesmas forças que mantiveram a ditadura impuseram regras parecidas
e pioradas para a Reforma Agrária e o Direito Agrário do final do século XX e século
XXI, mantida a violência e dificultada, ainda mais, a realização da reforma agrária.
Ocorre, porém, que Direito Agrário é muito mais do que a regulação civil do
uso chamado produtivo da terra. Direito Agrário é o Direito que trata da terra. Mas a
terra não é uma categoria que agrade ao Direito, terra é natureza e a natureza foi
excluída da sociedade humana e de seu Direito. Por isso o Código Civil, por exemplo,
não chama a terra de terra, mas de imóvel rural e aConstituição a chama de propriedade
rural ou propriedade urbana. O Estatuto da Terra chamava de terra, mas sempre a
adjetivava de propriedade ou de pública. A diferença é que o estatuto diz: “A
propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando...”e a
Constituição de 88: “A função social é cumpridaquando a propriedade rural
atende...”.Apesar dessa separação entre terra e propriedade rural/urbana imóvel, o
objeto do Direito Agrário é a terra, que por sua vez é a provedora de todas as
necessidades humanas e não-humanas, animais, vegetais e minerais, independente do
direito de propriedade, até mesmo, e se pode dizer principalmente, em terras em que a
propriedade não existe ou está minimizada, como a dos indígenas, quilombolas, outras
populações tradicionais, áreas de proteção de vida animal ou vegetal, de posseiros, de
camponeses, etc. E das relações humanas que aí se estabelecem.
Isto quer dizer, o estudo do Direito Agrário compreende não só as terras que
produzem mercadorias em intenso processo de vinculação com a indústria e os capitais,
mas a que produz vida animal, vegetal, abriga e agasalha o ser humano. Por isso neste
livro não encontramos apenas os temas constantes dos manuais antigos de Direito
Agrário: reforma agrária, produtividade, terras devolutas, contratos agrários, terrenos de

9
Direito Agrário Ambiental

marinha e usucapião, mas sim gênero, quilombolas, minérios, comunidades, serviços


ambientais, agricultura familiar, direitos humanos, estado socioambiental de direito,
segurança alimentar, entre muitos outros.
Fica claro, então, que o Direito Agrário não é tão pequeno como quiseram
reduzir as leis dos militares e os ruralistas da constituinte. Nas largas asas do Direito
Agrário estão a terra e a vida que a terra alimenta, portanto ele ultrapassa os limites de
um ramo do Direito, para se imiscuir, mexer, bulir com o Direito como um todo.
Estudar o Direito Agrário, assim, é estudar criticamente o Direito e a Sociedade
Humana. Com está feito aqui neste livro, estudar a vida e o futuro do Planeta.

Curitiba, abril de 2016


Carlos Frederico Marés de Souza Filho
Professor Titular de Direito
Agrário e Ambiental da PUCPR

10
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO I – A LUTA PELO DIREITO À IGUALDADE DE GÊNERO E O


DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL NO SEMIÁRIDO COMO
ESTRATÉGIA DE CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA RACIONALIDADE
AMBIENTAL

Belinda Pereira Cunha2


Júlia Carla Duarte Cavalcante3
Breno Marques de Mello4
Nálbia Roberta Araujo da Costa5

INTRODUÇÃO
Pensar a crise ambiental hoje, em um cenário cada vez mais caótico em todo o
mundo, exige uma abordagem multidisciplinar e que esteja associada ao contexto social
no qual esta se insere; assim sendo, tal crise se coloca intimamente relacionada a outras
problemáticas, como a questão das desigualdades de gênero6, vivida por milhares de
mulheres em todo o mundo, as quais a depender de suas condições geográficas e
econômicas, possuem efeitos distintos.
A formação histórica de cada país, sua posição na economia do mundo, as
condições climáticas e as políticas ambientais adotadas por cada um deles são alguns
fatores que possuem enorme influência na análise da situação das mulheres de uma
determinada região, sobretudo quando se fala no semiárido brasileiro, que possui
características ambientais e socioeconômicas bastante específicas.
Caracterizar, pois, essas relações desiguais entre gêneros atreladas à crise
ambiental atual é uma tarefa salutar em duros tempos de capitalismo destrutivo inserido
em seu contexto de reestruturação produtiva7 e política neoliberal. Tal conjuntura

2
Docente do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.
3
Graduanda do curso de Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.
4
Graduando do Curso de Direito do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da
Paraíba.
5
Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba.
6
Sobre o conceito de gênero, Miriam Pillar Grossi coloca: "(...) gênero é uma categoria usada para pensar
as relações sociais que envolvem homens e mulheres, relações historicamente determinadas e expressas
pelos diferentes discursos sociais sobre a diferença sexual. Gênero serve, portanto, para determinar tudo o
que é social, cultural e historicamente determinado (...)”. (GROSSI, 1998)
7
Sobre a crise estrutural do capital e a reestruturação produtiva e suas consequências, Ricardo Antunes
coloca: "(...) A crise experimentada pelo capital, bem como suas respostas, das quais o neoliberalismo e a
reestruturação produtiva da era da acumulação flexível são expressão, tem acarretado, entre tantas
consequências, profundas mutações (...) (...) Desemprego estrutural, um crescente contingente de
trabalhadores em condições precarizadas, além de uma degradação que se amplia, na relação metabólica
11
Direito Agrário Ambiental

aponta a característica autodestrutiva desse modo de produção, sobretudo em relação ao


meio ambiente, completamente em crise, em detrimento da expansão e da lucratividade
do capital.
Nesse mesmo contexto, a situação das mulheres não se faz diferente das
inseridas em tal crise, elas são atingidas de modo bastante singular, tendo suas
condições de vida e obtenção de direitos obstaculizadas pelas desigualdades de gênero
presentes na estruturação da sociedade.
Analisar tais problemas se torna indispensável, uma vez que a inseparabilidade
da crise ambiental da desigualdade de gênero e seus efeitos sobre as mulheres são de
fundamental importância para a construção de uma nova racionalidade ambiental que
seja pautada na convivência harmônica e sustentável com o meio ambiente e no
combate a todos os tipos de opressão contra a pessoa humana.
Assim, através de uma revisão bibliográfica, utilizando como marco teórico o
pesquisador Enrique Leff e a pesquisadora Maria Nieves Rico, bem como a pesquisa
documental sobre o semiárido, as desigualdades de gênero que atingem as mulheres
dessa região e através da compilação de ações de movimentos sociais e organizações da
sociedade civil que atuam nesse contexto, analisar-se-ão as estratégias desses sujeitos na
convivência com as dificuldades e potencialidades da região semiárida e de que forma
tais ações se relacionam e contribuem para uma proposta de nova racionalidade pensada
para a superação dessa crise ambiental.

1. O ESTADO SOCIAMBIENTAL DE DIREITO AGRÁRIO E AS VERTENTES


QUE ENVOLVEM A RACIONALIDADE AMBIENTAL
Não é desarrazoado afirmar que, além da discricionariedade, a abordagem
liberal-individualista constitui um traço do modo positivista de trabalhar e interpretar o
direito. Explicando melhor: o movimento codificador do século XVIII tentou
regulamentar todos os aspectos da vida do sujeito de direito burguês, desde o seu
nascimento até as questões sucessórias após a sua morte.
Contudo, no desiderato da codificação residia o problema de que a facticidade
do mundo prático exorbita o mundo das regras. Afinal, o direito está na retaguarda das
transformações empreendidas na vanguarda da sociedade.

entre homem e natureza, conduzida pela lógica societal voltada prioritariamente para a produção de
mercadorias e para a valorização do capital." (ANTUNES, 2009, pag,17).
12
Direito Agrário Ambiental

É nesse cenário que emergem as correntes positivistas com o escopo de dirimir


o problema da indeterminabilidade do direito. O positivismo jurídico, assim, está
atrelado aos problemas operacionais dos códigos, inicialmente destinados a regular a
biografia do sujeito de direito notadamente burguês e as suas relações individuais.
(STRECK, 2009)
Dessa maneira, a tríade pós-positivismo/constitucionalismo
contemporâneo/democracia vem assegurar uma maior autonomia do direito por meio
das Constituições Dirigentes. E é exatamente este o plus do Estado Socioambiental de
Direito: fixação de compromissos socioambientais transindividuais e limitação à
discricionariedade política na ingerência estatal por meio das políticas de
desenvolvimento. Como se mostra a seguir, essa reviravolta sustentável implica
necessariamente a superação do modelo liberal-individualista e a incorporação de novas
racionalidades no trato do meio ambiente do trabalho.
Zeledon (2002, p. 22) firmava que os Direitos Humanos e o Direito Agrário
têm uma série de elementos comuns, cuja racionalização e desenvolvimento científico
permitem encontrar coincidências para a superação dos limites com os quais eles têm de
conviver sem descaracterizar a verdadeira personalidade de cada um, que são, em
comum, a efetivação da justiça social, a valorização do trabalho humano, a preservação
da dignidade e o oferecimento de solidariedade.
Para tanto, o Estado deve instituir políticas para melhorar a vida da população
da zona rural, com distribuição equitativa dos resultados obtidos na economia,
estabelecendo planejamentos de cooperação mútua, evitando a miséria, a fome e a
pobreza no campo, adotando a política de assistência familiar rural e segurança
alimentar apropriada.
Conforme Navarro (2001, p. 97), embora haja expansão econômica, o chamado
desenvolvimento rural não se restringe à terra, nem exclusivamente ao plano das
interações sociais também principalmente rurais, mas necessariamente abarca mudanças
nas diversas esferas da vida social, relacionando-se diretamente aos horizontes
territoriais mais extensos, direcionados às diversas formas de sociabilidade, demarcada
nos novos processos sociais, econômicos e ambientais que envolvem o aspecto histórico
e social.

13
Direito Agrário Ambiental

2. DESIGUALDADE DE GÊNERO E QUESTÃO AMBIENTAL:


PROBLEMÁTICAS QUE SE ENTRECRUZAM
A questão ambiental circunscreve-se em um cenário com que diversas outras
perquisições são colocadas.Entender os diversos obstáculos para a construção de um
desenvolvimento de caráter sustentável envolve saber que estes estão imersos em uma
complexa dinâmica social feita de contradições e disputas por hegemonia de projetos de
poder, que atingem os diversos âmbitos da sociabilidade capitalista.Inclusive, pois, tal
temática em uma análise multidisciplinar coloca-se como uma necessidade prática e
teórica indispensável.
Com a ascensão dos estudos da categoria de gênero, estes se colocam também
como uma necessidade, sobretudo, porque uma de suas mais importantes premissas é a
de que toda a construção das desigualdades e da inferiorização de um gênero pelo outro
foram socialmente e não naturalmente construídas. Assim sendo, temos, em primeiro
lugar, que essa constatação tem como consequência a afirmação da possibilidade de
superação dessa desigualdade; e, emsegundo, romper com essa hierarquização entre
gêneros implica também desconstruir as bases de toda a estrutura social que a sustenta.
As discussões que propõem o entrecruzamento da questão ambiental com as de
gênero são justificadas, pois compartilhamessa mesma base material estruturalmente
firmada por diversas mediações que incorrem tanto sobre o meio ambiente quanto sobre
as mulheres.
O debate relacionando as mulheres e o meio ambiente começa em meados da
década de setenta, a partir da participação de sujeitos que transitavam tanto nos espaços
e movimentos que discutiam a respeito do meio ambiente, da ecologia e do
desenvolvimento sustentável quanto nos movimentos de mulheres e feministas. O mote
para tais discussões foi que tanto em um espaço quanto em outro havia especificidades
as ligando as questões de gênero às do meio ambiente, ou seja, que diziam respeito à
condição especifica da mulher na sociedade e a como todas as implicações e
singularidades da questão ambiental as afetavam de maneira distinta e ainda mais dura.
Maria Nieves Rico, consultora da unidade mulher e desenvolvimento da
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe das Nações Unidas (CEPAL),
em 1998 coloca no documento “Gênero, Meio Ambiente e Desenvolvimento
sustentável” que os estudos nessa temática e as metodologias utilizadas estão divididos
em variadas correntes, mas que, basicamente, podem ser encontradas três linhas

14
Direito Agrário Ambiental

principais que abarcam algumas variações, a saber: ecofeminismo; mulheres e meio


ambiente; gênero, meio ambiente e desenvolvimento sustentável.
O ecofeminismo é uma das correntes que apresenta maiores variações teóricas e
metodológicas, que vão desde um ecofeminismo extremamente essencialista8 até
desmembramentos mais recentes que tentam romper com essa origem; este primeiro
possui como ideia central a existência de uma ligação entre as mulheres e a natureza,
sob a ideia de que ambas possuem um "princípio feminino" de harmonia, atribuindo à
mulher características que ligam a reprodução biológica e “um ser mãe e cuidadora”
como sendo uma condição natural e de potencial preservação da natureza pertencente a
todas as mulheres. Tal corrente é bastante criticável pelo seu caráter essencialista e
biologicista, desconsiderando completamente a heterogeneidade que compõe a categoria
mulher, como coloca Enrique Leff:
las reivindicaciones culturales de los pueblos ante la sustentabilidad y las de
género en un encuentro intercultural de diferencias. Si el conocimiento del
mundo aparece como una construcción masculina, sería necesaria su
desconstrucción feminista. Empero, esta perspectiva ecofeminista no logra
romper con la concepción esencialista de la naturaleza y de la mujer o la
visión constructivista del lugar de la mujer en la estructura social (LEFF,
2004).

Apesar de tal crítica, é também reconhecido que outras correntes do


ecofeminismo tentam romper com essa origem que se mostra bastante criticável ao
desconsiderar as diversas heterogeneidades existentes entre as mulheres e seus mais
diversos contextos sociais e culturais. Mesmo com todas as críticas feitas às correntes
mais essencialistas do ecofeminismo, há que reconhecer as atuais tentativas de outra
construção que tentam corrigir essas falhas; além disso, é inegável que, apesar de tudo,
o início do ecofeminismo foi importante no sentido de permitir que se atentasse para a
necessidade da união dessas duas questões.
Como coloca Leff (2004), as correntes mais atuais da perspectiva ecofeminista
começam a apresentar uma nova concepção que vai para além da mera participação de
mulheres nos movimentos ambientais e de ecologia; esta reivindica de fato a colocação
da questão de gênero como mais uma de suas demandas, ou seja, promovendo uma

8
Se utiliza el término esencialista para designar doctrinas filosóficas y posiciones ideológicas que se
basan en explicaciones deterministas para las cuales la realidad se reduce a la esencia de los entes por lo
que posee propiedades intrínsecas de carácter universal (atemporales y aespaciales) que permanecen tras
los cambios producidos en el contexto (Ferrater Mora apud RICO, 1998). En este caso, la esencia estaría
consustanciada con el sexo y su papel en la reproducción de la especie, de ahí su propiedad biologicista.
(RICO, 1998)

15
Direito Agrário Ambiental

participação efetiva das mulheres nesses espaços, além de incluir a pauta de gênero
como um dos pontos de partida para a construção de outra proposta de desenvolvimento
sustentável que atente para a discussão ampla da questão de gênero como necessária ao
próprio desenvolvimento.
Outra corrente, a de mulheres e meio ambiente, foi e ainda é muito utilizada
como base para diversos programas e políticas ambientais voltados para as mulheres;
basicamente defende a ideia de que as mulheres são as principais "voluntárias" para o
desenvolvimento.Está centrada no objetivo de conseguir a propriedade do uso dos
recursos naturais e a proteção da natureza. Tal corrente mostra-se insuficiente também,
pois possui ainda algumas heranças do inicial essencialismo ecofeminista, ainda que
com menor intensidade, visto que, mesmo tendo sido responsável por algumas
conquistas referentes à percepção da necessidade de uma especificidade nas políticas
ambientais para as mulheres, a construção de tais políticas ainda falha no sentido de
atribuir apenas a elas tal tarefa e de não se ater às especificidades e multiplicidades das
mulheres referentes à etnia, à classe, à raça, à localidade, dentre outras (RICO, 1998, p.
23-25).
Por último, a terceira corrente teórica desse tema é a de gênero, meio ambiente e
desenvolvimento sustentável; esta, ao inserir o conceito de gênero e procurando negar o
essencialismo das correntes anteriores, introduz no debate a necessidade de (re)pensar
as mulheres incluídas em um contexto de relações sociais de poder, cujos postulados
identificam heterogeneidades existentes entre as mulheres referentes ao seu caráter
socio-histórico e cultural, principalmente colocando que nem todas as mulheres
vivenciam os efeitos da degradação ambiental de igual forma, pois nos interstícios de
cada realidade encontram-se especificidades que devem ser consideradas, como: raça;
classe, etnia, formação histórica, economia política do país, localidade regional e
territorial, etc.
É partindo, pois, da corrente que insere o debate de gênero nas análises sobre a
questão ambiental e a construção de propostas de desenvolvimento sustentável e
contextualizam-na nas relações sociais e culturais que envolvem a amplitude da questão
que efetivamente será possível a desconstrução dos paradigmas impostos nessas
relações, a fim de buscar maneiras alternativas de solução da crise, construindo, assim,
uma nova racionalidade ambiental que parta das experiências e ações dos próprios
sujeitos inseridos nesse processo. Somente quando consideradas as diferentes relações

16
Direito Agrário Ambiental

sociais e históricas que cada mulher vivencia é que se poderão construir de fato
propostas efetivas que unifiquem gênero e questão ambiental.

3. CARACTERIZAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO E SUAS


PECULIARIDADES SOB UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO
Segundo dados oficiais do Ministério da Integração, o semiárido brasileiro é
composto por 1.133 municípios de nove estados do país: Alagoas, Bahia, Ceará, Minas
Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Vivem ai 11,8% da
população brasileira, isto é, quase toda a Região Nordeste e uma parte de Minas
Gerais.Sua vegetação, a caatinga – única exclusivamente brasileira-, encobre a região
semiárida caracterizada pelo clima seco e por chuvas irregulares no tempo e no espaço.
A região semiárida é repleta de peculiaridades e contradições; embora possua
um enorme potencial no que tange à natureza e à sua população, esta também é
perpassada por desigualdades sociais as mais diversas.
Alguns dados obtidos através da Articulação Nacional do Semiárido9 apontam
que o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é considerado baixo para 82% dos
municípios da região, caracterizada pela semiaridez do clima,pelas irregularidades das
chuvas e pela alta evapotranspiração.O semiárido é marcado pela alta concentração de
terras e água, representando 33% dos estabelecimentos agropecuários totais do país,
mais de um milhão e setecentos mil estabelecimentos, dos quais 93% estão nas mãos de
73% de proprietários, o que mostra uma grande concentração: com isso, 36,3% das
famílias que estão sem área no Brasil estão concentradas no semiárido.
Essa apropriação dos recursos naturais por poucos se reflete muito na questão
hídrica, em que 67% das famílias rurais dos Estados semiáridos não possuem rede de
abastecimento de água, tendo que buscar outras formas de acesso, como poços
artesanais, cisternas ou mesmo tendo que percorrer grandes distâncias em busca de
água, que nem sempre é apropriada para o consumo.Tal contexto reflete, em parte, a
condição natural de tal região, com índices pluviométricos irregulares e alta
evapotranspiração, mas, sobretudo, é fruto da má distribuição e da concentração na

9
A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) é uma rede formada por mil organizações da sociedade civil
que atuam na gestão e no desenvolvimento de políticas de convivência com a região semiárida. Sua
missão é fortalecer a sociedade civil na construção de processos participativos para o desenvolvimento
sustentável e a convivência com o Semiárido, referenciados em valores culturais e de justiça social.
ARTICULAÇÃO SEMIÁRIDO BRASILEIRO. Disponível em:
<http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.asp?COD_MENU=97> Acesso em: 12 mar. 2015.
17
Direito Agrário Ambiental

propriedade dos recursos naturais e da apropriação destes por uma pequena minoria
privilegiada.
Os reflexos da desigualdade de gênero se materializam com bastante força nas
mulheres do semiárido, sobretudo nas mulheres rurais que vivem da agricultura; estas,
além de sofrerem com toda má condição de vida no campo, são atingidas por violências
e explorações específicas devido à sua condição de mulheres, tais como:
superexploração e invisibilização do seu trabalho, violência doméstica, dificuldades de
acesso a políticas públicas e a recursos naturais, como o abastecimento de água, a
energia, o esgotamento sanitário,dentre outros.Como coloca Oliveira:
(...) as mulheres rurais, além de resistirem às adversidades das condições
ambientais e viverem relações de poder expressas na concentração da terra,
enfrentam relações de subordinação de gênero na esfera privada/doméstica e
na esfera pública. Essas situações são manifestas nas estruturas de poder, na
família, nas relações de parentesco, na legislação, na sexualidade e no mundo
do trabalho, articulando diferentes sistemas de exploração (...) (OLIVEIRA,
2011).

Nas diversas desigualdades e contradições sofridas pela população semiárida


rural, encontram-se singularidades no que se refere aos seus efeitos sobre as mulheres,
seja no acesso à terra, à água, às políticas públicas e aos benefícios governamentais, às
condições e à divisão do trabalho, etc. O machismo presente nas relações sociais atinge
das maneiras mais sutis às mais perceptíveis, essas mulheres rurais da região
semiárida10.
Pesquisa feita pelo Coletivo Feminista 8 de março, na região Oeste do Rio
Grande do Norte, no território do Apodi, em parceria com o projeto Dom Helder
Câmara, que busca medir as condições de vida no Semiárido nordestino, investigou a
questão das mulheres e sua presença nesse meio.Nos resultados encontrados, foi
perceptível o menor número de mulheres do que de homens na região, sendo tal
estatística atribuídaà falha de políticas agrícolas referentes à situação das mulheres,
consideradas apenas como mães ou esposas dos agricultores.O resultado disso é que
muitas delas precisam sair da sua região de origem em busca de trabalho e
reconhecimento pessoal em outro local, tendo que abdicar de seu território de origem
em razão do descaso para com essa situação.
Outro aspecto que se mostra central nesta análise é a questão da invisibilidade
do trabalho feminino, ou mesmo da naturalização da responsabilidade de determinadas
10
Inúmeras das reflexões sobre as mulheres rurais discorridas no texto podem ser aplicadas ao contexto
geral das mulheres rurais no país, porém, neste estudo, caberá nos determos especificamente da região
semiárida e em suas especificidades.
18
Direito Agrário Ambiental

atividades ficarem apenas para as mulheres, como: o trabalho doméstico, o cuidado dos
idosos e dos doentes, bem como a produção para consumo próprio e da família. Tal
constatação pode ser verificada, inclusive, nas estatísticas analisadas no trabalho
“Estatísticas rurais e a economia feminista: um olhar sobre o trabalho das mulheres”,
organizado por Alberto Di Sabbato, em que os dados do PNAD/IBGE (Plano Nacional
por Amostra de Domicílios) de 2006 mostravam uma grande diferença entre a jornada
semanal de trabalho dos homens e a das mulheres: uma média de 44,2 horas pra aqueles
e 35,4 horas para estas.
Esse resultado bastante inferior da jornada semanal de trabalho das
mulheresevidencia a naturalização dos papéis sociais atribuídos a elas, o que acaba
tendo uma influência determinante na divisão sexual do trabalho, que se torna muito
mais precarizado, ou mesmo invisibilizado, uma vez que muitas dessas atividades, em
sua totalidade relegadas às mulheres, não são reconhecidas enquanto um trabalho,
dificultando até mesmo o seu autorreconhecimento enquanto trabalhadoras.
Maria Emília Lisboa Pacheco, em seu trabalho sobre “A questão de gênero no
desenvolvimento agroecológico”,coloca as dificuldades do reconhecimento e do
autorreconhecimento dessas mulheres enquanto trabalhadoras:
Embora elas participem de numerosas atividades agrícolas e extrativas em
dupla ou tripla jornada, a invisibilidade de seu trabalho permanece. Quando
mulheres e crianças realizam o mesmo trabalho que o homem, é comum
dizer-se que estão “ajudando”. Desde 1991 os movimentos de mulheres
lançaram campanha por seu reconhecimento como trabalhadoras rurais. O
paradigma dominante na economia reforça duplamente essas desigualdades.
Ignora o trabalho reprodutivo não pago, tornando invisível a maior parte da
produção feminina, e ignora a divisão sexual do trabalho. (PACHECO,
2009).

Torna-se importante, pois, a consideração desses fatores tanto na coleta de


dados pelos respectivos órgãos responsáveis, como o IBGE/PNAD, quanto na própria
interpretação destes.Aspectos como o reconhecimento das atividades do âmbito
doméstico e privado enquanto trabalho influenciarão na análise de diversos outros
fatores na vida rural e também no planejamento das políticas públicas destinadas a esse
público.
As contradições e desigualdades relativas às mulheres no semiárido também se
encontram na infraestrutura precária do campo:dificuldade de acesso à educação, ao
abastecimento de água, ao esgotamento sanitário, à energia elétrica, à coleta de lixo, a
telefone, dentre outros. Tal falta de infraestrutura atinge uma enorme quantidade da
população rural semiárida, porém recai sobre as mulheres de maneira muito mais
19
Direito Agrário Ambiental

incisiva, tendo a desigualdade de gênero como fator marcante nesses problemas, como
colocam Cintão e Heredia:
Embora a carência de infraestrutura afete o conjunto dos moradores dos
domicílios rurais, ela atinge especialmente as mulheres, por ser a moradia um
dos espaços importantes do trabalho realizado por elas. (...) A falta de
abastecimento de água e de sua canalização interna no domicílio é talvez o
elemento da infraestrutura que mais consequências traga para o trabalho das
mulheres na zona rural, dado que em geral compete a elas a busca de água
para o abastecimento da casa (no caso de não se terem fontes de água
próximas à casa) e que a falta de canalização interna dificulta em muito todas
as atividades domésticas, como cozinhar, lavar a louça, lavar roupas, o
cuidado com as crianças (banho e asseio).(...)No Nordeste, este fato é
provavelmente agravado pelas condições do semiárido, que levam, nos
períodos de seca, mulheres e crianças a terem que se deslocar quilômetros em
busca de água.(...)(CINTRÃO;HEREDIA, 2006, p. 3, 4).

As desigualdades de gênero no semiárido se inserem em um contexto de


diversas outras desigualdades socioambientais; desenvolver estratégias de convivência
com essas adversidades climáticas e territoriais torna-se uma medida de sobrevivência
para essa população, sobretudo para essas mulheres, atentando-se à multiplicidade de
suas características e à heterogeneidade de realidades.

4. A BUSCA POR UMA RACIONALIDADE AMBIENTAL, AUTONOMIA E


EMPODERAMENTO DAS MULHERES ATRAVÉS DA CONVIVÊNCIA COM
O SEMIÁRIDO
Diante de uma conjuntura de apropriação econômica dos recursos naturais,
pensar soluções para essa crise ambiental, que se fundamenta em paradigmas que
impõem uma lógica destrutiva tanto do ambiente quanto do próprio ser humano, exige
uma (re)construção profunda das formas de ser, agir e pensar as relações sociais imersas
em um contexto totalmente estruturado sobre desigualdades de diversos tipos e
contradições impostas por formas dominantes de poder.
Romper com essas formas hierarquizantes requer uma revisão principiológica,
construída com base em uma nova racionalidade, capaz de contextualizar essas
problemáticas; sejam elas ambientais, econômicas ou sociais, só serão eficazes
reconhecendo a realidade heterogênea do mundo, do contexto no qual estão inseridas e,
a partir desse conhecimento do real com todas as suas mediações contraditórias e
desigualdades, buscarestratégias viáveis à superação das barreiras que impedem a
construção de uma nova forma de desenvolvimento sustentável e de justiça social.
La racionalidad ambiental indaga así sobre la fundación de lo uno y el
desconocimiento del otro, que llevó al fundamentalismo de uma unidad
universal y a la concepción de las identidades como mismidades sin alteridad,
20
Direito Agrário Ambiental

que se ha exacerbado en el proceso de globalización en el que irrumpe el


terrorismo y la crisis ambiental como decadencia de la vida, como voluntad
de suicidio del ser y exterminio del otro, como la pérdida de sentidos que
acarrea la cosificación del mundo y la mercantilización de la naturaleza. La
racionalidad ambiental busca contener el desquiciamiento de los contrarios
como dialéctica de la historia para construir un mundo como convivencia de
la diversidad (LEFF, 2004).

Encontrar soluções e estratégias de superação dessa crise exige que valores


sejam repensados, que as vozes dos sujeitos, que, há muito, se encontram no combate
ideológico e político por soluções alternativas em meio a uma forma hegemônica de
lidar com tais questões ambientais, sejam consideradas.
Os embates socioambientais travados no semiárido brasileiro exemplificam
esse contexto de diferentes projetos e/ou modelos de tratar os problemas
socioambientais na região.
Historicamente, estão em conflito propostas e alternativas distintas de lidar
com as singularidades climáticas e as problemáticas sociais do semiárido, com
propostas que vão desde o "combate à seca e aos seus efeitos”, que era a ideia
hegemônica no século XX, até de "modernização econômica e tecnológica" dos últimos
40 anos; assim, soluções são impostas por padrões pré-estabelecidos e análises acríticas
às reais demandas vividas pelos povos da região semiárida.
Em paralelo com tais perspectivas dominantes de tratar as adversidades
naturais da região caatingueira, na passagem dos anos 70 para os anos 80 emergem
formas alternativas que buscam, juntamente com os atores sociais da própria região, que
convivem e sofrem diariamente tais problemáticas, coletivamente começar a pensar e
desenvolver ações de convivência com o semiárido, maneiras que, adaptando-se às
condições naturais da região, procuram alternativas para essa convivência rompendo
com os valores hegemônicos e construindo novas formas de aproveitar o potencial da
região.
Os modelos de convivência com o semiárido são norteados por princípios
sustentáveis de convivência harmônica com os recursos naturais e também buscam
novas relações sociais que superem as contradições e as desigualdades entre esses
sujeitos.
A convivência manifesta uma mudança na percepção da complexidade
territorial e possibilita resgatar e construir relações de convivência entre os
seres humanos e a natureza, tendo em vista a melhoria da qualidade de vida
das famílias sertanejas. Esta nova percepção elimina “as culpas” atribuídas às
condições naturais e possibilita enxergar o Semiárido com suas
características próprias, seus limites e potencialidades. Nesse sentido, o
desenvolvimento do Semiárido está estreitamente ligado à introdução de uma
21
Direito Agrário Ambiental

nova mentalidade em relação às suas características ambientais e a mudanças


nas práticas e no uso indiscriminado dos recursos naturais (CONTI;
PONTEL, 2013, p. 27).

Nesse sentido, encontram-se no semiárido brasileiro diversos sujeitos que,


mesmo sem terem a visibilidade e o reconhecimento necessários, constroem diariamente
estratégias que caminham para essa nova racionalidade ambiental. Diversas
organizações da sociedade civil atuam na região com ações e projetos com essa
perspectiva de convivência com o semiárido, podendo ser citadas: a Articulação
Semiárido Brasileiro, rede que reúne mais de mil organizações da sociedade civil; AS-
PTA Agroecologia; ESPOLAR-Centro de Pesquisa e Assessoria; FCSVA-Fórum
Cearense pela Vida no Semiárido; CEDASB-Centro Sabiá de Desenvolvimento
Agroecológico; CETRA Trabalhador, dentre outras. Todas estas são organizações não
governamentais que atuam na região promovendo a agroecologia e o desenvolvimento
sustentável.
Além das organizações não governamentais (ONG´s), pode-se perceber
também a importante atuação de movimentos sociais, mesmo que não especificamente
de causa ambiental, mas que possuem bandeiras inseparavelmente ligadas às questões
ambientais e de gênero, tais como: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-
MST, Movimento de Pequenos Agricultores-MPA, Movimento dos Atingidos por
Barragens-MAB, etc.
Todos estes desafiam a hegemonia do poder, seja ele na forma do agronegócio
exportador11 e do latifúndio ou em defesa da terra, do território e dos(as) atingidos(as)
por barragens, pela água, dentre outros, promovendo outra forma de relação entre o ser
humano e o meio ambiente e uma alternativa de pensar soluções para as políticas
hegemônicas e destrutivas implementadas hoje para o meio ambiente.
É imprescindível, pois, que os projetos e aspolíticas ambientais empreendidos
no e para o semiárido sejam pensados sob uma visão holística, entendendo também que
as questões ambientais estão imersas e relacionadas com diversas outras questões, como
as de gênero, acesso à terra, dentre outras, e que a participação dos sujeitos que

11
Fernandes e Welch apud Azevedo conceituam:“agronegócio” (agribusiness) é o complexo de sistemas
que compreende agricultura, indústria, mercado e finanças, de modo que o movimento desse complexo e
suas políticas formariam um modelo de desenvolvimento econômico controlado por corporações
transnacionais, que trabalham com um ou mais commodities e atuam em diversos outros setores da
economia. O controle desse complexo teria também forte influência sobre os processos de construção de
conhecimento, de tecnologias e políticas agrícolas. Seriam também de forte referência ao sistema agrícola
do agronegócio a monocultura, o trabalho assalariado e a produção em grande escala. (FERNANDES;
WELCH apud AZEVEDO, 2012, pag.18)
22
Direito Agrário Ambiental

vivenciam tais problemáticas é importante na construção desse processo. Só assim essas


políticas atenderão de fato às reais demandas empreendidas e poderão se efetivar mais
positivamente.
Há também nessas organizações o objetivo que vai para além das tecnologias
ambientalmente responsáveis, atuando na relação das pessoas com seu lugar e no
relacionamento entre si, como, por exemplo, a superação das diferenças entre os
gêneros.
Isso se pode notar na carta política de gênero da Articulação Semiárido
Nacional:
Entendemos que a construção de um projeto alternativo de desenvolvimento
sustentável e de convivência com o Semiárido, passa pelo reconhecimento da
situação de opressão e subordinação em que vivem as mulheres. A ação
transformadora dessa realidade pressupõe a perspectiva de gênero como ação
estruturante, a incorporação da luta pelos direitos das mulheres e a sua
constituição como sujeitos políticos (Carta Política de Gênero da Articulação
Semiárido Nacional - VI ENCOASA)

A construção de uma convivência com o semiárido, portanto, é inseparável da


luta das mulheres por igualdade de gênero; nessa perspectiva diversas ações e
programas foram pensados objetivando atender não só ao desenvolvimento sustentável
como também ao empoderamento e à autonomia para as mulheres da região semiárida.
Construindo uma nova racionalidade ambiental, subvertendo os paradigmas de
desigualdades a elas imposto pela cultura dominante e patriarcal 12, as mulheres do
semiárido reivindicam que as especificidades de gênero sejam atendidas no interior das
organizações atuantes na região pelos programas e ações destinados a essa população. É
comum que, em suas pautas, as questões de gênero e sustentabilidade estejam
inseparadas, até mesmo pelas suas próprias condições materiais que não lhes permite
fazer diferente.
Como exemplos de experiências que envolvem a perspectiva de gênero nas
políticas ambientais direcionadas para o semiárido e promovidas por organizações da
sociedade civil, tem-se a ASA (Articulação Semiárido Brasileiro), que promove o
projeto de intercâmbio para experiências entre mulheres agricultoras do semiárido;
nesses intercâmbios, as mulheres compartilham experiências de produção
agroecológica, conhecimentos naturais e, o mais importante, como essas atividades
influenciam na luta pela mudança de suas relações familiares e sociais, quase sempre

12
Segundo Saffioti (2004), consideram-se como patriarcado casos específicos das relações de gênero, em
que estas são desiguais e hierárquicas.
23
Direito Agrário Ambiental

marcadas por subordinação, exploração e/ou invisibilidade do trabalho, violências


fisícas e psicológicas, etc, fazendo-as adquirir mais autonomia e empoderamento.
Como coloca Catarina de Angola em matéria sobre o I Encontro Nacional de
agricultoras experimentadoras:
(...) As agricultoras não só inovam buscando formas de conviver com o
Semiárido através da produção, mas também experimentam do ponto de vista
da organização (...) A troca de conhecimentos entre as agricultoras é muitas
vezes o estímulo às experimentações e ao processo organizativo. Os
momentos de intercâmbios de experiências, por exemplo, metodologia usada
pela ASA, contribuem para o fortalecimento desse conhecimento (...).
(ANGOLA, 2014).

Construir, pois, a convivência com o semiárido exige essa mirada para além do
desenvolvimento sustentável por si só, uma vez que essa construção envolve inúmeras
outras questões que a priori parecem estar muito distantes, mas que na dialética das
relações sociais, põem-se comoindissociáveis, consoante nos mostram as experiências
das mulheres do semiárido brasileiro.
Outros exemplos da indissociabilidade entre as questões de gênero e a questão
ambiental ocorrem dentro dos movimentos sociais e campesinos que, em sua maioria,
possuem como pauta a questão da luta pela terra, pela água, por melhores condições
para os/as atingidos/as por barragens, etc., e que, embora não sejam especificamente e
diretamente movimentos de cunho ambiental, têm como fundamento uma nova forma
de relação entre o ser humano, a terra e os recursos ambientais como um todo.
No interior desses movimentos emergiram, desde a década de 70, setoriais
especificamente responsáveis para tratar da temática das especificidades da mulher,
recentemente, com um debate muito mais ampliado nesse sentido, as discussões têm
girado em torno da inserção da questão de gênero, conceito muito mais amplo, como
pilar estruturante dessas lutas.
A emergência de tais organizações de mulheres dentro dos próprios
movimentos evidencia a necessidade de ampliar o debate a respeito dessa questão
nesses espaços e, principalmente, de reivindicar essas pautas como fundamentais para a
própria conquista e efetivação dos recursos naturais por parte de todos e de todas.
Em 2015, as setoriais de mulheres da Via Campesina, juntamente com as do
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), da Federação da Agricultura Familiar (FAF) e do Movimento
dos Pequenos Agricultores (MPA), elegeram como tema anual das suas chamadas
“jornadas de lutas” o tema: “Mulheres em luta: por soberania alimentar, contra a
24
Direito Agrário Ambiental

violência e o agronegócio”, em que promoveram e promoverão, durante todo o ano,


ações reivindicando providências em torno da diminuição da violência contra a mulher e
da expansão destrutiva do agronegócio, pedindo, assim, mais apoio a alternativas como
agricultura sustentável e desenvolvimento da soberania alimentar. Essas atividades
reuniram milhares de mulheres camponesas em todo o Brasil, com forte mobilização na
região semiárida.
Também no dia 07 de março deste ano, 500 mulheres da Articulação Semiárido
Nacional e outros movimentos campesinos estiveram, nas ruas de Mossoró, em uma
mobilização pela passagem do dia 8 de março, dia internacional de luta das mulheres,
cujo tema foi “Corpos e territórios: resistências e alternativas para as mulheres”. Em
suas pautas estavam as denúncias contra o Perímetro Irrigado, produzido pelo
Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs), na Chapada do Apodi, contra
a especulação imobiliária e os projetos de parques eólicos que ameaçam os territórios
tradicionais da população costeira da região.
Na Paraíba, há mais de 05 anos se realiza a Marcha pela Vida das Mulheres e
pela Agroecologia nos municípios que integram a dinâmica do Polo da Borborema.
Trata-se de um fórum de sindicatos e organizações da agricultura familiar que congrega
14 municípios e mais de cinco mil famílias do Agreste da Borborema – PB.
Tradicionalmente a marcha acontece no 08 de março, Dia Internacional da Mulher;além
das mulheres da região do Polo, a marcha recebe caravanas de várias regiões do estado
que compõem a Articulação do Semiárido Paraibano (ASA Paraíba) e a As-PTA
Agroecologia, do Coletivo Estadual de Mulheres do Campo e da Cidade, entre outros
movimentos sociais que convergem nas pautas de suas reivindicações que se centram no
combate à violência contra a mulher, na agricultura e na produção sustentável.
Essas experiências exemplificam o quanto estão imbricadas as lutas pelos
direitos das mulheres e pela igualdade de gênero com outras pautas que dizem respeito à
questão ambiental e à construção de uma alternativa de desenvolvimento sustentável.
Questões como a luta contra os agrotóxicos e o agronegócio, a ameaça a
territórios tradicionais por obras que desconsideram os efeitos ambientais e culturais das
regiões, a luta por abastecimento de água, o fomentoà agricultura sustentável, dentre
outras, estão necessariamente ligadas a demandas históricas de movimentos que lutam
pela igualdade de gênero, bem como a busca pela autonomia e pelo empoderamento da

25
Direito Agrário Ambiental

mulher, pela redução da violência, pela igualdade de direitos e pelo acesso às políticas
públicas.
Estas são pautas e demandas que atingem recorrentemente as mulheres do
semiárido, que, por suas condições territoriais, sentem a crise ambiental de uma maneira
bastante dura e singular. O que há de mais relevante na consideração da experiência de
tais movimentos é essa capacidade de articular conjuntamente a pauta de gênero e da
sustentabilidade, de maneira que os seus projetos, suas ações e reivindicações tenham
um enorme potencial para ser uma alternativa eficaz e que contribuam de fato para uma
mudança estrutural nas bases que fundamentam essas problemáticas, articulando e
unificando demandas tão imprescindíveis hoje como a igualdade de gênero e o
desenvolvimento sustentável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O semiárido brasileiro, caracterizado por suas singularidades climáticas e
sociais, se coloca como uma região repleta de contradições e desigualdades, mas,
sobretudo, de possibilidades de convívio com essas diferenças, mostrando-se, então,
como um campo importante a ser explorado em suas diversas experiências de
convivência sustentável com a realidade socioambiental.
As intersecções entre as questões de gênero e a crise ambiental são
comprovadas pelas diversas experiências de movimentos sociais e organizações da
sociedade civil que atuam na região semiárida e também em âmbito nacional; tais
organizações se evidenciam no cotidiano das relações e da luta por questões, como:
direito aos recursos hídricos, melhor infraestrutura do campo, direito à terra e ao
território, direito a políticas públicas para o semiárido, dentre outros direitos ambientais
e sociais. Percebe-se, então, que as mulheres que compõem tais realidades e
organizações sentem também a necessidade de reivindicar junto a essas pautas questões
especificas das relações desiguais de gênero que as afetam.
Revisitar as discussões sobre ambos os temas, buscando as contribuições que
um pode oferecer ao outro, cria bases necessárias para a construção de uma nova
racionalidade ambiental que considere as heterogeneidades e as contradições das
relações socioambientais existentes hoje e a enorme gama de identidades que possui a
categoria mulher em seus mais diferentes contextos e realidades, entendendo que as
crises ambientais atingem a cada uma de maneira distinta.

26
Direito Agrário Ambiental

É importante ressaltar que muitas das políticas ambientais, sobretudo as


destinadas especificamente às mulheres, possuem um caráter emergencial, o
quesignifica dizer que estas são políticas importantes devido às condições e às
necessidades urgentes do seu público alvo, nesse caso as mulheres do semiárido, mas
também que tais políticas, programas e ações devem conceber a ideia de que estas, por
si sós, não são suficientes para uma completa inserção da igualdade de gênero nessa
realidade.Assim, devem ser consideradas como um primeiro passo na desconstrução das
desigualdades imersas nessas relações socioambientais como um caminho para se
chegar a essa finalidade maior.
Considerar, também, as especificidades ambientais, socioeconômicas e
histórico-culturais de cada país e região, bem como buscar a participação dos povos
nativos, dos sujeitos que convivem diariamente com tais problemáticas e dos
movimentos sociaisconstitui estratégia imprescindível para a construção de políticas
ambientais sustentáveis que realmente sejam efetivas e que busquem a inserção da
perspectiva de gênero como questão essencial nesse meio.
Como mostram as experiências dos setores de gênero dos diversos movimentos
sociais analisados, suas políticas, jornadas de lutas e campanhas estão muito mais
avançadas sob o ponto de vista da efetiva inserção da perspectiva de gênero em suas
ações do que muitas políticas ambientais governamentais empreendidas para as
mulheres do semiárido hoje. Assim, escutar as vozes desses atores sociais é um papel
importantíssimo tanto nas pesquisas empreendidas nesses temas quanto na construção
eficaz de ações e programas nessa área.

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29
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO II – COMUNIDADES QUILOMBOLAS AGRÁRIAS E


ETNODESENVOLVIMENTO: REFLEXÕES SOBRE OS FUNDAMENTOS
JURÍDICOS13

Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega14

INTRODUÇÃO
Um grande número de comunidades quilombolas vive no mundo rural e
desenvolveu modelo próprio de subsistência, adaptando os conhecimentos trazidos às
condições territoriais e geográficas. São grupos que se organizam no campo, com
características próprias, e desenvolvem estratégias de sobrevivência e resistência para
preservar o modo de vida comum, resgatar e ressignificar sua identidade. Recriam, à sua
maneira, técnicas de agricultura, processamento de produtos agrícolas, medicina
humana e veterinária fitoterápicas, confecção têxtil e artesanal, construção manual de
instrumentos de trabalho. Assim, têm um modelo econômico e cultural próprios. Para
garantir os direitos territoriais desses povos, e aconsequente preservação cultural e
socioeconômica, concebeu-se a ideiade economia social para comunidades quilombolas,
com um campo próprio do etnodesenvolvimento, em projetos do campesinato quilombola.
A Constituição Federal, no art. 68 do Ato de Disposições Transitórias,
reconheceu às comunidades quilombolas o direito aos territórios que ocupam. A noção
de territorialidade é fundamental para a organização socioeconômica das comunidades
afro-rurais, sendo mais complexa do que a de simples propriedade da terra. Trata-se de
direito coletivo que abrange um plexo de direitos fundamentais composto pela
titularidade da terra, pela preservação da identidadeda dignidade. Compreende a
totalidade da vida, incluindo a proteção jurídica dos modos de sobrevivência, as
relações de produção e de troca. Sobre os fundamentos do modelo jurídico-
organizacional desses modelos econômicos particulares que se constituem nesses
territórios, e com cunho prospectivo e crítico, desenvolve-se a presente reflexão.

1. TERRITORIALIDADES, ORGANIZAÇÃO ECONÔMICA E ORDEM


JURÍDICA

13
Parte do texto consta originariamente em projeto apresentado ao CNPq, mas não publicado.
14
Mestre e doutora em Direito pela PUC SP. Professora Titular na Universidade Federal de Goiás.
Professora na Universidade de Ribeirão Preto. Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq.
30
Direito Agrário Ambiental

As garantias constitucionais territoriais quilombolas demandam uma ordem jurídica


que compreenda e atenda à preservação da cultura e instrumentalize a ordem econômica. O
negócio jurídico associativo, no marco regulatório da economia social e o seu instrumental
jurídico para o etnodesenvolvimento, na consolidação e na concretização dos direitos dessas
coletividades, tem muitas peculiaridades e se apresenta sob diversos modelos. Realiza-se por
sujeitos e direitos contextualizados historicamente - os sujeitos desses direitos e as políticas
que lhes são pertinentes - e participa da construção dessa subjetividade jurídica coletiva.
Utiliza-se do instrumental do direito privado, sobremaneira o direito empresarial, seus
institutos e teorias construídos na perspectiva individual privatista, para sustentar a
organização social e coletiva. Instrumental inadequado desde a origem.
O direito ao território comum pressupõe um espaço de subsistência e de
desenvolvimento de modelo econômico coletivo próprio, o que passa a exigir instrumentos
jurídicos adequados a uma economia participativa, com modelo de gestão democrática. O
direito moderno, individual, que responde ao modelo econômico capitalista individualista,
precisa ser revisitado, reestudado e submeter-se a uma reformulação teórica e principiológica
quando utilizado para atender a essa proposta.
No campo da economia participativa, no Brasil, a exemplo de outros países da
Europa, como Portugal e Espanha, e da América Latina (Colômbia, Bolívia, Equador), há um
movimento para a construção de um marco regulatório para a economia social. Tramita, em
nosso país, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei 4.685, de 2012, que pretende
regulamentar a economia solidária. Estabelece, essa proposta legislativa, definições,
princípios, diretrizes, objetivos e composição da Política Nacional de Economia
Solidária, e cria um Sistema Nacional de Economia Solidária, qualificando os
empreendimentos econômicos solidários como sujeitos de direito, com vistas a fomentar
esses modelos coletivos de organização econômica e assegurar o direito ao trabalho
associado e cooperativado.
A economia solidária15, inserida no contexto da economia social, reaparece no
Brasil no final do século XX propondo a solidariedade no sistema produtivo como
alternativa ao modelo individualista do capitalismo neoliberal de organização da
atividade econômica, altamente competitiva. Fundada em preceitos democráticos de
participação e de autogestão, não tem um modelo único e foi institucionalizada em

15
Segundo Paul Singer (2005, p. 86, 87), “A economia solidária cresce em função das crises sociais que a
competição cega dos capitais privados ocasiona periodicamente em cada país”. Para o autor, surge no
Brasil, nesta etapa histórica, provavelmente como resposta à grande crise de 1981/1983 (2005, p.87).
31
Direito Agrário Ambiental

junho de 2003, em nível federal, pela Lei n.10.683 e pelo Decreto n. 4.764 (depois
revogado pelo Decreto 5.063 de 2004), com a criação da Secretaria Nacional de
Economia Solidária (SENAES), pasta ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), como resultado da mobilização de atores sociais atuantes em diversas áreas.
Segundo as fontes oficiais (MTE – SENAES, 2014), são em torno de 20 mil os
empreendimentos de economia solidária identificados em projetos produtivos coletivos,
organizados em empreendimentos diversos, utilizando o instrumental jurídico
diversificado: cooperativas populares de coleta e reciclagem de materiais; redes de
produção, comercialização e consumo responsável; como bancos comunitários,
cooperativas de crédito e fundos solidários mapeados; cooperativas de agricultura
familiar e agroecologia; cooperativas de prestação de serviços, de educação e cultura;
entre muitos outros. Alguns estados federados e municipalidades têm regulamentação
para a economia solidária. Essa realidade não tem aparato jurídico próprio e
sistematizado, seja do ponto de vista da construção teórica, da elaboração de institutos
ou de regulamentação e fundamentação jurídica adequada.
Dando maior especificidade de tratamento aos empreendimentos sociais das
comunidades étnicas, notadamente os afrodescendentes, na esfera da economia solidária a
Conferência Nacional de Economia Solidária tem levado adiante um projeto de incentivo à
etnoeconomia, ou etnodesenvolvimento, fundada na economia cultural, com o objetivo de
preservar as comunidades tradicionais e os valores culturais na construção de modelos de
economia social. Esse é o panorama do estudo jurídico das organizações econômico-sociais
quilombolas.
Por outro lado, no Brasil e em outros países, vários projetos vêm sendo
desenvolvidos, pelo poder público, para enfrentar a pobreza, preservar os modos de vida e
subsistência quilombola. Mas de maneira insuficiente.
Os quilombolas, depois da Constituição Federal de 1988, que lhes garantiu direitos
coletivos, passaram a ser sujeitos coletivos de políticas públicas. A insuficiência das políticas
públicas de proteção às comunidades quilombolas, notadamente as políticas econômicas,
evidencia-se sobremaneira nos relatórios e estudos apresentados pelos órgãos oficiais sobreo
tema (INCRA, 2015). Paula e Heringer (2014, in passim), refletindo sobre as políticas
públicas para as comunidades quilombolas, nos induz à conclusão de que não há uma política
pública específica para o seu desenvolvimento econômico, embora (acrescenta-se). Se deva
considerar que nos fóruns de economia solidária haja uma preocupação com o que se tem

32
Direito Agrário Ambiental

denominado etnodesenvolvimento. Para aquele autor, há uma tendência de pensar a questão


quilombola, de um lado, como política fundiária, como coletividades diferenciadas e
territorializadas, enquanto, de outro lado, as políticas públicas gerais que os aproveitam, como
bolsa família (p.ex.), os concebem como agregados a indivíduos mais desfavorecidos no
acesso a recursos. Nesse caso, não há tratamento específico, o que, pensa-se, desconstrói a
noção de coletividade tão importante para a preservação da identidade e dos direitos desses
povos. Há a necessidade de políticas públicas que os mantenham economicamente como
comunidade, notadamente, porque ao se tornarem titulares dos seus territórios,
obrigatoriamente ali, no espaço coletivo, terão sua vida econômica. Há a necessidade de
marcos regulatórios e instrumentos jurídicos adequados para realizar os projetos de economia
social que os atendam como comunidade, não apenas como pauta jurídica formal. Há
necessidade de resultados concretos.
José Eduardo Faria (1999, p. 193), refletindo sobre pluralismo, auto-organização e
reflexividade e abordando uma perspectiva teórico-sistêmica, bem como partindo do
pressuposto da grande complexidade da sociedade contemporânea, afirma que, à medida que
o nível de complexidade funcional tende a ser mais alto, nenhum sistema particular tem o
poder de aspirar à direção efetiva da sociedade. Tampouco o sistema jurídico, cuja função tem
sido regular de forma direta a sociedade, sob pena de, ao tentar fazê-lo, incorrer em uma
disfunção de hiperjuridificação e desequilíbrio social. A alternativa, então, é assegurar um
mínimo de critérios e referências comuns entre os subsistemas - o jurídico, o econômico e o
sociocultural.
Shwartz (2012, in passim), ao reafirmar a necessidade da reformulação teórica do
direito contratual, considerando o contrato como acoplagem estrutural entre os sistemas
econômico e jurídico, compartilhando lógicas congruentes, pensadas a partir da teoria dos
sistemas, afirma que o contrato não pode ser reduzido aos fenômenos jurídico-econômicos
(SHWARTZ, 2012, in passim). Engloba pelo menos um terceiro elemento: “um projeto
produtivo de um dos “muitos mundos” sociais existentes” (SHWARTZ, 2012, in passim)
que se traduz numa relação complexa entre discursos especializados com discursos próprios
irredutíveis a questões meramente econômicas.
Assim, numa política pública de ordenamento territorial, econômico, jurídico
quilombola, a única maneira de assegurar um mínimo de critérios comuns (FARIA, 1999, p.
194) num mundo de muitos mundos a ser regido por uma ordem geral, e na troca contratual, é
criar uma estrutura normativa que não incida diretamente no funcionamento interno de

33
Direito Agrário Ambiental

qualquer subsistema e se limite a estabelecer “as condições contextuais destinadas a facilitar a


operatividade autônoma de cada um deles” (FARIA, 1999, p. 194). Para isso, é necessária a
releitura dos institutos jurídicos, aqui,sobretudo, os de direito privado, no diálogo com os fatos
econômicos específicos da organização econômica local informada pela cultura da
comunidade, para a construção de um sentido normativo que garanta a propalada
solidariedade econômica. É preciso promover análise e revisão crítica que, nas palavras de
Faria (1999, p. 195), permitam desenvolver uma engrenagem normativa capaz de forjar uma
nova racionalidade jurídica, “apta a superar a permanente tensão entre as racionalidades
formal e material subjacentes aos padrões legais desenvolvidos no âmbito do Estado Liberal e
do Estado providenciário ou social”. Trata-se de uma dimensão reflexiva da racionalidade
jurídica, em que a racionalidade interna construa uma orientação procedimental.
Reflexividade como capacidade de um sistema de tematizar sua própria identidade, de
perceber como operam os outros sistemas em relações de interdependência, “de colocar-se a
si mesmo no papel de outros sistemas para ver, dessa perspectiva, seu próprio papel”
(FARIA, 1999, p. 195). Trata-se da institucionalização de mecanismos para viabilizar
possibilidades de ação dos sistemas, respeitados valores, interesses e necessidades (FARIA,
1999, p. 195), em especial os culturais.

2. O QUILOMBO NA PROBLEMÁTICA AGRÁRIA


O quilombo, depois da CF de 1988, em uma perspectiva de reconhecimento de
territorialidade, passa a ocupar a pauta da problemática agrária e agrícola brasileira.
Historicamente, muitas dessas comunidades se instalaram na zona rural, dedicando-se a
atividades agrícolas, tendo em vista os setores econômicos a que serviam no período
escravocrata e os movimentos de fuga. Assim, é necessário incluí-lo nesse campo de
estudo, sobretudo em razão do frágil tratamento do atual “estatuto quilombola”.
A regulamentação referente às comunidades quilombolas junta elementos de
experiências públicas diversas, misturando aspectos jurídicos, administrativos, políticas
de reforma agrária, sobretudo para responder à questão redistributiva, quando a associa
à indigenista. Na verdade, trata-se de um apanhado de recursos jurídicos com pouca
sistematização, que parte do reconhecimento da territorialidade como espaço de vida
definidor de suas relações econômicas.
Por outro lado, os quilombolas têm uma marcante atuação no mundo agrário.
Houve uma ampliação de políticas e do espaço institucional, político e orçamentário das

34
Direito Agrário Ambiental

comunidades quilombolas, nos últimos anos. Esses sujeitos passam a desempenhar um


ativismo político que afronta os interesses e provoca a reação dos ruralistas
conservadores e do agronegócio, contra os avanços das políticas de reconhecimento,de
defesa e mesmo de incentivo à diversidade social e cultural (PAULA; HERINGER, 2014,
in passim). “De quase folclóricos, enfim, os quilombolas tornaram-se ativistas
incômodos, localizados no mapa político nacional, em algum lugar, entre trabalhadores
sem terra, indígenas, favelas e universitários cotistas” (PAULA; HERINGER, 2014, p.
104). Isso, entretanto, é incipiente na efetiva promoção das garantias fundamentais a
esses grupos. É preciso um espaço de estudos e debates transdisciplinares. Até mesmo
porque as políticas estão distribuídas em diferentes ministérios.
O número de comunidades quilombolas, segundo os dados oficiais, ainda é
impreciso no Brasil. Segundo a SEPPIR (2014), Secretaria Especial de Promoção e Igualdade
Racial, estima-se a existência de 3.900 comunidades quilombolas em todo o país, o que
corresponderia a 325 mil famílias. Ocorre que a imprecisão do número deve
permanecer por tempo indeterminado no País, por se tratar de conceito ainda em
construção, que se traduz num processo de delimitação estatutária e construção de
marco regulatório.
Tudo a exigir muitos estudos de direito nesse campo. Acredita-se (e já se
apresentou essa ideia de Grau) que o direito é um nível funcional do todo social, não
mera representação externa à realidade social. A estrutura jurídica é constitutiva do
modo de produção social e instrumento de mudança social, interagindo em relação a
todos os demais níveis – ou estruturas regionais – da estrutura social global. Essa
estrutura instrumentaliza as relações econômicas e não pode ser usada apenas como
expressão de vontade da classe dominante e instrumento de dominação (GRAU, 2000,
p. 20).
O direito, dentro dos limites apontados por Faria (1999, in passim), deve ser
usado com caráter emancipatório. Há que ser pensado em seu caráter prospectivo, como
anuncia Castanheira Neves (2002, in passim) na sua proposta jurisprudencialista, que
orientará a reflexão crítica do direito. Terá sua normatividade e sentido construídos a
partir da realidade de interesses, de relações, de situações econômico-sociais, em
relação aos quais cumpre, de diversas maneiras, alguma função instrumental (ROPPO,
1988, p. 7), sem ser mero instrumento da economia. Há de ser estudado com o fim de
apresentar soluções para os problemas sociais, como um processo de expansão das

35
Direito Agrário Ambiental

liberdades reais que as pessoas desfrutam, como propõe Amartya Sen (2001, in passim)
na obra Desenvolvimento como liberdade. Amplia-se, com isso, a noção de
desenvolvimento para além dos números do produto interno bruto ou de indicadores de
industrialização, avanço tecnológico ou modernização social. Desenvolvimento como
bem viver, vivendo no modelo construído a partir da ancestralidade.
É preciso considerar que o estado democrático de direito, constituído a partir
de 1988, legitima-se na soberania popular, respeitante da pluralidade cultural e social. A
ordem econômica, em qualquer nível, há de ser tratada como fator de preservação dessa
diversidade de organização humana. Deve ser equânime ao menos como oferta de
oportunidades. O poder público deve garantir isso, o que impõe uma concepção mais
ampla do político. O direito deve oferecer o suporte, e a pesquisa jurídica deve voltar-
se a isso.
O Estado que respeita a livre iniciativa, por ser liberal, há de respeitá-la nos
limites autorizativos de uma economia de desenvolvimentos humanos coletivos
variáveis culturalmente e sustentáveis, em que se garanta a participação dos muitos
povos na ordem econômica. O pluralismo econômico integra o pluralismo político
postulado na Constituição Federal.

3. ECONOMIA SOCIAL E ETNODESENVOLVIMENTO


No início do século XXI, como no final do século XX, num ambiente de crises
e instabilidades políticas e econômicas, surgiram, no seio do capitalismo neoliberal,
formas socioeconômicas de produção e circulação de bens. Outras emergiram dos
modos tradicionais de vida, dentre sujeitos coletivos, ocultados historicamente.
Xirinacs, Garcia e Via (2006, p. 213) afirmam que não se podem ignorar as origens de
uma parte das novas realidades econômicas alternativas, que remetem também a
mudanças culturais e na percepção do trabalho e da vida, devidas a influências de novos
movimentos sociais. Nesse cenário, enfatiza-se a necessidade de reintegrar a economia
no âmago da sociedade, o que significa que a economia deve estar a serviço da
sociedade, e nunca o contrário. Soma-se a isso a crença de que reinserir a economia na
sociedade significa democratizar essa sociedade. Assim, falar de economia social sugere
que esta deve estar sempre a serviço dos direitos dos povos, deve ser espaço de
sociabilidade, garantindo-se quatro dimensões da vida: a individual, a ecológica, a
econômica e a social.

36
Direito Agrário Ambiental

Essas quatro dimensões da vida constituem uma unidade e têm por base o
princípio do equilíbrio recíproco. Para isso, são necessárias ferramentas que integrem
com justiça essas quatro dimensões, consideradas as possíveis interferências indesejadas
e prejudiciais de uma sobre a outra. Assim, o econômico não pode prejudicar o social, o
individual ou o ecológico. E o direito deve ser preservado, como também deve
assegurar esse esquema, sendo a sua ferramenta por excelência. Os institutos jurídicos e
as normas jurídicas devem concretizar o âmbito econômico, respeitando o social, o
individual e o ecológico.
De acordo com Bautista (2014, in passim), encontramo-nos, na América
Latina, em uma conjuntura histórica ímpar, na qual engendramos outra ideia de
economia. Já não é suficiente produzir outra economia comunitária ou transmoderna,
senão, também, produzir os conceitos e as categorias com os quais fazer inteligível,
pensável e possível esse outro projeto. Segundo o autor, o problema não está em
somente questionar o capitalismo, o modelo neoliberal ou o socialismo real do século
XX, senão em problematizar e criticar as racionalidades que os pressupõem e lhes
dãosentido, para não recair no que sempre criticamos e queremos superar (BAUTISTA,
2014, p. 14).
A economia social é um modelo econômico de mercado que se distingue da
economia mercantil monetária e salarial, utilizando instrumentos jurídicos, econômicos,
políticos adequados para isso. Constitui-se por empreendimentos autogestionados, que
combatem condições instituídas de heteronomia, e só têm sentido se assim o
for(CASTORIADIS, 1987, p. 424). Segundo Boyer (1986, apud, BRUNO, 2014,
p.120), economia de mercado e capitalismo não são a mesma coisa. É possível manter
uma economia social de mercado sem o regime assalariado capitalista. Nessa concepção
se constroem a ideia de economia social e os instrumentos jurídicos que a aportam.
A economia social integra um setor da atividade econômica distinto do setor
estatal e do setor privado convencional, empresarial capitalista, e responde por ele um
campo de regulação jurídica coletiva. Setor social, coletivo que se serve dos
instrumentos e das teorias do direito privado, numa racionalidade microeconômica. E
não se trata tão somente da diretriz do direito econômico, que é fundamental, pois
regula a apropriação dos excedentes, seus reflexos na organização da dominação social
e as possibilidades de redução ou ampliação das desigualdades” (BERCOVICCI, 2015).
Como explica Bercovicci, esse ramo do direito - o econômico - tem uma racionalidade

37
Direito Agrário Ambiental

essencialmente macroeconômica, cuidando da ordenação dos processos econômicos ou


da organização jurídica dos espaços de acumulação, atuando de maneira direta nas
questões referentes à estratificação social.
A economia social está sob orientação do direito econômico, mas funciona na
esfera das relações privadas em três dimensões: jurídico-econômica, político-
administrativa e psicossociológica. Implícitas e interdependentes são elas.
O setor é orientado por três princípios básicos. O primeiro deles é o princípio
da diferenciaçãosegundo o qual se diferenciam os princípios e a dinâmica do
empreendimento de economia social e os princípios e a dinâmica do ambiente onde ele
está inserido. Essa diferenciação remete a diferentes atribuições de legitimidade e
afiliaçãoe, por isso, demanda a análise da inserção conflitiva com o ambiente, seja ele
econômico, legal, político, administrativo, cultural, simbólico ou propositivo. É preciso
considerar, outrossim, os modos de expressão desse conflito nos discursos e nas práticas
dos integrantes do empreendimento social, os níveis de estruturação e as estratégias, as
defesas e as categorias de entendimento construídas para as mediações conflituais. O
segundo princípio reporta-se àinterdependência entre as dimensões funcionais, jurídico-
econômicas, politico-administrativas e psicossociais. Nenhuma dessas dimensões pode
ser analisada isoladamente. Integram um todo e são informadas por ele. As dimensões
de análise são interdependentes. É preciso compreender que as perspectivas analíticas se
autoconstituem simultaneamente, estando interdependentes não só no nível dinâmico,
mas também no nível ontológico. Resulta disso que o empreendimento social
autogestionado deve apresentar viabilidade jurídica, econômica, política e
administrativa, assim como psicossocial. Compreende, portanto, a construção teórica
referencial de análise, no âmbito do direito e nos demais.
Um terceiro princípio é o da construção crítica que aponta para a transformação
da realidade socioeconômica a partir da crítica do conhecimento. Aqui, a crítica
jurídica serve como referencial teórico de análise no plano do direito.
A proposta do etnodesenvolvimento, no Brasil, integra-se ao campo da
economia social e submete-se aos princípios e às possibilidades de análise supra
apresentados. Constitui-se a partir da realidade socioeconômica e cultural em que se
encontram os povos e as comunidades étnicas no país, suas carências e fragilidades,
buscando a realização da justiça e da igualdade material nas muitas territorialidades que
integram esse diverso país. Compreende desde a tutela jurídica da territorialidade, com

38
Direito Agrário Ambiental

todas as suas implicações econômicas, à integral garantia da dignidade humana, na


perspectiva de uma ética de alteridade, de solidariedade e de respeito étnico. Pressupõe
o desenvolvimento socioeconômico, valorizando a ancestralidade cultural, os
conhecimentos produzidos na tradição e os modos de vida e distribuição de justiça. Isso
reclama uma revisão dos instrumentos jurídicos considerados fora de uma lógica de
mercado capitalista liberal excludente. Sobretudo porque os institutos do direito
empresarial hão de ser usados para atender àideia, proclamada na II Conferência
Nacional de Economia Solidária (2010), de que os direitos não devem se limitar à
existência de leis, mas devem ser garantidos de fato.
O direito empresarial pode instrumentalizar formas sociais de economia e
promover modelos econômicos democráticos e participativos. Historicamente, os
institutos do direito empresarial são tributários de relações mercantis anteriores à
industrialização, ao pré-capitalismo liberal; são, depois, amplamente manipulados pelo
sistema capitalista neoliberal e podem vir a ser revisados em função de outros modelos
socioeconômicos. A partir dessa revisão crítica, devem servir aos modelos de
etnodesenvolvimento.
A proposta de etnodesenvolvimento, como anunciada pela CONAES -
Conferência Nacional de Economia Solidária, visa à construção de uma realidade social
libertária dos preconceitos étnicos e reconhecedora da diversidade sociocultural. Busca
uma releitura da história que inclua a luta dos invisibilizados e de seus conhecimentos
historicamente produzidos. Propõe a liberdade de expressão e o respeito às culturas, às
crenças, às religiões, às tradições e às ideologias sufocadas.
Além disso, tem uma intencionalidade socioambiental ao pretender a
recuperação das áreas degradadas e a integração do homem com a consequente
preservação da natureza. Busca a vida em equilíbrio, a unidade entre o homem e a
natureza e o reconhecimento do ser humano como parte dela. Nessa perspectiva,
entende a dignidade, a solidariedade, o compartilhar. Pensa a distribuição de riquezas,
sua prospecção e tutela jurídica.
Implica necessariamente o protagonismo e a autonomia dos povos e das
comunidades tradicionais, como já afirmado na Convenção 169 da OIT, o
desenvolvimento de pesquisas e tecnologias, a elaboração e a implantação das políticas
públicas referentes a eles. Isso significa a autonomia econômica, cultural e política dos
povos e das comunidades tradicionais, estruturação e estratégias, defesas e categorias de

39
Direito Agrário Ambiental

entendimento construídas para as mediações conflituais16.


A expressão “etnodesenvolvimento” tem duas acepções na literatura
especializada, significando, num sentido, o desenvolvimento econômico de um grupo
étnico e, em outro, o desenvolvimento da “etnicidade” de um grupo
social(STAVENHAGEN, 1985, p. 13-56), sendo que ambas as acepções não são
excludentes entre si. Há uma implicação direta no fortalecimento da “etnicidade” e no
avanço no plano econômico (LITTLE, 2002, in passim). O contrário, o enfraquecimento
da “etnicidade” com o desenvolvimento econômico, implica a marginalização do grupo.
Um desenvolvimento econômico que destrói as bases da “etnicidade” de um grupo
representaria uma volta à hegemonia da modernização que foi altamente destruidora da
diversidade cultural (LITTLE, 2002, p. 40).
O etnodesenvolvimento diz respeito e coloca no debate público, comunitário e
político a relação entre o desenvolvimento econômico, o reconhecimento da diversidade
cultural e a autodeterminação dos povos e das nações. Coloca em debate o plano
democrático do Estado. “No plano econômico, as práticas de etnodesenvolvimento
tendem a ocupar o lugar de "alternativas" econômicas, particularmente onde a ideologia
neoliberal é predominante” (LITTLE, 2002, p. 40).
A proposta (etnodesenvolvimentista) visa atender aos “grupos étnicos”17 além
do plano estrito das necessidades econômicas básicas, alcançando seu modelo de vida e
suas reivindicações políticas. Por isso, desenvolve-se no plano local onde esses sujeitos
têm autogestão.
Segundo Little (2002, in passim), podem-se identificar duas tensões na
implementação de processos de etnodesenvolvimento local. A primeira diz respeito à
construção política da "autonomia cultural" pelo grupo diante do Estado nacional. A
segunda diz respeito às formas de integração do grupo nas estruturas da economia
nacional e internacional. “A meta da autonomia cultural compõe o guia principal para o
estabelecimento das condições necessárias à implementação do etnodesenvolvimento”.
Segundo a CONAES- Conferência Nacional de Economia Solidária (2010), o
etnodesenvolvimento pressupõe fundamentalmente garantir direitos, entre os quais
elencam-se: o direito aos territórios dos povos e das comunidades tradicionais à
demarcação de seu espaço físico com a devida titulação e proteção; o direito à
diversidade em que se inclui a segurança alimentar e nutricional, respeitando-se o seu

17
Num sentido ampliado de diversidade cultural.
40
Direito Agrário Ambiental

modelo tradicional e sua cultura ancestral; a garantia de moradia segura e saneamento;


o direito à educação com a implantação de escolas com projetos político-pedagógicos
adequados e respeitantes da diversidade; o direito à saúde, integrando-se a medicina
tradicional, fitoterápica, com valorização e uso dos conhecimentos e saberes
tradicionais; a garantia de transporte, de inclusão comunicacional, de trabalho livre, de
lazer; o acesso aos recursos naturais, garantindo-se sua preservação, notadamente da
água limpa; o direito de ir e vir. A esses, acrescentam-se os direitos previstos na
convenção 169 da OIT, sobretudo o direito de os povos de serem consultados quando
uma política pública, uma medida legislativa ou executiva interferir em seu modo de
vida.
Esses direitos se realizam em modelos econômicos surgidos a partir da
realidade de cada povo. Little(2002, p. 43), em pesquisa de campo, identifica alguns
micromodelos de etnodesenvolvimento já praticados em comunidades tradicionais e
que, porventura, estruturalmente, podem se repetir em circunstâncias análogas e servir
de referências de análise. O primeiro relatado(LITTLE, 2002, p. 43) é o de
fortalecimento das atividades de subsistências. Segundo o autor, o ideário hegemônico
desenvolvimentista moderno desprezou as atividades de subsistência dos povos
tradicionais, considerando-as atrasadas e de pouca produtividade, sem destinação de
mercado. Entretanto, essas atividades garantiram a sobrevivência e a segurança
alimentar desses povos, o que é fundamental em qualquer modelo de desenvolvimento.
Em muitos casos, as atividades de subsistência estão ligadas à espiritualidade destes e
representam mecanismo de fortalecimento cultural.
O segundo micromodelo relatado pelo autor consiste na criação de economias
paralelas. Nesse esquema, os grupos étnicos têm atividades paralelas, suas atividades de
subsistência e outras de manufatura de produtos para o mercado, mas sem praticar
diretamente o comércio. A comercialização é realizada por organização étnica ou por
uma confederação étnica que representa política e economicamente os grupos
produtores. Há um regime de escambo, sem circulação de dinheiro, para não haver
distorções de mercado no grupo. Nesse caso não há especificamente relação direta dos
sujeitos com o mercado.
O terceiro micromodelo (LITTLE, 2002, p. 45) consiste num modelo
mercadológico avançado. Trata-se da terceirização das atividades produtivas, com
fiscalização por parte do grupo local. As atividades econômicas são realizadas dentro de

41
Direito Agrário Ambiental

territórios tradicionais por grupos externos, fiscalizadas pela organização local, que
também recebe um valor contratual pelo produto da atividade. Garantir os direitos
coletivos do grupo, nesses casos, é de grande complexidade.
O quarto micromodelo apontado consiste no controle total do processo
econômico por parte da comunidade étnica local, envolvendo o controle de todas as
fases do processo econômico - produção, beneficiamento, escoamento, comercialização
e reinvestimentos - em mãos de uma organização étnica, seja local ou regional.
O quinto micromodelo relatado por Little consiste no agregar valor econômico
étnico aos produtos, estabelecendo um nicho diferenciado no mercado. É um
desdobramento do quarto modelo e é implementado quando o grupo étnico tem controle
total sobre o processo produtivo. É um modelo econômico avançado e exige
aprimoramento e maturidade do grupo étnico.
Todos os modelos surgem de realidades próprias e específicas de comunidades
tradicionais, mas são instrumentalizados por institutos jurídicos universais, por negócios
jurídicos associativos tradicionais, submetendo-os às normas do direito empresarial
tradicional, o que merece críticas, pois não alcança a tutela daqueles direitos coletivos
propalados pela Conferência Nacional de Economia Solidária - CONAES.
Por outro lado, o etnodesenvolvimento, segundo sua proposta inicial, exige a
realização de políticas públicas de fomento à produção sustentável. Isso inclui linhas de
crédito, financiamento para inovações tecnológicas apropriadas, certificação
participativa, apoio à comercialização, assessoria técnica e formação diferenciadas. Isso
exige políticas não experimentais, nem temporárias, tampouco universalizantes e
assistencialistas. Pressupõe a criação de instrumentos legislativos mais amplos, nos
moldes como se tem apresentado nos planos de economia social em outros países, a
exemplo de Portugal e da Colômbia. Demanda a análise das propostas segundo os
princípios e as dimensões da economia social.
A questão quilombola constitui pauta específica dessas políticas e, tendo em
vista a complexidade da situação, demanda um estudo jurídico próprio.

4. OS QUILOMBOLAS NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA


A presença do afrodescendente no Brasil define-se pela exploração econômica do
trabalho escravo ou de baixa remuneração. Submete-se a regimes de preconceitos e
desigualdades que acabam na negação de seus direitos, numa sociedade que se pretende

42
Direito Agrário Ambiental

democrática. Isso é ocultado pela história e reforçado por uma estrutura jurídica dominadora,
que faz sucumbir sujeitos que não se identificam com o perfil do indivíduo capacitado à
circulação de riquezas e à apropriação de bens. O que se tem é que, além da escravidão, há
um sistema excludente que gera situações de resistência e luta.
A escravidão, no Brasil, durou mais que em outros países do continente. Somada ao
regime de negação de direitos, deu origem à resistência quilombola- fugas de escravos,
formação de coletividades, manifestações culturais, que incluíram, muitas
vezes,afrodescendentes livres. O que se verifica, nesse contexto, é que a presença dos negros
libertos ou não escravos é igualmente marginalizada e ocultada na história da América
Latina. E há uma continuidade de negação e subjugo que permanece até os tempos atuais,
com a igual e histórica resistência quilombola. Busca-se hoje, diante dessa situação, a
redenção histórica pela garantia mínima de direitos e execução de políticas públicas para
esses povos que fizeram da própria existência a luta, desenvolvendo um novo conceito de
comunidade.
O conceito de comunidade quilombola é determinante para o reconhecimento
dos sujeitos, e a concretização dos direitos, para a definição de políticas públicas e
metas para esses povos. No direito brasileiro, o conceito está em processo de
construção. A Constituição Federal brasileira fala em “remanescentes das comunidades
de quilombos”, no artigo 68 do ADCT, tendo surgido, a partir dos debates da
Assembleia Constituinte de 1988, no Brasil, como sobras de um passado.
Remanescente é, segundo de Andrade e Treccani (ANDRADE; TRECCANI,
1999, p. 47),
[...] a situação presente dos segmentos negros em diferentes
regiões e contextos, e é utilizada para designar um legado, uma herança
cultural e material que lhe confere uma referência presencial no sentimento
de ser e pertencer a um lugar específico [...].

Isso afasta a ideia que sugere sobra, resto, ideia usada pelos partidários da
desqualificação das formações quilombolas como emanação de processos histórico-
culturais. Gente que nega a essas comunidades o reconhecimento da força e da luta por
direitos.
A noção de quilombo, no Brasil, vem do uso da definição da palavra feita pelo
Conselho Ultramarino de 1740. Quilombo, no uso daquele Conselho, é “toda habitação
de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham
ranchos levantados nem se achem pilões neles”. O termo quilombo, segundo O’Dwyer
(2005, p. 91-111), é objeto de ressemantização para identificar comunidades negras
43
Direito Agrário Ambiental

encontradas em diferentes regiões do Brasil. Para essa autora, “contemporaneamente,


portanto, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de
ocupação temporal ou de comprovação biológica.” Não se trata, objetivamente, de
grupo isolado definido ou população homogênea. Nem sempre são descendentes e
originários de insurretos ou rebelados, “mas, sobretudo, consistem em grupos que
desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus
modos de vida característicos e na consolidação de um território
próprio.(...)”(O’DWYER, 2005, in passim). A territorialidade desses grupos é
predominantemente pelo uso comum da terra, portanto agrária.
Em realidade, o que importa e tem definido a comunidade quilombola hoje é o
autorreconhecimento e a noção de pertencimento. Também a identidade étnica é posta
em questão. A antropologia social, segundo Carneiro da Cunha (2009, in passim), afasta
a ideia de “‘raça’, entendida como uma subdivisão da espécie, que apresenta caracteres
comuns hereditários.” Isso é refutado como conceito científico. Por outro lado, também
os critérios baseados em formas culturais não servem, pois pressupõem formas estáticas,
o que contraria a natureza essencialmente dinâmica das culturas humanas. Afirma a
autora (CUNHA, 2009, p. 247-248) que a antropologia social chegou à conclusão de
que
“os grupos étnicos só podem ser caracterizados pela própria
distinção que eles percebem entre eles próprios e os outros grupos com os
quais interagem. Existem enquanto se consideram distintos, não importando
se essa distinção se manifesta ou não em traços culturais”.

É importante também a noção de pertencimento do indivíduo ao grupo por


meio de uma autodefinição e do reconhecimento pelo grupo de que determinado
indivíduo lhe pertence. Isso nem sempre é pautado pela generosidade. “Assim, o
grupo pode aceitar ou recusar mestiços, pode adotar ou ostracizar pessoas, ou seja, ele
dispõe de suas próprias regras de inclusão e exclusão [...].” Nessa perspectiva, o
fundamental na definição do quilombola é “[...] considerar-se e ser considerado como
tal [...]” (CUNHA, 2009, p. 253).
Importa acrescentar que categorização encontra suporte na ideia
de comunidade em vez de povo ou população, conceitos explorados pela teoria política
liberal moderna. Essa noção é mais recente do que aquelas e diz sobre as relações
associativas e as formas organizativas autônomas (ALMEIDA, 2008, in passim).
Comunidade se refere a “um contrato estabelecido entre os agentes sociais com o
propósito de afirmar seus direitos, construindo uma entidade de representação, e de
44
Direito Agrário Ambiental

resistir às imposições de antagonistas que tentam usurpar seus direitos territoriais.”


Trata-se de assumida batalha pela existência ou por condições que tornem possível
determinado modo de vida.
Pode-se considerar Comunidade Quilombola um conceito antropológico
engendrado para se referir à condição de “remanescente de quilombo” enquanto luta de
resistência de uma determinada comunidade. A noção de remanescente de quilombo é
definida pelo compartilhamento de um território e de uma identidade social e étnica, que
expressa, segundo Schmitt, Turatti e Carvalho (2015), “[...] um sentimento de pertença
a um grupo e a uma terra [...]”. Identidade étnica que pode se definir a partir de três
critérios- a autoidentificação, a heteroidentificação e a manutenção de uma continuidade
histórica.
O artigo 2º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, considera
remanescentes das comunidades dos quilombos “os grupos étnico-raciais, segundo
critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida.” É relevante refletir sobre o critério de auto-
atribuição, que assegura uma participação ativa e determinante da comunidade na
definição da identidade, a partir do tipo de sentimento, de compreensão e de
representação que ela tem de si e de como os outros reconhecem ou não a qualificação
de quilombola.
Outro aspecto a ser considerado diz respeito a tratar-se de minorias étnicas,
sobretudo porque se pretende trabalhar com o conceito de etnodesenvolvimento.
Rouland (2008, p. 300) afirma que nem a história, nem o território ou o número são
suficientes para definir minorias. Para aquela definição, seria necessário recorrer-se a
critérios mais abstratos de ordem política e jurídica. Para o autor, não há minorias em
si, elas se definem a partir de estruturas. São grupos que nas tensões de força e de
direito, submetem-se a outros cujos interesses são assumidos pelo Estado, que realiza a
discriminação por meios diversos. Entre estes, o Estado opera por meio de estatutos
jurídicos desiguais (políticas de apartheid), recorrendo a princípios de igualdade cívica
que privam de direitos específicos coletividades cuja situação social e econômica é
particular; a igualdade cívica pode criar ou perpetuar desigualdades de fato) […]
(ROULAND, 2008, p. 300).

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Direito Agrário Ambiental

Outro aspecto a ser considerado, sobretudo ao se buscar o sujeito de políticas


de etnodesenvolvimento, é a origem e o estado atual da exclusão social desses povos. O
quadro atual de exclusão social das comunidades quilombolas, que, em sua maioria,
encontram-se na zona rural, tem muitos fatores. Um desses, determinante da situação,
foi a operacionalização do sistema escravista, estruturado a partir da violência e da
dominação.
No plano econômico, observa-se que a exclusão se deu sobretudo por práticas
sociais que prefiguram o quadro de mobilidade social. Isso se mostra com clareza nos
censos econômicos e nos levantamentos socioeconômicos (LEITE, 2011). Nos muitos
rincões do Brasil, sobretudo após a abolição (considerado o marco1888), os negros
foram desqualificados e os lugares em que habitam foram abandonados pelo poder
público ou mesmo questionados por outros grupos recém-chegados). Haja vista que
ainda hoje por volta de 17,1% das comunidades quilombolas não têm abastecimento de
agua encanada e por volta de 65,2% das crianças quilombolas não têm material didático
adequado (SEPPIR, 2014). Outro fator determinante da exclusão social das
comunidades quilombolas foi a negligência da sociedade e dos poderes públicos,
preocupados que estavam com o fortalecimento e a expansão do capitalismo no campo,
de modo que elas continuaram esquecidas, invisibilizadas e desrespeitadas enquanto
outros grupos foram legitimados a ocupar e expandir as atividades econômicas no
campo. Das comunidades quilombolas certificadas nos diversos estados da Federação,
a imensa maioria não tem o título de propriedade da terra. Apenas os estados do Pará
(23%) e do Maranhão (17,6%) atingem índices superiores a 8,2%, que é o da Bahia. Em
todos os demais estados, os índices de titulação variam entre 2,9% e 5,7% (SEPPIR,
2014); isso 27 anos depois do reconhecimento constitucional desse direito.
São esses grupos discriminados e abandonados que a política de
etnodesenvolvimento de economia solidária quer atingir, com modelos específicos e
uma pauta de direitos a serem garantidos.
O estatuto do quilombola como sujeito de direito coletivo contemporâneo
inicia-se com o marco constitucional. O tema quilombola aparece no artigo 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), e nos artigos 215 e 216 do
próprio texto constitucional. O assunto foi regulamentado em Constituições Estaduais
que reconhecem aos remanescentes dos quilombos a propriedade de suas terras. Assim

46
Direito Agrário Ambiental

ocorreunas Constituições do Pará (Art. 232), de Mato Grosso (Art. 251 e 33 do ADCT),
da Bahia (Art. 51), do Maranhão (Art. 229 do ADCT) e de Goiás (Art. 16 do ADCT).
Vários estados da Federação incorporaram o direito de titulação das terras,
previsto no art. 68 do ADC, nas suas constituições.
No estado do Pará, o artigo 322 da Constituição dispõe que, “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos
no prazo de um ano, após promulgada esta Constituição”. A Constituição Estadual do
Pará repete o texto do art. 68 do ADCT, fixando o prazo de 1 (um) ano para o Estado
desincumbir-se da tarefa fixada nos textos jurídico-constitucionais.
A Constituição do Mato Grosso também regulamenta o assunto, tratando mais
de negar do que de conferir direitos. O artigo 33 dessa Carta exige tempo de ocupação
para a obtenção da titulação maior que 50 anos, lapso temporal que extrapola todos os
prazos de usucapião no Brasil, que são de 5, 10 e 15 anos. Ademais, é importante
recordar que, para a usucapião especial rural, a Lei 10.406/02, incorporando o disposto
no artigo 183 da CF, exige 5 anos.
Na Constituição mato-grossense, as comunidades quilombolas estão inseridas no
conjunto do patrimônio cultural do Estado, o que os coisifica e acaba por desconhecer a
plenitude de sua existência como sujeitos de direitos. Vê-se que a axiologia
constitucional volta-se à conservação do remanescente do passado e não a garantir
direitos sociais a esses grupos específicos da sociedade.
Na Bahia, regula a matéria o dispositivo constitucional: “Art. 51 - O Estado
executará, no prazo de um ano após a promulgação desta Constituição, a identificação,
discriminação e titulação das suas terras ocupadas pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos”. Pelos dados apresentados anteriormente, levantados pelo
IPEA (2014), o Estado está longe de cumprir o prazo fixado, de um ano, para a titulação
dos territórios quilombolas situados na Bahia, incorrendo em omissão inconstitucional.
No Maranhão, a matéria está disciplinada no Capítulo VI da Constituição
Estadual, relativa à educação, à cultura e ao desporto, na Seção II, que trata da Cultura,
da seguinte forma: “Art. 229. O Estado reconhecerá e legalizará, na forma da lei, as
terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.” O Maranhão foi o
primeiro estado, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a reconhecer

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Direito Agrário Ambiental

comunidade quilombola- a Frechal- valendo-se do instrumento jurídico da Reserva


Extrativista, criada pelo Decreto Federal n.º 536, de 20 de maio de 1992.
Em Goiás, a matéria está prevista no art. 16 do Ato das disposições
constitucionais transitórias, dispondo que, aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos. Previu no § 1º que lei complementar
criaria a reserva Calunga, localizada nos municípios de Cavalcante e Monte Alegre, nos
vãos das Serras da Contenda, das Almas e do Moleque. No § 2º determinou que, para a
delimitação da reserva, deveria ser ouvida uma comissão composta de oito autoridades,
integrada pelo movimento negro (um integrante), duas pessoas da comunidade
Calunga, dois representantes do órgão de desenvolvimento agrário do Estado, um
compontente representando a Universidade Católica de Goiás (hoje PUC Goiás), uma
representação da Universidade Federal de Goiás e uma do Comitê Calunga.
A Lei Complementar a que se refere o §1º, do artigo 16, supra, foi sancionada
em 05 de janeiro de 1996, dispondo especificamente sobre o sítio histórico e o
patrimônio cultural Kalunga. Entrou em vigor em 10 de janeiro de 1996, retroagindo os
seus efeitos a 28 de janeiro de 1991, quando foi publicada a Lei Estadual n.º 11.409, de
21 de janeiro de 1991, que declarou constituir patrimônio cultural e sítio de valor
histórico a área de terras ocupada pelos Kalungas, situada nos vãos das Serras do
Moleque, das Almas, da Contenda-Kalunga e do Córrego Ribeirão dos Bois, nos
municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. Observe-se que se ignora
a questão quilombola no País e no estado de Goiás (que tem hoje 28 comunidades
certificadas, segundo o IPEA SEPPIR (2014). A comunidade Kalunga foi a primeira no
Brasil, ainda antes da Constituição de 1988, a receber titulação, mesmo que
parcialmente.
O estatuto quilombola, na Constituição federal e nas estaduais, mostra a
insuficiência do ordenamento jurídico na concretização dos direitos coletivos dessas
comunidades. No Brasil, as comunidades quilombolas ou são tratadas como sobras de
um sistema de exploração, ou como patrimônio cultural e histórico, ou ainda, quando
pensadas como coletividades, restringem-se os seus direitos à noção civilista de
propriedade da terra. Tal apreensão jurídico-política da realidade não reconhece o
sentido comunitário desse sujeito de direito coletivo. É necessário instrumental jurídico
que guarde relação com o modo de vida desses grupos, observando-se a sua situação

48
Direito Agrário Ambiental

como sujeitos coletivos de direitos. Por isso a proposta de etnodesenvolvimento da


economia solidária pode oportunizar construções jurídicas mais adequadas.

5. PROJETO QUILOMBOS DAS AMÉRICAS


Existem iniciativas e projetos visando fortalecer as comunidades
afrodescendentes e sua identidade, em toda a América Latina. Há financiamentos que
buscam alcançar essas comunidades e vão nessa direção. Nem todos logram êxito
efetivo, mas a iniciativa tem colocado em pauta a necessidade de apoio a esses sujeitos
ocultados pela história brasileira. Um dos mais interessantes procura a interlocução de
comunidades em diferentes países, promovendo a troca de experiências e modos de
produção de vida.
O projeto Quilombos das Américas é representativo do modelo. Criado em
2011 e instituído no diálogo entre três países, Brasil, Equador e Panamá, promove
projetos de cooperação internacional e o fortalecimento de laços entre governos e
organismos internacionais na América Latina. Envolveu trabalho com três comunidades
afrodescendentes rurais, uma em cada um desses países: Quilombo Empata Viagem, no
Brasil; o território ancestral afro-ecuatoriano Valle delChota, La Concepción y Salinas,
Provincias de Carchi e Imbabura, no Ecuador; e Corregimiento de Garachiné, Provincia
de Darién, no Panamá. Os três quilombos têm processos organizativos marcados por
trajetórias de luta e superação do modelo escravocrata e se ordenam a partir de um
território.
Segundo o relatório do projeto (BRASIL, 2013, in passim), esses grupos se
constituem tendo por referência a noção de território como espaço coletivo e indivisível,
ocupado por meio de regras consensuais para os diferentes grupos familiares que
constituem as comunidades cujas relações são orientadas pela solidariedade e pela ajuda
mútua.
O projeto teve por objetivo promover a soberania alimentar, a valorização e o
fortalecimento das identidades dos povos afro-rurais, fomentando sua articulação
política e o acesso aos direitos econômicos sociais e culturais. Ficaram encarregados da
gestão; a SEPPIR, Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial;aEmpresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA); o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA); a Agência Brasileira de Cooperação do Ministério de Relações
Exteriores (ABC/MRE); o Ministério de Desenvolvimento Agrário e o Instituto

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Direito Agrário Ambiental

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (MDA e INCRA); a Coordenação


Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais de Quilombos (CONAQ); a
Secretaría Geral Ibero-americana (SEGIB); o Instituto Interamericano de Cooperação
para a Agricultura (IICA); a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Género e
Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres); o Programa Interagencial de
Promoção da Igualdade de Género, Raça e Etnia das Nações Unidas.
Os órgãos governamentais promoveram a troca de experiências por meio de
visitas entre as comunidades; semináriosem que se debateram os resultados obtidos
foram relatados na obra que se denominou Quilombos das Américas. Articulação das
comunidades afro-rurais, publicada pelo Governo brasileiro conjuntamente com o
Instituto de Pesquisas Aplicadas. O relatório apresenta uma análise do sistema
produtivo dos quilombos dos três países, diagnosticando a situação de exclusão e
pobreza, a impossibilidade de acesso a direitos, e o risco que isso impõe ao acervo
cultural e identitário.
No que diz respeito à segurança alimentar e nutricional, apontou (BRASIL,
2013, in passim) o grave risco gerado pela falta ou pela má qualidade do alimento.
Informou que, no Brasil, 75,6% dos quilombolas vivem em estado de extrema pobreza.
Afirmou serem as causas multidimensionais, recomendou pensar e construir novos
arranjos e sistemas de produção, distribuição e acesso, além do estímulo a
comportamentos e práticas de consumo e alimentação. O relatório avança utilizando o
conceito e propondo medida para a soberania alimentar. Conclui que os produtos locais
dos três territórios demonstram potencial para fortalecer as capacidades produtivas por
meio de metodologias que incorporem as tecnologias locais. Na interface soberania
alimentar e cultura, aponta-se a possibilidade de realização de inventários, valorizando e
fortalecendo práticas culinárias tradicionais locais. Fala também do inventário cultural
dos saberes e das práticas associados aos sistemas produtivos.
Com relação ao acesso à terra, o relatório indica (BRASIL, 2013, in passim) a
necessidade de maturidade das comunidades e dos governos nacionais para que haja
uma política que faça frente ao problema. Há que se considerar que a propriedade
coletiva é contrária àideia de monopólio de uso, gozo e disposição individual civilista.
A situação requer reflexões jurídicas complexas. O relatório aponta a possibilidade de
estudo da legislação colombiana sobre terras afrodescendentes.
No que diz respeito às relações de gênero, aponta a importância da implantação

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Direito Agrário Ambiental

de ações que empoderem as mulheres, proporcionando o intercâmbio de experiências.


Conclui reafirmando a necessidade do protagonismo de instituições promotoras
de igualdade racial para a interlocução com os governos e de ações governamentais.

CONSIDERAÇOES FINAIS
Os direitos coletivos das comunidades quilombolas no ordenamento jurídico
brasileiro é insuficiente e, quando existe norma regulando algum assunto, em regra, não
logra efetividade.
No plano econômico, os quilombolas são tratados como resquícios de um
sistema de exploração, ou transformam-se em coisas, na medida em que são
considerados patrimônio cultural e histórico. Na melhor das hipóteses, seus direitos
integram a noção civilista de propriedade da terra.
Por outro lado, a normatividade resultante da tomada jurídico-política da
realidade é incapaz de estabelecer uma ordem coletiva, com sentido comunitário. O
coletivo que se estabelece é, em realidade, a individualização a partir de generalizações-
o que retorna ao modelo individualista liberal moderno . Falta aparato jurídico que
acolha o modo de vida desses grupos, na circunstância de sujeitos coletivos de direitos.
É possível que a proposta de etnodesenvolvimento, na esfera da economia solidária,
origine construções jurídicas mais adequadas. Mas isso exige a realização de políticas
públicas e a adequada estrutura dos subsistemas econômico, jurídico e político para que,
na iteração entre eles, um não inviabilize o outro ou a proposta de vida original, nos
seus diferentes aspectos.
As políticas públicas não podem ter caráter provisório, experimental,
temporário, tampouco podem cair no universalismo, na generalidade e no
assistencialismo. Além disso, é necessário que sejam observados os princípios e as
dimensões da economia social e a complexidade da situação quilombola, com as muitas
variações de comunidade a comunidade.
É necessário ter-se em conta, e as políticas públicas hão de reafirmar, o direito ao
território comum como espaço de subsistência e de realização de modelo econômico coletivo
próprio, com instrumentos jurídicos adequados para uma economia participativa, com
modelo de gestão democrática.
A estrutura normativa que rege essa política não pode determinar o funcionamento
interno da organização econômica própria das comunidades e de suas formas de gestão. Deve

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Direito Agrário Ambiental

se limitar a estabelecer as condições circunstanciais com o fim de facilitar a operatividade


autônoma do modelo econômico que normatiza. É necessário o diálogo com a economia local
informada pela cultura da comunidade, para que o sentido normativo não sufoque a proposta
originária e, de outro lado, garanta a solidariedade econômica. Para isso, é mister realizar o
direito numa dimensão reflexiva da racionalidade jurídica, em que a racionalidade interna
construa uma orientação procedimental que apreenda a operatividade dos outros sistemas
(econômico, cultural, político) em relações de interdependência. Trata-se da alteridade
intersistêmica, a partir do olhar do direito, por meio da institucionalização de mecanismos que
viabilizem a ação dos demais sistemas, respeitados valores, interesses e necessidades.

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CAPÍTULO III – AGREGADOS MINERAIS DESTINADOS À CONSTRUÇÃO


CIVIL E O NOVO MARCO REGULATÓRIO DA MINERAÇÃO BRASILEIRA

Nara Raquel Alves Göcks1


Eduardo Sanberg2
Sérgio Augustin3

INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda os agregados minerais para a construção civil,
apresentando conceituações, aspectos legais, ambientais e a relação com a
sustentabilidade, num momento histórico do setor minerário nacional. Atualmente, a
legislação brasileira para bens minerais, vigente desde 1967, deverá ser alterada pelo
Novo Marco Legal para a Mineração Brasileira (NMMB). O texto, inicialmente,
descreve em que contexto a proposta legal se originou, procurando evidenciar as
justificativas que demandam uma nova legislação para o setor.
Estudar a mineração requer um aprofundamento do tratamento constitucional
sob o aspecto do Direito Mineral, Administrativo ou Ambiental. O artigo apresenta
conceitos técnicos, considerações acerca das destinações dadas aos bens minerais,
enquanto bens de interesse social e de utilidade pública, o que acaba justificando o
aumento e a aceleração da produção mineral nacional, conforme propõe o projeto do
novo código.
O artigo também aborda aspectos técnicos e legais da mineração para a
prospecção de minérios metálicos, que possui peculiaridades distintas da mineração
para agregados. Para aprimorar o entendimento, o texto elenca características
ambientais da mineração para diferentes tipos de bens minerais, bem como questões de
mercado, particulares ao setor.
Tratar de mineração em concomitância com a sustentabilidade é essencial.
Destaca-se o forte apelo econômico, ambiental e social relacionado ao tema. A
mineração faz parte do contexto das crises que a humanidade atravessa e, sem dúvida,

1
Mestranda em Direito Ambiental/Programa de Mestrado em Direito Ambiental. Universidade de Caxias
do Sul (UCS), email: [email protected].
2
Doutor em Geociências. Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD CAPES) Universidade de Caxias
do Sul (UCS), email: [email protected]
3
Doutor em Direito. Professor no Programa de Mestrado em Direito Ambiental. Universidade de Caxias
do Sul (UCS), email: [email protected]

55
Direito Agrário Ambiental

representa um setor-ícone para a reversão das condições modernas de ocupação do


planeta.
É de conhecimento de todos que a mineração é uma das atividades humanas
que causam impactos negativos ao meio ambiente. Igualmente relevantes são as
contribuições para o acesso às necessidades básicas humanas enquanto bens essenciais e
insubstituíveis. O NMMB pode significar um passo à frente para o bom gerenciamento
do território nacional, visando a consequências equilibradas e previstas para o meio
ambiente, a sociedade e a economia.

1. NOVO MARCO LEGAL PARA A MINERAÇÃO BRASILEIRA


Para o governo federal, a legislação minerária em vigor não atende às
necessidades do país. Por esse motivo, o NMMB, Projeto de Lei n. 5.807/2013, foi
encaminhado pelo governo à Câmara dos Deputados para votação em meados de 2013.
O projeto, basicamente, dispõe sobre a atividade de mineração, cria o Conselho
Nacional de Política Mineral e a Agência Nacional de Mineração e, se aprovado,
revogará a legislação mineral vigente (Decreto-Lei n° 227, de 28.02.1967, a Lei n.
6.567, de 24.09.1978, Lei n° 8.876, de 2.05.1994, Lei n. 8.970, de 28.12.1994, Lei n.
7.990, de 28.12.1989, Lei n° 8.001, de 13.03.1990, contudo prevê a manutenção da Lei
n. 7.805, de 18.07. 1989 e da Lei n. 11.685, de 02.06. 2008).
A consolidação do NMMB foi prevista no Plano Nacional da Mineração
(PNM-2030), elaborado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) (Lei 10.683/2003,
Das Áreas de Competência - Art. 27. Os assuntos que constituem áreas de competência
de cada Ministério são os seguintes: XVI - Ministério de Minas e Energia: a) geologia,
recursos minerais e energéticos; b) aproveitamento da energia hidráulica; c) mineração e
metalurgia; d) petróleo, combustível e energia elétrica, inclusive nuclear), prevendo,
ainda, diretrizes básicas: “governança pública, eficaz para promover o uso dos bens
minerais extraídos no País no interesse nacional; agregação de valor e adensamento de
conhecimento e sustentabilidade”.
O projeto prevê mudanças nas regras do setor minerário, como: a criação do
Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM), a criação da Agência Nacional de
Mineração (ANM), que substituirá o atual Departamento Nacional de Produção Mineral
(DNPM), cuja extinção se sugere inicialmente. O projeto propõe a criação de novos
regimes de aproveitamento mineral e alterações na Compensação Financeira pela
Exploração Mineral (CFEM), como base de cálculo e definição de novas alíquotas.

56
Direito Agrário Ambiental

O setor mineral é tido como um dos alicerces do desenvolvimento, tanto na


viabilização de fornecimento de materiais como no aumento da arrecadação de royalties
e tributos, o qual, por certo, é um dos principais objetivos da proposta legal. As
mudanças radicais e o evidente fim arrecadatório em vigor impossibilitaram que a
proposta legal fosse aprovada em regime de urgência, conforme intenção inicial do
governo (CF/88 - ART. 64, § 1º - Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de
iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais
Superiores terão início na Câmara dos Deputados. § 1º - O Presidente da República
poderá solicitar urgência para apreciação de projetos de sua iniciativa).
No estudo elaborado sobre as tendências tecnológicas Brasil 2015
(FERNANDES; LUZ; MATOS; CASTILHOS, 2007, p. 50), são apontados desafios
relacionados à legislação brasileira. Inicialmente relata que é extensa e avançada, mas
conflitante e de difícil aplicação; os órgãos federais envolvidos na atividade minerária,
DNPM e IBAMA, são mal estruturados e aparelhados; poucos são os órgãos ambientais
estaduais relacionados que são bem estruturados e atendem à demanda de licenciamento
e fiscalização para mineração; há conflitos entre órgãos licenciadores municipais e
estaduais; e, por fim, a ampliação da atuação do Ministério Público na área ambiental,
com a criação, em vários estados, de corpo técnico de assessoramento que, em muitas
situações, conflita com o entendimento inicial dos órgãos ambientais, contribuindo para
maiores discussões, as quais acabam por prorrogar períodos de análises técnicas, um
dos pontos críticos dos debates.
O atual Código Nacional de Mineração (Decreto-Lei 227, de 1967, atualizado
pela Lei 9.314/1996) é considerado desatualizado e precisa ser modernizado para
melhor atender ao sistema brasileiro. Existem excessivas exigências documentais e
burocráticas, que resultam em adiamentos, entraves e, muitas vezes, não atendimento às
reais necessidades do País” (EMI nº 00025/2013 MME/AGU/MF/MP):
A atração de investimentos internos e externos implicará na existência de um
modelo regulatório moderno, eficaz e desburocratizado, de modo a oferecer
garantias jurídicas, racionalidade e rapidez na obtenção dos títulos
minerários. Nossa legislação deverá evoluir na direção de um modelo que, ao
mesmo tempo, estabeleça a gestão efetiva do patrimônio mineral pela União,
conforme reza nossa Constituição, e atenda, de modo objetivo, aos interesses
do setor privado, o qual é responsável pela incorporação das nossas jazidas
ao domínio econômico.

Outra justificativa para o NMMB é melhorar os números da mineração, da


mesma forma que deverá haver um maior controle operacional, ambiental e econômico

57
Direito Agrário Ambiental

do mercado, por parte do Estado. A tabela 01 apresenta dados quantitativos de


processos de direitos minerários e situação administrativa de tramitação.
Tabela 1: Dados do Ministério de Minas e Energia. Estatísticas de Processos
Minerários 2004 a 2012
Títulos 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Requerimentos de
14.413 16.362 17.334 23.561 26.875 16.037 19.855 26.695 14.834
Pesquisa
Autorizações de
10.925 14.451 12.875 13.901 18.269 15.123 18.299 19.583 4.987
Pesquisa
Relatórios de
Pesquisa 986 1.368 1.038 1.428 1.099 1.493 1.349 1.609 874
Aprovados
Concessões de
335 389 437 324 268 404 204 194 164
Lavra
Registros de
1.312 1.727 1.534 1.496 1.220 1.132 1.548 1.588 944
Licença
Permissões de
99 73 89 46 106 122 368 258 205
Lavra Garimpeira
Registros de
Extração 86 88 179 134 146 202 185 185 92

O projeto legal propõe o final do direito de prioridade sem a pesquisa efetiva,


que inviabiliza a possibilidade de simples retenção de áreas. Assim, fica favorecida a
gestão mineral pelo setor público. O direito de prioridade está previsto no Código de
Minas vigente, no art. 11, alínea “a” (Art. 11. Serão respeitados na aplicação dos
regimes de Autorização, Licenciamento e Concessão: a) o direito de prioridade à
obtenção da autorização de pesquisa ou de registro de licença, atribuído ao interessado
cujo requerimento tenha por objeto área considerada livre, para a finalidade pretendida,
à data da protocolização do pedido no Departamento Nacional da Produção Mineral
(DNPM), atendidos os demais requisitos cabíveis, estabelecidos neste Código), e livre é
a área que não se enquadre nos casos previstos nos incisos do art. 18, do Código de
Minas, Decreto-Lei 227/1967 (Art. 18. A área objetivada em requerimento de
autorização e pesquisa ou de registro de licença será considerada livre, desde que não se
enquadre em quaisquer das seguintes hipóteses: I - se a área estiver vinculada a
autorização de pesquisa, registro de licença, concessão da lavra, manifesto de mina ou
permissão de reconhecimento geológico; II - se a área for objeto de pedido anterior de
autorização de pesquisa, salvo se este estiver sujeito a indeferimento, nos seguintes

58
Direito Agrário Ambiental

casos: a) por enquadramento na situação prevista no caput do artigo anterior, e no § 1º


deste artigo; e b) por ocorrência, na data da protocolização do pedido, de impedimento
à obtenção do título pleiteado, decorrente das restrições impostas no parágrafo único do
Art. 23 e no Art. 26 deste Código; III - se a área for objeto de requerimento anterior de
registro de licença, ou estiver vinculada a licença, cujo registro venha a ser requerido
dentro do prazo de 30 (trinta) dias de sua expedição; IV - se a área estiver vinculada a
requerimento de renovação de autorização de pesquisa, tempestivamente apresentado, e
pendente de decisão; V - se a área estiver vinculada a autorização de pesquisa, com
relatório dos respectivos trabalhos tempestivamente apresentados, e pendente de
decisão; VI - se a área estiver vinculada a autorização de pesquisa, com relatório dos
respectivos trabalhos aprovado, e na vigência do direito de requerer a concessão da
lavra, atribuído nos termos do Art. 31 deste Código § 1º Não estando livre a área
pretendida, o requerimento será indeferido por despacho do Diretor-Geral do
Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM), assegurada ao interessado a
restituição de uma das vias das peças apresentadas em duplicata, bem como dos
documentos públicos, integrantes da respectiva instrução. § 2º Ocorrendo interferência
parcial da área objetivada no requerimento, como área onerada nas circunstâncias
referidas nos itens I a VI deste artigo, e desde que a realização da pesquisa, ou a
execução do aproveitamento mineral por licenciamento, na parte remanescente, seja
considerada técnica e economicamente viável, a juízo do Departamento Nacional da
Produção Mineral - DNPM - será facultada ao requerente a modificação do pedido para
retificação da área originalmente definida, procedendo-se, neste caso, de conformidade
com o disposto nos §§ 1º e 2º do artigo anterior).
Tratar sobre mineração requer o entendimento acerca dos conceitos técnicos e
dos fundamentos jurídicos que regulam a matéria, tanto sob a ótica ambiental quanto
sob a administrativa. A seguir, conferiram-se aspectos legais relativos aos bens
minerais, evidenciando os impactos ambientais, para que possam ser sopesados com
relação aos aspectos de essencialidade e alcance dos direitos fundamentais.

2. DOS BENS MINERAIS


O Poder Constituinte Brasileiro assegurou que os bens minerais são bens da
União, conforme disposição expressa no art. 20 da Constituição Federal de 1988,
contudo o concessionário e o proprietário do solo, onde se encontra a jazida, possuem
participação nos resultados da lavra, conforme preceito constitucional no art. 176.

59
Direito Agrário Ambiental

Para regularização junto à União, o empreendedor busca a autorização


minerária junto ao órgão concedente, Departamento Nacional de Produção Mineral –
DNPM (Decreto-Lei n. 227/1967-Código de Minas; Lei 6.567/1978-que dispõe sobre
regime especial para a exploração e o aproveitamento das substancias minerais). Após o
pagamento de taxas e o encerramento das atividades técnicas determinadas pelo DNPM,
este concede a liberação para Licenciamento Ambiental junto ao órgão competente. Os
impactos são gerenciados conforme técnicas exigidas e fiscalizadas pelo órgão
ambiental, conforme o art. 225, §1º e §2º da Constituição Federal.
A mineração é uma atividade potencialmente poluidora e, mesmo antes da
Constituição de 1988, a Lei Federal 6.938, em 1981, Política Nacional do Meio
Ambiente, determinava que esse tipo de atividade estava submetido ao prévio
licenciamento ambiental, pelo órgão ambiental competente, conforme seus artigos 9º,
IV e 10º. Assim, os bens minerais são disciplinados tanto pelo Direito mineral como
pelo Direito ambiental, enquanto bens naturais e coletivos. Silvia Helena Serra
evidenciou que a exploração mineral representa o próprio exercício da soberania da
Nação e o cumprimento da função social desse bem (GOCKS; AUGUSTIN, 2013, p.
445-469).
Frazão (2002, p. 9) conceitua mineral como “toda substância química,
cristalina, quase inorgânica e sólida, que se forma em processos naturais”. São bens
essenciais, não renováveis, e a Humanidade ainda não encontrou substitutos capazes de
atender à atual demanda, o que reivindica que a forma de sua utilização seja precedida
de um planejamento estratégico, garantindo seu uso pelas futuras gerações.
A atividade de mineração pode ser avaliada sob a ótica da utilidade pública e
do interesse social. O Decreto-Lei n° 3.365/1941 considera como caso de utilidade
pública o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, conforme o art.
5°, f. O CONAMA, em 2006, após acirradas discussões acerca das exceções que
possibilitavam as intervenções ou a supressão de vegetação em Área de Preservação
Permanente, já elencava, dentre as atividades autorizadas, a mineração de agregados
para a construção civil, o que restou consolidado no novo Código Florestal, Lei
12.651/2012, que dispõe acerca da proteção da vegetação nativa e em seus artigos. 3º e
8º, determina que os agregados para a construção civil devem ser considerados como de
utilidade pública ou interesse social, dependendo da tipologia mineral.
A mineração responde por aproximadamente 4% do Produto Interno Bruto.
Setor de tamanha importância demanda uma regulamentação legal que permita o

60
Direito Agrário Ambiental

desenvolvimento da atividade de forma contínua, sustentável e estável, conforme


constou na Exposição de Motivos Interministerial nº 00025/2013 MME/AGU/MF/MP,
do Projeto de Lei n. 5.807/2013, que visa instituir o denominado Novo Marco da
Mineração que fora encaminhado para votação no ano de 2013.

3. MINERAÇÃO NO BRASIL
A mineração é um dos setores essenciais do sistema internacional, sendo o
desenvolvimento das sociedades diretamente atrelado aos recursos minerais disponíveis.
A História do Brasil revela, desde os primórdios de seu descobrimento, o
desenvolvimento de uma cultura em que o aproveitamento econômico dos recursos
sempre foi realizado ainda em estado bruto, sem beneficiamentos prévios. Esse quadro
cultural, herdado da época colonial, permaneceu sem alterações, e o Brasil, até os dias
de hoje, mantém uma política de exportações, via de regra, de minérios brutos. Ainda
com relação à história do País, diversos minerais e rochas exerceram funções-chave na
ocupação do território nacional.
Os ciclos do ouro (1580-1640) e do diamante (1721-1740) são exemplos da
extraordinária capacidade mineral brasileira. Conforme Mendo (2003, p. 24):
a mineração forjou os valores de liberdade e democracia dos brasileiros, bem
como estabeleceu o próprio território do País, assim como construiu nosso
sentimento de nação: erigiu, também, a estrutura administrativa do governo e
a burocracia estatal.

Como exemplo mais moderno, cita-se a jazida de Carajás (Pará/Brasil),


considerada a maior reserva de ferro do planeta. O Brasil ocupa posição de destaque no
mundo, pois, “conjuntamente com a Austrália, os dois países representam cerca de 60%
das exportações mundiais desse produto”.
Outro aspecto relevante diz respeito à relação entre depósitos minerais
disponíveis e o condicionamento nas matrizes energéticas dos países. A China e a
Rússia, possuidores de imensas jazidas de carvão, baseiam suas matrizes energéticas em
usinas termelétricas. O mesmo vale para as reservas de petróleo da Arábia Saudita e
para as de gás de folhelho em franco processo de exploração nos Estados Unidos da
América (SANBERG, ET AL, 2014). No Brasil, embora ocorram expressivas jazidas de
carvão, a base da matriz energética é de origem hidroelétrica.
Em 2004, o Brasil exportou US$ 23.245.429.000 em recursos, significando um
crescimento de 34% em relação ao ano anterior, conforme dados do DNPM (tabela 02)
(FERNANDES; LUZ; MATOS; CASTILHOS, 2007, p. 214):

61
Direito Agrário Ambiental

Tabela 2: Bens Minerais Exportados Em 2004 (DNPM).


BENS MINERAIS VALOR (EM MILHÕES US$)
Ferro 11.326.580
Petróleo (inclusive derivados) 4.378.997
Alumínio (inclusive bauxita) 2.450.424
Rochas ornamentais 597.111
Cobre 445.317
Ouro 414.340
Nióbio (inclusive tantalita e vanádio) 303.198
Manganês 274.689
Níquel 255.983
Caulin 233.360
Fosfato 222.174
Crisotila 142.905

Estima-se que o Brasil receba, até 2016, 20% de todo o investimento mundial
em mineração, ou seja, US$ 75 bilhões de um total de US$ 400 bilhões, conforme
informou o Consultor Felipe Gomes da Price Waterhouse Coopers na Exposibram
Amazônia 2012. No evento, discutiu-se a importância da “licença social”, sem a qual o
empreendimento, mesmo que devidamente licenciado junto aos órgãos reguladores, não
conseguirá desenvolver suas atividades, devido à pressão da população de seu entorno,
o que valeria também para terras indígenas. A Licença Social é um dos temas que vêm
sendo discutidos durante a elaboração do NMMB.

4. MINERAÇÃO DE AGREGADOS PARA A CONSTRUÇÃO CIVIL


Serna e Rezende conceituam agregados para a construção civil como materiais
granulares, sem forma e volume definidos, de dimensões e propriedades estabelecidas
para uso em obras de engenharia civil, tais como a rocha britada, o cascalho e as areias
naturais ou obtidas por moagem de rocha, além das argilas e dos substitutivos, como
resíduos inertes reciclados, escórias de aciaria, produtos industriais, entre outros. Os
agregados são abundantes no Brasil e no mundo, e podem ser naturais ou artificiais. Os
naturais são os que se encontram de forma particulada na natureza (areia, cascalho ou
pedregulho), e os artificiais são aqueles produzidos por algum processo industrial, como
as rochas britadas, as areias artificiais, as escórias de alto-forno e as argilas expandidas,
entre outros (DE LA SERNA; REZENDE, 2009).
Frazão (2002, p. 9) enfatiza que esses materiais podem ser diferenciados por
suas características macroscópicas e pelos seus constitutivos, o que repercutirá na
aplicação que lhe será designada. Rocha pode ser conceituada como todo “agregado

62
Direito Agrário Ambiental

sólido, constituído por um ou mais tipos de minerais”. O termo “pedra britada”


representa o material resultante da fragmentação mecânica de rochas, sendo
denominada de graduada quando é fragmentada em “uma sequência contínua de
dimensões”. O pó de pedra consiste na última etapa da britagem da rocha, com
dimensão inferior a 0,075 mm (FRAZÃO, 2002, p. 10-12). Outros termos popularizados
no setor são pedregulho e cascalho. Esses termos são empregados para designar rochas
que se fragmentaram naturalmente (FRAZÃO, 2002, p. 10). O termo areia é usado para
materiais de granulometria entre 0,075 a 4,8 mm (FRAZÃO, 2002, p. 12).
Os agregados minerais de emprego direto na construção civil, por sua
importância para os setores de habitação, saneamento, transportes e infraestrutura, são
considerados como bens minerais de uso social. A produção desses minerais, por fatores
mercadológicos, impõe atuação próxima aos centros consumidores, caracterizando-se
como uma atividade típica das regiões metropolitanas e urbanas (SILVA, 2007)..
A instalação de um ponto de extração (ex. pedreiras e cavas para extração de
areia) para a produção de agregados para a construção civil pode ter duas finalidades
distintas: atender a uma cidade ou região, ou a uma obra em especial. Em qualquer das
opções, a distância entre o ponto de extração e o mercado consumidor deverá ser a
menor possível, a fim de se otimizarem os custos com transporte (FRAZÃO, 2002, p.
85).

5. MINERAÇÃO, MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO


SUSTENTÁVEL
Tratando-se da mineração moderna, realizada conforme critérios específicos, é
fundamental que se tracem as relações da questão ambiental com o apelo econômico e
social associado, especialmente com relação aos agregados para a construção civil.
No Brasil, a Política Nacional de Meio Ambiente, Lei 6.938/81, devidamente
recepcionada pela Constituição Federal de 1988, conceitua meio ambiente:
Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
I - meio ambiente o conjunto de condições, leis, influências e interações de
ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas
as suas formas.

Para alguns doutrinadores, o cuidado que se deve ter com o meio ambiente
emerge do direito à vida, direito fundamental do homem. Entretanto, há divergências
doutrinárias quanto a o meio ambiente ecologicamente equilibrado ser considerado um
direito fundamental (ALEXY, 2011, p. 433-434). Para alguns, seria um direito

63
Direito Agrário Ambiental

fundamental social, como são os direitos à assistência social, ao trabalho, à moradia e à


educação, que são, por excelência, direitos a prestações estatais; para outros, seria um
“direito fundamental completo”, conforme entendimento a seguir:
um direito a que o Estado se abstenha de determinadas intervenções no meio
ambiente (direito de defesa); um direito a que o Estado proteja o titular do
direito fundamental contra intervenções de terceiros que sejam lesivas ao
meio ambiente (direito a proteção); um direito a que o Estado inclua o titular
do direito fundamental nos procedimentos relevantes para o meio ambiente
(direito a procedimentos); e um direito a que o próprio Estado tome medidas
fáticas benéficas ao meio ambiente (direito a prestação fática)” (ALEXY,
2011, p. 433-434).

O direito ambiental extrapola a tutela coletiva e é considerado direito difuso,


pois possui objeto indivisível e titularidade indeterminada, caracterizando-se pela
transindividualidade (FIORILLO; FERREIRA, 2012, p. 18). O meio ambiente possui,
no Brasil, status constitucional, requerendo esforços tanto do poder público como da
coletividade, conforme o art. 225 da Constituição Federal/1988. Os bens ambientais são
considerados essenciais à qualidade de vida, vinculação insculpida pela Carta
Constitucional (FIORILLO; FERREIRA, 2012, p. 25).
A proteção legal, constitucional e assegurada em tratados internacionais não
evitou a crise ambiental que a humanidade enfrenta e que, há muito, vem sendo
alardeada. O cenário de impactos ambientais, de crise hídrica e energética, além de
desequilíbrios climático-ecológicos praticamente imprevisíveis, reivindica uma efetiva
proteção ambiental globalizada; contudo essa percepção não é homogênea em todo o
planeta. Questões políticas, econômicas, culturais e geográficas fazem com que a prática
e os discursos relacionados ao tema não sejam uniformes (LEFF, 2012, p. 96).
A crise hodierna possui várias faces; ela é social, visto que “900 milhões de
seres humanos vivem abaixo da linha da pobreza e seu número aumenta” (HOUTART,
2011, p. 9).. A crise financeira e econômica mundial de 2008 ampliou a desigualdade
entre países “produtores e não produtores de petróleo” (HOUTART, 2011, p. 9),
ocasionando o aumento dos preços da energia e dos alimentos. Há, ainda, a crise de
alimentos, a crise energética e a crise hídrica, todas desencadeadas pelo mau
gerenciamento da ocupação humana do planeta.
Sob pena de comprometimento da própria espécie, o discurso do
desenvolvimento sustentável deve sair da retórica e transformar-se em realidade
(FREIRIA, 2011, p. 75, 109). Para que se torne efetivo, são necessários diálogos
interdisciplinares que resultem em decisões políticas estratégicas, capazes de
desencadear benefícios econômicos-sociais-ambientais.

64
Direito Agrário Ambiental

Torna-se relevante questionar a possibilidade de alcançar o desenvolvimento


sustentável sob a ótica do capitalismo, que vem sendo definido como um sistema de
desenvolvimento insustentável, como asseverou Foster (2013), recorrendo a Karl Marx,
em sua crítica à economia política do desenvolvimento insustentável, de seus recursos
humanos e consequências naturais.
O consumo tornou-se uma compulsão moderna. O consumidor, dentre uma
infinidade de opções de escolha, não vem sendo condicionado a questionar a real
necessidade de adquirir determinado serviço ou produto, encobrindo a opção do não
consumo, indesejável para o mercado econômico (TAVARES; IRVING, 2009. p. 37).
Contudo, sob a ótica dos minerais destinados à construção civil, outros fatores devem
ser considerados. De La Serna e Rezende (2009) versam sobre o consumo de agregados:
Há uma interface estreita entre o consumo de minerais agregados na
sociedade e o padrão de vida desfrutado por uma população. As políticas
setoriais que promovem a melhoria das condições de vida normalmente
induzem os setores consumidores de agregados tais como a saúde pública,
que não pode prescindir da demanda de agregados para a construção de
novos hospitais e a ampliação do setor. O mesmo ocorre com a infraestrutura
de Saneamento Básico (construção de sistemas de captação, adução,
tratamento e distribuição de água), de transporte (rodovias, vias públicas,
ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos, pátios e estações), energética, de
segurança pública, educação e habitação.

Os autores citados também oferecem dados sobre a média de consumo de


agregados na primeira década do século XXI. Na Europa, o consumo médio foi de 6 a
10 ton./habitante/ano; nos EUA, no mesmo período, 8 ton/habitante/ano, enquanto, na
Região Metropolitana de São Paulo, as taxas obtidas foram 3,5 ton/ha/ano e 4,2 t/
ha/ano.
Embora o direito regule a proteção/prevenção ambiental, determinando
instrumentos de gestão ambiental, como zoneamento, licenciamento e planos, estes
funcionam dissociados da lógica da gestão. Freiria (2011, p. 13-14) evidencia duas
situações reais: planos e projetos engavetados e fora do processo contínuo de gestão e
fiscalização e propagação infrutíferas do apenamento dos causadores de danos
ambientais. Freitas sugere um rompimento de paradigma para que se parta “para uma
gestão pública de ênfase na resolução administrativa de conflitos” (DE LA SERNA;
REZENDE, 2009)..
Segundo Milaré (2013, p. 632), a gestão ambiental não pode ser entendida
como atividade exclusiva dos empreendedores ou de organizações da sociedade civil
nem tampouco apenas do poder público. Para que se possa desenvolver uma
administração ambiental no Brasil, deve haver a coesão entre todos os atores, enquanto
65
Direito Agrário Ambiental

“entes convergentes e solidários”, e entre as diretrizes estabelecidas e o gerenciamento


das condutas ambientais.
Nesse contexto, importa verificar a repercussão ambiental da atividade
minerária, tanto seus efeitos positivos quanto negativos, para que se possam equacionar
os conflitos que são travados na acessibilidade dos recursos minerais, especialmente em
decorrência da acirrada discussão legislativa sobre o NMMB, e para que se possa apoiar
ou não a omissão existente no projeto de lei sobre a matéria ambiental, pois, nessa
relação conflituosa entre o direito ambiental e o minerário, para muitos é imprescindível
que o novo marco da mineração também verse sobre normas ambientais. Note-se que o
NMMB não inclui menções aos aspectos ambientais, deixando-os, em todas as fases (do
planejamento à fiscalização), totalmente nas mãos dos órgãos ambientais.

6. MINERAÇÃO E OS IMPACTOS AMBIENTAIS


As alterações ambientais relacionadas à mineração começaram a se transformar
em assunto de preocupação durante a década de 60, ganhando importância política a
partir da década de 70 e, hoje, podem, inclusive, assumir condição medular nas decisões
estratégicas. Atualmente, não é possível realizar extrações ou discutir planejamento para
extração mineral sem considerar os impactos ambientais. O instrumento mais
empregado no Brasil para controle e regulação da extração mineral é o licenciamento
ambiental, que pode ser realizado pelo Município, Estado ou Federação. Embora útil, o
instrumento apresenta deficiências diante do difícil objetivo de regular a mitigação de
impactos inerentes à própria extração.
A Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938/1981, que fora recepcionada
pela Constituição Federal de 1988, é o instrumento maior para a regulação das
atividades que interfiram no meio ambiente. É nela que estão previstos os princípios, os
objetivos e os instrumentos para o gerenciamento ambiental no Brasil. O licenciamento
ambiental4 é um desses instrumentos.
A gestão ambiental decorre do planejamento entabulado pelos entes federados,
logo as políticas públicas ambientais podem ser municipais, distritais, estaduais e/ou
nacionais, e terão a abrangência que a sociedade e o Poder Público lhes conferir. Os
regramentos serão elaborados de acordo com os resultados pretendidos, o que justifica a

4 Art. 9º, IV, da Lei 6.938/1981

66
Direito Agrário Ambiental

autorização de atividades potencialmente poluidoras, como os minerais extraídos para a


construção civil, que são considerados como bens sociais
A tabela 3, modificada de Farias (2002), sintetiza os principais impactos
ambientais na produção brasileira de ferro, ouro, chumbo, zinco e prata, carvão,
agregados para a construção civil, gipsita e cassiterita e as ações gerais, corretivas e
preventivas normalmente adotadas.
Tabela 3: Principais impactos ambientais causados pela Mineração no Brasil
(modificado de Farias, 2002)
Substância
Estado Principais Aspectos Ambientais Ações Preventivas/Corretivas
Mineral
Cadastramento das principais
barragens de decantação em atividade e
Antigas barragens de contenção e abandonadas; Caracterização das
Ferro MG
poluição de águas superficiais. barragens quanto à estabilidade;
preparação de estudos para
estabilização.
Utilização de mercúrio na Divulgação de técnicas menos
concentração do ouro de forma impactantes; monitoramento de rios
PA
inadequada; aumento da turbidez, onde houver maior uso de mercúrio.
principalmente na região de Tapajós.
Ouro
Rejeitos ricos em arsênio; aumento Mapeamento e contenção dos rejeitos
MG
da turbidez. abandonados.
Emissão de mercúrio na queima de Divulgação de técnicas menos
MT
amálgama. impactantes
Chumbo, Mapeamento e contenção dos rejeitos
SP Rejeitos ricos em arsênio.
Zinco e Prata abandonados.
Mapeamento e contenção dos rejeitos
Chumbo BA Rejeitos ricos em materiais tóxicos
abandonados.
Barragem de contenção de rejeito de Realização das obras sugeridas no
Zinco RJ antiga metalúrgica em péssimo estudo contratado pelo governo do
estado de conservação estado do Rio de Janeiro.
Contaminação das águas superficiais Atendimento às sugestões contidas no
e subterrâneas pela drenagem ácida projeto conceitual para recuperação da
SC
proveniente de antigos depósitos de Bacia Carbonífera Sul Catarinense
Carvão rejeitos
Produção de areia em Disciplinamento da atividade; estudos
RJ Itaguaí/Seropédia: contaminação do de alternativas de abastecimento.
lençol freático, uso futuro da terra

67
Direito Agrário Ambiental

comprometido devido à criação


desordenada de áreas alagadas
Produção de areia no Vale do Paraíba Disciplinamento da atividade; estudos
acarretando a destruição da mata de alternativas de abastecimento e de
SP ciliar, turbidez, conflitos com uso e transporte.
ocupação do solo, acidentes nas
Agregados
rodovias causados pelo transporte
para
Produção de brita nas Regiões Aplicação de técnicas menos
construção
Metropolitanas do Rio de Janeiro e impactantes; estudos de alternativas de
civil
São Paulo acarretando: vibrações, abastecimento.
RJ e SP
ruído, emissão de particulado,
transporte, conflitos com uso e
ocupação do solo
Mineração em áreas de cavernas com Melhor disciplinamento da atividade
Calcário MG e SP impactos no patrimônio através da revisão da Resolução
espeleológico. Conama n. 5 de 06/08/1987.
Desmatamento da região do Araripe Utilização de outros tipos de
Gipsita PE devido à utilização de lenha nos combustíveis e incentivo ao
fornos de queima da gipsita. reflorestamento com espécies nativas.
Destruição de florestas e leitos de Racionalização da atividade para
Cassiterita RO e AM
rios. minimizar os impactos.

A quantidade de extrações clandestinas ou não licenciadas no Brasil é


considerada expressiva, ocasionando impactos descontrolados, sem registros históricos.
As degradações podem ocasionar alteração de leitos de canais, impactos em nascentes,
entre outros. Como exemplo, cita-se o caso da extração clandestina de areia no rio Jacuí,
RS, que resultou em uma mudança nos procedimentos de licenciamento ambiental para
extração de areia em leitos de rios no Rio Grande do Sul, com a determinação de
monitoramento das dragas via satélite, conforme disposição da Resolução CONSEMA
116/2006 e da Portaria 065/2007 da FEPAM5.
Com relação aos impactos da mineração, salientam-se ainda os impactos
diagnosticados nas áreas vizinhas, onde são localizados os depósitos de estéril6 e de
rejeitos7. Há, também, os impactos nas áreas de extração e transporte. A tabela 4,

5 Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luís Roessler.


6 Termo empregado para designar materiais sem aproveitamento econômico.
7 Termo empregado para designar materiais não aproveitáveis que são separados durante o
beneficiamento.

68
Direito Agrário Ambiental

modificada de Bacci et al., 2006 (BACCI ET AL, 2006, p. 47-54), exemplifica impactos
normalmente verificados em pedreiras urbanas.
Tabela 4: Aspectos e impactos ambientais observados em pedreiras posicionadas em
áreas urbanas (modificada de Bacci et al., 2006)
Atividade Aspectos Impactos
Decapeamento envolvendo
Erosão, movimentação de terra e Esgotamento de recurso natural,
remoção da cobertura
assoreamento de córregos, afugentamento da fauna,
superficial, deteriorização da
alteração da paisagem, da flora e modificação e destruição da
cobertura vegetal e formação de
da fauna locais vegetação nativa
pilhas de solo
Poluição sonora, perturbação da
Perfuração de bancadas Geração de ruído e poeira vizinhança e exposição
ocupacional dos trabalhadores
Geração e propagação de ondas Riscos de danos a construções
sísmicas no terreno e no ar civis, desconforto á população
(vibração e sobrepressão vizinha, riscos de incidentes e de
atmosférica vida
Risco de danos a construções
Ultralançamento de fragmentos
civis e riscos à vida humana
Poluição sonora, desconforto à
Desmonte das bancadas com
Geração de ruído, fumos e gases população e riscos de incidentes
detonação dos explosivos
e intoxicação
Escorregamentos de taludes fora
Riscos de acidentes
do setor de desmonte
Dimensionamento correto das
Redução das vibrações e da
cargas de explosivos e dos
sobrepressão atmosférica, não
parâmetros do plano de fogo
ocorrência de ultralançamentos,
(perfuração, carregamento,
diminuição dos gases, além do
amarração dos furos, limpeza da
faturamento ideal da rocha
face, tempos de retardo, etc)
Armazenagem de explosivos e Perdas materiais e de vidas,
Riscos de explosão
acessórios de detonação poluição do ar
Poluição do ar e sonora;
Geração de poeira e ruído e
desconforto aos trabalhadores da
Carregamento e transporte do emissão de gases
mina
minério
Vazamentos de Comprometimento do solo e das
óleos/combustíveis/graxas águas superficiais
Abertura de novas vias de acesso Processos erosivos e Comprometimento dos recursos
na cava assoreamento dos cursos d’ água naturais

69
Direito Agrário Ambiental

Geração de ruído, poeira e


Desconforto aos trabalhadores e
emissão de gases produzidos
poluição sonora
pelas máquinas
Vazamentos de Comprometimento dos recursos
óleos/combustíveis/graxas naturais superficiais
Geração de efluentes, aporte de Contaminação das águas
sedimentos para os cursos superficiais e comprometimento
Drenagem da cava
d’água dos recursos naturais superficiais
Consumo de energia Utilização de recursos naturais
Utilização de recursos naturais e
Umidificação das vias de acesso Consumo de água redução da suspensão das
partículas
Quando licenciadas, devidamente planejadas e executadas, atividades de
mineração geram passivos ambientais, via de regra, gerenciáveis. Os taludes das áreas
mineradas tenderão a ser revegetados para estabilização, as drenagens superficiais são
canalizadas, as áreas de estéril/rejeito são controladas, dentre outras medidas que
demandam manutenção permanente.
Toda ação humana, realizada nos moldes tecnológicos do século passado,
causam impactos no meio ambiente. A mineração descontrolada gera grandes
modificações na paisagem, suprime vegetação, causa erosão, exposição do solo, altera a
topografia, altera o regime hídrico, causa poeira atmosférica, dentre outros. Entretanto,
salientam-se os benefícios que os bens minerais viabilizam para a economia e o modo
de vida moderno.
Encerrar uma mina pode tornar-se um desafio, tanto do ponto de vista
ambiental e minerário quanto socioeconômico. Essa preocupação se dá em razão das
inúmeras minas, cavas, pedreiras abandonadas com diversos impactos aparentes. Há de
se salientar, ainda, o papel da mineração na geração de empregos.
Por tais motivos, o planejamento da lavra deve contemplar sua desativação e
prever o uso futuro dos terrenos, desde a fase de licenciamento ambiental, razão pela
qual o Plano de Recuperação de Área Degradada possui relevância. O fechamento deve
ser realizado ao longo do ciclo de vida da mina, evitando-se uma decisão abrupta, sob
pena de inviabilizar financeiramente o projeto de recuperação.
Cunha, em sua dissertação, fez uma análise das técnicas adotadas no
fechamento de minas no estado de Minas Gerais e apontou sucessos e insucessos nos
programas adotados:

70
Direito Agrário Ambiental

Adicionalmente, um plano e uma abordagem racional são também


necessários para aliviar impactos diretos ou indiretos nas pessoas e nas
comunidades afetadas pelo fechamento de mina de forma a garantir a
sustentabilidade ambiental, econômica e social da área pós-mineração. Para
alcançar este objetivo, a reabilitação ambiental não deve ser considerada um
evento que ocorre em uma época determinada. Na verdade, é um processo
que inicia antes da mineração e termina muito depois de esta ter-se
completado.

Há, além disso, exemplos de cavas desativadas, empregadas como aterros para
resíduos, como a Pedreira da Pedraccon, em Porto Alegre, RS, ativa até a década de
1990, atualmente desativada. A área foi destinada para Central de Reciclagem de
Resíduos da Construção Civil e Aterro para Resíduos da Construção Civil. Há, ainda, a
cava resultante da extração de carvão das Minas do Leão/RS, onde são depositados os
resíduos urbanos de Porto Alegre e de outros diversos municípios gaúchos.
O sucesso do plano de fechamento demanda o envolvimento da empresa, do
governo e da sociedade, e requer uma avaliação das responsabilidades, com caráter
técnico, ambiental, social e financeiro. Nesse ponto reside um dos maiores desafios do
NMMB.

7. AGREGADOS MINERAIS E A SITUAÇÃO DO PAÍS


Embora se esquive de responsabilidades ambientais específicas e de alterações
na política de exportação de matérias brutas, espera-se que a proposta do NMMB
contribua para o desenvolvimento do país, diferenciando os procedimentos para
agregados da construção civil dos demais minérios.
O Brasil tem como um de seus alicerces socioeconômicos a mineração.
Embora a extração de minério de ferro e de cobre em estado bruto seja importante para
as exportações, a extração de agregados para a construção civil tem importante papel
nos cenários locais. O projeto de Lei do NMMB enquadra o sistema de regulamentação
para extração de agregados como Regime de Autorização Federal. Segundo o próprio
projeto, essa autorização poderá ser concedida pelos Estados ou pelas Prefeituras,
conforme regramentos ainda não determinados.
O Brasil figura entre as primeiras posições no que toca às reservas minerais
mundiais, mas, além de grande exportador de minerais, a mineração possui grande
potencial econômico se forem também considerados os minerais que dependem de
processos de beneficiamento, como é o caso dos minerais agregados para a construção
civil, que atendem aos mercados próximos à localização da jazida: “a produção da

71
Direito Agrário Ambiental

indústria de transformação mineral alcançou US$42,6 bilhões, correspondendo a 8,4%


do PIB” (SOUZA, 2003, p. 26).
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal
brasileiro previu diversas obras de infraestrutura para o país. Recentemente uma
relevante obra no estado do Rio Grande do Sul, a chamada Rodovia do Parque (BR-
448), sofreu o risco de não ser concluída em razão da falta de areia, pois, por força de
decisão liminar em ação civil pública, algumas empresas de mineração de areia do rio
Jacuí tiveram suas atividades suspensas8.
O desenvolvimento urbano está previsto na Carta Constitucional, conforme o
art. 219. Também o Programa de Combate e Erradicação da Pobreza prevê a
disponibilização de recursos do Fundo para a viabilização de direitos aos cidadãos
brasileiros, dentre eles o acesso à habitação, conforme o art. 79 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias..
No que se refere ao direito de moradia, direito fundamental, os dados do PAC
2, em 2014, demonstram que foram realizados dos R$871,4 bilhões. O Programa Minha
Casa, Minha Vida (MCMV) apresenta relatórios que demonstram as ações que
intensificaram a construção de moradias no Brasil:
O MCMV entregou 1,7 milhão de moradias. São mais de 6,4 milhões de
pessoas beneficiadas, o que equivale à segunda maior cidade do País, o Rio
de Janeiro. As contratações somam, ao todo, 3,4 milhões de unidades, sendo
2,4 milhões de moradias contratadas no MCMV 2”. Além dos valores
destinados pelo Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo que firmou
mais de 1,55 milhão de “contratos para construção, aquisição ou reforma de
moradias”.

Programas como o MCMV impulsionaram não só o setor da construção civil,


mas intensificaram a demanda de minerais agregados. A casa, direito fundamental à
moradia, representa muito mais que uma construção, composta quase que
fundamentalmente por bens minerais. Ela representa uma infinidade de sentimentos
envolvidos na conquista desse direito, dando a sensação de ser cidadão ao povo
brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

8 A BR-448 (Rodovia do Parque) um projeto concebido para trazer diversos benefícios à região. Feita
com recursos da União, sem pedágios. Absorveu cerca de 40% do fluxo hoje todo concentrado na BR-
116, disponível em
http://www.rodoviadoparque.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3, Acesso em
26.12.2013.
9 XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e
transportes urbanos;

72
Direito Agrário Ambiental

Após avaliar o projeto do NMMB e as consequentes alterações na


regulamentação mineral do país, é possível afirmar que a essência da política mineral
brasileira será mantida. O Brasil é um país tradicionalmente exportador mundial de
materiais brutos, com preços mais baixos, sem beneficiamento prévio. Serão mantidos
os pilares estratégicos do gerenciamento mineral do país. Não estão previstos fomentos
ao beneficiamento, e a expectativa de se manter como exportador líder de materiais
brutos foi mantida.
Outro aspecto relevante sobre o projeto do NMMB é a não alteração das
formas de gerenciamento ambiental do país. O NMMB não cria novos instrumentos
para gerenciamento ambiental. Todas as atividades de licenciamento e fiscalização
continuarão sendo realizadas pelos Órgãos Ambientais federais, estaduais ou
municipais.
Os bens minerais agregados para a construção civil são considerados bens de
interesse social e de utilidade pública. O NMMB trata de forma diferenciada os minerais
destinados à construção civil e os minérios ditos convencionais, obtidos nos abundantes
depósitos minerais brasileiros. Conforme informado no decorrer do texto, os agregados
serão tratados na Nova Agência Brasileira através de Regimes de Autorização Federal.
Essa autorização também poderá ser concedida pelos Estados ou pelas Prefeituras,
conforme regramentos ainda não determinados.
Não há dúvida de que os bens minerais destinados à construção civil são bens
que devem ter tratamento valorizado no contexto da sustentabilidade e nas discussões
sobre a nova proposta legal. O aumento e a aceleração da produção desse importante
insumo da construção civil devem ser incentivados, sob pena de dificultar inúmeras
obras de infraestrutura ainda necessárias ao país.

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76
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO IV - O DIREITO COMUNITÁRIO À TERRA: A BASE


INTERPRETATIVA ESSENCIAL PARA A GENÊSE DE UM DIREITO
AGRÁRIO FORMAL

Caroline Vargas Barbosa1

INTRODUÇÃO
A terra comporta características singulares que interessam ao capital. Nessa
perspectiva, o capitalismo surge como uma dissociação entre o homem e a terra para
que se torne uma mercadoria rentável ao capital. Para tanto, necessita da intervenção
Estatal que vai além da regulação de mercado. Atinge uma regulamentação normativa,
recorrendo ao direito para fornecer as diretrizes adequadas ao capital e à submissão dos
indivíduos da sociedade. Quando a torna propriedade, e, depois, pela modernização e
intensificação da produção, busca o capital, alicerçado no Estado e no Direito, tão
somente a extração máxima de rentabilidade de um bem que antes era coletivo e agora
passa a ser condição de poucos. Tanto o Estado como o Direito tornam-se aparatos para
a integração e consolidação do capitalismo na sociedade. E na necessidade dessa ruptura
fundamenta-se o objetivo deste trabalho: a consolidação de um novo direito agrário
amparado pelo direito comunitário à terra presente no Constitucionalismo Latino
Americano.
Apresentam-se então, o buen vivir presente no constitucionalismo latino-
americano e o conceito de direito comunitário à terra em confronto com a função
socioambiental da terra, como previsto no ordenamento pátrio, de maneira que a
proteção político-jurisdicional com apelo social à propriedade e à terra é um mecanismo
de incentivo econômico e solidez ao capitalismo. Com os ensinamentos latino-
americanos, tem-se primeiramente a ruptura com a imposição cultural europeia para o
resgate cultural de construção desses indivíduos como maneira de libertação. Para tanto,
as imposições estatais pela política e pela economia direcionadas às singularidades da
ética cultural desses indivíduos. Trata-se da retomada de consciência desses indivíduos
por meio da identificação de uns com os outros e, principalmente, com o meio
ambiente, e a proposta específica deste trabalho com a terra.

1
Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás. Professora nas Faculdades Alves Faria-
ALFA, Goiânia-GO. Contato: [email protected]

77
Direito Agrário Ambiental

Com esse passo, tem-se a ressignificação do vínculo do homem com a terra e,


portanto, a necessidade de uma interpretação jurídico-estatal adequada, principalmente
no que concerne à hermenêutica essencial de um direito agrário formal. Formal no
sentido de clareza e certeza de uma base interpretativa suficiente para a ruptura com
paradigmas opressores e que encontre o [des]envolvimento do indivíduo com a terra.
Consiste tal conceito em uma perspectiva de direito coletivo à perpetuação da terra
como meio vital que fornece guarida ao desenvolvimento do indivíduo enquanto pessoa
e cidadão. Um desenvolvimento econômico adequado e paralelo ao desenvolvimento
social. Desse modo, o status de proprietário perpassa a ideia antes de o título de
propriedade revelar um compromisso com a comunidade que o envolve. Portanto, para
se exercer a qualidade de proprietário, dever-se-á atender à demanda social de produção
e segurança alimentar, adequadamente utilizando a terra nos limites ambientais de
perpetuação da vida. Não se trata somente de uma dívida estatal e social, mas de um
compromisso com os indivíduos que antes recuperaram a consciência de seu papel na
sociedade e clamam, por meio de movimentos sociais, a adequada representatividade
democrática que os atenda nos preceitos fundamentais do direito.
Outrossim, demostrar-se-á que o acesso à terra, hoje tratado como um direito
programático a ser alcançado, é na verdade uma noção de direito humano e
fundamental. Por isso não pode ser programático, necessitando de eficácia direita e
intervenção político-jurídica como um braço democrático de essencial direito que
respalda a construção individual dos trabalhadores sociais, bem como da sociedade.
Direitos humanos e fundamentais estão acima de quaisquer medidas protetivas do
Estado na propriedade privada e na economia como uma medida básica à vida.
Por fim, busca este trabalho a [re] construção do direito agrário como instituto
autônomo e adequado à pós-modernidade. Assim, a interpretação necessária à
efetividade de direitos sociais e fundamentais inerentes ao direito agrário está na
ressignificação da propriedade da terra como meio de desenvolvimento social e
econômico paritário. Conceito este a ser absorvido pelo Estado em seus três poderes,
pela economia, mas fundamentalmente pelos indivíduos como força social de
modificação do direito, por meio da representação político-democrática. Para que se
compreenda dentro de um sistema que emerja a autotutela social em prol de um direito
e, por essa razão, também uma tutela, coletiva e difusa, eis que não se podem
determinar os sujeitos ativos, de proteção a direitos fundamentais como de igualdade e
dignidade. Trabalhou-se na perspectiva de que a terra é elemento fundamental de

78
Direito Agrário Ambiental

desenvolvimento singular e social, que é determinante do comprometimento com o bem


maior: a vida.

2. O DIREITO COMUNITÁRIO À TERRA E O CONCEITO DO BUEN VIVER


NO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: POR QUÊ DEVEMOS
INTEGRAR ESTE CONCEITO AO NOSSO ORDENAMENTO?
Na necessidade do resgate desses preceitos democráticos, o constitucionalismo
latino-americano nasce da construção da identidade do homem desta América-Latina
que tem por fundamento a opressão. Suas terras, antes inerentes à vida, tidas como
descobertas e desbravadas, os indivíduos, considerados colonizados e oprimidos,
posteriormente empobrecidos economicamente e socialmente para então serem
marginalizados e alienados de sua própria essência. Isso porque houve a imposição da
cultura europeia a esses indivíduos como um ideal correto a ser seguido,
desconsiderando o outro como portador de direitos inerentes à dignidade humana.
Alude-se, então, à cultura de dominação. Ilustra esse aspecto:
A “conquista” é um processo militar, prático, violento, que dialeticamente o
Outro como o “si-mesmo”. O outro, em sua distinção, é negado como o
Outro e é sujeitado, submetido, alienado, a se incorporar à Totalidade
dominadora como coisa, como instrumento, como oprimido, como
“encomendado”, como “assalariado” (nas futuras fazendas), ou como
africano escravo (nos engenhos de açúcar ou em outros produtos tropicais)
(DUSSEL, 1993, p. 44).

Os ideais da Revolução Francesa angariam novas lutas libertárias nas


Américas, quando, de fato, se observou foi a integração do que parece ser conformismo
do homem latino americano ao senso de bom selvagem. Na eclosão do capitalismo
houve a criação de um novo modelo de indivíduos: os que expropriam a força de
trabalho por uma cobiça jamais sanada como meio de inclusão no sistema econômico e
social (FLORES, 1991, p. 15- 22).
A formalidade de direitos desses indivíduos, como se viu em momento
oportuno deste trabalho, é necessária para a regularização político-estatal do sistema de
mercados capitalistas. No entanto, surgem no seio das forças sociais latino-americanas
os indivíduos cientes de seus direitos humanos, como revolucionários. Revolucionários
não no sentido de encontrar um parâmetro a ser seguido (como o europeu), ou de
equiparar-se a um padrão de desenvolvimento e progresso. Tampouco de partir do zero,
mas de retomar seus primórdios culturais, balizados por uma identidade coletiva e
reestruturante da sociedade. Evidenciou-se que, à medida que alguns alcançavam

79
Direito Agrário Ambiental

riqueza pela terra, a sociedade em massa era pauperizada, em uma realidade invertida,
pois os que trabalhavam construíam a riqueza alheia (FLORES, 1991, p. 23- 40).
Aborda nesse sentido:
É o começo da domesticação, estruturação, colonização do “modo” como
aquelas pessoas viviam e reproduziam sua vida humana. Sobre o efeito
daquela “colonização” do mundo da vida se construíra a América Latina
posterior: uma raça mestiça, uma cultura sincrética, híbrida, um Estado
colonial, uma economia capitalista (primeiro mercantilista e depois
industrial) dependente e periférica desde seu início, desde a origem da
Modernidade (DUSSEL, 1993, p. 51).

Surgem teorias explicativas dessa interpretação latino-americana: a primeira,


por uma condição histórica; a segunda, de que os países da América Latina não são
tradicionais ou modernos, mas sim dependentes, porque partiram de uma economia
capitalista estabelecida e não de uma transição feudalista (FLORES, 1991, p. 40-41)
A terceira parte de Paulo Freire (1987, p. 16-32) trata da crítica do individuo
com sua condição, em uma pedagogia libertadora para uma recuperação do status quo
societário desses indivíduos, obtendo como resultante a dominação e injustiça (inter)
nacional com desvirtuamento econômico-financeiro de lucros e trabalhadores para
conquistas econômicas, e endividamento. Refere-se, portanto, ao reconhecimento da
perspectiva de mudança a partir do nacionalismo e da sensibilização, partindo da ciência
de uma situação de opressão e resultando na motivação de mudança. Ou seja, passando
pela ideia de compromisso-conscientização entre indivíduos e entre si, para uma
libertação de fato e o desenvolvimento aliado às construções culturais e sociais
intrínsecas desses indivíduos. Isso porque a barbárie gerada teve fruto nos indivíduos, e
a perpetuação dar-se-á pelos indivíduos oprimidos quando coniventes com a própria
existência, e, aqui, funda-se o principal problema a não ser reproduzido (MORIN, 2009,
p. 9-12).
Nesse momento, insurgem-se as forças sociais e a representatividade política
como uma questão de eficácia de direitos e, principalmente, de modificação do sistema
vigente. As forças sociais disseminam novos ideais e a crítica profunda ao sistema, que
são respondidas a uma nova representatividade política que se adeque a esse novo
quadro, pressionando por medidas jurídico-estatais na realização de direitos humanos e
na construção de novas balizas político-sociais, de oposição às acumulações privadas
sem um sentido social e humano (FLORES, 1991, p. 63-93). No entanto, quaisquer
acepções finalísticas dos termos citados seriam fundamentalmente levianas, visto que,
tratando-se do homem como um ser em constante [des] evolução, as práticas de

80
Direito Agrário Ambiental

insurgências contra o sistema, quer seja pela força social, ou pela tomada de consciência
representativa política, sofrem iguais interferências, modificando-se com as conquistas e
o retrocesso do sistema imposto ou da própria sociedade enquanto se conhecem a si
próprios em um processo diário de reconhecimento igualitário dos indivíduos.
Chama-se esse período de descolonização, e é nesse aspecto sócioestatal que
surge o Constitucionalismo Latino-Americano. Os movimentos sociais de pressão
político-estatal invocaram a transformação institucional de abrangência de novos
sujeitos de direito e a inclusão e o reconhecimento de “novos” direitos. Como marco
constitucional, tem-se as Constituições: da Colômbia, de 1991, do Equador, de 2008; e
da Bolívia, de 2009 (BURGUETE, 2010, p. 34).
A Constituição da Colômbia de 1991 reformula a relação do Estado com os
indivíduos: o povo. A discussão popular das diretrizes constitucionais fomentou o
pensamento que ultrapassa os conceitos capitalistas e produtivistas, privilegiando a vida
em um sentido plural de diversidade de indivíduos, abrangendo a coletividade como
titular de direitos que antes eram considerados individuais, principalmente, no que tange
à propriedade privada. Houve a submissão da propriedade privada aos interesses
públicos, inclusive os sociais e ambientais, gerindo uma nova reformulação de princípio
socioambiental da propriedade, definindo a propriedade como a própria função
socioambiental da terra, ou seja, não se devem exercer ou praticar os preceitos desse
princípio, pois é intrínseco à regularidade do status de propriedade o respeito ao preceito
socioambiental. Desse modo, a ação protetiva do Estado às propriedades privadas é, na
verdade, exercida pelo regular cumprimento da função socioambiental, de modo que o
descumprimento não gera a tutela do Estado, seja por meio de proteção ou de
indenização. A propriedade perde o status de particular e assume o interesse social e,
portanto, passa a ser de direito coletivo. Embora tenha sido um texto formal devido às
interferências da repressão das guerrilhas e do narcotráfico, ainda assume papel
progressista na formulação de direitos que estejam aliados a direitos humanos de
igualdade (MARES, 2003, p.100-103).
A Constituição do Equador de 2008 e a Constituição da Bolívia refundam as
teorias constitucionais vigentes à época e fundamentam o marco a ser utilizado como
método interpretativo em busca de uma [res] significação do Direito Agrário
contemporâneo: o buen vivir. Ambas as constituições trouxeram em seu texto a previsão
de um Estado plurinacional, da participação popular e do reconhecimento constitucional
de direitos fundamentais e da diversidade cultural. O termo plurinacional, nesse sentido,

81
Direito Agrário Ambiental

foi utilizado como uma repleta abordagem política, econômica, cultural, lingüística,
para a integração dos indivíduos com o Estado, além da compatibilização de
desenvolvimento em suas diversas acepções, para a descolonização libertária da
condição de oprimidos para agentes modificadores e de reconhecimento jurídico-
estatais, pela democracia (FAJARDO, 2011. p. 139-160). O exercício da soberania
popular, sem a intermediação representativa-partidária, foi um dos pontos a ser
destacado dessas Constituições. Isso porque, além de participarem do Poder
Constituinte na elaboração da nova carta fundamental, houve o referendo nacional para
a aprovação do texto. Sua maior contribuição foi aos povos originários e indígenas por
meio do reconhecimento, além da cidadania, do respeito às diferenças culturais,
referendando a autodeterminação dos povos. Houve a previsão do pluralismo jurídico e
da justiça indígena paralela à jurisdição estatal configurada pelo Estado Moderno,
evidente, pois o confronto com as estruturas que privilegiam um agropensamento sai
fortificado política e economicamente na acepção capitalista.
A universalidade e a subjetividade de sujeitos relacionados ao meio ambiente
demonstram a importância constitucional marcadamente contra preceitos capitalistas. E,
por tal razão, dentro da concepção ambiental, o uso da terra de maneira que atenda à
comunidade num ensejo de vínculo puro com a vida e não com o capital é fundamental
para a busca de uma eficaz Reforma Agrária. Porém, utilizar-se-á um método de
analogia, partindo do entendimento de que são esses povos que mantêm uma relação
com a terra como meio de desenvolvimento próprio balizado pelo envolvimento vital
com a natureza. A agricultura não extensiva, aplicada pela Reforma Agrária que se
funda nesse vínculo do homem com a terra, é uma afronta ao capital, mas um meio
gerador de oportunidades. Aliar a produção à dependência é sem dúvida o interesse do
capitalismo, e parte-se desse viés para a ruptura com paradigmas institucionalizados
como de oprimidos (KOWARICK,1985, p. 150-173).
Das vertentes defendidas pelo povo boliviano, duas destacaram-se como
principais: a Reforma Agrária e a extinção do exército nacional. Como bem se sabe, o
segundo aspecto pouco perdurou. Tomou-se por base o conceito comunitário da terra e
da natureza, tornando-os elementos de direito da comunidade. Entende-se, aqui, o
nascimento formalizado do direito comunitário à terra. A nacionalização da terra e da
água como direitos comuns a todos os indivíduos da nação amplia o conceito de
propriedade, pois inclui a relação do homem, estipulando uma identidade a esse vínculo.
E, por tal razão, uma consciência de perpetuação de vida e meio ambiente adequados,

82
Direito Agrário Ambiental

sem, contudo, deixar a produtividade e a expansão capitalistas. Portanto, o direito


comunitário à terra vai além da concepção de função socioambiental, numa
reconceituação do exercício de propriedade e do próprio interesse social. O título de
propriedade torna-se exceção à regra, e não como tema central da acepção de estado
moderno. Para tanto, criou procedimentos jurisdicionais e cartoriais específicos como
confronto à miséria e à segregação instituída pelo capitalismo (MARES, 2003, p. 97-
99).
Tem-se, portanto, uma nova geração constitucional: o Constitucionalismo
Social e Comunitário da América Latina (MAMANI, 2014, p. 4). Além de formalizar o
Estado Social de Direito, como se viu, fundado em preceitos da Constituição de
Weimar, criam-se ferramentas jurídico-estatais (pluralismo jurídico e político) para a
concepção de comunidade (direito comunitário) como braço interpretativo do próprio
Estado Social. Para tanto, utilizou-se o conceito de Sumak Kawsay ou buen vivir como
um projeto político-econômico, estatal-social alternativo diante do estado moderno e
dos novos paradigmas da pós-modernidade pela apropriação privada calcada no
capitalismo. Dessa forma, o crescimento ilimitado, como uma condição de riqueza e
prosperidade de igual oportunidade, e balizado pela compreensão de que o acesso à terra
é mais que uma mercadoria à disposição do capital: é um meio de razão existencial de
toda uma comunidade e, principalmente, de efetiva realização de soberania popular.
Outrossim, vincular a propriedade a um buen viver é buscar a diminuição de
desigualdade socioeconômica, na pluralidade de sujeitos e interferências culturais,
reconhecendo o outro com suas particularidades em um sistema de confronto ao
capitalismo, havendo um equilíbrio entre anseios, pleitos e atuação jurídico-estatal.
O buen vivir contempla princípios éticos e morais de vida harmoniosa, de
liberdade, de igualdade, de unidade, de reciprocidade e respeito, de solidariedade e bem-
estar comum, de justiça e responsabilidade social, e a distribuição de produtos e bens
sociais aliados ao acesso e uso da terra sem mal ou obstáculo econômico e político.
Destarte, tem como fim garantir o bem-estar e o desenvolvimento, a seguridade e a
proteção e uma sociedade justa e harmoniosa, principalmente na construção da
consciência da descolonização pela ruptura com a situação de oprimidos e
marginalizados dos indivíduos colonizados violentamente. Tudo em busca de uma
reforma profunda das estruturas e, principalmente do (re) conhecimento da identidade
para garantia de saúde, educação e trabalho, fortalecendo, desde a base, uma nova
estrutura econômica, social, política e jurídica da sociedade (MAMANI, 2014, p.8-10).

83
Direito Agrário Ambiental

Percebem-se no estudo profundo do Constitucionalismo Latino-Americano os


conceitos de poder cidadão (Venezuela), controle social (Bolívia) e Quinto Poder
(Equador) como um resgate à soberania popular, na participação efetiva dos indivíduos
(por referendos) na construção dos direitos fundamentais entrelaçados na reestrutura
politica da identidade destes como fonte primária de um buen vivir de acordo com os
preceitos pós-modernos capitalistas de uma propriedade e meio ambiente adequados aos
indivíduos da comunidade e não somente aos capitalistas. Num resgate, sustentado no
Contrato Social, de que o direito à propriedade está, na verdade, subordinado aos
interesses comunitários e sociais, como meio de exercício da força social e do exercício
de soberania (ROSSEAU, 1996, p. 39).
Desse conceito de buen vivir extrai-se, ainda, sem contudo anular as demais
teorias comparativas ao meio ambiente, o vínculo da terra por meio da agricultura que
tem por base o respeito com a terra, como fonte materna de subsídios à vida e principal
norte à interpretação do direito agrário formal. O resgate de um sistema integral que
contemple, além da produção suficiente ao indivíduo e à comunidade, mas o Estado
como fruto de democratização de oportunidades e igualdade. Ressalta-se, no entanto,
que tal interpretação não recai somente como uma medida econômica e politico-
jurídica, mas também como o resgate dessa identidade com a terra pelos próprios
indivíduos, como confronto à expropriação ilimitada do trabalho e da terra
(MARTINEZ, 2010, p. 2).
Entende-se isso como uma ruptura do paradigma social da propriedade privada
e da dissociação do homem com a natureza, na construção politica de crítica ao
capitalismo. E que coincide com a previsão da Organização das Nações Unidas, da terra
integrante do meio ambiente, como um bem comum à humanidade. É pela compreensão
holística do homem e da terra e de sua incessante integração fundamental à vida que se
tem a ruptura descolonizadora necessária para que o Estado pratique novas (ou
primeiras) políticas de desenvolvimento social e econômico verdadeiramente
direcionadas aos indivíduos (HOUTART, 2011, p. 1).
Portanto, essa evolução constitucional Latino-Americana, referindo como
evolução o reconhecimento comunitário à terra, é uma resposta à necessidade dos
indivíduos não mais respondida por Constituições meramente formais pautadas em uma
cultura europeia e centralista. Deixa-se para trás a roupagem imposta de oprimido e
busca-se a identidade na diversidade como meio de exercício de cidadania com o
reconhecimento do Estado a sujeitos de direitos subjetivos institucionalizados em prol

84
Direito Agrário Ambiental

do bem comum da sociedade (DALMAU, 2008, p. 22). Corresponde, portanto, à


refundação por parte do Estado, sob o modelo pós-moderno, de diferentes concepções
de nacionalismo (SANTOS, 2009, p. 202) dentro de um mesmo Estado para o exercício
da soberania por meio de uma representatividade politica calcada na identificação de
princípios e propostas, e no reconhecimento do Estado das diferentes culturas, mas
também, no que se refere a este trabalho, das diferentes necessidades dos indivíduos da
terra, como elemento de igualdade e liberdade, passando-se a acreditar no bem
comunitário como um bem social de desenvolvimento principalmente por meio do
vínculo do homem com a terra.
Faz-se, aqui, então, um paralelo com a Constituição Federal/88. A Constituição
mexicana integrou o conceito de uso coletivo da terra. A boliviana não concedeu
propriedade de terra àqueles que estivessem fora dos preceitos elencados como
fundamentais. A colombiana reconheceu o direito societário de recuperar a propriedade
de terra sem indenização quando em desacordo com a carta fundamental. E a
Constituição Federal/88 previu a função socioambiental da propriedade, asseverando
primeiramente o direito do proprietário. Evidencia isso, que, mesmo em desacordo com
os preceitos e os princípios constitucionais, recebe indenização patrimonial pela
desapropriação. Não estabeleceu então a titularidade societária, tampouco entendeu a
terra como elemento da natureza, como objeto de direito coletivo e difuso, visto que se
integra na seara ambiental (MARES, 2003, p. 109). A terra, no Brasil, continua sendo
mercadoria e elemento do capitalismo, dissociada do homem. E se o elemento central da
Reforma Agrária é a terra, logo se percebe a ineficácia das políticas públicas e estatais;
nesse sentido, são na verdade contenção social, desvinculadas dos reais propósitos
constitucionais e sociais, portanto contra a corrente latino-americana de
desenvolvimento social e econômico, partindo da premissa comunitária e social.

3. O ACESSO À TERRA COMO UMA QUESTÃO DE COMPROMETIMENTO


JURÍDICO-ESTATAL COM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A
REPRESENTATIVIDADE POPULAR NO PLURALISMO JURÍDICO COMO
ALTERNATIVA
O acesso à terra como meio vital de subsistência e sobrevivência influencia na
eficácia de diversos direitos fundamentais: dignidade da pessoa, direitos humanos,
proteção à família, proteção ambiental e, principalmente, reconhecimento do sujeito a
uma cidadania formal e material. Primordial é, nesse momento, caracterizar a

85
Direito Agrário Ambiental

diferenciação entre direitos humanos e fundamentais. Os direitos humanos comportam


uma análise internacional de direitos, e ingressaram no nosso ordenamento como
fundamentais e constitucionais. Por tal razão, alcançam uma ideia de universalidade,
compostos pela Declaração do Homem, de direitos inerentes à natureza e à moral do
indivíduo. Portanto podem ser relacionados ao jusnaturalismo, não precisam de
positivação interna. Com isso, tem-se a garantia da propriedade a todos os indivíduos na
Carta de Declaração dos direitos do homem. Essa propriedade, individual ou coletiva,
na interpretação sistemática de todos os artigos, principalmente pela garantia da
liberdade, atende à necessidade do acesso à terra. Primeiro porque a garantia de
liberdade, em todas as suas acepções, dar-se-á com o acesso à terra que forneça a
identidade do homem com a terra como elemento fundamental à vida.
Desde a concepção de Locke tem-se como inerente ao ser humano o direito à
propriedade, à vida e à liberdade. E, nesse aspecto, são relacionáveis e jamais
excludentes. Um funciona como determinante do outro. Uma entrega efetiva de direitos
humanos é na verdade a construção e proteção à vida por meio da liberdade e do acesso
à terra, enquanto propriedade. Coexiste assim a propriedade privada, relacionada ao
trabalho aplicado à natureza. Segundo Locke, a terra e tudo quanto nela existe foram
dados por Deus aos homens, assim como lhes deu também a razão para que se
servissem da terra para seu beneficio, todavia ainda que tudo seja de todos, cada qual
deve guardar a propriedade em si, sobre a qual ninguém tem quaisquer direitos, exceto o
próprio. Assim, o homem é proprietário de sua vida, de seu corpo, de sua liberdade.
Afirma, portanto, que a propriedade é um direito natural. Uma vez que o homem
emprega sua energia física e mental na transformação de um objeto em estado bruto
encontrado na natureza, incorpora a este objeto o seu trabalho e, portanto, estabelece o
direito de propriedade sobre ele. Para Locke, dessa forma, quando se acrescenta algo
além da natureza, se criaria um direito privado do homem com o objeto (LOCKE, 1973,
p. 37-60).
Outrossim, percebe-se que o vocábulo propriedade reflete a concepção
capitalista-jurídica de um todo: a contratualidade do meio ambiental, para garantia de
proteção estatal como eficácia de direitos. A propriedade será legitimada numa
sociedade complexa e moderna por intermédio do ordenamento jurídico, conforme
determinação e interesse do Estado. Contrapõe-se ao estado de natureza, em que cada
qual se autodeterminava. O ordenamento jurídico passa a impor limites as liberdades
do homem, inclusive da propriedade por meio da contratualidade imposta com o viés de

86
Direito Agrário Ambiental

organização estatal e da sociedade (SARLET, 2011, p. 28-40). Então, se a propriedade é


um preceito de direito humano, somente com o título poder-se-ia proteger o direito à
vida pela subsistência e moradia na terra? A apropriação privada de um elemento
natural é a forma que o ordenamento jurídico (inter) nacional encontrou para buscar
essa proteção? No mínimo é contraditória tal informação. Eis que a apropriação definida
pela propriedade privada garantida como direito humano é o resultado claro da intenção
capitalista: a exclusão. E, ainda, esses grupos excluídos ingressam na luta de classes
procurando seu espaço na sociedade, e, por diversas vezes, são marginalizados e
oprimidos. Entram em confronto com todos os preceitos dos direitos humanos. Os
direitos humanos preveem uma sociedade fraterna e comunitária, de desenvolvimento
cultural e social balizado pela liberdade e pelo respeito às diferenças. Destarte, está
fundamentada a relação do acesso à terra como um direito humano inalienável e de
extrema importância como garantia de direitos e reconhecimento do individuo para com
a sociedade e a ordem internacional.
Os direitos fundamentais são os constitucionalizados, depois da necessidade de
intervenção estatal no bem-estar social, como normas programáticas e de eficácia plena.
Quer-se dizer, são garantias-compromissos do Estado para com os indivíduos. Surgem
as políticas públicas e estatais, além das normas infraconstitucionais visando ao maior
alcance da garantia e da eficácia. Os direitos fundamentais, uma vez
constitucionalizados, somente por meio da Constituição deixam de ser fundamentais.
No nosso ordenamento jurídico são elencados por gerações.
Os direitos fundamentais, considerados de primeira geração, são os de defesa
em face do Estado, decorrentes de uma vasta história de individualistas-liberalistas.
Aqui ingressam os direitos de liberdade, propriedade, vida e igualdade. A segunda
geração dos direitos fundamentais refere-se aos direitos sociais e culturais, atribuindo ao
Estado a efetiva participação em defesa desses preceitos. As liberdades garantidas na
primeira geração perante o Estado são interpretadas por intermédio do Estado.
Fornecem, dessa maneira, subsídios jurídicos e estatais à proteção e à disseminação
desses direitos. São as prestações estatais referentes à saúde, ao trabalho, à educação e a
assistências de forma geral. Os direitos de solidariedade e fraternidade são considerados
fundamentais, de terceira geração. Comportam os direitos de titularidade coletiva e
difusa, na figura do homem-indivíduo da sociedade singular. O direito ao meio
ambiente, à qualidade de vida, à paz, e à vinculação da qual se tratam neste trabalho, da
relação do homem com a terra como elemento vital, inserem-se nesse aspecto

87
Direito Agrário Ambiental

(SARLET, 2011, p. 41-74). Assim, o direito de acesso à terra como meio de


manutenção da vida, da liberdade e da dignidade em busca de condições minimamente
adequadas de vida (na inserção do trabalho, na educação, e nas medidas
assistencialistas) é sem dúvida um preceito fundamental do Estado. Compreende-se essa
assertiva dentro de todas as gerações fundamentais de direitos do nosso ordenamento.
Ou seja, trata-se de uma continuidade de direitos dentro de uma única negação: a falta
de acesso à terra.
O direito de propriedade está subordinado ao direito da nação como uma
maneira de vínculo social pelo reconhecimento e pela identidade dos indivíduos, mas,
principalmente, é fundamental ao exercício da soberania pela força social de pressão
para alteração do status interpretativo capitalista e unidimensional.
A interpretação jurídico-estatal, por meio do princípio da função
socioambiental da propriedade, limita, quiçá nega, todos os direitos fundamentais aos
trabalhadores rurais. Isso porque, como demonstrado anteriormente, toda a construção
histórico-social mostra a interpretação voltada aos interesses capitalistas de produção e
retirada de lucros da terra. Embora haja a proteção ambiental e as condições adequadas
de trabalho, vê-se a maior intervenção do Estado na propriedade no quesito produção,
asseverado ainda pelo Imposto Territorial Rural progressivo, como já se demonstrou. E,
nesse ponto, reitera-se a necessidade da interpretação adequada do princípio, de maneira
sistemática, do ordenamento jurídico nacional e dos preceitos de direitos humanos
internacionais, para que o acesso à terra seja, embora dentro de uma ordem capitalista, a
ressignificação do status de propriedade, adequando-se o direito coletivo e comunitário
da terra às garantias fundamentais dos indivíduos, e não sendo como uma arma
desenvolvimentista puramente econômica.
Dessa forma, assegurados os direitos sociais como fundamentais, e quando a
referência é ao direito de propriedade, há a previsão do princípio socioambiental como
viés social do direito de propriedade, tem-se a fundamentalidade do acesso à terra como
garantia de liberdade e igualdade no ordenamento jurídico. E, quando a transgressão de
normas e princípios constitucionais invade uma seara muito mais complexa, eis que
compromete todo o texto constitucional, ao mesmo tempo que entra em ruína todo o
sistema sociopolítico, além do jurídico, corroendo princípios morais e éticos que foram
institucionalizados como berço democrático, pressupondo uma mudança social de
garantia estatal de direitos mínimos e de novas e iguais oportunidades (MELLO, 1992,
p. 299-300).

88
Direito Agrário Ambiental

Quaisquer caminhos a serem percorridos levam à democracia e à


representatividade desses indivíduos no seio político do país. Isso porque, dessa
maneira, há de se dar eficácia aos preceitos fundamentais e de direitos humanos. No
decorrer do trabalho, demonstra-se que o Estado necessita do Direito para a
regulamentação e afirmação das políticas empregadas. E, por tal razão, a
representatividade política torna-se questão chave de eficácia de direitos. A
concretização de um direito revela a eficácia de uma norma. Quando não há essa
relação, surge a manifestação dos indivíduos contra o Estado, perquirindo seus direitos
como medida de igualdade e liberdade. O primeiro indício da ausência dessa
representatividade é revelada na existência dos movimentos sociais. A história
econômico-agrária do país é cristalizada na questão agrária e, portanto, na
marginalização do acesso a iguais oportunidades. Quando há movimentos sociais, quer-
se dizer que politicamente não estão sendo representados, precisando unir-se em grupos
com objetivos semelhantes.
Nesse sentido, remonta-se à falibilidade do Estado Moderno que se nega a
aceitar a pós-modernidade, e aqui, principalmente, por se tratar de sujeitos difusos e
coletivos, com anseios característicos frente a ordem capitalista. Permanece a lógica
individualista remanescente do liberalismo, que concebe somente os direitos
individuais, sendo os coletivos uma soma destes. Desse modo, os movimentos sociais
de luta pelo acesso à terra somente conseguem pleitear os seus direitos de maneira
individual, tendo em vista que o Judiciário e o Estado segmentam as razões e os
indivíduos como se fossem pleitos diversos, negando a autenticidade de ocupações
coletivas, e cerceando direitos comuns a todos (e não somente aos militantes sociais,
mas à comunidade em geral): o acesso à terra para um vínculo além da esfera capitalista
(MARES, 1999, p. 311-313).
Chega-se ao ponto que dá azo à [res] significação do direito agrário: o ativismo
jurídico-estatal e da sociedade. O atendimento aos preceitos constitucionais é percebido
de três formas distintas. Primeiramente, pelo Executivo, por meio de políticas estatais e
públicas que buscam o equilíbrio entre a sociedade e a situação político-econômica de
exclusão social. Em um segundo momento, por meio do Legislativo, na criação de leis
específicas, resultando, então, de normas de eficácia limitada da Constituição. No
entanto, ambas tratam de atividades estatais meramente equilibristas de contenção
social, longe de serem de fato assistencialistas e calcadas na Constituição Federal/88. E,
em terceiro, a atuação do Judiciário, por meio da interpretação do ordenamento jurídico,

89
Direito Agrário Ambiental

quando provocado pelos indivíduos que se sentem lesados na esfera primeiramente


privada de cerceamento de direitos, atingindo a esfera pública de desrespeito a direitos
fundamentais. Há, portanto, que salientar-se a distinção necessária entre a esfera pública
e a estatal. A segunda torna-se assistencialista de contenção social (ou meramente
equilibrista), e a primeira é o lugar onde se deverá fundar o novo berço democrático de
modificação de paradigmas pelo fim de uma ditatura social-assistencialista, de retomada
de poder e de real assistência e respeito aos direitos (SADER, 2001, p. 127-129). Assim,
o acesso à terra depende da atuação do executivo e legislativo, além da interpretação do
Judiciário a favor daqueles que são olvidados pelo Estado.
Pois bem, como vimos, o constitucionalismo latino-americano parte da
premissa da ruptura da situação de oprimido em um ensejo descolonizador. E tem dois
eixos principais como fundamento: o exercício da soberania e o reconhecimento da
diversidade político-social dos indivíduos. E tem como objetivo o alcance do bem-
comum como interesse social, destinando a terra e o meio ambiente à titularidade de
direito da comunidade em uma relação de vínculo e identificação do homem com a
terra. Então, trabalhar-se-á sob o prisma desses aspectos.
Primeiramente, o exercício da soberania, nos países latino-americanos, deu-se
por meio da participação social na construção de cartas fundamentais, por meio da força
social de reconhecimento dos indivíduos entre eles e do posterior reconhecimento pelo
Estado. E, como se viu, atualmente o atendimento de direitos no Brasil se dá pelo
ativismo dos três poderes. Vivemos em um Estado Democrático de Direito,
representado pelo pluripartidarismo e pelo exercício do voto. Não obstante, a existência
de partidos políticos não traduz a existência de efetividade da democracia. Para alcançar
tal desiderato, é necessário que o partido catalise a vontade de todos para que o Estado
possa efetivamente atender às demandas pelos déficit constitucionais para que haja
orientações à sociedade por meio de políticas nacionais. De modo que “os partidos não
pertencem a órgãos superiores aos Estados, são grupos livremente formados que
enraízam na esfera sociopolítica, chamados por ela a cooperar na formação da vontade
política do povo e incidir na esfera da estabilidade instaurada [Tradução nossa]2”
A contemporaneidade vem apresentando deficit no que tange à representação
política e à integração social. Há um cerceamento do direito de participar direta e

2
“[...] los partidos no pertenecen a los órganos superiores del Estado sino que son más bien grupos
libremente formados que enraízan en la esfera socipolítica, llamados, por ello, a cooperar en la formación
de la voluntad política del pueblo y a incidir (hineinzuwirken) en la esfera de la estatalidad
instirucionalizada.” (GARCIA-PELAYO, 1986, p.68)

90
Direito Agrário Ambiental

eficazmente nas decisões políticas e na condução da administração da coisa pública.


Sob tal contexto, surgem os movimentos sociais, que visam suprir o vazio deixado pelos
partidos. Com características próprias, esses movimentos buscam a solução de
controvérsia específica e, não raro, obtêm resultado mais rápido. No caso dos
movimentos sociais agrários, tendem a alertar o deficit em relação a políticas públicas
de acesso à terra. Os movimentos sociais têm tomado formas de partidos políticos, sem,
contudo, a representação e o poder destes, para efetuar mudanças concretas no âmbito
legislativo, atingindo assim todos os segmentos.
Não obstante, característica também que vale ser ressaltada é a da concentração
de poder e autoritarismo nas mãos do executivo, que acaba por mitigar a função
constitucional do legislativo. Em rigor, é o Poder Legislativo que tem a incumbência de
responder aos anseios da sociedade com a criação de normas, porém é cerceado ante a
escusa de ausência de técnica no poder decisório político (BONAT, 2004, p. 82-84).
Assim, ocorre a transmutação de competências entre executivo e legislativo, em que o
primeiro legisla, não raro, para atender a interesses que não representam a vontade da
maioria, desfazendo o sentido de leis abstratas e gerais. O executivo tenta, por meio de
programas, amenizar o deficit constitucional presente, porém ocorre que o legislativo,
por morosidade, acaba por não afirmar, por meio de ações afirmativas e leis
infraconstitucionais, os parâmetros ditados pelo texto da CF/88. Como mencionado
anteriormente, a CF/88 é um texto programático que deveria ser alicerçado na
legislação, o que não ocorre. O Judiciário, por sua vez, interpreta o ordenamento
jurídico em prol do direito de propriedade fundado na visão liberalista-individual, e não
destina a devida atenção aos direitos fundamentais dos trabalhadores rurais, como, por
exemplo, nos casos de decisões de valor de indenização altíssimo, o que torna
impraticável a desapropriação.
São os movimentos sociais que defendem, por ora, o deficit constitucional de
seus interesses no campo. Todavia, a presença em um Estado democrático de direito
pressupõe que tal defesa de interesses deveria ser realizada por intermédio dos partidos
políticos. Ocorre que, em especial, o movimento agrário não é representado nas
discussões políticas. Em razão disso, vê-se a morosidade de aplicação da CF/88 quanto
a Reforma Agrária, resultando que o atendimento aos preceitos fundamentais, como
demonstrado anteriormente pelo acesso à terra como medida de qualidade de vida, em
nível de direitos humanos e como integração à sociedade para parâmetros mínimos de
sobrevivência no campo, se dá somente pela atividade estatal.

91
Direito Agrário Ambiental

E, por sua vez, a atividade estatal é fomentada quando provocada. Aqui, é


necessária a participação social primordialmente. Se vivemos em uma crise de
representatividade, e os partidos políticos, que deveriam ser a voz dos indivíduos em um
país democrático como o nosso, são apenas aspectos formais da vida do cidadão,
emergem as forças sociais (não somente pelos movimentos sociais) organizadas para
que se exerça uma pressão sobre o Estado, visando à modificação estrutural, assim
como se viu no constitucionalismo latino-americano. Trata-se da retomada de
consciência político-individual para o exercício da soberania popular, arraigada em
preceitos descolonizadores, requerendo modificações jurídico-estatais e
socioeconômicas que possam trazer a concretude dos direitos fundamentais e humanos
do acesso à terra como meio de garantia de liberdade e igualdade dos indivíduos. E,
nesse sentido, funda-se o segundo aspecto: o reconhecimento da pluralidade político-
social dos indivíduos, isto é, enxergar o problema do outro como o próprio, haja vista
afetar uma comunidade, em geral, de sujeitos indeterminados. De modo que tal acepção
parte de três momentos: o reivindicatório, o contestatório e o participativo. No primeiro,
há o pleito ao Estado, pressionando por ativismo. No segundo, a contestação às
respostas ofertadas e ao sistema que já não atende adequadamente a todos; e, no último,
no qual mais se está fundamentado, está a participação social como meio
descentralizado de movimentar a inércia estatal pelos três poderes (WOLKMER, 2001,
p. 134).
Por isso, o primeiro passo dar-se-á pelo reconhecimento entre os indivíduos de
que a pressão social por mudanças não é somente um meio de encontro de direitos para
alguns segmentos. Trata-se de um todo coletivo e prioritariamente comunitário. A
pluralidade de interesses na esfera pública decentralizada, porém organizada, para
efetividade da dignidade humana e dos direitos fundamentais (WOLKMER, 2001, p.
119-121). Os movimentos sociais e a sociedade civil organizada são o Quinto Poder, foi
mostrado no constitucionalismo equatoriano: a sociedade. O interesse social, nesse
momento, é caracterizado pela pluralidade sociopolítica de pleitos em prol do bem
comunitário. O direito lesado de outrem fere todo o ordenamento jurídico que regula a
sociedade na qual eu vivo. É a superação da indiferença e do ódio do outro, pela
desatenção aos preceitos fundamentais de igualdade, gerando um bem comum,
interessante para todos. Este é um dos principais paradigmas da pós-modernidade: a
construção de uma identidade entre indivíduos comum para que haja integração e
unidade comunitária com voz social (GUIDDENS, 1991, p. 74-76).

92
Direito Agrário Ambiental

Essa identidade e esse reconhecimento devem ser consubstanciados primeiro


pela marginalidade e exclusão que o capitalismo criou e, posteriormente, para que
aqueles que se sentem protegidos pelo Estado, pelos direitos sociais e pelas políticas
públicas estatais reconheçam que também são marginalizados, contudo foram
indenizados pecuniariamente, em um revestimento de providência estatal, tão somente
para se manterem na força produtiva de expropriação do trabalho. Tais medidas estatais
são, na verdade, a desestruturação da sociedade em segmentos que não reconhecem
outros como iguais sujeitos de direito, um individualismo que assevera o
corrompimento comunitário e social (WOLKMER, 2001, p. 121-127). Assim, o que
une os indivíduos na atuação social como pressão estatal, caracterizada por movimentos
sociais, é a identidade de valores.
O que, ressalta-se nesse momento, é a reciprocidade de direitos e deveres,
pautada no respeito e no reconhecimento do outro, como garantia de um todo
comunitário, de equilíbrio e desenvolvimento social em confronto com a exclusão do
desenvolvimento econômico capitalista (MILARÉ, 2004, p. 148). Desse modo,
desenvolver-se a partir da identidade do homem com a terra, para a segurança alimentar
e condições mínimas e fundamentais de vida, é mais que um direito desses indivíduos
que lutam pelo acesso à terra, é um dever de toda a sociedade como um resguardo da
segurança jurídica e moral do ordenamento jurídico-estatal imposto aos indivíduos.
Portanto, o resgate de identidade, num nível supraindividual para o coletivo e
comunitário, é uma reafirmação que vai além da soberania popular, é o efetivo exercício
e respeito à dignidade humana e aos direitos humanos (WOLKMER, 2001, p. 131).
Outrossim, minimiza a institucionalização das relações, para uma efetiva participação
social, alicerçada na construção interrelacional desses indivíduos de espírito
comunitário de direitos e deveres além dos materialmente individuais preceituados pelo
Estado. A garantia de direitos fundamentais, sociais e humanos pelo Estado parte,
portanto, da tomada de consciência individual do que é um interesse social à
comunidade (IANNI, 1989, p. 119-131).
Por isso, o conceito de buen vivir, numa integralidade de direitos ligados ao
acesso à terra, como foi apresentado, é a maneira interpretativa adequada que se espera
do direito agrário, devendo-se perquirir a ruptura de preceitos patrimonialistas em prol
do [re] conhecimento do indivíduo outrora marginalizado, que é sujeito de direito ativo
ao meio ambiente, em especial à terra. Esse vínculo do homem com a terra, no respeito
dos limites naturais e ambientais, dá guarida ao pleito reivindicatório. E é dessa tomada

93
Direito Agrário Ambiental

de consciência que carecem os indivíduos e, por conseqüência, os movimentos sociais.


Tendo em vista que não contestam o sistema econômico-social imposto em suas raízes,
continuam buscando a terra como meio de desenvolvimento primeiramente econômico,
que atenda ao capitalismo, para posterior encontro do desenvolvimento social. O Estado
repassa aos indivíduos a responsabilidade de direitos humanos e sociais fundamentais,
para que ele continue expropriando a força de trabalho, e aglomerando forças de
maneira equivocada, provocando o aparato estatal de forma desvinculada de um
discurso comum a todos. As políticas públicas-estatais e as intervenções jurisdicionais
comprovam a reprodução do modo capitalista e enfraquecem os pleitos sociais. O
individuo perdeu a concepção comunitária da terra e dos direitos envoltos em seu
acesso. Assim, quando atendido pelo assistencialismo patriarcal do Estado, entende que
seu direito fora materializado, quando, na verdade, pode até ter encontrado algum
respaldo, mas sua resposta ainda fere incontáveis sujeitos de direito que perdem força de
pressão, visto que os indivíduos vão deixando de participar sociopoliticamente das
demandas, pois a eles já foram ofertadas as respostas.
Portanto, a [res] significação do direito agrário parte da identificação dos
indivíduos com os outros, e deles com a terra, para que se conceba o buen vivir numa
integralidade de direitos que podem dar o desenvolvimento individual, social e
econômico. É na reconstrução de paradigmas e na compreensão da força social que está
armazenada a mudança. Quando primeiramente os indivíduos e, depois, os movimentos
sociais organizados por estes conceberem a verdadeira faceta da reforma agrária, e
conseguirem contestar o Estado que aplica medidas capitalistas, há que provocar os
atores estatais de maneira diversa. Trata-se de uma ruptura descolonizadora com a
modernidade, abarcando a autotutela social como paradigma da pós-modernidade. E
esse estágio é alcançado, como se viu no constitucionalismo latino-americano, mas
principalmente pelo pluralismo jurídico, que concebe a pluralidade de sujeitos ativos de
direitos e de pleitos; e, calcada nisso, emerge a força social de unicidade plural.
Unicidade interpretativa de uma pluralidade de diferenças culturais, históricas,
econômicas e políticas. Para uma pluralidade de sujeitos indeterminados que precisam
que o Estado garanta os preceitos fundamentais e da dignidade humana como estrutura
do ordenamento, pela soberania constitucional, pela soberania popular e pelo exercício
efetivo da democracia.
De fato, os movimentos sociais trazem em seu berço um aspecto de
comunidade construído pela sua historicidade e almejam pleitos coletivos. Mas ainda a

94
Direito Agrário Ambiental

concepção do uso e acesso à terra em um espirito comunitário além das paredes desses
movimentos sociais é algo tímido, pouco explorado (WOLKMER, 2001, p. 137-150).
Isso deve se dar na compreensão, primeiro, desses indivíduos de tais acepções e,
posteriormente, de todos os indivíduos da sociedade, que resguarda sua maior fonte
moral e ética de luta. Trata-se de requerer o respeito aos direitos fundamentais e
humanos elencados na Constituição Federal/88 como um esboço para toda a sociedade,
num esmero de manter o ordenamento jurídico e a segurança social devida. Uma
interpretação que parte dos sujeitos indivíduos para a sociedade e para a posterior
modificação estatal. A solidez do Estado somente é garantida pelos indivíduos da
sociedade. O direito emerge dos indivíduos. E o Estado utiliza-se do direito para
institucionalizar suas politicas econômicas e sociais, como outrora se mencionou. Então,
a interpretação de uma integralidade de direitos preceituados humanos e fundamentais
parte primeiro da retomada de identidade consigo e com a sociedade (WOLKMER,
2001, p. 152).
A fragmentação social ocasionada pela marginalidade capitalista é a fonte de
disseminação de políticas estatais despreocupadas com o berço constitucional-
democrático do país (DUPAS, 2005, p. 150-157). O [re] conhecer-se como indivíduo
integrante de uma sociedade plural é o ponto central para a construção de um novo
Direito Agrário que seja confronto capitalista ainda que dentro do sistema, um capital
social. Capital social de aquisição e reconhecimento de força social para mudanças
estruturais nacionais (ABRAMOVAY, 2003, p. 83-96). O confronto dar-se-á pelo
vínculo do homem com a terra, ainda que produtivista, mas sem atender exclusivamente
à demanda capitalista por meio do agrobusiness de demanda internacional. E, sim,
como meio de existência ligado ao bem maior da sociedade: a manutenção da vida pelo
trabalho, mas, principalmente, pelo ambiente como um todo. E isso ultrapassa a visão
ambiental, mas de ideais mínimos e fundamentais de educação, moradia, saúde,
previdência. A debilidade de tal confronto pauta-se não pelo desconhecimento técnico
ou econômico, mas essencialmente pela ausência política-individual de indagação e
posterior agremiação de interesses em sentido comunitário, global e planetário. É um
processo de conservar e preservar as raízes culturais, históricas e políticas para, diante
destas, motivar a transgressão do sistema imposto como única via: a produção de bens
ao capital. Refere-se ao nascimento de um novo homem, humanitário, pela identidade e
pelo reconhecimento de valores comuns (MORIN; KERN, 2003, p. 92- 105).

95
Direito Agrário Ambiental

O interesse social não se funda somente no desenvolvimento econômico do


Estado. Tampouco funda-se em direitos individuais, pleiteados em coletividade para
posterior segmentação de resposta estatal. O interesse social funda-se (ou deveria
fundar-se) na solidariedade e integralidade de preceitos fundamentais previstos no
ordenamento jurídico, como segurança à totalidade de sujeitos indeterminados e, quiçá,
sequer nascidos. A herança societária se dá pela compreensão de interesse social além
dos direitos individualizados no estado moderno, um interesse social pautado na
diversidade e pluralidade da pós-modernidade. Um direito comunitário que não se
sujeita ao tradicionalismo ou formalismo, mas pauta-se por valores éticos e morais
decorrentes da mobilização como meio de nova legitimação do direito e dos sujeitos
(WOLKMER, 2001, p.157). Um direito que se origina na vontade e necessidade dos
indivíduos na modificação estrutural do Estado. E não um mecanismo formal de
reprodução capitalista e liberalista da propriedade privada, sem consequências e sem
responsabilidades.

CONSIDERAÇOES FINAIS
O ordenamento jurídico brasileiro não passou de um processo de colonização e
povoamento, para a aproximação de um mercado capitalista de trabalho assalariado e a
mercantilização da natureza em seu elemento fundamental: a terra. O homem, nesse
aspecto, tem a relação com a terra de duas formas. A primeira, coerente com o
desenvolvimento capitalista, de que retira da terra sua fonte de lucro. A segunda, como
uma relação vital de manutenção da vida.
Nessa incongruência, surge a ausência de (des) envolvimento dos indivíduos
entre si e com o Estado. O capitalismo destrói as relações sociais como maneira de se
fortificar. Em favor do capitalismo, oprimem-se e marginalizam-se os indivíduos para
um vínculo com a terra meramente produtivo, olvidando da historicidade desses
indivíduos na construção cultural de vinculo com a terra. Surge dessa dissociação entre
o homem e a terra a reconstrução dos indivíduos da própria concepção de relação como
parte integrante do meio ambiente. A dissociação acarreta uma confusão de conceitos
éticos e morais que faz com que o individuo enxergue a terra como meio de obtenção do
que deseja, sem pensar nas consequências que a sua utilização pode acarretar.
Assim, surge a necessidade de o indivíduo integrar-se à sociedade em uma
retomada de consciência política-cidadã construída na historicidade cultural. Para tanto,
trouxe-se como paradigma o Constitucionalismo Latino-Americano que aborda novas

96
Direito Agrário Ambiental

acepções de propriedade e, principalmente, de função socioambiental em atendimento à


sociedade, estipulando, para tanto que o exercício do direito de propriedade fica
condicionado a um conceito de buen vivir em um resgate de identidade do homem da
América Latina.
Trata-se da ruptura dos paradigmas de oprimidos e marginalizados, para a
construção de um Estado não assistencialista ou liberalista, mas em um Estado que
projete as demandas sociais como princípios fundamentais, garantindo a reconstrução
de uma sociedade pela participação política da sociedade civil organizada por
movimentos sociais ou não. Para esse período chamado de descolonização, pressupõem-
se a transformação institucional de abrangência de novos sujeitos de direito e a inclusão
e o reconhecimento de “novos” direitos.
O buen vivir, numa acepção integral de condições mínimas e fundamentais de
vida, é relacionado ao acesso à terra. Foi a formalização de um Estado plurinacional, de
diferentes acepções políticas, culturais e sociais e, portanto, de diferentes necessidades
de demandas. O conceito busca a integração dos indivíduos entre si, com a sociedade e
com o Estado na compatibilização de diferentes conceitos de desenvolvimentos próprios
e singulares a cada segmento. Percebe-se, assim, que, para o exercício pleno do buen
vivir, é intrínseco o exercício pleno da soberania do povo. E, por tal razão, o
reconhecimento da pluralidade de indivíduos, sujeitos de direito comuns que
ultrapassam o formalismo das leis ou questões territoriais. Do buen vivir surge o
conceito de comunidade mais profundo que o conceito de sociedade em si, e, em
decorrência, surge o direito comunitário à terra. Engloba um projeto político,
econômico, social e institucional de confronto ao estado moderno e em resposta aos
novos paradigmas da pós-modernidade trazidos pelo capitalismo. De modo que a terra,
antes de propriedade, exerce função primordial ao reconhecimento dos indivíduos como
integrantes da sociedade. O crescimento (ou desenvolvimento) dar-se-á de forma
ilimitada, mas em uma condição de igualdade e prosperidade para todos.
Por isso, trazer o conceito de direito comunitário à terra pautado nos liames do
buen vivir é um método interpretativo-conceptivo, pois refunda-se na concepção
patrimonialista do ordenamento jurídico e, principalmente, do direito agrário, como
autônomo. O direito agrário, portanto, surge numa horizontalização de preceitos
fundamentais e de direitos humanos, em total consonância do vínculo do homem com a
terra, pelo resgate de identidade. O resgate dessa identidade traz a democratização de
oportunidades e igualdades, e sobressai da dinâmica político-econômica, ingressando a

97
Direito Agrário Ambiental

identidade da comunidade como uma segurança jurídica e social em confronto com a


expropriação ilimitada da terra e do trabalho. Trata-se de uma ruptura do paradigma
social-individual de propriedade privada que dissocia o homem de seu real vínculo com
a natureza, na construção sociopolítica de sujeitos cientes de seus pleitos e direitos,
destituídos de discursos incorporados econômicos e políticos.
Demonstrou-se, então que o acesso à terra é um direito fundamental e humano
no Brasil e, por isso, toma contornos característicos. Ao se declarar um direito humano,
assevera o Estado o compromisso internacional de diminuição da desigualdade em
atendimento a esse preceito. Bem como, ao constitucionalizar como direito fundamental
decorrente da historicidade nacional, afirma um compromisso com os indivíduos da
sociedade, de maneira que o acesso à terra engloba princípios fundamentais que são
programáticos; e, quando deixam de ser atendimentos, comprometem todo um
ordenamento jurídico. Quando se olvida um princípio tão fundamental à vida, todo o
ordenamento e os poderes estatais entram em ruína, pois estão em desacordo com o que
eles próprios preceituam e reproduzem.
Destarte, o primeiro passo surge do reconhecimento dos indivíduos entre si
como um todo coletivo e comunitário que busca a mesma coisa: o cumprimento da
Constituição Federal/88. Assim, funda-se o interesse social na pluralidade sociopolítica
em prol da comunidade, em um sentido de responsabilidade paritário à integração, em
busca de uma voz social e política pautada na identidade entre indivíduos pelo interesse
geral. Ultrapassa a barreira individual, na reafirmação da soberania popular e dos
direitos fundamentais, em um espírito comunitário. E por essa perspectiva dever-se-iam
pautar os movimentos sociais. Ao confrontar o Estado e o capitalismo, não contestam o
sistema institucionalizado nas suas raízes conceptivas. Admitem o uso da terra como
meio de desenvolvimento meramente econômico, que atenda ao capitalismo para
posterior desenvolvimento social. Nessa lacuna, o Estado repassa aos indivíduos a
responsabilidade pela concretização de direitos humanos e fundamentais por meio da
expropriação da força de trabalho e reproduzindo os discursos impostos desde a
colonização eurocêntrica.
Na ausência da concepção comunitária da terra, o seu acesso passa a ser
obstaculizado pela burocracia e pelo aparato estatal. A luta individual e o
assistencialismo patriarcal do Estado desmobilizam os indivíduos que param de pensar
no coletivo e se integram ao sistema imposto, sem, contudo, conseguir sua liberdade.
Continuam marginalizados e empobrecidos pelo sistema capitalista. O direito parte dos

98
Direito Agrário Ambiental

indivíduos, assim a sua pressão estatal pode ser a fonte de mudança no atendimento à
reforma agrária. A fragmentação social é fonte de políticas públicas e estatais
despreocupadas com os preceitos constitucionais.
Portanto, um novo direito agrário parte da ressignificação hermenêutica dos
seus institutos essenciais, em uma ruptura descolonizadora e com a modernidade,
exercendo uma autotutela social de integralidade e fomento além do econômico e social,
mas político. Uma reconstrução de paradigmas que conceba a força social e a
construção de identidade própria desses indivíduos como a medida a ser utilizada no
atendimento aos direitos humanos e fundamentais. O aceite da pluralidade de sujeitos
indeterminados no exercício da soberania popular e da democracia que pautam o
verdadeiro interesse social dissociado agora de preceitos meramente capitalistas. O bem
comum integrado a um sistema global de necessidades mínimas e fundamentais
preocupado com igualdade, liberdade, segurança, dignidade e direitos humanos. Assim,
o constitucionalismo latino-americano e o pluralismo jurídico trazem a amplitude
conceitual necessária para uma eficácia formal de direitos. Refere-se, por fim, à
interpretação que de fato atenda ao interesse social, em um espírito de comunidade, para
além do desenvolvimento individual, social e econômico, mas de respeito com toda a
sociedade pelos preceitos humanos e fundamentais.

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Direito Agrário Ambiental

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101
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO V – A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA LEGISLAÇÃO AGRÁRIA


BRASILEIRA

Fernando Joaquim Ferreira Maia3

INTRODUÇÃO
Neste artigo, analisar-se-á a formação histórica da legislação agrária brasileira
à base do processo histórico de evolução das leis objetivas de desenvolvimento do modo
de produção capitalista, considerando o quadro de correlação de forças, através de uma
visão dialética, materialista, heterogênea, contextualizada e ancorada em fontes
respeitadas.
Assim sendo, distinguem-se os fundamentos teóricos e metodológicos da
formação do direito agrário, abordando-se, especificamente, os condicionantes
históricos e materiais da gênese da legislação agrária no Brasil, desde o início da
ocupação portuguesa até os dias atuais.
Ressalte-se que as relações pertinentes à agricultura e à pecuária, ao agricultor,
ao operário rural e às relações de produção no campo sempre existiram,
independentemente de tutela jurídica, e sempre foram objeto de normatizações, a
exemplo da Lei de Sesmarias imposta por Portugal ao começar a colonizar o Brasil.
Quando o Estado regula a relação jurídica entre proprietário e possuidor no campo, ele
não está criando nenhuma relação social, pois esta é gerada pelas condições materiais. O
Estado apenas protege e regula, por meio do instrumental jurídico, as relações sociais
mais vantajosas à classe social dominante.
Assim, como qualquer disciplina dogmática, o direito agrário desempenha
papel fundamental na proteção/reprodução das relações sociais, regula o modo de
produção, institucionaliza o poder político e dissemina a ideologia da classe social
dominante no seio da sociedade. Especificamente, o direito agrário busca estabelecer
direitos e obrigações referentes aos imóveis rurais, à sua posse, ao uso e à disposição,
dispondo sobre a organização do processo de produção de recursos agropecuários. A
história da formação da legislação agrária brasileira vai refletir isso.

3
Doutor e Mestre em Direito pela UFPE, Especialista em Direito Processual Civil pela UFPE, Professor
Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFRPE.

102
Direito Agrário Ambiental

Então, considerando que o direito, ao proteger e reproduzir as relações sociais,


reflete as condições históricas e materiais em que dada sociedade está inserida, urge
interpretar o ordenamento jurídico das relações sociais no campo e procurar adequá-lo à
multiplicidade de novos casos concretos surgidos.
Serão levantados os seguintes questionamentos: Qual fator determinou a
aplicação de leis agrárias no território brasileiro? Existe uma relação entre a
concentração fundiária no Brasil atual e as primeiras leis agrárias adotadas por Portugal
no Brasil-Colônia? Quais as principais fases do desenvolvimento da legislação agrária
no Brasil?

1. A OCUPAÇÃO TERRITORIAL BRASILEIRA COMO IMPERATIVO DA


EXPANSÃO DO CAPITAL COMERCIAL PORTUGUÊS E COMO
CONSEQUÊNCIA DAS CONTRADIÇÕES INTERMERCANTILISTAS E A
FUNÇÃO DO DIREITO NA SOCIEDADE COLONIAL
Pode-se dizer, seguramente, que as grandes navegações portuguesas e
espanholas consolidam o capitalismo comercial. O capitalismo comercial, ou fase de
acumulação primitiva do capital, para Karl Marx (2001), foi consequência de um
processo paulatino de ausência de correspondência obrigatória das relações de produção
feudais com o caráter das forças produtivas, do surgimento de forças capitalistas de
produção, que passou, inicialmente, pelo crescimento das cidades, pelo fortalecimento
da burguesia urbana, pela intensificação do comércio e transição do Estado absolutista
feudal para o Estado nacional burguês. Tal processo permitiu uma grande acumulação
de recursos minerais e agrícolas, enriqueceu a burguesia e fortaleceu essa classe
politicamente frente à nobreza feudal.
Segundo Celso Furtado, entretanto, logo que se constata a existência de amplos
recursos minerais e agrícolas, sobretudo no oeste da América Central e do Sul, as
contradições intermercantilistas passam a opor objetivamente os interesses das diversas
burguesias nacionais europeias entre si e geram e acirram uma disputa por mercados. É
isso um dos principais fatores que vai forçar a ocupação territorial da América por
nações europeias, particularmente Portugal e Espanha (FURTADO, 2007, p. 26-27).
Muito embora a parte das terras que coube a Portugal no Tratado de
Tordesilhas fosse pobre em metais, o Estado português vai tentar ocupar essas terras. A
vastidão do território recém-descoberto, seu relevo acidentado, a vegetação densa e o
clima adverso ao europeu forçarão uma estratégia de povoamento baseada num

103
Direito Agrário Ambiental

autoabastecimento da colônia e na produção de recursos destinados à metrópole. Nas


condições das terras brasileiras, para Caio Prado Júnior (2008, p. 16-17, 21) e Celso
Furtado (2007, p. 29-30), isso só podia ser realizado mediante a introdução da
agricultura em larga escala no Brasil-Colônia.
A questão é por qual gênero iniciar a produção agrícola, considerando que o
extrativismo vegetal de pau-brasil, a pesca e as peles de animais não se mostraram
muito rentáveis em função da pouca estabilidade desses recursos, o que dificultava a
tarefa de povoamento (esta implicava uma infraestrutura mais ampla).
Segundo Celso Furtado (2007, p. 31, 33-36), diante dos acordos entre Portugal
e os Países Baixos para a distribuição do açúcar na Europa, Portugal foi levado a
escolher o cultivo da cana-de-açúcar no Brasil como primeiro passo para a colonização
do território. A cultura da cana-de-açúcar convinha. Portugal tinha o domínio técnico do
beneficiamento do açúcar, e os Países Baixos dominavam o comércio do produto. Em
relação à mão de obra, o elevado preço do trabalho na Europa, e até mesmo a sua
escassez em Portugal, levaram à introdução, paralelamente à mão de obra indígena, do
trabalho do escravo na América portuguesa, o que não constituiu problema pelo fato de
Portugal já controlar o comércio de escravos na África (PRADO JÚNIOR, 2008, p. 32-
34).
É justamente sobre esse novo processo de produção de riqueza que se
desenvolve toda uma forma de consciência social na colônia portuguesa, de conteúdo
agrário-capitalista. As novas relações sociais que vão surgir em decorrência da
monocultura da cana-de-açúcar, bem como as atividades políticas, sociais e econômicas
combinadas com o cultivo do açúcar, exigirão uma regulação jurídica com o objetivo de
proteger e reproduzir essas relações, consideradas as mais vantajosas à burguesia
comercial portuguesa. A legislação inicial que irá vigorar nas novas terras terá conteúdo
burguês, sendo aplicada às relações sociais agrárias como fruto do processo de
acumulação de capital verificado com as grandes navegações promovidas pela
burguesia europeia. A nova regulação jurídica para a colônia, que será estudada nos
próximos tópicos deste artigo, estava voltada para a afirmação do sistema capitalista e
só pode ser aí compreendida.
Uma vez tomada a decisão de colonizar as terras recém-descobertas pelo
estímulo à agricultura da cana-de-açúcar, a principal preocupação da burguesia
portuguesa foi formular uma legislação que justificasse as novas instituições
socioeconômicas ali implantadas.

104
Direito Agrário Ambiental

2. A TERCEIRA CARTA RÉGIA E AS SESMARIAS: A COLONIZAÇÃO


COMO GÊNESE DA CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL
O instituto da sesmaria nasce em Portugal, em 1375, por ordem do rei Dom
Fernando I, objetivando conter o êxodo rural (levando a um despovoamento do campo),
gerado pelo crescimento das cidades e pela melhoria do poder aquisitivo da população
urbana, em comparação com o campo, e pela peste negra, bem como pela escassez de
produtos agropecuários no país. A Lei de Sesmaria, em Portugal, forçava todos os
proprietários a lavrar suas terras sob pena de terem que cedê-las àqueles que as
quisessem lavrar (PEREIRA; MENEZES, 2009).
Vale ressaltar que, nessa época, Portugal ainda estava sob o modo de produção
feudal. A estrutura social do feudalismo se formata a partir do feudo, este dividido em
manso servil (terras dos servos, onde estes trabalhavam para a própria subsistência e
para pagar os impostos aos senhores feudais), manso senhorial (terras dos suseranos,
onde os servos trabalhavam em exclusividade e em proveito dos suseranos) e manso
comunal (terras devolutas, que englobavam os pântanos e as florestas onde se praticava
caça, e, como um todo, eram terras comuns no sentido de não terem uma destinação
apriorística para determinado cultivo) (ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA URSS, 1961,
p. 39-41).
É importante salientar que o feudalismo é composto por duas estruturas: o
colonato e as relações de suserania e vassalagem. Pelo colonato, os grandes
proprietários de terras, chamados de senhores feudais, cediam terras aos camponeses,
chamados de servos, exigindo como compensação que estes lhes pagassem determinada
soma em dinheiro ou uma parte considerável da produção agropecuária e realizassem
serviços variados. Já pelas relações de suserania e vassalagem, a sociedade feudal estava
dividida em senhores feudais e servos. Os senhores feudais menos abastados pagavam
tributos aos mais abastados e forneciam recursos humanos nos conflitos bélicos com
outros Estados feudais, mas, em contrapartida, gozavam de proteção e auxílio dos
senhores feudais mais abastados. Aqui, a lei econômica fundamental do feudalismo
consiste na apropriação do produto suplementar produzido pelos servos sob a forma de
renda feudal da terra, espécie de economia natural de subsistência pela qual todas as
necessidades dos senhores feudais eram satisfeitas pelo próprio feudo (ACADEMIA DE
CIÊNCIAS DA URSS, 1961, p. 42-44).
Em Portugal, muitas das terras, mansos feudais, estavam sob a jurisdição

105
Direito Agrário Ambiental

eclesiástica da Ordem de Cristo, como senhora feudal, herdeira da Ordem dos


Templários, esta composta de pessoas ao mesmo tempo monges e militares e com o
propósito “propagandístico” de defender os cristãos dos muçulmanos. Os templários
surgiram em 1113 e se extinguiram em 1312; sua história é legatária das Cruzadas
Medievais. A Ordem de Cristo, todavia, foi mantida por determinação de D. Diniz
(1279 – 1325), que aliou seu interesse de povoar os territórios retomados dos
muçulmanos no período da Guerra da Reconquista. Promoveu a formação do território
português e tomou medidas defensivas contra a expansão moura (LIMA, 1988, p. 36).
Com a expulsão dos árabes pelos cristãos, processo que se estende do século XI ao
século XV, denominado “Período da Reconquista”, fez-se perceber a necessidade de
otimizar a administração das terras portuguesas (VARELA, 2005, p. 19-20, 32-33).
Em suas origens, o regime jurídico das sesmarias se liga ao das terras comunais
do medievo, communalia, palavra que deriva de sesma, a sexta parte de algo, e evolui
para a ideia ligada à terra de “1/6 do valor do terreno”. Daí o verbo sesmar como
avaliar, estimar. Nesse contexto, o termo passa a designar os lotes de terras incultas ou
abandonadas cedidas pelo rei de Portugal a pessoas que quisessem cultivá-las,
denominadas sesmeiros. Ressalte-se que a communalia entrava no sistema de suserania
e vassalagem, em que o rei conserva apenas direitos de susserania semelhantes aos da
Europa feudal (PINTO FERREIRA, 1994, p. 106-108).
A grande novidade da Lei de Sesmaria, adotada pelo rei Dom Fernando I, é a
instituição do princípio de expropriação da propriedade caso a terra não fosse
aproveitada (VARELA, 2005, p. 23). Procurava-se repor em cultivo terras que já
haviam sido exploradas, mas que o abandono ou o desuso tinham transformado em
terrenos baldios. A lei das sesmarias teve o efeito de uma reforma agrária, pois
desestimulou o latifúndio em benefício da pequena propriedade e contribuiu para o
acirramento da crise do feudalismo em Portugal.
A introdução do regime das sesmarias no Brasil-Colônia foi um imperativo do
mercantilismo, pelo qual a colônia se inseria no processo de acumulação de riqueza do
capitalismo, unindo a circulação de mercadorias com a produção de riquezas como
fonte da expansão do capitalismo comercial, garantindo recursos minerais e agrícolas à
Metrópole portuguesa.
Como dito no início deste artigo, constitui o período da acumulação primitiva
de capital, marcado pelo monopólio do comércio entre a metrópole e a colônia, o
chamado exclusivismo colonial. Não se confunda o exclusivismo colonial com o pacto

106
Direito Agrário Ambiental

colonial. Este regulamentava as relações entre as potências colonizadoras entre si e


entre estas e as colônias, e se ordenavam em todos os mares, a atividade econômica,
política, militar e as disposições jurídicas.
O fato é que, diante da necessidade de se ocupar efetivamente o Brasil e
colonizá-lo, o caminho escolhido foi estimular a exploração do solo mediante
concessões de sesmarias. Tudo nos moldes adotados em Portugal e que foram
reproduzidos na Ilha da Madeira e nos Açores.
Segundo José Braga (1991), em 20 de dezembro de 1530, o rei de Portugal,
Dom João III, ligado à dinastia burguesa de Avis, estabelece na 3ª Carta Régia que “não
poderão tomar, para si ou para sua mulher ou filhos ou herdeiros, terra alguma de
sesmaria; podem, no entanto, dar todas as terras de sesmaria a qualquer pessoa, de
acordo com as Ordenações do Reino, livres de foro e direitos, salvo o dízimo à Ordem
de Cristo, cujas terras o donatário ou seus sucessores não poderão tomar para si, nem
para sua mulher, filhos ou herdeiros, salvo por compra das pessoas que lhes quiserem
vender e somente após terem sido aproveitadas” (DIAS, 1924, p. 224).
O mesmo sentido de sesmaria visto anteriormente vai ser transplantado para o
Brasil-Colônia. Pinto Ferreira (PINTO FERREIRA, 1994, p. 106-108) afirma que as
sesmarias eram lotes de terras incultas ou abandonadas cedidas pela Coroa portuguesa a
pessoas que quisessem cultivá-las, chamadas sesmeiros. O lavrador era obrigado a pagar
uma sexta parte dos frutos da terra. Era justamente o dízimo da Ordem de Cristo, esta
representada pela Coroa Portuguesa. Por isso chamava-se sesmaria.
Nas lições de Caio Prado Júnior (2008, p. 32), Portugal dividiu o território do
Brasil em 15 setores lineares, entre 30 e 100 léguas de costa (cada légua tinha
aproximadamente 6 quilômetros de extensão). Cada setor deste foi chamado de
Capitania e foi doado a 12 titulares (chamados, por isso, de Donatários), que, dentro do
seu setor, gozavam de poderes administrativos, legislativos e jurisdicionais, podendo
conceder sesmarias, fundar vilas, organizar a administração e desempenhar funções
judiciais. Essas capitanias eram particulares e hereditárias, pois pertenciam aos
donatários e eram transmissíveis por herança aos sucessores legítimos. Era esse o
espírito da 3ª Carta Régia de 1530.
Em outras palavras, nas sesmarias não havia a transferência do domínio das
terras abandonadas não cultivadas a particulares (ALVES, 1995). O sesmeiro não tinha
o domínio da terra entregue a ele pela concessão da sesmaria, pois esta era concessão do
Estado, cabendo ao sesmeiro cultivar a terra e pagar o foro (a sexta parte dos frutos).

107
Direito Agrário Ambiental

Isto é, o Estado continuava controlando a terra, podendo, inclusive, revogar a sesmaria


(VARELA, 2005, p. 23, 24-28).
A função dos donatários basicamente era o desenvolvimento da agricultura,
destinada à exportação para a metrópole portuguesa, bem como a produção de recursos
agropecuários secundários, a exemplo de gado e leite. Em contrapartida, estavam
obrigados a assegurar ao Estado o monopólio da exploração do pau-brasil, 1/5 dos
lucros sobre metais e pedras preciosas encontrados e 10% dos lucros sobre todos os
produtos da terra dos frutos que auferissem. Também deviam explorar a terra em 6 anos,
sob pena de perdê-la. Caso preferissem, podiam ceder terra a quem quisesse nela
trabalhar (PINTO FERREIRA, 1994, p. 106-108).
No Brasil, a introdução do regime das sesmarias objetivava não só ocupar o
território, mas inseri-lo efetivamente no processo internacional de acumulação de
capital do capitalismo mercantilista, garantindo recursos minerais e agrícolas à
Metrópole portuguesa.
É no regime sesmarial que ocorre a gênese do latifúndio no Brasil. A lógica do
mercantilismo da burguesia portuguesa impunha a agricultura especializada em larga
escala, de que a monocultura da cana-de-açúcar, ao empregar grandes extensões de
terras, constituía exemplo. O regime de sesmarias implantado pelo Estado português
vem apenas proteger e reproduzir essas novas relações sociais, inclusive as de produção
(WOLKMER, 1998, p. 38).
A história mostra que o sistema de sesmarias entrou em colapso no Brasil-
Colônia. A concessão excessiva de sesmarias e a tolerância com o arrendamento ou
parceria das já concedidas acabaram por aguçar a divisão social do trabalho, pois,
embora os donos de terras mantivessem as suas propriedades, estes locavam a posse
dessas terras aos lavradores. Estimulava-se, assim, a pulverização do uso econômico da
propriedade, o que contribuiu para a desorganização da produção agrícola e pecuária.
Muitas vezes sequer as terras eram aproveitadas, ficando ociosas para a especulação.
Três fatores vão contribuir para a decadência e o fim do regime das sesmarias
no Brasil: 1) o crescimento da agricultura mercantil de exportação, em fins do século
XVIII e início do século XIX, como decorrência da revolução industrial que se
processava na Inglaterra e exigia grande quantidade de insumos, o que só a produção de
recursos agrícolas e minerais poderia proporcionar; 2) o acirramento das contradições
interindustriais, impondo uma disputa entre as grandes potências da época pelo controle
de mercados, de que as guerras napoleônicas são exemplo; 3) o fim do monopólio

108
Direito Agrário Ambiental

estatal do comércio entre Portugal e a colônia brasileira pela Carta Régia de 1808,
permitindo a circulação de mercadorias inglesas no território da colônia sem a
intermediação do Estado português.
Em 17 de julho de 1822, a Resolução nº 76 põe fim ao regime das sesmarias,
base da estrutura agrária concentradora da propriedade no campo, da qual o latifúndio é
a mais fina expressão e consequência. Sem o monopólio estatal do comércio da colônia,
a razão de ser do regime das sesmarias já não fazia mais sentido.

3. A INDEPENDÊNCIA BRASILEIRA E O FIM DO REGIME DAS


SESMARIAS: O REGIME DAS POSSES OU EXTRALEGAL ENQUANTO
HERANÇA AGRÁRIA PORTUGUESA
Entre a revogação da legislação sesmarial e a entrada em vigor da Lei de Terras
nº 601, de 1850, houve um período que os doutrinadores costumam denominar de
extralegal ou período das posses de terras devolutas. Esse período durou de 17 de julho
de 1822 a 18 de setembro de 1850, caracterizando-se pela ausência de uma legislação
agrária específica no Brasil. Era o “Regime da Posse de Terras Devolutas”.
Diga-se que, por terras devolutas, entendem-se aquelas terras públicas
desocupadas, retornadas ao Estado por ocasião da revogação - ou por qualquer outro
meio de extinção - da sesmaria. Segundo Fábio Alves (1995), nesse período de quase
trinta anos, houve desordem no sistema de ocupação do território brasileiro, tendo a
posse substituído o título aquisitivo de propriedade. Ocupavam-se as terras devolutas e
se esperava que num futuro próximo o Estado regulasse o uso e a aquisição da
propriedade.
Revogada a legislação sesmarial, a estrutura fundiária brasileira se apresentava
dessa forma: a) terras na posse de particulares sob o regime integral de sesmarias; b)
terras na posse de particulares, originárias de sesmarias, mas sem que os sesmeiros
tivessem obtido a confirmação da doação; c) terras ocupadas por particulares, apenas
com a posse, sem o título aquisitivo de propriedade; d) terras públicas, nunca dadas em
sesmarias, desocupadas; e) terras devolutas, como já dito, dadas em sesmarias, mas que,
não importa a razão, retornaram ao Estado.
O período do regime de posses é marcado pela alteração da inserção do Brasil-
Colônia no processo de acumulação de capital do capitalismo. Essa alteração se
materializa no fim do ciclo de mineração que, somado à explosão demográfica na
Europa e à Revolução industrial, vai gerar novo estímulo à agricultura colonial

109
Direito Agrário Ambiental

brasileira, integrando esta no processo global de industrialização europeia e no próprio


abastecimento agrícola do mercado interno europeu. Igualmente, a revolução industrial
vai forçar a abertura de mercados para o escoamento das mercadorias industrializadas,
produzidas pelas potências europeias, o que significa que as novas condições históricas
e materiais em que o capitalismo estava inserido, propiciadas pela revolução industrial,
tornar-se-ão incompatíveis com qualquer monopólio comercial. Exigia-se o livre
comércio. A revolução industrial marca a superação do período da acumulação
primitiva de capital, caracterizado pelo monopólio do comércio entre a metrópole e a
colônia, o chamado exclusivismo colonial. A lógica mercantilista e a hegemonia das
próprias potências ibéricas serão enterradas. Como essas potências mercantilistas não
conseguiram se industrializar suficientemente, em razão de suas atividades estarem
limitadas ao comércio com suas colônias, inclusive sequer conseguindo atender às
necessidades de produtos industrializados e manufaturados nos territórios apossados,
comportando-se como meros intermediários entre as colônias e demais potências
industrializadas, a capacidade colonizadora do mercantilismo estava exaurida.
Estavam dados todos os condicionantes históricos e materiais para um novo
surto de desenvolvimento da agricultura do Brasil-Colônia no período do fim do regime
das sesmarias. Esse renascimento da agricultura vai atingir todas as culturas, desde a
cana de açúcar, passando pelo algodão, até o café. Mas a pecuária também será
beneficiada. Em contrapartida, acentuar-se-á a decadência da atividade mineradora.
Tudo destinado ao mercado externo, mais uma vez a função exportadora no
desenvolvimento econômico brasileiro. Qualquer atividade econômica de vulto,
principalmente na agricultura, será marcada pelo vetor do mercado externo.
Obviamente, o quadro vai se aprofundar, e até mesmo estará na raiz das profundas
contradições regionais que marcarão o Brasil.
É isso, paralelamente ao vácuo jurídico no campo, gerado pelo fim da
sesmaria, que vai estimular a ocupação sumária de terras no Brasil colonial. A ocupação
foi levada a cabo por todas as classes sociais no campo, mas principalmente pelos
grandes proprietários de terras, a burguesia agrária.
O rompimento das restrições de área e de número de propriedades por
sesmeiro, impostas com o fim do regime da sesmaria, acabará por aprofundar a estrutura
fundiária concentradora no Brasil, consolidará o latifúndio no país, pois são os grandes
proprietários que irão se beneficiar do caos agrário instalado no campo (SOUZA, 1987).
O apossamento ilegal, grilagem, terá duas finalidades: a monocultura agrícola

110
Direito Agrário Ambiental

de exportação, baseada no latifúndio, e a cultura de subsistência, realizada pelos


pequenos e médios proprietários de terras, voltada ao mercado interno. A cultura de
exportação e a cultura de subsistência, que envolvem interesses de classe distintos e
antagônicos, vão se chocar e aprofundar a divisão do trabalho e da produção no campo,
acirrando as contradições no processo de produção de riquezas, o que oporá,
objetivamente, os interesses da burguesia agrária aos interesses do campesinato. Como
resultado: a multiplicação dos litígios agrários, mais luta de classes no campo.
Por fim, isso determinará nova regulação jurídica da estrutura fundiária
brasileira com o objetivo de proteger e de reproduzir as relações sociais de produção
agrárias mais vantajosas à burguesia agrária, o que a Lei nº 601/1850, chamada Lei de
Terras, vai desempenhar.

4. A LEI DE TERRAS Nº 601/54 COMO PRIMEIRO REGIME LEGAL


GENUINAMENTE BRASILEIRO DE CONTROLE FUNDIÁRIO E
EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA E A NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DO
REGIME DE POSSES PARA O ALAVANCAMENTO DA PRODUÇÃO DE
ALIMENTOS
A consequência mais visível do regime de posses foi a desorganização da
produção de recursos agrícolas no Brasil. Em que pese a recuperação inicial da
agricultura, o fato é que esta logo volta a entrar em declínio, principalmente ante a
vitória da burguesia inglesa nas últimas disputas interindustriais pelo controle dos
mercados e das rotas comerciais frente às burguesias portuguesa, espanhola e francesa,
o que permitiu uma recuperação econômica dos mercados ingleses e a própria
ampliação destes pela Inglaterra.
O reflexo é uma queda da produção de recursos agrícolas do Estado brasileiro,
com escassez de divisas e acirramento das contradições inerentes ao capitalismo, como
a fome, a miséria, os preconceitos, as discriminações sociais e a criminalidade, mas
também a própria luta social entre os diversos extratos da burguesia, o proletariado e o
campesinato, de que as revoltas da Cabanagem e a Guerra dos Farrapos constituem
exemplos. A queda na exportação de recursos agrícolas e minerais traduzir-se-á numa
diminuição do poder aquisitivo da população. Segundo Celso Furtado (2007), o
estancamento das exportações é o ingrediente da estagnação e do declínio econômico do
Brasil na primeira metade do século XIX, frustrando, inclusive, as primeiras iniciativas
de industrialização brasileira.

111
Direito Agrário Ambiental

Paralelamente, outra cultura agrícola vai começar a surgir, contribuindo para


amenizar esse quadro: é o café. A produção de café para exportação logo será o
principal produto agrícola do país, a principal fonte de divisas. Entretanto, com o
estancamento do mercado escravo, por força da Inglaterra, em face da nova lógica do
capitalismo industrial, que impunha a constituição de mercados consumidores para o
escoamento dos produtos industrializados e manufaturados produzidos pelas indústrias
europeias, a economia cafeeira entra num impasse, tendo que substituir a mão de obra
escrava pela assalariada. Isso é feito em parte com a importação de mão de obra
estrangeira, sobretudo a europeia, supostamente mais qualificada.
É nesse contexto que surge a Lei nº 601/1850, denominada de Lei de Terras.
Ainda em relação à mão de obra escrava, ressalte-se que, na mesma década da Lei nº
601/1850, surge a Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, uma legislação que não discute
diretamente a questão da terra, mas acaba se refletindo nela, na medida em que proíbe o
tráfico negreiro (e os escravos eram a força de trabalho principal nos meios de produção
agrícolas da época). Ressalte-se, também, que há uma série de legislações nesse sentido,
a saber: Lei do Ventre Livre (1871), declarando livres os escravos nascidos no Brasil;
Lei dos Sexagenários (1885), libertando os maiores de 65 anos; e Lei Áurea (1888),
abolindo a escravidão.
A Lei nº 601/1850, regulada pelo Decreto n.1318 de 30/01/1854, tinha como
objetivos principais: a) a defesa das terras devolutas contra a posse violenta, o esbulho
possessório; b) a outorga de títulos aquisitivos de propriedade aos detentores de
sesmarias, chamados sesmeiros; c) a outorga de títulos aquisitivos de propriedade a
concessões de terras; d) o asseguramento dos títulos aquisitivos de propriedade de terras
devolutas, desde que por posse mansa e pacífica, não contestadas por terceiros.
A lei de terras objetivou a regularização das sesmarias, posses e ocupações e a
separação daquelas terras que estavam no domínio ou posse de particulares daquelas
que pertenciam ao Estado, possibilitando àqueles detentores de sesmarias, ou mesmo
simples posseiros, a obtenção de títulos aquisitivos de propriedade da terra. Isso foi
feito, segundo José Braga (BRAGA, 1991), mediante a avocação para o domínio estatal
de todas aquelas propriedades e posses que não se encontravam legitimadas,
objetivando a regularização por parte dos interessados. Assim, a lei de terras acaba
criando juridicamente o instituto das terras devolutas.
Destaque-se que, como o regime de posses estava ainda inserido no paradigma
geral do capitalismo comercial, este não separava nitidamente posse e propriedade. O

112
Direito Agrário Ambiental

instituto da propriedade no campo não estava juridicamente regulado. Partia-se da fusão


entre os instrumentos de trabalho, a terra, o arado, os insumos, com a força de trabalho,
quase toda escrava, o que criava embaraços ao pleno desenvolvimento das novas
relações capitalistas de produção.
A partir da lei de terras se impõem demarcações, títulos aquisitivos, registros
desses títulos e pagamento de taxas e impostos sobre a propriedade. A propriedade
passa a ter um valor, sobretudo econômico, mais forte que a posse. Ou seja, em relação
ao uso e gozo da propriedade, dava-se um valor maior ao jus disponendi, ao direito de
dispor da propriedade, o que significava poder aliená-la a título oneroso ou gratuito e
gravá-la com ônus reais ou submetê-la ao serviço de outrem. A terra passou a ser tratada
como mera mercadoria, concentrando ainda mais a estrutura fundiária brasileira. Ao
transformar juridicamente o instituto da propriedade e separá-lo da posse, criam-se
novas possibilidades para o desenvolvimento das relações de produção capitalistas. A
lei de terras contribuiu para a consolidação do capitalismo industrial no Brasil. A
legitimação da propriedade trazida pela lei de terras constituiu um pressuposto para o
trabalho assalariado no campo no Brasil.
Pelo marco da lei de terras, o Estado suspendia a aquisição de terras devolutas,
admitia sua transmissão apenas pela compra, o que acabou, na prática, beneficiando os
grandes proprietários de terras, pois estes tinham maior poder aquisitivo para adquirir
terras devolutas em grande quantidade. A partir daí, arrendavam ou parceirizavam o uso
e gozo da terra, retendo mão de obra abundante e barata, mas sempre mantendo a
disposição plena da propriedade.
Ao mesmo tempo, a lei de terras vai procurar revalidar as sesmarias existentes,
condicionando isso ao efetivo cultivo e à ocupação direta da terra, pouco importando se
a posse foi de boa ou má-fé, se justa ou injusta. Cria-se, com a lei de terras, um novo
conceito de posse agrária: ocupação, cultura efetiva e moradia habitual. Tem-se a
gênese do princípio do direito agrário, pelo qual o trabalho é o elemento que deverá
caracterizar e fundamentar o direito de propriedade, pois se exigia não só a cultura do
solo, mas a destinação econômica desta (VARELA, 2005).
Posteriormente, até o advento do Estatuto da Terra, em 1964, outras legislações
vão disciplinar a questão agrária no Brasil. Assim, a constituição de 1946, em seu art.
141, § 34, traz, no tocante à matéria agrária com atenção à tributação da terra, o
princípio da anualidade que exigia prévia e anual autorização orçamentária da
Assembleia Geral para que fosse cobrado o imposto em um exercício. Corrobora-se o

113
Direito Agrário Ambiental

art. 171 da Constituição de 1824 que a isso já fazia alguma alusão. A Constituição de
1891 omitiu o tema.
O princípio da anualidade foi substituído pelo da anterioridade da lei fiscal,
introduzido com a Emenda Constitucional nº 18/1965 e mantido na Constituição
Federal de 1988. Também, a temática tributária, em especial o Imposto Territorial Rural
(ITR), como bem discute Pinto Ferreira (1994), pode ser pensada como uma salutar
forma de viabilizar a desagregação da propriedade improdutiva, se mudado o tratamento
atual, em que o imposto é praticamente irrisório. Seria aliar a política fiscal à política
agrária. Ainda a Constituição de 1946 traz a questão da desapropriação de terra com
prévia indenização em dinheiro, o que gerou o pleito do Congresso e do Poder
Executivo para substituição da forma pecuniária pelos títulos da dívida pública.
Atualmente, a desapropriação é regida pela Constituição Federal, art. 184, nos seguintes
termos: “mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária”.
Por fim, a Lei de Terras vem para concentrar a propriedade no campo e, a
partir dela, os interesses das parcelas da burguesia agrária no Brasil vão predominar,
pelo menos até a década de 1930, quando perderão o poder político estatal para a
burguesia financeira.

5. O ESTATUTO DA TERRA E OS CAMINHOS DA REFORMA AGRÁRIA E


DA POLÍTICA AGRÍCOLA
A Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, denominada Estatuto da Terra,
espécie de Código Agrário brasileiro, promulgada pelo então presidente da República
Humberto de Alencar Castello Branco, surgiu como resposta às lutas e às reivindicações
dos movimentos sociais pré-64, que exigiam profundas mudanças estruturais na
propriedade e no uso da terra no Brasil.
Por esse período aparecem também o Estatuto do Trabalhador Rural, a Lei nº
4214, de 02/03/1963, o Código Florestal, a Lei nº 4771 de 15/09/1965 e, disciplinando o
contrato agrário, a Lei nº 4947, de 06/04/1966. A matéria também é tratada no Estatuto
da Terra, no Código Civil, etc.
O Estatuto da Terra tem por base a reforma agrária e a política agrícola, trata
de diversos temas, entre os quais se podem citar as terras públicas e as particulares, a
distribuição de terras, o financiamento, a execução e a administração da reforma agrária,
a política de desenvolvimento rural, a tributação, a colonização, a assistência e a
proteção à economia rural, o cooperativismo, a eletrificação rural, o arrendamento rural,

114
Direito Agrário Ambiental

a parceria agrícola, a posse e o uso temporário da terra, o seguro agrícola.


A história do Estatuto da Terra começa com o fim da Segunda Guerra Mundial,
em 1945. A partir desse ano, o Brasil redemocratizou-se e prosseguiu seu processo de
transformação com industrialização e urbanização aceleradas. A questão agrária
começou, então, a ser rediscutida com ênfase e tida como um obstáculo ao
desenvolvimento do país. Dezenas de projetos de lei de reforma agrária foram
apresentados ao Congresso Nacional. Nenhum foi aprovado.
No final dos anos 50 e início dos 60, os debates ampliaram-se com a
participação popular. As chamadas reformas de base (agrária, urbana, bancária e
universitária) eram consideradas essenciais pelo governo, para o desenvolvimento
econômico e social do país. Entre todas, foi a reforma agrária que polarizou as atenções.
Em 1962, foi criada a Superintendência de Política e Reforma Agrária –
SUPRA (com a subsequente extinção do INIC - Instituto Nacional de Imigração e
Colonização - e do SSR), com a atribuição de executar a reforma agrária. A SUPRA
nasceu para viabilizar a reforma agrária e minimizar o acirramento da luta social no
campo. O novo órgão trouxe uma novidade: sua independência em relação ao
Ministério da Agricultura, espaço tradicionalmente ocupado pelos grandes proprietários
de terras. Ao mesmo tempo, travou-se uma acirrada disputa no Congresso no sentido da
aprovação de uma emenda constitucional que viabilizasse o pagamento das
indenizações, em caso de desapropriação por interesse social, através de título da dívida
pública.
Nesse contexto é que foi criado o Estatuto da Terra pela lei nº 4.504, de 30-11-
1964. Apesar de ter sido pensado no contexto de um governo social-reformista (o de
João Goulart), representante dos interesses da burguesia nacionalista e de parcelas
menos abastadas da pequena burguesia, a implementação do estatuto foi uma obra do
regime militar que acabava de ser instalado no país com o golpe militar de 31 de março
de 1964. Sua criação não deixará de estar intimamente ligada ao clima de insatisfação
reinante no meio rural brasileiro (caracterizada pela radicalização das lutas camponesas
em prol de maior justiça social no campo e da reforma agrária, de que as Ligas
Camponesas, lideradas por Francisco Julião, constituem um dos principais exemplos) e
ao temor da burguesia aliada ao imperialismo, agora de posse definitiva do Estado
brasileiro, da progressão da aliança operário-campesina e das parcelas radicais da
pequena burguesia rumo ao poder político.
As lutas camponesas no Brasil começaram a eclodir na década de 1950, com o

115
Direito Agrário Ambiental

surgimento de organizações e ligas camponesas, de organizações de operários agrícolas


(a exemplo dos sindicatos rurais), de legislações que refletiam os interesses da aliança
operário-camponesa (a exemplo do Estatuto da Terra), com atuação da Igreja Católica e
de organizações de inspiração marxista (a exemplo do Partido Comunista Brasileiro).
Na década de 60, o movimento em prol de maior justiça social no campo e da reforma
agrária se generaliza no meio rural e assume grandes proporções no início da década de
1960. No entanto, esse movimento foi praticamente aniquilado pelo regime militar
instalado em 1964. A criação do Estatuto da Terra e a promessa de uma reforma agrária
foram a estratégia utilizada pelos governantes para apaziguar os camponeses e
tranquilizar os grandes proprietários de terra. Afinal, os espectros da Revolução Cubana
(1959) e da implantação de reformas agrárias em vários países da América Latina
(México, Bolívia, etc.) estavam presentes e bem vivos na memória das classes
dominantes.
A ruptura institucional de 1964, apesar de frear as reivindicações dos operários
e camponeses, de alguma forma incorporou a crítica, proveniente dos mais diferentes
segmentos sociais, ao “latifúndio”. Logo após o golpe militar, o mesmo Congresso
Nacional, que havia bloqueado dezenas de projetos de reforma agrária, acabou por
aprovar uma emenda constitucional que permitia o pagamento das terras desapropriadas
com títulos da dívida pública e a suspensão da exigência de que essa indenização fosse
prévia. Foi também aprovado o Estatuto da Terra, produto mais acabado da
incorporação mencionada acima. Constituía-se, assim, o espaço legal para a viabilização
de transformações na estrutura fundiária.
Conforme o art. 1º do Estatuto da Terra, as metas estabelecidas por este
diploma são basicamente duas: a execução de uma reforma agrária e o desenvolvimento
da agricultura. No artigo 16 do Estatuto da Terra afirma-se que
a reforma agrária visa estabelecer um sistema de relações entre o homem, a
propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o
progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico
do País, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio.

A reforma agrária passava a ser vista como o conjunto de medidas que visava
promover – mediante a redistribuição da propriedade e do uso da terra - políticas
públicas (federais, estaduais e municipais) de apoio à produção, à comercialização, à
educação, à saúde e à habitação, além da integração do homem do campo no mundo dos
direitos e também no processo produtivo nacional. A reforma agrária não significa
somente a redistribuição da posse e do uso da terra. Serve para desconcentrar e

116
Direito Agrário Ambiental

democratizar a estrutura fundiária, gerar ocupação e renda, diversificar o comércio e os


serviços no meio rural, reduzir a migração campo-cidade, interiorizar os serviços
públicos básicos, democratizar as estruturas de poder e promover a cidadania e a justiça
social. Já a política agrícola é um conjunto de providências de amparo à propriedade da
terra, destinado a orientar, no interesse da economia rural, as atividades agropecuárias,
garantir o pleno emprego dessas atividades e, ao mesmo tempo, harmonizá-las com a
industrialização do país. Por isso, não se devem confundir reforma agrária e política
agrícola (ou agrária), pois esta procura assentar e desenvolver a ocupação do homem no
solo via cooperativismo, estimula a criação da empresa agrícola coletiva
(ALBUQUERQUE, 1987, p. 99-134) (PINTO FERREIRA, 1994) (VARELA, 2005).
Dessa forma, enquanto a reforma agrária promove a justiça social e o aumento
da produtividade, a política agrícola organiza o processo de produção de riquezas no
Brasil, compatibilizando a produção de recursos agrícolas com a produção de recursos
industriais, minerais e energéticos, conforme os objetivos geopolíticos do país.
No dizer de Paulo Torminn Borges (1998), a reforma agrária não pode ser o
único objetivo do Estatuto da Terra, pois ela é transitória. Permanente é a política
agrícola, na qual a reforma agrária deve estar inserida. O Estatuto da Terra passa a ser
visto como princípio e fim da reforma agrária e da política agrícola.
A aplicabilidade geral da reforma agrária se dá em todo o território nacional.
Agora, a sua aplicabilidade específica só se realiza nas zonas declaradas prioritárias
pelo Governo Federal. Cita-se o art. 43, §1º, inciso I do Estatuto da Terra:
O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária promoverá a realização de estudos
para o zoneamento do país em regiões homogêneas do ponto de vista
socioeconômico e das características da estrutura agrária, visando a definir: I
- as regiões críticas que estão exigindo reforma agrária com progressiva
eliminação dos minifúndios e dos latifúndios.

Vê-se que o objetivo da reforma agrária é a melhor distribuição da terra,


reivindicação dos camponeses, conforme o art. 1º, § 1º do Estatuto da Terra. Fixa-se a
tese de que a terra é bem de produção e não de comércio. Significa que a propriedade só
deve ser entregue pura e simplesmente ao agricultor sob condicionamentos, sendo o
principal: que se dê uso econômico e social à terra.
Em relação à política agrícola, esta deve ser permanente, objetivando alocar as
técnicas de produção modernas e aumentar a produção de riquezas, mediante uma
produção intensiva, pela qual esse aumento deve estar subordinando ao aumento
qualitativo das técnicas de produção. A política agrícola posta no Estatuto da Terra

117
Direito Agrário Ambiental

procura assentar e desenvolver a ocupação do homem no solo via cooperativismo,


estimula a criação da empresa agrícola coletiva. Cita-se o art. 14:
O Poder Público facilitará e prestigiará a criação e a expansão de associações
de pessoas físicas e jurídicas que tenham por finalidade o racional
desenvolvimento extrativo agrícola, pecuário ou agroindustrial, e promoverá
a ampliação do sistema cooperativo, bem como de outras modalidades
associativas e societárias que objetivem a democratização do capital.

O objetivo da política agrícola elencado no Estatuto da Terra está ligado aos


efeitos colaterais da economia de mercado. Passa pela garantia do pleno emprego, pela
amenização do êxodo rural e pelo atrelamento da atividade agropecuária à atividade
industrial.
Coerente com a subordinação do campo ao esforço de industrialização
nacional, o novo espírito da reforma agrária, o Estatuto da Terra tipifica os imóveis
rurais em: "minifúndios", imóveis com área inferior a um módulo rural (a área do
módulo rural varia conforme a região e o tipo de exploração econômica) e, portanto,
incapazes por definição de prover a subsistência do produtor e de sua família;
"latifúndios por exploração", imóveis com área entre um e seiscentos módulos,
caracterizados pela subexploração; "latifúndios por extensão", imóveis com área
superior a seiscentos módulos, independentemente do tipo e das características de
produção neles desenvolvida; e "empresas", imóveis com área entre um e seiscentos
módulos, caracterizados por certo nível de aproveitamento do solo, racionalidade na
exploração, cumprimento da legislação trabalhista e preservação dos recursos naturais
(BORGES, 1998).
A meta principal do Estatuto da Terra, a reforma agrária, é a extinção de
“minifúndios” e de “latifúndios”. Entretanto, o caminho trilhado pelo Estatuto da Terra
foi o de evitar a desapropriação (somente em casos de tensão social), a tributação
progressiva e as medidas de apoio técnico e econômico à produção. Preferiu-se
consolidar as forças produtivas do capitalismo no campo. Converteu-se o “latifúndio”
em “empresa”, o agronegócio.
Por fim, a lógica acima descrita impõe uma crítica ao fundamento do Estatuto
da Terra, pela qual a função social da propriedade rural, o emprego da riqueza
produzida para uma finalidade social e econômica de bem-estar ao indivíduo e à
sociedade, deve ser encarada como um instrumento para proteger e reproduzir as
relações capitalistas de produção no campo.

118
Direito Agrário Ambiental

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O período militar, embora tenha durado apenas vinte anos, gerou enormes
modificações na sociedade brasileira, seja do ponto de vista político, social ou
econômico.
Segundo Oscar Oszlak e Guillermo O’Donnell (OSZLAK; O’DONNELL), o
espaço legal que se abria na América Latina para a realização de transformações na
estrutura fundiária sempre esteve sob estrito controle de um Estado autoritário, repressor
de movimentos sociais, perseguidor de lideranças e interventor em sindicatos. Um
Estado a serviço do capital, que propiciou a privatização de espaços públicos. Sendo
assim, o Estatuto da Terra pouco significou em termos de medidas práticas em direção
às demandas por terra dos camponeses. No processo de disputa política no interior das
frações da burguesia aliada ao imperialismo, classe que detinha o poder político do
Estado, os interesses vinculados à propriedade fundiária prevaleceram e, mais uma vez,
ela permaneceu intocada.
Em vez de dividir a propriedade, porém, o capitalismo, impulsionado pelo
regime militar brasileiro (1964-1984), promoveu a modernização do latifúndio, por
meio do crédito rural fortemente subsidiado e abundante, viabilizou a transformação
deste em “empresa”. Entretanto, não se verificou nenhum incentivo ou fiscalização para
que fossem obedecidos os princípios definidores da empresa rural: obtenção de índices
de produtividade regionalmente definidos, observação da legislação trabalhista,
preservação do meio ambiente.
O dinheiro farto e barato, aliado ao estímulo à cultura da soja (sobretudo na
Região Centro-Oeste) - para gerar grandes excedentes exportáveis -, propiciou a
incorporação das pequenas propriedades rurais pelas médias e grandes: a soja exigia
maiores propriedades e o crédito facilitava a aquisição de terra.
Toda a economia brasileira cresceu com vigor, houve a consolidação do
desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo no campo, o país se urbanizou e
se industrializou, relativamente, em alta velocidade, sem ter que democratizar a posse
da terra, nem precisar do mercado interno rural, o que só estimulou ainda mais o êxodo
rural. O projeto de reforma agrária foi declarado supérfluo, e a herança da concentração
da terra e da renda chegou a nível nunca antes visto na história do País, a ponto de quase
extinguir o campesinato enquanto classe social.
A consolidação das técnicas de produção capitalistas no campo brasileiro a
partir dos anos 70, a inserção da produção de recursos agropecuários no complexo

119
Direito Agrário Ambiental

industrial-exportador e o quase aniquilamento do campesinato enquanto classe social


vão modificar de tal forma a realidade do campo brasileiro, que se torna obsoleta a ideia
de uma reforma agrária ampla e geral. Diga-se que essa nova realidade não impediu a
concentração da posse e da propriedade no campo (pelo contrário, vai aumentá-la), mas,
paradoxalmente, possibilitou que a agricultura respondesse às necessidades da
industrialização, o que gerou, simultaneamente: a) o aumento da oferta de matérias-
primas e alimentos para o mercado interno, sem comprometer o setor exportador que
gerava divisas para o processo de industrialização, via substituição das importações; b)
a inserção da agricultura no processo internacional de acumulação de capital do
capitalismo, não apenas como compradora de bens de consumo industriais, mas também
como industrializadora de si própria, à medida que esta passou a demandar quantidades
crescentes de insumos e máquinas gerados pelo próprio setor industrial.
Ao que parece, a penetração capitalista no campo, a partir da década de 60, se
deu através do que Lênin (1988) chamou de "modelo prussiano", caracterizado pela
transição da grande propriedade improdutiva para a grande empresa capitalista e pela
exclusão da maioria das pequenas e médias propriedades. O cerne desse modelo é a
modernização capitalista, que tem como pilar a modernização da grande propriedade via
manutenção de uma estrutura fundiária concentrada, exigindo-se qualidade e
produtividade, o que envolve basicamente a adubação química e a mecanização. No
perfil da agricultura brasileira, o objetivo era atender ao mercado externo e às demandas
da indústria nacional.
A consequência disso, do ponto de vista institucional, é que, em 1965,
coerentemente com o espírito do Estatuto da Terra, passou-se a tratar a questão agrária
separadamente da questão agrícola, com a constituição de dois órgãos estatais com
objetivos distintos: o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e o Instituto
Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA). Esses órgãos, mais tarde, em 1972,
serão fundidos, formando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA). Instituía-se, assim, uma vertente que levaria à recorrente tentativa de antepor
à crítica da estrutura fundiária uma saída através da ocupação dos “espaços vazios”, as
terras públicas das fronteiras. Na proposta, a reforma agrária tornava-se “colonização
agrária” (PINTO FERREIRA, 1994) (ALVES, 1995) (BORGES, 1998) (BRAGA,
1991).
Quatro décadas depois, a política agrária avançou bastante, mas para a garantia
do desenvolvimento capitalista na agricultura. E isso mesmo com a Lei Agrária (nº

120
Direito Agrário Ambiental

8.629/93), a Lei Complementar que trata da ação de desapropriação (nº 76/93) e a


Constituição de 1988, esta última no seu art. 5º, incisos XXII e XXIII, garantindo o
direito de propriedade condicionado ao atendimento da sua função social.
A consecução dos objetivos do Estatuto aprofundou o hiato entre a
aplicabilidade e a concretização normativa jurídica do ponto de vista da democratização
do acesso à terra. Só poderia redundar em fracasso. Nos primeiros 15 anos de vigência
do Estatuto da Terra (1964-1979), o capítulo relativo à reforma agrária foi abandonado,
enquanto o que tratava da política agrícola foi executado em larga escala.
É esse o contexto social, econômico, político e histórico em que o ordenamento
jurídico brasileiro vai estar inserido na década de 80. A questão agrária terá novo
tratamento. O quadro de correlação de forças da época vai contaminar a Constituição de
1988. Por um lado, vai apresentar diversos dispositivos que atendem aos interesses do
campesinato no plano agrário (a função social da propriedade como princípio), mas
adotará outros que, na prática, inviabilizam a concretização da reforma agrária e
traduzem os interesses da burguesia.
Segundo Pinto Ferreira (1994), os institutos básicos do direito agrário serão
preservados, regulando-se o direito de propriedade e a posse da terra agricultável. A
Constituição procurou compatibilizar a propriedade com a sua função social, permitiu à
União a desapropriação por interesse social do imóvel rural que não esteja cumprindo
essa função social. Tudo mediante indenização em títulos da dívida agrária, exceto as
benfeitorias úteis e necessárias, estas indenizáveis em dinheiro. A constitucionalização
da função social da propriedade repercutiu na legislação infraconstitucional, como
exemplifica a Lei nº 8629/93. Essa Lei veio regulamentar os arts. 184, 185 e 186 da
Constituição Federal que tratam da reforma agrária.
Vale salientar que, conforme o art. 26, da Lei 8629/93, a pequena e a média
propriedade rural (desde que o seu proprietário não possua outra) e a propriedade
produtiva são insuscetíveis de desapropriação. Para todos os efeitos, considera-se
pequena propriedade o imóvel rural de área compreendida entre 1 e 4 módulos fiscais.
Já a média propriedade é aquela de área entre 4 e 15 módulos fiscais. Quanto à
propriedade produtiva, esta é aquela explorada econômica e racionalmente, com graus
de utilidade da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão
federal competente. Tudo conforme o art. 6º da Lei nº 8629/93.
A Constituição impôs os seguintes requisitos para o cumprimento da função
social da propriedade: 1) aproveitamento racional e adequado do solo; 2) utilização

121
Direito Agrário Ambiental

adequada dos recursos naturais disponíveis e proteção ambiental; 3) observância do


direito do trabalho; 4) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e
trabalhadores.
A política agrária também deve levar em conta: 1) os instrumentos de crédito e
fiscais; 2) os preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de
comercialização; 3) o incentivo à pesquisa e à tecnologia; 4) a assistência técnica e a
extensão rural; 5) o seguro agrícola; 6) o cooperativismo; 7) a eletrificação rural e a
irrigação; 8) a habitação para o trabalhador rural.
Ressalte-se que a Lei nº 8629/93 e a Constituição de 1988 impedem a aquisição
de imóveis públicos por usucapião.
O que defende é que o ordenamento jurídico, constitucional e
infraconstitucional, só trata explicitamente da exigência de uma função social a fim de
legitimar o direito de propriedade e as relações capitalistas de produção. A função social
da propriedade, obviamente, se presta a outros objetivos, fundamentalmente, tanto para
o enfrentamento do problema de extensas áreas urbanas, sem uso algum, e com
finalidade apenas de formar estoques de terrenos com fins especulativos, como para
amenizar o acirramento da tensão social no campo, pelas características que
conformaram a propriedade rural no Brasil.
De qualquer forma, a sociedade edificou, indiscutivelmente, um novo ponto de
partida para o tratamento da dogmática jurídica no que concerne à edificação de uma
nova concepção de propriedade, dita “atrelada a uma função social”. Alerta-se sobre os
limites de tal concepção nas condições do capitalismo. Nesse sentido, ver Friedrich
Engels (2013) na sua obra “ Para questão da habitação”.
Existe no arsenal jurídico pátrio todo um conjunto de regras – materiais e
processuais – para a garantia e a defesa da propriedade privada, o que mudou após 1988
– como resultado das lutas sociais que se materializaram em instrumentos como o
Estatuto da terra, as leis sobre usucapião urbano e rural e a luta por reformas
administrativas, como o próprio INCRA - foi a institucionalização de uma antiga
reivindicação social no sentido de regulação e solução legal para a posse e para a
propriedade, o que torna inafastável o reconhecimento do caráter claramente
constitucional da propriedade e sua submissão incondicional a uma função social.
Essa é a base para a interpretação e a aplicação de tal comando constitucional.
Trata-se de definir qual prioridade hermenêutica deve prevalecer e também como
harmonizar (se é possível) o paradoxo economia de mercado versus função social da

122
Direito Agrário Ambiental

propriedade.

REFERÊNCIAS
ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA URSS. Manual de economia política. Rio de
Janeiro: Vitória, 1961.
ALBUQUERQUE, Marcos C. Cavalcanti. Estrutura fundiária e reforma agrária no
Brasil. Revista de Economia Política, s/l, n. 3, p. 99-134, jul./set. 1987.
ALVES, Fábio. Direito agrário: política fundiária no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey,
1995.
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 11. ed. São Paulo:
Saraiva, 1998.
BRAGA, José. Introdução ao direito agrário. Belém do Pará: CEJUP, 1991.
DIAS, Carlos Malheiro (Org.). História da colonização portuguesa no Brasil. Porto:
Litografia Nacional, 1924, v. 3.
ENGELS, Friedrich. Para a questão da habitação. Disponível em: <
http://www.marxists.org/portugues/marx/1873/habita/index.htm>. Acesso em 25 nov.
2013.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das
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GISCHKOW, Emílio Alberto Maya. Princípios de direito agrário: desapropriação e
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LÊNIN, Vladimir Ilitch. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia: o processo de
formação do mercado interno para a grande indústria. São Paulo: Nova Cultural, 1988,
vol. I e II.
LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras
devolutas. 4.ed. Brasília: ESAF, 1988.
MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômico-filosóficos de 1857-1858: esboços
da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: EDUFRJ, 2001.
PEREIRA, Luciene Maria Pires; MENEZES, Sezinando Luiz. A legislação de
sesmarias no processo de colonização do Brasil. Disponível em: <
http://www.pph.uem.br/iiisih/pdf/163.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2009.
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008.
PINTO FERREIRA. Curso de direito agrário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

123
Direito Agrário Ambiental

OSZLAK, Oscar; O’DONNELL, Guillermo. Estado y políticas estatales en América


Latina: hacia una estrategia de investigación. Disponível em:
<http://politicayplanificacionsocial.sociales.uba.ar/files/2012/04/04.05.-Dossier-Estado-
y-politicas-estatales-en-America-Latina1.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2014.
SAES, Décio. Formação do Estado burguês no Brasil: 1888-1891. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985.
SOUZA, João Bosco Medeiros de. Direito agrário: lições básicas. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1987.
VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história
do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro. Forense,
1998.

124
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO VI - PAGAMENTOS POR SERVIÇOS AMBIENTAIS DE RECURSOS


HÍDRICOS NA ZONA RURAL, O CASO BRASILEIRO

Débora dos Santos Ferreira Pedrosa1


Soraya Giovanetti El-Deir2

INTRODUÇÃO
Desde os primórdios das atividades humanas, o meio ambiente vem sendo
degradado, contudo esse processo intensificou-se com a revolução industrial, e até hoje vem
se agravando, devido ao aumento do consumo, que tem gerado grande devastação e poluição
dos recursos ambientais. A história da economia brasileira é marcada por um processo de
ocupação e exploração de recursos naturais, apoiado no extrativismo e na agricultura. Diante
desse quadro, os desmatamentos e as queimadas posicionaram o Brasil como o 4º país em
emissão de gás de efeito estufa (SHIKI, 2011).
A invisibilidade de muitos serviços naturais para a economia resulta em uma
negligência geral do capital natural e leva a decisões que degradam os ecossistemas e a
biodiversidade. A destruição da natureza alcançou níveis que podem ser vistos como sérios
custos sociais e econômicos (TEEB, 2010).
Cabe trazer à tona a importância de todos os ecossistemas para a continuidade da
vida na terra, principalmente para o ser humano que se beneficia direta ou indiretamente dos
serviços prestados por estes. Essas capacidades são classificadas como funções dos
ecossistemas. Uma vez conhecido o potencial de serviços ambientais de um ecossistema,
definidas suas contribuições para a sociedade, identificadas as atividades primordiais para o
funcionamento geral do bioma, essas funções podem ser definidas como serviços
ecossistêmicos (DE GROOT et al., 2002).
Para analisar monetariamente o valor desses serviços, existem vários instrumentos
que tentam e, até conseguem, valorar alguns recursos obtidos da natureza. Dentre estes está o
Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). Atualmente, o PSA, no Brasil, está
regulamentado por Leis e Projetos de Leis.
O presente artigo tem por fim suscitar a discussão a respeito do PSA, focando os
recursos hídricos, analisando dados sobre a efetivação desse direito no Brasil. Dessa forma,

1
Programa de Pós-graduação em Engenharia Ambiental da UFRPE
2
Programa de Pós-graduação em Engenharia Ambiental da UFRPE

125
Direito Agrário Ambiental

um estudo comparativo entre os PSAs pode elucidar pontos a respeito da gestão e efetivação
desse direito. Portanto, pesquisar e encontrar alternativas que contemplem a conservação dos
recursos naturais no âmbito dos PSAs no Brasil referentes à água é relevante para a efetivação
sustentável e a estruturação de mecanismos que elevem a segurança hídrica no país.

1. SERVIÇOS AMBIENTAIS
Todos os biomas e ecossistemas disponibilizam inúmeros benefícios à sociedade.
Entretanto, também enfrentam sérios impactos, ameaçando o potencial dos diferentes
ecossistemas, para produzir serviços ambientais (SHIKI, 2011). Existem várias definições
para esse tipo de serviço, e a Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento
(OCDE, 2005) a define como:
Aquele que consiste em atividades que produzem bens e serviços para medir, evitar,
limitar, minimizar ou reparar danos ambientais à água, ao ar e ao solo, como
também problemas relacionados a resíduos, barulhos e ecossistemas. Estes incluem
tecnologias limpas, produtos e serviços que reduzem o risco ambiental e minimizam
a poluição e o uso de recursos naturais.

Para Heal (2000), os serviços ambientais são responsáveis pela infraestrutura necessária
e para o estabelecimento das sociedades humanas. Segundo o Projeto de Lei nº 792/07
(BRASIL, 2007), são as funções inestimáveis e imprescindíveis desempenhadas pelos biomas
e ecossistemas para a manutenção da qualidade ambiental necessária para dar suporte à vida
na Terra. Já para o Instituto Socioambiental Brasil, (ISA, 2007) serviços ambientais são:
Aqueles que a natureza presta aos seres vivos, ao absorver, filtrar e promover a
qualidade da água que bebemos e usamos; ao reciclar nutrientes e assegurar a
estrutura dos solos onde plantamos; ao manter a estabilidade do clima, amenizando
desastres como enchentes, secas e tempestades; ao garantir e incrementar nossa
produção agropecuária e industrial, seja ao providenciar a necessária biodiversidade
e diversidade genética para melhoria das culturas ou para fármacos, cosméticos e
novos materiais, seja complementando o processo que a tecnologia humana não
domina nem substitui: a polinização, a fotossíntese e a decomposição de resíduos.

Na Avaliação Ecossistêmica do Milênio (MMA, 2005), há diferentes tipos de serviços


ecossistêmicos que são divididos em categorias. Estes são discriminados pelo MMA (2012)
como serviços de provisão, aqueles relacionados com a capacidade dos ecossistemas para
produzir bens que se configurem como alimentos (frutos, raízes, pescado, caça, mel), matéria-
prima para a geração de energia (lenha, carvão, resíduos, óleos), fibras (madeiras, cordas,
têxteis), fitofármacos, recursos genéticos e bioquímicos, plantas ornamentais e água. Já os
serviços reguladores das funções ambientais são os benefícios obtidos a partir de processos
naturais que regulam as condições do meio que sustentam a vida, como purificação do ar,
regulação do clima, purificação e regulação dos ciclos das águas, controle de enchentes e de

126
Direito Agrário Ambiental

erosão, tratamento de resíduos, desintoxicação e controle de pragas e doenças. Nesse sentido,


o recurso natural água dá suporte à manutenção da vida nas suas diversas formas, sendo a sua
conservação passível de pagamento por serviços ambientais.

2. AS ÁGUAS COMO RECURSO NATURAL


Dentre tantos recursos naturais indispensáveis para todos os seres vivos está a água.
Esta é o recurso mais abundante na terra, e é distribuída nos mares, nos rios, nos lagos, nas
geleiras e na atmosfera na forma de vapor. Trata-se de um recurso de uso direto e
indispensável para a vida de todos os serres vivos e, por isso, utilizada para os mais diversos
fins, como: consumo humano, dessedentação de animais, lazer, transporte, produção de todos
os produtos duráveis ou não, etc.
A dificuldade da gestão das águas se depara com o problema da ocorrência da
degradação ambiental cíclica. As causas e consequências da má gestão das águas estão
interligadas e se potencializam com o passar do tempo e a perda dos estoques (BRANT E
FRREIRA, 2010).
De acordo com o MMA (2012),
A velocidade da capacidade de um determinado recurso se recompor e se regenerar
para retornar às suas condições originais é inversamente proporcional à velocidade
com a qual os recursos são consumidos. Considerando o aumento populacional, o
maior consumo de recursos e a degradação dos recursos naturais, está cada vez mais
difícil conciliar a demanda e a oferta por recursos em quantidade e qualidade. Nesse
contexto, torna--se extremamente importante pensar e implementar estratégias de
longo prazo de conservação dos recursos hídricos.

Todas essas informações, atreladas ao mau uso da água, traz à tona a preocupação
com a qualidade desse recurso insubstituível, pois a quantidade disponível para consumo é
reduzida, uma vez que tais preocupações não fazem parte da vida de todas as pessoas.

3. LEGISLAÇÕES RELATIVAS À GESTÃO DAS ÁGUAS


Segundo Zapparoli (2011), o marco inicial para a regulamentação do uso das águas
foi o Código de Águas, por meio do Decreto 24.643/34, também chamado de Decreto das
águas (BRASIL,1934), o qual regulamenta tanto o uso das águas como as atividades inseridas
em todos os recursos hídricos. Posteriormente, em 1997, foi publicada a Lei 9.433/974, que
instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), criando o Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos. A lei contempla a necessidade de assegurar à atual e às
futuras gerações que sua disponibilidade esteja em padrões de qualidade adequados aos
respectivos usos, além de regulamentar o inciso XIX do Art. 21 da Constituição Federal
127
Direito Agrário Ambiental

(BRASIL, 1988), segundo o qual a água é um bem de domínio público; um recurso natural
limitado, dotado de valor econômico.
É importante citar a Lei Federal nº 9.984/2000, que dispõe sobre a criação da
Agência Nacional de Água (ANA), instituição federal de implementação da Política Nacional
de Recursos Hídricos e de coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos. Segundo Zapparoli (2011):
A legislação dos recursos hídricos no Brasil, fortemente inspirada no modelo
francês, prevê a descentralização da gestão em Comitês e Agências de Bacia
Hidrográfica. Os comitês, integrados por representantes do poder público, usuários e
sociedade civil, funcionam como “parlamento da bacia”. Esse é o espaço de
mediação dos conflitos de uso e das negociações sobre o que fazer, quanto custa
fazer e como fazer a recuperação ambiental da bacia. As Medidas negociadas são
integradas no Plano de bacias. As agências de bacias são entidades executivas
vinculadas a um ou mais comitês, encarregadas de implantar o plano de bacia, apoiar
a fiscalização, o monitoramento, a outorga e a cobrança dos usos da água em sua
área de abrangência geográfica.

Existem hoje no Brasil diferentes cobranças que, direta ou indiretamente,


relacionam-se com recursos hídricos. A cobrança por abastecimento de água e tratamento de
esgoto são exemplos. Já a outorga de uso de recursos hídricos e a cobrança pelo uso da água
nas bacias hidrográficas são instrumentos autorizativos de uso, havendo uma compensação
financeira pelo uso de recursos hídricos. (ALMEIDA, 2012, apud MMA, 2012).

4. A VALORAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS


Considera-se que a valoração ambiental é uma corrente da economia ambiental que
visa auxiliar no processo de integração das questões ambientais no sistema econômico
(ANDRIUCCI & NETO, 2006). A primeira estimativa do valor econômico da biosfera como
um todo foi elaborada em meados dos anos de 1990. A cada ano, bens e serviços ambientais,
direcionados à humanidade, atingem entre 16 a 54 trilhões de dólares (em média 33 trilhões),
a preços de 1994 (COSTANZA et al., 1997). Segundo (MMA, 2012):
Nesta valoração houve revisão de um número de valorações dos serviços ambientais
e uma estimativa do valor total dos ecossistemas, baseada em cálculos adicionais
próprios, captando valores de uso direto; de uso indireto; valores de opção e valores
de existência, entre outros. O valor era quase duas vezes o Produto Interno Bruto
(PIB) global da época do estudo, de US$ 18 trilhões.

Para Seroa da Motta, (1998), sem a exclusão, preços não se formam e não atuam para
racionar o uso ou gerar receitas para a conservação dos serviços, podendo resultar em sua
degradação ou exaustão. Contudo, excluir alguém do consumo dos serviços ambientais é
tecnicamente difícil, pois impedir que as pessoas se beneficiem do ar, da água ou da beleza
cênica é impossível. (MMA, 2012).

128
Direito Agrário Ambiental

Ter a ideia de quanto vale o ambiente natural e incluir esses valores na análise
econômica é, pelo menos, uma tentativa de corrigir as tendências negativas do livre mercado
(MATTOS, 2005). De uma maneira geral, os métodos de valoração econômica ambiental são
utilizados para estimar os valores que as pessoas atribuem aos recursos ambientais, com base
em suas preferências individuais. A compreensão desse ponto é fundamental para se perceber
o que os economistas entendem por “valorar o meio ambiente” (NOGUEIRA et al., 2000).
Dessa forma, existe uma tentativa de internalizar os custos ambientais e precificar os serviços
realizados pelos ecossistemas, fazendo com que a lógica do capitalismo tradicional,
mercantilista, possa gerir esses recursos como bens comerciais.

5. O PAGAMENTO POR SERVIÇOS AMBIENTAIS VINCULADOS À ÁGUA


O pagamento por serviços ambientais é um instrumento econômico relevante para a
estruturação de uma relação mais harmônica entre as demandas antrópicas e a conservação da
natureza (BRANT & FERREIRA, 2010). O mecanismo de PSA pode ser um instrumento
auxiliar e eficaz de gestão ambiental e inclusão social quando tratado como instrumento de
política de Estado. Para Shiki (2011), os PSAs podem gerar recursos financeiros ou não,
variando de acordo com a lei que o instituiu. Poderão receber pelos serviços ambientais
prestados as entidades ou os proprietários particulares.
Para Mattos (2005),
os serviços ambientais têm funções econômicas e valores econômicos positivos; e,
tratando-os como preço zero, há um risco muito grande de exauri-los, ou manejá-los
insustentavelmente, daí a importância de valorar corretamente o ambiente natural e
integrar esses valores corretos às políticas econômicas, assegurando, assim, uma
melhor alocação de recursos.

No Brasil, o PSA vem sendo discutido com mais atenção desde o lançamento do
programa Proambiente, em 2000, que consistiu em uma experiência inicial de PSA no país,
mas demonstrou vários desafios a serem superados (WUNDER et al., 2009). Para incentivar a
continuidade e disponibilidade desses serviços, criou-se o Pagamento pelo Serviço Ambiental
- o Projeto de Lei nº 792/07 (BRASIL, 2007), afirma que o pagamento ou a compensação por
serviços ambientais tem como principal objetivo transferir recursos para aqueles que ajudam a
conservar ou produzir tais serviços. Cita, como recursos naturais a serem preservados, o solo,
os recursos hídricos, a biodiversidade, a fauna e a flora, os recursos florestais, os oceanos, os
recursos pesqueiros, a atmosfera e as fontes de energia.
Segundo TEEB (2010), trata-se de um instrumento econômico que incentiva o
proprietário a considerar o Serviço Ambiental nas suas decisões, quando do planejamento do
129
Direito Agrário Ambiental

uso e da ocupação da terra, dos recursos hídricos e da vegetação. Assim, a conservação do


meio ambiente passa a ser uma opção econômica. Ou uma transação voluntária, na qual um
serviço ambiental bem definido é comprado por um comprador de um provedor, sob a
condição de que o provedor garanta a provisão desse serviço, como relata. (Wunder et al.
2009).
Observou-se que, no Brasil, a valoração ambiental, bem como os Pagamentos por
Serviços Ambientais, tem dado passos, pois em vários estados tem se implementado o PSA.
Alguns desses estados, principalmente do sul e do sudeste, que instituem a Lei de PSA,
demonstram se importar com a questão ambiental, utilizando o PSA como instrumento para
preservação.
Existem hoje, no Brasil, diferentes cobranças que, direta ou indiretamente, se
relacionam com recursos hídricos: a cobrança por abastecimento de água e tratamento de
esgoto; a outorga de uso de recursos hídricos; a cobrança pelo uso da água nas Bacias
Hidrográficas e a compensação financeira pelo uso de recursos hídricos (Almeida, 2012, Apud
MMA, 2012). Ao observar as leis, os projetos de lei e os decretos em escala federal, notou-se
(Figura 3) que há apenas 4 (quatro) projetos de lei direcionados ao PSA e apenas 2 (duas) leis
instituídas em escala federal.
No Brasil, experiência com o PSA junto a produtores rurais para proteger os
mananciais de abastecimento, em parceria com a ANA, começou a ser implantado em 2007,
com o projeto Conservador de Águas (ADEODATO, 2010 apud ZAPPAROLI, 2011). Foleto
e Leite (2011) complementam afirmando que:
O município de Extrema (MG) foi pioneiro na implantação de um programa de PSA
ligado à conservação dos recursos hídricos com o programa Conservador das Águas.
Esse programa conta com o apoio do poder público municipal e da Agência
Nacional de Águas (ANA), do Instituto Estadual de Florestas (IEF) de Minas Gerais,
da ONG The Nature Conservancy (TNC), da ONG SOS Mata Atlântica e dos
Comitês PCJ (Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí).

Zaparoli (2011) relata que, inicialmente, foram beneficiadas 40 propriedades,


envolvendo 1,7 mil hectares na sub-bacia das posses, onde os produtores recebem R$ 169 por
hectare ao ano.
No Brasil, os projetos de PSA voltados ao manejo de bacias hidrográficas estão
sendo implantados em locais distintos e com variações nos arranjos institucionais e
metodológicos; a dificuldade de acesso a informações sobre alguns aspectos dos programas,
principalmente as informações relacionadas ao monitoramento dos recursos hídricos e à

130
Direito Agrário Ambiental

gestão dos recursos financeiros, foi uma realidade (BERNARDES, 2010). De acordo com
MMA (2012):
No caso da água, os esquemas de PSA remuneram produtores rurais pela proteção e
restauração de ecossistemas naturais, notadamente florestais, em áreas estratégicas
para a produção de água (nascentes, matas ciliares, áreas de captação). Isso ocorre
quando os usuários de água reconhecem a importância dessas atividades para
garantir o provimento do serviço ambiental de proteção da quantidade e qualidade
dos recursos hídricos (externalidades ambientais positivas geradas pelos produtores
rurais quando eles executam ações de restauração e conservação florestal). Dessa
forma, os usuários geram um incentivo econômico para os produtores rurais,
estimulando a execução de atividades que garantem a provisão dos serviços
ambientais em questão.

A Bolsa Verde, por exemplo, configura-se num projeto nacional focado na


manutenção da cobertura vegetal da propriedade onde a família beneficiária está inserida e no
uso sustentável dos seus recursos naturais, sendo a fonte pagadora a União. Esses
beneficiários são famílias residentes na Floresta Nacional (Flona), na Reserva Extrativista
(Resex), Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), em assentamento florestal, em
projetos de desenvolvimento sustentável ou assentamentos extrativistas instituídos pelo
Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O valor pago a cada família é de R$
300,00 a cada três meses. Entretanto, na esfera nacional, tal instrumento ainda não está
completamente implantado.

6. PROGRAMAS E PSA NOS ESTADOS BRASILEIROS


Observando-se a esfera estadual brasileira, existem estados com leis, decretos, leis
complementares e projetos de lei focados no pagamento por serviços ambientais de forma
genérica, abrangendo outros temas como carbono equivalente e biodiversidade (Figura 4).
Em realção ao PSA água, observa-se que há leis, decretos e projetos de lei referentes
aos projetos em implementação, em desenvolvimento e em articulação nos estados brasileiros.
O estado que apresenta maior número de instrumentos focados no PSA da água é o Rio de
Janiero, com 3 (três) leis, seguido de São Paulo. Já em relação a projetos, destaca-se o estado
de Minas Gerais.
Um levantamento realizado pela FGV (2012) detectou vários projetos e programas
para PSA; além do Bolsa verde, cita outros, como: o Programa de Pagamento por Serviços
Ambientais (Espírito Santo); os serviços ambientais de conservação e melhoria dos solos e
dos recursos hídricos; conservação e incremento da biodiversidade; e mudanças climáticas.
As fontes pagadoras são: o Fundágua, doações de pessoas físicas e/ou jurídicas de direito
público e/ou privado destinadas a esse fim; agentes financiadores nacionais e internacionais,

131
Direito Agrário Ambiental

entre outras. Quaisquer arrendatários ou detentores do domínio legal de propriedade rural, a


qualquer título, e/ou outros facilitadores na promoção de serviços ambientais têm a
possibilidade de receber pelo serviço.
A bolsa verde, em Minas Gerais, visa promover a identificação, a recuperação, a
preservação e a conservação de áreas necessárias à proteção das formações ciliares e à recarga
dos aquíferos, bem como à proteção da biodiversidade e dos ecossistemas especialmente
sensíveis. As fontes pagadoras são: Fundo de Recuperação, Proteção e Desenvolvimento
Sustentável das Bacias Hidrográficas e dotações de recursos de outras origens. O projeto dá
prioridade a agricultores familiares; agricultores com propriedade ou posse de até quatro
módulos fiscais; e produtores localizados em Unidades de Conservação de categorias de
manejo sujeitas à desapropriação e em situação de pendência na regularização fundiária.
Poderão também ser beneficiados os proprietários de áreas urbanas que preservem áreas
necessárias à proteção de ecossistemas.
Já o Programa Bioclima, do Paraná, exige a conservação da biodiversidade, a
conservação de UCs dos grupos de proteção integral e uso sustentável, a recuperação de
florestas e outras formas de vegetação nativa, etc. As fontes de recursos são o Fundo Estadual
do Meio Ambiente (FEMA) e o Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FERH/PR). São
beneficiários proprietários e posseiros de imóveis que possuam áreas naturais preservadas que
prestem serviços à conservação da biodiversidade e dos recursos hídricos.
O Programa Estadual de Conservação e Revitalização de Recursos Hídricos
(Prohidro) exige que haja a conservação e a recuperação da qualidade e da disponibilidade das
águas; a conservação e a recuperação da biodiversidade; a conservação e a recuperação das
faixas marginais de proteção; e o sequestro de carbono originado de reflorestamento das
matas ciliares, nascentes e olhos d'água para fins de minimização dos efeitos das mudanças
climáticas globais. São previstos recursos provenientes do Fundo Estadual de Recursos
Hídricos (FUNDRHI72); de doações e transferências de pessoas físicas ou instituições,
nacionais ou internacionais, públicas ou privadas; remunerações oriundas de projetos de
MDL; recursos provenientes do Fundo Estadual de Conservação Ambiental; e quaisquer
outras receitas, eventuais ou permanentes, vinculadas aos objetivos do PRO-PSA.
Possuidores, a qualquer título, de área rural situada no estado do Rio de Janeiro, que
favoreçam a conservação, a manutenção, a ampliação ou a restauração de benefícios
propiciados aos ecossistemas, estão aptos a se beneficiar da preservação dos serviços.

132
Direito Agrário Ambiental

O Programa Estadual de Pagamento por Serviços Ambientais do estado de Santa


Catarina abrange a preservação, a conservação, a manutenção, a proteção, o estabelecimento,
a recuperação e a melhoria dos ecossistemas que geram serviços ambientais. As fontes dos
recursos advêm do Fundo Estadual de Pagamento por Serviços Ambientais (Fepsa), além de
recursos originados de dotações consignadas na Lei Orçamentária Anual do Estado e de seus
critérios adicionais; do mínimo de 30% da Taxa de Fiscalização Ambiental do estado de Santa
Catarina e de recursos decorrentes de acordos, contratos, convênios ou outros instrumentos
congêneres celebrados com órgãos e entidades da administração pública federal, estadual ou
municipal. Cada subprograma prevê beneficiários diferentes, incluindo entre eles proprietários
rurais.
Projetos de Pagamento por Serviços Ambientais previstos no Programa de
Remanescentes Florestais em São Paulo incluem vários tipos de serviços ambientais, dentre
eles: a recuperação de matas ciliares e a implantação de vegetação nativa para a proteção de
nascentes. Os recursos do programa são oriundos do Fundo Estadual de Prevenção e Controle
da Poluição (Fecop), de transferências de outros fundos estaduais, da União, dos estados e dos
municípios; de cooperação internacional; do retorno de operações de crédito; de rendas
provenientes da aplicação de seus recursos; de doações, multas impostas a infratores da
legislação ambiental. Podem se beneficiar os proprietários rurais conservacionistas.
A Bolsa Floresta, em Pernambuco, foca o uso sustentável e a conservação dos
recursos naturais. Tem como fonte pagadora o Fundo Estadual de Mudanças Climáticas,
Conservação Ambiental e desenvolvimento, com recursos governamentais. Podem se
beneficiar de tal atividade residentes em Unidades de conservação estaduais que preencham
os requisitos de elegibilidade do programa. As categorias fundiárias elegíveis são as próprias
Unidades de Conservação. A remuneração depende do tipo de bolsa floresta concedida (renda
social, associação ou familiar). A bolsa floresta familiar concede um benefício de R$600,00
por família, por ano.
O Sistema de Incentivo a Serviços Ambientais, instituído no estado do Acre, está
direcionado para os serviços ambientais de provisão, suporte, regulação e culturais, sendo
pago com: recursos do Fundo Estadual de Florestas; do Fundo Especial de Meio Ambiente;
incentivos econômicos, fiscais, administrativos e creditícios concedidos aos beneficiários e
proponentes do Sisa; e fundos públicos nacionais. Qualquer indivíduo, desde que promova
ações legítimas de preservação, conservação, recuperação e uso sustentável de recursos
naturais, adequadas e convergentes para as diretrizes de normas estaduais, pode se beneficiar.

133
Direito Agrário Ambiental

Entretanto ainda há diversos estados que não institucionalizaram tais iniciativas,


inexistindo amparo legal no executivo que viabilizem o pagamento por serviços ambientais
direta ou indiretamente vinculados à conservação e ao manejo sustentável dos recursos
hídricos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo fato de a água ser um recurso indispensável à vida e existir em grande
quantidade no Brasil, observa-se que têm-se tomado decisões de preservar e incentivar a
preservação, por meio de projetos e leis de Pagamentos por Serviços Ambientais para água, e
que muitos dos projetos incluem o agricultor, fato importante para preservação e o apoio
financeiro ao provedor do recurso.
Contudo, dada a imensidão do País e em razão do número de áreas a serem
preservadas, os instrumentos legais ainda são poucos, sendo necessária a criação de mais
políticas públicas voltadas para a preservação dos recursos hídricos, atreladas à continua
fiscalização em nascentes, mananciais, rios, etc, para que se garanta a disponibilidade de água
de qualidade para a atual e as futuras gerações.
Vale salientar também que o ideal seria que não fosse necessário pagar para
preservar, mas que aqueles que detêm o poder de manter a integridade de áreas com água
disponível, sejam grandes ou pequenas, as mantenham sem necessariamente receber por tal
serviço, por entenderem seu valor intrínseco.

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136
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO VII – POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O FORTALECIMENTO DA


AGRICULTURA FAMILIAR E OS DESAFIOS DA SUSTENTABILIDADE

Vibérica Gonçalves da Costa1


Alícia Ferreira Gonçalves2

INTRODUÇÃO
As políticas públicas visam responder a demandas apresentadas por segmentos
sociais, as quais são interpretadas por stakeholders e influenciadas por uma agenda que
se cria na sociedade civil através da pressão, da discussão e da mobilização social
(TEIXEIRA, 2002). Para Silva e Silva (2010), uma política pública se estrutura, se
organiza e se concretiza a partir de interesses sociais organizados em torno de recursos
que também são produzidos socialmente. É tanto um mecanismo de mudança social,
orientado para promover o bem-estar de segmentos sociais, principalmente os mais
destituídos, como também um mecanismo de distribuição de renda e equidade social,
visto como um mecanismo social que contém contradições (SILVA e SILVA, 2010).
Essas políticas desempenham diferentes papéis, dependendo do setor ou grupo social ao
qual se destina. “... toda política pública deve ser sistematicamente avaliada do ponto de
vista de sua relevância e adequação às necessidades sociais, além de abordar os aspectos
de eficiência, eficácia e efetividade das ações empreendidas” (BELLONI, 2000).
No que tange ao desenvolvimento da agricultura familiar brasileira, cabe
destacar o papel das políticas públicas voltadas para essa categoria produtiva, dentre
elas o Programa Nacional para o Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF,
que faz parte da Política Nacional da Agricultura Familiar com ações para promover o
desenvolvimento sustentável dos territórios rurais. O PRONAF pode ser considerado
como a primeira política pública de abrangência nacional e diferenciada em favor dos
agricultores familiares brasileiros. Em meio às políticas públicas que atuam em outras
áreas de apoio à agricultura familiar, pode-se citar a criação de diversos programas que
têm como objetivo promover ações sinérgicas àquelas desenvolvidas pela Política
Nacional da Agricultura Familiar e pelos Empreendimentos Familiares Rurais, como o
Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, o Programa Nacional de Alimentação
Escolar – PNAE, o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária - PROAGRO

1
Mestranda do PRODEMA.
2
Mestranda do PRODEMA/PPGA.

137
Direito Agrário Ambiental

Mais (SEAF – Seguro da Agricultura Familiar), o Programa de Garantia de Preço da


Agricultura Familiar - PGPAF ou Bônus de Garantia de Preços, o Programa Nacional
de Assistência Técnica e Extensão Rural - PRONATER, o Programa Nacional de
Produção e Uso de Biodiesel - PNPB, dentre outros.

1. PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS


Criado a partir do artigo 19 da Lei nº 10.696, de 02 de julho de 2003, o
Programa de Aquisição de Alimentos - PAA é uma ação do Governo Federal para
colaborar com o enfrentamento da fome e da pobreza no Brasil e, ao mesmo tempo,
fortalecer a agricultura familiar, compreendendo ações vinculadas à distribuição de
produtos agropecuários para pessoas em situação de insegurança alimentar e à formação
de estoques estratégicos (SAF, 2013a). O programa utiliza meios de comercialização
que favorecem a aquisição de produtos agropecuários produzidos por agricultores
familiares que se enquadrem no PRONAF (assentados da reforma agrária, comunidades
indígenas e demais comunidades ditas tradicionais e empreendimentos familiares
rurais), portadores da Declaração de Aptidão ao PRONAF – DAP, comprando sua
produção e garantindo-lhes uma parte de sua renda; fica dispensada a licitação para a
aquisição desses produtos, desde que os preços não ultrapassem os valores praticados
nos mercados locais, estimulando também os processos de agregação de valor à
produção. Cada agricultor tem acesso a um limite anual que pode variar de acordo com
as diretrizes do Plano Safra (2013/2014) – o limite individual passou de R$ 4,5 mil para
R$ 5,5 mil. Os produtos adquiridos são destinados para a formação de estoques
estratégicos e distribuição à população em maior vulnerabilidade social, através das
entidades da rede socioassistencial, nos restaurantes populares, nos bancos de alimentos
e nas cozinhas comunitárias, e ainda para cestas de alimentos distribuídas pelo governo
federal (SAF, 2013b). Várias instituições estão envolvidas na execução do PAA. Além
dos cinco Ministérios que compõem o Grupo Gestor (Ministério do Desenvolvimento
Agrário - MDA, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA,
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão - MPOG, Ministério da Fazenda - MF
e Ministério da Educação – MEC), o PAA conta com parcerias que envolvem estados,
municípios e a Companhia Nacional de Abastecimento - CONAB. No âmbito federal, a
execução do Programa está a cargo do Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SAF, 2013c).

138
Direito Agrário Ambiental

2. PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR – PNAE


Embora tenha sido criado em 1954 pelo MEC, o Programa Nacional de
Alimentação Escolar - PNAE só teve seu marco legal em 2009, através da Lei nº
11.947, de 16/06/2009. Com a instituição dessa lei, algumas conquistas foram atingidas,
como o reconhecimento da alimentação como um direito humano e a obrigatoriedade de
que do total dos recursos financeiros repassados pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação - FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30,0%
deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura
familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, portadores da DAP,
priorizando os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas
e as comunidades quilombolas, conforme o art. 14º: da Lei n° 11.947/2009 (SAF,
2013d), levando-se em consideração o fortalecimento da Agricultura Familiar e sua
contribuição para o desenvolvimento social e econômico local. A iniciativa contribui
para que a agricultura familiar se organize cada vez mais e qualifique suas ações
comerciais (SAF, 2013d).
O § 1º do art. 14 dessa lei diz que a aquisição desses produtos poderá ser
realizada dispensando-se o procedimento licitatório, desde que os preços sejam
compatíveis com os vigentes no mercado local, observando-se os princípios inscritos no
art. 37 da Constituição Federal, e que os alimentos atendam às exigências do controle de
qualidade. A aquisição de gêneros alimentícios será realizada, sempre que possível, no
mesmo município das escolas. Caso haja necessidade de complementar a demanda, as
escolas poderão adquiri-los entre agricultores da região, no território rural, no estado e
no país, nessa ordem de prioridade. Em 4 de julho de 2012, foi publicada a Resolução
n° 25 que altera a redação dos artigos 21 e 24 da Resolução 38, de julho de 2009. Com a
alteração, o limite de venda ao PNAE passou de R$ 9.000,00 por DAP/ano para o valor
máximo de R$ 20.000,00 por DAP/ano, sendo controlado pelo FNDE e pelo MDA
(SAF, 2013d). Destaca-se a importância da intersetorialidade por meio de políticas,
programas, ações governamentais e não governamentais para a execução do PNAE,
através de ações articuladas entre a educação, a saúde, a agricultura, a sociedade civil, a
ação social, entre outras.

139
Direito Agrário Ambiental

3. PROGRAMA DE GARANTIA DE ATIVIDADE AGROPECUÁRIA -


PROAGRO
O risco elevado e a significativa incerteza são características da atividade
agropecuária em razão de sua forte dependência de fatores climáticos (seca, chuva
excessiva, geada, granizo, etc.) e biológicos (doenças e pragas). Nesse sentido, foi
criado o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária – PROAGRO, através da Lei
5.969/1973, e regido pela Lei Agrícola 8.171/1991, ambas regulamentadas pelo Decreto
175/1991. O § 1º do art. 59 da Lei 8.171/1991 assegura ao produtor rural “a exoneração
de obrigações financeiras relativas à operação de crédito rural de custeio cuja
liquidação seja dificultada pela ocorrência de fenômenos naturais, pragas e doenças
que atinjam rebanhos e plantações”. Para ter em direito à cobertura do PROAGRO, os
empreendedores rurais pagam um adicional sobre o valor do crédito que varia de 2,0%
(PROAGRO Mais) a 3,0% (Demais empreendimentos). A adesão é automática no
crédito de custeio agrícola do PRONAF. O programa é custeado por recursos alocados
pela União e pelos provenientes da contribuição que o produtor rural paga (o
adicional/prêmio do PROAGRO), bem como pelas receitas obtidas com a aplicação do
adicional recolhido (MAPA, 2013). Em 2004 foi criado o Seguro da Agricultura
Familiar (SEAF) com ação dirigida exclusivamente aos agricultores familiares que
contratam financiamentos de custeio agrícola no âmbito do PRONAF.
O SEAF foi instituído no âmbito do PROAGRO, sendo um subprograma do
PROAGRO também conhecido como PROAGRO Mais, e atende a uma reivindicação
histórica do agricultor: produzir com segurança e com relativa garantia de renda. Assim,
o SEAF não se limita a cobrir todo o valor financiado, o seguro garante 65,0% da
receita líquida esperada pelo empreendimento financiado, limitado a 100,0% do valor
do financiamento passível de enquadramento ou a R$ 3.500,00, o que for menor, por
produtor e ano agrícola (SAF, 2013e). O agricultor não terá direito à cobertura quando o
índice médio de perda for igual ou inferior a 30% da receita bruta esperada (SAF,
2013f). Para que uma determinada cultura seja amparada com seguro do PROAGRO
MAIS, é necessário que ela seja zoneada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento - MAPA ou, em casos excepcionais, que ela possua as indicações de
instituição de assistência técnica e extensão rural oficial atestando as condições
específicas de solo e clima de cada agroecossistema. O zoneamento agrícola é uma
ferramenta para a gestão de riscos tanto para os agricultores quanto para as seguradoras,
nesse caso o Governo. Através do zoneamento, é possível indicar as melhores épocas de

140
Direito Agrário Ambiental

plantio para as culturas, minimizando os riscos de perdas por eventos climáticos. Por
meio do zoneamento agrícola, busca-se diminuir o risco de que uma adversidade
climática coincida com uma fase crítica da planta, evitando a diminuição do potencial
produtivo (SAF, 2013g). O PROAGRO é administrado pelo Banco Central do Brasil –
BCB e operado por seus agentes, representados pelas instituições financeiras
autorizadas a operar em crédito rural.

4. PROGRAMA DE GARANTIA DE PREÇOS DA AGRICULTURA FAMILIAR


- PGPAF
Criado em 20 de dezembro de 2006, através do Decreto 5.996, o Programa de
Garantia de Preços para a Agricultura Familiar - PGPAF é uma das ações de apoio à
agricultura familiar que compõe o PRONAF e tem como objetivo assegurar a
remuneração dos custos de produção aos agricultores familiares financiados pelo
PRONAF por ocasião da amortização ou da liquidação de suas operações de crédito
junto aos agentes financeiros. A garantia consiste na concessão de bônus de desconto
representativo do diferencial entre os preços de garantia definidos anualmente e os
preços de comercialização praticados no período que antecede a amortização ou
liquidação do financiamento. O PGPAF garante às famílias agricultoras que acessam o
PRONAF Custeio ou o PRONAF Investimento, em caso de baixa de preços no
mercado, um desconto no pagamento do financiamento, correspondente à diferença
entre o preço de mercado e o preço de garantia do produto (SAF, 2013a). O preço de
mercado é o definido pelo preço médio mensal de comercialização, obtido a partir de
levantamento realizado pela CONAB, nas principais praças de comercialização de cada
estado produtor (SAF, 2013h). O preço de garantia é o custo de produção médio da
região, levantado pela CONAB e definido pelo Comitê Gestor do Programa. Esse preço
é definido de forma a ser suficiente para cobrir os custos de produção dos produtos
financiados em determinada safra e região. Esse preço é regionalizado e divulgado
anualmente, por meio de resolução do Conselho Monetário Nacional – CMN (SAF,
2013h). Quando houver diferença entre o preço de garantia e o preço de mercado, será
calculado um bônus, que é um desconto em percentual equivalente à diferença
verificada entre o preço de garantia do PGPAF, referente ao custo de produção médio
do produto para a região, e o preço de mercado, que é o preço médio mensal de
comercialização do produto no estado. Esse bônus será aplicado automaticamente pelo
banco, no saldo devedor do financiamento, garantindo, assim, os custos da produção. A

141
Direito Agrário Ambiental

concessão de bônus de garantia de preços só poderá ser realizada para agricultores que
estiverem adimplentes e que possuam DAP válida no dia do pagamento da prestação. O
PGPAF é gerido por um Comitê Gestor composto por cinco órgãos do governo federal:
Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, Ministério da Fazenda – MF,
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – MPOG, Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento – MAPA e Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da
Fazenda. A Secretaria Executiva do Comitê Gestor pertence à Secretaria da Agricultura
Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário - SAF/MDA.
O Decreto 5.996 estabelece as atribuições do comitê gestor, dentre as quais está
à formulação de propostas operacionais para o PGPAF, incluindo: os produtos agrícolas
contemplados a cada safra; as modalidades de crédito; o valor limite do bônus ou o
percentual máximo de desconto sobre o financiamento que será concedido a cada
agricultor, por ano; o preço de garantia dos produtos abrangidos pelo PGPAF para cada
ano agrícola; a área de abrangência dos preços de garantia para cada produto, a época de
apuração e o seu período de vigência; a metodologia a ser utilizada para apuração e
concessão do bônus, dentre outros. Cabe à CONAB prestar apoio técnico ao comitê
gestor, sendo responsável pelo levantamento dos custos de produção e dos preços de
mercado dos produtos da agricultura familiar enquadrados no PGPAF, conforme
metodologia definida pelo comitê gestor e por outras ações que venham a ser definidas
por ele. O Conselho Monetário Nacional – CMN é o orgão responsável por
regulamentar o PGPAF, com base nas propostas encaminhadas pelo comitê gestor.

5. POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO


RURAL- PRONATER
Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, o principal objetivo
dos serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural - ATER é melhorar a renda e a
qualidade de vida das famílias rurais, por meio do aperfeiçoamento dos sistemas de
produção, de mecanismo de acesso a recursos, serviços e renda, de forma sustentável
(SAF, 2013a). Em 2003, o MDA passou a ser o reponsável pelas atividades de
assistência técnica e extensão rural. Por determinação da Secretaria da Agricultura
Familiar – SAF, um grupo de técnicos coordenou e elaborou uma nova Política
Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural - PNATER, em parceria com as
organizações governamentais e não governamentais de ATER e a sociedade civil
organizada. Em janeiro de 2010, foram instituídos a Política Nacional de Assistência

142
Direito Agrário Ambiental

Técnica e Extensão Rural - PNATER e o Programa Nacional de Assistência Técnica e


Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária - PRONATER, através
da Lei n º 12.188/2010, alterando a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. O § 1º do art.
2º da Lei 12.188/2010 define Assistência Técnica e Extensão Rural - ATER como o
serviço de educação não formal, de caráter continuado, no meio rural, que promove
processos de gestão, produção, beneficiamento e comercialização das atividades e dos
serviços agropecuários e não agropecuários, inclusive das atividades agroextrativistas,
florestais e artesanais.
O art. 4º da lei estabelece como objetivos da PNATER:
i) promover o desenvolvimento rural sustentável;
ii) apoiar iniciativas econômicas que promovam as potencialidades
e vocações regionais e locais;
iii) aumentar a produção, a qualidade e a produtividade das
atividades e dos serviços agropecuários e não agropecuários;
iv) promover a melhoria da qualidade de vida de seus
beneficiários;
v) assessorar as diversas fases das atividades econômicas, a gestão
de negócios, sua organização, a produção, a inserção no mercado e o
abastecimento, observando as peculiaridades das diferentes cadeias
produtivas;
vi) desenvolver ações voltadas ao uso, ao manejo, à proteção, à
conservação e à recuperação dos recursos naturais, dos agroecossistemas e da
biodiversidade;
vii) construir sistemas de produção sustentáveis a partir do
conhecimento científico, empírico e tradicional;
viii) aumentar a renda do público beneficiário e agregar valor à sua
produção;
ix) apoiar o associativismo e o cooperativismo;
x) promover o desenvolvimento e a apropriação de inovações
tecnológicas e organizativas adequadas ao público beneficiário e à integração
deste ao mercado produtivo nacional;
xi) promover a integração da ATER com a pesquisa, aproximando
a produção agrícola e o meio rural do conhecimento científico; e
xii) contribuir para a expansão do aprendizado e da qualificação
profissional diversificada, apropriada e contextualizada à realidade do meio
rural brasileiro.
Orientada pelo Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural -
PRONATER, a PNATER foi elaborada a partir dos princípios do desenvolvimento
sustentável, incluindo a diversidade de categorias e atividades da agricultura familiar, e
considerando elementos como gênero, geração, etnia e o papel das organizações
governamentais e não governamentais (SAF, 2013i). O PRONATER tem como
objetivos a organização e a execução dos serviços de ATER ao público beneficiário,
estabelecendo diretrizes e metas para os serviços públicos de ATER no País. É
coordenado pelo Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural - DATER e
elaborado, anualmente, para cada Plano Safra da Agricultura Familiar com base nas
políticas da SAF, nos Programas Estaduais de ATER e nas demandas da agricultura
143
Direito Agrário Ambiental

familiar (SAF, 2013i). O programa fomenta o desenvolvimento rural sustentável da


agricultura familiar e dos assentamentos da reforma agrária, viabilizando a contratação
de serviços de ATER, de forma contínua, com pagamento por atividade mediante a
comprovação da prestação dos serviços.

6. PROGRAMA NACIONAL DE PROMOÇÃO E USO DO BIODIESEL - PNPB


Em dezembro de 2004, o governo lançou o Programa Nacional de Produção e
Uso do Biodiesel – PNPB, que tem como objetivo a implementação, de forma
sustentável, tanto técnica como econômica, da produção do e uso do biodiesel, com
enfoque na inclusão social e no desenvolvimento regional, via geração de emprego e
renda. As principais diretrizes do programa são: implantar um programa sustentável,
promovendo inclusão social; garantir preços competitivos, qualidade e suprimento; e
produzir o biodiesel a partir de diferentes fontes oleaginosas, fortalecendo as
potencialidades regionais para a produção de matéria prima (SAF, 2013i).O MDA, por
meio da SAF, participa da gestão do PNPB, através do qual, além de estimular a
produção do novo combustível, procura apoiar a participação da agricultura familiar na
sua cadeia de produção, mediante o Selo Combustível Social. O selo é um certificado
concedido pelo MDA aos produtores de biodiesel que adquirem percentuais mínimos de
matéria prima de agricultores familiares. Confere ao seu possuidor o caráter de
promotor de inclusão social dos agricultores familiares enquadrados no PRONAF.
Como contrapartida, os produtores do biodiesel têm acesso às alíquotas de PIS/PASEP e
COFINS com coeficientes de redução diferenciados para produção do biodiesel. (SAF,
2013j). O PNPB é conduzido por uma Comissão Executiva Interministerial - CEIB, que
tem como função elaborar, implementar e monitorar o programa, propor os atos
normativos que se fizerem necessários à implantação do programa, assim como analisar,
avaliar e propor outras recomendações e ações, diretrizes e políticas públicas. Possui
também um Grupo Gestor responsável pela execução das ações relativas à gestão
operacional e administrativa voltadas para o cumprimento das estratégias e diretrizes
estabelecidas pela CEIB. O MDA faz parte tanto da CEIB quanto do Grupo Gestor do
PNPB, cabendo a ele a responsabilidade de operacionalizar a estratégia social do
programa, criando formas de promover a inserção qualificada de agricultores familiares
na cadeia de produção do biodiesel (SAF, 2013k).

144
Direito Agrário Ambiental

7. O PROGRAMA NACIONAL DE FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA


FAMILIAR - PRONAF
O PRONAF pode ser considerado o primeiro que de fato surge, através de
políticas públicas especificas em favor dos agricultores familiares brasileiros, apoiando
o desenvolvimento rural por meio do fortalecimento da agricultura familiar.

Até meados da década 1990, o financiamento do pequeno produtor restringia-


se quase exclusivamente aos recursos administrados pelo Programa de
Crédito Especial para Reforma Agrária - PROCERA, cujo alcance era
específico e limitado, em função de atender somente aos beneficiários do
Programa de Reforma Agrária. Segundo as normas do Manual de Crédito
Rural - MCR, do Ministério da Agricultura, os pequenos agricultores eram
enquadrados como miniprodutores, o que os colocava em situação de
desvantagem, visto que tinham que disputar recursos com os grandes
proprietários, que historicamente foram os principais tomadores de crédito
agrícola (SOUZA e CAUME, 2008).

No início dos anos 1990, os pequenos trabalhadores rurais já acumulavam


inúmeras frustrações no que diz respeito às iniciativas governamentais para atender às
demandas da classe. Em 1994, como consequência das reivindicações dos agricultores
familiares, foi criado o Programa de Valorização da Pequena Produção Rural -
PROVAP, que tinha o objetivo de viabilizar o financiamento das atividades
agropecuárias dessas famílias. O PROVAP operava basicamente com recursos do
BNDES e tinha sua área de atuação limitada. Em 1995, com a pretensão de mudar esse
panorama social, e mediante forte pressão dos movimentos sociais dos trabalhadores
rurais e de organizações internacionais, o governo federal cria o PRONAF, inicialmente
como uma linha de crédito de custeio: em 1996 adquiriu característica de programa
governamental, através do Decreto Presidencial nº 1.946, de 28 de junho de 1996,
passando a integrar o Orçamento Geral da União. Somente em 2006 a agricultura
familiar foi regulamentada no Brasil como segmento produtivo, através da promulgação
da Lei 11.326/2006, conhecida como a Lei da Agricultura Familiar. O art. 1º do Decreto
nº 1.946 registra que o Programa foi criado com a finalidade de promover o
desenvolvimento sustentável do segmento rural constituído pelos agricultores
familiares, de modo a propiciar-lhes o aumento da capacidade produtiva, a geração de
empregos e a melhoria de renda. Segundo Aquino e Teixeira (2005), o PRONAF foi
elaborado tendo como referência um estudo realizado através de convênio firmado entre
a FAO e o governo brasileiro em 1994/1995, sendo concebido com a finalidade de
apoiar o desenvolvimento rural, tendo como fundamento o fortalecimento da agricultura

145
Direito Agrário Ambiental

familiar. Sua missão fundamental seria combater as desigualdades sociais e regionais


que marcaram as políticas estatais tradicionais voltadas para estimular a modernização
tecnológica da agricultura brasileira (AQUINO e SCHNEIDER, 2010).
De acordo com o Manual Operacional do PRONAF, citado por Schneider,
Cazella e Mattei (2004), o Programa possui quatro objetivos específicos: 1) ajustar as
políticas públicas à realidade dos agricultores familiares; 2) viabilizar a infraestrutura
necessária à melhoria do desempenho produtivo dos agricultores; 3) elevar o nível de
profissionalização dos agricultores familiares através do acesso aos novos padrões de
tecnologia e gestão social; e 4) estimular o acesso dos agricultores aos mercados de
insumos e produtos. Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, o
PRONAF é um programa que, além de operar com crédito rural, desenvolve também
outros instrumentos e ações que possibilitam o desenvolvimento econômico e social dos
agricultores familiares. Dentre esses instrumentos, o crédito se destaca como um
elemento necessário, em função da falta de recursos financeiros, inerente ao público-
alvo do PRONAF. O PRONAF representa um marco na luta pelo reconhecimento da
agricultura familiar; sendo “uma das mais importantes políticas brasileiras de combate
à pobreza, tem como principal característica interferir na matriz de distribuição de
renda por meio da ampliação do acesso ao crédito formal a populações que a ele não
tinham acesso” (ABRAMOVAY, 2006).
As fontes de recursos disponibilizadas para financiar o Programa são
provenientes dos Fundos Constitucionais Fundo Constitucional de Financiamento do
Nordeste - FNE, Fundo Constitucional de Financiamento do Norte - FNO e Fundo
Condtitucional de Financiamento do Centro Oeste - FCO, da Secretaria do Tesouro
Nacional - STN, dos Recursos Próprios Equalizados dos Bancos Cooperativos - RPE,
da Poupança Rural, da Exigibilidade Bancária, do Fundo de Amparo ao Trabalhador -
FAT e do Banco Nacional de Desenvolvimento - BNDES. São operacionalizadas
principalmente pelos bancos públicos federais (Banco do Nordeste do Brasil - BNB,
Banco do Brasil - BB e Banco da Amazônia – BASA) encarregados de massificar a
distribuição dos recursos do Programa. Para acessar os recursos financiados pelo
Programa, os produtores rurais deverão apresentar a Declaração de Aptidão ao
PRONAF – DAP. Criada pela SAF/MDA, a DAP é utilizada como instrumento de
identificação do agricultor familiar para acessar políticas públicas, como o PRONAF. A
DAP é emitida pelas instituições autorizadas pelo MDA, a partir dos dados fornecidos
pelo produtor acerca de seu estabelecimento de produção, como área, número de
146
Direito Agrário Ambiental

pessoas residentes, composição da força de trabalho e da renda, endereço completo,


dentre outros, que reúnam os requisitos estabelecidos pela Lei 11.326/2006 da
Agricultura Familiar, conforme o enquadramento nos grupos e nas linhas do PRONAF.
O público-alvo atendido pelo PRONAF é bastante abrangente, pois o Programa
considera como agricultura familiar, para fins de obtenção dos créditos e benefícios,
pescadores artesanais, extrativistas, silvicultores, aquicultores, maricultores,
piscicultores, comunidades quilombolas, povos indígenas e criadores de animais
silvestres.
Cabe destacar que, dentro do universo dos produtores classificados como
agricultores familiares, existem produtores familiares com distintos graus de
desenvolvimento socioeconômico, e com distintas lógicas de produção e sobrevivência
(GUANZIROLI, SABBATO e VIDAL, 2011). A fim de adequar o formato do
PRONAF à realidade dos distintos segmentos que compõem o setor da agricultura
familiar brasileira, o Plano Safra 1999/2000 adotou seis diferentes grupos de
agricultores familiares, conforme descritos no Quadro 1, estratificados de acordo com o
nível da renda bruta familiar anual, sendo eles: grupos A, B, A/C, C, D e E; dentre estes,
os grupos D e E são os que possuem maiores níveis de renda.
Quadro 1 – Classificação dos agricultores “pronafianos” por Grupo na safra 2007/2008
GRUPO CARACTERÍSTICAS
A Assentados da reforma agrária.
Agricultores familiares com renda bruta anual até R$ 4 mil e que
B
obtenham ao menos 30% desse valor da atividade agropecuária.
A/C Egressos do Grupo A.
Agricultores familiares com renda bruta anual de R$ 4 mil até R$ 18 mil
C e que obtenham ao menos 60% dos seus rendimentos da atividade
agropecuária.
Agricultores familiares com renda bruta anual de R$ 18 mil até R$ 50
D mil e que obtenham ao menos 70% dos seus rendimentos da atividade
agropecuária.
Agricultores familiares com renda bruta anual de R$ 50 mil até R$ 110
E mil e que obtenham ao menos 80% dos seus rendimentos da atividade
agropecuária.
Fonte: Aquino e Schneider (2010).

Essa classificação deixou de vigorar em 30/06/2008, quando novas regras


foram incorporadas ao Plano Safra 2008/2009: a partir daí foram extintos os grupos C,
D e E, sendo substituídos pelo PRONAF Renda Variável ou PRONAF Comum.
Atualmente o Programa é composto dos seguintes grupos: “A” e “A/C”, de acordo
com a condição de assentado; “B” e “PRONAF- Comum” ou “PRONAF Renda

147
Direito Agrário Ambiental

Variável”, de acordo com a renda bruta anual, obtida pela unidade familiar nos últimos
12 meses que antecedem a solicitação da DAP, que pode variar de até R$ 10.000,00
para o Grupo B e acima de R$ 10.000,00 até R$ 360.000,00 para o PRONAF Renda
Variável (BNB, 2013a).
O PRONAF também disponibiliza linhas de crédito especiais para públicos e
atividades específicas: PRONAF Mulher, Jovem, Agroindústria, Floresta, Mais
Alimentos, Agroecologia, Agrinf (Custeio do Beneficiamento e Industrialização de
Agroindústria Familiar) e ECO - além de investimentos em projetos de convivência
com o semiárido - PRONAF Semiárido. Os grupos e as linhas do PRONAF atendem a
duas modalidades de crédito, custeio e investimento. Os créditos de custeio são
destinados aos bens utilizados em um único ciclo produtivo (sementes, adubos e
defensivos agrícolas). Os prazos para pagamento dessas operações, pela própria
característica do crédito, são de até 02 anos para o custeio agrícola e de até 01 ano para
o custeio pecuário. Os créditos para investimentos são recursos destinados a financiar
bens (animais, máquinas e equipamentos) e construções (cercas, obras de infraestrutura
hídrica e instalações) que perduram por vários ciclos produtivos. Os prazos são
determinados em função da capacidade de pagamento do empreendimento financiado e
podem chegar a até 10 anos.

7.1. Desenvolvimento sustentável na perspectiva do PRONAF


Conforme foi colocado anteriormente, a finalidade do PRONAF é promover o
desenvolvimento sustentável da agricultura familiar, propiciando-lhes o aumento da
capacidade produtiva, a geração de empregos e a melhoria de renda, segundo dispõe o
art. 1º do Decreto nº 1.946. Contudo, o que se percebe é uma visão descontextualizada
de sustentabilidade que se limita, geralmente, à dimensão econômica. Para a Comissão
Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – CMMD, entende-se por
desenvolvimento sustentável o desenvolvimento que satisfaz as necessidades atuais sem
comprometer a capacidade de as gerações futuras satisfazerem as suas próprias
necessidades (CMMD, 1991). Os conceitos de desenvolvimento sustentável e
sustentabilidade se justapõem, tendo em vista que envolvem ideias de pacto
intergeracional e perspectiva de longo prazo. Tavares (2009) registra que, para se tornar
operacional, o conceito de desenvovimento sustentável deve harmonizar os objetivos
sociais, ambientais e ecônomicos. Para Sachs (2002), o conceito de sustentabilidade
apresenta oito dimensões: social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica,

148
Direito Agrário Ambiental

política nacional e política internacional. As várias dimensões abordadas por Sachs


apontam para a busca de soluções que atuem de forma sinérgica, ou seja, interagindo
com as diferentes demandas, sejam em aspecto ambiental, social, econômico,
geográfico ou espaço-territorial, político e cultural. Trata-se de enxergar de forma
holística os problemas da sociedade. Silva, Souza e Leal (2012) sugerem uma
transdimensionalidade, ou seja, uma indissociabilidade que se configura como um
instrumento de debate sobre as necessidades básicas advindas das práticas geográficas
de um determinado grupo social mais pontual ou das diferentes escalas geográficas.
Para Silva e Martins (2007),

(...) o PRONAF acumula uma década de experiências e ações sem conseguir


ampliar sua noção de sustentabilidade. Aspectos importantes, como a
crescente crise ambiental e as obrigações de cunho social, não estão sendo
internalizados no Programa. A causa aparente seria o viés prioritariamente
econômico adotado no planejamento, na implementação e na avaliação das
intervenções junto às famílias e organizações civis beneficiadas.

Sendo assim, é preciso chamar a atenção para a necessidade de ser considerado


o caráter multidimensional da sustentabilidade, extrapolando os aspectos estritamente
econômicos. Mattei (2005, apud Silva e Martins, 2007) enfatiza a necessidade de uma
nova premissa governamental de desenvolvimento rural, em que a sustentabilidade
garanta também os aspectos socioambientais.

7.2. Classificação dos grupos e linhas de crédito do PRONAF

O crescimento do Programa pode, dentre outros aspectos, ser atribuído à


criação de inúmeras linhas de crédito e à ampliação do universo dos beneficiários. As
informações apresentadas são referentes ao público alvo do Programa, aos limites de
financiamento, ao prazo, à taxa de juros, aos bônus de adimplência, dentre outras.
Ressalta-se que essas informações são relativas ao Plano Safra 2013/2014, e podem ser
alteradas de acordo com os objetivos estabelecidos anualmente a cada Plano Safra da
agricultura familiar.
PRONAF Grupo A: É destinado aos assentados do Programa Nacional de
Reforma Agrária – PNRA/INCRA, clientes do Programa Nacional de Crédito Fundiário
– PNCF, e aos agricultores familiares reassentados em função de construção de
barragens para aproveitamento hidroelétrico e abastecimento d’água. Os recursos devem
se destinar a itens de investimentos. Os prazos são concedidos de acordo com a
capacidade de pagamento do empreendimento, respeitado o limite máximo de 10 anos,
149
Direito Agrário Ambiental

que inclui 03 anos de carência, podendo chegar a até 05 anos quando a atividade
assistida requerer esse prazo e o projeto técnico comprovar a sua necessidade. Os juros
são muito baixos, variando de 0,5% ao ano a 1,0% ao ano, e as operações possuem
bônus de adimplemento muito significativo, podendo chegar a até 44,18% aplicado em
cada parcela (BNB, 2013b).
PRONAF Grupo A/C: Destinado ao financiamento de custeio das atividades
agropecuárias, não agropecuárias e de beneficiamento ou industrialização da produção,
voltado para os assentados do Programa Nacional de Reforma Agrária - PNRA e
clientes do Programa Nacional de Crédito Fundiário - PNCF que já contrataram a
primeira operação no Grupo “A” e que não tenham contratado operação de custeio,
salvo se no âmbito deste Programa. Os prazos são concedidos de acordo com o ciclo das
atividades financiadas, sendo de até 02 anos para custeio agrícola e de até 01 ano para
custeio pecuário, com taxas de juros de 1,5% a.a. As operações não possuem bônus de
adimplemento (BNB, 2013)3.
PRONAF Grupo B: Nesse grupo são atendidos os agricultores familiares com
renda bruta anual familiar de até R$ 10.000,00, abrangendo também as mulheres
agricultoras integrantes de unidades familiares enquadradas nos grupos A, AC e B.
Propicia crédito de custeio e investimento aos agricultores com nível de renda mais
baixo entre os agricultores familiares, sendo que, no mínimo, 30,0% dessa renda terá de
vir do estabelecimento rural. O programa financia atividades agropecuárias e não
agropecuárias. O prazo é de até 02 anos, incluindo 01 ano de carência, com taxas de
juros de 0,5% a.a. e bônus de 25,0% aplicado sobre cada parcela paga em dia. (BNB,
2013)4.
PRONAF Renda Variável ou Comum: O público-alvo desse grupo abrange os
agricultores familiares com renda bruta anual familiar, nos últimos 12 meses que
antecedem a solicitação da DAP, compreendendo um largo intervalo de valores que
pode ir até R$ 360.000,00 ao ano (BNB, 2013)5. Atende às modalidades de crédito para
custeio e para investimento, com financiamento da infraestrutura de produção e serviço
agropecuários (e não agropecuários) no estabelecimento rural e também no custeio
agropecuário. Os prazos para investimento são de até 10 anos, podendo chegar a 15
anos para obras de estruturas de armazenagem, incluindo até 03 anos de carência. Em se

150
Direito Agrário Ambiental

tratando de custeio, o prazo é de até 03 anos para custeio agrícola e de até 01 ano para o
pecuário. Os juros desse grupo são definidos de acordo com o montante de recursos
financiados para o cliente, podendo variar de 1,0% a.a a 2,0% a.a. para operações de
investimento e 1,5% a.a. a 3,5% a.a. para operações de custeio. As operações não
possuem bônus de adimplemento (BNB, 2013b).
PRONAF Agroindústria: Tem como objetivo destinar crédito de investimento
para a implantação, ampliação, recuperação ou modernização de pequenas e médias
agroindústrias. O programa é destinado aos produtores rurais, familiares, enquadrados
nos grupos A, A/C, B e PRONAF-Comum, e a suas cooperativas e associações. O prazo
total é de até 10 anos, podendo chegar a 15 anos para obras de estruturas de
armazenagem, incluindo até 03 anos de carência. Os juros dessa linha são definidos de
acordo com o montante de recursos financiados para o cliente, e o tipo de beneficiário,
se pessoa física ou jurídica, podendo variar de 1,0% a.a. a 2,0% a.a. Não se aplica bônus
de adimplência sobre essas operações (BNB, 2013b).
PRONAF Mulher: O público-alvo são mulheres agricultoras,
independentemente do estado civil, integrantes de unidades familiares enquadradas no
grupo PRONAF Renda Variável ou Comum. Os recursos são destinados a
investimentos, como financiamento da infraestrutura de produção e serviço
agropecuários e não agropecuários no estabelecimento rural de interesse da mulher
agricultora. O prazo será determinado em função da capacidade de pagamento, limitado
em até 10 anos, incluindo até 03 anos de carência. Os juros dessa linha são definidos de
acordo com o montante de recursos financiados para o cliente, variando de 1,0% a.a.
2,0% a.a.. Não há incidência de bônus de adimplemento (BNB, 2013b).
PRONAF Jovem: Concede crédito para investimento a jovens agricultores e
agricultoras familiares maiores de 16 até 29 anos, pertencentes a famílias enquadradas
nos grupos A, A/C, B e PRONAF-Comum e que tenham concluído ou estejam cursando
o último ano em centros familiares rurais de formação por alternância; em escolas
técnicas agrícolas de nível médio; que tenham participado de curso de formação com
carga horária de 100 horas ou mais e preencha os requisitos definidos pela SAF do
MDA, dentre outros. Os recursos são destinados a investimentos, como financiamento
da infraestrutura de produção e serviço agropecuários e não agropecuários no
estabelecimento rural de interesse do jovem agricultor. O prazo é de até 10 anos,
incluindo até 03 anos de carência, podendo chegar a até 05 anos quando a atividade

151
Direito Agrário Ambiental

assistida requerer esse prazo e o projeto técnico comprovar a sua necessidade, com juros
de 1,0% a.a.. Não há incidência de bônus de adimplemento (BNB, 2013b).
PRONAF Semiárido: O público-alvo do PRONAF Semiárido são agricultores
familiares enquadrados nos Grupos A, A/C, B e PRONAF Renda Variável ou
PRONAF-Comum. Destina-se a créditos de investimento para projetos de convivência
com o semiárido, priorizando a infraestrutura hídrica. O prazo é de até 10 anos,
incluindo até 03 anos de carência, podendo chegar a até 05 anos quando a atividade
assistida requerer esse prazo e o projeto técnico comprovar a sua necessidade. Com uma
taxa de juros de 1,0% a.a.. Não existe bônus de adimplemento para essa linha (BNB,
2013b).
PRONAF AGRINF: Destinado ao financiamento do custeio de agroindústria
familiar, para beneficiamento e industrialização de produção própria e/ ou de terceiros.
O público-alvo são pessoas físicas que sejam agricultores familiares titulares de DAP e
Cooperativas ou associações constituídas de agricultores familiares, que tenham, no
mínimo, 70,0% de seus participantes ativos na condição de agricultores familiares
enquadrados no PRONAF Empreendimentos familiares rurais. Prazo máximo de 12
meses, com taxa de juros de 4,0% a.a.. Não existe bônus de adimplemento para essa
linha (BNB, 2013b).
PRONAF Agroecologia: Crédito para investimento destinado ao financiamento
dos sistemas de produção agroecológicos ou orgânicos. Público-alvo: agricultores
familiares enquadrados nos grupos A, A/C, B e Renda Variável (PRONAF – Comum).
Os juros dessa linha são definidos de acordo com o montante de recursos financiados
para o cliente, podendo variar de 1,0% a.a. a 2,0% a.a.. Com prazo de até 10 anos,
incluindo até 03 anos de carência. Não há incidência de bônus de adimplemento sobre
os juros (BNB, 2013b).
PRONAF Floresta: Os investimentos são programados para financiamento de
projetos de sistemas agroflorestais, exploração extrativista ecologicamente sustentável,
recomposição e manutenção de áreas de preservação permanente e reserva legal e
recuperação de áreas degradadas, para o cumprimento de legislação ambiental e
enriquecimento de áreas que já apresentam cobertura florestal diversificada. O prazo
total é de até 20 anos, incluída carência limitada a 12 anos, quando utilizados recursos
do FNE, destinados exclusivamente a projetos de sistemas agroflorestais e ao público-
alvo do Renda Variável. Nos demais casos, o prazo será de até 12 anos, incluída a

152
Direito Agrário Ambiental

carência limitada a 08 anos. Com taxa de juros de 1,0% a.a.. Não há bônus de
adimplemento para essa linha (BNB, 2013b).
PRONAF Eco: Os recursos são destinados a financiamento de projetos de
tecnologias de energia renovável e ambientais, silvicultura, armazenamento hídrico,
pequenos aproveitamentos hidroenergéticos e adoção de práticas conservacionistas e de
correção da acidez e fertilidade do solo, e implantação das culturas de dendê e
seringueira. O público-alvo são os agricultores familiares enquadrados nos grupos A,
A/C, B e Renda Variável (PRONAF – Comum). Prazo de até 10 anos, incluídos até 03
anos de carência, podendo ser elevada para até 05 anos quando a atividade assistida
requerer esse prazo e o projeto técnico comprovar a sua necessidade. Os juros dessa
linha são definidos de acordo com o montante de recursos financiados para o cliente,
podendo variar de 1,0% a.a. a 2,0% a.a.. Não são permitidos bônus adimplemento que
incidem apenas sobre os juros (BNB, 2013b).
PRONAF Seca 2012: Destinado a operações de investimento e custeio
agropecuário e financiamento de projetos de convivência com a estiagem, focados na
sustentabilidade dos agroecossistemas. A taxa de juros desse grupo é de 1,0% a.a.. E o
prazo de até 05 anos, incluído até 01 ano de carência para custeio, e de até 10 anos,
incluídos até 03 anos de carência, para investimento, podendo ser elevada para até 05
anos quando a atividade assistida requerer esse prazo e o projeto técnico comprovar a
sua necessidade. Há bônus de 40,0% aplicado sobre cada parcela paga em dia. (BNB,
2013b).
O PRONAF dispõe de diversas linhas de créditos especiais para atender aos
agricultores classificados como familiares. Contudo, o universo que compõe a
agricultura familiar brasileira é constituído por agricultores que apresentam estratégias
próprias de sobrevivência e de produção, no tocante aos meios de produção, acesso à
terra, à capacitação, à assistência técnica e à organização, dentre outras. Somam-se a
isso as diferenças regionais existentes no País, principalmente, quando se comparam os
agricultores familiares das regiões Sul e Nordeste. Nesse sentido, revela-se a
complexidade do(s) público-alvo (s) do PRONAF.

7.3. PRONAF: Cenários


Cerqueira e Rocha (2002) ressaltam que é possível encontrar variadas formas
de produção agrícola com características familiares em um continuum que varia entre a
agricultura de subsistência e a agricultura quase capitalista. Em um estudo realizado por

153
Direito Agrário Ambiental

Guanziroli, Sabbato e Vidal (2011), em que é feita uma análise comparativa entre os
dois últimos censos agropecuários (1996 e 2006), os autores destacam que, dentro do
universo que constitui a agricultura familiar brasileira, a distância entre as rendas
obtidas pelos diferentes tipos6 de agricultores familiares pode variar em até 200 vezes
quando se compara a maior com a menor renda obtida. Guanziroli, Sabbato e Vidal
(2011) acrescentam, ainda, que a diferença de renda verificada entre os grupos
aumentou nos primeiros 10 anos da criação do PRONAF (1996 a 2006), muito embora
o número de operações contratadas e o volume de recursos disponibilizados para o
programa tenham aumentado. Esse fato pode ser atribuído à elevação do grau de
especialização das atividades produtivas desenvolvidas pelos agricultores familiares,
sobretudo, na região Sul do país onde os agricultores estão inseridos na dinâmica
produtiva dos grãos e das commodities agrícolas. Outro fato que também pode ter
contribuído para o aumento é que a maior parcela dos recursos liberados pelo Programa
está direcionada para os agricultores familiares de maior renda, capazes de oferecer aos
bancos as garantias reais e as contrapartidas exigidas para o financiamento das suas
atividades.
Decorridas quase duas décadas de existência do Programa, o que se observa, a
partir dos trabalhos acadêmicos disponíveis sobre o assunto e dos dados
disponibilizados pelas instituições governamentais: Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE, Banco do Nordeste do Brasil – BNB, Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA, dentre outros, é que não está havendo uma distribuição
equitativa dos recursos disponobilizados pelo PRONAF. Essa diferenciação se revela
tanto em termos regionais quanto nas categorias de agricultores familiares brasileiros.
Para Aquino e Schneider (2010), o modelo de distribuição e aplicação dos
recursos do Programa apresenta um viés concentrador, setorial e produtivista. De acordo
com esses autores, os maiores beneficiários do PRONAF têm sido efetivamente os
agricultores mais capitalizados e, por conseguinte, com mais facilidade para transitar e
operacionalizar no sistema bancário (grupos D e E)7, ou seja, apenas 9,4% do público
potencial dessa política pública em 2006. Enquanto isso, a fração mais empobrecida da
6
Para caracterizar os tipos de agricultores familiares, Guanziroli, Sabbato e Vidal levam em consideração
a relação entre a Renda Total (RT) e o Valor do Custo de Oportunidade (VCO). Os autores classificam os
agricultores familiares em quatro tipos: Tipo A, Tipo B, Tipo C e tipo D. Na tipologia adotada pelos
autores, os agricultores do Tipo D são os mais pobres entre os agricultores familiares, diferentemente do
que instituía o Plano Safra de 1999/2000 até o Plano Safra 2008/2009, em que o Grupo D era um dos
grupos constituídos pelos produtores familiares de maior renda. Ver Guanziroli, Sabbato e Vidal (2011).

154
Direito Agrário Ambiental

agricultura familiar do país (grupos A e B)8, representada pela esmagadora maioria dos
estabelecimentos rurais (73,2%), não consegue acessar e/ou manter uma relação estável
com o sistema bancário nacional. Segundo Guanziroli, Sabbato e Vidal (2011), os dados
dos dois últimos censos agropecuários 1996/2006 revelam que houve uma tendência à
especialização produtiva dos agricultores familiares de 41,0% para 55,0%, enquanto o
índice de diversificados foi reduzido de 59,0% para 45,0%. O grau de especialização
ainda é maior entre os agricultores familiares mais capitalizados, passando de 51,0%
para 70,0%. Para Mattei (2008), a lógica de produção em que se insere a agricultura
familiar está cada vez mais pautada por um processo de especialização produtiva
baseada no uso intensivo de insumos modernos e na produção de poucos produtos,
especialmente do binômio milho-soja, nas regiões Sul e Centro-Oeste do País. A Tabela
1, abaixo, indica que o volume de operações e o aporte de recursos disponibilizados
pelo PRONAF tem se mantido em ascendência ao longo dos últimos 15 anos, o que de
certa forma caracteriza a importância dessa política para o Estado. No entanto, esses
recursos têm se concentrado nos grupos de maiores rendas (D e E)9, chegando, em
2007, a 60,0%; já os grupos mais pobres (A e B)10 têm diminuído sua participação
relativa ao longo do período, chegando a 10,0%, conforme descrito na Tabela 2 adiante.

Tabela 1 – PRONAF/Brasil Número de Contratos e Valores Contratados por ano


fiscal ,1999 a 2010
ANO N. CONTRATOS VALOR (R$ mil)
1996 311.406 556.868
1997 486.462 1.407.660
1998 646.244 1.357.455
1999 804.036 1.832.382
2000 969.727 2.188.635
2001 910.466 2.153.351
2002 953.247 2.404.851
2003 1.138.112 3.806.899
2004 1.611.463 5.761.476
2005 1.671.183 6.404.190
2006 1.858.048 8.101.544
2007 1.755.488 9.792.565
2008 1.499.434 10.634.116
2009 1.458.880 11.642.619
2010 1.253.586 11.316.435
Total 17.327.782

36
Conforme classificação do Plano Safra 1999/2000.
37, 38, 39
Conforme classificação do Plano Safra 1999/2000.

155
Direito Agrário Ambiental

79.361.046
Fonte: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) Relatórios e Resultados
2010, Banco do Nordeste (2012) e Aquino e Schneider (2010).

Segundo Tonneau; Aquino e Teixeira (2005), os recursos financeiros


efetivamente liberados pelo PRONAF “não costumam chegar nem perto da quantia
anunciada publicamente pelo Governo em cada safra agrícola. Em média, apesar do
aumento dos valores ofertados, quase dois quintos do dinheiro disponibilizado deixam
de ser liberados anualmente pelos bancos”. No Plano Safra 2009/2010, foram
disponibilizados para o programa R$ 15.0 bilhões, sendo contratados R$ 11.3 bilhões
(BNB, 2012).

Tabela 2 – Distribuição dos Recursos do PRONAF por Categorias de Crédito, em


Percentuais – Brasil – 1999/2004/2007.
Distribuição (%)
Categorias 1999 2004 2007

PRONAF A* 21 8 4
PRONAF B 1 7 6
PRONAF C 22 25 15
PRONAF D 48 37 40
PRONAF E 12 20
Outros 11 15
Fonte: Dados extraídos de Mattei (2006) e Aquino (2009)
Nota: grupo A* – são os assentados de reforma agrária; os demais estão em ordem crescente de renda, ou
seja, o E é o mais rico e o B, o mais pobre.

Os estudos realizados sobre o programa revelam que grande parte das verbas
liberadas pelo PRONAF foram empregadas na região Sul do País, conforme registra a
Tabela 3 abaixo.

Tabela 3 – PRONAF/Brasil – Número de Contratos e Valores Contratados por


Região – Exercício de 2010.

Região Contratos % Valor Contratado (1) %


(R$ mil)
Brasil 1.253.586 100 11.316.4354 100,00
Nordeste 433.161 34,6 1.570.712 13,9
Sul 452.567 36,1 4.894.514 43,3
Sudeste 255.319 18,0 2.642.592 23,4
Norte 96.897 7,7 1.340.797 11,8
Centro Oeste 45.642 3,6 867.821 7,7
Fonte: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) Relatórios e Resultados
2010, Banco do Nordeste (2012).

156
Direito Agrário Ambiental

Em 2010, foram contratadas 1.253.586 operações, somando R$ 11,3 bilhões do


total, sendo que a região com maior número de contratos foi a região Sul, representando
36,1% do total de contratos. Além disso, nessa região foram aplicados 43,3% dos
recursos, cerca de R$ 4,9 bilhões. Apesar de o Nordeste ocupar o segundo lugar em
números de contratos, 34,6%, o percentual dos recursos aplicados na região é de apenas
13,9% (BNB, 2012). Tal situação pode ser atribuída ao fato de os financiamentos na
região serem, em sua maioria, operações de menores valores, quando comparados a
outras regiões do Brasil. O Nordeste abriga mais de 50,0% dos agricultores familiares
com menor nível de renda, portanto a concentração de operações do PRONAF está
direcionada para agricultores familiares mais carentes. Os dados do Banco do Nordeste,
que é a principal instituição financeira a operacionalizar o PRONAF na região,
registram que 66,3% dos valores contratados pelo Banco através do PRONAF, no
exercício 2010, foram direcionados para os agricultores dos Grupos A e B, ou seja, os
mais pobres (BNB/ESCRITÓRIO TÉCNICO DE ESTUDOS ECONÔMICOS DO
NORDESTE - ETENE). Os números apresentados mostram-se de certa forma bastante
incompatíveis com a racionalidade de uma política pública nacional (AQUINO e
SCHNEIDER, 2010).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Houve, indubitavelmente, nos últimos vinte anos, o reconhecimento jurídico da
agricultura familiar e das políticas públicas para o seu fortalecimento, com destaque
para o Pronaf. Contudo, para além das políticas e dos recursos, pesquisas indicam que
as Políticas e os Programas, para atingir a sua efetividade enfrentam limitações. Entre os
fatores arrolados com maior frequência, podem-se citar: os elevados obstáculos
burocráticos impostos pelo sistema bancário aos agricultores familiares com níveis de
renda inferiores; a maior organização dos agricultores mais capitalizados; as pressões de
empresas agroindustriais às quais esses produtores estão vinculados; a concentração de
agências bancárias e cooperativas de crédito nos estados da região Sul; e a
desarticulação e a baixa inserção social dos produtores do Norte e do Nordeste
(AQUINO E SCHNEIDER, 2010).

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160
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO VIII - VARIAÇÕES SOBRE O CONCEITO, OS PRINCÍPIOS E A


IMPORTÂNCIA DO DIREITO AGRÁRIO NO SÉCULO XXI

Elisabete Maniglia11

INTRODUÇÃO
Seria altamente prático lembrar que todos os ramos jurídicos clamam por
justiça e que o sentido social está implícito em todos eles. Todavia, quando se fala em
Direito Agrário, relembra-se a questão alimentar, a preocupação com a produção e a
melhoria da qualidade dos produtos. Em seguida, associa-se a questão ambiental, que
impera na atividade rural, e passa-se a analisar os fatos diante da realidade mundial.
Milhares de pessoas passam fome. Outras tantas morrem de desnutrição. Há crianças
que não atingem um ano de vida, por falta de alimentos. Há doenças crônicas causadas
pela má alimentação. Grande parte da população está abaixo da linha da pobreza e se
alimenta uma única vez por dia. Há esgotos a céu aberto, água contaminada, problemas
no ar que se respira, e a destruição das florestas, das matas e da fauna se agrava dia a
dia. Os últimos relatórios mundiais acerca do meio ambiente são assustadores. Diante
de um cenário dramático, pergunta-se, de pronto: qual a finalidade do direito agrário,
diante desses conflitos e qual a sua contribuição em face dos problemas derivados do
meio rural.
Se os propósitos do direito agrário pudessem ser aplicados automaticamente,
sem manuseios de interesses políticos e de expedientes outros de favorecimentos
pessoais, ou, ainda, sem a finalidade de atender a grupos privilegiados que desfrutam da
terra como reserva de valor, sem dúvida o direito agrário seria um grande alento para
questões sociais em geral, especialmente aquelas relativas à fome, ao meio ambiente e à
garantia, em parte, de direitos humanos tidos como essenciais, firmadores das
necessidades básicas. Javier de Lucas (1998, p. 12) comenta a importância de se discutir
o conceito de necessidades, no raciocínio sobre justiça, tratando de oferecer uma
fundamentação dos direitos humanos, desde as necessidades básicas. Roig (1994, p. 12)
também comunga dessa ideia, estabelecendo que existe um caminho que foi dos direitos
às necessidades para, hoje, retornar aos direitos. Assim, não há que se falar em direitos
sem se falar em necessidades; a comunhão entre eles se conecta através da justiça, que

11
Livre docente em direito agrário, professora na UNESP.

161
Direito Agrário Ambiental

é, à luz do pensamento de Javier de Lucas (1998, p. 14-15), inseparável da satisfação de


necessidades tão vitais, como as de alimentação e moradia, o que basta para se prevenir
que uma matéria não pode ser examinada num ambiente alheio a valores, sob a luz
exclusiva de ordenamentos jurídicos interpretados de maneira puramente silogística do
tipo hipótese-sanção.
Jacques Tavares Alfonsin defende que
as necessidades vitais têm poder normativo capaz de se impor como
indiscutível, sob todo o risco que essa palavra comporta, mesmo para garantir
os efeitos jurídicos decorrentes dos direitos humanos fundamentais que lhes
servem de conteúdo, já que, sem a satisfação delas, não há como considerar
garantidos o direito à vida e o direito à liberdade (ROIG, 1994, p. 12).

Dessa feita, torna-se fundamental que o estudo jurídico de temas vinculados a


direitos humanos, como aqui tratados, sejam analisados sob a concepção de
necessidades, para se assegurar a busca da justiça. Os institutos postos à discussão,
neste ensaio, são a garantia da vida, por meio de alimento, em quantidade suficiente e de
qualidade. Fator este que implica a discussão de direitos vitais, de direitos ambientais e
da máxima discussão do Direito Agrário, gerador do estudo da atividade agrária
controladora da produção, do meio ambiente rural e das condições sociais daqueles que
se envolvem na labuta da terra, com efeitos desencadeadores no meio urbano. Os temas
agrário, ambiental, os direitos humanos e a segurança alimentar são a espinha dorsal de
uma discussão que anseia provar que o direito agrário, desde que bem norteado e fiel
aos seus anseios, é a grande solução para conflitos de fome, meio ambiente e vida mais
justa.
Na concepção doutrinária, o Direito Agrário, conforme Sodero (1968, p. 37),
traz leis que são elaboradas por juristas especializados na matéria, visando fornecer
meios legais para a administração pública planejar e executar programas, a longo,
médio e curto prazos, para as atividades rurais. Programas que se fundamentem de
maneira efetiva e justa, com vistas à elevação do nível de vida do homem rural e ao
aumento da produtividade agropecuária. Essas leis são as que constroem o direito
agrário e recaem sobre os mais diferentes institutos, sendo todos voltados para a
melhoria da vida rural, abrangendo a política fundiária, mecanismos de acesso à terra e
à política agrícola, instrumentos que garantem ao homem o manejo e uso do solo de
maneira sustentável.
A responsabilidade social, dessa feita, fundamenta-se no princípio da função
social da propriedade. Dessa premissa parte toda a teoria que estrutura o ramo jurídico

162
Direito Agrário Ambiental

em estudo, fazendo deste o princípio maior do direito agrário que, aliado a outros
princípios, tais como planejamento, inovação, justiça social, constitui seu grande
objetivo, conforme Sans Jarques (1985, p. 3):
A normativa agrária se encerra numa profunda força renovadora e
criadora causal não abstrata, em especial a serviço da justiça e das
necessidades humanas especiais e muito particulares dos homens. Seu
objetivo final, em síntese, é contribuir com justiça e dignificar os que vivem
da terra do setor agrário, os profissionais da agricultura, cada vez mais
deprimidos em relação com a vida dos demais setores econômicos, garantir
alimentação suficiente em quantidade e qualidade para todos os homens e
assegurar o habitat e o equilíbrio ecológico da natureza em que vivemos e
em que hão de viver as próximas gerações.

Como aqui demonstrado, o bem comum é parte integrante do uso da terra. O


interesse social tem que estar demonstrado para garantir a proteção jurídica da terra.
Mas não se centra a função social somente na propriedade; a função social está ligada à
atividade agrária, que pode ser exercida na propriedade, na posse, no contrato de
arrendamento ou na parceria. Deve-se ressaltar que o direito agrário brasileiro ainda
trabalha com a divisão de terras e a Reforma Agrária, a ocupação e a disputa dos solos,
enquanto, de uma forma geral, o direito agrário europeu, o norte-americano e o de
outros países, como Japão e Austrália, versam seus objetos de estudo para institutos de
produção, segurança alimentar, proteção ambiental, crédito rural e cooperativismo,
institutos hoje também contemplados pelos agraristas brasileiros, em parceria com os
institutos vinculados ao uso e à distribuição da terra.
Todavia, a dimensão social do direito agrário está presente em qualquer
vertente estudada, e as atribuições dos proprietários, ou de usuários da terra, estão
reguladas como obrigação, hoje, no Brasil, de caráter constitucional.
Toda atividade deve ter uma dimensão de produção racional e
adequada, explorando-a racionalmente de acordo com a técnica regional,
respeitando as normas trabalhistas e ambientais juntamente com o Estado,
que, ao exigir esta obrigação do empresário rural, deve permitir que ele
tenha acesso aos mecanismos de facilidades para o cumprimento da função
social. Deve, portanto fornecer crédito rural, armazenagem, vias de acesso ao
escoamento da produção com boa qualidade (estradas), apoio técnico,
incentivo a pesquisas, dispor de controle dos preços dos produtos condizentes
com os gastos, estabelecer sempre que necessário preços justos e corretos
para que o consumidor não seja lesado, disciplinando com isso o mercado
produtor e consumidor. E permitindo ao empresário rural o desenvolvimento
normal de sua atividade, o atendimento das legislações trabalhistas e
ambientais, fiscais e outras (SODERO, 1968, p. 34).

Assim, o direito agrário adquire perfis diferenciados, porque, em sua essência,


traz, conforme Ballestero Hernandez (1990, p. 31), características que constituem o

163
Direito Agrário Ambiental

elemento típico do moderno Direito Agrário: a defesa dos economicamente mais débeis,
a salvaguarda dos interesses gerais, o respeito às tradições e aos costumes e, por último,
a proteção da empresa agrária. Em consequência, o direito agrário adquire um caráter
econômico, porque sua finalidade consiste em regular e ordenar a produção agrária,
sistematicamente, seguindo as determinações do mercado e da justiça social,
incrementando o constante nível de vida do meio rural. Percebe-se que o centro de
preocupações se firma na técnica, no ofício e na arte de cultivar a terra, incluindo-se,
aqui, todas as formas de atividade agrária, como a agricultura, a pecuária, o
reflorestamento, o extrativismo, a agroindústria, a hortifruticultura, em todas as suas
modalidades, e, ainda, quem sabe, o turismo rural.
Acresce-se a esse lado de responsabilidade social o sentido nacional do direito
agrário, em que todo um país deve se unir, em princípios comuns, por meio de órgãos
nacionais com políticas uniformes, considerando a atividade agrária como um serviço
público. A melhoria das condições deve se filiar à produção agrária, à atividade
industrial agrícola e à relação comércio-consumo.
O caráter social e a responsabilidade do direito agrário são, como afirma
Ballestero Hernandez (1990, p. 32), de projeção supranacional, sem que se oponha ao
sentido nacional. Todos os organismos internacionais devem se voltar para a
preocupação com fins de paz e melhoria de vida dos povos. Nessa visão, Weber (apud
HERNANDEZ, 1990, p. 33), economista espanhol, afirma que o direito agrário deverá
ser um direito mundial; daí a necessidade de se impor uma cooperação efetiva
internacional que alcance a todos, não numa visão utópica, mas numa unidade
econômica, para que se corrijam os injustos desequilíbrios econômicos entre países
pobres e ricos.
No Brasil, as atividades agrárias e o direito agrário passam, por vezes,
despercebidos, numa política que faz crer que, se possível, o direito agrário deveria ser
esquecido. Associam-se a ele políticas de reforma agrária, pressões de movimentos
sociais, políticas de demandas sociais, que fazem com que as elites conservadoras
clamem por seu fim, não enxergando, nessa vital ciência, a importância que ela
representa.
Nessa linha de conduta, comandada pela tradicional elite rural que domina a
política brasileira, quer explicitamente, quer de forma camuflada, construíram-se raízes
profundas de preconceito para com aqueles que lutam por melhorias no campo. As leis
agrárias foram construídas por pressões sociais, mas muito pouco do ambicionado foi

164
Direito Agrário Ambiental

cumprido. As leis existem, mas os poderes, poucas vezes, fazem valer esses preceitos.
Por exemplo, há de se fazer valer o que a lei traz sobre a grilagem de terras,
considerando criminosa essa prática; todavia, os jornais noticiam, diuturnamente, esse
expediente. Certamente, alguém, inclusive dos Poderes (e, aqui, digam-se os três
Poderes), se beneficia dessas práticas. O caso da Irmã Doroty é um exemplo de luta pela
terra, pelo meio ambiente, contra a grilagem.12 Teve repercussão internacional e causou
constrangimento ao governo brasileiro. Tornou-se um caso de violação de direitos
humanos, em amplitude internacional. Este é um dos muitos e muitos casos de violação
penal, civil, agrária, ambiental, fiscal, trabalhista; uma violação grave de desrespeito aos
direitos humanos, envolvendo a máfia do desmatamento, do uso indevido de terra
devolutas, do tráfico ilegal de madeiras, do trabalho escravo e da destruição ambiental.
Revelam-se, assim, as contradições entre o real e o legal.
A origem do descumprimento do aparato legal traz a marca da nossa história,
em que a oligarquia rural sempre fraudou o sistema vigente, ou criou normas que a
beneficiassem, mas que, num primeiro momento, constituíam-se em marcas de
paternalismo para os pobres do campo, que, até certo ponto, acreditavam que os
senhores da terra os protegiam e queriam o seu bem. Sérgio Buarque de Holanda (2005,
p. 160) lembra que os movimentos reformadores, aparentemente, partiram, quase
sempre, de cima para baixo e que a grande massa recebeu essas mudanças com
displicência, ou hostilidade, pois, no fundo, não foram eles os agentes de mudança e
estas não satisfaziam suas ideias. Nesse erro de crença, em que as leis resolvem
conflitos, incorreram os políticos e demagogos que chamam a atenção, freqüentemente,
para as plataformas, os programas, as instituições, como únicas realidades
verdadeiramente dignas de respeito. Acreditam que da sabedoria e da coerência das leis
depende diretamente a perfeição dos povos e dos governos.
Desconhecem que as leis são norteadores e que as leis todas, sem exceção,
devem ser cumpridas, para que se garanta o respeito a elas. Entretanto, até hoje, no
Brasil, exige-se dos pobres e dos oprimidos a obrigação de cumprir as leis; mas o
Estado ou, mesmo, os poderosos podem esquecê-las ou alegar artifícios para o seu não
cumprimento. No meio rural, são milhares de exemplos que se somam a esse quadro,

12
Irmã Dorothy Stang, de origem americana, naturalizada brasileira, foi assassinada no Pará, em 2005,
por um grupo de assassinos profissionais, a mando de um consórcio de grileiros de terras, exploradores de
madeira clandestina, chefiado pelo fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, que foi condenado a 30
anos de prisão.

165
Direito Agrário Ambiental

desqualificando a responsabilidade social do Direito em estabelecer normas de validade


pública que melhoram e aprimoram a vida social.
Nesse pacto, adentra-se na análise do Direito Agrário como agente social de
mudanças e transformações.

1. CONCEITOS E CONTEÚDO AGRARISTA


A história da agricultura, como lembra Del Vecchio (1979, p. 390 apud ,
GISCHKOW, 1988, p. 11) se não é contemporânea ao homem, será à civilização
humana. Quando se fala em agricultura, remonta-se ao Direito Agrário, porque não há
como se negar a vinculação de um ao outro. A produção de um bem agrícola traz, em
seu teor, agregações econômicas, sociais e jurídicas. Porquanto o direito agrário, mesmo
não sistematizado enquanto ciência, existe enquanto realidade, desde os primórdios, e,
como leciona Artur Pio dos Santos Netto (1986, p. 53), ainda que não seja tratado de
modo especial, constitui-se ele, sem dúvida, na maior parte de um direito sempre atual,
desde as épocas mais remotas. Como todo ramo da ciência social aplicada, ele só pode
ser compreendido num contexto histórico-cultural-político, diante de uma realidade em
que se contextualiza não só a essência da atividade agrária, mas tudo o que influencia,
provoca, determina e executa essa função vital para a manutenção da sobrevivência
humana.
A discussão entre o nascer e o renascer do direito agrário, que ocupou grandes
espaços intelectuais, quando a primeira revista dessa área foi lançada na Europa, ainda
gera polêmicas pois, muitos civilistas atribuem o nascimento do direito agrário ao
século XX, enquanto grande parte dos estudiosos agraristas (os mais tradicionais)
defende que esse ramo sempre existiu, pois está ligado estreitamente à sobrevivência do
homem. É sabido que o Código de Hamurabi, datado aproximadamente do séc. XVII
a.C., trazia em seu bojo normas agrárias bem definidas13. Previa ele, dentre outras
normas, o cultivo do campo, e assim rezava seu art. 43, conforme descreve Miranda
(1989, p. 38): “Se ele não cultivou o campo e o deixou árido, dará ao seu proprietário o
grão correspondente à produção de seu vizinho e, além disso, afofará a terra e
destorroará a terra que deixou baldia e devolverá ao proprietário do campo”.
Torna-se nítida a preocupação com a função social da terra, aí descrita, o que
marcou o primeiro documento a falar das coisas do campo. Outros artigos, contidos no

13
O Código de Hamurabi traz diversas passagens que se ligam às questões de reforma agrária, função
social da propriedade e defesa ambiental.

166
Direito Agrário Ambiental

Código de Hamurabi, também se preocupavam com o trabalho rural, com o homem que
exercia essa função e com o meio ambiente, recomendando que quem cortasse uma
árvore, deveria plantar dez; dessa forma, esse documento foi o primeiro Código Agrário
da humanidade.
A legislação Mosaica de 1400 a.C., no Velho Testamento, faz profundas
remissões à terra e demonstra, desde então, a íntima e constante relação entre a religião
e as questões agrárias, presentes até o momento hodierno. A passagem bíblica é precisa
e revela a importância da propriedade da terra14: “A justiça seguirás, para que vivas e
possuas a terra que te dará o Senhor teu Deus”.
O Direito Romano foi propulsor de leis agrárias. Por exemplo, tem-se, na
Tábua Oitava, 4: “Se urgem divergências entre possuidores de campos vizinhos, que o
pretor nomeie três árbitros para estabelecerem os limites respectivos”.
As Ordenações do Reino de Portugal obrigavam os proprietários rurais a
explorar suas terras, sendo desse instrumento legal a definição das sesmarias,
estabelecidas no Título 43, do Livro IV: “Sesmarias são propriamente as dadas de
terras, casas e pardieiros que foram ou são de alguns senhorios e que, já em outros
tempos, foram lavradas e aproveitadas e agora o não são”15.
Dessa forma, pode-se afirmar que as normas legais vertentes sobre o campo
encontravam-se codificadas muito antes de o direito agrário vir a ser reconhecido
enquanto ramo jurídico. Na prática, também o direito agrário sempre foi uma constante,
pois a primeira relação do homem é com a terra, pela garantia da sobrevivência. A caça,
a pesca, a busca de frutos silvestres foram atividades sempre reguladas, quer na Idade
Primitiva, quer nos demais momentos, nos quais imperaram as legislações supracitadas,
e, até mesmo, na Idade Média, marcada pelas relações entre senhores, vassalos e Igreja,
quando a terra se constituía no elo principal, sem, no entanto, haver normas
codificadas. Como preleciona Ismael Marinho Falcão (2000, p. 3), “a história do Direito
Agrário remonta à história da humanidade e está continuamente ligada à agricultura”.
Dessa forma, embora haja ainda quem negue a existência daquele (são poucos os
desatualizados), pode-se afirmar que, enquanto fato, o direito agrário se inicia com a
realidade humana e, enquanto ciência, seu nascimento se dá no ano de 1922, na Itália,
quando todo o material foi ordenado por Giangastone Bolla, que fundou a Rivistta di

14
Bíblia Sagrada, Velho Testamento, 16, 20.
15
As Ordenações traziam, também, em seu bojo, outras preocupações com a terra, inclusive de ordem
ambiental; porém, no Brasil, não foram aplicadas, a não ser o instituo das sesmarias e, assim mesmo, de
forma desvirtuada.

167
Direito Agrário Ambiental

Diritto Agrário, impulsionando o mesmo para o caminho de ciência autônoma,


aprimorando sua existência, ao longo de sua trajetória16.
O direito agrário sempre foi questionado como ciência autônoma, ou não. Foi
altamente combatido, principalmente pelos civilistas que não encontravam sua razão de
ser, porque, no raciocínio destes, as atividades agrárias acontecem na propriedade, na
posse, ou por meio de contratos, e esses institutos são próprios do Direito Civil, sendo
esse ramo o mais importante do Direito, por ser altamente abrangente, podendo
plenamente dispensar a função jurídica agrária. Também as questões públicas, num
raciocínio simplista, poderiam ser resolvidas pelo Direito Administrativo; enquanto as
trabalhistas, pelo Direito do Trabalho; outras, pelo Comercial; tantas mais, pelo
Internacional, podendo, totalmente, ser eliminado esse Direito voltado para o meio
rural.
Partindo dessa posição, a corrente civilista atribuiu ao direito agrário a
condição de braço do Direito Civil, sem autonomia, sem cientificidade própria, o que
implicaria o fato de ele nunca existir como ramo jurídico. Porém esse fato já se
encontra superado, atualmente, pois, em muitos estudos, prova-se que o direito agrário é
muito mais público que privado, portanto não sendo ramo do direito civil e nem ao
menos do seu grupo fazendo parte. Delgado de Miguel (1996, p. 33) afirma que:
O progressivo intervencionismo do direito público na fixação dos
preços agrários, na orientação dos cultivos segundo as necessidades dos
mercados, até como garantia de funcionamento da atividade agrária, na
normativa comunitária, na política de subvenções, o abandono de terras, as
limitações da produção vem separando cada vez mais o agricultor do controle
de seu produto, produzindo uma desvinculação entre o agricultor e o
resultado de sua atividade.

O que, na prática, representa que a livre iniciativa está em declínio para


determinadas atividades agrárias e que, em certos países, a maioria de primeiro mundo,
que o Estado passa a ser o senhor de muitas deliberações e intervenções, a fim de
construir o interesse público, hoje já de caráter global. Argumenta-se, ainda, que o
direito agrário, sendo responsável pela segurança alimentar do mundo, não pode ser
tratado como ente privado e, se assim o for, deverá ter o Estado regulamentando sua
produção e distribuição, desde que este opte por produzir para o bem geral, de forma
democrática, atendendo aos anseios e às necessidades do povo.

16
Bolla foi considerado o fundador do Direito Agrário. Embora tenha sido um marco histórico sua
compilação, compartilha-se o pensamento de que o direito agrário sempre existiu de fato e de que, apenas
como ciência, passou a existir a partir de então.

168
Direito Agrário Ambiental

Não há mais que se falar em direito agrário como braço do direito civil; essa
superação é de caráter oficial, em todo o mundo; a autonomia do ramo agrário e sua
postulação como ciência são demonstradas no âmbito acadêmico, didático e pragmático
de si mesmo. Hernandez Gil (HERNANDEZ, 1943, p. 142 apud SANZ JARQUE,
1985, p. 52) esclarece que o direito agrário, assim como outros ramos jurídicos,
entrelaça-se com institutos de outros Direitos e, cita, como exemplo, o estudo da
propriedade rural, que carece ser vista na ótica do direito real de propriedade, com
origens no direito civil e que, ao mesmo tempo, é objeto do agrário, com a visão
especialíssima desse ramo.
Fábio Maria De Mattia (1992, p. 110) tem a visão certeira de que a presença do
fundo rústico não pode ser considerada fundamental para o exercício da atividade
agrária, pois basta asseverar que o cultivo sem terra para certos vegetais é o único
tecnicamente possível e o único conveniente economicamente. Nesse mesmo sentido,
Carrozza (1975, p. 278), recorda as culturas hidropônicas, ou aeropônicas, e muitas
outras cultivadas em ambientes especiais, como estufas e similares. Para esse agrarista
italiano, pode-se observar uma crise da concepção fundiária da agricultura, a qual,
muitas vezes, confundia o direito agrário com o direito civil. De Mattia (1992, p. 107)
observa que, na base da especialidade do direito agrário, encontra-se sempre a idéia da
possibilidade teórica e da conveniência prática de separar a matéria fundiária, que
corresponde ao direito civil, e a matéria agrária propriamente dita. Antonio José de
Mattos Netto (1988, p. 13) afirma categoricamente que o fenômeno agrário não deve ser
estudado somente sob a égide de normas civis, mas, e, principalmente, pelas normas de
direito agrário.
Sanz Jarque conclui que o Direito, na verdade, é único, e que falar em
autonomia concebida em sentido único, para cada ramo jurídico, não tem sentido
(MATTOS NETO, p. 51). Devem ser respeitadas sua especialidade e a matéria
pertinente aos seus estudos e aos seus métodos, que são distintos, com peculiar
conteúdo, fazendo dessa ciência, a busca da ordem, do bem comum e da justiça,
funcionando em cada país adaptado à realidade e à necessidade locais.
Por conseguinte, o que estava por trás de ser o direito agrário um braço do
Civil, ou não ser autônomo, era um conteúdo ideológico de defesa da propriedade, de
nãopreocupação com o social, e de fazer valer as questões econômicas, em detrimento
dos ditames de interesse público e de defesa do coletivo. Há que se observar que as
relações agrárias trazem em seu bojo o conteúdo da dominação e, portanto, sempre

169
Direito Agrário Ambiental

foram tomadas enquanto defesa da propriedade em geral, não se importando com as


relações sociais advindas desse instituto.
A resistência só foi rompida com a evolução histórica dos direitos humanos,
com a importância de se valorizar o social, até mesmo para benefício de uma elite que
poderia ceder parte de seus direitos para obter, em troca, uma série de benesses, como a
tranqüilidade de uma vida sem perturbações violentas, a defesa de um meio ambiente
mais saudável, de uma qualidade melhor de alimentos, de uma paz firmada na evolução
das comunidades. Obviamente, esse apogeu só é vivido em países que se qualificam de
primeiríssimo mundo: Suíça, Suécia, Holanda, Dinamarca, onde os povos optam por
valorizar o social, clamam por altos índices de melhoria de vida e, com certeza,
embutem a preocupação com seus alimentos, por meio de suas produções, ou
priorizando as importações destes como sendo essenciais para a sociedade como um
todo. Há de citar-se, como ilustração, que a Dinamarca só adquire madeiras brasileiras
com certificado de produção sustentável.
Outros estágios do direito agrário são estudados, conforme a realidade local e
seu nível de preocupação com o coletivo e com a qualidade de vida dos seus membros.
Pode-se observar que a Comunidade Europeia, como um todo, volta-se para um estudo
de direito agrário firmado na seguridade alimentar, na qualidade da produção, nas
condições de quem produz, nos custos dessa produção e no meio ambiente onde ele é
produzido. As regras jurídicas estão voltadas à regulamentação desses dispositivos. Os
EUA também, em parte, equiparam-se aos objetivos europeus, diferenciando-se com a
quase inexistência de uma preocupação ambiental. Outros países comungam dessas
ideias, como o Japão, o Canadá, o México, a Austrália e Israel.
Muitos trazem, em sua base jurídica, um direito agrário dual: em estágio
evoluído, preocupado com produção, tecnologia, agronegócio; mas, sem conteúdo
social, convivendo com uma realidade de luta por terra, conflitos constantes,
preocupado ainda em realizar reforma agrária. O Brasil, assim como outros países
latinos, encontra-se nessa fase.
Há também países em situações piores, como grande parte dos africanos, ou
como o Haiti, onde a fome, a miséria, a exclusão agrária formam a dura realidade da
vergonha mundial de admitir, diante da explosiva produção de alimentos, a morte de
milhares de pessoas, que nunca conseguiram ser cidadãos, porque a vida lhes foi ceifada
em decorrência da falta de comida ou da falta de meios econômicos para obtê-los.
Deste modo, o direito agrário ocupa-se em tratar das questões agrárias em face

170
Direito Agrário Ambiental

da realidade sociojurídica de cada país, permeadas pelas prioridades políticas e seus


objetivos. Esse é o direito agrário efetivado pela realidade.
Por outras linhas, há o direito agrário científico, autônomo, didático, sendo que
esses pontos merecem consideração in separado. Sob o ponto de vista da autonomia,
não há mais que se discutir se o direito agrário é dependente, ou não. Sua autonomia já
foi exaustivamente tratada no direito estrangeiro e nacional. Seguindo Evaristo de
Moraes Filho (1969, p. 22), “o conceito de autonomia de um ramo jurídico [...] quer
significar somente a presença de um direito especial”; em virtude disso, também são
especiais os seus princípios, a sua doutrina, os seus desígnios, os seus métodos. “A
especialidade jurídica agrária no Brasil surgiu, pouco a pouco, a partir da elaboração de
leis singulares sobre fenômenos agrários que faziam parte, secularmente, do arcabouço
do Direito Civil e do Direito Administrativo”.
Laranjeira (1999, p. 251), no mesmo raciocínio, afirma que:
a necessidade de se colocar num sistema próprio e coeso a legislação
fragmentada sobre o mundo rural, que se esparzia noutras órbitas legais,
terminou fazendo eclodir a autonomia legislativa do Direito Agrário, o que
ocorreu com a Emenda n.10, de 10 de novembro de 1964, à Constituição de
Federal de 1946, ao dar competência à União para legislar sobre o citado
ramo jurídico.

A autonomia didática veio, dez anos mais tarde, quando o Ministro da


Educação, por ato administrativo, colocou o direito agrário como objeto do ensino-
aprendizagem nos cursos de Direito. Realce deve ser dado à Universidade de São Paulo,
que, em seu curso de Pós-Graduação em Direito, iniciou as aulas de Agrário,
antecipadamente, com a presença do Prof. Sodero, que, mais tarde, consolidou a
17
disciplina, inclusive na Graduação. Hoje, pode-se dizer que grande parte das
faculdades tem, em suas estruturas curriculares, a disciplina de direito agrário. Mas

17
Na Universidade de São Paulo, precisamente no Curso de Direito do Largo de São Francisco, nas aulas
de pós-graduação, deram-se os primeiros ensinamentos de Direito Agrário. Passaram por esta cátedra
nobres professores, como os saudosos Fernando Sodero, Paulo Guilherme de Almeida, Olavo Acyr Lima
Rocha (que participou no Doutorado dessa autora) e ainda presentes naquela escola: Fábio Maria de
Mattia, único professor titular de direito agrário do Brasil, Giselda Hironaka, sendo que todos foram
docentes desta agrarista e, ainda, Fernando Scaff, hoje também livre docente da USP, colega de Mestrado
e, hoje, o jovem Gustavo Rezek, todos com formação uspiana. Passaram ainda pela USP, como alunos,
Antonio José de Mathos e Maria Cecília de Almeida, agraristas atuantes e companheiros na Abla e na
ABDA. Na Unesp, muitos mestrandos e pesquisadores orientados por esta professora têm seguido a
carreira agrária, divulgando esse ramo jurídico. São eles: Dimas Scardoelli, Juliana Xavier, Jéferson
Celos, Marcos Rogério de Souza, Jose Roberto Andrade Porto, Evelyn Marchetti, todos Mestres com
trabalhos na área do Direito Agrário; além de Marcos Pereira de Castro, premiado duas vezes em suas
pesquisas de iniciação científica e premiado como melhor trabalho nacional na referência mestrando,
pela ABDA, e Taísa Cintra Dosso, mestrandos, e outros tantos pesquisadores Fapesp e Pibic que se
dedicaram ao estudo do direito agrário, com afinco, na sua Graduação.

171
Direito Agrário Ambiental

muitos estados não incentivam esse estudo, por falta de docentes especializados, ou por
questões ideológicas. Há divergências sobre o seu conteúdo e já se observou, em muitos
locais, que o direito agrário, por não constar no rol das disciplinas obrigatórias dos
cursos jurídicos, integra a graduação, num curto período de seis meses, como disciplina
optativa, ou, ainda, seu programa se restringe à parte contratual e à defesa da
propriedade rural. O MEC tem trabalhado muito a tese da vinculação do conteúdo
programático à realidade local do curso, e, como o Brasil, na maioria das cidades que
apresentam propostas para abertura de cursos jurídicos, possui característica rural, com
a expectativa da aprovação, acabam por incluir a disciplina agrária sem muito entender,
algumas vezes, do seu conteúdo ou objeto.
Felizmente, as universidades, em sua maioria públicas, optam por estudar o
direito agrário no tempo de um ano, transmitindo um conteúdo crítico e detalhado que
perpassa por todos os institutos agrários, permitindo que o profissional do Direito esteja
apto a atuar em vários setores jurídicos, de forma convincente e justa. Hoje, também os
concursos públicos, principalmente os da esfera federal, apresentam em seus conteúdos
a disciplina agrária, como parte de suas exigências, o que acaba por ocasionar o
interesse pela matéria.
Por iniciativa da ABDA18 (Associação Brasileira de Direito Agrário), está
sendo motivado o ensino do direito agrário, ao longo de um ano, ao menos na
graduação, com amplo programa, que trata das questões públicas e privadas de tal
ciência. Junto aos cursos de pós-graduação, tem crescido a procura por pesquisas na
área rural, com vertentes sobre os movimentos sociais e também o Direito Ambiental;
contudo, há registro de muitos trabalhos que pesquisam exclusivamente o direito
agrário, nas mais diferentes questões.
A questão ideológica se faz presente no item didático, uma vez que muitos
docentes ou discentes se envolvem com a divisão de terras no Brasil, associando as
questões das lutas dos movimentos sociais sobre a ocupação do solo brasileiro e suas
reivindicações constitucionais. Nesse diapasão, incluem-se dados sociológicos justos,
que motivam e orientam uma melhor postura do direito diante das questões agrárias.

18
A Associação Brasileira de Direito Agrário, ABDA, com sede em Goiânia, promove esse direito por
meio de congressos e reuniões, e conta com o apoio imensurável de Maria Célia dos Reis, procuradora do
Incra e uma batalhadora das causas agrárias, em conjunto com Helio Novoa, outro grande agrarista e
também procurador do Incra. Em Goiânia, está presente o Mestrado da UFG, que formou inúmeros
mestres em direito agrário.

172
Direito Agrário Ambiental

Entende-se que essas ocupações, esses protestos, essas lutas19 devem, sim, se constituir
como institutos do direito agrário, uma vez que todos eles clamam por efetivação de
direitos, negados por séculos. Afirma-se essa postura declarando a importância deste
estudo como ilícito civil? Como assunto sociojurídico? Como direito negado à maioria
dos povos brasileiros? Como direito de protesto? Como crime? Enfim, este capítulo
novo, mas tão antigo em sua essência, integra o novo programa de Direito Agrário, sim,
apesar de alguns agraristas quererem ignorar as pressões e lutas. Essas situações têm
como fim a justiça, e os que trabalham com esta devem estar preparados para agir
nessas lides.
A autonomia científica consolidou-se com os trabalhos dos juristas envolvidos
nas pesquisas, com a análise histórica da evolução dos conceitos, das teorias e dos
institutos agrários. Há trabalhos dos estudiosos, com ideologias arcaicas, tradicionais,
fiéis às oligarquias rurais, que acreditam fielmente na propriedade absoluta e na
manutenção do direito da defesa do latifúndio, da monocultura e da economia de
exportação. Como há, também, os pensadores agraristas com viés social, preocupados
com injustiças seculares, em defesa dos que trabalham a terra, dos que valorizam a terra
como meio de sobrevivência, de luta pela erradicação da fome, viabilizando a produção
de alimentos. Uma nova bandeira integra essa luta, a dos que ambicionam um direito
agrário mesclado com o direito ambiental, na busca da preservação das matas, do solo,
das florestas, organizando um direito sustentável. Uma situação está ligada à outra. A
cientificidade cresce com luta e obstáculos, mas ganha posturas de ciência jurídica. A
criação da Abla20 (Academia Brasileira de Letras Agrárias) é a manifestação real da
preocupação dos agraristas em divulgar seus trabalhos e trocar experiências entre
regiões. O direito agrário cresce, enquanto doutrina e pesquisa, ampliando seus
horizontes.
Pontes de Miranda (1983, p. 248) descrevia em sua obra que “a ciência do
direito é o todo de conceitos e enunciados com que pode o jurista apanhar o sentido
histórico das regras e das instituições, sentido atual e toda a natureza da categoria
jurídica ou da regra, no quadro científico”.
Assim, ver ciência é mais que enxergar uma parte, requer toda uma estrutura de

19
O MST, apesar de hoje estar numa posição, em parte, criticável, é um grande responsável da luta pela
terra. Conseguiu grandes modificações na estrutura jurídica e faz pensar o direito plural.
20
A Abla foi uma criação dos agraristas, por iniciativa de Alcir Gursen, Altir Maia, Darcy Zibetti, Lucas
Barroso, Elisabete Maniglia. Reúne agraristas de todo o Brasil, e cada membro tem um patrono, sendo
que o desta autora é José Gomes da Silva.

173
Direito Agrário Ambiental

investigação e conhecimento do ordenamento do próprio direito positivo. É conhecer


um todo de realidade, costumes, normas, aspirações de uma comunidade – no caso em
tela, a rural. Porquanto faz-se valer do pluralismo jurídico para uma melhor
compreensão e eficácia. Entende-se como pluralismo a oposição ao unitarismo
determinista do materialismo e do idealismo moderno, pois advoga a independência e a
inter-relação entre realidades e princípios diversos. Parte-se do princípio de que existem
muitas fontes ou fatores causais para explicar não só os fenômenos naturais e
cosmológicos, mas igualmente as condições de historicidade que cercam a própria vida
humana (WOLKMER, 2001, p. 172).
Nesse sentido, o direito agrário deve ser constituído de uma visão com base na
tolerância, em que há conflitos de interesse, diversidade cultural, religiosa, histórica,
costumeira e em que se nega que o Estado seja a única fonte exclusiva de todo o Direito.
Como ensina Wolkmer (2001, p. 183), trata-se de uma visão antidogmática e
interdisciplinar, que advoga a supremacia de fundamentos ético-sociológicos sobre
critérios tecnoformais. Assim, minimiza-se ou exclui-se a legislação formal do Estado e
prioriza-se a produção normativa multiforme de conteúdo concreto, gerada por
instâncias, corpos ou movimentos organizados semiautônomos que compõem a vida
social.
Vale afirmar essa importância do pluralismo jurídico para todos os ramos do
Direito, mas, em especial, aqui, para o Agrário, no qual as culturas regionais e os
costumes se interpõem, fazendo comunidades rurais das mais diferentes espécies. Vale
lembrar os movimentos sociais que ditam soluções, os grupos ambientalistas que lutam,
as ong’s, as associações, de participações civis em órgãos públicos e em outros tantos
setores que intercedem pelo direito agrário, construindo uma gama de relações jurídicas
nem um pouco desprezível.
A conceituação de direito agrário não pode ser estática, urge mudanças na sua
aplicação; mas seu conteúdo vem com a visão clássica de autores célebres, como Sodero
(1968, p. 32) que assim explicita esse ramo: “Conjunto de princípios e normas de
Direito público e privado que visa disciplinar as relações emergentes da atividade rural
com base na função social da terra”.
Raymundo Laranjeira (1981, p. 58) assim expressa: “Direito Agrário é o
conjunto de princípios e normas que, visando imprimir a função social à terra, regulam
relações afeitas à sua pertença e a seu uso e disciplinam a prática das explorações
agrárias”.

174
Direito Agrário Ambiental

Ballarin Marcial (1975, p. 441) considera:


O Direito Agrário é o sistema de normas, tanto de Direito privado
como de Direito público, especialmente destinadas a regular o estatuto do
empresário, sua atividade, o uso e a tendência da terra, a unidade de
exploração e a produção agrária em seu conjunto segundo princípios gerais
peculiares a este ramo.

Rodolfo Carrera (1978, p. 5) define:


O Direito Agrário é a ciência jurídica que contém os princípios e
as normas que regulam as relações emergentes da atividade agrária, a fim de
que a terra seja objeto de uma eficiente exploração, alcançando uma maior e
melhor produção, assim como uma mais justa distribuição da riqueza em
benefício dos que nela trabalham e da comunidade nacional.

Daí podem-se afirmar que os conceitos, embora variáveis, refletem a tendência


para o cumprimento da função social, para o bem-estar do homem do campo, para o
aumento da produção por meio de leis, princípios e normas, realidade social, de
natureza pública e privada, tendo como objeto a atividade agrária.
O espaço rural é o centro aglutinador de toda a atividade agrária, de seus
sujeitos, do agricultor, dos seus elementos materiais, da exploração e do produto
agrário, e de sua atividade comercial, incluindo o mercado agrário, os frutos e os
alimentos, enquanto elementos de intercâmbio desse mercado.
Essa nova abordagem, que inclui a atividade agrária como principal centro do
direito agrário, sendo acompanhada das atividades acessórias que se interligam a esse
ramo, justifica a nova faceta do direito agrário da comunidade européia, que reflete um
novo dinamismo crescente desse ramo do Direito, atento à real situação da agricultura, à
sua exploração, à empresa, à agroalimentação voltada para explorações eficientes,
através de métodos de produção e cultivo com respeito ao meio ambiente,
compreendendo o cultivo vegetal e animal.
A nova tendência dos mercados, voltada para a geração de produtos orgânicos,
também clama por tendências legais diferenciadas e por formas de abastecimento
regulamentadas. Há de se considerar que o direito agrário deve estar atento a todas as
formas de atividades agrárias e que a função social da propriedade poderia até ter,
muitas vezes, um aspecto mais moral do que jurídico; mas, hoje, essa posição está
realmente combatida e superada, pois, segundo Marcial (1991, p. 67), a moderna teoria
da função social é eminentemente jurídica, pois trata de conseguir um sistema de
normas que obriga os proprietários a empregar sua riqueza de forma que não prejudique

175
Direito Agrário Ambiental

os interesses da coletividade. Essa obrigação se vincula logicamente a tipos


determinados de bens, aqueles que estão ligados ao bem comum.
Delgado de Miguel (1993, p. 45) aponta que a nova vertente do direito agrário
confirma um dinamismo que se converte na multiplicidade e variedade da norma
jurídica agrária, que deve estar atenta sempre à necessidade real e às configurações de
situações. Para tanto, o espaço rural se converte no centro aglutinador de toda a
atividade agrária de seus sujeitos, do agricultor, de seus elementos materiais, da
exploração e do produto agrário diante do mercado agrário, dos frutos e alimentos,
enquanto elementos desse intercâmbio. Assim, mais que produzir, é necessário estar
atento ao sistema produtivo, para atender a todas as demandas do consumidor e à
qualidade que é exigida. Para tanto, é necessário formar um empresário agrário
profissional, coerente com as modalidades ambientais, disposto a enfrentar desafios que
não prejudiquem os interesses da coletividade.
A empresa agrária, para Scaff (1997, p. 46), é a atividade organizada
profissionalmente, em um estabelecimento adequado ao cultivo de vegetais ou à criação
de animais, desenvolvida com o objetivo de produção de bens de consumo. De Mattia
(1995, p. 51) lembra que,
para ser empresário agrário, não necessita ser proprietário produtivo, pode ser
empresário o possuidor, o usufrutuário, o arrendatário, o concessionário de
terra, o parceiro outorgado. Ocupa hoje a empresa agrária um lugar de
destaque no horizonte rural, pois ela está adstrita à função social e tem um
sentido muito mais amplo que o definido no Estatuto da Terra no seu artigo
4, inciso VI.

Há de se falar, hoje, que a empresa agrária reúne o estabelecimento agrário, o


empresário agrário e a atividade agrária. Constitui-se no objeto central do direito
agrário, porque nela se fundem a atividade agrária, as pessoas e os bens envolvidos na
prática dessa atividade. Nesse entender, a empresa agrária pode ser integrada pela
pequena propriedade, pela média e pela grande propriedade, independente de seu
capital, ou de sua constituição jurídica.

2. PRINCÍPIOS E CARACTERÍSTICAS DO DIREITO AGRÁRIO


Como observado, a atividade agrária se constitui no cerne do direito agrário.
Não são a propriedade rural, a Reforma Agrária, ou os contratos, o seu objeto de estudo.
Estes últimos são estudados pelo direito agrário porque contemplam a atividade agrária,
de uma forma direta ou indireta. Outros autores apontam a importância da atividade

176
Direito Agrário Ambiental

agrária para o funcionamento da empresa agrária, devendo, só nesse contexto, ser


considerada. Como a atividade agrária é exercida, ou onde ela tem criação, são
elementos importantes para o direito agrário, assim como a política agrícola, que
permite o sucesso dessa atividade e toda a infraestrutura que lhe dá condição. Este é o
conteúdo pleno do direito agrário, sendo que a atividade agrária orienta seu estudo.
Para caracterizar uma atividade como agrária, recorre-se a estudos pretéritos
estrangeiros que, no Brasil, foram denominados por Giselda Hironaka (1997) como
teorias clássicas da caracterização da atividade rural.
Carrera elaborou a teoria denominada “Agrobiológica”, fazendo, em linhas
gerais, uma coesão entre o agronômico e o jurídico, associando a terra e a vida como
fatores diferenciadores da atividade rural, em relação às demais atividade humanas
(HIRONAKA, 1997, p. 6). A atividade agrária existe, a seu ver, quando se realiza na
terra, quando o homem explora a terra para fazê-la produzir, através de um processo
agrobiológico, os frutos destinados a seu consumo direto. Nesse entender, o homem é
elemento essencial para a produção e, consequentemente, para a atividade agrária.
Carrozza (1988, p. 80), por sua vez, defendeu a teoria da Agrariedade, em que
afirmou existir uma noção extrajurídica que caracteriza qualquer instituto jurídico como
agrário. Dá a introdução da noção de risco, na ideia do processo agrobiológico,
defendido por Carrera. Seria agrária toda atividade cujo ciclo biológico estivesse sujeito
às intempéries da natureza, que escapam ao controle humano. Segundo essa teoria,
mesmo que haja um ciclo biológico na terra, mas totalmente controlado pelo homem,
essa atividade não será caracterizada como agrária. Onde incidisse o controle do homem
com calor, luz, técnicas artificiais, essas não seriam consideradas atividades agrárias.
A terceira teoria tida como clássica é a teoria da Acessoriedade, de Vivanco
(1967, p. 20-21), que entende como agrárias, além da atividade típica de produção rural,
aquelas decorrentes de índole econômico-social. A sua principal intenção foi verificar
quando a atividade industrial ou comercial estão sob o manto da atividade agrária e
quando são independentes da mesma. Nesse sentido, estabeleceu alguns critérios para
tal distinção, dentre eles o da necessidade, o da relevância, o da autonomia, o da
normalidade, o da ruralidade e, finalmente, o da acessoriedade. Pelo critério da
necessidade, é agrária toda atividade imprescindível ao cultivo do solo e à criação de
animais, de maneira que abarca todas as atividades de transformação e venda de
produtos, pois são necessárias às atividades produtivas. O critério da prevalência nasce
como uma crítica ao da necessidade, na medida em que a transformação e a venda, ao

177
Direito Agrário Ambiental

assumirem a predominância sobre a atividade de cultivo e criação, passam a se revestir


da natureza de atividade industrial e comercial, respectivamente.
Já o critério da autonomia determina que uma atividade é industrial, ou
comercial, quando os atos de transformar e de vender puderem se realizar de forma
autônoma na atividade de cultivo e criação de animais.
Por sua vez, o critério da normalidade disciplina que a atividade agrária é
aquela realizada normalmente no cotidiano agrário. Noutra linha, o critério da
ruralidade apregoa que a atividade é agrária quando se relaciona à vida e ao trabalho
agrícola, determinada em função da localização do imóvel.
Por fim, destacou o critério da acessoriedade, que dá nome à teoria, segundo o
qual a transformação e a venda serão atividades agrárias quando forem complementares
às atividades de cultivo e criação (produtiva).
Vivanco (1967, p. 21) apresentou sua classificação das atividades agrárias
como sendo próprias: a produtiva, a conservativa e a preservativa; acessórias: a
extrativa e a capturativa; conexas: a manufatureira, a transportadora, a processadora, a
lucrativa e a consuntiva e as atividades agrárias vinculadas às demais, que se inter-
relacionam.
No que tange à análise das teorias, pode-se considerar que cada teoria
apresenta um pouco de verdade, mas não há prevalência de uma sobre a outra e, sim,
adaptações à realidade de cada país. Olavo Acyr Rocha (1999, p. 42-43) considera que
as teorias clássicas devem ser analisadas tendo-se presente, outrossim, a
evolução histórico-científica e legislativa de cada país com suas condições
próprias de tempo e lugar, bem como a constante evolução técnica e
tecnológica do Direito e das ciências afins.

Helio Novoa (2001, p. 40) considera que a prevalência deve ser atribuída à
teoria de Vivanco (ROCHA, 1999, p. 20-21), abraçando-se o critério da acessoriedade,
pois, no Brasil, há a carência de um critério, ou de uma teoria tipicamente brasileira.
No Brasil, a atividade agrária vem delineada em diferentes diplomas legais e
torna-se motivo de controvérsia quando apreciada por jusagraristas. O Estatuto da Terra
trata de dizer, em várias oportunidades, da exploração extrativa agrícola, pecuária ou
agroindustrial, a saber: arts. 1º, 4º, 5º, 10, 25, 47, 75 e 92.
Conforme Dimas Scardoelli (2004, p. 30), o Estatuto da Terra utilizou-se da
noção de atividade agrária na determinação de muitos outros institutos, embora não
tenha definido legalmente o instituto jurídico da atividade agrária. Na mesma linha, o

178
Direito Agrário Ambiental

autor diz que outros diplomas legais elencam atividades tidas como rurais, sem defini-
las. São os casos da Instrução Especial Incra n. 5, de 1973 e de algumas leis que versam
sobre tributos relacionados à atividade rural.
A primeira, em seu artigo 3º, apregoa que os tipos de exploração rural no Brasil
são enquadrados nas classes de hortifrutigranjeiros, lavoura permanente ou temporária,
pecuária e florestal. A lei n. 8.629/93, em seu art. 4º, reza sobre exploração agrícola,
pecuária extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial. No âmbito tributário, o art. 2º
considera atividade rural a agricultura, a pecuária, a extração e a exploração vegetal e
animal, a apicultura, avicultura, cunicultura, suinocultura, sericicultura, piscicultura e
outras culturas animais. Ainda, a transformação de produtos decorrentes da atividade
rural, sem que haja alteração da composição e das características do produto, o cultivo
de florestas que se destinem ao corte para comercialização, consumo ou
industrialização. O decreto tributário n. 4.382/2002 versa sobre ITR, e seu art. 18
descreve as mesmas atividades agrárias já mencionadas, o que faz afirmar que os
dispositivos não são conflitantes, quanto à eleição de atividades tidas como rurais.
Na realidade brasileira, outras dúvidas surgem quanto à criação de animais para
esporte, prestação de serviços de eqüoterapia, aprimoramento genético, serviços de
coleta de sêmen. Animais para esporte e lazer, jardinagem, sementes para plantio,
culturas hidropônicas e agroturismo. Seriam essas atividades agrárias? Todas elas
vinculam-se ao aspecto agrário, mas não são tratadas como tais, para fins de tributação e
outras considerações jurídicas. Mas, trazem a característica do meio rural, o que, dentro
das teorias, faria com que pudessem ser consideradas atividades agrárias acessórias e o
Direito Agrário poderia incidir sobre as mesmas, conforme entendimento hodierno.
Neste entendimento, vez que ampliando o leque das atividades agrárias, o meio
ambiente, principalmente, estaria mais bem protegido, assim como estar-se-ia diante de
outras opções de frentes de trabalho rural, valorizando, desta feita, o que Graziano
(1996, p. 8-11) sempre defendeu como uma Reforma Agrária não essencialmente
agrícola21.
Quanto ao turismo rural, Maniglia (1999, p. 226), em outros trabalhos, defende
a ideia de que este deverá ser incluído no rol das atividades agrárias, pois reflete um
compromisso com o local, os costumes rurais, a natureza e a paisagem rural; enfim,

21
Este trabalho será reapreciado, ao longo desta tese. Consiste em equacionar a questão do nosso
excedente populacional, com uma reforma agrária que permitisse a combinação de atividades agrícola e
não agrícolas, com a vantagem de usar menos terra e mais opções de emprego.

179
Direito Agrário Ambiental

reflete o caráter agrário, em seu âmago (SCARDOELLI, p. 30). Ademais, o turismo


rural é encontrado em qualquer ponto do Brasil, e essa atividade movimenta o social, o
econômico e o ambiental, motiva o comércio de animais em geral, estimulando a
atividade agrária como fonte de emprego e atração sustentável, fomentando a
permanência, inclusive do homem, no campo e atraindo outros para esse local.
Descrito o cerne do Direito Agrário, é de se considerar que as características
que o motivam vêm por meio da política agrária, que deve ser uma atividade ideológica,
motivada pelo bem estar da coletividade, uma atividade ordenadora da vida social,
através da qual um grupo de pessoas e instituições influi ou direciona as demais, para
novas formas de conduta. Deve ser eminentemente prática, com tendência teológica
para atingir fins. É instável, porque sofre com as mudanças permanentes de caráter
histórico, tecnológico e social, mas seus fins são os mesmos.
Os meios para desenvolver seus objetivos são múltiplos. O sistema estatal
deverá estar sempre atento aos ditames constitucionais dispostos nos princípios
jurídicos gerais de cada Estado. O Brasil traz a marca da constitucionalização do direito
agrário e das políticas de reforma agrária, política agrícola e agrária. Portanto, as fontes
são as leis, os costumes, a jurisprudência, a dogmática, os clamores sociais, as praxes
hegemônicas, e tudo mais que se refletir nos anseios sociais.
No que tange aos princípios, recorre-se aos ensinamentos de Laranjeira, que
elenca, na doutrina nacional, os seguintes princípios fundamentais:
a) princípio do aumento da produção e dos níveis de produtividade;
b) princípio do asseguramento de justiça social;
c) princípio da privatização das terras nacionais;
d) princípio da proteção à propriedade familiar camponesa;
e) princípio do dimensionamento eficaz das áreas exploráveis;
f) princípio do estímulo à produção cooperativista;
g) princípio do fortalecimento da empresa agrária;
h) princípio da proteção à propriedade consorcial indígena (SCARDOELLI,
p. 169).
Sodero (1968, p. 14) e Paulo Torminn Borges (1998, p. 7) destacam, como
princípio fundamental, a função social da propriedade, sendo que o segundo enfatiza o
progresso econômico e social do rurícola, o combate aos mercenários da terra, à
exploração predatória, e o desenvolvimento do sentimento de liberdade e de igualdade
com implantação de justiça distributiva. Na doutrina estrangeira, vale lembrar que os

180
Direito Agrário Ambiental

princípios de cooperação e de organização profissional são vistos por Jacques Audier


(2002, p. 3-4) como fundamentais para vencer as barreiras impostas pelo mundo rural,
que se apresenta diferente, heterogêneo e sob mutações. Ademais, o direito agrário, na
Europa, traz a marca da conformidade comunitária que, para o autor citado, visa à
modernização e ao desenvolvimento da agricultura, à adaptação ao contexto
comunitário e internacional, à adaptação ao mercado competitivo capaz de exportar
regramento e desenvolvimento do território, ao equilíbrio dos espaços rurais, à proteção
do meio ambiente e à participação na luta contra a fome no mundo.
Em nível nacional, acredita-se que a função social da propriedade, por tratar
dos elementos econômico, social e ambiental, seja a tônica do direito agrário, pois a
exigência desse cumprimento implica a perda da propriedade que não respeita – ao
menos sob o ponto de vista constitucional (art. 184, CF) – esse dispositivo que
consolida grande parte dos princípios aqui descritos. Há de se considerar, ainda, que
outros ditames constitucionais devem ser observados quando se trata de princípios
agrários, como, por exemplo, os objetivos do Estado, as garantias fundamentais, as
metas para a iniciativa privada, as propostas ambientais, tributárias e empresarias, sem
deixar de tomar em conta os anseios sociais manifestos nas lutas da sociedade civil.
Rafael Mendonça de Lima (1997, p. 45), apoiado nas lições de Vivanco (1967,
p. 184), afirma que o direito agrário é dependente da política agrária, que seria uma ação
de planejamento do poder público. A política agrária tem de ter um fundamento jurídico
e, nesse caso, o fundamento jurídico é extraído do direito agrário positivo, que é
elaborado para atender a essa política. Conclui, pois, que a formação dos princípios do
direito agrário tem íntima relação com a política agrária e esta, com os dados da
Sociologia rural, da Agronomia e de todas as ciências que importam à atividade agrária.
Umberto Machado Oliveira (2004, p. 135), em sua obra recente, discorda do
pensamento dos juristas acima e justifica:
Com a devida vênia que o autor merece, e está muito bem
acompanhado, dissentimos de seu pensamento por uma convicção simples:
não admitimos que os princípios agrários sejam frutos da Política Agrária,
mas sim que a Política Agrária seja elaborada em respeito e observância aos
princípios do Direito Agrário. Sabido é que o substrato jurídico – uma lei
ordinária é indispensável para implementação, pelo Poder Executivo, da
Política Agrária, a qual está sujeita a influências momentâneas de caráter
ideológico. Não podemos admitir, pois, que os princípios de Direito Agrário
encontrem sua origem na Política Agrária ou que o Direito Agrário incorpore
os princípios nela eventualmente inseridos.

181
Direito Agrário Ambiental

Comunga-se, neste trabalho, com o referido pensamento, com a ressalva de


que, sob o ponto de vista teórico e científico, nada mais coerente do que o proposto pelo
autor; todavia, na prática, muitos países desprezam os princípios do direito agrário
quando firmam suas políticas agrícolas, favorecendo os grupos econômicos, as políticas
internacionais neoliberais, ou, ainda, quando elaboram leis coerentes com os princípios
agrários, mas as ignoram.
Em se tratando de direito agrário europeu, há que se respeitarem as normas
comunitárias, que dão outras características a esse ramo que estabelece preocupações
múltiplas com o meio ambiente, com a organização profissional e com a segurança
alimentar do mundo. Elementos estes que, no fundo, em nada diferem dos elementos
constitutivos da função social brasileira, descrita no art. 186 da Constituição Federal
pátria, com a diferença de que, lá, são rigorosamente cumpridos e, aqui, ainda se
encontram na luta para sua efetivação.
Conclui-se, então, que o direito agrário, hoje, é um ramo autônomo, didático e
cientificamente independente, com princípios bem delineados, tendo por base o estudo
da atividade agrária, com características específicas do meio rural, trazendo a marca da
agrariedade e tendo como meta o estudo de múltiplos institutos, a saber: atividade
agrária, reforma agrária, contratos agrários, propriedade rural e suas intercorrências,
cooperativismo agrário, crédito rural, lutas sociais por terra, movimentos sociais pela
melhoria do homem do campo, trabalho rural, meio ambiente agrário, seguridade
alimentar, qualidade de produção e todos os reclamos que nutrem a questão jurídica
agrária. Os institutos variam de país para país, respeitando as exigências territoriais e as
necessidades locais, sem, todavia, deixar de ambicionar os ditames internacionais de
padrão de qualidade e quantidade de alimentos e os meios para sua produção,
organização e comercialização dos produtos agrários. No Brasil, seu estudo é
abrangente, tomando em conta a preocupação fundiária e a política agrícola, reunindo,
assim, mais institutos que os demais países, uma vez que ainda não superou sua fase de
ocupação democrática do solo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Direito Agrário, em tempos hodiernos, vai muito além daquilo que
inicialmente foi proposto pelos agraristas em 1964. Obviamente não por descuido
daqueles que criaram há 50 anos o Estatuto da Terra, mas simplesmente porque, como
todo ramo jurídico, evolui e se adequa às necessidades sociais. Sem dúvida, a certeza

182
Direito Agrário Ambiental

de que muito do legado do estatuto está presente na vida agrária. A Politica fundiária e a
Politica Agrícola são divisões necessárias, assim como diversos institutos estão
presentes no quotidiano rural. As cooperativas, o crédito rural, o conceito de imóvel
rural, a importância da agricultura familiar, o resgate tributário do ITR- imposto
territorial rural, a reforma agrária não conclusa, a politica de assentamentos se fazem
presentes no momento agrário, aliados aos princípios constitucionais basilares,
elencados nos artigos 184 a 191 e em mais outros tantos, como o que é pertinente à
função social, às terras públicas e a espécie devoluta, as terras indígenas, as terras
quilombolas, aos povos da floresta, sem alijar os princípios ambientais descritos neste
documento.
Mais além, o conceito de direito agrário é universal, ressalvadas as
especificidades geográficas e populacionais, porque garante a sobrevivência das
espécies e desenvolve a proteção ambiental do planeta em grande parte envolvendo a
biodiversidade, as florestas, os rios, atividades agrárias sustentáveis, a água, os recursos
naturais e a produção de alimentos saudáveis. De maneira correta, implica a garantia de
trabalho rural, de subsistência para famílias agrárias e de proteção contra o inchaço das
cidades.
O direito agrário é de natureza jurídica mista, e, como se entende, muito
público, mais do que privado, pois suas diretrizes são advindas da Constituição Federal,
trata do interesse social, garante uma série de direitos sociais e depende em quase tudo
das normas públicas e da intervenção do Estado.
Vários são os conceitos que definem esse ramo jurídico rural; não importa qual
a opção de definição fundamental, o espírito agrarista é aquele que entende a terra como
algo diferente dos demais institutos de propriedade ou posse.
A luta pela mantença do estudo de Direito agrário é algo que deve proliferar
em todo mundo em especial no Brasil. A visão jurídica agrarista deve servir para
contemplar o progresso do País em toda atividade produtiva que sirva para garantir a
segurança e a soberania alimentar. Que o direito agrário seja difundido e associado a
todo serviço de proteção e exaltação do trabalhador rural e melhoria de dignidade para
esse homem. Que o direito agrário seja exemplo de construção de sustentabilidade e
preservação ambiental, construindo normas e premiando aqueles que desenvolvem suas
atividades em prol de um mundo ambientalmente melhor. Assim será a missão desse
ramo jurídico que se estrutura na missão de realizar a justiça social.

183
Direito Agrário Ambiental

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Direito Agrário Ambiental

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186
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO IX - NOVOS DESAFIOS NO TRATO DOS DIREITOS HUMANOS:


AS TENSÕES ENTRE MERA FORMALIDADE E DEMANDAS POR SUA
EFETIVIDADE: UMA ANÁLISE DA QUESTÃO AGRÁRIA SOB VIÉS
CRÍTICO-REALISTA22.

Lorena Freitas23

INTRODUÇÃO
O objeto deste artigo é o exame da crise e dos limites heurísticos da matriz
liberal-individualista, a qual, no que concerne aos direitos humanos, tenta circunscrever
sua exegese a um caráter de mera promessa formal, confundindo (deliberadamente ou
não) o aspecto (necessário, porém não suficiente) de sua garantia instrumental com as
demandas sociais por sua concretização.
Tal objeto será efetivado através do exame de um problema secular em nosso
país, qual seja a questão do acesso à terra, isto é, da (não) implementação de uma
reivindicação histórica de nossa sociedade, a reforma agrária, a qual, por mera via da
aplicação da constituição vigente, no que concerne à função social da propriedade,
andaria bastante naquilo que envolve a sua expressão real na vida social.
Por isso, e para abordar o esgotamento teórico e prático da mencionada matriz
paradigmática liberal-individualista, é que se faz uso dessa questão premente na
realidade brasileira - mais especificamente, nordestina, a qual ganha a forma do
problema a ser enfrentado. Isso significa que se trata de responder à seguinte questão:
quais as causas pelas quais o secular problema agrário resta como questão pendente de
solução em nossos tribunais, em termos de concretização jurídica?
A hipótese que norteia a pesquisa é a de que, embora a questão agrária, por sua
complexidade, demande esforço de outras esferas estatais, cabe ao judiciário concretizá-
la e à doutrina, cuja função é inafastável para o direito, esclarecê-la.
Mais especificamente: a filosofia (e a teoria do direito), em suas vertentes
centrais, tratam a função social da propriedade como uma proposição genérica /
abstrata, de caráter meramente programático, e, no geral, limitam-se a uma aplicação

22
Este artigo foi originalmente apresentado no Encontro do GT Ética e Cidadania da Anpof ocorrido em
agosto de 2015 em Sobral-CE.
23
Doutora em Direito e Professora Adjunta na UFPB.

187
Direito Agrário Ambiental

privatista da Constituição, situação que pode ser pesquisada sob o viés realista da
racionalização legal da vontade e dos interesses que estão no cerne de qualquer decisão.
Para testar tal hipótese, foram usados os recursos de um aparato bibliográfico e
decisional concernentes à organização de uma pesquisa que tem produzido
investigações - este artigo é uma delas - desde 2012 e que conformam observatório
sobre a função social da propriedade da terra.
Isso tem resultado em estudos que examinam e fornecem argumentos no campo
da teoria e da práxis sobre a concretização da função social da propriedade, enquanto
direito fundamental, e suas repercussões positivas do ponto de vista social.
Isso porque o desvendar da temática proposta, ancorado num olhar descritivo,
isto é, materialista / realista (sem, nem por isso ou apesar disso, deixar de ser filosófico),
notadamente em questão tão premente quanto o conflito por terra, consegue dar conta,
com mais amplitude e profundidade, da compreensão das matrizes sociais e jurídicas do
conflito.
Tal olhar repercute na medida em que se opõe àquelas perspectivas cujo foco é
inteiramente voltado a apontar como a legislação deveria ser ao invés de examiná-la
como efetivamente é e compreendê-la em suas condicionantes sociais, sem que isso
signifique abrir mão da potencialidade crítica que tem o desvelar do direito como ele
objetivamente se apresenta ao aplicador.
Por isso mesmo é que a hipótese de pesquisa será levada adiante, tendo em
consideração um aspecto bastante peculiar, pois, na medida em que consiste num estudo
das práticas sociais, visa desenvolver uma reflexão crítica acerca de um momento
específico, ou seja, a aplicação do direito e suas implicações éticas.
Por isso, e para efeitos de delimitação do objeto, o conflito por terra rural será
sempre caracterizado por aquela situação em que uma das partes recorre à tutela estatal,
o que, em um dado momento, requer decisão judicial, e na qual a disputa envolve,
alternada ou cumulativamente, ações de resistência à desocupação, enfrentamento pela
posse, pelo uso e pela propriedade de terras.
No que concerne ao marco teórico, a abordagem será pautada na convergência
de matrizes filosóficas no campo da ética prática que entendem o direito de propriedade
enquanto feixe de obrigações do titular perante a comunidade e cujo marco se reflete
numa atitude descritiva preocupada em examinar, sob uma ótica realista e enquanto um
dado de fato da razão prática: juízes e tribunais são quem concretiza normas, o que nada

188
Direito Agrário Ambiental

tem a ver com uma atitude apologética de um decisionismo no qual a vontade é


entendida de forma isolada e colocada, em caso de conflito, acima do teor normativo.
Por critério metodológico, dividiu-se o presente artigo em três partes:
Na primeira, cuida-se de estudar como se expressa o conflito entre direito de
propriedade, sua função social e os motivos pelos quais ela leva a uma visão algo
deslocada do que efetivamente acontece nos “caldeirões dos tribunais”.24
Na segunda parte serão examinadas as bases teóricas pelas quais se trata o
direito pelo foco descritivo e, com isso, se pretende contribuir filosoficamente com essa
atividade, esclarecendo-a e fornecendo-lhe argumentos que melhor a qualifiquem. Aqui,
o realismo será tomado apenas enquanto uma resposta dentre outras, só que mais
adequada e com potencial heurístico mais ampliado para apontar caminhos e
compreender a forma jurídica.
Na terceira parte – que se entende ser a principal - serão examinados os
padrões de argumentação e justificação, isto é, um exame dos fatos sociais e como eles
se expressam numa realidade empírica, o estado da Paraíba, sem deixar de discutir o uso
de topos e figuras retóricas para obtenção de adesão dos destinatários, pois embora
curial a existência de um aparato estatal que vise garantir o cumprimento das normas,
quanto mais elas forem fundadas no consentimento e menos na coerção, tanto melhor,
na medida em que ganham em legitimação (FEITOSA, 2012, p. 385-388).
Com isso, o objetivo geral do artigo constitui-se em fazer uma análise com
relação aos conflitos de terra, com o fim de qualificar a atividade de decisão em
questões dessa natureza - da maior relevância social, dado o impacto social do conflito e
enquanto campo eminentemente teórico, cuja finalidade deve ser esclarecer a práxis dos
que decidem.

1. DIREITO DE PROPRIEDADE X FUNÇÃO SOCIAL – ENQUADRANDO


TEORICAMENTE O CONFLITO
Nessa primeira parte se procura observar a repercussão que a visão liberal –
apologética – do direito de propriedade teve e tem na interpretação privatística do
mesmo, herdeira que é de um modelo dos séculos XVIII-XIX, a ideia da propriedade
como direito erga omnes, influência essa que marca, desde a formação inicial, o
operador de direito. Esse trato do direito, que de certa forma perdura até hoje, é

24
A expressão “caldron of the courts” é de CARDOZO (2005, p. 6).

189
Direito Agrário Ambiental

permeado por ilusões de referência e por um discurso aparentemente neutro que não
leva em conta a ideologia contida na forma jurídica e que, por isso mesmo, subestima o
direito enquanto lugar de poder, dominação e justificação.
Aparentemente de forma contraditória, tal perspectiva liberal está mais focada
em uma atitude prescritiva perante o direito empiricamente verificável do que em
entender como ele efetivamente funciona, notadamente em seus padrões de
argumentação, justificação e tomada de decisões, desnudando o fato de que entre o
compromisso da razão com a vontade, no direito concreto, a segunda predomina.25
Isso se reflete no exame dos conflitos sobre direito de propriedade privada de
extensas porções de terra, como ocorre no Brasil, que segue, no que concerne à sua
questão agrária, vitimado por um atraso secular, iniciando-se de logo pelo status teórico
do problema.
A questão da propriedade foi bem estabelecida - e segue guardando atualidade
– por um jusfilósofo que não pode ser tido na conta de um “maximalista” – trata-se de
Duguit. Ele, ao criticar a concepção absoluta do direito de propriedade privada, aponta
algumas de suas consequências danosas: “A propriedade não é direito subjetivo do
proprietário: é função social do possuidor de riquezas” (DUGUIT, 2006, p. 147-159,
173).
Ora, tais conflitos não são problemas pontuais e têm raízes longínquas, desde a
primeira lei de terra promulgada no país, a Lei 601/1850, que consagra, em legislação
específica, pela primeira vez, a propriedade privada de terras, regulamentando e
consolidando o modelo de grande propriedade rural.
Os resultados contemporâneos dessa herança jurídica, cultural e política são
evidentes no país, no nordeste e, em especial, na Paraíba: a questão social -via de regra -
é tratada enquanto “caso de polícia” com o fim de proteger uma infinitésima parte do
corpo social, notadamente se se leva em conta que, já no final da década passada, em
nível nacional, propriedades rurais com mil ou mais hectares de dimensão
representavam apenas 1,4% do total de propriedades. No entanto, esses donos de
grandes propriedades detinham 49,4% das áreas rurais do país, ou seja, quase metade
das terras nas mãos de pouco mais de 1% de proprietários (CARDIM; VIEIRA, 2013).

25
Sobre as concepções que discutem o direito como atividade da razão ou de atos de vontade (que, quase
sempre, são manejos retóricos da racionalidade e de uma suposta “vontade geral”), ver: KAHN (2001, p.
9, 15) e ELY (2010), especialmente o 3º capítulo.

190
Direito Agrário Ambiental

E essa problemática evidenciou-se claramente a partir da Constituição de 1988,


na medida em que esta buscou equilibrar, em âmbito normativo, a tensão entre direito
de propriedade privada da terra, momento estático, quando ela é regulada em lei em
termos de pertença ao seu titular, ou seja, como um poder subjetivo (questão, como se
verá adiante, tratada em: GRAU, 2001, p. 248), com as exigências de sua função social,
seu momento dinâmico, isto é, de uso, na qual que é regulada em razão do fim social a
que se destina, ou seja, enquanto função (GRAU, 2001, p. 249; GRAU, 2000, p. 197).
Com isso restaria compatibilizada a objeção de Duguit ao que o mesmo
tachava de “noção realista de função social” em dicotomia com uma possível “noção
metafísica de direito subjetivo” (DUGUIT, 2006, p. 17-38, 167-198).
Essa questão é examinada, sob uma abordagem brasileira, dentre outros, por
Jorge Couto (1998, p. 192-193, 219-226, 262-267, 284-285, 299-305), ao analisar o que
chama de “a construção do Brasil”, e também por Darcy Ribeiro (1995, p. 149-153,
228-240, 241-244, 447-455), quando analisa: a acumulação primitiva cuja base foi o
massacre indígena, no início da colonização; a opressão aos negros como mão de obra
substituta dos índios: e, por fim, o uso de imigrantes, os quais tomaram o lugar dos
antigos escravos.
A análise desses dados aponta para o conúbio entre o latifúndio - caracterizado
por Kautsky (1968:172-178) pela centralização de grandes extensões de terra por um
restrito número de proprietários – e as instituições do Estado, com o fim de se manter
uma ordem social fundada num suposto “direito implícito de ter e manter terras
improdutivas” (RIBEIRO: 1995, p. 201), evidenciando, ao mesmo tempo, “as dores do
parto” e os “confrontos” para que se realize o que ele chama de “o destino nacional”
(RIBEIRO, 1995, p. 447-455).
Diga-se desde logo que há outras fontes referenciadas quando da
contextualização desse conflito secular, dado que o problema agrário não é apenas
jurídico e sim histórico e social26. E é em consequência dele que, hoje, o que se tem, e
desde a metade do final do século XIX, no Brasil, é uma agricultura capitalista num país
que não fez, ainda, sua reforma agrária. No campo brasileiro, até por causa dessa

26
Ainda no ‘estado de arte’ dessa pesquisa é obrigatório serem mencionados: Caio Prado Jr
(especialmente “A formação do Brasil contemporâneo”, 2011), Nelson Werneck Sodré (“A Formação
histórica do Brasil”, 1968), Alberto Passos Guimarães (“Quatro séculos de latifúndio”, 1989), Moisés
Vinhas (“Problemas agrário-camponeses do Brasil”, 1968) e Jacob Gorender (“O escravismo colonial”,
1976), para citar alguns dos principais.

191
Direito Agrário Ambiental

conformação capitalista da atividade, já não se tem mais, a não ser residualmente, o


pequeno camponês, isto é, aquele “que tem pequeno pedaço de terra ou a arrenda, não
maior do que o possível de cultivar com sua família e o estritamente necessário para
seu sustento” (ENGELS, 1997, p. 137 [1894]).
Dessa não distribuição de terra resultou um inchaço das cidades, com a
formação de enorme exército industrial de reserva, mão de obra barata e uma política
pública a ser feita para reverter esse ciclo: garantir terra, crédito e estrutura aos
trabalhadores rurais e camponeses, como modo, através da aplicação da função social da
propriedade, de se criar um mercado interno dinâmico e não um país de esfomeados que
drena significativa parte de sua produção da agricultura para o mercado externo
(FREITAS, FEITOSA, 2012:303-304).
Os antecedentes (massacre dos indígenas, regime de escravismo) e as
consequências sociais dessa legislação, notadamente no trato da questão da terra com a
violência típica dos landlords, foram evidenciados pela literatura específica: no início
do século, através de Euclides da Cunha (1982 [1901], p. 161-181 e passim); depois,
por Alberto Passos Guimarães (1968:21-40) e, mais recentemente, por Darcy Ribeiro
(1995, p. 151, 201, 229, 242).
Assim, o marco teórico resulta da opção de valorar a ideia de propriedade
enquanto função ao invés daquela de direito subjetivo de propriedade, a qual
descomprometeria o titular em relação à coletividade, ou seja, ainda que tenha “o poder
de empregar a riqueza que possui na satisfação de suas necessidades individuais”, os
demais atos, se não visarem à utilidade coletiva da propriedade imóvel, “serão
contrários ao direito de propriedade e poderão dar lugar a uma sanção ou a uma
reparação” (DUGUIT, 2006, p. 186).

2. DIREITO E ÉTICA ENTRE DESCRIÇÃO VERSUS PRESCRIÇÃO E


OLHAR INTERNO VERSUS PERSPECTIVAS EXTERNAS
Pelas razões que se procura examinar nesta secção, as teorias descritivas do
/sobre o direito conseguem dar conta mais adequadamente da compreensão dos modos e
métodos pelos quais as opções valorativas adentram nesse momento decisório na
medida em que não se prendem às ilusões do idealismo jurídico acerca de como o
“bom” direito deveria ser, cingindo-se a um recorte operacional cujo foco seria o de
examinar seu objeto como ele efetivamente é, procurando tão só melhor compreender e
qualificar, fornecendo argumentos e dados, o papel e as funções dos seus diversos

192
Direito Agrário Ambiental

operadores, isso porque combina, acerca do direito, tanto uma perspectiva interna
quanto a externa (aqui não no sentido que Hart confere a essa distinção em “O conceito
de direito”, mas sim entendendo a perspectiva interna enquanto aquela que opera no
âmbito mesmo da dogmática jurídica, não questionando seus alicerces, e a perspectiva
externa enquanto um olhar sociológico e no qual as características, os pressupostos e os
constrangimentos dessa mesma atividade dogmática são questionados, situados
historicamente e entendidos enquanto construções culturais cuja função é tão somente
viabilizar o funcionamento social)27.
A aceitação de um olhar ou perspectiva externa confere um potencial para se
perceber o direito como atividade centralmente determinada por atos de interpretação e
aplicação, na qual a ação do legislador é um dado de entrada como outro qualquer
(embora hierarquizada). E tal é assim na medida em que o que confere sentido ao direito
é a sua inserção enquanto cultura, isto é, como crença acerca de como ele equilibra
razão (expressada por certa justificação da atividade jurídica como dotada de per si de
racionalidade) e manifestação da vontade (enquanto expressão geral da soberania
popular) (KAHN, 2001, p. 38, 52) (KAHN, 1992, p. 1-8).
Como lembra Hart (2005, p. 217-218), acerca da perspectiva interna ao direito,
“uma sociedade com direito abrange os que encaram as suas regras de um ponto de vista
interno, como padrões aceites de comportamento” e não como predições fidedignas do
que as autoridades lhes irão fazer, se a elas desobedecerem28. A primeira concepção
deriva de uma perspectiva centrada na lei; a segunda, a da predição, numa outra
perspectiva, focada na decisão.
Assim, o que realmente os juristas fazem – e fizeram sempre – é, diante dos
casos, decidir (se forem aptos a praticar atos de vontade / poder) ou propor decisões,
como faz o advogado que, através de interpretação enquanto ato de conhecimento,
sugere aos juízes e tribunais o caminho a tomar, ou, ainda, numa outra hipótese, através
de sua atividade teórica, fornece às partes e aos que decidem argumentos para aplicarem
uma ou outra regra e decidirem um dado caso de uma ou outra forma.
Por isso que, nesse terreno, deve ter o devido destaque, como dotada de maior
instrumental quanto ao manejo da justificação como correlato da decisão, a combinação

27
Hart (2005, p. 65) distingue uma perspectiva da outra com base na observação pela qual se deve diferir
o fato de um grupo reconhecer determinadas regras e praticá-las (perspectiva interna) daquela outra
situação (perspectiva externa) na qual um observador não as compreende, não as pratica e acha-as sem
sentido.
28
“The prophecies of what the courts will do in fact, and nothing more pretentious, are what I mean by
the law” (HOLMES JUNIOR, 2009, p. 6).

193
Direito Agrário Ambiental

do foco teórico-metodológico proposto pelo realismo com uma análise marxista, isto é,
histórico-dialética do direito enquanto parte da totalidade social e por ela condicionada,
ao fornecer, se não a resposta, mais uma referência para o exame dos problemas que
aqui se constituem em objeto de pesquisa, como a seguir se passará a examinar.
Por esse motivo aqui se trata de verificar a aplicabilidade do princípio da
função social da propriedade, quando confrontado com a regra que protege o seu caráter
privado e teoricamente unitário, ao invés de pluralista, bem como de que forma e com
base em que teorias da eticidade esses conflitos são examinados.
Nesse aspecto, a influência doutrinária no judiciário é claramente delimitada
em torno de uma matriz explicativa unitária para a questão da propriedade, na qual se
reitera a existência de um disciplinamento comum e de caráter geral da propriedade, e
se evidencia, por toda uma corrente, a influência de PERLINGIERI (1971, p. 59, 138,
150, 153), muito embora este autor não deixe de falar, em vários trechos de sua obra,
acerca do tema, que, “no âmbito de uma situação concreta, a noção de função social,
desenvolve papel claramente jurídico e menos político, visto que a atividade proprietária
seria valorada in concreto” (PERLINGIERI, 1971, p. 77).
Ressalve-se que desde o início da reflexão aqui proposta, sobre o exame
descritivo da atividade judicial do direito de propriedade29, percebeu-se sua amplitude e
que, em consequência, ela precisava se tornar mais restrita. Por isso, dentre a gama de
direitos tidos como fundamentais e que servisse de teste para a hipótese de pesquisa,
escolheram-se aqueles que confrontassem o direito individual à propriedade, sua
necessária função social e como a ponderação de ambos é tratada na primeira instância e
nos Tribunais Estaduais, em comparação com seu exame nas instâncias superiores do
judiciário.
Isso porque, sendo o direito de propriedade uma manifestação material da vida
social, acaba por se tornar uma temática crucial para a concepção de sociedade
democrática que se defende e, ao mesmo tempo, é fruto de acirrados debates no
Judiciário. Não é à toa que já se assinalou que a propriedade pode ser estudada em dois
aspectos: o estrutural e o funcional:

29
Reflexão esta cujos primórdios já se desenvolveram em livros do Grupo de Pesquisa do proponente,
juntamente com o Grupo de Pesquisa “Realismo Jurídico e direitos humanos”, coordenado por Lorena
Freitas, docente do quadro permanente do nosso programa de pós-graduação. Ver: FEITOSA, ET ALL,.
(2009) e ENOQUE ET ALL (2012), notadamente o capítulo sobre direito de propriedade e sua função
social.

194
Direito Agrário Ambiental

A dogmática tradicional (...) preocupa-se somente com o estruturado direito


subjetivo, (...) dispõe sobre os poderes do titular do domínio, fixando o aspecto interno
ou econômico (...) e outro, externo, o aspecto propriamente jurídico da estrutura da
propriedade. O primeiro aspecto, interno ou econômico, é composto pelas faculdades
de usar, fruir e dispor. O segundo, jurídico, traduz-se na faculdade de exclusão de
ingerências alheias. Esses dois aspectos, o interno e o externo, compõem a estrutura
da propriedade, em seu aspecto estático. Já o segundo aspecto, mais polêmico, é alvo
de disputa ideológica, refere-se ao aspecto dinâmico da propriedade, a função que
desempenha no mundo jurídico e econômico, a chamada função social da propriedade
(1997, p. 311). Destacamos.
Assim, trata-se de verificar com mais detalhes como cada um dos fundamentos,
e em que nível e grau, está relacionado à visão de mundo dos decididores, por um viés
pragmático que objetive, em seu final, fornecer um quadro teórico acerca de como essas
decisões são tomadas e dos fatores que a orientam e, com isso, fornecer referências
estratégicas para a orientação dos que atuam nessas lides.
No âmbito específico dos problemas do direito de propriedade, notadamente no
campo, há que se registrar a existência de um entendimento eminentemente privatista de
tal instituto e que desconsidera sua interpretação à luz da Constituição (FEITOSA,
FREITAS, 2012, p. 303-330).
Assim, além de verificar o conteúdo das interpretações por parte dos tribunais,
aqui faz-se necessário examinar as justificações de que os tribunais se valem quando da
interpretação e aplicação concreta da regra. Em resumo, trata-se de verificar como os
juízes pensam esse direito fundamental e o aplicam quando há conflito entre direitos,
quais as formas de argumentação utilizadas, como isso pode ser analisado do ponto de
vista de uma interpretação voltada a garantir a efetividade dos direitos sociais e da
função social da propriedade como direito fundamental.
Pretende-se, com essa estratégia de análise, mostrar as bases teóricas segundo
as quais se concretizam as regras que equilibram direito de propriedade e função
social.Entretanto, acerca dessa concretização - e no que concerne à propriedade privada
de terras –, não basta a prova de regularidade formal de seu título aquisitivo “para que a
Administração se sinta impedida de investigar a adequação do exercício desse direito”,
como aponta Alfonsin (2000, p. 205).
Note-se ainda, conforme assinalado por Edson Fachin, que, “inexistindo
garantia constitucional àquela propriedade que descumpre sua função social, será

195
Direito Agrário Ambiental

razoável concluir que o alcance dessa expressão não admite interpretação ou aplicação
de uma regra inferior que contrarie o seu sentido”, isto é, o sentido da norma superior,
em razão de que, “em cada época, a propriedade constituiu-se de contornos diversos,
conforme as relações econômicas e sociais de cada momento” (FACHIN, 2000, p. 284-
285) (FACHIN, 1988, p. 18).

3. A ÉTICA PRÁTICA E O EXAME DE UMA SITUAÇÃO CONCRETA:


JUSTIFICAÇÃO JURÍDICA E REALIDADE EMPÍRICA.
Em 2010, o número de famílias envolvidas em conflitos de terra era de 1.276, o
que significa que o número de conflitos dobrou num curto espaço de tempo.
Em 2009, a Paraíba ficou entre os quatro estados brasileiros em que o número
de acampados mais cresceu, atrás apenas de São Paulo, Goiás e Pará. Note-se que, em
2012, o número cresceu em valores absolutos e relativos, na Paraíba (3.165 conflitos) e
no Brasil (cujo total de conflitos foi de 92.113), entendendo-se por “conflito por terra” a
ocorrência de despejos e expulsões, as ameaças de realizar estes, os atos de pistolagem,
os acampamentos e as ocupações (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA /
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2013)30.
Relatório da Comissão Pastoral da Terra – Nordeste II, órgão vinculado à
CNBB, dá conta da ocorrência de sete grandes conflitos por terra envolvendo 2.435
famílias, cinco ocupações envolvendo 630 famílias e a existência de um acampamento
com 100 famílias. Ou seja, um total de 13 conflitos (média de 1 por mês!) e de 3.165
famílias envolvidas, só no ano de 2012, na Paraíba.
Assim, a importância de tal abordagem, para além da gravidade do histórico
problema da ocupação e do uso da terra, em nosso país, reside também na necessidade,
nesse caso, de se conhecerem com mais clareza os valores hegemônicos na magistratura
a respeito de um tema tão premente, com densa repercussão social, no próprio direito,
em sua prática, em seu ensino e na construção de uma cultura jurídica de viés
democrático na medida em que parece curial que não há democracia plena sem
resolução da questão agrária, o que implica tratar da questão – há que se insistir - sob o
foco da interpretação do direito de propriedade, em nosso ordenamento jurídico,
enquanto condicionado por sua função social (CF 88, art. 5º, XXIII; art. 170, III; arts.
184 a 186; Lei 4504/1964, arts. 2°, 12, 13 e 47 e Lei 8629/93), seu comprometimento

30
Para uma análise dos dados históricos acerca da questão, ver: (STÉDILE, 2002, p. 103-128).

196
Direito Agrário Ambiental

ambiental e com a dignidade de seu uso e do trabalho ali exercido, enfim, como direito
fundamental que só adquire sentido se tratado enquanto feixe de atribuições cujo
cumprimento é que confere sentido à sua existência, e não com o viés privatista,
incondicionado e erga omnes que lhe querem atribuir alguns.
Como aponta Mário Losano, referindo-se à Constituição:
[o artigo 186] é de uma importância fundamental na medida
em que fixa os critérios com base nos quais se decide se uma
propriedade fundiária cumpre ou não sua função social.
Deve-se assinalar que estes critérios são os fundamentos de
qualquer ação e devem ser respeitados todos ao mesmo
tempo.

Decorre, por essa razão, a necessidade de não se subestimar a reflexão jus-


filosófica, pelo viés da prática, em torno dos conflitos entre o direito de propriedade e a
necessária função social da mesma nos quais as partes envolvidas sempre reivindicam,
quer para um, quer para outro ponto de vista e interesse envolvido, ou o caráter
fundamental do direito de propriedade privada (que, diga-se, é pressuposto da própria
função social, visto que não haveria de se falar em necessária “função social da
propriedade” sem que, previamente, se garantisse o direito de propriedade privada) ou a
sua desapropriação em razão de, no segundo ponto de vista, sua função social ter sido
violada.
Daí a relevância de se evitar, como ocorre, em geral, na manualística, a mera
descrição genérica sobre o direito de propriedade como algo sagrado e intocável, quase
que uma expressão máxima dos direitos.
A opção por essa abordagem metodológica está ligada à ideia de que o direito
deve ser apreendido na realidade. E essa realidade é a vida social, com isso, não se
descure o papel estratégico da filosofia do/sobre o direito em oferecer argumentos, dada
a relevância desse campo enquanto lugar privilegiado de reflexão sobre aquela
atividade.
Dessa forma, não cabe à sociedade procurar os valores do direito em conceitos
abstratos, mas sim na gênese do próprio conflito. Seguindo essa linha, trata-se de
indagar o objeto, isto é, de pensar a forma jurídica por uma via metodológica de matriz
realista aplicável ao conjunto de questões que envolvem o direito à propriedade em
choque com sua função social, eixo basilar de nosso ordenamento e sem o qual a
proteção jurídica ao seu exercício privado perde inteligibilidade.
Por fim, é de se frisar, ainda que incidentalmente, que cabe ao direito, na
atualidade brasileira, um papel importante na busca de solução para os graves impasses

197
Direito Agrário Ambiental

no aprofundamento da democracia, que não pode se contentar com promessas formais


de promoção do desenvolvimento regional e nacional.
A questão da terra é carente, ainda, de solução social, política e jurídica e,
portanto, trata-se de apontar essas demandas jurídicas e forjar conhecimentos
específicos para a sua adequada resolução, medidas que garantam crescimento
econômico com desenvolvimento humano.
É esse o papel de uma filosofia do direito comprometida com o mundo da vida:
de efetiva intervenção para a invenção de processos de inserção social no país, e tal não
se faz sem a compreensão do trato de um problema crucial que é a questão, no campo,
da tensão entre o direito de propriedade e a finalidade social que ela deve ter – algo em
que os tribunais ainda lidam sob uma ótica privatista e cuja solução teórica aponta bem
mais na direção da teoria e da filosofia do direito. Nesse contexto, é de pouca utilidade
um direito que somente se preocupa com o estudo da natureza jurídica dos institutos
tradicionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para o trato das questões humanas e sociais, importam as contribuições de uma
teorização de viés social acerca dos direitos fundamentais, entre eles o direito à terra e
ao trabalho. Assim, a iniciativa de fomentar o debate proposto no presente artigo dá-se
no conjunto da necessidade de interlocução dos vários tipos de conhecimento para que
se consiga uma comprensão real e aprofundada da questão, seguramente uma das mais
importantes agendas para a erradicação da miséria, como se pretende / propala, para os
próximos anos, na medida em que a reflexão cosntruída por vias isoladas e estanques
entre sí, típica de uma concepção filosófica jus-idealista que concebe o direito como
uma espécie de deus ex machina, não consegue enfrentar eficazmente esse que é um dos
problemas mais complexos da realidade brasileira.
Isso porque a especialização e a complexidade das demandas e dos conflitos
sociais têm exigido de todos que pensam o direito um grau de interlocução com outros
dados da realidade. E isso decorre, entre outros fatores da quase completa carência,
como já se mencionou anteriormente, de uma visão realista /materialista no estudo das
questões e de um ensimesmamento dos juristas em sua própria atividade, como se ela
fosse absoluta e conteudisticamente (e não apenas metodologicamente) autorreferente.
Essa visão formal e isolacionista retira dos juristas uma percepção
historicamente situada dos fatos, principalmente aqueles meandros concernentes ao

198
Direito Agrário Ambiental

enfrentamento político das questões de conflitos entre dois direitos, quando estes são
mutuamente excludentes ou mesmo, no caso do direito de propriedade de terras versus
sua função social, convivem num ordenamento único, a segunda pressupondo a
primeira, a sua visão privatista sendo considerada prevalente, em choque, a um só
tempo, com o texto normativo, com a realidade dos fatos e com o sentido e o alcance
que o legislador contituinte, de forma evidente, impôs ao texto.
A reflexão acerca da questão agrária, no momento em que o País se ufana da
situação de estar entre as dez maiores potências do mundo, visa contribuir para
promover uma nova tomada de posição diante do problema, sem negligenciar o aspecto
do desenvolvimento humano.
Assim, há que enfrentar, sob a égide das novas demandas sociais do século
XXI, as políticas sociais (ou a ausência delas) e o novo papel do Estado brasileiro,
notadamente naquilo que concerne à questão da agricultura familiar, especialmente os
aspectos jurídicos envolvidos nos projetos agrários existentes para a região nordeste e
os reflexos humanos e sociais da exploração do trabalhador rural e do não cumprimento
da função social da propriedade, o que demanda uma abordagem ancorada na análise de
temas como exclusão social, desenvolvimento humano, valores democráticos e
cidadania, o papel que a reforma agrária cumpre nas suas promoções, notadamente para
os trabalhadores e as trabalhadoras rurais, e a necessidade de encontrar novas formas de
regulação de conflitos, bem como a otimização dos instrumentos de defesa dos valores
não enquanto tais, mas porque constitucionalmente expressos.

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202
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO X - O ESTADO SOCIOAMBIENTAL DO DIREITO AGRÁRIO E


O TRABALHO RURAL ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO

Belinda Pereira da Cunha31


Nálbia Roberta Araujo da Costa32
Alex Jordan Soares Mamede33

INTRODUÇÃO
A presente pesquisa corresponde a compilado bibliográfico de busca ativa que
discorre a respeito do positivismo jurídico do direito agrário e sua correlação com o
direito ambiental tendo os princípios da função social da propriedade, justiça social no
meio rural e da sustentabilidade como garantia para o meio ambiente equilibrado e pilar
que apresenta a sociedade o incentivo para analisar os interesses do Estado
socioambiental do direito agrário, da evolução das relações sociais no campo, do
consumo que interfere sobremaneira nas relações sociais, demonstrando a importância
da defesa da manutenção do meio ambiente equilibrado, inclusive para o trabalhador
rural e seus próprios direitos e garantias fundamentais, incentivado e influenciado sua
relação individual e coletiva com a natureza.
A pesquisa está centrada no direito socioambiental do Direito Agrário e o
trabalho rural ecologicamente equilibrado, sendo importante mencionar os valores
socioambientais do século XXI, cabendo ao Estado mediante fiscalização, aplicação de
medidas preventivas, e repressivas de cumprimento das normas já existentes, fomentar
os valores socioambientais dominantes por meio de políticas públicas, que devem ser
respeitadas pela sociedade, pelo próprio Estado, pelas instituições públicas e privadas
garantindo a efetiva sustentabilidade que passa a compor medidas de proteção e
equilíbrio no campo, incrementando o progresso ecológico rural como veículo de
informação sustentável em atendimento às necessidades atuais, futuras e de toda a
coletividade. Cumpre defender a participação do Direito Agrário na perspectiva
socioambientalmente sustentável, sendo esta autoconfiante e autocentrada, partindo-se
da proposta permissiva de que o ambiente rural pode prestar-se positivamente a favor da

31
Docente do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.
32
Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba
33
Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba

203
Direito Agrário Ambiental

sociedade que o criou e que estimula seu desenvolvimento por meio da validade,
dimensão e abrangência que as discussões que envolvem a questão da Terra
proporcionam ao futuro comum, a dignidade da existência humana e natureza.
A defesa desta pesquisa está pautada na conscientização do ambiente rural
ecologicamente equilibrado quando se utiliza o comportamento responsável, voltado a
novos paradigmas, a ser denominado pela sociedade, de consumo responsável; que
adotam abordagem de matrizes não poluentes do solo; que estabelecem investimento
agrícola respeitando marcos como a Revolução Verde, em debate constante com o
Estatuto da Terra, Código Florestal e política agrícola sendo esta responsabilidade
critério de escolha, com base nas informações do direito agrário relacionado à
sustentabilidade, informando e educando o indivíduo e a coletividade para as suas
escolhas conscientes; que, por sua vez, passarão a produzir de forma sustentável,
preservando os recursos ambientais, culturais e sociais, respeitando as diversidades e
promovendo a redução da desigualdade social, reequilibrando o sistema de produção,
consumo e sociedade.

1. O ESTADO SOCIOAMBIENTAL DO DIREITO AGRÁRIO E AS


VERTENTES QUE ENVOLVEM A RACIONALIDADE AMBIENTAL
Não é desarrazoado afirmar que, além da discricionariedade, a abordagem
liberal-individualista constitui um traço do modo positivista de trabalhar e interpretar o
direito. Explicando melhor: o movimento codificador do século XVIII tentou
regulamentar todos os aspectos da vida do sujeito de direito burguês, desde o seu
nascimento até as questões sucessórias após a sua morte.
Contudo, no desiderato da codificação residia o problema de que a faticidade
do mundo prático exorbita o mundo das regras. Afinal, o direito está na retaguarda das
transformações empreendidas na vanguarda da sociedade.
É nesse cenário que emergem as correntes positivistas com o escopo de dirimir
o problema da indeterminabilidade do direito. O positivismo jurídico, assim, está
atrelado aos problemas operacionais dos códigos, inicialmente destinados a regular a
biografia do sujeito de direito notadamente burguês e as suas relações individuais.
(STRECK, 2009)
Dessa maneira, a tríade pós-positivismo/constitucionalismo
contemporâneo/democracia vem assegurar uma maior autonomia do direito por meio
das Constituições Dirigentes. E é exatamente este o plus do Estado Socioambiental de

204
Direito Agrário Ambiental

Direito: a fixação de compromissos socioambientais transindividuais, e a limitação à


discricionariedade política na ingerência estatal por meio das políticas de
desenvolvimento. Como mostra-se a seguir, essa reviravolta sustentável implica
necessariamente a superação do modelo liberal-individualista e a incorporação de novas
racionalidades no trato do meio ambiente do trabalho.
Zeledon (2002, p. 22) firmava que os Direitos Humanos e o Direito Agrário
têm uma série de elementos comuns, cuja racionalização e desenvolvimento cientítfico
permitem encontrar coincidências para a superação dos limites com os quais eles têm de
conviver sem descaracterizar a verdadeira personalidade de cada um, que são, em
comum, a efetivação da justiça social, a valorização do trabalho humano, a preservação
da dignidade e o oferecimento de solidariedade.
Para tanto, o Estado deve instituir políticas para melhorar a vida da população
da zona rural, com distribuição equitativa dos resultados obtidos na economia,
estabelecendo planejamentos de cooperação mútua, evitando a miséria, a fome e a
pobreza no campo, adotando a política de assistência familiar rural e segurança
alimentar apropriada.
Conforme Navarro (2001, p. 97) embora haja expansão econômica, o chamado
desenvolvimento rural não se restringe a terra, nem exclusivamente ao plano das
interações sociais também principalmente rurais, mas necessariamente abarcam
mudanças nas diversas esferas da vida social, relacionando-se diretamente aos
horizontes territoriais mais extensos, direcionados as diversas formas de sociabilidade,
demacarda nos novos processos sociais, economicos e ambientais que envolvem o
aspecto histórico e social do desenvolvimento agrícola, da área agrícola plantada, da
produtividade, do uso do trabalho como fator de produção.
A mudança de pensamento no desenvolvimento agrário, não se limita ao acesso
e uso da terra, nas relações de trabalho e mudanças nos conflitos sociais; computa o
desenvolvimento sustentável, que prioriza o uso consciente dos bens naturais e seu
gozo, que muitas vezes relaciona-se com o trabalho de Associações e Cooperativas
Rurais, Agronegócios, Indústria Rural destinada a exportação e ações estatais
propriamente dita.
Mais adiante, a Constituição insere a propriedade e a função social da
propriedade entre os princípios gerais da atividade econômica (art. 170, II e III).
Contudo, tais princípios são relativos, eis que podem ser afastados, numa eventual

205
Direito Agrário Ambiental

colisão de princípios, perante valores de mais elevada deferência no texto


constitucional, a cidadania (art. 1º, II) e a justiça social (art. 170, caput).
Não se verificando conflito principiológico capaz de obstar sua aplicação, toda
e qualquer interpretação dos casos concretos atinentes ao direito de propriedade deve
necessariamente perpassar pelo ditame da função social, conforme especificado na
previsão do art. 186 da Constituição.
A construção de uma nova racionalidade ambiental perpassa propósitos,
valores e fins heurísticos que irrompem de um (re)conhecimento da coevolução
ecológico-cultural aberta aos saberes organizados pela cultura, e pelos conhecimentos
codificados pelas ciências. A busca dessa racionalidade não se dá mediante uma
linguagem comum econômico-tecnológica que visa o consenso, mas por meio de um
diálogo que convoca as dissidências sociais, culturais, ecológicas e epistemológicas.
(LEFF, 2010)
Problematizar a complexidade ambiental demanda a necessidade de (re)pensar
o enlaçamento do saber ambiental, e suas implicações nas ciências e no conjunto da
materialidade das relações sociais. Segundo Enrique Leff, a crise ambiental é, antes de
tudo, uma crise civilizatória, amalgamada a uma crise do próprio conhecimento,
ensejando a imprescindível necessidade de compreender o ser na contemporaneidade,
entendendo “suas vias de complexificação para, a partir daí, abrir novas pistas para o
saber no sentido da reconstrução e da reapropriação do mundo”. (LEFF, 2010, p.191)
A crise de paradigmas demonstrada por Leff (2010) propala-se com maior
rigor nas bases do ensino jurídico. Este é (ainda) fortemente marcado pelo paradigma
epistemológico da filosofia da consciência, fundado na premissa de um sujeito isolado
cognoscente, sendo as manifestações de vida e relações humanas demasiadamente
fetichizadas e funcionalizadas. O resultado dessa(s) crise(s) “é um Direito alienado da
sociedade, questão que assume foros de dramaticidade se compararmos o texto da
Constituição com as promessas da modernidade incumpridas” (STRECK, 2009, p. 79-
80).
Ademais, os fundamentos responsáveis pela constitucionalização da proteção
ambiental - desembocando em uma sustentabilidade socioambiental - reverberam
tentativas de superar a crise ambiental de nossa época. Na verdade, a demanda por uma
proteção do ambiente desdobra-se de uma crise global e multifacetária. A empreitada

206
Direito Agrário Ambiental

encetada34 em Estocolmo promoveu, em vários países, uma onda de


constitucionalização do bem jurídico ambiental. Embora, por vezes, a introdução das
normas constitucionais ambientais foi meramente simbólica, não provocando mais do
que uma reordenação estética no texto constitucional35. O fenômeno da falta de
ressonância prática ou jurisprudencial das normas constitucionais ambientais explicita-
se, até mesmo, em países famosos pela tradição constitucional, como, por exemplo, os
Estados Unidos, em que a maioria das Constituições Estaduais tutela o ambiente de
forma expressa.
A Constituição brasileira conferiu uma maior proeminência e preeminência aos
textos normativos ambientais, exsurgindo a fundação de uma ordem pública ambiental
constitucionalizada. Esse liame indissolúvel vem corroborar a compreensão sistêmica e
legalmente autônoma do ambiente inaugurada pela Lei 6.938/81, que define, em seu
art.3º, inc. I, o meio ambiente como: “o conjunto de condições, leis, influências e
interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em
todas as suas formas”.
É nesse contexto que a Resolução 01/86 do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (CONAMA), em seu art. 2°, nos traz um rol exemplificativo de casos
potencialmente nocivos ao meio ambiente que necessitam ser analisados de forma
pormenorizada para que a sua execução não atente contra a higidez ambiental. Segundo
Fiorillo (2007), as atividades do art.2º da Resolução Conama n° 1/86 possuem uma
presunção juris et de jure para a execução do EIA/RIMA. No tocante ao Anexo I da
Resolução Conama n° 237/97, o autor também entende inexistir discricionariedade do
órgão ambiental competente, devendo ser elaborado EIA para atividades e obras nele
descritas.
Entretanto, a necessidade do EIA/RIMA não se exaure nos casos
exemplificados na resolução supracitada, pois, conforme preceitua o art.225, parágrafo

34
Os Tratados Internacionais no âmbito ambiental não surgiram recentemente, mas o despertar do Direito
Internacional Ambiental só se deu na segunda metade do século XX, mais precisamente com os efeitos
irradiados da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de 1972 em Estocolmo.
Nessa linha, pontifica Guerra: “Para se ter a ideia da proliferação de documentos internacionais em
matéria ambiental após 1972, até os anos 60, existiam apenas alguns dispositivos para a proteção dos
pássaros úteis à agricultura, a proteção das peles de focas e sobre a proteção das águas. De 1960 até 1992,
foram criados mais de 30.000 dispositivos jurídicos sobre o meio ambiente, entre os quais 300 tratados
multilaterais e 900 acordos bilaterais, tratando da conservação e mais de 200 textos oriundos das
organizações internacionais”. (GUERRA, 2007, p.3)
35
Os países do leste europeu foram os primeiros a constitucionalizar o meio ambiente - como, por
exemplo, a Polônia, que o fez em 1976 – porém, as previsões constitucionais careceram de
desdobramentos práticos.

207
Direito Agrário Ambiental

1°, inc. IV, da C.F., torna-se obrigatório a realização do EIA/RIMA quando o poder
público estiver perante atividade potencialmente causadora de danos ao meio ambiente.
É preciso entender, que a palavra “potencialmente” engloba o dano manifestamente
iminente, bem assim o dano incerto e provável. Por outro lado, não é qualquer
modificação do ambiente que exige o EIA/RIMA, mas uma degradação potencialmente
relevante, ou seja, algo severo, de caráter negativo, que altere os atributos do ambiente.
Leff (2010) sustenta que o conhecimento, quando segregado em unidades
objetificadas para analiticamente perquirir os seus entes, poderá subjugar saberes e
menoscabar a complexidade ambiental. Os equívocos e os conflitos de todo o
conhecimento requerem uma filtragem crítica das multicausalidades dos saberes
historicamente tidos como incontestáveis. A necessidade de compreender os múltiplos
complexos e contingências subjacentes à complexidade ambiental torna imperiosa,
mediante novas estratégias teóricas inter e transdisciplinares, a construção de uma
racionalidade do saber ambiental. Concomitante a isso, é necessário dialogar com as
rupturas, lacunas e especificidades dos saberes culturais - encarados como não
científicos - existentes para além dos cânones científicos.
Assim, para Enrique Leff, a noção de uma nova racionalidade no trato do
ambiente demanda a reformulação das abordagens tradicionais com vistas a produzir
“novos conhecimentos, o diálogo, hibridação e integração dos saberes, bem como a
colaboração de diferentes especialidades, propondo a organização interdisciplinar do
conhecimento para o desenvolvimento sustentável”. (LEFF, 2010, p.162). Nos termos
de Leff (2010), a racionalidade ambiental é fruto dessas novas perspectivas
epistemológicas marcadas pela integração prática dos saberes no enfrentamento dos
problemas socioambientais.
O saber ambiental é uma síntese de teoria e práxis, uma relação dialética entre
as transformações teóricas, culturais e institucionais; movimento das contradições
socioambientais; e atuação dos movimentos sociais. Nesse ínterim, não podemos
ignorar as relações de poder que perfazem qualquer interferência no ambiente e os
discursos relacionados às análises energéticas e ecossistêmicas, responsáveis por
naturalizar – ou não – a desigualdade social e a destruição ecológica. (LEFF, 2011)
A produção de gêneros alimentícios pela agricultura, pecuária, extrativismo é
uma possibilidade de luta, que não depende apenas da vontade política, mas da
disponibilidade de recursos suficientes. É preciso investir no campo, portanto há que
incentivar recursos para o desenvolvimento agrícola, políticas de acesso a terra,

208
Direito Agrário Ambiental

segurança alimentar, o que pode incrementar o a renda rural trazendo desenvolvimento


sustentável para a coletividade.
Isto nos leva a perguntar, quais as relações de poder inerentes à produção
econômica brasileira, principalmente, a partir dum contexto de mercantilização do
termo “desenvolvimento sustentável” e do próprio conhecimento acadêmico. O
problema está, pois, na tentativa de promover a sustentabilidade socioambiental, sem,
contudo, deixar de manter a cautela na manutenção de uma sustentabilidade crítica para
além dos produtos sustentáveis e compensações financeiras em virtude de danos difusos
à coletividade.
No Brasil, é preciso redimensionar, reunir, somar estas formas de
desenvolvimento, de forma conjunta, para construir o desenvolvimento pleno, que
assegure melhorias econômicas, e possibilitem a efetivação da segurança alimentar.
Por tais razões, o acatamento da legislação ambiental e trabalhista pelos
empregadores - mediante uma perene fiscalização da população e dos órgãos públicos -
é condição prima para a efetividade de um desenvolvimento pautado na observância das
imprescindíveis condicionantes impostas pela legislação.
Observe-se que as novas tecnologias ensejaram um maior diálogo entre as
nações, culminando na formulação de mais tratados e convenções internacionais. Tais
documentos explicitam a ideologia planetária de uma preocupação com um problema
que erige de uma forma mais pujante neste século – ainda que os mecanismos de
pressão para a garantia da efetividade destes instrumentos sejam perniciosos. Cabe
elucidar aqui, alguns apontamentos sobre o discurso do desenvolvimento sustentável
atinente a uma preocupação em instrumentalizar um desenvolvimento econômico que
esteja em consonância com a sustentabilidade socioambiental. Ou seja, que consiga
consagrar um modelo atento para os diversos impactos negativos engendrados no
ambiente.
Perquirindo o discurso do desenvolvimento sustentável - nos moldes como é
majoritariamente externalizado - Leff (2001) analisa que tal discurso é uma tentativa de
conciliar, através da retórica, a busca do lucro com o capital humano e ecológico,
quando, na verdade, ocorre uma mercantilização da natureza e dos construtos culturais.
Adverte acertadamente Leff (2001, p.8) acerca dos riscos do discurso de
desenvolvimento sustentável postular “la eliminación del conflicto entre economía,
comercio y ambiente, olvidando la contradicción que existe entre la racionalidad de

209
Direito Agrário Ambiental

corto plazo de la economía y la ley de la entropía que opera en toda transformación


productiva de la naturaleza”.
A retórica do desenvolvimento sustentável tem fragilizado a concepção crítica
do saber ambiental, bem como torna rasteiro e simplista a complexidade das interações
ambientais. Destruindo os caracteres culturais, o discurso do desenvolvimento
sustentável tende estruturalmente - sob a estridência utilitarista-antropocêntrica da
lógica do capital - apropriar-se dos recursos naturais com vistas à maximização
desmedida do lucro. A ideologia do desenvolvimento sustentável remonta a uma
dispersão do real, dado que as “estratégias de sedução e simulação do discurso da
sustentabilidade constituem o mecanismo extraeconômico por excelência da pós-
modernidade para a reintegração do ser humano e da natureza à racionalidade do
capital”. (LEFF, 2011, p.25)

2. O AMBIENTE RURAL ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO TRILHADO


POR UM DESENVOLVIMENTO SOCIOAMBIENTAL DO DIREITO
É inexorável, que o capitalismo industrial superou o trabalho escravo/servil em
prol do trabalho livre/subordinado. Não obstante, o trabalho propriamente livre foi
incorporado à dinâmica da subordinação como estratégia de apropriação da força
produtiva. Consequentemente, a cultura do trabalho livre, mas subordinado, perpetrou
uma retórica discursiva. (ANDRADE, 2012)
A crise econômica internacional ameaça o boom da agricultura brasileira.
Crescente até 2008, a demanda pelas commodities recua, cresce o desemprego nas
cidades, tende a aumentar a pressão social pela terra e a reforma agrária. Métodos
desumanos de trabalho persistem pelo vasto interior, em confronto com a legislação.
Ora, o trabalho propriamente livre e a ociosidade seriam empecilhos à
dinâmica das forças produtivas. No tocante à ociosidade, o que fazer com ela? Como
desprestigiá-la? Certamente, enquadrando-a como vagabundagem e, até mesmo, como
infração penal36.
Historicamente, os conflitos oriundos da busca por melhores condições de
trabalho foram duramente reprimidos pelo Estado, como ocorrera no dia 1º de maio de
1886 em função da greve que reuniu mais de cento e oitenta mil trabalhadores de

36
A Lei 3.688/41 (lei das contravenções penais) - revogada em 2009 pela lei 11.983/09 – previa, em seu
art.60, que aquele que mendigasse “por ociosidade ou cupidez” poderia sofrer a pena de “prisão simples,
de quinze dias a três meses”.

210
Direito Agrário Ambiental

Chicago (EUA). A repressão policial provocou a morte de seis trabalhadores, bem como
mais de cinquenta feridos. Some-se a isso o 8 de março de 1857, marcado pelo massacre
das trabalhadoras nova-iorquinas. Elas foram assassinadas por lutarem pelo trabalho
digno. Por consequência, o 8 de março foi elevado à condição de Dia Internacional da
Mulher pela II Conferência Internacional das Mulheres Socialistas em Copenhague,
Dinamarca, em 1910. (ANDRADE, 2012)
A consolidação de uma racionalidade ambiental apropria a historicidade dos
direitos e problematiza as novas relações laborais (LEFF, 2011). Ao lado disto, observa-
se o surgimento de novas doenças37 que exigem uma adequação das novas tecnologias a
fim de manter um ambiente de trabalho centralizado no trabalhador e na realidade que o
circunda.
Subidiariamente, tal política promoveu planos de colonização, com venda de
terras a pequenos e médios agricultores, e de assentamentos de trabalhadores sem terra,
para deslocar milhões de famílias de áreas densamente povoadas, e de propriedade rural
muito dividida, para ocupar terras novas e aliviar tensões sociais nos lugares de origem,
no Sul, Sudeste e Nordeste do país. A escassez de recursos materiais e de apoio estatal a
produção agrícola dos pequenos e médios proprietários e das populações tradicionais,
bem como a disputa de terras com a agricultura empresarial, tem resultado no
deslocamento de milhões de famílias para os núcleos urbanos. (BRASIL, 2008, p. 219).
O direito fundamental a um meio ambiente do trabalho sadio não pode ser
encarado como um mero significante à espera de uma significação normativa arbitrária.
A sustentabilidade reflete o próximo estágio das relações trabalhistas, que possuem
como amparo toda a história de direitos sistematicamente (só)negados. Nos dizeres
constitucionais do art.7°, XXII, dirigentes e vinculativos, é imprescindível a “redução
dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. A
modelagem constitucional38 vem agasalhar uma proteção alinhada à sustentabilidade
socioambiental espraiada em direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
(CUNHA, 2011)
O Estado Socioambiental de Direito assume a perspectiva da confluência da
tarefa estatal de tutelar e promover a sustentabilidade socioambiental com o direito

37
Os problemas psico-fisiológicos e ergonômicos – hoje tratados pela Norma Regulamentadora nº 17 e
seus anexos, com redação dada pela Portaria MTPS nº 3.751, de 23 de novembro de 1990 – e as doenças
ocupacionais, cuja emergência vem adquirindo notoriedade, especialmente, após a implantação do Nexo
Técnico Epidemiológico – NTEP, pela Previdência Social.
38
C.F.: Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: [...]
VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

211
Direito Agrário Ambiental

(dever) do cidadão ao pleno gozo dos direitos econômicos, sociais, culturais e


ambientais (DESCA). Tal perspectiva contemplada pela Constituição não se edifica a
partir de um marco-zero, mas consubstancia - como diria Ingo Sarlet e Tiago
Fensterseifer (2010) – mais um passo no caminhar contínuo da comunidade política.
Observe-se que a peregrinação pela conquista de direitos é marcada por
sinuosidades, ou seja, por curvas tortuosas que não representam, necessariamente,
avanços. O Estado Liberal do século XVIII, por exemplo, foi eivado por preconceitos e
sexismos inconcebíveis numa democracia plural e laica. O próprio estágio atual do
denominado Estado Democrático de Direito ainda possui diversas tensões, conflitos e
retrocessos. À luz do caleidoscópio da teoria crítica dos direitos humanos, o
constitucionalismo socioambiental contemporâneo materializa mais um elemento da
arquitetura constitucional, posta em marcha pela tensão dialética dos desafios
existenciais duma sociedade conflituosa e desigual – especialmente no caso dos países à
mercê do capitalismo central. (FERNANDES, 2005)
Dessa maneira, não podemos esquecer a contenção negativa que impõe ao
Estado e aos particulares a observância do princípio da proibição do retrocesso
socioambiental. Porém, a intensa violação de direitos coletivos em virtude dos curtos
prazos de entrega das obras da Copa do Mundo demonstra a deletéria monetarização do
risco de acidentes, os atentados a vidas e ao meio ambiente laboral, pois leva à
inequívoca precarização das regras de segurança39.
No meio rural, a concentração fundiária faz emegir a luta pela terra, pela
reforma agrária, pela proteção à agricultura familiar, que gera alimentos para a mesa do
trabalhador.
Portanto, é chegado o momento de ponderar que, para garantir um meio
ambiente saudável e equilibrado no ambiente de trabalho, não basta efetuar pagamentos
por danos já ocorridos, cujos efeitos, em regra, são irreversíveis e a restitutio in
integrum impossível. É imprescindível conter os impulsos anteriormente. Nessa
perspectiva, as diretrizes da precaução e prevenção entram no ordenamento como
primados reitores da edificação de um novo modelo de normatividade, pois têm o
escopo de evitar que o dano ocorra. (CUNHA, 2011)

39
Até 12 de junho de 2014 - data de abertura da Copa do Mundo FIFA - as obras dos estádios da Copa do
Mundo de 2014 já atingiam o número de oito mortes de trabalhadores, sendo três mortes apenas na Arena
Corinthians - Itaquerão.

212
Direito Agrário Ambiental

A luta pelo meio ambiente saudável implica a defesa dos recursos naturais
amplamente usados no setor agrícola não só em sua essência, como também em sua
produção, analisando inclusive a atividade agrícola e de onde provem os alimentos
oriundos da atividade agrícola devendo estar livres de agrotóxicos, devem ser
produzidos de sementes confiáveis e com racionalidade ambiental.
Também é importante consignar que a Convenção 187 da OIT ainda não foi
ratificada pelo Brasil. O diploma fixa a adoção de medidas para a consecução de um
ambiente laboral sadio, especialmente, a partir da constatação que a maioria dos danos
ambientais de grande proporção está relacionada às atividades laborais.
De outra banda, o Brasil é signatário da Convenção 155 da OIT, que prevê em
seu art. 3º, alínea e, que a saúde não pode ser definida apenas como “ausência de
doenças”, abarcando também os “elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão
diretamente relacionados com a segurança e higiene no trabalho”.
Uma pesquisa feita pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep)
mostra que, para cortar 10 toneladas de cana, uma pessoa tem de flexionar a coluna 10
mil vezes e disparar 80 mil golpes de facão por dia. No vaivém para levar a produção,
cada bóia fria ainda caminha cerca de 6 quilometros diários carregando feixes de cana
que pesam 15 quilos. Além disso, embora seja necessário e obrigatório por lei, o
equipamento de proteção individual, usado sob o sol em atividade física contínua,
provoca uma perda média de 8 litros de água por dia. As cãibras são freqüentes, e o
contato com produtos químicos e fuligem traz grande parte dos problemas respiratórios.
Vê-se, assim, a importância do inciso I do art. 157 da CLT que imputa às
empresas a obrigação de “cumprir e fazer cumprir” as regras de segurança. No mesmo
sentido, o item II do mesmo artigo, imputa a responsabilidade ao empregador de
“instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no
sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais”, e o art. 158 fixa aos
empregados o encargo de “observar as normas de segurança e medicina do trabalho,
inclusive as instruções”.
Não é segredo que, historicamente, as práticas judiciárias têm empreendido
muito mais esforços para sonegar direitos trabalhistas do que para salvaguardar o
portfólio de direitos fundamentais. A toda evidência, cabe a nós subvertermos o habitus
preponderante. Por isso, exempli gratia, é paradigmático o art. 120 da Lei 8.213/91 ao
determinar o ajuizamento, pela previdência, de ação regressiva em face dos
responsáveis, quando constatada “negligência quanto às normas padrão de segurança e

213
Direito Agrário Ambiental

higiene do trabalho indicadas para a proteção individual e coletiva”. Consequentemente,


a Recomendação 2/2011, expedida pela Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho,
recomenda aos magistrados trabalhistas que encaminhem à respectiva unidade da
Procuradoria-Geral Federal (PGF), cópias de sentenças e acórdãos que reconheçam
conduta culposa do empregador em acidente de trabalho, com vistas a facilitar o
ajuizamento das ações regressivas.
É preciso, como já referido à saciedade, compreender a sustentabilidade
socioambiental como uma profunda revolução em todas as esferas e, portanto, é ponto
fundamental de (re)discussão da teoria crítica do Direito do Trabalho. Atentai que o
simulacro do desenvolvimento sustentável é uma estratégia discursiva de afastamento
dos problemas imanentes da complexidade ambiental, conquanto, pontualmente, as
políticas de desenvzolvimento sustentável podem facultar um retardamento do processo
entrópico. Logo, o modo de produção capitalista marcado historicamente por uma
maximização demasiada dos lucros, por meio do negligenciamento dos problemas
socioambientais, tende, ocasionalmente, a se adequar as exigências da legislação
ambiental. Contudo, observamos serem evidentes as limitações do exercício da
competência processual trabalhista, que deveria tutelar mais pessoas que pretendam
viver de um trabalho livre, para além da fórmula refratária do trabalho subordinado.
A exigência sobrehumana de produtividade enfrentada pelos boias-frias,
investigada como causa das mortes súbitas nos canaviais, vem crescendo com o avanço
da mecanização na colheita de cana de açúcar. Além de restringir o mercado de
trabalho, as máquinas impõem novos padrões ao corte manual. Ainda conforme o
exemplo da cana de açúcar, hoje, a poda tem de ser feita bem rente ao solo, o que, para
quem maneja o facão, significa permanecer com as costas curvadas a maior parte do
tempo. “Antes os cortadores podiam deixar a cana com uns 20 centímetros de altura;
agora isso rende multa e até suspensão”. (BRASIL, 2008, p. 229)
Nesse contexto, é relevante deixar assentada a significativa missão
constitucional do Ministério Público do Trabalho, seja na celebração dos Termos de
Ajustamento de Conduta (TAC) que detêm força executiva40, seja por meio do
ajuizamento da ação civil pública41. De frisar, ainda, a necessária proatividade dos

40
CLT: Art.876. As decisões passadas em julgado ou das quais não tenha havido recurso com efeito
suspensivo; [...]; os termos de ajuste de conduta firmados perante o Ministério Público do Trabalho
[...] serão executados pela forma estabelecida neste Capítulo. (grifo nosso)
41
LC 75/93: Art. 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições
junto aos órgãos da Justiça do Trabalho: [...] III - promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do

214
Direito Agrário Ambiental

órgãos de Inspeção do Trabalho, mediante a atuação dos seus auditores fiscais,


sobretudo, na implementação da legislação protetiva, bem assim na adoção de medidas
acautelatórias de efeito imediato, como o embargo e interdição.
Como alternativa sustentável além de fiscalizar as condições de trabalho nos
canaviais paulistas, o governo federal passou a estimular o diálogo entre as frentes de
trabalho – usineiros e cortadores de cana, visando um acordo mais justo entre as partes e
à criação de alternativas para melhorar as relações trabalhistas no setor e encaminhar
propostas para amenizar o desemprego.
Medidas de sustentabilidade tais como o fim da terceirização do corte manual
da cana de açúcar, o aumento de transparência na aferição e pagamento de trabalho por
produção e o compromisso das usinas de requalificar os atuais cortadores e realocá-los
na colheita mecânica e na área industrial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
À luz do Estado Socioambiental de Direito, a sustentabilidade é incorporada ao
catálogo de objetivos fundamentais das Constituições compromissórias
contemporâneas. Com efeito, essa incorporação reclama um novo olhar para o Direito
do Trabalho, que reclama a reordenação do primado privatista com vistas a consagrar
uma imperiosa limitação ao risco residual das atividades potencialmente poluidoras ao
ambiente. (CUNHA, 2011)
Insiste-se: O meio ambiente do trabalho é o resultado da confluência sinérgica
entre o labor humano e a construção de novas relações materiais e produtivas de
existência que, consequentemente, instituem fissuras em todo o ambiente que nos
circunda42. Em tudo isto, importa referir que a Constituição Federal, mediante o art. 7º,
XXVIII43, fala em responsabilidade civil subjetiva ao tratar do acidente de trabalho
relacionado aos direitos individuais. Não é temerário afirmar, que não há óbice para a

Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais


constitucionalmente garantidos;
42
Eis que a extensão do ambiente laboral para além do espaço físico é acentuada pelas palavras de
Oliveira, ao afirmar que o a plenitude do ambiente do trabalhador possui a interferência “não só do posto
de trabalho, mas tudo que está em volta, o ambiente do trabalho. E não só o ambiente físico, mas todo o
complexo de relações humanas na empresa, a forma de organização do trabalho, sua duração, os ritmos,
os turnos, os critérios de remuneração, as possibilidades de progresso, a satisfação dos trabalhadores etc.”.
(OLIVEIRA, 1992, p.82)
43
C.F.: Art.7° São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de
sua condição social: [...] XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem
excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;

215
Direito Agrário Ambiental

aplicação da responsabilidade objetiva em razão da degradação de todo o ambiente do


trabalho com repercussão na saúde do trabalhador, dado o matiz difuso desse dano44.
O meio rural, constituido de terras, precisa de mão de obra para se produzir
alimento, e esta garantia legalmente é reconhecida pelo Direito Agrário, responsável
pela eficácia e satisfação jurídica do direito de uso e gozo da terra pelo ser humano.
Porém, o meio rural tutelado pelo direito agrário não se faz valer de modo isolado, no
seu contexto atual existe uma transdisciplinariedade que o envolve e relaciona com os
demais ramos do direito.
A superação da reciprocidade na proteção do direito agrário e na proteção
ambiental tem lugar na busca pelo alargamento do âmbito de proteção, por realização de
uma proteção maior e por fortalecimento gradual dos mecanismos de supervisão na
defesa dos interesses comuns dos trabalhadores rurais.
Além disso, a proteção dos grupos vulneráveis (povos indígenas, minorias
étnicas, religiosas e lingüísticas, pessoas portadoras de deficiência mental e física)
aparece agora na confluência do ordenamento internacional dos direitos humanos e da
legislação internacional sobre o meio ambiente. O interesse pela proteção desses grupos
encontra-se presente em instrumentos e garantias internacionais de direitos humanos e
de meio ambiente, nos quais se aborda a questão sob a perspectiva humana e ambiental.
A adoção de políticas públicas que estimulem o desenvolvimento social e
econômico sustentável nas regiões de origem dos trabalhadores rurais, com a expansão
dos programas federais de reforma agrária e de fortalecimento da agricultura familiar
são métodos que solucionam a médio prazo a situação de trabalhadores imigrantes.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. O direito do trabalho na filosofia e na teoria
social crítica. Revista TST, Brasília, vol. 78, n° 3, jul./set., 2012.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Direitos
Humanos, 2008: a realidade do país aos 60 anos da Declaração Universal. Brasília:
SEDH, 2008.

44
C.F.: Art.225. [...] §3°. As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os
infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da
obrigação de reparar os danos causados.
Lei 6.938/81: Art.14. [...] §1°. Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor
obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio
ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. (grifo nosso)

216
Direito Agrário Ambiental

CUNHA, Belinda Pereira da. Direito ambiental: doutrina, casos e jurisprudência. São
Paulo: Alameda Casa Editorial, 2011.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Editora Globo,
2005.
FIORILLO, Celso. Curso de direito ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007.
GUERRA, Sidney. Direito internacional ambiental: breve reflexão. Revista Direitos
Fundamentais e Democracia, América do Sul, 2007.
LEFF, Enrique. Saber ambiental. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
_______. Epistemologia ambiental. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
LEFF, Enrique; BASTIDA, MINDAHI (Orgs.). Comercio, medio ambiente y
desarrollo sustentable. México: CEIICH-UNAM/Siglo XXI. Editores/PNUMA. 2001.
NAVARRO, Zander. Desenvolvimento Rural no Brasil: os limites do passado e os
caminhos do futuro. Revista de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo,
São Paulo, v. 15, n. 83, 2001.
OLIVEIRA, Sebastião. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. São Paulo: LTr,
1998.
SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial
(ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo (Org.). Estado
Socioambiental e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica em crise. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009.
ZELEDON, Ricardo. Derecho agrario y derechos humanos. Curitiba: Juruá, 2002.

217
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XI - SEGURANÇA ALIMENTAR E A FUNÇÃO AMBIENTAL DA


PROPRIEDADE RURAL: MANIFESTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO
SÉCULO XXI

Elisabete Maniglia45
Paulo César Corrêa Borges46

Hodiernamente, o meio ambiente está padecendo dos males do não


cumprimento da função social da propriedade, com reflexos na segurança alimentar,
nova demanda social que pode ser classificada entre os direitos humanos no Século
XXI. Tudo se interliga, não podendo ser tratada a questão ambiental rural sem perpassar
pela questão da produtividade e das questões sociais. O agronegócio, a queimada,
trabalho escravo, trabalho assalariado, agricultura familiar,,pobreza, falta de alimentos,
ou super safras, estão vinculados a questão ambiental. A razão para tal é básica : no
meio rural estão reunidos os bens ambientais que geram a mantença do sistema vital ,a
água em sua fontes , as florestas, os cerrados , a fauna , a flora , as áreas de preservação
e portanto qualquer agressão neste setor pode desiquilibrar o sistema. Sem radicalismo ,
a preservação ambiental rural é vital para o planeta, e foi elencada como direito humano
de terceira geração , não só pelo seu efeito coletivo de preservação da vida humana, sob
a ótica da boa qualidade do meio ambiente como também pela garantia de alimentos
saudáveis que implique na garantia de vida do homem.Desta feita é preciso rever que a
questão ambiental requer um estudo cooperado, que busca achar pontos de equilíbrio,
para a organização da crise financeira que assola o mundo e um profunda revisão nos
conceitos que no meio rural são difíceis de serem modificados.
Neste diapasão estuda-se que movimento ambientalista que envolve, hoje,
estudos ligados à Filosofia, Psicologia, Política e Religião, precisa ser visto como uma
revolução cultural, que implica numa profunda modificação da estrutura dominante. O

45
Professora livre docente de direito agrário e direito ambiental: Graduação e Pós Graduação da
UNESP/Franca. Doutora pela UNESP , Mestre Pela USP. Membro da Associação Brasileira de Direito
Agrario- ABDA da Academia Nacional de Letras Agrárias-ABLA Membro da rede nacional dos
advogados populares – RENAP .Membro da Comissão Estadual de Direito Agrario da OAB/SP.
Avaliadora do INEP desde 1997. Várias obras publicadas.
46
Professor Assistente-doutor de direito penal , criminologia e tutela penal dos direitos humanos:
Graduação e Pós Graduação da UNESP/Franca. Doutor e Mestre pela Unesp. Membro da AIDP, do
IBCRIM e do MMPD. Foi representante da Unesp no Conselho Estadual de Direitos Humanos – SP.
Coordenador do PPGDIREITO/UNESP/FRANCA. Várias obras organizadas e publicadas.

218
Direito Agrário Ambiental

ambientalismo está estreitamente ligado a uma nova tendência ética religiosa voltada a
recuperar a empatia das pessoas a viver o essencial.47
A preocupação com o meio ambiente cresce em todos os segmentos e, muitas
vezes, apesar da consciência da necessidade de se estabelecerem prevenções e
reparações contra os danos ambientais, os danos contra a natureza se constituem numa
das mais sérias impunidades e numa grave violação aos Diretos Humanos. Esquivel
alerta que não se pode pensar na preservação do meio ambiente, sem se atentar para o
consumo, para a solidariedade, para o respeito cultural, para os pobres, para o Estado,
pois todos eles são direitos vinculados aos direitos econômico-sociais que, sem
embargo, devem ser respeitados na sua íntegra. 48
Soares afirma que: “os problemas da pobreza e do meio ambiente podem ser
evitados e sanados pela sociedade; não há falta de tecnologia que impeça sua superação;
na verdade, os obstáculos são sociais, políticos e econômicos”49. As causas da
degradação ambiental nos países são conseqüências das estruturas predominantes de
poder, seja capitalista, seja socialista, ou comunista. Com fundamento em Lutzemberg,
prossegue:
o poder se utiliza de instrumentos, tecnologias, métodos e
processos que geram dependência, ao concentrarem o capital e o poder de
decisão. O mais grave é que esta postura é considerada sinônimo de
progresso, a única alternativa para a humanidade alcançar produtividade e
eficiência. 50

No meio rural, na ânsia da produtividade, os prejuízos ambientais têm se


avolumado, com o avanço das fronteiras agrícolas, com o uso abusivo de insumos e
agrotóxicos, com a destruição das florestas, práticas degradadoras, uso desordenado das
águas que causam, em última análise, armadilhas à exclusão social inerente à busca da
eficiência produtiva (da competitividade), a qualquer custo, obrigando à recuperação da
antiga noção de desenvolvimento social e à propugnação de estratégias e políticas de
apoio para grupos sociais e, não apenas para o êxito mercantil de agentes individuais.51

47
LIVORSI, Franco. Il mito della nuova terra. Milão: Giuffré, 2000. contracapa.
48
ESQUIVEL, Adolfo Perez. Los derechos econômicos, sociales y culturales, hoy. In: CAMPOS,
German J. Bidart; RISSO, Guido (Coords.). Los derechos humanos del siglo XXI. Buenos Aires: Ediar,
2005. p. 108.
49
SOARES, Remi Aparecida de Araújo. Proteção ambiental e desenvolvimento econômico. Curitiba:
Juruá, 2004. p. 113.
50
Apud SOARES, Remi Aparecida de Araújo. Op. cit., p. 113.
51
MALUF, Renato Sérgio Jamil. Produtos agroalimentares, agricultura multifuncional e desenvolvimento
territorial no Brasil. In: COSTA, Luis Flávio; MOREIRA, Roberto. (Orgs.). Mundo rural e cultura. Rio
de Janeiro: Mauad, 2002. p. 257-258.

219
Direito Agrário Ambiental

A degradação ambiental, que decorre do desenvolvimento econômico


alcançado pelos povos do primeiro mundo, trouxe consigo conseqüências indesejáveis,
forçando a reorganização das sociedades, para dar um equacionamento a uma nova
ordem jurídica e social que contemplasse os efeitos maléficos de tais benefícios, os
quais acabam por ser transferidos às sociedades não desenvolvidas, ou em
desenvolvimento, a um elevado custo social que, em geral, não é mensurado
economicamente, mas que se traduz em lucros para os degradadores.52
A ânsia do progresso e a busca incessante do lucro das sociedades capitalistas
e, mesmo das demais, provocaram no mundo o grande desastre ecológico e a perda de
bens naturais, que se pensavam renováveis, o que gerou a busca de um novo caminho
ambiental, impondo-se, sobre os que não causaram nem metade do dano, obrigações
pesadas de rever suas ações, ou até, de não executar determinados comportamentos,
tendo-se em vista as conseqüências danosas para toda a humanidade.
A norma jurídica passa, a ser o instrumento capaz de regular os interesses
éticos, sociais, econômicos e políticos atinentes à matéria ambiental, visando reduzir as
desigualdades entre os iguais. O Direito Ambiental passa a ser, também, um
instrumento de intervenção da sociedade, através do poder público, nas questões
econômicas e sociais. Este Direito ocupa todo espaço globalizado e as normas, embora
de caráter nacional, devem estar em compatibilidade com os ditames internacionais.
Passa-se a tratar de interesses supranacionais e no, que se pertine à agricultura
e à pecuária, observa-se um interesse particular, principalmente na produção de
alimentos que serão consumidos pelo primeiro mundo. As normas ambientais recaem
sobremaneira sobre os meios e a segurança dos produtos, com normas fito-sanitárias
impostas e com regras de alto rigor ambiental. Instala-se, assim, a partir dos anos 90,
uma nova teoria acerca da produção rural.
Contudo, o que foi colocado nos idos de 70, pela Revolução Verde, permanece
nos países em vias de desenvolvimento e esta tecnologia é o método que garante a
grande produção, por meio de insumos, adubos e agrotóxicos. Desta feita, estabelecem-
se duas vertentes. Primeiramente, os alimentos para consumo da União Européia devem
estar dentro de regras ) que ambicionam a qualidade dos produtos, desde a origem das
sementes, até a mesa do consumidor; portanto, só se compram produtos agropecuários,
se os requisitos forem preenchidos. Assim, muita coisa tem mudado, para satisfazer o

52
CARDOSO, Artur Renato Albeche. A degradação ambiental e seus valores econômicos associados.
Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2003. p. 15.

220
Direito Agrário Ambiental

comércio internacional. Mas no âmbito interno, a ausência de cuidados ambientais, a


pobreza e a desigualdade social geram os danos irreversíveis ao meio ambiente,
provocando um ciclo vicioso que empobrece o meio rural. A ânsia dos empresários em
fazer crescer seus lucros derruba matas, polui águas, tira riquezas e sobrevivência dos
pobres. Muito ainda precisa ser feito pelos Estados, pelos produtores e pela sociedade
organizada.
É preciso reconhecer o que é apontado por Leila Ferreira: “Toda atividade
humana tem um custo ecológico a ela vinculado; esta consciência também enfatiza a
necessidade de compreender a natureza holística da vida: a vida biológica, social e
política”53. Assim, o objetivo é reduzir gastos ambientais e trabalhar com racionalidade,
alterando a estrutura de poder concentrado, para que haja sustentabilidade nas
produções, limites às grandes empresas na anseio por seus lucros e um Estado forte, que
conduza o cuidado ambiental, sem dar primazia aos grandes grupos econômicos e sem
estar sob as pressões feitas por estes sobre suas decisões, quer no Executivo, no
Legislativo, ou no Judiciário.
No meio rural, a realidade ambiental é danosa. Dentre a busca das super safras,
o direito de paisagem, a produção de alimentos saudáveis, a preservação das reservas
legais e das biotas têm prevalecido a exploração, a ocupação desordenada do solo, os
conflitos por terra, o trabalho escravo e todas as outras seqüelas já comentadas.
A agricultura moderna vive na obsessão da exploração extensiva das grandes
superfícies, sem obstáculos, de rapidez mecânica, de execução de fortes investimentos
energéticos, de adubos, de altos coeficientes, de biocidas e de exigências de produção
numa base quase industrial. O mito do farmer americano tem sido responsável por
profundas transformações do ambiente natural. A destruição das áreas de mata natural
para aproveitamento conduz a modificações da fauna local, ao suprimir as reservas de
animais selvagens e ao eliminar os abrigos e poleiros das aves de rapina e dos pássaros;
a silvicultura tem sido explorada tradicionalmente em regime de pilhagem; a destruição
das florestas tem como principal objetivo a obtenção de madeiras e a monocultura
impera.54
Equilibrar a produção para a população que cresce e preservar o meio
ambiente, num primeiro momento, parece contraditório; porém, já foi amplamente

53
FERREIRA, Leila. A questão ambiental. 1. reimp. São Paulo: Boitempo, 2003. p. 79.
54
MENDES, J. J. Amaral. O homem face ao meio ambiente. In: MENDES, Amaral (Org.). Problemas
ecológicos do mundo agrário. Coimbra: Almedina, 1977. p. 177-178.

221
Direito Agrário Ambiental

debatido que os alimentos podem ser produzidos em alta escala e que, mesmo assim, a
fome continuará existindo, porque suas causas são outras. Assim, pensar no meio
ambiente equilibrado para uma segurança alimentar é buscar um sentido ambiental que
evite pobreza e marginalização, que não gere destruição e que não expulse o homem
para as periferias das grandes cidades, para lá poluir, passar fome, produzir lixo e viver
abandonado pelas políticas públicas.
A responsabilidade ambiental no meio rural é extensiva às cidades. Um
primeiro ponto a ser tratado é o freio à migração. As cidades não comportam mais tantas
pessoas; retê-las no campo, com trabalho e infra-estrutura, é o primeiro passo para
conter os dramas citadinos de meio ambiente. A formação de um novo ciclo de
desenvolvimento rural pode gerar novos empregos. Sachs afirma que é um erro supor
que os refugiados do campo que migram para as favelas e para os bairros periféricos das
cidades se transformam, automaticamente, em citadinos. 55 Na visão otimista, as favelas
funcionam como purgatórios. Tudo indica que o custo da urbanização dos que já foram
arraigados no campo será muito mais elevado, do que seria a geração de empregos e
auto empregos decentes e a promoção do progresso civilizatório, no meio rural.
Os serviços que empregam a população rural podem ser variados, como já
salientado, e as reações ambientais devem ser controladas pelos municípios, o que é
permitido pela legislação ambiental. Por meio dos planos do biodiesel, pelo turismo
rural, pelo artesanato, pelo comércio em geral, pela agricultura familiar, ou até mesmo,
pela pouca mão-de-obra utilizada na monocultura, é fundamental manter a população
empregada no campo, para fins de preservação da espécie humana e do meio ambiente.
Os municípios devem zelar pela infra-estrutura rural e propiciar a sustentabilidade
orientada por políticas públicas ambientais, que empreguem as pessoas em seus locais,
explorando as atividades culturais, inclusive. Um bom exemplo são as festas de rodeios,
que empregam pessoas, fomentam a criação de animais, o comércio e a cultura, rendem
dividendos e, conseqüentemente, permitem que as pessoas tenham segurança alimentar,
sem sair de seus habitats.
Mais do que números, é necessário desenvolver em todos os setores. Assim,
pode-se dizer que desenvolvimento relaciona-se, primeiramente e preferencialmente,
com a possibilidade de as pessoas viverem o tipo de vida que escolheram e com a

55
SACHS, Ygnacy. Desenvolvimento includente, sustentável e sustentado. Rio de Janeiro: Garamond,
2004. p. 124.

222
Direito Agrário Ambiental

provisão dos instrumentos e das oportunidades para fazerem suas escolhas.56 Esta é a
segunda grande opção que o meio rural deve fazer para obter segurança alimentar: deve
investir na sustentabilidade – aquilo que Veiga chama de caminho do meio entre a
57
produção e a preservação. O Direito Ambiental não pretende estancar a produção
agrária, ao contrário, busca conciliar os institutos, por meio da função social da
propriedade, do manejo sustentável e das alternativas de meios de produção. A
diminuição dos produtos químicos e fertilizantes com a troca de técnicas orgânicas,
biológicas, biodinâmicas, as chamadas agriculturas alternativas são respostas à melhoria
do meio ambiente, da qualidade dos alimentos e um não aos propósitos da Revolução
Verde. Caronbert Costa Neto estabelece que a meta da Revolução Verde, que propunha
uma agricultura incorporada aos pacotes tecnológicos de suposta aplicação universal,
que visava a maximização dos rendimentos dos cultivos, em distintas situações
ecológicas, trouxe duras destruições ambientais, mas, de positivo, até certo ponto,
pretendia emancipar o homem em relação aos limites impostos pela natureza, para que
não continuasse a ser dependente da generosidade da mesma e, além disso, os métodos
agrícolas tradicionais não eram suficientes para ampliar a gama de produtos
58
alimentícios, energéticos e industriais.
Porém, os danos decorrentes do uso do pacote verde revolucionário podem ser
assim definidos: degradação dos solos agrícolas, comprometimento da qualidade e
quantidade dos recursos hídricos, devastação das florestas e campos nativos,
empobrecimento da diversidade genética dos cultivares, plantas e animais e
contaminação de alimentos consumidos pela população.59 Mesmo cientes de todas estas
conseqüências, as práticas da Revolução Verde são repetidas, diuturnamente, no Brasil,
calcadas na lógica do imediatismo e nas falsas seguranças afirmadas pelos grandes
conglomerados multinacionais, que tornam seus compradores eternos dependentes da
utilização de produtos químicos e, agora, das sementes, o que resulta na compra casada
em que, comumente, os dois produtos (semente e herbicida) são oriundos da mesma
empresa – o que, certamente, provoca a dependência econômica do produtor para com a
mesma empresa, gerando os cartéis que impõem seus preços aos agricultores, os quais,
impossibilidade de manter seus débitos em dia, ou sem a alternativa de preços, acabam

56
VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do séc. XXI. 2. ed. Rio de Janeiro:
Garamond, 2006. p. 81.
57
Ibidem, p. 112.
58
COSTA NETO, Caronbert. Op. cit., p. 302.
59
Ibidem, p. 304.

223
Direito Agrário Ambiental

por perder suas terras para esta indústrias, ou para os grandes grupos econômicos.
Nascem assim, também, a miséria, a pobreza, a fome e o êxodo rural.
A agricultura sustentável tem retorno econômico, a médio e longo prazo;
produz alimentos de alto valor biológico; tem elevado objetivo social, baixa relação
capital/homem, alta eficiência energética (grande parte dela é reciclável) 60. Seria tudo
de bom para ser reinventado no campo. Mas, outros estudos revelam que a agricultura
sustentável representa mais um movimento social claramente promissor, porém, ainda
precário. Graziano61 coloca que, mesmo neste “admirável mundo verde alternativo”,
haveria mais justiça? Haveria bóias- frias? Far-se-ia Reforma Agrária? Desapropriar-se-
iam os que são improdutivos e os que não seguem as regras verdes? E os que
insistissem em continuar poluindo? Para o autor citado, é preciso pensar melhor sobre
estas questões alternativas, firmadas no verde. Não é fazer volta ao passado, o que
implicará em vultosos investimentos, até com mais sofisticação, nem também aguardar
longo prazo. A saída está no âmbito de políticas (paliativas, certamente), que sinalizem
para práticas conservacionistas já disponíveis (e, todavia, quase nunca adotadas) e na
indução de novas trajetórias científicas, que não impliquem em novas degradações da
natureza.
Pensa-se que nada pode ser decidido isoladamente; deverá haver um conjunto
de práticas que ambicionem servir com qualidade a população, melhorando suas vidas
num todo. Entretanto, dentro destas práticas, não se pode mais permitir o desgaste
ambiental contínuo, que vem se repetindo no Brasil, de forma ilegal e prepotente,
deixando a perplexidade imperar, quando se assiste a uma agricultura insustentável, que
destrói o solo, as reservas de água e a diversidade genética natural.
A agricultura que destrói a natureza destrói as chances do homem viver
melhor.
A agricultura é responsável por, aproximadamente, dois terços do uso global da
água e é uma das principais causas de sua falta, em algumas regiões. O desperdício está
presente e, se as práticas agrícolas fossem orientadas para sua conservação e não para a
maximização da produção, o resultado seria mais benéfico. Por exemplo, as plantas
poderiam ser irrigadas com sistema de gotejamento e culturas que requerem uso

60
COSTA NETO, Caronbert. Op. cit., p. 315.
61
SILVA, José Graziano da. Tecnologia e agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS, 1999. p. 63.

224
Direito Agrário Ambiental

intensivo de água, como o arroz, poderiam ser deslocadas de regiões com recursos
limitados.62
A problemática da água impede a vida saudável de milhões de pessoas, neste
país. Afora a corrupção da indústria da seca, que consumiu milhões para a não solução
da falta de água no Nordeste, assiste-se à elaboração contínua de leis ambientais que, na
prática, não combatem os problemas básicos de sustentabilidade. O econômico continua
vencendo o ambiental e o social.
Para e por um fim, é necessário repensar-se a agricultura, que deve ser
sustentável e produtiva, para alimentar a crescente população humana. 63 Este duplo
desafio precisa de pesquisas, estudos, investimentos, para se estabelecer a agroecologia.
Muito embora, na lei de política agrícola, estejam presentes estes dispositivos, voltados
para a pesquisa, assisti-se ao sucateamento da Embrapa, ou se verifica o destino de
verbas para pesquisas da agricultura somente convencional, que renda muitos
dividendos.
O estudo da agroecologia abre as portas para o desenvolvimento de novos
paradigmas da agricultura, em parte, porque corta pela raiz a distinção entre a produção
do conhecimento e sua aplicação ao objetivo comum da sustentabilidade. Valoriza o
conhecimento local e empírico dos agricultores, a socialização desse conhecimento e
sua aplicação ao objetivo comum da sustentabilidade.64
Dentro das perspectivas e orientações da Cúpula Mundial da Alimentação,
torna-se fundamental encarar ao direito à alimentação dentro de uma meta que aborde a
sustentabilidade plena, o direito ao alimento sólido e, também, a nutrição líquida, que
inclui a água potável, que sofre duras e sérias restrições, quando não se pratica a
agricultura correta. Gimenez65 se pronuncia, dizendo que, para a eficácia de uma
sustentabilidade, deve-se buscar o justo e o devido, enquanto objeto da justiça
ecológica, em amplitude universal e de temporalidade para o futuro. É preciso fundar
uma dinâmica construída no desenvolvimento e na aplicação dos conteúdos de justiça e,
em particular, dos Direitos Humanos fundamentais, firmados numa Justiça que exija
relação responsável entre o homem e seu meio.

62
GLIESSMAN, Stephen R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. 3. ed. Porto
Alegre: UFRGS, 2005. p. 52.
63
GLIESSMAN, Stephen R. Op. cit., p. 53.
64
Ibidem, p. 54.
65
GIMENEZ, Teresa Vicente. El nuevo paradigma de la justiça ecológica. In: GIMENEZ, Teresa Vicente
(Coord.). Justicia ecológica y protección del médio ambiente. Madri: Trotta, 2002. p. 66.

225
Direito Agrário Ambiental

“Sabe-se que os custos ambientais não são baratos, por isto, o capital resiste a
assumi-los, assim como os custos sociais. Somente se pressionado ‘de fora’, por forças
externas a ele, o mercado absorve estas parcelas.”66 As pressões também podem
funcionar como uma diminuição da produção e da empregabilidade, o que afeta o
social. Assim, a luta e a pressão só obterão sucesso se forem racional e em nível
nacional e internacional.
Os modelos agrícolas, o desenvolvimento, o consumo, as inovações
tecnológicas pesam, inter-relacionam-se na busca de produção alimentar, segurança,
nutrição e, ainda hoje, é preciso refletir sobre outros fatores, como o modismo
alimentar, o desperdício e as pesquisas sobre a nutricionalidade dos alimentos e os
fatores de riscos a que estão expostos os consumidores.
Um bom exemplo da imposição desta lógica de mercado e de tecnologia no
campo ambiental são os alimentos transgênicos, que fazem parte do que se denominam
organismos geneticamente modificados (OGM’s), impostos pelas empresas de
sementes, sementes estas que não se reproduzem e conferem às empresas que as
vendem o monopólio global sobre o seu comércio e sobre a sua propriedade intelectual,
fazendo com os que os produtores, além de serem compradores contínuos, vejam-se
obrigados a pagar royalties sobre cada safra comercializada, bem como a comprar o
pesticida específico que esta semente demanda.67
Sobre o aspecto da segurança alimentar, encontra-se que as plantas
transgênicas são vistas como uma panacéia para muitos problemas contemporâneos:
fome, má nutrição, meio ambiente. Por outro, encontram-se avaliações opostas: a
difusão das plantas transgênicas entendidas como ameaça à conservação e ao controle
de recursos genéticos e como tal o equilíbrio do ecossistema e à segurança alimentar de
milhões de pequenos produtores, uma ameaça também à qualidade alimentar dos
consumidores afluentes e um golpe final do sistema de direitos exclusivos de
propriedade à sobrevivência do conhecimento tradicional e dos recursos genéticos como
patrimônio comum.68

66
MONTIBELLER FILHO, Gilberto. O mito do desenvolvimento sustentável. 2. ed. Forianópolis:
Editora da UFSC, 2004. p. 281.
67
SCOTTO, Gabriela; CARVALHO, Isabel Cristina de Moura; GUIMARÃES, Leandro.
Desenvolvimento sustentável. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 45.
68
PESSANHA, Lívia; D. R.; JOHN, Wilkinson. Transgênicos, recursos genéticos e segurança
alimentar: o que está em jogo nos debates? 1. ed. Campinas: Armazém do Ipê, 2005. p. 1.

226
Direito Agrário Ambiental

A discussão sobre os transgênicos decorre da dúvida de fazerem eles mal, ou


não, aos consumidores e, se devem, ou não, ser comercializados livremente. Sobre este
tópico, são úteis as palavras de Nutti e Watanabe:
O fato de um alimento geneticamente modificado ser
substancialmente equivalente ao análogo convencional não significa que o
mesmo seja seguro, nem elimina a necessidade de se conduzir uma avaliação
rigorosa para garantir a segurança do mesmo, antes que sua comercialização
seja permitida. Por outro lado, a não constatação da es (equivalência
substancial) não significa que o alimento geneticamente modificado não seja
seguro, mas que há a necessidade de se prover dados de maneira extensiva,
que demonstrem sua segurança. 69

O estudo dos transgênicos recebe o beneficio da dúvida e este permite a


comercialização do produto, dada a incapacidade de comprovar os efeitos negativos do
seu consumo à saúde humana. Em decorrência da incerteza e, contrariamente à posição
norte-americana, muitos países preferem aderir ao princípio da precaução, no que se
refere à liberação dos transgênicos, no meio ambiente e ao consumo humano. O Brasil,
mesmo adotando em sua legislação o princípio da precaução, liberou, por questões
meramente de satisfação dos jogos do poder, a comercialização destes produtos.
Os transgênicos, chamados de sociais, são aqueles que poderiam atender às
necessidades das populações de baixa renda, à otimização da sustentabilidade da
agricultura e auxiliar na redução da degradação do meio ambiente. Evidentemente que
estes produtos são, na opinião das autoras supra citadas, aqueles que não interessam aos
grandes grupos econômicos e cujo desenvolvimento deveria ser feito por instituições
públicas.70
Mas, frente aos riscos apresentados, opina-se pela avaliação dos benefícios e
malefícios e terminar, de uma vez, com a fantasia de que os transgênicos acabariam com
a fome do mundo. Riechmann é categórico, ao afirmar que a fome e a desnutrição
severas não são problemas técnicos, mas de natureza político-social. A fome não é
causada pela falta de terras, ou de alimento, mas pela falta de acesso ao alimento e de
fontes de renda, em momentos críticos. Os transgênicos não resolverão os problemas,
porque a fome do mundo não é a escassez de comida, mas a escassez de democracia.71

69
NUTTI, M.R.E.; WATANABE, E. Segurança alimentar dos alimentos geneticamente modificados
apud PESSANHA, Lívia D. R.; JOHN, Wilkinson. Op. cit., p. 125.
70
RODRIGUES, Melissa; ARANTES, Olívia. Direito ambiental e biotecnologia: uma abordagem sobre
os transgênicos sociais. Curitiba: Juruá, 2004. p. 94.
71
RIECHMANN, Jorge. Cultivos e alimentos transgênicos: um guia crítico. Petropólis: Vozes, 2002. p.
105.

227
Direito Agrário Ambiental

O modismo da alimentação e as dificuldades de tempo, conjuntamente com o


estresse, têm sua influência no sistema de segurança alimentar e, por conseqüência, na
produção de alimentos com baixa qualidade, que resultarão em obesidade, ou
desnutrição. Aqui estarão reunidos tanto os pobres, quanto os remediados e os ricos.
Fala-se daquilo que foi chamado “sociologia da alimentação”, onde a alimentação
humana envolve aspectos psicológicos, fisiológicos e sócio-culturais, sendo um
fenômeno de grande complexidade, que envolve a discussão da relação do homem com
os alimentos, sob diversos ângulos, inclusive na esfera jurídica.72 É um tema abrangente
que, aqui, será resumido, com base nas funções sociais do alimento, o qual se estende
desde a alimentação do trabalhador (se come, ou não, na empresa; se tem tempo, ou
não, para se alimentar; se tem, ou não, ticket para almoço), até se tem, ou não, o
suficiente para comer.
A relação da alimentação com o indivíduo se reflete nos mais diferentes
momentos: na sua vida social, em comemorações, festas, na escola, nas refeições
diárias. Tudo está interligado aos tipos de comidas e bebidas que vão influenciar na
segurança, ou não, alimentar das pessoas. O Direito atua nesta relação, como agente
protetor dos Direitos Humanos à saúde e à alimentação e está presente no Código do
Consumidor, no controle das publicidades de bebidas, alimentos e remédios e nas
medidas fito-sanitárias.
Estas mudanças na vida dos cidadãos trazem, como característica, a questão de
hábitos e a segurança alimentar estará presente, ou não, dependendo do padrão de vida
de cada um. Envolvem a questão econômica e, também, histórica e social, como, por
exemplo, a alimentação feita em fast-foods, em restaurantes self-services (venda a
quilo), produtos industrializados, transgênicos, a ingestão de bebidas alcoólicas,
ingestão de salgados em troca de refeições, ou a busca por produtos orgânicos, por
consumo vegetariano, por carnes selecionadas, produtos lights e diets. Os Estados têm
criado, para a satisfação das populações mais pobres, os restaurantes populares, com
refeições a preços bem módicos. São pouquíssimos e a idéia precisa ser melhor
incorporada, mas é um passo inovador.
Estas tendências criam a possibilidade de uma imensa diversificação dos
alimentos, com o surgimento de novos produtos e com a possibilidade de identificação
dos produtos de matéria-prima agrícola, aumentando seu valor agregado. Na realidade,

72
PROENÇA, Rossana; POULAI, Jean Pierre. Sociologia da alimentação: um enfoque na compreensão
dos comportamentos alimentares. In: TADEI, J. Augusto (Org.), op. cit., p. 165.

228
Direito Agrário Ambiental

estão sendo permanentemente criadas novas concepções sobre alimento, que passam a
responder a diferentes necessidades do homem na alta modernidade. Em suma, estas
tendências apontam para a personalização da comida no nível do consumidor final. A
nova safra de produtos agroalimentares, provavelmente, será produzida por empresas
em permanente atualização tecnológica, que acompanham as tendências do mercado e
introduzem novos processos responsáveis pelo estado de ebulição em que parece
encontrar-se no mundo agrobusiness.73
Passa-se, então, a pensar na qualidade dos alimentos e as exigências se
multiplicam, principalmente em nível internacional. Os produtores brasileiros estão
submetidos às regras internacionais de cuidados de produção, o que envolve o meio
ambiente, provocando alterações de hábitos e costumes. Os produtos orgânicos ficam
em alta e ganham preços salgados e podem seduzir não só os pequenos produtores,
como os grandes empresários.74 Os produtos naturais, vindos da Floresta Amazônica,
fazem sucesso nos cosméticos e na produção de bijuterias, exibindo que a origem dos
mesmos vinculam-se à preservação ambiental e são oriundos, em sua maioria, de
economia solidária, o que agrega valor social. A madeira vinda do reflorestamento
sustentável mostra que é possível explorar de forma correta e isto, porque muitos países
exigem os selos de que estes produtos foram elaborados com critérios de função social:
econômicos (rentabilidade do empreendimento ambiental, redução de danos,
conservação da fauna, recuperação da mata, proteção da biodiversidade) e sociais
(foram respeitados os direitos dos trabalhadores, o bem estar das comunidades e a
promoção destas).75 Estas certificações promovem os povos das florestas, garantem
melhores condições de vida e garantem o verde ambiental.
A rastreabilidade do gado é outra forma de se garantir segurança alimentar,
exigida pelo comércio internacional. O chamado Sisbov (Sistema Brasileiro de
Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina) funciona como controle na

73
CASTRO, Ana Célia. Agribusiness brasileiro e o papel do sistema de transportes intermodal. In:
COSTA, Luis Flávio; SANTOS, Raimundo; SILVA, Francisco. Mundo rural e política. Rio de Janeiro:
Campus, 1998. p. 179-180. 175 -194.
74
A família Balbo, na região de Sertãozinho/SP, é referência na produção de açúcar, chocolate solúvel e
café orgânicos, voltados para a preocupação ambiental e a função social. Seus produtos, denominados
Native, dominam os melhores mercados europeus. A família dispõe de 13.000 hectares, conforme vídeo
disponibilizado a esta pesquisadora e, ainda, diferentes reportagens nas revistas Globo Rural e Panorama
Rural.
75
BEZERRA, José Augusto. Nossos bosques têm mais vida. Revista Globo Rural, São Paulo, ano 19, n.
226, p. 22, ago. 2004.

229
Direito Agrário Ambiental

produção das carnes, acompanhando a carne do pasto, ao prato e, agora, também,


emitindo certificados de qualidade, o que, obviamente, agrega valor ao produto.76
De uma maneira geral, todos os produtos exportados têm que aceitar as regras
impostas pelo comércio internacional, que visa, hoje, a melhor qualidade dos produtos.
As regras jurídicas seguem as previsões ambientais que controlam a atividade
agrária, o respeito ao meio natural, as operações produtivas, incluindo o turismo, os
projetos e obras e todas as atividades ligadas à agricultura e todos os projetos sujeitos à
evolução. O que clama uma maior intervenção da Administração na gestão de
recursos.77
Outros projetos estatais têm se voltado para a situação da desnutrição,
principalmente no Nordeste. Os problemas ambientais, que lá são mais graves,
necessitam de intervenções de políticas públicas mais acentuadas na área ambiental,
como contaminação de águas, de alimentos, uso indiscriminado de gorduras, açúcares,
refrigerantes, o que provoca a obesidade, afora a falta de renda, ou a presença dela
muito baixa.78 Há que se falar que, nestas intervenções de promoção de melhoria de
vida dos homens nordestinos, há a presença forte da Igreja Católica, há o enfrentamento
das raízes culturais que promove uma alimentação inadequada, a desinformação sobre a
importância dos alimentos, a precariedade de sanidade e de acesso à água de qualidade,
que também estão sendo vencidas, pelos trabalhos da sociedade civil, dos movimentos
sociais e das atuações governamentais.
Por fim, é preciso lembrar que apesar da fome e da miséria presentes no Brasil,
o desperdício faz parte do cenário, colaborando para agravar a situação destes
miseráveis e se tornando num acinte frente aos que mendigam um pedaço de alimento
nas portas das residências, nas ruas, ou nas instituições beneficentes.
As perdas começam nos plantios, quando os produtores já condenam suas
safras a uma baixa produtividade, pelo uso inadequado de insumos e termina na alta
taxa de lixo das residências, já que por questão cultural, muitos brasileiros acabam
jogando fora uma parte considerável de produtos alimentícios, seja por não saberem
extrair deles toda a sua capacidade nutricional, seja por absoluto esbanjamento à mesa.79

76
FRANCO, Maristela. Rastreabilidade. Revista DBO Rural, São Paulo, ano 240, p. 102, fev. 2002.
77
MIGUEL, Juan Francisco Delgado de. Estúdios..., p. 366.
78
CASTELO BRANCO, Telma. Segurança alimentar e nutricional no nordeste do Brasil. Rio de
Janeiro: CERIS, 2003. p. 109.
79
GIANELLA JUNIOR, Fúlvio. Os ralos agrícolas. Revista Família Cristã, ano 48, n. 10, p. 15-17, out.
2002.

230
Direito Agrário Ambiental

O Estado peca pela falta de infra-estrutura, permitindo que grande parte das
safras de grãos colhidos no Centro Oeste seja perdida, ao longo das estradas, pela
deficiência dos transportes. A falta de locais ideais de armazenamento, ou o descontrole
de abastecimento, trazem a perda de alimentos que se tornam sem condições de
consumo, por descaso dos órgãos governamentais. Formam-se, então, o que foi
chamado de “ralos agrícolas”, onde milhares de toneladas de alimentos são
desperdiçadas frente aos milhares de pessoas que passam dias sem alimentos. Falta,
mais uma vez, organização e interesse estatal na promoção de um ambiente que acolha
o homem como parte integrante deste.
No tocante, a áreas reservadas as reservas legais , e áreas de preservação
permanente, optamos em silenciar e respeitar o que esta posto na lei vigente que exige
seu cumprimento de acordo com o que esta vigente no Código Florestal em totalidade,
inclusive com sua modificações . As pretensas modificações neste código e a famosa
polemica entre ruralistas e ambientalistas. Deverá ficar para um, outro trabalho, uma
vez que este abordou a função ambiental sob uma ótica numa visão mais humanista e
menos técnica.
Os direitos humanos ocupam hoje em resguardar o meio ambiente em sintonia
com o homem, desempenhando o papel primordial em propiciar uma alimentação em
quantidade e qualidade capaz de gerar uma vida saudável. Os alimentos produzidos no
meio rural em sua maioria devem respeitar os princípios de manejo sustentável,
propiciando segurança alimentar e meio ambiente capaz de se reproduzir para gerações
futuras.
Isto não significa atraso ou falta de desenvolvimento em pesquisa e tecnologia
ao contrario, estas devem estar ao dispor da busca incessante de melhorias genéticas e
eficiência, porém tudo dentro do respeito ao meio ambiente.
Deve estar em jogo o cuidado com a pobreza e a exclusão social, pois estas são
razões oponentes ao meio ambiente equilibrado, como também o é o crescimento
econômico desenfreado e a busca incessante do lucro. Para a busca de um equilíbrio
sensato deverão intervir as normas jurídicas e os princípios ambientais que devem agir
como freios principalmente nas atividades agrárias, responsáveis pela segurança
alimentar.
A relação histórica da função ambiental com a função social da propriedade
não pode ser desvinculada . O meio rural traz uma realidade de violações de degradação
que resultaram numa ausência de sustentabilidade social, econômica que precisa ser

231
Direito Agrário Ambiental

resgatada, para assim ser concretizada a sua função ambiental. O Estado deve pensar
conjuntamente sem conflito, numa política sustentável para assim resguadar o meio
ambiente de suas violações.
Em pleno Século XXI, tais violações representam verdadeira afronta aos
direitos humanos e, assim, deve ser classificada a segurança alimentar e a sua
concretização: materialização das demandas sociais contemporâneas, atinente a mais
esta manifestação da dignidade humana.

232
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XII - EMPRESA AGRÁRIA E EMPRESA RURAL: EXPRESSÕES


DE UM MESMO SUJEITO?

Hertha Urquiza Baracho80


Eduardo Frade81

INTRODUÇÃO
A empresa, enquanto instituto jurídico e econômico, poderá apresentar-se sob
diversas facetas, sobretudo em razão do objeto ao qual se dedica. Este, por sua vez, o
dotará de peculiaridades próprias.
A empresa agrária,neste cerne, corresponde a uma espécie empresária dotada
de especificidades que a distinguem de outras, onde se destaca a singularidade da
atividade por ela exercida.
Todavia, o legislador pátrio, por diverso, desconsiderou a distinção da
atividade agrária como elemento definidor de uma espécie empresária, tratando-a como
se fosse uma empresa rural, o que nem sempre representará a realidade, posto que, nem
toda empresa rural será agrária.
O Brasil, por ser um país de economia preponderantemente agrária
exportadora, tem, na empresa agrária, um dos mais importantes mecanismos para a
prospecção do crescimento econômico e do desenvolvimento nacional, razão pela qual
se verifica a importância deste estudo, que se debruça sobreempresarialidade agrária,
apresentando suas singularidades, que fazem com que ela se distinga das demais
espécies empresárias, sobretudo da empresa rural, bem como busca demonstrar
elementos essenciais que devem ser observados em seu exercício, não só para sua
perpetuação, como também para que ela possa exercer o seu papel econômico e social.
Portanto, o presente estudo se propõe a responder aos seguintes
questionamentos: o que se entende por empresa agrária? É possível sua distinção em
relação àempresa rural?
Para tanto será abordado, em primeiro momento, o conceito de empresa,
notadamente por não haver, no Código Civil de 2002, determinação expressa desse
instituto jurídico. Em seguida, será debatida a atividade agrária, enquanto principal
particularidade da empresa agrária, bem como será apresentada a proteção legal a ela

80
Professora do Curso de Direito do UNIPÊ.
81
Professor do Curso de Direito do UNIPÊ.

233
Direito Agrário Ambiental

pertinente, para, então, partir-se à conceituação da empresa agrária, enquanto sujeito de


direitos e, por fim, apresentar suas distinções em relação à empresa rural.
Salienta-se, portanto, que para a realização deste trabalho fora utilizada uma
abordagem dedutiva,a partir da legislação pátria atinente à temática, a par do referencial
teórico para aprofundamento temático, sendo, pois, a análise bibliográficae de
dispositivos legais os principais métodos de pesquisa utilizados.

1. A ATIVIDADE AGRÁRIA
A empresarialidade agrária tem, no exercício da atividade agrária, sua principal
singularidade, sendo que esta atividade não deve ser reduzida à prática da agricultura,
uma vez que esta é tão somente uma das espécies pelas quais o gênero da atividade
agrária se verifica. Notadamente a pecuária e outras formas extrativas ligadas ao setor
primário da economia também são consideradas como atividade agrária. Neste sentido,
bem se posiciona Enrique Ballestero:
Tradicionalmente, a economia se divide em três grandes setores de
produção. O setor primário compreende as atividades extrativas, isto é, as
empresas que extraem seus produtos diretamente do solo, do subsolo, dos
rios ou do mar. Em outras palavras, as empresas do setor primário utilizam
diretamente a natureza como fator de produção, aplicando nela capital,
tecnologia e trabalho. No setor primário se incluem, pois, a agricultura, a
mineração e a pesca. Também a produção de energia é, por seu turno, setor
primário: o petróleo, o gás natural e outros recursos energéticos provém de
fontes extrativas (BALLESTERO, 2000, p. 21) (PINHEIRO, 2010, p.116).

Impõe-se também acrescentar que as atividades zootécnicas, tais quais a


bovinocultura, piscicultura, ovinocultura, apicultura e outras também se encontram
inseridas no gênero atividade agrária.
Portanto, compreende-se como agrária toda aquela atividade primária em que
não se altera a natureza do produto obtido, ou seja, não se passa por um processo de
industrialização que resulte em alteração física ou química do bem.
Em razão da amplitude de mecanismos de produção correspondentes à
atividade agrária, é comum o emprego do termo como designação genérica, que
compreenda tanto o cultivo de hortaliças, como a atividade zootécnica ou outras formas
de extração primária.
A atividade agrária apresenta, portanto, algumas características que a
distinguem das demais espécies produtivas. A total dependência do processo biológico é
uma delas.

234
Direito Agrário Ambiental

Por dependência do processo biológico compreende-se a impossibilidade de


controle do homem com relação às externalidades, pois, ainda que, utilizando-se de
tecnologia tendente a reduzir os efeitos destes fatores sobre a produção, o total controle
destes ainda se mostra impossível. Atítulo exemplificativo destas externalidades, cita-se
o clima, notadamente por ser um dos fatores que mais influenciam a atividade agrária:
O clima é uma variável que condiciona a maioria das explorações
agropecuárias. Determina, por exemplo, a época de plantio das culturas
exploradas, e das pastagens, bem como das atividades de manejo de insumos
agrícolas e pecuários, das colheitas, capacidade de suporte das pastagens,
bem como das atividades de manejo de insumos agrícolas e pecuários, das
colheitas, capacidade de suporte das pastagens e a escolha de variedades e
espécies de vegetais e animais. (SILVA,2009, p.20)

Acerca do uso de tecnologia nestas atividades, há de se destacar que nem


sempre o seu uso poderá ser capaz de suprir as externalidades ambientais na produção
agrária, pois por diverso elas ainda se mostram ineficientes e muitas vezes inacessíveis,
pois sua utilização elevaria em muito os custos de produção, tornando inviável sua
produção, sobretudo para o pequeno produtor.
Outro problema enfrentado na atividade agrária reside na sazonalidade da
produção de grande número de espécies, fator que, inclusive, influencia diretamente no
preço dos produtos, de tal sorte que o produtor não tem controle sobre o preço de
mercado daquilo que produz, sendo tão somente um tomador de preços82.
Ademais, tudo que é produzidopela atividade agrária em geralé perecível, não
homogêneo, de qualidade variável e sendo, normalmente, matéria-prima para outros
produtos, embora muitos deles possam ser também consumidos como produtos finais.
Inobstante o problema natural dos produtos agrários, a atividade agrária, apesar
de essencialmente primária, poderá também apresentar certos graus de industrialização
sem que, contudo, perca seu caráter. Nesse sentido, se a produção industrial apresentar-
se como complementar à primária, também se estará diante da atividade agrária, como
ensina Antonio C. Vivanco (1975):
Para definir com precisão o limite entre atividade agrária e
atividade industrial comercial, é preciso adotar alguns critérios enumerados.
O mais claro e concludente resulta no da acessoriedade. Com efeito, a
atividade agrária produtiva deve ser a que desempenha o papel principal
dentro do âmbito agrário, enquanto que as atividades transformadoras e

82
Roni Antônio Garcia da Silva (2009) acrescenta, ainda, que em razão da grande quantidade de
produtores gerando um produto basicamente sem diferenciação, o produtor não apresenta controle sobre o
preço de seu produto no mercado, sendo apenas tomador de preços, cenário que ele considera próximo de
à um cenário de concorrência perfeita, em que somente resta ao produtor “ a opção de buscar maior
produtividade e redução de custos de produção, para que possa viabilizar sua atividade” (SILVA, 2009, p.
23)

235
Direito Agrário Ambiental

comerciais constituem acessório ou complemento daquela. Quando deixam


de sê-lo e passam a desempenhar o papel fundamental, deixam de ser agrárias
para transformar-se em industriais ou comerciais. (VIVANCO, 1975, p. 21)
(PINHEIRO, 2010, p.127)

Assim, o argentino Antonio C. Vivanco (1975) inaugura a teoria da


acessoriedade, apresentando, pois, um critério razoável para a compreensão das
atividades agrárias, uma vez que demonstra a possibilidade de que uma atividade
transformadora ou comercial possa também enquadrar-se como agrária, sendo
complementar à atividade extrativista.
Observando o possível impasse doutrinário do que seria atividade agrária, seja
no âmbito do Direito Agrário como da própria Ciência Agrônoma, o Estado brasileiro
tratou de defini-la legalmente, por meio da Lei 8.023, de 1990, ainda que para fins
tributários. Neste sentido destaca:
Art. 2º Considera-se atividade rural:
I - a agricultura;
II - a pecuária;
III - a extração e a exploração vegetal e animal;
IV - a exploração da apicultura, avicultura, cunicultura,
suinocultura, sericicultura, piscicultura e outras culturas animais;
V - a transformação de produtos decorrentes da atividade
rural, sem que sejam alteradas a composição e as características do produto in
natura, feita pelo próprio agricultor ou criador, com equipamentos e
utensílios usualmente empregados nas atividades rurais, utilizando
exclusivamente matéria-prima produzida na área rural explorada, tais como a
pasteurização e o acondicionamento do leite, assim como o mel e o suco de
laranja, acondicionados em embalagem de apresentação.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica à mera
intermediação de animais e de produtos agrícolas.

Percebe-se, portanto, que o art. 2º da Lei 8.023/1990 tentou deixar claro aquilo
que poderia ser considerado como atividade agrária, apesar de ter-se utilizado da
denominação “atividade rural”,assim o legislador buscou exemplificar muitas das
atividades agrárias, para quefosse possível, em grande medida, a aplicação do princípio
da legalidade na delimitação do objeto agrário em concreto.
Ademais, vê-se que ao legislador pouco importou como se daria esta produção,
sejapor meios naturais ou artificiais, na medida em que o fato gerador do imposto fora a
atividade, considerada de per si, aproximando-se, portanto, da teoria da agrariedade, do
italiano AntonioCarrozza (1996)83, a quem pouco importava se a atividade seria
desenvolvida por meio natural ou artificial para que fosse considerada agrária.

83
Importante destacar a distinção entre as teorias de Carrozza (1996) Vivanco (1976). Em síntese, este
último admite atividades que acessórias possam ser incorporadas à atividade agrária, sem que essa perca a

236
Direito Agrário Ambiental

Outrossim, como se percebe do inciso V do art. 2º da Lei 8.023/1990, as


pequenas transformações do produto, que não alterem as características dos produtos in
natura, podem também ser consideradas como correspondentes à atividade agrária.
Assim, por exemplo, a transformação do leite em queijo, desde que a fazenda
forneça/produza o próprio leite, será considerada como atividade agrária.
Ainda, o Parágrafo Único, do supramencionado artigo, garante que a
intermediação de animais e produtos agrícolas, prática típica da mercância, desde que
não sendo a atividade fim da empresa agrária, enquadra-se, também, como atividade
agrária.
Percebe-se, também, do texto legal uma aproximação com a teoria da
acessoriedade, do argentino Antonio C. Vivanco (1975), na medida em que uma
atividade acessória, como a intermediação de animais e as pequenas transformações do
produto, podem ser também enquadradas como atividade agrária.
Destarte, percebe-se da legislação em comento, influência de diferentes
doutrinadores, na determinação do objeto atividade agrária, de tal sorte que, para a
legislação brasileira, para a determinação da atividade agrária não há que se discutir se
ela se desenvolve por meio natural ou artificial, bem como são admitidas pequenas
transformações no produto, desde que não alterando sua substância, de sorte a se
modificar o objeto.
Todavia, há de se destacar que, inobstante o legislador ter-se utilizado da
expressão rural para designar a atividade agrária, observa-se que ele tratou
essencialmente da segunda, na medida em que a atividade rural seria aquela exercida
fora da área urbana, pois, como assevera FernandoScaff (1997) “o rural tem conotação
estática, enquanto o agrário tem caráter dinâmico”. (SCAFF,1997, p.18).
Percebe-se a incoerência do termo utilizado quando, em 1993, três anos após a
publicação da Lei 8.023/90, foi necessário que a Lei 8.629/1993 fizesse uma alteração
no artigo 4º, inciso I do Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) de tal sorteque a denominação
imóvel rural pudesse ser utilizada não somente para imóveis localizados além da área
urbana, mas para qualquer prédio que se destinasse à atividade extrativa agrícola,
pecuária ou agroindustrial, ou seja, à atividade agrária, independentemente de sua
localização.

sua natureza. Carrozza, contudo, assevera que autilização de tecnologia, tampouco levará a
descaracterização da atividade agrária, desde que mantida a natureza do produto obtido.

237
Direito Agrário Ambiental

Portanto, embora em um primeiro momento a expressão “imóvel rural”


utilizada no texto da Lei 8.023/1990 não fosse o mais adequado, com a publicação da
Lei 8.629/1993, que alterou texto original do Estatuto da Terra, em seu artigo 4º, inciso
I, passou a ser possível a utilização desta expressão “imóvel rural” tambémpara designar
qualquer imóvel que exercesse a atividade agrária.
Todavia, a atividade agrária não é necessariamente desenvolvida em imóvel
rural, posto que é relativamente comum a existência de empresas que exerçam
atividades tipicamente agrárias, sejam extrativas, de agricultura ou pecuária, inseridas
em perímetro urbano. Cita-se como exemplo a Petrobrás que possui plataformas de
extração e tratamento de petróleolocalizadas no mar territorial da cidade de Maceió -
AL.
Porém, embora de forma imprecisa, com o advento da Lei 8.629/1993 passou-
se a admitir a utilização da denominação imóvel rural para o prédio que, mesmo
localizado em perímetro urbano, exerça a atividade rural.
Todavia, a Lei 9.393/1996, que institui o Imposto Territorial Rural continua
utilizando, em seu artigo 1º84, o critério da localização do imóvel para fins de aplicação
do imposto, em detrimento da atividade por ele exercida. Esta posição, contudo,
encontra-se em processo de desconstrução pela jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça:

TRIBUTÁRIO. IMÓVEL NA ÁREA URBANA. DESTINAÇÃO


RURAL. IPTU. NÃO-INCIDÊNCIA. ART. 15 DO DL 57/1966. RECURSO
REPETITIVO. ART. 543-C DO CPC. 1. Não incide IPTU, mas ITR, sobre
imóvel localizado na área urbana do Município, desde que comprovadamente
utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola, pecuária ou
agroindustrial (art. 15 do DL 57/1966). 2. Recurso Especial provido. Acórdão
sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ. (STJ
- REsp: 1112646 SP 2009/0051088-6, Relator: Ministro HERMAN
BENJAMIN, Data de Julgamento: 26/08/2009, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO,
Data de Publicação: DJe 28/08/2009RDDT vol. 171 p. 195RT vol. 889 p.
248)

Igualmente, este entendimento tem sido adotado em instâncias inferiores, como


se observa:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO EMBARGOS À EXECUÇÃO.
CABIMENTO DE COBRANÇA- IPTU - ITR- ATIVIDADES DL 57/66
ART. 15 - PROVIMENTO DA APELAÇÃO.

84
Art. 1º O Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR, de apuração anual, tem como fato
gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, localizado fora da zona urbana
do município, em 1º de janeiro de cada ano.

238
Direito Agrário Ambiental

1- O apelado não demonstrou nos autos que o imóvel estaria em


zona rural ou, ainda, que exercesse atividades que mesmo em área urbana,
levariam ao recolhimento de ITR.
2- Com esteio nos incisos art. 469 do CPC, não faz coisa julgada
matéria que serviu para fundamentar outra decisão.
3- Julgar improcedente os pedidos autorais, para DAR
PROVIMENTO à apelação do Município.(TJES, Classe: Apelação Cível,
69108017505, Relator : RONALDO GONÇALVES DE SOUSA, Órgão
julgador: TERCEIRA CÂMARA CÍVEL , Data de Julgamento: 17/04/2012,
Data da Publicação no Diário: 04/05/2012)

Portanto, a jurisprudência tem admitido que a destinação agrária deverá ser


considerada para fins de aplicação do ITR, e não a localização do imóvel. Outrossim,
cumpre esclarecer que o ITR é imposto que incide sobre a propriedade que exerça
atividade agrária, sendo este, pois, seu fato gerador, de sorte que pouco importa se a
empresa é destinada a esse fim ou não.
Restando esclarecidas algumas considerações sobre a atividade agrária,
principal determinante da modalidade empresária denominada empresa agrária, impõe-
se esmiuçar algumas de suas singularidades.

2. ELEMENTOS DA EMPRESA AGRÁRIA


A empresa agrária, como toda empresa, deverá ter em foco o fim econômico
pretendido, pois, inexoravelmente, deverá buscar o lucro, ainda que não o atinja.
Destarte, uma atividade que vise à subsistência não poderá ser considerada como
empresa agrária.
A empresa agrária apresenta-se dotada das características típicas de qualquer
empresa, qual seja: “atividade econômica organizada para a produção e circulação de
bens e serviços”,sendo-lhe, todavia, essencial o exercício da atividade agrária.
Portanto, a atividade agrária é o que determinará se a empresa poderá ser
considerada como agrária ou não, posto que toda empresa deverá apresentar
organização, ainda que simplória, dos elementos de produção: capital e trabalho, sendo
a disposição destes elementos a principal distinção entre a atividade econômica,
juridicamente abstrata, a qual denominamos empresa, com relação a uma propriedade
rural (imóvel) que exerça a atividade agrária.
A tecnologia, embora dada como elemento facilitador do exercício da empresa,
todavia não constitui condição essencial, pois uma empresa agrária poderá desenvolver

239
Direito Agrário Ambiental

suas atividades sem seu emprego,o que tão somente resultaria em desperdício da
capacidade produtiva e possível redução dos lucros85.
Outrossim, para o exercício da empresa agrária, pouco importará a
sazonalidade do gênero ao qual se dedique a empresa, devendo ser verificada, contudo,
a não ocasionalidade da atividade realizada, como leciona Fernando Campos Scaff
(1997):
O que importa é, justamente, o caráter da não ocasionalidade na
realização da atividade agrária, como aquela realizada por um indivíduo que
dedique um fim de semana de sua vida para a plantação de árvores frutíferas
ou decida, por exemplo, alimentar frangos por uma tarde inteira. Tais
atividades, que serão agrárias, não estarão inseridas no contexto de uma
determinada empresa, em virtude de sua natureza efêmera (SCAFF, 1997,
p.58).

Portanto, ainda que a empresa produza em apenas um curto período de tempo,


se esta situação se realizar com frequência, se repetindo por um fluxo de tempo além da
eventualidade, poderá ser verificado o exercício da empresa agrária.
A empresa agrária, mormente, deverá apresentar uma organização do processo
produtivo, de tal sorte que as atividades não se verifiquem de maneira aleatória,
inseridas no tempo e espaço. Ou seja, deve-se adotar uma metodologia de produção,
ainda que simplória.
Inevitavelmente, essa metodologia passará por uma organização do fator
produtivo, qual seja o trabalho humano, pois, mesmo que a produção seja realizada a
partir do emprego de maquinário de trabalho autônomo, ainda assim, será necessário o
fator humano, seja para ligar ou desligar o maquinário, bem como para fazer eventual
manutenção no equipamento, ou mesmo supervisionar a atividade mecânica.
Outrossim, não existem impedimentos a que a mão de obra empregada seja
exclusivamente familiar, “desde que o imóvel social garanta a existência e o progresso
social e econômico do agricultor e de sua família” (GISCHKOW, 1988, p.147).
Ademais, sobre a estrutura da empresa agrária familiar, observa Alfredo
Abinagem (1996):
A produção familiar, quer ligada por laços de sangue (pais e
filhos), quer por aliança (marido e mulher) raramente está jungida somente ao
consumo interno, como nas unidades domésticas de economia fechada. Hoje,
as chamadas propriedades familiares produzem muito mais para o mercado,
havendo nelas dois tipos de agentes familiares ativos: a) o produtor
responsável, geralmente o pai ou o chefe da família (o pai-esposo é ao

85
A possibilidade de baixa utilização do potencial produtivo deve ser analisada com cautela, pois, em
alguns casos a não utilização de mecanismos tecnológicos para a produção poderá ser considerada como a
melhor estratégia do ponto de vista econômico.

240
Direito Agrário Ambiental

mesmo tempo, proprietário e patrão); b) os trabalhadores, membros não-


remunerados na família (filhos, esposa e outros, eventualmente).
(ABINAGEM, 1996, p.147)

Além disso, não há impedimentos legais para que diversos produtores se


associem, formando uma cooperativa agrária, uma vez que todos possuem o mesmo
interesse lucrativo e esta pode ser uma solução, sobretudo para os pequenos produtores,
a fim de poderem competir, em uma relação mais próxima à igualdade, em um mercado
rodeado por grandes empresas. Todavia, devem atuar em observância às normas
concernentes à defesa da concorrência, uma vez que a cooperativa pode resultar,
também, em concentração de poder em um dado mercado relevante.
Ademais, impõe-se esclarecer que, como o ordenamento jurídico brasileiro
adotou, na Lei 8.023/1990, a teoria da acessoriedade para determinação da atividade
agrária, de igual sorte, não há impedimentos para que uma empresa agrária exerça
também atividades industriais, desde que relacionadas à atividade principal, apenas
complementando-a.
Tendo em vista a adequação da empresa agrária em relação aos pressupostos da
empresarialidade agrária, se faz possível destacar o conceito de empresa agrária trazido
peloEstatuto da Terra (Lei 4.504/1964), em seu artigo 4, inciso VI, embora sob a
denominação de empresa rural:
Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se:
VI - "Empresa Rural" é o empreendimento de pessoa física ou
jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente imóvel
rural, dentro de condição de rendimento econômico ...Vetado... da região em
que se situe e que explore área mínima agricultável do imóvel segundo
padrões fixados, pública e previamente, pelo Poder Executivo. Para esse fim,
equiparam-se às áreas cultivadas, as pastagens, as matas naturais e artificiais
e as áreas ocupadas com benfeitorias.

Inobstante a utilização do vocábulo “rural”, percebe-se que o legislador aqui


referiu-se também à empresa agrária, pois remete-se à área agricultável, e o exercício da
agricultura, como ação extrativista que é, remete à atividade agrária. Ademais, como já
explicado no tópico anterior, o artigo 4º, inciso I do Estatuto da Terra autoriza a
denominação de “imóvel rural” para todo aquele que se dedique à atividade agrária,
além de o STJ já haver entendido que, para critérios de incidência do Imposto
Territorial Rural, deverá ser considerada a natureza da atividade produzida e não a
localização do imóvel, corroborando, portanto, o entendimento de que a atividade
agrária é determinante não só do imóvel rural, mas também da empresa agrária.

241
Direito Agrário Ambiental

De toda sorte, de plano é possível perceber que, para a caracterização da


empresa agrária, além dos elementos típicos da empresa, o legislador optou por atentar a
mais dois requisitos, quais sejam: I) a obtenção de rendimento econômico e; II) a
dimensão, que deve respeitar uma “área mínima agricultável”.
Há de se destacar, também, que o legislador, apesar de ter determinado que a
empresa agrária devesse respeitar uma “área mínima agricultável”, naquela ocasião, não
definira o que seria entendido para tanto, resultando, portanto, em imprecisão conceitual
da empresa agrária. Visando, pois, suprir esta ampla margem interpretativa, em 1980,
fora publicado o Decreto nº 84.685 que, em seu artigo 22, em que pese tratar da
empresa rural para fins de aplicação do ITR, traz uma nova conceituação da modalidade
empresária em questão:
Art. 22. Para efeito do disposto no art. 4º, incisos IV e V, e no art.
46, § 1º, alínea b, da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, considera-se:
(..)
III - empresa rural, o empreendimento de pessoa física ou
jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente
imóvel rural, dentro das condições de cumprimento da função social da
terra e atendidos simultaneamente os requisitos seguintes:
a) tenha grau de utilização da terra igual ou superior a 80%
(oitenta por cento), calculado na forma da alínea a do art. 8º;
b) tenha grau de eficiência na exploração, calculado na forma do
art. 10, igual ou superior a 100% (cem por cento);
c) cumpra integralmente a legislação que rege as relações de
trabalho e os contratos de uso temporário da terra.

Portanto, apesar de ter insistido na denominação “rural”, o Decreto


84.685/1980, além de trazer critério quantitativo da necessária utilização do solo para
que se caracterize a empresa agrária -qual seja igual ou superior a 80% (oitenta por
cento), medido pela razão entre a área efetivamente utilizada e a potencialmente
utilizável ou pelo número ou rendimento de cabeças de gado por hectare, sendo o
parâmetro deste rendimento fixado pelo INCRA- o supracitado decreto traz em seu
texto a essencialidade do atendimento da empresa agrária/rural à função social da
propriedade.
A Constituição Federal de 1988 exige que a propriedade rural cumpra a sua
função social, mediante o atendimento, simultâneo, de quatro requisitos, apresentados
no art.186: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis; e preservação do meio ambiente; observância das disposições que
regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários
e dos trabalhadores.
Interessante é que esses requisitos devem ser atendidos simultaneamente, e
serão cumpridos segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, face a

242
Direito Agrário Ambiental

localização, a extensão e a qualidade das terras. Na ausência de lei os princípios


contidos nos requisitos devem ser observados.
Portanto, percebe-se que o Decreto 84.685/1980, ao dispor que a empresa
agrária (embora denomine rural) deve explorar “econômica e racionalmente imóvel
rural dentro das condições de cumprimento da função social”, prevê que a empresa
agrária deve atuar em conformidade com os requisitos previstos no artigo 186 da
Constituição Federal.
Assim, a empresa agrária cumpre a sua função social quando respeita o meio
ambiente, a legislação trabalhista e proporciona condições dignas de trabalho,
desenvolve e agrega tecnologia nos bens que produz, quando fornece ao consumidor
produtos de qualidade, recolhe os impostos e atua de forma ética no mercado e pratica
uma concorrência leal. Enfim, age de acordo com a legislação imposta para a atividade
econômica.
Ademais, à empresa agrária, assim como a qualquer outra espécie empresária,
também incumbe a observância da legislação trabalhista, como destaca o artigo 22,
inciso III do Decreto 84.685/1980, devendo-se salientar, inclusive, que a Consolidação
das Leis Trabalhistas, prevê uma espécie de contrato de trabalho destinado, justamente,
ao atendimento da demanda da empresa agrária, que em razão do produto por ela
gerado, muitas vezes realiza contratos de trabalho por safra.
Outrossim, à empresa agrária também incumbe a observância aos contratos de
uso temporário de terra, cujas regras estão previstas no Código Civil de 2002.

3. EMPRESA AGRÁRIA OU EMPRESA RURAL?


Uma vez esclarecidas as tipicidades que envolvem a empresa agrária, há de se
distingui-la em relação à empresa rural, visto que ambas muitas vezes podem se
apresentar como sinônima, porém nem sempre esta constatação é adequada.
A empresa agrária, como já discorrido neste estudo, apresenta na exploração da
atividade agrária sua principal singularidade, noção que poderá ser compartilhada com a
empresa rural ou não.
Há de se afirmar que a exploração da atividade agrária não será
necessariamente realizada pela empresa rural, na medida em que o Decreto nº
84.685/1980, em seu artigo 22, em que pese tratar da empresa rural para fins de
aplicação do ITR, define como empresa rural “o empreendimento de pessoa física ou
jurídica, que explore racionalmente imóvel rural...”

243
Direito Agrário Ambiental

Inicialmente, há de se destacar que bem andou o legislador quando empregou o


vocábulo empreendimento, uma vez que a empresa, como bem observa Rubens Requião
(2014), constitui uma abstração jurídica, já que não existe materialmente, tendo apenas
o Direito a ser criado como uma ficção, para que pudesse receber a tutela do Estado,
bem como figurar como sujeito de direitos e deveres no âmbito das obrigações. Neste
sentido, distinguindo-se de estabelecimento que, por sua vez “corresponde ao conjunto
de bens empregado pelo empresário para a exploração da atividade econômica”
(COELHO, 2014, p.164)
Todavia, o supracitado decreto, ao definir a empresa rural como aquela que
explora racionalmente imóvel rural, leva à seguinte constatação: se o imóvel explorado
não estiver localizado em zona rural, estar-se-ia diante de uma empresa rural?
Tal problemática persistiu no ordenamento jurídico brasileiro, até o advento da
Lei 8.629, de 1993, que alterou o artigo 4º, inciso I do Estatuto da Terra (Lei 4.504/64),
para que a denominação imóvel rural pudesse ser utilizada não somente para imóveis
localizados além da área urbana, mas para qualquer prédio que se destinasse à atividade
extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, ou seja, à atividade agrária,
independentemente de sua localização.
Todavia, embora a Lei 8.629/1993 autorizasse a denominação imóvel rural
para todo aquele imóvel que, mesmo no perímetro urbano do município, fosse utilizado
para a prática de atividades tipicamente agrárias86, a Lei 9.393, de 19 de dezembro de
1996, que estabeleceu o Imposto Territorial Rural, instituiu como fato gerador deste
tributo a propriedade, domínio útil ou posse de imóvel localizado fora da zona urbana
do município.
Assim, o tributo, embora criado posteriormente em relação à Lei 8.629/1993,
aparentou tê-lodesconsiderado, pois ignorou o importante avanço desta norma, que
expandiu a atividade rural outrora era destinada tão somente ao campo, para vincular a
incidência do tributo apenas ao critério espacial, da localização do imóvel.
Destarte, a Lei 9.393/1996 desconsiderou o fenômeno da expansão e
crescimento urbano que, embora seja em geral, relativamente lento, não há de ser
desprezado, visto que áreas outrora rurais, podem passar a compor ambiente urbano, o

86
Aqui, cumpre esclarecer que a Lei 8.023/1990, embora utilizasse em seu artigo 2º o termo atividade
rural, na verdade referia-se à atividade agrária, posto que o rol elencado no dispositivo dizia respeito a
ações que podiam ser exercidas tanto no âmbito de uma propriedade agrária, como no âmbito de uma
propriedade rural.

244
Direito Agrário Ambiental

que não somente ocorreu, como continua a ocorrer atualmente, como fenômeno de
crescimento das cidades.
Destarte, com a incorporação de áreas, outrora rurais, às cidades, passaram a
ocorrer diversas demandas no Poder Judiciário, posto que, em geral o IPTU é mais
expressivo que o ITR, quando comparados imóveis de mesmo tamanho.
Estas contendas levaram juízes e desembargadores a fazerem uma
interpretação extensiva do texto legal, para incorporar os casos em que a cidade avançou
à zona rural como sendo de competência incidental do ITR.Assim, percebe-se que a
aplicação dos tribunais vem modificando o teor do texto legal, contudo, não se verifica,
no âmbito do Supremo Tribunal Federal, nenhuma súmula que autorize a aplicação do
ITR nos parâmetros mencionados.
Ao que parece, portanto, os magistrados têm encaminhado o entendimento de
que o ITR incide não pela propriedade rural, mas pela atividade agrária, pois, uma vez
que a Lei 8.023/1990 se utiliza da denominação rural para designar o gênero da
atividade pecuária, de extração vegetal e animal, de cultura de animais e de pequenas
transformações que não alterem a estrutura in natura da matéria-prima, refere-se a elas
como gênero da atividade, não restringindo sua atuação a imóveis rurais.
Contudo, uma vez que é empregada a expressão rural, remete-se, ainda que
inconscientemente, a imóveis e culturas localizadas para além da zona urbana, o que
nem sempre se verifica, posto que a atividade agrária pode, também, ser exercida em
perímetro urbano.
Em razão desta problemática, há de se afirmar que nem sempre a atividade
exercida em âmbito rural será agrária, pois nada impede, por exemplo, que uma
indústria de calçados ou qualquer outra indústria de transformação se instale em imóvel
rural, sem, contudo, exercer a empresa agrária.
Assim, melhor juízo teria feito o legislador, se tivesse na Lei 8.023/1990
utilizado o termo agrário e não rural, pois teria reduzido esta confusãoque se reflete no
âmbito interpretativo da lei, uma vez que a atividade a exercida, à qual a lei se refere, é
tipicamente agrária, ainda que não realizada em zona rural.Outrossim, nem sempre a
atividade exercida no campo será também considerada agrária.
Ademais, a Lei 8.629/93, ao estabelecer que a denominação imóvel rural pode
ser utilizada não somente para imóveis localizados além da área urbana, mas para
qualquer prédio que se destine à atividade extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial,

245
Direito Agrário Ambiental

resta imprecisa, pois, na verdade a atividade exercida seria agrária e não rural, posto que
não importa a territorialidade onde esta se desenvolve.
Assim, quando o artigo 22, inciso III, alínea “a” do Decreto 84.685/1980
afirma que empresa rural é o “empreendimento de pessoa física ou jurídica que explore
atividade racionalmente imóvel rural” pode-se, em interpretação conjunta com a Lei
8.629/1993, estender o imóvel rural, para a zona urbana, desde que observado o
exercício de atividades tipicamente agrárias.
Portanto, por força interpretativa conjunta do Decreto 84.645/1980 e da Lei
8.629/1993 é possível afirmar que a empresa agrária e rural pode reunir-se como um
mesmo sujeito, porém, melhor juízo se faz quando se utiliza a denominação agrária,
para designar aquelas empresas que explorem as atividades elencadas na Lei
8.023/1990, uma vez que se verifica patente a relação destas empresas com a atividade
exercida e não com a localização do imóvel em zona rural.
Por outro lado, caso se verifique uma empresa de atividade tipicamente
industrial, localizada em zona rural, pode gerar a dúvida de que, in concreto, se estaria
diante de uma empresa ruralou não, pois se poderia estar diante de uma empresa que
atendesse aos requisitos de utilização do imóvel rural, descritos na Lei 8.629/1993,
sem,contudo, exercer a atividade agrária, posto que o sobredito ordenamento jurídico
estabelece que o imóvel rural terá como critério a localização em zona rural ou a
dedicação do imóvel à atividade agrária. O que resulta, portanto, em um dever de
interpretação conjunta da lei e do decreto para determinar se na situação em questão se
verifica conjuntamente uma empresa agrária e empresa rural ou tão somente a empresa
rural.
Portanto, em razão da localização do imóvel, se faz possível afirmar que nem
toda empresa rural será agrária, posto que para esta última tão somente importa a
atividade exercida, sem peso, portanto, a localização do imóvel.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme se observa deste estudo, a empresa agrária, enquanto espécie do
gênero empresa, é dotada de peculiaridades, sendo a principal delas o objeto a que se
dedica, qual seja, a atividade agrária, em que não deve ser alterada a natureza do
produto, inobstante seja admitido o uso de tecnologias.

246
Direito Agrário Ambiental

Todavia buscou-se demonstrar o equívoco de nomenclaturas empregado pelo


legislador que, por diverso, ao referir-se à empresa ou à atividade agrária, utilizava-se
da expressão rural.
Ora, estes termos, embora comumente associados, são distintos, mormente
porque o termo rural é antônimo de urbano, de tal sorte que a empresa rural seria, por
analogia, aquela fora do centro urbano.
Assim, há de se destacar a utilização equivocada da expressão rural, pois,
mesmo a Lei 8.629/1993 tendo expandido o termo rural para designar não somente a
propriedade localizada em região rural, mas para qualquer propriedade que se dedique à
atividade agrária, melhor seria, se o legislador tivesse utilizado a expressão agrária, uma
vez que esta denota certo dinamismo, enquanto o termo rural tende a ser estático.
Portanto, respondendo ao questionamento inicialmente proposto, há de se
destacar que, embora as denominações empresa agrária e empresa rural passam até ser
empregadas como sinônimo, há de ser preferida a denominação agrária, posto que
remete diretamente à atividade exercida, enquanto a empresa rural pode também
remeter à outras empresas que explorem racionalmente imóvel rural, mas que não
exerçam atividades agrárias.
Destarte, em razão do critério de exercício da atividade agrária, e
observadaaexegese do Decreto 84.685/1980, a empresa agrária pode ser considerada
como rural, mas nem toda empresa rural será agrária, uma vezque uma empresa que se
dedique aatividades industriais de transformação, mas que esteja localizada em âmbito
rural, poderá ser compreendida como rural, mas não como agrária, uma vez que o
supracitado dispositivo utiliza como um dos argumentos para que se verifique a
empresa rural a localização do imóvel para além da zona urbana.
Ademais, corroborando tal argumento, aLei 8.629/1993, que estabelece o
imóvel rural terá como critério a localização em zona rural ou a dedicação do imóvel à
atividade agrária.
Portanto, deve-se analisar in concreto cada caso para que seja possível se
constatar a existência de uma empresarialidade rural em conjunto com a agrária, ou tão
somente uma empresa rural. Neste cerne, para evitar confusões e dar maior clareza à
empresa em estudo, é preterível a utilização agrária quando em referência ao gênero da
atividade exercida, uma vez que esta descarta o critério da localização como essencial.
Ademais, buscou-se com este estudo demonstrar prerrogativas a serem
observadas para o exercício da empresa agrária, para que seja possível sua distinção in

247
Direito Agrário Ambiental

concreto com relação às demais espécies empresárias, bem como destacar requisitos que
devem ser observados no decorrer do exercício desta atividade para que possa existir
uma conformação fática com a determinação legal, imposta pelo Decreto 84.685/1980
destacando-se, portanto, a área mínima agricultável, não sazonalidade, o não
amadorismo e o exercício da função social.

REFERÊNCIAS
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Bilbão: edicionesMundi-Prensa, 2000
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<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-84685-6-maio-1980-
434098-publicacaooriginal-1-pe.html> Data de acesso: 20 de março de 2015
BRASIL. Lei 8.023/90, de 12 de Abril de 1990. Disponível em:
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de 2015
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8629.htm> Data de Acesso: 20 de março de
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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 18. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014, v.1
GISCHKOW, Alberto Emílio Maya. Princípios de direito agrário: desapropriação e
reforma agrária. São Paulo: Saraiva, 1988
PINHEIRO, Frederico Garcia. Empresa agrária: análise jurídica do principal instituto
Direito Agrário contemporâneo do Brasil. 2010, 218f. Dissertação (mestrado em
Direito), Universidade Federal de Goias: Goiânia.
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, v.
1.
SCAFF, Fernando Campos. Fundamentos da empresa agrária. São Paulo: Malheiros,
1997.
SILVA, Roni Antonio da. Administração rural: teoria e prática. 2. ed. Curitiba: Juruá,
2009.

248
Direito Agrário Ambiental

VIVANCO, Antonio C. Teoria de derecho agrario. La Plata: Ediciones Librería


Jurídica, 1975, v.1.

249
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XIII - PROPRIEDADE RURAL E OS PRINCÍPIOS


FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Iranice Gonçalves Muniz87

INTRODUÇÃO
O ordenamento jurídico brasileiro, presidido pela Constituição de 1988, recorre
aos valores denominadosvalores supremos, aos princípios e aos direitos e garantias
fundamentaiscom uma função fundamentadora e orientadora referentes ao conjunto da
legislação.
O presente trabalho tem como objetivo principal relacionar o direito de
propriedade com princípios fundamentais estabelecidos no Título I da Constituição de
1988. Dessa maneira, a história é instrumento auxiliar utilizados para a compreensão
dos objetivos que o estudo.

1. O DIREITO DE PROPRIEDADE: EVOLUÇÃO HISTÓRICO-JURÍDICO


Na sua trajetória, a propriedade passou por vários regimes, em povos e épocas
diferentes (SABINE, 1945). O Direito romano havia definido a propriedade desde o
princípio, caracterizando-a como o direito absoluto e ilimitado sobre o bem em que
recaía88.
Além disso, para a escolástica e, acima de tudo, para São Tomás de Aquino, a
propriedade não era um fim em si mesmo; antes, era o meio que permitia ao titular dos
bens alcançar um uso racional dos mesmos em benefício próprio e dos seus
semelhantes89.
Dotava-se, assim, de fundamento racional a um dos tópicos jurídicos que havia
de alcançar o número imaginável de interpretações: a ideia de função social da
propriedade já se encontram nestas reflexões tomistas que foi desenvolvida,

87
Doutorado em Direito Público pela Universitat Pompeu Fabra, Barcelona Espanha.
88
Segundo Sabine, adefinição feita pelo Direito Romano da propriedade era influenciada pelo fato de que
os atores da vida política também eram os grandes proprietários nas cidades, o que determinou um
vínculo estreito entre a propriedade e o poder político, atribuindo uma quantidade ilimitada de faculdades
ao respectivo titular sobre o objeto(SABINE, 1945, p. 362).
89
A doutrina da função social da propriedade foi exposta pela Igreja Católica nas Encíclicas Papais,
inspiradas nos ensinos de Tomás de Aquino. Um documento importante para os trabalhadores em geral
foi a Encíclica RerumNovarum, de 1891, escrita por León XIII. Ver as obras de VIANNA (1963. p. 30),
NASCIMENTO (1970, p. 41) e CAMARGO (1998, p. 54). Por outro lado, os positivistas também
afirmaram a função social da propriedade no fim do século XIX e no início do século XX. Augusto
Comte já apoiava a função social da propriedade em 1912

250
Direito Agrário Ambiental

posteriormente, nas Encíclicas Pontifícias, entre as quais se sobressaem a


RerumNovarum(León XIII, 1891), QuadragessimoAnno (Pio XI, 1931), Mater e
Magistra (Juan XXIII, 1961), Centesimusannus (Juan Pablo II, 1991) (PÉREZ-
PRENDES MUÑOS-ARRACO, 2005). As primeiras obras técnico-jurídicas nas quais
se fala da função social datam do início do século XX, enquanto que do exercício social
da propriedade se tratava na Encíclica Rerum Novarum, escrita por León XIII em 1891
(COLINA GAREA, 1997).
Com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de
1789, a propriedade se apresentava, no seu artigo 17, como um direito inviolável e
sagrado. A propriedade privada foi estabelecida, desde então, como um direito
fundamental, cuja função consistia em garanti a liberdade individual contra as
intromissões dos Poderes Públicos. A propriedade privada passou a ser considerada
como um pilar estrutural da sociedade, estando na mesma categoria conceitual que a
vida, a liberdade e a segurança (LARENZ, 1996). No artigo 17, a Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789 ficou estabelecido que:
Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém
pode ser privado dela, exceto quando evidentemente exigido pela necessidade
pública, legalmente comprovada e sob a condição de uma indenização justa e
prévia.

Por sua vez, a Declaração Norte-americana de Independência e a Bill ofRights


de Virginia, ambos de 1779, proclamaram como direitos de todos os indivíduos, pelo
mero fato do seu nascimento, a liberdade, a propriedade e o direito à busca da
felicidade. Para Pérez Luño (1998), ambos os textos se inspiram em suposições
naturalistas e individualistas: os direitos reconhecidos emanam das leis da natureza, às
quais o direito positivo não pode contradizer.
A propriedade do tipo burguesa/capitalista se concretizou nas possibilidades da
utilização e da disposição do proprietário, que encontrou a sua formulação
paradigmática do Código Civil napoleônico, o qual estabeleceu, em seu artigo 544, que
a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, sempre
que o seu uso não viole as lei ou os regulamentos90. No entanto, não foi estabelecido
legalmente um estatuto jurídico que regesse a nova propriedade – seu regime foi se

90
Na distribuição sistemática dos temas do Código Napoleón, o primeiro livro está dedicado às pessoas, o
segundo trata dos bens e das diferentes modificações da propriedade, e o terceiro, das diferentes maneiras
por meio das quais se obtém uma propriedade. Neste último livro há a regulação da sucessão, das doações
entre os vivos e por causa de morte, bem como todos os contratos, inclusive o “contrato de casamento”
(Código Civil francês, 1804).

251
Direito Agrário Ambiental

formando pelo acúmulo de normas civis, econômicas e comerciais, todas elas inspiradas
no mesmo espírito liberal da época.
A caracterização da propriedade privada inspirada no direito natural servia à
burguesia como critério teórico para diferenciar claramente a nova forma de
propriedade da antiga, o Ancien Régime(regime representado pelo clero e pela nobreza).
Embora tivesse sido declarada, no início do constitucionalismo moderno, como
direito fundamental e como garantia inviolável e sagrada da liberdade individual, a
propriedade passou a ser analisada e discutida, na teoria jurídica, como direito absoluto
e ilimitado, tendo como base um código civil do século XIX, exclusivamente como algo
de direito privado, apartado, por tanto, da visão pública organização política do Estado.
Todavia, no século XX, a partir das críticas ao modelo de Estado
liberal/individualista, a propriedade consagrada no artigo 544 do Código francês perde
paulatinamente o seu caráter absoluto que era resultado da sua condição de direito
privado. A concepção liberal-individualista do direito de propriedade, nas suas versões
sucessivas, será questionada como consequência de certas mudanças econômicas,
políticas e ideológicas, que a corroerão até substituí-la por outra concepção dominical
totalmente diferente que incluiria, antes de tudo, a importância social e pública no
conteúdo desse direito (REY MARTÍNEZ, 1994).
Com o antecedente da Constituição Mexicana de Querétaro de 1917, o Art. 153
da Constituição Alemã de Weimar de 1919 marca a transição da concepção dominical
liberal-individualista para a concepção socializante. Este preceito garante a
propriedade, cujo conteúdo e limites serão resultados das leis; prevê a possibilidade de
expropriação por motivos públicos “para o bem da coletividade”, com sujeição à lei e
mediante indenização “proporcional”, “a menos que uma lei do Reich diga outra coisa”.
No entanto, ela acrescenta logo a seguir: a propriedade obriga; seu usa terá de
constituir ao mesmo tempo um serviço para o bem geral91.
Sobre o funcionamento do Art. 153 da Constituição de Weimar, houve uma
modificação essencial da propriedade privada e, por tanto, da prática de expropriação. A

91
Constituição Do Império (Reich) Alemão, de 11 de agosto de 1919, Art. 153 - “A Constituição garante
a propriedade, cujo conteúdo e limites determinarão as leis. Não pode haver nenhuma expropriação,
exceto por utilidade pública e com sujeição da lei. Esta será realizada mediante uma indenização
adequada, a menos que uma lei do império diga outra coisa. Referente à quantia da indenização, em caso
de discórdia, o assunto será apresentado aos tribunais comuns, a menos que as leis do império digam o
contrário. A expropriação realizada a favor do Império no que se referem a Países, a Municípios e a
estabelecimentos de utilidade pública só poderão ser realizados mediante indenização. A propriedade o
compele. Seu uso se constituirá, ao mesmo tempo, em um serviço para o bem geral” (Textos
Constitucionalesespañoles y extranjeros, Zaragoza, Editorial Athenaeum, 1930).

252
Direito Agrário Ambiental

partir de então, em quase todas as definições sobre o direito de propriedade, por mais
individualistas que sejam, nunca deixam de subordinar este direito ao uso que se faça
dela em função do bem social ou da utilidade pública.
O direito de propriedade no Brasil vem passando por alterações desde a época
das colônias, assumindo formas conceituais distintas. As normas do Código Civil
francês serviram de inspiração para um bom número de legislações civis no século XIX,
sendo que o Brasil não escapou desta influência.
Apesar das transformações ocorridas em outros Estados, no Brasil a base da
propriedade liberal permaneceu inalterada até a Constituição de 1934, que, sob a
influência de Weimar, abriu uma brecha no plano constitucional da concepção liberal-
individualista da propriedade privada (HORTA, 1995). Esta, embora continue
permitindo a inviolabilidade do direito de propriedade, usa as expressões utilidade
pública e interesse social92.
A experiência política do século XX nos permite observar que, em quase todos
os países, ainda que com intensidades e motivações bem diferentes, destaca-se a aptidão
dos bens para satisfazer não apenas as exigências do proprietário particular, mas
também as necessidades da coletividade. Com isso, podemos afirmar o caráter social da
propriedade.
Conseguimos chegar a essa afirmação graças uma mudança de ponto de vista
nas relações existentes entre as exigências individuais e as do Estado (MONTANCHEZ
RAMOS, 2005). Por conseguinte, tornou-se necessário coordenar os direitos individuais
de propriedade e a gestão dos bens produtivos, repensando o modo da pessoa situar-se
na sociedade, por meio do que se questiona o direito de propriedade que tende a
suprimir outros direitos básicos da coletividade.
No Brasil até o final do século XX os conceitos de propriedade privada eram
examinados e tratados de maneira diferente pelo direito civil e pelo direito
constitucional, separando os civilistas dos constitucionalistas. Assim, no âmbito das
relações civis, as disposições do Código Civil Brasileiro estabeleceram as faculdades do
uso, gozo e disposição dos bens. Hoje, a plenitude da propriedade, o caráter exclusivo e
ilimitado adquire outro aspecto e passam a ser delimitados e condicionados conforme as
normas e princípios constitucionais que regulam o direito em geral.

92
Veja a Constituição Brasileira de 1934, Art. 113.17.

253
Direito Agrário Ambiental

2. CONSTITUIÇÃO DE 1988: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAISCONECTADOS


COM O DIREITO DE PROPRIEDADE
Os princípios fundamentais na Constituição de 1988 são abordados no Título I
e tal lugar de preeminência não tem precedente em direitos históricos brasileiros93.
Podemos pensar em uma confusão do legislador constituinte no que se refere às
definições de princípios, fundamento e objetivo. Entretanto, fica evidente que com a
expressão “Dos Princípios Fundamentais” o Título I da Constituição amplia a definição
dos princípios à totalidade dos artigos 1º, 2º, 3º e 4º da Constituição94. Isso significa,
sem espaço para dúvidas, que é preciso atribuir esse caráter a todos os artigos desse
Título conforme aos quais se interpretará a totalidade do ordenamento jurídico brasileiro
e, consequentemente, o direito de propriedade regulamentado pelo Código Civil
Brasileiro e outras normas infraconstitucionais. Ou seja, os princípios constitucionais
atuam como um guia interno e como critério inspirador das normas civis e de outras
normas reguladoras de direitos (PERLINGIERI, 1999) (ARAGÓN REYES, 1989).
Os princípios proclamados no Título I da Constituição se encontram
estreitamente relacionados com os valores constitucionais consagrados no Preâmbulo
Constitucional. Pois bem, entre os princípios fundamentais, a Constituição de 1988
coloca, no seu Art. 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana. Desta maneira, a
dignidade humana é elevada à categoria de princípio fundamental, o que proporciona
unidade de sentido aos direitos fundamentais. Dito de outra maneira, o conteúdo

93
A Constituição de 1988 foi a primeira na história do constitucionalismo brasileiro que concebeu um
título próprio destinado aos princípios fundamentais na própria introdução do texto, imediatamente depois
do preâmbulo e antes dos direitos fundamentais. Por meio de tal mecanismo, a Assembleia Constituinte
de 1987/1988 expôs de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a
característica de normas embaixadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos
direitos fundamentais, que também integram aquilo que pode ser denominado de núcleo essencial da
Constituição material.
94
“TITULO I DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS – Art. 1º. A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamento I – a soberania; II - a cidadania; III – a dignidade da
pessoa humana ; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2º. São Poderes da União, independentes harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o
desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outra forma de discriminação. Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas
relações internacionais pelos seguintes princípios: I – Independência nacional; II - Prevalência dos
direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-intervenção; V – igualdade entre os
Estados; VI – defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao
racismo; IX – cooperação entre os povos; X – concessão de asilo político. Parágrafo único. A República
Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América
Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nação”.(Grifo nosso)]

254
Direito Agrário Ambiental

axiológico do princípio da dignidade humana é exteriorizado em todos os direitos


fundamentais.
Por ser a Constituição de 1988 presidida pelo princípio da dignidade humana,
todos os direitos fundamentais devem ser guiados por esse princípio, inclusive e em
especial, o direito de propriedade e a sua função social, preceitos contidos no Art. 5º,
incisos XXII e XXIII.
A palavra dignidade é abstrata e refere-se à qualidade de digno95. É derivada
do adjetivo latino dignus, a, um, que é traduzido por valioso”. Aplicada literalmente a
todas as pessoas, é uma palavra que remete ao valor intrínseco de cada individuo,
independentemente de fatores externos96. A dignidade baseia-se no reconhecimento da
pessoa como um ser digno de respeito. Já que é valiosa, a pessoa humana deve ser
sempre tratada bem e com respeito. No caso de homens, mulheres e os que não se
identificam como tais, a sua dignidade reside no fato de que as pessoas são, não uma
coisa, mas sim humanas, seres únicos, insubstituíveis, dotados de intimidade, de
inteligência, de vontade, de liberdade, de capacidade de trabalhar, de amar e de
relacionar-se com os demais. A pessoa humana é um ser absoluto no sentido de ser algo
único, irredutível a qualquer outra coisa. É verdade que a dignidade se manifesta
singularmente na autodeterminação consciente e responsável pela própria vida
(GONZÁLEZ PÉREZ, 1983) (FERNÁNDEZ, 2001) (CASTAN TOBEÑAS, 1992).
Ignácio Gutiérrez Gutiérrez (2005, p. 26) entende que:
Se a concretização da imagem do homem corresponde, em última
instância, ao homem real, é preciso reconhecer a cada homem a capacidade
de decidir sobre o alcance da sua dignidade de acordo com a sua própria
responsabilidade.

Portanto, o reconhecimento constitucional da dignidade humana como


princípio fundamental deve garantir as possibilidades de desenvolvimento de cada
identidade pessoal97 e, de dessa maneira, a legítima pluralidade efetiva dos indivíduos

95
De acordo com o dicionário enciclopédico El Ateneo (t. II), o significado da palavra dignidade é: “a
qualidade de digno; que merece algo, em sentido favorável ou adverso; correspondente, proporcionado ao
mérito e condição de uma pessoa ou coisa”.
96
Para Kant, a pessoa humana não tem preço e sim dignidade. Aquilo – diz Kant – que constitui a
condição para que algo seja um fim em si mesmo, não tem meramente valor relativo ou preço, mas um
valor intrínseco, ou seja, dignidade – KANT, Immanuel,Fundamentación de la metafísica de
lascostumbres, p. 35.
97
O valor que o reconhecimento constitucional da dignidade humana tem é o de servir de pauta
interpretativa das normas jurídicas. Neste sentido, uma sociedade verdadeiramente democrática, a que se
refere à própria Constituição de 1988 (Art. 1), deve dar prioridade à intransigência dos direitos essenciais
que correspondem à dignidade da pessoa.

255
Direito Agrário Ambiental

em função do exercício legítimo das liberdades98. Por isso, a preocupação pela


dignidade da pessoa humana é, hoje em dia, universal, sendo reconhecida pelas
declarações dos direitos humanos99, que procuram proteger e implementar o respeito
merecido no mundo inteiro (CANÇADO TRINDADE, 2000). É tal como dito por
Castan Tobeñas, “a dignidade parece ser o único conceito reconhecido de maneira
universal e incontroversa como fundamento dos direitos humanos nos textos jurídicos
internacionais”.
Ao considerar a propriedade rural no Brasil, a informação axiológica do
conceito de direito de propriedade é presidida pelos princípios fundamentais da
República Federativa do Brasil, entre os quais se encontra a dignidade humana,
princípio fundamental para a democracia. A dignidade da pessoa humana declarada no
Art. 1º, inciso III da Constituição100 se relaciona diretamente com o Art. 3º, da mesma,
que fixa outros princípios fundamentais, a saber:
I – Construir uma sociedade livre, justa e solidária
II – Garantir o desenvolvimento nacional
III - Erradicar a pobreza e a marginalidade e reduzir as
desigualdades sociais e regionais
IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação. 101

Assim, os princípios constitucionais mencionados são, por sua vez, limites que
restringem a liberdade excessiva do direito de propriedade como direito fundamental
(CAMAZANO, 2004). Por exemplo, diante da concentração da propriedade rural às
custas dos direitos fundamentais básicos como trabalho, moradia, alimentação, saúde
98
No entanto, PECES-BARBA diz a origem da dignidade humana não se tratou de um conceito jurídico,
tal como pode ser o direito subjetivo, nem político, como a Democracia ou o Parlamento. Antes, tratou-se
de uma construção filosófica para expressar o valor intrínseco da pessoa, resultando de um conjunto de
características da identificação que a tornam única e irreproduzível, que é o centro do mundo e que está
centrada no mundo. A pessoa é um fim que ela mesma decide, submetendo-se à regra, que não tem preço
e que não pode ser utilizada como meio, por todas as possibilidades que encerra a sua condição que
supõem essa ideia de dignidade humana no ponto de partida (PECES-BARBA 1995).
99
Nas normas de Direito internacional reguladoras de Direitos Humanos é frequente a referência à
dignidade da pessoa humana. Em certos momentos, a dignidade da pessoa humanaé mencionada como
direito. Isso é feito, por exemplo, no Art. 11.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos: Toda
pessoa tem direito (...) ao reconhecimento da sua dignidade. Em outras ocasiões, a dignidade é
reconhecida como fundamento dos direitos. Isso acontece em muitas normas. Entre estas, podemos
mencionar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Preâmbulo da Declaração afirma – no
primeiro considerando – que: a liberdade, a justiça e a paz no mundo têm por base o reconhecimento da
dignidade (...); o quinto considerando do Preâmbulo afirma que: os povos das Nações Unidas
reafirmaram, na Carta, sua fé na (...) dignidade e no valor da pessoa (...). O Artigo primeiro da Declaração
Universal declara que: todos os seres humanos nascem livres e igual em dignidade(...).
100
Constituição Federal de 1988, Art. 1 - “A República Federativa de Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV
- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político”.
101
Veja Constituição Federal de 1988, Art. 3º.

256
Direito Agrário Ambiental

educação no meio rural, o direito de propriedade como direito fundamental dever está
condicionado e limitado tanto pela função social que a propriedade deve cumprir como
pelo respeito a estes princípios fundamentais (CRETELLA JÚNIOR, 1997)102. Estes
limites são resultado de uma interpretação unitária e sistemática da Constituição diante
da comparação com os direitos fundamentais de maior valor protegidos interna e
internacionalmente.
O Art. 3º, inciso III da Constituição “Erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdade sociais”, obtém a mesma categoria de princípios,a sua
consagração constitucional, obviamente, altera a sua eficácia jurídica tradicional,
anteriormente delegada pelo “Estatuto da Terra” Lei nº...de 1964, norma infra
constitucional, para situá-lo neste lugar privilegiado que lhes confere o formar parte da
Norma Suprema do Estado Democrático (AGUIAR DE LUQUE, 2001) (ÁLVAREZ
CONDE, 1996) (ARAGON REYES, 2001, p. 39-43) (BALAGUER CALLEJÓ, 2004).
Nesta mesma linha de pensamento, entende-se que os incisos XXII e XXIII, do
artigo 5º da Constituição de 1988, não podem ser desconectados (BARRETO, 1948, p.
285) (FERREIRA, 1949). Portanto, se estes dois incisos não podem ser desassociados,
a dimensão social/econômica do direito de propriedade também não pode ser.
A função social da propriedade entre os direitos e garantias fundamentais
também pode ser considerada como projeção da realização efetiva de igualdade material
no marco da utilização dos bens (propriedades), pois contribui para uma distribuição de
renda e riqueza (RAWLS, 1971) mais equitativa com o objetivo de superar a grande
desigualdadeno meio rural brasileiro (ALFONSIN, 1999)103.
Porém, não basta o reconhecimento deste conjunto de princípios na
Constituição por umórgão político do Estado. Estes princípios e direitos correspondem
aosPoderes Executivo, Legislativo e Judiciário; aos órgãos públicos e privados; e a
sociedade como um todo torná-los efetivos (LOBATO, 1997).
Sabemos que há uma relação estreita entre a política e o direito. Se antes o
direito estava sujeito à política como instrumento, agora a política também se converte

102
Encontramos termos muito semelhantes na obra de LEAL, Gesta Rogério, A função social da
propriedade e da Cidade no Brasil, Santa Cruz do Sul, Edunisc, 1998.
103
O autor lembra que “o chamado crescimento econômico é usado como fórmula para excluir qualquer
outra prioridade que intencione a satisfação das necessidades vitais de alimentação e moradia.”

257
Direito Agrário Ambiental

em instrumento de atuação do direito, sujeita aos vínculos e limites impostos pelos


direitos fundamentais104.
Assim, tanto o vínculo que corresponde, em geral, ao direito de propriedade
não pode ser violado, como também o limite resultante da função social da propriedade
deve ser respeitado, para que aquele, não viole os direitos fundamentais de terceiros. Os
direitos fundamentais, garantidos a todos, não podem ser violados e ninguém pode
impedir que sejam satisfeitos.
A dignidade humana, como vimos, é inseparável do ser humano. Tal como
uma bússola que orienta todo ordenamento jurídico, a dignidade humana, em todos os
seus aspectos (físicos e morais), está acima dos poderes do Estado (GUTIÉRREZ
GUTIÉRREZ, 2005). Acontece que a dignidade humana só pode ser uma realidade
mediante a satisfação das necessidades básicas da pessoa (STRECK; MORAES, 2000).
Este princípio, tido como fundamental pela Constituição brasileira, constitui a
chave da ordem de princípios do sistema econômico/financeiro vinculado ao direito de
propriedade, tal princípio está destinado a estabelecer e articular todo o ordenamento
jurídico.
Com isso, vemos a importância do reconhecimento da função social da
propriedade no capítulo dos direitos e garantias fundamentais na Constituição de 1988.
Dessa forma, na perspectiva de um direito constitucional (HESSE, 1995), a propriedade
rural possui uma função social, baseado no respeito à dignidade da pessoa humana e a
seus direitos fundamentais (MORAES, 1999). Este reconhecimento é a base que
sustenta uma sociedade justa, solidária, menos desigual e dentro de um ambiente mais
equilibrado, o qual os poderes públicos devem construir com base na democracia, tal
como a Constituição compele105.
Além disso, na realidade, os princípios constitucionais, além de servir para
interpretar normas, também podem alcançar uma “projeção normativa” tanto por meio
do legislador como do juiz (ARAGÓN REYES, 1989). Assim, o legislador pode
transformar um princípio em lei. O juiz também pode, em caso de defeito de norma
(fonte subsidiária), extrair a regra do princípio jurídico para o caso concreto (CANOSA

104
FERRAJOLI afirmou que no paradigma do Estado constitucional de direito, a relação entre direito e
política se inverte e já não se concebe mais o direito como instrumento da política, antes, a política se
transforma em instrumento para a atuação do direito (FERRAJOLI, 1996) (FERRAJOLI, 2000, p.170).
105
Para FERRAJOLI, o futuro do constitucionalismo jurídico e da demociracia é articulado em três
direções : em um constitucionalismo global, em adição ao estatal ; em um constitucionalismo social, em
adição ao liberal ; e em um constitucionalismo de direito privado, em adição ao estatal (FERRAJOLI,
2001, p. 374-375).

258
Direito Agrário Ambiental

USERA, 1998). Isto faz com que PÉREZ LUÑO (1984) chegue a afirmar que: Por sua
parte, os princípios representam um grau maior de concretização e de especificação do
que os valores referentes às situações às quais podem ser aplicadas e às consequências
jurídicas da sua aplicação.
Por sua vez, Dworkin apresenta os princípios como normas ou cláusulas
genéricas que enunciam um modo de ser do direito. Para o autor, “os princípios
oferecem argumentos para decidir”106. Mas o autor enfatiza que: Os princípios são
dinâmicos, mudam com rapidez e não há uma hierarquia preestabelecida entre eles, o
que torna mais difícil encontrar a “resposta certa” para os casos difíceis.
À medida que os princípios deixam de se tornar um processo meramente
contemplativo, transformando-se num processo construtivo (CITTADINO, 2000),
exige-se um raciocínio do juiz, que, depois de comparar os princípios, deve decidir pelo
que tem mais peso.
Para Cittadino (CALSAMIGLIA, 2002) a teoria de Dworkin não propõe, desta
forma, um procedimento mecânico para demonstrar quais são os direitos das partes nos
casos difíceis, tal como acreditava o juiz Hércules. Ou seja: o juiz que aceita que as leis
têm o poder geral de criar e eliminar direitos, e que os juízes têm o dever geral de
ajustarem-se às decisões anteriores do seu tribunal ou aos tribunais superiores cujas
bases lógicas compreendam o caso que têm em mãos107.
Independentemente do que digam, não há dúvidas de que os “princípios
fundamentais” declarados na Constituição de 1988 devem ser considerados como
referência diante de qualquer interpretação do direito de propriedade, principalmente da
propriedade rural, e é evidente que a realidade agrária brasileira atual contradiz tais
“princípios fundamentais”. Os dados são eloquentes. No final do século XX, segundo o
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), hava 20.291.412 (vinte
milhões duzentos e noventa e um mil quatrocentos e doze) hectares de terra que
pertencem a 20 latifundiários, os 20 maiores donos de propriedades rurais, sendo que
existem sete com mais de um milhão de hectares e nove com mais de 500 mil hectares.
Enquanto estes 20 proprietários retiverem o controle de mais de 20 milhões de hectares,
uma investigação, paradoxalmente realizada pelo Instituto de Pesquisas Económicas e
Aplicadas - IPEA, do Ministério de Planejamento, em 1993, divulgou os dados que se

106
Encontramos uma revisão das interpretações constitucionais em DWORKIN (1984).
107
DWORKIN imagina que “Hércules” tem habilidade, paciência e perspectiva sobre-humanas, e supõe
que ele aceita as principais normas constitutivas e reguladoras não controversas do direito na sua
jurisdição.

259
Direito Agrário Ambiental

tornaram conhecidos como O Mapa da Fome, que revela a existência de 32 milhões de


pessoas que passam fome todos os dias no Brasil (STRAHM, 1991)108. Entre estes
dados, se encontram aproximadamente 16 milhões de pessoas que vivem na área
rural109.
Para combater esta realidade, a Constituição de 1988 relaciona o princípio da
dignidade da pessoa humana com o imperativo da erradicação da pobreza de da
marginalização e com a redução das desigualdades sociais, declarando-os princípios
fundamentais da República Federativa.
Por outro lado, § 2º do Art. 5º110 permite a abertura da Constituição a outros
direitos fundamentais, desde que sejam derivados dos princípios adotados pelo Texto
Constitucional111. Estes imperativos configuram um verdadeiro conjunto geral de tutela
e promoção da igualdade material considerada como valor superior pelo ordenamento
jurídico (SARLET, 1999, p. 177).
Como dito anteriormente, os princípios fundamentais são o ponto de partida, a
bússola, para a interpretação ou para a aplicação de toda a legislação brasileira. A
Constituição de 1988 adotou, no seu preâmbulo e no Art. 1º, a expressão de Estado
Democrático. Não é possível vincular a essa expressão a ideia de inviolabilidade da
propriedade como direito absoluto já que, na verdade, a inviolabilidade da propriedade
no texto constitucional é fruto da negociação entre as concepções
liberais/individualistas e socializantes do Estado e dos interesses representados na
Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 (LOBATO, 1998).
Entretanto, o mesmo legislador constituinte limitou o direito de propriedade
por meio da função social estabelecida no artigo no Art. 5º, inciso XXIII. Por esse
motivo, em muitas ocasiões, encontramos preceitos constitucionais que são,
aparentemente, contraditórios entre si, o que resulta em sérias dúvidas sobre a maneira
da sua aplicação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

108
O autor analisa a fome no mundo com dados retirados da FAO e do Banco Mundial, e argumenta que:
“A fome não é simplesmente uma fatalidade. A fome e a desnutrição não vêm, portanto, de uma escassez
de alimento, mas que são consequências de uma distribuição desigual” (STRAHM.
109
Veja os dados do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) -Brasil, 1997.
110
Art. 5º § 2º - “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a república federativa do
Brasil seja parte”.
111
Constituição Federal de 1988, Art. 5, Parágrafo 2 .

260
Direito Agrário Ambiental

A Constituição de 1988 mostra claramente uma contradição política, quando


garante, por um lado, o direito de propriedade entre os direitos fundamentais no Art. 5º,
inciso XXII e, por outro lado, declara que a propriedade deve atender à sua função
social no mesmo Artigo, inciso XXIII.
A positivação dos direitos fundamentais como limites e vínculos para o
legislador comum representa uma verdadeira revolução na natureza do direito112.
Ferrajoli diz que a democracia constitucional113,que surgiu no segundo pós-guerra, e
que está configurada de acordo com os ordenamentos estatais democráticos, produziu
uma mudança no que se refere ao paradigma positivista clássico. Depois da catástrofe
da segunda guerra, compreendeu-se, por exemplo, que o princípio da mera legalidade
não era suficiente no que se refere aos abusos da legislação (FERRAJOLI, 2001, p. 52-
54).

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CITTADINO, G. O. Pluralismo, direito e justiça distributiva. Elementos da filosofia
constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

112
Para FERRAJOLI, a rigidez da constituição ou a garantia de tal rigidez é a verdadeira invenção do
século XX (FERRAJOLI, 2000, p. 161-162).
113
Para FERRAJOLI, o paradigma da democracia constitucional é filho da filosofia contratualista, tanto
no sentido de que as constituições são pactos socais de convivência civil impostos historicamente por
movimentos revolucionários aos poderes públicos como fontes da sua legitimidade, como no sentido de
que a ideia do contrato social é uma metáfora da democracia: da democracia política, dado que ela faz
referência ao consenso dos contratantes e, por conseguinte, vale para fundar, pela primeira vez na história,
uma legitimação do poder político desde baixo; ela é também uma metáfora da democracia substancial,
visto que este contrato não é um acordo vazio, mas que tem cláusulas e, assim, causa precisamente a
tutela dos direitos fundamentais, cuja violação por parte do soberano legitima a quebra do pacto e do
exercício do direito de resistência (FERRAJOLI, 2001, p. 381).

261
Direito Agrário Ambiental

COLINA GAREA, Rafael. La función social de la propiedad privada en la


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263
Direito Agrário Ambiental

CÁPITULO XIV - OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E AGRÁRIOS E SUA


IMPORTÂNCIA NA PROTEÇÃO AMBIENTAL

Iasmin Barbosa Rodrigues de Oliveira114


Isabella Negreiros de Medeiros115
Isis Lima Trindade116
Karla Leal Barbosa117
Rayssa Vieira Henriques118
Vanessa de Araújo Porto119

INTRODUÇÃO
Os princípios são mandamentos nucleares do sistema jurídico. São “alicerce,
pedra de toque, disposição fundamental, que espargem sua força por todos os
escaninhos do ordenamento” (BULLOS, 2010, p. 493). Não têm enumeração taxativa, e
podem estar de forma expressa ou implícita no ordenamento jurídico.
Estão eles, portanto, presentes em todos os ramos do Direito, sendo parte
essencial da Ciência Jurídica brasileira. De tal modo que no Direito Agrário, não
poderia ser diferente. Trata-se do “conjunto de normas jurídicas que visam disciplinar as
relações do homem com a terra, tendo em vista o progresso social e econômico do
rurícola e o enriquecimento da comunidade”, possuindo suas raízes também na
Constituição Federal, de modo que detém princípios que lhe são próprios, bem como os
que da Constituição decorrem. (BULLOS, 2010, p. 493).
O presente estudo versará acerca de alguns princípios constitucionais e
agrários, relatando onde podem ser encontrados, e como são fundamentais para que os
objetivos do Direito Agrário – que compreende a regulamentação das relações jurídicas
do ser humano com o campo – sejam alcançados, dentre estes a proteção do meio
ambiente. (FREITAS, 2012).
A matriz principiológica em que se deterá este ensaio diz respeito,
primordialmente, às divisões adotadas por Marques (2007) e por Oliveira (2004, p.
165). É fruto das pesquisas dos princípios expressos na legislação agrária e dos
norteadores e implícitos na Constituição Federal de 1988. São, portanto, objeto de

114
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
115
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
116
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
117
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
118
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
119
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

264
Direito Agrário Ambiental

discussão o princípio da função social da propriedade, o princípio da primazia da


atividade agrária frente ao direito de propriedade, o da dicotomia do Direito Agrário, o
da supremacia do interesse público, o do meio ambiente sustentável, o da proteção da
propriedade indígena, que têm cunho e embasamento mais Constitucionais e que se
aplicam também à ciência jurídica agrária.
Ademais, relatam-se, também, os princípios mais voltados ao próprio exercício
das atividades agrárias, ligadas mais intimamente ao direito de propriedade. São eles: o
princípio da reformulação da estrutura fundiária, o da vedação da desapropriação das
pequenas e médias propriedades rurais, o princípio da impenhorabilidade rural, o da
proteção do trabalhador rural e o do dimensionamento eficaz das áreas exploráveis.
Por fim, com o fulcro de ratificar a integração existente entre os fundamentos
constitucionais e o Direito Agrário, far-se-á uma breve discussão acerca do princípio da
dignidade da pessoa humana e sua relação com a proteção ambiental e das afinidades
com o âmbito agrário, utilizando-se, para tal, o aporte doutrinário de Sarlet (2009).

1. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA PRIMAZIA


DA ATIVIDADE AGRÁRIA FRENTE AO DIREITO DE PROPRIEDADE
Raymundo Laranjeiras tem entendimento sedimentado e repetido por todos que
desejam tratar dos princípios que envolvem o Direito Agrário. Defende o autor que é a
partir do Princípio da Função Social da Propriedade “que se abram todas as implicações
socioeconômicas que cimentam o ordenamento jurídico agrário”. (LARANJEIRA,
1999, p. 116).
É claramente um princípio constitucional que tem espaço necessário no Direito
Agrário, podendo ser considerado o vértice dessa ciência jurídica. Nesse sentido:

O princípio constitucional da função social da propriedade rural é, sem


oscilação alguma, o vértice do Direito agrário, pois, com a sua expressa
inserção reiterada no texto da Constituição Federal, dá-se a flexibilização do
direito de propriedade privada, em que o seu reconhecimento em favor do
proprietário passa a estar subordinado à satisfação do interesse coletivo na
sua boa e útil exploração. (OLIVEIRA, 2004, p.165).

A função social da propriedade é tão ampla que graças a ela os direitos de


propriedade deixam de ser absolutos, passando a garantir a proteção do trabalhador
rural, a qualidade de vida no campo e o cuidado com o meio ambiente quando do uso da
terra e dos recursos naturais.

265
Direito Agrário Ambiental

Constitucionalmente, veio prevista no art. 170, III, e no art. 186120, que


expressamente prevê requisitos para que a função da propriedade rural seja atendida,
sendo eles: o aproveitamento racional e adequado; a utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente; a observância das disposições
que regulam as relações de trabalho; e a exploração que favoreça o bem-estar dos
proprietários e trabalhadores.
O Estatuto da Terra, por sua vez, também consubstancia tal princípio no art. 2º,
condicionando o direito de acesso à propriedade da terra à sua função social, e
consubstanciando-o, no §2º, de forma mais específica, quando a propriedade da terra
estará desempenhando integralmente a sua função social. Prevê o diploma legal que isso
ocorre quando, simultaneamente, a propriedade: a) favorece o bem-estar dos
proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como a de suas famílias; b)
mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos
naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho
entre os que a possuem e a cultivam.
Esse princípio, no Direito Agrário, é o que, por primeiro, limita o modo como o
homem lida com a terra e como tende a realizar a exploração desta. Ele faz “gravitar por
sua órbita outros princípios elementares do mundo jus-agrarista” (FREITAS, 2012).
Citando Silva, Freitas (2012) ainda traz que o princípio da Função Social, junto aos
outros princípios gerais do Direito Agrário, confere a esse ramo do direito “dignidade
científica, isenta de obstáculos epistemológicos, pelo reconhecimento do objeto e dos
métodos próprios do Direito Agrário”. (SILVA apud FREITAS, 1996, p. 37).
Com relação à sua importância dentro do contexto do meio ambiente e da
proteção ambiental, é a função social da propriedade que permite que se desenvolva
“uma atividade agrária sustentável e, ao mesmo tempo, necessária para a produção de
alimentos, respeito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao bem-estar entre
os trabalhadores da terra”. (FREITAS, 2012).
A propriedade rural que atenda aos requisitos básicos para sua função social já
é uma garantia de que se tenha uma política agrícola sustentável preocupada com o

120
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo
critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

266
Direito Agrário Ambiental

contexto social, ecológico e econômico do meio ambiente, proporcionando, assim, que


se tenham recursos naturais suficientes e de boa qualidade para as gerações futuras.
Decorrente do princípio da função social da propriedade, tem-se o princípio da
primazia da atividade agrária frente ao direito de propriedade, que também pode ser
entendido como a sobreposição da utilização da terra à titulação dominical. É
manifestado, principalmente, através da previsão de desapropriação para fins de reforma
agrária, quando o imóvel não estiver cumprindo com a sua função social, prevista pelos
arts. 184 e 185 da Constituição Federal.

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de
reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função
social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com
cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos,
a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
[...]
Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:
I - a pequena e média propriedade rural, assim definidas em lei, desde que
seu proprietário não possua outra;
II - a propriedade produtiva.

Logo, há prevalência, por determinação da própria Constituição, da atividade


agrária, ou seja, da produtividade e do uso da terra perante o direito de propriedade. Em
não sendo o imóvel produtivo e garantida a sua função social em todos os requisitos,
autorizada está a desapropriação rural. Nesse mesmo sentido é a previsão constitucional
do usucapião pro labore, consubstanciado no art. 191, também conhecido como
usucapião constitucional rural.
O usucapião pro labore constitui a forma de aquisição de terras por aquele que,
“não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos
ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a 50 hectares,
torne-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia”
(BULLOS, 2010, p. 1504). Desse modo, em tendo a propriedade se tornado produtiva e
útil socialmente por meio do trabalho do beneficiário e de seus familiares, garantida será
a titularidade da propriedade em detrimento do real proprietário que deixou a terra
improdutiva.

2. PRINCÍPIO DA DICOTOMIA DO DIREITO AGRÁRIO

267
Direito Agrário Ambiental

Não obstante o Brasil ser um dos maiores países em dimensão territorial do


mundo121, ainda possui milhares de agricultores sem terra alguma e/ou com menos de
20 hectares, pelo que se considera pouca terra para fins agrários. Essa contradição se
justifica por dois grandes fatores presentes no país: a concentração fundiária e a
desigualdade social.
Por força da grande concentração fundiária que caracteriza a economia agrária
brasileira, a utilização da terra se faz, predominantemente, e de maneira acentuada, em
benefício de uma pequena minoria (latifundiários), em detrimento de uma maciça
maioria, formada, em parte, pelos pequenos proprietários (minifúndios), que se veem,
muitas vezes, com dificuldades financeiras para produzir e viver de sua terra. Outra
parte é formada por aqueles que não possuem nenhuma terra para manutenção de sua
subsistência, segundo Júnior (2000, p. 22):

Há ainda outra parcela da população rural, que constitui a grande maioria que
habita o campo e que não dispõe de terra, nem de recursos e possibilidades
para ocupar e explorar terras alheias a título de arrendatário autônomo,
submetendo-se a procurar emprego a serviço dos grandes latifundiários,
razões estas que muitas vezes determinam os baixos padrões do trabalhador
rural brasileiro.

Assim, a distribuição de terras, no Brasil, anda de mãos dadas com a


desigualdade social que também assola o país. É possível afirmar que há muitas terras
nas mãos de poucos e poucas terras nas mãos de muitos. Por tais motivos, entende-se
necessária a reforma agrária, de modo a viabilizar a inclusão de milhares de famílias
excluídas do mercado de trabalho e diminuir a desigualdade social historicamente
presente no Brasil.
Ocorre que, uma vez conquistada a terra através da reforma agrária, subsiste a
falta de recursos técnicos e financeiros que permitam ao proprietário rural trabalhar,
produzir, ganhar e sobreviver com sua família. Nesse contexto, o Direito Agrário tem
compromisso com a transformação, através da reformulação da estrutura fundiária.
Com efeito, o conceito de Reforma Agrária envolve, além da distribuição de
terras, a adoção de outras medidas de amparo ao beneficiário da reforma, que são
chamadas de Política Agrícola.

121
RESOLUÇÃO Nº 1, DE 15 DE JANEIRO DE 2013. Diário Oficial da União, de 23 de janeiro de
2013. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/areaterritorial/pdf/DOU_23_01_2013.pdf>. Acesso em: 31
jul. 2014.

268
Direito Agrário Ambiental

A Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra) estabelece as definições de Reforma


Agrária e Política Agrícola em seu art. 1º, in verbis:

Art. 1° Esta Lei regula os direitos e as obrigações concernentes aos bens


imóveis rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da
Política Agrícola.
§ 1° Considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a
promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de
sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento
de produtividade.
§ 2º Entende-se por Política Agrícola o conjunto de providências de amparo à
propriedade da terra, que se destinem a orientar, no interesse da economia
rural, as atividades agropecuárias, seja no sentido de garantir-lhes o pleno
emprego, seja no de harmonizá-las com o processo de industrialização do
país.

O princípio da dicotomia do Direito Agrário compreende a política de reforma


agrária e a política de desenvolvimento agrícola. Ou seja, não basta apenas o
beneficiário da Reforma Agrária receber a terra que lhe caiba, mas, também e de
imediato, os meios de cultivá-la utilmente, para que possa, efetivamente, retirar o seu
sustento e o de sua família.
Conforme se depreende da leitura do próprio Estatuto da Terra, a intenção de
prestar assistência social, técnica e fomentista e de estimular a produção agropecuária
consiste em motivar não somente o atendimento ao consumo nacional, mas também a
obtenção de excedentes exportáveis. É o que prevê o art. 73, que discrimina, em rol
meramente exemplificativo, alguns meios para atingir esses resultados, dentre eles a
produção e a distribuição de sementes e mudas; a criação, a venda e a distribuição de
reprodutores e o uso da inseminação artificial; a mecanização agrícola; a
industrialização e o beneficiamento dos produtos; e a garantia de preços mínimos à
produção agrícola.

3. PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO


O princípio da supremacia do interesse público é princípio geral do direito
inerente a qualquer sociedade (e também condição de sua existência) e, como tal,
revela-se como instrumento de garantia dos direitos dos indivíduos e objetiva a
consecução da justiça social e do bem comum. Sob a perspectiva do direito
administrativo, Mello (2005, p. 59) assevera o seguinte:

Ao se pensar em interesse público, pensa-se, habitualmente, em uma


categoria contraposta à de interesse privado, individual, isto é, ao interesse
pessoal de cada um. Acerta-se em dizer que se constitui no interesse do todo,
ou seja, do próprio conjunto social, assim como se acerta também em

269
Direito Agrário Ambiental

sublinhar que não se confunde com a somatória dos interesses individuais,


peculiares de cada qual. Dizer isto, entretanto, é dizer muito pouco para
compreender-se verdadeiramente o que é interesse público.

Por tal princípio entende-se que, sempre que houver conflito entre um
particular e um interesse público coletivo, deve prevalecer o interesse público.
Sob a ótica do direito agrário, o princípio da supremacia do interesse público
sobre o privado está presente sempre que há limitação do direito de propriedade. O
maior exemplo da aplicação desse princípio é a desapropriação, tendo em vista a
suplantação do interesse privado do proprietário em prol do interesse de toda a
coletividade, consubstanciado, primordialmente, na redução da desigualdade social. Em
razão da supremacia do interesse público sobre o privado, pode a Administração
Pública, com base em lei, promover a desapropriação de bens de particulares.
Consoante o art. 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal, a desapropriação é
procedimento de direito público que gera a transferência de determinada propriedade
para o Estado, mediante prévia e justa indenização em dinheiro.
Existem três modalidades de desapropriação, segundo previsão constitucional,
baseadas na necessidade pública, na utilidade pública ou no interesse social, cada qual
correspondendo a algum aspecto do interesse público.
Como exemplo, toma-se a modalidade de desapropriação por utilidade pública,
regulada pelo Decreto-Lei nº 3.365/41, em cuja fase administrativa é feita a ponderação
entre o direito individual à propriedade e o interesse público, na medida em que é
analisada a presença de todos os pressupostos necessários à prevalência do interesse
público. Somente após sopesar o princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular e o princípio da proporcionalidade, legitimada está a atuação estatal com a
expedição do competente decreto expropriatório.

4. PRINCÍPIO DA REFORMULAÇÃO DA ESTRUTURA FUNDIÁRIA


Conforme visto anteriormente, o parágrafo 1º do art. 1º da Lei nº 4.504/64
ressalta a importância da adoção de medidas visando a promover “melhor distribuição
de terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso”. O art. 2º do mesmo
diploma legal assegura a todos “a oportunidade de acesso à propriedade da terra”.
É possível concluir, a partir da análise conjunta de ambos os dispositivos, que o
Estatuto da Terra objetiva reformular a estrutura fundiária no país, como forma de

270
Direito Agrário Ambiental

atender ao princípio da justiça social, bem como de impor à propriedade rural o


cumprimento de sua função social.
Prevê, ainda, o parágrafo 1º do art. 1º da Lei nº 4.504/64 que a reforma agrária
deve “atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”. Disso
decorre a importância da reformulação da estrutura fundiária para a identificação do
latifúndio improdutivo, garantindo pleno acesso a todos os que querem produzir de
maneira adequada e racional no solo.
Observa-se, por oportuno, que esse é o objetivo do próprio Estatuto da Terra,
que deverá buscar, segundo o art. 103, a perfeita ordenação do sistema agrário do país,
de acordo com os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com
a valorização do trabalho humano.
Com base nessas premissas, a Constituição Federal permite a desapropriação
por interesse social, para fins de reforma agrária, desde que o imóvel rural não esteja
cumprindo sua função social, conforme dispõe o seu art. 184.
A reformulação da estrutura fundiária é uma necessidade constante e, se
concretizada em toda a sua amplitude, poderia, cumprindo seus objetivos legais,
promover profunda transformação econômica e social em considerável parcela da
população brasileira.

5. PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DA DESAPROPRIAÇÃO DA PEQUENA E


MÉDIA PROPRIEDADE RURAL
O princípio da vedação da desapropriação da pequena e média propriedade
rural encontra guarida na Constituição Federal de 1988, mais precisamente em seu
artigo 185, que determina que tais propriedades não serão objeto de desapropriação para
fins de reforma agrária, caso seja o único imóvel rural do proprietário.
Tal artigo preceitua ainda que a pequena e a média propriedade rural serão
definidas em lei infraconstitucional. Para tanto, criou-se a Lei 8629/93, que, em seu art.
4º, definiu-as:

Art. 4º Para os efeitos desta lei, conceituam-se:


I- Imóvel Rural - o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua
localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola,
pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial;
II - Pequena Propriedade - o imóvel rural:
a) de área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais;
III - Média Propriedade - o imóvel rural:
a) de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais;

271
Direito Agrário Ambiental

Parágrafo único. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma


agrária a pequena e a média propriedade rural, desde que o seu proprietário
não possua outra propriedade rural.

Assim, proibiu-se a realização da desapropriação de propriedades rurais que


possuam até quinze módulos fiscais. Esse delineamento provoca o questionamento do
que seria esse módulo fiscal que tem suas diretrizes traçadas no art. 4º do Decreto nº
84.685, de 06 de maio de 1980, que regulamenta a Lei nº 6.746/79, dispondo esta acerca
do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR).
Em linhas gerais, pode-se dizer que o citado artigo afirma que módulo fiscal é
unidade de medida expressa em hectares e será definido pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em cada município, considerando o tipo de
exploração predominante no Município, a renda obtida nesse tipo de exploração, outras
explorações existentes no Município que, embora não predominantes, sejam expressivas
em função da renda ou da área utilizada e do conceito de propriedade familiar.
Dessa forma, o legislador constituinte concedeu essa proteção às pequenas e
médias propriedades rurais, qual seja a de impossibilitar a desapropriação delas para
fins de reforma agrária, desde que seus proprietários não possuam outro imóvel rural,
sendo a pequena e média propriedade aquelas de até quatro e quinze módulos fiscais,
respectivamente, e o módulo fiscal será definido pelo INCRA de acordo com as
especificidades de cada município.

6. PRINCÍPIO DA IMPENHORABILIDADE DA PEQUENA PROPRIEDADE


RURAL
O princípio da impenhorabilidade da pequena propriedade rural está previsto
expressamente na Carta Magna de 1988 e no Código de Processo Civil. Esse imóvel
rural, que deverá ser fixado em lei, não poderá ser penhorado para adimplir dívidas
oriundas de sua atividade produtiva, desde que seja trabalhado pela família. É o que
informam o art. 5º, XXVI, da CF/88, e o art.649, VIII, do CPC, in verbis:

Art. 5º, XXVI, CF - a pequena propriedade rural, assim definida em lei,


desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para
pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei
sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento.
Art. 649, CPC - São absolutamente impenhoráveis:
[...]
VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que
trabalhada pela família.

272
Direito Agrário Ambiental

Depreende-se dos artigos citados acima que são necessários dois requisitos
para que a pequena propriedade rural seja tida como impenhorável: ser trabalhada pela
família e o débito responsável pela execução da propriedade ter sido originado da
atividade produtiva da mesma.
Ressalte-se que, em ambos os itens, deixou-se para a lei infraconstitucional a
tarefa de definir o que viria a ser essa pequena propriedade rural. Até o presente
momento, não se criou essa lei, provocando um vácuo legislativo, e dificultando a
aplicação do art. 5º, XXVI da CF/88, não obstante este possuir aplicação imediata,
conforme aduz o art.5º, §1º, do mesmo diploma.
Destarte, restou ao julgador solucionar os casos concretos utilizando-se dos
conceitos já existentes de pequena propriedade rural, como o constante na Lei 8.629/9,3
ou, ainda, utilizar-se da analogia, aplicando-se a definição de propriedade familiar
insculpida na Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra).
O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça vêm se
posicionando no sentido de aplicar o art. 4º, II, do Estatuto da Terra, conforme
demonstram as jurisprudências colacionadas abaixo:

EMENTA: RECURSO ESPECIAL - IMPENHORABILIDADE DA


PEQUENA PROPRIEDADE RURAL - DIREITO FUNDAMENTAL QUE,
A DESPEITO DA AUSÊNCIA DE LEI REGULAMENTADORA, TEM
APLICAÇÃO IMEDIATA - ESTATUTO DA TERRA - CONCEITOS DE
MÓDULO RURAL E FISCAL - ADOÇÃO - EXTENSÃO DE TERRA
RURAL MÍNIMA, SUFICIENTE E NECESSÁRIA, DE ACORDO COM
AS CONDIÇÕES (ECONÔMICAS) ESPECÍFICAS DA REGIÃO, QUE
PROPICIE AO PROPRIETÁRIO E À SUA FAMÍLIA O
DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADE AGROPECUÁRIA PARA SEU
SUSTENTO - CONCEITO QUE BEM SE AMOLDA À FINALIDADE
PERSEGUIDA PELO INSTITUTO DA IMPENHORABILIDADE DE
PEQUENA PROPRIEDADE RURAL - CONCEITO CONSTANTE DA LEI
N. 8.629/93 - INAPLICABILIDADE À ESPÉCIE - RECURSO ESPECIAL
IMPROVIDO. (STJ, REsp 1007070 RS 2006/0081166-7, Rel. Min. Massami
Uyeda, DJe 01/10/2010)122.

Ementa: Impenhorabilidade da pequena propriedade rural de exploração


familiar (Const., art. 5º, XXVI): aplicação imediata. A norma que torna
impenhorável determinado bem desconstitui a penhora anteriormente
efetivada, sem ofensa de ato jurídico perfeito ou de direito adquirido do
credor: precedentes sobre hipótese similar. A falta de lei anterior ou posterior
necessária à aplicabilidade de regra constitucional – sobretudo quando
criadora de direito ou garantia fundamental - pode ser suprida por analogia:
donde, a validade da utilização para viabilizar a aplicação do art.5º, XXVI,

122
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1007070 RS 2006/0081166-7, Rel. Min.
Massami Uyeda, DJe 01/10/2010. Disponível em
<http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/16714142/recurso-especial-resp-1007070-rs-2006-0081166-7>.
Acesso em: 02 jun. 2014.

273
Direito Agrário Ambiental

CF, do conceito de “propriedade familiar” do Estatuto da Terra. (STF, RE


136.753, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 25/04/1997)123.

Caso fosse aplicado o art.4º, II, “a” da Lei 8.629/93, que explicita propriedade
rural como aquela que possui de um a quatro módulos fiscais, aumentaria sobremaneira
essa “pequena propriedade”, permitindo que propriedades com hectares consideráveis
utilizassem dessa impenhorabilidade, desvirtuando essa proteção constitucional.
Não se pode olvidar que a proteção discutida visa resguardar principalmente
aquele proprietário que não possui tantas posses e que se endividou para manter sua
propriedade produtiva e não aquele proprietário que foi negligente com seu imóvel
rural, evitando assim o aumento de pessoas sem terra e a evasão para as cidades.
Assim, a pequena propriedade rural é impenhorável pelas dívidas contraídas
por conta de suas atividades produtivas, desde que trabalhada pela família, carecendo de
lei que defina o que é essa pequena propriedade para fins de impenhorabilidade.

7. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS E DA


BIODIVERSIDADE
A Carta Magna de 1988 erigiu ao patamar constitucional a preocupação com a
higidez do meio ambiente, considerada como direito público subjetivo de natureza
difusa, posto que impassível de divisão entre seus titulares, e pertencente a toda a
coletividade indeterminada. Nesse sentido, o art. 225 trouxe expressamente a previsão
de que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é bem de uso comum do povo,
consignando o dever, e não a mera faculdade, da preservação do meio ambiente,
entendido enquanto fauna, flora, ecossistemas e diversidade do patrimônio genético.
Nesse diapasão, a utilização racional e adequada dos recursos naturais
disponíveis e a preservação da biodiversidade são requisitos que devem ser cumpridos
para que a propriedade agrícola realize a sua função social, conforme determina o
dispositivo constitucional do art. 186, incisos I e II combinados. Nesse mesmo diapasão,
o Estatuto da Terra condicionou a propriedade à racional e adequada utilização dos
recursos naturais.
Sendo recursos naturais os bens ofertados pela natureza, dos quais o homem se
utiliza para satisfazer suas necessidades econômicas, culturais e sociais, a sua utilização

123
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 136.753, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJ de 25/04/1997. Disponível em <
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=207991>. Acesso em: 02 jun. de
2014.

274
Direito Agrário Ambiental

racional e a preocupação com a preservação da biodiversidade traduzem o


reconhecimento do seu caráter intergeracional. Não há como conviver com a ideia de
que os recursos do planeta são inesgotáveis. Além de reconhecer a esgotabilidade dos
recursos da natureza, abarcou-se a noção de que tais escassos recursos não pertencem
somente às presentes gerações, mas também às futuras, de modo que a utilização
racional e adequada dos bens ofertados pela natureza é uma condição para a
manutenção e para a sadia qualidade da vida humana no planeta.
Na prática, a aplicação do princípio em tela deve se dar por meio da
implementação de tecnologias aptas a assegurar que os bens rurais, notadamente a água,
o solo, a fauna e a flora silvestres, sejam explorados de maneira a evitar o seu
esgotamento e racionamento e a garantir a sua renovação, por meio de uma política
agrária de prevenção e evitação dos riscos.
Por outro lado, deve-se buscar a recuperação dos recursos naturais utilizados de
maneira irracional, seja do ponto de vista da degradação do solo, do desmatamento ou
da extinção de animais. Daí a necessidade de elaboração de uma política agrária de
compensação dos danos ambientais e de recomposição ambiental.
Além do aprimoramento das técnicas agrícolas, a concretização da preservação
dos recursos naturais e da biodiversidade deve se dar com a busca de uma mudança
cultural, seja através de políticas de conscientização da importância da preservação do
meio ambiente ou pela imposição de normas objetivas de caráter orientador e
sancionatório.

8. PRINCÍPIO DO MEIO AMBIENTE SUSTENTÁVEL


O princípio do meio ambiente sustentável, embora se diferenciem, não se
dissocia do princípio da preservação dos recursos naturais e da biodiversidade. A
concepção de que os recursos naturais devem ser racional e adequadamente utilizados e
de que a biodiversidade deve ser preservada inspirou a nova concepção de
desenvolvimento e de produção agrícola: o desenvolvimento sustentável.
Por muito tempo, o meio ambiente foi enxergado como um conjunto de
recursos à disposição do homem, que poderia dele utilizar-se para buscar o crescimento
econômico, filosofia que desencadeou o desenfreado aumento do consumo e das
atividades industriais sem a elaboração de técnicas que evitassem os inevitáveis danos
ao meio ambiente.

275
Direito Agrário Ambiental

A partir da nova ordem constitucional, o meio ambiente passou a ser predicado


de “ecologicamente equilibrado” e, nessa mesma senda, ganhou status de direito
humano fundamental. Por consequência, limites foram estabelecidos para a exploração
dos recursos ambientais e da biodiversidade. Limites horizontais, uma vez que os
particulares, por expressa menção constitucional, não poderiam mais dispor da terra da
maneira como bem entendessem (art. 225, caput, da CRFB/88). Limites verticais, pois o
legislador constituinte incumbiu ao Poder Público o dever de realizar a preservação do
meio ambiente, através da adoção de medidas que concretizem os deveres previstos no
art. 225, §1º.
Ser ecologicamente equilibrado é característica do meio ambiente passível de
usufruto pelas gerações futuras. Em outras palavras, a utilização racional dos recursos e
a preservação da biodiversidade são, justamente, o caminho para que o meio ambiente
alcance um patamar de equilíbrio que permita ao homem suprir suas necessidades
imediatas, explorando os elementos naturais, e, ainda, dê condições àquele (meio
ambiente) de se regenerar e continuar a servir às gerações futuras.
Nesse contexto, passou-se a analisar o crescimento econômico dos países com
ressalvas, concluindo-se pela necessidade de imposição de limites, dado o risco de
comprometimento da vida humana global das gerações seguintes. Portanto,
distinguiram-se os conceitos de crescimento e de desenvolvimento econômico. Deve-se
destacar que não foi negado o direito ao desenvolvimento, pelo contrário, este foi
reconhecido como direito humano internacional inalienável (conforme Resolução nº
41/128 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 04/12/1986)124. Contudo, é um
direito que deve conviver harmonicamente com os demais, notadamente com o direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Essa conciliação entre o direito ao desenvolvimento econômico e o direito ao
meio ambiente sadio traduz-se, justamente, no princípio da sustentabilidade: é uso
limitado, adequado e racional dos recursos do meio ambiente, suficiente para o
desenvolvimento econômico e a melhoria da qualidade de vida do homem, sem
comprometer a higidez do meio ambiente e a disponibilização de recursos para as
gerações seguintes. Nesse contexto, e sob o enfoque agrário, a sustentabilidade

124
“Artigo 1.º 1. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual todos
os seres humanos e todos os povos têm o direito de participar, de contribuir e de gozar o desenvolvimento
económico, social, cultural e político, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais se
possam plenamente realizar”.

276
Direito Agrário Ambiental

representa a utilização racional do solo e dos demais recursos naturais, com técnicas e
instrumentos que permitam o aumento da produção agrícola e o aprimoramento dos
meios de produção, garantindo o crescimento econômico, sem agressão ao meio
ambiente e sem comprometimento dos recursos, evitando-se, assim, a degradação e o
racionamento dos recursos.

9. PRINCÍPIO DO DIMENSIONAMENTO EFICAZ DAS ÁREAS


EXPLORÁVEIS
Conforme o princípio do dimensionamento eficaz das áreas exploráveis, é
necessária uma dimensão mínima de propriedade rural que assegure ao trabalhador e à
sua família subsistência e progresso econômico. Tal princípio encontra-se previsto no
art. 4º, III, do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), que traz a ideia de módulo rural como
sendo a área de terra que, quando trabalhada pelo agricultor e por sua família, direta e
pessoalmente, é necessária para a sua subsistência e o progresso social e econômico.
A fixação do módulo rural como uma medida adotada para o imóvel rural
como propriedade familiar é feita pelo órgão competente do Governo Federal (INCRA),
que leva em consideração fatores como o tipo de exploração feita pelo imóvel, a
qualidade da terra, a proximidade do centro consumidor, variando de região para região,
conforme preceitua o art. 11 do Decreto nº 55.891/65, que veio regulamentar o Estatuto
da Terra, ao afirmar que o módulo rural “tem como finalidade primordial estabelecer
uma unidade de medida que exprima a interdependência entre a dimensão, a situação
geográfica dos imóveis rurais e a forma e as condições do seu aproveitamento
econômico”. (MARQUES, 2007, p.47).
Também, o legislador brasileiro introduziu no nosso ordenamento jurídico dois
outros institutos igualmente importantes para o dimensionamento eficaz do imóvel
rural, quais sejam: a Fração Mínima do Parcelamento e o Módulo Fiscal. Analisando-se
o art. 50, § 2º do Estatuto da Terra, compreende-se que o Módulo Fiscal apresenta-se
como um dos instrumentos mais adequados para a elaboração de um padrão mais
consentâneo com a realidade social.
Logo, para o Direito Agrário, é um princípio completamente relevante, tendo
em vista que interfere diretamente no comando da função social da propriedade rural da
terra, justificando a interferência do Poder Publico, a fim de impedir que ocorram

277
Direito Agrário Ambiental

fracionamentos indesejados no imóvel rural. Não se podem, pois, conceber pequenas


áreas de terra que mal produzem para a subsistência da família que as cultiva125.

10 PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE INDÍGENA


Trata-se de um princípio constitucional que visa à proteção das terras
indígenas, que também são utilizadas em atividades agrárias, porquanto é nelas que os
índios praticam a caça, a pesca, a lavoura e a pecuária, atividades agrárias típicas.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tem, inclusive, um
capítulo inteiro sobre os índios, realçando, em seus artigos 231 e 232, entre outros
direitos, o direito dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
O legislador constituinte também preocupou-se em explicitar o significado do
que seriam as terras tradicionalmente ocupadas pelos índio, definindo-as como aquelas
por eles habitadas “em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas,
as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e
as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições”.
A Carta Magna ainda estabelece que essas terras destinam-se à posse
permanente dos índios, assegurando-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos
rios e dos lagos nelas existentes. Para que haja aproveitamento dos recursos hídricos,
inclusive dos potenciais energéticos, da pesquisa e lavra das riquezas minerais em terras
indígenas, é necessária autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, às quais se assegura o direito à participação nos resultados da lavra.
Conforme o art. 17 do Estatuto do Índio, Lei nº 6.001/73, reputam-se terras
indígenas:

I – as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os


artigos 4º, IV e 198, da Constituição 126;
II – as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;

125
Art. 50. Para cálculo do imposto, aplicar-se-á sobre o valor da terra nua, constante da declaração para
cadastro, e não impugnado pelo órgão competente, ou resultante de avaliação, a alíquota correspondente
ao número de módulos fiscais do imóvel, de acordo com a tabela adiante:
[...] § 2º O módulo fiscal de cada Município, expresso em hectares, será determinado levando-se em conta
os seguintes fatores: a) o tipo de exploração predominante no Município: I - hortifrutigranjeira; Il -
cultura permanente; III - cultura temporária; IV - pecuária; V - florestal; b) a renda obtida no tipo de
exploração predominante; c) outras explorações existentes no Município que, embora não
predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada; d) o conceito de "propriedade
familiar", definido no item II do artigo 4º desta Lei.
126
Atualmente, esta Constituição a que se refere o inciso encontra-se revogada.

278
Direito Agrário Ambiental

III – as terras de domínio das comunidades indígenas ou silvícolas.

Essas terras reservadas aludidas no inciso II do art. 17 do Estatuto do índio


podem ser classificadas como: reserva indígena; parque indígena; e colônia indígena
(MARQUES, 2007, p. 117). A reserva indígena, conforme o art. 27 do referido
Estatuto, é uma área destinada a servir de habitat a grupo indígena com os meios
suficientes à sua subsistência. Já o parque indígena, é a área contida em terra na posse
dos índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e
sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas da flora e da fauna e as
belezas naturais da região (art. 28). Por sua vez, a colônia indígena é a área destinada à
exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde
convivam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional (art.29).
Por fim, cumpre ressaltar que a proteção da prorpiedade indígena é tão
eloquente no ordenamento jurídico brasileiro que a atual Constituição da República,
após classificar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios como inalienáveis e
indisponíveis e estabelecer a imprescritibilidade dos direitos sobre elas, confere
nulidade aos atos de ocupação, domínio e posse que as envolvam.

11. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO TRABALHADOR RURAL


É um princípio constitucional, previsto no art. 186, §4º, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, que também está diretamente ligado ao
comando da função social da propriedade rural, na medida em que a função social só é
cumprida quando a exploração do imóvel rural favoreça o bem-estar dos trabalhadores.
O conceito de trabalho rural evoluiu ao longo do tempo, a partir de concepções
mais humanistas, calcadas na valorização do trabalhador. Atualmente, entende-se que
trabalhador rural é aquele que exerce atividade agroindustrial e pode trabalhar como
autônomo ou sob subordinação, por conta de certa empresa. (MARQUES, 2007, p.
187).
Tem-se, pois, que o princípio da proteção do trabalhador rural é uma
interpretação conjunta do Direito Agrário com o Direito do Trabalho, tendo em vista
que a fiel observância das justas relações de trabalho constitui um dos requisitos
indispensáveis à configuração social do imóvel rural.

12. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

279
Direito Agrário Ambiental

Princípio fundante de todo o ordenamento jurídico brasileiro, a dignidade da


pessoa humana foi universalizada a partir do artigo 1º da Declaração Universal da ONU
(Organização das Nações Unidas, 1948), que abriu portas para seu reconhecimento nas
Constituições de muitos países.
Nos exatos termos da norma acima citada: “Todas as pessoas nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em
relação umas às outras com espírito de fraternidade.”
Após a Segunda Guerra Mundial, surgem os direitos de terceira geração ou
dimensão, nascendo os direitos de solidariedade, pioneiramente previstos nas
declarações internacionais, por meio das quais o princípio aqui estudado ganhou enorme
relevância, tendo em vista que se tornou imprescindível para a proteção da humanidade.
Muito se questionou acerca da conceituação do mencionado princípio. Nessa
senda, Ingo Sarlet enxergou-o como qualidade intrínseca do ser humano nos seguintes
termos:

[...] a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é


irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano
como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar a
possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão de que lhe
seja concedida a dignidade. (SARLET, 2009, p. 47).

Quanto aos instrumentos protetivos desse direito, estes também foram


normatizados com amplitude na Carta Maior, desde o mandado de segurança até os
princípios gerais, como isonomia e legalidade.
Assim, embora seu reconhecimento jurídico seja indispensável para a sua
proteção, a dignidade não pode ser concedida pelo ordenamento, uma vez que é atributo
intrínseco da pessoa humana.
Assevera que:

[...] ao destacarmos o reconhecimento da dignidade da pessoa humana pela


ordem jurídico-positiva, certamente não se está afirmando – como já
acreditamos ter evidenciado – que a dignidade da pessoa humana (na
condição de valor ou atributo) exista apenas onde e à medida que seja
reconhecida pelo Direito. Todavia, o grau de reconhecimento e proteção
outorgado à dignidade da pessoa por cada ordem jurídico-constitucional e
pelo Direito Internacional, certamente irá depender de sua efetiva realização e
promoção [...].(SARLET, 2009, p. 76).

Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 conferiu à dignidade da pessoa


humana caráter fundamental para o nosso Estado Democrático de Direito. A dignidade

280
Direito Agrário Ambiental

da pessoa humana, mais que os direitos fundamentais positivados na carta


constitucional de 1988, caracteriza-se como fundamento essencial dos últimos.
Ressalte-se que todos estão intimamente vinculados à dignidade, de modo que
a violação a um direito fundamental implica ofensa ao fundamento do nosso Estado.
Juridicamente concretizado, duas dimensões envolvem esse princípio, quais
sejam, uma defensiva e outra prestacional. Na primeira perspectiva, a dignidade impõe
um limite, concretizado no seu respeito e na sua proteção, tendo em vista que pertence a
cada um, caracterizando-o como pessoa, não podendo ser perdido ou alienado.
A segunda dimensão, por sua vez, requer do Estado ações que preservem e
promovam essa qualidade, por meio da criação de condições que permitam o pleno
exercício e a fruição da dignidade.
Diz, portanto, Sarlet (2009, p. 120):

[...] o princípio da dignidade da pessoa impõe limites à atuação estatal,


objetivando impedir que o poder público venha a violar a dignidade pessoal,
mas também implica (...) que o Estado deverá ter como meta permanente a
proteção, a promoção e a realização concreta de uma vida com dignidade
para todos [...].

Saliente-se que essas dimensões vinculam, além do Estado, toda a comunidade,


ou seja, alcança as relações entre particulares, que devem pautar suas condutas pelo
dever de respeito à dignidade. Assim:

[...] a dignidade implica também, em última ratio por força de sua dimensão
intersubjetiva, a existência de um dever geral de respeito por parte de todos (e
de cada um isoladamente) os integrantes da comunidade de pessoas para com
os demais e, para além disso, de certa forma, até mesmo um dever das
pessoas para consigo mesmas. (SARLET, 2009, p. 120)

Imbuído de todas as ideias doutrinárias acima expostas, pode-se afirmar que o


reconhecimento da dignidade pressupõe o respeito à dimensão existencial do indivíduo,
não se limitando a sua esfera pessoal, mas, especialmente, ao cerne das suas relações
sociais.
O direito agrário, voltado para o direito da terra e todas as suas circunstâncias,
trata, destarte, da relação entre o homem e a terra, tendo como base o cumprimento de
sua função social, fixado no artigo 184 da Constituição Federal.
Pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana justifica os ideais de justiça
social e de função social da propriedade, que norteiam o direito de propriedade e
explicam seu caráter não absoluto, sendo possível, diante disso, a desapropriação, seja
por interesse público ou por descumprimento da função social.

281
Direito Agrário Ambiental

Quanto à ordem econômica e financeira, sabe-se que esta deve observar a


dignidade da pessoa humana, na medida em que é fundamento do estado democrático de
direito, de maneira que o desenvolvimento econômico deve ser sustentável, visando
alcançar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, consoante norma inserta no
artigo 225 da Constituição de 1988.
Ademais, a dignidade também fundamenta a impossibilidade de penhora para
fins de reforma agrária da pequena e média propriedade rural, desde que seu
proprietário não possua outra, o que está previsto previsto no artigo 185, inciso I, da
Constituição Federal de 1988, a fim de garantir a subsistência dessa família.
Considerando, por fim, que todos os demais princípios encontram amparo na
dignidade da pessoa humana e com ela estão vinculados, convém tecer considerações
acerca de alguns princípios aplicáveis ao direito agrário, a fim de compreender a
constante atualização do olhar lançado sobre as terras rurais e as relações econômicas,
sociais e jurídicas que emergem das atividades agrárias.
Por fim, imperioso é destacar que a abordagem principiológica aplicável ao
direito agrário possibilita a compreensão da constante atualização do olhar lançado
sobre as terras rurais e as relações econômicas, sociais e jurídicas que emergem das
atividades agrárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As modificações introduzidas no Direito Ambiental, pelos princípios
constitucionais e agrários, repercutem na relação que é estabelecida entre o homem e a
terra, devido ao impacto das normas ambientais e às inovações trazidas pelo direito
agrário.
Essas modificações constitucionais elevaram a função social da propriedade à
condição de base do Direito Agrário, razão pela qual há a primazia da atividade agrária
frente à prevalência do direito de propriedade, havendo, ainda, a reformulação da
atividade fundiária.
Em evidência também se encontra o princípio do meio ambiente sustentável, na
medida em que o desenvolvimento econômico deve guardar sintonia com o uso racional
dos recursos e a conservação ambiental para as futuras gerações, tendo em vista o
caráter intergeracional do meio ambiente saudável aplicável ao direito agrário.
Ressalte-se, enfim, que todos os princípios expostos são concretizações da
dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático Brasileiro, visto

282
Direito Agrário Ambiental

como qualidade intrínseca do ser humano, que serve de amparo para os demais
princípios e que com eles está vinculado.

REFERÊNCIAS
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do Direito agrário. São Paulo: Saraiva,
1994
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Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2009.

283
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XV – ASPECTOS DO DIREITO AGRÁRIO EM FACE DO


BIOCOMBUSTÍVEL NO BRASIL

Jedaías Nunes Messias Júnior1


João Victor Ximenes Monteiro2
Erick Martins Norat Filho3
Danilo Moura de Moura Bastos4
Renan Spinelli Pessoa5
Rafael Fonseca Moreira de Andrade6

INTRODUÇÃO
Analisando temáticas de extrema importância dentro do Direito Agrário e
Ambiental, e levando em conta seus desdobramentos, percebem-se a relevância da
discussão sobre os aspectos principais do direito agrário em face do biocombustível no
Brasil.
Com o claro intuito de aprofundar as discussões da referida área, iniciou-se
trazerendo um relato histórico apontando diferentes pontos fundamentais desde que a
atividade tomou lugar no Brasil a partir do momento em que foram atestadas as
vantagens econômicas que eram possíveis com este tipo de cultivo, tendo como
destaques o Café no Sudeste e no Sul do país e a cana-de-açúcar, no Nordeste.
Ainda na tentativa de uma visão pontual no tocante ao posicionamento do
Estado brasileiro e aos seus objetivos socioambientais, abordaram-se pontos de
importância destacada, voltando os olhos aos direitos fundamentais presentes na 3ª
Dimensão dos direitos humanos, ou seja, naqueles intitulados de direitos da fraternidade
ou solidariedade, mais precisamente no direito a um meio ambiente saudável, ainda
trazendo conceitos, como os de função social, aproveitamento racional e preservação do
meio ambiente.
Ainda se analisarão os possíveis impactos socioambientais advindos da
produção em nosso país, mostrando o intuito de amenizar os impactos ambientais e
assegurar uma possível preservação ao meio ambiente, e demonstrando que o Brasil, em

1
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
2
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
3
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
4
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
5
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
6
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

284
Direito Agrário Ambiental

busca de amenizar esses impactos, apresenta leis que protegem as florestas, como, por
exemplo, o Código Florestal, que é a legislação mais importante nessa temática.
Por fim, far-se-á uma análise acerca da agroenergia no Brasil, que, por seu
clima favorável à produção e por sua grande dimensão territorial, pode fazer um intenso
investimento na produção agrícola ligada à agroenergia sem, ao mesmo tempo,
sacrificar a produção agrícola voltada à alimentação; por isso, o Brasil tem uma grande
vantagem na possibilidade da produção de agroenergia em relação a outros países.
Dessa maneira, serão esses os principais aspectos abordados neste trabalho
acadêmico, que não visa esgotar as discussões acerca da temática proposta, mas sim
aprofundar os debates e contribuir para um esclarecimento da matéria na comunidade
acadêmica.

1. HISTÓRICO DA MONOCULTURA NO BRASIL


A Monocultura tomou lugar no Brasil a partir do momento em que foram
atestadas as vantagens econômicas que eram possíveis com esse tipo de cultivo, tendo
como principais destaques o Café no Sudeste e no Sul do país, e a cana-de-açúcar, no
Nordeste, esse método de cultivo faz parte de nossa realidade há muitos anos.
O café foi o principal produto de exportação da economia brasileira durante o
século XIX e o início do século XX, garantindo as divisas necessárias à sustentação do
Império e também da República Velha.
As raízes do café no Brasil foram plantadas no século XVIII, quando as mudas
da planta foram cultivadas pela primeira vez, segundo se tem notícia, por Francisco de
Melo Palheta, em 1727, no Pará. A partir daí, o café foi difundido timidamente no
litoral brasileiro, rumo ao sul, até chegar à região do Rio de Janeiro, por volta de 1760.
Entretanto, sua produção em escala comercial para exportação ganhou força
apenas no início do século XIX. Tal dimensão de produção cafeeira só foi possível com
o aumento da procura do produto pelos mercados consumidores da Europa e dos EUA.
O consumo de café no continente europeu e no norte da América ocorreu após
a planta percorrer, desde a Antiguidade, um trajeto que a levou das planícies etíopes
africanas até as mesas e xícaras dos países industrializados do século XIX. Mas, para
isso, foi necessária uma expansão de seu consumo pelo Império Árabe e pelo mundo
islâmico, sendo posteriormente apresentada aos europeus, que tornaram seu consumo
mais expressivo por volta do século XVII.

285
Direito Agrário Ambiental

A produção do café no Brasil expandiu-se a partir da Baixada Fluminense e do


vale do rio Paraíba, que atravessava as províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo. A
cafeicultura beneficiou-se da estrutura escravista do país, sendo incorporada ao
sistema plantation, caracterizado basicamente pela monocultura voltada para a
exportação, a mão de obra escrava e o cultivo em grandes latifúndios.
Nessa região do Brasil, a produção cafeeira beneficiou-se do clima e do solo
propícios ao seu desenvolvimento. O fato de ser rota de transporte de mercadorias entre
o Rio de Janeiro e as zonas de mineração contribuiu também para a adoção da lavoura
cafeeira, já que parte das terras estava desmatada, facilitando inicialmente a introdução
das roças de café e beneficiando o escoamento da produção através das estradas
existentes.
Os capitais iniciais para a produção do café vieram dos próprios fazendeiros e
comerciantes, principalmente os que conseguiram acumular capital com o impulso
econômico verificado após a vinda da Família Real para o Brasil, a partir de 1808.
As técnicas de produção de café eram simples. Inicialmente se desmatavam
terras onde era necessário expandir as áreas agricultáveis para a colocação das mudas da
planta. Estas demoravam cerca de cinco anos para começar a produzir. Nesse tempo,
outras culturas eram implantadas em torno dos cafezais, principalmente gêneros
alimentícios. Para a conservação das plantas, eram necessárias apenas enxadas e foices.
A colheita era feita manualmente pelos escravos, que, após essa tarefa, colocavam os
grãos do café para secar em terreiros. Uma vez seco, o café era beneficiado, retirando-se
os materiais que revestiam o grão através de monjolos, máquinas primitivas de madeira
formadas por pilões socadores movidos à força d’água.
Após esse processo, o café era transportado nos lombos das mulas para o porto
do Rio de Janeiro, de onde era exportado. Mas o aumento da produção cafeeira e os
lucros decorrentes dela levaram ao início do processo de modernização da economia e
da sociedade brasileira.
Um dos exemplos mais marcantes dessa modernização esteve na construção de
ferrovias para o transporte do café, o que aumentou a velocidade do transporte e
interligou algumas regiões do Império, principalmente após a expansão das lavouras
para as terras roxas localizadas no chamado Oeste paulista, intensificada após a década
de 1860. Tal situação levou ainda ao fortalecimento do Porto de Santos como principal
via de escoamento da produção.

286
Direito Agrário Ambiental

Em 1836 e 1837, a produção cafeeira superou a produção açucareira, tornando


o café o principal produto de exportação do Império. Os grandes latifundiários
produtores de café, os chamados “Barões do café”, enriqueceram-se e garantiram o
aumento da arrecadação por parte do Estado imperial.
Surgiram ainda os chamados comissários do café, homens que exerciam a
função de intermediários entre os latifundiários e os exportadores. Além de controlarem
a venda do produto, garantiam aos latifundiários acesso a créditos para a expansão da
produção e também viabilizavam a compra de produtos importados.
O café foi, dessa forma, um dos principais esteios da sociedade brasileira do
século XIX e início do XX. Garantiu o acúmulo de capitais para a urbanização de
algumas localidades do Brasil, como Rio de Janeiro, São Paulo e cidades do interior
paulista, além de prover inicialmente os capitais necessários ao processo de
industrialização do país e criar as condições para o desenvolvimento do sistema
bancário.
A cana-de-açúcar, a princípio originária da espécie Saccharum officinarum,
provém do território asiático, e era aí semeada desde tempos ancestrais. Com o tempo,
vários outros espécimes foram produzidos com a ajuda de inovações tecnológicas, pois
a planta original provocava diversas enfermidades.
A nova variedade surgiu do cruzamento da espécie primordial com mais quatro
modelos alternativos do gênero Saccharum, e os arbustos resultantes foram, depois,
recruzados com os espécimes iniciais, escolhidos como opção de cultivo.
Dessa engenharia genética emergiu a cana-de-açúcar como é hoje conhecida.
No Brasil, essa planta desembarcou pelas mãos dos portugueses, no início do
século XVI. Ela prosperou principalmente no Nordeste do país, sendo responsável por
essa nação se converter na maior produtora e exportadora de açúcar nesse período que
se estendeu até o século XVII.
Hoje, porém, é na região interiorana de São Paulo que se localiza a maior parte
dos canaviais. E o açúcar não é mais seu principal produto, pois, atualmente, o álcool,
especialmente o etanol, extraído desse vegetal, é o que mais se destaca
economicamente, porque, enquanto combustível alternativo, contribui igualmente para o
desenvolvimento sustentável.
A cana tem também outras finalidades. Ela é utilizada no estado natural como
pasto consumido pelo gado, ou, na forma de ingrediente, em alimentos como a
rapadura, o melado, a aguardente, entre outros produtos. Esse arbusto apresenta o

287
Direito Agrário Ambiental

caule delgado, agradável ao tato e extenso, o qual é recoberto de folhas igualmente


compridas e esverdeadas. Na haste há um elevado teor de açúcar.
Ela se desenvolve melhor em climas que se caracterizam por apresentar duas
estações bem diferenciadas, uma de altas temperaturas e a outra, úmida, que
possibilitam a evolução germinativa, a rebentação e o progresso do vegetal. A estação
fria e seca é necessária para incentivar o estágio maduro e, como resultado desse
processo, a concentração de sacarose nos caules de nós salientes. As regiões tropicais
são as que oferecem melhores recursos para o desenvolvimento da cana, pois ela
necessita da luz solar para seu crescimento.
As terras apropriadas para o cultivo dessa planta são as mais fundas, densas,
dotadas de maior estrutura e fecundas. Por ser grosseira, a cana-de-açúcar evolui de
forma satisfatória em territórios repletos de areia e menos abundantes de recursos, como
o cerrado. Até hoje esse vegetal é submetido a constantes melhorias, que resultam em
espécimes híbridos.
O cultivo da cana-de-açúcar é um dos mais significativos nas regiões de clima
tropical, pois, além dos produtos que gera, economicamente importantes, ele também
oferece diretamente milhares de empregos, apesar de gerar uma alta convergência de
renda. A área que mais produz essa planta, no Brasil, é a de Ribeirão Preto. A indústria
canavieira se caracteriza especialmente pelo modelo latifundiário, pois muitas terras são
depositadas nas mãos de poucos senhores de terra. Esse mecanismo resulta no
temível êxodo do campo. Hoje, a cana-de-açúcar ainda predomina no Nordeste e o café,
no Sudeste, e, dados os avanços do agronegócio, ainda aflorou a monocultura da soja, e
se desenvolve a da mamona, em detrimento da produção de biocombustíveis.

2. ESTADO BRASILEIRO E SEUS OBJETIVOS SOCIOAMBIENTAIS


Em decorrência do chamado “milagre” do crescimento econômico, surgido
com as revoluções industriais, e dos modelos de economia experimentados no passado,
foi-se construindo um contexto em que a maioria dos indivíduos não colhiam os frutos
dessas transformações. Como consequência negativa desse crescimento, houve uma
enorme devastação dos recursos naturais em escala global.
Nessa mesma linha, percebe-se que são poucos os países que consomem de
modo a esgotar a maior parte dos recursos naturais, deixando os demais na pobreza
(FENSTERSEIFER, 2014), inclusive aqueles que são donos das terras onde tais

288
Direito Agrário Ambiental

recursos estão. Conclui-se, então, que a melhor forma de corrigir os erros do passado
seria a redução da desigualdade entre essas nações.
Para tanto, devem-se voltar os olhos aos direitos fundamentais presentes na 3ª
Dimensão dos Direitos Humanos, ou seja, naqueles intitulados de direitos da
fraternidade ou solidariedade, mais precisamente no direito a um meio ambiente
saudável. Esse ambiente saudável tem fundamento na preservação das gerações futuras
e na dignidade da pessoa humana, não se podendo permitir a coisificação do homem em
nome de um desenvolvimento econômico. Assim, tem-se que o Estado está em função
da sociedade, e não o oposto.
Na Constituição Federal de 1988, vê-se o Estado Brasileiro desenvolver
mecanismos de proteção ao meio ambiente quando no seu artigo 225, passou a adotar a
necessidade de um meio ambiente equilibrado, como pode ser visto a seguir (BRASIL,
1988):

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,


bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-
se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações.

Como pode ser visto a partir do caput do citado artigo, passou-se de um Estado
Social, no qual há uma visão voltada apenas a promover o bem-estar do indivíduo, a um
Estado Socioambiental, defendendo o direito transindividual de um meio ambiente
equilibrado, preservando-o para as gerações presentes e futuras. Esse mesmo artigo, em
seus seis parágrafos, prevê uma série de medidas que forçam o Estado a zelar por esse
respeito ao meio ambiente, podendo-se citar como exemplo o seu dever de proteger a
fauna e a flora.
Ainda no que se refere ao artigo 225 da Constituição Federal, tem-se que o seu
parágrafo 2º obriga não só o Estado a proteger o meio ambiente, mas também terceiros
que se utilizem da terra para a extração de recursos minerais, fazendo com que eles
devam restaurar o ecossistema, conforme as leis locais (BRASIL, 1988).
Com essa breve introdução dos objetivos socioambientais do Estado Brasileiro,
surge a cada vez maior preocupação com a devastação do meio ambiente, tendo sido
prevista na nossa Carta Magna a obrigação de protegê-lo, além da preocupação com o
legado que se deixará paras as gerações futuras.

289
Direito Agrário Ambiental

2.1. Função social, aproveitamento racional e preservação do meio ambiente


A Constituição Federal, no seu artigo 5º, inciso XXII, garante ao indivíduo a
possibilidade de possuir um bem imóvel e de se utilizar dessa propriedade com os
poderes que lhe são inerentes, ou seja, de usar, gozar, alienar e reivindicar. Contudo,
quando se analisar o inciso XXIII, do mesmo artigo, percebe-se que o constituinte
originário estabeleceu, propositalmente, que a propriedade deveria respeitar a sua
função social.
Com isso, constata-se que, mesmo a propriedade sendo de uso particular do
indivíduo e que ele possa exercer sua vontade sobre ela, deverá, ainda assim, respeitar a
sua função social. A função social vem a definir um elemento essencial de propriedade,
e não uma limitação: assim, a propriedade somente terá legitimidade e, portanto,
coerência com os ditames legais se cumprir com sua função. Dessa maneira, o indivíduo
deve gerir a sua propriedade, fazendo com que, além de pensar em si, ele pense no bem
da coletividade, apenas se podendo considerar que uma propriedade está cumprindo a
sua função social quando, mesmo com a sua exploração, continua promovendo o bem-
estar coletivo.
O artigo 186 da Constituição Federal prevê nos seus quatro incisos os
elementos essenciais para que uma propriedade atinja a sua função social (BRASIL,
1988). Esses elementos se dividem em três categorias: pelo primeiro elemento, de
caráter econômico, deve-se se realizar o uso adequado e racional da terra; o segundo, de
caráter ambiental, possibilita a utilização dos recursos naturais de maneira a se preservar
o meio ambiente; e, por fim, o terceiro elemento, que possui caráter social, pressupõe o
respeito às normas trabalhistas e de exploração, promovendo uma boa convivência entre
empregador e empregadores.
O inciso I do artigo 186 da Constituição Federal, que traz o caráter econômico
da função social de uma propriedade, exige que, para ser produtiva, a terra deve
estabelecer padrões mínimos de exploração. Assim, além de possuir mão de obra
assalariada, tecnologia, produção de itens em quantidade aceitável, etc., deverá ainda
usar adequadamente seu espaço, ou seja, deve aproveitar o solo de forma equilibrada
sem causar danos ao meio ambiente (SILVA, 2014).
Tal preocupação quanto à utilização racional e adequada da terra não se
estende apenas aos cuidados ambientais, sendo impossível aceitar que um produtor rural
que utilize mão de obra escrava, mesmo gerando uma imensa quantidade de produtos
para o mercado, esteja cumprindo a função social da propriedade.

290
Direito Agrário Ambiental

Já no inciso II do mesmo artigo, tem-se que o proprietário deverá se utilizar


adequadamente dos recursos naturais presentes nas suas terras, protegendo o meio
ambiente. Na mesma linha de raciocínio do inciso anterior, não há como se legalizar a
função social de uma terra rural com o simples argumento de que sua produção
extrapola as expectativas, quando na verdade se possui um grande retorno em
detrimento da manutenção de uma vegetação nativa protegida por lei.
Como pode ser percebido, é impossível que haja dissociação entre o elemento
econômico e o ambiental, ou seja, que haja exploração adequada sem que se preserve o
meio ambiente, ou que se preserve o meio ambiente explorando a terra de modo
inadequado e irracional.
Entende-se necessária a exposição de que o proprietário que não se utilizar
adequadamente da terra, ou seja, preservando o meio ambiente, as técnicas de
exploração e as normas trabalhistas, não estará cumprindo o interesse social da
propriedade, gerando a possibilidade de o Estado vir a desapropriar a terra em nome da
coletividade.

2.2 Impactos Ambientais Da Produção Dos Biocombustíveis


O aumento da população e a demanda por alimentos e energia, bem como a
crise ambiental, têm estimulado a busca por novas fontes de energias renováveis, numa
sociedade que ainda tem como principal fonte energética o petróleo, que, além de
altamente poluidor, é não renovável. Os biocombustíveis, ou combustíveis de origem
vegetal, produzidos com matéria orgânica, surgem então nesse cenário. De acordo com
o art. 6º, XXIV, da Lei n. 9.478/97, que foi incluído pela Lei n. 11.097/05,
biocombustível é o “combustível derivado de biomassa renovável para uso em motores
à combustão interna ou, conforme regulamento, para outro tipo de geração de energia
que possa substituir parcial ou totalmente combustíveis de origem fóssil”.
Esses novos combustíveis abrem grandes perspectivas e benefícios econômicos
para o Brasil, visto que é o país mais adiantado nessa tecnologia, pois apresenta uma
vasta área de cultivo propícia para essas biomassas. No país, os dois principais
biocombustíveis utilizados são o etanol, que possui uma legislação rica por ser mais
antigo na matriz energética brasileira, sendo obtido a partir de um produto típico e de
grande área de cultivo do país: a cana-de-açúcar, e o biodiesel, que teve um avanço
significativo no Brasil em meados de 2004 e, por ser mais recente, apresenta ainda uma

291
Direito Agrário Ambiental

legislação mais carente (FARIAS, 2010). O biodiesel pode ser produzido por diversas
espécies vegetais, tais como mamona, girassol, babaçu, soja, dentre outras.
Porém tantos benefícios podem vir acompanhados de sérios problemas,
sobretudo problemas ambientais, considerando que a maior ênfase no cultivo e na
exploração de um produto é regulada pelo retorno econômico obtido. Ou seja, o motor
que impulsiona o investimento nas monoculturas de cana-de-açúcar, soja e mamona não
se expande como maneira de contribuição social, porém muito mais voltado para a
perspectiva econômica.
Nesse contexto, por mais promissor que seja esse programa, o aspecto
econômico não pode ser unicamente levado em consideração. É necessária a ação de
uma legislação que considere também as questões ambientais e sociais. Sendo assim, a
Função Social, que é estabelecida pela Constituição Federal, determina que haja um
aproveitamento racional e adequado, bem como uma utilização consciente do solo e dos
recursos naturais, visando à preservação do meio ambiente, de modo que esse
“aproveitamento adequado” resulte numa maior produtividade sem a geração de tantos
danos (OLIVEIRA, 2007).
Da mesma forma que a preservação do meio ambiente como um todo estimula
discussões, a própria melhoria na qualidade de vida no campo também tem necessidade
de ser atendida, visto que agricultores investem no cultivo de produtos muito
promissores muitas vezes de maneira desordenada, causando desequilíbrio. Nesse caso,
o Poder Público tem o poder de intervenção, podendo limitar as práticas na plantação e
sua própria extensão. A desapropriação do imóvel rural pode ocorrer quando a
propriedade não cumpre sua Função Social (artigo 184), tendo estabelecido quais os
requisitos a serem obedecidos para a identificação do cumprimento de tal função (artigo
186) (BRASIL, 1988).

2.2.1. Meio ambiente, monoculturas e a cana-de-açúcar


A monocultura é a cultura ou o plantio exclusivo de um produto agrícola,
contudo esse tipo de cultivo desencadeia problemas ambientais, sobretudo no solo,
reduzindo a biodiversidade, aumentando o aparecimento de pragas pela falta de
predadores e reduzindo os recursos hídricos (VIVA TERRA, 2014).
O uso excessivo de agrotóxicos para compensar o aparecimento de pragas é um
dos impactos causados pela monocultura, bem como a contaminação das águas, o uso
de técnicas inadequadas e até impactos sobre o clima, visto que a substituição da

292
Direito Agrário Ambiental

cobertura vegetal de floresta por pastagens modifica as interações entre o sistema solo-
planta-atmosfera, com a consequente alteração do microclima, como afirma o
pesquisador Gilberto Fisch no estudo Implicações Microclimáticas dos processos de
superfície e da camada limite da Amazônia devido ao desmatamento de Floresta
tropical.(INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2014).
No Brasil, a monocultura mais antiga e que rendeu períodos de ouro ao país é a
de cana-de-açúcar. Dados históricos mostram que as primeiras mudas de cana foram
trazidas em meados de 1533, e logo a produção de açúcar tornou-se a principal base
econômica do Brasil-Colônia por mais de dois séculos (COTRIM, 2005). A
monocultura da cana no Brasil obteve sucesso desde o início em consequência do solo
extremamente propício ao seu desenvolvimento, do clima muito favorável e de,
economicamente, o açúcar, na época ser um produto de alto valor na Europa.
Da mesma maneira que a cana-de-açúcar trouxe e vem trazendo benefícios no
campo econômico, na visão ambiental, traz, porém, consigo problemas de larga escala.
É necessária para o seu cultivo uma grande área e isso já desencadeia um desequilíbrio,
porquanto a derrubada da vegetação natural surte efeitos danosos à sobrevivência dos
animais daquele habitat, provocando o êxodo de outros para áreas urbanas, e também o
desenvolvimento de pragas que, por mortalidade ou êxodo de seus predadores, se
reproduzem de maneira demasiada, sendo necessária, nesse caso, a utilização de
agrotóxicos que são muito prejudiciais ao ambiente. A queima da palha da cana
promove o aumento das concentrações de gases poluentes na atmosfera, e a fuligem
levada pelo vento gera problemas de saúde pública. O empobrecimento do solo está
relacionado também aos grandes problemas causados por essa monocultura.
Diante dessas consequências ambientais, a intervenção do poder público é
necessária, exigindo a abstenção da utilização do fogo em cultivos de cana-de-açúcar,
para que se estimule a busca pelo equilíbrio entre a utilização do solo para a produção e,
a preservação do meio ambiente, partindo do princípio de que todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado (LAFER, 1988, p. 131-132). Caso o cultivo da
monocultura de cana-de-açúcar, em determinada propriedade, esteja descumprindo o
que consta no artigo 186 da CF, é possível que ocorra desapropriação do imóvel rural
(artigo 184) (ROCHA, 2011).
Os biocombustíveis, que pretendem substituir os derivados do petróleo, são
obtidos a partir de monoculturas como a de cana-de-açúcar, e, nesse caso, o produto é o

293
Direito Agrário Ambiental

etanol. Contudo, para que seja um tipo de combustível limpo, é necessária uma intensa
preocupação ambiental justa e uma atenção especial do Poder Público.

2.2.2. A monocultura de soja e mamona e seus impactos ambientais


Na década de 80, a mamona teve seu período de destaque no cultivo e na
produção no Brasil. A oleaginosa fazia parte de um mercado intenso de óleo de mamona
que era utilizado para a fabricação de desinfetantes, colas, lubrificantes, dentre outros.
Porém, na década de 90, essa cultura teve seu declínio, e pequenos proprietários,
sobretudo da região Nordeste, passaram a não investir mais nesse plantio. Com o
advento das pesquisas e dos programas de biocombustíveis no Brasil, a mamona
reaparece com uma boa posição por estar diretamente ligada à produção de Biodiesel,
sendo cultivada pela agricultura familiar e utilizada na indústria de Biodiesel através de
incentivo do governo.
A utilização de produtos como a mamona para a produção de biocombustíveis
traz, no entanto, problemas na própria produção de alimentos, com a expansão mal
planejada da monocultura e a redução da terra, já que, os proprietários e os agricultores
tendem a diminuir o cultivo de alimentos para aumentar a produtividade de produtos
como a mamona, visando a um retorno lucrativo através da produção do biodiesel
(LUBAMBO, 2007).
Considerando que a mamona no Brasil é cultivada quase em sua totalidade pela
agricultura familiar, os impactos referentes a essa monocultura ainda são pequenos, e o
desmatamento e a utilização de agrotóxicos para esse plantio não são tão graves.
Contudo, em áreas de maior extensão de plantio, os impactos são, sim, consideráveis,
embora, de qualquer forma, ainda de pouca monta. No entanto, se do ponto de vista
agrícola a mamona não tem causado tantos impactos ambientais, o seu processamento
pela indústria de biodiesel tem apresentado problemas, sobretudo na Brasil Ecodiesel,
gerando a intervenção severa do Ministério Público Estadual (REPÓRTER BRASIL,
2008, p.44).
O cultivo e a produção de soja tiveram início no Brasil no ano de 1970 e foram
se expandindo cada vez mais pelo país através da utilização de tecnologias como
agrotóxicos e calcário agrícola, permitindo o melhor desenvolvimento da cultura. É
considerado um cultivo muito promissor pela sua alta rentabilidade: o óleo de soja é
utilizado para a alimentação e a fabricação de cosméticos, e também como

294
Direito Agrário Ambiental

biocombustível (biodiesel). No entanto, é de plantio bastante intensivo e necessita de


uma demanda forte de recursos como água, energia, agrotóxicos e solo.
Nesse âmbito, a monocultura de soja gera diversos impactos ambientais, como
a erosão do solo, em decorrência do desmatamento para a área de plantio. Há
necessidade de constante irrigação, portanto o consumo de água excessivo. Porém a
principal ameaça causada pelo cultivo de soja ao meio ambiente é o uso de fertilizantes
e de pesticidas e isso se deve ao clima elevado durante todo o ano no Brasil e à maior
probabilidade de aparecimento de pragas nas plantações de soja.
Com o intuito de amenizar os impactos ambientais e assegurar uma possível
preservação do meio ambiente, o Brasil apresenta leis que protegem as florestas. O
Código Florestal é a legislação mais importante nessa temática. Em certos locais, como
na Amazônia, por exemplo, a lei exigia a manutenção, com preservação de boa parte da
vegetação natural e reflorestamento das áreas desmatadas. Contudo, a expansão da soja
passou a ocorrer no cerrado, e o Código Florestal foi então revisado, porém
enfraquecido. Para que danos maiores e irreversíveis não sejam causados, além da
importante e imprescindível atuação do Ministério Público, a intervenção dos governos
produtores e consumidores de soja, das empresas, das organizações da sociedade civil e
dos consumidores é de extrema relevância (WWF, 2014).

3. A AGROENERGIA NO BRASIL
O Brasil, por seu clima favorável à produção de biocombustíveis e por sua
grande dimensão territorial, pode fazer um intenso investimento na produção agrícola
ligada à agroenergia sem, ao mesmo tempo, sacrificar a produção agrícola voltada à
alimentação; por isso o Brasil tem uma grande vantagem no que tange à possibilidade
da produção de agroenergia em relação a outros países. A matriz energética brasileira é
uma das mais limpas do mundo. De toda a energia produzida no país, pouco mais de
46% vêm de fontes renováveis, enquanto a média mundial é inferior a 14%. (ABAGRP,
2014).
O pontapé inicial para um aumento da demanda da agroenergia foi a pressão
social para a diminuição do uso das energias oriundas dos combustíveis fósseis. A
concentração de CO2 atmosférico aumentou 31% nos últimos 250 anos, atingindo,
provavelmente, o nível mais alto dos últimos 20 milhões de anos. Os valores tendem a
aumentar significativamente se as fontes emissoras de gases de efeito estufa não forem

295
Direito Agrário Ambiental

controladas, como a queima de combustíveis fósseis e a produção de cimento,


responsáveis pela produção de cerca de 75% desses gases (CRÉDITO ..., 2014).
O Brasil é signatário do Protocolo de Quioto, mas, por estar longe de ser um
dos países mais poluentes, sendo levada em conta a dimensão do país, não está incluso
na obrigatoriedade de redução da liberação dos gases de efeito estufa (GEE); mesmo
assim, decidiu participar do esforço mundial para a redução das emissões domésticas.
Para ajudar na redução da emissão dos gases do efeito estufa, o Brasil lançou
um Plano Nacional de Agroenergia (PNA), consistindo em um instrumento que guie as
iniciativas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) no
desenvolvimento das ações públicas e privadas que possam gerar conhecimento e
tecnologia relacionados à produção sustentável da agroenergia e a um melhor uso dessa
energia renovável. Tem por meta prioritária tornar competitivo o agronegócio brasileiro
e dar suporte às políticas públicas voltadas à inclusão social, à regionalização do
desenvolvimento e à sustentabilidade ambiental (MAPA, 2005).
Para que sejam alcançados os objetivos principais do PNA, faz-se necessário
que também sejam alcançados alguns objetivos específicos relacionados às demandas
dos clientes, assim como os anseios da sociedade. Esses objetivos enquadram-se nas
diretrizes que norteiam a agenda de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação
(PD&I):Sustentabilidade da matriz energética, geração de emprego e renda,
aproveitamento racional de áreas antropizadas, liderança do País no biomercado,
autonomia energética comunitária, suporte a políticas públicas, racionalidade energética
nas cadeias do agronegócio e eliminação de perigos sanitários.
Também são objetivos do PNA fazer com que o Brasil honre seu compromisso
no Protocolo de Quioto, já aproveitando os benefícios favorecidos pelo acordo na
aquisição de créditos de carbono e maximizando o aproveitamento de áreas onde o
homem atuou sobre a vegetação natural. O PNA aborda os diversos segmentos da
agroenergia em nosso país, ou seja, a energia oriunda de resíduos e dejetos, o biodiesel,
o etanol e as florestas energéticas, levando em conta sua potencialidade e sua estrutura
produtiva.

3.1. Do Proálcool ao Biodiesel


Em 1975 foi criado o Proálcool, com a finalidade de estimular a produção de
álcool e trazer a possibilidade da substituição do uso da gasolina pura pelo álcool,
assim, reduzindo a necessidade de importar petróleo. A primeira fase desse programa

296
Direito Agrário Ambiental

consistiu em diminuir o preço da cana-de-açúcar no mercado internacional, para que se


tornasse viável o uso da mesma como matéria-prima na produção do álcool.
Na década de 80, após o segundo choque do petróleo, causado pela invasão dos
EUA no Kwait, o Brasil teve a possibilidade de aumentar sua expansão quando o
governo reduziu impostos sobre carros movidos a álcool e acabou gerando empregos e
aumentou a renda interna; nessa fase foi possível usar o álcool puro para substituir a
gasolina.
Já no final dos anos 80, o preço do petróleo no mundo começava a baixar, o
preço do açúcar começou a subir e o governo diminuiu as suas políticas de auxílio,
reconhecendo, por fim a inviabilidade de sustentar a expansão do setor sucroalcooleiro;
ao mesmo tempo, outros derivados do petróleo começaram a ser usados, o que causou
uma produção de gasolina além da necessidade e, por isso, era exportada com preços
desvantajosos. Após isso, a busca por automóveis movidos a álcool diminuiu, e a
indústria automobilística deixou de achar interessante continuar a produção de veículos
movidos apenas a álcool.
A partir dos anos 90 começaram a se estipular percentuais mínimos da adição
do etanol à gasolina, iniciando-se em 1998 com a adição de 24%, valor este que, com o
passar do tempo, foi mudando de acordo com a oferta e a demanda.
Desde 2004 o Brasil vem incentivando o estudo dos biocombustíveis, por meio
do Plano Nacional de Agroenergia, para a diminuição da dependência da energia
proveniente do petróleo. O biodiesel é uma boa escolha para o Brasil por causa de sua
vasta biodiversidade, pois contém uma grande variedade de oleaginosas usadas na
produção do biodiesel.
Em 2004 foi lançado o Plano Nacional de Produção e Uso do Biodiesel; já em
2005 a lei 11.097 autorizou a introdução do biodiesel na matriz energética brasileira,
assim como obrigou uma adição de no mínimo 2% de biodiesel ao óleo diesel
comercializado em todo o território nacional. Além disso, por meio de instruções
normativas, foi dado um registro especial para os envolvidos na produção e importação
do biodiesel, além de já serem estipulados os regimes da contribuição para o
PIS/PASEP e COFINS; logo após isso, em Belo Horizonte, foram inaugurados a
primeira usina e o posto revendedor de biodiesel do país.
Para estimular ainda mais esse processo, o Governo Federal lançou o Selo
Combustível Social, um conjunto de medidas específicas visando estimular a inclusão
social da agricultura nessa importante cadeia produtiva, conforme Instrução Normativa

297
Direito Agrário Ambiental

nº 01, de 05 de julho de 2005. Em 30 de Setembro de 2005, o MDA publicou a


Instrução Normativa nº 02 para projetos de biodiesel com perspectivas de serem
consolidados como empreendimentos aptos ao selo combustível social (MME).
A produção de biodiesel no país, de acordo com o Programa Nacional,
pretende alcançar autossuficiência energética, além de a produção e o cultivo das
matérias-primas para a fabricação de biodiesel poderem favorecer a inclusão social, na
geração de renda e emprego para a agricultura familiar, principalmente nas regiões
Norte e Nordeste do Brasil (FERREIRA, 2011). Na produção de biodiesel são usadas:
matérias-primas de origem vegetal, como a soja, responsável pela maior parte da
produção, assim como girassol, mamona, dendê e algodão; de origem animal, sebo de
boi, banha de porco, gordura de frango; de origem industrial, ainda com pouca
dimensão no país, o uso de ácidos graxos e borra.
Como no PNPB são usadas várias matérias-primas, o Brasil acredita que não
irá acontecer o mesmo que aconteceu com o Proálcool, que foi a concentração de toda a
produção por um único meio, a cana-de-açúcar. O uso dessa diversidade de matérias dá
mais possibilidade de inclusão dos pequenos agricultores, assim como reduz os
impactos socioambientais. Com o intuito de incluir os pequenos agricultores na cadeia
do biodiesel, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) tem criado polos para a
produção das matérias-primas do biodiesel, para possibilitar que esses agricultores
participem da base da cadeia produtiva de biodiesel do país, facilitando-lhes, assim, o
acesso às políticas públicas de créditos, seguros, capacitação, assistência técnica,
pesquisa e difusão de conhecimento.

3.2. A Demanda Por Energia Limpa e o Potencial do Biocombustível Nacional


Partindo da premissa basilar que assevera a finitude e a pendente escassez dos
combustíveis fósseis no mundo, bem como sua extrema contribuição danosa ao meio
ambiente, a possibilidade de se desenvolverem fontes alternativas a essas substâncias se
torna iminente.
A estrutura de consumo mundial, em relação aos combustíveis, constitui
aspecto primordial para analisar tanto o binômio utilidade-necessidade quanto os
grandes desafios a enfrentar no futuro. Atualmente, na estrutura de consumo, o petróleo
e os demais combustíveis fósseis podem ser considerados o núcleo substancial
evidenciado na matriz energética de consumo primário. De acordo com a Agência
Internacional de Energia (AIE), a Matriz Energética Mundial, em relação aos

298
Direito Agrário Ambiental

combustíveis, se desenvolve a partir da primazia do petróleo, alcançando em 2009 um


consumo 3,3 vezes maior que o consumo de todas as fontes de biomassa, sem projeções
de melhoras satisfatórias nas próximas décadas (REPSOL, 2012).
O consumo exacerbado de petróleo acarreta a insegurança energética mundial.
A dependência desse combustível fóssil gera uma vulnerabilidade em diversos aspectos,
já que o crescimento acelerado da demanda, a instabilidade política em áreas produtoras
e a percepção do esgotamento das reservas são visíveis e de conhecimento geral. Esses
aspectos demonstram-se pelo aumento vertiginoso do consumo de barris por dia no
mundo (MB/d), o qual passou de 2,8 milhões, em 2005, para, estimativamente, mais de
103 milhões em 2015. Ainda nessa seara, a instabilidade política se mostra perceptível a
partir da premissa de que 85% das reservas mundiais se encontram em dez países e,
dentre estes, nove se encontram em turbulências políticas, além da possibilidade de a
produção de petróleo estar perto de atingir o seu valor máximo, como demonstrado no
gráfico abaixo (CNI, 2007, p. 18).
Todavia, em contraponto a todos os avanços decorridos da presença do
petróleo como combustível basilar no cenário mundial, este traz consigo diversos
malefícios à segurança ambiental e, consequentemente, social.
A emissão dos resíduos desse combustível, conhecidos como “gases do efeito
estufa”, nas diversas atividades de geração de energia, asseveram o aumento da
temperatura média da Terra (aquecimento global). Este, consenso na comunidade
mundial, é considerado catastrófico para o planeta como um todo, uma vez que tanto o
relatório Stern sobre o impacto econômico das mudanças climáticas como o relatório do
Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) apresentaram evidências
contundentes sobre esse tema, demonstrando que as reduções nas calotas polares e o
grande impacto visual do furacão Katrina tornam os perigos mais concretos e imediatos
(CNI, 2007, p. 20).
Buscando sair da inércia em que se encontrava e inaugurar uma nova época no
Brasil, em abril de 2011 a Agência Nacional do Petróleo passou a regular e fiscalizar a
produção de etanol, considerando-o um combustível e, dessa forma, dando um passo
importante para a acentuação de sua produção nacional. Nessa seara, o art. 1º da Lei nº
11.097/2005 acresceu o inciso XII à Lei nº 9.478/1997, erigindo a seguinte redação:
“incrementar, em bases econômicas, sociais e ambientais, a participação dos
biocombustíveis na matriz energética nacional.”. Nessa mesma lei modificadora,
alterou-se a antiga denominação da ANP, culminando na chamada Agência Nacional do

299
Direito Agrário Ambiental

Petróleo, Gás natural e Biocombustíveis, a qual assumiu as atribuições de fiscalização


de qualidade e garantia de fornecimento mercantil dos biocombustíveis (ANP, 2012).
Os dois principais biocombustíveis líquidos usados no Brasil são o etanol
extraído de cana-de-açúcar e, em escala crescente, o biodiesel, que é produzido a partir
de óleos vegetais ou de gorduras animais e adicionado ao diesel de petróleo em
proporções variáveis. O país adotou uma política paulatina de adição de biodiesel ao
diesel comum, como meio de inserção do produto no mercado, conforme a Lei
11.097/2005. Dessa maneira, ficou estabelecido um incremento obrigatório do biodiesel
ao diesel de 2%, de 2005 a 2012, e de 5%, a partir de 2013 (RODRIGUES, 2014).
Cerca de 18% dos combustíveis consumidos no Brasil já são renováveis. No resto do
mundo, 86% da energia vêm de fontes energéticas não renováveis (ANP, 2012).
Na motivação do uso dos biocombustíveis, objetivando a redução da emissão
de gases do efeito estufa, percebe-se que as formas sustentáveis mais utilizadas no
Brasil acabarão por competir com outras formas de energia renováveis. Enquanto as
pesquisas acerca do uso de matérias lignocelulósicas (resíduos agroflorestais, madeira
de florestas plantadas e lixo urbano) como matérias-primas ainda são inconclusivas
(ALVES et. al., 2011), o etanol de cana-de-açúcar tem se mostrado a melhor opção em
comparação ao etanol de milho ou de trigo. Já para o biodiesel, a melhor opção advém
do resultado do subproduto do dendê (LEITE; LEAL, 2007).
A cana-de-açúcar será beneficiada com essas tecnologias emergentes, ao passo
que, com a redução do consumo energético nas usinas, o fim das queimadas e o início
do recolhimento da palha, antigamente queimada, a produção de etanol por tonelada de
cana processada poderá crescer em torno de 50% com a produção de etanol dos resíduos
da cana (LEITE; LEAL, 2007). Dessa forma, os antigos 5% (6 milhões em
aproximadamente 200 milhões de hectares agricultáveis) de toda a terra agricultável no
Brasil que são ocupados por canaviais, podem, por outro lado, ter um crescimento
aritmético, enquanto a produção de açúcar e álcool terá um crescimento geométrico
(BAIARD, 2014).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No plano normativo, o Brasil conta com um concerto harmônico de
dispositivos constitucionais que, em conjunto, delineiam um sistema de perfeita
proteção a valores que, pelo menos de início, poderiam parecer excludentes. Mas o
legislador constituinte teve o cuidado de demonstrar, ainda no plano normativo, que é

300
Direito Agrário Ambiental

perfeitamente possível e, mais, necessário que os valores da livre iniciativa, da


liberdade individual, da função social da propriedade, da proteção ao consumidor e aos
bens ambientais coexistam para que o princípio democrático seja realizado na sua
perspectiva substancial.
Assim, é fundamento da República Federativa do Brasil a livre iniciativa, mas
também o é o valor social do trabalho (CF, art. 1°, IV). Igualmente, é fundamento da
ordem econômica a livre iniciativa, mas não menos importante é o valor social do
trabalho humano (CF, art. 170, caput).
Entre os objetivos fundamentais da República constam não apenas a garantia
do desenvolvimento nacional (CF, art. 2°, II), mas também a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 2°, I), com a erradicação da pobreza e da
marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (CF, art. 2°, III). Por
outro lado, a propriedade é um direito individual (CF, art. 5°, XXII), mas
necessariamente funcionalizado (CF, art. 5°, XXIII), e a função social da propriedade
privada encontra, no próprio texto constitucional, seus contornos normativos,
abrangendo o atendimento a requisitos trabalhistas (CF, art. 186, III e IV) e ambientais
(CF, art. 186, II). E não é só. A defesa do meio ambiente, que legitima o próprio
conteúdo do direito de propriedade, é princípio da ordem econômica (CF, art. 170, VI) e
direito fundamental do cidadão, a ser tutelado pelo Poder Público e por toda a
coletividade (CF, art. 225, caput).
Observa-se, portanto, que o sistema normativo é coerente e harmônico ao
conciliar desenvolvimento econômico, proteção dos valores ambientais e equidade
social, vale dizer, a sustentabilidade é uma decorrência da própria interpretação
sistemática da Constituição.
Ocorre que o discurso técnico-jurídico do Estado em muito se afasta das
práticas institucionais, notadamente quanto às políticas de agroenergia, a começar pela
realidade do setor sucroalcooleiro, amplamente subsidiado pelo Estado, em que as
tecnologias avançadas convivem com relações de produção condenadas há séculos pelo
mundo civilizado. O Brasil insiste em manter o modelo de monocultura em latifúndios,
o qual privilegia os grandes produtores, desarticula os pequenos, prejudica a produção
de alimentos e é amplamente condenado do ponto de vista ambiental, porque avança
sobre ecossistemas intocados em todo o país. Isso sem contar que o modelo de relação
trabalhista que se estabelece no setor é tão arcaico que, muitas vezes, desemboca na

301
Direito Agrário Ambiental

escravização dos trabalhadores. Todos os anos o setor lidera o ranking de trabalhadores


escravos libertados pelos grupos móveis do Ministério do Trabalho.
Os paradigmas que, há tempos, aviltam o setor da cana foram reproduzidos na
produção de biocombustíveis. É o que se passa com a soja, também plantada em
grandes propriedades, avançando sobre as regiões de Cerrado e Floresta Amazônica.
Sua chegada às regiões Centro-Oeste e Norte coincide com o aumento dos
desmatamentos dos ecossistemas locais, com o recrudescimento dos conflitos fundiários
e com a libertação de trabalhadores escravos. Tudo com a conivência do Estado, tanto
que entre as diretrizes do Plano Nacional de Agroenergia está a ampliação das áreas
cultivadas no eixo sul-norte, com a extensão do cultivo das áreas do sul-sudeste para as
áreas ainda não exploradas, o que exige, necessariamente, a derrubada das vegetações
nativas.
Produzir agrocombustíveis não é difícil para um país como o Brasil, que dispõe
de vastas extensões de terras férteis, água doce em abundância, clima favorável com
radiação solar praticamente o ano todo. O desafio é a produção de acordo com um
modelo includente, em que o desenvolvimento seja para todos, o que implica a
superação da lógica economicista que tem prevalecido no setor. Não há dúvida,
portanto, de que o Brasil reúne condições para tanto e pretende ser líder mundial na
produção de biocombustíveis, mas precisa-se saber quem vai ganhar com isso.

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Direito Agrário Ambiental

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304
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XVI – A EXPLORAÇÃO MINERAL E SUA FUNÇÃO AGRÁRIA


Bruna Denise Gosson Barbosa
Daniel Macedo Soares
Francisco Lúcio de Assis Neto
João Arthur Brito da Cruz
Marcela Moysés Poletti
Marcella Ribeiro d’Avila Lins Torres

INTRODUÇÃO
A exploração mineral, enquanto vetor do crescimento econômico e afluente da
ideia precípua de desenvolvimento historicamente construída, foi marcada de forma
sintomática pelo modelo desenvolvimentista adotado no Brasil no decorrer do século
XX: inexistiam ferramentas de controle e fiscalização, bem como não havia parâmetros
mínimos de proteção ambiental. A atuação do Estado ainda não percebia a
sustentabilidade como característica inerente ao processo de desenvolvimento e, nesse
contexto de omissões e desinteresses, a exploração mineral tem como marco normativo
a Carta Política de 1988.
O presente trabalho abrange a análise da plataforma jurídica e política na qual
se pratica a exploração mineral, enquanto atividade econômica, com inegáveis
implicações no sistema agrário. A necessidade de viabilização de sistemas sustentáveis
foi um dos elementos que modificou o cerne da atuação do Estado na intervenção na
ordem econômica, incluindo-se, nessa perspectiva, a atividade supra.
A Constituição Federal inaugurou um novo modelo, com preocupações
ambientais que geraram, ainda em 1989, a alteração do Código de Minas, impondo
requisitos mais rígidos e mudando a sistemática da atividade aduzida. Nesse sentido,
incumbe à União, enquanto titular, proceder à respectiva autorização ambiental para que
possam ser desenvolvidas lavras ou pesquisas.
A partir de análise crítica do instituto da desapropriação, especificamente nos
casos em que ocorre por interesse social, tenta-se estabelecer comparações e visualizar a
transversalidade entre a temática da reforma agrária, baseada na necessidade de criação
de um sistema agrário equânime, e a exploração mineral, enquanto elemento propulsor
do crescimento econômico. Aponta-se para a ambivalência claramente existente entre o
interesse social ligado ao crescimento econômico e as preocupações advindas das
premissas do desenvolvimento sustentável e humano.

305
Direito Agrário Ambiental

Na minúcia das fragilidades encontradas na base jurídica e política na qual se


funda a extração de minérios, elucida-se a incapacidade do Poder Público em reter os
efeitos calamitosos da mencionada atividade econômica ante a estrutura agrária e
econômica. As consequências ambientais dessa prática são fruto, em parte, da
inexistência de aparelhos estatais eficientes de fiscalização.
Nesses termos, propõe-se cruzar as vantagens e desvantagens da mineração,
descortinando as consequências geradas, por vezes em contraposição às diversidades
biológicas e sociais locais, colocando o crescimento econômico em oposição ao
potencial emancipatório indicado pela ordem constitucional vigente.

2. A EXPLORAÇÃO MINERAL NO BRASIL


A exploração mineral é uma atividade de grande importância para a
manutenção do nível de vida e o avanço das sociedades modernas por todo o mundo.
Desde os tempos da colonização, o Brasil se utiliza desse tipo de exploração
como um dos setores de maior destaque na economia, sendo responsável, atualmente,
por 3 a 5% do Produto Interno Bruto. Destarte, a importância da mineração é tamanha
que gera consequências não só de natureza econômica, como em diversos campos,
especialmente no agrário.
Faz-se necessário para o norte deste trabalho, antes de adentrar na função
agrária da exploração mineral, buscar entender alguns pontos acerca desta última, como
seu conceito e etapas, previsão legal, como pode ser praticada e quais os seus limites,
além de identificar os sujeitos da exploração. Todos esses tópicos estarão presentes
neste capítulo.

2.1. Conceito e Etapas da Exploração Mineral


A exploração mineral pode ser considerada como uma atividade de alto risco
que envolve grandes recursos dirigidos exclusivamente para o descobrimento de
depósitos minerais, incluídos o petróleo, o gás natural e até a água, possuindo etapas
essenciais para que se consolide.
A primeira dessas etapas é a pesquisa, quando se localiza o minério a ser
explorado. Essa fase possui grande importância para o entendimento deste trabalho, pois
é aqui que se define qual terreno será utilizado para a exploração, de modo que tal fase
introdutória marca, de fato, a função agrária da mineração.

306
Direito Agrário Ambiental

Em um segundo momento, tem-se a prospecção para determinar a extensão e o


valor do minério localizado. Logo depois, é necessário fazer-se a estimativa dos
recursos em termos de extensão e teor do depósito.
Numa quarta fase, precisa haver um planejamento para avaliação da parte do
depósito economicamente extraível. Mais tarde, faz-se um estudo de viabilidade para
avaliação global do projeto e tomada da decisão entre iniciar ou abandonar a exploração
do depósito.
Depois dessas fases mencionadas, devem-se desenvolver formas de
acessibilidade ao depósito que se vai explorar. Finalmente, tem-se, então, a exploração
com o intuito de extração do minério em grande escala. Os estágios se concluem com a
recuperação da zona afetada pela exploração para que possa voltar a ser utilizada.
É necessário entender que, para se completar todo o processo da exploração
mineral, são necessários anos, às vezes décadas, de forma que se conclui que a
mineração é uma atividade que demanda um elevado estudo da área a ser explorada, e
um cuidado gigantesco para adquirir o minério.
Sabe-se que o Brasil é cheio de minérios raros, de forma que a mineração é
vista com bons olhos pelo Estado. Como já se abordou, a exploração mineral não gera
consequências apenas econômicas, mas em diversos outros setores, como o agrário.
Diante desse fato, e reconhecendo as inúmeras vertentes da exploração mineral, é que o
poder legislativo sentiu a necessidade de prever tal atividade em normas legais que
serão estudadas no tópico a seguir.

2.2. As Principais Previsões Legais para a Exploração Mineral


Quando se fala em legislação sobre exploração mineral, deve-se atentar à
Constituição Federal de 1988 e ao Código de Mineração, mas também ao Regulamento
do Código de Mineração de 1968 e à Lei 7.805 de 1989.
A Constituição Federal de 1988 trouxe grande evolução ao regime legal quanto
à exploração dos bens minerais. É que a CRFB adotou o regime dominial de
exploração, atingindo quer as substâncias existentes no subsolo, quer as que se
encontram no solo, fazendo-o agora em favor da União e da sua exclusividade no que
tange à competência de legislar sobre a matéria.
A Carta Magna de 1988 reconhece a necessidade extrema de proteção
ambiental na atividade mineração, preocupada com os efeitos danosos que pode causar
à própria sociedade, de modo que trouxe no § 2º do seu artigo 225: “aquele que explorar

307
Direito Agrário Ambiental

recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com
a solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei”.
Antes da Constituição de 1988, as atividades nesse setor eram quase que
totalmente desenvolvidas, em relação ao meio ambiente, despojadas de efetivos
controles, respeitos e proteções, bem como de recuperação das degradações, com a
desculpa da condição de “utilidade pública” no aproveitamento industrial (extração e
beneficiamento) das substâncias minerais.
O Código de Minas, por sua vez, já se modelou às atuais situações da atividade
mineradora inúmeras vezes. O referido código regula: os direitos sobre as massas
individualizadas de substâncias minerais ou fósseis, encontradas na superfície ou no
interior da terra formando os recursos minerais do País; o regime de seu
aproveitamento; e a fiscalização, pelo Governo Federal, da pesquisa, da lavra e de
outros aspectos da indústria mineral, conforme leitura do seu art. 3º.
O Código de Minas foi alterado pela Lei 7.805, de 1989, para criar o regime de
permissão de lavra garimpeira, extinguir o regime de matrícula, e dar outras
providências. Os principais artigos dessa lei federal são os arts. 16, 17 e 18. Veja-se:

Art. 16. A concessão de lavras depende de prévio licenciamento do


órgão ambiental competente.
Art. 17. A realização de trabalhos de pesquisa e lavra em áreas de
conservação dependerá de prévia autorização do órgão ambiental que as
administre.
Art. 18. Os trabalhos de pesquisa ou lavra que causarem danos ao
meio ambiente são passíveis de suspensão temporária ou definitiva, de
acordo com parecer do órgão ambiental competente.

A leitura desses artigos permite comprovar que a exploração da atividade


mineral requer um cuidado minucioso, exatamente pelo fato de ter que lidar com
questões agrárias e também ambientais. Por isso mesmo é necessário saber como pode
ser praticada essa atividade, quais são os seus limites e quem pode explorar.

2.3 A Prática, Limites e Reserva da Exploração Mineral


A CRFB de 1988 estabeleceu que os recursos minerais, incluindo os do
subsolo, são de titularidade da União, nos termos do seu art. 20, IX. Dessa forma, a
atividade de mineração feita por particulares depende de expressa autorização da União,
através da autarquia federal competente – Departamento Nacional de Produção Mineral
– DNPM. Depois da tramitação de processo administrativo específico e mediante o

308
Direito Agrário Ambiental

devido preenchimento dos requisitos legais pelo interessado, a autarquia federal


outorgará o título autorizativo, condicionado ao licenciamento ambiental, permitindo a
realização de pesquisa ou lavra na área indicada pelo minerador.
Dentre os regimes de exploração mineral, dá-se destaque ao regime de
autorização para pesquisa e de concessão da portaria de lavra, sendo que o primeiro é
pressuposto e condição essencial para que se inicie o segundo.
A legislação brasileira em vigor não oferece entraves à aquisição de parte das
reservas minerais por grupos privados ou estatais, brasileiros ou estrangeiros. Apesar de
a Constituição dispor que jazidas minerais são propriedades da União, a exploração
pode ser feita por qualquer empresa, mediante autorização e consequente concessão do
governo.
Quem desejar realizar a exploração mineral no Brasil deve obedecer a alguns
requisitos e procedimentos que se resumem em realizar a pesquisa e, finalmente, a
exploração.
Para obter o Alvará de Autorização de Pesquisa, necessita-se realizar um
requerimento junto ao DNPM, dirigido ao Diretor Geral, contendo os dados pessoais da
pessoa física ou jurídica, a prova de recolhimento dos emolumentos, a designação das
substâncias a serem pesquisadas, a extensão superficial da área onde se realizará a
pesquisa, a indicação de fonte de recursos, dentre outros.
É indispensável frisar, como bem lembra Lidiane Bahiense Guio1, que o
requerimento apenas poderá incidir sobre área que esteja livre e desonerada, ou seja,
sem que haja incidência de direitos minerários de terceiros, sob pena de indeferimento –
art. 17 do Regulamento do Código de Mineração.
Depois de instaurado o processo administrativo, cumprindo os requisitos do art.
16 do Código de Mineração, será outorgado o Alvará de Autorização de Pesquisa
Mineral, começando assim os trabalhos de pesquisa, que poderão incluir a extração da
substância pesquisada antes mesmo da outorga da concessão de lavra, conforme prevê o
art. 22, §2º do Código de Mineração.
Depois da pesquisa, o minerador deve apresentar o Relatório Final de Pesquisa,
que será analisado pela autarquia federal competente, podendo ser aprovado, negado,
arquivado, como manda o art. 30 do Código de Mineração.

1
GUIO, Lidiane Bahiense. Comentários aos regimes de autorização e concessão da exploração mineral.
2012. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em 05 de Ago. 2014.

309
Direito Agrário Ambiental

Apresentado o relatório final, os técnicos do DNPM realizam uma vistoria no


local da pesquisa. Ao final, é elaborado um parecer a ser enviado à sede da DNPM, em
Brasília, para formalizar a aprovação e a publicação no D.O.U.
Posteriormente, abre-se um prazo de 12 (doze) meses, a contar dessa data, para
que o interessado apresente o Requerimento de Concessão de Lavra, sob pena de
caducidade de tal direito e de declaração de disponibilidade da jazida pesquisada para
requerimento por qualquer interessado.
A apresentação do requerimento da concessão de lavra constitui termo final do
regime de autorização, inaugurando, automaticamente, o regime de concessão de lavra,
que depende de portaria do Ministro de Minas e Energia – Portaria de Lavra, garantindo
ao requerente a plena exploração da atividade mineral.

3. ATIVIDADE DE MINERAÇÃO X ASSENTAMENTO PARA FINS DE


REFORMA AGRÁRIA
Diante da contextualização da exploração mineral no Brasil e dos limites
estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, faz-se necessário construir um paralelo
com a reforma agrária e a consequente desapropriação por interesse social, ponderando
a urgência de uma reforma agrária eficaz, mas que corrobore os benefícios econômicos
e sociais decorrentes da atividade mineral no cenário brasileiro.
Cumpre esclarecer que a reforma agrária, como conceito geral, é o sistema que
regula e promove a distribuição fundiária justa, na busca de garantir às pessoas que não
têm onde morar e produzir uma parte da terra dos latifúndios. Atualmente, a Reforma
Agrária, no Brasil, configura-se através da compra ou desapropriação pela União de
latifúndios particulares considerados improdutivos em diversas áreas da federação, a
qual, através do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), loteia e
distribui essas terras às famílias que estão em situação de vulnerabilidade em razão de
não terem onde morar, proporcionando-lhes ainda uma assistência financeira, de
consultoria e de insumos para que possam produzir nessas terras.
Entretanto, depara-se com uma lentidão no processo de assentamento das
famílias nas terras, justificada por inúmeros motivos, dentre eles, o elevado tempo de
uma cultura pró-latifundiários, em que os coronéis, até a década de 50, detinham essas
propriedades e não permitiam qualquer distribuição da terra, sendo ela produtiva ou
não; por outro lado, o Estado, com seu silêncio, em virtude da própria conjuntura
política da época, compactuava com o coronelismo, abstendo-se de propor projetos

310
Direito Agrário Ambiental

capazes de democratizar a distribuição de terras às famílias menos favorecidas


economicamente.
A reforma agrária encontra barreiras, ainda, na falta de uma normatização
específica e clara, e em um judiciário com preconceitos com os “sem terras”,
dificultando a judicialização do direito à terra. Além disso, outro entrave é o elevado
custo de manutenção das famílias que são alocadas nas terras desapropriadas, visto que
não basta fornecer a terra, é necessário também fornecer adubos, sementes, máquinas e
demais materiais próprios para possibilitar ao novo proprietário da terra torná-la
produtiva e adequada para cumprir a função social da propriedade.
Mesmo caminhando a passos lentos, o processo de reforma agrária mostra-se
essencial para o desenvolvimento do país, proporcionando uma isonomia formal entre
os cidadãos e uma diminuição das desigualdades sociais, o aumento da produção
agrícola, um processo democrático eficaz, etc.
Se uma área de mineração, com grandes benefícios econômicos e sociais,
coincidir com a área destina à desapropriação no âmbito da reforma agrária, qual
interesse prevalece? Diante dessa possível incompatibilidade de interesses, faz-se
necessário construir um panorama jurídico em relação à atividade de mineração e ao
assentamento para fins de reforma agrária
Conforme se extrai do texto constitucional, a exploração mineral e a reforma
agrária são atividades contidas em dispositivos da Constituição Federal (arts 176, 184 e
185), demonstrando a importância de ambos os temas diante do ordenamento brasileiro;
o patamar constitucional atribuído corrobora esse entendimento ao estabelecer que a
competência legislativa para dispor sobre ambos os temas é exclusiva da União,
conforme estabelece o artigo 22, incisos I e XII da CF/88.
É nesse sentido que se verifica que a Constituição Federal de 1988 em nenhum
dos dispositivos acerca dos dois temas coloca a reforma agrária em patamar superior ou
de maior importância em comparação com a exploração mineral. Ressalte-se que o
contrário também não é constatado, de forma que se conclui pela equiparação formal
dos dois institutos em comento, diante do ordenamento jurídico brasileiro.
É importante frisar que a natureza do assentamento, para fins de reforma
agrária, passa pela ideia de desapropriação de terra não produtiva, corroborando com
esse entendimento o art.185, inciso II, da CF/88, que diz: “são insuscetíveis de
desapropriação para fins de reforma agrária: II - a propriedade produtiva”.

311
Direito Agrário Ambiental

Entende-se por propriedade produtiva toda propriedade rural que gera


resultados satisfatórios com base na ideia da efetivação da função social da propriedade.
O conceito de propriedade produtiva está intimamente ligado à ideia de função social da
propriedade (arts. 5, XXIII; 170; 182, § 2º e 186, caput da Constituição Federal de
1988), visto que atender à função social da propriedade é otimizar o seu uso, de sorte
que não possa ser utilizada em detrimento do desenvolvimento, do progresso e da
satisfação da comunidade, retirando o caráter exclusivamente privado da propriedade.

O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele,
pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que
lhe é inerente (CF, art5, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera
patrimonial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as
formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O
acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e
adequado ao imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais
disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de
realização da função social da propriedade. 3

Assim, uma propriedade que não estiver desempenhando a sua função social
deverá ser desapropriada, “mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida
agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte
anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei”4.
O primeiro requisito para a terra ser considerada produtiva é o Grau de
Eficiência de Exploração (GEE), que, de acordo com a tabela do INCRA, deve ser de
100% ou mais, não atingindo esse patamar, não há produtividade. Para ser produtiva, é
necessário que a área não esteja dentre as hipóteses do art. 10 da Lei 8629/93:

Art. 10. Para efeito do que dispõe esta Lei, consideram-se não aproveitáveis:
I - as áreas ocupadas por construções e instalações, excetuadas aquelas
destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de
reprodução e criação de peixes e outros semelhantes; II - as áreas
comprovadamente imprestáveis para qualquer tipo de exploração agrícola,
pecuária, florestal ou extrativa vegetal; III - as áreas sob efetiva exploração
mineral; IV - as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas
protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à
preservação do meio ambiente. [GRIFO NOSSO]3STF, ADIn 2.213-MC,
Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23-4-2004. 4BRASIL, Constituição Federal,
1988, art 184, caput.

Assim, observa-se que a atividade minerária não pode ser restringida por
projetos de reforma agrária, visto que não se vislumbra terra não produtiva, uma vez que
a propriedade que explora a atividade mineral atende à função social da propriedade.
Corroborando esse posicionamento, considera-se o disposto no artigo 10, III, da
Lei8629/93, que veda o assentamento de terras sob efetiva exploração mineral.

312
Direito Agrário Ambiental

Entretanto, não se pode generalizar, é preciso analisar a necessidade de disponibilização


de terras para fins de reforma agrária, bem como qual a atividade mineral que está sendo
exercida naquela terra e se está gerando benefícios econômicos e sociais.
Verifica-se, pois, a necessidade de estudo para averiguar a possível
compatibilidade de desenvolvimento conjunto das duas atividades; em caso de
incompatibilidade de atividades, deverá ser construído, caso a caso, entendimento entre
as autarquias competentes, DNPM e INCRA, sobre qual das atividades
constitucionalmente previstas deverá prevalecer, tendo em vista o atual contexto
sociopolítico do Estado.
Dessa forma, as autoridades administrativas, comparando as duas atividades,
devem buscar o desenvolvimento em conjunto, ou, em caso de total incompatibilidade,
qual deve ser priorizada em busca do melhor desenvolvimento, na perspectiva social e
econômica.
Muito é debatido acerca da primazia da reforma agrária em detrimento de
outras atividades, entretanto o próprio legislador não atesta que a materialização da
reforma agrária constituiu atividade que está a superar a utilidade da exploração
minerária, até porque ambas as atividades estão dispostas no texto constitucional,
demonstrando a relevância de ambos os assuntos; tampouco se pode observar o
fenômeno apenas sob uma perspectiva.
Conforme informação da PFE INCRA nº 138/2008, o entendimento prevalente
entre os operadores do direito é que deverá prevalecer a exploração, isso, é claro, se não
for possível compatibilizar o uso do solo e do subsolo, assegurando ao minerador, em
caso de desapropriação, indenização pelos lucros que deixou de perceber. Já consoante a
jurisprudência dominante, está consolidado que a atividade minerária deverá se
sobrepor à desapropriação para fins de reforma agrária, em face, principalmente, da
rigidez locacional, que impossibilita seja a exploração mineral deslocada para outra
região, problema que já não acontece com o assentamento de beneficiários da reforma
agrária, pois existem terras férteis nas mais diferentes regiões do país.
Por todo o exposto, tem-se que o Estado brasileiro necessita com urgência da
reforma agrária prometida desde o advento da Constituição Federal de 1988, entretanto,
no caso específico da atividade mineral, a extração de minérios tem importância social e
econômica para o país. Nessa linha de raciocínio, os órgãos administrativos
responsáveis devem atuar no sentido de garantir o assentamento para fins de reforma
agrária, protegendo as terras que têm potencial mineral e, no caso de impossibilidade de

313
Direito Agrário Ambiental

atuação conjunta, de acordo com as peculiaridades do caso concreto, analisar qual


atividade merece ser priorizada.

4. PROBLEMA AGRÁRIO, DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
De acordo com a Constituição Federal, em seu artigo 3º, II, “garantir o
desenvolvimento nacional” é um dos objetivos da República Federativa do Brasil. Tal
dispositivo revela que o legislador constituinte reconhece a realidade social e econômica
do nosso país e a necessidade latente de o Estado exercer o seu papel conduzindo um
processo que tenha como fim o bem-estar e a justiça social.
Para que o dispositivo constitucional seja entendido de forma plena, é preciso
fazer uma análise das Constituições anteriores à de 1988. Segundo José Afonso da
Silva, o desenvolvimento nacional, nas Constituições de 1967 e 1969, “ligava-se à
ordem econômica, o que dava uma visão estreita do desenvolvimento como
desenvolvimento econômico”. Na Constituição de 1988, quando passou a integrar os
objetivos da República, houve uma ampliação na interpretação da expressão,
abrangendo inclusive o viés social e ambiental, conforme se observa no artigo 21, IX,
do diploma constitucional. Resta, portanto, comprovado que as políticas estatais que
tenham cunho desenvolvimentista não poderão ter como fim único melhorias
econômicas, visto que o texto constitucional tentou evitar que a expressão
desenvolvimento fosse somente associada ao crescimento econômico e a
modernizações.
O Superior Tribunal Federal, inclusive, em diversos julgados corrobora o
raciocínio acima exposto, entre os quais se destaca o que pôs fim à discussão a cerca das
demarcações da terra indígena Raposa Serra do Sol, quando foi exposto o seguinte
entendimento:

Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é


subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas
tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus
territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou
contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo
tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo
fundamental do inciso II do art. 3º da CF, assecuratório de um tipo de
“desenvolvimento nacional” tão ecologicamente equilibrado quanto
humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade
indígena.9

314
Direito Agrário Ambiental

A utilização e a exploração de recursos minerais contribuem para o


desenvolvimento de determinado local, uma vez que os minerais são utilizados como
matéria-prima para o setor industrial, para o setor de construção civil e também podem
ser aproveitados como fontes de energia.
Entretanto, a atividade de extração mineral pode desencadear uma série de
problemas socioeconômicos, prejudicando a natureza e a qualidade de vida da
população que vive onde se desenvolve tal atividade.

4.1. Desenvolvimento Sustentável e Mineração


A extração mineral é tida como uma das grandes responsáveis pelos impactos
gerados ao meio ambiente, em decorrência de problemáticas tais como: alteração da
qualidade das águas; degradação visual; transtornos gerados à população que habita as
localidades próximas ao projeto minerário e a saúde das pessoas envolvidas com o
empreendimento.
Nesse sentido, aquele que explorar os recursos minerais fica obrigado a
recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo
órgão público competente. Esse dispositivo mostra claramente a preocupação do
legislador constituinte com o fato de a atividade mineradora ser, essencialmente, uma
atividade que provoca enormes impactos no meio ambiente e, portanto, deve submeter-
se a um rigoroso controle para diminuir os efeitos negativos gerados por ela.
A Constituição se posiciona no sentido de que é permitida a mineração, desde
que esta seja realizada de maneira sustentável. Somente duas restrições à atividade
minerária são encontradas no texto infraconstitucional e constitucional: a) proibição de
a mineração ser desenvolvida em áreas de preservação permanente – artigo 7º da Lei
9.985/2000; b) proibição de a mineração ser desenvolvida em áreas indígenas sem
autorização do Congresso Nacional e sem que as comunidades indígenas sejam
consultadas - §3º do artigo 231 da CF. No entanto, mesmo quando não há restrições à
atividade minerária, ela está condicionada à realização de um Estudo Prévio de Impacto
Ambiental – EPIA, conforme exigência contida no inciso IV do §1º do artigo 225 da
Constituição Federal de 1988, segundo o qual caberá ao Poder Público exigir, na forma
da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa
degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se deve dar
publicidade.

315
Direito Agrário Ambiental

Em relação ainda à proteção do meio ambiente, em se tratando da legislação


infraconstitucional, o Código de Minas11, nos incisos XI e XII do caput do seu artigo
47, previu que o titular da concessão, além das condições gerais previstas na lei, sob
pena de se sujeitar às sanções estabelecidas nos artigos 63 a 69 do referido Código, deve
evitar a poluição da água e do ar, que possa resultar dos trabalhos de mineração, bem
como proteger e conservar as fontes, e utilizar as águas segundo os preceitos técnicos
quando se tratar de lavra de jazidas da Classe VIII.
Nesse cenário, a norma contida no §2º do artigo 225 da Constituição Federal,
serve como um verdadeiro caminho a ser percorrido pelas autoridades governamentais e
pela sociedade, com o fim único de estabelecer a melhor forma de se fazer a exploração
mineral, com vistas ao desenvolvimento sustentável.
Contudo, o que se denota realmente é que as normas ambientais que regulam as
atividades de mineração não impedem as modificações causadas à natureza, de caráter
irreversível, inerentes ao processo de extração mineral.
Dentre os problemas causados pela mineração estão: a poluição hídrica, do solo
e sonora; a utilização de produtos químicos que contaminam o solo, alterando suas
propriedades; as chuvas que arrastam esses produtos químicos para os rios, os quais
também se contaminam, etc. É importante destacar que em todas as etapas da extração
mineral (pesquisa, lavra, beneficiamento, infraestrutura, etc.) é consumido um grande
volume de água, sendo esse um aspecto preocupante, pois a água é um bem essencial
para a manutenção da vida na Terra e deve ter seu consumo racionalizado, garantindo-a,
assim, em quantidade e qualidade para as outras gerações. Além disso, muitas vezes,
depois de exploradas, algumas áreas são simplesmente abandonadas sem a observância
do cumprimento das normas ambientais.
Porém esses não são os únicos problemas causados pela atividade de
mineração. Além das implicações ambientais, como a devastação ecológica da flora e da
fauna nas regiões de garimpo, a contaminação por mercúrio e a poluição dos rios, outras
implicações merecem destaque, tais como: as condições subumanas em que vivem os
trabalhadores, a destruição dos povos indígenas e o contrabando de minério.
O ambiente de trabalho nas minas promove o desenvolvimento de problemas
respiratórios (asma, bronquite, entre outros), já que os mineiros ficam expostos aos
resíduos oriundos da mineração, tais como pó do carvão, poeira de monóxido de ferro,
amianto, mercúrio, etc.

316
Direito Agrário Ambiental

Já o remanejamento de comunidades para a realização das atividades mineiras


constrói um cenário de caos, em que inúmeras famílias são obrigadas a mudar de
moradia para que uma determinada região possa ser explorada:

A chegada de uma mineradora a uma região próxima a um quilombo nos


arredores da cidade de Goiânia (GO) mudou a rotina dos moradores. Eles
sonharam com empregos, mas poucos se concretizaram. A disputa pela terra
se acirrou, o espaço para plantar diminuiu. O jeito passou a ser comprar
comida. Os modos de vida se alteraram, as relações foram atropeladas. 15

Como resultado desse processo, as comunidades vivem uma nova situação de


tragédia: na busca pela troca de alimentos, algumas famílias chegam a oferecer suas
próprias filhas aos operários da mineração, tornando a realidade da prostituição infantil
presente em comunidades quilombolas, por exemplo.
Essa situação se agrava cada vez mais, e os inúmeros casos se perdem em meio
aos demais que se multiplicam por todo o Brasil, tornando-se, muitas vezes, invisíveis
diante da euforia das estatísticas que mostram reduções nos índices gerais de fome, em
nível nacional, em detrimento da triste realidade de algumas comunidades, em nível
regional.
A exploração da atividade de mineração é vista como uma fonte potencial de
acumulação de riquezas e, por isso, atrai o investimento de grandes empresas para sua
exploração. As grandes empresas, por sua vez, constituem verdadeiros monopólios ou
oligarquias nas atividades de mineração e concentração de terras, agravando ainda mais
os problemas sociais advindos da prática de tal atividade.
As comunidades indígenas ilustram bem essa situação, pois um grande número
de riquezas minerais são encontradas em áreas indígenas e, em muitas regiões, os índios
acabam perdendo suas terras, são violentados em sua cultura e vivem em situações de
calamidade, problemas estes somados à inércia do Estado ante tais questões.

Na Terra Indígena Governador, no município de Amarantes, a 700 km da


capital maranhense, o problema da fome está associado ao conflito com
latifundiários do agronegócio e, consequentemente, à dificuldade de acesso à
terra. Como o Brasil nunca consolidou uma reforma agrária de fato, há
muitas comunidades abandonadas pela ausência de garantia do território pelo
Estado.16

Sem uma devida regularização de terras por parte do Estado, é como se este
simplesmente deixasse que as disputas continuassem, embora esteja claro que apenas os
pequenos continuarão perdendo. No caso dos índios, muitos hoje se encontram à beira

317
Direito Agrário Ambiental

das estradas, sem ter um local próprio para plantar e sem recursos nem mesmo para
comprar.
A lavra de riquezas minerais existentes em terras indígenas somente deveria
ocorrer, legalmente, após autorização do Congresso Nacional e oitiva das comunidades
afetadas, devendo ser assegurada a participação dos indígenas nos resultados da lavra,
sempre na forma disposta em lei.17
Ocorre que ainda não foi editada a necessária regulamentação que visa
disciplinar a participação das comunidades indígenas afetadas no resultado da lavra. Em
decorrência dessa falta de regulamentação, não se podem outorgar títulos minerários em
terras indígenas, pois falta a autorização, que é o pressuposto de sua validade.
Assim, a disputa pelas terras indígenas e seus recursos minerais é algo que
necessita de regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro. Como ainda não existe
qualquer norma regulamentando o assunto, qualquer tentativa de exploração de recursos
nessas áreas, seja por empresas de mineração ou garimpo, é inconstitucional; ilegal e,
como conseqüência, crime.
É necessária a regulamentação da lei de mineração em terras indígenas, mas
que a mesma seja adequada ao País, aos índios, ao meio ambiente e a toda a
biodiversidade e sociodiversidade existentes.
Recentemente, em meados do mês de junho do ano de 2013, a Presidente
Dilma Roussef enviou ao Congresso Nacional projeto para o novo marco regulatório da
mineração: o Projeto de Lei n° 5.807, de 2013, que, se aprovado, substituirá o atual
Código de Mineração, o Decreto-Lei n° 227, de 28 de fevereiro de 1967.
Em suas declarações, Dilma afirmou que o objetivo do projeto de lei é criar um
marco legal favorável aos negócios e investimentos produtivos, fortalecendo um novo
ciclo de desenvolvimento no Brasil, mas tudo isso aliado a novos ganhos para a
sociedade, para os trabalhadores e para o meio ambiente.
A ideia principal se assemelha àquela aplicada ao setor de petróleo. A proposta
contém inovações institucionais, como a criação do Conselho Nacional de Política
Mineral, órgão consultivo de caráter estratégico, e a Agência Nacional de Mineração,
agência reguladora do setor mineral, bem como mudanças regulatórias: a substituição
do regime de prioridade por um sistema de certames públicos para a outorga de títulos
minerários; e o aumento dos royalties incidentes sobre os minérios.
Esse projeto vem sendo amplamente criticado por aqueles que defendem os
interesses das grandes empresas de exploração mineral, já que visa aumentar a

318
Direito Agrário Ambiental

participação estatal nas receitas em detrimento do lucro privado, além de prejudicar a


pesquisa de novas áreas passíveis de exploração que ficarão supostamente prejudicadas
pela mudança radical proposta para o sistema de outorga de títulos minerários.
Assim, embora o Governo Federal apresente o projeto de lei como um
instrumento capaz de atrair novos investimentos e garantir o crescimento da mineração,
o excessivo intervencionismo estatal da proposta não é adequado ao moderno setor
mineral e, em muitos aspectos, representa um retrocesso em relação ao atual Código de
Mineração.
Dessa maneira, o que parece ser real é que o projeto de lei preocupa-se mais
em versar sobre essas mudanças na regulação e concessão de pesquisa de novas áreas,
bem como sobre a participação estatal nas receitas de produção da atividade de
mineração, mas pouco ou nada fala sobre a resolução das questões ambientais e sociais
advindas da exploração dos recursos minerais.
Portanto, o projeto de lei apresentado deixa a desejar na proteção ambiental e
social, que são tão necessárias às comunidades afetadas pela atividade de exploração
mineral, já que a principal motivação para a alteração da legislação minerária proposta,
sem dúvida, é de ordem econômica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da confluência existente entre crescimento econômico e
desenvolvimento sustentável, faz-se necessária a reflexão acerca dos impactos causados
pela extração mineral sobre o meio ambiente, a partir de franco desrespeito às
diversidades biológicas e sociais. Essa conclusão revela a fragilidade do sistema
protetivo e, notadamente, a dificuldade em reconhecer as conotações jurídicas das
relações entre o homem e o meio ambiente.
O Brasil tem como matriz de seu processo de desenvolvimento o
desenvolvimentismo inaugurado na Era Vargas e esgotado ao fim do regime militar, que
propunha expandir as atividades econômicas, gerando o acúmulo da dívida social.
Nesse contexto, verificam-se processos históricos que denunciam a fragilidade da
plataforma política sobre a qual atuam os agentes de mercado em atividades como a
mineração: inexistem mecanismos de controle e fiscalização. As nuances absorvidas
pela Carta Política de 1988 deflagraram no âmbito interno, debate ainda inconcluso a
respeito da conciliação entre os vetores à ordem econômica e da proteção ambiental.

319
Direito Agrário Ambiental

No entanto, o rigor no controle proposto pelo constituinte esbarra na


incapacidade institucional para prover soluções que minimizem os efeitos degradantes
da extração de minérios sobre as águas, sobre as populações locais, que são
invariavelmente violadas culturalmente, e sobre o meio ambiente como um todo. Essa
transgressão, que ainda se legitima nas contribuições dadas por essa atividade ao
crescimento econômico, não considera os efeitos causados pela negligencia estatal no
que tange a problemáticas como: i) concentração de terras e riquezas; ii) proteção das
culturais locais; iii) garantia de um meio ambiente sadio.
O desafio de preservar o pleno funcionamento da ordem econômica sem ser
galgada na livre iniciativa, articulando os ditames da proteção ambiental e da lógica de
mercado, corrobora o debate de novas possibilidades em torno dos processos de
extração mineral. A percepção de uma atividade econômica ambientalmente correta,
que minimize os efeitos sobre a fauna, a flora, as águas e as culturas locais, não pode ser
tratada como ficção constitucional. Exige-se, assim, um arranjo, a ser constituído no
âmbito do Poder Público, a quem se reclama a condição de garantir, para que haja um
efetivo controle sobre práticas predatórias, incompatíveis com os valores
constitucionalmente assegurados.
É evidente, pois, a transversalidade entre a temática abordada e o sistema
agrário vigente, especialmente em dois pontos sensíveis, que são: i) implicações sociais
geradas sobre a estrutura deficitária de distribuição de terras; ii) consequências impostas
aos ecossistemas pela prática calamitosa e irregular da mineração. Os prejuízos gerados
pela falta de controle efetivo, apto a suprimir os efeitos supracitados, são incalculáveis e
materializam afronta à lógica constitucionalmente imposta de respeito às diversidades
culturais, sociais e biológicas que devem engendrar um sistema econômico que sirva à
lógica de mercado e se curve diante do necessário resgate da dívida social que se
agiganta num contexto de ausência estatal.

REFERÊNCIAS
AMBIENTE Gestão. Mineração e degradação de áreas. Disponível em:
<http://ambientes.ambientebrasil.com.br/gestao/areas_degradadas/atividades_de_minera
cao.html>. Acesso em: 5 ago. 2014.
BÔAS, Hariessa Cristina Villas. Mineração em Terras Indigenas: A invisibilidade
do direito à consulta prévia como um processo e a visibilidade ao flagrante
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320
Direito Agrário Ambiental

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STF. Pet 3388 RR, Rel. Min. Ayres Brito, DJ de 3-2-2014.

321
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XVII – EVOLUÇÃO DOS TRANSGÊNICOS EM BENEFÍCIO AO


DIREITO AGRÁRIO NA AGROINDÚSTRIA

Julianna Angélica Wanderley1


Nuhara Viana Assis Nóbrega2
Paulo Vinícius3
Renata Monteiro4
Rodrigo Nóbrega de Souza5
Simone Karla6
Thaise Ribeiro7

INTRODUÇÃO
A evolução constante do mundo atual obriga o direito a evoluir, adaptando-se
para cercear novos problemas que surgem a galope. A tecnologia de manipulação
genética usa do apelo econômico advindo da sua capacidade de melhoramento da
produção para forçar os países a seguir regras que a beneficiem.
A manipulação de espécies vegetais por meio de cruzamentos data de longo
tempo, mas essa interferência ganhou força nunca imaginada a partir da alteração dos
genes de forma invasiva.
Em todos os países do globo existe discussão a respeito dos riscos e dos
benefícios que a manipulação de genes pode provocar. A quebra de braço entre o
agronegócio e a sociedade, preocupada com seu bem-estar, está longe do fim. É objetivo
deste artigo contextualizar a evolução da biotecnologia e as alterações do Direito
Agrário em busca da regulamentação das manipulações genéticas e da consequente
proteção da vida.

1. CONCEITO E SURGIMENTO DOS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS


Os alimentos transgênicos constituem um tema bastante polêmico,
principalmente devido à sua alta complexidade, assim como também às suas possíveis

1
Graduanda do curso de Direito da UFPB.
2
Graduando do curso de Direito da UFPB.
3
Graduanda do curso de Direito da UFPB.
4
Graduanda do curso de Direito da UFPB.
5
Graduando do curso de Direito da UFPB.
6
Graduanda do curso de Direito da UFPB.
7
Graduanda do curso de Direito da UFPB.

322
Direito Agrário Ambiental

consequências no tocante à liberação de plantas geneticamente modificadas no meio


ambiente e aos prováveis danos que tais alimentos poderiam causar à saúde humana e
animal.
Mas, o que vem a ser alimento transgênico? Como ocorreu o seu surgimento e,
consequentemente, o seu desenvolvimento? A resposta a tais indagações serão sanadas a
seguir.

1.1. O conceito de alimentos transgênicos


De acordo com Janaína Rosa Guimarães, em estudo publicado na Revista
Visão Jurídica8, de um modo geral, os alimentos transgênicos provém de plantas criadas
em laboratório com técnicas da engenharia genética que permitem transferir genes de
um organismo para outro, mudando a forma do organismo e manipulando sua estrutura
natural a fim de obter características específicas.
É importante destacar que, nas últimas três décadas, a genética passou por
profundas transformações, principalmente pela implantação de novas técnicas, a
exemplo da manipulação do DNA, como assinala Paulo Affonso Leme Machado:

A Genética mudou radicalmente nos últimos 30 anos. Novas técnicas foram


desenvolvidas, aplicando-se aos micro-organismos. Saliente-se a descoberta
da estrutura e da função do ácido desoxirribonucleico (ADN). Desde os anos
70, pesquisadores começaram a manipular diretamente o DNA e, hoje, a
Engenharia Genética tornou-se a empresa de bilhões de dólares. Pesquisa-se
o uso de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) em muitas áreas
diferentes, como agricultura, produtos farmacêuticos, especialmente produtos
químicos, e despoluição ambiental. 9

Janaína Rosa Guimarães afirma que a justificativa para o uso dos transgênicos
no âmbito agrícola está no aumento da produtividade, bem como no controle de pragas
e intempéries que prejudicam a lavoura tradicional.
Para a autora, as empresas detentoras da tecnologia de engenharia genética
sustentam que os organismos geneticamente modificados podem suprir as deficiências
da produção de alimentos, servindo de mecanismo para o eficaz abastecimento da
população mundial e o combate à fome. Dessa forma, defendem a adoção de nova
tecnologia para a produção de sementes transgênicas em larga escala.

8
Disponível em: <http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/48/ artigo175449-
1.asp > Acesso em 20 jul. 2014.
9
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 18. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Malheiros Editores, 2010, p.1039.

323
Direito Agrário Ambiental

Com relação à produtividade e à manipulação de genes, Luis Paulo Sirvinskas


esclarece que:
Essa manipulação de genes de diferentes espécies realizada no laboratório
pode dar origem a novas espécies animais e vegetais, no primeiro caso, mais
produtivos e, no segundo, mais resistentes às pragas. As informações
contidas nas moléculas são armazenadas e replicadas no interior de outras
células, formando-se uma nova espécie.10

A manipulação genética, desse modo, teve grande avanço principalmente com


o desenvolvimento da biotecnologia, que, ainda de acordo Luis Paulo Sirvinskas, trata
de técnicas usadas pelos cientistas, engenheiros, biólogos e demais profissionais da área
objetivando realizar pesquisas nos seres vivos com o intuito de fomentar melhorias nas
plantas e nos animais:

Biotecnologia é a técnica empregada por cientistas, biólogos e engenheiros


na realização de pesquisas em organismos vivos existentes no meio ambiente
para melhoria das plantas e dos animais, tornando-os mais resistentes aos
herbicidas, no primeiro caso, e mais produtivos, no segundo, beneficiando os
setores da pecuária, da agricultura, das indústrias químicas e farmacêuticas,
etc11.

Não obstante os significativos avanços, Janaína Rosa Guimarães afirma que


uma densa nuvem de insegurança ainda paira a respeito dos potenciais riscos à saúde da
população e ao meio ambiente. Do outro lado, estão a segurança alimentar, o direito de
todos à saúde e a garantia da qualidade dos alimentos consumidos.
De acordo com a autora, segundo alguns estudos, é possível que o cultivo de
organismos geneticamente modificados gere sementes estéreis, além de eliminar insetos
e micro-organismos do ecossistema, devido à exposição de substâncias tóxicas contidas
nas plantas transgênicas.
Ainda segundo Janaína Rosa Guimarães, tal procedimento pode causar, a
médio ou longo prazo, desequilíbrio ecológico em um determinado ecossistema. Não se
descarta, também, o surgimento de superpragas e insetos resistentes a herbicidas e
inseticidas, além do aparecimento de novas espécies indesejadas e não previstas. Os
estudos ainda não são conclusivos e as consequências quanto ao uso de transgênicos são
desconhecidas. No tocante ao plantio das sementes, já se aponta uma possível
contaminação das lavouras vizinhas e do solo. Quanto ao consumo humano, já foram

10
SIRVINSKAS, Luis Paulo. Manual de direito ambiental. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.617.
11
SIRVINSKAS, Luis Paulo. Manual de direito ambiental. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p 620.

324
Direito Agrário Ambiental

detectadas causas de alergia. Há quem atribua, inclusive, a grande resistência aos


antibióticos e o surgimento de nódulos cancerígenos aos transgênicos.

1.2 A evolução histórica dos alimentos transgênicos

Rafael Antonietti Matthes12 detalha, no portal Âmbito Jurídico, a evolução


histórica dos alimentos transgênicos de forma bastante completa. O autor explica que,
nos anos de 1865 e 1866, a genética ganhou impulso com a publicação do trabalho de
Gregor Mendel, também chamado de o pai da genética, sobre cruzamentos de ervilhas.
Segundo Rafael Antonietti, em meados de 1900, os Estados Unidos cultivaram
milho híbrido desenvolvido a partir da seleção e dos cruzamentos de duas plantas de
milho. Ernest Messenger, em 1931, trouxe a ideia de que cada célula de um organismo
vivo traz, em si, as informações que caracterizam determinada espécie e dada raça. Em
1953, James Watson e Francis Crick descobriram a estrutura de dupla hélice do DNA,
sendo uma evolução importante no mundo científico, na medida em que possibilitou a
obtenção de informações genéticas dos organismos.
O autor continua sua explanação no tocante ao contexto histórico explicando que
o período entre 1970 e 1973 é marcado pelo nascimento da engenharia genética. A
primeira planta geneticamente modificada foi criada em 1983; em 1986 a Embrapa
elaborou a primeira planta transgênica no Brasil.
Os Estados Unidos, ainda de acordo com Rafael Antonietti Matthes, colocaram o
primeiro alimento transgênico nas prateleiras do mercado em 1994. Esse produto era um
tomate que demorava mais para amadurecer do que os convencionais. No ano de 1999,
a Universidade de São Paulo – USP e a Universidade de Campinas – Unicamp
desenvolveram um milho com gene humano.
Por fim, o autor ressalta que se tem como marco histórico dessa evolução em
âmbito nacional, a promulgação da Lei n.º 11.105/05, que, além de regulamentar alguns
incisos do parágrafo 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de
segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos
geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de

12
Disponível em: <http://ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id= 11694 &revista_caderno=6>
Acesso em 20 jul. 2014.

325
Direito Agrário Ambiental

Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança –


CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança, entre outras providências.

2. IMPORTÂNCIA DO ALIMENTO TRANSGÊNICO PARA A


AGROINDÚSTRIA
As inovações devidas à biotecnologia têm importância crucial para o aumento
da produtividade agrícola e, principalmente, abrem possibilidades de melhoramento
genético da qualidade e variedade de espécies.
As oportunidades tecnológicas abertas pela biotecnologia vão desde a
aceleração do processo de obtenção de novas variedades até a criação de meios para a
melhor exploração da biodiversidade. Por exemplo, através das ferramentas da análise
genômica, podem-se identificar novos princípios ativos ou plantas com níveis mais
elevados de determinadas proteínas de uso na indústria de alimentos, cosméticos e
farmacêuticos.
No Brasil, que possui padrão um pouco diferente do internacional, as
aplicações biotecnológicas no campo farmacêutico superam em muito as voltadas para a
agroindústria e a indústria de alimentos.
Uma parte significativa das atividades em biotecnologia refere-se a insumos
para a agricultura (inoculantes - insumo biológico para substituição de fertilizantes
nitrogenados em leguminosas -, bioinseticidas – inseticida com composição mais
natural, que não agride tanto o meio ambiente -, novas sementes – geneticamente
modificadas); para a agroindústria e similares (papel e celulose, produção de enzimas
para uso na indústria de alimentos) e, mesmo, para aumentar o grau de conhecimento
sobre as características das variedades cultivadas no país, visando a uma melhor
eficiência no combate a doenças e no aumento de produtividade.
Um exemplo notável das possibilidades abertas pela biotecnologia é dado pela
obtenção de plantas transgênicas com impactos favoráveis sobre o ambiente, as quais
inibem o crescimento de populações de insetos sem que estas sejam aniquiladas. Dessa
forma, ocorre um controle de pragas que pode ser combinado a técnicas de manejo
seletivo com equilíbrio ecológico e consequente redução do impacto ambiental, em
relação àquele causado pelo uso de produtos químicos.
Os alimentos transgênicos trazem benefícios em diversas áreas, entre elas:
 Saúde: podem ser produzidos alimentos com melhores características
nutricionais do que as das espécies naturais;

326
Direito Agrário Ambiental

Economia: são conseguidas variedades de cultivos mais resistentes às



adversidades (pragas, seca, geadas, etc.), garantindo a produção;
 Conservação: ao obter cultivos mais resistentes, são reduzidas as
intervenções na terra, evitando seu desgaste e o uso de agrotóxicos;
 Preservação: por meio dessas modificações genéticas, pode-se estender a
vida útil do alimento.
A biotecnologia, no Brasil, vem, também, gerando oportunidades de mercado,
pelo surgimento de novas empresas. Porém apenas alguns segmentos de grandes
empresas, como papel e celulose, utilizam a biotecnologia no melhoramento e na
produção de mudas. Configura-se, pois, um quadro de grande desenvolvimento
potencial, limitado por problemas institucionais, pelo atraso na regulamentação de leis
relacionadas à biossegurança e pelos efeitos da crise atual da economia, que perdura.
Um ponto de contato com a cena internacional é que a biotecnologia, no Brasil,
procura estabelecer redes de pesquisa que englobem empresas e centros de pesquisa de
diferentes naturezas, que estimulam a regularidade nas associações e favorecem formas
variadas de cooperação.
Um resultado sensível da chegada ao mercado dos cultivos transgênicos foi o
forte crescimento na indústria de sementes. Ao mesmo tempo que ações em rede
começam a ser empreendidas, a pesquisa biotecnológica iniciada nas décadas de 70 e
80, vem apresentando resultados; com eles, a polêmica das sementes transgênicas,
inicialmente de soja e de milho e, mais recentemente, de algodão, vem sendo
solucionada, com parecer favorável principalmente à soja transgênica.
Apesar dos resultados, várias questões relacionadas ao comportamento do
consumidor realimentam o debate, principalmente sobre a conveniência e a dificuldade
prática de rotulagem dos produtos obtidos com cultivares transgênicos e dos possíveis
impactos negativos que a liberação de transgênicos poderia ter nos mercados que não
aderiram a esse tipo de produto.

3. ECONOMIA E SUSTENTABILIDADE A PARTIR DA INSERÇÃO DOS


TRANSGÊNICOS NO MERCADO MUNDIAL
Refletir sobre os impactos ocasionados pelos organismos geneticamente
modificados contribui para uma melhor conscientização a respeito do consumo desses
alimentos ou dos derivados deles. As opiniões a respeito dos transgênicos se dividem:
de um lado, os ambientalistas são radicalmente contra o seu consumo e a sua inserção
no mercado consumerista; de outro lado, as indústrias se posicionam de modo
favorável.
327
Direito Agrário Ambiental

Segundo a ESPLAR13, a vida das espécies existentes em nosso planeta depende


de uma relação ecológica equilibrada, e qualquer intervenção que coloque em risco esse
equilíbrio, como, por exemplo, a inserção no mercado dos organismos geneticamente
modificados, deve ser analisada cuidadosamente, por não haver ainda uma certeza sobre
os benefícios e os malefícios no consumo desses alimentos.
Com efeito, segundo especialistas, não existem normas apropriadas para
avaliar os efeitos dos transgênicos na saúde do consumidor e no meio ambiente onde ele
é inserido, havendo sérios indícios de que eles sejam prejudiciais.
Por outro lado, é bom ressaltar que os organismos geneticamente modificados
podem criar variações, a exemplo de plantas resistentes a insetos e pragas, metais
tóxicos do solo e fungos que reduzem a necessidade de pesticidas e agrotóxicos e
melhoram a saúde de quem as consome e do meio ambiente local. A técnica transgênica
também produz alimentos enriquecidos com componentes nutricionais essenciais, como
vitaminas e proteínas, e previne, reduz e evita riscos de doenças, estimulando o sistema
imunológico.
No que se refere à economia, os alimentos geneticamente modificados são mais
resistentes a pragas, secas, geadas e outros problemas naturais que poderiam afetar a
produção. Segundo a CTNBio14, os organismos geneticamente modificados garantem
um aumento na produção de alimentos, uma alteração no valor nutricional, favorecem o
surgimento de espécies com características desejáveis e uma maior resistência dos
alimentos quando são armazenados.
É importante mencionar que, segundo Cunha15, a transgênica é uma técnica
dispendiosa que envolve milhões de dólares. Além disso, para a autorização do plantio
em larga escala, é necessária uma análise dos riscos para o meio ambiente e para a
saúde animal e humana. Ademais, as plantas transgênicas até agora comercializadas não
acrescentaram nenhum valor alimentar adicional em relação às plantas não transgênicas,
nem apresentam maior produtividade em biomassa em relação às convencionais.
Segundo o Serviço Internacional para Aquisição de Aplicações
Biotecnológicas Agrícolas (ISAAA), o Brasil possui a segunda maior área plantada com
transgênicos (25,4 milhões de hectares). Os representantes da ISAAA, no Brasil,

13
Organização não governamental, sem fins lucrativos, fundada em 1974, que atua no semiárido
cearense, desenvolvendo atividades voltadas para o fortalecimento da agricultura familiar.
14
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança.
15
CUNHA, Maria C. B. da. Alimentos Transgênicos. Disponível em:
<http://mcnutrir.com.br/artigos/alimentos-transgenicos/>. Acesso em: ago. 2014.

328
Direito Agrário Ambiental

afirmam que o aumento de produtividade verificado nas lavouras transgênicas


contribuiu para duplicar, nos últimos vinte anos, a produção anual de grãos do país.
Diante do exposto, não se pode negar que os avanços na área da genética
poderão contribuir para a melhoria da agricultura. No entanto, é preciso descobrir os
riscos que esses avanços podem trazer para a saúde e o ambiente, bem como analisar os
benefícios econômicos e sociais que os organismos transgênicos podem garantir.
É necessária, então, uma utilização consciente, correta e ética dos recursos
genéticos, motivo pelo qual a comunidade científica, o Poder Público e a população
devem ficar atentos, acompanhando e fiscalizando a aplicação das novas técnicas
genéticas, bem como utilizando os mecanismos legais de proteção, através da ação civil
pública, quando se constatar perigo ou dano ao meio ambiente.

4. O MERCADO FINANCEIRO BRASILEIRO E A COMERCIALIZAÇÃO DOS


TRANSGÊNICOS
O padrão de crescimento urbano que o Brasil vem experimentando nos últimos
quinze anos pode tornar-se um trunfo para a revitalização de seu meio rural. As políticas
voltadas para o fortalecimento e para a criação de novas unidades familiares no meio
rural terão tanto mais sucesso quanto mais importante forem as oportunidades de
intensificação de suas ligações dinâmicas e diversificadas com as cidades. A dotação de
ativos da maioria da população rural brasileira é tão precária que a expõe ao risco de
ficar à margem do processo – lento, mas real - de interiorização do crescimento
econômico por que vem passando o País16.
Por outro lado, as preocupações com atributos intrínsecos e extrínsecos de
qualidade nos alimentos têm crescido nas últimas décadas e, altamente, a polêmica se
acirra com a entrada dos alimentos geneticamente modificados no mercado de consumo
global. Nesse contexto, as técnicas de segregação, rastreabilidade e preservação da
identidade dos recursos genéticos e produtos alimentares assumem caráter
particularmente estratégico no país, que hoje ocupa o lugar de maior fornecedor de soja
não transgênica no mercado internacional.
O começo da história dos transgênicos no Brasil, no entanto, foi tumultuado.
No início dos anos 90, produtores do sul do País iniciaram o cultivo de soja modificada

16
ABRAMOVAY, Ricardo. Agricultura familiar e desenvolvimento territorial. Revista da Associação
Brasileira de Reforma Agrária. Vols. 28 nºs 1,2 3 e 29, nº1 – Jan/dez 1998 e jan/ago 1999. Disponível em:
<http://www.fea .usp.br/feaecon//media/fck/File/ Agricultura_familiar.pdf>. Acesso em: ago. 2014.

329
Direito Agrário Ambiental

vinda da Argentina, mas o assunto ainda não era regulamentado aqui. A


comercialização dessa soja só foi autorizada, por medida provisória, em 1995. Mas a
alegria dos produtores durou pouco. Em 1998 a venda dos transgênicos foi proibida,
devido a uma ação judicial do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). O
embargo durou até 2003, com a edição de nova MP para autorizar a comercialização.
A Lei de Biossegurança (11.105/05), aprovada pelo Congresso em 2005,
representou o fim da polêmica em torno do assunto. Além de criar regras gerais sobre as
pesquisas em biotecnologia no País, a lei criou a Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança (CTNBio), que passou a ser responsável por toda a regulação do setor de
biotecnologia17.
Desde então, o órgão já aprovou a utilização comercial de cerca de 50
organismos geneticamente modificados, dos quais 35 são plantas. Segundo o presidente
da CTNBio, Flávio Finardi, as regras de liberação desses organismos no País estão entre
as mais rigorosas do mundo.
Ao todo, no Brasil, para chegar às prateleiras, um produto transgênico tem de
passar por cinco fases. Primeiro, a empresa deve submeter o projeto à aprovação da
CTNBio. A comissão analisa a proposta e faz uma visita local para saber se há
condições para se desenvolver o trabalho com segurança. Aprovada a proposta, vem a
fase de desenvolvimento e testes, que devem ser realizados em ambiente restrito e
controlado. Se for uma planta, cabe ao Ministério da Agricultura fiscalizar o
experimento. Em seguida, antes da liberação comercial, a CTNBio avalia se os dados
coletados correspondem aos critérios de biossegurança. Antes da comercialização
efetiva, o produto ainda será submetido a uma avaliação política. Um conselho formado
por 11 ministros decide se é vantajoso ou não para o País lançar a novidade no mercado.
O Brasil é hoje, ao lado dos Estados Unidos, líder mundial da produção de soja
transgênica. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa),
88% da safra de soja 2012/2013, que atingiu impressionantes 81,3 milhões de toneladas,
era composta por grãos geneticamente modificados, que ocuparam 37,1 milhões de
hectares. Impulsionada pelo restrito clube de empresas que atua no setor, a força dos
transgênicos na atual safra se estende a outras importantes comodities no país, como o
milho e o algodão, que também já têm a maior parte de sua produção – 60% e 55%,

17
NEVES, Maria. Brasil é vice-líder em produção de transgênicos. Agência Câmara Notícias. Disponível
em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/AGROPECUARIA/428224-BRASIL-E-VICE-
LIDER-EM-PRODUCAO-DE-TRANSGENICOS.html>. Acesso em: ago. 2014.

330
Direito Agrário Ambiental

respectivamente, composta por transgênicos. Na próxima safra (2013/2014), os


transgênicos também serão parte da produção do símbolo maior da alimentação do povo
brasileiro, o feijão, com o plantio de uma modalidade resistente ao vírus do mosaico
dourado do feijoeiro, desenvolvida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa). (3)
Uma estimativa divulgada pelo Conselho de Informações sobre Biotecnologia
(CIB) apresenta que, somados todos os cultivares, o Brasil terá, na safra 2013/2014,
uma área de 40,3 milhões de hectares ocupada com transgênicos. Líder de mercado, a
soja transgênica deverá ocupar quase 27 milhões de hectares, em uma expansão de 8,9%
sobre a última safra, e permanecerá presente em todo o país, com destaque para os
estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul. (3)
O milho transgênico, segundo o CIB, tem uma área total de cultivo para a
próxima safra estimada em quase 13 milhões de hectares, já consideradas as colheitas de
verão e a safrinha, o que elevaria a 81% a participação dos transgênicos na produção
total de milho no Brasil. De acordo com a Embrapa, a safra 2013/2014 terá 467
cultivares de milho em todo o país, dos quais 54% (253) serão ocupados por plantas
transgênicas. (3)
Na última safra, a área total de algodão plantada no Brasil – o plantio acontece
em todo o país, com exceção das zonas de exclusão no Pantanal e na Amazônia – se
aproximou de um milhão de hectares. Para a safra 2013-2014, espera-se que pouco mais
de 500 mil hectares sejam ocupados por plantas transgênicas, o que representa um
aumento de 4,8% em relação à safra anterior. Segundo o CIB, no ano de 2014, o
algodão transgênico deverá ultrapassar 60% da produção total de algodão no país. (3)
Os cultivos geneticamente modificados já liberados para plantio comercial em
território brasileiro pela CTNBio são: cinco tipos de soja, 18 de milho e 12 de algodão,
além de um de feijão, para se ter a noção exata de que o clube dos transgênicos é para
pouquíssimos sócios. Com exceção da nacional Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa), todos os cultivos liberados até hoje no Brasil utilizam
tecnologia transgênica e defensivos agrícolas produzidos pelas seis grandes empresas
transnacionais que também lideram o setor de transgenia em nível global: Monsanto
(Estados Unidos), Syngenta (Suíça), Dupont (EUA), Basf (Alemanha), Bayer
(Alemanha) e Dow (EUA). (3)

331
Direito Agrário Ambiental

O monopólio praticado pelas transnacionais no mercado agrícola brasileiro se


reproduz em todo o mundo. Um relatório divulgado pelo Grupo ETC, organização
socioambientalista internacional que atua no setor de biotecnologia e monitora o
mercado de transgênicos, revela que as seis maiores empresas, apelidadas de “Gene
Giants” (Gigantes da Genética), controlam atualmente 59,8% do mercado mundial de
sementes comerciais e 76,1% do mercado de agroquímicos, além de serem responsáveis
por 76% de todo o investimento privado no setor18.
Malgrado o brilhantismo de sua produção, a Justiça Federal proibiu a venda de
milho transgênico, em marco de 2014, no norte e no nordeste. A decisão foi tomada em
julgamento realizado na 2ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). O
relator, desembargador federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, avaliou que não
foram feitas pesquisas nessas regiões antes da aprovação da semente pela CTNBio. A
comercialização só poderá ser retomada após a realização de estudos que permitam à
comissão se certificar que a produção do cereal geneticamente modificado não é nociva
ao ecossistema dessas regiões.
O relator, em seu voto, afirmou que: “Os estudos não foram realizados em
todos os biomas brasileiros nem tiveram abrangência geográfica capaz de dar conta dos
aspectos relacionados à saúde humana, à saúde dos animais e aos aspectos ambientais
em todas as regiões brasileiras. Não é possível escolher apenas alguns pedaços do
território nacional, segundo a conveniência comercial ou o interesse econômico do
interessado para as pesquisas sobre a biossegurança do milho transgênico”.
O pedido de ampla publicidade aos documentos apresentados nos
requerimentos de liberação comercial do milho transgênico, também parte do recurso,
foi considerado procedente pela seção. “A União, através da CTNBio, deverá editar
norma quanto aos pedidos de sigilo de informações pelos proponentes de liberação de
organismos geneticamente modificados (OGM´s), prevendo prazo para a deliberação
definitiva acerca dos mesmos, ressalvadas apenas as informações que tiverem sigilo
deferido”, ampliou o relator.
As promessas de obtenção de uma rentabilidade maior, com o cultivo dos
transgênicos, despertaram o interesse de agricultores brasileiros, que se encontram, em
sua maioria, em uma situação financeira precária, devido à drástica redução, ou mesmo

18
PESSANHA. Lavínia Davis Rangel; WILKINSON. John. Transgênicos provocam novo quadro
regulatório e novas formas de coordenação do sistema agroalimentar. Cadernos de Ciência & Tecnologia,
Brasília, v. 20, n. 2, p. 263-303, maio/ago. 2003. Disponível em:
<http://r1.ufrrj.br/esa/V2/ojs/index.php/esa/article/view/ 167/163>. Acesso em: ago. 2014.

332
Direito Agrário Ambiental

eliminação, dos subsídios agrícolas19. Para o governo, a possibilidade de aumentar a


competitividade da agricultura brasileira no cenário internacional, por intermédio do uso
de sementes transgênicas, apresenta-se como um argumento incontestável em um
momento no qual o país necessita equilibrar urgentemente a sua balança comercial.
Apesar desse contexto econômico e político favorável à adoção dos
transgênicos, o processo de aprovação desses produtos sofreu um revés inusitado; com
efeito, o bloqueio judicial à decisão governamental favorável à comercialização dos
produtos modificados revelou a presença de uma existência social bem articulada em
torno de organizações não governamentais de ambientalistas, de defesa de
consumidores e de assessoria e apoio a agricultores familiares e a suas associações. A
resistência aos transgênicos ganhou ainda mais força com a decisão oficial do governo
do Rio Grande do Sul de proibir o plantio desse tipo de produto naquele estado.
Outra forma de pressionar pela autorização dos transgênicos no Brasil se dá
pelo potencial de investimento de grandes empresas multinacionais como a Monsanto.
Com todas as facilidades propiciadas pela guerra fiscal entre os estados da federação, a
Monsanto iniciou, em janeiro de 2014, a construção de uma unidade de produção na
Bahia, anunciando investimentos da ordem de US$ 550 milhões. A atração de capital
estrangeiro para a atividade industrial transforma-se no maior trunfo político em um
país cuja política econômica liberal tem reduzido as alternativas de expansão do parque
industrial interno. A sinergia de interesses entre capital privado e governo federal
garante assim à Monsanto um importante aliado no processo de autorização para a
comercialização dos transgênicos no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Direito Agrário da atualidade é um direito preocupado com a agricultura,
com o meio ambiente e com a alimentação. Como visto, o desenvolvimento da
sociedade no mundo capitalista preocupa-se exclusivamente com o aumento da
produtividade e, consequentemente, dos lucros. As mudanças do Direito Agrário, que
outrora buscava apenas a regulamentação da produção e a sua estruturação, são uma
resposta às mudanças advindas da atividade econômica de produção em larga escala.

19
PELAEZ. Victor; SCHMIDT. Wilson. A difusão dos OGM no Brasil: imposição e resistências. CPDA
- Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro ICHS/DDAS. N.14, Abril de 2000. Disponível em:
<http://r1.ufrrj.br/esa/V2/ojs/index.php/esa/article/ view/167/163>. Acesso em: ago. 2014.

333
Direito Agrário Ambiental

As novas técnicas de produção e a busca frenética por aumento de lucro


fizeram o agronegócio alcançar uma produtividade sem precedentes, porém, igualmente
sem precedentes tem sido o impacto deste no meio ambiente. Os riscos advindos das
novas técnicas agrícolas extrapolaram os limites de um grupo e seus efeitos atuais
abrangem todo o globo.
A contaminação de bens socioambientais, como a água e o solo, e, em especial,
a contaminação genética advinda da sua manipulação carecem sobremaneira da ação do
Direito para resguardar não somente uma vida digna, mas a própria vida. O Direito tem
evoluído para acompanhar as mudanças tecnológicas, outro sim, o desafio vai além,
acompanhar as mudanças no mesmo ritmo em que elas ocorrem ou antecipando-se a
elas.

REFERÊNCIAS
ABRAMOVAY, Ricardo. Agricultura familiar e desenvolvimento territorial. Revista da
Associação Brasileira de Reforma Agrária. Vols. 28 nºs 1,2 3 e 29, nº1 – Jan/dez 1998 e
jan/ago 1999. Disponível em: <http://www.fea.usp.br/feaecon//media/fck/File/
Agricultura_familiar.pdf>. Acesso em: ago. 2014.
ASSAD , Eduardo Delgado; MARTINS, Christian Martins; PINTO, Hilton Silveira.
Sustentabilidade no agronegócio brasileiro. Disponível em:
<http://fbds.org.br/fbds/IMG/pdf/doc-553.pdf>. Acesso em: ago. De 2014.
CUNHA, Maria C. B. da. Alimentos Transgênicos. Disponível em:
<http://mcnutrir.com.br/artigos/alimentos-transgenicos/>. Acesso em: ago. 2014.
MARTINHO, Sérgio. EcoD Básico: Transgênicos (OGMs). Disponível em:
<http://wwwecodesenvolvimento.org/posts/2012/abril/transgenicos?tag=ecod-basico>.
Acesso em: ago. 2014.
NEVES, Maria. Brasil é vice-líder em produção de transgênicos. Agência Câmara
Notícias. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/AGROPECUARIA/ 428224-
BRASIL-E-VICE-LIDER-EM-PRODUCAO-DE-TRANSGENICOS.html>. Acesso
em: ago. 2014.
PELAEZ. Victor; SCHMIDT. Wilson. A difusão dos OGM no Brasil: imposição e
resistências. CPDA - Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro ICHS/DDAS. N.14, Abril de

334
Direito Agrário Ambiental

2000. Disponível em: <http://r1.ufrrj.br/esa/V2/ojs/


index.php/esa/article/view/167/163>. Acesso em: ago. 2014.
PESSANHA. Lavínia Davis Rangel; WILKINSON. John. Transgênicos provocam novo
quadro regulatório e novas formas de coordenação do sistema agroalimentar. Cadernos
de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 20, n. 2, p. 263-303, maio/ago. 2003. Disponível
em: <http://r1.ufrrj.br/esa/V2/ojs/index.php/esa/article/view/167/163>. Acesso em: ago.
2014.
ZELEDÓN, Ricardo Zeledón. Derecho Agrário Contemporâneo. 2ª Ed. Curitiba, Juruá,
2013
_______. Fundamentos para una “Teoría Pura del Derecho agrario” contemporáneo.
Disponível em: <http://www.fasb.edu.br/revista/index.php/campojuridico/
article/view/41> Acesso em: ago. 2014.

335
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XVIII – JURISDIÇÃO AGRÁRIA E FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA


RURAL: DIFICULDADES JURISPRUDENCIAIS NA CONCRETIZAÇÃO DO
DIREITO À TERRA

Gustavo de Sousa A. Galisa1


Hugo Gomes Ximenes2
Ive Fróes Cândido3
Lizandra Xavier da Silva4
Maria Angélica A. Moura de Oliveira5

INTRODUÇÃO
A realidade social do campo apresenta-se consabidamente permeada pela
desigualdade na distribuição de terras e por conflitos fundiários que contrapõem o direito de
propriedade de alguns ao direito de acesso à terra pelas coletividades campesinas. O presente
trabalho busca caracterizar a atuação do Poder Judiciário na ponderação desses direitos em
face de casos concretos, tendo em vista o potencial de suas decisões para a efetivação da
política de reforma agrária e a equalização das relações e estruturas fundiárias no âmbito rural
brasileiro.
Como objetivo geral, busca-se compreender como se opera a construção
jurisprudencial do conteúdo jurídico de institutos centrais, como a propriedade, a posse e a
função social a ser cumprida, que informam a concepção de “direito à terra” adotada pelos
Tribunais pátrios.
Para melhor elucidar o tema proposto, o trabalho segue, metodologicamente, uma
vertente operatória, valendo-se do método de abordagem indutivo, com a análise de julgados
emblemáticos, a fim de evidenciar os principais aspectos da postura conservadora esboçada
pelos órgãos jurisdicionais em face dos conflitos agrários submetidos a seu crivo,
privilegiando a tutela judicial da propriedade em detrimento da realização de outros direitos
fundamentais (econômicos, sociais, culturais e ambientais) ligados ao acesso à terra; para
tanto, será utilizado o método de abordagem hermenêutico, considerado essencial no
desenvolvimento de toda pesquisa jurídica, ora servindo à análise dos elementos que
convergem para a caracterização do perfil do Judiciário no trato da questão agrária.

1
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
2
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
3
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
4
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
5
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
336
Direito Agrário Ambiental

As técnicas de pesquisa desdobraram-se, basicamente, em duas vertentes:


documental, nos momentos em que se procedeu diretamente ao exame dos provimentos
judiciais selecionados (sentenças e acórdãos) – e, quando pertinentes, de outras peças
integrantes dos cadernos processuais –, bem como do acervo normativo correlato,
consubstanciado na Constituição, nas leis e em outros instrumentos do gênero; e bibliográfica,
referente à análise da literatura especializada (manuais, livros, artigos e outros itens de
documentação indireta) para a coleta de informações relevantes à interpretação dos dados
hauridos na pesquisa anterior.
O estudo divide-se em duas etapas: num primeiro momento, aduz-se breve incursão
teórica acerca do contexto social do campo, da estrutura agrária de concentração fundiária e
das relações de apropriação privada da terra rural. Na sequência, passa-se à análise de três
julgados, contextualizados no âmbito do Nordeste brasileiro, que corroboram as constatações
já feitas e permitem importantes ilações sob as perspectivas social e jurídica.

1. GENERALIDADES
Consoante delineado acima, o presente estudo busca contextualizar a atuação do
Poder Judiciário frente à questão agrária, enfocando os contornos jurisprudenciais do “direito
à terra” e dos institutos jurídicos que lhe são correlatos, como a propriedade, a posse e a
função social que devem desempenhar. A partir dessa abordagem, busca-se compreender
como os Tribunais vêm decidindo sobre os conflitos rurais – travados num contexto
caracterizado pela concentração fundiária e pela necessidade de reforma agrária –, a fim de se
verificar em que medida tais julgados podem contribuir ou obstar à verificação de mudanças
estruturais no campo.
Para uma adequada elucidação do tema, mister se faz analisar, de antemão, alguns
aspectos relativos à realidade social do campo, a fim de que se possa apreender o sentido que
o acesso à terra adquire nesse contexto específico, bem como os interesses sociais envolvidos
na tutela desse bem jurídico.
Hodiernamente, tem-se concebido o acesso à terra como um direito fundamental,
com assento constitucional, que deve ser assegurado aos indivíduos como meio para a fruição
de outros direitos, igualmente essenciais, como a moradia, o trabalho, a alimentação, o meio
ambiente ecologicamente equilibrado, dentre outros. É dizer: há um conjunto de direitos
humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais cujo gozo, para determinadas
coletividades, depende diretamente do acesso à terra rural.

337
Direito Agrário Ambiental

Exsurge daí a indagação que informa os objetivos do presente trabalho, quanto ao


papel desempenhado pelo Judiciário na garantia desse direito fundamental, especialmente no
que diz respeito à efetivação da política de reforma agrária e à equalização das relações e
estruturas fundiárias no campo, no confronto com o direito de propriedade. Como se
demonstrará adiante, a atuação dos órgãos jurisdicionais vem constituindo, na prática, em
verdadeiro entrave à modificação do estado sistêmico de desigualdade na distribuição
fundiária e, portanto, à implementação de reformas nessa seara.
Levantamentos oficiais realizados pela Procuradoria-Geral do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) dão conta de que elevado número de ações de
desapropriação para fins de reforma agrária encontram-se paralisadas – só em 2009, já eram
mais de duzentas, representando uma área de 200.597 hectares, dentro da qual seria possível
assentar mais de onze mil famílias em todo o território nacional, mas que continua a
pertencer, formalmente, a cerca de duzentos proprietários.
Enquanto isso, uma realidade preocupante continua instalada. Em 2009, o Governo
divulgou os resultados do último Censo Agropecuário realizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), com dados colhidos nos anos de 2006 e 2007. Azevedo(2012)
ajuda a sistematizar os resultados dessa pesquisa, segundo a qual cerca de 1% (um por cento)
dos proprietários de terra no Brasil detêm 46% (quarenta e seis por cento) de todas as terras
do País, de sorte que apenas quinze mil fazendeiros – de acordo com o critério adotado para a
caracterização da grande propriedade – são donos de quase noventa e oito milhões de hectares
de terra rural. Em cotejo com o censo de 1996, verifica-se que a concentração aumentou, à
razão de 3% (três por cento), em dez anos.
Outro aspecto relevante, salientado pelo IBGE, diz respeito ao índice Gini aplicado à
concentração de terras, aferido em 0,856 – situando o Brasil em segundo lugar no ranking dos
países com maior concentração (as regiões Norte e Nordeste apresentaram-se como as mais
problemáticas). Por outro lado, verificou-se que apenas 30% (trinta por cento) dos imóveis
cadastrados no INCRA eram considerados, por essa autarquia, como produtivos.
Ainda no âmbito deste estudo, constatou-se que o agronegócio, baseado no
latifúndio, empregava apenas 13,4% da população economicamente ativa do campo, ao passo
que na agricultura familiar, realizada em pequenas e médias propriedades, trabalhavam 86,6%
desse universo – aproximadamente 15 milhões de pessoas. (AZEVEDO, 2012, p.76).
O Judiciário, porém, revela-se indiferente a tudo isso quando é chamado a decidir
sobre conflitos fundiários. Para além da lenta tramitação das ações que visam à

338
Direito Agrário Ambiental

desapropriação, não se pode descurar que muitas não logram um provimento final favorável à
realização da política de reforma agrária. Abundam as decisões que privilegiam o direito de
propriedade – ainda concebido nos moldes clássicos (preconizados por Ihering e
desenvolvidos sob a égide do liberalismo), que remontam a uma teoria dos direitos reais
marcadamente patrimonialista, individualista e tendente à sua absolutização – mesmo quando
em jogo a concretização de outros direitos, de caráter fundamental, que somente podem ser
viabilizados através do acesso à terra. Na acurada avaliação de Azevedo (2012, p.76), in
verbis:

[…] o quadro que se apresenta é o de que o Judiciário tem sido chamado para
intervir na realização de direitos humanos, principalmente diante da omissão do
Poder Executivo quanto ao seu dever de agir e promover políticas públicas; no
entanto, no caso da reforma agrária, ele pode ser apontado como elemento
impeditivo na realização de direitos ligados ao acesso à terra rural.[…] a promoção
de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais – DHESCAs para
os trabalhadores rurais e comunidades tradicionais requer a democratização e o
acesso à terra e ao território para esses grupos sociais. Dessa feita, não haveria como
desenvolver políticas públicas estruturais de garantia do direito humano à
alimentação adequada, à saúde, à moradia, à educação, à cultura para populações do
campo sem a garantia do direito à posse da terra e do território. Logo, entendimentos
de que o direito individual de propriedade seria um direito absoluto não vinculado
ao cumprimento da função social da terra (uma tutela jurídica que se inclinaria
mais ao patrimonialismo) configuram-se como afrontas ao principio da dignidade
humana e aos direitos humanos.

Num tempo em que tanto se fala de ativismo judicial, evidenciando-se a


possibilidade de o Judiciário intervir, concretamente, em favor da realização de políticas
públicas com fundamento constitucional quando os poderes públicos se revelem omissos,
verifica-se que este não adota a mesma postura vanguardista quando isso esbarra na questão
agrária, predominando ainda certo conservadorismo nas suas decisões – que, não raro, deixam
alguns direitos essenciais, embora positivados na Constituição, somente no plano simbólico.
Azevedo procura demonstrar isso a partir de ampla pesquisa jurisprudencial, tendo
em vista a identificação do conteúdo semântico conferido ao direito à terra (que se apresenta
como uma categoria aberta), bem como dos sentidos jurídicos dados à posse, ao direito de
propriedade e ao cumprimento de sua função social. O autor evidencia que a significação do
direito à terra pelos Tribunais, de forma hegemônica, tende a conceber “a relação homem-
terra com um vínculo patrimonialista e individual, de modo que o interesse a ser tutelado pelo
Direito em tal relação seja o de exploração econômica privada do bem jurídico terra”.
(AZEVEDO, 2012, p. 81).

339
Direito Agrário Ambiental

Aduzindo-se uma generalização, pode-se dizer que predomina, nas decisões, uma
análise dos casos restrita a aspectos formais e procedimentais, com foco na tutela do direito de
propriedade – justificada pela necessidade de garantir a ordem pública e a estabilidade das
relações jurídicas, sem considerar a complexidade do conflito social e a necessidade de
concretizar outros direitos fundamentais envolvidos. O direito à propriedade, como visto, é
concebido como um direito quase absoluto e ilimitado – de modo que as considerações acerca
do cumprimento da função social da terra, para fins de tutela judicial da propriedade, muitas
vezes se resumem à análise da produtividade (em termos estritamente econômicos) do imóvel
rural, reduzindo o alcance da norma constitucional (CRFB/1988 art. 186)6. Nessa esteira, a
posse é concebida como um apêndice da propriedade, sem autonomia ou conteúdo funcional –
vale dizer, como mera exteriorização fática do direito individual de propriedade, restando
presumida pela comprovação deste último.
Porém o Judiciário “não é um bloco monolítico de sentido jurídico”, como bem
adverte o autor, existindo algumas construções jurisprudenciais alternativas, embora não
hegemônicas. Alguns julgados, por exemplo, enfatizam o cumprimento da função social como
limite necessário ao direito de propriedade, de modo que a tutela deste dependeria da
observância sistemática de todos os seus aspectos; já se entendeu que a propriedade deve
atender também aos interesses sociais e coletivos, buscando-se uma conciliação entre estes e o
interesse privado – a qual deve ser o foco do sistema jurídico e, portanto, da atuação do
Judiciário; sob essa perspectiva, a reforma agrária apresenta-se fundada no desrespeito à
função social da terra, como medida necessária para a resolução da desigualdade na estrutura
fundiária no campo e a realização de direitos fundamentais; por sua vez, o exercício da posse
– além de ser visto como autônomo – passa a ostentar uma função social, relacionada
especialmente ao trabalho, à moradia e à subsistência (posse como meio de acesso à terra e
garantia da dignidade humana).7
De todo modo, deve-se reiterar que o entendimento jurisprudencial predominante
ainda concebe o direito à terra sob uma perspectiva patrimonialista e privatista (ligada ao
direito abstrato de propriedade e à tutela de interesses individuais privados), tendo em vista
seu conteúdo econômico (terra como mercadoria), sem atentar para os impactos sociais de sua

6
A desconsideração da função social da terra na solução judicial dos conflitos agrários conduz a um tratamento
pelo qual os conflitos sociais são reduzidos à dimensão individual, sofrendo o influxo do direito privado.
7
“Construções de sentido jurídico alternativas e emergentes sobre ‘posse’, ‘propriedade’, ‘função social’ e
‘reforma agrária’ são encontradas já de forma sistemática e significativa em decisões jurídicas de alguns
tribunais do País, principalmente no TRF 4.ª região, de modo que podem ser indicativos de possíveis mudanças
da semântica do ‘direito à terra’, ressignificando o atual estado sistêmico de prevalência de direitos patrimoniais
sobre os direitos humanos, principalmente em situações de conflito agrário”. (AZEVEDO, 2012, p. 95).
340
Direito Agrário Ambiental

exploração – isto é, sem a preocupação de saber se o exercício do direito de propriedade se dá


em consonância com o interesse social coletivo, respeitando e garantindo outros direitos
fundamentais preconizados pelo ordenamento jurídico (direitos sociais, econômicos, culturais
e ambientais).
Como consequência, a atuação do Judiciário acaba por converter-se num obstáculo à
concretização da reforma agrária e à correção da estrutura social de desigualdade fundiária no
campo – notadamente no que diz respeito à garantia dos direitos básicos ligados ao acesso à
terra, ignorando-se a dimensão deste direito como meio para a efetivação daqueles. Segundo
Azevedo, as construções discursivas de sentido jurídico que conduzem a esses resultados têm-
se manifestado nas decisões dos Tribunais superiores, os quais têm por função unificar os
entendimentos jurisprudenciais, de modo que “a presença de ‘conservadorismos’
interpretativos ali […] pode vir a agravar e consolidar tais interpretações contrárias à
efetivação de direitos humanos no campo” (AZEVEDO, 2012, p. 86) nas outras esferas de
jurisdição – como se verifica especialmente no âmbito dos Tribunais situados na região
Nordeste, que apresenta altos índices de concentração fundiária. Na sequência, passar-se-á à
análise de alguns julgados que corroboram as afirmações feitas e permitem algumas
constatações importantes do ponto de vista social e jurídico.

2. CASO DA USINA ESTRELIANA: VIOLÊNCIA, CAOS AGRÁRIO E


FORMALIDADE ESTÉRIL NAS INSTÂNCIAS DO JUDICIÁRIO FEDERAL
O caso da Usina Estreliana, como se verá adiante, é marcado por uma série de disputas
judiciais e de conflitos sociais agrários, de mortes de trabalhadores do MST por assassinos de
aluguel, bem como por violência contra as famílias, incluindo nesse contexto notícias de
crianças feridas por tiros nos assentamentos sem terra próximos aos Engenhos Pereira Grande
e João Gomes/Usina Estreliana. Outrossim, são públicos tais acontecimentos, veiculados em
jornais de circulação nacional, como também em informativos de organizações de diretos
humanos. Não obstante, em fevereiro deste ano, sem licença do Estado, a Usina queimou o
canavial e a fuligem foi espalhada nas regiões vizinhas, prejudicando a saúde dos moradores.
Como também a situação econômica do grupo empresarial é preocupante, uma vez que possui
várias ações de execução fiscal, débitos no INSS, dívidas trabalhistas, credores reclamando
crédito, investigações e processos por sonegação de impostos, dentre outras.
Em breve relato histórico judicial do caso, a Usina em questão teve a falência judicial
decretada em 1998, pelo juiz Antonio Carlos dos Santos. Em agosto de 2002, o INCRA

341
Direito Agrário Ambiental

executou uma inspeção nos Engenhos Pereira Grande e João Gomes, pertencentes a Usina
Estreliana. O INCRA emitiu laudo técnico tendo em vista ser a terra pertencente a esses
engenhos improdutivos. No final de 2003, houve a publicação de um Decreto Presidencial
anunciando que as terras do Engenho João Gomes (1.249 hectares) eram de interesse social
para os fins de Reforma Agrária. Dessarte, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária ajuizou uma ação de desapropriação (Nº 0014634-78.2005.4.05.8300). Diante disso, a
Usina Estreliana entrou com um Mandado de Segurança (MSTR n.24770-PE), em janeiro de
2004, no Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de anular o laudo do INCRA e desfazer o
decreto de desapropriação. A liminar foi rejeitada pelo Ministro do STF, a Usina desistiu da
ação no STF. Entretanto, foi ajuizado na Justiça Federal de Pernambuco um Mandado de
Segurança (n.2004.83.00.021675-0) nos exatos termos e com o mesmo objeto, e sede de
recurso da decisão denegatória (AMS n.90327-PE), a Primeira Turma do Tribunal Regional
Federal da 5ª Região acolheu o pedido objeto do mandado de segurança e anulou o laudo do
INCRA e, conseqüentemente, o Decreto presidencial de desapropriação (AZEVEDO, 2012, p.
105).
Nessa senda, o INCRA ajuizou uma Reclamação Constitucional (RCl Nº 3972-PE)
junto ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que a decisão prolatada pelo TRF5 era contrária
à anterior decisão em sede de liminar do STF, sobre a mesma situação, e nos pedidos arguia o
desfazimento da decisão do TRF5. Em um primeiro momento, liminarmente a Ministra
relatora, Ellen Gracie, cancela o julgamento do TRF, e o INCRA foi imitido na posse do
Engenho João Gomes. No entanto, uma semana depois, Ellen Gracie voltou atrás em seu
julgamento e revogou a decisão, após a manifestação processual dos advogados da Usina
Estreliana, contrariados com a decisão liminar. Assim, ela cassou a imissão de posse do
INCRA concedida anteriormente.
Em abril de 2006, a Usina ajuizou uma ação de reintegração de posse (Nº 5173-
48.2006.4.05.8300), na Justiça Federal, distribuída para a 7ª vara especializada, com fins de
desocupação do Engenho, a qual foi concedida pela sentença do juiz federal Élio Wanderley
de Siqueira Filho. Em face da sentença que privilegiou a posse da Usina Estreliana, o MST
protesta contra a lentidão do judiciário e o cancelamento da imissão de posse. Foi organizada
pelo MST, no dia 15 de dezembro de 2005, uma marcha com 3 mil trabalhadores sem terra.
Após a manifestação, percebeu-se que houve uma tentativa de criminalização do movimento
social: foi aberto um processo criminal no qual o Juiz Substituto de Gameleira, a pedido do
Delegado de Polícia, dos advogados da Usina e do Promotor Substituto, decretou as prisões

342
Direito Agrário Ambiental

de cinco lideranças do MST, dentre eles o coordenador estadual do movimento, Jaime


Amorim. Um dos trabalhadores, José Bernardo, foi preso. A decisão era totalmente arbitrária
e após diversas manifestações públicas dos movimentos sociais e de entidades e organizações
de defesa dos direitos humanos, as prisões preventivas foram revogadas.
Ressalte-se que existe um histórico de violência da usina contra os trabalhadores, bem
como grandes dívidas com a União, que vem se perpetuando desde a década de 60. Como se
ressalta neste trecho publicado em matéria por Mariana Martins, no sítio eletrônico da Terra
de Direitos (organização de defesa dos direitos humanos):

A Usina Estreliana tem um histórico questionável no que diz respeito à sua relação
com a justiça e com os trabalhadores. Data de 1963 o episódio de assassinato de
trabalhadores relatado pela historiadora Socorro Abreu e Lima em sua publicação, O
sindicalismo rural em Pernambuco e o Golpe de 64. “Em janeiro de 1963
trabalhadores rurais foram à usina Estreliana, em Ribeirão, cobrar o pagamento do
décimo-terceiro salário e foram trucidados pelo dono da usina, que era deputado
pelo PTB. Cinco camponeses foram assassinados e houve mais três feridos.” Ainda
em se tratando das denúncias de violência, existem contra a Usina Estreliana relatos
sobre ameaças de morte sofridas pelo Deputado Federal e militante das causas
agrárias, Gregório Bezerra. O relato está mencionado no Cordel O ABC de
Gregório, de autoria de GenivaldoTenório, “Aquela corja tirana; Jurou Gregório de
morte; Pistoleiros de Zé Lopes; Da Usina Estreliana; Terror da zona da cana; Por
questões salariais; Assassinou três rurais; Na esplanada da Usina; Aquela fera
assassina; Hoje está com satanás”. No ano passado, trabalhadores sem terra
denunciaram à Relatora Especial da ONU, Hina Jilani, em sua visita ao Brasil, as
constantes ameaças de morte sofridas. Segundo os trabalhadores, além da conivência
de policiais militares com interesses dos usineiros, milícias privadas estariam sendo
contratadas para matar trabalhadores e lideranças sociais que disputavam a posse da
8
área.

O resultado da decisão se deu em forte e violenta operação policial, deixando as 110


famílias sem moradia. Houve a apelação pelos advogados do MST ao TRF5, contudo, no final
de 2012, A Turma, por unanimidade, negou provimento às apelações, nos termos do voto do
relator9:

Ementa: AÇÃO POSSESSÓRIA. POSSE COMPROVADA. REINTEGRAÇÃO


DEVIDA.

8
Disponível em: <http://terradedireitos.org.br/2006/04/12/sai-imissao-de-posse-da-usina-estreliana-para-
reforma-agraria>. Acesso em: 26 jul. 2014.
9
BRASIL. Tribunal Regional Federal 5ª Região. Apelação cível AC492736-PE (processo originário nº 0005173-
48.2006.4.05.8300 PE). Apelante INCRA - INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA
AGRÁRIA e MISAEL DE LIMA E SILVA(e outro). Apelado USINA ESTRELIANA LTDA. Relator
DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO CAVALCANTI. Recife, j. em 10-12-2012.
343
Direito Agrário Ambiental

1. É de se compreender que a estrutura constitucional e legal sobre a matéria é de


grande conservadorismo, mas não pode o Juiz atuar fora da moldura que a
Constituição traçou. 2. Mesmo improdutiva a terra, descabida a ocupação, com a
realização de Justiça de mão própria. 3. Não providos os recursos do INCRA e dos
Trabalhadores sem terra.Vistos e relatados os presentes autos, resolve a 1ª. Turma do
TRF da 5ª. Região, por unanimidade, negar provimento às apelações, nos termos do
relatório e voto do Relator.Recife, 29 de novembro de 2012 Juiz Francisco
Cavalcanti, RELATOR

Observa-se ser clara a fundamentação da decisão dos órgãos judiciais, tanto da


sentença de primeiro grau da JFPE quanto do TRF5, um deleite apenas formal sobre a
caracterização do exercício da posse; o que houve por parte dos magistrados, infelizmente, foi
uma pobre análise dos institutos jurídicos, isto é, apenas se discutiu sobre a posse – sem,
contudo, ter havido uma verdadeira contextualização social. As manifestações do MST
restaram caracterizadas como motivo decisivo do esbulho possessório e principal argumento
para decidir em conceder a reintegração de posse à Usina Estreliana. O que vem a ser um
triste retrato do judiciário, visto que a Usina é acusada ao longo dos anos por várias denúncias
de violência, contratação de assassinos de aluguel, e a situação se arrasta, às portas da Justiça,
no tempo e sem uma definitiva resolução, enquanto a terra pertencente a esses engenhos
mostra-se um latifúndio improdutivo que não atende à realidade e à justiça social agrária.
As decisões prolatadas somente informam que deve sobressair no processo judicial o
sentido jurídico da posse conforme a teoria clássica do Código Civil de 1916, atendendo aos
requisitos tradicionais do Código de Processo Civil no que diz respeito à posse e aos
requisitos, não vindo a firmar o entendimento constitucional do cumprimento da função social
da terra rural. Isto é, a função social rural foi desprezada, não perfazendo um pressuposto a ser
concretizado pelo Judiciário no âmbito dessas decisões em sede federal.

3. DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA DA FAZENDA


TANQUES, NO MUNICÍPIO DE ITABAIANA/PB
Cuida-se do caso de desapropriação, para fins de reforma agrária, ocorrida na
Fazenda Tanques, localizada no município de Itabaiana/PB, frequente palco de conflitos
fundiários. Tanto assim o é que o Relatório Situação dos Direitos Humanos no Estado da
Paraíba, Brasil, elaborado por organizações da sociedade civil e apresentado por ocasião da
audiência realizada em 27 de fevereiro de 2003, durante o 117.º período de sessões da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos;
aponta para a Fazenda Tanques como lugar onde se deu o assassinato de um dos protagonistas

344
Direito Agrário Ambiental

de demandas organizadas por terra rural, Almir Muniz, bem como onde se deram outros casos
de violência no campo e pistolagem.
Nesse diapasão, traz-se à colação excerto do aludido relatório:
Na volta para casa, montado no trator, Almir Muniz foi visto entrando sozinho na
estrada de canavial que leva a Fazenda Tanques. Foi nessa hora, aproximadamente
8:00 horas da manhã, que foi visto pela última vez. Em 09 de julho de 2002, o
Centro de Justiça Global e a Comissão Pastoral da Terra da Paraíba apresentaram
denúncia ao Relator Especial do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre
Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, informando o ocorrido. Os indícios
levam a crer que o agricultor foi assassinado e enterrado na Fazenda Tanques, área
de grande litígio rural destinada para implementação da Reforma Agrária na Paraíba.
Essa mesma área havia sido vistoriada várias vezes pelo INCRA a pedido do grupo
de agricultores do qual Almir fazia parte. 10

Durante o inquérito policial revelou-se que o principal acusado era o policial civil e
administrador da Fazenda Tanques, Sérgio Azevedo, que também ameaçara de morte, além de
Almir Muniz, outros trabalhadores rurais daquela localidade.
Assim, vê-se o contexto extremamente contencioso em que se deu a desapropriação
da propriedade em comento. Tais conflitos não passaram alheios ao Poder Judiciário, tendo a
questão alcançado o Superior Tribunal Federal, por via do Mandado de Segurança intentado
pela proprietária da Fazenda Tanques em face do Presidente da República, mas indeferido
pela prova de que a aludida propriedade rural encontrava-se improdutiva, não atendendo
assim ao princípio econômico e constitucional de cumprimento da função social da
propriedade rural.
Maria Alaye Toscano Borges, proprietária do imóvel, pleiteou, assim, em 2004,
impedir que a autoridade coatora expedisse decreto que declararia o interesse social da
Fazenda Tanques, alegando que as vistorias realizadas pelo INCRA não levaram em
consideração os conflitos sociais que envolveriam o imóvel rural, além dos problemas
climáticos vivenciados na época, que acarretaram a decretação pelo Estado de calamidade
pública nos anos de 2001 e 2002. Aduziu, ainda, a impetrante, que tais condições ensejariam
a aplicação do §7º do art. 6 da Lei 8.629/93, o qual versa sobre exceção da qualificação de
propriedade produtiva por razões de força maior e caso fortuito.
Segundo o voto proferido pela Relatora, Min. Ellen Gracie, que indeferiu o remédio
constitucional, restou comprovado nos autos que os conflitos sociais existentes na propriedade
não se deveram às “invasões” do imóvel pelo MST, mas, sim, às disputas judiciais
provocadas pela própria impetrante que, em 1997, denunciou os contratos de arrendamentos

10
BRASIL. Relatório Situação dos Direitos Humanos no Estado da Paraíba, Brasil. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_jg_dh_paraiba.pdf >. Acesso em: 25 jul. 2014. p. 27
345
Direito Agrário Ambiental

(mesmo sabendo que estes só terminariam em 1998), “através dos quais era procedido o uso
do solo em culturas que tornavam a propriedade produtiva”11.
A decisão liminar do STF foi condicionada à prestação de informações. Nesse
sentido, a AGU expediu parecer em que aduzia que as duas primeiras vistorias produzidas nos
anos de 1997 e 1999, respectivamente, não foram levadas a cabo em razão da tensão social
entre a proprietária e os arrendatários expulsos. Em contrapartida, a terceira vistoria, realizada
em 2002, ocorreu após o decorrer do prazo legal de dois anos previsto na Lei n. 8.629/93, em
seu art. 2.º, §6.º.
Assim, conforme este parecer, restou claro que a declaração de estado de calamidade,
em decorrência da seca na região, por si só não configurou motivo suficiente capaz de ensejar
a falta de produtividade daquela área, de maneira que outros fatores foram decisivos. Destarte,
após a vistoria de 2002, o INCRA considerou a propriedade imóvel em comento como
improdutiva, indeferindo posterior impugnação administrativa intentada pela impetrante.
Acolhendo o parecer do Procurador-Geral da República, a relatora do caso, Min.
Ellen Gracie, indeferiu então o writ, por entender, conforme as razões ora expostas, que se
tratava, a Fazenda Tanques, de terra improdutiva, em harmonia com o laudo do INCRA.
Ainda em sede do Judiciário, subsistem dois processos no Tribunal Regional Federal
da 5ª Região (TRF 5), a saber Apelação Cível n. 11549/PB, de 2010, e Apelação Cível n.
26905/CE, de 2014, que versam sobre o montante indenizatório devido pelo INCRA à
proprietária, porquanto da desapropriação do imóvel por interesse social para fins de reforma
agrária, conforme o art. 184 da CF/88.
Após a referida desapropriação da Fazenda Tanques, localizada na região do
semiárido paraibano, foi criado projeto de assentamento que levou o nome de Almir Muniz
em homenagem ao trabalhador assassinado na luta camponesa.
O assentamento tem área estimada de 443,0693 ha, sendo que os trabalhadores, que,
hoje, encontram-se assentados ali, há décadas já ocupavam a terra enquanto moradores ou
arrendatários das terras. As famílias subsistiam na área em um regime de produção familiar
em que plantavam milho, feijão, inhame, batata doce, mandioca, amendoim, etc., tudo isso
destinado ao consumo próprio, comercializando, esporadicamente, o excedente.
O contrato de arrendamento a que estavam submetidos era firmado verbalmente com
o administrador da Fazenda Tanques, tendo duração de dois anos. A contraprestação

11
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 24.494-1 PB. Impetrante Maria Alayde
Toscano Borges. Impetrado Presidente da República. Relatora Ministra Ellen Gracie. Brasília 03 de março de
2004.
346
Direito Agrário Ambiental

pecuniária era dada inicialmente ao final do ano, em dinheiro, contudo a proprietária passou a
demandar o pagamento antecipado. Pouco depois, em face desta e de outras querelas, teve
início propriamente o conflito por terras naquela região:

O conflito teve início no ano de 1997, quando a proprietária proibiu que os


arrendatários e moradores continuassem a cultivar na propriedade. Um contrato
escrito, o Contrato Comodato, elaborado com o apoio do Sindicato de Trabalhadores
Rurais do município de Itabaiana-PB, no ano de 1996, foi repassado pela
proprietária aos trabalhadores que foram induzidos a assinar, justificando que o
mesmo seria renovado a cada três anos. Os agricultores assinaram o contrato
referente ao ano de 1995, que já haviam trabalhado, o de 1996, que estava em curso
e o do ano seguinte 1997. Ao final do contrato, a proprietária negou-se a realizar sua
renovação argumentando que queria a terra para uso próprio e assim os
trabalhadores foram obrigados a deixar a propriedade. Pouco tempo depois eles
descobriram que a propriedade estava sendo vendida a Carlos Henrique Carneiro
Golveia da Cruz, um produtor de cana-de-açúcar que tem diversas propriedades na
região e nos Estados do Piauí e do Maranhão. A partir daí eles começaram a se
organizar para lutar pela terra. (RODRIGUES; SILVA; MOREIRA, 2009, p. 12).

Daí em diante, conforme já delineado neste trabalho, conhece-se o processo (não só


judicial) perpetrado em nome da luta fundiária na propriedade, onde forças antagônicas
coexistem, ficando nas mãos do Judiciário, frequentemente, o papel de pacificá-las. O caso
em comento retrata a força e a resistência dos trabalhadores organizados em nome da luta pela
conquista da terra, bem como por melhores condições de vida, em uma região marcada por
desigualdades profundas, de que as assimetrias fundiárias são mero reflexo. Assim, pode-se
afirmar que prevaleceram os valores insculpidos em nossa Carta de 1988 no tocante à
imperatividade de reforma agrária e do objetivo maior de diminuição das desigualdades
sociais.

4. A RELEVÂNCIA CONCRETA DA DISTINÇÃO ENTRE DESAPROPRIAÇÃO


POR INTERESSE SOCIAL E PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA: UMA
ABORDAGEM CENTRADA NA CONSTRUÇÃO PRETORIANA
O tema que aqui será analisado, mesmo que de forma breve, é de grande importância
para questões práticas. Assim, é fundamental que se diferenciem e criem marcos distintivos
entre a desapropriação por necessidade pública, utilidade pública e interesse social.
A desapropriação por necessidade pública tem por principal característica uma
situação de urgência, cuja melhor solução será a transferência de bens particulares para o
domínio do Poder Público. Ocorre, então, quando há um problema inadiável e premente, isto
é, que não pode ser removido, nem procrastinado, e para cuja solução é indispensável
incorporar, no domínio do Estado, o bem particular.

347
Direito Agrário Ambiental

Por seu turno, a desapropriação por utilidade pública é marcada pela conveniência e
vantagem para a administração pública. Dessa forma, não há o caráter imprescindível nessa
forma de transferência, pois é apenas oportuna e vantajosa para o interesse coletivo. O
Decreto-lei 3.365 /41 prevê no artigo 5.º as hipóteses de necessidade e utilidade pública sem
diferenciá-las, o que somente poderá ser feito segundo o critério da situação de urgência.
Por último, tem-se a desapropriação por interesse social, e, segundo Meirelles
(2007):

[...] o interesse social ocorre quando as circunstâncias impõem a distribuição ou o


condicionamento da propriedade para seu melhor aproveitamento, utilização ou
produtividade em benefício da coletividade ou de categorias sociais merecedoras de
amparo específico do Poder Público. Esse interesse social justificativo de
desapropriação está indicado na norma própria (Lei 4.132 /62) e em dispositivos
esparsos de outros diplomas legais. O que convém assinalar, desde logo, é que os
bens desapropriados por interesses sociais não se destinam à Administração ou a
seus delegados, mas sim à coletividade ou, mesmo, a certos beneficiários que a lei
credencia para recebê-los e utilizá-los convenientemente.

Para fundamentar, então, essa desapropriação por interesse social,


encontraram-se três bases:
• O art. 5º, XXIV, da CR/88, disciplinado pela Lei n. 4.132/62, que, no seu art. 2º,
indica os casos de interesse social que são da competência da União, dos Estados, dos
Municípios, do Distrito Federal e dos Territórios (aplicação do art. 2º do Decreto-lei n.
3365/41, por força do que dispõe o art. 5º da Lei n. 4.132/62);
• O art. 182, § 4º, da CR/88, que cuida de hipótese nova de desapropriação cujo
objetivo é atender à função social da propriedade urbana expressa no Plano Diretor da cidade.
Essa modalidade está disciplinada pelo Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257, de 10.07.2001),
especialmente em seu artigo 8º;
• O art. 184, da CR/88, que prevê a desapropriação por interesse social, para fins de
reforma agrária, que é de competência exclusiva da União e tem como objetivo assegurar a
função social da propriedade rural; está disciplinada pela Lei complementar n. 76/93, alterada
pela Lei Complementar n. 88/96, pelos arts. 18 a 23 do Estatuto da Terra (Lei n. 4504/64) e
pela Lei n. 8.629/93, alterada pela Medida Provisória n. 2.027-42, de 28.08.2000. A
caracterização de imóvel rural, no caso, é meramente topográfica, não devendo o intérprete se
ater ao critério da destinação. Por isso, só o imóvel situado em zona rural poderá ser objeto
dessa espécie de desapropriação; não o urbano que tenha destinação rural. O STF já desfez,
entretanto, o engano de quem entendia que a desapropriação de imóveis rurais é sempre de

348
Direito Agrário Ambiental

competência exclusiva da União; somente o é quando o imóvel rural se destinar à reforma


agrária. (RDA 152/122 e RT 595/266).
Construída uma base teórica, passa-se a analisar questões concretas, por meio de
jurisprudência.
O primeiro caso é oriundo de ação patrocinada pela ASPLAN - Associação de
Plantadores de Cana da Paraíba contra o INCRA - Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária, o Estado da Paraíba e o INTERPA - Instituto de Terras e Planejamento
Agrícola do Estado da Paraíba.
De maneira resumida, pode-se extrair dos autos que houve um convênio firmado
pelos réus visando à obtenção de terras para o estabelecimento e a manutenção de colônias ou
cooperativas de povoamento e trabalhos agrícolas, previstas na Lei nº 4.132/62, e não a
desapropriação para fins de reforma agrária.
Ocorre que a parte ingressante alude que o convênio viola o art. 184 da CF, contudo
houve o contra-argumento afirmando que a desapropriação por interesse social comporta duas
espécies: uma para fins de reforma agrária, de competência exclusiva da União, e outra para
condicionar o uso da propriedade ao bem-estar social e à justa distribuição da terra ( Lei
4.132/62), de competência concorrente da União, dos Estados e dos Municípios, destinada ao
estabelecimento ou à manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho
agrícola – tese acolhida pelo Judiciário.
Assim, o objeto do processo versa sobre a definição do tipo de desapropriação
prevista no convênio, se é por interesse social, para o estabelecimento de colônias ou
cooperativas de povoamento e trabalho agrícola, disciplinada pela Lei n.º 4.132/62, ou para
fins de reforma agrária, estabelecida no art. 184 da Constituição Federal e regulamentada pela
Lei n.º 8.623/93.
A previsão de desapropriação com objetivo de estabelecimento e manutenção de
colônias ou cooperativas de povoamento e trabalhos agrícolas encontra guarida no inciso III
do art. 2º da Lei nº 4.132/62, nas hipóteses em que a mencionada norma considera de
interesse social, conforme abaixo transcrito:

Art. 2º - Considera-se de interesse social:


[...]
III - o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e
trabalho agrícola.

Superado o embate acerca de qual modalidade de desapropriação encontra-se em


questão, chega-se ao interesse da ASPLAN, uma vez que existe cláusula (15.ª) no convênio
349
Direito Agrário Ambiental

firmado entre os réus que determina a incorporação das terras desapropriadas do Patrimônio
do Governo do Estado da Paraíba, de modo que as colônias e cooperativas de povoamento e
trabalho agrícola não teriam o pleno controle das terras ocupadas, que pertenceriam ao
Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho discutiu a situação agrária no Nordeste e, bem assim, no Brasil, sob a
perspectiva da atuação do Poder Judiciário quando provocado para dirimir os conflitos sobre a
terra. Antes de entender-se esta como uma questão que diz respeito, tão somente, à
propriedade privada, buscou-se compreender os imóveis rurais no contexto das relações
sociais travadas no campo e da relação homem-terra.
Como visto, emerge dessa perspectiva a preocupação do constituinte em tutelar os
interesses sociais e coletivos a partir da positivação do princípio da função social da
propriedade rural, buscando compatibilizar seu conteúdo eminentemente privatístico e
individualista com aqueles interesses e direitos mais amplos. A concretização desse
desiderato, porém, perpassa a atuação jurisdicional, de modo que a avaliação do cumprimento
da função social relacionada apenas à “produtividade” da terra – como se verifica na prática
dos órgãos judiciais – vem limitando o alcance da norma constitucional.
Com efeito, há a necessidade de uma reconfiguração das formas de operar do sistema
de justiça, na medida em que este fecha os olhos para os problemas sociais do campo no afã
de tutelar o direito individual de propriedade privada, potencializando (e não pacificando) as
disputas de terra verificadas entre latifundiários, trabalhadores rurais e camponeses sem terra.
Os despejos forçados, a criminalização dos movimentos sociais e as ações de
reintegração de posse contra os camponeses – muitas vezes alvos de ameaças e de violência –
deixam entrever em sua origem a negativa, pelo Judiciário – e, numa perspectiva mais ampla,
pelo próprio Estado –, da efetivação dos direitos humanos afirmados pelas declarações e
cartas internacionais, e positivados na própria Constituição brasileira de 1988, servindo a
transposição dos conflitos agrários à dimensão jurisdicional para legitimar as vetustas
estruturas de poder das relações sociais no campo.
Conquanto seja essa a realidade da vasta maioria dos órgãos jurisdicionais, é possível
encontrar nos corredores do Judiciário alguns agentes comprometidos, através das decisões e
dos votos proferidos, com a efetivação daqueles preceitos fundamentais, contemplando as
necessidades individuais e coletivas que vão além do conteúdo econômico do bem jurídico

350
Direito Agrário Ambiental

terra, tendo em vista a tutela dos direitos a esta correlatos, como direito ao trabalho, à
moradia, à alimentação, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, dentre outros
igualmente essenciais à sadia qualidade de vida e à concretização do macroprincípio da
dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS
AZEVEDO, André Luiz Barreto. Judiciário, direito à terra e reforma agrária no Brasil: um
estudo da posse e da propriedade à luz dos conflitos coletivos e dos tribunais. 2012. 126 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Curso de Direito, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2012.
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 24.494-1 PB. Impetrante
Maria Alayde Toscano Borges. Impetrado Presidente da República. Relatora Ministra Ellen
Gracie. Brasília 03 de março de 2004.
BRASIL. Tribunal Regional Federal 5ª Região. Apelação cível AC492736-PE (processo
originário Nº 0005173-48.2006.4.05.8300 PE). Apelante INCRA - Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária e Misael de Lima e Silva (e outro). Apelado Usina Estreliana
Ltda. Relator Des. Federal Francisco Cavalcanti. Recife 10/12/2012.
______. Relatório da situação dos direitos humanos no estado da paraíba, Brasil. Disponível
em: < http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_jg_dh_paraiba.pdf >. Acesso em: 26
jul. 2014.
MARTINS, Mariana. Sai imissão de posse da usina estreliana para reforma agrária. Terra de
Direitos. Matéria disponível em: < http://terradedireitos.org.br/2006/04/12/sai-imissao-de-
posse-da-usina-estreliana-para-reforma-agraria/>. Acesso em: 26 ago. 2014.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33ª edição atualizada. São
Paulo: Editora Malheiros, 2007
RODRIGUES, Luana; SILVA, Áurea; MOREIRA, Emília. Do conflito de terra à construção
da vida na terra: o caso do PA Almir Muniz Silva. In: XIX ENCONTRO NACIONAL DE
GEOGRAFIA AGRÁRIA, São Paulo, 2009.

351
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XIX – DIREITO AGRÁRIO, ESTATUTO DA TERRA E CONTRATOS


AGRÁRIOS: LIMITES E CONTRADIÇÕES

Fábio Roberto Cavalcante Bizerra1


Flávio da Silva Lacerda2
Laíla Shaira Diniz Pereira3
Maria Amanda Alves de Melo4

INTRODUÇÃO
O desenvolvimento das normas jurídicas do Direito Agrário, incluindo o estudo dos
contratos agrários, tem por pilar três grandes princípios, quais sejam: função social da
propriedade, justiça social e prevalência do interesse público.
Os contratos agrários, objeto do presente artigo, contextualizam um interessante
debate, incluindo a observância dos princípios acima mencionados e a sua relação com a
garantia de acesso à terra. Assim, levando em consideração esses pressupostos, mostra-se
interessante verificar os limites e as contradições que os contratos agrários encontram na
legislação respectiva, principalmente no que se refere à sua utilização como meio de garantir a
função social da propriedade e de serem instrumentos para assegurar o acesso à terra.
Desse modo, utilizando-se de documentação indireta, com consulta à doutrina, à
legislação e à jurisprudência, foi possível encontrar elementos básicos para aferir o tema;
ainda, mediante um método de abordagem dedutivo, já que se partiu do geral para o
específico, chegou-se a elementos que indicam a utilização do contrato como meio de garantir
o uso da terra, de garantir a igualdade entre os contratantes.
Para o desenvolvimento do tema, o artigo foi dividido em três tópicos. O primeiro
tópico aborda o histórico legislativo e o conceito dos contratos agrários, tendo em vista que,
através da apreciação de tais parâmetros, é possível encontrar contradições; o segundo tópico
destina-se a analisar os tipos contratuais, sendo, ao mesmo tempo, encontrados limites nos
dispositivos legais destinados aos mesmos; por fim, o terceiro tópico busca analisar os limites
e as contradições dos contratos agrários, vendo se os mesmos se destinam a assegurar a
função social da propriedade e o acesso à terra.

1. FUNDAMENTOS DOS CONTRATOS AGRÁRIOS


1
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
2
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
3
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
4
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

352
Direito Agrário Ambiental

Com o surgimento do chamado Estado Social de Direito, ganham destaque assuntos


de importância coletiva, contrastando com a visão anterior em que os interesses privados eram
analisados primeiramente. Uma das consequências desse novo paradigma foi a submissão do
direito de propriedade ao interesse coletivo, de forma que o imóvel não pode ser utilizado
única e exclusivamente em benefício do proprietário, cabendo a este garantir que a
propriedade cumpra uma função; para isso, o imóvel deve ser preservado e ter utilidade
coletiva.
A Constituição Federal, no art. 5º, inc. XXIII, dispõe que a propriedade deve atender
à sua função social; por sua vez, o art. 186, também da Carta Magna, elenca os requisitos para
o cumprimento da função social da propriedade rural, dispondo que a função social será
cumprida quando a propriedade rural atendem, simultaneamente, segundo critérios e graus de
exigência estabelecidos em lei, o aproveitamento racional e adequado, a utilização adequada
dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente, a observância das
disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos
proprietários e dos trabalhadores.
Com base em tais previsões, os contratos agrários, como instrumento de
normatização das relações contratuais, da propriedade e do uso da posse do imóvel rural, têm
o efeito de desempenhar norte indispensável para o atendimento da função social da
propriedade, funcionando como ferramenta para a correta destinação do imóvel, e também
estipulando preceitos que promovam a preservação do meio ambiente e de direitos individuais
envolvidos na relação, como é o caso da propriedade e do uso e da posse da área rural.

1.1 Histórico legislativo dos contratos agrários


Com a finalidade de regulamentar as relações de uso ou posse temporária do imóvel
rural para a implementação de atividade agrícola, surgiram os denominados contratos
agrários.
O primeiro diploma legal a introduzir dispositivos especiais aplicados aos prédios
rústicos foi o Código Civil de 1.916; até o advento do mesmo, o ordenamento jurídico
brasileiro era completamente omisso no tocante à regulamentação das relações jurídicas
contratuais relacionadas com as atividades agrárias. Os dispositivos do Código de 1.916
referentes aos contratos foram fortemente influenciados pelo aspecto urbanístico, desprovido
de qualquer preocupação de caráter social, motivo pelo qual dava primazia à liberdade

353
Direito Agrário Ambiental

individual, considerando proprietários e parceiros ou arrendatários como se fossem


efetivamente iguais.
Ocorre que os excessos do liberalismo, a autonomia de vontade que imperava como
lei, acabaram gerando situações de injustiça social, pois era comum que o trabalhador rural
que firmasse um contrato entrasse apenas como um fator de produção, ou até mesmo que o
proprietário do imóvel não obtivesse lucros com o aluguel de suas terras. Todavia, ao longo
do tempo, uma mudança daquela visão individualista ocorreu, levando a uma restrição da
autonomia da vontade, em face do interesse público, na busca de equilíbrio e harmonia nas
relações jurídicas. (CARMAÇO; LOPES, 2001, p. 80).
Tal mudança, considerável na regulamentação dos contratos agrários, ocorreu a partir
das normas editadas através da Lei n.º 4.504/64, que dispõe sobre o Estatuto da Terra e dá
outras providências, momento em que os contratos agrários passaram a ter regulamentação
própria. Com a edição do Estatuto da Terra o Código Civil de 1.916 deixou de ser aplicado
aos temas agrários, entretanto esse regulamento especificamente rural teve o efeito de subtrair
das partes a total liberdade de contratar, que é um dos principais aspectos em matéria
contratual. Isso levou a uma mudança de postura, pois a vontade das partes foi substituída
pelo dirigismo estatal.
O dirigismo estatal destacou-se por trazer limitações à vontade das partes na
contratação agrária, e, para isso, houve a intervenção do Estado para proteger a parte mais
fraca na relação contratual e garantir a efetividade na utilização do imóvel rural, com vistas a
que ocorresse a combinação entre a produtividade e a sustentabilidade. (SENN, 2013, p. 251-
279).
Acerca da matéria também foi editado o Decreto n.º 59.566/66, que tratou
especificamente dos contratos agrários, sendo por isso conhecido como o Regulamento dos
Contratos Agrários, porque se destinou, especificamente, a dispor sobre regras acerca do
arrendamento e da parceria rural, além de trazer referência a normas que podem ser aplicadas
nas demais relações de uso, gozo e posse temporária de área rural.
O Código Civil 2002 não trouxe dispositivos específicos sobre os contratos agrários,
até mesmo porque já existia ampla regulamentação sobre os mesmos, mas o novo código
promoveu avanços que se refere aos contratos privados, de modo que pode ser aplicado
subsidiariamente aos contratos agrários no que a legislação específica é omissa, notadamente
no que atine ao acordo de vontades entre as partes e em pontos mais específicos, como o
prazo para alegar vícios redibitórios na compra e venda de animais (art. 445, § 2°, CC/02), o

354
Direito Agrário Ambiental

prazo do mútuo de produtos agrícolas (art. 592, I, CC/02), e a prestação de serviços em


imóvel agrário (art. 609, CC/02).
Desse modo, atualmente os contratos agrários encontram-se disciplinados pelo
Estatuto da Terra e pelos seus regulamentos, que, embora tenham o intuito de conferir
estabilidade e justiça ao trabalhador sem terra, através do controle do poder público, sofrem
críticas por a doutrina agrarista entender que não contribuem para o alcance da justiça social
no campo.
Assim, é possível dizer que o Estatuto da Terra traz contradições em seu texto, pois
se, de um lado, assegura a todos a oportunidade de acesso à terra, visando alcançar a justiça
social5, por outro lado, na parte dedicada ao desenvolvimento rural, mais especificamente nos
contratos agrários, acaba por estabelecer restrições ao acesso à terra por parte de quem
efetivamente a trabalha6.
Interessante é mencionar que tanto a propriedade quanto a posse agrária estão
condicionadas ao princípio da função social, intrínseco à ideia de justiça social. Mas a posse
agrária, de quem efetivamente trabalha a terra, tende a ganhar maior destaque do que a
propriedade que permanece inerte, sem ter função social (HAZAN; POLI, 2013, p. 2013). E
isso se relaciona com os contratos agrários, tendo em vista que a eles são inerentes esses
princípios e regras relacionadas ao comprimento de uma função, diferentes dos preceitos
privados que regem os contratos em geral.

1.2 Conceito e partes dos contratos agrários


Os contratos agrários são aqueles que permitem o uso e a posse temporária da terra
alheia por parte de agricultores e pecuaristas.
Sousa (1994) leciona que:

Por contrato, em sentido estrito, entende-se o acordo de vontades entre partes


capazes, com a finalidade de estabelecer condições para produzir, alterar ou
extinguir direitos. Em sentido amplo equivale à convenção de vontades sobre
negócio jurídico, significando ainda, em linguagem popular, o instrumento
normalmente escrito que consubstancia e faz prova da vontade das partes, seu
objeto, preço, prazo, etc.

5
Lei n.º 4.504/64, art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela
sua função social, na forma prevista nesta Lei.
6
Lei n.º 4.504/64, art. 16. A Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a
propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso, o bem-estar do trabalhador
rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio.
355
Direito Agrário Ambiental

É possível, então, afirmar-se que o contrato agrário pode ser entendido como todas as
formas de acordo de vontades que se celebrem, segundo a lei, para o fim de adquirir,
resguardar, modificar ou extinguir direitos vinculados à produtividade da terra. (MARQUES,
2007, p. 177-178).
Os contratos agrários podem ser típicos ou atípicos. São típicos os contratos de
arrendamento rural e os de parcerias. São atípicos os contratos celebrados nos termos do art.
39 do Decreto n.º 59.566/66, ou seja, quando o uso ou a posse temporária da terra for
exercido(a) por qualquer outra modalidade contratual, diversa dos contratos de Arrendamento
e Parceria; serão observadas pelo proprietário do imóvel as mesmas regras aplicáveis a
arrendatários e parceiros, em especial a condição estabelecida no art. 38 supramencionado.
Por sua vez, Marques (2007, p.177) prescreve:

É imperioso consignar, outrossim, que o art. 39 do Decreto nº 59.566/66 prevê a


possibilidade de existirem outros contratos – que seriam inominados ou atípicos –
aos quais se aplicam as mesmas regras estabelecidas para contratos agrários típicos.
O que importa é que se verifique o uso ou a posse temporária da terra. São exemplos
desses contratos o comodato, a empreitada, o compáscuo, o “cambão”, o “fica”, etc.

O Capítulo IV do Título III da Lei nº 4.504/64, o Estatuto da Terra, dispõe sobre o


uso ou a posse temporária da terra, disciplinando os contratos agrários de arrendamento e os
de parceria (agrícola, pecuária, agroindustrial e de extrativismo).
O Decreto nº 59.566/66 estabelece:

Art. 1º O arrendamento e a parceria são contratos agrários que a lei reconhece, para
o fim de posse ou uso temporário da terra, entre o proprietário, quem detenha a
posse ou tenha a livre administração de um imóvel rural, e aquele que nela exerça
qualquer atividade agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista.

O conceito de contratos agrários envolve também as partes que podem firmá-lo. Os


sujeitos envolvidos devem preencher os requisitos expressos no Código Civil, ou seja, o
contrato agrário tem de ser feito por pessoa capaz, isto é, que possa consentir validamente e
que o objeto do acordo seja lícito, sem esquecer a forma prescrita no Estatuto da Terra.
Os contratos agrários têm, de um lado, o outorgante, que é o proprietário, detentor de
posse com justo título ou administrador com poderes, podendo ser a pessoa física ou jurídica;
e, do lado oposto, o outorgado, aquele que vai exercer atividade agrícola. Cabe frisar que,
embora a legislação descreva que o contratante que irá exercer atividade na propriedade seja
trabalhador rural, na realidade tanto a pessoa física quanto a jurídica ou um conjunto familiar
poderão firmar contrato agrário, recebendo o imóvel rural com o fim de exercer atividade
agrária.
356
Direito Agrário Ambiental

2.3 Aspectos gerais dos contratos agrários


Tendo em vista que o contrato agrário pode ser descrito como sendo formas de acordo
de vontade que os interessados em firmá-lo celebrem, segundo a lei, para o fim de adquirir,
resguardar, modificar ou extinguir direitos vinculados à produtividade da terra, é
imprescindível destrinchar alguns princípios e características que são inerentes a essa relação.
Os princípios e as características representam preceitos que devem ser observados
nos contratos agrários, sejam eles firmados verbalmente ou por escrito, uma vez que
representam limites, cuja finalidade é estabelecer para aqueles que desejem firmar contrato,
que tenha por objeto a terra, o dever de observar, por exemplo, a função social da propriedade
e do contrato, a licitude do objeto e a igualdade entre os contratantes.

2.3.1 Princípios dos contratos agrários


Os contratos agrários devem respeitar alguns princípios, com o fim de assegurar a
sua função social, promover a igualdade entre os seus contratantes e garantir que o seu objeto
não é ilícito, tendo a capacidade de beneficiar a coletividade.
O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado assevera que os
contratos agrários estão submetidos às normas mandatárias e irrenunciáveis que representam
interesses gerais da coletividade, prefixadas legalmente e, portanto, acima da vontade das
partes contratantes. O que quer dizer que o Estado conduzirá a vontade das partes, impondo
cláusulas obrigatórias, proibindo a renúncia a direitos, estabelecendo prazos mínimos, fixando
preço do arrendamento de acordo com as regras legais. (SENN, 2013, p. 251-279).
Pelo princípio da função social do contrato, a liberdade contratual será exercida no
limite da função social do contrato, preceito de ordem pública que serve como meio para
assegurar as finalidades eleitas pela coletividade e a promoção do interesse social na
utilização do imóvel rural, assim como para proteger o que tenha menor poder aquisitivo na
relação agrária. Note-se que a função social que deve ser dada à propriedade rural resulta da
combinação de diversos princípios jurídicos, visto por um aspecto relacionado a situações
concretas. (FARIAS, 2012, p. 206).
O princípio da liberdade de forma fixa que, para a celebração dos contratos agrários,
não se exige forma especial, portanto os mesmos poderão ser celebrados tanto de forma
escrita quanto verbal, o documento sendo substituído pelo prometido, o que é prática comum
na área rural. Não obstante existir liberdade para as partes escolherem a forma como desejam
contratar – se de forma escrita ou verbal, com aceitação expressa ou tácita –, é fato que o

357
Direito Agrário Ambiental

contrato escrito é dotado de maior segurança quando comparado ao contrato verbal, que só
poderá ser comprovado por meio de testemunhas.
Pelo princípio da equivalência das prestações, considerando a função social a que se
destinam os contratos agrários, eles devem promover ganhos para ambos os contratantes;
assim, as prestações, os direitos e as obrigações devem ser equânimes e justos para todos.
O princípio da proteção do hipossuficiente prescreve que no ato de celebração dos
contratos agrários deve ser destinado espaço para cláusulas que assegurem a proteção social e
econômica dos arrendatários e dos parceiros, ou demais contratantes agrários. Exemplo disso
é encontrado no art. 13, inc. V, da Lei n.º 4.947/66, que impõe proteção social e econômica
aos arrendatários cultivadores diretos e pessoais; no art. 78 do Decreto n.º 59.566/66, que trata
da assistência jurídica e creditícia aos arrendatários e parceiros; e no art. 93, incisos I ao V, do
Estatuto da Terra, que, ao fixar regras de proteção, estipula também cláusulas de contratação
proibida, sendo que qualquer estipulação que contrarie as normas estabelecidas será
considerada nula de pleno direito.
Por fim, o princípio da proteção dos recursos naturais estabelece que qualquer
contrato agrário deverá, obrigatoriamente, assegurar a conservação dos recursos naturais,
obedecendo, portanto, à legislação ambiental e ao princípio do desenvolvimento sustentável.
Tal princípio só vem reafirmar a função socioambiental dos contratos agrários, de forma a
exigir que os contratantes observem normas de proteção ao meio ambiente. Aqui, a função
social dos contratos agrários é introduzida para tutelar as relações que tenham por objeto a
propriedade agrária, de modo a estabelecer a proteção das partes e do uso racional dos
recursos naturais, assegurando a efetividade da função social da propriedade agrária.

2.3.2 Características dos contratos agrários


Os contratos agrários também apresentam características que servem como
limitações para a sua celebração, uma vez que a inobservância desses preceitos pode levar à
nulidade dos contratos.
Eles são consensuais, pois os direitos e as obrigações das partes surgem com o
simples consentimento das partes, aperfeiçoando-se com a integração das declarações de
vontade dos declarantes (GAGLIANO, 2011, p. 172). Porém, especificamente quando os
contratos agrários precisarem ser registrados, e nos casos de financiamento, será necessário
que sejam feitos por escrito.

358
Direito Agrário Ambiental

Os contratos são também bilaterais – as partes se obrigam reciprocamente, com


interdependência entre as obrigações; onerosos – ambas as partes visam obter benefícios
numa relação de equivalência, pois o proveito que será aferido tem por consequência um
sacrifício, por isso existe ônus; ao mesmo tempo, acarretam vantagens a ambas as partes, ou
seja, sacrifícios e benefícios recíprocos (GONÇALVES, 2010, p. 93); comutativos – há
benefícios recíprocos certos, numa relação de equivalência das prestações; de trato sucessivo
– as obrigações são continuadas e não se esgotam numa simples operação de crédito; neles
existe maior limitação da liberdade de contratar, porque a lei estabelece cláusulas obrigatórias
e, por outro lado, direitos e garantias irrenunciáveis, visando à proteção à parte mais
hipossuficiente.
Ainda, os contratos são não formais, já que, ao menos em sua maioria, não existe a
necessidade de serem escritos e registrados. Contudo, não há unanimidade nesse aspecto, até
porque, embora a lei não exija forma especial para a sua formação e validade, eles deverão
respeitar o Estatuto da Terra, a Lei nº 4.947/66 e o Decreto n.º 59.566/66, que estipulam
indicações que devem ser seguidas em seu art. 12, in verbis:

I - Lugar e data da assinatura do contrato;


II - Nome completo e endereço dos contratantes;
III - Características do arrendador ou do parceiro-outorgante (espécie, capital
registrado e data da constituição, se pessoa jurídica, e tipo e número de registro do
documento de identidade, nacionalidade e estado civil, se pessoa física, e sua
qualidade (proprietário, usufrutuário, usuário ou possuidor);
IV - característica do arrendatário ou do parceiro-outorgado (pessoa física ou
conjunto família);
V - objeto do contrato (arrendamento ou parceria), tipo de atividade de exploração e
destinação do imóvel ou dos bens;
VI - Identificação do imóvel e número do seu registro no Cadastro de imóveis rurais
do IBRA (constante do Recibo de Entrega da Declaração, do Certificado de
Cadastro e do Recibo do Imposto Territorial Rural);
VII - Descrição da gleba (localização no imóvel, limites e confrontações e área em
hectares e fração), enumeração das benfeitorias (inclusive edificações e instalações),
dos equipamentos especiais, dos veículos, das máquinas, dos implementos e dos
animais de trabalho e, ainda, dos demais bens e/ou facilidades com que concorre o
arrendador ou o parceiro-outorgante;
VIII - Prazo de duração, preço do arrendamento ou condições de partilha dos frutos,
produtos ou lucros havidos, com expressa menção dos modos, das formas e épocas
desse pagamento ou partilha;
IX - Cláusulas obrigatórias com as condições enumeradas no art. 13 do presente
Regulamento, nos arts. 93 a 96 do Estatuto da Terra e no art. 13 da Lei 4.947-66;
X - foro do contrato;
XI - assinatura dos contratantes ou de pessoa a seu rogo e de 4 (quatro) testemunhas
idôneas, se analfabetos ou não puderem assinar. (OPITZ; OPITZ, 2010, p.
276).

Ainda, embora os contratos agrários, de acordo com nossa legislação, possam ser
escritos ou verbais (sendo a dispensa de documento escrito resultado da adequação à realidade
359
Direito Agrário Ambiental

social vivida no meio rural), eles presumem-se ajustados com cláusulas obrigatórias
estabelecidas no art. 13 do Decreto 59.566/66, as quais possuem dupla finalidade: proteger
social e economicamente a parte mais fraca e assegurar a conservação do Meio Ambiente.
As cláusulas expressas no art. 13 do referido decreto são irrenunciáveis, portanto
todo contrato deverá conter cláusulas destinadas a observar a: conservação dos recursos
naturais; estipulação dos prazos mínimos; observância de disposições do Código Florestal;
exigência de práticas agrícolas; fixação do preço do arrendamento; fixação das condições de
partilha dos frutos, produtos ou lucros havidos na parceria; observância de normas dirigidas à
renovação ou prorrogação dos contratos; observância de normas condizentes com as causas de
extinção ou rescisão contratual; observância de normas determinantes do direito e das formas
de indenização quanto às benfeitorias realizadas e quanto aos danos substanciais causados
pelo parceiro-outorgante; observância de normas de proteção social e econômica dos
arrendatários e dos parceiros-outorgados; observância de normas pertinentes ao direito e à
oportunidade de dispor dos frutos ou produtos repartidos na forma indicada pelo art. 96, V, f,
do Estatuto da Terra.

3 ESPÉCIES DE CONTRATOS AGRÁRIOS


Mediante a utilização de um imóvel é firmado o contrato agrário, para que, através
do uso ou da posse temporária da terra, seja implementada atividade agrícola ou pecuária,
sendo o contrato agrário, portanto, o instrumento através do qual o homem rural, dedicado à
terra – mas sem terra –, pode cultivá-la diretamente, nela desenvolvendo sua empresa.
Assim, uma ou mais pessoas firma/firmam o contrato agrário para a entrega ou a
cessão a outra ou outras, por tempo determinado ou não, do uso ou da posse temporária da
terra, para nela ser exercida atividade de exploração agrícola ou pecuária. Com base nesse
preceito geral, são firmados contratos mais específicos que deverão conter os elementos do
gênero, mas com peculiaridades que lhe são próprias.

3.1 Contratos Típicos


Sob a rubrica “Do uso ou da Posse temporária de terra”, o Estatuto da Terra discorre
sobre determinados contratos agrários nos arts. 92 a 96, fixando os traços marcantes do
arrendamento e da parceria rural, sendo ulterior delineamento também feito através do
Decreto n.º 59.566/66. Como esses contratos encontram previsão legal, são denominados
típicos ou apenas nominados.

360
Direito Agrário Ambiental

3.1.1 Arrendamento rural


O arrendamento rural encontra previsão no art. 3º do Decreto n.º 59.566/66, que
dispõe ser esse tipo de contrato aquele pelo qual uma pessoa se obriga a ceder a outra, por
tempo determinado ou não, o uso e o gozo do imóvel rural, parte ou partes do mesmo,
incluindo, ou não, outros bens, benfeitorias ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida
atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista, mediante certa
retribuição ou aluguel, observados os limites percentuais da lei.
Como se verifica no conceito, o arrendatário, em decorrência do contrato, passa a ter
o uso e o gozo do imóvel, não estando definido o tipo de atividade a ser exercida. O uso e o
gozo supõem o livre exercício de qualquer atividade agrária licita, observadas as regras legais
de uso do solo.
Pelas regras específicas em vigor, o valor do arrendamento7 não pode ser ajustado
livremente, uma vez que há limites legais. Assim, ele não pode ser fixado, no caso de
arrendamento total, por valor superior a 15% (quinze por cento) do valor cadastral do imóvel
(valor da terra nua) acrescido do valor das benfeitorias que entrarem na composição do
negócio; e, tratando-se de arrendamento parcial, com exploração intensiva e alta
rentabilidade, o preço pode ir ao limite de 30% (trinta por cento) sobre o valor cadastral da
parte que for arrendada.
Durante a vigência de um contrato agrário, as partes têm algumas obrigações, que
derivam dos avanços promovidos pelas regras do Estatuto da Terra e pelo atual Código Civil
que fazem importantes acréscimos referentes à função social do contrato. Assim, as mudanças
e a observância da função social nos contratos têm o objetivo de garantir efetivamente os
direitos de quem cultiva a terra, principalmente no que diz respeito ao acesso à terra,
constitucionalmente garantido a todos.
Os direitos inerentes aos contratos são observados, por exemplo, no que se refere aos
prazos, apesar de serem definidos como mínimos na lei, pois é normal não serem cumpridos
pelos proprietários, ou então se transformam em prazos máximos. Assim, visando superar
esse obstáculo, o Estatuto da Terra fixou prazos mínimos legais.
Os contratos de arrendamento e parceria podem ser celebrados por prazo
determinado ou indeterminado, sendo obrigatória a observância dos prazos mínimos
estabelecidos na lei. Sendo de prazo indeterminado, não pode ser extinto antes desse prazo

7
O preço do arrendamento sempre deve ser ajustado em dinheiro, em valor certo, mas o pagamento pode ser
efetuado tanto em dinheiro, como em produtos ou frutos, conforme preço de mercado local, nunca inferior ao
preço mínimo oficial, como já prever o art. 18 do Decreto n.º 59.566/66.
361
Direito Agrário Ambiental

mínimo estabelecido na lei, presumindo-se feito pelo prazo mínimo de 3 (três) anos, com a
garantia de prorrogação até a ultimação da colheita; e, se a lavoura for permanente ou
pecuária de grande porte para cria, recria, engorda ou extração de matérias-primas de origem
animal, o prazo mínimo deve ser de 5 (cinco) anos, ou, ainda, de 7 (sete) anos nos contratos
em que ocorra atividade de exploração florestal.
Os prazos mínimos têm, entre outras, as finalidades de proteger o débil econômico,
ou seja, o arrendatário ou o parceiro-outorgado, e de evitar o mau uso da terra. Nesse sentido,
quanto maior a duração do contrato, maior será a possibilidade de obtenção de renda pelo
contratado; ao mesmo tempo, este se preocupará mais com a preservação ambiental no imóvel
objeto do contrato.

3.1.2 Contratos de parceria


A parceria rural refere-se à cessão de imóvel rurícola por tempo determinado, com o
propósito de que nele seja realizada atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial,
extrativa, entre outras, conforme preceitua o § 6º do art. 96 do Estatuto da Terra, como
também o art. 4º do Decreto 59.566/66:

Parceria rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra,
por tempo determinado ou não, o uso específico de imóvel rural, de parte ou
partes dele, incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e/ou facilidades, com o
objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária,
agroindustrial, extrativa vegetal ou mista; e/ou lhe entrega animais para cria, recria,
invernagem, engorda ou extração de matérias-primas de origem animal, mediante
partilha, isolada ou cumulativamente, dos seguintes riscos: (Incluído pela Lei nº
11.443, de 2007).

Assim como os contratos de arrendamento, os contratos de parceria reúnem algumas


peculiaridades, apresentando evidente finalidade econômica, estrita obediência aos tetos
fixados pelo Estatuto da Terra (art. 96, VI), bilateralidade e status de contrato intuitu
personae. (LÔBO, 2002).
O prazo do contrato de parceria obedece ao mesmo regramento aplicado ao contrato
de arrendamento, podendo ser determinado ou indeterminado, com a fixação de prazo mínimo
de 3 (três) anos, observando-se a prorrogação advinda do direito à conclusão da última
colheita (inc. I do art. 96).
Além disso, deve-se consignar que o contrato de parceria está afetado por obrigações
impostas pelo art. 96 do Estatuto da Terra, tais como: direito à conclusão da colheita –
priorizando a prorrogação do contrato de parceria rural (inc. I do art.96), direito de preferência

362
Direito Agrário Ambiental

do parceiro outorgado (inc. II do art. 96); dever de tratamento dos animais pelo parceiro-
outorgado (inc. III do art. 96); dever de prestar moradia higiênica e área para plantio e criação
de animais por parte do parceiro-outorgante (inc. IV do art. 96); e observância de quotas de
participação (inc. VI do art. 96).
Dessas obrigações, é importante detalhar as quotas de participação, que são
percentuais a serem observados pelos parceiros (outorgante e outorgado). Destarte, o Estatuto
da Terra computou os seguintes percentuais:

VI - na participação dos frutos da parceria, a quota do proprietário não poderá ser


superior a:
a) dez por cento, quando concorrer apenas com a terra nua;
b) vinte por cento, quando concorrer com a terra preparada e moradia;
c) trinta por cento, caso concorra com o conjunto básico de benfeitorias, constituído
especialmente de casa de moradia, galpões, banheiro para gado, cercas, valas ou
currais, conforme o caso;
d) cinquenta por cento, caso concorra com a terra preparada e o conjunto básico de
benfeitorias enumeradas na alínea "c" e mais o fornecimento de máquinas e
implementos agrícolas, para atender aos tratos culturais, bem como com sementes e
animais de tração e, no caso de parceria pecuária, com animais de cria em proporção
superior a cinquenta por cento do número total de cabeças objeto de parceria;
e) setenta e cinco por cento, nas zonas de pecuária em que forem os animais de cria
em proporção superior a vinte e cinco por cento do rebanho e onde se adotem a
meação de leite e a comissão mínima de cinco por cento por animal vendido;
f) o proprietário poderá sempre cobrar do parceiro, pelo seu preço de custo, o valor
de fertilizantes e inseticidas fornecidos no percentual que corresponder à
participação deste, em qualquer das modalidades previstas nas alíneas anteriores;
g)nos casos não previstos nas alíneas anteriores, a quota adicional do proprietário
será fixada com base em percentagem máxima de dez por cento do valor das
benfeitorias ou dos bens postos à disposição do parceiro.

Nos contratos de parceria, percebe-se uma contradição expressiva quanto ao seu


prazo de existência. É que o art. 4º do Decreto n.º 59.566/66 utiliza-se da expressão
indeterminado ou não, ao referir-se ao prazo do contrato de parceria, não versando acerca do
prazo mínimo de existência desse contrato, que é definido pelo Estatuto da Terra (art. 96,
inciso I) com prazo mínimo de 3 (três) anos.
Logo, sendo as partes silentes quanto ao prazo de existência do contrato, presume-se
que será de no mínimo 3 (três) anos.
Outra contradição do Estatuto está assentada no inciso II do art. 96, ao prever que,
findo o contrato, se o proprietário não quiser explorar diretamente a terra, o parceiro
outorgado terá direito de preferência em detrimento dos demais candidatos. Nesse sentido,
Lobo (2002) aduz que:

Tal dispositivo, a nosso ver, encerra uma flagrante contradição ou, na melhor das
hipóteses, uma falta de esclarecimento quanto ao conteúdo do direito de preferência

363
Direito Agrário Ambiental

do parceiro-outorgado. Deveras, em que consiste essa "preferência" se o parceiro-


outorgado, ao firmar novo contrato com o parceiro-outorgante, deverá fazê-lo em
igualdade de condições com estranhos?

Entretanto, tal aspecto é pontual, pois há distinções e contradições nos contratos


agrários como um todo, haja vista o ponto referente à sua utilização como meio de acesso à
terra.

3.2. Contratos atípicos


Ao contrário dos contratos típicos, os contratos atípicos são aqueles que não estão
previstos expressamente no Estatuto da Terra, isto é, decorrem da autonomia da vontade dos
contraentes em celebrar determinado negócio jurídico, adjetivado por peculiaridades
especificamente definidas para o propósito firmado.
Nesse contexto, deve-se lembrar que o próprio Código Civil de 2002, em seu art.
425, dispôs que: “É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais
fixadas neste Código”.
Destarte, o legislador civil não somente previu a possibilidade de existência de um
contrato atípico, mas também versou acerca da sua validade jurídica, condicionada à
obediência às normas gerais, tais como os princípios gerais do direito e os bons costumes.
Logo, a realização de um contrato atípico no direito agrário, deve ser feita em
observância às normas gerais inscritas no Estatuto da Terra. Contudo, nem sempre esse
entendimento se mostra possível, conforme aduzido por Weiblen, Silva, Tech e Coelho [s.n,
p. 6]:

O contrato de pastoreio ou invernagem ilustra bem a questão. Trata-se de pacto em


que o proprietário (ou possuidor) recebe animais para engorda em troca de um
pagamento mensal. É utilizado normalmente nos períodos entre safras e tem como
característica sua exígua duração, não ultrapassando o período de 1 ano. Desse
modo, nota-se que os prazos mínimos de 3, 5 ou 7 anos, obrigatórios nos contratos
agrários, são inaplicáveis na realidade dos negócios jurídicos de pastoreio.

Conforme vislumbrado na lição dos autores, a ausência de uma previsão específica


desses contratos pode ocasionar situações de descompasso com o disposto nos artigos do
Estatuto da Terra, o que ressalta uma problemática constante desses contratos, qual seja a
inexistência de critérios bem definidos a serem seguidos na sua execução.

4. LIMITES E CONTRADIÇÕES DOS CONTRATOS AGRÁRIOS


O debate acerca de contradições e limites dos contratos agrários torna-se mais latente
quando se faz uma análise dos dispositivos legais que os regulamentam, verificando se eles
364
Direito Agrário Ambiental

interagem com a realidade brasileira no campo a ponto de promover o acesso à terra e de que
esta cumpra a sua função social.
A incongruência legislativa, notadamente devido ao excesso de leis, regulando da
mais diversa maneira um mesmo fato, acabou gerando incoerências no ordenamento, dando o
aspecto de insegurança jurídica. Esse fato implica a ocorrência de maior interferência do
Poder Judiciário em relações contratuais agrárias, já que o mesmo irá interferir em tal âmbito
com o intuito de solucionar o problema, o que pode gerar divergências no modo de execução
dos contratos agrários, dando um viés, por vezes, mais político à aplicação dos mesmos.
A legislação agrária regula de maneira bastante específica os contratos agrários,
estabelecendo, inclusive, várias regras obrigatórias, que são irrenunciáveis e válidas ainda
quando não escritas nos contratos ou no caso de contratos verbais. Prevalece nesse tipo de
contratação uma preocupação com a proteção do mais fraco economicamente, bem como com
a preservação dos recursos ambientais e o adequado uso da terra (COELHO, 2006, p. 21).
Entretanto, há discussão sobre os termos de realização desses contratos e os
princípios de direito que os regulam, pois a doutrina agrária mais crítica ressalta a
incongruência entre o que dispõe o Estatuto da Terra e a observância, por exemplo, da função
social da propriedade e do acesso do proprietário ou dos demais à terra; afirmam a
incongruência tendo em vista que o Estatuto da Terra tenta assegurar o acesso à terra, à justiça
social e ao cumprimento da função social da propriedade, mas os contratos agrários, a
depender da interpretação, podem representar restrição ao acesso a terra.
Essa restrição ao acesso à terra é discutida porque, com a formação de um contrato, a
propriedade não vai ser trabalhada, cultivada e produzida diretamente por quem tem o registro
do imóvel (quem é o seu proprietário formalmente), mas por um terceiro – arrendatário ou
parceiro – que, na maioria das vezes, é um trabalhador que não tem propriedade e encontra
como meio de ter acesso à posse da terra a estipulação de um contrato, com o fim de que com
o trabalho, o cultivo e a produção da terra possa garantir a sua sobrevivência.
Entretanto, é relevante trazer à baila o que dispõe a Constituição Federal. A Carta
Magna, em dispositivos como o art. 5º, XXII e XIII, art. 170, II e III e o art. 186, fala sobre a
propriedade e a função social que a mesma deve ter. O art. 5º, inc. XXII e XXIII, traz os
princípios basilares da propriedade, um garantindo-a e o outro a atrelando à função social.
O art. 170, dando início ao capítulo I, do Título VII, “Da Ordem Social e
econômica”, prescreve que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da

365
Direito Agrário Ambiental

justiça social, observados os seguintes princípios: propriedade privada e função social da


propriedade.
O art. 186, por sua vez, elenca os requisitos da função social da propriedade rural de
forma clara, asseverando que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes
requisitos: aproveitamento racional adequado, utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as
relações de trabalho, exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores.
Da leitura de tais dispositivos deduz-se que é pela atividade rural e não pelo título
que o homem conquista o direito de propriedade sobre o imóvel. Vê-se que é pela conjugação
de requisitos que a função social da propriedade é exercida, de tal modo que a propriedade
rural passa a ser elemento de transformação social.
O Estatuto da Terra também discorre sobre a função social do imóvel rural,
especificamente no art. 2º, caput e no § 2º, alínea b, e nos arts. 12 e 13. Inicialmente, o art. 2º,
caput, diz que é assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra,
condicionado pela sua função social, na forma prevista nesta Lei; já o § 2º do artigo citado, na
alínea b, reza que dentre os deveres do poder público está o de zelar para que a propriedade da
terra desempenhe sua função social.
O artigo 12 traz que à propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função
social, e seu uso é condicionado ao bem-estar coletivo previsto na Constituição Federal e
caracterizado nesta lei. Por sua vez, o art. 13 determina que o poder público promoverá a
gradativa extinção das formas de ocupação e de exploração da terra que contrariem sua
função social.
Nesse contexto, a função social foi atribuída aos contratos agrários, pois o Decreto
Lei n.º 59.566/66 confirmou a necessidade de que tais contratos sejam aplicados com a
finalidade de garantir a utilização da área rural.
Ainda, é interessante notar que nos contratos agrários a relação que se estabelece
entre o parceiro/arrendatário e a terra é precária e temporária, tendo em vista que a detenção
da propriedade será por período mínimo estabelecido no contrato – em regra, 3 (três) anos –,
e, com o fim do prazo estipulado, a posse voltará para o seu real proprietário. Ainda, a
estipulação dos contratos agrários na maioria das vezes é um investimento, em que os
proprietários podem auferir lucros que não iriam receber se estivessem com a detenção total

366
Direito Agrário Ambiental

do imóvel; por isso os contratos servem como meio de acesso a terra daqueles que não a
possuem e como meio para que os proprietários cumpram a função social da propriedade e
ganhem rendimentos.
Assim, a ideia de que os contratos agrários possam significar restrição ao uso da terra
não se justifica, considerando que, com a Constituição Federal de 1988, art. 5º, inciso XXII,
passou-se a exigir que a propriedade cumpra sua função social. A exigência de que a
propriedade cumpra função social encontra-se no rol dos direitos fundamentais, portanto o
descumprimento do direito fundamental à propriedade é uma ofensa à ordem jurídica
nacional, e os contratos servem para evitar que isso aconteça.
No mais, é imprescindível que a regulamentação dos contratos agrários exista
efetivamente e contenha preceitos de ordem pública, o que não terá o efeito de restringir o
acesso à terra, pelo contrário, terá a consequência de promover o acesso mais efetivo à
propriedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os contratos agrários possuem legislação específica destinada a regulá-los, normas
estas que estabelecem, inclusive, regras obrigatórias, que são irrenunciáveis e válidas ainda
quando não escritas nos contratos ou quando eles são firmados verbalmente, previsão que visa
garantir a função social da propriedade e do contrato, proteger aquele que na relação tenha
menor poder aquisitivo, bem como garantir a preservação dos recursos ambientais e o
adequado uso da terra.
Entretanto, a estipulação de termos e princípios que orientam a realização desses
contratos gera crítica, já que alguns asseveram que, embora o Estatuto da Terra tente
promover a justiça social e o cumprimento da função social e o acesso à terra, a fixação de
disposições regulamentando os contratos agrários pode representar restrição ao acesso à terra
– restrição que se dá tendo em vista que a terra não vai ser trabalhada e cultivada diretamente
por quem é seu proprietário, mas por meio de um terceiro, o arrendatário ou parceiro.
Considerando que a Constituição Federal prevê que a propriedade deve cumprir a sua
função social, a ideia de que a fixação de regras para os contratos agrários significa restrição
ao acesso à terra não deve ganhar relevância, pois mediante a celebração de contratos
agrários, os contratantes buscam utilizar a propriedade.
Assim, faz-se necessário que se estabeleça proteção às partes dos contratos agrários,
notadamente aqueles que exercem atividade na terra, que estâo garantindo a função social da

367
Direito Agrário Ambiental

mesma e, portanto, devem ter a garantia de acesso ao imóvel. É fundamental a


regulamentação assegurando o acesso, inicialmente via contratos agrários, para que seja dada
utilidade à terra, garantia à função social da propriedade e para que os produtores possam
permanecer no campo com segurança e ganhos suficientes para garantir uma sobrevivência
digna.

REFERÊNCIAS
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normativo. Disponível em:
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2006.
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contratos. – 2. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2012, v. 4.
GAGLIANO, Pablo Stolze. FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil. 7. ed. –
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incisos da Lei 4.504/66 &#8211; Estatuto da Terra. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 55, 1
mar. 2002. Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/2768>, acesso em julho de 2014.
MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrário brasileiro. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
OPITZ. Silvia C. B; OPITZ, Oswaldo. Curso completo de direito agrário. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010.
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instrumento para a sustentabilidade. In: Revista Direito e Liberdade, Natal, n. 1, vol. 15, p.
140-159, jan/abr. 2013.
SENN, Adriana Vanderlei Pommer. Os contratos agrários atípicos no cumprimento da função
social do imóvel rural. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz (Coord. et al). Relações
privadas e democracia. Editora FUNJAB, 2013, p. 251-279.
SOUSA, João Bosco Medeiros de. Direito Agrário: lições básicas. 3. ed. São Paulo: Saraiva,
1994.

368
Direito Agrário Ambiental

WEIBLEN, Fabricio Pinto; SILVA, Marcelo Scherer da; TECH, Tarso Whayhs; COLELHO,
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Disponível em: <http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-
2.2.2/index.php/revistadireito/article/viewFile/6822/4138>. Acesso em: 20 jul. 2014.

369
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XX – DIREITO AGRÁRIO E DIREITO À ÁGUA

Élida Evelyn de Lira Serpa1


Juliana Correia Rodrigues Behar 2
Priscilla Cristina Pereira de Lacerda3
Rafaela Maria e Silva Ferreira 4

INTRODUÇÃO
O artigo apresentado trata de matérias relativas ao direito à água na temática do
Direito Agrário, em especial sobre como as águas públicas poderão ser destinadas à
manutenção da agricultura, da agroindústria e da pecuária.
Passa-se pela análise e diferenciação das águas públicas de uso comum e dominicais,
sendo que as primeiras poderão ser utilizadas pelos particulares nas suas atividades desde que
sejam insignificantes ou que detenham autorização do Poder Público para sua utilização.
Analisam-se ainda as mais diversas situações corriqueiras na seara agrícola, quando
se trata de direito à água, sendo elas a forma de uso das águas públicas, autorizações,
derivações, e mudanças das águas, a exemplo do seu leito e de sua poluição.
Todas essas questões são abordadas utilizando-se como base o Código das Águas,
bem como a Constituição Federal, na aplicação dos direitos de terceira geração que dizem
respeito ao meio ambiente sustentável, incluindo a utilização das águas de maneira consciente
e com o objetivo de não esgotá-las, garantindo-as para as futuras gerações.
Ainda assim, necessária se faz a demonstração da função social e ambiental da
atividade agrícola praticada pelos particulares que usufruem a extração das águas públicas,
novamente a fim de garantir a justiça social no âmbito do Direito Agrário e, ainda, do Direito
Ambiental.

1. ÁGUAS PÚBLICAS E PARTICULARES


A relevância da água para a vida terrestre é imensurável, daí ser de grande
importância se fazer o estudo do aproveitamento das águas, para que sejam utilizadas de
maneira a otimizar o seu aproveitamento, tanto para o consumo humano quanto para a prática
agrícola.

1
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba
2
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba
3
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba
4
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba

370
Direito Agrário Ambiental

Sabe-se que é o bem mais precioso para a vida terrestre, sendo uma questão
universal, política5 e que deve ser levantada quando do estudo de diversas áreas do direito,
em especial do direito ambiental e Direito Agrário.
A água, assim como o modo de seu uso, é considerada de interesse público, devendo
ser protegida por lei. Sendo assim, diz-se que toda água é considerada bem público.
Desde os primórdios, a sociedade cultua e aproveita a água para as mais diversas
atividades, dentre elas a atividade agrícola, e as técnicas de irrigação, como as utilizadas no
Rio Nilo, e ainda regras e normas sobre a água, como encontrado no Código de Hamurabi.
Entretanto, em razão do crescimento das populações e das organizações em
sociedade, ao longo dos anos, fez-se necessária uma nova ótica sobre a utilização e o direito à
água, precisando utilizar-se de um estudo aprofundado tanto em âmbito técnico, biológico e
científico quanto em âmbito jurídico sobre o seu uso. Tal utilização, de forma desenfreada e
desorganizada, sob o prisma jurídico, pode acarretar consequências irreversíveis para o
planeta; sendo assim, tem-se hoje como acepção social e jurídica que o uso da água e de
outros recursos naturais deve ser feito de forma sustentável, tanto para o consumo quanto para
as práticas agrícolas, visto que o melhor aproveitamento das águas visa atender aos princípios
de justiça social e ao aumento da produtividade, além de a forma sustentável utilizada e
regulada por leis poder promover o atendimento da função social e econômica necessária à
política agrícola.
Nesse contexto, em que a proteção dos recursos naturais, incluída na ampla proteção
conferida pelo direito ambiental, o uso da água é uma das reflexões mais polêmicas quando se
apresenta no conflito existente entre o desenvolvimento e o direito ao meio ambiente
equilibrado. O direito ao desenvolvimento deve admitir uma correlação entre a proteção dos
direitos fundamentais e, nitidamente, os sociais.

O leque de aspectos abrangido pelo uso da água e seu disciplinamento, em


consonância com o princípio legal que determina seu uso múltiplo – dessedentação,
saneamento, consumo humano, produção de bens, etc. – reclama uma análise focada
no direito ao desenvolvimento, no que diz respeito, especificamente, à configuração
da água como bem público e como recurso natural limitado, de valor econômico6.

Nesse jaez, emerge a importância do Código de águas, instituído através de Decreto


Nº 24.643, de 10 de Julho de 1934, para regular, controlar e incentivar o uso e o
aproveitamento das águas. O código também traz diversas definições sobre a utilização das
5
MAIA NETO, Cândido Furtado apud AUGUSTIN, Sérgio; CUNHA, Belinda. Sustentabilidade ambiental
[recurso eletrônico] : estudos jurídicos e sociais. Pág. 275
6
GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar; XAVIER, Yanko Marcius de Alencar. Direito de águas e
desenvolvimento sustentável. EDUFRN: Natal, 2010, p. 160.
371
Direito Agrário Ambiental

águas na lavoura, bem como delimita as diferenças entre águas públicas comuns e dominicais.
Quanto à lavoura, dispõe que é lícito o uso da água desde que não cause danos ou
prejuízos à navegabilidade dos rios, nem mesmo danos a terceiros, conforme dispõe o art. 68
do referido Código. Apenas duas exceções se encontram: quando a água for utilizada para as
primeiras necessidades vitais e quando houver lei especial em atendimento ao interesse
público que assim o permitir.
No tocante às diferenças entre águas públicas de uso comum e dominicais, o Código
define cada uma delas. Quanto às águas comuns:
Art. 7º São comuns as correntes não navegáveis ou flutuáveis e de que essas não se
façam.

Já as dominicais são demonstradas no Art. 6 do Código:


Art. 6º São públicas dominicais todas as águas situadas em terrenos que também o
sejam, quando as mesmas não forem do domínio público de uso comum, ou não
forem comuns.

A importância dessa diferenciação se dá pelo destaque da permissividade de uso


dessas águas, sendo permitidas aquelas águas públicas de uso comum, visto que as águas
públicas dominicais situam-se dentro de imóveis pertencentes aos entes públicos, sendo
espécie de domínio particular do Estado.
Diante dessas informações sobre as águas públicas, necessário se faz destacar o uso
particular dessas águas, e a hipótese de o indivíduo poder aproveitar delas quando sua
propriedade for limítrofe com algum tipo de água pública. Em regra, o particular não pode
derivar essas águas para a agricultura ou agroindústria, exceto se a derivação for
insignificante ou, caso seja significante, se houver autorização do Poder Público, e, nesse
caso, deverá ser pleiteada no órgão competente do Estado onde estiver localizada a espécie de
água pública (rios, lagoas, etc.). Vale destacar que a autorização dada se refere ao seu uso para
determinado fim, que não pode ser desviado, além de o uso dever ser contínuo, a fim de
manter uma espécie de função social daquela utilização hídrica, sob pena de a sua inutilização
tornar-se caduca. Além disso, o particular deve respeitar, para além dos limites da autorização
concedida, o direito de terceiros. Por fim, a autorização concedida é limitada a em prazo
nunca superior a trinta anos.
Situação diferente se dá quando a água pública, a exemplo do rio, corta passagem na
propriedade do particular, podendo este se valer de seu uso para fins de necessidades
agrícolas, desde que não cause prejuízo aos prédios vizinhos e que não se altere o ponto de
saída das águas remanescentes. Se o mesmo rio ultrapassar duas propriedades particulares

372
Direito Agrário Ambiental

distintas, ambos os proprietários terão direitos sobre o uso das águas, ainda que de maneira
proporcional. Ainda assim, um prédio superior não poderá excluir o uso de prédio fronteiro à
porção que lhe é cabível, não podendo o dono superior obstar o uso ou realizar obras que
impeçam esse uso.
Quanto aos prédios marginais, destaca-se que a propriedade que tiver sido cortada
pela implantação de estradas públicas onde se faz a passagem da água não gerará ao
proprietário o prejuízo, podendo ainda utilizar-se da água. Já em caso de divisão de algum
prédio marginal onde essa quebra deixe uma das partes fora da margem do rio ou lago, o novo
proprietário também não será prejudicado, tendo direito ao que antes pertencia ao prédio, pois
“a servidão; do uso da água é do prédio, tanto que, alienado, com ele vai a servidão; assim
também em caso de divisão”.7 É o que se extrai do artigo 75 do Código das Águas:

Art. 75. Dividido que seja um prédio marginal, de modo que alguma ou algumas das
frações não limite com a corrente, ainda assim terão as mesmas direito ao uso das
águas.

Nos casos de derivação de água, algumas situações podem ser apontadas, como, por
exemplo, a de um particular (que tenha o direito à água concedido por autorização) que não
consiga ter acesso ao uso da água por esta se situar em ponto superior em altura da sua
propriedade, o que não impede que esse indivíduo possa se utilizar da água em outro ponto
acessível. Já no caso de derivação decorrente do terreno do vizinho, há de se ressaltar a
hipótese de um ribeirinho, autorizado a usar a água, não poder retirá-la pelas margens do seu
próprio prédio, necessitando retirá-la pelo prédio vizinho. Essa questão é bastante polêmica,
entendendo alguns pela possibilidade de retirada pelo prédio vizinho e outros, que não há tal
possibilidade. A jurisprudência do TJSP considerou no RT 164:644 que o ribeirinho não tem
direito de ir tirar a água em outro lugar. Entretanto, a regra que se estabelece pelo Art. 77 do
Código das águas é a de que sempre prevalece a servidão sobre os prédios intermediários,
salvo se a condução pelo prédio próprio for menos dispendiosa, devendo-se demonstrar que
não há como retirar a água pelo próprio prédio, o que fez surgir a necessidade do uso do
prédio vizinho.
Outra questão de que também emerge interesse é a possibilidade de o dono do prédio
ribeirinho adquirir outro imóvel junto ao seu que não goza das águas do rio que passa em sua
propriedade. Nesse caso, o dono pode ou não levar a água até ele? Conforme já mencionado, a

7
OPITZ, Silvia C. B. Curso Completo de Direito Agrário. 7. Ed. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 142
373
Direito Agrário Ambiental

regra é a possibilidade de levar a água até o prédio adjunto, salvo se tal derivação prejudicar o
direito às águas dos vizinhos.
Antigamente considerava que a servidão é real, aderindo ao prédio, por isso o uso da
água é do prédio e não pode, em regra, ser levada a outro, mesmo adjunto ao ribeirinho.
Contudo, o art. 78 do Código de Águas diz:

Art. 78. Se os donos ou possuidores dos prédios marginais atravessados pela


corrente ou por ela banhados, os aumentarem, com a adjunção de outros prédios, que
não tiverem direito ao uso das águas, não as poderão empregar nestes com prejuízo
do direito que sobre elas tiverem ou seus vizinhos.

Essa ideia é a que mais convém à agricultura e à indústria agropastoril, pois é a que
permite o mais amplo aproveitamento e uso das águas.
O art. 78, segundo Opitz8, não distingue águas públicas ou particulares, mas se forem
águas públicas, quem quiser a água para a indústria ou a agricultura o uso é livre; e quem tirou
a água não se serviu de nada do vizinho, devendo suportar a servidão de passagem da água
pelos seus terrenos. Agora, se for privado, se serve da regra legal, segundo a qual pode desde
que não cause prejuízo aos vizinhos.
Há que se asseverar que a utilização de águas públicas ocasiona alguns direitos e
deveres tanto ao utente como ao concedente9, como: a impossibilidade de perturbar o uso
pacífico e tranquilo das águas, sendo, no caso de esbulho ou turbação, a ação possessória
cabível, na forma do CPC; o uso deve ser protegido contra terceiros ou contra o órgão estatal
autorizador; assim como o dever principal do utente é mantê-las na melhor situação possível,
sem prejudicar a sua navegação ou flutuação, se navegáveis ou flutuáveis.
Os proprietários marginais dessas águas são obrigados a se abster de fatos e atos que
prejudiquem ou embaracem o curso da água, exceto, se para tais fatos ou atos, forem
especialmente autorizados por alguma concessão; e caso venham a obstruir o regime ou o
curso das águas, deverão remover tais obstáculos, e não o fazendo, cabe à administração
removê-los às suas custas.
Essa possibilidade decorre do próprio dever do Poder Público de zelar pelo interesse
público, como também o art. 58 estabelece:

Art. 58. A administração pública respectiva, por sua própria força e autoridade,
poderá repor incontinente no seu antigo estado as águas públicas, bem como o seu

8
OPITZ, Silvia C. B. Curso Completo de Direito Agrário. 7. Ed. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 145
9
Idem, p. 146
374
Direito Agrário Ambiental

leito e a margem, ocupados por particulares, ou mesmo pelos Estados ou


municípios:
a) quando essa ocupação resultar da violação de qualquer lei, regulamento ou ato da
administração;
b) quando o exigir o interesse público, mesmo que seja legal a ocupação, mediante
indenização, se esta não tiver sido expressamente excluída por lei.
Parágrafo único. Essa faculdade cabe à União, ainda no caso do art. 40, nº II, sempre
que a ocupação redundar em prejuízo da navegação que sirva, efetivamente, ao
comércio.

Sempre que o particular causar perturbação ao ambiente, especificamente no tocante


às águas, a administração deve resguardar o império de suas leis e do interesse público.
Contudo, o Poder Público deve ter essa prerrogativa limitada para não cometer
abusos. Diante dessa possibilidade, ao particular é dado o direito de ação contra a
administração pública assegurada pela lei.
Para a defesa dos direitos particulares, é possível manejar ações quanto aos usos
gerais, como também aos especiais, podendo a mesma ação ser contra o poder público como
também contra outros particulares, e ainda no juízo petitório como no possessório, salvas
algumas restrições10: a) é necessário justificar a ação com um interesse direto de quem recorre
ao juízo; b) na ação dirigida à administração pública, esta só pode ser condenada a indenizar
danos, e não a destruir obras que tenha executado; c) não cabe ação possessória contra o poder
público, já que o uso do particular é precário, mas cabe indenização pelos danos em caso de
desapropriação indireta; d) não cabe ação possessória de um particular contra outro, se este
não apresentar como título uma concessão expressa ou outro título equivalente.
Caberá ação cominatória ou possessória para cessar poluição de águas que
atravessam a propriedade do prejudicado (Art. 109. A ninguém é lícito conspurcar ou
contaminar as águas que não consome, com prejuízo de terceiros)11.
Optiz12 aponta outro ponto relevante: no caso de o leito que serve de limite entre dois
prédios mudar de álveo e cavar outro na propriedade ou no prédio, o outro não perde o direito
do uso das águas públicas ou particulares. Isso porque o art. 1252 do Código Civil13 revela:
“O álveo abandonado de corrente pertence aos proprietários ribeirinhos das duas margens,
sem que tenham indenização os donos dos terrenos por onde as águas abrirem novo curso,
entendendo-se que os prédios marginais se estendem até o meio do álveo”.

10
OPITZ, Silvia C. B. Curso Completo de Direito Agrário. 7. Ed. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 147
11
Idem, p. 147
12
Idem, p. 147
13
BRASIL. Código Civil de 2002. Brasília, 2013. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 02 ago. 2014.
375
Direito Agrário Ambiental

Se isso ocorrer, o TJPE já julgou no sentido de que o leito seco passa a pertencer aos
ribeirinhos meio a meio, sem que tenha direito à indenização o dono do terreno por onde as
águas abriram o novo curso14.
Um assunto que é bastante preocupante diz respeito à poluição das águas. O
lançamento de dejetos venenosos deve ser autorizado pelo Poder Público competente, antes de
poluírem a corrente d’água, e isso somente é possível quando os interesses relevantes da
agricultura ou da indústria o exigirem; caso contrário, não poderá ocorrer tal poluição, em
consonância com o art.111. Já o artigo seguinte indica o dever de indenizar devido aos danos
ocasionados pela poluição, in verbis: “Os agricultores ou industriais deverão indenizar a
União, os Estados, os Municípios, as corporações ou os particulares que pelo favor
concedido, no caso do artigo antecedente, forem lesados” (grifo nosso).
Quanto à extinção, no tocante aos usos gerais o art. 65 assevera que esses usos
gerais das águas públicas só se podem extinguir por disposição de lei. Já os usos derivados
podem se extinguir por15:
a) Renúncia (art. 66, “a”, do Código de Águas);
b) Caducidade (art. 66, “b”, do Código de Águas; art. 43, §3º do Código de Águas: A
água tem função social, então quem a usa deve sempre fazê-lo com o fim destinado, sob pena
de caducidade, mas o simples abandono do uso por breve período não enseja abandono pelo
não uso privativo das águas ou mesmo por caso fortuito ou força maior (doença do
agricultor);
c) Resgate (art. 58 do Código de Águas): uma vez que decorridos os dez primeiros
anos após a conclusão das obras e tomando-se por base de preço da indenização só o capital
efetivamente empregado;
d) Expiração do prazo (art. 43, § 2º do Código de Águas: Toda concessão ou
autorização se fará por tempo fixo, e nunca excedente de trinta anos, determinando-se também
um prazo razoável, não só para serem iniciadas como para serem concluídas, sob pena de
caducidade, as obras propostas pelo peticionário).
e) Revogação (art. 67 do Código de Águas: É sempre revogável o uso das águas
públicas). Deve-se indenizar quando for o caso. O direito à indenização cessa somente quando
o título da concessão reserva o direito de revogar, concedendo o uso da água a título precário,
o que, de resto, é excepcional.

14
OPITZ, Silvia C. B. Curso Completo de Direito Agrário. 7. Ed. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 147-148
15
Idem, p. 149-150
376
Direito Agrário Ambiental

O direito dos ribeirinhos ao uso da água é ainda, por sua essência, facultativo,
podendo ser exercido ou não. É um direito imprescritível, pois, sendo facultativo, não
constitui posse que é à base da prescrição. Essa imprescritibilidade é assegurada pelo art. 79,
in verbis:
Art. 79. É imprescritível o direito de uso sobre as águas das correntes, o qual só
poderá ser alienado por título ou instrumento público, permitida não sendo,
entretanto, a alienação em benefício de prédios não marginais, nem com prejuízo de
outros prédios, aos quais, pelos artigos anteriores, é atribuída a preferência no uso
das mesmas águas.
Parágrafo único. Respeitam-se os direitos adquiridos até a data da promulgação
deste código, por título legítimo ou prescrição que recaia sobre oposição não
seguida, ou sobre a construção de obras no prédio superior, de que se possa inferir
abandono do primitivo direito.

Quanto aos terrenos reservados, segundo Opitz16, a regra é que essas terras são
reservadas às margens das correntes públicas de uso comum, por interesse público, daí sua
denominação de bens públicos dominicais, desde que não estejam destinados ao uso comum
ou por algum título legítimo não pertençam, ao domínio particular. O uso do ribeirinho
depende de autorização (art. 11, §1º).
O art. 14 do Código de Águas conceitua terrenos reservados como sendo, in
verbis: “Os terrenos reservados são os que, banhados pelas correntes navegáveis, fora do
alcance das marés, vão até a distância de 15 metros para a parte de terra, contados desde o
ponto médio das enchentes ordinárias”.
A limitação do art. 11, § 1, não alcança os terrenos reservados que pertencerem a
particulares, o uso é livre, salvo o direito de passagem pelo Poder Público, numa faixa de 10
metros, estabelecendo-se uma serventia de trânsito para os agentes públicos quando em
execução do serviço.
Teixeira17 revela, em consonância com o exposto, que as margens dos rios
navegáveis são, em regra, de domínio público. Contudo, se possui o particular título legítimo
de propriedade dessas áreas, esses prolongamentos não são terrenos reservados, mas sim
terras particulares lindeiras ao curso d’água de domínio público.
Ainda assevera o autor que, em 2004, no recurso especial nº. 443.370, a Ministra-
relatora do STJ, Eliana Calmon, em decisão sobre a temática, indica que a decisão do
Tribunal de Justiça de São Paulo não abarcou o parecer da Capitania dos Portos, para concluir
pela indenização das terras marginais ao rio Cabuçu de Cima, mas sim o fato de os
16
OPITZ, Silvia C. B. Curso Completo de Direito Agrário. 7. Ed. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 150-151
17
TEIXEIRA, Roberto Tadeu. Terrenos reservados as margens dos rios públicos – código das águas. Revista A
Mira – Agrimensura e Catografia. Edição nº. 162. Disponível em:
<http://www.amiranet.com.br/files/produtos/sumario_2117.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2014.
377
Direito Agrário Ambiental

proprietários possuírem títulos legítimos, o que afasta a aplicação da Súmula 479 do STF,
segundo a qual as margens dos rios navegáveis são de domínio público, insuscetíveis de
expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização. Entendeu, assim, que os
expropriados, por serem detentores de título legítimo, tinham o direito legal de propriedade,
cabendo ao Estado, que expropriou a área por intermédio do Departamento de Águas e
Energia do Estado de São Paulo (DAEE), arcar com as verbas indenizatórias.
Os terrenos reservados à margem dos rios públicos de propriedades particulares estão
sujeitos à prescrição aquisitiva, podem usucapir, mas o possuidor adquire o domínio por
sentença, com a servidão de passagem imposta ao prédio usucapido.
Já em relação à servidão de aqueduto em favor de um prédio para a irrigação, é um
direito real e não pessoal. Estabelece o art. 36 do Código de Águas: “É permitido a todos usar
de quaisquer águas públicas, conformando-se com os regulamentos administrativos”.
Todo prédio rústico está sujeito à servidão de aqueduto em favor de outro prédio
rústico que careça de águas necessárias à agricultura ou pecuária.
A lei não faz distinção entre águas públicas ou particulares quando permite a
canalização pelo prédio de outrem das águas a que tenha direito, mas, se as águas forem
exclusivamente particulares, outra é a solução. Não se tratará de servidão no sentido técnico,
mas de serventia das águas públicas, por autorização do poder público, quando não se tratar
de derivação insignificante, ou, pelo direito de uso sobre a água pública, conferido ao prédio,
e que adere a ele, pela indivisibilidade da propriedade e do uso da água.
Ciente do processo histórico, extrai-se que o rio público é do domínio público,
quando assim for definido. No entanto, além da classificação em público, necessário é que
suas águas sejam perenes, ainda que em época de intenso estio. Essa compreensão vem desde
o Direito Romano, e é recepcionada pelo Código de Águas. Fora dessa definição, o rio é tido
como particular. Assim, tem-se:
Código de águas – art.8º: São particulares as nascentes e todas as águas situadas em
terrenos que também o sejam quando as mesmas não estiverem classificadas entres
as águas comuns de todos, as águas públicas ou as águas comuns.

Destaca-se, porém, que nem todas as nascentes são tidas como particulares. Ainda
que tenham sua gênese em prédio particular, se por si sós formarem o caput fluminis, passam
a ser tidas como águas públicas. É o que consta no corpo do artigo 2º do Código de águas.
Nascendo em terreno particular, a água pertence ao seu dono de modo integral, sendo
facultado o desvio dentro do seu prédio, ainda que altere seu curso, exceto quando tal água

378
Direito Agrário Ambiental

abastecer uma população. Essa perspectiva leva em consideração a água como um dos frutos
naturais, daí porque faz parte da propriedade.
O Código de Águas traz diversos dispositivos que orientam o uso da água que nasce
ou passa em terrenos particulares. Cumpre destacar que o uso deve se destinar à indústria ou à
agricultura, sendo o remanescente do proprietário seguinte, que poderá utilizá-la para tais fins.
Em se tratando de nascentes, as águas podem ser naturais do solo ou fruto da
indústria humana, podem correr em uma só propriedade ou exceder seus limites. Sendo assim,
o dono da nascente pode usufruir das águas, no entanto, tendo suprido sua necessidade, não
pode impedir o seu curso natural.
Dessa feita, tem-se:
Já não se pode mais atribuir ao dono de nascente um direito absoluto. Esse direito
que remonta a duzentos anos não pode subsistir. A nascente se enquadra no conceito
de propriedade, como função social. Não se concebe seja ela excluída dessa
evolução do direito e da norma geral.18

Na análise da nascente, se for localizada em fosso que divide dois prédios, pertencerá
a ambos, ou seja, existirá um condomínio no uso comum das águas. O Código de águas
também se preocupou com a abordagem das nascentes artificiais, estabelecendo em seu artigo
92 a obrigação de o prédio inferior receber as águas artificiais dos prédios superiores. Essa
transferência ocorrerá por servidão legal.
O dever de receber essas águas não constitui direito dos prédios inferiores, por isso
são imprescritíveis os direitos de uso sobre essas águas que correm para eles, mesmo
por tempo imemorial, salvas as servidões de que estiverem gravadas por vontade dos
proprietários, ou no caso de alienação por título ou instrumento público a dono de
prédio marginal e sem prejuízo dos prédios com preferência sobre as águas. 19

Em se tratando do direito dos ribeirinhos às águas que fazem limites com outros
prédios, o próprio Código de Águas tratou da temática em seu artigo 71 ao estabelecer:
Art. 71 - Os donos ou possuidores dos prédios atravessados ou banhados pelas
correntes podem usar delas em proveito dos mesmos prédios, e com aplicação tanto
para a agricultura como para a indústria, contanto que do refluxo das mesmas águas
não resulte prejuízo aos prédios que ficam superiormente situados, e que
inferiormente não se altere o ponto de saída das águas remanescentes.

No entanto, o ponto que merece destaque diz respeito às obras necessárias ao


aproveitamento das águas. Estabelece o artigo 80 do Código em análise que:
O proprietário ribeirinho tem o direito de fazer na margem ou no álveo da corrente,
as obras necessárias ao uso das águas.

18
NUNES, Pádua. Código de águas. N.411, p.819.
19
NUNES, Pádua. Código de águas. N.438, p.336.
379
Direito Agrário Ambiental

Elucida ainda em seu artigo 82:


Art. 82 - No prédio simplesmente banhado pela corrente, cada proprietário marginal
poderá fazer obras apenas no trato do álveo que lhe pertencer.
Parágrafo único – Poderá ainda este proprietário travá-las na margem fronteira,
mediante prévia indenização ao respectivo proprietário.

2. SERVIDÃO EM AQUEDUTOS
Em se tratando de servidão legal de aqueduto, faz-se mister compreender sua
importância para a agricultura e a agroindústria. Aqueduto é a canalização, em proveito
agrícola ou industrial, das águas a que tenham direito por intermédio de prédios rústicos
alheios (CC, art.567). O Código de águas estabelece:
A todos é permitido canalizar pelo prédio de outrem as águas a que tenham direito,
mediante prévia indenização ao dono deste prédio:
a) Para as primeiras necessidades da vida;
b) Para os serviços da agricultura ou da indústria;
c) Para o escoamento das águas superabundantes;
d) Para o enxugo ou bonificação de terrenos.

Tomando como base o Alvará de 1804, apenas tinham direito às águas aqueles que
possuíam o domínio, de caráter pleno ou útil. No entanto, o Código de águas não recepcionou
tal restrição, pois estabeleceu que a todos é permitido canalizar.
Na necessidade de o aqueduto atravessar via pública, deverá ser feito sem prejudica-
las. Tem-se, portanto, no artigo 122:
Art. 122 - Se o aqueduto tiver de atravessar estradas, caminhos e vias públicas, sua
construção fica sujeita aos regulamentos em vigor, no sentido de não se prejudicar o
trânsito.

Diante do quadro supramencionado, insta esclarecer como se justifica a servidão nos


aquedutos; de acordo com o artigo 124 do Código de Águas, a servidão não se justifica apenas
ante a impossibilidade de condução das águas por terreno próprio, muitas vezes é necessária a
servidão quando, não obstante essa possibilidade, a canalização seja muito mais dispendiosa
pela propriedade dominante do que pela propriedade alheia. Além desse dispositivo, o artigo
1.293 do Código Civil possibilita a construção de aquedutos para receber águas a que tenha
direito o prédio, mediante prévia indenização aos prejudicados, sendo estas indispensáveis às
primeiras necessidades da vida, e desde que não causem prejuízo à agricultura e à indústria,
ou ainda, ao escoamento de águas supérfluas ou acumuladas, ou à drenagem de terrenos.

380
Direito Agrário Ambiental

Segundo Optiz20, se não houver acordo entre as partes, poderá ser solicitada perícia
judicial para decidir sobre o dispêndio e determinar a constituição da servidão. Desta feita,
salvo comprovado não haver maior dispêndio para a canalização via terreno próprio, restará
ao dono do terreno vizinho e aos intermediários apenas o direito à indenização.
Segundo o artigo 136 do Código de águas, essa servidão também se impõe quando o
terreno regadio, recebendo água por apenas um ponto, for dividido para mais de um dono, o
que é bastante comum nos casos de divisão de herança, mas também pode ser percebidos em
caso de venda ou outros títulos; nesses casos, o terreno da parte superior fica obrigado a dar
passagem à água, constituindo servidão de aqueduto em relação aos inferiores, caso em que
não haverá indenização, salvo se ajustado em contrário pelas partes.
Havendo concessão por utilidade pública, não poderá a parte questionar em juízo a
natureza e a forma do aqueduto, mas apenas o valor da indenização, não se cogitando o fato
de ser mais ou menos dispendioso para o Poder Publico, nos termos do artigo 125 do código
de águas. Pode, o proprietário, apenas discutir se a direção, a forma e a natureza foram
executadas de acordo com os projetos aprovados pelo Poder Publico.
Estabelecida a servidão, os artigos 126 a 128 determinam que todas as despesas
necessárias para a conservação, a construção e a limpeza do aqueduto correrão por conta do
detentor da servidão, não devendo arcar o dono do terreno serviente com tais despesas;
todavia, deverá ceder partes do terreno que forem indispensáveis à realização da obra,
podendo exigir caução para tanto. Nesse caso, destaca-se a servidão itineris, que seria a
possibilidade de trânsito na propriedade do serviente às margens do aqueduto para realizar tais
serviços. Em caso de negativa do dono da propriedade, é cabível ação possessória por parte do
dono do prédio dominante, uma vez que esse direito integra a servidão. Sendo proprietário do
aqueduto, poderá realizar obras para sua proteção, para isso podendo utilizar materiais como
relva, estacas e paredes de pedras soltas.
Nesse sentido:
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. POSSE. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO
DE POSSE. SERVIDÃO DE AQUEDUTO. CAUÇÃO. A exigência de caução
pelo autor para eventuais danos que o cumprimento da antecipação de tutela possa
causar ao réu constitui condicionamento em contracautela e pressupõe demonstração
da iminência de dano irreparável ou de difícil reparação sob pena de frustrar-se a
eficácia do provimento concedido. Não há no atual momento processual a mínima
evidência de que os serviços de manutenção do aqueduto possam ocasionar dano à
parte ré. NEGADO SEGUIMENTO AO RECURSO. (Agravo de Instrumento Nº
70055874093, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
João Moreno Pomar, Julgado em 11/08/2013)

20
OPITZ, Silvia C. B. Curso Completo de Direito Agrário. 7. Ed. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013 p. 164
381
Direito Agrário Ambiental

Por fim, como a servidão beneficia o dono do aqueduto, este deve construir obras
para não dificultar a comunicação entre vizinhos e correntes particulares, a exemplo de pontes
e canais; em caso de negativa deste, podem os vizinhos requerer tais medidas judicialmente,
inclusive tendo direito à indenização por perdas e danos, nos termos do art. 137 do Código em
referência.
A servidão, muito embora não altere a titularidade da propriedade, provoca nesta
uma série de limitações, como, por exemplo, não podem o proprietário realizar plantações, ou
construções que prejudiquem a canalização das águas, às margens do aqueduto, em virtude do
direito de passagem do dono do prédio dominante, para os fins já delimitados supra. Todavia,
tudo aquilo que a natureza lá produzir é de propriedade do prédio serviente, podendo o dono
do aqueduto interferir apenas caso haja uma possibilidade de dano ao aqueduto, por exemplo,
grandes raízes de plantas.
O código de águas, ainda sobre os limites da servidão de aquedutos, determina, em
seu art. 133, que a água, o álveo e as margens do aqueduto são parte integrante do prédio a
que as águas servem.
Não obstante tais limitações, pode o dono do terreno serviente cercar o aqueduto
desde que não prejudique a servidão quanto a suas reparações necessárias. Além dessa
prerrogativa, pode o dono do prédio serviente, caso não haja prejuízos à servidão, nem à
manutenção do aqueduto, edificar sobre ele, é o que dispõem os artigos 129 e 130 do Código
de Águas, bem como o artigo 1.295 do Código Civil. No caso da edificação, o artigo 1.293,
em seu parágrafo, dispõe que o proprietário do prédio dominante poderá exigir que a
canalização seja subterrânea caso atravesse áreas edificadas, pátios, hortas, jardins ou
quintais.
Mesmo com as limitações descritas o aqueduto não possui localização imutável,
podendo o dono do prédio serviente requerer sua mudança para local menos danoso à sua
propriedade, desde que não haja prejuízos no uso do aqueduto, caso em que despesas
ocorrerão por parte do serviente. Segundo Optiz21, caso não haja acordo para a mudança, pode
o serviente requerê-la judicialmente, desde que comprovadas a conveniência da mudança e a
ausência de prejuízos para o dono do aqueduto, podendo estas serem comprovadas, inclusive,
mediante perícia. O mesmo direito assiste ao dono do aqueduto, se comprovada a ausência de
dano ao prédio serviente, bem como se tais modificações forem feitas às suas expensas.

21
OPITZ, Silvia C. B. Curso Completo de Direito Agrário. 7. Ed. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013 p .167
382
Direito Agrário Ambiental

Não apenas a mudança de localidade dos aquedutos é possível, às vezes é necessária


uma alteração estrutural no aqueduto, quer em profundidade, quer em largura, nesse último
caso se configura uma nova servidão, nos termos do art. 135 do código de águas, pois há um
aumento do terreno utilizado pelo prédio dominante, devendo haver a devida indenização. Já
no caso da profundidade, não é entendida por nova servidão, já que a área utilizada não
sofrerá abalos em relação ao proprietário do prédio dominante; nesse sentido firma
posicionamento Optiz22.
Por fim, o código de águas trata sobre a cessão de parte da água não utilizada pelo
proprietário do prédio dominante, possibilitando que esta seja cedida, mediante indenização,
tendo o dono do prédio serviente prioridade na “compra” das águas sobejas; além disso, este
pode utilizar gratuitamente as águas da servidão no caso de primeira necessidade da vida.
Nesse caso, observa-se mais uma vez a questão da função social da propriedade no direito à
água, pois esta será gratuitamente fornecida diante das necessidades do terreno vizinho
essenciais à vida.

3. TERRENOS MARINHOS
O código de águas traz ainda a questão dos terrenos de marinha, entendidos como
aqueles banhados pela água do mar ou dos rios navegáveis, indo até uma distância de 33
metros, em uma faixa de terra, medida desde o ponto a que chega a preamar média, nos
termos de seu artigo 13.
Segundo o artigo 11 do código em análise, tais terrenos são classificados como bens
públicos dominicais, caso não estejam destinados ao uso comum, nem pertenciam ao domínio
particular, juntamente com os canais, lagos e lagoas, excetuadas as correntes que, não
navegáveis nem flutuáveis, concorram apenas para formar outras apenas flutuáveis. Tais
terrenos poderão ser utilizados por ribeirinhos quando o uso não colidir com o interesse
público.
Os terrenos de marinha, conforme trata o Código de Águas, em seu artigo 30, e a
Constituição Federal de 1988, em seu art. 20, são considerados bens da União, não podendo
ser alienados, não obstante a possibilidade de aforamento, ocupação ou arrendamento destes,
que são administrados pelo Serviço de Patrimônio da União. A concessão da exploração pelo
particular, no caso de aforamento, se submete ao pagamento de foro e laudêmio, nos moldes
do Decreto 2.398/87; já a concessão de uso real observa o que dispõe o Decreto-lei nº 271/67.

22
OPITZ, Silvia C. B. Curso Completo de Direito Agrário. 7. Ed. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013 p. 169.
383
Direito Agrário Ambiental

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo, no que diz respeito ao direito das águas, é de suma relevância, tendo em
vista o contexto atual de escassez desse bem, sendo necessário um estudo de suas condições
de uso em um território tão vasto quanto o brasileiro; especificamente o do Código das Águas
deve ser analisado de forma pormenorizada, pois, apesar de existir há mais de 80 anos, criado
pelo Decreto-lei nº. 24.643, de 10 de julho de 1934, poucos o conhecem integralmente. Essa
lei indica regras concernentes ao uso das águas, componente essencial à manutenção da vida
humana.
A confluência entre a propriedade privada, o direito de vizinhança e o direito ao uso
das águas não se restringe, portanto, ao mero debate entre o código civil e o código de águas.
De fato, não obstante a discussão acerca das limitações à propriedade e sua relação com o
direito agrário, o bem sobre o qual se debruça essa relação jurídica é direito de todos, uma vez
que intimamente ligado ao direito à vida, trazendo ao debate as questões ambientais e sociais
para além das relações privadas.
A regulamentação do uso das águas é fundamental, tendo em vista que o acesso e
aproteção às/das águas integram a garantia à dignidade de vida e a um ambiente
ecologicamente equilibrado, cláusulas basilares da Carta Magna brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUGUSTIN, Sérgio; CUNHA, Belinda. Sustentabilidade ambiental [recurso eletrônico] :
estudos jurídicos e sociais. / org. Belinda Pereira da Cunha, Sérgio Augustin. – Dados
eletrônicos – Caxias do Sul, RS : Educs, 2014.
BRASIL. Código das Águas. Decreto nº 24.643, de 10 de Julho de 1934.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cciv> Acesso em: 15/07/2014
GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar; XAVIER, Yanko Marcius de Alencar. Direito de águas e
desenvolvimento sustentável. EDUFRN: Natal, 2010, p. 160. Disponível em:
<il_03/decreto/D24643.htm> Acesso em: 15/07/2014
OPITZ, Silvia C. B. Curso Completo de Direito Agrário. 7. Ed. e atual. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 142.
TEIXEIRA, Roberto Tadeu. Terrenos reservados as margens dos rios públicos – código das
águas. Revista A Mira – Agrimensura e Cartografia. Edição nº. 162. Disponível em:
<http://www.amiranet.com.br/files/produtos/sumario_2117.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2014.

384
Direito Agrário Ambiental

CAPÍTULO XXI – FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE, DIREITO E


DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO

Amanda Sinfronio Jacob1


Iaci Katshéra Souza Reis2
IldeciVieira Tavares Pourre3
Marina Soares de Pontes4
Richelle de Macêdo Monteiro5

INTRODUÇÃO
A propriedade constitui-se em um dos direitos mais antigos existentes na história.
Envolvendo muito mais do que apenas questões patrimoniais, o instituto mostrou-se elemento
de extrema relevância na promoção de uma vida digna ao ser humano, o qual foi a ela
vinculado por suas crenças e tradições. No contexto atual, a propriedade ainda desempenha
um papel crucial na vida do indivíduo e de toda a sociedade, uma vez que a sua exploração
interfere na realidade não apenas do seu possuidor, mas também de toda a coletividade.
Assim, procura-se, por meio do presente trabalho, analisar qual a relação entre a
função social da propriedade e o direito e o desenvolvimento agrário, considerando como
pressuposto os direitos fundamentais tutelados pela Constituição, tanto de caráter individual
como coletivo, inserido neste último o meio ambiente.
Elucida-se que as técnicas de pesquisa utilizadas foram essencialmente documentais
indiretas, já que se pretende aprofundar o tema através do estudo normativo-jurídico. A
consulta à legislação, aos livros e artigos científicos evidencia a preferência pelas fontes
jurídico-formais imediatas, exploradas através das técnicas bibliográfica e legal.
No primeiro momento, faz-se uma retrospectiva histórica acerca do direito à
propriedade, desde a antiguidade até a atual ordem constitucional brasileira. Em seguida,
passa-se a examinar de maneira mais detida a função social da propriedade à luz da Carta de
1988, bem como sua natureza de elemento constituinte do direito de propriedade. Mais
adiante, estuda-se o que seria desenvolvimento no âmbito agrário e sua relação com o direito
difuso no meio ambiente. Por derradeiro, observa-se o direito como um agente propulsor do

1
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba
2
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba
3
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba
4
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba
5
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
385
Direito Agrário Ambiental

desenvolvimento agrário, sob o pálio da função socioambiental da propriedade, enumerando


as principais políticas públicas utilizadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário no
desempenho de suas atribuições.

1. CONTEXTO HISTÓRICO
Antes de adentrar na função social enquanto princípio e fundamento, necessário se faz
entender, de forma bastante sucinta, como ela se originou, haja vista que a ideia de
propriedade nasce com as mais remotas sociedades, havendo registros, inclusive, no Código
de Hamurabi.
Em Esparta e Atenas, por exemplo, já se discutia o problema da terra, uma vez que a
agricultura e a pecuária eram atividades predominantes. Com o passar do tempo, o instituto
passa a ser previsto legalmente. O primeiro registro oficial ocorre com a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, quando foi considerado direito natural e
imprescritível.
Essa ideia de imprescritibilidade apenas se fortificou com o advento da Era
Napoleônica, porque se retomou a visão individualista da propriedade, o que fez gerar
inúmeras injustiças sociais, pois os menos favorecidos não tinham acesso à terra. Dessa
forma, percebe-se que a propriedade é um dos institutos mais antigos, residindo nela o cerne
da questão agrária para a consolidação da justiça social e econômica.
No plano interno, o direito pátrio foi, no primeiro instante, o reflexo da organização
jurídica portuguesa no Brasil. Nesse contexto, a propriedade privada se formou a partir da
propriedade pública, pertencente à monarquia de Portugal6. Com a colonização, surgiram as
Capitanias Hereditárias, bem como as sesmarias, a fim de que houvesse o real cultivo da terra.
A Constituição Imperial de 1824 garantiu o pleno direito à propriedade, sem ostentar
os problemas adquiridos das sesmarias e das terras devolutas. E esse foi o norte traçado pelas
demais constituições; inclusive, o Código Civil de 1916 refletiu exatamente o Código
Napoleônico. Vale ressaltar que o Brasil permaneceu sem legislação que regulamentasse as
questões agrárias até 1850, quando se editou a Lei de Terras.
Somente em 1946 é que o uso da propriedade passa a ser condicionado ao bem-estar
social, exigindo a promoção da justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para

6
MATTOS, Denise Souza Rodrigues de; SILVA, Vilmar Antônioda.A função social da propriedade: sua
importância para a Região Amazônica e Roraima. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 101, jun. 2012.
Disponível em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11865&revista_ca
derno=7>. Acesso em: 1 jun. 2014.
386
Direito Agrário Ambiental

todos. Em 1962 editou-se a Lei º 4.132, regulando a desapropriação por interesse social,
embora com lacuna em relação aos imóveis rurais para fins agrários.
A partir da Lei nº 4.504/1964, o Estatuto da Terra, primeira dentre as legislações
latino-americanas sobre reforma agrária, acolheu a noção de função social, não chegando a
defini-la, mas estabelecendo seus requisitos essenciais.
A atual Carta Constitucional tratou a propriedade como direito fundamental, sendo,
portanto, inviolável. Além disso, dispôs que a propriedade deverá atender à sua função social,
tendo, no artigo 186, estabelecido que a função social da propriedade rural só será cumprida
quando preencher, simultaneamente, os seguintes requisitos: (I) o aproveitamento racional e
adequado; (II) a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do
meio ambiente; (III) a observância das disposições que regulam as relações de trabalho;(IV) a
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores7.

2. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE


É importante traçar algumas considerações sobre a propriedade em si, antes de se tocar
na temática referente à função social da propriedade. José Afonso da Silva8 ensina que:

A Constituição consagra a tese, que se desenvolveu principalmente na doutrina


italiana, segundo a qual a propriedade não constitui uma instituição única, mas
várias instituições diferenciais, em correlação com os diversos tipos de bens e
titulares, de onde ser cabível falar não em propriedade, mas em propriedades.

Assim, conforme ensina o autor, nossa Carta Magna garante o direito à propriedade
em geral – Art. 5º, XXII, mas ao mesmo tempo, diferencia claramente a propriedade urbana
da rural. Destarte, se se falar em propriedades (urbana e rural), afirma-se que cada tipo possui
aspectos característicos e, consequentemente, uma função social própria.
Atualmente, a função social não tem sua regulamentação limitada ao código civil
brasileiro, mas em um complexo de normas administrativas, urbanísticas, empresariais
(comerciais) e civis, sob o fundamento das normas constitucionais. Nossa Constituição
incluiu a função social da propriedade entre os direitos e as garantias constitucionais,
atribuindo à mesma o status de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV), e manteve também a função
social da propriedade entre os princípios de ordem econômica – art. 170, III, além de prever

7
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 1 jun. 2014.
8
SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo.25 ed., Malheiros Editores. 2005. p. 274.
387
Direito Agrário Ambiental

os requisitos para que os imóveis urbanos (art. 182, §2º)e rurais (art.186) cumpram suas
funções.
Conforme aduz Fábio Comparatto (1986) apud José Alves de Almeida Neto9, “A
chamada função social da propriedade representa um dever poder positivo, exercido no
interesse da coletividade, inconfundível como tal, com as restrições tradicionais ao uso dos
bens próprios”. Dessa forma, partilha-se da corrente que encara a função social não como um
limite para o direito da propriedade, mas como parte integrante e modeladora do mesmo.
Destarte, o instituto ora estudado não pode ser considerado como o limite do uso da
propriedade, mas sim como elemento definidor do conteúdo do direito de propriedade,
consistindo em elemento essencial, interno, que compõe a definição do conceito de
propriedade. Nesse sentido, ensina José Afonso da Silva10 que “a função social da
propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem
respeito ao exercício do direito ao proprietário, à estrutura do direito mesmo, à propriedade”.
Enquanto instituto largamente consagrado no ordenamento jurídico constitucional, a
função social da propriedade serve de diretriz para o livre exercício das atividades
econômicas, das políticas urbanas e agrárias, bem como, de forma geral, para o exercício do
direito de propriedade em seus atributos de uso, gozo e disposição. Dessa maneira, a
inobservância da função social gera a restrição ao bem, e não ao direito, uma vez que o direito
estaria descaracterizado ante a ausência do elemento função social, resultando na intervenção
estatal com a finalidade de conferir ao bem aproveitamento adequado aos fins coletivos, visto
que “a propriedade atenderá a sua função social”, conforme o artigo 5º, XXIII, CF.

3. A FUNÇÃO SOCIAL (SOCIOAMBIENTAL) DA PROPRIEDADE RURAL


Como visto no item anterior, com a Constituição de 1988 houve uma mudança na
forma como é encarada a propriedade privada, concebida como um direito fundamental,
devidamente positivado no texto da Carta Magna em seu artigo 5º, inciso XXII. Sem
estabelecer a distinção "rural x privada", por outro lado, o próprio texto constitucional vai
estabelecer no artigo 5º, inciso XXIII, que a propriedade deverá atender à sua função social. O
descumprimento de tal disposição, por sua vez, pode ensejar a desapropriação do bem, de
acordo com a análise de cada caso em concreto.

9
NETO, José Alves de Almeida. Uma visão moderna da função social da propriedade rural. Disponível em:
<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3507> Acesso
em: 31 jul2014.
10
SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo.25 ed., Malheiros Editores. 2005. p. 281-
282
388
Direito Agrário Ambiental

Partindo para a análise da propriedade rural, tem-se que sob a ótica do Direito Agrário
brasileiro, especificamente em relação ao Estatuto da Terra (Lei 4.504 de 30 de novembro de
1964), já se podia observar em seu artigo 2º, caput, a seguinte previsão: "É assegurada a todos
a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na
forma prevista nesta Lei."11. Entretanto, é preciso observar que a constitucionalização de tal
disposição foi fundamental para que esse dispositivo legal ganhasse mais força e novos
contornos, perseguindo uma maior e mais eficaz efetivação, muito embora ainda haja muitos
desafios a serem enfrentados.
A constitucionalização do direito à propriedade, por sua vez, demonstra o
deslocamento dessa matéria do campo exclusivamente privatista do Código Civil e da
legislação correlata para a seara do interesse público, ou seja, o direito à propriedade deixa de
ser encarado como um direito puramente privado, passando a ser visto como um direito
privado de interesse público12. A ocorrência desse fenômeno pode ser constatada a partir da
leitura do artigo 5º, inciso XXIII, do artigo 170, incisos II e III, do artigo 182, parágrafo 2º, do
artigo 186, entre outros.
O instituto do direito à propriedade passa então a ser regido por regras tanto do ramo
do direito público como do direito privado. Com isso, no tocante ao Direito Agrário, observa-
se que, na medida em que esse direito lida com a relação entre o homem e a propriedade rural,
e estando tal relação sujeita à força reguladora do interesse público, o bem-estar geral,
devendo prestar obediência à função social consagrada na Constituição de 1988, essa área do
direito pode ser encarada, simultaneamente, como sendo do ramo do direito público e do
direito privado. Salienta-se, inclusive, que, a partir do texto constitucional, a noção de
desenvolvimento a ser empregada nas relações agrárias deve estar associada não apenas com
o aspecto econômico, mas também com o humano, conforme pode ser verificado a partir dos
próprios critérios de cumprimento da função social, apresentados em seguida.
Assim, admitindo-se a Lei Maior como fonte fundamental para a caracterização da
função social da propriedade rural e seu consequente cumprimento, tem-se no artigo 186 e
incisos que:

11
BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4504compilada.htm>. Acesso em: 31 jul 2014.
12
STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A função Sócio-Ambiental da Propriedade Privada. Ministério Público
do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.mprs.mp.br/ambiente/doutrina/id20.htm>. Acesso
em: 31 jul 2014.
389
Direito Agrário Ambiental

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,


simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos
seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.13

A leitura do artigo supra permite destacar alguns aspectos fundamentais para


considerar que a propriedade rural cumpre com sua função social, a saber: econômico,
referente ao inciso I; ambiental, referente ao inciso II; e social, referente aos incisos III e IV14.
No que tange ao aspecto econômico, o texto constitucional apresenta uma alteração
em relação ao Estatuto da Terra. Esse fala em "níveis satisfatórios de produtividade"15, o que
a Carta Magna aborda como "aproveitamento racional e adequado".
Essa mudança de nomenclatura, analisada em conjunto com os demais dispositivos
constitucionais, permite constatar que a produtividade não está restrita a uma concepção de
quantidade tão somente, mas também à observância do emprego de técnicas agrícolas
adequadas a fim de otimizar sua exploração coerente e compatível com aquela terra, o que
não quer dizer necessariamente que devem ser sempre empregadas tecnologias avançadas e
caras para que se cumpra essa questão da adequação16.
Em relação ao aspecto ambiental, percebe-se a escolha do legislador em adotar uma
postura mais firme quanto à proteção do meio-ambiente. Tal colocação pode ser encarada

13
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm> . Acesso em: 31 jul 2014.
14
FOWLER, Marcos Bittencourt; CRUZ, André Viana da. ; RIBEIRO, Dandara dos Santos Damas.
Desapropriação para fins de Reforma Agrária por descumprimento da função ambiental da propriedade. IN: In:
SONDA, Claudia (org.); TRAUCZYNSKI, Silvia Cristina (org.). Reforma Agrária e Meio Ambiente: teoria e
prática no estado do Paraná. Curitiba, ITCG, 2010. p.182-197. Disponível em:
<http://www.itcg.pr.gov.br/arquivos/File/LIVRO_REFORMA_AGRARIA_E_MEIO_AMBIENTE/PARTE_3_1
_CARLOS_MARES.pdf>. Acesso em: 31 jul 2014.
15
Artigo 2º, parágrafo 1º,alínea "b" da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964: "Art. 2º É assegurada a todos a
oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: [...] b)
mantém níveis satisfatórios de produtividade; [...].Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4504compilada.htm>. Acesso em: 31 jul 2014
16
MATTOS, Denise Souza Rodrigues de; SILVA, Vilmar Antonioda.A função social da propriedade: sua
importância para a Região Amazônica e Roraima. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 101, jun 2012.
Disponível em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11865&revista_ca
derno=7>. Acesso em: 1 jun. 2014.
390
Direito Agrário Ambiental

como a "função ambiental" da propriedade. Para Steigleder17, a função ambiental está ligada à
acepção do meio ambiente como direito difuso, independente dos elementos que o integram.
Dessa forma, a utilização da terra deve ser feita respeitando-se os recursos naturais, de
modo a garantir a preservação do meio ambiente. Tal questão está intimamente ligada com a
ideia de desenvolvimento sustentável, podendo-se afirmar que o princípio da preservação
ambiental também é caro ao Direito Agrário e não apenas ao Direito Ambiental. Com isso,
pode-se considerar também que tal imposição constitucional serve também como forma de
alertar sobre o cumprimento da legislação ecológica18.
Destaca-se, ainda, que segundo Portanova19:

Aliado ao que estabelece o art. 225 da Constituição Federal, podemos dizer


que esta limitação de cunho ambiental não diz respeito apenas à utilização
racional e equilibrada da propriedade por parte do proprietário, mas uma outra
relação deste Direito que ultrapassa os limites ideológicos e a dogmática jurídica,
por mais abundante que sejam os seus institutos.

Percebe-se, com isso, que, para o cumprimento do estabelecido no artigo 186, inciso
II, é preciso que se observa não apenas o que nele está contido propriamente dito, mas
também que se tenha uma interpretação sistêmica de outros dispositivos constitucionais que
tratam de meio ambiente e, além deles, das leis ambientais, entre as quais se pode citar o
Código Florestal. Inclusive, tal comando encontra-se previsto no caput do próprio artigo 186,
ao estabelecer que devem ser observados os critérios e graus constantes em outras normas.
Quanto ao aspecto social, encontrado nos incisos III e IV do artigo 186 da
Constituição Federal, conforme indicado anteriormente, percebe-se a preocupação do
legislador em dotar o proprietário de um imóvel rural da responsabilidade para com os
trabalhadores rurais, que representam um pilar importante no desenvolvimento das atividades
agrárias.
Nesse ponto, os direitos fundamentais do trabalhador devem ser rigorosamente
observados pelos proprietários rurais, que são encarregados de garantir as condições dignas de
trabalho, tanto em relação a aspectos como duração da jornada de trabalho, remuneração,

17
STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A função Sócio-Ambiental da Propriedade Privada. Ministério Público
do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.mprs.mp.br/ambiente/doutrina/id20.htm>. Acesso
em: 31 jul 2014.
18
MATTOS; SILVA, op. cit., p. 05.
19
PORTANOVA, Rogério. Alguns Aspectos Preliminares sobre a Função Socioambiental da Propriedade. In:
CUNHA, Belinda Pereira da (org.); AUGUSTIN, Sérgio (org.). Sustentabilidade Ambiental: estudos jurídicos
e sociais. Dados Eletrônicos - Caxias do Sul, RS: Educs, 2014. p. 405-414.
391
Direito Agrário Ambiental

férias, entre outros, como à segurança no trabalho e à satisfação mútua do trabalhador e do


proprietário.
Diante do exposto, nota-se que a função social da propriedade rural tem seu sentido
ampliado com a edição da Constituição de 1988, apresentando aspectos importantes quanto à
preservação do meio ambiente no desenvolvimento das atividades agrícolas, razão pela qual
se pode falar na sua função "socioambiental" como forma de enfatizar que a manutenção de
um meio ambiente equilibrado e suas implicações são requisitos fundamental para que possa
ser dito que uma propriedade rural cumpre sua função social.
Ademais, torna-se relevante mencionar que o cumprimento da função social mediante
o preenchimento de requisitos que vão além da produtividade da terra revela-se como uma
evidência da pretensão - fala-se em pretensão, tendo em vista que no cotidiano isso não é
devidamente aplicado - de se ultrapassar o entendimento do desenvolvimento agrário como
sinônimo de crescimento econômico, não se fundando, portanto, apenas em teorias
econômicas. Isso porque, conforme a concepção constitucional vigente, para que se possa
falar em desenvolvimento agrário é preciso que haja uma harmonização econômica, social e
ambiental.
Portanto, é necessário adotar uma visão holística da realidade agrária, dialogando com
as diversas ciências, considerando-se a questão para além do mero aumento da produção, mas
também com o trabalhador, que não é apenas uma ferramenta, mas sim um ser humano,
fundamental para a atividade agrária e que precisa ter sua condição humana reconhecida e
mantida, e o meio ambiente se insere nesse processo.

4. DIREITO AGRÁRIO E DESENVOLVIMENTO


Tratando especificamente de direito agrário e desenvolvimento, vê-se que o Direito
Agrário se estabelece como um conjunto de normas e princípios jurídicos que organiza as
relações da atividade rural, regulando a relação do individuo com a terra, buscando o
progresso social e econômico do trabalhador do campo e o enriquecimento da coletividade a
partir da promoção da função social da terra20.
Conforme prescrito na Constituição Federal, por meio da função social da
propriedade, o interesse público prevalece sobre as pretensões do indivíduo, estabelecendo,

20
SANTIAGO, Emerson . Direito Agrário. Disponível em:<http://www.infoescola.com/direito/direito-agrario/>.
Acesso em: 01 de jun de 2014.

392
Direito Agrário Ambiental

dessa forma, que a propriedade deve ser plenamente utilizada e não assumir forma de
especulação.
Nesse sentido, visando ao bem coletivo, o desenvolvimento agrário é fundamentado
na melhoria das instituições, nas políticas públicas, nas condições de acesso e uso da terra, nas
relações de trabalho e em suas mudanças, nos conflitos sociais, nos mercados, dentre outros
aspectos,efetivando-se por meio de políticas públicas que visem à racionalização do solo,
beneficiando o lado mais frágil da relação, no caso o trabalhador rural. Por essa razão, a
garantia de acesso democrático à terra constitui uma condição de grande destaque para a
construção do desenvolvimento, uma vez que possibilita a criação de um mercado interno
forte e estreitas ligações entre o rural e o urbano.
Frise-se, entretanto, que o desenvolvimento agrário é muito mais do que uma política
de acesso à terra. Em sua dimensão mais ampla, o desenvolvimento agrário afeta todo o
conjunto de condições sociais, econômicas, ambientais e políticas, objetivando beneficiar não
somente a população rural, mas toda a coletividade, por exemplo, por meio da conservação do
meio ambiente e da sustentabilidade.
Ademais, no cenário contemporâneo, a questão da sustentabilidade é de extrema
importância e está intimamente ligada ao desenvolvimento agrário. Entende-se que, em se
tratando de propriedade rural, o texto constitucional ampliou a concepção de função social
para abarcar não apenas a produtividade adequada, mas também envolver o cumprimento da
legislação ecológica.
Reconhece-se a relevância da preocupação com o meio ambiente, visto que apenas a
tradicional divisão de grandes propriedades em parcelas menores, sem preocupação
ambiental, tem levado ao sobreuso dos solos, à redução da disponibilidade de água, aos
desmatamentos. Dessa maneira, caem a produtividade agrícola e a possibilidade de o lote
sustentar a família que o ocupa. Nada obstante, isso pode ser evitado com a adequação das
técnicas de manejo do solo, da água e da vegetação, e com educação ambiental no âmbito dos
assentamentos para a sustentabilidade ambiental.
Nesse diapasão, mister se faz que cada projeto de desenvolvimento agrário, por meio
da política de acesso à terra, leve em consideração a introdução do elemento de
sustentabilidade, incluindo também a educação ambiental das famílias.

5. DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO

393
Direito Agrário Ambiental

Tratando ainda sobre o desenvolvimento agrário, é de grande relevância abordar a


existência do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, que no Brasil, foi criado em
25 de novembro de 1999, por meio de medida provisória, tendo sua estrutura regimental
definida pelo decreto nº 7255/2010. O Ministério do Desenvolvimento Agrário21 possui várias
competências, dentre elas: a reforma agrária e o reordenamento agrário; a regularização
fundiária na Amazônia Legal; a promoção do desenvolvimento sustentável da agricultura
familiar e das regiões rurais; e a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação
e a titulação das terras ocupadas pelos remanescentes dos quilombolas.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário possui várias secretarias que atuam em
áreas específicas do desenvolvimento agrário, cuidando mais profundamente de cada política
de desenvolvimento para que todas as competências do Ministério sejam abarcadas e
aprimoradas.
Dentre os órgãos de assistência direta e imediata ao Ministério, encontra-se o NEAD
– Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural22, que busca contribuir para o
aperfeiçoamento das políticas de desenvolvimento rural propriamente ditas, promovendo
estudos e pesquisas com a intenção de avaliar e aperfeiçoar as políticas públicas voltadas à
reforma agrária, à agricultura familiar e ao desenvolvimento rural sustentável.
Em torno dos núcleos de desenvolvimento agrário existentes e abordados pelo
próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário, é importante abordar os três mais
importantes e relevantes no contexto atual, que são: a reforma agrária, a agricultura familiar e
o desenvolvimento sustentável.

5.1 Reforma Agrária


A reforma agrária tem por objetivo proporcionar a redistribuição das propriedades
rurais, ou seja, efetuar a distribuição da terra para a realização de sua função social. Esse
processo é realizado pelo Estado, que compra ou desapropria terras de grandes latifundiários
(proprietários de grandes extensões de terra, cuja maior parte aproveitável não é utilizada) e
distribui lotes de terras para famílias camponesas.Conforme o Estatuto da Terra, criado em
1964, o Estado tem a obrigação de garantir o direito ao acesso à terra para quem nela vive e
trabalha.

21
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Disponível em: <www.mda.gov.br>. Acesso em: 30
jul 2014.
22
NEAD – Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural. Disponível em:
<http://www.nead.gov.br/portal/nead/institucional/O_Nead>. Acesso em: 10 jun 2014.
394
Direito Agrário Ambiental

O órgão responsável, juntamente com o Ministério do Desenvolvimento Agrário é o


INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que tem como missão
implementar a política de reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional,
contribuindo para um desenvolvimento rural sustentável. Essa política atua de forma lenta e
nem sempre é eficaz. Os dados trazidos pelo próprio INCRA mostram quantos foram
beneficiados de 2003 a 2010 com a política de reforma agrária.
De acordo com as diretrizes estabelecidas no II Programa Nacional de Reforma
Agrária, implantado em 2003, a reforma agrária executada pelo INCRA deve ser integrada a
um projeto nacional de desenvolvimento, massiva, de qualidade, geradora de trabalho e
produtora de alimentos. Deve, ainda, contribuir para dotar o Estado dos instrumentos para
gerir o território nacional.
O INCRA23, como maior responsável estatal pela reforma agrária deve cuidar para
que esta, quando realizada, cumpra o estabelecido pelo próprio Estatuto da Terra, que indica
que a reforma agrária deve proporcionar a desconcentração e a democratização da estrutura
fundiária; a produção de alimentos básicos; a geração de ocupação e renda; o combate à fome
e à miséria; a diversificação do comércio e dos serviços no meio rural; a interiorização dos
serviços públicos básicos; a redução da migração campo-cidade; a democratização das
estruturas de poder; a promoção da cidadania e da justiça social.

5.2. Desenvolvimento Sustentável


Desenvolvimento sustentável é a forma de desenvolvimento que não agride o meio
ambiente de maneira que não prejudica o desenvolvimento vindouro, ou seja, é uma forma de
desenvolver sem criar problemas que possam atrapalhar e/ou impedir o desenvolvimento no
futuro. De forma prática e objetiva, existem três colunas imprescindíveis para a aplicação do
desenvolvimento sustentável: desenvolvimento econômico, desenvolvimento social e
proteção ambiental.
O tema da sustentabilidade é muito atual, e, no âmbito agrário, tal ideologia ganha
mais força, visto que é nesse ambiente que as políticas de desenvolvimento devem surtir
maiores efeitos. Para isso, o Estado deve aplicar políticas que envolvam a sociedade e
protejam o meio ambiente, garantindo que no futuro os recursos não impeçam o
desenvolvimento.

23
INCRA. Disponível em: <incra.gov.br>. Acesso em: 30 jul. 2014.
395
Direito Agrário Ambiental

5.3. Agricultura Familiar


A agricultura familiar no Brasil, hoje é acompanhada e regida pela Secretaria de
Agricultura Familiar – SAF, criada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Tal
secretaria cuida e desenvolve projetos específicos para essa área do desenvolvimento agrário,
visando à melhoria da qualidade de vida das pessoas no âmbito rural e também auxiliando as
políticas de desenvolvimento sustentável.
A Secretaria da Agricultura Familiar possui várias políticas de auxílio às famílias
rurais, dentre elas o PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar - que oferece crédito para a subsistência da agricultura familiar.
Os principais objetivos da Secretaria são: 1) Direcionar todo o trabalho para a
promoção do ser humano e da sociedade como agentes e beneficiários do desenvolvimento; 2)
Criar, desenvolver, adaptar e aperfeiçoar programas, projetos e atividades de apoio
diferenciado aos agricultores familiares nas linhas de crédito rural, infraestrutura e serviços
municipais, assistência técnica, extensão rural, pesquisa agropecuária, capacitação,
profissionalização e inserção no mercado; 3) Promover a articulação e a complementaridade
dos programas, dos projetos e das atividades de apoio à agricultura familiar, utilizando como
instrumento principal os planos estaduais e municipais de desenvolvimento rural; 4) Integrar
as ações do Pronaf com as ações dos programas de acesso à terra do MDA, apoiando a
consolidação econômica das unidades familiares criadas; 5) Sintonizar, preferencialmente no
âmbito dos Conselhos de Desenvolvimento Rural, as ações do Pronaf com as propostas dos
beneficiários, dos parceiros do setor público e dos demais agentes atuantes na questão da
agricultura familiar; 6) Dar prioridade aos grupos de agricultores familiares de menor renda,
visando promovê-los a patamares superiores de bem-estar; 7) Valorizar e divulgar o conceito
de agricultura familiar como atividade econômica fundamental para o desenvolvimento socio-
econômico sustentado do meio rural; 8) Buscar, junto a organismos públicos multilaterais e a
organizações não governamentais internacionais, novas fontes de recursos para projetos de
apoio à agricultura familiar, principalmente para projetos relacionados à viabilização dos
produtores de menor renda; e 9) Promover agregação de valor aos produtos do agricultor
familiar, seu acesso competitivo ao mercado e geração de renda a partir de atividades não-
agrícolas.
Existem ainda outras políticas de auxílio às comunidades rurais, visando ao
desenvolvimento e à inserção no comércio das cooperativas rurais, da agricultura familiar e de
outros povos que vivem no meio rural. Uma das inovações criadas pela Secretaria da

396
Direito Agrário Ambiental

Agricultura Familiar é a implantação e regulamentação de selos que indicam que a produção


de determinada plantação pertence à agricultura familiar. Para adquirir tal selo, existem
algumas exigências e fiscalizações. O selo mais conhecido é o SIPAF – Selo de Identificação
da Participação da Agricultura Familiar. Este busca identificar os produtores que têm em sua
composição a participação majoritária da agricultura familiar.As organizações que possuem o
selo promovem a inclusão econômica e social dos agricultores, gerando mais empregos e
renda no campo. A validade desse selo é de 5 anos e os produtos identificados são: café,
verduras, legumes, polpas de frutas e laticínios, entre outros.
Entretanto, esses selos, criados com o objetivo de fomentar a agricultura familiar,
nem sempre são eficazes, pois muitos produtores rurais arrendam terras que fazem parte da
agricultura familiar e possuem tais selos, trazendo benefícios para suas grandes produções,
com baixos custos e utilizando o trabalho das famílias da zuna rural que possuem tais
benefícios do governo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
À luz da Carta Magna, o direito à propriedade constitui um direito fundamental,
sendo, portanto, inviolável, devendo desempenhar sua função social por meio da observância
dos requisitos constitucionalmente postos, quais sejam: o aproveitamento racional e
adequado; a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio
ambiente; a observância das disposições que regulam as relações de trabalho; a exploração
que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Adota-se, nesse contexto, a função social não apenas como um princípio norteador
ou mesmo um limite ao direito de propriedade, mas como um elemento integrante deste, sem
o qual a propriedade não se perfaz. A função social da propriedade ainda revela sua
importância por ser necessária à construção de diretrizes para o livre exercício das atividades
econômicas, das políticas urbanas e agrárias, bem como para o exercício do direito à
propriedade em seus atributos de uso, gozo e disposição.
Frisa-se que a função social da propriedade rural tem seu sentido ampliado com a
edição da Constituição de 1988, apresentando aspectos importantes quanto à preservação do
meio ambiente no desenvolvimento das atividades agrícolas, razão pela qual se pode falar na
sua função "socioambiental", como forma de enfatizar que a manutenção de um meio
ambiente equilibrado e suas implicações são um requisito fundamental para que possa ser dito
que uma propriedade rural cumpre sua função social. Dessa forma, a função ambiental está

397
Direito Agrário Ambiental

ligada à acepção do meio ambiente como direito difuso, independente dos elementos que o
integram.
Afere-se, portanto, que o cumprimento da função social mediante o preenchimento
de requisitos que vão além da produtividade da terra revela-se como uma evidência da
pretensão de se ultrapassar o entendimento do desenvolvimento agrário como sinônimo de
crescimento econômico, não se fundando, pois, apenas em teorias econômicas. Isso porque,
conforme a concepção constitucional vigente, para que se possa falar em desenvolvimento
agrário, é preciso que haja uma harmonização econômica, social e ambiental.
Nesse diapasão, o Direito Agrário se estabelece como um conjunto de normas e
princípios jurídicos que organiza as relações da atividade rural, regulando a relação do
indivíduo com a terra, buscando o progresso social e econômico do trabalhador do campo e o
enriquecimento da coletividade a partir da promoção da função social da terra.
No âmbito das políticas públicas nacionais, o Ministério do Desenvolvimento
Agrário possui várias secretarias que atuam em áreas específicas do desenvolvimento agrário,
cuidando mais profundamente de cada política de desenvolvimento para que todas as
competências do Ministério sejam abarcadas e aprimoradas.Dentre os órgãos de assistência
direta e imediata ao Ministério, encontra-se o NEAD – Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural, que busca contribuir para o aperfeiçoamento das políticas de
desenvolvimento rural propriamente ditas, promovendo estudos e pesquisas com a intenção de
avaliar e aperfeiçoar as políticas públicas voltadas à reforma agrária, à agricultura familiar e
ao desenvolvimento rural sustentável.
Observa-se, portanto, que a garantia de acesso democrático à terra constitui uma
condição de grande destaque para a construção do desenvolvimento, uma vez que possibilita a
criação de um mercado interno forte e estreitas ligações entre o rural e o urbano. Entretanto, o
desenvolvimento agrário é muito mais do que uma política de acesso à terra. Em sua
dimensão mais ampla, o desenvolvimento agrário afeta todo o conjunto de condições sociais,
econômicas, ambientais e políticas, objetivando beneficiar não somente a população rural,
mas toda a coletividade.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 1jun 2014.

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______. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4504compilada.htm>. Acesso em: 31 jul 2014.
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(org.). Reforma Agrária e Meio Ambiente: teoria e prática no estado do Paraná. Curitiba,
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<http://www.itcg.pr.gov.br/arquivos/File/LIVRO_REFORMA_AGRARIA_E_MEIO_AMBI
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INCRA. Disponível em: <incra.gov.br>. Acesso em: 30 jul 2014.
MATTOS, Denise Souza Rodrigues de; SILVA, Vilmar Antonioda. A função social da
propriedade: sua importância para a Região Amazônica e Roraima. In: Âmbito Jurídico, Rio
Grande, XV, n. 101, jun 2012. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11865&revista_cad
erno=7>. Acesso em: 1jun 2014.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Disponível em: <www.mda.gov.br>.
Acesso em: 30 jul 2014.
NETO, José Alves de Almeida. Uma visão moderna da função social da propriedade rural.
Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3507> Acesso em :
31 jul 2014.
NEAD – Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural. Disponível em:
<http://www.nead.gov.br/portal/nead/institucional/O_Nead>. Acesso em: 10 jun 2014.
PORTANOVA, Rogério. Alguns Aspectos Preliminares sobre a Função Socioambiental da
Propriedade. In: CUNHA, Belinda Pereira da (org.); AUGUSTIN, Sérgio (org.).
Sustentabilidade Ambiental: estudos jurídicos e sociais. Dados Eletrônicos - Caxias do Sul,
RS: Educs, 2014. p. 405-414.
SANTIAGO, Emerson .Direito Agrário. Disponível em:
<http://www.infoescola.com/direito/direito-agrario/>. Acesso em: 01 jun 2014.
SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo.25 ed., Malheiros Editores.
2005.

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STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A função Sócio-Ambiental da Propriedade Privada.


Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em:
<http://www.mprs.mp.br/ambiente/doutrina/id20.htm>. Acesso em: 31 jul 2014.

400
401

CAPÍTULO XXII – FUNDAMENTOS DO DIREITO AGRÁRIO PARA OS NOVOS


DIREITOS DE 3ª A 5ª GERAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE SUA EVOLUÇÃO
NO DIREITO CIVIL

Amanda de Oliveira Almeida1


Heloísa Clara Araújo Rocha Gonçalves2
Jéssica Dias de Arruda3
Juliana Leite de Medeiros4
Samuel José Cassimiro Vieira5

INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo principal avaliar a influência dos novos direitos de
3ª a 5ª geração sobre os fundamentos do Direito Agrário, em face de sua evolução no Direito
Civil, sob a influência direta dos ditames do Direito Constitucional.
A evolução e crescente importância dos direitos fundamentais e a crise do modelo
liberal de Estado, afastando-o da postura de mero abstencionista, trouxeram para o direito
privado diversos elementos de direito público a fim de viabilizar a conciliação do crescimento
econômico com o desenvolvimento social sustentável. Surge, neste ponto, a expansão da área
de influência do Direito Constitucional, que passa a interpenetrar-se nos diversos ramos do
direito privado, dentre eles o Direito Agrário.
A constitucionalização vem a ser o fenômeno da submissão do direito
infraconstitucional aos fundamentos de validade expressos na Lei Maior. No Direito Agrário,
tal mudança de paradigma é perceptível na modificação de seu próprio fundamento maior,
que deixa de ser a visão individualista de proteção da propriedade para tornar-se o princípio
da função social da propriedade e dos contratos. Vive-se um momento em que aspectos dos
direitos fundamentais, positivados pela Constituição de 1988, permeiam os próprios
fundamentos do Direito Agrário.
Inicialmente restrito aos direitos de primeira geração, com a crescente influência da
Constituição sobre as relações privadas a fim de preservar o interesse público, o Direito
Agrário abre-se também para as discussões envolvendo direitos sociais, coletivos, questões de

1
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
2
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
3
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
4
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
5
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
401
402

democracia, de engenharia genética e mesmo relativas ao direito à paz, ou seja, a partir de sua
evolução no direito civil, incorpora novos fundamentos para os direitos de 3ª a 5ª geração.
O desenvolvimento do artigo divide-se em cinco partes. Inicialmente é realizada a
classificação das quatro primeiras dimensões de direitos. A segunda parte cuida da
delimitação do conceito dos direitos de quinta dimensão. Em seguida é analisada a influência
das dimensões de direitos fundamentais sobre o Direito Agrário. Na quarta parte, verificam-se
o fenômeno da constitucionalização do direito privado e sua relação com o princípio da
função social da propriedade. A quinta parte, a seu turno, aborda o tratamento da questão na
jurisprudência.

1. GERAÇÕES OU DIMENSÕES DE DIREITOS?


Direito e sociedade encontram-se em constante processo de retroalimentação, isto é,
na medida em que o direito absorve as mudanças sociais, ele é também elemento ativo,
transformador e determinante da realidade social (SABADELL, 2008, p.102). A Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, a chamada Constituição Cidadã, reflete o
resultado das lutas por mudanças e inquietações geradas na época em que o país sofreu com o
cerceamento de direitos vivenciado na ditadura, como também traz novas formas de pensar o
direito pátrio. O Título II trata dos Direitos e das Garantias Fundamentais e é corolário de uma
evolução histórica desses direitos, que não surgiram de forma concomitante, mas que hoje
coexistem em um todo harmônico protetivo.
O estudo dos direitos fundamentais passa, necessariamente, por uma perspectiva
histórica, pautada no reconhecimento das necessidades surgidas ao longo de cada época,
fortemente motivadas pelos anseios democráticos e pela constante busca da pacificação
social. Norberto Bobbio – filósofo italiano cuja obra é dotada de grande rigor analítico e
inexorável contextualização histórica – salienta que “Direitos do homem, democracia e paz
são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem
reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições
mínimas para a solução pacífica dos conflitos” (BOBBIO, 2004, p.21). Nesse norte, o autor
entende que

[...] os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos,
ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de
novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de
uma vez e nem de uma vez por todas. (BOBBIO, 2004, p.25)

402
403

E foi, de fato, com o pensamento de Bobbio que a teoria das gerações de direitos
ganhou ampla visibilidade. No entanto, segundo relato de George Marmelstein, a divisão foi
originalmente formulada pelo jurista tcheco Karel Vasak, em Estrasburgo, durante a aula
inaugural do Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em que foram tomados
como ponto de partida os ideais da Revolução Francesa: liberdade (1ª geração), igualdade
(segunda geração) e fraternidade (3ª geração). (MARMELSTEIN apud DIÓGENES JÚNIOR,
2012).
Porém “não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos
fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de
alternância [...]” (SARLET, 2009, p.50). Desse modo, é importante frisar que, não obstante a
atecnia de nomenclatura leve a supor, não há superação de uma geração pela outra, ou seja, a
ascensão de uma nova geração não implica a extinção daquela que a precede.

Força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo


“dimensão” substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo “geração”, caso
este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, caducidade dos
direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade (BONAVIDES, 2010,
p.572).

Por esse motivo, Antônio Augusto Cançado Trindade (1997) afirma que a visão das
gerações de direitos encontra-se desprovida de fundamento jurídico e histórico porque gerou
uma crença de que os direitos devem ser vistos de forma atomizada, fragmentada. Assim,
reputa-se necessária a desmistificação desse fenômeno, que não é de sucessão e, sim, de
integratividade e fortalecimento. “A visão compartimentalizada dos direitos humanos
pertence ao passado e, como reflexo dos confrontos ideológicos de outrora, já se encontra há
muito superada”. (CANÇADO TRINDADE, 1997, p.390)
Nesse diapasão, e em atendimento ao rigor técnico, adotar-se-á a nomenclatura
“dimensões de direitos”. Estabelecidas as razões pela predileção do termo a ser utilizado, resta
agora discorrer, de forma sucinta, sobre cada uma das dimensões traçadas pela doutrina, além
de direcionar uma atenta abordagem quanto aos pontos de consonância e discordância que
surgem no âmbito da delimitação dos direitos de quarta e quinta dimensões, posto que a teoria
clássica seja composta por apenas três vertentes.

1.1. Os Direitos de Primeira Dimensão: As Liberdades Negativas


Conforme é cediço, a Revolução Francesa serviu de substrato para a paulatina
institucionalização dos direitos fundamentais. A começar pelo ideal de liberdade, a primeira

403
404

dimensão de direitos é caracterizada pela consolidação dos direitos civis e políticos, cuja
titularidade pertence ao indivíduo, e podem ser traduzidos como ditames limitadores da
atuação estatal, oponíveis ao Poder Público. Nesse momento, o Estado exerce uma postura
abstencionista, não interventiva, que nada mais é do que uma prestação negativa com vistas a
se obter a liberdade dos indivíduos. (PFAFFENSELLER, 2007)
À guisa de exemplificação, englobam-se como primeira dimensão ou liberdades
públicas os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, de acordo
com o que preconiza o artigo 5º da Constituição Federal. “Derivados de tais direitos, também
podem ser destacados como direitos de primeira geração na Constituição brasileira as
liberdades de manifestação (art. 5º, IV), de associação (art. 5º, XVII) e o direito de voto (art.
14, caput)” (PFAFFENSELLER, 2007, p.7).

1.2. Os Direitos de Segunda Dimensão: As Liberdades Positivas


A segunda dimensão de direitos é constituída pelos chamados direitos econômicos,
sociais e culturais, corolários do ideal de igualdade preconizado na Revolução Burguesa
ocorrida na França. Seu surgimento se deu em razão da igualdade meramente formal mantida
mesmo após a ascensão das liberdades públicas que, sob uma perspectiva material, não
suavizaram as disparidades sociais existentes. Destarte, o exercício das referidas liberdades
ficava limitado àqueles monetariamente abastados, únicos que a elas tinham acesso, o que
gerou profundo descontentamento. Assim, “no plano dogmático, a diferença entre os direitos
sociais e econômicos, de um lado, e as liberdades públicas, de outro, costuma ser definida da
seguinte forma: enquanto essas últimas exigem uma abstenção estatal, os primeiros exigem,
ao contrário, uma prestação” (DA SILVA, 2005, p.541-558).
No plano constitucional pátrio, os direitos de segunda dimensão estão presentes,
sobremaneira, no capítulo referente aos direitos sociais (Capítulo II, do Título II),
precisamente no artigo 6º, que versa: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação,
o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

1.3. Os Direitos de Terceira Dimensão: A Titularidade Coletiva e Difusa


No que concerne à teoria que divide a história evolutiva de reconhecimento de
direitos em gerações (cuja predileção foi adotar o termo “dimensões”), fundada nos ideais
revolucionários franceses, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2009, p.57) explica que “a

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primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, e a
terceira, assim, completaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade,
fraternidade”. O autor acrescenta, ainda, que o desenvolvimento de tais direitos, cuja
titularidade é difusa e coletiva, ocorreu no plano do direito internacional.
Quando discorreu sobre tais direitos, Norberto Bobbio (2004, p.25) os concebia
como “[...] uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o
que impede que se compreenda de que efetivamente se trata. O mais importante deles é o
reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído”.
Assim, a doutrina cuidou de discutir o sentido e o alcance de tais direitos, elencando outras
nuances, além do recorte ambiental. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2009), por exemplo,
acrescenta ao direito a um meio ambiente sustentável, dentre outros, o direito ao
desenvolvimento, ao patrimônio comum da humanidade e à autodeterminação dos povos.

1.4. Os Direitos de Quarta Dimensão: Sua Delimitação na Doutrina


A quarta dimensão de direitos, assim como a quinta, gera entendimentos dissonantes
na doutrina, devido à fluidez de seu conteúdo, por não ter, conforme demonstrado linhas
acima, aporte dos ideários da Revolução Francesa. Paulo Bonavides (2010, p.571) identifica
que os direitos de quarta dimensão são “o direito à democracia, o direito à informação e o
direito ao pluralismo”. Bonavides (2010, p.572) salienta ainda que eles são essenciais para a
globalização e universalização dos direitos fundamentais e explica que “[...] eles compendiam
o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão somente com eles será
legítima e possível a globalização política”.
Na visão de Norberto Bobbio (2004, p.25-26), contudo, os direitos de quarta
dimensão referem-se “aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que
permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo”. Para o autor, portanto, tais
direitos seguem outra vertente, a da engenharia genética, e fariam parte do patrimônio
genético de cada um.

2. A DELIMITAÇÃO DOS DIREITOS DE QUINTA DIMENSÃO: O


POSICIONAMENTO DE PAULO BONAVIDES E O DIREITO À PAZ
Ao redor da quinta dimensão de direitos fundamentais gravita verdadeira celeuma
doutrinária, especificamente quanto à natureza dos direitos abrangidos por essa esfera,

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conquanto não seja sequer pacífica a necessidade de seu reconhecimento enquanto dimensão
independente.
Em termos gerais, parte da doutrina, abalizada nas ideias pioneiras de Norberto
Bobbio, defende a existência de apenas três dimensões de direitos, tal qual concebido
primordialmente por citado jurista italiano, quais sejam: a primeira dimensão, consistente na
proteção dos direitos civis e políticos; a segunda dimensão, relativa à proteção dos direitos
ditos sociais, econômicos e culturais; e, por fim, a terceira dimensão, concernente aos direitos
metaindividuais, direitos coletivos e difusos, os direitos de solidariedade6 ou fraternidade.
Para essa parcela doutrinária, segundo professa Ingo Wolfgang Sarlet (2009, p.50):

[...] todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam, direta ou


indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, da liberdade, da
igualdade e da fraternidade (solidariedade), tendo, na sua base, o princípio maior da
dignidade da pessoa humana, razão pela qual não haveria necessidade da criação de
mais dimensões de direitos.

Todavia, cresce a tendência de se conferir o reconhecimento da existência de uma


quarta e quinta dimensões, e, nesse contexto, duas correntes distintas têm ganhado espaço na
doutrina com vistas à tratativa dessas novas dimensões de direitos, inicialmente não previstas
na teoria de Norberto Bobbio.
A primeira delas, esposada por Antônio Carlos Wolkmer (2002), por exemplo,
defende a existência de uma quarta dimensão voltada aos direitos referentes à biotecnologia, à
bioética e à regulação da engenharia genética; e de uma quinta dimensão voltada aos direitos
advindos das tecnologias de informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual em
geral.
Em contraponto a esse posicionamento doutrinário, boa parcela da doutrina,
alicerçada nas ideias de Paulo Bonavides (2010), defende um leque diferente de direitos a ser
objeto dessas mesmas dimensões. Consoante professa Paulo Bonavides (2010), como já
tratado alhures, a quarta dimensão de direitos fundamentais seria composta pelos direitos

6
Quanto aos direitos de solidariedade, cumpre destacar que estes “[...] são mais recentes e não estão presentes na
Declaração Universal, mas fazem parte das Convenções e dos Pactos Internacionais proclamados pela ONU nas
últimas décadas. Eles referem-se à necessidade de preservar o ambiente natural (são os direitos ecológicos), de
preservar a cultura de um povo ou de uma minoria étnica (os direitos à identidade cultural), de garantir uma
informação correta e democrática (direito à comunicação), de construir uma nova ordem econômica e política
internacional (direitos ao desenvolvimento e à paz), etc. Estes tipos de direitos são difíceis de proteger, por
isso exigem atenção de cada membro da comunidade, para também lutar em sua defesa”. (grifos nossos).
Disponível em <http://www.dhnet.org.br/dados/cartilhas/dh/estaduais/pb/cartilhapb/6_dirsolidariedade.html>.
Acesso em 14 jul. 2014.
406
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relacionados à democracia (no caso, a democracia direta). A quinta dimensão, por sua vez,
consistiria no direito à paz.
Inicialmente, Paulo Bonavides defendia que a terceira dimensão de direitos – que é
aquela referente aos direitos de solidariedade7 ou fraternidade – deveria ser interpretada de
forma mais abrangente, de modo a incluir os direitos relacionados ao desenvolvimento, à
autodeterminação dos povos, ao meio ambiente sadio, à qualidade de vida, o direito de
comunicação e o direito à paz.
Entretanto, consoante professa Ingo Wolfgang Sarlet (2009, p.51), com a intenção de
assegurar ao direito à paz um lugar de destaque, de sorte a resgatar a sua indispensável
relevância no contexto multidimensional que marca a trajetória e o perfil dos direitos
humanos e fundamentais, Paulo Bonavides entendeu ser imprescindível a inserção do direito à
paz em uma dimensão nova e autônoma, qual seja, a quinta dimensão, cujo papel seria o de
agregar todos os outros direitos fundamentais em torno da paz.
Nesse contexto, o direito à paz, tal qual preconizado por Paulo Bonavides, cujo
respeito e preservação se impõem em razão da primazia da dignidade da pessoa humana, pode
ser compreendido como:

[...] um direito do qual todos devem se beneficiar e uma situação que torna possível
o desenvolvimento humano integral. A paz é a condição que faz com que todos os
outros direitos sejam possíveis; a realização dos direitos fundamentais conduz, em
última instância, à verdadeira paz, baseada na liberdade, na justiça e na
8
fraternidade.

O direito à paz é concebido, portanto, como direito inerente à vida, condição


indispensável ao progresso de todas as nações, em todas as esferas, e direito natural dos
povos. No ordenamento jurídico pátrio, o direito à paz vem positivado no artigo 4º, inciso VI
da Constituição Federal de 1988 sob a forma de princípio e, nesta condição, detém a mesma
força normativa dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, o direito à paz que aqui se menciona – e que se mostra pertinente para
o Direito Agrário - não pode ser reduzido tão somente à ideia da paz em seu sentido negativo,

7
“Solidariedade é o que cada um deve ao outro. Esse princípio (...) dispõe de acentuado conteúdo ético, pois
contém em suas entranhas o próprio significado da expressão solidariedade, que compreende a fraternidade e a
reciprocidade. A pessoa só existe enquanto coexiste. O princípio da solidariedade tem assento constitucional,
tanto que em seu preâmbulo assegura uma sociedade fraterna”. (DIAS, 2013, p. 69).
8
Tal compreensão foi proferida pelo Observador Permanente da Santa Sé na ONU em Genebra, Dom Silvano
Maria Tomasi, durante a 23ª Sessão do Conselho dos Direitos Humanos sobre o “Direito à paz”, no ano de 2013.
Disponível em
<http://pt.radiovaticana.va/news/2013/06/08/dom_tomasi:_a_paz_%C3%A9_um_direito_de_todos_e_torna_pos
s%C3%ADvel_/bra-699528>. Acesso em 14 jul. 2014.
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isto é, como ausência de violência direta. A paz também pode ser definida de uma forma
positiva, enquanto ausência de violência indireta, isto é, de violência estrutural.
A violência estrutural seria o oposto da justiça social e, em verdade, corresponde a
aspectos como: a concentração de rendimentos e riqueza; a falta de acesso a direitos políticos
e sociais (como bens e serviços) para todos os segmentos da sociedade; o desemprego
estrutural, massivo e crônico; a distância que existe entre a Justiça e as camadas mais
marginalizadas da população, empobrecidas e vítimas de uma estrutura brutalmente desigual.
A violência estrutural abrange, portanto, aquelas modalidades de violência socioeconômica,
de gênero, étnica, cujos reflexos têm o condão de produzir pessoas desesperadas e
marginalizadas, que acabam por perder, paulatinamente, o seu sentido de humanidade num
mundo que não as acolhe, não as valoriza, nem as promove9.
Dessa forma, reconhecer à paz um papel de destaque, dentre tantos outros direitos
fundamentais, ascendendo-o à condição de “supremo direito da Humanidade”, como outrora
defendera Paulo Bonavides, consiste em fazer a defesa não só de uma sociedade livre de
conflitos armados, mas também – e principalmente – de uma humanidade disposta a conferir a
todos os homens o direito de viver com dignidade, cidadania e justiça.

3. A INFLUÊNCIA DAS GERAÇÕES DE DIREITOS NO DIREITO AGRÁRIO: A


NECESSIDADE DE GARANTIA DA COLETIVIZAÇÃO, DA SOLIDARIEDADE E
DA PAZ
No período das grandes codificações, o Direito privado ocupava o papel central no
ordenamento jurídico. Por outro lado, a doutrina liberal, que impunha ao Estado uma atuação
essencialmente omissiva, tornava o âmbito de atuação do Direito Público bastante restrito.
Nesse aspecto, o Poder Público limitava-se a proporcionar a igualdade formal,
negligenciando, ou deixando a cargo dos particulares, os aspectos sócioambientais das
questões de Direito Privado, inclusive no que se refere ao Direito Agrário.
Com a crise do modelo liberal, o Estado arroga a si a atribuição de agir
positivamente para a concretização de seus fins, intensificando também o controle sobre as
atividades dos particulares. Elisa Ustárroz (2014) comenta que, sob a influência do contexto
histórico do Estado Social, “os direitos consagrados nos Códigos como absolutos foram
relativizados frente às necessidades sociais, isto é, os institutos de Direito Privado passam a

9
Pax Christi Portugal - Movimento Católico Internacional para a Paz. Violência estrutural ou violência do
poder? Disponível em: <http://semanapaz2009.blogspot.com.br/2009/03/violencia-estrutural-ou-violencia-
do.html>. Acesso em 14 jul. 2014.
408
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responder por sua função social”.


A partir desse marco, o Estado, ao mesmo tempo que assume um papel ativo na
promoção dos direitos de segunda dimensão, e, posteriormente, em relação aos de terceira,
quarta e quinta dimensões, convoca os particulares a também se tornarem agentes da
promoção de tais direitos, inserindo aspectos de Direito Público onde antes existia apenas o
Direito Privado puro.
Com o enfraquecimento da divisão que existia entre os Direitos Público e Privado, as
normas constitucionais passaram a interferir junto ao domínio do direito privado. De acordo
com a autora, passou-se de um momento de incomunicabilidade, para uma relação
hierárquica, de supremacia do interesse público e de complementaridade entre os dois
sistemas.
No contexto atual, a Constituição assumiu, de fato, o topo do ordenamento jurídico,
espalhando sua influência a todas as normas do sistema. Com isso, a Carta de 1988 irradia
para os diversos microssistemas normativos, inclusive para o que trata do Direito Agrário, os
diversos princípios e direitos fundamentais que acolheu, dentre os quais se encontram os
direitos de terceira, quarta e quinta dimensões, relativos à solidariedade, à democracia e à paz,
respectivamente, de acordo com a classificação proposta pelo doutrinador Paulo Bonavides, e
ainda o direito ao patrimônio genético, incluído por Norberto Bobbio na quarta dimensão.
De fato, é impossível dissociar da análise das questões de Direito Agrário aspectos
referentes à solidariedade, à democracia e à paz. O ramo jurídico em questão não mais se
encontra ligado à visão individualista que trazia o Código Civil de 1916. O fundamento
principal do Direito Agrário é retirado, hoje, da própria Constituição de 1988, o qual é o
atendimento à função social da propriedade e dos contratos.
Conforme aponta Elisabete Maniglia (2014), o ambiente rural, em decorrência das
próprias dificuldades que lhe são intrínsecas, representa um dos maiores centros de violações
aos direitos fundamentais, envolvendo questões como trabalho escravo, trabalho infantil,
fome, analfabetismo, concentração fundiária, desemprego, mortes em conflitos agrários, falta
de saneamento básico e infraestrutura viária, além da questão dos impactos ambientais da
atividade agrícola. A atividade agrária, como ressaltado pela autora, agrega valores sociais e
públicos, sendo um dos principais interesses da nação.
Tais questões demandam que, cada vez mais, se tenha sobre o direito agrário um
olhar multidisciplinar, compreendendo a interpenetração dos Direitos Público e Privado, a fim
de que a propriedade possa atingir seu objetivo maior, consagrado na Constituição.

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Adotando a classificação proposta por Bonavides (2010), no que toca aos direitos de
terceira geração, referentes à solidariedade, que abrangem os direitos coletivos ao
desenvolvimento, ao meio ambiente equilibrado, à autodeterminação dos povos, são diversas
as questões que se inserem no âmbito agrário.
Sendo o Brasil um país que se destaca no cenário internacional pela exportação de
alimentos, é notório que o Direito Agrário encontra-se intimamente ligado com o direito
coletivo ao desenvolvimento, o qual não se pode afastar da questão ambiental.
Destaca Taisa Cintra Dosso (2008) que a preocupação com o meio ambiente, direito
de terceira dimensão por excelência, não pode ser ignorada pelos jusagraristas. Pelo contrário,
a partir da Constituição de 1988 e da realização da ECO-92, o Brasil assumiu um
compromisso internacional com a elaboração de um novo modelo de desenvolvimento, no
qual a preservação ambiental e a utilização racional dos recursos são fundamentais.
Ainda com relação à terceira dimensão de direitos, é possível observar questões
relacionadas à autodeterminação dos povos indígenas, no que diz respeito ao direito às terras
que tradicionalmente ocupam, consagrado no artigo 231 da Constituição de 1988. Também
questões relacionadas à erradicação do trabalho infantil, que permeia questões de Direito
Constitucional, Agrário, do Trabalho e da Criança e do Adolescente.
Com relação aos direitos de quarta dimensão, introduzidos pela globalização política,
referentes à cidadania, não é diferente a necessidade de interação com o Direito Agrário. De
acordo com Lucas Abreu Barroso (2014), a livre iniciativa traduz a liberdade para participar
da economia colaborando para o desenvolvimento econômico e social, pelo que deve respeitar
os valores sociais do trabalho, compatibilizando o regime de produção com a dignidade da
pessoa humana e a dimensão econômica da cidadania.
Noutro aspecto, Elisabete Maniglia (2014) assevera que o povo reprimido, sem
acesso aos meios de garantia de sua subsistência, e a que se insere também a questão do
acesso à terra, não tem força para participar da cidadania. Para a autora, a cidadania, quando
ameaçada, não tem outra voz além das urnas e dos movimentos populares. Desse modo, a
questão agrária encontra-se também relacionada à efetivação da cidadania, direito de quarta
geração.
Partindo da classificação proposta pro Bobbio, que apresenta a quarta dimensão de
direitos como os direitos relacionados à engenharia genética, estes exercem grande influência
sobre o direito agrário, sobretudo no que diz respeitos às pesquisas envolvendo alimentos
transgênicos.

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Com relação ao direito à paz, considerado o direito de quinta dimensão por


excelência, sua influência sobre o direito agrário não poderia ser mais evidente, ou necessária.
A questão dos conflitos armados entre proprietários e integrantes do Movimento Sem-terra,
com relação à questão da reforma agrária, ou contra os povos indígenas, envolvendo a
demarcação de suas terras torna absolutamente necessária a existência de um olhar
constitucional, com base nos direitos de quinta dimensão, sobre o Direito Agrário.
Ademais, observando a paz sob um prisma mais amplo, abrangendo a própria
pacificação da vida quotidiana, além dos conflitos armados, o Direito Agrário se deixa
influenciar pela quinta dimensão de direitos na medida em que, ligado à sua função social,
promove não apenas o trabalho digno, mas também a distribuição do crescimento econômico,
através de medidas como o desestimulo à existência de minifúndios e latifúndios, bem como
através do incentivo a medidas como a reforma agrária, buscando a melhor distribuição dos
recursos naturais entre todos os nacionais.

4. A EVOLUÇÃO DO DIREITO CIVIL: A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO


DIREITO PRIVADO E O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Anteriormente havia a ideia de que os ramos do direito público e privado eram
autônomos e incomunicáveis. Todavia esse posicionamento não mais vigora. Observa-se que
o surgimento das Constituições concedeu uma unidade ao ordenamento jurídico. Dessa
maneira, os princípios e as regras dispostos nas Constituições passaram a disciplinar todo o
ordenamento infraconstitucional, havendo, assim, uma constitucionalização do direito
privado.
Deve-se atentar em que existe uma diferença entre a constitucionalização e a
publicização do direito privado. Segundo Paulo Lôbo (1999), o termo publicização diz
respeito à intervenção estatal própria do Estado Social, que visava, por meio da atuação
legislativa, proteger aqueles que se encontravam em uma situação desfavorecida nas relações
jurídicas. Desse modo, nesse período, as temáticas tocantes a relações de trabalho e de
consumo, que eram tratadas pelo direito civil, passaram a ser autônomas. Já a
Constitucionalização está relacionada à submissão do direito positivo infraconstitucional aos
fundamentos de validade constitucional.
Verifica-se que o Direito Civil sempre privilegiou o indivíduo. Tratava-se do ramo
do direito mais distante do direito constitucional. Desde seu surgimento, passou contrário às
mudanças sociais, políticas e econômicas. Passava o entendimento de que as relações

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jurídicas interpessoais não seriam afetadas por essas mudanças. Todavia isso não ocorreu.
Atualmente, o jurista deve interpretar o Código Civil à luz da Constituição Federal, e não esta
à luz daquele, como anteriormente acontecia.
O ramo do Direito Civil sempre disponibilizou os conceitos e as classificações que
eram utilizados para a consolidação dos diversos ramos do direito público, até mesmo o
constitucional, visto que surgiu bem antes dos ramos do direito público. Porém, hoje os
princípios, os valores e as normas constitucionais é que norteiam o direito civil. Assim, se o
Código Civil e as leis civis forem aplicadas sem uma interpretação conforme à Constituição,
haverá um desvio do verdadeiro significado.
Os códigos civis tinham como paradigma o cidadão dotado de patrimônio, livre do
controle público. Dessa feita, as primeiras Constituições não trouxeram regulações acerca das
relações privadas, havendo, assim, a delimitação de um Estado mínimo. O Estado apenas
estabelecia as regras das liberdades privadas, no âmbito infraconstitucional.
É de relevância para compreender a temática, observar que o Estado social, no
âmbito do direito, é aquele que dispõe na Constituição a regulação da ordem econômica e
social, limitando, desse modo, além do poder político, o econômico. Atenta-se em que, no
século XX, ganhou destaque a ideologia do social, que trouxe valores de justiça social. Desse
modo, a sociedade passou a exigir o acesso aos bens e serviços que advinham da economia.
Posteriormente, o neoliberalismo e a globalização abalaram o Estado Social, fortalecendo a
necessidade da ordem econômica e social. Observa-se que enquanto o Estado e a sociedade se
modificaram, alterando a Constituição, os Códigos Civis continuaram fundamentados no
Estado Liberal, persistindo privilegiados os valores patrimoniais e individualistas.
Dessa maneira, a legislação civil tornou-se obsoleta. Observa-se que a Revolução
Industrial e os movimentos sociais fomentaram as exigências de liberdade e igualdades
materiais e novos direitos, mostrando a inadequação da codificação civil. Para a codificação
civil liberal, o valor necessário à realização da pessoa era a propriedade, e, em redor desta,
figuravam os outros interesses privados, juridicamente tutelados. O cunho patrimonalizante
das relações civis pode ser observado no fato de que os seus principais institutos são a
propriedade e o contrato.
Contudo, a patrimonialização das relações civis existente na legislação civil é
adversa aos valores fundados na dignidade da pessoa humana, que se encontram dispostos nas
Constituições modernas, inclusive na do Brasil. Dessa forma, a doutrina, em geral, passou a
compreender que os princípios são autoexecutáveis. É importante ressaltar que o Supremo

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Tribunal Federal posicionou-se no sentido de que as normas infraconstitucionais anteriores,


incompatíveis com as normas e os princípios da CF, no momento em que esta entrou em
vigor, devem deixar de ser válidas.
No tocante á propriedade, percebe-se que, no direito civil, ela diz respeito a uma
relação jurídica entre um indivíduo e um sujeito passivo universal, que é composto por toda a
sociedade. Dessa feita, cada indivíduo possui um poder subjetivo sobre aquilo que lhe
pertence, e essa relação indivíduo-propriedade deve ser respeitada pelo sujeito passivo
universal. A propriedade é posta como existente apenas para a satisfação exclusiva de seu
dono, como um meio de atender aos interesses econômicos do proprietário e de sua família.
Apesar da influência do Direito Civil na concepção de propriedade, deve-se observar que essa
também é definida pelo Direito Público.
Constata-se que, devido às disposições do Código Civil de 1916 e de 2002, por
muitos anos teve-se a mentalidade de que a propriedade possuía uma natureza eminentemente
privada. Atualmente, está claro que a propriedade possui fundamento na ordem
constitucional. Pelo número de dispositivos tratando da propriedade que se encontram na
Constituição brasileira, vê-se que o ordenamento constitucional não tem o intuito de apenas
tutelar a propriedade, e sim conceder uma verdadeira garantia para o exercício desse direito.
A Constituição Federal deu à propriedade a qualidade de direito fundamental, disposto no art.
5º. Assim, a propriedade é prevista como garantia ao patrimônio do indivíduo, tendo
relevância para a consecução da dignidade humana. Destaca-se, ainda, que a Constituição
dispõe uma relação entre a propriedade como garantia fundamental (artigo 5º, XXII a XXX),
princípio da ordem econômica (art.170, II e III), assim como princípio informador da política
urbana (artigos 182 e 183) e da política agrícola e fundiária (artigos 184 a 186), além de
outras.
Logo, resta clara a relevância da propriedade no ordenamento constitucional
brasileiro. Verifica-se que a propriedade é um dos mais multivalentes meios depostos pela
Constituição para o logro das finalidades do Estado Social Democrático de Direito. E isso se
encontra disposto na função social da propriedade, segundo a qual esta não deve ser apenas
voltada para a satisfação individual, mas deve ser um meio para a obtenção de justiça social.
O conceito de função social surgiu da ideia de que o homem, vivendo em sociedade,
deve aplicar seus esforços de modo a contribuir para o bem-estar da coletividade em
detrimento dos interesses individuais. Consoante leciona Eduardo Rodrigues Evangelista
(2013), a primeira ideia de função social da propriedade adveio no início do século XX, e foi

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trazida por León Duguit. Para ele, em oposição às doutrinas individualistas vigentes, a
propriedade é uma instituição jurídica que foi constituída para responder a uma necessidade
econômica, e, assim, evoluiu conforme essas necessidades.
Atenta-se em que, dentre os dispositivos constitucionais da função social da
propriedade, destaca-se a função social da propriedade rural. Para que essa função seja
cumprida, não é suficiente apenas o aproveitamento racional e adequado da propriedade,
devem-se, ainda, respeitar os limites da exploração; atender ao critério do uso adequado dos
recursos naturais e preservar o meio ambiente; cumprir os critérios de respeito às relações
trabalhistas e do exercício do bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. O art. 186 da
Carta Maior dispõe os requisitos que, juntamente com os critérios estabelecidos em lei, devem
ser observados para que a função social da propriedade rural seja cumprida. Verifica-se que o
descumprimento da função social da propriedade rural possui como consequência a
desapropriação-sanção, que tem previsão no art. 184 da Carta Magna. Esta é efetuada visando
ao interesse público, “reforma agrária”, por meio do pagamento de indenização em títulos da
dívida agrária.
Faz-se, ainda, necessário salientar que há diferença entre as limitações
administrativas ao direito de propriedade e a função social da propriedade. Constata-se que o
objeto que é alcançado pelas limitações administrativas diz respeito ao exercício do direito de
propriedade, tocando no uso, no gozo e na disposição, quando for necessário ao interesse
público. Elas possuem como espécies as restrições, as servidões e a desapropriação, ao passo
que a função social da propriedade possui como objeto a modificação da estrutura da
propriedade, flexibilizando o uso ilimitado e incondicionado desta (EVANGELISTA, 2013).

5. O TRATAMENTO DA QUESTÃO NA JURISPRUDÊNCIA


O direito agrário se configura como uma contribuição para a concretização do direito
de quinta dimensão. Ou seja, para haver a paz, é necessário que haja uma equidade no campo,
introduzindo métodos que garantam efetivamente a justiça. Para que isso se concretize, deve-
se buscar um equilíbrio entre o mais forte e o mais fraco, através de mecanismos que
compensem essa desigualdade, assim como que haja medidas de forma a impedir que
aconteçam discriminações, de qualquer forma, aos meios de produção. Em outras palavras,
“esse sistema de equidade deverá estar respaldado por uma ordem econômica sólida, pois o
social deve manter um equilíbrio, nunca um antagonismo com o econômico. Isso é um direito
equitativo para encontrar, desenvolver e garantir a paz”. (MIRANDA, 2005, p.83)

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Um desses métodos para se alcançar uma maior equidade é o acesso à terra, o qual
está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento. Olhando sob a perspectiva da cidadania, ou
seja, do fato de que a pessoa tem direito e deveres, o acesso à terra é caracterizado pelo direito
de as pessoas proverem seu próprio sustento e pelo dever de serem produtivos, tanto para o
seu grupo familiar como para toda a sociedade. Portanto, percebe-se que visto sob esse
ângulo, o acesso à terra interliga as dimensões de direito.
Em suma, os direitos à liberdade, à vida, à dignidade, ao meio ambiente sadio estão
todos presentes nesse contexto, e, além disso, é obrigatório ressaltar, também, que, nessa
visão, entra o conceito de sustentabilidade tendo em vista o desenvolvimento econômico. Ou
melhor, o acesso à terra, ao garantir o direito ao desenvolvimento, à paz e a um meio
ambiente equilibrado, nada mais respeita os direitos da solidariedade, na medida em que
demonstram uma preocupação de cada ser humano com o outro, assim como da coletividade
com as gerações futuras.
Assim, uma das formas para ter acesso à terra é a reforma agrária. Nesse sentido,
analisando um caso em concreto, a decisão do Mandado de Segurança de número 22.164-0/SP
corrobora esse pensamento. Um dos argumentos utilizados pelo impetrante foi o de que as
terras dele não poderiam ser utilizadas para reforma agrária, pois se localizavam no Pantanal
Mato-Grossense, o qual é definido pela Constituição Federal como patrimônio nacional e,
assim, é vedada qualquer atividade que coloque em risco a função ecológica, conforme o art.
225 do diploma citado. Veja-se:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e
futuras gerações.
[...]
§ 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal
Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á,
na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio
ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

Na decisão foi afirmado que não resta dúvida de que o Pantanal Mato-Grossense se
constitui como um patrimônio nacional e que deve haver a sua preservação. Foi reconhecido,
ainda, o direito a um meio ambiente equilibrado, o qual é considerado como um direito de
terceira dimensão, materializando-se os poderes de titularidade coletiva, respeitando o
princípio da solidariedade, o qual é importante no processo de desenvolvimento.
O direito a um meio ambiente equilibrado não é só direito das gerações presentes,
mas também das futuras, sendo a sua utilização sempre voltada à preservação para que as

415
416

futuras gerações não sofram as consequências dos atos presentes. Transcende a esfera
nacional, por ser um compromisso de todas as nações – sendo dever tanto do poder público
como da sociedade, pois é um direito que pertence a toda a humanidade. Inclusive, foi
reconhecido na Conferência Rio/92 que o homem tem direito “à liberdade, à igualdade e ao
gozo de condições de vida adequada, em ambiente que lhe permita desenvolver todas as suas
potencialidades em clima de dignidade e de bem-estar” 10.
Todavia, esse argumento não pode ser utilizado para impedimento de desapropriação
para fins de reforma agrária, pois, apesar de o Poder Público ter por obrigação garantir o meio
ambiente equilibrado, isso não o impede de desapropriar para fins desse fim, porquanto, nas
palavras do Ministro Celso de Mello:

O dever que constitucionalmente incumbe ao Poder Público de fazer respeitar a


integridade do patrimônio ambiental não o impede, contudo, quando necessária a
intervenção estatal na esfera dominial privada, de promover, na forma do
ordenamento positivo, a desapropriação de imóveis rurais para fim de reforma
agrária, especialmente porque um dos instrumentos de realização da função
social da propriedade rural – [...] – consiste, precisamente, na submissão do
domínio à necessidade de o seu titular utilizar adequadamente os recursos naturais
disponíveis e de fazer preservar o equilíbrio do meio ambiente, sob pena de, em
descumprindo esses encargos, sofrer a desapropriação-sanção a que se refere o art.
184 da Lei Fundamental.11

Assim, o Ministro-Relator concluiu que, respeitado esse preceito, qual seja a


utilização dos recursos naturais de forma sustentável, de modo que haja a preservação do
meio ambiente, a União poderá utilizar a propriedade para fins de reforma agrária mesmo que
o imóvel esteja situado no Pantanal Mato-Grossense. Ou seja, o próprio ordenamento
reconhece que podem ser desenvolvidas atividades nas áreas definidas como patrimônio
nacional; a norma não proíbe a utilização dessas terras para fins de reforma agrária, o que ela
dita é que seja respeitada a preservação do meio ambiente, pois essa utilização sustentável
também faz parte da função social que deve ser observada nas propriedades. Nesse sentido, o
Ministro, com maestria, afirma:

O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e


aquedado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais
indisponíveis e a preservação do meio ambiente constituem, inegavelmente,
elementos de realização da função social da propriedade.12

10
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n.º 22164-0 São Paulo. Relator: Ministro
Celso de Mello. Impetrante: Antônio de Andrade Ribeiro Junqueira. Impetrado: Presidente da República.
Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85691>. Acesso em: 01
jul. 2014. p. 21.
11
Ibidem. p. 22 e 23.
12
Ibidem. p. 26 e 27.
416
417

Portanto, ao retirar a propriedade que não está cumprindo com a sua função social –
partindo do pressuposto de que a preservação do meio ambiente também faz parte do conceito
da função social –, está garantindo não só os direitos de primeira a quarta dimensão, ou seja, à
vida, à dignidade, à igualdade, ao desenvolvimento, ao meio ambiente sadio, entre outros,
mas, também, é uma forma de alcançar a concretização do direito à paz, no sentido de que a
presente geração terá, efetivamente, um pedaço de terra para que a sua dignidade seja
garantida, como as futuras gerações poderão ter e utilizar um ambiente equilibrado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em tempos de ascensão da dignidade da pessoa humana como valor universal a
pautar a atuação do Estado e da própria sociedade, o contemporâneo Direito Civil rompe com
sua concepção tradicional, abalizada em um modelo voltado à proteção incondicional da
propriedade privada, para inaugurar um modelo alicerçado nos ditames principiológicos
constitucionais, especialmente na ideia de função social e solidariedade. Sob a perspectiva da
constitucionalização do direito civil, o indivíduo passou a ser o centro do sistema jurídico, e a
propriedade privada deixou de ser um fim em si mesma para transformar-se num instrumento
de dignificação do homem.
Nesse contexto, orientado por esse fenômeno de constitucionalização do direito
privado e acompanhando as inexoráveis transformações por este propugnadas, o Direito
Agrário assumiu uma nova postura e um novo fundamento: como ramo autônomo da ciência
jurídica, passa a fundamentar-se no princípio da função social da propriedade. Dessa forma,
abre-se espaço às discussões envolvendo uma nova gama de direitos, que outrora não
mereciam atenção por parte deste ramo do Direito, em razão de sua perspectiva altamente
patrimonializada, dentre os quais se destacam os direitos relativos à 3ª e 5ª dimensões de
direitos.
O acesso à terra, finalidade primordial da funcionalização do direito à propriedade
privada, ao assumir a condição de instrumento essencial à garantia do direito ao
desenvolvimento, à paz e a um meio ambiente equilibrado, respeita, em última análise, os
direitos da solidariedade, tal qual previstos na ordem jurídica constitucional brasileira, na
medida em que demonstra uma preocupação recíproca entre os seres humanos, assim como da
coletividade com as gerações futuras.
Essa nova ordem de direitos, destinados à proteção do desenvolvimento sustentável,
da democracia, da cidadania e da paz, é o que permite uma crescente aproximação entre o

417
418

Direito Agrário e as questões sociais, com a finalidade precípua de viabilizar a conciliação do


crescimento econômico com o desenvolvimento social sustentável, um dos maiores desafios
da sociedade capitalista hodierna.

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fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil na Constituição de 1988.
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________. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n.º 22164-0 São Paulo.
Relator: Ministro Celso de Mello. Impetrante: Antônio de Andrade Ribeiro Junqueira.
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419
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<http://revistas.unijui.edu.br>. Acesso em: 14 jul. 2014.

420
CAPÍTULO XXIII – IMPACTOS DO DIREITO AGRÁRIO EMPRESARIAL
PARA A SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL

Augusto Cézar Lopes Cunha1


Fábio Matos Ferraz2
Helder Iuri Dias Queiroz Teixeira3
Rafaela Angela Accioly Martínez4
Yuri Martiniano Silva5

INTRODUÇÃO
O homem, durante séculos, preocupou-se unicamente com a exploração do
ambiente em que vive, modificando-o continuamente sem qualquer parâmetro, no
intuito primeiro de produzir riquezas. Nas últimas décadas, entretanto, tem sido patente
o discurso acerca da relevância da racionalização das formas de uso dos recursos
naturais disponíveis. Isso se deveu especialmente à contínua escassez dos recursos
energéticos não renováveis, a exemplo do carvão e do petróleo, que desencadearam
crises econômicas em nível mundial.
Inúmeras pesquisas científicas, por sua vez, constataram que a exploração
desenfreada da natureza já produz nos dias atuais danos irremediáveis, como o aumento
contínuo de intoxicação respiratória por causa da poluição, o aumento da incidência de
câncer em nível global e as rigorosas alterações climáticas ocasionadas pelo degelo dos
polos Ártico e Antártico. Ademais, é notório que as práticas violadoras do meio
ambiente põem em risco a existência de recursos naturais indispensáveis para a
satisfação das necessidades das gerações futuras.
Estudos demonstram que práticas alarmantes de produção de gases tóxicos
nocivos à atmosfera, de contaminação dos recursos hídricos e sua escassez, bem como
dos recursos energéticos, de desertificação dos solos também estão intimamente ligadas
às atividades agropecuárias. Estas, por sua vez, ainda nos dias atuais, consistem no
principal elemento constituidor do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro.
O tema da exploração agrária no Brasil, por esse motivo, é de singular
importância, já que seus reflexos se sobrelevam às questões econômicas, possuindo

1 Graduado do Curso de Direito pela Universidade Federal da Paraíba.


2
Graduado do Curso de Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
3
Graduado do Curso de Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
4
Graduada do Curso de Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
5
Graduado do Curso de Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

421
inúmeros desdobramentos no contexto ambiental e também social, gerando renda não
apenas aos trabalhadores rurais, mas indiretamente a toda a nação.
Diante da referida problemática, tem-se debatido acerca da implementação de
práticas sustentáveis às atividades agropecuárias, num esforço conjunto em nível
internacional e regional. Procura-se conciliar o lucro objetivado pelas empresas com o
fomentado uso racional dos recursos naturais disponíveis, através de programas
políticos eficazes, seja na prevenção da prática exploradora danosa, seja na punição das
mesmas. Nessa conjuntura, o presente artigo acadêmico se propõe a realizar uma breve
análise acerca dos impactos da atividade agrária empresarial na sustentabilidade
socioambiental.

1. SUSTENTABILIDADE
A sustentabilidade é um elemento que atualmente tem sido de fundamental
importância para a desenvoltura do agronegócio, já que a sociedade globalizada tem
continuamente ampliado suas exigências no que tange ao sistema de produção
agropecuária na tentativa de minimizar os danos à natureza, prolongar a vida útil dos
produtos, preservando ou tornando os recursos naturais mais duráveis. Corrobora isso a
crescente pressão política no sentido de promover a equidade e a bem-estar coletivo,
exigindo, em nível mundial, uma produção equilibrada de produtos alimentícios e
tecnológicos, menor poluição e maior racionalização do uso de todos os instrumentos de
produção e de consumo. Dessa maneira, é indispensável que seja estabelecido um
padrão de tecnologia sustentável apto a desenvolver todos esses aspectos.
O conceito de sustentabilidade, dessa forma, envolve o desenvolvimento
econômico, a qualidade ambiental e a equidade social. Foi moldado em 1972 quando a
Organização das Nações Unidas (ONU) promoveu, em Estocolmo (Suécia), a
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Nos últimos tempos,
a sustentabilidade acabou se tornando um princípio que encerra a ideia de que o uso dos
recursos naturais no presente não deve comprometer a satisfação das necessidades
futuras.
Nesse ínterim, entende-se que uma sociedade é sustentável quando não põe em
risco o uso dos recursos naturais dos quais depende. Entretanto, seu conceito abrange
mais que o uso racional do meio ambiente, uma vez que leva em consideração a
qualidade de vida dos homens, o uso de tecnologias limpas, a responsabilidade social,

422
dentre muitos outros aspectos. Assim, sustentabilidade é a capacidade de suporte ou
sustentação, tendo como elemento central a inteligência de que existe uma inadequação
econômica, social e ambiental nos meios de produção e consumo das sociedades
contemporâneas.
Tendo em vista essa múltipla faceta da sustentabilidade, é comum que seja
analisada em cada um de seus aspectos, nas chamadas Dimensões, das quais as mais
comuns são as dimensões humana ou social, ecológica ou ambiental e econômica.

1.1. Dimensão Humana Ou Social Da Sustentabilidade


A dimensão humana/social da sustentabilidade implica o desenvolvimento da
comunidade e da sociedade, com a promoção do bem-estar social e da dignidade da
pessoa humana. Objetiva favorecer a distribuição de bens e renda, melhor para os
direitos e as condições das massas sociais, reduzindo as desigualdades sociais.
Para que uma empresa seja considerada socialmente sustentável, deve ter como
objetivo práticas sociais que tenham como foco o indivíduo em si e a sociedade,
desenvolvendo políticas que promovam, por exemplo, a segurança e a saúde
ocupacionais, a responsabilidade social, a seguridade em direitos humanos, a
diversidade cultural, dentre outros aspectos.
Na Constituição Federal de 1988, a dimensão humana encontra-se presente de
maneira maciça, em inúmeros dispositivos. O art. 225, por exemplo, dispõe acerca da
dimensão ecológica e humana: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações”.
Dessa maneira, determina o texto constitucional que um ambiente
ecologicamente equilibrado é fundamental para a promoção da qualidade de vida. A
Carta Maior ainda prevê no art. 5°, inciso LXXII, a defesa do meio ambiente pelo
próprio cidadão, por meio da ação popular.

1.2. A Dimensão Ecológica Da Sustentabilidade


A dimensão ecológica é aquela que propõe a coexistência harmônica entre o
homem e o meio ambiente em que vive, sem que a exploração deste último implique o

423
seu esgotamento ou a sua vulnerabilidade. Dessa forma, visa à satisfação das
necessidades humanas com o uso racional dos recursos naturais disponíveis, sem
comprometer a existência destes para as gerações futuras. Deve envolver, ainda, a
promoção da saúde humana, com a diminuição do lançamento de gases tóxicos na
atmosfera e outras práticas nocivas ao ambiente e ao próprio homem, ou seja, com a
preservação ambiental dos seres vivos em geral (fauna e flora) como dos recursos
inanimados.
No agronegócio, a sustentabilidade ecológica/ambiental envolve ações que
visam reduzir a emissão de substâncias nocivas na atmosfera, nos efluentes líquidos e
no solo, através do uso consciente da energia e da água, do respeito às normas
ambientais, da compra de materiais de fornecedores também com consciência
ambiental, do investimento em biodiversidade, da reciclagem, do uso racional dos
produtos, dentre outros elementos.

1.3. Dimensão Ecológica Econômica


A dimensão econômica, por sua vez, procura conciliar a conservação dos
recursos ambientais com a promoção do desenvolvimento econômico. Seu objetivo
frequentemente se confunde com o da dimensão humana, já que também visa retirar
milhares de pessoas da miséria por meio da exploração racional dos recursos, da
distribuição mais equitativa dos insumos alimentícios e da renda. Tem como foco
assegurar ao país condições de desenvolvimento socioeconômico, conforme o art. 2° da
Lei n° 6.938 de 31 de agosto de 1981, que dispõe acerca da Política Nacional do Meio
Ambiente.
Na Constituição Federal, a dimensão econômica da sustentabilidade encontra-
se plasmada em inúmeros dispositivos. No art. 170, que dispõe acerca da ordem
econômica, por exemplo, há especial menção no inciso VI, nesses termos:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação.

424
A atividade econômica deve ser desenvolvida sempre com o devido respeito ao
meio ambiente. A atividade agrícola e fundiária, mais especificamente, tem a dimensão
econômica também atestada na Carta Maior, do art. 184 ao art. 191.
Dentro dessa conjuntura, percebe-se que as dimensões da sustentabilidade
supramencionadas frenquentemente se confundem. O que as delimita, em sua essência,
é a adequação da exploração racional dos recursos naturais à finalidade humana a que se
destinam.
Como restará demonstrado, a sustentabilidade tem fundamental importância
para o agronegócio, já que este frequentemente se utiliza de práticas nocivas ao meio
ambiente, causando-lhe, não raro, extremo dano, o que naturalmente põe em risco a
existência de recursos para a satisfação das necessidades humanas futuras. Entretanto,
esse quadro tem sido alterado, ainda que em ritmo menos acentuado em relação ao que
se propõem os tratados internacionais e as políticas regionais, especialmente em face de
concessões de vantagens tributárias aos empresários que investem na prática da
sustentabilidade.
Nessa conjuntura, cada vez mais empresas têm incorporado às suas estratégias
ações sustentáveis que lhes promovem uma vantagem competitiva, já que as põem na
dianteira desse novo mercado emergente.

2. DIREITO AGRÁRIO EMPRESARIAL

2.1. Empresa Rural


Com a entrada em vigor do atual Código Civil de 2002 e da moderna teoria
jurídica da empresa, a empresa agrária passou a ter conceituação legal, e foi dada a
opção àquele que trabalha com a atividade rural de se submeter ao regime empresarial.
Sabe-se que o Código Civil de 2002, ao adotar a Teoria da Empresa, levou em
conta a acepção funcional da empresa, definindo-a como atividade econômica,
organizada, profissional e destinada à produção e/ou circulação de bens e/ou serviços.
Nessa mesma linha, o conceito de empresa agrária se submete à conceituação
de empresa em sentido lato; dessa feita, parte-se do conceito geral de empresa e, então,
se chega ao conceito específico de empresa agrária. Considerando que o conceito
jurídico de empresa é único, sendo aplicável a todas as empresas, independentemente do

425
seu objeto, tal conceito é válido não só para as empresas em geral, mas também para a
empresa agrária em particular.
Dessa forma, a diferença existente entre a empresa agrária e as demais
empresas reside somente na espécie de atividade exercida ou no seu objeto econômico
próprio. Assim, a forma de exercício das empresas é geral, pois todas contam com os
mesmos requisitos (economicidade, organização, profissionalismo e produção e/ou
circulação de bens e/ou serviços para o mercado), ao passo que o que diferencia a
empresa agrária das demais empresas é o exercício de uma atividade agrária por aquela.
Dessa maneira, a empresa agrária consubstancia-se em uma atividade de intuito
econômico, pois sua produção visa obter ganhos patrimoniais. Conclui-se, portanto,
estar excluída do conceito de empresa agrária a atividade agrária de mera subsistência,
em que os limitados produtos obtidos são suficientes só para a subsistência do produtor
e de sua família, não sendo destinados ao mercado consumidor em geral. Igualmente,
também estão excluídas as atividades recreativas e científicas.
Outra característica é a presença de um certo nível de organização que possa
sistematizar e incrementar os seus ganhos econômicos.
Ainda sobre a organização na empresa agrária, assim como modernamente não
se tem exigido das demais empresas em geral, destaque-se não haver
imprescindibilidade da contratação de mão de obra de terceiros, alheios ao núcleo
familiar do produtor agrário, ou associação entre produtores agrários visando formar
uma cooperativa.
Acerca do profissionalismo na empresa agrária, é importante salientar que a
sazonalidade intrínseca a várias das atividades agrárias não interfere na verificação
desse requisito empresarial imprescindível. No entanto, para caracterizar-se o
profissionalismo, é preciso ao menos que o produtor agrário, respeitadas as limitações
temporais impostas pela natureza, exerça a empresa agrária quando possível for. O que
importa para preencher tal requisito é que a atividade seja não ocasional.
Noutro giro, como o diferencial da empresa agrária é a dedicação,
prioritariamente, ao exercício de uma atividade agrária principal, poder-se-ia pensar que
tal empresa sempre se dedica à produção de bens agrários para o mercado. Contudo, ao
analisar a empresa agrária, não se pode perder de mira que existem atividades agrárias
acessórias que gravitam em torno da referida atividade agrária principal, nos termos da
correta interpretação do art. 971 do Código Civil – o cerne da empresa agrária no direito
brasileiro. Essas atividades agrárias acessórias são empresariais, e, dependendo do caso,

426
além da produção de bens, também podem se dedicar à produção de serviços e à
circulação de bens e/ou de serviços.
Conforme visto, no direito brasileiro, o rol de atividades agrárias principais
consta dos incisos do art. 2º da Lei 8.023/90, dispositivo legal que traz a interpretação
legislativa ou autêntica da expressão atividade rural contida no art. 971 do Código Civil.
Logo, podem configurar a atividade agrária principal: (i) a agricultura; (ii) a
pecuária; (iii) a extração e a exploração vegetal e animal; (iv) a exploração da
apicultura, da avicultura, da cunicultura, da suinocultura, da sericicultura, da
piscicultura e de outras culturas animais; (v) a transformação de produtos decorrentes da
atividade rural, sem que sejam alteradas a composição e as características do produto in
natura, feita pelo próprio agricultor ou criador, com equipamentos e utensílios
usualmente empregados nas atividades rurais, utilizando exclusivamente matéria-prima
produzida na área rural explorada, tais como a pasteurização e o acondicionamento do
leite, assim como o mel e o suco de laranja, acondicionados em embalagem de
apresentação.
Por seu turno, as atividades agrárias acessórias, apesar de não serem a principal
profissão ou atividade preponderante da empresa agrária, são intrinsecamente
empresariais e podem destinar-se à produção e/ou circulação de bens e/ou serviços para
o mercado. Com efeito, no âmbito da empresa agrária podem ser também exercidas,
desde que acessoriamente à produção de bens agrários, atividades de transformação,
comercialização, transporte e, até mesmo, prestação de serviços (como no caso do
agroturismo).
Dessa forma, no âmbito da empresa agrária, conforme o art. 971 do Código
Civil, deve ser exercida obrigatoriamente uma atividade agrária principal (de produção
de bens agrários), com prioridade por ser a principal profissão, mas também é possível
o exercício de outras atividades agrárias acessórias, desde que o sejam pela mesma
pessoa (vínculo subjetivo) e em caráter de acessoriedade e com relativa dependência
econômico-funcional (vínculo objetivo).
Em conclusão, a empresa agrária é uma atividade econômica, organizada,
profissional (não eventual), destinada prioritariamente à produção agrária, relacionada
com alguma das atividades elencadas no art. 2º da Lei 8.023/90 e, eventualmente,
também com outras atividades empresariais acessórias àquelas.

427
2.2. Agronegócio
Já o agronegócio (ou agribusiness) expressa uma ideia mais ampla que a da
empresa agrária agroindustrial e a da agroindústria em sentido estrito. Engloba o
agronegócio a análise de toda e qualquer atividade econômica que tenha ligação com a
produção agrária. Dessa forma, o agronegócio relaciona-se com os setores econômicos
situados antes, dentro e depois da porteira. Pode-se defini-lo como o conjunto
organizado de atividades econômicas que envolve a fabricação e o fornecimento de
insumos, a produção agropecuária, o processamento, a armazenagem, a distribuição e a
comercialização de produtos de origem agrícola ou pecuária, as formas privadas de
financiamento e as bolsas de mercadorias e de futuros.
Infere-se que o agronegócio, além de buscar analisar amplamente os reflexos
econômicos da empresa agrária em vários setores, reflete também a tendência de adoção
de uma visão empresarial e mercadológica da atividade agrária.

2.3. Agroindústria
Com muita frequência, principalmente na atualidade, doutrina, jurisprudência e
legislação utilizam os termos empresa agrária, agronegócio e agroindústria sem precisão
técnica, confundindo-os ou lhes atribuindo significados mais ou menos amplos.
Hodiernamente, a correta interpretação do art. 971 do Código Civil não deixa
dúvidas quanto à definição de empresa agrária, conforme já demonstrado.
Porém, como a empresa agrária também pode ser integrada por atividades
empresariais intrinsecamente não agrárias – as chamadas atividades agrárias acessórias
–, eventualmente a própria empresa agrária vai se encarregar da produção agrária e
também da industrialização dos respectivos produtos primários daquela. Nesse caso, a
agroindústria integra o conceito de empresa agrária, sendo uma atividade agrária
acessória. Muitos autores empregam o termo ‘agroindústria’ sem precisar
especificamente o seu significado. Em sentido estrito, a agroindústria é um complexo
industrial de atividades econômicas secundárias de transformação e de processamento
de produtos primários, cuja atividade industrial é regulada precisamente pelo Direito de
Empresa, excluindo-se da tutela jurídico-agrária. É uma indústria cuja matéria-prima é
oriunda da atividade agrária.
Contudo, a agroindústria também pode existir de maneira relativamente
autônoma em relação à empresa agrária. Basta que determinada empresa se dedique à

428
industrialização de produtos primários para que, dessa forma, já seja considerada
agroindústria.
O fato é que, como a mesma pessoa não é a encarregada de fornecer os
produtos primários e promover a respectiva industrialização, a agroindústria é apenas
relativamente autônoma perante a empresa agrária, pois a dependência não se dá entre a
atividade principal e a acessória, mas sim na mera dependência de fornecimento de
matéria-prima (produtos primários) para a agroindustrialização (dando origem a
produtos secundários).

2.4. Classificações Do Imóvel Rural


Para melhor compreensão acerca das práticas sustentáveis aplicáveis ao direito
agrário empresarial, indispensável é estudar, ainda que em breves linhas, o imóvel rural
e suas múltiplas classificações segundo a legislação nacional.

2.4.1. Propriedade Familiar


A propriedade familiar é definida, no Estatuto da Terra, Lei n° 4.504 de 30 de
novembro de 1964, como sendo:

[…] o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e por
sua família, lhes absorva toda a força do trabalho, garantindo-lhes a
subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para
cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalhado com a ajuda de
terceiros.

Trata-se de imóvel rural constituído pela extensão de terra equivalente a um


Módulo Rural, cuja área, por sua vez, é fixada pelo órgão competente da Administração
Federal (atualmente o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o que se
faz através da ponderação de diversos fatores, e. g., o tipo de exploração a que se
destina, a qualidade da terra, a proximidade do polo de consumo, etc. Afirma-se, nesse
ponto, que a medida da Propriedade Familiar, tal qual a do Módulo Rural, varia
conforme a região na qual esteja situado o imóvel rural.
Outrossim, o conceito de Propriedade Familiar está umbilicalmente ligado à
ideia de democratização da terra, um dos sustentáculos de todo o Direito Agrário, na
medida em que, por um lado, exige uma área que absorva toda a força de trabalho do
agricultor e de sua família e, por outro, garante sua subsistência e seu progresso social e

429
econômico. Afirma-se, nesse ponto, que a proliferação da Propriedade Familiar
garantiria uma melhor distribuição de terras, tanto em termos qualitativos como
quantitativos.
São, portanto, elementos para a caracterização do imóvel rural como
Propriedade Familiar: a) titulação; b) exploração direta e pessoal, pelo agricultor e por
sua família, de tal maneira que lhes absorva toda a força de trabalho; c) área variável
conforme o tipo de exploração; d) possibilidade de ajuda de terceiros, em caráter
eventual. Dentre esses elementos, é a exigência de exploração direta e pessoal pelo
agricultor e por sua família que caracteriza o instituto em estudo, razão pela qual é
apontado como o mais importante, diferenciando a Propriedade Familiar da Pequena
Propriedade Rural.

2.4.2. Pequena Propriedade Rural


A ideia de pequena propriedade foi instituída pela Constituição Federal de
1988, cujo art. 185 estabelece que o imóvel rural assim considerado é insuscetível de
desapropriação, por interesse social, para fins de reforma agrária. A formulação do
conceito de pequena propriedade, por sua vez, deu-se com a Lei nº 8.629/93, em cujo
art. 4º restou definida como o imóvel rural de área compreendida entre 1 (um) a 4
(quatro) módulos fiscais.
Em virtude de dois vetos presidenciais, a definição legal do instituto em
epígrafe limitou-se à exigência do tamanho da área do imóvel, não havendo nenhuma
referência ao elemento da exploração direta e pessoal pelo titular do domínio e por sua
família, razão pela qual se tem afirmado que Pequena Propriedade e Propriedade
Familiar são institutos que não se confundem.

2.4.3 Média Propriedade Rural


A exemplo da Pequena Propriedade, o conceito de Média Propriedade foi
introduzido no ordenamento jurídico brasileiro através do art. 185 do texto
constitucional vigente, oportunidade em que restou consagrada a impossibilidade de
desapropriação, por interesse social e para fins de reforma agrária, do imóvel rural que à
definição se subsumisse. Por sua vez, coube à Lei nº 8.629/93 estabelecer, no plano
infraconstitucional, que Média Propriedade seria todo imóvel rural cuja dimensão fosse
superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais.
430
Aqui, reiteram-se as considerações feitas na secção acima, acerca dos vetos
presidenciais ao conceito de Pequena Propriedade, razão pela qual também não se
cogita da exigência de exploração direta e pessoal pelo titular do domínio e por sua
família, limitando-se o conceito legal à ideia do tamanho da propriedade rural.

2.4.4. Minifúndios
Conforme disposição do inciso IV, do art. 4º, do Estatuto da Terra, minifúndio
é o imóvel rural de área e possibilidades inferiores às da Propriedade Familiar,
exprimindo a ideia de uma gleba que, pelas proporções que apresenta, pode até absorver
toda a força de trabalho do agricultor e de sua família, mas não se presta a prover-lhes o
sustento ou, ainda, o progresso social e econômico. Assim, o minifúndio corresponde ao
que, no Direito Argentino, chama-se parvifúndio, ou imóvel rural deficitário.
Quanto à origem, os minifúndios caracterizam-se por serem produto de
imposições de ordem econômica ou, ainda, de grandes necessidades, afirmando-se,
nesse ponto, que o Brasil tem grande predisposição minifundiária, notadamente na
região nordeste, onde os complexos processos sucessórios, desencadeados nas famílias
constituídas por grande número de membros, são características marcantes. Por outro
lado, os instrumentos de combate ao Minifúndio são: a desapropriação; a proibição de
alienação de áreas inferiores ao módulo rural ou à fração mínima de parcelamento; e o
remembramento de áreas minifundiárias.
Fala-se em combate porque o Minifúndio, ao contrário do que se verifica com a
Propriedade Rural, é um instituto desestimulado, na medida em que não cumpre com a
função social, não se compatibilizando com o sistema fundiário brasileiro.

2.4.5. Latifúndio
Na forma do Estatuto da Terra, Latifúndio é o imóvel rural cuja área é igual ou
superior ao módulo rural, sendo mantido inexplorado ou explorado de forma
inadequada ou insuficiente, a saber, aquém de suas possibilidades, razão pela qual não
cumpre sua função social.
O Latifúndio pode ser classificado, ainda, em: a) latifúndio por extensão ou b)
por exploração, sendo o primeiro o imóvel cujo tamanho excede a área de 600

431
(seiscentos) módulos fiscais e o segundo, o imóvel inexplorado ou explorado de forma
inadequada, tendo em conta suas possibilidades.
Assim como os Minifúndios, os Latifúndios são prejudiciais à economia no
meio rurígena, razão pela qual sua manutenção é desestimulada ou combatida,
afigurando-se, como meios para tanto, a desapropriação e a tributação – tendo em vista
os critérios da progressividade e da regressividade. Nesse particular, afirma-se que uma
pesada tributação teria o condão de compelir, de forma indireta, os latifundiários ao
cumprimento da função social, seja desfazendo-se do latifúndio por extensão, ou
tornando produtivo o latifúndio por exploração.

2.5. Obstáculos à Sustentabilidade


No contexto rurígena, a sustentabilidade ambiental refere-se à ideia de
manutenção do sistema produtivo, sem que os meios de exploração impliquem a
obliteração dos recursos, ou que os fatores externos constituam óbices a longo prazo. É
que as atividades desenvolvidas no âmbito do Direito Empresarial Agrário dependem
dos recursos naturais e, em decorrência, também da capacidade de reposição dos
processos ecológicos.
Assim, tem-se asseverado que os obstáculos à sustentabilidade, sob o prisma
ambiental têm origem em três causas distintas: na destruição dos recursos renováveis;
no emprego de tecnologias impróprias; na inexistência de tecnologias adequadas.
Outrossim, circunstâncias ligadas à contaminação do meio ambiente pelo uso
inadequado dos insumos, à perda de solo e à desertificação, além do comprometimento
de recursos hídricos, também constituem óbices à sustentabilidade ambiental no que se
refere ao Direito Agrário.
Além disso, a degradação do solo, causada pela falta, cada vez mais comum, de
práticas, mesmo corriqueiras e tradicionais, de conservação do solo, tem sido observada,
em grande escala, nos países em desenvolvimento, principalmente pela carência de
recursos técnicos, de educação básica e de tradição conservacionista.
Destaca-se, também, a disponibilidade limitada de água, que representará, no
terceiro milênio, um dos maiores problemas da humanidade, agravada, ainda, pela baixa
qualidade da água que se encontra disponível, a qual, em grande número de casos, está
contaminada por poluentes como esgoto, dejetos e produtos químicos em geral.

432
Todavia, os sistemas de produção rural não são definidos exclusivamente por
seus componentes ambientais, destacando-se, também, as alterações dos fatores sociais,
a produzir reflexos significativos nos sistemas de produção. É que a sustentabilidade
também possui um viés social, campo em que os principais obstáculos relacionam-se à
capacidade do sistema de abastecer a sociedade e à repartição do produto da produção
agrícola. Assim, fala-se em: redução da pobreza; condições de moradia; acesso à terra;
participação social; acesso aos recursos naturais; salário digno, etc.
Nesse ponto, afirma-se que os principais óbices à sustentabilidade são: a) a
pobreza rural, causada pela incapacidade de produção em larga escala e pela carência de
educação básica, de conhecimentos técnicos e de capital; e b) a diminuição da força de
trabalho rurígena (êxodo rural), causada por aspectos como a brutalidade do trabalho no
meio agrícola, bem como pela pobreza rural.

3. OBSTÁCULOS À SUSTENTABILIDADE NO DIREITO AGRÁRIO


EMPRESARIAL NO CONTEXTO BRASILEIRO E MEDIDAS A SEREM
IMPLEMENTADAS PARA GARANTIR A SUSTENTABILIDADE
SOCIOAMBIENTAL
Delineados os conceitos que envolvem o agronegócio e demonstrados os
principais obstáculos à sustentabilidade socioambiental, passa-se à análise das
problemáticas brasileiras quanto ao tempo e dos meios que devem ser utilizados para
que a atividade rural se desenvolva de forma mais equilibrada, com menor agressão ao
meio ambiente e sem interferir negativamente na esfera social.
A atividade agrária no Brasil foi fomentada pelo governo de maneira intensa, e
em suas múltiplas facetas, sendo, por esse motivo e dadas a extensão e a grande
variedade de tipos de solos existentes no país, o principal elemento integrador do PIB
nacional. Historicamente, entretanto, não houve incentivo à adoção de práticas
sustentáveis.
O Brasil é, portanto, um produtor primário de insumos, necessitando, para a
sua sobrevivência econômica e social, da contínua produção agropecuária. Entretanto, a
exploração intensa e desenfreada dos recursos naturais transformou a atividade rural em
uma das que mais emitem gases do efeito estufa no País.
Diante desse quadro emerge a necessidade de aliar práticas sustentáveis ao
agronegócio. Tal preocupação tomou lugar especialmente quando da Conferência

433
Rio+20, que teve como tema central a Economia Verde, que é um conceito melhorado
de Desenvolvimento sustentável. Para a aplicação da economia verde são necessários
incentivos governamentais através de políticas, subsídios e incentivos fiscais e de
financiamento para os empresários rurais que adotarem medidas sustentáveis.
A utilização de agrotóxicos é ampla na produção, o que gera incertezas acerca
de seus efeitos nocivos. Relatórios da ANVISA demonstram que o nível de resíduos nos
alimentos é alto, o que gera danos ao solo e aos consumidores. O crescimento no
consumo de agrotóxicos e a importância da agricultura para o Brasil representam um
desafio contínuo ao país. É necessário proteger o meio ambiente, mas a avaliação
ambiental deve também levar em consideração a competitividade e a produtividade
agrícolas. O uso de agrotóxicos aumenta a produtividade das lavouras, mas, em
contrapartida, gera um desequilíbrio ambiental, o que atinge, direta e indiretamente, a
população.
Para atenuar os danos causados, o IBAMA, através de decreto expedido pelo
Ministério do Meio Ambiente, é o responsável por catalogar o nível de periculosidade
dos agrotóxicos e, assim, controlar a utilização destes. Os fertilizantes também são
bastante utilizados na atividade agrícola brasileira, porém, após a sua utilização, alteram
as características físico-químicas do solo e podem contaminar o lençol freático.
Um dos fertilizantes mais utilizados é o NPK (nitrogênio, potássio e fósforo),
sendo o Brasil o 4º maior consumidor mundial do produto. Também no Brasil, devido à
acidez do solo, se utiliza amplamente a técnica de calagem, fonte de CO2. Para reduzir a
utilização de fertilizantes nocivos, devem ser estimuladas a utilização dos fertilizantes
naturais e a intensificação da rotação de culturas que utilizam plantas fixadoras de
nitrogênio.
A água, aparentemente, não seria um problema para o Brasil, que possui a
maior reserva hídrica do planeta. Porém os índices demonstram que estamos
caminhando para uma situação de escassez de água. O setor agrícola é o que consome a
maior quantidade de água em todo o mundo. No Brasil, a ANA estima que 69% de toda
a água consumida no país é para irrigação, com elevado grau de desperdício, pela
utilização de técnicas inapropriadas e pelo plantio de culturas em locais inadequados ao
seu desenvolvimento. Dados estimam que práticas racionais de irrigação podem reduzir
em 20% o consumo de água e, em 30%, o de energia. Tais práticas devem ser adotadas
e estimuladas.

434
Além disso, deve ocorrer a adequação de locais produtivos, de modo a diminuir
a necessidade de plantio irrigado, devem ser estimuladas práticas de reutilização da
água, tratamento in loco e medidas de proteção aos mananciais.
É importante salientar que todas essas práticas precisam estar atreladas no
sentido de promover também a dimensão social da sustentabilidade. Urge ser
considerada a capacidade de a agricultura e a pecuária gerarem empregos, sejam eles
diretos ou indiretos, e de contribuírem para regular a urbanização acelerada e
desorganizada. Esse desafio consiste em adotar sistemas de produção aptos a gerar
renda para o trabalhador rural, promover condições dignas de trabalho e subsistência
com remuneração compatível com sua importância no processo produtivo brasileiro.
É necessário construir novos padrões de organização social da produção
agrícola por meio da implantação de reforma agrária compatível com as necessidades
locais, levando em consideração a funcionalidade dos vários tipos de propriedades
rurais estudados e da gestação de novas formas de estruturas produtivas.

4. ENTIDADES FISCALIZADORAS DO AGRONEGÓCIO


A fiscalização e o amparo das áreas rurais e, especialmente, do agronegócio
são realizados com o auxílio do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), que
é um sistema integrado por órgãos públicos e entidades da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios. O objetivo da SISNAMA é desenvolver um conjunto
de ações descentralizadas e articuladas para a gestão ambiental no país.
O Conselho de Governo é o órgão superior do SISNAMA, sendo o
responsável pelo assessoramento ao Presidente da República na formulação de diretrizes
para a Política Nacional de Meio Ambiente.
O CONAMA, ou Conselho Nacional de Meio Ambiente, é o órgão consultivo
e deliberativo do SISNAMA que estabelece parâmetros federais (normas, resoluções e
padrões) a serem obedecidos pelos Estados para a promoção da gestão ambiental.
O Ministério do Meio Ambiente (MMA) é o órgão responsável pelo
planejamento, pela coordenação, pelo controle e pela supervisão da Política Nacional de
Meio Ambiente.
O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA) é o órgão executor, responsável por formular, coordenar, fiscalizar, executar

435
a Política Nacional de Meio Ambiente sob os auspícios do Ministério do Meio
Ambiente.
Os Órgãos Seccionais são as entidades de cada Estado da Federação
responsáveis por executar programas e projetos de controle e fiscalização das atividades
potencialmente poluidoras.
Ademais, há órgãos locais que são os responsáveis pelas atividades de controle
e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prática agropecuária consiste numa das formas de exploração dos recursos
naturais que mais agridem o meio ambiente. Isso porque os agricultores e os
empresários, como um todo, comumente desenvolvem suas atividades com o intuito de
satisfação de suas finalidades presentes, sejam de subsistência, sejam de obtenção de
lucros. Não analisam a natureza em seu aspecto macro, ou seja, a complexa inter-
relação dos ecossistemas, tampouco voltam seus olhares para os danos futuros.
No contexto brasileiro, percebe-se que a classificação da propriedade rural e a
sua administração por parte do governo têm avançado no sentido de promover o melhor
aproveitamento das terras, com a maximização do seu uso especialmente por parte dos
pequenos produtores e para a geração de emprego, no intuito de atender à função social
da propriedade. Entrementes, as políticas de incentivos fiscais intentam difundir práticas
sustentáveis que se coadunam com as atuais expectativas de uma sociedade atenta às
múltiplas facetas que a exploração do meio ambiente produz.
Nesse sentido, o discurso da sustentabilidade tem fundamental relevância para
a continuidade da exploração agrária e pecuária, uma vez que põe no cerne do debate a
importância da percepção de todos os fatores que envolvem as referidas atividades, seja
no seu contexto social, ambiental ou econômico. Procura abalizar as problemáticas
latentes nos diversos contextos e propor soluções que atendam aos interesses de todos
os envolvidos.

REFERÊNCIAS
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436
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BRITO, T. D. Competitividade e sustentabilidade no agronegócio: O caso do óleo de
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Federal do Mato Grosso do Sul, 2006, 182 p., Dissertação de mestrado.
BURANELLO, R. A autonomia do Direito do Agronegócio. Revista de Direito
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MARQUES, B. F. Direito agrário brasileiro. 10. ed. rev. Ampl. São Paulo: Atlas, 2012.
PEREIRA, A. C.; SILVA, G. Z.; CARBONARI, M. E. E. Sustentabilidade,
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agosto de 2014.

437
ISBN 978-85-7946-256-6

9 788579 462566

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