Psicomotricidade Relacional e Jovem

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O LÚDICO NA PSICOMOTORICIDADE: VIVÊNCIAS DE ADOLESCENTES COM


SÍNDROME DEFICITÁRIA NEUROLÓGICA

Ivone Miranda dos Santos Menezes1


Genigleide Santos da Hora2

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo relatar as vivências do fazer Psicomotor, com
base nas práticas lúdicas voltadas às ações do Estágio Supervisionado em
Psicomotricidade Clínica e Relacional, utilizando a ludicidade como intervenção. As
sessões foram realizadas no Núcleo Cuidar – Associação de Pais e Portadores de
Síndromes Deficitárias Neurológicas de Itabuna/BA, com crianças, jovens e adultos,
com idades que variam de 4 (quatro) a 60 (sessenta) anos, do sexo feminino e
masculino. O fato de existirem crianças, jovens e adultos no mesmo ambiente e com
deficiências diferentes, exige do profissional de Psicomotricidade um planejamento
diversificado e diário, além das adequações necessárias para garantir a inclusão de
todos e todas nas atividades. Optou-se por um estudo de caso, por este ser um
estudo amplo e detalhado, com base nas ações Psicomotrizes, no resgate da
autoestima e dos processos das aprendizagens significativas, tanto dos conteúdos a
serem aprendidos, quanto do equilibro das suas emoções e percepções,
imprescindíveis para um desenvolvimento psicomotor mais próximo do desejável.
Buscou-se também discutir os conceitos da psicomotricidade e seus componentes e
a contribuição da atividade lúdica no desenvolvimento psicomotor. A metodologia
adotada foi a realização de sessões de intervenções e análises clínicas e relacionais
psicomotoras, com duração de dez semanas. Assim, procurou-se ponderar a
funcionalidade das ações, com base na ludicidade, como recurso imprescindível
nessa prática. Desta forma, foi possível identificar o perfil psicomotor em que o
sujeito se encontra, bem como, observar o desenvolvimento das pessoas atendidas
nos diversos aspectos relativos às habilidades cognitivas e afetivas, as quais
implicam na interação humana, pois, é através dessas relações que ocorre a
aprendizagem.
Palavras-Chave: Ludologia. Psicomotricidade. Núcleo Cuidar.

1
Graduada em Letras, pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Professora da Rede Pública Estadual
da Bahia; Especialista em Educação de Jovens e Adultos e em Psicomotricidade Clínica e Relacional, da Turma
01, do Núcleo de Pós-Graduação de Itabuna (NPGI), ações vinculadas ao Instituto Superior de Educação
OCIDEMNTE (ISEO). E-mail: [email protected]
2
Pedagoga; Especialista em Psicopedagogia e em Metodologia do Ensino Superior; Doutoranda e Mestre em
Educação do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal da Bahia (UFBA);
Membro Titular da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp) e Seção Bahia; Professora do
Departamento de Ciências da Educação (DCIE), da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). E-mail:
[email protected]
Estudos IAT, Salvador, v.4, n.2, p. 216-231, set., 2019.
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INTRODUÇÃO

Por muito, viveu-se um pensamento dualista: o corpo e a alma. Evoluindo-se


para corpo-mente. Após entender a real situação do movimento mente-corpo,
convergiu-se para as ações da Psicomotricidade (ações mútuas entre atitude,
comportamento e tonicidade), pois, não são contextos divergentes, mas implicam-se
em vivências cerebrais constantes. Essa integração psicomotora da criança, que é
materializada por meio das aprendizagens, pode sofrer danos quando não
detectados os déficits motores nas fases apropriadas, prejudicando, assim, o
processo de desenvolvimento cognitivo, motor e social do indivíduo.
Optou-se pela Ludologia como temática por entender que “o brincar” é
importante no desenvolvimento humano e que favorece a psicomotricidade, uma vez
que o ato de brincar não deve ser visto apenas como uma ação de entretenimento,
mas sim, como uma atividade que possibilita aprendizagens variadas e que deve ser
realizado em um ambiente agradável, motivador, planejado e enriquecido,
possibilitando o desenvolvimento de várias habilidades. Assim, a ludicidade é um ato
nobre de brincar e tem por objetivo oportunizar as descobertas, explorando
movimentos ajustados a um determinado ritmo, conservando fortemente as
possibilidades de expressar emoções, sentimentos e superar obstáculos.
Nesse sentido, estes momentos do ato de brincar, com ênfase nas ações
Psicomotoras, afluíam para o atendimento das pessoas que frequentam o Núcleo
Cuidar e que possuem Síndromes Deficitárias Neurológicas, que as deixaram com
múltiplas deficiências. A maioria delas está fora do ambiente escolar por não ter sido
matriculada nas escolas procuradas pelas famílias e aparentam um nítido
sentimento de exclusão social e atrasos psicomotores.
No Núcleo Cuidar, verificou-se que os alunos chegam, na maioria dos casos,
trazidos pelas mães e que estes demonstram muitas angústias e sofrimentos, além
de uma fragilidade tanto física, quanto psicológica, carecendo, constantemente, de
cuidados múltiplos, convergentes à Psicomotricidade Clínica e Relacional. Nesse
contexto, o uso da Ludologia, sobretudo a brincadeira, pretende gerar práticas
psicomotrizes, permitindo que o movimento do corpo do indivíduo flua de forma livre,
leve e solta, que o auxilie no seu desenvolvimento psicológico e que atue em
equilíbrio e harmonia, intervindo, no alargamento psicomotor destas pessoas com
deficiência.
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Apesar de passarem por atendimentos psicoterapêuticos, psicológicos e


psicopedagógicos na instituição, observou-se que não havia um atendimento
Psicomotor para aquelas pessoas. Por esse motivo, foi proposto um Projeto de
Intervenção de Reeducação Psicomotora com sessões Clínica e Relacional para
este público. Entende-se que a prática psicomotora, exige um conhecimento teórico
que justifique as intervenções nos princípios da Psicomotricidade, além de
experiência que possibilite uma vivência de corpo do psicomotricista e, ainda, o
conhecimento de técnicas e práticas adequadas a cada situação encontrada.
Por isso, este artigo direciona o olhar sobre as contribuições teóricas que
permitem o entendimento de que a Psicomotricidade pode contribuir para
potencializar o desenvolvimento da motricidade, cognição e afetividade das pessoas
e, também, daquelas com Necessidades Educacionais Especiais (NEE). Neste
sentido, as ações psicomotrizes estão situadas na teoria freudiana (Psicanálise) que
fundamenta as bases de atuação da Psicomotricidade, principalmente quando
associadas à afetividade e à personalidade, no momento em que o indivíduo utiliza o
corpo para mostrar o que sente.

EPISTEMOLOGIA DA PSICOMOTRICIDADE

Psicomotricidade é a ciência que tem como objeto de estudo o homem, por


meio do seu corpo em movimento e em relação ao seu mundo interno e externo.
Está relacionada ao processo de maturação, onde o corpo é a origem das
aquisições cognitivas, afetivas e psicomotoras. Este campo científico é sustentado
por três conhecimentos básicos: o movimento, o intelecto e o afeto.

“[...] meu corpo não é apenas um conjunto de órgãos, nem o dócil executor
das decisões da minha vontade. Ele é o lugar onde vivo, sinto, onde existo.
Lugar de desejo, prazer e sofrimento, domicílio da minha identidade, do
meu ser" (LAPIERRE, 1988).

Esta ciência pode também ser definida como o campo transdisciplinar que
estuda e investiga as relações e as influências recíprocas e sistêmicas entre o
psiquismo e a motricidade. Um dos Campos de aplicação da Psicomotricidade é a
educação, que funciona como uma atividade preventiva, pois propicia à criança
desenvolver suas capacidades básicas, sensoriais, perceptivas e motoras, levando a
uma organização neurológica mais adequada para o desenvolvimento da
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aprendizagem. Desta forma, a educação a partir do próprio corpo é o principal


objetivo da Psicomotricidade, que considera o movimento um dos pontos mais
importantes para este desenvolvimento. Por conseguinte, a Psicomotricidade tem
atuado principalmente na Educação Infantil e na Educação Física, além de diversos
outros setores.
A educação psicomotora concerne uma formação de base indispensável a
toda criança que seja normal ou com problema. Responde a uma dupla
finalidade: assegurar o desenvolvimento funcional tendo em conta
possibilidade da criança e ajudar sua afetividade a expandir-se através do
intercâmbio com ambiente humano (LE BOUCH, 2001, p. 15).

A clientela é vasta e a Psicomotricidade atende indivíduos desde o


nascimento até a velhice, este público agrega crianças em fase de desenvolvimento:
bebês de alto risco; crianças com dificuldades/déficits no desenvolvimento global;
pessoas com necessidades especiais: deficiências sensoriais, motoras, mentais e
psíquicas.
Além disso, o Psicomotricista pode atuar, também, com a família ou
empresa. Sendo assim, o mercado de trabalho em Psicomotricidade divide-se em
creches, escolas de educação normal e especial, academias, clínicas
multidisciplinares, postos de saúde, hospitais e recursos humanos.

REEDUCAÇÃO PSICOMOTORA

Considerando que, uma das áreas de atuação da Psicomotricidade é a


reeducação psicomotora, foi visto aqui, uma possibilidade de atuar, por meio de
jogos e exercícios psicomotores, nas funções prejudicadas de crianças,
adolescentes e adultos com Síndromes Deficitárias Neurológicas, utilizando-se do
próprio corpo para a reabilitação. Espera-se que, ao utilizar diversos recursos da
Psicomotricidade, seja possível também atingir os elementos que formam o
indivíduo, como meio de elevar a autoestima, a autoconfiança e a autonomia das
pessoas com deficiência, o público-alvo deste trabalho.
Para entender o conceito de deficiência, vários estudos foram realizados ao
longo dos tempos pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Apesar dos estudos
apresentarem afinidades nas definições, a legislação brasileira aponta duas
definições semelhantes, sendo a mais recente, aquela estabelecida pela Convenção
de Guatemala, promulgada no Brasil pelo decreto nº 3.956/2001, que define

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deficiência como:

Uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou


transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades
essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e
social (BRASIL, 2007, p. 14).

O LÚDICO NA PERSPECTIVA PSICOMOTORA

A Ludologia foi escolhida como estratégia metodológica, por entender que,


por meio dela, as pessoas podem ressignificar suas experiências de vida,
elaborando ações pessoais que lhes possibilitassem enfrentar as barreiras que os
impedem de atuar no processo da sua inclusão social.
As sessões de psicomotricidade realizadas no Estágio Supervisionado
Psicomotor clínico e relacional utilizaram a ludicidade, pois esta contribui para
equilibrar as emoções e socializar os presentes, permitindo que energias positivas
circulem e favoreçam o desenvolvimento psicomotor do público atendido pelo
projeto.
Considerando-se que muitas pessoas com deficiência ou sem deficiência,
apresentam dificuldades em assimilar conteúdos abstratos, faz-se necessária a
utilização de material pedagógico concreto e de metodologias práticas para que
esses alunos desenvolvam suas habilidades cognitivas e para facilitar a construção
do conhecimento. Os jogos e as brincadeiras são opções metodológicas que
apresentam as duas características acima citadas. Proporcionam a aprendizagem
através de materiais concretos e de atividades práticas, onde a pessoa cria, reflete,
analisa e interage com todos ao seu redor.
Partindo dessa concepção, faz-se necessário abordar a teoria
sociointeracionista do desenvolvimento e da aprendizagem propostas por Vygotsky,
destacando a contribuição do jogo para o alcance desse objetivo.
“[...] o brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento sob
forma condensada, sendo ele mesmo uma grande fonte de
desenvolvimento. Apesar da relação brinquedo-desenvolvimento poder ser
comparada à relação instrução-desenvolvimento, o brinquedo fornece
ampla estrutura básica para mudanças das necessidades e da consciência”
(VYGOTSKY, 1984, p. 117).

Nesse sentido, foram privilegiadas as atividades lúdicas corporais, tônico-


motoras, gestuais, mímicas, no desenrolar do jogo psicomotor simbólico, tentando
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garantir a autonomia de mobilidade do aluno com deficiência. Acredita-se que essa


perspectiva lúdica muito contribui para o trabalho inclusivo, como processo
desencadeador de aprendizagens com jogos e brincadeiras orientadas e planejadas.
Conforme já dito anteriormente, os jogos são tidos como elo integrador entre os
aspectos motores, cognitivos, afetivos e sociais nos espaços mediadores do
conhecimento.
Dessa forma, decidiu-se pelo uso da Ludologia no fazer Psicomotor junto às
pessoas com múltiplas deficiências, por haver um entendimento de que o
profissional da Psicomotricidade pode e deve oportunizá-la ao aluno e usá-la como
um recurso que possibilita o desenvolvimento biopsicossocial, garantindo assim uma
melhor qualidade de vida para eles. Neste sentido, é importante ressaltar que:
O ato de brincar não só é revelador do inconsciente, ele também é catártico,
ou seja, ele é libertador. Enquanto a criança brinca, ela, ao mesmo tempo,
expressa e libera os conteúdos do inconsciente, procurando a restauração
de suas possibilidades de vida saudável, livre dos bloqueios impeditivos
(LUCKESI, 2005, p. 10).

Pode-se compreender então que, brincar, em todo e qualquer contexto,


possibilita ao ser humano o seu estado de liberdade, que se constitui no equilíbrio
entre a realidade do seu eu e a realidade do meio social. Essa ligação estabelecida
é a ação positiva que se desenvolve ao participar de atividades lúdicas, porque elas
permitem sair das amarras que impedem o restabelecimento de um estado
saudável, seja ele físico ou psíquico. O mediador desse processo é o
Psicomotricista, que tem a função de fazer a diferença, utilizando de estratégias em
que a ludicidade é uma alternativa para a aquisição de diversas aprendizagens.
Neste estágio, o trabalho foi realizado em grupo por se observar que, dessa
forma, as pessoas aprendem novas atitudes do bem estar, como controlar
ansiedades, vencer obstáculos e a buscar soluções coletivamente, pois é na equipe
que se rompe os entraves à aprendizagem. E, parafraseando Vygotsky (1987), para
construir o conhecimento é necessária a relação entre o sujeito e o objeto de
conhecimento, implicando uma interação, pois é através dessas relações que ocorre
a aprendizagem.
Com isso, Vygotsky (apud FERREIRA, 2000, p.12) afirma que “o contexto
sócio-histórico influência na formação e na dinâmica da relação entre os processos
de desenvolvimento e aprendizagem do indivíduo”. Segundo Oliveira (1997, p. 36),
“[...] o indivíduo se constrói gradativamente, através da interação com o meio e de
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suas próprias realizações e a psicomotricidade desempenha aí um papel


fundamental”. Assim, o saber psicomotor articula-se, através de uma práxis que
respeita o ser singular, mas que consolida o ser plural, grupal que consegue vencer
os obstáculos como resultado de sua aprendizagem.

CONTEXTUALIZANDO O ESTÁGIO PSICOMOTOR CLÍNICO / RELACIONAL

Esta ação aconteceu na Instituição Núcleo Cuidar, vinculada à Associação de


Pais e Portadores de Síndromes Deficitárias Neurológicas, localizada na Travessa
Juarez Távora, nº 29, bairro São Caetano, no município de Itabuna – Bahia. Após
contato inicial com entrega do ofício de encaminhamento, estabeleceram-se
confirmações dos encontros de estágio psicomotor previamente planejado e
organizado que ocorreram no período de 30 horas alternadas.
O projeto contemplou um grupo de aproximadamente 15(quinze) pessoas,
entre crianças, adolescentes e adultos com Síndromes Deficitárias Neurológicas,
com idades que variavam entre 04 (quatro) a 60 (sessenta) anos, do sexo feminino e
masculino. O fato de existirem crianças, jovens e adultos no mesmo ambiente e com
deficiências diferentes, exigiu do profissional de Psicomotricidade um planejamento
diversificado e diário, além das adequações necessárias para garantir a inclusão de
todos e todas nas atividades. O estágio teve a duração de 10 (dez) semanas.
O objetivo deste trabalho foi conscientizá-los sobre a descoberta das
aprendizagens, a partir do próprio corpo, com a finalidade de ajudá-los a superarem
as dificuldades nos aspectos físico, afetivo e cognitivo por meio do lúdico (jogos,
brincadeiras e vivências), buscando despertar o histórico de vida dos envolvidos, a
fim de facilitar as suas próprias percepções de si, do outro e de seu entorno, com as
ações psicomotoras.
No decorrer do processo, observou-se o grau de conhecimento deste público
quanto ao próprio corpo e os seus desempenhos motores, por meio da Bateria de
Teste Psicomotor de Vitor da Fonseca (1995). Em seguida, utilizou-se dos jogos
espontâneos, isentos de julgamento e não dirigidos, onde quase tudo é permitido,
sob a condição de se manter a expressão no registro simbólico.
Acredita-se que, quando é feito um trabalho a partir de atividades
espontâneas, através da Psicomotricidade, tem-se conhecimento de outras

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dimensões do corpo de quem se beneficia das atividades. Este passa a integrar


todas as relações, propiciando aos envolvidos uma evolução no campo cognitivo,
afetivo e motor. Até porque a Bateria Psicomotora tem a finalidade de descrever o
perfil psicomotor do sujeito (da criança, adolescente, adulto ou do idoso).
O perfil psicomotor caracteriza as potencialidades e as dificuldades da
criança, dando suporte para identificar e intervir nas dificuldades de
aprendizagem psicomotora, satisfazendo progressivamente as
necessidades mais específicas da criança (FONSECA, 1995b).

Neste momento, cabe ao Psicomotricista, observar e decodificar o


comportamento dos sujeitos expresso nas brincadeiras, levando em consideração os
aspectos corporais e os vínculos estabelecidos quanto ao cognitivo, afetivo e motor
nas ações e no processo de aprendizagem.
Quanto ao meio de investigação, optou-se por um estudo de caso, por este
ser um estudo amplo e detalhado. Conforme Goldenberg (2000, p. 33), “o estudo de
caso reúne o maior número de informações detalhadas, por meios de diferentes
técnicas de pesquisa, com o objetivo de apreender a totalidade de uma situação e
descrever a complexidade de um caso concreto”.
À vista disso, trabalhou-se com a adolescente S.G.S., 13 anos, que apresenta
a Síndrome de Mielomeningocele, associada à hidrocefalia congênita. Esta
Síndrome acontece no primeiro mês de gestação. Constitui-se em uma falha de
fechamento do tubo neural do embrião. Nesse aspecto as estruturas da porção
posterior da coluna vertebral não se fecham adequadamente, o que leva à
exposição, em graus variados do conteúdo do sistema nervoso da região afetada.
Como consequências dessas doenças, a jovem utiliza próteses nas pernas para se
locomover, faz uso de óculos e de válvula na coluna vertebral.

Para a coleta de dados sobre o nível psicomotor da jovem, foi realizado um


diagnóstico das funções psicomotoras, por meio da Bateria de Testes Psicomotora
de Vitor da Fonseca, quando foram realizadas sessões psicomotoras e observações
sistemáticas, ou seja, como a adolescente se comporta no momento da realização
das atividades lúdicas? Em seguida foi elaborado um plano de ação psicomotor
clínico.
Durante a observação é importante destacar que a relação entre o
observador e o mundo observado é bastante crítica e precisa ser
cuidadosamente planejada e ter suas implicações sistematizadas e
incluídas na própria análise do fenômeno (VERGARA, 2005, p. 219).
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Para alcançar os objetivos deste projeto foram desenvolvidas atividades


psicomotoras que envolvem o Esquema Corporal, a Dominância Lateral, a
Estruturação e organização espaço-temporal, além de trabalhar questões cognitivas
e afetividade, sem deixar de considerar os sintomas acompanhados de distúrbios
mentais, orgânicos, psiquiátricos, neurológicos e/ou relacionais.

ESTÁGIO PSICOMOTOR CLÍNICO E RELACIONAL


O campo de atuação psicomotora utilizado foi a reeducação, entendida aqui
como o atendimento individual ou em pequenos grupos de crianças, adolescentes
ou adultos que apresentassem condições de interagir entre si, de forma mediada e
ponderada. Dessa forma, trabalhou-se com as funções psicomotoras: esquema
corporal, imagem corporal, tônus, coordenação global ou motricidade ampla,
motricidade fina, organização espaço-temporal, ritmo, lateralidade, equilíbrio,
sempre utilizando do lúdico, conforme as ilustrações a seguir:
FIGURA 01

Fonte: Estágio Psicomotor Clínico – Jogo do Bilboquê, Núcleo


Cuidar, 2013.

As sessões do Estágio Psicomotor Clínico atentaram-se para algumas


mudanças nos comportamentos da adolescente S.G.S. A partir da Confecção do
Bilboquê, foi possível perceber a participação intensa e a curiosidade desta jovem
na confecção do brinquedo com sucata. Mesmo com as dificuldades psicomotoras
existentes, ela se esforçou para ver o brinquedo pronto. Nesta ação foi possível
desenvolver a coordenação óptico-motora e a habilidade manual da mesma.
Conforme diálogo com Fonseca (2003), a maioria dos brinquedos industrializados

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não leva a criança à curiosidade da exploração, por meio do vivido e da criação.


Assim, alerta que:

Não é o produto que deve ser criativo, mas sim o uso que se faz dele.
Sendo assim, não é necessária a presença do brinquedo industrializado
para a realização do brincar, o próprio ato de manufaturar o brinquedo, pode
ser considerado o brincar, onde é colocada prazerosamente grande parte
de criatividade (ABRAMOVICH, 1983 apud FONSECA, 2003, p.8).

Vale considerar o olhar atento do profissional da Psicomotricidade às ações


lúdicas e o contexto das necessidades do sujeito com deficiência, para que se
encarregue de construir e/ou adaptar conforme as potencialidades destes. Assim, foi
o fizemos junto com S.G.S, quando a mesma participou da construção e decoração
do bilboquê. Esta ação possibilitou o desenvolvimento da criatividade e a interação da
mesma com as outras pessoas do grupo.
FIGURA 02

Fonte: Estágio Psicomotor Clínico – Cole o Rabinho, Núcleo Cuidar, 2013.

Para estimular a autonomia de mobilidade desta adolescente, foi proposta a


brincadeira do Cole o Rabinho do Burro. Essa atividade psicomotora tem como
objetivo favorecer ações de foco, de concentração, atenção e percepção auditiva,
além de propiciar o envolvimento de todo o grupo, no momento das recomendações
e das dicas para se alcançar ou chegar o mais próximo possível do alvo.
Na referida atividade, observou-se que, apesar da deficiência física, a jovem
apresentou entusiasmo e disposição, além de boa percepção auditiva e atenção ao
executar as ações propostas pelo grupo. Isto posto, foram desenvolvidas outras
atividades, tais como: Circuito de obstáculos, com pneus, bambolês, corda,
etc.,Limão na colher, “O cacique mandou”, pega varetas, boliche de garrafa pet,

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passando a bola no círculo, lançamento de argolas nos cones e na boca do palhaço,


etc.

FIGURA 03

Fonte: Estágio Psicomotor Clínico – Contos de Fadas, Núcleo Cuidar, 2013.

Nesta sessão realizou-se a contação de histórias, a partir dos Contos de


Fadas com a interatividade do grupo, favorecendo, assim, o jogo simbólico. Esta
atividade possibilitou a expressão de fantasias com base no contexto em que cada
um vive, utilizando-se o imaginário por meio dos jogos de faz-de-conta. Objetivou-se
que os participantes pudessem interagir no grupo, participando da atividade com
entusiasmo e dedicação. Aqueles que não conseguiram verbalizar a história fez isso
por meio de desenhos ou modelagens.

FIGURA 04

Fonte: Estágio Psicomotor Clínico – A dança da matemática, Núcleo Cuidar,


2013.

Nesta sessão foram realizadas brincadeiras que facilitassem o


desenvolvimento cognitivo, físico-motor, com trabalhos de locomoção, equilíbrio e o

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desenvolvimento afetivo. Assim como realizações de dinâmicas de integração e


socialização com a presença da família. Essas atividades ajudam a desenvolver a
percepção visual, as noções de quantidade, coordenação motora ampla, criatividade
e a autonomia, além de contribuir para o desenvolvimento da percepção espaço-
temporal e a socialização grupal. As brincadeiras entre pais/mães e filhos (as)
favorecem os vínculos afetivos, bem como o respeito às limitações do outro. Diante
disso, percebe-se que a presença da família enriquece as atividades psicomotoras
lúdicas.

FIGURA 05

Fonte: Estágio Psicomotor Clínico – Desenvolvendo Esquemas


Corporais, Núcleo Cuidar, 2013.

Também foi realizado um trabalho com o corpo humano em MDF, recortado,


para que a aluna, acima citada, pudesse montá-lo, observando-se o esquema
corporal. Nesta atividade, notou-se que a mesma tem a capacidade de simbolizar
seu próprio corpo e interiorizar a sua imagem, demonstrando amadurecimento
neurológico. Possui, portanto, o esquema corporal desenvolvido, porém percebeu-se
que a noção de lateralidade dela ainda precisa ser mais aprimorada. Nesta ação foi
explorado o corpo como agente de comunicação e identificação pessoal. Diante
disso, foi possível perceber, na adolescente, a consciência e o domínio corporal e
postural. A lateralização dela não é bem definida, porém apresenta predominância
na direita. Concluiu-se que sua noção de corpo é satisfatória.
A organização espaço-temporal necessita ser mais estimulada. Na praxia
global, apresentou algumas dificuldades nos movimentos, por conta da limitação na
mobilidade corporal, contudo realizou as atividades propostas satisfatoriamente. Não

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apresentou dificuldades nas praxias finas. Logo seu perfil psicomotor é considerado
dentro da normalidade segundo Fonseca (1995).

CONSIDERAÇÕES PROPOSITIVAS

De acordo com os registros acima, ao fazer análises da Bateria Psicomotora,


percebeu-se que a aluna apresentou perfil psicomotor dentro da normalidade,
apesar, das limitações. Seu grau de tonicidade não demonstrou sinais atípicos. A
equilibração foi de certa forma prejudicada pelo fato de a mesma fazer uso de
próteses para se locomover.

Diante do exposto, a prática psicomotora, relatada neste artigo, reafirmou a


importância da Ludicidade como estratégia metodológica de intervenção
Psicomotora. Constatou-se que, através do brincar, utilizando recursos como jogos,
contação de histórias, teatro de fantoches, dramatizações, dinâmica de autoestima
dentre outros, é possível intervir significativamente na aprendizagem. Além de
favorecer, não apenas o desenvolvimento psicomotor, cognitivo e afetivo, como
também a integração do grupo, daqueles que frequentaram o Núcleo Cuidar, no
referido período.
A opção pela Ludologia, no fazer psicomotor clínico e relacional, tornou as
intervenções do Estágio Supervisionado mais agradáveis e prazerosas. Esta
constatação se deu por conta do número de participantes que crescia a cada
encontro e também pelo entusiasmo e alegria, vista nos olhos das pessoas
envolvidas no projeto.
Para a aluna observada, que no início se mostrava meio arredia e sem
interesse em participar das atividades, esse período possibilitou maior integração
desta, no grupo, e, suas funções motoras foram realizadas com mais segurança e
agilidade, além disso, o contato com a Pr3 oportunizou a criação de vínculos afetivos
com as estagiárias, pois, mesmo após o estágio, ainda são mantidos contatos físicos
e virtuais.
Diante do que foi relatado neste artigo, reforça-se aqui a importância de a
Instituição Núcleo Cuidar oferecer um Programa de Intervenção Psicomotora para

3
Pr – Pessoa referida
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todos que frequentam aquele espaço, pois eles necessitam de estímulos que os
ajudem a desenvolver os órgãos prejudicados pelas Síndromes Deficitárias
Neurológicas.
Considerando tratar-se de pessoas com múltipla deficiência, deve-se
dispensar atenção individualizada, mesmo nas atividades em grupo. Lembrando que
o convívio entre as pessoas com situações semelhantes é sempre recomendado.
Sugere-se ao (à) profissional que for atuar neste espaço, estar preparado
também, para lidar, de forma mediadora e adequada, com os indivíduos e a família.
Até porque, consideramos a participação da família como fundamental para o
sucesso das atividades de Intervenção Psicomotora. É importante considerar que, o
atendimento oferecido por esta Instituição contemple a todos globalmente, e que, o
profissional que conduzir o processo, esteja devidamente preparado para realizá-lo,
apoiando o desenvolvimento e a promoção como ser humano.
Os resultados obtidos pelas pessoas com múltiplas deficiências atendidas no
projeto de Intervenção Psicomotora, citados acima, comprovam a necessidade de
manter-se a oferta desse serviço no Núcleo Cuidar. Certamente, a existência desse
atendimento pode fazer grande diferença na vida dos sujeitos com necessidades
especiais.
A partir desse estágio foi possível perceber que o Psicomotricista deve
implementar ações, percepções e oportunidades de participação da pessoa com
deficiência nas atividades, atentando, sempre, para intervenções que não ponham
em risco sua saúde do cidadão. Todas as atividades devem ser realizadas em um
contexto lúdico e funcional, sem a característica de “exercícios escolares” ou de
treinamento.
Pelo vivenciado neste estágio, pode-se afirmar que foram momentos de
liberdade, criatividade e superação da jovem com Síndrome Deficitária Neurológica.
Isso nos fez perceber que é preciso evitar focalizar apenas as áreas de dificuldades
ou aspectos isolados do desenvolvimento e da aprendizagem do sujeito, mas
destacar suas potencialidades e capacidades, como base atuação psicomotora.
Por fim, esta experiência viabilizou a percepção de que o desenvolvimento
psicomotor acontece de forma individualizada, onde cada pessoa possui seus
próprios conhecimentos, por meio de uma relação com a imagem do corpo e
associada com o desenvolvimento das concepções do mundo em que vivem. Outra
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relação a ser associada é com os objetos, fazendo assim a conexão entre seu corpo
e o objeto, ou seja, ao meio social em que está acontecendo a maturação. Desse
modo, cérebro e músculos influenciam-se e educam-se, fazendo com que o
indivíduo evolua no plano do pensamento e da motricidade.

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