Cópia de MARTINS, José de Souza - O Tempo Da Fronteira

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 32

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

U niversidade de S ão P aulo
Reitor: Prof. Dr. Flávio Fava de Moraes
Vice-Reitora: Prof.“ Dr.“ Myrian Krasilchik

F aculdade de F ilosofia, L etras e C iências H umanas


D iretor: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira
FRONTEIRA
Vice-diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert
A degradação do Outro
D epartamento de S ociologia
Chefe: Prof. Dr. Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira
nos confins do humano
C oordenação do C urso de P ós-G raduação em S ociologia
Coordenador: Prof. Dr. José Reginaldo Prandi
Vice-coordenador: Prof. Dr. Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira
Secretárias do curso: Sr.”* Isabel do Céu C. Matias e Sonia Maria dos Reis

A gradecimento

O autor e o Curso de Pós-Graduação em Sociologia do Departamento de


Sociologia da USP agradecem ao C N P q — Conselho Nacional de D esenvol­
vim ento Científico e Tecnológico — os recursos que viabilizaram a co-edição
deste livro.

Co-edição
Programa de Pós-Graduação
Departamento de Sociologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo
EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1997
© Direitos autorais, 1997, de José de Souza Martins. Direitos de publicação re­
servados pela Editora Hucitec Ltda., Rua Gil Eanes, 713 - 04601-042 São Paulo,
Brasil. Telefones: (011)240-9318, 543-0653, (vendas) 530-4532 e (fac-símile)530-
5938.
E-mail: [email protected]

ISBN 85.271.0393-1 Hucitec


Foi feito o Depósito Legal.

Editoração eletrônica: Ouripedes Gallene e Tera Dorea.

Gilda e Antonio Cândido de Mello e Souza,

que personificam,
para todos nós que viemos depois,
as melhores tradições
da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.

Dom Pedro Casaldáliga

Dom Tomás Balduíno,

vidas de testemunho profético


no coração da Amazônia,
na fronteira.
Capítulo 4

O TEMPO DA FRONTEIRA
Retorno à controvérsia sobre o tempo
histórico da frente de expansão
e da frente pioneira
G
om razão observa Alistair Hennessy que as sociedades la­
tino-americanas ainda estão no estágio da fronteira1. Ain­
da se encontram naquele estágio de sua história em que as
relações sociais e políticas estão, de certo modo, marcadas pelo
movimento de expansão demográfica sobre terras “não ocupadas”
ou “insuficientemente” ocupadas. Na América Latina, a última
grande fronteira é a Amazônia, em particular a Amazônia brasilei­
ra, como assinalou Foweraker, ou “última fronteira terrestre que
desafia a tecnologia moderna”, ccmo observou Posey2. Desde c
início da Conquista foi ela objeto de diferentes movimentos de
penetração: na caça e escravização do índio, na busca e coleta das
plantas conhecidas como “drogas do sertão”, na coleta do látex
e da castanha. A partir do golpe de Estado de 1964 e do estabe­
lecimento da ditadura militar, a Amazônia transformou-se num
imenso cenário de ocupação territorial massiva, violenta e rápida,
processo que continuou, ainda que atenuado, com a reinstauraçãc
do regime político civil e democrático em 1985.
A história do recente deslocamento da fronteira é uma histó­
ria de destruição. Mas é também uma história de resistência, de
revolta, de protesto, de sonho e de esperança. A nossa consciên­
cia de homens comuns e também a nossa consciência de intelec­
tuais e especialistas se move no território dessa contradição. Gomo
tantos outros pesquisadores, também fui e tenho sido testemunha

1 Alistair Hennessy, The Frontier in Latiu American History, Edward Arnold, London,
1978, p. 3.
- Joe Foweraker, A Luta pela Terra (A Economia Política da Fronteira Pioneira no
Exposição de abertura da Conferência The Frontier in Question, Department of History, Brasil de 1930 aos Dias Atuais), trad. Maria Julia Goldwasscr, Zahar Editores, Rio de
University of Essex, Colchester (Reino Unido), 21-23 de abril de 1995. Publicado, Janeiro, 1982, p. 11; Darrel A. Posey, “Time, Space, and the Interface of Divergen­
originalmente, em Tempo Social — Revista de Sociologia da USP, vol. 8, n.° 1, maio de te Cultures: The Kayapó Indians of the Amazon Face the Future”, in Revista de
1996, p. 25-70.
Antropologia, vol. 25, Departamento de Ciências Sociais-FFLCH/USP, 1982, p. 8S.
146
147
148 O TEMPO DA FRONTEIRA
O TEMPO DA FRONTEIRA 149

desse movimento, que acompanhei pessoal e diretamente num A história contemporânea da fronteira, no Brasil, é a história das
ritmo impróprio para a pesquisa sociológica moderna, o ritmo da lutas étnicas e sociais. Entre 1968 e 1987, diferentes tribos indí­
paciência, da observação demorada e reiterada. Meu trabalho genas da Amazônia sofreram pelo menes 92 ataques, organizados
certamente diverge dos trabalhos costumeiros sobre a fronteira, do principalmente por grandes proprietários de terra, com a participa­
pesquisador com prazo e pressa, que precisa concluir sua tarefa ção de seus pistoleiros, usando armas de fogo. Por seu ir.do, diferen­
nos limites de uma cronologia apertada. E que, muitas vezes, deve tes tribos indígenas realizaram pelo menos 165 ataques a grandes
limitar sua pesquisa de campo a lugares acessíyeis, pacíficos e fazendas e a alguns povoados, entre 1968 e 199C, usando muitas
pouco representativos da conturbada realidade da fronteira, que vezes armas primitivas como berdunas e arco-e-flecha. Houve oca­
já não são propriamente fronteira. Ou que, sobretudo, pode fazê- siões em que diferentes tribos fizeram ataques em dilVentes luga­
la somente muito depois das ocorrências mais características e res nc mesmo dia. Nestes últimos trinta anes, diferentes facções
violentas da vida social na fronteira, quando a rigor a população da tribo Kayapó lançaram continuados ataques às fazendas de sua
local já não se encontra na situação defronteira".3* região, inicialmente para rechaçar os civilizados e depc‘s de pacifi­
cados para impedir que continuassem invadindo seu território. Em
1984, os Kayapó-Txukahamãe sustentaram uma verdadeira guerra
3 No meu mocío de ver, c o caso do úril escudo da economista Leonarda Musumeci,
O Mito da Terra Liberta (Colonização 'Espontânea', Campesinato e Patronagem na de 42 dias contra as fazendas e o governo militar, que cu minou com
Amazônia Orientai), Anpocs/Vérticc, Edicora Revista dos Tribunais, São Paulo, o fechamento definitivo de extenso trecho da rodovia 3R-080,
1988. Apesar de seu estudo se referir a um único povoado camponês do Maranhão, maliciosamente aberta através de seu território para possibilitar
em que já não há senão remanescentes sociais da situação de fronteira, a autora
o toma como típico da ampla e diversificada situação de fronteira e questiona
desenvolta e farcamentc interpretações relativas ao tema, que têm como referência
um âmbiro mais amplo e complexo. Além disso, não se baseia em observações ter sugerido ao trabalhador que direito e benfeitoria são a mesma crisa e depois de ter
propriamente etnográficas, mas em opiniões de seus entrevistados, frequentemente recebido o esclarecimento de que não são: "... os depoimentos citados (. ,) sugerem que
induzidas para restar os antagonismos de sua polêmica teórica. Como se as questões o direito pode não abarcar apenas o que de concreto se produziu e construiu sobre
propriamente interpretativas pudessem c devessem ser verificadas no terreno do a terra; pode englobar também um direito de terra, um direito do local, ou seja, um
senso comum. Dentre os exemplos de resposta induzida que podem ser encontra­ ‘poder de monopólio’ sobre a parcela assituada e explorada peio camponês...”
dos no referido livro, transcrevo este: “P(esquisadora) — ‘... se alguém tem um [reforça Musumeci, JSM], Cf. Leonarda Musumeci, ob. cit., p. 58-9 (grifos do
terreno sem nenhuma benfeitoria [grifo meu, JSM] c 'tá querendo ir embora, ele original). Assim, Musumeci reduz (e_dcsf:gura) a especificidade histórica do direito
também pode vender?’ I(iaform anté) — ‘Vende o direito, viu? É mais barato, gerado pelo trabalho na terra de posse ao direito dominante üe propriedade enquanto
viu?, mas vende.’ P — ‘Mas aí ele 'tá vendendo o que?’ I — ‘Ele ’tá vendendo só monopólio^conômico juridicamente fundado e assegurado sobie .ima parcela de
um direito, porque tava trabalhando naquele terreno, e sempre domina. O cabra vai lá, terra. A autora nesse caso procura pôr na boca do trabalhador sua orópria tese. As
fala pra botar uma roça, ele diz: ‘não, isso aqui é meu’, e tal, o povo respeita, viu? Aí concepções desse e de outros entrevistados da autora e de seu orientador, apontado
ele quer sair...’ P — ‘O que é dele? Quando ele diz ‘isso aqui é meu’, o que que é? como co-autor (p. 12). invocam concepções do direito sesmaria! des tempos coloniais,
A capoeira? I — ‘Ë, só mesmo a capoeira, só o direito, porque trabalha naquele com o qual ambos não parecem farmharízados. Sem contar que um antropólogo,
lugar. (...) Porque tem..., trabalha naquele pedaço de elião, aí acha que tem direito, além de perguntas verbais aos entrevistados, faria demerada. observações de
né?, de ninguém entrar aU sem a pessoa comprar.' I’ — Aí são duas coisas tpie podem campo para obter, pela via propriamente antropológica, também as informações
ser vendidas: uma é a benfeitoria e outra é o direito, são duas coisas diferentes, né?‘ não verbalizáveis que lhe indicassem quais são na prática (e ião na palavra
[sugere Musumeci, como se não tivesse excluído a benfeitoria na pergunta inicial, JSM ]. I induzida) os costumes dos camponeses utilizados em suas indagrções. A deforma­
— ‘Pois é... Mas a benfeitoria que a gente fala aqui é o mesmo... é o direito [corrige ção metodológica que assinalo no trabalho dessa autora é do co-autor fa z da
o informante, reagindo à sugestão de Musumeci, JSM ]. E, cá certo, a benfeitoria. Porque economista e do antropólogo os heróis-sujeitos da pesquisa. A propósito desse tema,
quando tem a benfeitoria a gente compra mais cato, né? [corrige-se o informante sugiro a leitura do interessante artigo de Paulo Roberto de Arruda Menezes, “A
depois de ter sido induzido a confundir o direito sobre a terra gerado pelo trabalho na terra, Questão do Herói-Sujeito em ‘Cabra Marcado para Morrer’, Filme dc Eduardo
o.desmatamento, com as benfeitorias, JSM], Agora, só o direito, a gente compra Coutinho”, in Tempo Soda!— Revista de Sociologia da USP, voi. 6, n “ 1-2, junho de
baratinho...’ (Lavrador do Barro Vermelho)”. E, então, Musumeci conclui, depois de 1995, p. 107-26. '
150 O TEMPO DA FRONTEIRA O TF.MPO DA FRONTEIRA 151

futura invasão das terras por grandes fazendeiros. Nessas lutas, o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões
houve mortos de ambos os lados, verdadeiros massacres. de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na
Não só os índios da fronteira foram envolvidos na luta violenta fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada
pela terra. Também os camponeses da região, moradores antigos um desses grupos está situado diversamente no tempo da História.
ou recentemente migrados, foram alcançados pela violência dos Por isso, a fronteira tem sido cenário de encontros extremamente
grandes proprietários de terra, pelos assassinatos, pelas expulsões, similares aos de Colombo com os índios da América: as narrativas
pela destruição de casas e pevoados. Entre 1964 e 1985, quase das testemunhas de hoje, cinco séculos depois, nos falam das
seiscentos camponeses foram assassinados em conflitos na região mesmas recíprocas visões e concepções do outro6.
amazônica, por ordem de proprietários que disputavam com eles o A fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece,
' direito à terra. quando os tempos se fundem, quando a alteridade original e
_0 ^que há de sociologicamente mais relevante para caracterizar mortal dá lugar à alteridade política, quando o outro se torna a parte
é definir a fronteira no Brasil, é,-justamente, a. situação de confli­ antagônica do nós. Quando a História passa a ser a nossa História, a
to" sócfãl4. E esse é, certamente, o aspecto mais neglicenciado en-' História da nossa diversidade e pluralidade, e nós já não somos nós
tre os pesquisadores que têm tentado conceituá-la. Na minha in­ mesmos porque somos antropofagicamente nós e o outro que
terpretação, nesse conflito, a fronteira é essencialm ente o lugar devoramos e nos devorou78.
f f a alteridade. E isso o que faz dela uma realidade siiígular. À
primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes ra- Frente de expansão e frente pioneira:
rzões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os civi­ a diversidade histórica da fronteira
lizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um
/lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com Os estudiosos do tema da fronteira no Brasil, quando examinam
que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de a literatura pertinente, se deparam com duas concepções de re­
descoberta do outro e de desencontro5. Não só o desencontro e ferência, através das quais os pesquisadores têm procurado dar
um nome específico a essa realidade singular que é objeto de sua
investigação. Os geógrafos, desde os anos quarenta, importaram a
4 Godfrey, que é geógrafo, menciona esse fato expressamence em relação ao Brasil
designação d c zona pioneira para nomeá-la, outras vezes referindo-
e, ao mesmo tempo, assinala que uma das limitações da interpretação de Turner
sobre a fronteira americana é justamente a de ter ignorado a luta pela terra. Cf. se a ela como frente pioneira1'.
Brian John Godfrey, Road to the Xingu: Frontier Settlement in Southern Pará, Brazil,
MA thesis, University of California, Berkeley, 1979, p. 8 e 40-59. O conflito social,
como conceito-guia, é também adotado por Marianne Schmink & Charles H. ''O tema cia alteridade, nesse tipo de contato, está proposto no estudo de Todorov
Wood, Contested Frontiers in Amazonia, Center for Latin American Studies, Univer­ sobre a Conquista da América, em que ele trata “da descoberta que o eu faz do
sity of Florida, Gainesville, August 1989, p. 14. [Para a versão já publicada desse outro" e do fato de que “o eu é um outro". Cf. Tzvctan Todorov, La Conquista
estudo, cf. Marianne Schmink e Charles H. Wood, Contested Frontiers in Amazonia, tfelPAmerica (1/ Problema dclPAhnt), tratl. Altlo Serafim, Giulio Einaudi Edito.x,
Columbia University Press, New York, 1992.] Jean Hébettc, numa avaliação dos Torino, 1984, p. .4.
estudos sobre a fronteira no Brasil, sublinhou que, na atualidade, o conflito pela 7 Cf. meu ensaio sobre “Antropofagia c Barroco na Cultura Latino-Americana”, in José
possejdí^terra £ qj 5_nia_mais_polarizadoi.Cf. Jean Hébette, Relatório do Seminário de Souza Martins, A Chegada do Estranho, Editora Hucitec, São Paulo, 1993, p. 15-25.
sobre a Fronteira Agrícola com Vistas à Resenha da Literatura nos Últimos Anos, Belém, 8 Esses caboclos “não são as sentinelas avançadas da marcha para oeste”. Cf. Pierre
agosto de 1978, mimeo, p. 3. Monbcig, Ensaios de Geografia Humana Brasileira, Livraria Martins, São Paulo,
5 Foweraker ressalta que “o antagonismo primário da fronteira reside entre os 1940, esp. p. 111; Pierre Monbcig, Pionniers et Planteurs de São Paulo, Librairie
camponeses e os ‘outros’ ...", no sentido de uma certa diluição da dimensão Armand Colin, Paris, 1952; Pierre Monbcig, Novos Estudos de Geografia Humana
propriamente de classe do conflito fundiário. Cf. Joe Foweraker, ob. cit., p. 48. Brasileira, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1957.
152 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 153

Os antropólogos, por seu lado, sobretudo a partir dos anos res, comerciantes, cidades, instituições políticas e jurídicas. Ele
cinqüenta, definiram essas frentes de deslocamento da população inclui nessa definição também as populações pobres, rotineiras,
civilizada e das atividades econômicas de algum modo reguladas não-indígenas ou mestiças, como os'garimpeiros, os vaqueiros, os
pelo mercado, comofrentes de expansão. Como sugere Darcy Ribei­ seringueiros, castanheiros, pequenos agricultores que praticam uma
ro, autor do mais importante estudo sobre essas frentes, elas agricultura de roça antiquada e no limite do mercado.
constituem as fronteiras da civilização. Se tomarmos como refe­ Quando difundiram no Brasil a expressão “frente p oneira”, os
rência a emblemática frente de expansão da região amazônica, geógrafos mal viam os índios no cenário construído per seu olhar
temos nela um primeiro contraste com a frente pioneira dos dirigido. Monbeig define os índios alcançados (e massacrados)
geógrafos: “Aqui a terra em si mesma não tem qualquer valor ... pela frente pioneira no oeste de São Paulo, como precursores dessa
(...). Não se cogita, por isto de assegurar a posse legal das terras ... mesma frente, como se estivessem ali transitoriamente, à espera
('...). E este domínio não assume, senão acidentalmente a forma de da civilização que acabaria com eles. A ênfase original de suas
propriedade fundiária”9. A designação de frentes de expansão, análises estava no reconhecimento das mudanças radicais na pai­
■que o próprio Ribeiro havia formulado, tornou-se de uso corren­ sagem pela construção das ferrovias, das cidades, pela difusão da
te, até mesmo entre antropólogos, sociólogos e historiadores que agricultura comercial em grande escala, como o café e o algodão.
não estavam trabalhando propriamente com situações de frontei- Não há, à primeira vista, nessas concepções de frente de expan­
' ra da civilização. Ela expressa a concepção de ocupação do espaço são, e de frente pioneira, a intenção de supor uma realidade especí-
'de quem tem como referência as populações indígenas, enquan- -ficaje-substantiva. Por isso mesmo, não são propriamente conceitos,
to a concepção de frente pioneira não leva em conta os índios e mas apenas designações através das quais os pesquisadores na ver­
temjçomq referência o empresário, o fazendeiro, o comercia.nte._e. dade reconhecem que estão em face dos diferentes mocos como os
o pequeno agricultor moderno e empreendedor. civilizados se expandem territorialmente. Mais do que momentos
Portanto, o que temos, nas duas definições, é, antes de tudo, e modalidades de ocupação do espaço, referem-se a modos de ser
modos de ver a fronteira, diferentes entre si porque são diferentes, e de viver no espaço novo. Entendo que essas distintas e, de certõ'
nos dois casos, os lugares sociais a partir dos quais a realidade é modo, desencontradas perspectivas, levam a ver diferentes coisas
observada: o do chamado pioneiro empreendedor e o do antropólo­ porque são expressões diferentes da mesma coisa.
go preocupado com o impacto da expansão branca sobre as popu­ A concepção de frente pioneira compreende implicitamente a
lações indígenas10. Esse antropólogo não vê a frente de expansão idéia de que na fronteira se cria o novo, nova sociabilidade,
como sendo apenas o deslocamento de agricultores empreendedo­ fundada no mercado e na contratualidade das relações sociais. No
fundo, portanto, a frente pioneira é mais do que o deslocamento da
população sobre territórios novos, mais do que supunham os que
9 Cf. Darcy Ribeiro, Os índios e a Civilização (A Integração das Populações Indígenas no
Brasil Moderno), 2." edição, Editora Vozes Ltda., Pctrópolis, 1977, p. 25.
empregaram essa concepção no Brasil, A frente pioneira é também
10 Há diferenças, também, no modo de ver a fronteira quando se faz a comparação a situação espacial e social que convida ou induz à modernização, |
entre países diferentes. Gerhard seleciona como principais traços para um estudo Àiqrmulação de novas concepções de vida, à mudançajocial. Ela
comparativo de fronteiras a democracia política na forma de autogoverno, a ten­
constitui o ambiente oposto ao das regiões antigas, esvaziadas de
dência ao igualitarismo, a mobilidade e a consequente quebra do vínculo do
costume ou da tradição. Cf. Dietrich Gerhard, “The Frontier in Comparative população, rotineiras, tradicionalistas e mortas11.
View”, in Comparative Studies in Society and History, vol. I, n.” 3, Mouton & Co.
Publishcrs, The Haguc, March 1959, p. 207. Os estudos da situação de fronteira no
Brasil indicam que os traços relevantes são aqui inteiramente outros, em geral 11 Foi uma antropóloga, Gioconda Mussolini, que chamou a atenção dos cientistas
opostos a esses. sociais brasileiros para o fato de que os nossos antropólogos e sociólogos, até os anos
ri54 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 155

Entretanto, as idéias subjacentes |g_duas eencepções, ôt» fjcente_ era expansão da fronteira da civilização. Obviamente, não há
~de expansão e He. fr e n te pioneira, sugerem que, apesar das aparên­ nenhum relacionamento imediato entre essas diferentes defi­
cias em contrário, elas se referem a realidades sociais substantivas. nições. Já a concepção de frente pioneira desaparece aos poucos,
'9modos singulares de organização da vida social, de definição dos diluída na de frente de expansão, à medida sobretudo que a fren­
^valores e das orientações sociais. Realidades substantivas que não te de expansão passa a ser entendida, predominantemente, como
foram definidas por aqueles que as empregaram. Os antropólogos, uma frente econômica.
quando falam de frente de expansão, fazem-no basicamente para A perda de substância antropológica da concepção de frente de
poupar palavras na definição daquilo com que se defronta o índio. expansão e sua redução aos aspectos meramente econômicos da
Não estão dizendo nada de específico e definido. Estão dizendo vida na fronteira é certamente um fato a lamentar, pois empobre­
que sobre os territórios tribais se move a fronteira populacional e ceu enormemente o estudo da expansão da fronteira no momento
cultural dos brancos. A noção de frente de expansão, nesse contex- em que ele poderia ter sido antropologicamente mais rico. Antes
to, se apóia essencialmente em subentendidõsTEsses subentendi­ dessa perda de substância, Roberto Cardoso de Oliveira pusera o
dos afloraram nas duas últimas décadas, nos trabalhos dos autores tema da frente de expansão em termos mais adequados, mais ricos
que fizeram pesquisa na região amazônica. Para uns, a frente de e mais promissores do que os que prevaleceriam depois. Em seus
expansão aparece como sendo expansão da sociedade nacional; trabalhos, a frente de expansão se define pela situação de contato,
para outros como expansão do capitalismo'? e para outros, até, isto é, pelo pressuposto metodológico da totalidade, como é pró-'"
como expansão do modo capitalista de produção. Originalmente, prio da tradição dialética*13. Aí, as relações interétnicas são relações
de fricção interétnica, o equivalente lógico, mas não ontológico,
cinquenta, optaram pela realização de estudos de comunidade nas “zonas velhas”, como ele esclarece, da luta de classes14. Embora Oliveira esteja se^
isto é, em zonas tradicionais e socialmcntc estáveis, em oposição às “zonas novas” referindo às relações entre índios e brancos, sua interpretação já
ou pioneiras. Nesse sentido, “não têm se interessado pela zona pioneira”, ou seja, é indicativa da impossibilidade de analisar a realidade dos prota­
pelas zonas de organização social ainda instável. Ela sugere, assim, as implicações
dessa opção: “Quase que invariavelmente, porém, os estudos de comunidade gonistas da fronteira de outro modo que não seja como momento
realizados no Brasil revelam, como dissemos, interesse definido da parte de seus de uma totalidade dialética e, portanto, momento^iecontradir.ãn e
autores por áreas nas quais se espera verificar a qualidade de ‘organização cultural' Jugar_de conflito15.
e estabilidade social, selecionando-se, por esta razão, pontos que além de situados nas
‘zonas velhas’ de povoamento, sejam o suficiente isolados para que se anteveja a possibi­
lidade de concretização daquela expectativa." Cf. Gioconda Mussolini, “Persistência Cf. Roberto Cardoso dc Oliveira, 0 índio e o Mundo dos Brancos (A Situação dos
e Mudança em Sociedades de ‘Folk’ no Brasil”, in Florestan Fernandes (org.), Tuhúna do Alto Solimões), Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1964, p. 15-8.
Symposium Etno-Sociológico sobre Comunidades Humanas no Brasil, Separata dos 14 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, “Problemas c Hipóteses Relativos à Fricção
Anais do X X X I Congr. Internacional de Americanistas, São Paulo, 1955, esp. p. 338 Interétnica: Sugestões para uma Metodologia”, in Revista do Instituto de Ciências
(grifo meu). Portanto, o que o pesquisador via e vê em seu trabalho de campo está Sociais, vol. IV, n." 1, Universidade Federal do Rio dc Janeiro, Rio dc Janeiro, 1967,
acentuado por essa opção c por essa orientação prévias. p. 44.
12 Embora eu mesmo, neste texto, use o conceito de capitalismo várias vezes, faço-o, 15 No mesmo número da revista em que Cardoso de Oliveira publicou seu artigo e
porém, sabendo que introduz uma distorção na concepção marxiana de capital c de projeto dc pesquisa, seu aluno Otávio Guilherme C. A. Velho publicou um
modo capitalista de produção. O conceito de capitalismo, que Marx não usou, relatório dc trabalho dc campo, cm princípio norteado por aquele mesmo projeto,
sugere um sistema, idéia muito distante do que o próprio Marx pensava, pois sua em que seu autor diz: “O dinamismo da frente hoje está intimamente ligado à
referência era o processo do capital, o movimento do capital, sua reprodução busca de terra”. (Cf. Otávio Guilherme C. A. Velho, “Análise Preliminar de uma
ampliada e não sua mera reprodução. Facruo. nnrém. nara facilitar o diálovo crítico Frente de Expansão da Sociedade Brasileira", in Revista do Instituto de Ciências
que este texto contém, sobretudo com autores que trabalham com a pressuposição Sociais, vol. IV, n." 1, cit., p. 38). Essa afirmação poderia ter diferentes sentidos,
jlc. um-sistema social, em cuin interior o progresso e um desdobramento da ordem, mas a ênfase geral do artigo é posta nos aspectos propriamente económicos da
à moda positivista. frente de expansão. E a í que nasce, no meu modo de ver, a rcorientação reducio-
156 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 157

No meu modo de ver, o desencontro entre o que foi visto e de comércio, de que quase sehlpre o dinheiro es:á ausente,
originalmente pelo geógrafo e o que foi visto pelo antropólogo, sendo mera referência nominal arbitrada por quem tem o poder
como disse antes, é produto de observações feitas em desiguais pessoal e o controle dos recursos materiais na sua relação com os
lugares sociais. No entanto, esses lugares sociais correspondem à que explora, índios ou camponeses. O mercado opera, r.través dos
própria realidade da fronteira. Eles viram a partir do vínculo que comerciantes dos povoados, com critérios monopolísticos, media­
tinham com a fronteira na pesquisa científica. Viram, portanto, o dos quase sempre por violentas relações de dominação pessoal,
que a fronteira lhes mostrava e o que estavam profissionalmen­ tanto na comercialização dos produtos quanto nas relações de
te dispostos a ver. O desencontro de perspectivas é, nesse caso, trabalho (sendo aí característica a peonagem ou escravidão por
essencialmente expressão da contraditória diversidade da fronteira, dívida). Portanto, muito longe do que tanto Marx quando Weber
mais do que produto da diversidade de pontos de vista sobre a poderiam definir como capitalista.
fronteira. Diversidade que é, sobretudo, diversidade de relações Neiva, em trabalho contemporâneo dessas formulações, assina­
sociais marcadas por tempos históricos diversose, ao mesmo lara que, no Brasil, era (e é) necessário distinguir, no interior das
tempo, contemporâneos. fronteiras políticas do país, a fronteira demográfica e a fronteira
A diferença inicial que os dois pontos de vista sugeriam era de econômica, esta nem sempre coincidindo com aquela, geralmente
que quando os geógrafos falavam de frente pioneira estavam aquém dela17. Isto é, a linha de povoamento avança antes da linha
falando de uma das faces da reprodução ampliada do capital: a sua de efetiva ocupação econômica do território. Quando os geógrafos
reprodução extensiva e territorial, essencialmente mediante a falam de frente pioneira, estão falando dessa fronteira econômica.
conversão da terra em mercadoria*16 e, portanto, em renda capita­ Quando os antropólogos falam de frente de expansão, estão geral­
lizada, como indicava e indica a proliferação de companhias de mente falando da fronteira demográfica. Isso nos põe, portanto,
terras e negócios imobiliários nas áreas de fronteira em que a diante de uma primeira distinção essencial: entre a fronteira de­
expansão assume essa forma. Nesse sentido, estavam falando de mográfica e a fronteira econômica há uma zona de ocupação pelos
uma das dimensões da reprodução capitalista do capital. agentes da “civilização”, que não são ainda os agentes característi­
Quando os antropólogos falavam originalmente da frente de cos da produção capitalista, do moderno, da inovação, do racional,
expansão, estavam falando de uma forma de expansão do capital do urbano, das instituições políticas e jurídicas etc.18.
que não pode ser qualificada como caracteristicamente capitalista.
Essa expansão é essencialmente expansão de uma rede de trocas 17 Cf. Arthur Hehl Neiva, “A Imigração na Política Brasileira de Povoamento”, in
Revista Brasileira de Municípios, ano II, n.° 6, abril-junho de 1949, p. 225, apud Leo
H. Waibel, “As Zonas Pioneiras do Brasil”, in Revista Brasileira de Geografia, ano
t nista dos estudos antropológicos da frente de expansão na perspectiva do que os geógrafos XVII, n.° 4, outubro-dezembro de 1955, p. 391-2. A distinção en:re fronteiras
definiram comofrente pioneira, dominados pelas questões econômicas, como se veria políticas e fronteiras econômicas estava claramente presente no discurso geo-
no primeiro livro do autor sobre o tema (cf. Otávio Guilherme Velho, Frentes de político do Estado Novo, que justificava a Marcha para Oeste. 0 Presidente
Expansão e Estrutura Agrária, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1972). Nessa orienta- ■Getúlio Vargas referiu-se a elas, em sua viagem à Amazônia, em 1945, no docu­
l ção, a questão da centralidade do conflito, que motiva Cardoso de Oliveira, vai para mento relativo à fixação do primeiro marco da estrada para o Xingu e lugar da futura
j, um plano inteiramente secundário, embora Velho tenha dito no referido artigo (p. cidade de Xavantina. Nesse documento, Vargas assinala a nova consigna da fren­
29), que seu trabalho “pretende ser um desdobramento do artigo de Roberto te pioneira apoiada nas pressões e nos favores do Estado: fazer coincidir as duas
Cardoso de Oliveira fronteiras. Concretamente, isso indicava a aceleração do avanço da frente pioneira
16 Falando da frente pioneira em .São Paulo, Munheig esclarece que “os pioneiros sobre a faixa da frente de expansão. Cf. Ayres Câmara Cunha, Além deMato Grosso,
paulistas jamais puderam dispor de terras gratuitas: nada c mais estranho à faixa Clube do Livro, São Paulo, 1974, p. 119.
pioneira brasileira que a ‘terra devoluta'. (...). A pitsse riu solo começa por um “São etapas sucessivas de penetração civilizadora e, consequentemente, corres­
negócio ...” Cf. Pierre Monbeig, Novos Estudos, eit., p. 110. pondem a graus diversos de intensidade de interação. Assim, as frentes extrativas
158 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 159

É possível, assim, fazer uma primeira datação histórica: adiante estou falando de atraso social e econômico. Estou falando da
da fronteira demográfica, da fronteira da “civilização”, estão as, contemporaneidade da diversidade. Estou falando das diferenças
populações indígenas, sobre cujos territórios avançã~l~fféhte de ~~ que definem seja a Individualidade das pessoas, seja a identidade
expansão. Entre a fronteira demográfica e a fronteira econômica dos grupos.
está a frente de expansão, isto é, a frente da população não incluída Essa distinção não é conceituai nem é classificatória, ao contrá­
na fronteira econômica. Atrás da linha da fronteira econômica está. rio do que entendem diferentes pesquisadores que trataram da
a frente pioneira, dominada não só je lo s agentes da civilização, fronteira a partir do surto expansionista de 1964. Nesse equívoco
mas, nela, pelos agentes da modernização, sobretudo econômica, repousa a controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expan-(^
agentes da economia capitalista (mais do que que simplesmente são e o tempo histórico da frente pioneira, pois não se reconhece
agentes dãTêconomia Tle mercado), da mentalidade inovadora, que o tempo histórico de um camponês dedicado a uma agricultu­
urbana e empreendedora Digo que se rrara de uma primeira ra de excedentes é um. Já o tempo histórico do pequeno agricultor
datação histórica porquêfcada uma dessas faixas está ocupada por próspero, cuja produção é mediada pelo capital, é outro. E é ain-^
populações que, ou estão no limite da História, como é o caso das da outro o tempo histórico do grande empresário rural. Como é
populações indígenas; ou estão inseridas diversamente na História, outro o tempo histórico do índio integrado, mas não assimilado,
como é o caso dos não-índios, sejam eles camponeses, peões ou que vive e se concebe no limite entre o mundo do mito e o mundo
empresários. da História. Como ainda é inteiramente outro o tempo histórico do
Cada uma dessas realidades tem o seu próprio tempo histórico, pistoleiro que mata índios e camponeses a mandado do patrão e
se considerarmos que a referência à inserção ou não na fronteira grande proprietário de terra: seu tempo é o do poder pessoal da
econômica indica também diferentes níveis de desenvolvimento ordem política patrimonial e não o de uma sociedade moderna,
econômico que, associados a níveis e modalidades de desenvol­ igualitária e democrática que atribui à instituição neutra da justiça
vimento do modo de vida, sugerem datas históricas distintas e de­ a decisão sobre os litígios entre seus membros. A bala de seu tire
sencontradas no desenvolvimento da sociedade, ainda que con­ não só atravessa o espaço entre’èlè'e_â"vítimã7Atravessa a distância
temporâneas. E não me refiro apenas à inserção em diferentes histórica entre seus mundos, que é o que os separa. Estão juntos
etapas coexistentes do desenvolvimento econômico. Refiro-me na complexidade de um tempo histórico composto pela mediação
sobretudo às mentalidades, aos vários .arcaísmos de pensamento- do capital, que junta sem destruir inteiramente essa diversidade
e conduta que igualmente coexistam convo que é atual19. E não de situações.
_A distinção entre frente pioneira e frente de expansão_£wna
melhor das hipóteses, um instrumento auxiliar na-descrição e
são frequentemente penetrações exploratórias e recentes a que se seguirá a
ocupação definitiva de base agrícola. Esta última raras vezes assumiu no Brasil a compreensão dos fatos e acontecimentos da fronteira20. E um ins-
forma de fronteira de expansão sobre áreas indevassadas. Via de regra, cresce sobre
regiões previamente exploradas por coletores de artigos florestais.” Cf. Darcy
Ribeiro, Os índios e a Civilização, cit., p. 244. Cf. José dc Souza Martins (org.), Introdução Crítica à Sociologia Rural, Editora
19 Apoio-mc, nessa orientação metodológica, em dois trabalhos fundamentais de Hucitcc, São Paulo, 1981, p. 144-77. Sartre reconheceu c destacou a fundamenta]
Henri Lefebvre. Cf. Henri Lefebvre, “Problèmes de Sociologie Rurale — La importância metodológica do segundo artigo “cm todos os domínios da antropolo­
Communauté Paysanne et ses Problèmes Historico-Sociologiques", in Cahiers gia”. Cf. Jean-Paul Sartrc, Questão de Método, trad. dc Bento Prado Júnior, Difusão
Internationaux de Sociologie, vol. VI, Quatrième année, Aux Editions du Seuil, Paris, Européia do Livro, São Paulo, 1966, esp. p. 46-7.
1949, p. 78-100; c Henri Lefebvre, “Perspectives de la Sociologie Rurale”, in 20 A junção e o confronto das duas concepções — frente de expansão c frente pioneira
Cahiers Internationaux de Sociologie, vol. XIV, Huitième année, Aux Éditions du —, como momentos históricos distintos e combinados de diferentes modalidades
Seuil, Paris, 1953, p. 122-40. Esses dois trabalhos estão traduzidos para o português. da expansão territorial do capital, foi feita pela primeira vez numa pequena corau-
4^)0 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 161

trumento útil quando as duajsjiancepções são crabalhadas na sua capitalista de produção, em sua perspectiva, é estritamente cons­
unidade, quando destaca_a temporalidade própria da situação de tituído por um jogo de categorias que, embora contrac itórias, tem
cada grupo social da fronteira e permite estudar a sua diversidade uma mesma e única data, a do tempo da burguesia e do proleta­
histórica não só como diversidade estrutural de categorias sociais, riado. Quase sempre essa data única está subjacente à idéia do
mas também como diversidade social relativa aos diferentes mo- capitalismo como sistema (e como çonceito) que, po: isso, reduz
dcis e tempos de sua participação na História. No entanto, dilercn- todas as relações, por mais diversificadas que sejam, a uma única,
5tes pesquisadores a interpretaram como uma tipologia da fronteira' definida como capitalista. O recurso ao conceito estru mralista de
e a ela se referiram e a reduziram ao esquematismo classificatório formação econômico-social é um artifício que procura manter uma
da controvérsia latino-americana dos anos sessenta e setenta sobre certa idéia de totalidade, porém constituída de níveis, isto é,
o desenvolvimento do capitalismo no campo, sobre a natureza camadas de realidades desiguais, dotadas de autonomia relativa
histórica das mudanças (e das lutas sociais) que estavam ocorren­ umas em relação às outras e, portanto, esvaziadas de historicidade.
do no campo: eram transformações no capitalismo ou era transição A partir daí não se distingue entre sistema mercantil e capitalismo,
de pré-capitalismo (e, para alguns, até feudalismo) para o capita­ entre dinheiro e capital, entre propriedade privada e propriedade
lismo? capitalista (isto é, propriedade de meios de produção destinados à
Tal esquematismo procurou legitimidade no marxismo estru- exploração caracteristicamente capitalista da força de trabalho),
turalista de inspiração althusseriana que se difundiu na América entre modo de produção capitalista e modo de produção especifi­
Latina nesse período, sobretudo através de manuais de vulgariza­ camente capitalista, entre processo de trabalho e modo capitalista
ção do pensamento de Althusser. Porém, penso que o marxismo de produção etc.
estruturalista não pode reconhecer nos processos sociais a diver­ As relações sociais de data diversa, isto é, que encerram outra
sidade e contemporaneidade dos tempos históricos, porque os se­ temporalidade, nessa orientação são reconhecidas unicamente na
para em agregados referidos à lógica do espaço. Assim, o modo definição de um outro modo de produção (no fundo, uma espécie
de tipo ideal). Em vez da coexistência de tempos históricos na
nicação que apresentei, em julho de 1971, na Reunião Anual da Sociedade Brasi­
contradição dos processos sociais, essa orientação reccnhece os
leira para o Progresso da Ciência, em Curitiba (PR). Essa comunicação, por inicia­ desencontros dos tempos históricos apenas em termos de articu­
tiva do prof. José Roberto do Amaral Lapa, foi publicada no mesmo ano em Estudos lação de modos de produção21 (e não de contradição contemporâ­
Históricos (n." 10, Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e
nea no interior das próprias relaçõss sociaislAMém disso, a lógica
Letras de Marília, SP, 1971, p. 33-41). Foi reproduzida, em 1972, em Cadernos
(n.“5, Centro de Estudos Rurais e Urbanos, São Paulo, 1972, p. 102-12) e, em 1973, espacial dessa orientação impõe a distinçãome níveis da realidade,
na Revista Mexicana de Sociologia (vol. XXXV, n.° 4). Rccditei-a no meu livro Ca­ ainda que combinados, como se fossem instâncias detadas de
pitalismo e Tradiáonalismo (Estudos sobre as Contradições da Sociedade Agrária no autonomia, como a da economia, da política, da ideologia. São, na
Brasil), Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1975, p. 43-50. Nessa perspectiva,
teve ampla repercussão entre os estudiosos do tema c é hoje referência corrente cm
verdade, artifícios que permitem classificar a realidade ajustando-
muitos estudos sobre a fronteira. Kspecialmente os trabalhos sobre temas histó­ se as partes, as peças, numa arquitetura em que o pesquisador
ricos destacaram o acerto de tratar as duas concepções como expressões de um apenas intui, mas não demonstra, o lugar de cada uma. Portanto,
mesmo processo. Dentre os estudos amplamente influenciados por aquele texto
nessa perspectiva é impossível reconhecer o desencontro dos
de 1971 e pela orientação q tc nele propus, destaco cm particular os de Warren
Dean, Rio Claro (A Brazilian Plantation System, 1820-1920), Stanford University tempos históricos contidos nas relações sociais reais, como expres-
Press, Stanford, 1976; de Joe Fowcraker, The Strugglefo r Land (A Political Economy
o f the Pioneer Frontier in Brazilfrom 1930 to the Present Day), Cambridge University
21 A concepção articulacionista é proposta por Pierre-Philippe Rey, Les Alliances de
Press, Cambridge, 1981; c dc Carlos Rodrigues Brandão, Os Caipiras deSão Paulo,
Editora Brasiliensc, São Paulo, 1983. Classes, François Maspero, Paris, 1976.
162 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 163

são da diversidade na unidade, própria da sociedade capitalista e ção de fronteira do humanOj.JNgs.se. sentida, diversamente do que
moderna. E, principalmente, torna-se impossível reconhecer, a ocorre com a frente pjoneira. sua dimensão econômica é secundária!^
não ser por um artifício mecanicista, a possibilidade de transforma­ O Brasil é um país particularmente apropriado para estudar
ção do presente e nele a possibilidade da História, a virtualidade a fronteira nessa perspectiva. As últimas décadas têm sido uma
da História, a História não só como passado, mas como promessa época em que grupos humanos de diferentes tribos indígenas
contida na luta pela vida, pelas concepções da vida como vir a ser, foram contatados pela primeira vez pelos civilizados. Ao mesmo \
no destino de todos. Sobretudo ela reduz as contradições (e as tempo, civilizados muito diversificados entre si, com mentalida­
alternativas que anunciam) ao anúncio de um único destino his­ des muito desencontradas a respeito de seu lugar nesse dramático
tórico para todos indistintamente, todas as classes, todos os gru­ confronto da condição humana e de concepções de humanidade: o
pos, todas as histórias singulares (como a dos índios, dos campo­ camponês, o peão, o garimpeiro, o grande fazendeiro, o empresá­
neses, dos operários, dos jovens, das mulheres etc.). No fundo, rio, o religioso (tlc diferentes confissões religiosas), o funcionário
uma concepção totalitária. Reduz q destino de todQS.ao .destino público, o antropólogo.
da burguesia na sua contrafação histórica:, andasse média. E não O que poderia ter sido um momento fascinante de descoberta
toma como referência, obviamcntc, o destino do.gênero humano do homem, foi um momento trágico de destruição e morte. Mas
na sua diversidade.. isso não tira a dimensão épica e poética dos fugidios instantes do
encontro de diferentes humanidades como tem ocorrido na região
Os confins do humano e a fronteira da História amazônica24. Para mim, o mais expressivo documento desse ato de

A categoria mais rica e apropriada para a reflexão sociológica


é a de frente de expansão porque ela se refere a lugar e tempo 2,1 Este artigo estava pronto há vários meses quando os jo.rnais de setembro e outubro
de conflito e de alteridade. Já em Turner, a concepção de fron­ de 1995 noticiaram o encontro dc dois grupos indígenas desconhecidos, ocorrido
teira era a do limite entre civilização e barbárie*22. Em perspec­ em Corumbiara, Rondônia. No dia 3 de setembro, um domingo, depois de quatro
dias dc busca, uma equipe dirigida pelo sertanista Marcelo Santos, chefe do
tiva oposta, é para Ribeiro limite da civilização. No Brasil, para os Departamento de índios Isolados dc Rondônia, da Fundação Nacional do Índio
próprios membros do que se poderia chamar provisoriamente de (Funai), encontrou um casal dc índios não-identificados. A primeira palavra que
sociedade da fronteira23, a fronteira aparece freqüentemente como o sertanista dirigiu ao casal, num português não compreendido, foi “amigo”. Só
quando armas c equipamentos foram depositados no chão, porém, é que o casal
o limite do humano. A fronteira é a fronteira da humanidade. Além
então compreendeu que a intenção era dc paz. Transcrevo o relato do jornalista
dela está o não-humano, o natural, o animal. Se entendermos que sobre esse momento solene c litúrgico: “Os primeiros passos do casal foram
a fronteira tem dois lados e não um lado só, o suposto lado da vagarosos. Desceram até a ponte dc madeira sobre o riacho que separa a alceia da
civilização; se entendermos que ela tem o lado de cá e o lado de lá, mata. Antes de atravessar, a mulher iniciou uma cerimônia. Parecia pegar r.o ar os
maus espíritos c assoprar para longe, para dentro da mata. O grupo visitante
fica mais fácil e mais abrangente estudar a fronteira como concep­ permaneceu quieto até que se aproximassem. A primeira reação dos dois foi tocar
braços c mãos dos brancos. ‘Querem sentir se estamos nervosos’, disse Marcelo. A
mulher tremia. O homem balbuciava um som ininteligível. Marcelo tocou-lhes os
adornos, repetiu ‘amigo, amigo’ c sorriu. A forma dc entendimento mais eficaz
22 Cf. Frederick Jackson Turner, “The Significance of the Frontier in American entre os dois grupos foi, afinal, a mais simples: o riso.” Cf. Pablo Pereira, “Sertanis­
History", in George Rogers Taylor (cd.), The TumerThesis Concerning the Role of the ta Contata índios Isolados cm RO”, in 0 Estado deS. Paulo, 6 dc setembro de 1996,
Frontier in American History, D. C. Heath and Company, Boston [1956], p. 2. p. A15. O sertanista encontrara vestígios desse grupo já em 1985. No início dc
22 Bogue fala cm sociedades de fronteira. Cf. Allan G. Bogue, “Social Theory and the outubro, o lingüista Nilson Gaba Jr., do Museu Paraense Emílio Goeldi, identifi­
Pioneer”, in Richard Hofscadtcr & Seymour Martin Lipsct (cds.), Turner and the cou a língua falada pelos índios como canoê, “encontrada apenas entre seis pessoas
Sociology o f the F routier, Basic Books, Inc. Publishers, New York, 1968, p. 75. na Arca Indígena Guaporé, também em Rondônia”. Cf. 0 Estado deS. Paulo, 10 dc
164 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 165

achar o outro é a fotografia de um jovem índio da tribo Kreenaka- No dia 27, um helicóptero retirou o trabalhador que fora flechado
rore, o rosto pintado de urucu, no cenário da floresta, os brancos pelos índios. Na noite seguinte, os sertanistas ouviram várias vezes
que os procuravam e os viam pela primeira vez também: os olhos o pisar das folhas secas do chão de seu acampamento por visitantes
arregalados descobriam e deixavam descobrir uma outra humani­ que se tornavam invisíveis quando o foco da lanterna era dirigido
dade25. Foi em outubro de 1972. A existência dessa tribo havia sido para o local de onde vinha o ruído. Isso foi interpretado como sinal
descoberta no dia 6 de fevereiro por um sertanista que sobrevoava de que os índios queriam entrar em contato com os orancos. Na
a selva, para saber se havia populações indígenas no trajeto por on­ tarde do dia seguinte, os membros da expedição colocaram pre­
de passaria a rodovia Cuiabá—Santarém, atraí-las e contatá-las. sentes no local em que o trabalhador fora flechado: facões, macha­
Nesse dia foi avistada uma de suas aldeias. No dia 14, uma expe­ dos, facas, colares, peças de alumínio. Assustados pelo tiro que um
dição encontrou os primeiros vestígios de sua existência: picadas trabalhador dera num macaco que estava numa copa ce árvore sob
na mata, restos de fogueiras e ossos de animais. No dia 25 de maio, a qual se encontrava um grupo de índios, e sentindo a aproximação
às 11 horas da manhã, os Kreenakarore atacaram os brancos pela da expedição, os Kreenakarore queimaram sua aldeia e se refu­
primeira vez e feriram um trabalhador. No dia seguinte, o coman­ giaram na mata. Mas deixaram para os brancos vários presentes:
do militar encarregado da abertura da estrada suspendeu os traba­ bordunas, flechas, arcos. De fato, também eles estavam tentando
lhos a apenas vinte quilômetros do acampamento da expedição. contatar os brancos. No dia 4 de outubro, os índios recolheram os
presentes deixados pelos brancos na margem do rio Peixoto de
Azevedo. No dia 15 apareceu nas proximidades um grupo nume­
outubro de 1995, p. A16. Até o momento, foram localizadas na área dó contato roso de índios que falavam alto e gesticulavam muito. No dia 19,
quatro pessoas pertencentes à etnia canoê. Um novo grupo, de sete pessoas, en­
contrado na segunda quinzena de outubro não é canoê. Aparentemente, pertence
reapareceram na margem esquerda do rio, acenando para a expe­
à etnia macurape. Cf. Pablo Pereira, “Funai Encontra Novo Grupo de índios em dição. Um dos sertanistas chegou a dez metros de distância de um
RO”, in O Estado de S. Paulo, 25 de outubro de 1995, p. A14. No final da primeira casal, que o ameaçou retesando o arco e, em seguida, internando-
quinzena de outubro de 1996, o sertanista Sidney Possuelo, após vários anos de
se na mata. No dia 31 de dezembro, os índios começaram a re­
tentativas frustradas, conseguiu atrair o principal grupo de índios isolados do vale
do rio Javari, na fronteira com o Peru: os corubc (cujo nome verdadeiro podp ser construir a aldeia que haviam queimado. No dia 13 de fevereiro de
camivá). São cerca de cento e cinquenta índios de uma população que pode variar 1973, eram fmalmente atraídos para viver no acampamento dos
de duzentas a duas mil pessoas. Esses índios vêm sendo incomodados e mortos brancos e contados: eram 350 pessoas. Dois anos depois desses
pelos brancos que invadem suas terras ü procura de borracha, peixes, palmito c
madeira. Cf. Ulisses Capozoli, “Sertanista Contata Tribo de índios Isolados na
episódios e do contato com os brancos, em janeiro de 1975, só res­
Amazônia”, in O Estado de S. Paulo, 17 de outubro de 1996, p. A18. tavam vivos setenta e nove deles (quarenta homens e trinta e nove
25 A história do contato com os índios Kreenakarore c suas consequências dramáticas mulheres), todos com sinais visíveis de tuberculose. Lm ano de­
foi contada no noticiário jornalístico que o narrou quase que diariamente de 1972 a
1975. Cf., especialmente, O Estado de S. Paulo, 8 de dezembro de 1972, p. 10; O
pois, um sertanista denunciava que brancos podiam ter submeti­
Estado de S. Paulo, 12 de dezembro de 1972, p. 19; O Estado de S. Paulo, 31 de do os índios a severas humilhações, que eles não faziam mais roça
dezembro de 1972, p. 27; Coojomal, n." 59, Porto Alegre, novembro de 1980, p. 16; e havia entre eles vários casos de doenças venéreas transmitidas
O Estado deS. Paulo, 15 de janeiro de 1975, p. 15; O Estado deS. Paulo, 17 de agosto pelos brancos, sem contar trinta e cinco índios com gripe, inclusive
de 1975, p. 27. Em 1967-1968, houve uma primeira expedição para localizar e
contatar os Kreenakarore dirigida por Cláudio Villas-Boas. A tentativa de aproxi­ o cacique. Os índios estavam abandonando a aldeia e construindo
mação está minuciosamente narrada no livro de um dos participantes do grupo, suas malocas na beira da rodovia, expostos ao contato indiscrimi­
Adrian Cowell, The Tribe That Hides From Man [2nd. ed.j, Pimlico, London, 1995. nado com os trabalhadores da estrada. Se queremos insistir no
A história dos Kreenakarore subsequente ao contato em 1973, até 1994, é contada
por Stephan Schwartzman, “Epilogo to thc Pimlico Edition”,/'« Adrian Cowell, ob. nosso conceito de civilização e civilizado, a civilização da frente
cit., p. 217-29. pioneira havia triunfado sobre a barbárie da selva.
166 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 167

Essa não é uma história única. Pelo menos trinta e quatro tri­ do Araguaia (no Mato Grosso), caminhando pela rua à beira co rio,
bos indígenas foram atraídas e contatadas na Amazônia, a partir de ouvi quando algumas crianças começaram a ofender um índio
1965, entre tribos até então desconhecidas e facções arredias de karajá que passava. Perguntei-lhes porque faziam aquilo, pois o
grupos já conhecidos26. Sem contar tribos fragmentadas em grupos índio era gente como elas e elas certamente não gostariam que
dispersos, em relação a cada qual o contato foi específico. Vinte e alguém lhes fizesse o mesmo. Um dos meninos disse-me com
seis delas o foram entre 1970 e 1975. Na quase totalidade desses espanto: “Ele não é gente como eu. Ele é caboclo e eu sou
grupos a história do contato não varia muito em relação ao caso dos cristão!” Lembro-me, ainda, do cacique xavante Aniceto, numa
Kreenakarore. reunião em Goiânia, opondo-se aos bispos católicos que, por uma
Os brancos utilizam usualmente as palavras atração, pacifica­ questão de respeito aos índios, não se julgavam no direito de
ção e contato para se referir à ação de neutralização das popula­ batizá-los. Para Aniceto, o batismo constituía o reconhecimento
ções indígenas que geralmente reagem quando percebem que da humanidade do índio e uma proteção em relação aos brancos
seus territórios estão sendo invadidos. Essas são palavras técnicas que, pela falta do batismo, os consideravam animais. A distinção
do jargão oficial, usadas pelos funcionários da Fundação Nacional entre cristão e caboclo é, nesses casos, usada para distinguir os
do índio para caracterizar seu trabalho. O homem comum, porém, humanos dos bichos-do-mato29.
sintetiza essas diferentes ações no verbo amansar os índios. E uma Nesse período recente, não foram raros os casos de expedições
palavra que dá bem a medida do lugar que o índio ocupa no de caça ao índio organizadas pelos brancos da frente de expansão,
imaginário do civilizado da fronteira: ele é geralmente classificado para removê-los tlc “suas” terras e prevenir ataques. Como em
como animal27. 1963, quando os responsáveis por um seringal no Mato Grosso
Várias localidades da Amazônia receberam o nome deSão Félix, ordenaram a destruição e o massacre de toda uma aldeia de índios
inclusive no período recente. E que São Félix, na crença católica
popular, é o santo que protege o homem contra os animais peço­
nhentos e os índios. Na região, os não-índios, brancos ou não, cha­
indolente, craiçociro, enfim como alguém cujo único destino é trabalhar para o
mam a si mesmos de cristãos. E classificam os índios como caboclos, branco”. Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, O índio e o Mundo dos Brancos, Difusão
isto é, pagãos, por oposição aos cristãos28. Certa vez, em São Félix Européia do Livro, São Paulo, 1964, p. 80. Darcy Ribeiro também observou que “o
índio aprendeu a se olhar com os olhos do branco, a considerar-se um pária, um
bicho ignorante, cujas tradições mais veneradas não passam dctoliccs ou heresias
que devem ser erradicadas”. Cf. Darcy Ribeiro, Os índios e a Civilização, cit., p. 213.
26 São pelo menos das seguintes tribos os grupos atraídos e contatados nesse período, 29 Las Casas registrou a mesma concepção no vale do Tapajós. Cf. Roberto Décio de
na região amazônica: Arara, Ararapé, Aua-Guajá, Avá-Canoeiro, Buré, Cinta Larga, Las Casas, “índios c Brasileiros no Vale do Rio Tapajós”, in Boletim do Museu
Guajá, Ipixuna (na verdade, nome do igarapé em que o grupo foi localizado), Paraense Emílio Goe/di (Nova Série), Antropologia, n.° 23, Instituto Nacional de
Kanamari, Koxodoá, Kreenakarore, Kulina, Kuruayá, Maniteri, Marubo, Mayá, Pesquisas da Amazônia, outubro de 1964, p. 17. Dom Eurico Kräutler, que foi
Mayoruna, Munkü, Nambikuara, Nereyo, Parakanã, Suruí, Tiikuna, Txikão, Txu- missionário c, depois, bispo na região do Xingu, de 1934 a 1965, registra em suas
kahamãe, Uru-Eu-Wau-Wau, Urupá-Kwine, Wai-Wai, Waiãpi, Waiká, Waimiri- memórias: “Muitos seringueiros têm desprezo pelos índios. Dizem que é permiti­
Atruahi, Yanomami, Yauri c Zoró. do matá-los, porque são animais ferozes c não gente”. Eurico Kräutler, Saiguenas
27 Cf. Darcy Ribeiro, ob cit., p. 362-3. Pedras, Edições Paulinas, São Paulo, 1979, p. 17; “... tenho um filho de alguns
28 A propósito da designação de caboclo no caso dos índios Tiikuna do alto Solimõcs, meses de idade. Vim buscar o senhor para batizá-lo. Quero que ele se torne cristão.
Roberto Cardoso de Oliveira nos diurna explicação fundamental: “o caboclo pode Nos arredores rastejam as bestas. — Na sua linguagem, ‘bestas’ queri' dizer
ser visto ainda como o resultado da interiorização do mundo do branco pelo ‘índios’”, lindem, p. 72. Referindo-se a Judite, que fora raptada pelos índios
Tiikuna, dividida que está sua consciência cm duas: uma voltada para os seus Gorotirc c que conseguiu escapar graças à ajuda de Utira, um índio Juruna, também
ancestrais, outra para os poderosos homens que os circundam. O caboclo c, assim, prisioneiro, o autor comenta: “Judite, porém, logo se esqueceu de seu sa.vador:
o Tiikuna vendo-se a si mesmo com os olhos do branco; isto é, como intruso, sendo índio, afinal, ele não passava de um bicho ...” Ibidem, p. 90.
168 0 TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 169

Cinta Larga: de avião, em vôos rasantes, foram jogadas dinamites plantações e, desse modo, rouba alimento dos índics. Aliás, a vaca
sobre a aldeia, ac mesmo tempo que uma metralhadora era dispa­ não possui um lugar no cosmo Bororo34.
rada sobre os índios que corriam em pânico. Os atacantes voltaram Juruna, um índio xavante, entende mesmo que, no rio das
por terra e metralharam outro grupo de índios acampados à bei­ Mortes, foram os índios que atraíram e amansaram os brancos:
ra de um rio. Ouvindo um choro abafado de criança, voltaram e “Deu muito trabalho atrair branco. Branco sempre com medo. Foi
encontraram, sob dois corpos crivados de bala, a mãe viva e uma uma luta amansar branco. Branco matou muito índio, até Xavante
garotinha. Enquanto violentavam a mulher, que matariam depois, poder amansar branco”33. Mesmo amansado, o branco permane­
com um tiro estouraram os miolos da menina que tentara socorrer ce excluído do mundo xavante. Em seu excelente estudo sobre
a mãe30. Isso depois do principal responsável pela firma ter dito esses índios, Aracy Lopes da Silva sublinha que o dualismo de seu
diante de testemunhas: “Estes parasitas destes índios sem-vergo­ pensamento e de sua organização social se expressa na classifica­
nha ... Já é tempo de acabar com eles, de liqüidar com eles ... (...). ção de “nós” e “eles”. As cisões internas “dão lugar ao surgimento
Vamos liqüidar com estes vagabundos.” Os Kayapó, no final dos de uma consciência que se expressa na concepção de um ‘nós’
anos cinqüenta, eram considerados bichos pelos seringueiros e sempre ampliado” que, em certas circunstâncias, “extravasa os
pelos donos dos seringais e tratados com repugnância31. limites do mundo xavante e passa a incluir os outros índios”.
O que se conhece de como os próprios índios de diferentes Trata-se de uma cultura em que há “a necessidade lógica dos
tribos viram e interpretaram a chegada dos brancos e a invasão de muitos ‘outros’ com que, nas sociedades Jê, se constrói a noção de
seus territórios por eles é igualmente sugestivo. Quando os Suruí pessoa e de identidade individual ...”. E conclui que “à falta do
de Rondônia se viram pela primeira vez frente a frente com um branco, ou melhor, à falta de meios para enfrentar o branco (...) ele
grupo de brancos, o assustado cacique a estes se dirigiu dizendo: seja substituído pela onça: igualmente outro, elemento da nature­
“Branco, eu te amanso!” 32 Várias tribos se designam a si mesmas za, assim como o branco excluído do universo cultural xavante”36.
como gente, para diferençar-se dos outros humanos. E o caso dos Para o índio o avanço da frente de expansão não repercute apenas
mesmos Suruí, que, em sua língua, se chamam a si mesmos de por colocá-lo diante de uma humanidade diferente, a dos civiliza­
paiter, isto é a gente (nós mesmos) “em detrimento de outros, que dos. Repercute nos rearranjos espaciais de seus territonos e nas suas
não seriam humanos”33. Nas concepções dos Bororo, do Mato relações com outras tribos, sobretudo as inimigas. Ess:.s mudanças
Grosso, os civilizados estão na mesma categoria dos seres malé­ resultam em muitas perdas, não só do território, mas também de
ficos e mortais, isto é, são semelhantes, mas não idênticos, às co­ vidas e de elementos culturais. Os Asurini do Xingu não só estavam
bras venenosas, aos inimigos e aos espíritos maléficos, designados sendo acossados pelos civilizados desde o século passado, como
por Bope (isto é, coisa ruim). Em suas concepções, o gado bovino é
reconhecido como companheiro dos civilizados porque destrói
34 C f Renate B. Viertler, “A Vaca Louca: Tendências do Processo de Mudança
Sócio-Cultural entre os Bororo-MT”, in Revista de Antropologia, vol. 33, Universi­
30 Cf. Darcy Ribeiro, Os índios e a Civilização, cic., p. 189-90. dade de São Paulo, 1990, p. 19-32.
31 C f Carlos de Araújo Moreira Neto, “Relatório sobre a Situação Atual dos índios 33 C f Edilson Martins, Nossos índios, Nossos Mortos, Editora Codecri, Rio de Janeiro,
Kayapó”, in Revista de Antropologia, vol. 7, n.“ 1 e 2, Universidade de São Paulo, 1978, p. 208. Darcy Ribeiro registra que os Xokleng, do sul do Brasil, também
junho e dezembro de 1959, p. 49-64; cf, também, Père Caron, Curé d'indiens, acreditavam que eles é que haviam “amansado” os brancos. C f Darcy Ribeiro, Os
Union Générale d’Editions, Paris, 1971, p. 30. índios e a Civilização, cit., p. 368.
32 Informação pessoa! de Betty Mindlin. 30 C f Aracy Lopes da Silva, Nomes e Amigos: da Prática Xavante a uma Reflexão sobre
33 C f Betty Mindlin, Nos, Paiter — Os Suruí de Rondônia, Voz.cs, Pctrópolis, 1985, p. osjê, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Univc-sidade de São
99.
Paulo, São Paulo, 1986, p. 55 c 257-8.
170 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 1 71

também por tribos vizinhas e inimigas que os atacaram várias vezes condição de escravos. Sem contar complicados arranjos e relacio­
e os forçaram a deslocar-se em diferentes ocasiões. Foram expulsos namentos entre tribos indígenas para efetivar um comércio primi­
do Ipixuna pelos Araweté, que por sua vez estavam sendo atacados tivo de ferramentas produzidas pelos civilizados38.
pelos Kayapó-Xikrin e pelos Parakanan. No Ipixuna cultivavam Os estudos de Gallois sobre esse povo mostram uma complexa
setenta e seis variedades de plantas, “mas, devido à retirada preci­ e surpreendente teia de relacionamentos entre diferentes grupos
pitada que efetuaram quando foram atacados pelos Araweté, só con­ indígenas, incluindo um grupo de ex-escravos negros fugidos das
duziram quarenta e seis, e destas estão cultivando apenas onze”37. fazendas da Guiana francesa e retribalizados, para fazer circular
Muito antes da linha fronteiriça definir o limite da presença do esses produtos entre eles. Um comércio inteiramente extraccpi-
civilizado num território deterrriinado, a frente de expansão já se talista e, até se poderia dizer, extracomercial porque inteiramen­
expande indiretamente empurrando os grupos indígenas mais te estranho aos princípios e realidades econômicos em que esses
próximos para territórios de seus vizinhos mais distantes. No geral, produtos foram gerados. Sobretudo porque nesse mundo indígena
tem decorrido daí guerras intertribais e até o extermínio de algu­ e tribal tais mercadorias estão separadas de seu mundo de origem
mas populações indígenas por parte de outros grupos indígenas. A por uma nítida fronteira social e cultural e por uma lógica de
escassez de estudos que combinem a etno-história coih a história circulação de produtos inteiramente diversa, distante de qualquer
dificulta uma visão ampla desse imenso e múltiplo conflito que se concepção de equivalência. Isso fica claro na destruição de bens
dá além da fronteira, que se mostra, assim, além do mais,fronteira até caros, procedentes dos civilizados, por ocasião dos rituais
da História, como resultado da histórica expansão da sociedade fúnebres dos respectivos donos, em diferentes tribos39. A mer­
civilizada. cadoria é apenas adicionada à cultura tribal, mas não incorporada
Os preciosos estudos de Dominique Gallois sobre o povo Waiã- segundo sua implícita lógica mercantil e acumulacionista. Prova­
pi, que vive hoje na fronteira com a Guiana francesa, são justamen­ velmente, porque a mercadoria só pode sê-lo se conservar o valor
te indicativos da importância que tais estudos podem ter para de uso, que se manifesta nas circunstâncias inclusive culturais em
melhor compreensão dos aspectos propriamente dramáticos da que é usada. Enquanto o branco põe a ênfase de sua relação com a
expansão da fronteira. Desde o final do século XVII e início do mercadoria no valor de troca, mesmo quando a usa (e já não tem
século XVIII, os Waiãpi vêm migrando em direção ao norte e à
Guiana. Deslocaram-se fugindo, empurrados pelos brancos, desde
o rio Xingu. Atravessaram o rio Amazonas e se localizaram na
Cf. Dominique T. Gallois, Migração, Guam e Comércio: os Waiãpi na Guiana,
região do rio Jari, avançando, depois, em direção às suas cabecei­ Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade dc São Paulo,
ras. Nessa lenta migração de cerca de trezentos anos, há muitos (Antropologia 15), São Paulo, 1986; Dominique Tilkin Gallois, Mairi Revisitaria —
episódios de guerra com outras tribos cujos territórios estavam A Reintegração da Fortaleza de Macapá na Tradição Oral dos Waiãpi, Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e Núcleo dc História Indígena ; do
invadindo. Como há episódios de cooptação pelos civilizados para Indigcnismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993. Lux Vidal já havia
que se empregassem na caça de outros índios para reduzi-los à estudado a relação entre mito c História no caso dos Kayapó-Xikrin. Cf. Lux Vidal,
Morte e Vida de uma Sociedade Indígena Brasileira (Os Kayapó-Xikrin do Rio Ca!eté),
Editora Hucitcc/Editora da Universidade dc São Paulo, São Paulo, 1977.
39 Em relação aos índios Suruí, Mindlin observou que, quando morre algum deles,
37 Cf. Expedito Arnaud, O Índio e a Expansão Nacional, Edições Cejup, Belém, 1989, queimam as respectivas posses, inclusive vitrola, rádio, gravador, bicicleta, roupas,
p. 353. Ocorrências parecidas se deram no território do atual Estado dc Rondônia. animais dc criação. Cf. Bctty Mindlin, Nós, Pailer, cit., p. 146. Também os T e ena
Empurrados pelos brancos para as serras c cabeceiras dos rios, diferentes grupos destroem os bens dos mortos. Cf. Roberto Cardoso dc Oliveira, Do índio ao Bugre
indígenas entraram cm conflito entre si. Cf. Mauro Leonel, Etnodicêia Uméu-Au- (O Processo de Assimilação dos Terêtta), 2.“ edição, Livraria Francisco Alves Editora
Au, Editora da Universidade dc São Paulo, São Paulo, 1995, passim. S.A., Rio dc Janeiro, 1976, p. 106.
172 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 173

valor de troca), o índio põe a ênfase no valor de uso e numa Grosso, em relação aos seus mais perigosos inimigos, cs Kayapó. A
concepção de uso que anula o “pecado original” da troca. mais intensa aproximação da frente de expansão de seu território
Diversas tribos indígenas contatadas no período recente foram coincidia com o fato de que “os K-nyapó não somente avançam em
surpreendidas migrando lentamente, por longas distâncias, para o direção ao Araguaia para acabar com os sertanejos e suas casas.
inçerior do país em conseqüência de pressões anteriores da frente Marcham para o sul atacando Tampiitaua”, a aldeia tapirapé43. O
de expansão, diretamente sobre elas ou sobre seus vizinhos: os encontro, portanto, para esses grupos, se deu em momentos dra­
Tapirapé se fixaram no Mato Grosso após um longo percurso a máticos, acrescentando um inimigo de certo mode inesperado
partir do Maranhão; os Xavante estão agora encurralados no Mato aos inimigos conhecidos. Compreende-se que várias dessas tribos
Grosso, entre fazendas de gado e lavouras de camponeses pobres, tenham aceito e até procurado a sujeição aos brancos. E tenham
mas procedem de Goiás e da Bahia40. Há mesmo casos de tribos imediatamente se disposto a colaborar na atração e contato de tri­
originárias de um ambiente ecológico específico que, em conse­ bos inimigas. Freqüentes vezes, no fundo, os índios imaginaram
qüência dessas migrações, deslocaram-se para ambientes comple­ que estavam envolvendo os civilizados em seus próprios conflitos.
tamente diferentes, o que as obrigou, em alguns casos com sucesso Só recentemente diferentes grupos indígenas se deram conta do
e em outros sem sucesso, a reelaborarem sua relação com a nature­ que estava de fato acontecendo e passaram a se aliar a seus antigos
za, sua cultura e suas concepções: os Iranxe, originários da região inimigos para enfrentar os brancos. Esse é certamente um dos
de mata, onde haviam elaborado “sua experiência histórica de aspectos novos da expansão da fronteira no Brasil. E outro aspecto
vida”, foram deslocados para o cerrado, onde se adaptam mal; já os novo e fundamental é que populações indígenas têm pressionado
Kayapó foram empurrados do cerrado para a floresta e levaram os brancos, com êxito, no sentido da expansão das fronteiras de
mais de cem anos para se adaptarem ao novo ambiente e produ­ seus territórios de confmamento, como se tem dado com os Kaya­
zirem conhecimentos a ele adequados41*. pó; ou reocupando fazendas abertas em seus antigos territórios,
Em vários casos, a chegada dos civilizados se deu praticamente inclusive instalações, como ocorre com os Xavante.
no mesmo período de confrontos devastadores entre diferentes Esse cenário de conflito não se desenha necessariamente sobre
tribos. Há pouco menos de meio século, um etnólogo relatava o o imaginário de um território aberto e ilimitado. L u x \ idal, no seu
estado de pânico que se apossara dos índios Tapirapé, do Mato minucioso estudo sobre os Kayapó-Xikrin, relata que eles “reco­
nhecem dois pontos cardeais: leste e oeste”. E que, em oposição
ao leste, que é bem definido, por ser o lugar de suc origem e de
40 Devo essa informação a Hiparidi Dzutsi Wa Top Tiro, índio xavante matriculado origem de seus mitos, “o oeste é simplesmente um ponto de re­
como aluno especial no curso dc graduação em Ciências Sociais da Faculdade de ferência convencional de delimitação do espaço (...) mas, não de­
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade dc São Paulo, c Luís
finido, ninguém poderia situá-lo. Segundo os índios ‘é o fim do
Roberto de Paula, aluno do mesmo curso que, como bolsista dc iniciação científica,
está fazendo estudos sobre os índios Xerente, de Goiás, parentes dos Xavante. mundo’”. É também o lugar da noite perpétua43. Segundo Gallois,
Giacearia & Heide constataram que no século XVIII os Xavante já sc encontravam
em Goiás, há mais de mil quilômetros do mar. Mas notaram também que os velhos
xavante dizem que sua tribo proveio “do Oriente, do mar”. Esses mesmos autores
assinalaram que os xavante “têm uma lembrança muito viva do mar que sc 42 Cf. Herbert Ealdus, Tapirapé — Tribo Tupi no Brasil Central, Ccmpanhia Editora
encontra em algumas dc suas lendas”. Cf. Bartolomcu Giacearia & Adalberto Nacional/Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1970, p. 49. No mesmo
Heide, Xavante (Auwe Uptabi: Povo Autêntico), Editorial Dom Bosco, São Paulo, ano do relato de Baldus, os Tapirapé foram de fato atacados pelos Kayapó. Cf.
1972, p. 13-4. Charles Waglcy, Welcome o f Tears (The Tapirapé Indians o f Centre! Brazil), Oxford
41 Cf. Darci Luiz Pivctta, Iranxe: Luta pelo Território Expropriado, l.il'MT — Editora University Press, New York, 1977, p. 31.
Universitária, Cuiabá, 1993, p. 19 c 39-47.
45 Lux Vidal, ob. cit., p. 18 c 21.
174 0 TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 175

também os Waiãpi, no mito em que se referem ao lugar Mairi, A dinâmica da frente de expansão não se situa num único
mencionam que ali está o buraco do final da terra. Na sua recons­ mecanismo de deslocamento demográfico. Tradicionalmente, a
tituição da relação entre mito e História, Gallois descobriu que frente de expansão se movia e excepcionalmente ainda se move,
Mairi é a cidade de Almeirim, antiga localidade de referência, em raros lugares, em conseqüência de características próprias da
embora distante, da fortaleza de Macapá, construída pelos portu­ agricultura de roça. Trata-se de um deslocamento lento regulado
gueses no período colonial. Há nessa fortaleza o que parece ser um pela prática da combinação de períodos de cultivo e períodos de
calabouço em forma de poço. Um índio conhecedor do mito, ao pousio da terra. Depois de um número variável de anos de cultivo
visitar a fortaleza pela primeira vez, disse: “Quando conheci a do terreno, os agricultores se deslocam para um novo terreno.
fortaleza, reconheci o lugar”. O “buraco do final da terra” era o Onde essa prática é mais típica, como o Maranhão, o deslocamento
lugar onde “jogavam as pessoas”. De qualquer modo, ali efeti­ se dá no interior de um território de referência ao redor de um
vamente termina a terra, como terminava a vida; depois dali é o centro, de um povoado. Quando a roça fica distante do centro, a
oceano44. tendência é a criação de um novo centro, ao redor do qual os
lavradores abrem suas roças segundo critérios de precedência e
A disputa pela concepção de destino na situação de fronteira antigüidade dos moradores e segundo concepções de direito mui­
to elaboradas, isto é, quem tem direito de abrir roça onde, por
Quem conhece a fronteira sabe perfeitamente que nela, de exemplo. Desse modo, a fronteira se expande em direção à mata,
fato, essas “faixas” se mesclam, se interpenetram, pondo em incorporando-a à pequena agricultura familiar.
; contato conflitivo populações cujos antagonismos incluem o de­ A tendência observada até agora é a da aceleração do desloca­
sencontro dos tempos históricos em que vivem. A recente expan- mento da frente de expansão, ou mesmo seu fechamento, em
são da fronteira mostrou isso de maneira muito clara. Práticas de decorrência da invasão das terras camponesas por grileiros, espe­
. .^violência nas re)ações_de_trabalho, como a escravidão por dívTHiU culadores, grandes proprietários e empresas46. Quando não inte­
Y^ífpróprias da história da frente de expansão, são adotadas^sem grados no mercado de trabalho, os camponeses eram e são expulsos
difirnldade por modernas empresas da frente pioneira. Pobres de suas terras e empurrados para “fora” da fronteira econômica ou
f t . >povoados camponeses da frente de expansão, permanecem ao para “dentro” como assalariados sazonais. Se encontram terras li­
lado de fazendas de grandes grupos econômicos, equipadas com o vres mais adiante, continuam a tendência migratória, mesmo que
que de mais moderno existe em<ecnologia. Missionários católicos para pontos mais distantes. E notável a circulação de informações
e protestantes, identificados com as orientações teológicas moder­ sobre terras livres ou presumivelmente livres, entre camponeses,
nas da Teologia da Libertação encontram lugar em suas celebra­ centenas de quilômetros adiante. A teia de relações de parentesco
ções para as concepções religiosas tradicionalistas do catolicismo
rústico, próprio da frente de expansão*43.
agente da frente pioneira. O grupo dc seringueiros era remanescente dc conflito
com os índios da região c tentava reocupar, décadas depois, a terra defendida pelos
44 Dominiquc Tilkin Gallois, Mairi Revisitaria, cit., p. 17. \ índios. Era agente da frente dc expansão. Cf. Ayrcs Câmara Cunha, ob. cit., 1974,
43/ Uma emblemática indicação da interpenetração da frente pioneira com a frente de p. 28-9.
/ expansão se deu cm 1951. Dois funcionários da Fundação Brasil Central desceram 4(' Hébcttc constatou que a fronteira no Paraná c no Mato Grosso, ocupada nos anos
I o rio Arinos cm direção ao rio Jurucna de carona num batelão de um pequeno grupo cinquenta e sessenta, fechou-se em quinze anos. Em Rondônia, o fechamento se
1 dc seringueiros que ia tentar reabrir seringais na confluência dos dois rios. Um dos i deu cm cinco anos. Cf. Jean Hébcttc, Relatório rio Seminário sobre Fronteira Agrícola,
1 funcionários era remanescente da Expedição Roncador-Xingu, que percorrera esse j cit., p. 7. Sobre a intensificação do ritmo das expulsões dos camponeses na região
j trajeto demarcando locais para futuras cidades, na Marcha para Oeste. Era um / do Xingu, cf. Marianne Schmink & Charles H. Wood, ob. cit., p. 220.
176 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 177

e de compadrio se encarrega de difundir as informações sobre a um ponto ou ao longo de uma rota de referência. Quando a pressão
localização de novas cerras que ainda podem ser ocupadas. O que se combina com a falta de alternativa, surge o conflito, como
é facilitado pelo lento deslocar de fragmentos de grupos familiares ocorreu em vários pontos do sul do Pará49*.A história recente das
desses camponeses. Embora tendencialmente migrem em família lutas camponesas no Brasil tem, aliás,, mostrado abundantemente
e até em grupo4', há uma rede familiar mais extensa e viva que que mesmo quando não se configura a falta de alternativas, os
constitui a referência nesse movimento. Em cada etapa do deslo­ camponeses ameaçados optam pela luta pela terra, pelo questio­
camento, os membros da família, os compadres, os antigos vizi­ na nim m jejados supostos direitos dos alegados propr etários seja
nhos já chegados acolhem os que vêm depois e serão acolhidos da própria legitimidade desses direitos. As diferentes modalida­
mais adiante pelos que se foram antes4748. A verdadeira estrutura des de acomodação desses conflitos por parte do Estado, com as
social de referência das populações camponesas da fronteira não é desapropriações de terras para reforma agrária, até preventiva­
a local e visível. Ela se espalha por um amplo território, num raio mente nos casos de probabilidade de tensão social, mostram que
de centenas de quilômetros, e é uma espécie de estrutura migran­ os trabalhadores rurais, ainda que por via indireta, conseguiram
te, uma estrutura social intensamente mediada pela migração abrir uma alternativa poderosa e, em grande parte sua, numa si­
e pela ocupação temporária, ainda que duradoura, de pontos do tuação de aparente falta de alternativas30.
espaço percorrido. Os estudos sociológicos que tomam como re­ São eles, por isso, agentes característicos da frente d e expansão,
ferência uma localidade específica não apanham a realidade social embora não sejam os únicos nem necessariamente os decisivos.
mais profunda que dá sentido à existência dessa espécie de socie­
dade transumante.
44 Jean Hébette, A Resistência dos Posseiros no Grande Carajás, Núcleo de Altos
Quando não há perspectiva de encontrar novas terras nem há Estudos Amazcnicos/Universidade Federal do Pará, s.d., (mimeo), o. 1-3.
perspectiva ou disposição de entrar na economia da miséria no in­ 50 ’ Em 1977, quando o conflito fundiário no sul do Pará mal se configurara, Ianni
terior da fronteira econômica, geralmente começa a luta pela ter­ chegou a prever que, diance da aliança entre o capital monopolista e o Estado, “o
campesinato pouquíssimo ou nada pode fazer. Cabe-lhe resignar-se ã destruição,
ra, o enfrentamento do grande proprietário e seus jagunços. Em buscar alguma exígua acomodação ou simplesmente proletarizar-se V Cf. Octavio
algumas regiões tem sido possível, nos últimos vinte anos, obser­ Ianni, A Luta pela Terra (História Social da Terra e da Luta pela Terra numa Area da
var a passagem das migrações espontâneas, decorrentes da satura­ Amazônia), Vozes, Petrópolis, 1978, p. 131. No entanto, os camponeses da mesma
ção dá terra, para as migrações forçadas pelas expulsões violentas região que ele estudou e das regiões vizinhas, ao longo destes últimos vinte anos,
em vez de sucumbirem ou de se renderím, vêm demonstrando uma persistente
da terra. E observar, neste último caso, que mesmo aí os campone­ capacidade de resistência à violência dos grandes proprietários de terra. Cf. Ricardo
ses migram para não muito longe, como que circulando ao redor de Rezende Figueira, A Justiça do Lobo (Posseiros e Padres do Araguaia), Vozes,
Petrópolis, 1986; e Rio Maria (Canto da Terra), Vozes, Petrópolis, 1992; c, ainda,
Alfredo Wagner B...de-Almeyda^GE7)17', Segurança Ngrintuzl e n RaÁmramentn do
Fader Reeionaj Rio de laneiro, setembro 1980, p. 14. Detalhes dessa resistência na
47 H ébette etalii, no seu detalhado relatório sobre a fronteira, assinalam, no início dos região de Marabá se encontram em Jean Hébette, A Resistência dc: Posseiros no
anos setenta, a migração de grupos numerosos do norte do Espírito Santo e do sul Grande Carajás, cit. Do mesmo modo, catastróficas previsões sobre o fim de grupos
da Bahia, cm decorrência do esgotamento do solos c da expansão das famílias, para indígenas, apesar de graves elevações nos índices dc mortalidade e graves efeitos
o médio Tocantins. Um desses grupos era constituído dc cerca de duzentas pes­ destribalizadores do contato, não se confirmaram por inteiro. Ao contrário, têm sido
soas lideradas por um fazendeiro e seus agregados. Cf. Jean Hébette etalii, Área de vários os casos de vigoroso renascimento dc tribos que haviam sido consideradas
Fronteira em Conflitos — o Leste do Médio Tocantins, Núcleo de Altos Estudos poucos anos antes cm estado terminal. Foi o caso dos índios ParXatejê do Pará.
Amazônicos/Universidade Federal do Pará, Belém, 1983, p. 25-28 (mimeo). Sobre esse caso, cf. Iara Ferraz, Os Parkatçjê das Matas do Tocantins: a Epopéia de
48 Cf. Francisca Isabel Vieira Kellcr, “O Homem da Frente dc Expansão: Permanên­ um Líder Timbira, dissertação dc mestrado, Departamento de Ciências Sociais,
cia, Mudança e Conflito”, in Revista de História, vol. LI, n". 102, ano XXVI, abril- FFLCH/USP, São Paulo, 1983. E foi também o caso mais recente dos Waimiri-
junho 1975, p. 674. Atruahi, no Amazonas.
178 0 TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 179

Por isso, violam a linha da fronteira demográfica e avançam sobre sentido, porque os donos de seringais e castanhais eram meros
territórios que são sempre territórios tribais, isto é, territórios de posseiros ou foreiros que haviam arrendado suas terras do Estado.
algum modo incluídos no circuito de perambulação de algum Portanto, a partir desse momento, a frente de expansão ficou
grupo tribal. Além das situações de conflito com as populações caracterizada como uma frente demográfica de populações cam­
indígenas que procuram resistir a esse avanço, há também as ponesas e pobres residualmente vinculadas ao mercado. Em vez
situações de fuga dos mesmos indígenas, que se deslocam mais de estagnar, continuou crescendo e se expandindo pela chegada
para o interior à procura de novos espaços, geralmente à custa de contínua de novos camponeses sem terra originários sobretudo
graves conflitos entre as próprias populações indígenas, de tribos do Nordeste, no caso da Amazônia, que foram ocupando as terras
diferentes ou até do mesmo grupo indígena (como tem ocorrido real ou supostamente livres da região.
. entre facções da grande, nação Kayapó). Uma característica importante da frente de expansão em todo o
jtj. O conjunto da informação histórica que hoje se tem sobre a país, para datá-la historicamente, é que quando se deslocavam
frente de expansão e a frente pioneira sugere que a primeira foi a juntos ricos e pobres, deslocavam-se com base nos direitos assegu-
iforma característica de ocupação do território durantd longo perío­ rados pelo regime sesmarial. Embora o regime de sesmarias tènhà
do. ^Começqu^ijecJjnar^mm^hanradaJvIardm paraOeste, em cessado às vésperas da Independência e só tenha sido substituído
1943, e a intervenção direta do Estado para acelerar o deslocamen­ por um novo regime fundiário com a Lei de Terras de 1850, ele
to dos típicos agentes da frente pioneira sobre territórios novos, continuou norteando as concepções de direito à terra de ricos e
em geral.lá ocupados por aqueles que haviam se deslocadTcõffTã pobres e, em muitos casos, norteia até agora. t
-frente de expansão. Tipicamente, a frente de expansão foi consti­ Ainda hoje, quando um posseiro da Amazônia justifica seu
tuída de populações.dcaS-e_,Ppbres que se deilocavam em busca direito à terra, cie o faz invocando o direito que teria sido gerado
'de terras novas para desenvolver suas atividades econômicas: fa- pelo trabalho na terra. Ao mesmo tempo, reclama e proclama que
zendeiros de gado, como ocorreu na ocupação das pastagens do seu direito está referido aos frutos de seu trabalho, que por serem
•Maranhão por criadores originários do Piauí; seringueiros e cas­ seus está no direito de cedê-los ou vendê-los. A concepção de que
tanheiros que se deslocaram para vários pontos da Amazônia. E é preciso ocupar a terra com trabalho (na derrubada da mata e no
mesmo agricultores. Levaram consigo seus trabalhadores, agre­ seu cultivo) antes de obter reconhecimento de direito, era próprio
gados -sujeitos-a~-formas-.de, dominação pessoal e de exploração do regime sesmarial. Do mesmo modo, a concepção de que o
apoiadas no endividamento e na coação. ' trabalho gera direito de propriedade sobre os frutos do trabalho
Quando a economia da borracha entrou em crise e decadência também era própria desse regime fundiário. Nele, o domínio estava
aí por 1910, muitos desses empreendimentos extrativos, que eram separado da posse. O domínio era da Coroa. Quando, por acaso, o
essencialmente comerciais e não agrícolas, simplesmente encerra­ sesmeiro deixasse de cultivar a terra ou de obter dela frutos para
ram suas atividades. Ficaram para trás os trabalhadores, dedicados pagar tributos, a terra se tornava devoluta (ou realenga, como
à própria subsistência e comercialização de excedentes em peque­ então se dizia, isto é pertencente ao rei). Podia por isso ser
na escala. Essencialmente, houve um refluxo da economia, èx- novamente distribuída pelo representante da Coroa, bastando que
presso diretamente no retorno a uma economia baseada na produção alguém a ocupasse e, depois, a requeresse, como ocorreu freqüen-
direta dos meios de vida por parte dos trabalhadores31. Isso tinha51 . temente. Do mesmo modo, a casa de um agregado construída em
terras de sesmaria ou data de outrem, bem como suas roças e
cultivos, não sendo ele escravo, lhe pertenciam legalmente, sendo
51 Cf. Octavio Ianni, cit., csp. p. 64. a relação com o sesmeiro apenas relação de enfiteuse. Portanto, o
180 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 181

trabalho de fato gerava direito sobre bens produzidos e sobre a A eaíiiiLde 1943, a frente pioneira que, em outras regiões se
terra beneficiada ou, melhor, sobre o benefício incorporado à terra, movia impulsionada pelos interesses imobiliários do grande capi-
como era o caso do desmatamento. ral, das empresas ferroviárias e da grande agricultura c e exporta
E comum encontrar-se nos arquivos documentos de transferên­ ção, como o café, no Sudeste, na Amazônia passa a depender da
cia da propriedade de uma casa a um terceiro, construída em terras iniciativa do govemõTEcierãl. Ela se torna a forma característica de
de um segundo, que apenas recebia o laudêmio, um tributo quase ocupação das novas terras. Os grandes episódios desse impulso
simbólico de reconhecimento do seu senhorio e não de sua pro­ foram a Expedição Roncador—Xingu e a Fundação Brasil Cen­
priedade (já que o proprietário eminente era o rei). A Lei de T er­ tral, ambas oficiais, nos anos quarenta; a construção da rodovia
ras de 1850 é que juntaria num único direito, o de propriedade Belém—Brasília, nos anos cinqüenta; e, finalmente, a política de
(mantendo, porém, separados os conceitos), a posse e o domínio. incentivos fiscais da ditadura militar a partir dos anos sessenta33.
O vocabulário e o imaginário monárquicos, ainda tão fortes nas A política de incentivos, ao subsidiar a formação do capital das
frentes de expansão, não são devidos unicamente a arcaísmos empresas amazônicas^ dando-lhes assim~umã_comnensacão pela
religiosos, mas também a uma concepção de direito muito próxima imobilização improdutiva de capital na aquisição de terras para
dos pobres: a dos direitos (de uso) gerados pelo trabalho em abemira. das tazendas (ondeera esse o caso), promoveu a aliança
oposição aos direitos (de propriedade) gerados pelo dinheiro52*. entre os grandes proprietários de terra e o grande capital.
Nesse quadro, o deslocamento da frente pioneira sobre as terras
já ocupadas pela frente de expansão foi acelerado54 e deu à super-
52 Diferentes pesquisadores têm assinalado conflitos fundiários em áreas em que
ainda prevalecem concepções relativas ao que se chamava, no período colonial,
terras do comum uso público ou, simplesmente, terras do comum; terras de locais em
que as autoridades não podiam conceder datas ou sesmarias. Não eram, propria­ interstícios dos amplos latifúndios”. Cf. Fernando Henrique Cardosc, “A Fome e
mente, terras comunais, mas terras destinadas expressamente pelas câmaras ou a Crença (sobre ‘Os Parceiros do Rio Bonito’)”, in Celso Lafer et alii, Esboço de
pela Coroa ao uso comum dos moradores, quando coubesse. Houve áreas em que Figura (Homenagem a Antonio Cândido), Livraria Duas Cidades, São P_uio, 1979, p.
as terras do comum eram destinadas cspccialmcnte aos animais dos tropeiros, como 92. Além das terras do comum ainda na posse de lavradores que se crêem com
houve áreas que eram destinadas seja à agricultura seja à coleta de produtos direito a seu uso com base no costume, há no Brasil terras legalmente . -i,suscetíveis
vegetais por parte dos que não tivessem outros meios de fazê-lo. Em relação à de apropriação privada, como as terras de marinha e as terras do Distrito Federal,
sobrevivência dessa instituição, cf. Maristela Andrade, Gaúchos no Sertão, Comissão que, devido ao desmantelamento das instituições relativas às terras do comum,
Pastoral da Terra, São Luís (MA), maio de 1981, esp. p. 8-10; Alfredo Wagner estão geralmente na posse de moradores ricos por óbvias razões políticas. Nessas
Berno de Almeida, “Terras de Preto, Terras de Santo, Terras de índio — Uso terras, o Estado ainda mantém o domínio, como ocorria no regime sesmarial.
Comum e Conflito”, in Edna M. Ramos de Castro & Jean Hébette (orgs.), Na 43 Já em meados dos anos setenta, dez anos após o início da política de incentivos
Trilha dos Grandes Projetos (Modernização e Conflito na Amazônia), Cadernos do fiscais, as grandes empresas davam-se conta de que o mercado internacional de
NAEA, Universidade Federal do Pará, Belém, 1989, p. 163-96. Sonia Lacerda, carne, que justificava a política dc transformação da floresta em pastagens, não
Eduardo Graziano e Margarida Maria Moura observaram no Jequitinhonha, em merecia os altos investimentos de seus empreendimentos. A mar. atenção das
Minas Gerais, o costume ancestral da posse em comum das terras de chapada, como fazendas pelos empresários só prosseguiu porque estava apoiada cm generosa
contrapartida e complemento da posse privada das grotas ou veredas. Cf. Sonia política dc subsídios e incentivos financeiros concedidos pelo geveno. Cf. Sue
Lacerda, Trabalho e Posse da Terra entre o Campesinato de Tunnalina, CPDA/UFRJ, Branford & Oriel Glock, The Last Frontier (Eighting over Land in th A nazon), Zed
Rio de Janeiro, 1983; E duardo Graziano, As Condições de Reprodução do Campesinato Books Ltd., London, 1985, p. 81.
no Vale do Jequitinhonha: o Processo de Transformação Atual, CPDA/UFRJ, Rio dc 54 Branford & Glock registram um dos aspectos dessa aceleração: entre '.940 e 1960,
Janeiro, 1982; Margarida Maria Moura, Os Deserdados da Terra (A Lógica Costumeira as famílias camponesas da fronteira podiam esperar ter de mover-se para uma nova
e Judicial dos Processos de Expulsão e Invasão da Terra Camponesa no Sertão de Minas terra apenas uma ou duas vezes em sua vida, incluindo aí o deslocamento provoca­
Gerais), Bertrand Brasil, Rio dc Janeiro, 1988, esp. p. 125 c ss. Esse mundo rústico, do pela exaustão do solo. Famílias que podiam prever uma ocupaçãc de terra por
dotado de lógica própria, sobrevive (e se recria) não só nas frentes de expansão, mas dez ou vinte anos têm sorte hoje se conseguem ficar em paz por dois ou três anos na
também “em bolsões de resistência (testemunhas vivas dc outra época) nos mesma terra sem ser expulsas. Cf. Sue Branford & Oriel Glock, ob. ci:., p. 123.
182 0 TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 183

posição dessas distintas frentes de ocupação territorial uma violen­ dades, orientações historicamente descompassadas, até propria­
ta dimensão conflitiva. Tornaram-se freqüentes e numerosos os mente no limite da História, introduz a mediação das relações
despejos violentos e dramáticos'de posseiros das terras que ocupa­ mais desenvolvidas e poderosas na definição do sentido das
vam. Com ou sem base em decisão judicial, os supostos donos, relações mais “atrasadas” e frágeis, ou melhor, das relações di­
muitas vezes apoiados em documentos falsos, têm conseguido ferentes, com outras datas e outros tempos históricos. A sobre­
com facilidade o reconhecimento de direitos indevidos. A acelera- posição da frente pioneira e da frente de expansão produz uma
ção do avanço da frente pioneira em diversas regiões adiantou-se à situação de contemporaneidade dessas relações de tempos dis­
própria frente de expansão e entrou diretamente em contato com tintos. E nela a mediação das relações..-majs des,en.yojvidas_iaz.
as populações indígenas. Se nos anos setenta, no Mato Grosso, a com que o atraso apareça, na verdade, como diferença. As rela-1
distinção entre as duas modalidades de ocupação territorial ainda ções mais avançadas, mais caracteristicamente capitalistãsTpõr
podia ser facilmente feita, o mesmo não se deu nos anos oitenta, exemplo,.não corroem nem destroem necessariamente as rela-
no Pará. Aqui os índios ainda em fase incipente de_ integração na ções^que carregam consigo a legitimidade de outras épocas. Por:
sociedade nacional combateram diretamente as grandes empresas tanto,, nesses casos, a diferença não tem sentido como passado,
modernas que se instalavam em sua região com grandes fazendas, mas como contradição e nela como um dos componentes do pos-
interditando-lhes o acesso às terras que pretendiam ocupar. Foi o sível, o possível histórico de uma sociedade diversificada, qpe,
que ocorreu especialmente com os Kayapó. No Mato Grosso, os ganha sua unidade na coexistência das diferenças sopjais e étni-,
Xgvante e os Bororo só reagiram contra os fazendeiros após passar ças. Seria mmiaingênuo imaginar que elas constituem uma re­
Üm certo tempo de sua pacificação. Especialmente os primeiros, ceita de tendências históricas.
atacando fazendas já instaladas em seus antigos territórios e reto- Isso não quer dizer, muito ao contrário, que o capital não
mando-as. estenda sobre o território da frente de expansão uma rede-de
Pnrém^n qvançn Ha frenrp. pioneira sobre a frente de expansão relações comerciais para nelas integrar os produtos da indústria
e a conflitiva coexistência de ambas é mais do que contraposição-- extrativa ou mesmo os produtos agrícolas, especialmente os que<
de riistintasjnorialidade.s de ocupação d o j:erritório^Ao coexis­ são típicos da subsistência regional, como a farinha de mandioca, o
tirem ambas na situação de fronteira, dão aos conflitos que ali se arroz etc. Ou, até, estenda seus vínculos diretamente às popula­
travam, entre grandes proprietários de terra e camponeses e entre ções indígenas acuadas, como têm feito as grandes empresas na
civilizados, sobretudo grandes proprietários, e índios, a dimensão extração de madeira e minérios nos últimos tempos. E isso não
de conflitos por distintas concepções de destino. E, portanto, transforma nem os camponeses nem os índios em típicos operários
dimensão de conflitos por distintos projetos históricos ou, ao de empresa capitalista. Isso não impede, também, que grandes
menos, por distintas versões e possibilidades do projeto histórico empresas, dotadas de organização empresarial e técnica moderna
que possa existir na mediação da referida situação de fronteira. e sofisticada, recorram à peonagem, isto é, à escravidão por dívida,
Essa situação de fronteira é um ponto de referência privilegiado sobretudo nas atividades de derrubada da mata e de implantação
para a pesquisa sociológica porque encerra maior riqueza de possi- de suas fazendas, o que é próprio dos seringais e castanhais da
Tdlidades hisróricas-ckuqne outras situações sociais. Em grande frente de expansão. Como não impede, ainda, que bolsões de
parte porque mais do que o confronto entre grupos sociais corrg populações indígenas e camponesas sobrevivam no interior da
mteresses_conflitivqs1..agrega-a_ess.g, ccmfliia .também~Í3~cònflito frente pioneira, ou mesmo em regiões de ocupação antiga, como
entre historicidades desencoruradas. ocorre no Nordeste e no Sul do país, ainda que num certo senti­
No meu modo de ver, o encontro de relações sociais, mentali­ do enclausuradas em terras de menor interesse econômico ou em
184 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 185

territórios demarcados. E que, a partir daí, se integrem marginal­ situação de fronteira se desfigura, aparecendo como etapa (e não
mente (ou não) no mercado de produtos agrícolas. como expressão de contradição), por exemplo, na expansão do
capital na Amazônia.
Sobrevivência e milenarismo no mundo residual No meu modo de ver, as re 1ações sq ç ia i[e de produção) n a J
da expansão capitalista frente de expansão são predominantemente relações não-capjtalis- -
tas de produção medi ad oras d a re qrqd uç ão capitalista do capital.
Justamente essa primeira constatação da diversidade das tem- Isso não.faz delas outro modo de produção. Apepas ir.dica. uma
dporalidades históricas na fronteira sugere a possibilidade de um insuficiente constituição dos mecanismos de_reprqdução capitalis­
^equívoco no uso das concepções de frente de expansão e frente ta na frente de expansão. Insuficiência que decorre de situações ^
pioneira como instrumentos de classificação e definição dessa em que a distância dos mercados e a precariedade .das vias e meios
,,realidade. Ainda que os geógrafos tenham acentuado a importân­ de comunicação comprometem a taxa de lucrpde eyçn;uais em-d
cia da urbanização, das modernas vias de comunicação, dos empre­ preendedores. Portanto, aí tendem a se desenvolver acividadess
endim entos econômicos modernos, da mentalidade moderna, econômicas em que não assumem forma nem realidade própria os
sugeriram com razão a precedência dos fatores econômicos no diferentes componentes da produção propriamente capitalista,
deslocamento da frente pioneira, o principal dos quais, sem dúvi­ como o salário, o capital e a renda da terra. Os meios de produção
da, a conversão da terra em mercadoria. Entretanto, os que incor­ ainda não aparecem na realidade da produção como capital nem
poraram a distinção entre frente de expansão e frente pioneira, a força de trabalho chega a se configurar na categoria salário. Por-
simplificadamente, como instrumentos de cl^sjficaçãp_e.,defmi-
ção da realidade da fronteira, transferiram, inclusive os críticos, a
precedência do econômico para a análise também da frente de agricultura camponesa”, bem diferentes entre si: a tese vulgar qus considera os
expansão55. Com isso, o que é próprio e característico dessa última35 excedentes comercializáveis da agricultura familiar como simples sobras da subsis­
tência camponesa e que concorrem diretamente para o baraceamente do custo da
vida da classe operária (essa tese está reconhecida desse modo em Leonarda
Musumeci, ob. cit., p. 287, e desse modo expressamente formulada por Otávio
35 Num desses estudos, o autor estima comparativamente o tempo de trabalho Guilherme Velho, Frentes de Expansão e Estrutura Agrária, cit., p. 125); e a tese
socialmente necessário para a produção do arroz cm regiões cm que essa produção oposta (equivocamente confundida pelos críticos com a tese vulgar) ca integração
se dá em distintas situações econômicas (cu diria, também, cm distintas situações da produção camponesa, através de uma economia de excedentes, no processodê
históricas), entre outras, a da agricultura camponesa da fronteira agrícola c a da reprodução do capital. [Essa é a tese que sustento: Cf. JostTde Souza Martins,
cultura arrozeira altamente capitalista c moderna tio Rio Grande do Sul. Constata “ModcrnizaçãõTrPrõblema Agrário no Estado de São Paulo”, in Revista do Instituto
que na fronteira é necessário o dobro ou pouco mais de dias de trabalho para a de Estudos Brasileiros, n.° 6, Universidade dc São Paulo, 1969, p. 121-45, “Moderni­
produção de uma tonelada do cereal, ao passo que o tempo médio fica próximo do zação Agrária c Industrialização no Brasil”, América Latina, ano 12, n.' 2, Centro
da fronteira. Essa constatação e o comportamento dos preços permitem ao autor Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, abril-junho
concluir que “em relação a produtos camponeses, os preços de mercado estão, cm de 1969, p. 3-16. Cf., também, CapitalismoeTradicionalismo, cit., esp. p. 1-50,57-72
última instância, regulados pelos valores respectivos”. (Cf. Francisco de Assis e 103-61; e, ainda, A Reforma Agrária e os Limites da Democracia na “Nova Repúbli­
Costa, “Valor e Preço, Exploração e Lucro da Produção Camponesa na Amazônia: ca”, Editora Hucitec, São Paulo, 1986, esp. cap. 8: “Pequena Produção Agrícola —
Crítica à Noção de Funcionalidade da Produção Familiar na Fronteira Agrícola”, in Antimito da Produção Capitalista no Campo (Crítica aos Críticos)”, p. 113-52.] O
■ Philippe Léna & Adélia Engrácia de Oliveira (orgs.), Amazônia — A Fronteira texto de Costa é indicativo de como alguns estudiosos, ao comparar padrões
Agrícola 20 Anos Depois, 2.“ edição, Edições Cejup, Belém, 1992, p. 181-3). A empresariais e padrões camponeses de produção, reduzem a lógica destes à lógica
intenção do autor é a de contestar a suposta tese da funcionalidade capitalista da daqueles. Desse tipo de interpretação desaparecem os componentes propriamente
agricultura familiar c camponesa, que, nos termos dc sua crítica, deixa dc atribuir históricos e antropológicos da vida do campesinato de fronteira, isto é, o : cujrróprio
a quem a forjou. Como Musumcci, o autor também não sc dá conta de que há. no. c característico cálculo, como se o camponês da fronteira fosse apenas um capitalis­
mínimo, duas teses doquejfoi .indcvidnmentc definido como “funcionalidadç_çla ta em miniatura.
1 86 0 TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 187 '

tanto, o produtor não tem como organizar sua produção de modo podem ser apropriadas lucrativamente pelo capital. Explico-meg
capitalista, segundo a racionalidade do capital. O capital só entra, tanto Monbeig quanto Waibel mostraram claramente que na fren­
só se configura, onde sua racionalidade é possível. te pioneira o capital se torna proprietário de terra, recria no teire-f
Se a frente pioneira se define_essencialmente pela presença do no os mecanismos da sua reprodução ampliada. Expande-se sobrei
capital na produção, o mesmo não ocorre, portanto, na frenie-d.e_ o território, de que se apossa como seu território. Essa expansão5"
'expansão, que não se constitui .pela precedência do que nós defí- territorial traz para a própria fronteira a infra-estrutura da repre-'
^nimos como econômico na constituição de seus modos de vida e da dução capitalista do capital: o mercado de produtos e de força de
mentalidade de seus agentes. Embora sua~~3inârnica resulte da trabalho e com ele as instituições que regulam o princípio da
3ação edos interesses do capital, combinados com as concepções contratiialidadc das relações sociais, que é o que caracteriza a sc-
próprias do camponês e mesmo do índio integrado36. - cicdade moderna. O mercado se constitui na mediação essencial
A frente de expansão tornou-se, no fundo, o mundo residual da que dá sentido ao processo de ocupação do território.
expansão capitalista, o que” está^alem do^erritóriTTcujâs terras A frente de expansão também é expansão de relações mercan-
jisTMãsTTíuma concepção inversa à da_exEfLnsã° da produção
prqpiiainjen.fèfcãpitá|rsta7 As relações que na história Ba fronteira
56 A frente de expansão é essencialmente um mundo criado pelo modo como se dã a no Brasil têm precedido o avanço da frente pioneira propriamen­
inserção dos "trabalhydõrés" rurais, que produzem, diretamente seus meios de vida,
no processo de reprodução ampliada do capital. N esse mundo, apesar da determi- te dita não se caracterizam pela ação do empreendedor que expan­
__>nação capitalista de suas relações sociais, as concepções e valores precedam, na de a reprodução capitalista do capital no território novo. Antevsua
vida de seus membros, os interesses econômicos e a eles~se sobrepõem. Cf. José de ação é no sentido jde estender as relações mercantis além dos
Souza Martins, “Modernização Agrária e Industrialização no Brasil”, América Lati­
na, ano 12, n.° 2, Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, Rio
li mi tes dq terri tório^pmpriamen te incorporado na reprodução ca-
de Janeiro, abril-junho de 1969, p. 3-16 [reproduzido em José de Souza Martins, pitalista do capital. Há um limite além do qual não é possível''
Capitalismo e Tradirionalismo, cit., esp. p. 121. Essa formulação ganha sentido neste extrair renda capitalista da terra. Provavelmente por isso, os terri-;
entendimento mais amplo do problema: “Sob o capitalismo dependente, a persis­
tência de formas econômicas arcaicas nãò é uma função secundária e suplementar.
tórios sobre os quais se move a frente de expansão são claramente
A exploração dessas formas c sua combinação com outras, mais ou menos modernas marcados pela ausência da propriedade fundiária moderna, predo-.
e até ultramodernas, fazem parte do ‘cálculo capitalista’ do agente econômico minando a posse efetiva ou o aforamentq.JA teoria dafronteira é, no
privilegiado. Por fim, a unificação do todo não se dá (nem poderia dar-se) ao nível ímeu modo de ver, basicamente um desdobramento da teoria da expansão (
da produção”. (Cf. Florcstan Fernandes, Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento,
Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1968, p. 65). Embora trate de grupos rurais tra­ yerritorial do ca p ita lNovos terrenos sãõ ocupados de modo7apita~
dicionais localizados em regiões de ocupação antiga e não na frente de expansão, o /lista quando é possível extrair deles a renda capitalista da terra, ao
artigo de José César Gnaccarini sobre o casamento por rapto na área canavieira de menos a renda absoluta, isto é, quando é possível embutir nos;
São Paulo é um esclarecedor e bem feito estudo sobre o modo complexo como se
combinam as questões econômicas da sobrevivência com as questões sociais da
■preços dos produtos nela cultivados, além da renda territorial, ai.
convivência. Cf. José César A. Gnaccarini, “Organização do Trabalho e da Família taxa média de lucro do capital5657. Se a distância em relação ao^
em Grupos Marginais Rurais do Estado de São Paulo”, in Revista de Administração mercado a que o produto se destina implica transferir ao transpor­
de Empresas, vol. 11, n." 1, Fundação Gctúlio Vargas, Rio de Janeiro, março 1971, p.
te esse lucro, nenhum capitalista estará interessado em investir.’;
75-94. Ainda que por vias diversas, tanto a interpretação de Gnaccarini quanto a dc
Martins se fundam em Antonio Cândido, Os Parceiros do Rio Bonito (Estudo sobre o
Caipira Paulista e a Transformação de seus Meios de Vida), Livraria José Olympio ---------- ' • lí
Editora, Rio de Janeiro, 1964, esp. capítulo 17. A propósito desse livro e destacando 57 Ampla c detalhada formulação teórica sobre a expansão territorial do capital
justamente a questão da resistência (c da persistência cultural), Fernando Henri­ encontra-se cm Karl Msirx, E l Capital — Crítica de la Economia Política, Libro '
que Cardoso assinala: “Pois que de crença também se sobrevive.” Cf. Fernando Tcrccro, vol. VIII, trad. Lcón Mames, Siglo Veintciino Editores, México, 1981, p.
Henrique Cardoso, cit., p. 98. 791-1.034.
188 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 189

)em atividades econômicas geograficamente localizadas além de dutos que tanto são produzidos na frente de expansão cuanto na
/um certo limite38. Se o capitalista tiver de deduzir do seu lucro o frente pioneira e nas regiões antigas.
preço do transporte para fazer o produto chegar ao mercado e aí No Brasil, de modo geral, um desses produtos é o arroz. Até a
realizar o seu ganho, ele certamente haverá de considerar a alter­ uma certa distância do mercado consumidor, o arroz poderá ser
nativa de outros investimentos para seu capital.^.--------- - ----- produzido de modo empresarial, como ocorre nas grandes regiões
''~- 15Iern desse 11mífe7Fsta^íTrentellè^xpansão, mas não a frente arrozeiras do Sul, do Sudeste e do Céntro-Oeste. A partir desse
pjoneira. ]Por isso, a frente de expansão está mais próxTmã’da^\ limite, isto é, além da frente pioneira, não poderá ser produzido de
/ economia mercantil simples do que da economia capitalista e, ao J modo empresarial. A partir daí terá de ser produzido sem que
\mesmo tempo, está próxima da mera economia de subsistênciar€> produtor possa assegurar sua sobrevivência apenas com sua co ?
camponês produz aí seus próprios meios de vida, aíém dos exce­ mercializaçãojEm cõnsequèncraçTlíõbrevivênciã do agFicultoF
dentes comercializáveis. Ele não pode se inserir plenamente na {dependerá de que ele possa assegurar essa sobrevivência por
divisão social do trabalho que rege o conjunto da economia. Por­ dutros meios. Ele o faz organizando sua produção como uma
que, se o fizer, terá de se especializar, dedicar-se de preferência (atividade complementar da produção direta de seus meios de
aos produtos mais rentáveis naquela terra e naquele lugar. E .’vida. A isso chamo de economiajk excedentes para diférençá-la de y
adquirir no mercado seus meios de vida. Ora, os meios de vida que [mera economia de subsistênciaíNela o excedente jã aparece como
circulam através do mercado são meios de vida cujo preço incorpo­ tal na própria produção. O essencial nessa interpretação é que os
rou a taxa de lucro do capital que os produziu e/ou que os comer­ meiosjiejãdajda-agrieukorji|o_são imediatamente estabelecidos
cializou. Desse modo, eles impõem à reprodução de seus consu­ pela mediação do mercado- Mesmo que o camponês venha a ter
midores e da força de trabalho a rentabilidade e a mediação do de comercializar também parte de -sçus meios de vida, ele sabe
capital. Para que a força de trabalho se reproduza terá de receber que está vendendo aquilo que originariamente fora destinado à
por seu produto o seu valor, isto é, o que foi despendido em meios sua subsistência. E diferente da situação do assalariado e mesmo
Jcle vida por quem trabalha, pois do contrário a força de trabalho do pequeno agricultor capitalista que, no momento da produção,
não poderá reproduzir-se. Onde a distânciajdo mercado nãò via- não sabe e não pode distinguir entre o que vai constituir seus meios
biíiza a extração da renda capi: alista "cTajemçjD camponês terá de de vida e o que vai constituir o excedente apropriado pelo capital,
^organizar sua economia em outras bases. Ele terá de .produzir e num caso, ou destinado à sua própria acumulação, no outro. Q
•fSssegurar seus .próprios meios dé"vida. Comjsso, poderá vender excedente dq camponês da frente de expansão é um excedente
seus produtos como excedentes e não como produtos cujo preço v concreto, produto de trabalho concrétóTdõ mesmo modo que seus
de venda pelo produtor esteja eventualmente baseado numa con- \ meios de vida. Os meios de vida dé quem trabalha para o capital,
tabilidade de custos, como ocorre na atividade organizada em como ocorre com o operário ou o assalariado do campo, têm seu
bases empresariais. Isso fica mais claro se considerarmos os pro-58 montante definido pela mediação do capital e é materialização de
trabalho abstrato e, portanto, social. Não é o próprio trabalhador
que calcula e define quanto da produção vai se constituir em seus
58 Costa constata que enquanto os modernos empresários do arroz, no Rio Grande do meios de vida.
Sul, podem vender seu produto mais barato até a 1.176 quilômetros da sua capital, Muitas ressalvas têm sido equivocadamente apresentadas a
“a produção da fronteira é colocada com vantagem de preço num raio de 2.324
essa concepção. Há, freqüentemente, situações concretas em que,
quilômetros de distância da sua origem”. Cf. Francisco de Assis Costa, “Valor e
Preço, Exploração e Lucro da Produção Camponesa na Amazônia: Críticas à Noção embora o agricultor produza de fato seus próprios meios de vida,
de Funcionalidade da Produção Familiar na Fronteira Agrícola’’, cit., p. 189 (nota). toda sua atividade está dominada pela produção do excedente
190 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 19 _

comercializável. E mesmo que não esteja, seu estado de pobreza de de vários fatores. De um lado, do número de braços na família.
o leva freqüentemente a reter para sua subsistência e de sua fa­ De outro lado, da fertilidade remanescente do terreno. Como em
mília, o que sobra do que foi obrigado a vender ao comerciante e geral na frente de expansão o que se pratica é agricultura de roça,
intermediário. Não raro tendo de endividar-se no armazém para há sempre necessidade de novas terras (e, portanto, de paulatino
assegurar a sobrevivência de sua família durante o ano, vendendo deslocamento dos agricultores em direção a terras virgens). Mas
antecipadamente a colheita que ainda não fez, do produto que depende, também, de que não ocorra uma doença na família, pois
ainda não está maduro. Em vez de vender a sobra previamente isso geralmente implica despesas extraordinárias com remédios.
calculada da produção direta de seus meios de vida. Portanto, O que muitas vezes leva a comercializar o produto destinado à
aparentemente não estaríamos aí em face de uma economia de própria subsistência e ao endividamento posterior para repô-lo
excedentes, mas de uma autêntica economia de mercado. quando se fizer necessário. Situação que se repete quando algum
As coisas, porém, não são assim. O excedente não 4 o resto ou a ' desastre natural reduz a produtividade do trabalho, como chuvas
sobra59. Não se trata de que o agricultor assegure.para si e sua casa excessivas ou seca.
a subsistência e só depois venda o que sobrou.[Trata-se de uma Muitas das dificuldades para compreender as peculiaridades
^jconomia de excedentes porque o raciocínio que preside a organi­ e os efeitos dessa economia simples vêm de pesquisadores que
zação da produção, isto é, o que plantar e sobretudo quanto plantar limitaram suas observações, quando as fizeram, a regiões em que a
!e até onde plantar está organizado a partir da idéia de que do que economia camponesa está cm crise, sobretudo em conseqüência
jse planta uma parte deveria destinar-se primeiramente à subsis­ da sua maior dependência do mercado devido a alterações nas
tência da família do produtor e um excedente deveria ser produzi­ necessidades da família camponesa, quando a desorganização da
do para troca ou comércio.|0 acréscimo no tamanho da roça em economia de excedentes já está adiantada. E sobretudo em re­
ijelação à subsistência depende da disponibilidade de força de giões em que as roças camponesas já estão cercadas pelas grandes
tfabalho^famihar qu dajoossibilidade de pagar a terceiros para que fazendas de gado. Os camponeses não podem, por isso, concretizar
ajfaçam/Essa é uma das razões pelas quais a saída de casa do filho o deslocamento cíclico de suas roças para áreas de mata próximas
homem e adulto acarreta em geral uma redução nas condições de e terras virgens. O declínio da produtividade agrícola e o que é, de
vida da família, um certo empobrecimento60. O excedente depen­ certo modo, seu confinamento, comprometem a reprodução desse
campesinato e a dinâmica da frente de expansão.

59 Musumeci diz, com razão, que “é equivocada a imagem que muitos ainda fazem do
lavrador de fronteira como alguém que produz para a subsistência (autoconsumo) Tcrcsinha, no norte do Mato Grosso, Lisansky assinalou que a organização da
da família c comercializa apenas as sobras da sua produção”. Cf. Leonarda Musu­ produção dos camponeses locais sc baseia em avaliações e cálculos quanto à area a
meci, cit, p. 287 (grifo do original). Embora não haja citação expressa, sua proce­ ser cultivada, tendo cm conta o grau de fertilidade remanescente do terreno, o
dente crítica sc dirige a concepções contidas cm Otávio Guilherme Velho, Frentes número dc braços disponíveis na família e a quantidade de sacas que poderá ser
de Expansão e Estrutura Agrária, cit., esp. p. 67 c 113. Musumeci, porem, ignora comercializada depois de separado o arroz destinado à subsistência. Cf. Judith
que, além dessa definição vulgar dc excedente, há propriamente uma definição dc Matilda Lisansky, Santa Terezinha: Life in a Brazilian Frontier Town, Ph. Thesis,
economia do excedente por oposição a economia de subsistência, pois é comum o equí­ University of Florida, [Gainesville], August 1980, p. 148-9. Esse procedimento é
voco dc confundir a economia camponesa com mera economia de subsistência. A comum na frente de expansão. Procedimentos semelhantes foram observados po;
concepção de excedente que ela accrtadamcnte critica é a base da tese da funcio­ Luna no Maranhão, que constatou a diminuição do tamanho das roças e da
nalidade da agricultura camponesa da fronteira tal como Velho a assume sozinho produção dc excedentes quando os filhos se tornam adultos c deixam a casa dos
(ob. cit., p. 125) e que ela também crítica, com integral razão, porém, novamente, pais. Cf. Regina Ccli Miranda Reis Luna, A 'Terra era Liberta (Um Estudo da Luta
sem mencionar o destinatário (p. 296-7). dos Posseiros pela Terra no Vale do Pindaré-MA), Universidade Federal do Rio
“ Em suas atentas observações c demorada permanência no então povoado dc Santa Grande do Norte, Natal, 1983, p. 61.
192 O TEMPO DA FRONTEIRA
O TEMPO DA FRONTEIRA 193
Mesmo que tais populações se tornem acentuadamente depen­
dentes do mercado e .dos pequenos comerciantes de seus povoa­ ^AJrente de expansão está mais próxima das relações servis de.
dos, |sêu vínculo mercantil será acessório, limitado e marginal, no I trabalho do que das relações propriamente capitalistas de produ-^/ r
sentido de qtm não é ele que organiza a totalidade do mundo/ ção. Os casos de peonagem ou escravidão por dívida, no B r a s i l , ' J
ícampon ê ^ Ê m seu mundo, o mercado é constituído^pelos precá­ ocorrem com muito piais freqüência n a frente de expansão do que
rios terminais de uma rede de aquisição de produtos agrícolas ou nas outras regiões..;È evidente que são relações produzidas no 5
extrativos, adquiridos basicamente em troca de outros produtos, /processo de reprodução ampliada do capital, que recorre a meca- 1
sobretudo industrializados, que chegam ao camponês por preços 1nismos de acumulação primitiva em certos momentos dessa repro- \
.várias vezes multiplicados em relação aos grandes centros urba­ dução ampliada63, isto é, recorre seja ao confisco de bens, como a |
nos. Isso, porém, não quer dizer que, ao mesmo tempo, os comer­ terra, seja ao confisco de tempo de trabalho mediante ampliação J -.
ciantes de povoado não constituam parte integrante e, mesmo, \ \da margem de trabalho nãojjagóT — " " ~~ o»'"".,
essencial desse mundo, como de fato constituem61] Porénvos pro^j Tem sido característico da frente de expansão, nc Brasil, a^J- ^
ídnfõiThão “Circulam de modo àutenticamente mercantil, até por ausência da propriedadém rm al da terra, esta última constituída ]
que tem aí escassa presença o dinheiro, predominando as trocas62. de simultâneos direitos de posse e domínio, /Tpopulaçãc campo^-r
Seus preços não refletem o mercado, mas as condições monopo­ nesa é geralmente posseira ou ocupante de terra, sem título de i
listas da egmercialização e, sobretudo, o poder pessoal do comer­ propriedade. Os patrões, onde os há, foram durante longo tempo,
ciante,/No geral, a troca se dá no interior de uma relação que é . até há poucos anos, ou meros possêrros, como os campeneses, ou
sdbíetudo patriarcal relação de dominaçãoi Estamos, portanto, em arrendatários de terras públicas, pagando ao Estado foros quase
[face~de'uma inserção imperfeita dò camponês no mercado porque simbólicos e, sobretudo, pagando com favores políticos e elei­
jlé imperfeito e não-capitalista o mercado que chega até ele e que torais, de tipo clientelista, as concessões territoriais recebidas64.
/procura envolvê-lo em sua teia de exploração econômica/EssãTfT Essa precária relação de pobres e riços com a posse da terra na
forma da conversão, pelo capital comercial e usurário, do exceden­ frente de expansão não é só resultado da precária institucionali­
te físico em lucro. zação do direito de propriedade, mas também resultaco de quê
■ciA frente de expansão não tem sido apenas constituída pelo tais territórios estão fora do circuito rentável da renda da terra ou
éampesinato. Nela, há uma grande diversidade de personagens, .da aplicação de capital na aquisição de terrenos.
atividades econômiçasjexelações sociais específicas. Há uma~espe- Se na frente pioneira a racionalidade econômica e a constituição \
cie de burguesia de fronteira que muitas vezes toma a iniciativa formal e institucional das mediações políticas estão visivelmente^-T'
pela expansão desses modos marginais de produção das mercado- presentes em todos os lugares e momentos, já na frents-de ex- o”0
TÍas. Ela é responsável pela implantação desses terminais de suc­ pansão é notório o predomínio dos valores sociais, das crenças, C" 'J
ção de produtos e desproporcional distribuição de mercadorias do imaginário na formação, definição e sustentação dos vínculos
trazidas de fora.. sociaisTÃTcõm freqüência os instrumentos da economic mercan-

61 Cf. Francisca Isabel Vieira Keller, loc. cic., p. 681. 03 Cf. José dc Souza Martins, “A Reprodução do Capital na Frente Eioneira c o
62 Em dois estudos extremos no tempo, separados entre si por cerca de quarenta anos, Renascimento da Escravidão no Brasil”, in Tempo Social— Revista de Sociologia da
pode-se observar essa persistente característica da fronteira. Cf. Eduardo Galvão, USP, Universidade dc São Paulo, Faculdade dc Filosofia, Letras c Ciências
Santos e Visagens (Um Estudo da Vida Religiosa de Itrí, Baixo Amazonas), 2." edição, Humanas, Departamento dc Sociologia, vol. 6, n.“ 1-2, São Paulo, jurho dc 1995,
Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1976, p. 23; c Regina Ccli Miranda Reis p. 1-25. [Reproduzido como capítulo 2, neste livro.]
Luna, ob. cit., p. 62-3. M Cf. Marília Ferreira Emmi, A Oligart/nia do Tocantins e o Domínio do. Castanhais,
Centro dc Filosofia c Ciências Humanas/NAEA/UFPA, Belém, 1988 p. 92-3.
194 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 195

til, especialmente o dinheiro, chegam como expressão do mal e do e mesmo em Rondônia. Em parte porque esses grupos são consti­
diabólico. O que se explica porque nela o poder de corrosão dos tuídos por extensas parentelas, agregando ascendentes, descen­
processos econômicos é extremamente mediatizado, não atua dentes e colaterais, grupos que mesmo uma dramática adversidade
diretamente e imediatamente sobre mentes e relações sociais. No econômica não destrói. Um certo simplismo economicista sugere
meu modo de ver, isso está relacionado com a produção direta de que a expropriação produz mecanicamente a individualização e a
meios de vida e a produção complementar (mesmo que em pri­ integração no mercado de trabalho, já não mais do grupo, mas de
meiro lugar) de excedentes para escambo e comércio. O dinheiro cada um de seus antigos membros. No entanto, as evidências
;,e a mercadoria não são direta e predominantemente responsáveis mostram que mesmo quando, aparentemente, as coisas ocorrem
rf’p ela reprodução sociaí!]E7nêssecaso, quanto mais é marginal e, ao desse modo, com as migrações para as grandes cidades, o que
.jrhesmo tempÕTcorrosIva e violenta a inserção no mercado, mais se temos é o contrário: migrações temporárias em grupo dão lugar a
jacentua a força do imaginário no modo de vida dessas populações migrações definitivas feitas aos poucos, geralmente começando
/e na tentativa de compreensão de seus próprios dramas e misériasv pelos mais jovens, depois os homens e finalmente a família toda.
Nesse sentido, não se pode compreender a frente de expansão A migração dos membros de uma família tende a durar muitos
reduzindo-a ~à expressão matería! de simples busca de terra por ^ anos, até que todos se transportem de um lugar a outro66. Em
parte dos camponeses pobres ^xpülsõs dãsáreas de latifúndio^ parte, tanto num caso quanto noutro, porque esses grupos se
snhrerndo no Nordeste. Essa busca não raro precede o próprio ato concebem como comunidades dc destino e de pertencimento. De
de expulsão ou, então, quando o sucede, tem características muito certo modo, da mesmo maneira que para as populações indíge­
diversas da de uma súbita desagregação de vizinhança. Ela tende nas, esse pertencimento inclui os ancestrais. A insistência com que
a se definir no ambiente do ajustamento precário a uma nova algumas tribos tentam recuperar terras ancestrais, como é o caso
situação decorrente da expulsão, a um novo relacionamento do dos Xavante, tem a ver, em parte, com a localização de-seus
homem com a natureza, frequentemente envolvendo perda cul- cemitérios. O sentido do dilaceramento que a destruição desse
tpral, realidades novas que impõem redefinição de costumes e mundo desperta no íntimo de muitos camponeses da frente de
tradições. Sobretudo porque essas mudanças acarretam desagre­ expansão pode ter uma intensidade dramática de difícil identifica­
gação de grupos de constituição antiga, no mais das vezes apoiados ção a partir de esquemas convencionais de participação.
numa estrutura de vínculos de parentesco real ou ritual.JJm a.cer.ta. A história das frentes de expansão no Brasil, neste século, in­
consciência-de_prpx.Lmida.de. do. fim dos tempos, decorrente jde clusive no Sul, tem sido ao mesmo tempo a história do milenaris-
uma sensação de inexplicável dèmoralização. privação, provação e mo camponês67. Praticamente todos os movimentos milenaristas
castigo impõe às vítimas da expropriação material e cultural uma ou messiânicos do período ocorreram nas frentes de expansão, ou
certa compreensão apocalíptica dos acontecimentos63*.
A busca tem um forte caráter comunitário, o que se vê clara­
“ Tourainc foi o primeiro a observar esse processo no Brasil, confirmado depois por
mente nos locais de imigração ao longo do Tocantins e do Araguaia Eunicc Durhan. Cf. Alain Tourainc, “Industrialisation et Conscience Ouvricre à
São Paulo”, in Sociologie du Travail, Troisicmc annee, n." 4/61, Éditions du Seuil,
Paris, 1961, p. 93; c Eunicc R. Durhan, A Caminho da Cidade (A Vida Rura e a
63 Foi o que ocorreu no surto milenarista do bairro do Catulc, cm Malacacheta, Minas Migração para São Paulo), Editora Perspectiva, São Paulo, 1973, p. 132-6.
Gerais, cm 1955, quando a frente de expansão começou a se esgotar. Cf. Cario 67 Gcrhard assinala um fenômeno parecido, embora diferente, no Oeste americano: a
Castaldi, “A Aparição do Demônio no Catulé”, ia Maria Isaura Pereira de Queiroz migração dc grupos comunais, sempre dc comunidades religiosas. Entretanto, ele
etalii. Estudos de Sociologia e História, Editora Anhambi Limitada, São Paulo, 1957, não indica a ocorrência de movimentos messiânicos ou milenaristas, o que talvez se
p. 17-66; c José de Souza Martins, Os Camponeses e a Política no Brasil, Z í edição, explique pelo fato desses grupos serem gcralmcntc grupos protestantes. Cf.
Editora Vozes, Pctrópolis, 1983, p. 62 c ss. Dictrich Gcrhard, loc. cit., p. 220.
O TEMPO DA FRONTEIRA 197
196 O TEMPO DA FRONTEIRA

em bolsões de tradicionalismo em que o modo de vida é idêntico mento é lento, em vários casos tomando dos peregrinos muitos
ao que pode ser observado naquelas, e ocorreram nos momentos anos, com paradas demoradas ao longo do trajeto. O fenômeno
em que os camponeses estavam sendo expulsos da terra ou esta­ vem ocorrendo há uns quarenta anos aproximadamente e se tor­
vam ameaçados de expulsão. nou muito intenso nos anos setenta.
Pude observar diretamente que as migrações espontâneas do E extremamente significativo que os peregrinos se desloquem
Nordeste para a Amazônia, para um número muito grande de na direção leste—oeste, que é a mesma direção do deslocamento
pessoas, estão motivadas por concepções milenaristas. Em dife­ da fronteira e do movimento de efetiva ocupação do território.
rentes pontos de uma extensão de cerca de oitocentos quilômetros Geralmente seguem o sentido de orientação da Via Láctea, a que
ao longo do rio Araguaia encontrei diversos grupos de camponeses chamam de Caminho de São Tiago. Lembro aqui que São Tiago
que chegaram à região inspirados pelas profecias do Padre Cícero é o mesmo Saint Jacques que dá nome às jacqueries, às revoltas
sobre a existência de um lugar mítico depois da travessia do camponesas. E o Caminho de São Tiago é o mesmo Caminho de
grande rio. E tive notícia de um grupo desgarrado, empenhado na Santiago de Compostela, na Espanha, seguido pelos peregrinos
mesma busca, que se estabelecera à beira do rio Tocantins. Esse que no tempo das Cruzadas partiain para a Terra Santa, para a
lugar mítico é reconhecido como o lugar das Bandeiras Verdes, guerra contra os infiéis e para resgatar o túmulo de Cristo. Nesse
que ninguém sabe dizer exatamente o que é nem onde é. Mas sentido, o deslocamento atual, na direção supostamente indicada
seria reconhecido quando fosse encontrado, por ser um lugar de pela Via Láctea, segue um rumo oposto ao do percorrido pelos
refrigério, de águas abundantes, de terras livres, em contraste com cruzados na Idade Média européia. Lembro, também, que Com­
o Nordeste árido e latifundista68. postela é “campo de estrelas”, isto é, a Via Láctea69. Portanto, na
Trata-se, claramente, de milenarismo medieval e europeu, fronteira, há um imaginário místico, que mescla e adapta ao sen­
como é próprio da maioria dos casos de milenarismo no Brasil. Os tido de movimento próprio da frente de expansão, vár.os e dife­
que procuram as Bandeiras Verdes andam em grupos. Geralmente rentes componentes do imaginário medieval. Pode-se dizer que
são grupos de parentes e vizinhos no local de origem. Sua trajetória “adapta” na medida em que a realidade que sustentava esse
dos pontos de origem rio Nordeste aos lugares em que se estabe­ imaginário, na origem, era a do movimento do oeste em direção ao
leceram varia de seiscentos a oitocentos quilômetros. O desloca- leste. Aqui é o contrário, como se os camponeses recorressem ao
que parece ser o arquétipo do confronto com o desconhecido, com
a natureza, com o outro e, sobretudo, com o próprio limite do
68 A busca das Bandeiras Verdes se mescla com outros milenarismos contemporâneos humano.
na região, como o da busca do Paraíso do Divino. Este último, com evidências de Há um certo componente de guerra santa nesse universo, como
inspiração nas .heresias de Gioacchino Da Fiore, especialmentc no que se refere à ocorreu numa frente de expansão do sul do país, de 19l2 a 1916,
negação da unidade da Santíssima Trindade. Sobre esse grupo c essa mescla, cf.
Maria Antonicta da Costa Vieira, Caçando o Destino (Um Estudo sobre a Luta de
quando houve a chamada Guerra do Contestado70. É como se a
Resistência dos Posseiros do Sul do Pará), dissertação de mestrado cm Ciências
Sociais (Antropologia), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
1981, esp. 63-82. No mapa das migrações das famílias que afinal se aglutinaram cm
busca da comunidade utópica, Vieira mostra que, apesar de algumas serem originá­ 69 Em uma dc suas muitas e preciosas digressões sobre o campesinatc e jropeu e sua
rias do Nordeste, c terem vivido depois cm São Paulo ou no sul de Goiás, os história, Lefebvre analisa, justamence num dc seus livros fundamenteis, as concep­
integrantes do movimento migram do leste para oeste, com ligeira inflexão para o ções triádicas no imaginário camponês e nas jacqueries e as remete, por sua vez, à
norte (loc. cit., p. 101). Sobre a difusão do joaquimismo cm Minas Gerais, Goiás c tradição joaquimita. Cf. Henri Lefebvre, La Présence et L'Absence (Contribution à la
Mato Grosso, cf. Carlos Rodrigues Brandão, 0 Divino, o Santo ea Senhora, Campa­ Théorie des Représentations), Casterman, Paris, 1980, esp. p. 112-3 e h 9-20.
nha de Defesa do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro, 1978, p. 64-165 c 142-4. 70 Cf. Maurício Vinhas dc Queiroz, Messianismo e Conflito Social (A Guerra Sertaneja do
198 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 199
humanização do homem tivesse em qualquer circunstância a di­ distintos milenarismos, pois eu mesmo encontrei no Mato Grosso
mensão de uma peleja mortal, não só entre Deus e o diabo, mas grupos de romeiros do Padre Cícero a quem atribuem a profecia de
entre o humano e o inumano. As influências das heresias medie­ procura das Bandeiras Verdes72.
vais se anunciam através das inversões das relações sociais: é nos
opostos que está o sentido do que aparentemente perdeu o senti­
do morreu, Maria da Praia foi sepultada cm Buriti Alegre. O trajeto dos romeiros
do. No Contestado, era preciso morrer para renascer no exército em busca dessa terra prometida foi interrompido demoradamente três vezes. A
divino de São Sebastião; os velhos deveriam se tornar jovens, a essas interrupções os romeiros chamam dc Estações, como na Via Sacra, segundo
sabedoria e o poder estavam com as crianças. Além disso, quem Antônio Canuto, c Nosso Lugar, segundo Vieira. Nelas, construíram igreja, po­
voado e abriram roças. Houve três Estações: Boa Esperança, São Miguel e Buriti
não se recolhesse aos redutos santos era inimigo. *
Alegre. A Quarta Estação seria a Estação da chegada. Maria da Praia morreu na
Além dos seguidores da Bandeira Verde, há outros grupos de Terceira Estação. Segundo Vieira, quem denomina “estações" os lugares de pa­
camponeses peregrinos como o de Maria da Praia, que há muitos rada c um terceiro grupo, o dc Justino, iniciado cm 1967, que lidera uma Romaria
anos se desloca de Goiás, no Centro-Oeste, para o Norte. Depois do Padre Cícero. Esse grupo teve início em Barreira do Campo, no Pará, e penetrou
na reserva dos índios Kayapó, tendo sido dela expulso pelos índios em 1993.
de alguns anos atravessando Goiás e Mato Grosso, o grupo se en­ Quando o grupo de Maria da Praia passou pelo sertão dc Santa Teresinha, no norte
contra hoje iio Pará. E o grupo dos Romeiros do Padre Cícero, do Mato Grosso, e ali se fixou por uns tempos, o padre Antonio Canuto, que era
dirigido por Justino, um grupo que teve início em 1967, em Bar­ pároco do lugar, tomou conhecimento de sua existência. Depois o grupo se des­
locou para o Estado do Pará, para São Sebastião, cm território dos índios Kayapó-
reira do Campo, no Pará71. Aparentemente, tais grupos fundem Gorotirc que, após um tempo, também o expulsaram. O grupo retornou a Buriti
Alegre c ali se encontra atualmente. Maria Antonieta da Costa Vieira tem feito
demoradas investigações sobre o grupo no qual tem sido acolhida em diferentes
Contestado, 1912-1916), Editora Civilização Brasileira S.A., Rio dc Janeiro, 1966; ocasiões. As informações contidas nesta nota procedem dc uma extensa carta que
Maria Isaura Pereira de Queiroz, La “Guerre Sainte" au Brésil: Le Mouvement me enviou e das notas de Canuto. Canuto, por seu lado, realizou minuciosa
Messianigue du “Contestado”, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Univer­ entrevista, sobre a história e as crenças do grupo, com a filha dc Maria da Praia, já
sidade de São Paulo, Boletim n.° 187, São Paulo, 1957; Duglas Teixeira Monteiro, no Pará, em 1975. Cf. Maria Antonieta da Costa Vieira, Maria da Praia, São Paulo,
Os Errantes do Novo Século, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1974; Oswaldo 8 dc julho de 1996, 4 p. (manuscrito), c Antonio Canuto, Maria da Praia, Santa
Rodrigues Cabral, A Campanha do Contestado, 2.‘ edição, Editora Lunardclli, Teresinha (MT), outubro de 1975, 12 p. (datilografado), Arquivo da Prelazia de
Florianópolis, 1979. São Félix (MT).
71 Devo e agradeço a Maria Antonieta da Costa Vieira, a melhor conhecedora do n Minhas próprias observações, feitas nos anos oitenta, sobre a Bandeira Verde no
assunto, as seguintes informações que corrigem a versão original deste artigo: Mato Grosso e no Pará, coincidem com as dc Antonio Canuto, de 1975, cujos
Maria da Praia foi o nome pelo qual ficou conhecida Maria José Vieira.de Barros, registros sugerem um milenarismo fundado no catolicismo popular e sertanejo. É
natural do Maranhão. Acompanhando o marido, mudou-se para Goiás. Em 1964, da maior importância a constatação dc Maria Antonieta da Costa Vieira de cue, no
vivia em São Miguel do Araguaia, naquele estado. E quando recebe, “de seus momento atual, a linguagem c a crença do grupo de Maria da Praia fundem
guias”, mensagens que lhe ordenavam viajar para as “Bandeiras Verdes”, as matas. elementos do catolicismo popular c do espiritismo na referência a “guias que
Com os cinco filhos, alguns já casados, atravessa o rio Araguaia e chega a Santa ordenam” a viagem, c não mais a peregrinação, e na referência à “incorporação” do
Teresinha, povoado do Mato Grosso. O grupo acampa na praia do rio, daí o nome Padre Cícero por Justino, líder de um grupo de romeiros. Essa mudança no
pelo qual ficou conhecida. Nessa época, entra em contato com um outro grupo, milenarismo sertanejo, que dc algum modo o esvazia e anula, acompanha a
de umas quinze famílias, na maioria mineiras. Esse grupo fazia parte da Romaria estabilização da frente dc expansão e a perda da sua vitalidade e conflitividade e,
de Santina. Santina^ fazia curas. Vinha dc Estrela do Norte, ramhén em Gniás dc certo modo, parece refletir a cessação da busca que o deslocamento dessa frente
atravessara o rio Araguaia e_se fixara a umas doze léguas Apouco menosde oitenta. envolve. Dc um lado, isso se explica, tanto no grupo de Maria de Praia quanto no
6 quilômetros) dc Santa Teresinha. Iniciara a Romaria em 1959. Morrcra no início da grupo dc Santina, cm decorrência da morte das duas, por aquilo que Weber defi­
década de sessenta. Antes, ordenara a seu grupo que..fosscLíidiantc. Entrando em ne como rotinização do carisma. Mas há ainda o grupo dc Justino, que fala um
contato com o grupo dc Maria da Praia, quando este decidiu entrar na mata, o grupo espiritismo popular no interior dc um milenarismo católico, embora provavelmen­
dc Santina decidiu acompanhá-lo. Os romeiros saíram em busca do Bom Lugar. te hcréti.co. Enfim . tais fatos parecem sugerir que a frente de expansão, dentre
Atualmente, há no grupo apenas duas famílias remanescentes da Romaria de .várias outras pcculiariclãdcs, dcscnvolvc umáriêligiosicíade mií^ãristTlguãhVênte~"
Santina. Os demais desistiram e muitos morreram de malária na viagem. Quan- peculiar. ' -----*
200 O TEMPO DA FRONTEIRA
O TEMPO DA FRONTEIRA 2 0 1
Na frente de expansão do vale do rio Doce, em Minas Gerais, antagônicos, são considerados “correios da Besta”, enviados da
em 1955, o milenarismo de um pequeno grupo de camponeses Besta. A Besta é também a configuração do dinheiro nesse uni­
assumiu a forma de alucinação coletiva e durou uns poucos dias. Aí verso marcado pelo grande fluxo do capital, agence reconhecido
também a inversão se deu pela troca de nomes das pessoas, pelo das violências contra esses camponeses73.
recebimento de um novo nome. Ao mesmo tempo, promoveu a Também entre as populações indígenas na situação de contato
configuração do inimigo: os possuídos pelo demônio73. têm ocorrido movimentos messiânicos no período relativamente
Há muitas indicações de joaquimismo nesses movimentos, recente, como entre os Tükunajos Ramkokamekra-Canela, os
inclusive nos recentes, na Amazônia, e nessa religiosidade de Krahô e diferentes grupos Tupi76. Freqüentemente, concepções
fronteira. Isto é, aparentemente há influências das idéias de
Gioacchino Da Fiore, um monge calabrês do século XII, respon­
sável pela elaboração e difusão de concepções relativas à chegada 73 De um folheto manuscrito recolhido no norte do Mato Grosso, cópia de folheto de
do Tempo do Espírito Santo74*.A utopia joaquimita se manifesta, cordel impresso, sob o título de A Voz do Padre Cícero, consta a segjinte expressiva
no milenarismo sertanejo, nas práticas comunitárias, já que sua estrofe relativa a esse assunto: “São anjos do diabo/Que chegam nofim da traiFazendo
tanto milagrelQue todo mundo os veneralSaciando fome e sede/São igual ao capa verdel
previsão é a de que há de chegar um tempo de justiça, de fraterni­ Correios da Besta-Fera". Margarida Maria Moura alertou-me para a p ossibilidade de
dade, de liberdade, de fartura — um tempo de libertação. que o Capa Verde seja a reconstrução mítica e humanizada dc algo rarecido com o
Têm sido muito fortes na região as representações do mal que Livro da Capa Verde, cm que eram anotados os débitos fiscais dos niincradorcs no
Distrito Diamantino, cm Minas Gerais, fonte c motivo dc severíssima repressão
aflige os camponeses ameaçados de expulsão da terra pelos gran­ por parte dos funcionários da Coroa. No Nordeste, no Estado da Paraíba, Costa
des proprietários e pelas grandes companhias na figura da Besta- também encontrou o mito do Capa Verde entre trabalhadores do sisal. Nesse caso,
fera apocalíptica. Freqüentemente, os diferentes, os de fora, os porém, eles enccndem que o próprio sisal c o Capa Verde. (Cf. Ranilton Marinho
Costa, “O Capa Verde: Transformações Econômicas e Representações Ideológicas
dos Trabalhadores do Sisal”, in Norte e Nordeste — Estudos em Ciências Sociais,
Anpocs/Inter-American Foundation, Rio de Janeiro, 1991, p. 76-81 ) Em São Do­
73 Cf. Cario Castaldi et alii, “A Aparição do Demônio no Catuié”, in Maria Isaura
mingos das Latas, no Pará, em 1969, o antropólogo que ali chegou para realizar sua
Pereira de Queiroz et alii, Estudos de Sociologia e História, Editora Anhcmbi Limita­
pesquisa foi considerado enviado da Besta. (Cf. Otávio Guilherme Velho, Frentes de
da, São Paulo, 1957, p. 17-130.
Expansão e Estrutura Agrária, cit., p. 130; e, também, do mesmo autor, Capitalismo
Hennessy já havia observado a relação entre o milenarismo joaquimita e a fronteira
Autoritário e Campesinato, Difel, São Paulo, 1976, p. 237, nota.) No cólo ideológico
no período colonial e entre milenarismo e fronteira no século XIX, na America
oposto, o mesmo ocorreu com o ativista e líder camponês Manuel da Conceição, no
Latina. C f Alistair Hennessy, ob. cit., p. 36-8 c 117-20. Sobre Gioacchino e suas
Maranhão, em 1966. Conceição cra membro de uma igreja pcmccostal. Nessa
idéias há uma vasta literatura européia. Para uma visão abrangente do tema, cf
ocasião, foi especialmente convidado a falar, numa convenção de sua igreja, um
Antonio Crocco, Gioacchino da Fiore e il Gioachitnismo, Liguori Editore, Napoli,
pastor vindo de Floriano, no Piauí. O sermão foi contra o “mundo moderno”: “esse
1976. Movimentos camponeses de inspiração joaquimita direta ou indireta ocor­
mundo moderno estava muito ligado aos comunistas, os capas-verde, correio da
rem até hoje em diferentes sociedades, mesmo em San Giovanni in Fiore, na
besta-fera”. Nesse momento, todos começaram a olhar para Manjei da Conceição:
Calábria, terra de Gioacchino. Lá, a utopia joaquimita foi assimilada pelo Partido
“O ‘correio’ era aquele que estava lá, era eu”. Cf. Manuel da Conceição, Essa Terra
Comunista e pelos camponeses locais, protagonistas de uma larga história de
É Nossa (Depoimento sobre a Vida e as Lutas de Camponeses no Estado do Maranhão),
conflito social motivado pela privação dos usi aviei das terras, que lhes haviam sido
Editora Vozes Ltda., Petrópolis, 1980, p. 142-3.
cedidos desde os tempos do Abade Joaquim. C f Jonathan Steinberg, “In St.
76 Sobre os Tükuna, do Amazonas, cf. Maurício Vinhas de Queiroz, “Contribuição ao
Joachim’s republic”, in Society, 28 May 1981, p. 359-60. Gioacchino influenciou as
Estudo do Messianismo Tukúna”, comunicação apresentada na V F.eunião Brasi­
concepções milenaristas e sebastianistas do Padre Antônio Vieira c está expressa-
leira de Antropologia, Belo Horizonte, 1961, apudRoberto Cardoso de Oliveira, O
mente citado várias vezes no texto sobre a “Duração do 5." Império”, que faz parte
índio e o Mundo dos Brancos, cit., p. 90. Sobre o movimento messiânico de 1963,
da coleção dos documentos arrolados pelo Tribunal da Inquisição, que o condenou
entre os Ramkokamckra-Canela, do Maranhão, cf. Eduardo Galvão, Encontro de
em 1667. Cf. António Vieira, Apologia das Coisas Profetizadas, trad, do latim de
Sociedades — índios e Brancos no Brasil, PazeTerra, Rio de Janeiro, 1979,p. 281-2;
Arnaldo Espírito Santo, Organização c fixação do texto de Adma Fadul Mulvana,
c Manuela Carneiro da Cunha, “Logiquc du Mythe et dc l’Action (Le Mouvement
Edições Cotovia, Lisboa, 1994, p. 177-203.
Mcssianiquc Canela dc 1963)”, in L'Homme — Revue Française dAnthropologie,
202 O TEMPO DA FRONTEIRA O TEMPO DA FRONTEIRA 203

messiânicas relacionadas com a proximidade do branco e a desor­ infiéis, entre o bem e o mal. Eles estão, sim, buscando a Terra
ganização do mundo tribal que ela acarreta. Baseiam-se, quase Prometida, que é muito mais do que o instrumento material da
sempre, na alteridade que o branco representa, na desigualdade produção que domina o interesse dos pesquisadores e suas análi­
de forças no confronto entre índios e brancos. Se são tentativas ses da frente de expansão. Nesse sonho se manifesta a grande'
de incorporar os brancos nas suas referências míticas, são também transfiguração produzida pela fronteira, de certo modo definidora
construções míticas da inversão possível dessas relações, como da sua singularidade temporária e histórica: tempo e espaço se
ocorreu no messianismo Krahô. fundem no espaço limice concebido ao mesmo rempo como ram-
O reavivamento, entre os civilizados, de concepções arquetí- po limite. E no fim q.ue_e.stá propjjame.At£-üXQmeçQ^
picas, de origem medieval, na frente de expansão, parece indicar,
em termos muito gerais, uma certa dificuldade para elaborar uma
consciência própria dos conflitos e da desagregação das relações
^sociais, sobretudo as relações de parentesco e vizinhança, na si­
tuação singular que ali se constitui.
Os desencontros próprios da frente de expansão envolvem
conseqüências e elaborações muito man>_profundas do que ocorre^
fria se os camponeses que nela se encontram apenas estivessem
^buscando terra ou se os índios apenas estivessem tentando reter.
ou ampliar seu território. Eles estão, certamente, também buscan­
do terra para trabalhar e assegurar a sobrevivência e a continuida­
de da família ou tentando manter territórios revestidos de uma
Incerta sacralidade na memória tribal, Mas o fato de que se encon-
,trem numa situação que é também limite do humanõ^Tronteira de
humanidade, limite e fim de mundo, parece impor-lhes a necessi-
dade de deslocar para imaginários mais profundamente estabele-
cidos a busca de sentido para a vida nos confins do humano, na
fronteira. A revitalização do imaginário medieval e de um imaginá­
rio milenarista e cristão, inclusive, direta ou indiretamente, em
alguns grupos indígenas, repõe um sistema de referência também
baseado na idéia de limite e fronteira: o confronto entre cristãos e

tome XIII, numero 4, Mouton & Co., Éditeurs, Paris-La Haye, octobre-décembre
1973, p. 5-37. Sobre os Krahô, de Goiás, cf. Julio Cezar Melatti, O Messianismo
Krahô, Herdcr/Edusp, São Paulo, 1972. Dentre as várias referências que, sobre o
tema, podem ser feitas aos povos tupi, há o belo estudo de Darcy Ribeiro sobre
Uirá, o índio Urubu-kaapor que saiu à procura de Maíra c se matou no rio Pindarc,
no Maranhão. Cf. Darcy Ribeiro, “Uirá Vai ao Encontro de Maíra”, Uirá Sai à
Procura de Deus (Ensaios de Etnologia e Indigenismo), Paz c Terra, Rio de Janeiro,
1974, p. 13-29.

Você também pode gostar