Livro Salto Cultura Popular e Educacaoi

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Salto para o Futuro um programa da TV Escola, canal da Secretaria de Educao a Distncia (SEED) do Ministrio da Educao (MEC), que tem

m como objetivo a formao continuada de professores da Educao Bsica. O programa utiliza diferentes mdias televiso, internet, fax, telefone e material impresso no debate de questes relacionadas prtica pedaggica e pesquisa no campo da Educao. Os debates so transmitidos ao vivo, de segunda a sexta-feira, de 19h s 20h e reprisados ao longo da semana. Assista ao Salto. Converse com outros professores. Participe das discusses. Salto para o Futuro: parceiro do professor.
Cultura Popular e Educao Salto para o Futuro

Cultura popular e educao rene textos produzidos para sries do Programa Salto para o Futuro, no perodo de 2003 a 2007. A relao educao e cultura, a dimenso educativa das manifestaes culturais populares, o modo peculiar de ser e estar no mundo de diferentes grupos sociais, a diversidade cultural brasileira, a relao escola e comunidade... Todos esses aspectos foram tomados como norteadores em diferentes momentos do programa. A perspectiva foi sempre considerar o universo cultural das comunidades em suas mltiplas expresses e vises de mundo e, de forma no hierarquizada, buscar promover o dilogo entre mltiplos saberes. Para isso nos apoiamos no s nos pesquisadores que tm se dedicado aos estudos das manifestaes populares mas, sobretudo, nos ensinamentos dos Mestres, dos aprendizes, dos brincantes, enfim, daqueles que cotidianamente produzem cultura, culturas. Essa coletnea um convite aos professores e professoras para a reflexo sobre aspectos fundantes de nossa identidade como nao multicultural e pluritnica. Com mais essa iniciativa a Secretaria de Educao a Distncia do Ministrio da Educao reafirma seus propsitos de, por meio da TV Escola e do programa Salto para o Futuro, dar visibilidade a temas significativos para a formao de professores e alunos das escolas brasileiras. Rosa Helena Mendona

Presidncia da Repblica Federativa do Brasil Ministrio da Educao Secretaria-Executiva Secretaria de Educao a Distncia Coordenao da TV Escola Organizao Ren Marc da Costa Silva Ilustraes Rafael Lobo Colaborao Tcnica Carlos Frederico Rolim de Andrade Rafael Mesquita Rosa Helena Mendona Projeto Grfico, Diagramao, Capa e Impresso Grfica e Editora POSIGRAF S/A Tiragem: 80.000 exemplares Publicao Ministrio da Educao MEC Secretaria de Educao a Distncia SEED Esplanada dos Ministrios, Bloco L, 1 andar 70047-900 Braslia DF Telefone: (61) 2104-8975 Fax: (61) 2104-9159 E-mail: [email protected] [email protected] Internet: http://tvescola.mec.gov.br

Cultura popular e educao / Organizao Ren Marc da Costa Silva. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao a Distncia, 2008. 246 p. - (Salto para o futuro). 1. Cultura popular. 2.Cultura e educao. I. Silva, Ren Marc da Costa. II. Brasil. Ministrio da Educao, Secretaria de Educao a Distncia. CDU 37.014.2

CULTURA POPULAR E EDUCAO

Braslia, 2008
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CULTURA POPULAR E EDUCAO


Salto para o Futuro

Organizao
Doutorado em Histria pela Universidade de Braslia Professor de Histria, tica e de Cultura Poltica no programa de mestrado no Centro Universitrio de Braslia - UniCeub

Ren Marc da Costa Silva

Salto para o Futuro / TV Escola / SEED / MEC

SUmRiO
Apresentao do organizador Cultura popular e a educao .................................................................. 07 Captulo 1 Cultura Popular, linguagens artsticas e educao .................................. 13 Entendendo o folclore .......................................................................... 21 Viver de criar cultura, cultura popular, arte e educao ......................... 25 O que vamos aprender hoje .................................................................... 39 Jongo: Uma didtica a caminho da escola .............................................. 49 Cultura popular urbana e educao: o que a escola tem a ver com isso? .. 57 Engenho e arte ........................................................................................ 65 Linguagens artsticas da cultura popular ................................................ 75 Captulo 2 Memria, Identidade e Patrimnio ......................................................... 83 A fotografia como objeto de memria .................................................... 91 As festas populares como objeto de memria ........................................ 95 A msica como objeto de memria ........................................................ 103 Os lugares da memria ........................................................................... 111 Patrimnio imaterial: novas leis para preservar... O qu? ...................... 119 Captulo 3 Conto e reconto, literatura e (re) criao ................................................ 125 Histrias da tradio oral: os contos etiolgicos .................................... 133 Histrias dos ndios l em casa ............................................................... 141 Cantos e re-encantos: vozes africanas e afrobrasileiras .......................... 151 Aventura partilhada ............................................................................... 171 Conto popular, literatura e formao de leitores .................................. 179 Captulo 4 Aprender e ensinar nas festas populares ............................................... 189 Festas de Santos Reis ............................................................................ 197 Festas juninas ........................................................................................ 211 Festas carnavalescas ............................................................................. 219 Festas de trabalho ..................................................................................231 Festas da afro-descendncia ..................................................................241

CULTURA POPULAR E A EDUCAO


Ren Marc da Costa Silva1 Cultura popular e educao podem adquirir significados muito diferentes, dependendo do contexto ou da sociedade a partir da qual forem pensadas. Numa sociedade como a brasileira, profundamente marcada por mltiplas hierarquias e desigualdades, a idia de cultura antes de tudo associada sofisticao, erudio e educao formal uma vez aproximada categoria popular produz uma estranha dissonncia. Cultura popular identifica, ento, o cultivo dos elementos, significados e valores comuns ao povo, essencialmente diferentes dos meus sofisticados, elaborados, superiores posto que so tambm, eles, diferentes de mim, se vestem e falam de outro modo, habitam outros lugares. No Brasil a idia de cultura (pelo menos a denominada cultura de verdade ou a alta cultura) remete para um conjunto de bens materiais ou imateriais possvel de ser apropriado e elaborado por uma minoria, uma elite endinheirada. Acessveis a poucos, a perspectiva de universalizar esses bens somente os desvaloriza e apequena. Decorre disso que escola (e educao) no nosso Brasil continua sendo, de certa forma um lugar de excluso. O acesso aos bens e equipamentos culturais de qualidade ainda extremamente restritos. Livros, computadores, museus so em grande medida marcadores de lugares sociais especficos entre ns, apesar das polticas pblicas voltadas para democratizar o acesso aos chamados bens culturais. Assim, a lgica dominante que hierarquiza, a partir do valor financeiro e do mercado, as diversas formas de expresso simblica no pas em que vivemos, reproduz tambm estas desigualdades em outras tantas escalas. Regies do pas, como o Sul-Sudeste, onde estes mercados so mais pujantes concentram uma produo cultural mais vinculada indstria cultural transnacional, para a qual so canalizados os principais recursos e investimentos disponibilizados pelo Estado. Este colonialismo cultural interno se materializa no fato
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antroplogo e doutor em histria pela Universidade de Braslia UnB, professor de histria, tica, alm de cultura poltica no programa de mestrado em direito do Centro Universitrio de Braslia UniCeub.

de que a maioria das manifestaes identificadas como populares ocorre hegemonicamente em outros lugares, fora do eixo Rio-So Paulo, onde esto concentrados os principais meios de difuso. A relao entre cultura popular e poder no Brasil, portanto, passa quase sempre primeiro pela regio, depois pelo Estado, pelo municpio e, na maior parte das vezes; somente l no distrito, isolados em lugares extremos do territrio brasileiro esto os grupos artsticos de criao popular. Essa mesma estrutura desigual de poder se reproduz no interior das grandes cidades, geralmente habitadas nas suas periferias por migrantes que bravamente recriam as maifestaes tradicionais de sua cultura. Nessas comunidades, l, aonde quase no chegam recursos e apoio do Estado, a relao entre cultura e poder , ento, a mesma. Configura uma equao inequvoca criao artstica popular e pobreza material/fraqueza poltica. No difcil, ento, compreender que os conflitos culturais assentados nesta oposio entre cultura popular e cultura de elite so, na verdade, correlatos a diversos outros conflitos raciais, de classe, polticos, econmicos e simblicos. Esta estrutura cultura popular/precariedade material/escasso poder poltico vigente no pas, se manifesta tambm no fato de que um enorme contingente de mestres populares so negros. dessa maneira que resta inegvel que uma grande parte da censura, do silenciamento, da opresso, da dificuldade que muitos grupos de cultura popular sofrem no Brasil conseqncia, sobretudo, da realidade municipal, de prefeituras racistas, opressoras, preconceituosas e terrivelmente classistas (Carvalho, 2006). No por outra razo que os brincantes dos Pretinhos do Congo do histrico municpio de Goiana, em Pernambuco, os quais preservam uma das manifestaes mais expressivas da cultura popular local moram beira do rio, literalmente quase caindo na gua, em uma situao deveras precria. Ou, por outro lado, que em Uberlndia os brancos poderosos da cidade esto querendo retirar a igreja central como ponto de referncia obrigatria do circuito devocional dos Congados e construir uma segunda igreja do Rosrio bem longe do centro, na periferia urbana, para que os negros no circulem mais pelo centro da cidade.(Carvalho, 2006). Negros, pobres, isolados, trabalhando no mais das vezes com parcos recursos, estes mestres e brincantes da cultura popular so tambm artesos, desenvolvem um trabalho em tudo comunitrio, territorializado, apontando em muitos casos para o 8

sagrado. Diferenciam-se da indstria cultural na medida em que esta utiliza elementos tecnolgicos prprios da segunda revoluo industrial (fotografia, televiso, rdio, cinema), produzindo o que se convencionou chamar de simulacro (Baudrillard, 1991, 1996). Ao contrrio da indstria cultural, os brincantes da cultura popular produzem cultura a partir de uma tecnologia mecnica simples, em tudo diferente da tecnologia caracterstica do capitalismo tardio. A energia que as manipula basicamente humana, centrada na corporalidade, no uso das mos, do controle do processo produtivo/ criativo pelo corpo, esvaziando assim os elementos de fora produtores do simulacro, reencantando-os, ao mesmo tempo em que trazendo-nos de volta para uma dimenso mais prxima do real. Por este motivo resistem um pouco mais a serem capturados pela lgica da mercadoria cultural feita em srie, barata, desencantada, cujo maior valor agregado o simulacro, onde os suportes materiais produzem bens simblicos como puros efeitos virtuais. Esse o contexto poltico-cultural e socioeconmico em que se situa a subalternidade da cultura popular. Esta, ainda que se utilize em alguma medida de tecnologia, nunca alcana o nvel manipulado pela indstria cultural, dimenso que organiza e d sentido majoritrio vida simblica nas sociedades altamente industrializadas. (Carvalho, 2006). Enfim, preciso recusar a hierarquizao das expresses culturais e sua articulao em culturas subalternas e culturas dominantes. necessria uma outra viso do processo cultural como um todo, mas tambm da educao e da escola. Recusar a subalternidade da cultura popular, recuperar sua importncia fundamental conceb-la a ocupar um lugar privilegiado de onde se pode pensar e ver criticamente, perspectiva analtica capaz de pensar em profundidade os principais ns e estrangulamentos da histria do Brasil e da cultura brasileira em geral. A partir da cultura popular, possvel pensar um outro pas, uma ou vrias alternativas de Brasil. Isto porque a cultura popular brasileira um estoque inesgotvel de conhecimentos, sabedorias, tecnologias, maneiras de fazer, pensar e ver nossas relaes sociais e, nessa exata medida, um lugar em que mais do que simplesmente criticar o modelo genocida e autodestrutivo de desenvolvimento, possvel resistir a ele com outras propostas de sentido do viver e de humanidade. S depois de nos despir dos entulhos de mais de 500 anos de vigncia de noes hierrquicas e desiguais ser menos absurdo 9

pensar tambm a possibilidade de uma outra escola, de uma outra maneira de ensinar e, sobretudo, de ensinar outras coisas. Recusar a subalternidade da cultura popular , portanto, ser capaz tambm de conceber o mestre, o local/nacional no processo de ensino nas escolas e nas universidades. Finalmente, saberemos se somos capazes de reorientar, num sentido mais igualitrio e mais equilibrado, os projetos de desenvolvimento nacional, se formos antes, mas igualmente, capazes de reorientar a escola e a educao para um sentido menos instrumental, menos utilitarista e mais humano. Construir uma nao livre, tolerante e igualitria , de outra forma, sermos capazes de tornla plural, multissapiente, multicultural, multitnica e multirracial. Uma nao que possibilite a comunicao horizontal entre centro e periferia, eliminando as oposies hierarquizantes existente entre estes dois plos, uma nao com indivduos capazes de re-conhecer a diversidade como elemento fundante e caracterstica fundamental para a existncia de uma sociedade disposta a fazer-se democrtica, justa e igualitria. Isto tem, portanto, tudo a ver com cultura popular, escola e educao. Este o esprito que anima o presente volume, cuja temtica Educao e Cultura Popular, da srie Salto para o Futuro, programa realizado pela TV Escola, canal deEducao a Distncia da Secretaria de Educao a Distncia do Ministrio da Educao, produzido pela TVE Brasil. Essa coletnea fruto do esforo para contribuir com a reflexo dos professores sobre questes to relevantes para a formao de estudantes das escolas pblicas. Dessa forma, apresentamos os diversos textos, com abordagens distintas, que fazem parte dos boletins de sries realizadas nos anos de 2000 a 2007. Sua organizao foi pensada com o intuito de propor novas leituras, por isso, os textos foram agrupados por temas, dos quais derivaram quatro captulos: Captulo 1: Cultura Popular, linguagens artsticas e Educao Captulo 2: Memria, identidade e patrimnio Captulo 3: Conto e reconto, literatura e (re) criao Captulo 4: Aprender e ensinar nas festas populares

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Bibliografia
Baudrillard, Jean. Simulacros e Simulao. Lisboa, Relgio dgua, 1991. _____________ A Troca Simblica e a Morte. So Paulo, Edies Loyola, 1996. Carvalho, Jos Jorge. Fomento, Difuso e Representao das Culturas Populares.So Paulo: Instituto Polis; Braslia: Ministrio da Cultura, 2006. Kant de Lima, Roberto. A Administrao dos Conflitos no Brasil: a Lgica da Punio. In: Velho, Gilberto & Alvito, Marcos (Orgs.). Cidadania e Violncia. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ/Editora da FGV, 1996.

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CULTURA POPULAR, LINGUAGENS ARTSTICAS E EDUCAO Ren Marc da Costa Silva1 Ningum hoje em dia, com toda certeza, negaria o papel de enorme importncia que a escola tem na defesa, promoo, difuso e conhecimento das manifestaes culturais populares. Entretanto, talvez no esteja da mesma maneira claro para muitos de ns a significativa contribuio que as manifestaes culturais populares podem trazer para a escola. So muitas; todavia, a mais importante talvez seja a possibilidade que as manifestaes culturais populares tm de, uma vez integradas no interior do sistema e do processo de ensino formal, revolucion-lo. A comear por nos permitir pensar algo mais amplo: quem sabe, uma nova e mais humanizada estratgia de educao. Os textos que compem esta primeira unidade tm o escopo de nos estimular a pensar a necessidade de construir histrica e coletivamente a escola como um espao onde diferentes linguagens possam produzir, portanto, um novo sujeito. A modernidade2 , com suas demandas cada vez maiores de um conhecimento em tudo instrumental, mais e mais pautado pela obsesso da utilidade, produtividade, funcionalidade, tem orientado nossas escolas a atender prioritariamente, em termos de habilidades e capacidades adquiridas, as expectativas de um sistema produtivo alienante e desumanizante. A linguagem sabemos, a capacidade de expressar, de simbolizar e comunicar idias, sentimentos, sensaes... enfim, de dizer o mundo. Portanto, aquilo que existe de mais humano no homem. Uma escola concebida como um espao onde pudesse vicejar uma multiplicidade de linguagens permitiria florescer, tambm, uma
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antroplogo e doutor em histria pela Universidade de Braslia UnB, professor de histria, tica, alm de cultura poltica no programa de mestrado em direito do Centro Universitrio de Braslia UniCeub. 2 Modernidade sugere um sentido de poca. (...) Do ponto de vista da teoria sociolgica alem do final do sculo XIX e comeo do sculo XX, do qual derivamos grande parte de nosso sentido atual do termo, a modernidade contrape-se ordem tradicional, implicando a progressiva racionalizao e diferenciao econmica e administrativa do mundo social (Weber, Tonnies, Simmel) Processos que resultaram na formao do moderno Estado capitalista-industrial (...) FEATHERSTONE, 1995, p. 20)

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pluralidade de sentidos, de novos sentidos do humano. Uma escola apta a fazer do ensino um instrumento sustentador de valores e no mais pura e simplesmente reprodutora de aprendizado tcnico. A lgica do capitalismo transnacional e globalizado vem nos adestrando em linguagens instrumentais, o mercado tem-nos exigido a adequao e a conformao de nossas escolas, currculos e contedos a pautas basicamente informativas, fragmentadas, produzindo textos sem nexos mnimos de significao, condenandonos todos solido e a uma vivncia marcada por um individualismo exarcerbado. A lgica do farinha pouca, meu piro primeiro e da violncia generalizada disseminada entre ns torna invivel o compartilhamento de experincias e proporciona, no mais das vezes, existncias esvaziadas de sentido e propsitos. Qual o papel da escola em todo este complexo de fatores? O que exatamente a educao tem a ver com isso? Em que a cultura popular pode oxigenar a escola e o processo formal de ensino, de modo a capacit-los a enfrentar a ps-modernidade3 globalizada de posse de valores capazes de re-fundar o humano, tais como: respeito, solidariedade, liberdade, igualdade, pluralidade? exatamente o esforo de repensar estes problemas, estes estrangulamentos a proposta desta unidade. O texto Entendendo o folclore, primeiro texto dessa unidade, mostra no apenas um panorama interessante sobre a trajetria dos estudos sobre o folclore no Brasil, caracterizando-o, a partir de muita informao, mas tambm como a sntese mais bem acabada da cultura popular entre ns. Alm disso, desconstri a idia da imobilidade do folclore e da cultura popular de maneira geral, assinalando o dinamismo, a circulao e o intercmbio daquele com a cultura erudita e a cultura de massa, como marcante caracterstica. Entretanto, selecionamos este texto para abrir a unidade, principalmente, pelo que nele sobressalta o papel fundamental do folclore no desabrochar de uma nova idia de educao no pas, marcada pelas noes de igualdade, pluralidade e tolerncia. neste sentido que Maria Laura Cavalcanti, autora do trabalho, destaca o papel essencial que o grande Mrio de Andrade conferia ao folclore.
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O Ps-modernismo percebido antes como um aprofundamento das tendncias antinmicas do modernismo com o desejo, o instintivo e o prazer liberados para levar a lgica modernista as suas ltimas conseqncias, exacerbando as tenses estruturais da sociedade e a disjuno dos domnios.(FEATHERSTONE, 1995, p. 26)

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Para ele, o folclore seria nada menos que a expresso maior de nossa brasilidade e elemento decisivo de formulao de um ideal de cultura e identidade nacional. Mas tambm, e, sobretudo, como fator de compreenso entre os povos, incentivando o respeito s diferenas, permitindo a construo de identidades diferenciadas entre naes que partilham de um mesmo contexto internacional foi precisamente este, assinala a autora, o papel sobranceiro que o folclore desempenhou no ps-guerra, diante da necessidade de fortalecimento e consolidao da paz no mundo. Igualdade, pluralidade e tolerncia continuam sendo os aspectos relevantes do universo temtico do texto seguinte, Viver de criar cultura, cultura popular, arte e educao do Professor Carlos Rodrigues Brando. Mostra o autor que cultura um conjunto diverso, mltiplo de maneiras de produzir sentido, uma infinidade de formas de ser, de viver, de pensar, de sentir, de falar, de produzir e expressar saberes, no existindo, por conta disso, uma s cultura, ou culturas mais ricas ou evoludas que outras tampouco, gente ou povos sem cultura. Recusar, portanto, o etnocentrismo essa tendncia de valorizarmos unicamente nossa maneira de ser e de viver, enfim, nossa cultura reorientar o nosso olhar prioritariamente em direo a uma vocao mais multicultural, no interior da qual possamos jamais perder de vista que as culturas humanas so diferentes, mas nunca desiguais. So qualidades diversas de uma mesma experincia humana, mas qualquer hierarquia que as quantifique indevida. A importncia da cultura popular para Brando advm, principalmente, da descoberta de que ela nos oferece de formas de aprendizagem e ensinamentos menos utilitrios e instrumentais do que os disponibilizados em geral por nossas escolas. A cultura popular, portanto, concebida como um sistema outro de conhecimentos, sentidos e significados, seria capaz de resgatar para a escola no processo educacional, toda a riqueza da experincia de diferentes formas de compreender e interpretar o real, a vida e a condio humana. Pareceu-nos adequado tambm que o texto O que vamos aprender hoje viesse a seguir, principalmente porque uma tima orientao ao professor de como materializar essas linguagens artsticas populares, a infinidade de brincadeiras, histrias contadas ou cantadas, parlendas, trava-lnguas e advinhas no dia-a-dia de sala de aula. A partir do projeto Tangolomango, Marisa Silva mostra como 17

no mbito da oralidade, caracterstica muito prpria dos saberes populares, se pode repensar contedos curriculares, se redesenhar disciplinas, prticas, pessoas, a escola e a prpria educao. No texto Jongo: Uma didtica a caminho da escola, o tema da escola como um espao produtor e reprodutor de hierarquias e desigualdades sobre um conjunto mltiplo e diverso de conhecimentos e saberes volta a ser enfatizado. Dlcio Jos Bernardo assinala que foi justamente na escola que conheceu de perto o preconceito. Exatamente por isso, o trabalho de Bernardo certamente faz pensar na intensidade da violncia experimentada por aqueles como ele prprio lavradores e lavradoras que perderam suas roas, e ganharam, de presente, os morros dos centros das cidades, e que vem a escola, ao receb-los, tratar os saberes que herdaram de seus antepassados como coisa sem importncia, algo que no vai tornar voc algum ou no vai preparar voc para a vida. Beleza maior, todavia, foram as possibilidades mltiplas descortinadas pela experincia educacional que os mestres populares, detentores das tcnicas ancestrais e mistrios da dana do jongo, mostraram serem viveis dentro de uma proposta de trabalho social numa perspectiva multicultural, sem deixar dvidas de tudo o que ela pode realizar nas escolas daquela e de muitas comunidades pas afora. A reflexo sobre as complexidades inscritas na relao das escolas do meio urbano com as culturas populares continua presente no texto Cultura popular urbana e educao: o que a escola tem a ver com isso? Neste instigante estudo, Carlos Henrique de Souza Martins mostra como um processo vertiginoso de produo de novas identidades nas sociedades modernas e urbanas, na maior parte das vezes valendo-se de suportes miditicos e comunicacionais prprios da ltima Revoluo Tecnolgica, no precisa necessariamente se constituir em elemento desorganizador, dissolvente ou inferiorizante do popular, mas, ao contrrio, pode ser aproveitado num conjunto de atividades orientadas para a reelaborao de outras prticas e conhecimentos, integrando as comunidades, desmarginalizando e incluindo suas expresses artsticas dentro da escola, numa troca permanente de saberes e questes. Ao final desse percurso, em que os diversos textos e autores nos possibilitaram ajuntar elementos e reflexes para desconstruirmos idias equivocadas, hierrquicas e discriminatrias nas quais o popular est sempre condenado ao domnio do irracional 18

e da inconscincia, da espontaneidade e do simplrio, no mais das vezes visto em oposio ao escolarizado, ao urbano, ao erudito, ao intencional, sofisticado e grande arte, que podemos melhor aproveitar a acurada reflexo sobre o artesanato e o papel da escola na valorizao da arte popular, proposta por Ricardo Gomes Lima. No texto Engenho e arte encontramo-nos ,ento, com artesos outros no aqueles artfices repetidores de conhecimentos ancestrais cristalizados, criadores individualizados, inseridos no mbito de um processo social e cultural de produo artstica complexo, que os configura como porta-vozes de suas comunidades. Selecionamos, guisa de concluso desta unidade, o texto Linguagens artsticas da cultura popular, de Eleonora Gabriel, na medida em que a autora se coloca a pensar ou repensar os principais eixos e linhas de fora destacados nas reflexes anteriores, por um ngulo, entretanto, diferente. Aqui, a proposta tambm problematizar a relao professor/aluno, discutir os entraves na integrao escola/ comunidade ou mesmo a complexidade da articulao cultura/arte e educao; todavia com um olhar percuciente que busca desvelar, em cada um desses eixos, caminhos ou solues menos divorciadas da pluralidade de matrizes tnicas, raciais, lingsticas, religiosas em relao s quais construmos um sentimento de pertencimento (e, portanto, de identidade), assinalando, sobretudo, a tarefa da escola no sentido de conhecer, respeitar e valorizar essas diferenas. Bibliografia: FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e ps-modernismo. So Paulo, Studio Nobel, 1995.

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Texto 1 ENTENDENDO O FOLCLORE Maria Laura Cavalcanti 1 A palavra folclore provm do neologismo ingls folk-lore (saber do povo), cunhado por Williem John Thoms, em 1846, para denominar um campo de estudos at ento identificado como antigidades populares ou literatura popular. Nesse sentido amplo de saber do povo, a idia de folclore designa muito simplesmente as formas de conhecimento expressas nas criaes culturais dos diversos grupos de uma sociedade. Difcil dizer onde comea e onde termina o folclore, e muita tinta j correu na busca de definir os limites de uma idia to extensa. o frevo, o chorinho, o xote, o baio, a embolada, mas ser tambm o samba, o funk, o rock? o Natal, a Pscoa, o Divino, o Boi-Bumb, mas ser tambm o desfile das escolas de samba? o artesanato em barro, madeira, tranado, mas ser tambm a arte de Louco ou de Geraldo Teles de Oliveira? Pensamos e pesquisamos um bocado sobre o assunto. Chegamos concluso de que mais importante do que saber concretamente o que ou no folclore entender que folclore , antes de qualquer coisa, um campo de estudos. Isso quer dizer que a noo de folclore no est dada na realidade das coisas. Ela construda historicamente e, portanto, a compreenso do que ou no folclore varia ao longo do tempo. Para se ter uma idia, aqui no Brasil, no comeo do sculo, os estudos de folclore incidiam basicamente sobre a literatura oral, depois veio o interesse pela msica, e mais tarde ainda, nos meados do sculo, o campo se amplia com a abordagem dos folguedos populares. Para entender o folclore, preciso conhecer um pouco de sua histria.

Esse texto integra o boletim do programa O que , o que : folclore e cultura popular da srie Cultura Popular e Educao, maro, 2003. www.tvebrasil. com.br/salto/ 1 A antroploga Maria Laura Cavalcanti, do IFCS/UFRJ, foi pesquisadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e hoje dirige a Associao de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro.

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I Os estudos de folclore so parte de uma corrente de pensamento mundial, cuja origem remonta Europa da segunda metade do sculo XIX. Ao mesmo tempo em que procuravam inovar, esses estudos eram herdeiros de duas tradies intelectuais que se ocupavam anteriormente da pesquisa do popular: os Antiqurios e o Romantismo. Os Antiqurios so os autores dos primeiros escritos que, nos sculos XVII e XVIII, retratam os costumes populares. Colecionam e classificam objetos e informaes por diletantismo, e acreditam que o popular essencialmente bom. O Romantismo, poderosa corrente de idias artsticas e literrias, emerge no sc. XIX em associao com os movimentos nacionalistas europeus. Em oposio ao Iluminismo, caracterizado pelo elitismo, pela rejeio tradio e pela nfase na razo, o Romantismo valoriza a diferena e a particularidade, consagrando o povo como objeto de interesse intelectual. O povo, para os intelectuais romnticos, puro, simples, enraizado nas tradies e no solo de sua regio. O indivduo est dissolvido na comunidade. A trajetria dos estudos de folclore no Brasil mantm relaes com os debates do contexto intelectual europeu. Essas duas tradies so incorporadas pelos estudiosos brasileiros que procuram tambm conferir cientificidade a seus trabalhos. Entre os pioneiros desses estudos no pas, esto autores como Slvio Romero (1851-1914), Amadeu Amaral (1875-1929) e Mrio de Andrade (1893-1945). Slvio Romero clebre pelas coletas empreendidas na rea da literatura oral e pelo desejo, de origem positivista, de uma viso mais cientfica e racional da vida popular. Amadeu Amaral enfatiza a necessidade de uma coleta cuidadosa das tradies populares, e empenha-se pelo desenvolvimento de uma atuao poltica em prol do folclore, visto como depositrio da essncia do ser nacional. Mrio de Andrade procura conhecer e compreender o folclore em estreito dilogo com as cincias humanas e sociais ento nascentes no pais. Para ele, o folclore, expresso da nossa brasilidade, ocupa um lugar decisivo na formulao de um ideal de cultura nacional.

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II A dcada de 50 transforma o patamar em que se encontravam at ento esses estudos. Ela marca o incio de uma ampla movimentao em torno do folclore, reunindo sua volta nomes como Ceclia Meireles, Cmara Cascudo, Gilberto Freire, Artur Ramos, Manuel Digues Jnior. Institucionalmente, essa movimentao articulada pela Comisso Nacional do Folclore, do Ministrio do Exterior, e vinculada a UNESCO (organismo da Organizao das Naes Unidas). A Comisso liderada por Renato Almeida, diplomata e estudioso da msica popular. No contexto do ps-guerra, a preocupao com o folclore enquadra-se na atuao em prol da paz mundial. O folclore visto como fator de compreenso entre os povos, incentivando o respeito s diferenas e permitindo a construo de identidades diferenciadas entre naes que partilham de um mesmo contexto internacional. O Brasil de ento orgulhava-se de ser o primeiro pas a atender recomendao internacional no sentido da criao de uma comisso para tratar do assunto. O conjunto das iniciativas desenvolvidas era designado pelo nome de Movimento Folclrico. A Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), criada em 1958 no ento Ministrio da Educao e Cultura, o apogeu dessa movimentao. A Campanha um organismo nacional destinado a defender o patrimnio folclrico do Brasil e a proteger as artes populares. Ela traz uma proposta de atuao urgente: no folclore se encontram os elementos culturais autnticos da nao, porm o avano da industrializao e a modernizao da sociedade representam uma sria ameaa. Por essa razo, a cultura folk deve ser intensamente divulgada e preservada. A Campanha participa dos debates intelectuais do pas em intercmbio com as cincias sociais que se institucionalizam no mesmo perodo. Fomenta pesquisas sobre o folclore em diferentes regies, bem como sua documentao e difuso atravs da constituio de acervos sonoros, museolgicos e bibliogrficos. Data dessa poca o embrio do que viria a ser mais tarde o Museu de Folclore Edison Carneiro e a Biblioteca Amadeu Amaral, da atual Coordenao de Folclore e Cultura Popular. 2
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Posteriormente, a Coordenao de Folclore e Cultura Popular passou a se chamar

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III De l para c, os processos de modernizao da sociedade se aprofundaram, a televiso entrou decisivamente no cotidiano nacional, e ao contrrio do que supunha a Campanha em seus primrdios, o folclore no acabou. O pas transformou-se econmica e politicamente. Mudaram tambm os ideais de conhecimento. Como j diziam alguns folcloristas, o folclore nasce e cresce tambm nas cidades: dinmico, transforma-se o tempo todo, incorporando novos elementos. O campo dos estudos de folclore transforma-se tambm, acompanhando a evoluo do conhecimento no conjunto das cincias humanas e sociais. A noo de cultura no mais entendida como um conjunto de comportamentos concretos mas sim como significados permanentemente atribudos. Uma pea de cermica mais do que o material de que feita, e a tcnica com que trabalhada. Uma festa mais do que a sua data, suas danas, seus trajes e suas comidas tpicas. Elas so o veculo de uma viso de mundo, de um conjunto particular e dinmico de relaes humanas e sociais. No h tambm fronteiras rgidas entre a cultura popular e a cultura erudita: elas se comunicam permanentemente. O compositor erudito Heitor VillaLobos reelaborou musicalmente cantigas de ninar tradicionais. Muito freqentemente, o enredo do desfile carnavalesco de uma escola de samba elabora numa outra linguagem temas eruditos. Na condio de fato cultural, o folclore passa a ser compreendido dentro do contexto de relaes em que se situa. Essa abordagem contextualizadora, que faz do objeto um veculo de relaes humanas, a proposta do Museu de Folclore Edison Carneiro, cuja exposio permanente 3, inaugurada em 1984, se pretende uma pequena mostra do que est vivo e se transformando no dia-a-dia.

Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. 3 Uma nova exposio de longa durao foi inaugurada em 1994.

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Texto 2
VIVER DE CRIAR CULTURA, CULTURA POPULAR, ARTE E EDUCAO Carlos Rodrigues Brando 1 Os Bichos e ns e o que fazemos ns dos nossos bichos Vocs j repararam uma coisa ao mesmo tempo bastante corriqueira e muito interessante? Desde o tempo das estrias infantis mais antigas e dos velhos contos de fadas, at o tempo das estrias em quadrinhos e dos desenhos animados, quase sempre os bichos so pessoas e personagens como ns. O Coelho Pernalonga um timo exemplo. Os animais dessas histrias contracenam entre eles ou com pessoas como voc e eu. Eles sentem, pensam, agem e constroem as suas vidas como ns, os seres humanos. s vezes eles se vestem, se calam, usam culos, lem, estudam, utilizam artefatos de nosso mundo humano, e aqui e ali, eles moram em casas como as nossas. Ou quase como as nossas. O Coelho Pernalonga vive numa toca de coelhos, mas l dentro tudo quase igual a uma casa de famlia humana. E, de vez em quando, os animais de uma estria infantil vivem como membros de uma famlia, tal como as nossas. Coelhos, porcos, ces e gatos, ratos (sempre muito simpticos), pssaros e, at mesmo, animais selvagens contracenam e agem como ns em quase tudo. Ao invs de mugirem, latirem, grunhirem, piarem ou miarem como vacas, cachorros, passarinhos ou gatos, eles falam nossas lnguas e dizem entre eles ou a ns, pessoas humanas, palavras e idias como as que usamos e compreendemos quando falamos algo entre ns. Mas quando os contos e filmes so para jovens, como em Mowgli, o menino lobo, ou Tarzan, os animais domsticos e, principalmente, os selvagens, esto a meio caminho entre os

Esse texto integra o boletim do programa Viver de criar cultura, cultura popular, arte e educao da srie Linguagens Artsticas da Cultura Popular, maro/abril, 2005.www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Antroplogo e escritor. Professor da UNICAMP.

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bichos e os homens. Eles ainda sentem e falam entre eles ou a ns, como ns falamos e traduzimos os nossos sentimentos e as nossas idias. Como na histria de Mowgli, os bichos da selva possuem personalidades bem marcadas e em geral se dividem entre bons, como a pantera, o urso e os lobos e os e maus, como o tigre. Eles se comportam exteriormente como animais selvagens, mas observam preceitos de vida e de relacionamentos entre eles e com os seres humanos que se parecem muito com os nossos. A diferena entre os bichos das lendas, fbulas e estrias para crianas e os animais das histrias para jovens e adultos que, nas primeiras, os bichos vivem e agem exatamente como os humanos, sob suas figuras de animais humanizados, enquanto nas segundas eles vivem como criaturas da selva, mas agem tambm como os seres humanos. Os macacos, lees e elefantes da convivncia de Tarzan so, em quase tudo, como as feras da floresta sempre foram: moram em tocas, em rvores ou em outros lugares de uma floresta. No vestem roupas e no usam os utenslios dos humanos. Tarzan sabia disto muito bem. Como um humano, mas falando ora a lngua dos macacos, ora a dos elefantes, ele aprendeu a conviver e a se comunicar com os animais da floresta, quase se tornando um pouco como eles, antes de aprender a viver uma vida humana, entre os seres humanos. Ora, embora os bichos e os homens paream falando como ns na histria de Mowgli, o menino lobo, logo se percebe que cada bicho fala aos outros e ao menino em sua prpria linguagem animal. Como ser que Mowgli aprendeu to depressa a fala de cada um? Em que linguagem Tarzan se comunicava com sua me adotiva, um gorila fmea? Bem sabemos que tudo isto uma metfora, uma boa fantasia. Essas estrias so belas, mas so fantasiosas. Crianas perdidas na floresta e criadas por lobos, e depois encontradas por seres humanos na ndia, em nada se pareciam conosco, a no ser na figura do corpo e na imagem do rosto. Nos registros conhecidos, as crianasfera, como foram indevidamente chamadas, andavam de quatro, como lobos, comiam e dormiam como lobos. No falavam nada e emitiam sinais com a voz semelhantes aos dos lobos. No riam e no choravam. Em corpos humanos dormitavam seres que, por haverem sobrevivido aprendendo com os animais que os acolheram, viviam, sentiam e se relacionavam entre eles, com os lobos e com a vida, como lobos da floresta. 26

Ao criarmos estrias e lendas como as de Chapeuzinho Vermelho, O Gato de Botas, os Quatro Heris (os msicos de Bremen), Mowgli ou Tarzan, projetamos sobre elas o nosso imaginrio, sempre ilimitado, sempre quase infinito em sua vocao de criar. E entretecemos com palavras os mltiplos e diversos fios do tecido sempre inacabado de nosso imaginrio. E bordamos ali os nossos desejos de alargar sempre e sempre os cenrios, as cenas e o crculo dos seres que possam vir de onde venham, e que saibam se relacionar conosco, como eles prprios ou como ns mesmos. Como seres do mistrio da vida, os animais so seres de uma mesma natureza que a nossa. E eles compartem conosco os diferentes ambientes de um mundo natural de uma mesma casa e nave errante no universo: o planeta Terra. Somos parte da natureza e somos, em nossos corpos e mentes, em nossas vidas e destinos, de algum modo como os animais. Entre ns e os animais da Terra h muitas semelhanas biolgicas, genticas e mesmo psicolgicas. Por isso, mesmo sem possuirmos por enquanto uma linguagem comum, em boa medida ns nos entendemos. Mas h tambm diferenas relevantes, e uma delas essencial. Podemos cham-la de cultura. E no caminho percorrido em larga escala por eles e ns, mas que de um ponto em diante se divide e nos leva por trilhas diferentes em direo quem sabe? de um mesmo horizonte, a experincia da cultura toda a diferena. Sendo tambm seres da natureza, ns somos e nos tornamos humanos porque, ao contrrio dos animais que se transformam corporalmente para se adaptarem s mudanas do meio ambiente em que vivem, ns transformamos os ambientes em que vivemos para adapt-los a ns e para tornarmos possvel e progressiva a nossa vida neles. Os animais vivem solitria ou coletivamente imersos no interior de nichos e cenrios de um mundo natural preexistente e naturalmente ofertado a eles. Ns aprendemos aos poucos e duramente a construirmos nossas vidas em mundos naturais tambm preexistentes, a ns originalmente dados, ofertados naturalmente a ns. Mas mundos naturais socializados, transformados. Transformados em qu? Em mundos de cultura. Vivemos em um mundo natural e humanamente cultural. Olhe sua volta: a comida de sua manh de hoje, as suas roupas, a sua cadeira, os papis que voc tem nas mos, a tela colorida de um aparelho chamado 27

televiso, ou o computador que voc acaba de conectar em algo chamado energia eltrica. Tudo isso so matrias e energias da natureza, do generoso planeta errante que voc e eu habitamos, e que formas semelhantes e diversas de uma coisa chamada trabalho foram transformando de coisas da natureza em objetos da cultura. De sua cultura. De seu mundo e do meu mundo cultural. Pois se voc agora me l ou me ouve, e me entende, este deve ser um sinal de que de algum modo habitamos e aprendemos a ser quem somos, em um mesmo mundo. Mas, qual mundo? Retornemos por um momento aos animais para depois voltarmos de novo a ns. Claro, alguns bichos tambm lanam mo das coisas do mundo para criarem a sua maneira de viver em seu mundo. Quando os nossos primeiros ancestrais viviam a esmo e moravam em bandos em qualquer lugar, e no haviam dominado ainda o fogo, nem aprendido a habitar as cavernas, as abelhas j construam colmias cuja sbia arquitetura at hoje nos espanta. E formigas e cupins constroem de terra e de matria de seus prprios corpos verdadeiras cidades quase perfeitas. E mesmo ninhos de passarinhos olhe-os com cuidado como o do Joo Congo ou a casa do Joo de Barro, so verdadeiros prodgios de uma engenharia natural. Mas todos os animais construtores fazem sempre as mesmas coisas do mesmo modo, gerao aps gerao, como uma extenso natural de sua biologia. Fazem assim e sempre assim, com talvez mnimas mudanas ao longo dos milnios. Eles constroem com o que a biologia de seus corpos determina que faam. Ns no. Ns antes no sabamos fazer e, ento, aprendemos. A espcie humana, ao longo de sua histria, foi aprendendo. E cada um de ns, por sua vez, recapitula esta histria em sua biografia. Porque, uma a uma, aprendemos, ao longo da infncia e da vida, todas as coisas que aprendemos. Que aprendemos para ser quem somos, para viver como vivemos, para sentir e pensar o que sentimos e pensamos, para criar, fazer e transformar tudo o que a ss ou solidariamente criamos, fazemos e transformamos. No somos quem somos, seres humanos, porque somos seres racionais. Somos quem somos e somos at mesmo racionais, porque somos seres aprendentes. Somos seres vivos dependentes de estarmos a todo o tempo de nossas vidas e no apenas durante algumas fases dela aprendendo e reaprendendo. Somos pessoas humanas que dependemos inteiramente dos outros e de nossas 28

interaes afetivas e significativas com eles para aprendermos at mesmo a sermos... pessoas. Tartarugas nem sequer das mes necessitam para sarem dos ovos e da areia prontas para a vida. Pssaros precisam da me ou do par de pais para completarem por algum tempo, sobre a biologia do corpo, aquilo que o saber da espcie e se individualiza em cada um deles. Lobos (inclusive os de Mowgli) precisam conviver um tempo maior com os pais e, depois, com a comunidade da alcatia, para se socializarem completamente. Macacos (inclusive os da histria de Tarzan) mais ainda. Eles aprendem com os pais e com outros de seus bandos, por um tempo ainda maior. E entre eles h jogos expressivos, ritos e cuidados afetivos que os aproximam muito de ns, os humanos. E ns? Ns somos o extremo da experincia em que a vida de um indivduo precisa aprender interativa, social e culturalmente, para tornar-se um ser pessoal, uma pessoa. Ou seja: a cultura de uma gente, de um povo, de uma famlia, realizada na vida e na experincia nica de uma pessoa. Somos porque aprendemos, e a educao tem, na criao da vida humana, um lugar bastante mais essencial do que em geral imaginamos. Na verdade, como seres inteiramente dependentes de processos culturais de socializao (de transformao de um indivduo em uma pessoa) somos e seremos sempre a educao que criamos e que criaremos, para que ela continuamente nos recrie. A ns e aos nossos filhos. No criamos mundos socializados da natureza em mundos de cultura, porque sabemos. Criamos o que fazemos porque nos socializamos em uma cultura. Porque nos instrumos, como os lobos e os macacos. Mas tambm porque nos capacitamos, como eles em seus limites. Mas tambm porque, para alm deles, aprendemos e reaprendemos enquanto nos formamos, nos educamos. E porque somos educados e criamos mundos onde estamos continuamente nos ensinando-e-aprendendo, sabemos pensar reflexivamente antes de fazermos o que criamos. Ns construmos primeiro na mente as casas, depois as edificamos sobre a Terra. Por isso, comeamos aprendendo a viver em cavernas e hoje aprendemos, uns com os outros, a construirmos as primeiras casas fora do planeta, nas estaes espaciais. E assim aprendemos a transformar quase toda a natureza que nos circunda. Ocupamos praticamente todos os espaos naturais da Terra. E criamos, para vivermos no gelo do 29

rtico, nos desertos da frica, na Floresta Amaznica ou nas alturas dos Andes, as nossas casas e cidades, e as nossas roupas, e nossas culinrias, e todos os demais mltiplos artefatos da vida cotidiana. E criamos tudo isto porque aprendemos a pensar reflexiva e simbolicamente. Somos provavelmente a nica espcie de seres vivos que sente e pensa, e que se sente pensando e se sabe sentindo. E que sente o que sabe porque sabe o que sente (ou imagina que sabe). E que aprende a sentir, a lembrar e a saber. E que vive a sua vida no em um terno e generoso presente nico, como os lobos, mas dentro de um tempo que uno e triplo: passado, presente futuro. Por isso construmos beros em casas para os que ainda vo nascer, e covas em casas para os que j morreram. Aprendemos a expressar quem somos e como somos atravs de criaes simblicas que tornaram os sons guturais de nossos antepassados em palavras sonoras e cheias de sentido simblico. E das palavras geramos preces, pensamentos, preceitos, poemas e teoremas. E com eles e outros pensamentos, criamos as cincias, as teorias, os mitos, as crenas e as religies, as artes e outras formas culturais de atribuir sentido a nossas vidas e destinos e aos mundos em que as vivemos e os cumprimos. Iguais e diferentes: cultura, culturas Somos uma estranha espcie de seres vivos, preciso repetir. E talvez em toda a Terra sejamos a nica assim, pelo menos por enquanto. Pois possumos, mulheres e homens de todos os povos de antes e de agora, uma mesma herana gentica. E somos to iguais em nossas mnimas diferenas biolgicas, que bem poderamos ter criado uma forma nica de viver, um nico modo de vida, uma nica lngua, uma s cultura. A metfora da Torre de Babel poderia nunca ter existido. No entanto, criamos uma infinidade de maneiras diversas de ser e de viver, de pensar e mesmo de sentir, de falar e de expressar sentimentos, saberes e sentidos da vida atravs de imagens e de idias. Vejamos um nico pequeno exemplo: so mais de cinco mil as lnguas faladas hoje ao longo do planeta, e somente no Brasil elas so mais de cento e oitenta. Para vivermos na Terra, e para nos havermos transformado em seres humanos de uma nica espcie (as dos homindeos que nos antecederam foram vrias) ao longo dos anos da histria da humanidade, aprendemos a criar e transformar de muitas maneiras 30

os mundos em que vivemos as nossas vidas. Assim, podemos dizer que se a natureza humana uma s, as culturas humanas foram e seguem sendo mltiplas e diferentes. E somos na verdade humanos porque somos to iguais e to diferentes. Os mesmos e tantos outros. E eis que os contos dos novos livros e os filmes de fico-cientfica esto a para nos sugerir em que poderemos vir a nos transformar, para o bem ou para o mal, se continuarmos sendo assim como somos. Pois, depois de tantos milhes e de tantos milhares de anos, mal estamos comeando a existir na Terra. Somos seres criadores de diferentes culturas e de tantos modos de vida culturais porque aprendemos a saltar do sinal (como a fumaa que indica o fogo) ao signo (como os movimentos da dana nupcial de alguns pssaros, ou de algumas pessoas), e deles para o smbolo. Sim, o smbolo, uma criao livre e arbitrria do imaginrio e da mente humana, que inventa em uma lngua chamada Portugus a palavra fogo, para traduzir uma mesma coisa da natureza, dita e escrita de infinitas maneiras diferentes em vrias lnguas. Escrita e cantada com diversos significados, conforme esteja em um livro de fsica, em um escrito religioso, em um manual de sobrevivncia na floresta, em um livro de formao de futuros bombeiros ou no poema com que um jovem apaixonado diz mulher amada o que ele sente dentro do corao. Culturas no envolvem apenas as coisas materiais do mundo com que criamos o entorno fabricado de nossas sociedades: casas, casacos, canetas, comidas, carros e computadores. Sim, em boa parte a experincia da cultura est no que ns fazemos ao transformarmos as coisas da natureza em objetos da cultura, atravs do trabalho. A cultura est contida em tudo e est entretecida com tudo aquilo em que ns nos transformamos ao criarmos as nossas formas prprias simblicas e reflexivas de convivermos uns com os outros, em e entre as nossas vidas. Vidas vividas, de um modo ou de outro, dentro de esferas e domnios de alguma vida social. A cultura existe nas diversas maneiras por meio das quais criamos e recriamos as teias, as tessituras e os tecidos sociais de smbolos e de significados que atribumos a ns prprios, s nossas vidas e aos nossos mundos. De uma pequenina palavra a toda uma teoria filosfica, estamos continuamente elaborando, partilhando e transformando diferentes sistemas de compreenso da vida e de orientao da conduta social. Criamos os mundos sociais em que 31

vivemos e s sabemos viver nos mundos sociais que criamos. Ou onde reaprendemos a viver, para sabermos criar com outros os seus outros mundos sociais. E isto a cultura que criamos para viver e conviver. Depois de ler (ou reler) Mowgli, o menino Lobo e As aventuras de Tarzan, leia ou releia Robinson Cruzo. E voc ver que sozinho, anos e anos em uma ilha deserta, ele aprendeu a sobreviver porque no era um menino-lobo e no viveu como um lobo, sendo um ser humano. Ele sobreviveu porque transplantou para o domnio da natureza de sua ilha toda a cultura espiritual contida nos smbolos, nos saberes, nas sensibilidades, nos sentidos, nos significados e nas sociabilidades um dia aprendidos em sua anterior vida inglesa. Aprendidos em ingls e internalizados em sua pessoa social. Nufrago e solitrio sim. Mas um ingls culto e educado que um dia naufragou. E sobreviveu (numa boa) porque recriou na ilha deserta uma mnima herana da cidade ocidental, com os restos de sua cultura material, que ele foi recolhendo dos restos do navio naufragado e que, por uma rara felicidade, vieram encalhar em seu novo lar. Ora, quase tudo o que constitui uma entre as muitas e muitas culturas humanas envolve aquilo atravs do que ns aprendemos uns com os outros. E, assim aprendendo e co-aprendendo, pensamos, dizemos e nos comunicamos. Desta forma a cultura est presente nas maneiras como criamos: entre ns mesmos, sobre ns mesmos e para ns mesmos, as palavras, as idias, as crenas e as fbulas a respeito de quem ns somos; do porque somos quem somos; de como devemos ser uns com os outros, e com os outros que no so como ns. Por isso at mesmo nas coisas mais prticas e teis da vida cotidiana somos ainda e sempre imaginativos criadores de smbolos. Somos seres regidos por princpios naturais de sobrevivncia. Logo, somos seres prticos e utilitrios. E em nossos dias atuais temos sido isto em demasia. Por outro lado, de uma maneira afortunada somos seres sequiosos de imaginao, de beleza, de sentimento e de sentido. Por isso comemos com a boca e o estmago, mas tambm com os olhos e o paladar. E as roupas que vestimos nos abrigam do frio ou do calor. Mas os seus padres, desenhos e cores servem tambm para nos dizermos a ns mesmos e aos outros: quem somos, em que lugar de nosso mundo achamos que estamos situados, do que 32

gostamos, quem ou o que nos gerou, como sonhamos que poderamos ser, em quais crenas da cincia, da filosofia, da arte ou da religio acreditamos. A mesma coisa acontece com as casas onde vivemos e at mesmo com os automveis em que nos movemos. Se isto lhe parece um exagero, procure olhar sua volta e veja se encontra algo que de alguma maneira no esteja servindo tambm a dizer uma mensagem, a embelezar um corpo ou um ambiente, a traduzir algo, a comunicar algo a algum. As culturas populares, artes populares, aprendizado e educao Nada mais errado do que dizer: esse homem no tem cultura nenhuma. Nada mais equivocado do que dizer: essa uma gente sem cultura. E, no entanto, no raro que algumas pessoas pensem assim. E tambm no so raras hoje em dia, como no passado, aes sociais derivadas de idias que centram em um modo de ser ou em uma cultura toda a excelncia, e desqualificam as outras. Aes sociais por meio das quais em algum lugar do mundo uma lngua antiga de um povo proibida de ser falada; uma religio proibida de ser praticada, algumas formas de pensamento so proibidas de serem pensadas e algumas canes so proibidas de serem cantadas. Cada ser humano um eixo de interaes de ensinar-aprender. Assim, qualquer que seja, cada pessoa em si mesma uma fonte original de saber e de sensibilidade. Em cada momento de nossas vidas estamos sempre ensinando algo a quem nos ensina e estamos aprendendo alguma coisa junto a quem ensinamos algo. Ao interagir com ela prpria, com a vida e o mundo e, mais ainda, com crculos de outros atores culturais de seus crculos de vida, cada pessoa aprende e reaprende. E, assim, cada mulher ou homem um sujeito social de um modo ou de outro culturalmente socializado e , portanto, uma experincia individualizada de sua prpria cultura. Uma criana de dois anos aprendeu uma lngua e aprendeu e aprender, antes e depois, a linguagem dos costumes e crenas de seu povo, de sua gente. Desde muito cedo e por toda a sua vida, j a sua cultura a habita. J que ela tambm uma habitante de um mundo de partilha de smbolos e de sentidos de vida. 33

Devemos repetir a mesma idia: cada um de ns, qualquer que seja o nosso grau e vocao de estudos escolares ou extra-escolares, uma fonte nica e original de saber e de sentido. Em cada pessoa uma cultura vive um momento de sua subjetividade. E uma mulher analfabeta uma pessoa letrada nos muitos outros saberes e sabedorias de sua vida e sua cultura. Sem saber ler as palavras que os eruditos escrevem, ela pode ser senhora de sabedoria popular rara e preciosa. Com mais motivos e em um mbito bem mais amplo, a mesma coisa acontece com cada frao social de pessoas e de conexes entre pessoas: uma famlia, uma pequena comunidade de pescadores ou de camponeses, uma tribo ou aldeia de indgenas, por pequena que seja. Algumas tribos indgenas brasileiras com no mais do que umas cem mulheres e homens, falam lnguas to complexas que exigem de quem chega anos de estudos para serem aprendidas. Nenhuma delas deixa de ter os seus mitos, as suas lendas, as suas estrias para crianas, os seus cantos, seus deuses e suas danas. Todas elas, ao longo do tempo, desenvolveram sbias tecnologias para viverem e se reproduzirem na floresta. Ali onde um de ns, branco civilizado, morreria de fome ou de medo em poucos dias, mulheres indgenas criam filhos sbios e sadios. Todas as tribos indgenas, assim como todas as nossas comunidades populares, so sociedades humanas criadoras de suas prprias culturas. Crianas e jovens participantes delas so socializados a partir da relao fundadora com a me, de tal maneira que, ao atingirem a juventude, moas e rapazes esto plenamente prontos para a vida. Isto , foram educados para aprenderem a caar, a plantar, a preparar alimentos, a curar doenas, a fazer o amor, a falar a sua lngua e conhecer suas diferentes linguagens e gramticas culturais, a criar os seus filhos, a interagirem com as diferentes categorias de atores de seu mundo social, a compreenderem o sentido de seus mitos, a crerem em seus deuses e a lidarem com o ser mais perigoso do planeta: o homem branco e civilizado. No h grupo humano estvel que alm de ter a sua vida social, a sua sociedade, no tenha tambm a sua memria, a sua histria, a sua cultura. A complexa teia e trama daquilo que em tudo o mais vida social, memria, histria a experincia de uma cultura, de sua partilha recproca e de seu aprendizado est contido. As formas humanas de ocupar o planeta, de socializar a natureza 34

e de criar um modo de vida peculiar so muitas. So mltiplas ao longo da j longa histria humana e so mltiplas na geografia da atualidade. Ns nos acostumamos a atribuir qualidades s diferentes culturas humanas, em geral tomando a nossa prpria como referncia. s vezes damos a isto o estranho nome de etnocentrismo. O nome estranho mesmo, e a coisa que ele traduz tambm. Pois ele a perigosa vocao de centrarmos nossas avaliaes em ns mesmos, em nosso etno nossa identidade, ethos, maneira de ser e viver, nossa cultura, enfim e a partir da atribuirmos significados a todos e a tudo o mais. Por isso mesmo, ao falarmos das culturas que povoam o nosso cotidiano umas mais prximas, outras mais distantes alm de falarmos de cultura baiana, cultura brasileira, cultura ocidental, cultura moderna, cultura arcaica, falamos tambm de cultura erudita versus cultura popular (ou: cultura inculta, cultura rstica); cultura civilizada versus cultura primitiva (ou: cultura selvagem, cultura indgena); cultura letrada versus cultura iletrada, e assim por diante. E haja nomes! No entanto, com um outro olhar, com o olhar de vocao multicultural, compreendemos que as culturas humanas so diferentes, mas nunca desiguais. So qualidades diversas de uma mesma experincia humana, e qualquer hierarquia que as quantifique e estabelea hierarquias indevida. A prpria idia de que culturas evoluem e que as mais atrasadas, mais populares ou mais primitivas podero atingir graus de civilizao semelhantes s nossas (nossas de quem, cara plida?) hoje em dia no recebe mais crdito algum entre as pessoas que estudam a fundo as diferentes culturas. Tanto isto verdadeiro que observamos hoje em dia uma enorme preocupao entre povos tidos como os mais civilizados, para com as suas memrias, histrias antigas e tradies populares. Em dois exemplos recentes do mundo ocidental vimos e seguimos vendo isto ocorrer: a Espanha depois de Franco e a ex-Unio Sovitica, depois da queda do Muro de Berlim (um outro poderoso fato simblico, no?). Em poucas naes houve e segue havendo um retorno aos valores, aos costumes, s artes, s experincias espirituais e religiosas, e tambm a tradies arcaicas e populares, como nestas duas naes. 35

Mais do que aqui no Brasil, na Espanha as crianas e os jovens aprendem o Espanhol, mas tambm outras lnguas, como o Galego, o Catalo e o Basco. E no apenas isto. Nas escolas, elas se revestem durante, oficinas e nas festas populares, com as roupas de seus avs e de suas avs. Aprendem os seus cantos, suas falas, suas culinrias e seus poemas. Sem deixarem de habitar contextos sociais bastante modernizados, as pessoas reaprendem com gosto a reviver antigas tradies. uma lstima que elas tenham quase desaparecido para serem de novo redescobertas e revalorizadas. uma lstima que convivamos com culturas hoje em dia to frgeis, que necessitem serem protegidas. Nas culturas populares existem formas de educao extraescolar, cujo valor apenas agora comeamos a descobrir. Tal como acontece com os povos indgenas, cantando e danando, vendo como-se-faz-e-fazendo, jogando e trabalhando ao lado dos mais velhos, os mais jovens convivem com aprendizados simples e complexos que vo dos segredos do plantio do milho at os de uma Folia de Santos Reis. A educao utilitria e instrumental das escolas seriadas acompanhou toda uma vertente dominante no pensamento ocidental e deixou que duas quebras dramticas fossem e sigam sendo consumadas. Uma a cientificao crescente do conhecimento. Outra a desqualificao de outras culturas e, sobretudo, as culturas populares, em nome de formas nicas e pretensamente civilizadas e eruditas do saber e do viver. Temos perdido pouco a pouco um sentido arcaico e interativamente integral da vocao humana na criao de suas experincias de cultura. Temos sido levados a pensar que apenas o conhecimento oficialmente ocidental e cientfico, originado em centros consagrados do saber competente, vlido, til, confivel. E, portanto, apenas o que provm dele e das cincias oficiais que o conduzem deve ser ensinado de fato nas escolas. Desaprendemos a lio de que no cabem nos limites das cincias oficiais a nossa vocao e a nossa capacidade de buscar respostas s nossas perguntas, de encontrar sentidos mltiplos e polissmicos para as vidas, de entretecer compreenses e interpretaes sobre os seus mistrios e os do mundo. Outros sistemas de conhecimentos, de sentidos e de significados so igualmente fontes preciosas e originais de saber e 36

de valor. As artes, as filosofias, as experincias espirituais e religiosas de todos os povos, em todos os tempos, cada uma delas e todas elas constituem modalidades e qualidades diversas de saber e de sentido. Tal como acontece entre as diversas culturas, dentro de uma mesma cultura, a fsica nuclear, a poesia, a msica e a matemtica no so formas hierarquicamente desiguais de conhecimento. So experincias igualmente diferentes de sentir, de compreender e de interpretar o real e, nele, a vida e a condio humana. Se existe alguma diferena, ela est em que com a fsica nuclear podemos fazer bombas atmicas, enquanto com a poesia podemos criar apenas os poemas que lamentem os seus resultados ou que bradem contra os seus senhores. Em uma outra direo, a escola deixou de lado, ou colocou como assunto de hora do recreio ou do ms de agosto, a experincia to rica no Brasil de criao de artes, saberes, valores e saberes populares. Uma ateno um pouco mais generosa para com a criao popular nos ajudaria a ver e a compreender que tal como sucede nos domnios das cincias e artes eruditas, entre nossos pescadores artesanais, entre nossos camponeses, seringueiros e tantos outros sujeitos de vida e de trabalho cultural, existem e se transformam verdadeiros sistemas complexos de conhecimento. Complexos saberes tcnicos, cientficos, sociais e artsticos, com que tanto se cura uma doena quanto se recorda a memria da histria de um povo. A educao que tanto rev os seus currculos ganharia muito em qualidade se fosse capaz de realizar algo mais do que uma simples reviso. Se ela ousasse reencontrar um sentido menos utilitrio e mais humanamente integrado e interativo em sua misso de educar pessoas. Um dos passos nesta direo seria o de reintegrar e fazer interagirem as diferentes criaes culturais do esprito humano, com um mesmo valor. Ensinar a pensar e sensibilizar o pensamento entretecendo a matemtica e a msica, a gramtica e a poesia, a filosofia e a fsica. Um outro passo estaria na redescoberta do valor humano e artstico das criaes populares. Mas seria ento necessrio trazlas para a escola e para a educao, no como fragmentos do que pitoresco e curioso, ou como um momento de aprendizado de hora de recreio. Ao contrrio, o que importa reaprender com a arte, com o imaginrio e com a sabedoria do povo dos vrios povos do povo 37

outras sbias e criativas maneiras de viver, e de sentir e pensar a vida com a sabedoria e a sensibilidade das artes e das culturas do povo. Bibliografia: BRANDO, Carlos Rodrigues. A educao como cultura. Campinas: Mercado das Letras, 2002. GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: Ed. Zahar. LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropolgico. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar. SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as cincias. So Paulo: Ed. Crtex (vrias edies de vrios anos).

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Texto 3 O QUE VAMOS APRENDER HOJE? Marisa Silva 1 Durante milnios, nas sociedades tradicionais, conhecimentos foram transmitidos atravs de uma longa cadeia de tradio oral de boca perfumada a ouvidos dceis e limpos. A palavra reconhecidamente dotada de fora e poder para criar e destruir estabelece, nessas sociedades, fortes vnculos com o homem que a profere. Sueli Pecci Passerine Era uma vez um mote... que encontrou uma palavra e outra e o sonho virou comunicao... Era uma vez... um mote pra l de conhecido, que se comunica assim: Entrou por uma porta e saiu por outra O senhor meu rei, se quiser que lhe conte outra! A opo de comear pelo fim foi proposital, pois desconfio que quando a histria termina, na fala do contador, que algo dentro de cada um de ns se inicia e ganha fora e poder. assim que desconfio mais uma vez que as palavras docemente ou fortemente ouvidas, dependendo do manejo oral do narrador, ganham vida, misturando-se com nossas prprias vidas, modificando-as, sem que muitas vezes tenhamos conscincia disso. E ento desconfio eu pela terceira e ltima vez que l, em nosso forno interior, que as palavras se aquecem, ardem e se

Esse texto integra o boletim do programa O que vamos aprender hoje? da srie Linguagens Artsticas da Cultura Popular, maro/abril, 2005.www.tvebrasil. com.br/salto/ 1 Arte-Educadora e Especialista em Literatura Infantil e Juvenil (UFRJ).

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consomem, mas no somem, antes se diluem num continuum, gerando palavras que puxam palavras num jogo de produo de sentidos que no tem fim. Por isso deixe os patos passarem, senhor meu rei e alteza, que forte a correnteza, e eles vo bem devagar2 ! Nesse arder da lngua, o homem produz palavras e, ao produzir palavras, gera literatura. Literatura que se traduz e se expressa nas mais variadas formas: poesia, msica, dana, teatro, cinema, artes plsticas, etc. Agora a boniteza maior que atravs da literatura que o homem se comunica, se anuncia, deixando sinais de que ali esteve. So marcas, pegadas, trilhas, caminhos e estradas que vo sendo abertas atravs de um movimento circular de produo de conhecimentos que, desde os saudosos tempos de Mrio de Andrade, chamamos de bens culturais: dizeres e saberes que promovem todo um conjunto de discursos que, incorporados ao dia-a-dia de uma comunidade, organizam e elaboram os mitos, as lendas, as histrias, brincadeiras, as crenas, os valores e os conceitos que configuram a identidade de um determinado grupo social, ou seja, na literatura que encontramos todos os sentimentos humanos. A isso denominamos cultura. E atravs da cultura que nos conhecemos, conhecemos o outro e formamos nossa identidade, pessoal e coletiva, criando razes. Por isso, a literatura oral tornou-se um fato to universal e to fortemente entranhado em nossas vidas que me arrisco a dizer, comentando Cmara Cascudo, que estamos todos imersos na literatura, pois ela o nosso primeiro leite intelectual. Neste sentido, as trocas culturais so fundamentais, pois para saber quem sou, preciso muitas vezes recorrer ao que eu no sou, ao outro, ao diferente, ao plural. neste contexto que o projeto Tangolomango se insere e vem tentando buscar alternativas educacionais que contribuam para se repensar os avanos e tropeos do sistema educacional brasileiro, que tem como grande desafio a alfabetizao de milhes de pessoas crianas, jovens e adultos originrias das classes populares e que vivem, na maioria das vezes, em situaes subumanas de vida, abaixo da linha da pobreza, o que denota um desequilbrio econmico e social gerador de injustias, que nos afeta como um todo. O projeto Tangolomango, que est sendo realizado no CIEP
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CD Bia Canta e Conta: Histria sem fim ( Conto Popular) /ngelus Produes Artsticas / Msica e letra: Bia Bedran.

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Posseiro Mrio Vaz, fruto de uma pesquisa sobre estas e outras questes que esto ligadas intrinsecamente ao processo de ensinoaprendizagem de crianas e jovens das classes populares e do ensino pblico brasileiro. Nele, procuro analisar as prticas e estratgias educativas (inclusive as minhas) que visem promover uma dialtica entre os saberes contidos na arte e na cultura popular e os saberes formais pertinentes ao currculo escolar, levando os educandos crianas e adolescentes matriculados em uma turma de Progresso na Zona Oeste do Rio de Janeiro aquisio da leitura e da escrita orientada para o letramento. Neste sentido, incorporar os saberes de origem popular ao conhecimento acadmico uma necessidade cada vez mais premente, na medida em que, contemporaneamente, h uma estreita relao entre a valorao da experincia de vida de cada indivduo com o processo ensino-aprendizagem e a democratizao do saber. Ainda mais se tomarmos como referncia a cultura brasileira e sua multiplicidade de manifestaes artsticas e culturais. Mas a dicotomia entre cultura e educao ainda uma muralha enorme, que precisamos transpor. Proponho com este trabalho de arqueologia de mim mesma enquanto educadora-pesquisadora comear o desmonte da muralha qual me referi acima, partindo do pressuposto de que para se escrever bem, com coerncia e coeso textual to aspirada pelos professores, para que se possa ler com entendimento e fluidez, preciso falar, confabular bem, muito bem. A aparente simplicidade da questo levantada descortina uma srie de novas outras questes sobre a escola e o processo de ensino e aprendizagem que gostaria de discutir a seguir. Por isso, o projeto Tangolomango vem buscando abrir brechas dentro deste currculo to fechado e estrangulador da fala do aluno, contemplando a produo oral, saberes e, principalmente, a competncia lingstica que os educandos tm de sua lngua materna que, como nos sinaliza Paulo Freire, so leituras de mundos que precedem as leituras da escrita. A nfase que procuramos dar produo oral se desvela em nossa prtica diria em um gigantesco mundo de enunciados e gneros textuais, que vo desde as histrias contadas, cantadas ou lidas a uma infinidade riqussima de brincadeiras lingsticas como: parlendas, trava-lnguas, adivinhas, frases feitas, mas, principalmente, 41

as histrias de vida dos educandos, suas vises de mundo. Ou seja, abrimos espao para a fabulao. Infelizmente, sabemos, como nos sinaliza o escritor e historiador Joel Rufino:
(...)que a criana ao chegar na escola tem grande capacidade de fabulao (...) de inventar histrias, de ouvir e contar histrias. Isso anterior leitura, ao conhecimento do livro. E a escola (...) tem horror fabulao, rejeita a capacidade de fabulao da criana. (...) Quanto mais a criana sobe na carreira escolar, menos gosto ela tem pela literatura, menos ela gosta de ler, ouvir e contar histrias. Ento, pode-se dizer, nesse sentido especfico, que a escola o tmulo da literatura.(RUFINO)

Acredito que a afirmao acima venha a causar repulsa ou constrangimento em muitos professores. um tema polmico. Mas, se olharmos bem para o interior da escola e tambm no perdermos de vista a quantidade enorme de pessoas que foram de alguma forma excludas da escola (foram?), se quisermos realmente ter olhos de ver o que estamos fazendo com nossos alunos e, por fim, se nos fizermos a pergunta que Paulo Freire se fez e imortalizou: Que tipo de homem queremos formar? teremos pelo menos a desconfiana e esse um excelente comeo de que estamos cometendo em nome da educao erros gravssimos, equvocos herdados de um sistema educacional autoritrio, que continuamos, muitas vezes, a reproduzir. Pois, como nos fala Carlos Rodrigues Brando em seu livro Educao com Cultura, na verdade, hoje a escola e tudo o que ela envolve passa por um processo de deteriorizao e, sob alguns aspectos, est em runas. L estou eu mais uma vez cutucando ona com vara curta. Agora, aprofundando um pouco mais a questo do aprender, ou melhor, do no aprender dentro do espao escolar, precisamos sem com isso perder a dimenso scio-poltica qual estamos inseridos, onde o modelo neoliberal nos empurra compromissos e responsabilidades que ns, educadores nem sempre temos condies de resolver tomar deste latifndio a parte que nos cabe, para no continuarmos perdendo nossa funo primordial e nosso papel de mediadores de conhecimento e de enriquecedores de espaos de se 42

ensinar e aprender. Ento, se quisermos realmente repensar estas questes, talvez seja o momento de olharmos mais atentamente para nossos educandos e tentarmos perceber em quais momentos assim entre os pares, quando esto distrados como nos lembra Clarice Lispector existem situaes reais de aprendizagem. Como eles criam, vivem, sobrevivem? O que realmente pensam, como se comunicam e se expressam? Como brincam, do que gostam ou no gostam? O que acreditam, o que falam, o que sonham? Talvez assim possamos reencontrar o elo perdido com a literatura e as artes e nossos alunos possam voltar a fazer o caminho inverso: gostar de confabular, de ler e ter prazer mesmo em escrever, de aprender Matemtica, Histria, Geografia, Fsica, Qumica, Biologia e tantas outras matrias que fazem parte do currculo escolar. Talvez at mesmo ns, educadores possamos nos permitir faz-lo com muito mais prazer tambm. Talvez, com a literatura novamente recheando nossas vidas, temperando-a com outro sabor de saber, de saber outro sabor... Pensando nisso, realizamos em sala uma atividade de leitura e escrita atravs de parlendas, que ilustra um pouco as propostas referidas acima e que prope desdobramentos infinitos atravs da dana e do movimento, do teatro e inmeras brincadeiras cantadas da cultura popular. Parlenda gnero literrio que trabalha essencialmente com a repetio e recorrncia. Torna-se, assim, um texto anunciativo, que vai deixando pistas, sinalizando a existncia de contratos, de acordos tcitos, perpetuados ou recriados, entre produtores e receptores, envolvidos pelas prticas sociais comuns a determinados grupos, como nos diz Najara Ferrari Pinheiro. Parlenda, muitas vezes, como cobra mordendo o prprio rabo e parece no ter fim. Por isso a brincadeira, o sorriso, a poesia. A atividade pensada segue o seguinte roteiro: 1. Narrativa da parlenda Hoje domingo (Autor desconhecido) 3.
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Hoje domingo (Autor desconhecido) Hoje domingo/pede cachimbo Cachimbo de ouro/ bate no touro O touro valente / bate na gente A gente fraco / cai no buraco O buraco fundo / acabou-se o mundo.

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CD Palavra Cantada/ Canes de brincar; 2. Narrativa da parlenda Que escuro do poeta Jos Paulo Paes 4; 3. Entrega e leitura dos textos; 4. Desafio: falar os textos sem ler, brincar com a sonoridade das palavras; 5. Reescritura dos textos. Realizamos este exerccio partindo do que a criana sabe, do que ela capaz de realizar, improvisar e criar a partir de sua lngua materna. Isso porque, ainda citando Brando, quando crianas absolutamente capazes de criatividade individual e coletiva no sabem faz-lo na escola, quem est doente a escola, seus mtodos e suas estruturas de relaes. Ento, percebo a necessidade cada vez mais crescente de nos aproximarmos, ns educadores, da antropologia. Bebermos mais de sua fonte, mergulharmos nosso olhar na direo da cultura (ou culturas) e assim, envolvidos nesta polifonia de vozes que ficam muitas das vezes silenciadas dentro das escolas, nos relacionarmos com as crianas e os jovens, sujeitos reais, que buscam, assim como ns, aprender a aprender, sempre. Esta brincadeira /exerccio, em que o trabalho com diferentes gneros textuais abre um espao riqussimo de possibilidades de se pensar as mltiplas vises de mundo, favorecendo a troca e incorporao de novos saberes, tem por fim duas funes: ensinar e entreter. Brincadeira que se repete, repete. Gosto de repetir. s vezes necessito. Por isso, para terminar, vou puxar outro mote, tal como comecei. Pondo um incio no fim: Entrou por um p de pato Saiu por um p de pinto Quem quiser que conte cinco!
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Que escuro! (Jos Paulo Paes) Nossa, que escuro! Cad a luz? O dedo apagou. Cad o dedo? Est no nariz. Cad o nariz? Soltando um espirro. Cad o espirro? Ficou no leno. Cad o leno? Est na cala comprida. Cad a cala comprida? Est no armrio. Cad o armrio? Est no quarto, do menino. E cad o menino? Est dormindo. Com a luz apagada. Nossa, que escuro!

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Bibliografia: BRANDO, Carlos Rodrigues. O que Folclore. 1 ed. So Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleo Primeiros Passos) BRANDO, Carlos Rodrigues. A educao como cultura. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2002. CASCUDO, Luis da Cmara. Literatura Oral no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Ed. da Universidade de So Paulo, 1984. CULTURA, Arte e Tradies Fluminenses/ Organizao: Fred Ges. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. Comunicaes e debates ocorridos no Frum Cultura, Arte e Tradies Fluminenses, realizado em agosto de 2002. FREIRE, Paulo. Educao como prtica de Liberdade. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. MEIRELES, Ceclia. A Potica da Educao/ Margarida de Souza Neves, Yolanda Lima Lobo, Ana Crystina Venncio Minot (orgs.). Rio de Janeiro: Ed. PUC- RJ/ Loyola, 2001. OLIVEIRA, Paulo Salles. O que brinquedo. 2 ed. So Paulo: Brasiliense, 1989. (Coleo Primeiros Passos) PAES, Jos Paulo. Poemas para Brincar. Rio de Janeiro: Ed. tica. PASSIANE, Sueli Pecci. O fio de Ariadne Um caminho para a narrao de histrias. So Paulo, Ed. Antroposfica, 1998. PINHEIRO, Najara Ferrari. A Noo de Gnero para anlise de textos miditicos. In: MEURER, MOTTAROTH (orgs.). Gneros Textuais. Florianpolis: EDUSC, 2002. RUFINO, Joel. In: Mesa-Redonda Simpsio Nacional de Leitura (1994: Rio de Janeiro/RJ). Leitura, Saber e Cidadania / Simpsio Nacional de Leitura Rio de Janeiro: PROLER/Centro Cultural Banco do Brasil, 1994, p.98-99. VILHENA, Luis Rodolfo. Projeto e Misso: o movimento folclrico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: FUNARTE/Fundao Getlio Vargas, 1997.

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Texto 4
JONGO: UMA DIDTICA A CAMINHO DA ESCOLA Dlcio Jos Bernardo 1 O crescimento de Angra dos Reis determinou uma srie de benefcios aos seus moradores. Aliados fundamentalmente a uma extensa lista de problemas, os benefcios em determinados locais no conseguem ser percebidos ou no causam nenhuma influncia positiva. Prova disso o grande nmero de pessoas que foram expulsas de suas terras nos bairros de Mambucaba, Frade e Bracuhy, sendo obrigadas a ir viver nas reas urbanas. Lavradores e lavradoras que perderam suas roas, e ganharam, de presente, os morros do centro da cidade e as fbricas onde ocupam as funes de baixo ou nenhum grau de escolaridade e, ainda, recebem os menores salrios. A maior parte desse grupo engorda a classe dos desempregados, os demais se dividem em lavadeiras, faxineiras, domsticas, biscateiros, servente de pedreiro. (...) roceiro virou pedreiro trabalhando em construo, fez a casa do estrangeiro, grileiro do nosso cho, tropeiro patro de burro, hoje burro de patro, tem no peito um sussurro quando v um lote de burro passando de caminho... (PEREQUEAU, 1992) Descendente direto desse grupo, que gosto de chamar de jongueiros(as) por serem todos(as), praticantes da dana de jongo 2,
Esse texto integra o boletim do programa Peo licena vov, Peo licena a meu mestre! da srie Linguagens Artsticas da Cultura Popular, maro/abril, 2005.www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Servidor pblico, formado em Comunicao Social pela Sociedade Barra-mansense de Ensino Superior (SOBEU), atualmente Universidade de Barra Mansa, UBM. Ps-Graduado pela Universidade Federal Fluminense Centro de Ensinos Sociais Aplicados Faculdade de Educao - Programa de Ensino Sobre o Negro na Sociedade Brasileira. Curso de Ps-Graduao - Raa, Etnia e Educao no Brasil Niteri-RJ. Natural de Mambucaba, 4 Distrito de Angra dos Reis. 2 Dana de origem africana que chegou ao Brasil por intermdio dos BANTOS grande famlia etnolingstica, dos negros que viviam na regio do Congo-Angola

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aprendi a jongar no terreiro de casa, no Morro do Carmo. No s no terreiro da minha casa, mas tambm nos terreiros dos demais parentes que buscavam naquelas rodas uma maneira de juntar os iguais e enfrentar a dura vida da cidade, marcada principalmente pela fome e pelo alcoolismo que determinou o fim de tantos(as) jongueiros(as). Quando criana, tinha vergonha de danar o jongo, porque as pessoas do morro, que no conheciam a dana, todas as vezes que realizvamos uma roda de jongo, no dia seguinte faziam comentrios: Ontem teve macumba noite toda e ningum conseguiu dormir. Como o termo macumba, at os dias de hoje, ainda para muita gente associado maldade, bruxaria, a coisas ruins, ns, as crianas da poca, no queramos ser acusadas de praticar tais maldades, j nos bastava rejeio por sermos negros(as). Mesmo nesse ambiente de preconceito e discriminao, que deixou profundas marcas em minha vida, no consegui esquecer as noites de jongo, iluminadas pela fogueira e animadas pelas metforas, cantorias e palmas daqueles(as) sofridos(as) produtores(as) culturais. Aqueles que fizeram de sua vida uma escola para que eu pudesse aprender e me transformar no que sou hoje, e no que me faz acreditar em uma vida melhor para todos. O tempo foi se esvaindo e os antigos morrendo, e, junto com o desaparecimento deles, a possibilidade do desaparecimento do jongo. Cabe lembrar que, durante muito tempo, Angra ficou sem as rodas de jongo, nem nos momentos de festas das comunidades, onde o jongo tinha, no passado, presena garantida, era possvel encontrlo, estava apenas na memria dos mais antigos. Com as experincias, os saberes e os conhecimentos adquiridos com os familiares entendi que era preciso algo mais, era preciso ver o nosso rosto nos espaos onde habitualmente no vamos, espaos estes que, alm de exigir boa aparncia, tambm exigiam um grau maior de escolaridade. Tarefa difcil para os(as), jongueiros(as), uma vez que, de todo o grupo que citei at o momento, ningum conseguiu se sentar em um banco de escola. Os que conseguiram mais, conseguiram assinar o nome com dificuldade, resultado das poucas horas nas desconfortveis cadeiras do MOBRAL, no antigo Clube Monte Carmelo e, mais recentemente, nas aulas do Projeto MOVA. Mesmo sabendo que a educao, enquanto direito poltico,
e que foram os primeiros escravizados a chegar no Brasil.

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garantida para todos, nossos(as) jongueiros(as) no gozaram desse direito. Impulsionado por minha me, comecei, em 1974, com nove anos de idade, a freqentar as aulas no Colgio Estadual Conde Pereira Carneiro, em Angra dos Reis. Foi um verdadeiro choque, era como se eu nunca estivesse vivido nada antes, toda histria era relacionada a um grupo ao qual eu no conhecia. Na escola nunca se falou de jongo, capoeira, candombl, ou qualquer outra manifestao cultural ou religiosa ligada ao povo negro. A impresso era de que essas manifestaes no existiam. Meu rosto s era percebido na ocasio do dia 13 de maio, com as comemoraes do dia da Abolio, que para as crianas negras soa como dia do constrangimento e para algumas escolas dia de comemorar a liberdade. E que liberdade? Esse ambiente dividiu minha histria de vida em dois momentos de aprendizado: o primeiro, j citado anteriormente, que so os conhecimentos familiares; o segundo, desde o comeo, mostrouse um pouco agressivo devido maneira com que tratava, e em alguns casos ainda trata, os saberes diferentes daqueles reproduzidos em seu ambiente, apresentando-se como o mais importante, o que pode tornar voc algum, o que vai preparar voc para a vida, etc. Como se, at aquele momento, eu no fosse ningum. Acredito que tanta responsabilidade para um segmento como a escola contribuiu para torn-la reprodutora dos preconceitos e discriminaes praticadas contra os grupos que dela se utilizam para adquirir outros tipos de conhecimentos, com intuitos de almejar posies sociais que garantam uma vida melhor. Foi na escola que conheci de perto o preconceito. A escola no levava em conta os conhecimentos e saberes dos grupos marginalizados, era como se fosse uma expanso dos pensamentos dos vizinhos em relao ao jongo e aos negros. Atravs das lutas pela terra, das organizaes em grupos de jovens, associao de moradores, movimentos ambientais e outras espaos de construo de saberes e conhecimentos, iniciei a minha militncia no Grupo de Conscincia Negra Yl-dudu, primeira e nica entidade (depois dos escravizados) fundada em Angra com objetivo de lutar contra o preconceito racial e a favor da valorizao do povo e da cultura negra. A partir desse momento, a escola j era um espao em que, muito sutilmente, eu conseguia implementar algumas discusses sobre relaes raciais, e na maioria das vezes, 51

era taxado de ser racista e estar mexendo com coisa do passado. O Grupo Yl-dudu foi fundado em 9 de maro de 1991, por um grupo de amigos, aps a campanha da Fraternidade, promovida pela CNBB, cujo tema era Ouvir o clamor desse povo. Com propsito de no pertencer a nenhuma instituio, poltica partidria ou religiosa, o Yl-dudu realizou uma srie de atividades ligadas educao. Em seu primeiro ano de existncia, promovemos atividades em mais ou menos 35 escolas do municpio, com peas de teatro, vdeos, debates, dana e capoeira. Ao longo de sua existncia o Yl-dudu tem sido um referencial de cultura e educao em Angra. Hoje quase todas as escolas da rede municipal e estadual promovem a Semana da Conscincia Negra em homenagem a Zumbi dos Palmares, o que no acontecia antes da criao do movimento negro. A partir do momento em que a escola abriu suas portas para receber as discusses sobre as relaes raciais, ela comeou a dialogar com outros saberes, tornando-se assim mais justa e democrtica. Porque a escola pblica apresenta um contingente muito grande de diversidade cultural, poltica e religiosa, e no aproveitar esses diferenciais perder a oportunidade de fazer da escola um ambiente acolhedor e agradvel, tirando um pouco a idia que normalmente a escola nos passa, de ser um ambiente frio e para muitos at desagradvel. E nessa perspectiva que temos nos movimentado para o interior da escola. Foi esse movimento que garantiu minha permanncia na escola. Entendi que era preciso conquistar o espao escolar perdido pelos(as) jongueiros(as) do passado, abrir novas perspectivas para os descendentes desse grupo, ocupar os espaos, at ento mais freqentados pelos grupos privilegiados da sociedade, promover as discusses sobre cultura negra, preconceito, racismo, etnia, valorizao do conhecimento e dos grupos de cultura popular, que normalmente so tratados como figuras folclricas, usados para comemorar o dia do folclore. Outra questo importante ser exemplo para a juventude que tem sido a maioria, em se tratando de repetncia e evaso escolar, uma juventude que no consegue sequer concluir o ensino fundamental. Poucos jovens chegam ao ensino mdio e, com rarssimas excees, conseguem cursar o ensino superior, como o meu caso Em um grupo de doze irmos/irms e mais ou menos cinqenta parentes, entre primos, primas, sobrinhos, tios e tias, com idades reguladas 52

entre 19 e 40 anos, que tm entre cinco e seis anos em mdia de estudo. De toda essa parentada fui o nico a conseguir cursar o ensino superior, em uma instituio particular, cujo valor das mensalidades por algumas vezes me tirou o alimento. Talvez tivesse desistido, se no fosse a cumplicidade do meu irmo mais velho que, vendo suas possibilidades se perderem com o passar tempo, apostou em mim por ser mais novo. Mesmo assim no me livrei da sina de primeiro ir trabalhar para depois estudar. O fato de ter sido o nico no quer dizer que os outros no desejaram ou se esforaram o suficiente para isso, o que comumente ouvimos algumas pessoas dizerem. Foram as condies impostas pela industrializao e o processo de marginalizao sofrido pelos jongueiros e pelas jongueiras daquela regio que determinou esse quadro catico. Concretamente, qual a importncia desse fato para as pessoas com quem tenho trabalhado (jongueiros e jongueiras)? O que muda na vida dessas pessoas o meu grau de escolaridade? A princpio parece fcil, mas, medida que as coisas vo se realizando que percebemos o quanto foi fundamental ter alcanado e expandido meus estudos. A partir da minha formao no curso superior, pude ingressar no Curso Raa, Etnia e Educao no Brasil, do Programa de Ensino Sobre o Negro na Sociedade Brasileira, da Faculdade de Educao, da Universidade Federal Fluminense de Niteri. Nesse curso aprendi muito sobre a histria do povo negro, sobre a frica, etc. assuntos importantes para a construo da minha identidade. Essa afirmao mostra uma outra face da escola, uma escola comprometida com a histria dos marginalizados. De posse desses conhecimentos, foi possvel fortalecer uma srie de parcerias e abrir outros caminhos, levando comigo representantes das comunidades jongueiras, ou seja, novamente abrindo as portas da escola, atravs de parcerias com prefeituras de cidades vizinhas, Curso de Pedagogia da UFF de Angra, Secretarias de Educao e Cultura, Secretaria de Habitao e Desenvolvimento Social, Sociedade Angrense de Proteo Ecolgica (SAPE), Ateneu Angrense de Letras e Artes (AALA), Museu do Folclore, Associao Quilombola do Estado do Rio de Janeiro (AQUILERJ), Instituto de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN)... 53

As parcerias visavam e visam sempre construo de projetos que buscam discutir, a partir do jongo, caminhos que possam desconstruir a idia de que ns, negros e negras, s servimos para o samba e para o trabalho braal, e construir a idia real que a valorizao da gente nas diversas reas do mercado de trabalho. Os projetos desenvolvidos com essas parcerias uniram pessoas idosas e a juventude da comunidade, num movimento de troca de experincia e conhecimentos. Quando organizamos uma determinada atividade, nos esforamos para valorizar a sabedoria do Quilombo e, nos trabalhos realizados nas escolas, fazemos questo de estimular o debate entre o saber cientfico e o saber popular; sem que um se sobreponha ao outro, buscamos uma relao de respeito, e o resultado sempre positivo. O debate entre os diferentes segmentos tem sido til para ns como complemento, pois entendemos que, ao deixarmos nossa casa, nossa comunidade, para irmos escola, estamos, de certa forma, fazendo um corte com o que aprendemos em casa e o que aprenderemos na escola, e nesse momento que comeam a aparecer as diferenas. Por isso, a importncia da escola aprender a lidar com essas diferenas. A sabedoria da escola, na maioria das vezes, desarticulada do nosso jeito de pensar. O que aprendemos na escola encarado como vital para ns, porque ultimamente todas as coisas que devemos aprender ficaram sob a responsabilidade da escola, e a mesma no consegue dar conta do recado, por vrios motivos que j so do nosso conhecimento.(...) H uma expectativa de alargamento das funes da escola. Nessa expectativa, o que est acontecendo? A funo educativa que antes se acreditava ser prpria da famlia, agora passa a assumir a forma escolar (...) (SAVIANI, 2003, p.149). O corte entre o conhecimento de casa, da escola e de outros lugares de pertencimentos abre vrios questionamentos, mas citarei apenas dois nesse momento: Para que serve o conhecimento que aprendemos em casa? Que tipo de valorizao a escola tem dado a esse conhecimento? Como resposta, posso dizer que, para solucionar esse problema, basta unir os conhecimentos, criar dilogos entre os tipos de saber. Juntar os saberes um em complemento do outro. Outro fator que se fortalece com a juno dos saberes a famlia: quando a juventude v o pai ou a me falar sobre histria 54

familiar, poltica agrria, luta pela terra, cultura, religio e outros temas importantes para sua formao, isso ganha um peso fantstico, porque, na maioria das vezes, a juventude, por falta de conhecimento, se sente a dona da verdade e desvaloriza o conhecimento do pai e da me, por estes no terem freqentado um banco escolar. Tem um momento importante que gosto de recordar, trata-se de uma conversa com um jovem de 18 anos da Comunidade quilombola de Santa Rita do Bracuhy, ao qual solicitei que convidasse seu pai, um senhor de 80 anos para falar para um grupo de jovens sobre a sua experincia de vida naquela comunidade. Para meu espanto, o rapaz me disse o seguinte: Meu pai no sabe falar, no, ele tem vergonha, acho que ele no sabe a histria daqui. Co-nhecendo pai do rapaz, eu mesmo fiz o convite, o que foi aceito de imediato. Para surpresa do jovem, o pai deu uma belssima aula de histria sobre a comunidade, com muita vitalidade e confiana em uma comunidade mais forte e mais unida. Desculpando-se por sua timidez e falta de leitura, finalizou dizendo, fico muito feliz de ver tantos jovens lutando por um Bracuhy melhor, isso muito bom porque ns lutamos com o brao, a fora e a coragem, vocs tm tudo isso e mais a leitura e o estudo para debater com os grandes, porque eles falam que a gente no tem educao, educao eu tenho, o que no tenho o estudo e a leitura, muito obrigado. Os olhos do jovem brilhavam feito uma estrela na escurido, de orgulho, alvio, prazer... Um pouco de cada coisa talvez. Nesse contexto, eu pergunto: ser que a relao entre pai e filho continuou a mesma? Garanto que no, pois ainda hoje, quando conversamos, o jovem revela o orgulho pelos conhecimentos do pai. Toda essa troca entre escola e comunidade se deu em torno da dana do jongo, um jongo que pouco se importa com palco, luzes, platia, ou qualquer outro artifcio, mas um jongo que busca a valorizao do seu povo, que quer discutir as relaes raciais em um pas que prega a democracia racial, mas que tem 98% da populao negra fora das universidades pblicas. Nossa luta quer evitar a evaso escolar, quer criar na escola um ambiente agradvel para receber e respeitar os diversos segmentos que dela se utilizam numa relao dialtica. No basta para nossos jongueiros e jongueiras a gravao de CDs, de vdeos, se s vezes no temos nem o que comer, nem 55

onde plantar. nosso desejo praticar nossa cultura irmanada com todos e no separados como meros atos folclricos em comemorao ao dia 22 de agosto. Acreditamos que uma educao de qualidade, onde impere o respeito com o diferente ir contribuir para uma reparao dos danos causado aos remanescentes dos grupos escravizados no Continente africano e trazidos para o nosso pas. BIBLIOGRAFIA SAVIANI, Dermerval, Mudanas organizacionais, novas tecnologias e educao, trabalho e educao In: FERRETI, CELSO, Joo et al. (org.). Novas tecnologias, trabalho e educao: Um debate multidisciplinar. 9 ed. Petrpolis: Vozes, 2003. p. 149, cap. 3. PEREQU, Lus. Encanto Caiara, Rio de Janeiro: AU-CENAS, 1992, CD com 10 msicas, 29 min. de durao. SILVA, Petronilha Beatriz Gonalves & BARBOSA, Lcia Maria de Assuno (orgs.). O Pensamento Negro em Educao no Brasil: Expresso do Movimento Negro. So Carlos: EDUFcar, 1997. TEOBALDO, Dlcio. Cantos de F, de Trabalho e de Orgia: O jongo Rural de Angra dos Reis. Rio de Janeiro, e-papers, 2003.

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Texto 5 CULTURA POPULAR URBANA E EDUCAO: O QUE A ESCOLA TEM A VER COM ISSO? Carlos Henrique dos Santos Martins 1 Apresentao Este texto procura auxiliar na reflexo a respeito da educao na escola e para alm desta. Parte da idia de que os alunos esto inseridos na sociedade que, por sua vez, est sujeita a constantes mudanas. Estas podem ser caracterizadas, na atualidade, como um processo de revoluo tecnolgica, em que a comunicao e os meios miditicos parecem dar forma e contedo a esse mesmo processo. Podemos pensar, por exemplo, no advento da internet e suas conseqncias para a elaborao de diversas identidades e para a construo de novos conhecimentos, assim como na reelaborao de outros conhecimentos mais consolidados e que constituem a tradio moderna, ou ainda, na modernizao das tradies. Nesse sentido, a cultura se moderniza e se traduz em linguagens reatualizadas e que so comuns aos diversos sujeitos em idade escolar. Alm disso, ela aparece como um espao privilegiado de prticas coletivas, sociabilidades, representaes, smbolos e rituais que os jovens buscam para demarcar uma identidade. Nesse contexto, possvel pensar nos alunos como produtores e consumidores de culturas que se manifestam nos diversos espaos pblicos e que nem sempre tm visibilidade no interior da escola. Grosso modo, como se a cultura estivesse contida em uma mochila que devesse ser deixada na porta da escola e, ao ultrapassar os seus muros e portes, o aluno tivesse de abandonar sua bagagem de conhecimentos e estivesse apto a receber outros novos que nem sempre lhe dizem respeito ou despertam seus interesses. Nesse ponto, a cultura urbana no tem espao como expresso ou elaborao
Esse texto integra o boletim do programa A escola abre a porta da frente para a cultura popular urbana! da srie Linguagens Artsticas da Cultura Popular, maro/abril, 2005.www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Mestre em Educao pela Universidade Federal Fluminense RJ, professor da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro e da rede FAETEC.

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das identidades infanto-juvenis. H um enorme potencial cultural trazido pelos alunos e que silenciado por conta da necessidade, ou at mesmo da obrigatoriedade que a maioria dos professores tm em cumprir com as exigncias institucionais relacionadas aos contedos voltados para a srie e para as disciplinas especficas. Algumas escolas, seja atravs de projetos pedaggicos mais progressistas, seja mesmo mediante aes isoladas de alguns educadores, esto travando uma verdadeira batalha no sentido de utilizar elementos da cultura urbana no processo de ensino e aprendizagem e, com isso, romper com o senso comum presente na prtica escolar, que quase sempre associa cultura popular a folclore. Podemos citar, como exemplo, a capoeira que, de modo geral, est atrelada s aulas de Educao Fsica. Ao restringi-la apenas s prticas corporais, perdemos a possibilidade de ampliao do seu campo de ao, uma vez que deixamos de discutir com os alunos a respeito dos diversos aspectos culturais e scio-histricos que compem a capoeira e a tornam uma das maiores expresses da cultura popular, que vem sofrendo diversas transformaes, que se urbaniza e, ao mesmo tempo em que apresentada como espetculo. Assim, preciso pensar nos processos de transformao da cultura como produo e expresso populares em direo produtivizao para o consumo. Cultura popular urbana e educao Se a cultura popular urbana impedida de entrar pela porta da frente da escola, ela, muitas vezes, tem de pular o muro para poder transformar-se em elemento de identificao e organizao de crianas e jovens em torno de gostos e prticas comuns e que constituem os diversos grupos estudantis. Porm, a formao desses mesmos grupos, definida por suas diversas expresses culturais, geralmente passa despercebida pelos professores. Assim, funkeiros, charmeiros, gticos, skatistas, RPGistas e roqueiros ou no tm visibilidade nos espaos escolares ou, quando so notados, para que a escola utilize seus conhecidos mecanismos disciplinadores e de controle para justificar o desinteresse e com isso, reforar os mais diversos adjetivos utilizados para pr-conceituar, identificar e at mesmo afastar muitos alunos que andam em grupos e que, por sua vez, parecem no responder s exigncias disciplinares e no 58

corresponder ao to sonhado padro de aluno ideal. Essa idealizao tem como uma de suas conseqncias a marginalizao das expresses culturais urbanas presentes na escola atravs desses adolescentes e jovens. Por outro lado, a discriminao contra esses grupos pode ocultar o despreparo da instituio para lidar com as diferenas que constituem os seus universos e desconhecimento dos profissionais de educao no que diz respeito aos alunos e suas prticas culturais especficas. Isso, certamente, inviabiliza a presena da multiplicidade de culturas urbanas nos espaos escolares. Os diversos processos de humanizao so desenvolvidos em vrios espaos sociais, dentre os quais a escola, que, para alguns estudiosos em educao, possui grande peso na elaborao das identidades. Acreditamos que os alunos precisam ser compreendidos numa perspectiva que permita a construo de um olhar mais alargado sobre a educao, como processo de humanizao que inclua e incorpore os processos educativos no-escolares (GOMES, 2002, p. 1). Para o professor existe a possibilidade de sem abrir mo dos contedos bsicos pertinentes ao seu componente curricular compreender a importncia dessas linguagens atravs das quais a criana e o adolescente urbanos esto se expressando e de procurar, junto com os alunos, alguns caminhos que possam valorizar e aproximar cultura urbana e contedo. O que propomos que haja uma relao de mo dupla no mais autntico estilo freireano entre ensino e aprendizagem. Ao mesmo tempo em que aprende com os alunos as mltiplas expresses da cultura popular urbana e que os identifica como sujeitos, o professor pode contribuir para dinamizar e tornar mais agradvel o processo educativo, ao utilizar os elementos constitutivos dessas vrias prticas culturais para orientar a aprendizagem. Assistir a uma roda de capoeira sem a contextualizao de sua histria e de sua trajetria pode parecer algo que est fora do lugar. Atravs desse elemento da cultura brasileira, podemos trabalhar interdisciplinarmente, por exemplo, os contedos de Histria, Educao Fsica, Geografia, Educao Artstica, Educao Musical, Portugus e Matemtica. O mesmo podemos dizer em relao s diferentes expresses culturais que tm um carter mais local muito embora possam estar impregnadas de elementos da cultura 59

mundializada. Os bailes de Charme 2 podem ser utilizados como ponto de partida para entendermos o processo de hibridizao 3 por que passam as culturas ao longo do tempo sendo uma expresso cultural urbana especfica do Rio de Janeiro foi necessrio, para a constituio do Charme, que outros movimentos culturais, como por exemplo, o Soul e a onda Discotque, desaparecessem e/ou fossem transformados. Tambm o Funk e o Hip-Hop se constituem em expresses da cultura mundializada, embora em cada estado brasileiro possuam elementos constitutivos que traduzem o carter da cultura local. Para cada regio do pas certamente encontraremos uma diversidade de manifestaes culturais que serviro de motivao para experimentarmos maneiras de estreitar os laos entre o professor e o aluno, de forma a recuperar o prazer de (re)aprender a ensinar e (re)ensinar a aprender. Queremos, desse modo, instigar o professor a romper com tabus, crenas e preconceitos para que, com isso, esteja aberto para lanar novos/outros olhares sobre a cultura urbana. Sabemos que estamos vivendo um impasse que torna a escola desinteressante. A prtica pedaggica pouco foi alterada nos ltimos anos ou at mesmo no ltimo sculo. O processo didtico parece que ainda est fundamentado em uma relao de passividade e obedincia por parte do aluno e de apropriao do saber sem a devida socializao por parte do professor, o que o mantm como senhor do conhecimento e mero repetidor de contedos quase engessados. Se por um lado, as grandes transformaes sociais produziram mltiplas linguagens comunicacionais centradas no vdeo, na internet, no movimento e no consumo, por outro lado, a escola continua a mesma de muitos anos atrs. H, nesse sentido, um esforo quase sobre-humano e bastante solitrio por parte de muitos professores para tornar as suas aulas
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Manifestao cultural caracterizada por bailes que ocorrem, em sua maioria, nas Zonas Norte e Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Estes so freqentados por sujeitos das camadas populares, na sua maioria , negros. Surgem na dcada de 80, caracterizados por coreografias em grupos e gestos bem sensuais. O nome, bonito de falar, timo para danar, a traduo carioca para o Rythm and Blues e do Soul americanos (jornal @black, julho de 2003). 3 Canclini (2000) compreende hibridizao como resultado de diversas mesclas interculturais que abrangem termos usualmente empregados, tais como mestiagem e sincretismo. Segundo ele, esse termo permite incluir formas modernas de hibridizao e supera as referncias feitas geralmente a fuses religiosas ou de movimentos simblicos tradicionais (pg 19).

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mais prazerosas e passveis de atender a uma demanda estudantil composta de jovens e crianas com diferentes expectativas em relao vida. Estes, apesar de conviver de alguma forma com as inovaes tecnolgicas, no abrem mo de suas expresses culturais, que constituem o seu lugar, o seu pertencimento ao mundo. Se a escola no oferece as ferramentas tecnolgicas que permitam alterar sobremaneira o fazer e o prazer pedaggicos, por que no trabalharmos a partir da realidade, do conhecimento de mundo trazidos pelos alunos? Consideraes (por agora) finais Os diferentes valores surgidos como conseqncia das mudanas estruturais nas relaes sociais contemporneas parecem entrar em choque com os valores tradicionalmente disseminados por diversas instituies da sociedade dentre elas a escola que no se do conta de que as expectativas dos jovens com relao ao futuro e vida no so mais as mesmas das geraes que os antecederam. Torna-se necessrio, ento, levar em conta diferentes formas de oferecer aos mesmos as possibilidades de compartilhar o contexto social a partir de expectativas e interesses que atendam s necessidades desses novos atores sociais. No fcil romper com os valores e as formas tradicionais de ensino e aprendizagem. Afinal, a formao docente parece ainda estar orientada para a cultura do eu ensino e voc aprende. Desse modo, aprendemos a ensinar do mesmo modo que os nossos professores, os quais, por sua vez, aprenderam com os seus mestres. Essa relao de pai para filho, na maioria das vezes, reproduz, na educao, o dilema histrico por que passam as culturas, que podem ser entendidas, de forma reducionista, como tradio, ou podem ser alteradas pelos diversos processos de transformao a que esto sujeitas. Se as culturas se transformam pelas prticas e mudanas nos modos de vida de um grupo social, a educao e a prtica pedaggica continuam encasteladas pelos muros escolares. Romper essas barreiras com vistas a permitir a interpenetrao de educao e cultura urbana parece ser o grande desafio que est posto para todos os que acreditam na educao como uma das possibilidades de transformao social. A escola necessita escorrer para a rua. Por sua vez, a rua quer e precisa invadir a escola. 61

Apesar de sabermos que muitas vezes a nossa realidade profissional parece nos empurrar para o tradicional cuspe e giz, preciso refletir a respeito do nosso papel no mundo. As condies so quase sempre desfavorveis. O que vamos dizer para nossos alunos se desacreditarmos, se desistirmos? Conformismo ou resistncia? A histria nos mostra que foi atravs da cultura que muitos povos foram dominados. E essa mesma histria, na maioria das vezes, contada pelos olhos do dominador. Entender, juntamente com os alunos, os processos pelos quais a cultura se transforma e as diferentes maneiras de utiliz-la como ferramenta educacional pode contribuir para que, em um futuro prximo, contemos a histria atravs dos nossos olhares. Bibliografia: BARBERO, J. M. Dos meios s mediaes: comunicao, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1986. CANCLINI, N. G. Consumidores e cidados: conflitos multiculturais da globalizao. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001. _____ . Culturas hbridas. So Paulo: EDUSP, 2000. _____. Ideologia, cultura y poder. Buenos Aires: Oficina de Publicaciones del C.B.C., 1995. CARRANO, P. C. R. Juventudes e cidades educadoras. Petrpolis, RJ: Vozes, 2003. ______. Os Jovens e a cidade: identidades e prticas culturais em Angra de tantos reis e rainhas. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2 002. CARRANO, P. C. R. e DAYRELL, Juarez. Jvenes de Brasil: dificultades de finales del siglo y promesas de un mundo diferente. Mxico, DF: Instituto Mexicano de la Juventud. In: Jvenes, n 17, p. 160-203, 2002. CHAU, M. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. So Paulo: Cortez, 2001. ______. Conformismo e Resistncia: aspectos da cultura popular no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1996. CRUZ, Rossana R. Las Culturas Juveniles: um campo de estdio; breve agenda para la discusin. 2000. Mimeo. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. 15 ed. So Paulo: Paz e Terra, 2000. 62

GOMES, Nilma L. Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reproduo de esteretipos e/ou ressignificao cultural? Trabalho apresentado na XXV Reunio da ANPEd. Caxambu, Minas Gerais, 2000. Mimeo. HERSCHMANN, M. O Funk e o Hip-Hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. JORNAL @ BLACK Informativo, julho, vol. 1, 1 edio, 2003. KEMP, Knia. Grupos de estilo jovens: o rock underground e as prticas (contra) culturais dos estilos punk e trash em So Paulo. Campinas: Unicamp. Dissertao de Mestrado, 1993. MARTINS, Carlos H. S. O Charme: territrio urbanopopular de elaborao de identidades juvenis. Niteri: UFF. Dissertao de Mestrado, 2004. ORTIZ, R. Mundializao e cultura. So Paulo: Brasiliense, 2000. PAIS, Jos M. Culturas juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993. SANTOS, M. A natureza do espao: tcnica e tempo. razo e emoo. 2 ed. So Paulo: Hucitec, 1997. WARNIER, J. P. A mundializao da cultura. So Paulo: EDUSC, 2000.

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Texto 6 ENGENHO E ARTE Ricardo Gomes Lima 1 Existem palavras muito perigosas porque, quando empregadas, podem encobrir a realidade ao invs de desvel-la e, mais do que isto, podem transformar-se em instrumento de hierarquizao e discriminao entre pessoas, objetos, atos. Este o caso dos termos artesanato e arte popular. Seno vejamos. Tomada em sua acepo original, a palavra artesanato significa um fazer ou o objeto da resultante que tem por caracterstica o fato de ser eminentemente manual. Isto , so as mos que executam o trabalho. So elas o principal, seno o nico instrumento que o homem utiliza na confeco do objeto. O uso de ferramentas, inclusive mquinas, quando e se ocorre, se d de forma apenas auxiliar, como um apndice ou extenso das mos, sem ameaar sua predominncia. Assim, esses instrumentos auxiliares como um formo ou um pincel, uma agulha ou um martelo, um torno de olaria ou um tear no definem o processo, pois no artesanato o que importa o fazer com as mos, o fazer manual. o gesto humano que determina o ritmo da produo. o homem que impe sua marca sobre o produto. Quando raciocinamos no sentido de associar artesanato e mos, estamos nos remetendo a uma dicotomia: aquela que ope o fazer manual ao fazer mecnico, sendo este aquele em que a interferncia humana mnima e est subordinada mquina que executa suas funes com quase total autonomia (por vezes a autonomia chega a ser total mesmo!). Esta oposio muito recente na histria da humanidade. Ela surge com a Revoluo Industrial, na Europa, no sculo XVIII e, desde ento, vem transformando a realidade de sociedades as mais distintas e aparentemente isoladas na face da Terra. Podemos mesmo afirmar no

Esse texto integra o boletim do programa Engenho e Arte da srie Cultura Popular e Educao, maro, 2003. www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Professor do Instituto de Artes da UERJ; Pesquisador do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular / Funarte / Ministrio da Cultura; Doutorando do Programa de Ps Graduao em Sociologia e Antropologia/ IFCS/ UFRJ.

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existir hoje um nico agrupamento humano que no tenha arrolado, no inventrio dos bens de seu uso cotidiano, um objeto cuja origem se deve mquina. Indigenistas envolvidos em frentes de atrao para contatar grupos isolados em territrio brasileiro so unnimes em afirmar que, ao chegar a uma aldeia indgena nunca antes visitada, invariavelmente se deparam com objetos industrializados, oriundos de nossa cultura. L esto panelas de alumnio, latas e vasilhas de plstico, miangas, faces e machados de ferro, frutos do escambo entre grupos tribais, da pilhagem e incurses ao mundo branco regional. A importncia dos objetos industrializados tamanha para o indgena que eles tm sido utilizados como presentes nas frentes de atrao. Num primeiro momento so eles que atraem, uma vez que seduzem, cativam. Se considerarmos a diversidade de culturas do passado e do presente, nem vagamente conseguiremos ter uma idia do montante de objetos que foram produzidos pelo homem. E todos artesanalmente. Para uma idia do grau de dificuldade neste clculo, basta que nos lembremos do fato de que a existncia da humanidade estimada em milhes de anos e que, apenas h trs sculos, ocorreu a Revoluo Industrial. At ento, o mundo vinha sendo construdo integralmente de modo artesanal. Isto no significa, no entanto, que o artesanato seja algo do passado, uma sobrevivncia que necessariamente esteja fadada extino. Uma espcie que, obediente s leis da natureza, ir desaparecer, cedendo espao a outras formas de produo (sendo a industrial a atual). Se tal parece vir ocorrendo, resultado de fatores de outra ordem. decorrncia da maneira pela qual os grupos sociais se organizam, do modo como se pensam, das prioridades e hierarquias que constroem para eles mesmos e para os demais, do que elegem como o melhor, o mais bonito, o mais perfeito. Embora muitos no percebam, os objetos artesanais continuam a ser produzidos e convivem com os produtos da indstria, compondo o dia-a-dia de cada um de ns. Nota-se mesmo, nas ltimas dcadas, nos pases de primeiro mundo, o ressurgir do interesse pelos objetos feitos mo que alcanam altos preos de mercado. Portanto, o artesanato uma maneira de fazer objetos, existente h milnios. Toda a Antigidade foi assim construda e at a Idade Mdia europia, essa foi a forma pela qual a humanidade se fez. E porque essa era a nica maneira de confeccionar objetos durante esse 66

longo perodo, quando nos referimos a ele, o termo artesanato no enfatizado. O termo mais empregado ao nos referirmos ao perodo ps- Revoluo Industrial, quando o objeto criado pela indstria passa a ser visto em oposio ao hand made. Benita tem 40 anos e mora na comunidade de Candeal, no municpio mineiro de Cnego Marinho. L, alm de cuidar da casa, do marido e dos filhos, dos animais domsticos e do pequeno roado em que a famlia planta principalmente milho, feijo e abbora, ela faz loua de barro. Modela peas que usa no trabalho domstico e tambm vende para atender demanda da vizinhana e do mercado regional. So potes, panelas, pratos e moringas feitos com o bom barro que ela, assim como as outras mulheres de sua comunidade, sabe reconhecer muito bem. Um saber resultante do conhecimento que vem sendo transmitido gerao aps gerao pelas mulheres de seu grupo. Todo fim de tarde, Antonio Marques chega praia de Iracema, em Fortaleza e arma sua barraca. Ali, junto a outros expositores, ele vende sandlias, cintos, bolsas, prendedores de cabelo, pulseiras, porta-retratos, molduras para espelho, caixinhas. Tudo feito em couro que ele amacia, corta, cola, costura, decora com pirogravura, pinta e enverniza etapas do processo que vem aperfeioando h 40 anos. Desde que, ainda jovem, tornou-se hippie e, contestando a sociedade de consumo, abandonou a vida de classe mdia, escola e famlia em So Paulo e, mudando-se para a praia de Canoa Quebrada, adotou o que parecia a ele, e a muitos, uma maneira alternativa de viver. Paulo Aguiar d mais uma pincelada. O vermelho da tinta parece saltar sobre o fundo grafite da tela. Falta pouco para finalizar a pintura com que pretende se inscrever no Salo de Artes Plsticas. Sonha com o prmio. Acredita que desta vez ir consegui-lo, afinal a crtica vem sendo elogiosa com tudo que faz. Para isso tem se esforado. Desde que se formou na Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro vem aperfeioando o que aprendeu. Alm da pesquisa de cores, formas, volume, seu trabalho tem sido marcado pela busca do nico. Chegou ao ponto de, ele mesmo, fazer as telas que estica e prende em chassis de madeira que serra e fixa no ateli contguo casa em que mora, em Curitiba. Dona Alice dos Santos, viva e professora, v, no fim do ms, minguar a penso deixada pelo marido e o rendimento de 67

sua aposentadoria. Tambm, a farmcia consome quase tudo. Se no fosse a ajuda dos filhos! Hoje, ela est atarefada. Aproximase o Natal e ainda h muito por fazer. No sof da sala, um olho na TV acompanhando a novela, e outro na agulha, d acabamento s bonecas que fez com retalhos. Foi a forma que encontrou para burlar a carncia e presentear as netas. Ao lado, uma pilha de panos de prato aguarda pelos biquinhos de croch. Sero os presentes para as amigas. Dona Alice sorri. Que bom ter aprendido ainda moa a costurar, bordar, fazer croch e tric. Artes que hoje lhe permitem fugir ao sufoco do oramento apertado e expressar carinho pelos parentes e amigos, presenteando-os. Vizinha a Dona Alice, mora Zenaide. Tambm ela no tem uma vida financeira folgada. H dois anos est desempregada. Formada em qumica, de incio procurou emprego junto a indstrias, mas o mercado est em retrao. Tomou ento a deciso de mudar de ramo. Pesquisando, encontrou um nicho no mercado: a confeco de botons, ims de geladeira e outros pequenos objetos feitos com porcelana fria. Ir em frente depende de sua habilidade, pois o capital para o negcio foi resolvido com o saque do FGTS. Precisou comprar apenas a matria-prima e poucas ferramentas para o trabalho. Aps freqentar um cursinho no SENAC e sob orientao do Sebrae, acaba de abrir um quiosque num shopping popular do centro de Salvador. Gustavo Nogueira est feliz. Foram anos de tentativas aps se formar na Escola Superior de Desenho Industrial no Rio de Janeiro e passar por um estgio em Milo, onde exercitou o olhar, estudou formas e estticas diversas. Agora, acaba de receber uma encomenda que pode mudar sua vida. Finalmente, as jias que desenha e executa, uma a uma, chamaram ateno de uma grande rede de joalherias que as quer nas vitrines de suas lojas, espalhadas por importantes shoppings da cidade do Rio de Janeiro, onde reside. Ela colhe o algodo, descaroa, fia e tinge os novelos com que tece as colchas que so a cara de Olhos Dgua, cidade goiana prxima de Braslia. Todo o longo processo de fiao e tecelagem, Maria de Ftima aprendeu com sua av, de quem tambm herdou o velho tear horizontal, marca da tradio portuguesa. Enquanto sua av tecia visando s necessidades da famlia, hoje, Fatinha se desdobra para atender s encomendas dos mais diversos pontos do pas. Seus produtos tornaram-se conhecidos depois de uma exposio que realizou num centro cultural da capital do pas. 68

Em So Paulo, Ana Maria est feliz. Filha de um conceituado escultor modernista, ainda cedo resolveu abraar a carreira do pai, dedicando-se especialmente ao mrmore e ao bronze, materiais em que busca colocar toda sua emoo. Atualmente, mergulhada no trabalho, desenvolve uma nova proposta que espera ser bem recebida tanto pela crtica especializada quanto pelo pblico. Estas situaes descritas guardam entre si uma unidade que o olhar mais atento pode perceber: Se tomarmos como referncia o sentido da palavra artesanato com que demos incio a este texto, veremos que a louceira do interior, o expositor da praa, o pintor, a professora aposentada, a vendedora do shopping, a artista plstica, a tecel e o designer de jias, todos, sem exceo, executam com as prprias mos o que concebem. Todos eles so artesos. Por outro lado, essas histrias apresentam entre si disparidades por vezes enormes. So diferenas que decorrem no apenas das distintas geografias do pas, das distncias entre os mundos rural e urbano, mas principalmente da diversidade de contextos socioculturais apresentados e das particularidades das histrias de vida de cada personagem que fazem com que sejam classificados em posies diferenciadas. Assim, posso dizer que a louceira e a tecel fazem arte folclrica ou artesanato tradicional ou cultural ou de raiz. Se Benita se aventura um pouco mais e, deixando de lado a produo de loua utilitria, modela alguns boizinhos, cavalos, patos e galinhas para brinquedo dos filhos, alguns diro que ela faz arte popular; a professora aposentada participa do primeiro grupo quando costura bonequinhas de pano; j ao se dedicar confeco de panos de prato junta-se vendedora do shopping fazendo trabalhos manuais ou manualidades (para alguns, esta ltima realiza industrianato); o expositor da praa faz artesanato hippie, o joalheiro produz design contemporneo e o pintor e a escultora produzem arte erudita ou arte contempornea ou a verdadeira arte. Quantos termos, quanta classificao! H mil maneiras de ordenar o mundo e eu posso organizar nossos personagens de acordo com muitos critrios de classificao. Uma forma comum, e simplificada, aquela que ope artesanato e arte. Neste sentido, a louceira de Minas Gerais, a tecel goiana, a dona de casa aposentada, o feirante de Fortaleza e a qumica do shopping so tidos como artesos enquanto o designer de jias, o 69

pintor e a escultora so rotulados de artistas. Por que isto? Qual a lgica que preside esse sistema? Na realidade, se observarmos com ateno, veremos que esta questo refere-se distino de classes sociais. Essa oposio resulta da dicotomia elite e povo e remete mesma matriz que atribui s camadas dirigentes, o saber, opondose-lhes o fazer, necessariamente associado s camadas subalternas. Assim, supe-se que tudo aquilo que advm da ao das elites resultante de um conhecimento superior, fruto do pensar, o fazer artstico, negando-se s camadas populares da sociedade a capacidade de pensar, a possibilidade de conceber e se expressar racionalmente. A estas s resta o mero fazer. O fazer artesanal. Antonio Augusto Arantes, contribuindo para o entendimento dessa questo, argumenta que:
Nas sociedades industriais, sobretudo nas capitalistas, o trabalho manual e o trabalho intelectual so pensados e vivenciados como realidades profundamente distintas e distantes uma da outra. Reflitamos um minuto, por exemplo, sobre as diferenas sociais que h entre um engenheiro e um eletricista, ou entre um arquiteto e um mestre-deobras. Alm da discrepncia entre salrios e ao lado das formaes profissionais diversas, h um enorme desnvel de prestgio e de poder entre essas profisses, decorrente da concepo generalizada em nossa sociedade de que o trabalho intelectual superior ao material. Embora essa separao entre modalidades de trabalho tenha ocorrido num momento preciso da histria e se aprofundado no capitalismo, como decorrncia de sua organizao interna, tudo se passa como se fazer fosse um ato naturalmente dissociado de saber. Essa dissociao entre fazer e saber, embora a rigor falsa, bsica para a manuteno das classes sociais pois ela justifica que uns tenham poder sobre o labor dos outros. (ARANTES, 1988:13-4)

Portanto, na medida em que, na ideologia capitalista, se dissociam o trabalho intelectual e o trabalho manual, respectivamente vinculados elite e ao povo, condena-se a produo popular ao 70

domnio da irracionalidade, da inconscincia, da espontaneidade do fazer. Da ser comum vermos pessoas encantarem-se com a beleza da produo popular e exclamar: inexplicvel o fato de que pessoas to pobres possam produzir coisas to belas! Como se o povo no pensasse sobre aquilo que realiza! Ora, essa maneira de classificar extremamente discriminatria, pois confina as criaes populares num gueto, resultando em reserva de mercado para a produo de origem erudita, especfica da camada dirigente ou daqueles que com ela se identificam. O objeto artesanal, destinado a feiras e mercados, tem seu valor diminudo em decorrncia exatamente deste sistema de classificao. Ao contrrio, pesquisas realizadas junto a grupos sociais especficos tm demonstrado que uma das caractersticas da produo artesanal, enquanto processo de trabalho, reside exatamente na integrao da atividade manual com a intelectual, na associao entre a obra produzida e seu autor, o oposto do que ocorre na produo industrial onde, a sim, em decorrncia do princpio da diviso social do trabalho e da especializao, essas instncias se separam. O estabelecimento dessas fronteiras marcado pela histria do pas; acompanha o desenvolvimento da sociedade brasileira desde o perodo colonial. Herdeiro da tradio europia de organizao do trabalho, o Brasil Colnia adotou o sistema e a nomenclatura de trabalho do regime corporativo surgido na Europa medieval. Assim como em Portugal, aqui, at o sculo XVIII, se constata uma diferenciao entre oficiais mecnicos e artistas, sendo estes ltimos considerados pintores, escultores, engenheiros e arquitetos. Com a gradativa degradao das corporaes de ofcio, extintas oficialmente pela Constituio liberal de 1824, essa nomenclatura foi abandonada. A partir dessa data, sucessivos censos registram vrias designaes oficiais para as ocupaes no pas. Em 1872, adota-se uma classificao que separa profisses liberais (incluindo a dos artistas), profisses manuais ou mecnicas (a dos artesos ) e profisses industriais e comerciais. J em 1900, define-se o seguinte quadro: profisses industriais (compreendendo: agrcolas, pastoris, extrativas e manufatureiras) e artes e ofcios, sem discriminao por setor de produo. A partir de 1920, a designao artes e ofcios desaparece e o censo, refletindo o esprito 71

da modernizao desenvolvimentista que classifica os setores produtivos da economia em primrio, secundrio e tercirio, identifica quatro setores bsicos de produo: agricultura, indstria, comrcio e servios (cf. Porto Alegre, 1985 ). Indaga Sylvia Porto Alegre:
Onde ficam os artistas? Onde ficam os artesos? Submergidos no interior da sociedade, sem reconhecimento formal, esses grupos passam a ser vistos de diferentes perspectivas pelos seus intrpretes, a maioria das vezes engajados em discusses que se polarizam entre cultura erudita x popular... (PORTO ALEGRE, 1985:11)

O urbano, o escolarizado, o erudito, o intencional e o sofisticado so, de acordo com esse discurso polarizado, o que qualifica e distingue a matria com que opera: a grande arte ou simplesmente a arte. Ao popular, definido por oposio ao erudito e a partir de categorias que lhe so estranhas, reservado um espao de menor importncia a arte popular ou apenas o artesanato. Esse discurso, resultante de uma postura elitista, deve ser abandonado em prol de uma anlise da realidade social que incorpore as representaes daqueles que, sob denominao de artistas populares ou artesos, a par de serem portadores de um saber de grande significado cultural refletido em suas criaes, so tambm integrantes de realidades histricas concretas, sobre as quais agem, reagem e refletem. Como assinala Sylvia Porto Alegre:
Toda discusso sobre fronteiras entre arte e artesanato, entre artista e arteso, a partir do discurso dominante, carece de sentido dentro da perspectiva do indivduo que exerce essa atividade pois ele raramente separa a instncia do trabalho manual ou mecnico (artesanal) do trabalho intelectual e confere a ambos igual dignidade. (PORTO ALEGRE, 1985: 10)

Portanto, para que se possa chegar descoberta de categorias sociais plenas de significado, necessria a observao interna do 72

universo da arte dita popular. necessria a anlise que venha a aferir quais os modos de vida, os valores e as perspectivas dos indivduos e grupos sociais que do forma s mltiplas expresses de arte que se convencionou denominar populares. Importa perceber como os prprios artistas definem suas obras, e a noo particular de arte, para que se possa, com suas categorias, chegar a entendimentos da realidade que no sejam produtos de posturas etnocntricas. O uso das categorias artesanato e arte deve ser redirecionado. importante percebermos que se referem a termos aplicveis a diferentes planos discursivos. Num certo sentido, trata-se mesmo de realidades distintas e no das faces de uma mesma moeda. Minha proposta que reservemos o termo artesanato para nos referir ao processo de produo do objeto, tecnologia que, predominantemente executada com as mos, d forma ao objeto, independente de sua origem erudita ou popular. Assim, tanto a rendeira de bilro quanto o oleiro ou o escultor consagrado, para realizar seu trabalho lanam mo de uma tecnologia em que a manualidade da maior importncia. E isto artesanato. Assim, ao falar sobre a matria-prima com que o objeto confeccionado, ao descrever as etapas do processo de feitura desse objeto, passo a passo, estamos transitando no domnio do artesanato. Num outro plano, podemos discursar sobre este mesmo objeto, preocupados em desvelar questes de esttica, de equilbrio de massas, de propores, de contrastes entre forma e fundo, de ritmo, de cores. De contedos simblicos, de sistemas de significados, expressos ou latentes. A, estarei falando de arte. No importa se o objeto o pote de barro de Benita ou a escultura em bronze de Ana Maria. Se erudito ou popular. Bibliografia: ARANTES, Antonio Augusto. O que cultura popular. So Paulo: Brasiliense, 1988. (Coleo Primeiros Passos, n.36) PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Arte e ofcio de arteso: histria e trajetria de um meio de sobrevivncia. guas de So Pedro, 1985. Trabalho apresentado no IX Encontro Anual da ANPOCS, 22-25 out.

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Texto 7 LINGUAGENS ARTSTICAS DA CULTURA POPULAR Eleonora Gabriel 1 Para comear nossa reflexo, propomos a voc, professor, experimentarmos juntos um olhar, um olhar que enxergue quem so nossos alunos. No h nenhuma novidade nesta proposta, mas talvez o que sugerimos seja a necessidade de observar, sob um novo prisma, este instigante e, muitas vezes, misterioso mundo da relao professor/aluno, escola/comunidade, cultura/arte e educao. Por exemplo: olhar para o Diego e saber como ele foi parar ali naquela comunidade, olhar para o Maicom e saber por que ele tem esse nome. Por que ser que a Sabrina, que negra de olhos verdes, com um longo cabelo grosso e encaracolado, nunca o deixa solto? Por que a Suelen no consegue se concentrar quando proposto escrever uma redao e dana to bem? Por que eles se batem tanto, que msica eles gostam de escutar, quando eles mais se integram? O que dessas histrias tem a ver com a sua? E quantas outras perguntas um olhar curioso possa desejar. Com salas cheias e inadequadas, alunos com mltiplas dificuldades de aprendizagem, parece meio distante, para ns professores, mais esta competncia. Talvez esta brincadeira possa ser bem divertida e tambm um tema, ou uma estratgia, para muitas aulas, que estimulem nossos alunos, e tambm a ns, a pesquisar nossos saberes. O mestre Paulo Freire ensina:
[...] a educao ou a ao cultural para a libertao, em lugar de ser aquela alienante transferncia de conhecimento, o autntico ato de conhecer, em que os educandos tambm educadores como conscincias intencionadas ao mundo,

Esse texto a proposta pedaggica da srie Linguagens Artsticas da Cultura Popular, maro/abril, 2005.www.tvebrasil.com.br/salto/

Mestre em Cincia da Arte/UFF. Prof.a. adjunta da Escola de Educao Fsica e Desportos-UFRJ. Coordenadora da Companhia Folclrica do Rio-UFRJ e do grupo Samorando a Dana do CIEP Samora Machel. Presidente da Comisso Fluminense de Folclore.

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ou como corpos conscientes, se inserem com os educadores educandos tambm na busca de novos conhecimentos, como conseqncia do ato de reconhecer o conhecimento existente. (FREIRE, 1984, p. 99).

s vezes, a gente esquece que agente de cultura, que cada um carrega uma histria cheia de histrias, que sabemos um monte de saberes que no foi a escola, nem a mdia, que nos ensinaram. Conhecimentos de cada um, de nossos meninos e nossos, educandos e educadores, pessoas reais no sculo XXI, no terceiro milnio. Quem somos neste mundo to louco, fascinante, inseguro, surpreendente, cheio de violncia e amor? Impregnados no cotidiano contemporneo pela maravilhosa comunicao e pela perigosa massificao, referentes globalizao que toma todo o nosso planeta, impondo aos mais frgeis a cultura dos mais fortes, urge refletirmos sobre a identidade cultural brasileira. A identidade cultural se relaciona a aspectos de nossas identidades que surgem do pertencimento a culturas tnicas, raciais, lingsticas, religiosas e, sobretudo, nacionais. Alguns estudiosos afirmam que, de alguma maneira, pensamos nesta identidade como parte de nossa natureza essencial, que nos faz sentir indivduos de uma sociedade, grupo, estado ou nao. As pessoas sentemse identificadas umas com as outras e, ao mesmo tempo, distintas das demais. Assim a identidade e a alteridade (referente ao que do outro), a similaridade e a diversidade marcam o sentimento de pertencer ao todo. Vivemos num supermercado cultural da aldeia global, que inventa desejos homogneos de estilos, lugares e imagens, buscando uma massificao, que auxilia a dinmica incontrolvel do capitalismo e a hegemonia imperialista, o que para os povos dos pases do terceiro mundo ou em desenvolvimento, historicamente desvalorizados por seus prprios governos, representa o perigo da globalizao. Aquela velha histria de valorizarmos tudo que vem de fora e no a ns mesmos, o que desvincula, mais ainda, as identidades de seus tempos, lugares, histrias e tradies. O mundo ps-moderno parece menor, com certeza, mais interconectado, o que tem efeito direto sobre as identidades culturais, influenciando todos os sistemas de representao de si e do coletivo. Difcil saber quem somos se no aprendemos na escola o 76

valor cultural e artstico de nossa formao que reuniu, e continua reunindo, vrios jeitos, conhecimentos e modos de fazer; e que esta mistura de gentes pode ser nosso grande potencial, potencial criativo que cria formas de comunicao e arte, formas de cultura. A conceituao de cultura sempre trouxe muitas controvrsias, at porque variou no tempo e nos espaos. Peter Burke e outros antroplogos e historiadores defendem que a noo de cultura, hoje, est ligada a quase tudo o que pode ser aprendido em uma dada sociedade como comer, beber, andar, falar, silenciar, brincar, danar e assim por diante. Um sistema de significados, atitudes e valores compartilhados, e as formas simblicas (apresentaes e artefatos) nas quais eles se expressam ou se incorporam (BURKE,1999, p.21). Todo um modo de vida que retrata as aes ou noes subjacentes vida cotidiana, que varia de sociedade a sociedade, e pode mudar de um sculo para outro. Uma construo histrica e social. Sendo assim, cultura se apresenta com limites muito indefinidos, e a tentativa de categorizao de tipos de culturas se torna flexvel. No a distribuio dos objetos culturais que identifica a cultura popular. Os objetos so e sero sempre apropriados ou usados por grupos sociais diferentes para suas prprias finalidades, eles circulam e se tornam mesclados, hbridos. Sendo a cultura um sistema de limites indistintos, impossvel dizer onde comea e termina a cultura popular, erudita e massiva. Nesta srie, tentamos entender a cultura popular, como cultura dinmica, presente no meio rural e urbano, que junta tradio e atualidade sempre em transformao, um encontro entre tempos e espaos, com essncia de brasilidade, juntando o local com o global, o velho e novo, completando um com o poder do outro, como diz Carlos Rodrigues Brando (1993). Beatriz Muniz Freire (2003) afirma que: Quando falamos de cultura popular estamos nos referindo no apenas s manifestaes festivas e s tradies orais e religiosas do povo brasileiro, mas ao conjunto de suas criaes, s maneiras como se organiza e se expressa, aos significados e valores que atribui ao que faz (...). Alguns chamam este movimento de folclore, outros no, e aqui no nos preocupamos com esta conceituao to polmica, resolvemos ressaltar a fora de resistncia e persistncia da cultura brasileira, que acreditamos ser de crucial relevncia na educao de nosso povo. Mestre Ronaldo, palhao de Folia de Reis Penitentes do Santa Marta, do morro Santa Marta em Botafogo, no Rio de Janeiro, ensina: 77

(...) Mas quando fala de cultura Isso ningum pode negar Que o povo do Santa Marta Muita coisa tem pra mostrar Porque uma comunidade Que mantm a sua raiz Vocs agora to vendo A Folia de Reis do mestre Diniz Mas temos dana, temos rap Temos o forr do Luiz Temos grupo de teatro Que sobrevive como pode Temos samba, temos chorinho Temos grupo de pagode Temos muitos outros talentos Dentro tudo da comunidade Espero que esse projeto Me d mais oportunidade. T bom gente!? (Fragmento da chula apresentada na Cobal Humait, 15 de janeiro de 2005.)

Somos no plural, temos vrias culturas populares, um universo to rico que, mesmo submetido ao mundo globalizado que impe uma cultura de massa, como uma colonizao cultural, podemos observar que estamos vivendo um re-viver de nossas razes. Stuart Hall diz que a resistncia homogeneizao, por alguns, tem reforado identidades locais e nacionais, isto , juntamente com o impacto global, revive um novo interesse pelo local, criando novas identificaes. Nunca foram vistos tantos jovens interessados pela cultura popular, principalmente expressa atravs da msica e da dana, pelo menos, no eixo Rio-So Paulo. O movimento do Forr Universitrio que trouxe juventude o desejo e a necessidade de danar junto, aprender como levar uma dama, conhecer Luiz Gonzaga... Vrias bandas de rock que tm se inspirado nos Maracatus... Muitos jovens danando cirandas e cocos... E, quem sabe, a possibilidade de despreconceituar migrantes nordestinos atravs do conhecimento e da valorizao da cultura do Nordeste. Aqui no Rio de Janeiro, o samba e suas diversas apresentaes j fazem parte da vida de grande parte da juventude carioca, de vrios bairros, valorizando compositores antigos como mestres. Tm sido formados vrios grupos de jovens pesquisadores da cultura do Rio e 78

de outras regies, de vrias motivaes e origens, ligados ou no a instituies de ensino. O Jongo, a Capoeira, o Charme, o Hip-Hop, seja que ritmo for, o que tentamos reforar nesta srie a importncia social das manifestaes que levam nossas crianas e nossos jovens a criar foras de participao coletiva, repensando, artisticamente, vrias questes, inclusive a brasilidade. E como as escolas e outros espaos de educao podem incluir toda esta criao e recriao de arte em seus contedos, disciplinas e projetos pedaggicos. Mrio de Andrade defende a idia de arte baseada no princpio da utilidade, e no s uma arte com preocupao exclusiva com a beleza, baseada de modo mecnico e servil na esttica universal, e sim, uma arte que reconhea o contexto histrico como elemento de produo. Uma arte comprometida com seu tempo, servindo-se de tudo que lhe pudesse ser til como instrumento de afirmao cultural (apud COELHO, 1999, p. 46 e 52). Apreciando o panorama cultural brasileiro, podemos notar que os encontros tnicos em nosso pas criaram e criam interlocues muito interessantes que, de alguma forma, se mostram resistentes, apesar de tantas represses e desvalia; principalmente, por terem um valor social considervel que organiza, chama participao e integra as comunidades e, sobretudo, por nos darem um colorido potencial criativo e artisticamente rico. O socilogo Domenico De Masi, professor da Universidade de Roma La Sapienza, fala que a criatividade artstica brasileira tem-se mostrado imbatvel, e que essencial o reconhecimento dessa competncia no contexto do grande jogo internacional, dessa capacidade de o Brasil criar produtos que funcionem como barreiras imposio de uma esttica e de smbolos externos. A dimenso e a importncia desse valor brasileiro no podem ser ignoradas pelo nosso povo, pelos formadores de opinio e pelos governantes. No podem ser ignoradas pela escola.
Possuir esse ativo e prosseguir exibindo-o ao mundo inteiro uma riqueza intangvel, de enorme valor econmico, simblico e poltico. Pois essa globalizao empobrecedora, que tudo impe, engloba e manipula, s pode ser confrontada, como nica via de salvao, pelas culturas locais. (DE MASI. A Globalizao, o Brasil e a Cultura. Jornal O GLOBO, 12/09/2003).

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Como sabemos, a arte tem sido importante alicerce de muitos trabalhos com crianas e adolescentes, principalmente viventes em comunidades de risco social, que, em sua maioria, pertencem s nossas escolas e a outros espaos educacionais pblicos. A arte contra a violncia e desvalia! As necessidades de expresso atravs das linguagens artsticas e, tambm, a urgncia em nos entendermos seres culturais e histricos, abrem as possibilidades de tranarmos arte e cultura popular na educao, pensando em identidade e cidadania brasileiras. Uma sugesto pode ser a de incentivarmos a pesquisa nas famlias de origem, na comunidade da escola, convidar mestres populares para conversas e dinmicas, procurar contatos com grupos e instituies artstico-culturais locais e comisses de Folclore que existem na maioria dos estados brasileiros. Quem somos, como brincamos, danamos, cantamos, contamos histrias, resistimos? Essas questes incentivam a curiosidade em desvelar dentro da escola o conhecimento de nossos educandos e educadores, saberes culturais, nascidos e desenvolvidos nas histrias de origem e do dia-a-dia. Expresses multiculturais que colorem nossos jeitos de ser, pensar e agir, demonstrando a necessidade de falarmos de incluso, de diversidade, de educar para a diferena natural de tantos povos que compem o povo brasileiro. Essa pluralidade que cria arte, cultura, solidariedade, regras de convivncia, tica, pertencimento, auto-estima, respeito riqueza patrimonial identitria, com cara de Brasil, que precisa entender-se valorizado para enfrentar a ps-modernidade globalizada, com cara de Brasil. Trabalhar com arte e cultura brasileiras na educao nos d a esperana de participarmos de um processo que forma brasileiros, com muita honra. A quem serve um povo sem identidade? possvel motivar a escola para o autoconhecimento cultural-artstico da comunidade onde ela se insere, e ter este saber como uma das bases da construo dos currculos e projetos pedaggicos? Como sensibilizar a comunidade acad-mica e todo o entorno para a valorizao da brasilidade? A busca de talentos em nossas esco-las pode definir outras formas de educar? Como as linguagens artsticas da cultura popular podem ser um instrumento estratgico em nossas aes scio-educacionais? Quem sabe a escola e Diego fiquem curiosos em saber como sua famlia se formou e foi morar ali na comunidade do entorno 80

da escola. Quem sabe Sabrina valorize sua aparncia mestia, e Suelen e seus professores acreditem que podem utilizar a linguagem conquistada na dana para escrever um texto. Quem sabe o bater possa ser substitudo por uma comunicao mais saudvel, cheia de alegria, afeto e arte e todos possam juntar as diferenas, construir grupos de trabalho e mostrar para muitos o que criam. Cabe a ns, professores, apresentarmos outras opes a nossos alunos e a ns mesmos, para vivermos uma escola mais alegre, mais artstica, mais brasileira. Ser tudo isso uma utopia? Os profissionais e trabalhos que encon-traremos aqui comprovam que no, apesar de tudo, amanh h de ser outro dia (Chico Buarque). Apreciando estas questes, buscamos nesta srie colocar nossas dvidas, aprender uns com os outros e analisar aes acadmicas efetivas e afetivas para tocar, atravs da arte popular, nossos coraes brasileiros. Bibliografia: ARGAN, Giulio Carlo. Histria da Arte como Histria da Cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1998. ARANTES, Antonio Augusto. O que Cultura Popular. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1982. BRANDO, Carlos Rodrigues. Cultura na Rua. So Paulo: Papirus, 1989. ______. O Que Folclore. Braslia-DF: Editora Brasiliense, 1993. BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna Europa,1500-1800. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. CANCLINI, Nestor Garca. Culturas Hbridas - estratgias para entrar e sair da modernidade. So Paulo: EDUSP, 2000. CASCUDO, Lus da Cmara. Cultura e Sociedade - Pesquisas e notas de Etnografia Geral. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1983. ______. Dicionrio do Folclore Brasileiro Belo Horizonte - Rio de Janeiro: Editora Itatiaia Limitada, 1983. COELHO, Teixeira. Dicionrio Crtico de Poltica Cultural - Cultura e Imaginrio. So Paulo: Iluminuras, 1999. DE MASI, Domenico. A Globalizao, o Brasil e a Cultura. In: Jornal O GLOBO, Rio de Janeiro, 12/09/2003. FREIRE, Beatriz Muniz. O que , o que : Folclore e Cultura Popular. In: Boletim Salto para o Futuro-Cultura Popular e 81

Educao. Rio de Janeiro: TV Escola, fevereiro 2003. FREIRE, Paulo. Ao Cultural para a Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. So Paulo: DP&A Editora, 2002. GABRIEL, Eleonora. Escorrego mas no caio o jeito que o corpo d - as danas folclricas como expresso artstica de identidade e alegria. Niteri: UFF. Dissertao des Mestrado em Cincia da Arte-IACS, 2003.

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Memria, Identidade e Patrimnio


Ren Marc da Costa Silva 1 Nesta segunda unidade do presente volume intitulado: Cultura Popular e Educao, organizado a partir de sries do programa Salto para o Futuro, apresentamos alguns textos que podero ser teis a voc, professor, sobretudo, como importante ferramenta para trabalhar com seus alunos, as relaes entre memria, histria, escola, educao e cultura. Cada um dos textos aqui indicados aborda um aspecto particular do extenso campo de estudos sobre a memria, todavia, todos eles esto substantivamente articulados com noes de identidade, patrimnio material/imaterial e cultura popular. Pensar a educao luz dessas noes importante? Por qu? Falar da memria , antes de tudo, falar de uma faculdade humana. A faculdade de conservar estados de conscincia pretritos e tudo o que est relacionado a eles. Bem, a faculdade da memria responsvel por nossas lembranas. Certo, mas falar de lembranas falar necessariamente de quem lembra. Ora, quem efetivamente recorda so os indivduos. Portanto, toda memria humana memria de algum, de um indivduo. Ela se refere, antes de tudo ao Eu, ao olhar que essa pessoa constri a respeito de si mesma, da identidade, portanto, de quem efetivamente recorda. Entretanto, se individual e como vimos, com toda certeza a memria tambm, por outro lado, social. Mas ento, como a memria individual se torna social? A memria um processo complexo e no se reduz a um simples ato mental. Ela passa pela percepo dos nossos sentidos, como tambm pelos nossos sonhos e iluses e pode incluir tudo, desde uma sensao mental altamente privada e espontnea, possivelmente muda, at uma cerimnia pblica solenizada. Todavia, tanto num caso como noutro, os dados da nossa experincia cotidiana so as reservas, os estoques, a massa de elementos sobre os quais ela trabalha. Maurice Halbwachs, o primeiro terico do que chamamos
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antroplogo e doutor em histria pela Universidade de Braslia UnB, professor de histria, tica, alm de cultura poltica no programa de mestrado em direito do Centro Universitrio de Braslia UniCeub.

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memria coletiva, sustentava que toda memria se estrutura em identidades de grupo: recordamos a nossa infncia como membros e a partir de experincias numa vida em famlia, o nosso bairro como vizinhos em uma dada comunidade, a nossa vida profissional em torno de relaes estabelecidas no escritrio, na fbrica ou no sindicato. Halbwachs tentava mostrar que tanto o social est inscrito na memria individual como esta se encontra inelutavelmente enraizada na sociedade. Construda sobre estas experincias vividas, a memria se funda, por conseguinte, naquilo que a argamassa, o cimento, a tessitura ntima dessas vivncias: a linguagem. A linguagem cotidiana, seu lxico e sua sintaxe fornece a ns indivduos ou grupos, os meios de exteriorizar nossa memria em uma narrativa. Contudo, a linguagem da contemporaneidade a linguagem da informao, tcnica, pulverizada em milhares de cacos, incapaz de produzir sentidos, significaes, de produzir narrativas que rearticulem os pedaos ao todo. Caracterizada pela brevidade da novidade, apresenta-se como uma linguagem pobre, sem laos de comunidade, sem uma comunidade de ouvintes. Uma linguagem monolgica, sem trocas, sem dilogo, sem as marcas de quem fala sobre quem ouve e, portanto, sem as marcas daquele que ouve no que fala. No dia-a-dia do homem moderno, do nosso mundo contemporneo, s so possveis vivncias que no mais permitem assimilar o que foi vivido, pois so fruto do choque permanente do eternamente novo, sem rastros e sem histria O pauperismo de nossa linguagem denuncia, sim, a pobreza e o carter fragmentrio de nossas prprias experincias comunicveis. Um mundo cada vez mais marcado pelo narcisismo, pela violncia, egocentrismo, isolamento. Esse privatismo da experincia a subtrao, a dissoluo dela prpria, do mundo e da histria. a dissoluo das possibilidades de uma narrativa capaz de contar o mundo. Num mundo como esse, qual o valor da memria, e do patrimnio cultural se no existe mais uma experincia a transmitir s novas geraes, se a experincia no vincula mais as pessoas, se a linguagem produo humana acontecida na histria, produo que construda nas interaes sociais, nos dilogos vivos, permite pensar as aes dos outro e as suas prprias, constituindo a conscincia que produz o sentido prprio das experincias transformou-se quase que em meros cdigos abstratos? Como comunicar aos jovens as 86

lies proverbiais e prolixas das histrias trazidas pela autoridade da velhice? Narrativas do passado, dos ancestrais ou dos tempos idos, quem sabe cont-las e, sobretudo, como cont-las? As indagaes de Walter Benjamim ainda ecoam: que moribundos dizem hoje palavras to durveis que possam ser transmitidas como um anel, de gerao em gerao?Quem ajudado hoje por um provrbio oportuno? Quem tentar, sequer, lidar com a juventude invocando sua experincia? Num contexto como esse, o papel da escola e da educao avulta. de ambas a responsabilidade de um mnimo de conservao de que o mundo no pode prescindir. Cabe a elas resgatar, redefinir, ressignificar a existncia na barbrie. Se apropriar destas caractersticas do mundo moderno e construir conhecimento ter bem claro e desejar um outro tipo de educao, ensinar a nos percebermos olhando para o outro, trazer para dentro da escola os outros, os excludos, e aprender que possvel assumir mltiplos lugares, entender que o mundo no um nico mundo e descobrir que o novo pode nascer daquilo que foi perdido. A tarefa mais importante para a escola e para uma perspectiva mais democrtica de educao certamente lutar contra a fragmentao e a disperso, reatando, pela retomada da linguagem expressiva, os elos da coletividade; preenchendo o vazio deixado pelo individualismo. Abrimos, dessa forma, a unidade com o interessante texto A fotografia como objeto de memria da historiadora Mary Del Priore. O texto discute o importante papel da fotografia, em suas diferentes formas e em suas mltiplas abordagens, como um valioso instrumento para evocar a memria. A fotografia, assim como outros meios midiaticos, pode ser o ponto de partida para a reconstituio de um determinado momento do passado, contextualizando no tempo e no espao informaes crticas sobre nossa histria ou, ainda, servir de base para novas criaes no presente que, mantendose fiis s tradies, reafirmam o carter dinmico da cultura. Neste sentido, aliar, em sala de aula, fotografia com cultura popular pode proporcionar uma valiosa experincia, intelectual e emocional, tanto para alunos quanto para os professores. J o texto As festas populares como objeto de memria de Charles Murray, mostra como em todas as pocas e em todas as regies do planeta, as festas populares foram instrumentos fundamentais atravs dos quais os homens difundiram suas diversas expresses de cultura, isto , seus conhecimentos, artefatos, tcnicas, padres 87

de comportamento e atitudes. Mas, mais importante, problematiza o papel das festas populares na nossa sociedade e o que elas representam para a identidade nacional brasileira. Definidas como espelho coreogrfico da alma do povo, Murray sustenta que elas traduzem nossa diversidade multicultural e multirracial, permitindo uma leitura tnico-racial acurada de cada regio do pas. Murray, que tambm assina o texto seguinte, A msica como objeto de memria, desdobra essa reflexo abordando as manifestaes musicais populares como documentos vivos e vividos das transformaes pelas quais passam os homens, as sociedades, as naes. Neste sentido, assinala dentre outros vrios exemplos como j no primeiro sculo de colonizao portuguesa no Brasil, os elementos de msica e dana nativos foram integrados a cantos e instrumentao ligados ao teatro religioso de matriz medieval, combinao incrustadas na raiz de nossas festas e danas populares. J no trabalho de Maria de Lourdes Parreiras Horta, Os lugares da memria, o enfoque se desloca para o que o historiador Pierre Nora chamou de lugares de memria. Isto , lugares nos quais se encarnam as memrias de uma nao igreja, bandeira, hino nacional, etc. Mas tambm so locais, assevera a autora, onde se cristalizam memrias pessoais, familiares ou de grupos tais como fotos, documentos emblemticos ou objetos pessoais. Podem constituir-se tais suportes em espelhos, onde um grupo social ou um povo se reconhece simbolicamente e se identifica, mesmo que de maneira fragmentada. Fechamos esta unidade com as magnficas reflexes de Letcia Vianna sobre patrimnio, no trabalho Patrimnio Imaterial: novas Leis para preservar... O que?. Em seu texto, a autora elenca questes bsicas para pensar esta problemtica. Tais como: o que e como se define patrimnio? E patrimnio imaterial, qual a importncia disso, como e por que preserv-lo? No decorrer da reflexo, nos lembra que a idia de patrimnio nos orienta, antes de tudo, para qualquer coisa que se constitua num valor para pessoas, grupos ou naes. Isto , remete para a idia de riqueza construda e transmitida como herana ou legado, que influencia o modo de ser e a identidade dos indivduos e grupos sociais. De acordo com isso, poderamos identificar patrimnio cultural como quaisquer conjuntos de conhecimentos e realizaes 88

de uma dada sociedade que so acumulados ao longo de sua histria, lhe conferindo caractersticas de singularidade em relao a outras sociedades por exemplo, sistemas de significados, memrias, valores, crenas, saberes e prticas, costumes, modos de viver, ticas, estticas ou vises de mundo conferidoras de sentidos a existncias humanas individuais ou coletivas. Vianna assinala, entretanto, que malgrado o rico conjunto de instrumentos e dispositivos legais disponveis para a defesa e preservao do patrimnio material e imaterial de nossa nao, apenas a legislao no basta para garantir a salvaguarda desses bens. Mas que, de outra forma, ele s ser efetivamente preservado se contar com a vivncia voluntria das pessoas e o engajamento das novas geraes, de professores e educadores. Enfatiza, assim, e destaca o papel fundamental da escola e dos educadores em geral no relembrar constante dos princpios do relativismo cultural para as novas geraes, na valorizao da diversidade cultural, nos valores como respeito e tolerncia; no estmulo permanente curiosidade pelas culturas e identidades tradicionais, divulgando-as para que sejam conhecidas e reconhecidas na sociedade abrangente, de modo que seja transmitida a vontade de aprender, vivenciar, compreender, repassar e reinventar as tradies.

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Texto 1 A FOTOGRAFIA COMO OBJETO DA MEMRIA Mary Del Priore 1 Hoje, um fato incontestvel: a fotografia, em suas mltiplas formas, se afirma cada vez mais como um modo de expresso, de informao e de comunicao, ntegra, essencial e especfica. Ns a enxergamos em toda a parte sem, muitas vezes, enxerg-la realmente. Olhamos, sem ver. Ao longo das pginas da imprensa cotidiana e das revistas, a fotografia contribui tanto para o conhecimento dos fatos quanto para compor o visual de anncios publicitrios. E mais, num registro completamente diferente, ns a utilizamos para guardar a lembrana emocionada de acontecimentos ntimos e para, de alguma maneira, ilustrar nossa prpria histria, num quadro que se convencionou chamar lbum de famlia. Consagrada como obra de arte, ela ganha, cada vez mais, espaos nas galerias e museus, ao lado de pinturas e outras formas de arte contempornea. Espcie de Oitava Arte , ela alvo de comentrios e crticas da imprensa escrita e audiovisual, mas, tambm, de estudos aprofundados sob diversos ngulos: histricos, sociolgicos, estticos, semiolgicos. A fotografia plural e suas abordagens so igualmente mltiplas. Do simples inventrio cronolgico de fotgrafos ou de estilos de fotografar pode-se passar a digresses muito complexas, de inspirao terica. Para alm do discurso esttico que, no mundo da fotografia, tende a privilegiar toda a manifestao de carter criativo e a se interessar por todas as formas e sua evoluo, ligando-a a diferentes tradies visuais, uma sociologia da fotografia repousa sobre o estudo dos diferentes contextos (histricos, sociais, econmicos) da fotografia; quanto semiologia, ela permite encarar a fotografia como mensagem, desmontando seu processo de comunicao e os cdigos a investidos. Mas como toda a forma de arte e de literatura, como todo o
Esse texto integra o boletim do programa Os registros da memria da srie Memria, Patrimnio e Identidade, abril, 2005. www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Historiadora e escritora.

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texto, a imagem fotogrfica s existe plenamente se for investida por um leitor que lhe d uma interpretao, operando desta maneira, uma re-criao, uma re-escritura . Tal valor agregado igualmente tributrio de um contexto no qual a fotografia olhada e lida. Uma mudana de contexto equivale a uma mudana de interpretao e de leitura. No esprito de muita gente, a fotografia est associada idia de documento . Quer dizer: ela serve para testemunhar uma realidade, e em seguida, para lembrar a existncia desta mesma realidade. O tempo tem aqui um papel fundamental, em particular, do ponto de vista histrico e emocional, quando a fotografia testemunha de mudanas, de transformaes fsicas e materiais, de desaparecimento de coisas ou de morte de entes queridos. Na palavra documento h tambm, de forma difusa, a idia de singularidade. Explico: a fotografia testemunha de maneira nica e prpria. Ela tem mais crdito do que o texto escrito e to importante quanto nica. Associada, por exemplo, s grandes viagens do sculo XIX, ela se constituiu num novo instrumento de descoberta do mundo; depois, cada vez mais aperfeioado, este instrumento informava visualmente e contribua para o conhecimento e para a compreenso dos fatos. Primeiro como substituta do caderno de desenhos do viajante, depois associada explorao cientfica, a fotografia deu a volta ao mundo. Gegrafos e etngrafos passaram a consider-la como um documento objetivo, despido de emoes. Claude LvyStrauss deixou de sua estadia na frica e no Brasil um importante documentrio com este sabor. Acompanhada de notas dos escritores, a fotografia permite, muitas vezes, mostrar uma imagem precisa, despida de detalhes que precisam, muitas vezes, de pginas e pginas de descrio. Paralelamente, ela tambm ir servir para inventariar nosso patrimnio histrico assim como para alimentar o que os americanos batizaram de street photography , ou fotografia das ruas: a rua torna-se, deste ponto de vista, o teatro no qual se desenrolam dramas alegres ou tristes, fascinando o espectador fotgrafo. Isto, sem contar a contribuio do fotojornalismo, iniciada em 1855 durante a Guerra de Secesso, nos EUA, fotojornalismo a que se atribui a faculdade de mostrar uma ao na sua mais imediata consecuo. Podemos pensar que a fotografia nos mostra uma certa imagem do real e no a realidade, pura e simples? Sim. Existe uma ampla 92

discusso sobre a objetividade fotogrfica. Cada vez mais os fatos so manipulados pela imprensa, ou recuperados sem autorizao do fotgrafo, servindo a tal e qual causa, reforando a crtica a determinado fato ou personagem poltico. A fotografia, na maior parte das vezes, serve para condenar conflitos: no caso da Guerra do Vietn, por exemplo, ela foi de fundamental importncia para mudar o rumo da opinio pblica americana sobre o engajamento do pas, numa luta to sangrenta. A tal ponto que, durante a Guerra do Golfo, em 1991, um forte controle foi exercido sobre as atividades da imprensa que cobriam, in loco, o conflito. No se exibiam, por exemplo, os atades de soldados americanos mortos em combate. Durante a Guerra do Paraguai, outro exemplo, fotos de membros da famlia imperial em meio ao campo de batalha foram manipuladas para aparecer na imprensa brasileira, como mostra Joaquim Maral em suas pesquisas. Partindo do princpio de que uma fotografia pode incomodar, sob o pretexto de que ela revela coisas embaraosas, preciso, portanto, se interrogar sobre qual o poder de uma imagem. Qual seja a resposta a esta questo, constatamos tambm que inmeros procedimentos tcnicos esto disposio do fotgrafo para criar ou reforar o sentido desta mesma imagem: teleobjetivas, lentes especiais como a grande angular, planos e contra-planos etc... Os meios so infinitos, condio de saber us-los corretamente, dandolhes uma funo e um significado precisos. Do ponto de vista das Cincias Humanas, a fotografia, em suas diferentes formas, pode fornecer informaes importantes sobre fatos histricos e, mais amplamente, ajudar a compreenso da evoluo de uma sociedade. O retrato, em particular, gnero que se tornou uma prtica fotogrfica importante, informa sobre os diferentes indivduos que constituem um grupo social ou uma classe, sobre seus hbitos de vida e sua postura. Alguns fotgrafos buscam, tambm, ultrapassar a vocao documental ou funcional da fotografia, bem como a representao de uma imagem social ou de celebridades, para se interessar por annimos, por desconhecidos, sem pertena a nenhuma classe ou categoria especfica. O gnero evoluiu e se diversificou e a maneira de fotografar as pessoas mudou. Houve razes tcnicas para isso, notadamente no sculo XIX. O foco e a revelao, assim como a iluminao, no eram os mesmos, e seu aperfeioamento influiu sobre a prtica fotogrfica. 93

Mas o contexto artstico, social e miditico tambm influencia e determina as diferentes aplicaes possveis da fotografia. Tratase sempre de representar um indivduo. Mas, alm de captar a expresso de uma personalidade, o retrato pode revelar uma atividade profissional particular e, mais exatamente, as relaes entre a imagem e o que sabemos sobre o fotografado. Numa determinada poca, as pessoas eram assim; viviam, assim. A fotografia constata e revela, sem artifcio. O personagem foi captado, num momento de sua vida, pelo fotgrafo, em sua atividade. Ao congelar um instante da vida, o fotgrafo, por sua vez, coloca em evidncia o antes e o depois da vida de uma pessoa. E a fotografia tambm nos incentiva a adivinhar aquilo que est fora do cenrio fotografado, do campo visual do fotgrafo. E uma das qualidades da imagem fotogrfica reside precisamente neste poder de evocao, no fato de que ela pode suscitar, naquele que observa, o desejo de conhecer mais, de imaginar, de reconstituir interiormente, a partir da viso de um destes momentos, o conjunto de uma vida. A partir da observao de fotografias, algumas questes podem ser colocadas para que os professores tentem responder, junto com seus alunos: Quem est representado? Por qu? E como? a fotografia funcionando como objeto de memria. Bibliografia: BARTHES, Roland. La chambre claire: notes sur la photographie . Paris, Gallimard, 1980. BAURET, Ganriel. Approches de la photographie . Paris, Nathan, 1992. BOURDIEU, Pierre. Un art moyen. Essai sur les usages sociaux de la photographie FREUND, Gisle. Photographie et socit. Paris, Seuil, 1974. MARAL, Joaquim. Histria da foto-reportagem no Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 2004.

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Texto 2 AS FESTAS POPULARES COMO OBJETO DE MEMRIA Charles Murray 1 Desde cedo o homem foi capaz de buscar solues para os limites impostos pela natureza, desenvolvendo idias e utenslios que, no curso da histria, viabilizaram a consolidao da humanidade na Terra. E isso s foi possvel porque o sonho e o impondervel sempre permearam o seu inconsciente. Ainda no Paleoltico e vivendo em cavernas, o homem expandiu suas faculdades naturais, produziu esculturas em ossos, pedras e madeiras, e nos deixou um importante legado com suas pinturas rupestres dada a sua linguagem ainda pouco desenvolvida, elas eram o canal de comunicao mais eficiente de expresso dos seus sentimentos. O homem primitivo tambm experimentou a agradvel sensao de arrastar os ps no cho, de movimentar os braos, de mexer o tronco, de dar pulos e girar sobre si mesmo, e tudo isso de forma ordenada, ou seja, obedecendo a um determinado padro rtmico, e constatou que a vibrao muscular e o exerccio cadenciado se constituam numa fonte de prazer. De forma natural, a dana se ambientava no rol de suas experincias exteriores em um mundo real e imaginrio. Abandonando as cavernas, ele se tornou nmade. O domnio do fogo permitiu grandes saltos no seu desenvolvimento. De imediato, a habitao fixa passou a ser uma necessidade e ele procurou as terras mais frteis que se localizavam ao longo dos leitos dos rios. O passo seguinte foi a domesticao dos animais e o incio das prticas de agricultura. Era a revoluo do Neoltico em pleno andamento, trazendo a noo de acumulao de estoques, do incremento das trocas comerciais, do crescimento demogrfico e da diviso do trabalho, agora com classes dedicadas, entre outras, interpretao do mstico e do sagrado. Os cultos agrrios foram a origem das festas populares. Com danas e cnticos em torno de fogueiras, logo incorporando mscaras e
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adereos, os festejos eram dedicados aos deuses para a proteo do plantio e da colheita. Comemorando a entrada da primavera, o nascer do sol e a prosperidade da comunidade, essa prtica difundiuse por toda a bacia do Mediterrneo no mundo antigo. No Egito, destacavam-se os cultos deusa sis e ao touro pis. Na Prsia, as festas eram para a deusa da fecundidade Anaitis e para o deus do sol Mitra. Na Fencia, celebrava-se Artarte, deusa da fecundidade, e Adnis, seu divino amante. Em Creta, come-morava-se a Grande Me, deusa protetora da terra e da fertilidade, sempre representada por uma pomba. Com grande nmero de figuras divinas e narrativas msticas, essas festas foram o veculo pelo qual o homem descobriu o encanto do reino da fantasia e da utopia. Era o momento em que ele se desligava dos seus problemas cotidianos e podia sentir a vida sem nela deixar de reinscrever simbolicamente a morte. Ou, como diria sculos depois o filsofo Nietzsche, a arte a nica justificativa possvel para o sofrimento humano . Do gosto pelas festas agrrias surgem as festas pags, dedicadas ao culto do belo e onde profano e sagrado se combinam. Na regio da Mesopotmia, tivemos as Sceas, festas inspiradas nas licenciosidades sexuais e na inverso de papis entre servos e senhores. Na Grcia, foi oficializado, no sculo VII a.C., o culto a Dionsio. Deus da transformao e da metamorfose, Dionsio era comemorado no incio da primavera, quando sua imagem chegava a Atenas transportada por embarcaes com rodas, com mulheres e homens nus em seu interior. Em terra, a procisso era acompanhada por um cortejo de ninfas e saudada em xtase pela multido de mascarados. A festa acabava no templo sagrado de Lenaion, onde se consumava a unio de Dionsio com os fiis, gerando abundncia e fertilidade. Em 370 a.C., foram as Bacanais romanas que marcaram poca, data em que o culto a Dionsio chegava a Roma com o nome de Baco. As bacantes, aos gritos de Evoi! Evoi! 2 , por ocasio das orgias em homenagem a Evan, alcunha de Baco, cometeram tantos excessos que as Bacanais foram proibidas em 186 a.C. pelo Senado Romano. Como a proibio no vingou por muito tempo, as Bacanais voltaram com mais vigor ainda no tempo do Imprio. Depois vieram as Saturnlias romanas em homenagem a Saturno, deus da agricultura dos antigos romanos. Expulso do Olimpo por seu filho Jpiter,
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Evoi! Evoi! - origem do grito carnavalesco Evo!

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Saturno era celebrado com festas marcadas pelas transgresses sociais. Havia tambm as Lupercais em homenagem a P, deus dos pastores e protetor dos rebanhos. Essas festas eram celebradas em 15 de fevereiro, data em que os Lupercos (sacerdotes de P) saam nus dos templos banhados em sangue de cabra e, depois de lavados com leite, eram cobertos com capas de pele de bode e corriam atrs das pessoas. Quando alcanadas, as virgens acreditavam tornaremse frteis e as grvidas de livrarem-se das dores do parto. Alm da majestosa procisso, dos xtases coletivos, das danas rituais e das orquestras musicais, muitas dessas festas tambm incluam concursos dramticos, com poetas trgicos e dramas satricos, concursos de coros e sacrifcios humanos. At no Conclio de Nicia, o mesmo que oficializou o Cristianismo como religio do Imprio Romano, elas foram objeto de discusso, dada a sua aceitao na sociedade da poca. Em 560, querendo colocar um ponto final na situao, o papa Gregrio I regulamentou o calendrio de festas com a expresso dominica ad carne levandas que ao longo do tempo foi sendo abreviada at a palavra Carnaval. Em todas as pocas e em todas as regies do globo as festas populares foram o meio pelo qual os homens expressaram sua cultura, que intrinsecamente embutia seus conhecimentos, tcnicas, artefatos, padres de comportamento e atitudes. Nas Amricas, os maias, os astecas e os incas se manifestaram pela arte pr-colombiana. Os aborgines americanos, assim como os nativos da Oceania e Ilhas do Pacfico, com seu estilo prprio de celebrao, tinham em suas festas a legitimao da sua afirmao cultural. Na frica produziam-se mscaras, esculturas, escarificaes e pinturas para as festas rituais. E isso por qu? Porque, s ubliminarmente, as festas representavam a influncia dos mitos na vida humana, regulando o equilbrio entre as foras antagnicas do caos e da ordem para uma vida mais adequada. E o Brasil, como que se encaixa nisso tudo? Qual o papel das festas na nossa sociedade e o que elas representam em nossa memria? No pas da ginga, do drible de corpo, do molejo do samba, dos passos codificados do terreiro e da malcia do golpe da capoeira, podemos afirmar que as nossas festas populares so o smbolo mximo da nossa identidade nacional e espelho coreogrfico da alma do povo. Pea-destaque do nosso patrimnio, onde sagrado e profano se 97

unem e se completam, elas permitem uma leitura das caractersticas tnico-culturais de cada regio do pas, ao mesmo tempo em que sintetizam a natureza mestia do brasileiro. Com seus cnticos, ritmos, danas, instrumentos, figurinos e adereos caractersticos, celebrados em forma de procisso, de romaria, de roda, de bloco ou de desfile, nossas festas traduzem nossa diversidade multicultural e multirracial, fazendo do Brasil o grande laboratrio cultural da Idade Moderna. O encontro das culturas indgena, europia e africana promoveu no Brasil um diversificado repertrio de festas, grande parte baseadas no calendrio religioso que, algumas vezes, coincide com o calendrio civil. So os Autos de Natal, Auto dos Quilombos, Bom Jesus dos Navegantes, Crio de Nazar, Corpus Christi, Divino Esprito Santo, Drama da Paixo, Festa do Bonfim, Folia de Reis, Festas Juninas ( consagradas a Santo Antnio, So Joo e So Pedro), Festa de Iemanj, Nossa Senhora de Aparecida, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora dos Navegantes, Padre Ccero , entre muitas outras. Temos tambm os folguedos de esprito ldico onde se destacam Afoxs, Congadas, Maracatus, Caboclinhos, Tambor de Crioula, Marujadas, Vaquejadas, Bumba-meu-Boi e suas variantes de Boi-Bumb, Boi de So Cristvo e Boi-de-Mamo, Blocos Afro e o Festival Folclrico de Parintins e os bailados populares, como Marabaixo, Maculel, Cateret, Coco de Zamb, entre muitos outros . E, finalmente, o Carnaval, nossa maior manifestao cultural que, ao lado do futebol, a afirmao internacional da nossa nacionalidade, inclusive j tendo deitado razes na sia (especialmente no Japo), na Europa (inclusive nos pases nrdicos) e nos Estados Unidos. interessante observar como o Carnaval brasileiro mantm as caractersticas universais das festas populares, tais como as licenciosidades, a troca de papis e o sentido de utopia, mas ao mesmo tempo apresenta leituras prprias do povo brasileiro, tais como: Os temas dos enredos das Escolas de Samba, tradicionalmente, sempre refletiram especificidades de nossa sociedade. Por exemplo, os enredos sobre Chica da Silva e Aleijadinho so uma forma social de apresentar a ascenso do negro atravs do amor e da arte. Debret uma viagem no tempo que nos remete presena da misso artstica francesa no 98

Brasil. Bahia de Todos os DEUSES uma representao da cosmologia africana. CHICO REI e TIRADENTES resgatam nossas personalidades histricas. PALMARES apresentou para o pblico do Rio de Janeiro os enormes atabaques caractersticos das festas do Tambor de Crioula maranhense, sincretismo da cultura Jeje, celebrando So Benedito. A escola como espao de resistncia: diante da impossibilidade de se desenvolver em formas prprias de organizao institucional, a populao ligada ao Povo de Santo utilizou os territrios carnavalescos como espao de resistncia cultural e afirmao social e econmica. Como exemplo, destacamos o Opanij , coreografia de Omulu no Candombl, e que um dos principais passos das alas na evoluo das escolas de samba e o Ibin, coreografia de Oxaguiam, que serve aos movimentos das alas das baianas. a festa, e mais especificamente o passo do sambista, como extenso da roda de santo feita no terreiro. Ainda nesse contexto, no universo das escolas de samba que msicos como Donga, Paulo da Portela e Joo da Baiana vo encontrar espao para a sua arte. A festa como objeto de nossa memria musical: os bailes e festejos carnavalescos so o depositrio natural das marchinhas, marchas-rancho, sambas-enredos e frevos do nosso cancioneiro popular. A festa objeto de memria da nossa cultura popular, pois na evoluo histrica do Carnaval que vamos encontrar as referncias ao Entrudo, Z Pereira, Corso, Cordes, Blocos, Grandes Sociedades e Ranchos Carnavalescos, tpicas representaes de poca na forma de se comemorar a festa, e que eternizaram as fantasias de pirata, palhao, ndio, bailarina, odalisca, entre outras e o hbito do confete e da serpentina. A festa como objeto de memria do comportamento do brasileiro: como se as licenciosidades do Carnaval tivessem extrapolado os limites da anarquia carnavalesca e se inserido no pas oficial. O legado foi to forte que pode ser identificado como a origem de alguns de nossos comportamentos tpicos, como o jeitinho brasileiro e o de privatizar o espao pblico. A festa tambm nos permite identificar a capacidade do brasileiro de se reinventar a todo 99

instante. Como exemplo, destacamos a influncia de formas civilizatrias externas, como o Entrudo, introduzido em 1723 pelos portugueses a partir das ilhas da Madeira dos Aores e do Cabo Verde, e que aqui chegando foram absorvidas e recriadas, servindo inclusive como ponto de partida da evoluo do nosso Carnaval de rua at a exploso dos desfiles em Sambdromos. A festa sob o olhar da economia: a macia presena das grandes empresas, seja na forma de comercializao dos espaos publicitrios ou como tema do prprio samba-enredo, mostra como essa manifestao tipicamente popular (lembrando que o sambista foi perseguido pela polcia at meados dos anos 30) se emancipou de tal forma que hoje palco obrigatrio de nossas autoridades e celebridades. Nosso principal cartopostal responsvel direto pelo aporte de turistas e divisas, como tambm pela gerao de inmeros postos de trabalho. a economia informal em ao. O Carnaval como laboratrio de criao: A improvisao criativa dos antigos barraces foi, na medida em que a festa foi se universalizando, dando surgimento a competncias especficas que permitiram a produo de engenhosos carros alegricos, de pesquisas altamente tcnicas para os enredos das Escolas e o desenvolvimento de efeitos especiais. A festa tambm gerou a publicao de livros e teses acadmicas, e foi tambm tema de enredos de filmes do cinema nacional. Vemos assim que, sob os mais diversos aspectos social, econmico, poltico, religioso e artstico a festa do Carnaval comporta inmeras leituras e interpretaes da memria da cultura e da sociedade brasileira. Bibliografia: BRANDO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua . Campinas: Papirus, 1989. AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil: perspectiva de anlise. So Paulo, tica, 1987. DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. So Paulo, Perspectiva, 1973. 100

CHAU, Marilena de Souza. Conformismo e resistncia: aspectos da cultura popular no Brasil . 4. ed. So Paulo, Brasiliense, 1989. BORELLI, Silvia Helena Simes. Gneros ficcionais, produo e cotidiano: na cultura popular de massa . So Paulo, INTERCOM, 1994.

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Texto 3 A MSICA COMO OBJETO DE MEMRIA Charles Murray 1 Quando tratamos da arte de combinar sons e silncio, nos deparamos irremediavelmente com a magnitude do tema que, alm de comportar a complexidade da anlise esttica da manifestao artstica em si, com suas infinitas possibilidades de articulaes harmnicas, meldicas e rtmicas, nos habilita a documentar a prpria evoluo dos homens, das sociedades e das naes sob os diversos ngulos das cincias sociais. Nesse contexto, geografia, histria, antropologia, sociologia, poltica, economia e religio inserem-se, de forma natural e integrada, ao universo musical. oportuno lembrar como a catequese jesutica utilizou-se da msica, j a partir do primeiro sculo da colonizao, promovendo a integrao dos elementos da msica e da dana das populaes nativas com cantos e instrumentao ligados ao teatro religioso de fundo medieval, combinao que, resistindo ao tempo, est na origem de nossas festas e danas populares. Ou de como a infra-estrutura rtmica, aliada aos vocais e gestos danantes, serviu, ao enorme contingente de africanos escravizados, de estratgia de adaptao e resistncia ao novo ethos em solo brasileiro. Herana esta que, ao longo dos sculos vindouros, retocada e reconstruda, ser o DNA de nossa formao musical. Ou, ento, como os polticos brasileiros serviram de inspirao aos compositores populares, e alguns, como Getlio Vargas, transformaram-se em alvo de marchinhas picantes. E isso por qu? Porque a alma do homem, a magia da vida e a alegria de viver, enfim, tudo que se materializa pela boca do povo transmitido atravs da msica. Partindo do pressuposto de que a principal forma de expresso da arte musical no Brasil se manifesta pelo seu aspecto popular, notadamente a partir do incio do sculo XX, quando desponta no Rio de Janeiro uma gerao de compositores, uma questo se coloca: Existe uma msica tipicamente brasileira? Claro que sim,
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mas impossvel pensar numa unidade nacional quando o assunto msica popular. Nossa riqueza musical no obedece lgica dos mapas geogrficos. A diversidade a essncia da nossa produo musical, reflexo de um processo de formao intercultural e que hoje representa a mais completa traduo das caractersticas tnicas de cada regio do pas, conjugando diferentes cantos, ritmos e sons. Vemos, assim, porque a msica popular brasileira um dos mais eficientes instrumentos de preservao da nossa memria coletiva e palco iluminado para a interpretao dos mltiplos aspectos formadores de nossa identidade nacional. importante sublinhar que um tema-destaque em qualquer abordagem musical o da tradio oral. A oralidade uma caracterstica inerente ao ato musical, seja no aspecto da criao, da execuo ou da preservao dos seus cdigos. Ainda no campo das cincias sociais, interessante observar o papel da comunicao no-escrita como vetor do processo de transculturao e objeto de memria. O Afox que, saindo dos terreiros Ktu Nag, ganhou as ruas de Salvador na forma de blocos afro-carnavalescos e legitimouse no entorno da elite baiana. A Congada que, partindo das Irmandades religiosas de Nossa Senhora do Rosrio e de So Benedito como espao de resistncia e reconstruo, permitiu a afirmao do grupo cultural Banto em comunidades aculturadas, cujo grau de interao poltica e social variou de acordo com a estabilidade econmica de cada regio ocupada. O Jongo, dana de roda e da mesma famlia do batuque, que plantou suas sementes nas fazendas de caf e canade-acar em vrias regies dos estados do Rio de Janeiro, Esprito Santo, So Paulo e Minas Gerais, outro valioso instrumento no diagnstico da sociedade negro-brasileira, principalmente da sua parcela que se manteve margem dos benefcios do desenvolvimento econmico do pas. Como explicar que essa manifestao artstica, que chegou em nossas terras no incio do processo de colonizao (provavelmente nas primeiras levas do sculo XVI), manteve-se culturalmente ativa por sculos, com suas tradies passando de gerao para gerao, s foi encontrar eco no Brasil oficial a partir da ltima dcada do sculo passado? No por acaso que nas comunidades remanescentes de quilombos identificadas at hoje no pas, a exemplo dos Kalungas de Gois, o predomnio dos dialetos da famlia Nger-Congo praticamente total. E onde o Jongo se preservou? No Brasil rural, 106

nas comunidades quilombolas. No Brasil urbano, nas comunidades de baixa renda caso do Jongo da Serrinha no Rio de Janeiro, j na quinta gerao de jongueiros da prpria comunidade sob a liderana da veneranda Tia Maria do Jongo. Mas ele tambm potencializa outras leituras. A louvao que marca o incio do Jongo um retrato do sagrado no coletivo banto. Outro trao marcante o prazer de fazer msica, de socializar, danar e brincar bem ao jeito do brasileiro. A caracterstica da improvisao, com o solista fundamentando os pontos que so respondidos em coro pelos participantes, numa espcie de adivinhao, onde o verso cantado no expressa de forma clara seu contedo, sendo preciso decifr-lo para saber de que trata a msica, bem semelhante ao que se observa com os versadores no pagode de raiz. A mtrica do verso do jongueiro, dando s palavras uma semntica toda particular, tambm foi um sofisticado sistema de comunicao, cujos cdigos eram imperceptveis aos senhores durante a escravido. E tudo isso regido pelo toque dos tambores caractersticos, com suas tcnicas prprias de produo envolvendo sua feitura, formato e afinao. Outra rea do conhecimento que merece ateno quando abordamos a msica como objeto de memria de um povo a das inovaes tecnolgicas, isto , o papel da tecnologia norteando novos rumos na evoluo musical e, por extenso, permitindo a interpretao de momentos histricos determinados. Como exemplo, destacamos o advento do pianoforte. Viabilizado somente depois de anos de testes de engenharia mecnica no sendo toa porque Johann Sebastian Bach, o grande mestre da msica barroca, formulador do sistema temperado e genial compositor, cravista e organista, ignorou-o totalmente no seu tempo , a implantao do piano serve de referncia para uma poca que, posteriormente, a historia registra como sendo um perodo de grandes mudanas na ordem econmica, poltica, social e artstica da sociedade europia no final do sculo XVIII e incio do XIX. o tempo da ascenso da burguesia, do surgimento das teorias evolucionistas e do estabelecimento de uma nova forma de entretenimento: as Salas de Concerto. Pelo seu tamanho, as Salas de Concerto exigiam um instrumento com acstica potente o bastante para saciar os ouvidos da nova elite poltica, demanda esta que o cravo, com a sua leveza, no atendia. O perodo tambm vai assistir passagem do estilo barroco para o clssico, estilo de poca que ir 107

se manifestar em outras formas de arte, especialmente a pintura e a arquitetura. Ainda nessa linha de anlise, mas em um tempo mais recente, vale observar como o desenvolvimento da pesquisa cientfica, permitindo a integrao dos sistemas digitais e analgicos, vai produzir uma nova famlia de instrumentos musicais. So os instrumentos musicais de interface digital, popularmente denominados de MIDI (musical instruments digital interface), que iro revolucionar as formas de criao, produo, distribuio e comercializao dos bens culturais. Fenmeno isolado? Certamente que no, conforme atestam uma sucesso de eventos: consolidao da Indstria de Alta Tecnologia, fim da Guerra Fria, formao das empresas transnacionais e dos grandes blocos econmicos. A indstria da microinformtica penetra todas as reas de negcio para atender s demandas de uma sociedade no mais de classes, mas de massa. a era da Internet... Tudo em tempo real. Na rea musical, uma nova classe de msicos desponta. No so instrumentistas nem compositores, mas engenheiros de som e operadores de udio. O palco no mais o das salas de concerto, agora substitudas pelos megashows em mega-estdios e com uma tecnologia jamais vista: seja pelo design dos instrumentos musicais ou da parafernlia eletrnica, tudo agora wireless. O que se v um palco gigantesco, dotado de sofisticados recursos, como teles de alta definio e iluminao por controle digital; e o que se ouve msica em alta resoluo. Tudo transmitido on line para ser comercializado em DVD, TV a cabo, telefone celular ou na prpria Internet. Mais uma vez, a msica serve como registro das particularidades da sociedade: agora voltada para o consumo em escala universal, transpirando tecnologia, e onde a mdia broadcasting tem lugar de destaque, com novas alternativas de comercializao e crescente segmentao. Mudando o foco de nossa abordagem e voltando h milhes de anos, um cuidadoso olhar na histria do homem, ao longo de sua existncia, nos revela como a msica desempenhou um papel nico na formao e desenvolvimento da espcie humana, cuja importncia superior descoberta do fogo, ou da inveno da roda, ou da imprensa. Sim, estamos falando de msica e, mais especificamente, de sua matria-prima: o som. Aqui identificado na sua forma bsica de rudo (som sem altura definida), e que contempla sons como urros, grunhidos, palmas, percusso em partes do corpo, entre outros. O som 108

o ponto de partida dos primeiros habitantes do globo terrestre rumo formao dos primeiros agrupamentos humanos que, no curso da evoluo, iro constituir a nossa civilizao. Para isso, foi necessrio que os nossos antepassados organizassem esses rudos, dando-lhes significado. O desafio era complexo, pois primeiro tinham que ser capazes de produzi-los e, depois, de repeti-los. Para isso tiveram que desenvolver sua memria, para saber que som significava o qu. Esse fato em si j um registro da memria dos homindeos, um marco no desenvolvimento da inteligncia dos nossos ancestrais e alicerce para o estabelecimento dos primeiros grupos tnicos, cada qual com sua lngua e seus costumes, e que, atravs de inmeros processos migratrios ao longo do tempo nos quais a msica parte integrante das cerimnias religiosas, dos ritos de passagem e das atividades de trabalho definem posteriormente as bases para a construo dos Estados nacionais modernos. No poderamos encerrar sem antes fazer uma leitura da msica enquanto objeto da memria, do ponto de vista puramente da arte musical. A contribuio de msicos, compositores e arranjadores em todas as pocas e em todas as partes do mundo foi to intensa e criativa que, alm de produzir uma arte de alto valor esttico atravs da manipulao de diferentes tcnicas musicais (uso de determinadas escalas, acordes, padres rtmicos, tipos de instrumentao e estilos), foi capaz de construir contedos musicais com significados, origens e tradies. E tudo isso, independente de sua capacidade de reinventar-se a cada momento, dada a sua mobilidade de absorver e transformar influncias culturais atravs da combinao dos gneros musicais, dos ritmos regionais e da mistura dos elementos da msica erudita e popular. Nesse sentido, um blues sempre um blues, com sua particular progresso harmnica, a forma dos 12 compassos, os acordes em 7 e a mtrica de pergunta e resposta em 4/4. Mas ele tambm traduz a saga dos negros americanos, a imagem do rio Mississipi, a cultura do algodo e dos Work Songs (canes de trabalho). A Bossa-Nova, com seus sofisticados acordes em 7 maior e 9, a forma dos 32 compassos e a batida percussiva em 2/4 imediatamente identificada, em qualquer lugar do mundo, como msica brasileira. Mas tambm embute a nossa individualidade, com a sua batida diferente, a afirmao internacional de nossa cultura mestia e o sonho da modernizao do pas, com o lema dos 50 anos em 5. Com sua instrumentao prpria (ctara, tabla e flauta) 109

e escalas em semitons (saptakas), a Raga indiana encontra-se fora do nosso sistema tonal e como tal reconhecida. E, nesse contexto, podemos sentir a presena de uma cultura no-ocidental de grande significado (Vedas). A sonoridade plstica do toque do berimbau suficiente o bastante para nos transportar ao mundo da capoeira, assim como o som da banda de pfaros capaz de nos remeter ao Nordeste brasileiro. O vigor do som da guitarra e a suavidade de um quarteto de cordas podem provocar sentimentos iguais ou diversos, dependendo de quem os ouve, onde e como. Tudo parte da manifestao musical, esta arte atemporal e plural que atua no consciente e no inconsciente de cada um, mas que sempre e em qualquer situao objeto de memria. Bibliografia: MUNDY, Simon. Histria da msica. Lisboa: Ed. 70, 1980. CARPEAUX, Otto Maria. Uma nova Histria da msica. Rio de Janeiro: Alhambra, 1977. KIEFER, Bruno. Histria e significado das formas musicais. Porto Alegre: Movimento (1970). Worm, Luciana & Costa , Wellington Borges. Brasil Sculo XX; Ao p da letra da cano popular . Rio de Janeiro. Quintero-Rivera , Mareia. A cor e o som da Nao A idia de mestiagem na crtica musical do Caribe Hispnico e do Brasil (1928-1948) . So Paulo. Tinhoro , Jos Ramos. Histria Social da Msica Popular Brasileira . So Paulo, Ed. 34, 1998.

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Texto 4 OS LUGARES DA MEMRIA Maria de Lourdes Parreiras Horta 1 O historiador Pierre Nora definiu como lugares de memria (NORA, 1997) locais materiais ou imateriais nos quais se encarnam ou cristalizam as memrias de uma nao, e onde se cruzam memrias pessoais, familiares e de grupo: monumentos, uma igreja, um sabor, uma bandeira, uma rvore centenria podem constituir-se em lugares de memria, como espelhos nos quais, simbolicamente, um grupo social ou um povo se reconhece e se identifica, mesmo que de maneira fragmentada. Estes lugares, ou suportes da memria coletiva funcionam como detonadores de uma seqncia de imagens, idias, sensaes, sentimentos e vivncias individuais e de grupo, num processo de revivenciamento, ou de reconhecimento, das experincias coletivas, que tm o poder de servir como substncia aglutinante entre os membros do grupo, garantindo-lhes o sentimento de pertena e de identidade, a conscincia de si mesmos e dos outros que compartilham essas vivncias. Reconstri-se, por essas memrias, a representao que um povo faz de si mesmo, afirma Mary del Priore na proposta para essa srie. Se todos os pases e culturas vivem sob o reino da Memria , como afirma a autora, cabe aos historiadores encontrar no s esses lugares, ou locus/ loci da rememorao, como tambm demonstrar de que maneira e por meio de quais instrumentos essa memria construda ao longo do tempo, e quais os modelos que vo embasar essas construes. Histrias, lendas, mitos e tradies populares tm muitas vezes por fundo acontecimentos e conjunturas do passado histrico dessas populaes, cuja verdade e explicao podem vir tona num trabalho de arqueologia dos sentidos, significados e estruturas de pensamento, encontrados por trs do vu dos relatos, entre os ossos, no fundo dos bas do patrimnio cultural, material e imaterial , que configuram a herana cultural de um povo. Nas feiras populares, nos folhetos de cordel e nos repentes dos cantadores, nas histrias da
Esse texto integra o boletim do programa A memria pblica da srie Memria, Patrimnio e Identidade, abril, 2005. www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Museloga e diretora do Museu Imperial de Petrpolis.

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carochinha ou contadas beira do fogo pelas avs de outros tempos, repetidas de gerao em gerao, com enriquecimentos, omisses e acrscimos (quem conta um conto, aumenta um ponto) a tradio oral (ou o que se pode chamar de Histria Oral, nas pesquisas acadmicas) perpetua memrias, valores e crenas coletivos. Os fragmentos recolhidos por diversos caminhos e instrumentos, como cartas, dirios, documentos, testamentos, recibos de compra e venda, relatrios e inventrios particulares e oficiais, as imagens e outros suportes concretos da informao so as fontes escritas a serem garimpadas pelos historiadores e estudiosos da cultura e da sociedade, que vo ser contrapostas e interpretadas em face da memria popular e dos seus lugares institudos, dos hbitos e costumes, dos rituais e gestos, dos saberes e dos fazeres, dos gostos e das preferncias de um povo, como fundamento do trabalho da historiografia. Como procura mostrar esta srie, a memria e o exerccio de rememorao constituem, na verdade, no uma recuperao de imagens e dados permanentes armazenados no crebro dos indivduos, mas o resultado de um complexo processo operatrio desencadeado no pensamento em conseqncia de fatores motivadores ou detonadores desses mecanismos de rememorao. Quanto mais ricas e diversificadas as experincias vividas e compartilhadas por um grupo de pessoas vivendo em comunidade, mais rica e complexa ser esta Memria, ou rememorao. O aprendizado e o conhecimento desses processos de memria so fundamentais para a capacitao dos indivduos na elaborao e compreenso de sua prpria histria, de sua habilidade de fazer histria atravs dos fragmentos e relatos encontrados nos diferentes bas, pessoais, familiares, coletivos e institucionais. O ensino da Histria s pode ser o ensino de como fazer histria, de como desconstruir os mitos e as verdades estabelecidas, e de identificar o modo como estes mitos e verdades foram construdos ao longo do tempo, de conhecer os diversos tipos de fontes para esse fazer histrico, de como dominar seus cdigos e como estabelecer comparaes e anlises crticas entre os diferentes materiais. Esses saberes so parte indispensvel do processo educacional, quando se busca, como prope Paulo Freire (2004), uma pedagogia da autonomia. A cartografia mental, que corresponde aos mapas mentais existentes no pensamento, pode explicar o processo operacional 112

de estabelecer conexes entre as diferentes vivncias, imagens e memrias gravadas no crebro, de forma desorganizada (como nos aparecem nos sonhos, por exemplo), de acordo com a inteno e a emoo do momento em que o processo se inicia. Cartografia que funciona, metaforicamente, como um mapa em que se indicam os caminhos, estradas, vias frreas, pontes, atalhos, pontos de referncia. Enriquecer a cartografia mental dos estudantes o trabalho do professor no estudo da Histria e da Memria, capacitando-os a estabelecer as conexes lgicas ou que, aparentemente, no tm sentido, a buscar atalhos e alternativas de interpretao e de rememorao, como faz um comandante de um navio ao se debruar sobre as cartas dos ventos e das correntes martimas (apesar de que hoje tudo isso feito por computador, nos navios e avies modernos, bem como no sistema escolar e de pesquisa, o que na verdade gera uma deficincia, uma incapacidade de encontrarem-se os caminhos sem a ajuda da inteligncia artificial). Fazer Histria, falar de Memria, de Cultura e de Patrimnio , essencialmente, estabelecer conexes entre os infinitos ndulos de sentido, na verdade constelaes de sentidos, de fatos e de referncias, que podemos encontrar nesta peregrinao. O mapa da mina Nossa inteno, neste texto, demonstrar o mapa da mina das referncias histricas e culturais, das fontes primrias e secundrias, ao qual podemos recorrer para traar nosso percurso. As minas, no caso, so os lugares institucionalizados de Memria, constitudos e mantidos para servir ao pblico, nas instituies que denominamos Arquivos, Bibliotecas e Museus . Podemos, assim, abordar a importncia e os mecanismos que regulam esses trs tipos de bas: Os bas de coisas, que so os Museus, os bas de documentos , que so os Arquivos Histricos, e os bas de Livros , que so as Bibliotecas. Essa diferenciao bem simplista, servindo apenas para organizar o tema, pois podemos encontrar em museus, como no Museu Imperial, em Petrpolis, RJ, um Arquivo Histrico e uma Biblioteca, que funcionam paralelamente ao Museu Palcio, residncia de vero do imperador D. Pedro II. Mas a organizao, a metodologia e o funcionamento desses diferentes gneros de instituies dedicadas a guardar a memria pblica e privada do 113

desaparecimento so bastante diferentes. Em muitas Bibliotecas, encontramos sees de documentos manuscritos, de iconografia, isto , uma coleo de imagens visuais, em diferentes suportes e tcnicas, dentre as quais se situa a fotografia, de mapas (cartografia), de jornais (peridicos), revistas, de msica (partituras e gravaes), depoimentos de personagens entrevistadas (tambm gravadas ou filmadas em vdeo), e at mesmo de algumas obras de arte de pintura, escultura, etc., que ali vieram a ser guardadas e acumuladas. H Bibliotecas que podem ser vistas como verdadeiros museus, pelas obras de Arte que contm, como a Biblioteca do Vaticano, por exemplo, e no Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional ou o Gabinete Portugus de Leitura, no centro da cidade, um raro monumento de arquitetura em estilo mourisco, muito ao gosto do princpio do sculo XX. Em Arquivos Histricos tambm poderemos encontrar, alm de manuscritos originais, folhetos impressos, lbuns com imagens e textos, dirios, fotografias, discos e gravaes (arquivos musicais e de depoimentos) e publicaes oficiais e legais de diferentes perodos abrangidos pela Instituio. Arquivos Administrativos de empresas e instituies tambm so importantes fontes para o estudo de uma poca (o arquivo de uma indstria importante desativada por diferentes razes, por exemplo) e da prpria histria da empresa e de seus funcionrios, da vida econmica local e dos mtodos de trabalho de um determinado perodo ou localidade. Outras fontes indispensveis ao estudo da histria local e das comunidades so os Arquivos Paroquiais pertencentes s Igrejas, em especial Catlica, que mantm o registro de batismo dos habitantes locais e dos que ali se batizaram. Em geral, encontramos nesses arquivos eclesisticos um inventrio dos seus habitantes, ocupaes, idade, nmero de filhos, posse de escravos, relaes de parentesco, etc. Infelizmente, muitos sacerdotes e religiosos no compreendem a importncia dessas fontes para o estudo e a historiografia brasileira, e muitos arquivos importantes se perderam por descaso, abandono e deteriorao. Arquivos de instituies de ensino, de hospitais e de cemitrios podem ser fontes importantes de informao sobre a histria local e seus habitantes. Podemos ainda lembrar do interesse fundamental dos Arquivos Familiares, que muitas vezes no so considerados importantes pelos prprios familiares. Certides de casamento, de batismo, de bito, de compra e venda de propriedades, dirios pessoais, cartas e postais vindos de outros lugares, cadernos de anotaes financeiras, 114

fotografias, negativos esto entre os materiais mais comumente encontrados em qualquer gaveta de uma casa antiga, do mesmo modo como os encontraremos em nossas residncias contemporneas. As fotografias, principalmente, so histrias de vida de nossas famlias. Um trabalho educacional consistente e altamente produtivo tem sido realizado em experincias de Educao Patrimonial, como o caso do PREP (Programa Regional de Educao Patrimonial) da 4 a . Colnia de Imigrao Italiana no Rio Grande do Sul, que j foi abordado em sries anteriores do Programa. O trabalho comparativo (ontem e hoje), investigatrio detetivesco, consultando as geraes mais velhas para ouvir e descobrir a identidade narrativa dos habitantes de um lugar (a que se refere o texto bsico introdutrio da srie), a pesquisa e localizao de imagens, inclusive nos jornais de poca, so atividades educacionais que facilmente se podero levar a cabo e serem desenvolvidas dentro do currculo escolar. Passaportes, salvocondutos e certides de identidade so excelentes detonadores das histrias de vida e histrias familiares que se quer trabalhar e rememorar, como ponto de partida de uma anlise mais crtica do contexto poltico e social do perodo estudado. As Bibliotecas pblicas, institucionais e privadas so outra importante e indispensvel fonte de pesquisa histrica e de referncias para o mapeamento das memrias e histrias coletivas. O uso das bibliotecas bastante familiar para alunos e professores, o que no quer dizer que no se constituam em mananciais inesgotveis de referncias e de conexes. Como j dissemos acima, muitas bibliotecas contm, alm de livros e jornais, alguma iconografia (fotografias, gravuras, litografias), lbuns de imagens e recortes, discos, vdeos e gravaes, e muitas vezes at arquivos de cinema e documentrios. Muitas bibliotecas j esto informatizadas, possibilitando a consulta vasta e extensiva a outras instituies no gnero. A navegao pelo oceano de informaes contidas em uma Biblioteca permite-nos refazer, ao menos virtualmente, as viagens de circunavegao e de descobrimento que transformaram a face do mundo a partir do sculo XVI. Podemos ir Lua e aos confins do Universo, utilizando a virtualidade digital, se soubermos utilizar em toda a sua potencialidade os recursos de uma biblioteca. A autoestrada digital aberta a todos pela Internet e os recursos tecnolgicos da computao esto cada vez mais acessveis, tornando o mundo e o acesso ao conhecimento cada vez mais prximos. A Biblioteca 115

escolar e a criao de uma biblioteca de sala de aula so recursos importantes para a compreenso do funcionamento e da funo dessas instituies para a pesquisa e o conhecimento. Os Museus tambm so minas de informao e importantes espaos de aquisio de conhecimento, que ultrapassam o domnio da leitura e da palavra escrita. As lies das coisas que podem ser usufrudas nessas instituies requerem uma capacitao especial, no sentido do aprendizado da leitura e da interpretao das palavras tridimensionais que so os objetos da cultura. A metodologia da Educao Patrimonial introduzida no Brasil no Museu Imperial, a partir de 1983, vem a ser um tipo de alfabetizao cultural que independe da capacidade de leitura do indivduo ou do aluno. Esta alfabetizao prope a leitura e a decodificao dos significados dos objetos materiais produzidos pela trajetria da cultura, bem como a compreenso de seu sentido imaterial, conceito que deu origem recentemente distino entre patrimnio material e imaterial, pelos rgos de tombamento e registro dos bens culturais. Os objetos recolhidos aos museus podem ser vistos como textos tridimensionais, ou bidimensionais, que trazem em si as marcas de autoria, a impresso digital de seus criadores. Alm de objetos, os Museus abrigam tambm em suas colees documentos, imagens, uma pinacoteca (coleo de pinturas), lbuns de gravuras e litografias, colees fotogrficas, e todo o tipo de produto da produo cultural de um povo. Decodificar esses elementos, compreender o sentido desses textos cristalizados nos objetos recolhidos, so habilidades adquiridas com o trabalho sistemtico da Educao nos Museus e stios histricos, ou melhor, da Educao Patrimonial, a partir e sobre o Patrimnio Cultural. Escavando o passado para conhecer o presente Outras fontes importantes para o conhecimento do passado e da histria de uma regio so os stios arqueolgicos, histricos e pr-histricos, dos quais est coberto o territrio nacional. As regras cientficas de explorao e pesquisa arqueolgica requerem dos professores a consulta aos especialistas e arquelogos, bem como aos rgos responsveis pela fiscalizao das pesquisas. No caso, os rgos do patrimnio nacional (IPHAN), estadual e municipal, e as Universidades. A Serra da Capivara, no Piau, municpio de So 116

Raimundo Nonato, um dos locais mais importantes e significativos para a Histria do homem americano, com dataes que j remontam a mais de 40 mil anos. Os monumentos e stios histricos, como as Misses Jesutico-Guaranis, na regio oeste do Rio Grande do Sul, so outros espaos de explorao do passado, do presente e da trajetria histrica vivenciada pelas populaes que habitaram e ainda habitam a regio. Os sambaquis, depsitos de conchas e ossos de animais, restos de fogueiras e de ocupao humana, presentes em toda a costa brasileira, so stios arqueolgicos importantes para o estudo das primeiras ocupaes humanas em nosso territrio. Todos esses stios arqueolgicos s podem ser visitados e conhecidos mediante autorizao dos rgos responsveis pela pesquisa e a proteo patrimonial. As inscries rupestres, gravadas ou pintadas na pedra (petroglifos), so mistrios intrigantes para os pesquisadores, e podem gerar interessantes trabalhos de pesquisa e atividades artsticas. As casas-grandes e as senzalas do Vale do Paraba, RJ, ou as fazendas de caf de Minas, So Paulo e no Sul do pas, so fontes de pedra e cal, que detm em suas paredes e terreiros, moendas e usinas de eletricidade movidas roda dgua, so verdadeiros museus ao ar livre onde se pode tambm explorar a investigao do passado e dos caminhos que nos trazem ao presente. A pesquisa nas fontes primrias (dos arquivos, museus, e depoimentos orais), nas fontes secundrias (documentos, peridicos, livros e publicaes), e nos prprios locais estudados, visando interpretao e ao conhecimento das evidncias culturais e histricas encontradas, so exerccios pedaggicos e recursos para o professor, para enriquecer e ampliar as capacidades e habilidades de seus alunos, e estimul-los a estabelecer as conexes significativas que constituem a trama e o tecido da Histria. Nos ltimos cinqenta anos, como nos aponta o texto inicial dessa srie, uma revoluo das mdias, possvel graas revoluo cientfica dos sculos XVII e XVIII, multiplicou instrumentos de observao e medida. A fotografia, a fonografia, o cinema, o rdio, a televiso, o vdeo criaram conjuntamente uma nova memria coletiva, objetivada sob a forma de imagens, discos, filmes, fitas magnticas, cassetes, acessveis a um pblico crescente. Essa revoluo dos meios de comunicao permite reavivar o passado, revendo cenas, ouvindo sons, conferindo ao passado uma dimenso sensvel. um 117

novo tipo de memria que se sobrepe memria escrita, assim como essa se sobreps memria oral. Os discos rgidos das memrias dos computadores podem abrigar milhes de informaes e dados, mais do que os arquivos em papel do passado poderiam abrigar, e esto disposio de qualquer jovem em seu quarto de estudos, ou nas escolas. Essa revoluo nos meios, mecanismos e suportes da Memria aponta os caminhos do futuro, garante a permanncia do passado, mas no dispensa o exerccio do contato direto, tctil, visual e sensorial com os fragmentos e testemunhos do patrimnio cultural acumulado desde os nossos antepassados at o nosso olhar inteligente e comprometido com sua preservao e continuidade. Bibliografia: NORA, Pierre. Les lieux de mmoire (dir.) Paris, Gallimard, 1997, 7 volumes. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 30 a edio. So Paulo: Paz e Terra, 2004. (Coleo Leitura)

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Texto 5 PATRIMNIO IMATERIAL: NOVAS LEIS PARA PRESERVAR... O QU? Letcia Vianna 1 Quando falamos em patrimnio, estamos nos referindo a uma poro de coisas consagradas e que tm grande valor para pessoas, comunidades ou naes. E tambm de coisas que podem ter valor para todo o conjunto da humanidade. A idia remete riqueza construda e transmitida, herana ou legado que influencia o modo de ser e a identidade dos indivduos e grupos sociais. Mas a noo exata do que seja patrimnio relativa, pois depende de quem fala e de que ponto de vista fala. As definies podem partir de diferentes perspectivas, que podem ou no se sobrepor, como a perspectiva afetiva, a econmica, a ambiental, a cultural. Patrimnio cultural diz respeito aos conjuntos de conhecimentos e realizaes de uma sociedade, que so acumulados ao longo de sua histria e lhe conferem os traos de sua singularidade em relao s outras sociedades. Uma das caractersticas mais marcantes da espcie humana a grande diversidade de configuraes socioculturais possveis no tempo e no espao. Diferente das sociedades de abelhas e formigas, sempre idnticas, as sociedades humanas so sempre nicas em funo das especificidades culturais nelas desenvolvidas. Cada sociedade possui um sistema cultural, no qual, entretanto, vrios sistemas simblicos so incorporados e compartilhados. Entende-se aqui por cultura os sistemas de significados, os valores, crenas, prticas e costumes; tica, esttica, conhecimentos e tcnicas, modos de viver e vises de mundo que orientam e do sentido s existncias individuais em coletividades humanas.

Esse texto integra o boletim do programa Voc sabe com quem est falando? da srie Cultura Popular e Educao, maro, 2003. www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Doutora em Antropologia Social pelo Museu /Nacional/UFRJ. Pesquisadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

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I Desde pelo menos o sculo XIX e ao longo de todo o sculo XX, existem dois grandes pressupostos tericos que orientaram o entendimento cientfico e polticas relativas diversidade cultural humana: a perspectiva do etnocentrismo e a do relativismo cultural. O etnocentrismo uma tendncia que considera a cultura (valores, princpios, conhecimentos, modo de vida) de um grupo especfico, seja ele qual for (uma nao, um pas, um grupo religioso, uma tribo urbana de adolescentes, um time de futebol...), como medida para todos os outros. Sob essa perspectiva, o grupo a partir do qual se fala comparado e valorado positivamente em detrimento dos outros grupos humanos. No contexto das sociedades integradas ao mercado industrial globalizado contemporneo, por exemplo, o ponto de vista etnocntrico tende a privilegiar o grau de desenvolvimento tecnolgico e especializao da sociedade como modelo de vida de qualidade superior, mais evoluda em relao vida nas sociedades menos integradas quele modelo. A histria oficial tende a reafirmar a idia de que as sociedades industriais so mais desenvolvidas, com qualidade de vida superior das sociedades pouco ou diferencialmente integradas ao modelo de referncia. E, sob a luz desses argumentos, legitimaram-se muitas guerras, genocdios e massacres imperialistas a culturas genunas. Na contra-tendncia do etnocentrismo desenvolveu-se o relativismo cultural, pressuposto terico construdo no sob o ponto de vista de um grupo ou coletividade especfica, mas, pretensamente, sob o ponto de vista amplo, de toda a humanidade. Entende-se, assim, que todas as sociedades e culturas, por mais diversas, so anlogas, pois tm suas prprias racionalidades e irracionalidades intrnsecas, formas, funes e expresses especficas, e que essa diversidade caracterstica de toda a espcie humana. Tudo depende do ponto de vista de quem olha. Podemos ver que as sociedades com alto grau de desenvolvimento tecnolgico e industrializao podem no ter encontrado as melhores solues para sua existncia no tocante ecologia, questo relativamente bem resolvida em outras sociedades distantes do modelo produtivo tecnoindustrial, como as sociedades seminmades, caadoras e coletoras que fazem manejo rotativo de pequenas roas em meio Floresta 120

Amaznica, por exemplo. Enquanto a tendncia da perspectiva etnocntrica subordinar o diferente sob a lgica da desigualdade econmica na maioria das vezes de maneira violenta e extrema , a perspectiva relativista ideologicamente pontuada pelo pacifismo, justia, eqidade social e pluralidade cultural e pelo esforo constante de conhecer para poder preservar essa pluralidade como possibilidade concreta da experincia humana. Pois o potencial criativo um dos maiores patrimnios da humanidade; um dos traos mais marcantes que nos distingue e define enquanto espcie. II Desde o final da Segunda Guerra Mundial as questes internacionais gerais sobre o tema do patrimnio cultural da humanidade so conduzidas para os fruns da Unesco, seminrios e conferncias internacionais de diferentes ordens. E, de maneira geral, as bases de entendimento para as aes cooperativas entre as naes esto no documento da Unesco Recomendaes sobre a salvaguarda do folclore e da cultura popular, de 1989. Esse documento enfatiza a necessidade de cooperao internacional para o desenvolvimento de instrumentos de salvaguarda, tanto dos processos de produo e transmisso de conhecimentos genunos e tradicionais, quanto dos direitos das coletividades sobre seus conhecimentos, cosmologias e tcnicas aplicadas. A atual legislao que trata da proteo do patrimnio cultural brasileiro tem seguido as recomendaes da Unesco; fundamentada em bases relativistas que j vinham sendo construdas e amadurecidas ao longo da histria. Nos artigos 215 e 216 da Constituio promulgada em 1988, o conceito de Patrimnio Cultural abarca tanto obras arquitetnicas, urbansticas e artsticas de grande valor o patrimnio material quanto manifestaes de natureza imaterial, relacionadas cultura no sentido antropolgico: vises de mundo, memrias, relaes sociais e simblicas, saberes e prticas; experincias diferenciadas nos grupos humanos, chaves das identidades sociais. Incluem-se a as celebraes e saberes da cultura popular as festas, a religiosidade, a musicalidade e as danas, as comidas e bebidas, as artes e artesanatos, os mistrios e mitos, a literatura oral e tantas, tantas expresses diferentes que 121

fazem nosso pas culturalmente to diverso e rico. O principal instrumento de preservao do patrimnio material o instituto do tombamento, cuja legislao est sendo amadurecida desde pelo menos a primeira metade do sculo XX. A legislao para o patrimnio imaterial, entretanto, recente. No Decreto n. 3.551 de 04 de agosto de 2000, os principais instrumentos de salvaguarda desse patrimnio, at hoje institudos, so o inventrio permanente, o registro em livros anlogos aos livros de tombo e as polticas de preservao e fomento que devem ser estabelecidas. Esses instrumentos no so fechados, normativos e restritivos, mas abertos aos pontos de vista e expectativas dos portadores de tradies culturais especficas. Pressupem a dinmica prpria dessas tradies, sem pretender, portanto, engessar suas formas e contedos no tempo e no espao, o que fundamental, pois a questo no nada, nada simples. Apenas a legislao no basta para garantir a salvaguarda desses bens. De fato, muitas expresses culturais da maior importncia se perderam por falta de legislao eficiente, mas tambm existem muitos bens culturais que se conservaram por sculos e sculos sob nenhuma ou apenas incipiente legislao de proteo. As leis, sem dvida, podem favorecer as condies para a preservao do patrimnio cultural; mas ele s efetivamente preservado por meio da vivncia voluntria das pessoas. Os documentos engavetados, os inventrios, a descrio dos bens contidas nos livros do Iphan so apenas referncias dos bens, mas no do conta dos bens em si, que tm natureza dinmica e intangvel. O patrimnio imaterial como as festas e celebraes, as msicas, danas, comidas, saberes e tcnicas prprias da cultura popular s se conservaro, efetivamente, se vividos por pessoas em condies, com garantias, liberdade e interesses em vivenci-los de modo dinmico e criativo. Assim, a nova legislao de preservao do patrimnio cultural s ser eficaz na medida em que seja amplamente conhecida pelos diferentes segmentos da sociedade e que as comunidades locais e a sociedade abrangente tenham condies de estar mobilizadas para a prtica permanente, para a transmisso e aprendizado de saberes, a pesquisa, documentao, apoio e reconhecimento da riqueza cultural 122

brasileira, de maneira crtica e participativa. Destaca-se, ento, o fundamental papel da escola, e dos educadores em geral, na atualizao constante dos princpios do relativismo cultural para as novas geraes; na valorizao da diversidade cultural com respeito e tolerncia; no estmulo permanente curiosidade pelas culturas e identidades tradicionais das comunidades locais, divulgando-as para que sejam conhecidas e reconhecidas na prpria comunidade e na sociedade abrangente. De modo que seja preservada a vontade de apreender, compreender, vivenciar, repassar e reinventar as tradies com liberdade, criatividade e senso de justia social. Posto que a preservao da diversidade cultural e a superao das desigualdades socioeconmicas so um dos maiores desafios que a sociedade brasileira enfrenta neste sculo XXI.

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Conto e reconto, literatura e (re) criao Ren Marc da Costa Silva 1 Mitos so, numa definio bastante simples, histrias que as culturas criam para tornar compreensveis, inteligveis e interpretveis o mundo e a existncia humana. Mitos so tambm narrativas sagradas dedicadas a explicar a origem e a existncia das coisas ocorridas em tempos e em mundos diferentes ou anteriores aos nossos. Os mitos trazem a presena constante de elementos ficcionais, tais como: foras desconhecidas, feitios, encantos ou inimigos sobrenaturais. Neles, freqentemente, a passagem do tempo inexiste. Enfim, so muitas e variadas as faces ou facetas dos mitos. Mas, por que eu inicio esta unidade falando de mitos? o que, certamente, voc, professor, estar se perguntando. O que os contos da cultura popular tm a ver com mitos? Muitos estudiosos tm apontado uma estreita proximidade entre as narrativas mticas e os contos populares. Sustentam que muitos mitos e tradies, oriundos das mais diversas culturas, vm sofrendo, ao longo do tempo, um amplo processo de esvaziamento de seus elementos marcadamente religiosos; mas continuam sendo contados, passando de boca em boca e que, por a e dessa forma, sofrendo toda sorte de influncias e alteraes, acabaram por se transformar no que hoje entendemos por contos populares. Esses contos trazem como marcas distintivas, tais como os mitos, toda a magia e encantamento da memria e da expressividade oral. So transmitidos de narrador para narrador, guardados pela plasticidade da memria e da voz. Viajam para todos os lugares acolhendo acrscimos, substituies e influncias. Por estes caminhos que o povo simples no Brasil tem reelaborado e reinventado os elementos de diversas matrizes mticas, enraizadas na nossa cultura, em cantorias, contos, folguedos e outras tantas manifestaes da cultura popular. material rico e dinmico fruto da capacidade criativa das pessoas annimas. Mitos e contos populares partilham tambm uma outra e
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antroplogo e doutor em histria pela Universidade de Braslia UnB, professor de histria, tica, alm de cultura poltica no programa de mestrado em direito do Centro Universitrio de Braslia UniCeub.

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fundamental caracterstica: so, ambos, formas eminentemente narrativas. Nascem, como j foi dito, em culturas orais, criadas, recriadas e preservadas ao longo do tempo, no mais das vezes, atravs de artifcios narrativos da memria, prprios de culturas ou subculturas que no dispem ou no se utilizam de instrumentos de fixao como a escrita. Oralidade e memria estruturam essas prticas narrativas essencialmente atravs da dialogia. Narrar neste contexto, portanto, diferente de escrever, falar. Mais do que isso, falar em voz alta num discurso que implica sempre um ouvinte caracterizado, principalmente, por uma comunicao face a face. Ou seja, um Eu que se dirige em voz alta a um outro postado diante dele, um narrador que est vendo o rosto dos seus ouvintes e est aberto e vulnervel opinio de seus interlocutores. No pode, portanto, se dar ao luxo de utilizar-se de uma estrutura narrativa fragmentada, com vocabulrios rebuscados e sintaxes incomuns. No pode ousar demais a ponto de ser experimental, lanando mo de metforas exticas ou citaes eruditas, a pretexto mesmo de no ser de forma alguma compreendido posto que seu interlocutor no tem como, o que bem prprio da escrita, ler e reler para analisar o texto com calma. Aqui, ao vivo, o contador, cantador ou encantador precisa saber controlar seus gestos, pois estes esto sendo observados e so significantes importantes que compem, ao final, o texto falado. Seu tom de voz, altura, sotaque tm de estar a servio do sentido preciso do que se deseja comunicar. Precisa estar atento sua platia, a seu ambiente e energia circulante, posto que seus interlocutores sim, interlocutores, na medida em que no so meros receptores passivos, so capazes de agir e interagir , se no o compreenderem ou o considerarem insultuoso podem vaiar ou simplesmente irem embora. Seu discurso falado, justamente por ser falado efmero, se dissipa no exato momento em que cantado, isto , narrado, contado. Mas, por outro lado, e exatamente por causa disso, se presta a improvisos, a variaes e a influncias de toda uma constelao imaginativa caracterstica do verdadeiro artista e da beleza prpria da arte. Os contos populares so narrativas que encerram beleza e valor precisamente onde, em outras formas narrativas, identificamse signos de pobreza e impercia do artista. So narrativas lineares, 128

contnuas, com princpio, meio e fim, sem nunca perder de vista que seu objetivo , antes de tudo, contar uma histria de interesse geral, com temas que possibilitem uma identificao imediata, que possa, como discurso, ser compartilhvel a partir de uma linguagem acessvel e familiar. So contos que cantam as histrias do homem e do mundo, dizem respeito condio humana vital e concreta, seus conflitos, seus paradoxos, suas ambigidades e transgresses. Selecionamos para a terceira unidade deste volume sobre Cultura popular e Educao, coletnea de artigos produzidos para o programa Salto para o Futuro, um conjunto instigante de textos que trazem para voc, professor, reflexes sobre a sabedoria acumulada por uma atividade de contar histrias que quase to antiga quanto a histria da prpria humanidade. Ao mesmo tempo em que colocamos sua disposio, tambm, na reflexo sobre esses contos, lendas, provrbios, causos, essenciais para a preservao dessa atividade milenar e das tradies populares, a oportunidade de apreciar uma prtica to viva, intensa e vigorosamente mutante, portadora do frescor e do cheirinho do eternamente novo. Acreditamos que a descoberta dos contos populares pela escola pode infundir novo oxignio e vida nos programas de ensino, desde a mais tenra idade da educao infantil aos ciclos finais do ensino fundamental. Recuperar nos currculos, para crianas e adolescentes, a beleza do narrar, do poetizar, do cantar, do jogar com as palavras permitir respirar de novo, com novos ares, o terreno sobre o qual se pretende construir um conhecimento diferenciado. O texto Histrias da Tradio Oral: os Contos Etiolgicos, de Magda Frediani e Rogrio Andrade Barbosa, abre a unidade ressaltando a ludicidade mgica da riqussima literatura oral brasileira, prpria mesmo de um pas pluritnico e multicultural como o nosso. Enfatiza, tambm, como as diferentes tradies indgenas, africanas e ibrica, formadoras do universo imaginrio brasileiro, produziram uma ampla diversidade de vises do ser humano, do existir, da natureza e do mundo. O leitor est pronto, ento, para o mergulho no maravilhoso dos contos indgenas, para o qual nos remete o texto Histria dos ndios l em casa, de Wilmar dAngelis. Nele, o autor problematiza o conhecimento cientfico desenvolvido nas sociedades ocidentais modernas corriqueiramente visto como superior ou como sendo a nica maneira vlida de conhecer , luz da tradio dos contos 129

e lendas indgenas cujas caractersticas so a oralidade, a memria, os rituais e os modos ancestrais de contar histrias. Mostra como neste outro modo de conhecer transmitem-se valores perdidos ou j enfraquecidos nas sociedades urbanas e modernas, como, por exemplo, o respeito aos velhos que para os ndios possuem o dom de revelar segredos. No texto Cantos e re-encantos: vozes africanas e afrobrasileiras, Andria Lisboa de Sousa e Ana Lcia Silva Souza assinalam como os contos africanos e dos afrodescendentes, suas histrias e mitos, se espraiaram amplamente pelo nosso imaginrio social. Como esta tradio caminhou junto com as negras velhas e amas-de-leite que, no contexto do Brasil colnia, de engenho a engenho, contavam suas histrias, fazendo-o de maneira muito semelhante de Akpal, figura mtica de um fazedor de contos, cuja atividade se constitua em espalhar histrias pelos lugares por onde passava. J em A Aventura Partilhada; importantssimo trabalho de Francisco Marques, a perspectiva das narrativas de matriz caracterizada pela memria e pela oralidade sustentada como possvel de se constituir em nada menos do que eixo ou estrutura de uma filosofia educacional alternativa, permeando todo o trabalho pedaggico pela poesia e pela beleza, orientado para criar outros territrios, nos quais as crianas e os adultos sejam cmplices e partilhem as mesmas aventuras. Fechando esta unidade, o texto de Ricardo Azevedo, Conto Popular, Literatura e Formao de Leitores, abre uma janela para uma reflexo no menos importante. Aponta como os chamados contos de encantamento, recolhidos em terras brasileiras so, em grande parte, de origem europia, chegando at ns por intermdio de Portugal. Problematiza, a partir disso, a circulao das culturas e como os contos populares, independentemente de rtulos como cultura popular, folclore e outros, podem ser considerados uma excelente introduo literatura, pois nada mais fazem do que trazer para o leitor, de forma acessvel e compartilhvel, enredos, imagens e temas recorrentes na fico e na poesia. Ricardo Azevedo apresenta uma interessante classificao dos contos populares e fala sobre a moral ingnua desses contos. Para ele, boa parte dos contos populares traz baila situaes e conflitos humanos de grande interesse. E prope um tema para 130

reflexo: Ao contrrio do que se poderia pensar, o fato de serem de fico e poderem conter aspectos mgicos e de encantamento, nem de longe tira dos contos populares sua extraordinria capacidade de abordar a vida concreta e, mais ainda, de especular sobre ela. Enfim, os textos presentes nesta unidade foram selecionados para permitirem a voc, professor, a partir do repertrio inesgotvel dos contos populares, das reflexes que eles propiciam e das lies que encerram, abordar e discutir os mais diversos temas, alm de questes ticas relevantes na convivncia cotidiana, tanto na escola quanto na vida. Tudo isso sem perder de vista o contedo literrio e a beleza das histrias, que brotam das mais diversas tradies culturais presentes entre ns.

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Texto 1
HISTRIAS DA TRADIO ORAL: OS CONTOS ETIOLGICOS Magda Frediani 1 Rogrio Andrade Barbosa 2 Por que os ces se cheiram uns aos outros?
Quando os ces governavam-se a si mesmos, havia dois grandes reinos chefiados por poderosos ces. Cada um deles gabava-se de ter mais sditos e riquezas do que o outro. Embora fossem adversrios, viviam em paz, e essa trgua s foi quebrada no dia em que um deles se apaixonou pela irm do outro chefe. Perdido de amores, ele se dirigiu pessoalmente aos domnios do rival: - Meu nobre amigo - disse o co apaixonado -, fiz essa longa e cansativa viagem at o teu reino para pedir a mo da tua irm em casamento. - Com a minha irm! - respondeu aos gritos o outro co -, no quero que voc case com ela de jeito nenhum. Humilhado com a resposta, o co desdenhado voltou furioso para sua corte. Assim que chegou, reuniu o Conselho de Guerra e mandou chamar um fiel servidor para que levasse a seguinte mensagem ao seu inimigo: - Diga-lhe que como me recusou a mo da irm, que se prepare para lutar, pois dentro de poucos dias irei marchar com meu exrcito para destru-lo. O mensageiro ouviu tudo bem direitinho e j ia partindo quando um dos conselheiros reais o chamou:
Esse texto integra o boletim do programa Contos de origem da srie A narrativa na literatura para crianas e jovens. Outubro, 2005.www.tvebrasil.com.br/ salto/ 1 Professora de Lngua Portuguesa e Literatura Brasileira. Autora de livros didticos e literatura infantil. Membro da equipe do programa Salto para o Futuro/TV Escola. 2 Escritor, professor e arte-educador. Autor de diversos livros de literatura para crianas e jovens. Diretor Executivo da Associao de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil AEI-LIJ. Membro do Conselho Consultivo da Fundao Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

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1990.)

- Voc no pode sair assim todo sujo - disse o conselheiro real. - A sua cara e a cauda esto imundas. Os criados deram um longo banho no mensageiro e perfumaram a cauda dele com os melhores perfumes do reino, pois de acordo com os costumes daquele tempo, um mensageiro tinha que se preparar adequadamente para executar uma tarefa. No caminho, o mensageiro achou-se to cheiroso e galante que comeou a procurar esposas para ele mesmo, deixando de lado a misso que o chefe havia lhe confiado. por isso que os ces andam sempre atrs uns dos outros, cheirando as suas caudas, para verem se acham o mensageiro perdido 3. (BARBOSA,

Um pas pluritnico e multicultural como o Brasil possui, como no poderia deixar de ser, uma riqussima literatura oral, transmitida de gerao a gerao, formando um repertrio ldico e mgico. So contos, fbulas, lendas, mitos, adivinhas, provrbios, histrias de assombrao que povoaram e povoam o universo imaginrio dos brasileiros, trazendo as mltiplas vises de mundo dos povos que formam a identidade cultural de nosso pas. Estas histrias, oriundas da tradio indgena, africana e europia, conquistaram novos espaos, sendo recontadas por diversos escritores e ilustradores nos livros de literatura para crianas e jovens. So contos de fadas, que tm como personagens reis e rainhas, prncipes e princesas, vivendo em pocas remotas e em reinos longnquos e desconhecidos... So lendas de criaturas encantadas, que habitam as matas, ou se escondem nas profundezas das guas dos rios e dos mares. So fbulas, que mostram animais que falam como ns e se deparam com situaes semelhantes s que vivemos
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O conto Por que os ces se cheiram uns aos outros? faz parte do livro Bichos da frica (Lendas e Fbulas), de Rogrio Andrade Barbosa (Editora Melhoramentos, 1988, p. 3-8). O escritor, que co-autor deste texto, viveu na frica, trabalhando como voluntrio das Naes Unidas na Guin-Bissau. Nas diversas aldeias e cidades que percorreu, no imenso continente africano, conheceu os contadores de histrias griots que transmitem oralmente, para uma platia atenta e fascinada, contos, lendas, mitos, fbulas... Suas narraes so acompanhadas de mmicas, danas, cantigas e outros efeitos cnicos, como a imitao das vozes dos animais, do barulho da chuva e do zumbido do vento.

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em nosso dia-a-dia. So mitos de heris que enfrentam desafios e se envolvem em aventuras fantsticas, buscando um objeto que pode trazer a salvao para uma comunidade em perigo... So contos que tentam explicar a origem de fatos e fenmenos, para satisfazer a eterna curiosidade humana sobre os mistrios da vida... Segundo Cmara Cascudo, em seu Dicionrio do Folclore Brasileiro (1998), os contos etiolgicos explicam a origem de aspecto, forma, hbito, disposio de um animal, vegetal, ou mineral. (CMARA CASCUDO, 1998) Os contos de animais, como o desta histria africana, geralmente, explicam a origem do comportamento da fauna que habita as florestas, rios e savanas do imenso continente. Os contos etiolgicos mostram, tambm, como determinados bichos tm a sua aparncia atual 4. Por que os ces se cheiram uns aos outros um conto curto, o que favorece a sua abordagem no tempo/espao da sala de aula. Apesar do tamanho, ele apresenta as caractersticas essenciais dos textos narrativos: uma abertura estado inicial de harmonia ou equilbrio , seguida de um fato narrativo propriamente dito a desarmonia, quando este equilbrio inicial rompido , e encerrada por um fechamento estado final, que tanto pode ser a volta ao equilbrio inicial como o aparecimento de uma nova situao de equilbrio (CANEIRO, 1997). Entre a abertura e o fechamento, acontecem os conflitos, as aes dos personagens, as transformaes... Na abertura, vemos que o autor nos mostra um fato distanciado no tempo, numa poca em que os ces eram seus prprios governantes. J se instaura, neste incio, uma oposio a tudo que conhecemos sobre esses animais, em geral to dependentes dos seres humanos, seus donos, que lhes oferecem comida e moradia, em troca da to famosa amizade, proteo, etc. Quem diria que esses bichos poderiam ter sido reis, soldados, mensageiros? Que se envolveriam em aventuras galantes de amor e seduo? Que se deixariam levar pelas paixes, como os seres humanos? Que saberiam valorizar a aparncia fsica, se enfeitando para cumprir uma misso? Por meio das histrias, narradas ao redor
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Em Histrias africanas para contar e recontar (So Paulo, Editora do Brasil, 2001) e, em Contos Africanos para Crianas Brasileiras(So Paulo, Editora Paulinas, 2004), podem ser encontrados outros contos semelhantes, pesquisados e recontados pelo autor, pertencentes ao universo da literatura tradicional africana.

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de uma fogueira, como nas aldeias africanas, ou escritas nos livros, possvel recriar, com muita fantasia, tudo o que existe neste nosso mundo, tornando-o mais suportvel, mais belo. Os contos etiolgicos tambm esto presentes na tradio oral dos diferentes grupos indgenas que existem atualmente no Brasil cerca de 206 etnias, espalhadas em aldeias em todo o territrio nacional. Histrias cheias de encantamento e poesia, que falam sobre esta integrao entre tudo o que existe: as plantas, os animais, os seres humanos, os rios e mares, o vento, as estrelas, os seres encantados que habitam as florestas. Nestes contos e lendas, tudo est entrelaado. E esta invisvel corrente que une o Cu e a Terra nunca pode ser rompida. Entre os contos de origem dos povos indgenas, podemos citar este, recontado por Leonardo Boff:
Por que no cu h tantas estrelas?, em seu livro O casamento entre o cu e a terra - contos dos povos indgenas do Brasil: Para os Karaj, do Tocantins-Xingu, o firmamento estava vazio, sem nenhum brilho, porque o uruburei havia roubado as estrelas para enfeitar o penacho em sua cabea. Indignado com isto, o ndio Karaj enfrentou o urubu-rei e conseguiu imobiliz-lo. Tentou ento, convencer o rei das alturas a devolver os astros luminosos, mas, mesmo vencido, o uruburei no cedeu. Foi preciso que o Karaj arrancasse, uma a uma, as penas da cabea da criatura. Cada pena arrancada era lanada no ar a se transformava numa estrela do firmamento. Apressado, o ndio arrancou um monte de penas de atirou-as de uma s vez... E assim se formou o caminho das estrelas: a Via-Lctea. (adaptao) (BOFF, 1991)

O antroplogo e indianista Nunes Pereira, que viveu parte de sua vida na Amaznia, recolheu centenas de contos, lendas e mitos dos ndios desta regio. Uma de suas obras antolgicas Morongut um Decameron indgena (1967). Dos ndios Cauaiua-Parintintim, do Vale do Rio Madeira, no estado do Amazonas, Nunes Pereira ouviu vrias histrias de um heri de cultura, o sbio Bara, que teria conseguido roubar o fogo do Urubu, trazendo-o para sua aldeia. Com este presente de Bara, seu povo pde preparar o moqum e assar a carne dos peixes e das caas. Este conto de origem do fogo lembra o mito de Prometeu, um heri dos antigos gregos, que teria 136

roubado o fogo dos deuses, trazendo-o para os homens, e que foi severamente castigado por Zeus. O antroplogo Nunes Pereira destaca o fato de que os narradores das histrias de Bara Inhambut, Igu, Paquiri, Paririm, e outros sentiam grande admirao pelo heri, e falavam de seus feitos e proezas como se eles mesmos tambm tivessem compartilhado de suas aventuras. Em outro conto recolhido pelo autor, vamos encontrar a explicao da origem do Sol e da Lua. uma pequena narrativa, que mostra, numa viso potica e mgica, o poder divino deste heri, cujas faanhas so motivo de orgulho para os remanescentes dos povos indgenas daquela regio, que j foram grandes guerreiros, antes de serem quase extintos pelos chamados colonizadores. Origem do Sol e da Lua Bara foi quem criou o Sol e a Lua. O Sol homem. A Lua mulher. Bara fez o Sol da raiz da paxiba (...). E fez da raiz do apuzeiro uma veia que ps na Lua (...). Dessa veia sai sangue. O Sol, porque homem, sai de dia. A Lua, porque mulher, sai de noite. Os homens, na Terra, so como o Sol. As mulheres so como a Lua. So inmeras as possibilidades de trabalho com os contos de origem na sala de aula. Professor, voc pode propor que os alunos comparem estas explicaes to poticas sobre os mistrios da vida com as explicaes ditas cientficas, que quase sempre procuram apresentar os fatos como verdades inquestionveis. Haveria uma explicao cientfica para estes hbitos to pouco convencionais dos ces? Como a cincia explica o surgimento das estrelas, do Sol, da Lua? Ser que as explicaes para estes fenmenos, que hoje nos parecem to definitivas, tambm podero mudar, no futuro, com as novas descobertas possibilitadas pela tecnologia? Ao trabalhar com os contos etiolgicos dos indgenas e dos povos africanos, estaremos trazendo para a sala de aula diferentes vises de mundo, que vo enriquecer o universo cultural de nossos alunos, instigando-lhes a curiosidade e ampliando seu espao de 137

ao/reflexo sobre a vida, sobre a natureza, sobre nosso ser/estar no mundo. Para concluir, apresentaremos uma histria-mito do repertrio afro-brasileiro, analisada pela professora e pesquisadora Azoilda Loretto, cuja estrutura, dinmica, perspectiva e forma insinuam, anunciam uma diferena, ou diferenas de viso de mundo, de modo de expresso do mundo, de coerncia. E o mais interessante que coexistem com a viso dominante, com a lgica dominante. Assim como essa, outras histrias, outros mundos possveis existem. (LORETTO, 2005, p. 2005) Exu ajuda Olofim na criao do mundo:
Bem no princpio, durante a criao do universo, Olofim-Olodumare reuniu os sbios do Orum para que ajudassem no surgimento da vida e no nascimento dos povos sobre a face da Terra. Entretanto, cada um tinha uma idia diferente para a criao e todos encontravam algum inconveniente nas idias dos outros, nunca entrando em acordo. Assim, surgiram muitos obstculos e problemas para executar a boa obra a que Olofim se propunha. Ento, quando os sbios e o prprio Olofim j acreditavam que era impossvel realizar tal tarefa, Exu veio em auxlio de Olofim-Olodumare. Exu disse a Olofim que, para obter sucesso em to grandiosa obra, era necessrio sacrificar cento e um pombos como eb. Com o sangue dos pombos, se purificariam as diversas anormalidades que perturbam a vontade dos bons espritos. Ao ouvi-lo, Olofim estremeceu, porque a vida dos pombos est muito ligada prpria vida. Mesmo assim, pouco depois sentenciou: - Assim seja, pelo bem de meus filhos. E pela primeira vez se sacrificaram pombos. Exu foi guiando Olofim por todos os lugares onde deveria verter o sangue dos pombos, para que tudo fosse purificado e para que seu desejo de criar o mundo fosse cumprido. Quando Olofim realizou tudo o que pretendia, convocou Exu e lhe disse: Muito me ajudaste e eu bendigo teus atos por toda a eternidade. Sempre sers reconhecido, Exu, sers louvado sempre antes do comeo de qualquer empreitada. (PRANDI, 2001)

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Como assinala a pesquisadora, nessa histria encontramos uma apresentao de outras possibilidades de viver o mundo, para alm da ideologia, para alm da racionalidade, para alm da cincia. Essa e outras histrias so histrias vivas, que habitam o cotidiano e o imaginrio de muitos brasileiros. So histrias, narrativas, fragmentos culturais que sinalizam outras possibilidades de apresentao, de modos de sentir, agir, pensar, saber... Professor, os contos de origem podem ser um ponto de partida para o trabalho em todas as reas do conhecimento. Voc pode solicitar que os alunos pesquisem as histrias da comunidade onde fica a escola: Qual a origem dos nomes do bairro, da escola, das ruas? Quais so as histrias de vida dos moradores? Como as crianas explicam os fatos de seu cotidiano? Ao ouvir, recolher e recontar essas histrias, trazendo-os para o universo da sala de aula, voc e seus alunos tambm faro parte de uma grande rede, que alimenta o nosso imaginrio e que entrelaa nossas vidas, dando um sentido to difcil e complexa aventura do dia-a-dia. Bibliografia: BARBOSA, Rogrio Andrade. Histrias africanas para contar e recontar. So Paulo, Editora do Brasil, 2001. ________. Contos Africanos para Crianas Brasileiras. So Paulo, Editora Paulinas, 2004. BOFF, Leonardo. O casamento entre o cu e a terra contos dos povos indgenas do Brasil. Rio de Janeiro: Salamandra, 2001. CMARA CASCUDO, Lus de. Dicionrio do Folclore Brasileiro. 9a edio. Rio de Janeiro, Ediouro, 1998. CARNEIRO, Agostinho Dias. Redao em construo - a escritura do texto. So Paulo, Ed. Moderna, 1997. LAJOLO. M. & ZILBERMAN. R. Um Brasil para crianas. So Paulo, Global, 1989. ________. Literatura infantil brasileira: histrias e histrias. So Paulo, Editora tica, 1984. LORETTO, Azoilda. A imagem da mulher negra na mdia. Tese de doutorado. Escola de Comunicao da UFRJ. Rio de Janeiro, 2005. NUNES PEREIRA. Morongut um Decameron indgena. Rio de Janeiro, Editora Civilizao Brasileira, 1967. (Coleo Retratos do 139

Brasil, vol. 50-a) PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixs. So Paulo: Cia. das Letras, 2001.

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Texto 2 HISTRIAS DOS NDIOS L EM CASA Wilmar dAngeli 1 Quem j no ouviu, em casa, algum contar uma histria em que a ona tenta comer o macaco (ou mico) e enganada por ele? Ou uma histria em que a ona faz uma aposta com outro animal, confiada em sua fora, e acaba perdendo, porque o outro animal se mostra mais esperto ou inteligente? Todas essas histrias, ou quase todas 2, so uma parte do riqussimo patrimnio que recebemos de povos indgenas que habitaram e dos que ainda habitam o Brasil. Onde, exatamente, essas histrias tiveram incio? E quando? No possvel saber. Sabemos que elas integravam a riqueza da tradio oral de vrios povos indgenas (e elas passavam, tambm, de um povo ao outro), mas no sabemos quando e onde elas comearam. Em todo caso, quando um av (brasileiro) conta para os netos uma daquelas histrias (como a do mico que montou a cavalo na ona), ele est transmitindo uma narrativa que contada h centenas de anos, que foi criada em uma aldeia indgena, e se conservou nas aldeias indgenas exatamente pelo trabalho dos contadores. A outra coisa interessante a perceber que qualquer uma dessas histrias, por mais ingnua que parea, por mais que parea uma narrativa sem conseqncias, que teria sido feita e contada s para diverso, mesmo essas narrativas possuam importncia e significao cultural na sociedade que as criou. Na verdade, h pelo menos dois tipos de narrativas de origem indgena que esto presentes na cultura brasileira: - as historietas de bichos, que costumam ser engraadas; - as narrativas sobre seres da floresta: o saci, o caapora, o curupira e outros.
Esse texto integra o boletim do programa Contos indgenas da srie Conto e reconto: Literatura e (re)criao, abril, 2006.www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Professor no Instituto de Estudos da Linguagem/Departamento de Lingstica da Unicamp, SP. Doutor em Lingstica. Assessor de programas de Educao Indgena. 2 Nem sempre simples definir a origem de um conto popular. H tambm histrias de bichos presentes na tradio brasileira cuja origem so contos africanos.

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As histrias de bichos costumam envolver pares que se opem: o jabuti e a ona, o tamandu e a ona, o sapo e a ona, o macaco e a ona, o macaco e o veado, etc. O fio condutor da narrativa, quase sempre, uma disputa entre os dois animais, s vezes gerada pela prepotncia do mais forte e poderoso, s vezes por uma iniciativa (sempre vista como legtima) da parte mais fraca. E a narrativa sempre conduzida a uma soluo inteligente e engenhosa (a favor) do mais frgil, como uma forma de enaltecer o valor da inteligncia e da reflexo, contra a fora bruta e as aes impulsivas. J as narrativas sobre seres com poderes excepcionais envolvem muitos moradores da floresta, mas no apenas dela. Os mais conhecidos so: o saci, o caapora, o curupira, a boitat, a boina e o boto. A diferena entre as histrias de bichos e os relatos sobre os seres mencionados acima est em que as primeiras so vistas e entendidas, tambm pelos ndios que as conhecem e os povos que as criaram, como narrativas de fico, histrias no-verdadeiras. So histrias para divertir (mas, tambm, para ensinar). J os relatos sobre o saci, o caapora, o boto e todos os outros desse tipo so relacionados como verdadeiros, e para eles as comunidades sempre registram muitos casos com testemunhas. Quando esses relatos saem das aldeias e alcanam a populao brasileira no-indgena, em muitos lugares tambm so vistos como verdadeiros. Mas nos centros urbanos maiores, sobretudo mais longe da origem indgena, esses relatos so tratados como lendas. A memria e a tradio oral As narrativas indgenas se sustentam e se perpetuam por uma tradio de transmisso oral (sejam as histrias verdadeiras dos seus antepassados, dos fatos e guerras recentes ou antigos; sejam as histrias de fico, como aquelas da ona e do macaco). De fato, as comunidades indgenas nas chamadas terras baixas da Amrica do Sul (o que exclui as montanhas dos Andes, por exemplo) no desenvolveram sistemas de escrita como os que conhecemos, sejam alfabticos (como a escrita do Portugus), sejam ideogramticos (como a escrita dos chineses) ou outros. Somente nas sociedades indgenas com estratificao social (ou seja, j divididas em classes), como foram os Astecas e os Maias, que surgiu algum tipo de 142

escrita. A histria da escrita parece mesmo mostrar claramente isso: que ela surge e se desenvolve em qualquer das formas apenas em sociedades estratificadas (sumrios, egpcios, chineses, gregos, etc.). O fato que os povos indgenas no Brasil, por exemplo, no empregavam um sistema de escrita, mas garantiram a conservao e continuidade dos conhecimentos acumulados, das histrias passadas e, tambm, das narrativas que sua tradio criou, atravs da transmisso oral. Todas as tecnologias indgenas se transmitiram e se desenvolveram assim. E no foram poucas: por exemplo, foram os ndios que domesticaram plantas silvestres e, muitas vezes, venenosas, criando o milho, a mandioca (ou macaxeira), o amendoim, as morangas e muitas outras mais (e tambm as desenvolveram muito; por exemplo, somente do milho criaram cerca de 250 variedades diferentes em toda a Amrica). Isso prova que a transmisso oral no to frgil como muitas vezes as pessoas pensam. A brincadeira do telefone sem fio vale como jogo, na escola, mas no tem nada a ver com os sofisticados meios de preservao e transmisso de tradies orais em comunidades indgenas (e no s indgenas: tambm na ndia, na China, nos povos da frica e em muitas outras culturas). H sociedades em que os nomes de antepassados so contados, um a um, de gerao em gerao, recuando mais de trs sculos no tempo. Em outras, fatos histricos so narrados com detalhes de hora, clima e frases enunciadas, com uma distncia temporal de mais de um sculo. Em muitas sociedades, as narrativas sagradas (suas histrias bblicas, poderamos dizer, por comparao) precisam ser declamadas de uma maneira ritual, muitas vezes por dois declamadores (ou cantadores, se for o caso) atuando juntos. Da mesma forma, as histrias que no so sagradas, mas que se transmitem de gerao em gerao, devem ser contadas pelas pessoas certas, aquelas em que se reconhece o dom e o direito de narrar. Em geral, so pessoas mais velhas. Um motivo, claro, o fato de que os velhos j ouviram as histrias muito mais vezes, j assimilaram suas variaes possveis, j as associaram por sua reflexo e conhecimento acumulado com outras histrias, com outras narrativas e com as situaes vividas por suas comunidades. Outro motivo ser, possivelmente, tambm a garantia que a sociedade d, aos mais idosos, de um lugar e uma 143

funo de prestgio na vida da comunidade. H, mesmo, sociedades, em que certas narrativas s se contam se todos esto deitados. Por exemplo, entre os Kaingang um importante povo indgena do Sul do Brasil existe um verbo prprio significando falar, outro significando conversar, outro para dizer contar e, ainda, um outro para dizer contar certo tipo de histria antiga (e que as pessoas devem ouvir deitadas). Se, por exemplo, um professor Kaingang usa esse ltimo verbo, na sala de aula, para dizer aos seus alunos que vai contar uma histria, as crianas lhe diro, sem pensar duas vezes: ento, temos que deitar. As narrativas indgenas nas aldeias Como j deu para perceber do que foi dito antes, nas sociedades de tradio oral, como so as sociedades indgenas, no existia apenas um tipo de histria, ou s uma forma de narrativa. H quem pense que tudo o que for narrativa indgena um mito. Em primeiro lugar, preciso saber em que sentido se est usando a palavra mito. H um sentido de lenda ou histria fantasiosa, e assim que geralmente entendida a chamada mitologia grega. So vistos, ento, como histrias sem comprovao, muitas vezes, histrias inacreditveis. A verdade que o mito um gnero de narrativa, um tipo especial de transmisso de histria e de valores. Uma caracterstica do mito sua linguagem simblica, nem sempre fcil de ser decifrada quando j se est longe e se desconhece muito da cultura em que foi gerado. A forma mtica de narrar tem sido a preferida, pelos povos, para registrar e transmitir as certezas mais profundas e suas verdades e valores mais fundamentais s geraes futuras. 3 Assim, por exemplo, os Guarani contam que os pais primeiros
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Na prpria Bblia judaica e crist se encontram mitos, como a histria de Sanso, um homem cuja fora descomunal dependia de sua vasta cabeleira. Sanso no foi uma pessoa real, mas no contexto do povo e da cultura que escreveu a Bblia, tem um papel simblico; sua imagem e sua histria pretendem despertar uma reflexo e uma tomada de conscincia das pessoas daquela cultura sobre determinados valores e atitudes. Assim, ao mesmo tempo que se pode dizer que Sanso no existiu, no se pode dizer que se trata de uma histria falsa ou simplesmente fantasiosa. No h falsidade quando a inteno , atravs de uma imagem simblica, expressar profundos conhecimentos e transmitir experincias acumuladas por uma sociedade ao longo de sua histria.

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de toda sua gente, tendo ido embora, deixaram uma mulher grvida de gmeos. A mulher seguiu a direo em que os pais se foram, e no caminho encontrou as onas, que a comeram, mas a av das onas salvou as crianas. Depois disso, os meninos fogem das onas e comeam sua prpria caminhada em direo ao nascente, onde est a morada dos pais primeiros. Ao fazerem esse caminho, vo encontrando situaes que favorecem a descoberta e a criao de vrias prticas culturais, que os Guarani herdaram deles. E tambm situaes que exigem o estabelecimento de vrias regras de conduta, que tambm so guardadas como exemplares pelos Guarani. Ao falar de um tempo muito antigo, do comeo do mundo, a narrativa mtica dos Guarani ensina, s futuras geraes, que valores eles devem cultivar, e que prticas so marca legtima da cultura Guarani, que no devem ser abandonadas. H tambm mitos que, em forma simblica, explicam aspectos da geografia do territrio daquele povo que os contam, ou explicam a existncia de certas plantas ou de certos animais. Por exemplo, a narrativa mtica que conta a origem do povo Kaingang registra que, depois de uma grande inundao, em que os homens sobreviveram nadando para o cume de uma alta montanha, as guas s recuaram porque as saracuras e os patos lanaram terra na gua, formando uma barreira. Segundo a narrativa indgena, como as aves vieram do lado do nascente, construindo a essa barreira que se tornaria uma serra, os rios do territrio Kaingang correm para oeste, e no para leste (ou seja, no correm para o mar, como seria esperado). De fato, os maiores rios do territrio Kaingang so o Tiet, o Paranapanema, o Iva, o Piquiri, o Iguau, o Chapec e o Uruguai, todos eles correndo para oeste. Um tipo de tpico comum, em muitos mitos no s dos indgenas, mas tambm de povos de outras regies do planeta o da origem da agricultura. Em alguns, atravs da origem do milho, outros, atravs da origem da mandioca, etc. O tpico comum o fato de que, nesses mitos de origem da agricultura, a planta mais importante (ou as mais importantes) nasceu do corpo de um homem velho que pediu para ser enterrado no meio de uma roa. Os muitos significados que esto simbolizados nessa imagem s os povos de tradio agrcola podero esclarecer. Mas h muitos outros gneros de narrativas orais nas sociedades indgenas: as narrativas de acontecimentos recentes, as 145

narrativas biogrficas, as histrias para divertir, as piadas e ainda outras. Em outras palavras, nem tudo mito no que os ndios contam ou narram. H tambm historietas muito parecidas com os causos da cultura brasileira, outras que so semelhantes s fbulas da tradio europia, e, ainda, narrativas que se parecem com as piadas que gostamos de contar. Em resumo: mito no uma histria falsa, de pura fantasia, sem sentido ou sem objetivo. E no so s mitos o que os ndios contam. A escola e as narrativas indgenas Quando olhamos para as culturas de povos diferentes de ns, costumamos ter alguma dificuldade para entender suas maneiras prprias de pensar e, muitas vezes, tambm para entender suas atitudes diante dos fatos. 4 Em nossa sociedade, costuma-se valorizar o chamado conhecimento cientfico. E nossas escolas so um espao de aprendizagem em que isso tambm se coloca em primeiro lugar. Mas quando olhamos para tantos conhecimentos e tanta riqueza cultural de sociedades to diferentes, como so os povos indgenas, somos obrigados a nos perguntar: ser que s o que ns descobrimos com nossos mtodos de pesquisa que pode ser chamado de conhecimento cientfico? No h conhecimento cientfico entre os ndios? Ou, ainda: ser que o nico tipo de conhecimento que existe o chamado conhecimento cientfico? No existem outras formas de produzir conhecimentos igualmente vlidas? Deveramos pensar seriamente nessas questes quando
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Um pesquisador da Europa registrou sua dificuldade de entender o pensamento de um povo da frica, com o qual conviveu. Certa vez, quando l estava, um paiol de produtos da roa desmoronou, caindo em cima de um homem que estava descansando embaixo dele, sombra. A comunidade dizia que havia um feitio; que algum havia pensado em fazer mal ao homem que morreu. O pesquisador se impressionava que aquelas pessoas no vissem que a causa da queda do paiol tinha sido o fato de que os cupins haviam corrodo seus palanques de sustentao. Questionando as pessoas sobre isso, a resposta que lhe deram foi simples: claro que o paiol caiu por causa dos cupins; mas porque ele iria cair justamente na hora em que tinha um homem descansando embaixo? Ou seja, o que eles no admitiam era a coincidncia ou o acaso. Aqui no Brasil, num caso desses, as pessoas provavelmente diriam: que azar o dele, pensando no sujeito que estava embaixo do paiol. Mas, o que diramos se nos pedissem para explicar: o que azar?

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ouvimos as narrativas indgenas e no as compreendemos totalmente. Um caso interessante o do mito Kaingang da origem da agricultura. Um velho chamado Nhara, que de to velho j nem podia caminhar, vendo seu povo sofrendo para se alimentar, decidiu sacrificar sua vida por eles. Pediu que fizessem uma roa nos taquarais, usando suas bordunas para quebrar as taquaras, e queimassem a roa depois de seca. Isso feito, pediu que o levassem ao meio da roa e, dali, fosse arrastado por toda ela para, no final, o enterrarem no meio. Os filhos e netos se recusavam, mas ele os convenceu, dizendo no ter mais alegria de viver, por estar to velho. Mandou que, depois de o enterrarem, fossem aos matos caar e procurar mel por trs luas, voltando depois para ver a roa. Quando eles voltaram, encontraram uma linda roa de milho, feijo e morangas (de fato, a base agrcola tradicional dos Kaingang). O que essa historinha quase esconde, e to interessante, o fato de o velho mandar que fizessem uma roa nos taquarais, onde depois, veio a dar o milho. Tanto o milho como as taquaras so espcies vegetais da famlia das gramneas , podendo-se supor que, se uma terra d, espontaneamente, taquara, deve ser igualmente boa para dar milho. Isso no mostra que os Kaingang conheciam o parentesco dessas duas plantas, do mesmo modo que os cientistas botnicos hoje conhecem? Alm disso, a roa Kaingang, que o mito relata, tem milho e feijo. H pouco mais de 30 anos conhecida, no Brasil, a orientao tcnica para que os agricultores pratiquem a consorciao de culturas, especialmente de milho com leguminosas (feijo ou soja), porque as ltimas fixam no solo o nitrognio de que o milho se serve. O mito que mencionamos parece mostrar que os Kaingang sabiam disso h sculos. Mas h, tambm, aquelas narrativas que nos deixam ao mesmo tempo maravilhados e confusos, porque no podemos justific-las ou interpret-las com os conhecimentos de nossa prpria cultura. Uma delas, que apresenta variantes em vrias sociedades indgenas, dos Kayap aos antigos Tupi da costa, a histria da origem da noite, porque no princpio s havia dia. Em uma das verses, cansados de s viver de dia, e sabendo que havia a noite em um outro lugar, resolveram ir busc-la. O dono da noite (que, em algumas verses, a Cobra Grande) lhes deu a escurido (com seus grilos, sapos e tudo o mais), presa dentro de um 147

coco lacrado com breu. Eles deveriam lev-lo at a aldeia e, l, realizar os ritos necessrios para controlar o anoitecer e o amanhecer. Mas, no caminho ainda, curiosos com os rudos que ouviam ser emitidos de dentro do coco, destamparam-no e, com isso, tudo se escureceu. Depois disso, um ndio com certos poderes fez de novo amanhecer, mas a volta cclica da noite ficou irreversvel. O que, realmente, essa narrativa simboliza? Sabemos que os povos indgenas no tomam a noite como castigo, ou como algo ruim. Assim, no se pode pensar que a histria fala de um castigo aos homens por sua curiosidade (diferente da histria bblica de Ado e Eva). Ao contrrio, parece falar da contribuio positiva que a humanidade pode ter na prpria feio do planeta (o que no quer dizer que a humanidade tambm possa ser e com freqncia bastante destrutiva). De todo modo, pelo menos uma forma de contar como a noite comeou a existir. O importante a atitude respeitosa que devemos ter com povos de tradies to antigas. Ao ouvir ou ler suas histrias, devemos lembrar de duas coisas: que j temos aprendido e herdado muita coisa deles, inclusive de suas narrativas; e que devemos ter humildade de reconhecer nossa dificuldade, muitas vezes, para compreender a profundidade de sua tradio oral. Bibliografia: CASCUDO, Luis da Cmara. Literatura oral no Brasil . Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: USP, 1984. __________ Contos tradicionais do Brasil . Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: USP, 1986. CLASTRES, Pierre. De que riem os ndios? In: P. Clastres. A sociedade contra o Estado . Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. p. 90-105. COLOMBRES, Adolfo. Palabra y artificio: las literaturas brbaras, foi publicada em A. Pizarro (org.). Amrica Latina: palavra, literatura e cultura. Vol 3 - Vanguarda e Modernidade . So Paulo: Memorial da Amrica Latina; Campinas: Editora da Unicamp, 1995. p. 127-167. GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder . So Paulo: Martins Fontes, 1985. FELDMAN, Carol. Metalinguagem oral. In: David R. Olson e 148

Nancy Torrance (orgs.). Cultura escrita e oralidade . Trad. Valter L. Siqueira. So Paulo: tica, 1997.

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Texto 3
CANTOS E RE-ENCANTOS: VOZES AFRICANAS E AFROBRASILEIRAS Andria Lisboa de Sousa 1 Ana Lcia Silva Souza 2
Os mitos so, realmente, as histrias sociais que curam. Isso porque nos so mais do que o desfecho moral que aprendemos associar, h muito tempo, s quadrinhas infantis e aos contos de fada. Lidos apropriadamente, os mitos nos deixam harmonizados com os eternos mistrios do ser, nos ajudam a lidar com as inevitveis transies da vida e fornecem modelos para o nosso relacionamento com as sociedades em que vivemos e para o relacionamento dessas sociedades com o mundo que partilhamos com todas as formas de vida (FORD, Clyde W. O heri com rosto africano. Mitos da frica, 1990).

O objetivo deste texto ressaltar a importncia dos contos, orais e escritos, africanos e afro-brasileiros, destacando-os como marcas das experincias humanas de um povo ao longo dos tempos. So narrativas com rosto africano. A histria e a memria de vrios povos africanos adentram e permanecem como parte de nossa cultura. Cultura essa materializada, em especial, na literatura oral expressa pelos mitos, lendas, provrbios, contos etc., ou, ainda, servindo como base da literatura escrita desta
Esse texto integra o boletim do programa Contos africanos da srie Conto e reconto: Literatura e (re)criao, abril, 2006.www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Doutoranda em Educao pela Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo (FEUSP). Mestre em Educao pela FEUSP. I ntegra a Associao Brasileira dos Pesquisadores Negros - ABPN. Fellow do Fundo Riochi Sasakaua/USP. Consultora na rea de Educao e Relaes tnico-Raciais. Atualmente, pesquisadora sobre cultura afro-brasileira em materiais didtico-pedaggicos e SubCoordenadora de Polticas Educacionais da CGDIE/SECAD/MEC. 2 Doutoranda em Lingstica Aplicada - Unicamp/IEL. Estuda as interfaces entre prticas de letramento, relaes raciais e juventude. I ntegra a Associao Brasileira dos Pesquisadores Negros - ABPN - SP. Organiza e assessora projetos relacionados leitura e dinamizao de acervos de literatura. Coordenadora do VI Concurso Negro e Educao pela Ao Educativa/ANPED.

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natureza. No Brasil, uma das matrizes que informam a tradio oral diz respeito s influncias dos africanos aqui escravizados que para c vieram, guardies e guardis responsveis por recriar a memria dos fatos e feitos de seus antepassados, ressignificando a vida nos novos lugares de morada. Foram tambm poetas, msicos, danarinos, estudiosos, mestres, conselheiros, denominados, de modo geral, como contadores de histrias. Trouxeram para c o significado da palavra na cultura africana o uso da palavra se constitui no dilogo, no argumento e no conselho, que se mostraram como prticas essenciais do dia-a-dia nas comunidades Para a cultura africana, as palavras tm um poder de ao, e ignorar aquilo que pronunciado e verdadeiro cometer uma falha grave, que pode ser comparada ao ato de tirar uma parte dos elementos essenciais do nosso corpo, o que nos faria perder a vida ou uma parte de ns. Recorremos a Amadou Hampt B, filsofo, escritor e intelectual africano, para exemplificar a relao entre a palavra, o conhecimento e o saber vivenciados na escola dos mestres da palavra :
Um mestre contador de histrias africano no se limitava a narr-las, mas podia tambm ensinar sobre numerosos outros assuntos (...) porque um conhecedor nunca era um especialista no sentido moderno da palavra mas, mais precisamente, uma espcie de generalista. O conhecimento no era compartimentado. O mesmo ancio (...) podia ter conhecimentos profundos sobre religio ou histria, como tambm cincias naturais ou humanas de todo tipo. Era um conhecimento (...) segundo a competncia de cada um, uma espcie de cincia da vida; vida, considerada aqui como uma unidade em que tudo interligado, interdependente e interativo; em que o material e o espiritual nunca esto dissociados. E o ensinamento nunca era sistemtico, mas deixado ao sabor das circunstncias, segundo os momentos favorveis ou a ateno do auditrio (B, 2003, p. 174-175).

Como aponta B, o poder da palavra garante e preserva ensinamentos, uma vez que possui uma energia vital, com capacidade criadora e transformadora do mundo. Energia que possui diferentes 154

denominaes para as diversas civilizaes, por exemplo, para os bantus essa energia hamba, j para o povo iorub a energia o ax . Tal a importncia da palavra na frica que existe um papel especfico desempenhado pelos profissionais da tradio oral os griots pessoas que tm o ofcio de guardar e ensinar a memria cultural na comunidade. Eles armazenam sculos e mais sculos de segredos, crenas, costumes, lendas e lies de vida, recorrendo memorizao. Existem tambm mulheres que exercem essas funes, conhecidas como griotes. Hampt B comenta sobre uma clebre cantora, Flateni, antiga griote do rei Aguibou Tall, cujos cantos arrancavam lgrimas at dos mais empedernidos (2003, p. 255). H ainda outras categorias de contadores de histrias na frica, como os Doma 3 , tidos como os mais nobres contadores, porque desempenham o papel de criar harmonia, de organizar o ambiente e as reunies da comunidade. Eles jamais podem usar a mentira, pois isso faria com que perdessem sua energia vital, provocando um desequilbrio no grupo ao qual pertencem (Caderno de Educao frica Il Aiy, 2001). A tradio oral pode ser vista como uma cacimba de ensinamentos, saberes que veiculam e auxiliam homens e mulheres, crianas, adultos/as velhos/as a se integrarem no tempo e no espao e nas tradies. Sem poder ser esquecida ou desconsiderada, a oralidade uma forma encarnada de registro, to complexa quanto a escrita, que se utiliza de gestos, da retrica, de improvisaes, de canes picas e lricas e de danas como modos de expresso. Mais uma vez recorrendo a B: A escrita uma coisa, e o saber, outra. A escrita a fotografia do saber, mas no o saber em si. O saber uma luz que existe no homem. a herana de tudo que nossos ancestrais puderam conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baob j existe em potencial em sua semente (Tierno Bokar, apud B, 2003, p. 175).
3 Conforme mencionado no Caderno de Educao frica Il Aiy (2001, p. 25) Os profissionais da tradio mais reconhecidos na frica tradicional e contempornea so os Griots e os Domas. Os Griot um nome de origem Bambar, para personagens africanos denominados contadores de histrias, que eles sabem de memria e acumulam, reunindo sculos e mais sculos de crenas, costumes, lendas, contos, lies de sabedoria. O Doma a categoria mais nobre de contadores de histria, aquele que tem o papel de criar harmonia, de colocar ordem em volta do ambiente, da audincia nas reunies da comunidade.

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interessante salientar que hoje ns temos a escrita como forma de apontamento de nossas memrias, mas que ela no a nica forma de registrarmos os conhecimentos, a oralidade serviu e serve para preservar a cultura africana no Brasil. Nas trilhas das histrias afro-brasileiras De acordo com Nelly Novaes Coelho, no temos mais os contadores descendentes dos narradores primordiais, isto , aqueles que no inventavam: contavam o que tinham ouvido e ou conhecido e que representavam a memria dos tempos a ser preservada pela palavra e transmitida de povo para povo ou de gerao para gerao (COELHO, 2000, p. 109). Contudo, podemos afirmar que a tradio de narrar mantm a sua fora. Como escreve Celso Sisto, O homem j nasce praticamente contando histrias. Est inserido numa histria que o antecede e com certeza ir suced-lo (SISTO, 2001, p. 91). Todos ns temos histrias para contar, imersos que estamos, ainda que por vezes sem perceber, no patrimnio cultural informado por mitos, lendas, provrbios, contos, canes, stiras de todas as matrizes. As narrativas orais expressam hbitos e valores cujo compartilhamento se d no ambiente familiar, religioso, comunitrio, escolar. Todo este patrimnio est no corpo e na mente das pessoas, onde quer que elas estejam. Essas histrias, que tambm esto nos livros, nos jornais, na rede informatizada, sugerem troca, intimidade e proximidade e, conforme Ford nos ajudam a lidar com as inevitveis transies da vida e fornecem modelos para o nosso relacionamento com as sociedades em que vivemos e para o relacionamento dessas sociedades com o mundo que partilhamos com todas as formas de vida (FORD, 1999, p. 9). As culturas africanas e afro-brasileiras preservam, tambm na escrita, narrativas que podem ser associadas ao que a crtica literria ocidental classifica como contos, lendas, fbulas, provrbios, canes, etc. fundamental compreender que a base de todas as histrias guarda reminiscncias na tradio oral. As narrativas literrias so textos estticos, ldicos, que 156

suscitam a criatividade, o imaginrio da/o leitora/or. Nesse tipo de texto predominou uma referncia a se seguir, em que as personagens brancas reinavam como padro de representao literria e, por muito tempo, esse modelo ocidental eurocntrico foi quase que exclusivo. Esse contexto vem sendo alterado pelas aes dos movimentos sociais negros, pelas influncias de novas vises e concepes de educao, alm dos dispositivos legais que atualmente orientam os currculos das escolas. H, atualmente, vrios livros publicados que se propem a desvendar o universo de algumas culturas africanas e da afrobrasileira. S para citar alguns temos: Bichos da frica, Volumes I, II, III e IV, Contos ao redor da fogueira e Histrias africanas para contar e recontar , de Rogrio Barbosa; Que mundo Maravilhoso , de Julius Lester; Bruna e a galinha dAngola , de Gercilga de Almeida; A cor da vida , de Semramis Paterno; Tanto, Tanto , de Trish Cooke; Chica da Silva , de Lia Vieira e As tranas de Bintou, de Sylviane Diouf. Existem outros dentro do mercado editorial, o qual tem se interessado pelo tema, apresentando novas opes. Encontramos tambm livros que retomam traos e smbolos da cultura negra, tais como: a capoeira, a dana, os mecanismos de resistncia diante das discriminaes e outros que fazem aluso direta s religies de matriz africana ou que remetem s divindades afro-brasileiras: Pai Ado era Nag , de Inaldete Andrade; Rainha Quiximbi; O presente de Ossanha; Gosto de frica e Dudu Calunga , de Joel Rufino; Na terra dos Orixs , de Ganymedes Jos; Lenda dos orixs para crianas , de Maurcio Pestana; If, o adivinho , Xang, o rei do trovo , Os prncipes do destino : histrias da mitologia afro-brasileira , de Reginaldo Prandi. Jlio Emilio Braz, por exemplo, nos estimula a imergir no universo de algumas lendas africanas, a fim de aguar nossa curiosidade, durante a leitura. Afinal, indaga ele:
Quantas histrias sobre os tuaregues, o lendrio povo nmade do norte da frica, j ouviram? Qualquer um deles conhece a histria de reinos to poderosos quanto desconhecidos como de Ghana e Achanti? E sobre um imprio Mali? O que ouviram? Songai? Kanem-bornu? Bambara? Pouco ou nada se falou sobre a frica para os jovens de hoje, afrodescendentes ou no. E quando se falou, buscou-se mais a discusso sobre as religies ou o

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folclore, quando no o esteretipo. Para muitos a frica ainda um mistrio ou, pior ainda, quando aparece nos noticirios, como palco de terrveis guerras civis, epidemias pavorosas ou de pases muito prximos de barbrie, onde a civilizao parece no existir (BRAZ, 2002, p. 4-5).

Ao ampliar nossos conhecimentos, bem como desenvolver com os alunos e alunas projetos e aulas significativos, perceberemos que o universo afro-brasileiro mltiplo e que existem vrias fricas que informam nossa cultura. Nas palavras de Braz:
Na verdade, no existe apenas uma frica, mas incontveis, ricas em histrias e tradies. Do norte islamizado at o sul dividido em incontveis crenas e religies, muitas delas fruto dos anos de colonizao europia, passando por uma surpreendente diversidade ecolgica e geogrfica que vai dos desertos escaldantes como o Saara e o Kalahari s maravilhas florestais como Okavango e s extensas savanas em pases como o Qunia (BRAZ, 2001, p. 4).

Ainda como nos alerta o autor, importante estarmos atentos e re -vermos o quanto a cultura africana impregnou-se na cultura brasileira:
A riqueza tnica impressionante, responsvel por uma herana cultural e artstica e precisamos conhec-la, uma vez que ainda a conhecemos pouco, apesar de a frica ter uma influncia decisiva nos hbitos e nos costumes mesmo daqueles brasileiros que no so afrodescendentes (BRAZ, 2001, p. 4 e 5).

Tecendo os pontos para contar os contos O aqui e agora dos espaos das narrativas, com seus personagens intrigantes, enredos carregados de metforas e desfechos surpreendentes, falam de valores importantes para descortinar as mltiplas dimenses da vida na sociedade atual. Conhecer este universo significa poder contribuir, em sentido amplo, para a promoo da igualdade das relaes tnico-raciais na escola e fora 158

dela.

Talvez uma das maiores riquezas do trabalho com os contos seja o exerccio da busca coletiva, da pesquisa, das trocas e das descobertas. Os contos, sejam eles orais ou escritos, esto por toda a parte para serem recolhidos e oferecidos para nosso deleite, num tecido potico bordado de smbolos e ensinamentos. Para Clarissa Estes, nas histrias esto incrustadas orientaes que nos guiam a respeito da complexidade da vida. Elas se apresentam, muitas vezes, como ingredientes medicinais, que aliviam, que curam:
As histrias so blsamos medicinais. (...). Elas tm uma fora! No exigem que se faa nada, que se seja nada, que se aja de nenhum modo basta que prestemos ateno. A cura para qualquer dano ou para resgatar algum impulso psquico perdido nas histrias. Elas suscitam interesse, tristeza, perguntas, anseios e compreenses que fazem aflorar [imagens do nosso inconsciente](...). No entanto, (...) em cada fragmento de histria est a estrutura do todo (ESTES, 1999, p. 30).

Comear a busca em nosso acervo de memria pode ser significativo, considerando que estes conhecimentos, de alguma maneira, fazem parte de nossa formao identitria. Quais contos j ouvimos ou lemos? Quando foi? Quem nos apresentou as narrativas? Quais foram os sentimentos e emoes mobilizados? Este pode ser um primeiro passo. Olhar para ns e para nossa histria de vida, para saber que lugar ocupam os contos, os mitos, os provrbios, e nos prepararmos para, no ambiente escolar, lanar mo de aes simples e organizadas e contribuir para as artes de falar e de escutar, destacando as fundamentais para a convivncia e o exerccio da cidadania na atual sociedade. Como destaca Rogrio Barbosa sobre a arte de contar histrias:
Seja bem-vindo ao mundo da literatura oral. (...) No se limite apenas a ler ou a ouvir. Vibre intensamente com as histrias como se fizesse parte da atenta platia. Aprecie os contos que explicam a origem do comportamento de determinados habitantes da

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floresta. Depois, leia as histrias em voz alta e tente reproduzir o andar e os dilogos travados pelos incrveis personagens. Afinal, as histrias, principalmente na frica, foram feitas para serem contadas e recontadas. (...) Uma das tradies africanas so os contos etiolgicos, que procuram explicar as origens das coisas e o comportamento de determinados animais. Histrias africanas para contar e recontar surgiu de uma seleo e adaptao desses contos... (BARBOSA, 2004 introduo e biografia).

Ampliando horizontes: o ofcio de fazer A seguir, apontamos algumas possibilidades. com a mo na massa que podemos pensar as nossas posturas investigativas, repensar atividades escolares como espaos de um dilogo emocionado: Convidar nossos/as colegas professores para o exerccio de rememorar as narrativas que fazem parte das histrias pessoais, o que pode ser bastante instigante. Trabalhar em grupo, nas reunies pedaggicas, tambm excelente oportunidade para analisar o projeto poltico- pedaggico da escola, verificando quais so os compromissos firmados no sentido de conhecer a histria, valorizar a memria e a herana cultural dos diferentes povos. Quais so as atividades e projetos que a escola, ou parte dela, j realiza ou realizou? Como tm sido desenvolvidas e divulgadas? Incentivar a prtica da pesquisa junto aos alunos e alunas. Discuta e elabore com eles a coleta de depoimento oral de pessoas da famlia ou da comunidade. O que importa neste momento valorizar as histrias e investir na construo de um mapa cultural e social, que pode ajudar na construo de uma rede de sociabilidade, fortalecendo a auto-estima dos envolvidos neste processo. importante tambm pensar na sistematizao e comunicao do material coletado; Dinamizar as reunies de responsveis, pais e mes, fazendo tambm desta oportunidade um espao de valorizao de saberes, de trocas e descobertas, por meio da coleta e ressignificao das memrias dos contos. As reunies tambm so boas oportunidade para que as pessoas presentes 160

conheam os projetos que esto sendo desenvolvidos na escola e tenham contato com os livros e outros materiais trabalhados no espao escolar; Realizar buscas na internet, para conhecer sites de pases africanos e conhecer contos que esto disponveis na rede, tais como: www.navedapalavra.com.br/ www.docedeletra. com.br; www.casadasfricas.com.br; www.mundonegro.com.br; www.mestredidi.org ; www.portalafro.com.br . Buscar outras fontes, tais como filmes, um deles Kiriku e a feiticeira , narrativa africana encantadora traduzida para a linguagem flmica. Acessar sries educativas, como os programas de vdeo do projeto A Cor da Cultura 4 (www. acordacultura.org.br ), a srie Repertrios Afro-Brasileiros , veiculada pela TV Escola/Programa Salto para o Futuro, em 2004, dentre outras (www.tvebrasil.com.br/salto) . Conhecer as experincias de professores, voltadas para a promoo da igualdade racial/tnica no ambiente escolar, as quais foram selecionadas e divulgadas pelo Prmio Educar para a Igualdade Racial do CEERT (www.ceert.org.br ). Visitar, em feiras e congressos, os estandes de editoras e ONGs, buscando materiais especificamente relacionados temtica. O mercado editorial tem investido na produo de materiais sobre diversidade. So dezenas de livros que, analisados com critrios, enriquecem o trabalho; Estabelecer contato com grupos do movimento social negro e outras entidades para conjuntamente organizar eventos atividades, cursos, palestras que valorizem a cultura e a histria africana e afro-brasileira e sejam incorporados ao projeto poltico-pedaggico e ao currculo da escola. Mantendo a tradio africana, de trabalhar coletivamente,
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A Cor da Cultura um projeto educativo de valorizao da cultura afro-brasileira, realizado por uma parceria entre o Canal Futura, a Petrobras, o Cidan Centro de Informao e Documentao do Artista Negro, a TV Globo, MEC/ e a Seppir Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial.

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mostra-se fundamental pensar com a comunidade escolar outras possibilidades de tessitura de relaes com compromisso. Desta forma, salientamos que o trabalho com os contos interdisciplinar e pode tomar um dos lugares centrais no projeto poltico-pedaggico e nos currculos das escolas, de forma a disseminar e valorizar o uso da palavra oral, como uma das mais importantes modalidades da linguagem. Afinal, somos contadores e contadoras de histrias. O ato de contar, de ouvir histrias parece ainda manter um sentido universal que reside na sustentao do espao de sociabilidade. Contar histria trocar, compartilhar vivncias e saberes. Trata-se de escutar a voz do outro que, ao contar, exerce O direito de ler em voz alta , como aponta Pennac em Direitos Imprescritveis do Leitor 5 . A possibilidade de escolher determinada histria nos permite ocupar o lugar de um griot e o prprio poder de usar a fala pode ser tomado como um espao de auto-afirmao. Trata-se de escutar a voz do outro. E quem escuta aprende a respeitar e deleitar-se na voz da outra pessoa. Continuando a conversa: libertando vozes Quando nos referimos cultura afro-brasileira, sempre fazemos uso dos incontveis conhecimentos e saberes trazidos por outros povos e pelos africanos escravizados em suas estratgias de resistncia e construo de suas identidades o canto, as rezas, os gestos corporais, o som dos instrumentos, os usos da palavra cantada ou versada. Todos esses elementos se entrelaam e comunicam e nos comunicam algo sobre nosso territrio, nossa cultura, nossa lngua, enfim, nossa histria. Podemos ser os novos guardies e guardis, responsveis por construir novas histrias, re- criar enredos ticos e dignos, valorizar culturas e sermos portadores das vozes esquecidas de um passado mais longnquo (dos mitos, dos ancestrais), assim como de um passado mais prximo, de sculos de ocultamento da histria da frica como matriz da trajetria da humanidade. Basta abrir as portas e deixar as histrias aflorarem:
5 Daniel Pennac, no livro Como um romance (p. 139), aponta os 10 direitos imprescritveis do leitor: O direito de no ler; de pular pginas, de no terminar de ler um livro; de reler; de ler qualquer coisa; ao bovarismo (doena textualmente transmissvel); o direito de ler em qualquer lugar, de ler uma frase aqui e outra ali, de ler em voz alta, de calar.

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Espero que vocs saiam e deixem que as histrias lhes aconteam, que vocs as elaborem, que as reguem com seu sangue, suas lgrimas e seu riso at que elas floresam, at que voc mesma esteja em flor. Ento, voc ser capaz de ver os blsamos que elas criam, bem como onde e quando aplic-los. essa a misso. A nica misso (ESTES, 1999, p. 570).

A misso do poder da palavra est conosco. Basta sabermos us-la, como os sbios contadores de outrora, e mergulharmos nos mistrios desconhecidos, que nos revelam como lidar com os conflitos, com as mudanas, com as diferenas, com a convivncia em sociedade nas singularidades das formas de ser e viver. Novos conceitos so construdos por meio da disseminao de outras idias e concepes, capazes de promover e sustentar comportamentos favorveis convivncia e ao respeito, igualdade nas relaes entre crianas e jovens, homens e mulheres para alm do aspecto jurdico, constitudo pelo princpio de que todos os homens so iguais perante a lei. Fica o convite ao compromisso para desfiar a trama cultural, nos seus mltiplos sentidos e tessituras, recuperar, produzir histrias e na prpria voz dos sujeitos buscar formas de alterar as condies atuais, contar ou retomar outras novas histrias, coletivamente, como rezam as tradies das fricas. As leis contam e aumentam pontos Atualmente, a cultura africana e afro-brasileira est na agenda educacional de nosso Pas. importante ressaltar que o movimento social negro brasileiro inclumos tambm o movimento de mulheres negras nas ltimas dcadas do sculo XX e incio do XXI tem desempenhado papel preponderante nessa tendncia de valorizao da cultura negra, por meio de suas denncias e reivindicaes. Todo esse contexto permite, gradativamente, vislumbrar livros de Literatura Infanto-Juvenil com novas propostas (Lisboa de Sousa, 2005). Vale chamar a ateno em relao alterao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de n. 9.394/96 (LDBEN), trazida pela Lei Federal de n. 10.639/03, que torna obrigatrio o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira no currculo oficial de 163

Ensino e da regulamentao da Lei 10.639/03 pelo Parecer CNE/CP 003/2004 e pela Resoluo CNE/CP 1/2004, que dispem sobre as Diretrizes Curriculares para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana. De acordo com o Parecer, fundamental a:
Edio de livros e de materiais didticos, para diferentes nveis e modalidades de ensino, que atendam ao disposto neste parecer, em cumprimento ao disposto no Art. 26A da LDB, e, para tanto, abordem a pluralidade cultural e a diversidade tnico-racial da nao brasileira, corrijam distores e equvocos em obras j publicadas sobre a histria, a cultura, a identidade dos afrodescendentes, sob o incentivo e superviso dos programas de difuso de livros educacionais do MEC Programa Nacional do Livro Didtico e Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE).

A Resoluo retoma esse assunto quando informa no Art. 7 que Os sistemas de ensino orientaro e supervisionaro a elaborao e edio de livros e outros materiais didticos, em atendimento ao disposto no Parecer CNE/CP 003/2004. Esses dispositivos legais so fundamentais para as mudanas atuais na histria da educao no pas, pois contribuem para que educadores, gestores, editores, leitores etc., possam redimensionar as prticas de leitura e a concepo de livros de literatura. Em 2005, a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD), por intermdio da Coordenao Geral de Diversidade e Incluso Educacional, enviou ofcios para vrias editoras, informando sobre os dispositivos legais acima citados, com o intuito de que as editoras inscrevessem livros sobre o tema no Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE). As Diretrizes do referido Programa apontavam o tema da diversidade como enfoque. O resultado foi positivo, na medida em que livros importantes sobre o tema foram selecionados em 2005, aos quais os/as educadores/as e estudantes tero acesso via PNBE. Por um lado, algumas Secretarias de Educao organizaram materiais especficos para contemplar a cultura afro-brasileira. guisa de exemplo, temos a Bibliografia Afro-Brasileira na Rede 164

Municipal de So Paulo /SP, distribuda em 2003; o Kit de Literatura Afro-Brasileira , da Secretaria Municipal de Educao de Belo Horizonte/MG, distribudo em 2004; O material orientador sobre relaes raciais e cultura afrobrasileira da Secretaria Municipal de Educao de Salvador/BA e o material de formao de professores da Secretaria Estadual de Educao do Mato Grosso do Sul. As leis esto saindo fora do papel e ganhando corpo, uma vez que educadores de Norte a Sul do Brasil, cada vez mais, realizam diversas atividades em sala de aula. E ao apresentarem, lerem, interpretarem, narrarem contos, aumentam pontos. Da mesma forma, ao partilharem conhecimentos, valorizam e estimulam o respeito diversidade. Salientamos que tais aes precisam integrar os currculos das escolas e serem incorporadas ao cotidiano escolar. BIBLIOGRAFIA: B, Amadou Hampt. Amkoullel, o menino fula. So Paulo: Palas Athena e Casa das fricas, 2003. BARRY, Boubacar. Sengmbia: o desafio da histria regional. Rio de Janeiro: Sephis Centro de Estudos Afro-asiticos, 2000. Caderno de Educao do Il Aiy. frica Ventre Frtil do Mundo. Salvador, nmero IX,, 2001. Site: www.ileayie.com.br BRAZ, Jlio E. Lendas Negras. So Paulo: FTD, 2001. CASCUDO, Lus da Cmara. Made in frica . So Paulo: Global, 2002. COELHO, Nelly Novaes . Dicionrio Crtico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira. So Paulo: Quron, 2 ed., 1984. __________. COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria anlise, didtica. So Paulo, Moderna, 2000. ESTES, Clarissa P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histrias do arqutipo da mulher selvagem . Rio de Janeiro: Rocco, 1999. FORD, Clyde W. O Heri com Rosto Africano. Mitos da frica. S o Paulo; Selo Negro (Summus), 1999. LAJOLO, Marisa. Lendo e escrevendo Lobato. In: Lopes, Eliana M. Teixeira [et. al.] (org.). Negros e Negras em Monteiro Lobato . Belo Horizonte: Autntica, 1999. LISBOA DE SOUSA, Andria. Personagens Negros na Literatura 165

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Texto 4 AVENTURA PARTILHADA Francisco Marques (Chico dos Bonecos) 1 Narrar um ato inventivo, seja para contar o acontecido ou apalavrar o imaginado. E toda a sua inveno reside no detalhe: evidenciar uma palavra, iluminar uma pausa, desdobrar um gesto, incorporar a participao dos ouvintes, buscar um tom de voz, encaixar um comentrio, introduzir uma personagem, arquear as sobrancelhas... Desenrolar o enredo e enredar as palavras so as duas pginas da mesma folha. O ouvinte no se envolve apenas com o rumo dos acontecimentos, mas tambm com o rumor das palavras. Muitas vezes, num ambiente familiar, relembramos uma anedota e pedimos para que uma certa pessoa narre o conto humorstico. Esta certa pessoa escolhida, porque j demonstrou, em outras ocasies, a sua capacidade inventiva no ato narrativo. E todos revisitam a velha anedota e todos reencontram a sempre nova alegria do pensamento sutil e do trocadilho surpreendente. Que tal exercitar a nossa arte narrativa atravs deste miniconto do tempo da zagalha de gancho?
Dois amigos esto conversando na beira da estrada: ... As coisas melhorando ficam boas. Em compensao, piorando, ficam ruins. De repente, os dois avistam l longe, bem longe, na curva da longa estrada, uma pessoa se aproximando. Olha l! Est vendo? o Rei! Estou vendo, sim... Mas... o Ramos! o Rei! o Ramos! o Rei! O Ramos! Esse texto integra o boletim do programa Contadores de histrias da srie A palavra reinventada: seus usos na educao. setembro, 2005. www.tvebrasil.com. br/salto/ 1 Francisco Marques, o Chico dos Bonecos, formado em Letras pela UFMG, poeta, contista e desenrolador de brincadeiras. Desenvolve oficinas para educadores, abordando brinquedos e palavras. Autor de Afuganchos (Paulinas) Galeio. Antologia potica para crianas (Peirpolis).

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recolhida por Beatriz Al-Chediack Kauark Kruschewsky.)

Os dois ficaram assim por um bom tempo... O tal andarilho, ento, passou por eles e cumprimentou: Bom dia! Boa tarde! Boa noite! Os dois amigos, claro, no acertaram nos palpites. E continuaram conversando: ... Errei. No. Erramos. (Adaptao de uma anedota

No d vontade de contar esta histria para os amigos? Para colocar em prtica esta vontade, vamos aos preparativos... Em primeiro lugar, memorizar o enredo, o encadeamento dos fatos o que no significa, necessariamente, memorizar o conto da maneira como est escrito. Em segundo lugar, escolher as palavras que recebero entonaes especiais e, ainda, encaixar pausas para que os ouvintes possam construir suas imagens. Em terceiro lugar, mergulhar na experincia da narrao, porque no dilogo com os ouvintes que a narrativa ganha o seu desenho mais eficiente e expressivo. As nossas relaes cotidianas transbordam de oralidades: da notcia ao provrbio, da adivinha cano, da piada ao verso, da metfora parbola. Vamos observar, por exemplo, este provrbio: gua mole em pedra dura tanto bate te que fura. Este provrbio traz uma mensagem: persistncia, coragem, obstinao. A sua fora, entretanto, no vem da simples decodificao desta mensagem ela nasce do movimento das guas que se expressa no ritmo dos versos, do rigor da pedra que se expressa na solidez da rima, do mistrio da vida que se expressa no dinamismo das imagens. A sua fora, portanto, nasce de um conjunto requintado de recursos literrios. O trocadilho desperta as atenes, desconcerta as previses. Por exemplo: Vamos relembrar o que ficou combinado da vez passada marimbondo cozido. Vez passada se transforma em vespa assada e da para marimbondo cozido basta um pulo. 172

As adivinhas so fontes generosas de criao de imagens: Somos todos irmos morando na mesma rua. Se um errar a casa, todos erram a sua. Os botes da camisa quem diria? receberam uma cenografia toda especial. Muitas vezes, as adivinhas brincam com as palavras: Qual o objeto cortante que vira animal de trs pra diante? A resposta est escondida na pergunta. Basta ler a palavra animal de trs pra diante. Uma resposta cortante! Algumas vezes, as adivinhas brincam com o ato da leitura e da escrita: Campo grande, gado mido. Se o boiadeiro for bom, abia tudo. O campo grande a pgina. O gado mido a palavra. O boiadeiro o leitor. Abia tudo: o boiadeiro rene as palavras e conduz a sua leitura. O verbo aboiar nasceu do aboio, aquele canto que os vaqueiros entoam para reunir e conduzir o gado: boi. ...... Trs bois numa carreta cavando terra branca pra plantar semente preta. Os trs bois so os dedos polegar, indicador e mdio. A carreta a mo. A terra branca a pgina. A semente preta a palavra. O desafio dos trava-lnguas precisa ser enfrentado em alto e bom som: 173

T na cara que a taquara de Itaguara quase quebra a taquara de Itaquera. As lnguas secretas so sedutoramente comunicativas... A mais conhecida , sem sombra de dvida, a Lngua do P. Vamos traduzir? Vopcep p muipuitop bopnipitap. O que aconteceu? Dividimos a palavra em slabas e casamos a consoante p com a vogal daquela slaba. Traduo: Voc muito bonita. Complicado? Pois uma criana de quatro anos j aprende a falar nesta lngua secretssima. Certa vez, uma professora contou a seguinte histria: A minha me costumava conversar com a minha tia na lngua do p, para tratar de assuntos que no julgava conveniente aos ouvidos de uma pobre criana... E qual no foi o desespero da minha me quando descobriu que eu j estava entendendo tudo! E sem ningum me explicar neca-de-pitibiriba. Fui montando um verdadeiro quebra-cabea sonoro. Fui descobrindo, por exemplo, que no meio daquele bopnipitap estava escondida a palavra bonita. Fui descobrindo que existia um jeito de quebrar a palavra para encaixar aquele festival de ps. Observem esta variao da secretssima lngua: Pevpec pe pemuipet pebpenipet. Concluso: encaixamos a slaba pe antes de cada slaba. Agora, a pergunta fatal: qual a forma mais simples, aquela ou esta? Fatalmente, ns, adultos, costumamos responder que esta forma a mais simples, porque basta repetir a slaba pe antes de cada slaba da palavra original. Na nossa maneira de pensar, adulta, em linha reta, analtica, tudo mais simples quando conseguimos estabelecer uma regra mais simples... As crianas, entretanto, costumam preferir aquela forma 174

apqueplap forpormap. A criana pensa de maneira rtmica, pulsante, corporal. Do ponto de vista musical, aquela forma muito mais saborosa, pois, ao provocar rimas internas, torna as palavras mais desafiantes e engraadas. Alguns malabarismos verbais provocam a mesma seduo... Tios e avs costumavam brincar com os nossos nomes: - Raquel Gudel de Gurrunfel de Maracutel Xiringabutel. - Fernanda Gudanda de Gurrunfanda de Maracutanda Xiringabutanda. - Mnica Gudnica de Gurrunfnica de Maracutnica Xiringabutnica. Complicado? Pois uma criana de quatro anos aprende a se equilibrar no fio da palavra... Ns, adultos, com o nosso pensamento analtico, queremos entender o que est acontecendo letra por letra e a a tarefa se torna insuportvel. A criana, com o seu pensamento musical, pesca a rima do nome e encaixa naqueles sons escalafobticos e a a tarefa s ritmo e comunicabilidade. A engenharia lingstica envolvida nestes jogos de palavras monumental. Ao brincar com todos estes malabarismos verbais, a criana vai se apropriando da estrutura das palavras, da arquitetura da lngua. O conceito abstrato de diviso silbica, por exemplo, j ganhou concretude na Lngua do P. At a distino entre ditongo e hiato j foi experimentada pois a criana no fala mupuipitop, mas sim muipuitop. Tambm as irms oxtona, paroxtona e proparoxtona j fazem parte das nossas exploraes para Raquel Gudel pesquei a rima el, para Fernanda Gudanda pesquei a rima anda, para Mnica Gudnica pesquei a rima nica. Assim narramos e crescemos: afirmando o que temos de mais pessoal e contemporneo e acolhendo os saberes e sabores planetrios e milenares. Para ns, educadores, esta perspectiva da oralidade est no eixo da nossa filosofia educacional e deveria, portanto, permear todo o nosso trabalho pedaggico. Entretanto, observamos, pelos quatro cantos do Brasil, uma tendncia em restringir a ldica oralidade s crianas pequenas, cavando um abismo entre Educao Infantil e Ensino Fundamental. Com isto, perdemos todos ns, educadores e educandos. Ns, educadores, perdemos, porque no conseguimos atingir e mobilizar as crianas e os adolescentes. Os educandos, crianas e adolescentes, perdem, 175

porque no encontram interlocutores na escola, no encontram cumplicidade nos educadores. Assim, o leitor talvez reconhecer o discurso de uma pedagogia potica que deve ser lida como se l um poema ou um conto, quer dizer, como algo prprio para provocar o desejo de criar territrios nunca vistos, nos quais as crianas e os adultos sejam cmplices das mesmas aventuras partilhadas. Georges Bataille disse que a poesia leva do conhecido ao desconhecido. E no esta a essncia de toda a pedagogia que se nega a ser somente reproduo? (Georges, Jean. Da obra Los senderos de la imaginacin infantil Los cuentos. Los poemas. La realidad. ) Para crianas e adolescentes, narrar, poetizar, cantar, jogar com as palavras tudo isso um sedutor exerccio de investigao e experimentao. E onde existem investigao e experimentao, sabemos ns, educadores, a est o terreno para a construo do conhecimento. Aqui est, portanto, a nossa aventura partilhada. Bibliografia: JEAN, Georges. Los senderos de la imaginacin infantil - Los cuentos. Los poemas. La realidad. Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1990. KRUSCHEWSKY, Beatriz Al-Chediack Kauark. Colcha de Retalhos. Rio de Janeiro, Enelivros, 1980. TAHAN, Malba. A arte de ler e contar histrias . Rio de Janeiro, Conquista, 1966. LIMA, Francisco Assis de Sousa. Conto popular e comunidade narrativa. Rio de Janeiro, FUNARTE/INL, 1985. MICHELET, Andr. O Mestre e o Jogo . Traduo: Maria ngela Barbato Carneiro. So Paulo, Revista da Associao Brasileira de Psicopedagogia 17. MACHADO, Regina. Acordais: fundamentos terico-poticos da 176

arte de contar histrias. So Paulo, DCL, 2004. SANTANNA, Romildo. A moda viola: ensaio do cantar caipira. Marlia, SP, UNIMAR, 2000. MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem do serto cearense. Stima Edio. Fortaleza, ABC Editora, 2002. ABREU, Mrcia. Histrias de cordis e folhetos. Campinas, Mercado de Letras, 1999. MARQUES, Francisco (Chico dos Bonecos). Muitos dedos: enredos (Um rio e palavras desgua num mar de brinquedos). So Paulo, Peirpolis, 2005. _______________. Galeio. Antologia potica para crianas e adultos. So Paulo, Peirpolis, 2004. ANDRADE, Cyrce e Marques, Francisco. Brinquedos e brincadeiras: o fio da infncia na trama do conhecimento. In: NICOLAU, Marieta Lcia Machado e DIAS, Marina Clia Moraes. Oficinas de sonho e realidade na formao do educador da infncia. 2 a edio. Campinas, Papirus, 2003.

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Texto 5 CONTO POPULAR, LITERATURA E FORMAO DE LEITORES Ricardo Azevedo 1 Parte considervel dos contos populares parece ser originria de mitos arcaicos. Os mitos so, em princpio, narrativas sagradas, relatando fatos que teriam ocorrido num tempo ou mundo anterior ao nosso e que, em geral, tentam explicar a origem e a existncia das coisas: como e porque surgiram o mundo, os homens, os costumes, as leis, os animais, os vegetais, os fenmenos da natureza etc 2. Em outras palavras, atravs de histrias, as culturas criaram (e criam) mitos com o objetivo de tornar compreensveis e interpretveis a existncia humana e tudo o que existe. Vejamos trechos de dois relatos mticos recolhidos pelo antroplogo Claude Lvi-Strauss em sua passagem pelo Brasil, na dcada de 40. Ambos tentam explicar porque o pssaro Engole-vento como . O primeiro corresponde a um mito guarani:
Uma filha de chefe e um rapaz se apaixonaram, mas os pais da jovem no aprovavam a unio da filha (...). Um dia, a moa desapareceu. Descobriu-se que tinha fugido para as colinas refugiando-se entre animais e pssaros. Enviaram embaixadas e mais embaixadas at ela, para convenc-la a voltar, mas em vo: o desgosto a tinha tornado surda e insensvel. Um feiticeiro declarou que s um grande choque poderia tir-la daquela letargia. Anunciou-se ento Esse texto integra o boletim do programa Conto popular, literatura e formao de leitores da srie Conto e reconto: Literatura e (re)criao, abril, 2006. www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Escritor e desenhista, doutor em Letras pela Universidade de So Paulo, autor de Lcio vira bicho , Cia. das Letras, Contos de espanto e alumbramento , Scipione e A hora do cachorro louco, tica, entre outros. 2 O assunto ultrapassa os limites desse artigo. H, naturalmente, mitos modernos e contemporneos. O termo costuma ser utilizado de forma imprecisa, seja meramente como relatos fantsticos ou seres fabulosos seja como crenas inverdicas ou mesmo simples mentiras. A noo de mito bem mais complexa que isso. Para mais informaes c.f. por exemplo ELIADE, Mircea. Mito e realidade . Trad. Pola Civelli. So Paulo, Perspectiva, 1972.

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herona a falsa morte de seu amado. Ela deu um pulo e desapareceu, transformada em Engole-vento. (LVI-STRAUSS, 1986, p. 55)

Sobre o mesmo pssaro, cujo canto muito triste, o ilustre pesquisador apresentou o mito karaj. Eis um trecho:
(...) certa noite, a mais velha entre duas irms, admirando a beleza da estrela vespertina, desejou-a. No dia seguinte, a estrela entrou em sua casa sob a forma de um velho curvado, enrugado e de cabelos brancos, e declarou estar disposto a se casar com ela. A mulher, horrorizada, rejeitou-o. Sua irm mais nova ficou com pena e aceitou o velho como marido. No dia seguinte, descobriram que aquele corpo no passava de um invlucro, sob o qual havia um belo rapaz, ricamente paramentado, que sabia fazer crescer as plantas alimentares que os ndios ainda no conheciam. A mais velha sentiu cime da irm por sua sorte, e sentiu vergonha de sua prpria estupidez. Transformou-se ento no Engole-vento, de grito desconsolado. (Idem, ibidem, p. 58.)

Como se v, a associao entre narrativas mticas e contos populares pode ser bastante ntida. Ressalto que o que chamo aqui de conto popular sinnimo de conto de fadas, conto maravilhoso ou conto de encantamento, narrativas que no Nordeste brasileiro tambm so conhecidas como histrias de Trancoso. Em grandes linhas, possvel colocar a questo nos seguintes termos: acredita-se que muitas narrativas mticas, oriundas das mais diversas culturas, teriam sofrido um processo de dessacralizao, ou seja, com o passar do tempo, deixaram de ser interpretadas com f religiosa. Algumas delas, por serem muito bonitas, continuaram a ser contadas e, de boca em boca, sofrendo naturalmente todo tipo de alterao e influncia quem conta um conto aumenta um ponto transformaram-se no que conhecemos hoje como contos populares. Esses contos, bom lembrar, so tpicas expresses de culturas orais (sem escrita), ou seja, culturas que no contam com recursos para fixar informaes. De narrador em narrador, guardados, atravs dos sculos, na plasticidade da memria e da voz, viajaram para todos os lados sendo disseminados pela transmisso boca a boca. Nesse processo, sofreram todo tipo de modificao: fuses, acrscimos, 180

cortes, substituies e influncias. Em tese, numa simplificao, de um mesmo mito (narrativa sagrada arcaica) europeu, por exemplo, podem ter surgido infindveis e variadas histrias, marcadas pelas diversas culturas por onde passaram e recriadas por um sem nmero de contadores (cada um com seu estilo). Eis porque os contos populares so to ricos, multifacetados e complexos e tambm porque costuma ser perda de tempo pretender identificar sua verdadeira origem. O tema amplo. Para abord-lo no curto espao desse texto, ser preciso dividi-lo em tpicos. O primeiro deles diz respeito a algumas caractersticas, entre outras, dos contos populares: 1) So sempre assumidamente de fico, ou seja, no pretendem ter acontecido de fato (ao contrrio, por exemplo, do causo ou da lenda); 2) Trazem, muitas vezes, a possibilidade do elemento maravilhoso: a existncia de foras desconhecidas, feitios, monstros, encantos, instrumentos mgicos, vozes do alm, viagens extraordinrias e amigos ou inimigos sobrenaturais; 3) No costumam ocorrer num tempo determinado (ou histrico), mas como os mitos num passado ou numa dimenso anteriores e desconhecidos. Note-se que seu desenvolvimento acontece certa vez, h muito tempo..., no tempo em que os animais falavam, h milhares de anos quando nada existia do que hoje existe etc.; 4) Com suas personagens acontece algo semelhante. Por vezes, nem nome tm: so o pai e seus trs filhos, o mais velho, o do meio e o caula, ou a bela adormecida no bosque, ou certo rei muito poderoso pai de uma princesa mais linda do que as flores do campo e, por ltimo, 5) Neles, em geral, a passagem do tempo inexiste. O heri despede-se do pai, viaja pelo mundo, enfrenta perigos e um sem nmero de aventuras, desobedece uma recomendao, castigado, foge, liberta a princesa das garras do monstro, retorna, trado, luta, vence, casa-se com ela e em termos temporais, aparentemente, nada mudou. Crianas, jovens e velhos comeam e terminam a histria mantendo, em geral, suas respectivas idades. No so poucas as excees, mas que surgem para confirmar a recorrncia dos pontos alinhavados acima de forma esquemtica. Um segundo tpico merece ser destacado. Na maioria das vezes, os contos populares, ou de encantamento, no obedecem a uma moral de princpios. Em tese, a moral corresponde a um conjunto 181

de normas de comportamento destinadas a regular as relaes entre os indivduos 5. Estamos acostumados e condicionados a pensar na moral como um acervo de princpios abstratos, gerais e universais de comportamento que deve ser respeitado por todos, seja qual for a situao: no mentir, no roubar, no matar, valorizar a busca da justia, da imparcialidade, da impessoalidade, da isonomia, da iseno e da neutralidade. Pois bem, a moral dos contos de encantamento, chamada por alguns de moral ingnua, costuma seguir outros paradigmas. Segundo ela, tudo o que favorece o heri o Bem e tudo o que prejudica o heri o Mal. Trata-se, em outras palavras, de uma moral relativa, flexvel e pragmtica, ligada no a princpios abstratos e universais, mas a atuaes e situaes concretas do aquiagora. ela que, por exemplo, pode fazer com que certa me diga: Meu filho cometeu um crime, mas errar humano. Nossa Senhora da Penha vai perdo-lo e fazer com que a polcia jamais o encontre. Note-se que, de acordo com a moral ingnua , errar costuma ser bem mais humano quando a gente gosta de quem errou. A questo tambm pode ser vista por outro vis: o do livrearbtrio. A lei, um princpio geral e abstrato, nos obriga a no ultrapassar a velocidade de 60 km por hora nos permetros urbanos. Estamos, por exemplo, com uma pessoa gravemente ferida dentro do carro. Devemos cumprir a lei ou no? Tento demonstrar que a questo da moral ingnua implica dissenso e contradio e que boa parte dos contos populares obedece a uma moral que, embora eventualmente condenvel em termos da sociabilidade, pode trazer baila situaes e conflitos humanos de grande interesse. Ainda neste tpico, um ltimo exemplo (que, por sinal, vincula a moral ingnua cultura popular): como exigir que a moral de uma sociedade civilizada e justa, onde todos os cidados pagam impostos e recebem em troca os benefcios do Estado segurana, moradia, educao, transporte, sade e trabalho , seja igual moral de uma sociedade desequilibrada, onde cada um luta por si
A tica, vale lembrar, a teoria ou a cincia do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, ela representa um conjunto sistemtico de conhecimentos racionais e objetivos a respeito do comportamento humano moral (Vazquez). Enquanto a moral inseparvel da atividade prtica, a tica constitui-se na avaliao, reflexo e crtica sobre esta atividade. Sobre o assunto, c.f. VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. tica. Civilizao Brasileira, 1999 e ARISTTELES. tica a Nicmacos. Universidade de Braslia, 1992.
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para poder sobreviver? So questionamentos que mereceriam uma discusso urgente, principalmente se levarmos em conta a sociedade brasileira. Passo para um terceiro aspecto dos contos populares: seu carter eminentemente narrativo. Para compreender esse ponto, preciso abordar, mesmo que de passagem, um tema relevante e muito amplo, embora nem sempre levado em conta: a oralidade, suas caractersticas e implicaes. Sabemos que os contos populares, em princpio, nascem em culturas orais, ou seja, so histrias criadas, recriadas e preservadas ao longo do tempo sempre com modificaes atravs da narrao e da memria, recursos tpicos das culturas que no dispem de instrumentos de fixao como a escrita. Mesmo em verses contemporneas feitas por escrito, o conto popular continua marcado pela narrativa oral, pois tende a manter certas caractersticas do discurso falado e pressupe sempre uma voz que narra e um ouvinte. Refiro-me a um escritor que, de certo modo, escreve como quem fala e a um leitor que l como quem ouve. Podemos, claro, escrever solitariamente sem nos preocuparmos com o eventual leitor mas, convenhamos, quem narra em voz alta, sozinho, para ningum, corre o risco de ser internado fora em alguma clnica psiquitrica. A narrativa, portanto, , em princpio, essencialmente dialgica e tem como substrato, paradigma e pressuposto bsico, sempre e sempre, a comunicao entre pessoas feita face-a-face, em suma, de um eu que se dirige a um outro situado. Explico-me melhor: h textos marcados principalmente pela cultura escrita. Isso significa, em resumo, que so fixados e conservados por texto, o que garante sua perenidade e a possibilidade de serem lidos e interpretados em qualquer lugar, poca ou contexto histrico. Um escritor sabe que, mesmo depois de morto, sua obra poder ser lida. Sabe que seu livro poder ser distribudo pelo mundo afora e que ele jamais ver o rosto nem saber a opinio da maioria de seus leitores. Sabe que pode se dar ao luxo de escrever de forma fragmentada, recorrer a vocabulrio e sintaxes incomuns, de utilizar metforas obscuras, fazer citaes ou de ser experimental (pois o leitor pode ler, reler e analisar o texto com calma). Pode ser indiferente ao fato de ser ou no compreendido. Se quiser, pode 183

at ser agressivo com o leitor. Em tese, e considerando o meio de expresso que utiliza a escrita um escritor, na verdade, independe completamente do seu leitor. J um orador seja ele um contador de histrias, um professor, um poltico, ou um padre durante o sermo quando se dirige a uma platia face-a-face, ao vivo, v-se diante de uma situao bastante diferente da vivida pelo escritor. Sabe que suas palavras, seu tom de voz, seus gestos, seus olhos, o ambiente, a reao da platia e a energia estabelecida entre ele e a platia fazem parte de seu discurso e jamais podero ser completamente reproduzidos, mesmo que seu discurso seja gravado, filmado ou fixado por texto, pois a diferena entre uma aula e o filme dessa aula to grande quanto a diferena entre um discurso ao vivo e sua transcrio numa folha de papel. Sabe que seu discurso tem um alto grau de efemeridade. Sabe que precisa ser necessariamente compreendido, ou seja, evita falar para ser interpretado pois isso demandaria tempo, distanciamento, anlise e reflexo por parte do ouvinte. Sabe que se algum da platia no compreender seu discurso poder perguntar, portanto, sabe que, se for o caso, pode improvisar e utilizar palavras no previstas ou seja, modificar seu discurso para transmitir uma idia. Sabe que no poderia fazer seu discurso se estivesse morto. Sabe que sua platia se resume s pessoas que esto sua frente e precisa estar atento reao dessas pessoas. No pode, portanto, se dar ao luxo de falar de forma fragmentada, recorrer a vocabulrio e sintaxes incomuns, utilizar metforas obscuras, fazer citaes ou ser experimental, pois correr o risco de no ser compreendido. Sabe que se for agressivo e ofender as pessoas da platia pode at tomar uma surra. Em tese, e considerando o meio de expresso que utiliza a voz um orador depende completamente do seu ouvinte. Dei tantos exemplos para defender a seguinte idia: h textos escritos marcados pela cultura escrita e textos escritos marcados pela cultura oral. Esses ltimos tentam sempre recuperar a situao do orador diante de uma platia, o discurso falado no contato face-aface. Textos assim, claros, diretos, concisos e dependentes da platia (do leitor), so exatamente aqueles utilizados pelo escritor de contos populares. Alm da busca da comunicao imediata, da linguagem pblica e direta, da conciso e dos temas passveis de identificao e compartilhamento, um de seus vrios recursos a narratividade. 184

Naturalmente, o termo narrativa amplo e pressupe a possibilidade de diversas abordagens. Refiro-me a uma narrativa que se pretenda popular, que seja linear, construda acumulativamente, com comeo, meio e fim, que tenha continuidade, que tenha como objetivo contar uma histria de interesse geral, abordando temas que permitam identificao imediata, um discurso compartilhvel construdo atravs de uma linguagem familiar e acessvel. Abro parnteses para lembrar que a narrativa um recurso humano vital e fundamental. Sem ela, a sociabilidade, e mesmo a viso que temos de ns mesmos, no poderia ser construda. Narramos nossas experincias cotidianas, nosso dia no trabalho, fatos acontecidos, lembranas, sonhos, projetos e desejos. Narramos, mesmo de forma solitria, em pensamento, para ns mesmos, episdios acontecidos que de alguma forma no ficaram claros. Para alm de um recurso literrio, a narrativa pode ser considerada um dos procedimentos atravs dos quais tornamos a vida e o mundo interpretveis. Na verdade, a narrativa sempre foi:
(...) uma tendncia definidora do ser humano: da escrita rupestre entremeada de sons guturais elaborao da linguagem narrativa, observamos que o homem conta a histria de si mesmo e do mundo. A necessidade dos ancestrais de reunirem-se volta do fogo para se guarnecerem do frio e das feras est acompanhada do pressentimento de que algo poderia ser revelado na fala do sacerdote. E, na atualidade, no com outro pressentimento que o homem rodeia o aparelho de televiso, espera de um sacerdote dessacralizado da mdia: todos aguardamos notcias, revelaes, reconstrues de eventos, atravs das narrativas .(GOMES, 1992. p. 112)

Ainda sobre o tema, vejamos as palavras de Clvis Barbosa, um homem do povo, pescador e contador de histrias em So Romo, Minas Gerais: Gosto de cont histria (...). Qualqu histria eu gosto de cont. Se um caso alegre, de brinc com os otro, eu v contano e v rino. Se histria de sofrimento, eu v falano, o corao vai doeno e tem vez que d choro. A ns chora junto e lembra tudo de difici que ns pass. um choro manso, uma chuva fininha. (Idem, ibidem, p. 185

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A construo narrativa, em suma, um procedimento que, sem dvida, ajuda a estruturar e tornar compreensvel a experincia de vida, no de forma solitria, mas sim, note-se, por meio da sociabilidade e do contato dialgico com o outro. Como disse o contador de histrias mineiro a ns chora junto e lembra tudo de difci que ns pass. No por acaso, a narratividade uma caracterstica central do conto popular. Perceber que h textos narrativos e textos no-narrativos, assim como perceber que h textos marcados pela cultura escrita e textos marcados pela cultura oral, podem ser experincias interessantes para o leitor jovem, em fase de compreender a literatura e situar-se diante dela. Falei em tornar compreensvel a experincia de vida e isso nos remete a meu ltimo tpico: os temas e imagens recorrentes nos contos populares. Ao contrrio do que se poderia pensar, o fato de serem de fico e poderem conter aspectos mgicos e de encantamento, nem de longe tira dos contos populares sua extraordinria capacidade de abordar a vida concreta e, mais ainda, de especular sobre ela. Tanto assim que neles nos deparamos com princesas que nascem mudas e recuperam sua voz quando encontram o homem por quem se apaixonam. Pessoas que se deitam na cama e ficam adormecidas at serem despertadas por um sentimento forte. Mes ou madrastas que, ao notarem que suas filhas cresceram e tornaram-se mulheres, mandam mat-las. Injustias e transgresses. Gigantes que aprisionam moas em castelos. Irmos que mentem e traem. Pais que tentam desposar suas prprias filhas. Heris tolos que fazem tudo errado mas mesmo assim se do bem. Moas ou moos que no conseguem rir e se dispem a se casar com algum que saiba alegr-los. Traies, cimes, orgulhos, mentiras, vaidades, vinganas, invejas e dios. Heris malandros. Enigmas e adivinhaes. Heris que arriscam a vida e colocam os interesses da coletividade acima dos seus interesses pessoais. Lutas de fracos contra fortes. Animais que falam e se comportam como gente. Sedues de todo o tipo. Heris que tentam enganar a morte. Pactos com o diabo e seus preos. Homens sbios. Prncipes e princesas que lutam para escapar de castelos no fundo do mar. Pessoas e cidades transitoriamente transformadas em 186

pedra. Sinas e manias. Moos que precisam aprender a linguagem dos pssaros para conquistar suas amadas. Truques e ardis. Heris transformados em animais ou monstros em busca de sua identidade perdida. No pouco! Atravs dos contos populares, chamados tambm de contos de encantamento, de fadas etc., temos a oportunidade de entrar em contato com temas que dizem respeito condio humana vital e concreta, suas buscas, seus conflitos, seus paradoxos, suas transgresses e suas ambigidades. Na minha viso, os contos populares, independentemente de rtulos como cultura popular, folclore e outros, podem ser considerados uma excelente introduo literatura, pois nada mais fazem do que trazer ao leitor, de forma acessvel e compartilhvel, enredos, imagens e temas recorrentes na fico e na poesia. muito bom quando algum principalmente se for um jovem descobre que, alm de regras, informaes e lies, um livro pode abordar os temas da vida humana concreta. Ter, creio, uma boa chance de tornar-se um leitor e, mais, cheio de entusiasmo diante do que leu, indicar o texto a seus amigos, contribuindo assim para a formao de outros leitores. Bibliografia: ELIADE, Mircea. Mito e realidade . Trad. Pola Civelli. So Paulo, Perspectiva, 1972. LVI-STRAUSS, Claude. A oleira ciumenta . Trad. Beatriz PerroneMoiss. So Paulo, Brasiliense, 1986. VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. tica . Civilizao Brasileira, 1999 e ARISTTELES. tica a Nicmacos. Universidade de Braslia, 1992. GOMES, Nbia P.M. & PEREIRA, Edimilson P. Mundo encaixado - Significao da cultura popular. Belo Horizonte, Mazza Edies, 1992.

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Educao e escola nas Festas da Cultura Popular Ren Marc da Costa Silva 1 Esta presente edio sobre Cultura Popular e Educao organizada com textos do programa Salto para o Futuro/ TV Escola encerra-se nesta unidade, ofertando aos professores em particular e ao pblico em geral um belssimo conjunto de reflexes sobre as festas populares. Festas so, antes de tudo, celebraes e nada melhor para fecharmos essa nossa prazerosa viagem-aprendizado (sabendo mesmo que aprendizado processo, no se fecha verdadeiramente, nunca se finaliza) do que comemorando as festas populares brasileiras. Comemorar as festas? O que significa isso? Vejamos: a palavra comemorar, na sua raiz etimolgica, significa lembrar com, relembrar junto com os outros aquilo que mais importante para as pessoas, para os grupos ou comunidades. Relembrar duplamente, ento, aqui nossa proposta: recuperarmos aquilo que aprendemos nesse nosso percurso de aprendizado sobre cultura popular e educao posto que esto presentes e reunidos, no campo das prticas festivas, alguns dos elementos mais importantes encontrados em cada uma das unidades desse volume ao mesmo tempo em que retomamos os valores profundos e fundamentais que caracterizam a identidade mais elementar do povo brasileiro, representada, fantasiada e encenada nos folguedos. Lembrando a primeira unidade deste livro, a grande maioria das festas populares que celebramos pode ser caracterizada como folclrica. So festas, como vimos, realizadas no contexto das camadas mais pobres da sociedade brasileira e que podem ser vistas como momentos privilegiados em que as populaes rurais, o povo das pequenas cidades e os moradores das periferias das grandes centros brasileiros interrompem a rotina de seu cotidiano, quer seja no trabalho ou nas tarefas domsticas, para festar com os vizinhos, amigos ou correligionrios das mesmas crenas e tradies. As festas so, por outro lado, rituais nos quais se dramatizam
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antroplogo e doutor em histria pela Universidade de Braslia UnB, professor de histria, tica, alm de cultura poltica no programa de mestrado em direito do Centro Universitrio de Braslia UniCeub.

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os valores mais importantes desses grupos sociais ou comunidades, mas tambm em que se denunciam os contextos de sofrimento e a realidade de opresso das condies em que freqentemente se encontram as camadas subordinadas. Apontam, por vezes, para maneiras criativas de ameniz-las ou transform-las, ostentando uma invejvel habilidade de celebrar descontraidamente e de dizer sim vida em meio tanta adversidade. Entretanto, na medidaem que afirmam valores particulares e uma maneira especfica de ser, fazer, viver e ver o mundo, desnudam o exerccio opressivo do poder, tornando visveis as relaes subordinadas em que se encontram e que estabelecem com os sistemas simblicos dominantes ou hegemnicos da sociedade. As festas so, sobretudo, eventos e celebraes nos quais mais claramente percebido o carter dinmico da cultura popular. Ao mesmo tempo em que enrazam em cada membro do grupo social, seus valores, suas normas e suas tradies abrem espaos, continuamente, para novas maneiras de representar o sentir, o ser e o viver no mundo atual, numa lenta s vezes mesmo imperceptvel, o que no quer dizer inexistente , mas efetiva mudana de mentalidade. precisamente esse o processo que o professor Jos Jorge de Carvalho chama de dinmica da conservao: a capacidade de estas festas e das culturas populares em geral enfatizarem a conservao e o esttico, aliados a uma prtica constante de reposio do perdido ou de transformao daquilo que se mantm. Uma oportunidade para se aprender que a modernidade no precisa ser necessariamente encarada como algo ruim, dissolvente da tradio, principalmente se o novo puder ser integrado herana que foi recebida, passada de gerao a gerao pelos mestres da tradio. Recordar as reflexes que fizemos na segunda e terceira unidades desta publicao momento em que discutimos a memria, a identidade e o patrimnio material/imaterial das culturas populares, alm dos contos e histrias da tradio oral , junto problematizao das festas populares, certamente relembrar que as pessoas e os grupos populares no tm, na maioria das vezes, o domnio da escrita como primeira forma de expresso. Seus textos so escritos em forma de dana, de cnticos rimados para justamente facilitar a memorizao, seus objetos so as lendas, os mitos e as troas. Nestas condies, a aprendizagem feita pela absoro de gestos e palavras. Para Lev Vigotsky, o gesto signo visual 192

que contm a futura escrita da criana. Para as crianas, portanto, gestos so a escrita no ar; da mesma forma como para os letrados os signos escritos so originalmente gestos que foram fixados. Ao ensinar por gestos e pela palavra falada, as festas e os contos populares transmitidos pela oralidade e pela memria vo compondo o jeito como cada indivduo ou cada grupo tm de andar, de falar, de se comportar e muitas posturas corporais que fazem parte da maneira de ser e estar das pessoas desse enorme Brasil. Nossa escola, infelizmente, tem ainda muita dificuldade de lidar com a movimentao e a expresso corporal caracterstica das crianas. Para os adultos, a movimentao da criana sinal de desordem ou falta de educao. Nas escolas, os gestos vo sendo organizados, reprimidos, numa disciplinarizao que nada mais que adestramento progressivo das crianas. Nesse modelo de educao e de escola o corpo no fala, e quanto mais velhas as crianas vo ficando, mais aprisionados vo se tornando os corpos. A escola vai, aos poucos, formando corpos dceis, restritos aos gestos previsveis das rotinas disciplinares exigidas pela paulatina tecnificao da vida cotidiana. No existe motivo pelo qual nossas escolas no possam ser ou se constituir atravs da integrao das mltiplas formas de expresso das culturas populares vivas na sociedade brasileira s formais que costumam povoar nossos currculos em um espao de expresso do corpo que fala, propondo dramatizaes, dando espao para jogos e brincadeiras, festas e comemoraes oriundas do nosso folclore, do manancial inesgotvel de nossos mitos, lendas e contos populares. Dar espao na escola para o corpo que fala , inevitavelmente, dar lugar para a fala do corpo na escola. No brasileiro fala miscigenada pelos muitos jeitos e trejeitos caractersticos da terra, atravessada de muitas histrias, mistura de tantas tradies, maneiras se ser, ver e viver, de lugares to distantes do pas onde se encontram diferentes cdigos e valores, locus do encontro de diversidades tnicas, raciais e sociais que, se puderem afirmar suas diferenas num contexto outro de liberdade e igualdade, podero construir, sem dvida, uma identidade menos excludente, um sentimento de pertencimento mais representativo dos muitos que somos, um sentido de nao mais alegre e compartilhado. Festas de Santos Reis, de Lcia Beatriz Torres e Raphael 193

Cavalcante, nos introduz no diversificado e rico mundo das festividades populares, abordando um evento especfico do vasto ciclo de festas que muitos estudiosos denominam de ciclo natalino. Este ciclo, cujas origens reportam ao velho Portugal, compe-se basicamente de duas partes: uma, com rituais centrados fundamentalmente na liturgia oficial catlica, e a outra, de iniciativa fortemente popular, promovida, quase sempre, independentemente desta oficialidade. Iniciamos a unidade com uma festa do calendrio religioso cristo precisamente porque o texto propicia discutir a dominncia e hegemonia poltico-cultural dessa especfica tradio, que emoldura, influencia e estabelece, a partir de suas comemoraes, as datas de outras tantas festas populares. Em As Festas Juninas, Jadir de Morais Pessoa nos enfronha mais um pouco nesse calendrio de festividades religiosas, todavia agora, no ciclo das festas juninas. Este ciclo marcado, sobretudo, pelas festas de Santo Antnio, So Joo e So Pedro mas a festa de So Benedito que, oficialmente, ocorre no dia 5 de outubro, em muitos lugares incorporada tambm ao ms de junho. Ainda que vinculadas s datas de santos do catolicismo oficial, este ciclo, talvez por ter sido apropriado pelo domnio popular, tem notadamente um carter mais pago. Mesmo quando so festas da parquia, o mastro e a fogueira trouxeram a festa para o terreiro, para o lado de fora da igreja. Destacam-se, ento, as fogueiras com batizados, simpatias, casamentos, gente passando por sobre as brasas, alm de comidas e bebidas tpicas. Muito mais pag do que qualquer outra festa , sem sombra de dvida, o carnaval. Maria Alice Amorim nos brinda com um panorama da multiplicidade de maneiras do brincar o carnaval e dos muitos significados que encontra ao longo de todo o pas. Seu texto, Festas Carnavalescas nos faz pensar nos sentidos das intensas transformaes pelas quais vm passando estes festejos, assumindo em alguns lugares, um carter miditico e econmico exacerbado em contraste com regies nas quais ainda guarda alguns elementos do velho carnaval das marchinhas e dos blocos tradicionais. Pelo trabalho o homem marca o meio fsico onde busca satisfazer as suas necessidades. Por isso, ensina o professor Carlos Rodrigues Brando, os principais acontecimentos ligados ao trabalho tambm so ritualizados nos meios populares, fazendo emergir importantes momentos festivos, tais como: festas de colheitas, 194

pousos de tropeiros, mutires (puxiro, muxiro, adjutrio, demo), mutires de traio (ditos treio um mutiro para o qual o dono do servio no foi avisado), dana da enxada, canto das lavadeiras, canto das fiandeiras. nesse maravilhoso universo que nos faz mergulhar o texto Festas do Trabalho, do referido antroplogo. A riqueza e a importncia fundamental da contribuio africana para a formao cultural do Brasil fecha a ltima unidade dessa coletnia sobre Educao e Cultura Popular, produzida pelo programa Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC. A beleza e complexidade das Festas da Afrodescendncia este o ttulo do importante texto de Roberto Benjamin no deixam dvidas de que a Casa Grande no conseguiu silenciar a Senzala. A viso de mundo, a religiosidade, a msica, a dana, a vestimenta e a culinria dos negros resistiram aos sculos de opresso branco-europia de nossa Colnia e Imprio. Todas as nossas formas de ser brasileiro foram impregnadas por esses componentes africanos. Vem da a existncia de um grande leque de festas e rituais em todas as regies brasileiras. Muitas dessas festas constituram-se na fuso da cultura negra com o catolicismo popular, como Congos, Congadas, Moambiques e outros tantos. Em outras permaneceu a base da prpria religiosidade africana, como se verifica no Candombl, Umbanda, Xang, Tambor de Mina. Em outros casos ainda, a resistncia negra gerou manifestaes que, de certa forma, desenvolveram-se margem das prticas religiosas: Capoeira, Jongo, Parafuso (a dana da fuga), Lundu. Em todos esses casos h sempre uma diversidade de festas que garantem a reproduo da arte e das crenas africanas, formando geraes e geraes de adeptos que, s vezes, no compem uma efetiva afrodescendncia. Ou seja, mesmo que ao longo do seu desenvolvimento tenham ficado restritas aos negros, muitas festas e rituais afrodescendentes vivem hoje uma criativa releitura. Esse ltimo texto ajuda a pensar uma importante questo: quais os limites dessas apropriaes e recriaes, que relaes hegemnicas e hierrquicas de poder atravessam e ainda subsistem no interior dessas relaes, como redefini-las para redefinir um novo projeto de Brasil, como nos inspirar nessa criatividade para recriar o pas?

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Texto 1 FESTAS DE SANTOS REIS Lcia Beatriz Torres1 Raphael Cavalcante2 Aprender (re) viver
Partiram [os Magos] de suas terras [no Oriente] e, guiados pela luz de uma estrela resplandecente, chegaram gruta, em Belm, na Judia, para adorar o filho de Deus que havia nascido, ofertando-lhe rgios presentes: Ouro, Incenso e Mirra. Sntese da Viagem dos Reis Magos baseada no Evangelho de Mateus (2, 1-12) 3.

O texto bblico de Mateus alude vagamente a respeito dos Magos, no especificando seus nomes e respectivas categorias, nmero, locais de procedncia no Oriente, entre outros aspectos. O enigma que envolve essa narrativa bblica tem ensejado infindveis reinterpretaes ao longo dos tempos. Conhecida, em sua forma mais popular, como a Adorao dos Reis Magos, essa passagem da Escritura Sagrada fonte de inspirao para as mais variadas manifestaes nas letras e nas artes, contribuindo para o desenvolvimento de tradies populares as mais diversas (SILVA, 2006). Este contexto levou Mle, nos alvores do sculo XX, seguinte reflexo:
A imaginao popular cedo foi aos evangelhos, tentando complement-los, no que faltava. As lendas originaram-se nos mais antigos sculos da Esse texto integra o boletim do programa Festas de Santos Reis da srie Aprender e ensinar nas festas populares, abril, 2007. www.tvebrasil.com.br/ salto/ 1 Jornalista e Radialista. Graduada em Comunicao Social pela UFRJ. 2 Produtor Cultural. 3 Este e outros textos deste artigo so baseados no livro Reis Magos: histria, arte, tradies fontes e referncias (SILVA, Affonso Furtado da. Rio de Janeiro: Lo Christiano Editorial, 2006).

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Religieux de XII sicle, inserido no Gazette de Beaux Arts,1904).

cristandade. Elas nasceram do amor, de um tocante desejo de conhecer mais Jesus e aqueles prximos [...]. O povo achava os evangelhos muito sucintos [...]. Nenhuma das cenas da infncia de Cristo forneceu mais rico material para o povo que a Adorao dos Magos. Suas misteriosas figuras, mostradas veladamente nos evangelhos, despertavam vida curiosidade nas pessoas. (mile Mle, LArt

A propsito, o ttulo de Reis, atribudo aos Magos do Oriente, foi devido a Cesrio [So Cesrio], Bispo de Arles, Frana, no sculo VI. No sculo seguinte, o Papa Leo I assegurou, em seus Sermes sobre a celebrao da Epifania, que os Reis Magos eram em nmero de trs. Todavia, seus nomes somente mais tarde foram estabelecidos. As tradies populares do ciclo natalino eram comuns em toda a Europa Crist, em pases como Frana, Itlia, Alemanha 4, Portugal e Espanha. Os dramas litrgicos medievais eram utilizados como instrumento de ensino e divulgao da doutrina crist. O episdio dos Magos do Oriente, desde cedo, tornou-se um dos temas prediletos para efeito de dramatizao (Officium Stellae). Representaes de rituais litrgicos relativos aos Magos, que, a princpio, eram realizados no interior das igrejas, foram, pouco a pouco, popularizando-se, transportados para espaos abertos praas e ruas. Assim surgiram os cortejos, vinculados aos templos religiosos das cidades, que encenavam a temtica dos Magos, bem como grupos peditrios, no mbito dos povoados rurais que, de casa em casa, levavam a mensagem do nascimento de Jesus Cristo. Atualmente, alguns pases europeus ainda mantm essas tradies milenares como, por exemplo, o Cortejo dos Reis Magos na Baslica de Santo Eustrgio 5 em Milo, Itlia, e a Cabalgata de Reyes Magos, em Sevilha, Espanha, bem como o costume dos Grupos de Villancicos
interessante assinalar, como exemplo, a existncia, at hoje, dos Grupos de Sternsingers (Cantadores da Estrela), atualmente apoiados por uma organizao missionria alem, Kindermissionwerk, que desenvolve projetos de educao crist, em nvel mundial, com crianas carentes. 5 Essa celebrao acontece desde 6 de janeiro de 1336, conforme registrado por Muratori (Rerum Italic Scriptors, Milan, 1728, t. XII, p. 1018).
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(Espanha) e de Janeiras e Reis (Portugal). No perodo colonial, os colonizadores, em conjunto com os missionrios jesutas que aportaram ao Brasil, vindos com o primeiro Governador Geral Tom de Sousa, em 1559 e em anos seguintes, trouxeram essas tradies da Pennsula Ibrica. Estes utilizavam autos litrgicos com a temtica dos Reis Magos, sob a forma de canto, dana e encenao, no processo de catequese e ensino, tanto dos nativos indgenas como dos prprios colonos portugueses (reinis) e, posteriormente, dos escravos negros. O catequista Jos de Anchieta, considerado por muitos o precursor das letras brasileiras, formado na escola de Gil Vicente, comps, ensaiou e representou sua pea teatral inicial, Pregao Universal, reintitulada Na Festa de Natal, na Igreja dos Jesutas, em So Paulo de Piratininga (atual cidade de So Paulo), no Natal de 1561, no Ano Novo e no dia de Reis de 1562. Este o primeiro registro de um Auto encenado no Brasil que, com adaptaes diversas, foi repetido por toda a costa brasileira, em aldeamentos jesuticos como So Loureno [Niteri] e So Vicente [So Paulo], Reis Magos [Esprito Santo], entre outros (SILVA, 2006). Na segunda dcada do sculo XVIII, Nuno Marques Pereira, em seu Compndio Narrativo do Peregrino da Amrica (CMARA CASCUDO, 1998), registra a presena de Grupos de Reis peditrios na Bahia: [...] uma noite dos Santos Reis saram estes [homens] com vrios instrumentos pelas portas dos moradores de uma vila cantando para lhes darem os Reis em prmio que uns lhes davam dinheiro e outros doces, frutas, etc. Tudo indica que, no incio da Colonizao, junto aos ncleos de povoamento mais consolidados (Salvador/vilas prximas do Recncavo, Olinda e, pouco depois Recife, j sob o domnio holands, Rio de Janeiro/Niteri e So Vicente/So Paulo de Piratininga) moldaram-se as formas iniciais das tradies de Reis no Brasil. Prespios, Lapinhas e Pastoris, seguindo-se de outras representaes folclricas derivadas, Reisados, Rancho de Reis, Terno de Reis (verso baiana), Guerreiros, etc. O processo de transplantao dessas tradies intensificou-se durante o Ciclo do Ouro [em terras do atual estado de Minas Gerais, em cidades como Ouro Preto, Sabar, So Joo del Rei, entre outras], uma vez que aumentou, significativamente, o fluxo imigratrio de colonos oriundos do norte de Portugal (Porto, Minho e Trs-os-Montes), regies agrcola201

pastoris, com expressivas tradies de Reis. Na medida em que o povoamento expandiu-se, essas manifestaes se ramificaram e se difundiram por todo o territrio colonizado. Naturalmente, essas tradies que chegaram ao Brasil sofreram, gradativamente, a influncia local pela incorporao dos elementos da cultura negra e indgena, atravs de hibridismos religiosos e culturais, ou seja, como preconizam diversos folcloristas brasileiros, adquiram a cor local. O processo de popularizao dos ritos litrgicos, atravs das novas formas de representao que surgiram, em particular sobre a influncia dos Reis Magos, resultou, em muitos casos, em excessos de profanizao. Tal fato levou a Igreja a reprovar essas manifestaes populares, passando a impedir a entrada desses Grupos no interior das Igrejas, afastando-se, desse modo, de seus fiis que, no entanto, a seu modo, continuaram a levar a palavra de Deus para lugares aonde o catolicismo no chegava ou no os aceitava. Na dcada de 1980, com a vinda do Papa Joo Paulo II a Santo Domingo (Amrica Central), houve, contudo, uma mudana dessa postura eclesial. A partir da, a Igreja Catlica, atravs do processo de inculturao, abriu novamente suas portas a essas manifestaes populares, reaproximando-se, assim, de seus seguidores, dando novo impulso s Festas dessas tradies de Reis. Colocando a inculturao na linha da encarnao promovida pelo Cristo, compreende-se que se trata de atingir os nveis mais profundos que constituem uma cultura, nas organizaes da sociedade, nos relacionamentos entre os homens e com Deus 6. No Brasil, as tradies populares do Ciclo Natalino, baseadas nos costumes religiosos ibricos, so designadas por REISADOS. Segundo o mestre folclorista brasileiro Cmara Cascudo [...] sem especificao maior refere-se sempre aos ranchos, ternos e grupos que festejam o Natal e Reis. O Reisado pode ser apenas a cantoria como tambm possuir enredo (CMARA CASCUDO, 1998). necessrio lembrar que, dentro do ciclo natalino, existem manifestaes que, apesar de serem habitualmente chamadas de Reisados, no possuem a temtica dos Reis Magos e do Menino Jesus, o que no impossibilita a participao desses grupos nas Festas de Santos Reis. Como exemplo, temos a Chegana e a Marujada (temtica nutica, envolvendo a luta dos Mouros contra os Cristos),
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Revista MUNDO e MISSO www.pime.org.br/mundoemissao/evanincultigreja.htm.

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a Taieira e o Ticumbi (temtica afro-brasileira). Falta unanimidade na definio conceitual por parte de estudiosos dos Reisados, em funo da dificuldade classificatria dessas manifestaes, posto que se compreendem em um numeroso grupo: as Folias/Companhias/Embaixadas de Reis, o Terno de Reis (baiano e sulino), Pastor, Tirao de Reis, o Prespio, as Pastorinhas, os Pastoris, o Bumba-meu-boi do Nordeste brasileiro oriental, o Boi-de-Mamo, o Boi de Reis, o Reis de Bois, o Cavalo-Marinho, a Companhia de Pastores, as Reiadas, Reis de Careta e tantas outras manifestaes, cobrindo praticamente todo o territrio brasileiro. Encerra a questo o folclorista Ulisses Passarelli:
A verdadeira riqueza do folclore brasileiro est na variedade inclassificvel, no sincretismo, nos fenmenos de transposio, interpenetrao e influncias folclricas, nas mltiplas variantes, em toda a criatividade, plasticidade, presena de esprito e dinmica com que o povo os cria, recria, adapta, extingue e ressuscita. (Reisados Brasileiros:

tipologia, 2003).

Em alguns Grupos de Reis, o perodo de jornada/giro adiantase ou estende-se aqum ou alm do perodo de 24 de dezembro at 06 de janeiro. A partir do dia 08 de dezembro (Nossa Senhora da Conceio) at o dia de So Brs (03 de fevereiro entendendo que, por advogar contra problemas de garganta, o Santo possa garantir uma boa voz para a cantoria), os Grupos podem encerrar sua jornada/ giro. O tradicional Dia de Reis (06 de janeiro) o mais marcante, seguido, em alguns lugares, pelo dia de So Sebastio (20 de janeiro Folias de So Sebastio) e ainda pelo dia de Nossa Senhora das Candeias (02 de fevereiro). No caso das Folias/Companhias/Embaixadas de Reis, as formas de representao dos grupos e de seus componentes, como tambm os estilos de cantoria, entre outras caractersticas, variam de regio para regio, entretanto a essncia, o ncleo dramtico dessas tradies que contar, rememorar a viagem dos Trs Reis Magos, o culto ao Menino Jesus (DINIZ, 2007) no muda. De uma maneira mais ampla, todos os reisados, sob influncia dos Reis Magos, constituem autos populares ou grupos de cantoria, formados: [...] por grupos de msicos, cantadores e danadores, que vo de porta 203

em porta, no perodo de 24 de dezembro a 6 de janeiro, anunciar a Chegada do Messias, homenagear os Trs Reis Magos e fazer louvaes aos donos das casas onde danam. (ROCHA, 1984) Normalmente, saem por promessa e/ou devoo aos Santos Reis, e nas visitas, os Grupos de Reis entram nas casas, cantam sade e pedem a proteo de seus moradores, desejam o melhor para todos, atravs de bnos, recebendo, em contrapartida, donativos (dinheiro, mantimentos, entre outros). Esse [...] ritual de reciprocidade [...] que se processa entre pessoas do grupo e dos moradores das casas visitadas(SILVA, 2006, 174) o que os identifica, pois nesse momento em que se percebem as trocas simblicas imbudas dessa outra caracterstica marcante dos grupos, o peditrio, que, de acordo com Tho Brando 7, [...] o que lhe d o verdadeiro [sentido] e lhe cria individualidade. Os donativos arrecadados so utilizados para a realizao da Festa de Encerramento do Grupo, ou Festa do (Ar)Remate, evento que marca o fim da jornada/giro, com fartura de comida e bebida, ansiosamente aguardado pelos componentes, familiares e convidados. Em muitas regies, comum a presena da figura do Festeiro (indivduo que se prontifica a realizar essa festa), e em algumas regies o responsvel ou dono do Grupo (Mestre/ Embaixador/ Capito) assume esse papel. As Festas de Santos Reis contam com grande envolvimento da comunidade. Os moradores/devotos incentivam os Grupos de Reis, ajudando como podem. Muitas famlias fazem questo de receb-los em suas casas, oferecendo lanches para os integrantes. Costureiras costumam destinar um pouco de seu tempo para a confeco das indumentrias e artistas plsticos doam um pouco de sua arte aos Santos Reis. Outros se destinam a acompanhar os Grupos em suas peregrinaes pelas ruas das cidades, ajudando no que for preciso. A participao de pessoas da mesma famlia e de amigos nos Grupos de Reis um fato de extrema importncia para entendermos a resistncia das tradies, na medida em que fica mais fcil se organizar e preservar suas razes culturais, transmitidas de gerao para gerao, de pai para filho. Cada pessoa possui um papel importante dentro do complexo universo ritual e dos Grupos de Reis, que inclusive podem ter regulamento (estatuto) interno, com normas que devem ser seguidas pelos componentes e que estabelecem uma hierarquia e conduta mais responsvel, disciplinada e fraterna
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Em um de seus muitos trabalhos sobre os folguedos natalinos.

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podendo, inclusive, punir com a desfiliao o integrante que no seguir esses preceitos. O mesmo se passa com as associaes constitudas por um ou mais grupos de uma localidade, municpio ou regio. Por se tratar de uma enorme famlia, bem representativo o nmero de crianas que participam desses grupos, o que estimula e desenvolve o seu lado ldico, fazendo-as interagir internamente (entre elas) e externamente (com outros grupos), acelerando o processo de ensino-aprendizagem, inerente ao meio acadmico (escolas) primeiro contato com educao patrimonial. Essa experincia e a aproximao dos mais jovens so fundamentais para a perpetuao dessas tradies, uma vez que os detentores do conhecimento dos antigos encontram-se, em sua maioria, com idade avanada e, em alguns casos, infelizmente, no podem mais difundir seu rico legado. Vivenciando o fato folclrico, as crianas conhecem/absorvem melhor esse conhecimento transmitido pelos Mestres, reforando seus laos culturais e conscientizando-se de sua identidade. Cabe observar um expressivo surgimento de Associaes/ Organizaes de Grupos de Reisados pelo Brasil, impulsionado pela busca de recursos e apoio por parte de seus participantes, resultando tambm na mobilizao de seus integrantes e na participao das comunidades de seu entorno. Geralmente essas instituies da sociedade civil atuam em parceria com rgos municipais encarregados da execuo das Festas/Encontros de Reis (palco/ palanque, sonorizao, transporte, alimentao, etc.). A construo de Igrejas e Capelas de Santos Reis constituiu um pondervel componente de preservao das tradies. Esses espaos sagrados agregaram cerimnias religiosas populares como: missas solenes, procisses, dramatizaes, apresentaes de corais, etc., facilitando as atividades das Festas. Nos sales e outras instalaes agregadas possibilitam tambm a realizao de eventos comunitrios. Essa iniciativa de erguer templos aos Reis ganhou mais fora com a constituio dos Grupos em entidades associativas. Os Grupos, geralmente compostos por pessoas humildes, de localidades/ bairros perifricos, precisam adaptar-se aos novos tempos que impem, em funo da necessidade de se trabalhar, que seus integrantes saiam para as jornadas/giros ou de noite ou nos finais de semana, muitas vezes tambm deixando para usar suas frias durante esse perodo. Sacrifcios parte, o ritual sempre muito bonito e 205

composto de etapas ou fases, que podem variar de acordo com a regio, mas com algumas poucas alteraes: chegada/abrio de portas; saudao aos donos da casa, louvao ao prespio, despedida e, dependendo da manifestao, apresentao cantada/recitada e/ou danada dos palhaos (e seus congneres regionais). Podem ainda apresentar cantos circunstanciais, com temas diversos. O teor dos versos cantados normalmente de natureza bblica. Em resumo, individualmente, podemos identificar claramente que existem dois tipos de Festa de Reis: as festas de encerramento de cada grupo e de confraternizao coletiva, onde diversos grupos se apresentam publicamente fora de sua base ritualstica de ampla significao (Idem, p. 8.), assinalando uma nova perspectiva: maior intercmbio entre os grupos locais e regionais, apresentaes fora do perodo tradicional e, conseqentemente, maior participao dos moradores. Essas Festas de confraternizao coletiva recebem diferentes denominaes: Encontro de Folia de Reis, Festival de Folias de Reis, Festa de Santos Reis, Chegada das Bandeiras, entre outros, e costumam reunir um grande pblico. Os grupos participantes ganham trofus, certificados, visibilidade social e, algumas vezes, dinheiro. Alguns pesquisadores admitem que essas festas sejam um dos principais instrumentos de preservao da tradio e onde [...] essas relaes [comunitrias e associativas] atingem o auge (PEREIRA, 1997) Festas de Santos Reis pesquisadas no Brasil, por cidades e principais grupos de reisados participantes (SILVA, 2006): Par: Belm, Ananindeua Tirao de Reis e Folia de Reis; Maranho: So Lus e Caxias Pastor e Reis de Careta; Piau: Teresina Reis de Careta; Cear: Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha - Reisado; Rio Grande do Norte: Natal Boi de Reis (Boi Calemba); Paraba: Joo Pessoa, Tacimas e Bananeiras Boi de Reis e Cavalo-Marinho; Pernambuco: Carpina, Santa Maria da Boa Vista e Garanhuns Pastoril, Bumba-meu-boi, Reisado, Cavalo-Marinho; Alagoas: So Jos das Lajes Reisado e Guerreiro; Sergipe: Laranjeiras e Japaratuba - Reisado; Bahia: Salvador e Santo Amaro da Purificao Terno de Reis; Esprito Santo: Muqui, So Mateus e Conceio da Barra 206

Folia de Reis e Reis de Boi; Minas Gerais: Juiz de Fora, Poos de Caldas, Passos, Trs Coraes, Trs Pontas, Ita de Minas, Uberaba, Uberlndia, Arax, Romaria, Patos de Minas, Jequitib, Sete Lagoas, Montes Claros, Bocaiva e Pirapora Folia de Reis, Pastorinha e Companhia de Pastores; Rio de Janeiro: Nova Friburgo, Cordeiro, Barra Mansa, Duas Barras, Valena, Rio das Flores, Vassouras, So Fidlis e Itaocara Folia de Reis; So Paulo: Ribeiro Preto, Batatais, Altinpolis, Cajuru, Santo Antnio da Alegria, Cssia dos Coqueiros, So Jos do Rio Preto, Votuporanga, Nhandeara e Assis Companhia de Reis; Gois: Gionia Folia de Reis; Distrito Federal: Braslia Folia de Reis; Mato Grosso do Sul: Cassilndia, Parnaba e Aparecida do Taboado Folia de Reis; Paran: Londrina, Maring e Sarandi Folia de Reis; Santa Catarina: Florianpolis e Itaja Boi-de-Mamo e Terno de Reis; Rio Grande do Sul: Osrio, Gravata e Santo Antnio da Patrulha Terno de Reis; Observa-se que os Grupos de reisados esto mais organizados, dispem de maior apoio do poder pblico e realizam as Festas, a cada ano, com maior repercusso social. Entretanto, continuam realizando a sua produo de forma independente, fazendo praticamente tudo com recursos prprios: vestimentas (grupos saem com roupas doadas por outros grupos), conserto/compra de instrumentos, contratao de msicos quando necessrio (sanfoneiro, cavaquinho, etc.), compra de alimentos para as Festas de Arremate. Alguns Grupos j produzem, sob forma de gravao (cassete, CDs e at em DVD), o registro de suas apresentaes. Hoje em dia, as Igrejas Pentecostais, que se instalaram nas periferias das localidades, tm contribudo para o arrefecimento das tradies de Reis, retirando muitos componentes dos Grupos de Reisados, normalmente por intolerncia ou preconceito. O respeito diversidade cultural independe de crenas e deveria ser tratado como um valor de cidadania. 207

Aps a leitura desse texto, devemos refletir sobre a importncia de se levar o contedo das Festas Populares para debate com profissionais da rea da educao e, posteriormente, para os jovens nas escolas. Essas celebraes acontecem no mbito da pedagogia da aprendizagem (escola da vida) e complementam a pedagogia da instituio de ensino, derrubando diferenas sociais e desenvolvendo seus mecanismos prprios de transmisso do conhecimento (Idem, p. 14.) Existem assuntos relativos s Festas que, se tratados de maneira transversal dentro das escolas, preencheriam lacunas historicamente excludentes dos menos favorecidos, como tambm aproveitar para pensar em um Natal mais brasileiro, refletindo, tanto quanto possvel, os valores de nosso patrimnio artstico-cultural. um momento que os pobres se levantam, dizem sua voz, apresentam sua resistncia, e para aqueles que sabem ver, est aqui o grito de libertao, o grito de justia, o grito de vida nova. (depomento do Padre Medoro de Souza, da Igreja Matriz de Valena/ RJ, para o documentrio Dias de Reis, de Lcia Beatriz Torres e Raphael Cavalcante, 2006).

Bibliografia: SILVA, Affonso Furtado. Reis Magos: histria, arte, tradies. Rio de Janeiro, Lo Christiano Editorial, 2006. MALE, mile LArt Religieux de XII sicle, inserido no Gazette de Beaux Arts (1904). CMARA CASCUDO, Lus de. Dicionrio do Folclore Brasileiro. 9a edio. Rio de Janeiro, Ediouro, 1998. Revista MUNDO e MISSO. http://www.pime.org.br/mundoemissao/ evanincultigreja.htm. PASSARELLI, Ulisses. Reisados Brasileiros: tipologia, 2003. 208

DINIZ, Domingos. As Folias de Santos Reis, 2007. www. aguacomprida.mg.gov.br/hist_folia.html. (publicado pela Comisso Mineira de Folclore)
ROCHA, Jos Maria Tenrio. Folguedos e danas de Alagoas: sistematizao e classificao. Macei : Depto da Assuntos Culturais, 1984. 261 p.

PEREIRA, Edimlson. A Educao pela Festa para Carranca rgo informativo da Comisso Mineira de Folclore (Ano 2, n. 23, agosto de 1997). Dias de Reis, documentrio de Lcia Beatriz Torres e Raphael Cavalcante (2006).

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Texto 2 FESTAS JUNINAS 1 Jadir de Morais Pessoa 2 Devido centralidade da figura de Jesus Cristo na cultura ocidental, o ciclo natalino quase sempre aparece como o mais importante. Mas, considerando-se a diversidade de elementos e a antiguidade da origem de muitos deles, o ciclo das festas juninas igualmente bastante significativo. Em termos religiosos, ele marcado sobretudo pelas festas de Santo Antnio, So Joo e So Pedro. Mas a Festa de So Benedito que, oficialmente, ocorre no dia 5 de outubro, em muitos lugares incorporada tambm ao ms de junho. Alis, no calendrio das festas de parquias e prefeituras pelo Brasil afora, o dia de So Benedito 3 de abril, 4 de abril, 14 de abril, algum dia de agosto, sem contar que no ms de dezembro h trs dias de So Benedito: 20, 27 e 28. Aparentemente mais pags, situam-se tambm no ms de junho as festas do Bumba-meu-boi e suas inmeras derivaes (BoiBumb AM e PA, Boi-de-Mamo SC, Boi Pintadinho e Boi Turuna RJ, e Boizinho RS). Disse aparentemente, porque essas festas guardam um vnculo religioso bastante expressivo: em So Luis-MA os bois fazem um dia de batizado em frente Igreja de So Pedro; o boi do antigo bairro de Madredeus, tambm em So Luis, apresenta-se em frente a um altar com tero, velas e vrias imagens e quadros de santos. Tambm faz parte do enredo desse belssimo auto popular, nos dias da morte do boi, a interveno de padres e/ ou pajs na tentativa de se ressuscitar o boi, e, por extenso, livrar a pele de Pai Francisco e Catirina. Mas, quais so as explicaes histricas para esse perodo de festas, e quais so os principais elementos que as compem?
Esse texto integra o boletim do programa Festas juninas da srie Aprender e ensinar nas festas populares, abril, 2007. www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Com algumas adaptaes, extrado do livro Saberes em festa (ver referncias). 2 Professor na Universidade Federal de Gois. Membro da Comisso Goiana de Folclore. Consultor desta srie.

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A fertilidade das mulheres, das plantas e dos animais bom lembrar, de incio, que a ponte pela qual chegaram at ns as crenas e tradies que compem as festas juninas o colonizador portugus. No s no ato do descobrimento, como tambm, ao longo dos trs sculos de nossa condio de Colnia, nossa vida cultural foi sendo gradativamente formada pelos costumes europeus, via Portugal. No perodo imperial, esta europeizao prosseguiu, mas com outros componentes populacionais. Com o fim da importao de escravos negros, a partir de 1850, a cafeicultura recorreu aos trabalhadores europeus, especialmente os suos, alemes, italianos e espanhis, que tambm foram bastante explorados, enfrentando difceis condies de sobrevivncia. Entre os germanos, celtas, gregos, suecos, italianos, enfim, em toda a Europa, aconteceram, em tempos remotos, de diversas formas, os cultos das rvores ou cultos aos espritos das rvores. Acreditava-se que os espritos das rvores que eram responsveis pelo crescimento e reproduo das plantaes. O mesmo poder lhes era atribudo em relao fertilidade das mulheres e dos animais domsticos (FRAZER, 1982, p. 61). Em outras culturas, havia at uma vinculao entre a fertilidade das mulheres e a das plantas. James Frazer mostra que entre os ndios do Orenoco e os ndios Tupinambs no Brasil, respectivamente, a semeadura do milho e da castanha era sempre feita pelas mulheres. Para eles, s as mulheres sabem fazer com que as plantas se reproduzam, pois s elas sabem reproduzir (Idem, ibidem, p. 40). O modo mais antigo e mais comum de se prestar homenagens aos espritos das rvores cortar uma delas no bosque e lev-la para o centro da aldeia, onde ser erguida em meio alegria geral. O objetivo atrair o esprito frutificante da vegetao, tanto para a populao, como para o rebanho, ainda segundo Frazer (p. 62). H dois costumes nas festas populares no Brasil que lembram muito bem essas prticas mgico-religiosas. So o erguimento do mastro nas festas juninas e o pau-de-fitas, com danas e cnticos ao seu redor. Um outro elemento formador do que so hoje as festas juninas o costume de relacionar as atividades destinadas sobrevivncia (pesca, coleta de frutos, colheita) com prticas mgicas e religiosas (p. 38). Isso remonta a civilizaes ainda mais antigas. No Israel 212

antigo, por exemplo, existia a festa das primcias (ver na Bblia, Lv. 23, 9-14), que era o reconhecimento de que Deus o senhor da natureza e fonte de toda a fecundidade. Com o fim do cativeiro no Egito, a festa das primcias foi incorporada Pscoa dos judeus e, posteriormente, Pscoa crist. O que h de correspondente nas festas juninas a existncia de comidas e bebidas base de produtos agrcolas de poca: amendoim, gengibre, jerimum, milho, milho-depipoca e outros. As bnos do fogo De dezembro a junho, o sol vai gradativamente se distanciando do Equador e vai se colocando mais a pino. Essa trajetria tem seu pice no dia 24 de junho, que ento o dia do solstcio de vero no Hemisfrio Norte e de inverno no Hemisfrio Sul no Brasil, portanto, solstcio de inverno. No prprio dia 24 de junho, o sol inicia sua trajetria de volta, refazendo sua inclinao em relao ao Equador. Esse movimento culmina no dia 23 de dezembro, que o dia do solstcio de inverno, quando no Brasil se inicia o vero. O solstcio de vero, no dia 24 de junho, o centro das festividades juninas. o grande momento da carreira do sol, o dia em que ele chega mais alto no cu. Assim como outros fenmenos da natureza (eclipses, chuva, trovo, relmpago), o solstcio de vero s podia ser visto com preocupao pelo homem primitivo. Da a razo de ele ser secularmente celebrado. O ponto alto da comemorao do solstcio o costume de acender grandes fogueiras, geralmente em lugares altos, na noite de vsperas. O sentido da fogueira vem da crena de que o sol que garante a fertilidade. Como no solstcio ele atinge o mximo da sua luz e calor, acredita-se que a fogueira traga para a terra esses benefcios (luz e calor) com mais intensidade. Portanto, o fogo da fogueira capaz de promover o crescimento das plantaes e o bemestar dos homens e dos animais. Alm disso, o fogo afugenta os perigos e calamidades (raios, pestes, esterilidade), afugentando as bruxas que os promovem. Trazendo um pouco do sol para perto dos seres vivos, a fogueira torna-se sagrada. Tudo nela tem poderes sagrados, capazes de garantir a fertilidade e a sade. Por isso, da fogueira derivam tambm outras prticas mgico-religiosas: transportar ties, tochas 213

ou cinzas da fogueira para o meio das pastagens e do rebanho; andar em volta da fogueira, passar pela fumaa ou passar por sobre as brasas, para prevenir enfermidades e esfregar cinzas da fogueira pelo corpo, com o mesmo sentido de cura. O imaginrio popular garante tambm que, tal como a fogueira, a noite de vsperas do solstcio de vero tem poderes especiais. Assim, se as plantas medicinais forem colhidas naquela noite, tero poderes acima do normal para curar enfermidades. Tambm se acredita que o banho de gua corrente, antes de o sol sair, pode ser portador de muita sade e sorte at a mesma data do prximo ano (CMARA CASCUDO, 1988 verbete So Joo). A re-significao religiosa At aqui, falou-se mais sobre as origens pags dos ritos e crenas que compem as festas juninas. Mas h nelas tambm fortes identidades catlicas, manifestas principalmente nas rezas de tero e devoo aos santos. At se pode dizer que as festas juninas so tradicionalmente festas religiosas. que, ao longo dos sculos, a Igreja Catlica foi assumindo a maioria dos smbolos das festas juninas, inserindo neles a sua lgica organizativa e os seus valores religiosos e rituais. Aqui necessrio falar de um duplo movimento em relao s festas de junho: catolicismo oficial e catolicismo popular. A hierarquia catlica conseguiu permear essas mesmas festas com alguns elementos do seu culto oficial. Alguns exemplos: oraes reconhecidas pela Igreja; as trs principais festas so festas de santos (Santo Antnio, So Joo e So Pedro); e, no mastro que homenageava os espritos da vegetao, erguem-se hoje estampas dos trs referidos santos. Mas at meados do sculo XIX, antes do perodo chamado de romanizao do catolicismo brasileiro, a capacidade de atendimento religioso da Igreja Catlica estava instalada praticamente nas cidades. A grande maioria da populao estava no campo, onde o atendimento religioso era garantido por associaes, confrarias, rezadores e beatos, irremediavelmente margem do controle oficial catlico. Essa situao definiu, no quadro religioso brasileiro, o que chamado de catolicismo popular. Sua principal caracterstica compreender um grande nmero de smbolos e prticas, cuja organizao e realizao independe da hierarquia catlica. So 214

prticas religiosas que se situam tambm fora do calendrio oficial e dos seus locais de culto. Mas isso no significa um cisma ou uma negao da Igreja. Os sujeitos sociais definidos por essas prticas guardam uma grande fidelidade hierarquia e, em geral, at mantm uma relativa freqncia aos atos oficiais, especialmente aos sacramentos. O que h de catlico nas festas juninas refere-se principalmente a esta forma de afiliao religiosa. Portanto, mesmo que celebrem santos oficiais catlicos, as trs principais festas de junho so predominantemente domsticas ou, no mximo, ao nvel da vizinhana, e no necessitam da iniciativa dos principais agentes da Igreja. Mais ainda: sem a presena sacerdotal para o devido atendimento religioso aos imensos contingentes de camponeses, as festas de fogueira assumiam at algumas funes sacramentais. Uma delas a celebrao do batismo em volta da fogueira, enormemente difundida nos sertes de vrios estados brasileiros. O batizado de fogueira era levado muito a srio, ajudando, inclusive, a sustentar a instituio do compadrio, de fundamental importncia para as relaes sociais camponesas. At o casamento em volta da fogueira, encenado hoje como uma comdia grotesca, j foi muito praticado, com validade, em algumas regies de maior isolamento. Cmara Cascudo cita registros, dando notcias de que nos Gerais, regio entre Piau e Gois, o casamento na fogueira de So Joo ainda era assumido como sacramento at 1912. Tal unio era posteriormente legitimada com a passagem de algum missionrio em desobriga (CMARA CASCUDO, 1988). A migrao do fogo Pode-se argumentar, no entanto, que tudo isso faz parte de um passado de lendas e crenas mgicas; de um passado campons que j no existe mais. Os problemas que essas prticas rituais procuravam resolver j tm novas e mais eficazes solues na sociedade urbanizada e industrializada. De fato, a relao entre populao urbana e populao rural no Brasil se alterou muito nos ltimos 50 anos. E verdade tambm que estamos envolvidos pela lgica do planejamento racional, do resultado e do lucro. Mas isso ainda no foi suficiente para soterrar a festividade camponesa. Em boa medida, o que ocorreu foi a sua 215

transferncia para os ptios dos colgios e das igrejas, na cidade, tomando a forma de quermesse ou simplesmente festa junina. bem verdade, tambm, que ela perdeu a sua gratuidade, tornando-se marcadamente uma festa de arrecadao de fundos. Essa transformao ainda objeto de repdio e polmica. A representao do caipira, sobretudo nas quadrilhas e casamentos, tida por muitos como explorao da condio de pobreza e da simplicidade da gente do serto. A folclorista Regina Lacerda (1977, p. 64) at formaliza um protesto contra essa condio de objeto de chacota a que o campons humilde ficou submetido nas festas juninas urbanizadas. Somo-me veementemente a esse protesto de Regina Lacerda e de tantos amigos folcloristas. Mas, por outro lado, por minha formao antropolgica, no posso deixar de dizer que a questo fundamental, antes de qualquer juzo analtico, tentar entender as razes da recorrente e grotesca encenao do caipira no contexto urbano. O escritor ingls Raymond Williams, nascido em uma aldeia ao p das Montanhas Negras, mesmo depois de se tornar o importante crtico literrio que foi, e de ter morado em grandes cidades da Inglaterra, exclamou: Nasci numa aldeia e at hoje moro numa aldeia. Voltando ao Brasil, a encenao do caipira nas festas juninas da cidade muito mais a construo coletiva de um autoretrato, ainda que caricatural. uma representao do caipira que, em graus diversificados, ainda est dentro de cada um de ns. Bem que gostaramos de que ele pudesse se manifestar naturalmente. Mas os cdigos preestabelecidos da vida urbana nos constrangem, impedem-nos de deixar que sejamos, em mais dias durante o ano, um tpico caipira no falar, no vestir, etc. Tal como acontece nos quatro dias do carnaval, temos, no dia da apresentao da quadrilha, uma permisso social para invertermos nossa rotina urbana e assim, envoltos em gracejos e at em elogios pela performance, sermos o caipira que gostaramos de poder ser. Ento, em vez de explorado nas nossas brincadeiras, o homem do campo, sbio no seu conhecimento profundo de todas as formas de vida e religiosamente integrado fecundidade das plantas e dos animais, est gritando, suplicando para no morrer dentro de ns.

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Bibliografia: CASCUDO, Luiz da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro. 6.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. COX, Harvey. A festa dos folies. Petrpolis: Vozes, 1974. FRAZER, James G. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982. LACERDA, Regina. Folclore brasileiro Gois. Rio de Janeiro: Funarte, 1997. PESSOA, Jadir de M. Saberes em festa: gestos de ensinar e aprender na cultura popular. Goinia: Editora da UCG/Kelps, 2005.

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Texto 3 FESTAS CARNAVALESCAS O avesso e o plural na folia Evo, Evo! Baco! Sobre as colinas, sobre a caatinga, sobre o mar e o mato, nada de silncio! O rufar dos tambores de maracatu chama. A flauta mgica do deus P e dos caboclinhos insiste. O toque dos clarins grita: hora de obedecer ao frevo e danar o passo. Dioniso, ou Baco, o deus do vinho, quem ordena. Passam as bacantes festejando. Dionisaca a temporada. O deus de Nisa quer ver desfilar clubes pedestres, clubes de alegoria e crtica, ursos, bois, burrinhas, bonecos gigantes, papangus e caretas, cambindas, maracatus... Enfim, o estpido folguedo africano, segundo o Dirio de Pernambuco, na dcada de 80 do sculo 19. a festa da dana, da bebedeira e da liberdade de colocar a vida pelo avesso. o reinado dos deuses da alegria, o reinado de Baco e Momo. Filho do sono e da noite, Momo o deus grego da zombaria e dos gracejos. Usa mscara e carrega um basto. Entre ns, a divindade da Grcia foi adotada como o rei do carnaval, e nada mais lgico, j que esse um tempo propcio a momices e diverses. Mergulhados no vinho e nas delcias da vida, os portugueses excessivamente catlicos assim se preparavam para jejuar e fazer penitncia durante os quarenta dias que antecediam a Pscoa ou festa da ressurreio do Cristo. Era isto o entrudo: uma forma de brincar, festejar com gua, lima-de-cheiro, goma enquanto no chegava a quarta-feira de cinzas e o recolhimento do ciclo religioso da quaresma. A palavra entrudo, que significa intrito, introduo, exatamente a entrada do perodo quaresmal. Foi assim, com essa brincadeira de mela-mela do entrudo que comeamos, em Pernambuco, a registrar as comemoraes do carnaval. Nas primeiras festas de rua, os autos hierticos ou catequticos, organizados pelos jesutas, com o fim de cristianizar os ndios, misturaram-se s festas pblicas do perodo colonial e do
Esse texto integra o boletim do programa Festas Carnavalescas da srie Aprender e ensinar nas festas populares, abril, 2007. www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Jornalista. Membro da Comisso Pernambucana de Folclore.

Maria Alice Amorim 1

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Imprio, aos costumes de negros, europeus e indgenas. A partir da manifestao carnavalesca do entrudo, das mascaradas e de tantos outros folguedos populares dos ciclos festivos, a nossa festa momesca se multiplicou e diversificou tanto que hoje o carnaval pernambucano oferece um dos mais ricos conjuntos de manifestaes folclricas durante os dias dedicados a Momo. Personagens, vesturio, cenrios das procisses e cortejos oficiais dos tempos coloniais e do Imprio transferiram-se para as festividades de carnaval, como comprovam importantes pesquisadores que se debruaram sobre temas carnavalescos de Pernambuco e trataram justamente dos primrdios do nosso ciclo carnavalesco e da relao entre a folia e as festas populares. O papangu, por exemplo, hoje bastante conhecido como smbolo da cidade de Bezerros, era figura grotesca nas procisses de cinzas, era o mascarado que seguia frente do cortejo religioso, abrindo alas com um relho ou chicote, sob vaias e pitombas da gurizada. Festas: mscaras do tempo, de Rita de Cssia Barbosa de Arajo, trata do entrudo, mascarada e frevo no carnaval do Recife, num contexto histrico e social de grande represso sobre as manifestaes espontneas e de estreita relao entre Igreja e Estado. No livro Carnaval: cortejos e improvisos, o presidente da Comisso Pernambucana de Folclore, pesquisador Roberto Benjamin, aborda justamente a ligao dos cortejos religiosos com os cortejos carnavalescos, a caricatura das festas oficiais durante o carnaval e a vontade de experimentar o mundo pelo avesso durante os dias de Momo. Leonardo Dantas Silva, em Carnaval do Recife, aponta dados importantssimos para a compreenso da formao dos grupos populares de carnaval. O folclore no carnaval do Recife, da antroploga norte-americana Katarina Real, uma obra pioneira e indispensvel, escrita na dcada 1960, aps cerca de cinco anos de pesquisa de campo nos subrbios e tambm durante o perodo da folia. O livro registra diversas manifestaes folclricas, como os caboclinhos, maracatus, bois, la ursa, dentre tantas outras que compem a riqueza do carnaval pernambucano. Caboclinhos, tribo de ndio e la ursa. A brincadeira dos caboclinhos descende diretamente dos autos catequticos que os jesutas organizavam para cristianizar 220

os indgenas. H no muito tempo, era um auto dramtico, em que mestre e ndios recitavam versos decorados, no estilo dialogado, com a participao individualizada de caboclos e respostas do coro. A coreografia exuberante e mostra passos de dana guerreira a cada toque dos instrumentos flauta, bombo, mineiro e caixa. H, ainda, as tribos de ndio, denominao utilizada pela pesquisadora norte-americana Katarina Real para destacar as diferenas entre essa manifestao folclrica e os conhecidos caboclinhos. Na tribo, h diferenas na vestimenta, composta por cala, camisa e avental; no escudo, que os ndios portam numa das mos, a outra reservando a machadinha; nos passos da coreografia, que tambm de guerra. Segundo Katarina, da Paraba vieram as nossas carnavalescas tribos de ndio, e as primeiras que comearam a desfilar no Recife mantinham forte ligao com aquele estado. Entretanto, disseminaram-se de tal maneira que os caboclinhos da Mata Norte apresentam uma fuso de caractersticas, aliadas a elementos do maracatu rural: tm vesturio parecido com o dos caboclos de lana e h a figura do mestre (poeta) improvisador. O som melfluo da flauta presena viva em todos os grupos, embora cada um mantenha o prprio sotaque musical. Alm do Recife, Goiana, no litoral norte, uma localidade especial para ver caboclinhos. H, dentre outros, o centenrio Cahets, Canind, Unio Sete Flexas. Em Tracunham e Buenos Aires so tradicionais o ndio Tupi-Guarani e o ndio Brasileiro. La ursa vem do Hemisfrio Norte - Herana europia no carnaval pernambucano, a representao do animal se d com a fantasia composta de mscara do urso e de simulada pelugem do corpo em macaco feito de tecido e outros materiais. H o domador ou amestrador, que o conduz preso a uma corda ou corrente. H o caador que, munido de espingarda, vai perseguindo o bicho sempre que ele tenta escapar. A msica a marcha-frevo da la ursa executada por uma orquestra composta de sanfona, zabumba, reco-reco e tringulo. O pesquisador Roberto Benjamin publicou, em fevereiro de 2001, no Suplemento Cultural, encarte do Dirio Oficial do Estado de Pernambuco, ensaio em que analisa a presena do urso no imaginrio popular de europeus aqui chegados desde os primrdios da colonizao. Analisa, ainda, a presena de ursos em grupos de comediantes e artistas de circo italianos, muitos dos quais ciganos amestradores de urso, vindos numa leva de imigrao no sculo 19. Da a existncia do personagem domador italiano. Por 221

fim, relaciona a obscenidade e o aspecto religioso invocados pela brincadeira como um retorno a simbologias ancestrais vinculadas ao animal. Katarina, na pesquisa sobre o folclore no carnaval recifense, trata dos ursos e menciona, sobre o mesmo tema, os estudos de pesquisadores como Louis-Franois de Tollenare e Francisco Pereira da Costa. Olha o frevo e o passo! Em meio ao frenesi da percusso dos bois de carnaval, da marcha-frevo dos ursos, sobressaem os acordes lricos dos blocos de pau e corda, o frevo-cano e o som metlico das orquestras de frevo-de-rua que acompanham os clubes e os blocos carnavalescos mistos. O encontro de blocos lricos nas ruas do Bairro do Recife, nas ladeiras de Olinda momento inesquecvel para quem se emociona com o modo menor, o tom melanclico do frevo-de-bloco. Essa msica suave chama os folies s evolues coreogrficas, que fazem da exibio um espetculo delicado, cheio de movimentos de braos e mos para o alto, enquanto a vibrao do sopro rasgado do frevo-de-rua puxa os carnavalescos para a excitao da coreografia do passo. O frevo um ritmo caracterstico da folia pernambucana que comeou a delinear-se em fins do sculo 19, a partir de uma combinao de ritmos modinha, polca, maxixe, dobrado , e o passo surgiu das acrobacias dos capoeiras que abriam os caminhos para as bandas militares desfilarem. O ritmo binrio do dobrado estridente tocado durante as procisses est na base do frevo-de-rua, enquanto no frevo-de-bloco a sonoridade cadenciada de cordas, flautas e palhetas aponta a vinculao com o choro. Conforme pesquisa de Evandro Rabello, at o momento o registro mais antigo da palavra frevo o que aparece em 9 de fevereiro 1907, no Jornal Pequeno, do Recife, como ttulo de uma das canes executadas num baile de carnaval, e significando uma variante do verbo ferver, ou seja, frever, frevana, frevura, frevo. Mestre Zuzinha, Antnio Sapateiro, Nelson Ferreira, Edgard Moraes, Capiba, Duda, Jos Menezes, maestro Nunes so alguns dos notveis compositores do ritmo. Vrios tipos de agremiaes carnavalescas tocam o frevo e danam o passo: troas, blocos, clubes de rua. Estes, que eram chamados de clube pedestre, ganharam a denominao com Katarina 222

Real, na pesquisa realizada nos anos 1960. A inteno era melhor delimitar os grupos relacionados ao frevo. Tais clubes, conforme as pesquisas de Katarina, Valdemar de Oliveira e diversos autores, foram criados a partir das corporaes de artesos e das associaes de profissionais, que fizeram surgir, por exemplo, o Vassourinhas (1889) e o Clube das Ps (1890), dois cones do carnaval pernambucano. Inclusive, a Marcha n 1 do Vassourinhas uma espcie de hino do carnaval do Recife. Espanadores, Remadores, Chaleiras de So Jos, Lenhadores, Abanadores eram alguns dos clubes fundados em fins do sculo 19 e incio do sculo 20. Havia, ainda, blocos que congregavam comercirios portugueses, como o Caninha Verde, tradicional brincadeira lusitana disseminada em algumas partes do Brasil. Clube de fado - Em Vitria de Santo Anto, h o Clube de Fados Taboquinhas, provavelmente derivado do Caninha Verde. Na cidade em que os clubes de alegoria e crtica Girafa, Leo, Cebola Quente, Galo do Caj, Cisne, Zebra e a briga de Leo com Camelo, de Cisne com Girafa empolgavam os folies, o que acelerava os nimos, por volta de 1924, era ver as taboquinhas pintadas de verde marcando no cho o ritmo daqueles brincantes vestidos moda portuguesa. A existncia de um jornal, O Ilheo, do sculo 19, dava conta, no Recife, de brincadeira do gnero, pois era editado pelo Clube da Canna Verde, composto por imigrantes portugueses que cantavam fado e danavam o vira no carnaval. Havia, em Vitria, outros grupos do mesmo tipo, o Senhora Helena e o Cana Roxa, que tambm executavam msicas semelhantes. As Taboquinhas ainda brincam no carnaval, dois cordes de moas e rapazes desfilam vestidos com as cores de Portugal, flabelo frente, Senhora Helena e Sinh Pequena no centro. Todos vo levando ao ombro uma taboca, de cerca de metro e meio, planta da famlia do bambu. Quando cantam, marcam o ritmo batendo-a no cho, e a msica tem evidente vinculao com o frevo-de-bloco, inclusive pela presena de instrumentos de pau e corda: violino, rabeca, cavaquinho, violo, atabaque, pandeiro. As coreografias consistem em evolues no cordo. Brincadeiras relembram reis de Congo Desdobramento das antigas festas de coroao de reis negros, promovidas em devoo aos padroeiros dos pretos africanos Nossa 223

Senhora do Rosrio e So Benedito , as cambindas, as pretinhas de Congo, o samba de matuto, os maracatus de baque solto e virado so hoje variantes autnomas transpostas para o ciclo do carnaval. Nas cambindas, os antigos participantes eram negros integrantes dos segmentos mais baixos da sociedade local, trabalhadores rurais, operrios de fbricas, feirantes etc., conforme o pesquisador Roberto Benjamin, em artigo publicado em maio de 1985, nos Cadernos da Universidade de So Paulo. O samba de matuto foi registrado pelo poeta Ascenso Ferreira, na Mata Sul, e os maracatus tm sido documentados por importantes estudiosos, entre eles, o compositor, instrumentista e musiclogo Csar Guerra Peixe. Sobre as pretinhas, Benjamin cr na ligao com a aruenda, extinta brincadeira que existia na cidade de Goiana. Pretinhas do Congo - Dois cordes de pretinhas saem, marac na mo, respondendo s jornadas puxadas pela mestra e acompanhadas de percusso. No miolo, estandarte, rei, rainha e dois vassalos ou secretrios. O cearense Oswald Barroso menciona, no livro Reis de Congo, um texto de Paulo Elpdio de Menezes, em que este conta como se passa a brincadeira dos congos na regio do Crato, citando a presena de personagens, tais como rei, prncipe e secretrio. Barroso ainda cita Menezes, ao referir-se ao canto dos congos do Cariri, na segunda metade do sculo 19: Oh, pretinhas do Congo/ para onde vo?/ Ns vamo pro Rosaro/ festej Maria. Cruzam-se personagens, cantos e o nome da brincadeira goianense, retirada de uma estrofe daquela cantiga. Na praia de Carne de Vaca, a veterana Carminha Ribeiro deu continuidade ao que o pai comeou. Fundado em 1930, o grupo das pretinhas era da cidade, mas, com a transferncia da famlia para o litoral, h mais de 30 anos, l que brincam. Adultos, jovens, adolescentes e crianas percorrem diversas ruas da localidade, parando em algumas delas para se apresentar na casa de conhecidos ou apreciadores annimos. Durante dcadas era o apito de dona Carminha quem indicava as pausas e recomeo, com voz firme, postura altiva e boa memria, indispensveis na hora de tirar as jornadas. De 1936 so as pretinhas do baldo do rio, tradio da famlia do falecido babalorix Heleno. A mestra Rosa Santos, sobrinha de Heleno, lembra que nos tempos de fartura tinha at carruagem, senhores de engenho, feitor e escravos. Hoje, alm de rei, rainha, vassalos, bandeirista e cordes das pretinhas, h somente 224

alguns escravos com enxada na mo. O irmo de Heleno, Edvaldo Ramos da Silva, o coordenador da agremiao. Cambindas - Um bando alegre de baianas tisnadas percorre as ruas de Ribeiro, na Mata Sul. No meio dos cordes de mulheres e homens fantasiados de baiana, um plio abriga rei e rainha, posicionados entre estandarte e msicos (tarol e bombo). No miolo, circula a baiana, fazendo as vezes de poeta improvisador, tecendo loas em memria de tradicionais folgazes, a exemplo do mestre Goit, que fez versos pras Cambindas. frente, a dama da boneca preta alardeia que o grupo est chegando, e pede dinheiro para os tocadores, cheia de liberdade com os passantes ou espectadores espalhados pelas caladas, bares e residncias. Segundo os mais antigos, as Cambindas de Ribeiro existem desde 1928. Em Pesqueira, a Cambinda Velha de 1909, conforme registro no estandarte e foi fundada por Aprgio Amaral, av do atual presidente e mestre do grupo, Rosano Amaral. Nela desfilam cerca de 36 homens vestidos de baiana, ao som da percusso. Baque virado dos tambores da nao - A batida do maracatu nao convida dana e tudo dana, ritmo, personagens, vestimentas, adereos , tudo nos remete aos registros mais antigos desta brincadeira: a antiga cerimnia de coroao dos reis de Congo, realizada durante o perodo colonial, em igrejas dedicadas Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos e So Benedito. Entretanto, isto no nos deixa esquecer a estreita relao do baque virado com os terreiros de candombl. No incio do sculo 17, reis e rainhas Angola eram nomeados na cidade do Recife, conforme registro de diversas coroaes em arquivos da Irmandade de N. S. do Rosrio dos Homens Pretos de Santo Antnio. Das diversas naes de negros, a dos Congos era a que mais se destacava dentre as associaes daquelas irmandades. A cerimnia de coroao acontecia na entrada dos templos catlicos, com o aval dos senhores brancos e da Igreja. Isto at o final do sculo 19, no Recife. Transformados em maracatu, os grupos mantiveram a nomenclatura de nao e, representando o cortejo rgio da festividade, figuram o rei e a rainha, conduzidos sob uma umbela ou guardasol, os lampies, as damas do pao ou da boneca (importante objeto ritual), prncipe, princesa, embaixador, porta-estandarte, o smbolo da nao, dois cordes de baianas e os batuqueiros. Os instrumentos so gongu, tarol, caixa de guerra, bombo. No vesturio e adereos, 225

a referncia ao culto dos orixs explcita. Os grupos so sempre vinculados a determinado terreiro de candombl, o que serviu para aprofundar o sincretismo religioso. O registro mais remoto de maracatu, conforme aponta Guerra Peixe, de 1867. Segundo ele, a denominao africana e designa uma dana praticada pela tribo dos Bondos, que vivia, durante a ocupao portuguesa, a 50 km de Luanda, Angola. Ainda conforme o pesquisador, inicialmente os maracatus eram designados de naes e afoxs. O termo nao implicava vnculo administrativo com a instituio de reis de Congo, mas era como o afox que se apresentavam nas festas de coroao. Pereira da Costa, no Folk-lore Pernambucano, de 1908, cita como exemplo de toada de maracatu a estrofe que diz: Aruenda qui tenda, tenda/ Aruenda qui tenda, tenda/ Aruenda de totoror. Estes versos remetem para a brincadeira da Aruenda de Iai Pequena, que existiu em Goiana, e tem ligao direta com os maracatus, cambindas e pretinhas do Congo. Dos grupos tradicionais, podemos destacar o Nao Elefante (1800), Leo Coroado (1863), Estrela Brilhante do Recife (1906), Porto Rico do Oriente (1915). O maracatu Estrela Brilhante de Igarassu um dos mais antigos em atividade, e, segundo tradio oral, existe desde 1824 naquela cidade onde h remanescentes de negros escravos. O Leo Coroado abrigou durante dcadas reverenciado carnavalesco, o mestre Lus de Frana. Uma das mais destacveis rainhas de maracatu foi Dona Santa, do maracatu Nao Elefante. A Noite dos Tambores Silenciosos importante cerimnia que rene os grupos de baque virado no Ptio do Tero, Recife. Criada nos anos 1960 pelo jornalista Paulo Viana, e que vem acontecendo desde essa poca, com certa regularidade, rene maracatus pernambucanos que prestam homenagem aos eguns, ou esprito dos mortos, no dia a eles dedicado, a segunda-feira, em ritual conforme manda os costumes jeje-nag. Baque solto ressoa na palha da cana - com o esplendor da cabocaria, ou caboclos de lana, que o maracatu de baque solto se faz notado, muito mais do que com a pancadaria da maquinada ou surro aqueles chocalhos que levam s costas, presos numa moldura de madeira coberta com pele de carneiro sinttica. com a ajuda da bengala ou batuta e do apito que o mestre improvisa os versos e comanda a brincadeira. Diferente do maracatu nao ou de baque virado, o maracatu rural, tambm chamado de baque solto 226

ou de orquestra, no descende exclusivamente da instituio dos reis de congo. Conforme o pesquisador Roberto Benjamin, muito mais o resultado da fuso de manifestaes populares cambinda, aruenda, cavalo-marinho , alm da evidncia de elementos comuns festividade de coroao dos reis negros. H o cortejo real, personagens sujos (Mateus, Catirina, burrinha, babau, caador), um grupo de baianas ou baianal, dama do buqu, dama do pao, calungas, porta-estandarte, os vistosos caboclos de pena e de lana. Tem forte tradio na palha da cana, sobretudo na Zona da Mata Norte, em Pernambuco. Os dois maracatus mais antigos, conforme tradio oral, so originrios de Nazar, cidade da zona canavieira considerada a Meca dos maracatus de baque solto. So eles o Cambindinha de Araoiaba (1914) e o Cambinda Brasileira (1918). Este ltimo do engenho Cumbe, a 6 km do centro de Nazar da Mata. O Cambindinha, embora atualmente esteja sediado em Araoiaba, foi fundado em terras de Nazar. Na dcada de 30, com a migrao dos rurcolas para reas urbanas, esse tipo de maracatu comeou a aparecer no Recife. Exemplo disso o maracatu Cruzeiro do Forte, criado em 1929, e o dissidente Almirante do Forte, de 1931, que era maracatu rural e depois virou o baque. Hoje, podemos encontrar o baque solto na Mata Norte, Mata Sul, Regio Metropolitana e at na Paraba. A msica feita com instrumentos de sopro e percusso, e o mestre entoa versos improvisados e decorados, mas no acompanhado do instrumental. Quando a orquestra pra, o mestre entra, a cada vez, com uma das muitas estrofes que desfia ao longo da apresentao. Os mestres desenvolvem pelo menos quatro modalidades de verso: a marcha, o galope, o samba curto e o samba de dez. O visual muito bonito, sobretudo o dos caboclos de lana, que se vestem com mantos (chamados de gola) bordados de lantejoulas, miangas, vidrilhos, canutilhos. Na cabea, um chapu coberto com tiras coloridas de papel celofane ou brilhoso. Na mo, uma lana pontiaguda forrada com fitas coloridas que pendem ao longo dela. O apelo visual da cabocaria complementado pelo dos caboclos de pena ou arream, adornados com farto cocar de plumagem de pavo, ema e avestruz. No de hoje o vigor do maracatu rural. O pesquisador Berlando Raposo, em carta ao Dirio de Pernambuco, de 1 de maro de 1977, relembra o tempo em que os senhores de engenho bancavam maracatu com duzentos figurantes, oitenta deles vestidos 227

de caboclo. Hoje, bastante difundidos na mdia, os grupos fazem valer esse prestgio, apresentando-se em diversas cidades da Mata Norte e da Regio Metropolitana. Organizados desde 1990 em associao, na sede, em Aliana, e tambm no centro daquela cidade, alm de Nazar, que praticamente todos os maracatus rurais cerca de oitenta comparecem durante o perodo carnavalesco. Smbolos de pernambucanidade, os famosos caboclos de lana percorrem Igarassu, Nazar, Buenos Aires, Tracunham, Carpina, Ch de Alegria, Lagoa de Itaenga, Feira Nova, Araoiaba, Paudalho, dentre outras cidades em que tradicional a presena dos maracatus rurais. Em Pernambuco, onde a ginga do frevo nos faz cair no passo, no falta negritude no sangue para que o baque do maracatu tome o nosso corpo. Evo! Ax!

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Texto 4 FESTAS DE TRABALHO Carlos Rodrigues Brando 1

Todos ns que, como educadores, investigadores profissionais, amadores ou artistas, estudamos a cultura camponesa uma entre outras tantas culturas populares passamos um dia pela leitura de Antonio Candido, de quem aprendemos que toda a relao dos grupos humanos com o seu meio fsico e ambiental explica-se pela busca de garantir os meios de vida. Da correlao entre as necessidades e a sua satisfao que depende, em boa medida, o equilbrio social (CANDIDO, 1979, p. 23). E o trabalho o meio pelo qual homens e mulheres buscam assegurar esses meios de vida. Mas o que Antonio Candido chama de equilbrio social no se esgota apenas na satisfao da necessidade biolgica da alimentao e da sobrevivncia de indivduos, famlias, comunidades e nacionalidades. Por meio do trabalho, o homem deixa a sua marca no meio fsico. Deixa os seus sinais na natureza, onde procura satisfazer as suas necessidades materiais. Pois, como diz Octvio Ianni, um outro socilogo brasileiro:
precisamente pelo trabalho que [o homem] se exterioriza, expressa. Todo produto da atividade humana configura-se tambm como realidade espiritual. O homem se manifesta em coisas, fatos, acontecimentos que se apresentam como realizaes com significado. Ao criar, cria-se a coisa e o sentido. (IANNI, 1988, p. 53)

Assim, podemos dividir as aes humanas, quaisquer que elas sejam, em atos prticos, de que o trabalho produtivo aquele que visa a alguma transformao da natureza e produo de bens teis aos homens o melhor exemplo, e em gestos simblicos. Eles envolvem aes individuais, realizadas em famlia, em outros
Esse texto integra o boletim do programa Festas do Trabalho da srie Aprender e ensinar nas festas populares, abril, 2007. www.tvebrasil.com.br/salto/ 1 Psiclogo, Mestre em Antropologia Social (UnB) e Doutor em Cincias Sociais (USP). Professor livre-docente e aposentado da UNICAMP e Professor Visitante da UNIMONTES Mg.

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pequenos grupos, como uma equipe de amigos ou vizinhos, ou em uma comunidade maior, tal como acontece com os atos prticos do trabalho. Mas a diferena est em que atravs de gestos simblicos no se visa a um resultado produtivo, material, mas a uma troca, a uma intercomunicao entre pessoas, ou entre pessoas e seres naturais ou sobrenaturais em que elas crem, atravs de palavras, de condutas regidas por saberes e preceitos. Gestos vividos entre preces, cantos, danas, pequenas dramatizaes, jogos, brincadeiras, festejos, ritos, rituais, celebraes, enfim. Sendo realizadas atravs do trabalho de algumas pessoas (s vezes um duro e penoso trabalho, mas sempre se diz que o melhor da festa esperar por ela), as nossas festas populares do campo e da cidade so imagens do que mulheres e homens fazem juntos quando se renem, numa quebra do cotidiano, para compartir algo, para conviver, rememorar, celebrar, festejar, honrar um deus, um santo ou alguma pessoa, enfim, comemorar algo: festar. muito comum que os atos prticos sejam considerados como um quase oposto dos gestos simblicos, da mesma maneira como se costuma opor o trabalho festa. Pois toda a celebrao, toda a festa seria, afinal, um tempo-e-espao de ruptura da rotina da vida cotidiana dominada pelo exerccio dos atos prticos do trabalho. Mas tanto nas mais pequeninas situaes quanto nas maiores festividades, como os quatro dias de folia do nosso Carnaval, no raro que atoe-gesto estejam juntos e sejam vividos um aps o outro, ou mesmo a uma s vez: um-com-o-outro. Por exemplo, quando um lavrador, acompanhado de seu filho, inicia em sua roa uma ao matinal de preparar uma quarta de terra para semear o milho, eles esto realizando juntos, sem dvida alguma, um ato prtico, um tipo de trabalho. Mas o que aconteceria se antes de comearem o trabalho eles parassem por um momento para dizerem uma orao, pedindo a Deus uma boa colheita? Temos a um gesto simblico que antecede o momento longo do trabalho. E ele poder retornar, se os dois encerrarem um dia de labuta, com uma outra orao. E como seria se a partir de um momento de trabalho no eito, os dois comeassem a cantar juntos alguns cantos antigos que o pai aprendeu de seu pai e ensinou aos seus filhos? Seria ento um trabalho acompanhado do canto. Seria como se um pequeno rito de convivncia e de arte, um exerccio gratuito da voz e da alma, invadisse o ritmo do duro trabalho com a terra. 232

Assim, os principais acontecimentos ligados ao trabalho tambm so ritualizados nos meios populares, fazendo emergir importantes momentos festivos, tais como: festas de colheitas, festa do aboio (ou do aboiador, na Paraba), pousos de tropeiros (como mostrado no programa Globo Rural), mutires (puxiro, muxiro, adjutrio, demo), mutires de traio, ditos tambm treio, dana da enxada (mostrada tambm no programa Globo Rural), canto das lavadeiras, canto das fiandeiras. Durante o trabalho num dia de mutiro sempre acontecem as cantigas de mutiro, o Bro, na regio de So Luis do Paraitinga, em So Paulo, que nos espera um pouco adiante. Alm disso, uma coisa puxa a outra, diz a sabedoria popular. Um dia de mutiro sempre uma boa oportunidade para uma noitada de jogo de truco, para momentos de danas variadas conforme o lugar (forr, vanero, catira, cururu, siriri, etc.). Em muitos casos o mutiro at inventado como pretexto para essa divertida complementao gratuita e festiva. Estamos acostumados com a seqncia de momentos de festas, de celebraes com preces, cantos, procisses, danas, narrativas cerimoniais de mitos, em que se celebra o tempo depoisdo-trabalho. Os antigos e os ainda vivos festejos da colheita do milho ou da uva; a pequena e tradicional festa da cumeeira, quando os operrios completam o telhado da construo de uma casa; ou at mesmo a festa pomposa e aristocrtica do lanamento de um novo navio ao mar. Conhecemos tambm, tanto nas sociedades tribais mais simples, quanto nas mais complexas e atuais, os rituais propiciatrios, quando, entre preces, ritos religiosos, no raros com a presena de sacerdotes e at mesmo de sacrifcios cruentos, antes do comeo de um novo trabalho com a terra, a comunidade rene-se para pedir a seres e foras da natureza, ou a um deus poderoso: a chuva na hora certa, o trabalho bem feito e uma farta colheita, uma construo imobiliria feliz, uma cidade afortunada, cuja pedra fundamental est sendo lanada. Trabalhar convivendo, festejando Sabemos que por todo o mundo muitos povos plantam, colhem, remam, pescam, constroem algo cantando. possvel entrever, em tais cantos, um fator instrumental do trabalho. Pois o canto coletivo 233

e ritmado serve a estabelecer o ritmo devido das remadas, dos gestos de plantio coletivo em linha, ou os da colheita. Podemos imaginar que, entre a cultura e a razo prtica, existe algo mais a. Podemos lembrar um antigo documentrio brasileiro que retrata momentos da puxada da rede na pesca do xaru, em praias da Bahia. Presos os homens a duas cordas paralelas, puxando-as com vagarosos e esforados passos para trs, as duas linhas de pescadores puxavam do mar as redes, cantando uma bela e alegre cano que lhes marcava os lentos e esforados passos. Aires da Mata Machado realizou, na regio de Diamantina, em Minas Gerais, uma longa pesquisa de coleta de cantos de escravos, alguns deles re-cantados por Clementina de Jesus. Alguns sero, por certo, cantos do trabalho. Em um dos primeiros livros mais completos sobre formas tradicionais de ajuda mtua entre homens e mulheres do mundo rural, Hlio Galvo lembra uma definio de teor jurdico atribuda a Freitas Marcondes:
Mutiro uma instituio universal, cultivada geralmente nos grupos primrios, onde o organizador, necessitando de uma rpida, larga e eficiente cooperao para um servio, a solicita dos seus vizinhos, comprometendo-se tacitamente a retribu-la nas mesmas circunstncias, to logo lhe seja pedida essa retribuio. (GALVO, 1959, p. 16)

H muitos anos fotografamos e gravamos pequenos mutires de mulheres fiandeiras no interior de Gois. Reunidas em um mesmo terreiro de uma casa rural, e repartidas entre as diversas atividades do ofcio desencaroar, cardar, fiar, tingir e tecer elas cantavam. Cantavam ora em solo, uma s, em geral, uma das mais velhas. Cantavam tambm em duplas, outras vezes. E cantavam mesmo em grupos maiores, em outras vezes. O canto solo, desacompanhado de instrumentos, como acontece em tais casos, no marcava propriamente o ritmo do trabalho, j que entre a desencaroadeira, a cardadeira, a roca (que elas chamam roda) e o tear, os ritmos e os gestos eram bem diferentes. E no vale ali apenas o canto, mas o clima de trocas de afetos, saberes, sentidos, servios e sociabilidades em que o trabalho-comritual se d. Pois ele traz a uma situao vivida no cotidiano, como um trabalho feminino solidrio ou realizado em pequenas equipes, quase 234

sempre familiares (uma me fiandeira e suas filhas), a dimenso de um trabalho-festa. Uma ao produtiva, mas entretecida de um clima socioafetivo que faz interagirem as duas dimenses do duro labor cotidiano. Uma relao entre coisas atravs de pessoas, regida em outros momentos por princpios produtivos de eficcia, e dirigida ao estrito cumprimento de tarefas, torna-se uma relao entre pessoas atravs de coisas. Torna-se um cenrio de atos prticos entretecidos com gestos simblicos, em que as regras do trabalho produtivo mesclam-se com as de uma convivncia gratuita e generosa. Situaes nas quais atos utilitrios de produo de bens misturam-se com gestos afetivos de criao de afetos e sentidos, atravs no tanto do que se produz colchas de algodo rstico mas atravs do como se cria o que se produz: uma relao de trocas de que resulta tambm uma colcha de algodo. Traio, treio - a surpresa da ajuda Uma forma curiosa e hoje bastante rara de ajuda mtua e de trabalho vivido como festejo ocorria com freqncia em Gois e em algumas reas rurais de Minas Gerais. Nunca ouvimos falar de sua existncia em outros estados, mas acreditamos que ela seja ou fosse vigente tambm no Tocantins, regies da Bahia na fronteira com Gois e tambm no Mato Grosso. Quando parentes e vizinhos tomavam conhecimento de que um sitiante das redondezas necessitava da ajuda de outros braos alm dos de sua famlia para realizar um trabalho, em geral, atrasado (a limpa de um pasto, o preparo de um terreno para o plantio), era costume que, em segredo, sassem convidando outros parceiros de trabalho da comunidade para um mutiro. A diferena entre esta modalidade de ajuda mtua e as outras experincias de mutiro, bastante mais freqentes, que o prprio dono do servio no toma a iniciativa de convocar parceiros, parentes e/ou vizinhos. Ele recebe em sua casa, em um clima de surpresa e festa, os trabalhadores do mutiro. E mesmo que porventura ele saiba o que vai acontecer, ele deve representar o papel de quem de nada sabe. E o mutiro comea com uma traio, com uma treio. E este momento da chegada um alegre e festivo rito de surpresa e de acolhida. Em tempos antigos, de modo geral os treioeiros se reuniam em algum lugar antes combinado e no muito longe da casa 235

do treioado. Chegavam l em silncio, pela madrugada. Levavam com eles, alm dos instrumentos do trabalho enxadas e foices, quase sempre alguns instrumentos de msica: violas, violes, de vez em quando acompanhados de um pandeiro, de uma caixa, de uma sanfona. Diante da porta da casa comeavam a cantar, anunciando a chegada e conclamando as pessoas que dormem a que acordem e venham abrir a porta. Depois de aberta a porta e depois que todos entravam e se saudavam os que chegavam e os donos da casa um caf era ento servido e, quando possvel, algumas quitandas tpicas. Alguns poucos poderiam aproveitar as horas at o amanhecer para descansar ou para dormir em algum canto da casa. Outros, a maioria, quase sempre, formavam rodas de algum cantorio de viola ou uma, duas mesas de truco. Amanhece o dia e, ainda em clima de pequena festa, a famlia do dono e a equipe do mutiro saem para o dia de trabalho. Ele pode ser uma limpa de pasto, uma capina de lavoura ou, mais raro, uma colheita atrasada. Quando poucos, formam uma linha de trabalho e, sob as ordens do dono do servio, o treioado ou do chefe dos treioeiros, em geral aquele que planejou em segredo o dia de servio voluntrio, todos trabalham armados de enxadas ou de foices, de acordo com o tipo de servio. Quando muitos, algumas dezenas, o costume a formao de algumas ou vrias linhas e, ento, no raro que entre elas sejam estabelecidas algumas brincadeiras, ou at mesmo uma competio em volta de uma das linhas que termina uma seqncia do servio mais depressa. Assim, o que seria um duro dia de trabalho rural, caso ele fosse contratado e pago pelo patro, torna-se uma jornada que faz do trabalho uma demorada cerimnia de convivncia e entremeia o servio e a brincadeira, o esforo do corpo e o canto, a dana e a comida festiva. A diferena entre o mutiro (com ou sem treio) que, mesmo quando haja bastante trabalho de homens e mulheres em uma festa de santo, ou em uma chegada de folia, tudo o que se faz ento considerado como um no-trabalho. Tudo uma oferta de um servio voluntrio, mas na verdade quase obrigatrio pelo cdigo local de trocas de bens, servios e sentidos, a pessoas da casa, ao grupo ritual ou mesmo aos seres sagrados festejados. Vale ento a convivncia e o congraamento, e os momentos vividos com devoo e diverso so considerados como um oposto cerimonial rotina do 236

trabalho rural. Enquanto o mutiro, ao contrrio, traz momentos de festa para este prprio trabalho rotineiro. O bro trabalhar cantando Em algumas hoje raras regies do Brasil, o trabalho solidrio realizado sob a forma de adjutrios ou de mutires acompanhado de cantos. Em algumas modalidades mais freqentes, cantos e ritos de deferncia e de amizade so vividos antes e depois dos momentos do trabalho coletivo. Em outras, como a que descrevemos a seguir, alm de se saudarem, cantarem e festejarem, antes e aps o trabalho coletivo, os participantes do mutiro alternam o prprio trabalho com momentos de canto, de cantorio. Alguns mutires entremeados de cantos de bro ainda ocorrem pelo menos na regio do Alto Paraba, na Serra do Mar, em So Paulo. No h neles uma chegada de surpresa, como nos mutires de treio. Ao contrrio, a iniciativa de convite parte do dono do servio, quase sempre um pequeno fazendeiro ou um sitiante, o que mais comum ainda. Grupos de homens que vo chegando sobem morros em direo aos pastos onde o servio dever ser realizado, aps as saudaes alegremente exageradas aos donos da casa e a outros parceiros do trabalho. costume que linhas de trabalho sejam formadas e, assim, os parceiros avanam juntos, pasto afora e morro acima. Trabalhando em linhas, alguns parceiros do mutiro ficam juntos, lado a lado. E, ento, comea o cantorio do bro. De repente uma dupla pra por um momento o seu trabalho com as foices, os empenados. Apoiados nelas e quase sempre um frente ao outro, ou lado a lado, eles entoam um canto gritado e sem instrumentos, um canto a capela. Cantam alto para que os escutem os de perto e tambm os de longe. Aps alguns instantes de silncio, uma outra dupla suspende o trabalho e entoa o seu cantorio. E assim o canto do trabalho viaja entre uma dupla e as outras. Os cantores do bro procuram tomar cuidado para que cada dupla cante sozinha e seja escutada por todos. Assim, se acaso duas duplas prximas ou distantes iniciam quase juntas o seu cantar, costume que uma delas suspenda o seu at o final da outra. Chama a ateno o fato de que o que se canta quase sempre 237

contm versos de perguntas ou de respostas a perguntas feitas por uma dupla que entoou antes o seu canto. E por que assim? Assim porque o bro , na verdade, um dilogo cantado. As duplas cantam umas para as outras, muitas vezes dizendo os nomes das pessoas presentes a quem o canto se dirige. O bro um dilogo entre duplas e entre todos os presentes, atravs das duplas de cantadores, porque tambm um enigma. Quando uma dupla canta, o seu cantar longo e gritado divide-se em duas partes. A parte inicial um improviso e comum que os dois que cantam combinem antes os versos da primeira parte. A segunda parte fixa, repete-se sempre como um refro, logo aps o final do cantorio da primeira parte, e vale como uma assinatura de cada dupla. O que cada dupla canta pode iniciar uma linha do bro. O que as outras cantam pode ser tambm uma linha, ou pode ser uma pergunta musicada, para que a dupla que props a linha, cantando o comeo de um enigma, fornea mais detalhes. Os homens mais velhos costumam lamentar a perda de costumes dos antigos, como as trocas solidrias de bens (prendas), de servios (mutires) e de sentidos de vida, vividas em dias de festas feitas atravs do trabalho coletivo, ou dias de trabalho coletivo vivido como festa. Tempos j ento regidos por trocas de produtos por dinheiro, e mesmo de trabalho por dinheiro. Eles lembram tempos em que eram ainda freqentes as trocas solidrias de produtos por produtos as diferentes modalidades de escambo e as reciprocidades de trabalho por trabalho. O que eles os homens da terra lamentam o mesmo que ns devemos tambm lembrar e lamentar: a perda do princpio de solidariedade, de gratuidade e de generosidade nas relaes entre pessoas, entre grupos humanos e mesmo entre povos e entre naes. Uma perda tida por alguns como um ganho, quando defendem as regras e os valores de um mundo regido pelos interesses utilitrios do mercado de dinheiro, de bens e de trabalhos. Relaes em que produtos valem mais do que produtores de produtos. Relaes em que, sob uma mesma lei de que as regras do mundo do agronegcio so o melhor exemplo, quem trabalha para gerar bens no se sente apenas um criador de mercadorias, mas se sente, cada vez mais, ele prprio uma outra mercadoria. Saber dar, doar bens, trabalho, afeto, saber, sentido, saber 238

receber, e saber retribuir. Fazer desta alternncia de recprocas intertrocas que resistem ao mundo dos negcios em nome do mundo da vida, a prpria essncia solidria da razo de ser e de viver. E mais do que esta razo, a de saber dar-se ao outro, aprender a sair-de-si e abrir-se aos outros. Re-aprender a reciprocidade na convivncia de uma vida menos competitiva e mais compartilhada. Uma vida que, afinal, valha a pena ser vivida. Bibliografia: BRANDO, Carlos Rodrigues. A partilha da Vida, Taubat: Editora Cabral, 1997. CALDEIRA, Clovis. Mutiro formas de ajuda mtua no mundo rural. So Paulo: Biblioteca Pedaggica Brasileira, 1956. CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. So Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979. GALVO, Hlio, O mutiro no nordeste. Rio de Janeiro: Servio de Informao Agrcola / Ministrio da Agricultura, 1959. IANNI, Octvio. Dialtica e capitalismo: Ensaio sobre o pensamento de Marx. Petrpolis: Vozes, 1988. MAYNARD de Arajo, Alceu. Muquiro. So Paulo, Fundamentos, n. 9/10, maro/abril.

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Texto 5 FESTAS DA AFRO-DESCENDNCIA* Roberto Benjamin1 A colonizao do Brasil somente foi possvel com a migrao forada dos africanos. Portugal tinha uma reduzida populao, que no poderia vir a povoar os grandes espaos do Brasil. A escravido do ndio demonstrou-se insuficiente para realizar o trabalho produtivo da nova colnia. Foram ento trazidos da frica milhares de homens e mulheres, num perodo de quatro sculos. Apesar da injusta situao da escravido, do despojamento dos indivduos escravizados, da poltica de separao das famlias e dos grupos tnicos, os africanos e o afro-descendentes deram uma contribuio fundamental para a cultura brasileira. A viso de mundo, a religiosidade, a msica, a dana, a vestimenta, a culinria dos escravos resistiram aos sculos de opresso durante o perodo da Colnia e do Imprio. A forma de ser brasileiro foi totalmente impregnada pelas contribuies africanas. E em relao s festas no poderia ser diferente. A poltica de catequese da Igreja Catlica nica religio permitida no perodo colonial determinou um ciclo de festas que proliferou por todo o Pas. Nas festas da igreja, ento associada ao governo colonial, era permitido relaxar as atividades de trabalho e era incentivada a participao dos escravos na criao das modalidades festivas. Estas ocasies tornaram-se oportunidade para que aos aspectos puramente catlicos fossem incorporadas manifestaes das religies africanas das etnias de onde os escravos procediam. Naturalmente, os traos culturais dos grupos mais populosos e mais bem organizados obtiveram maiores espaos e conseguiram se impor s populaes de outras origens, embora tambm os traos culturais de outras etnias possam estar presentes. A convivncia com outros setores da populao brasileira

Esse texto integra o boletim do programa Festas da Afro-descendncia da srie Aprender e ensinar nas festas populares, abril, 2007. www.tvebrasil.com. br/salto/ 1 Psiclogo, Mestre em Antropologia Social (UnB) e Doutor em Cincias Sociais (USP). Professor livre-docente e aposentado da UNICAMP e Professor Visitante da UNIMONTES Mg.

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determinou a incorporao cultura afro-brasileira de traos culturais de outros segmentos. Por outro lado, observa-se a presena de aspectos das culturas africanas em regies e manifestaes que, em sua aparncia, so predominantemente indgenas e europias. Tais fatos constituram a miscigenao da cultura brasileira. A associao das culturas africanas s festas catlicas determinou o sincretismo entre aspectos religiosos das duas procedncias. Embora a imposio da antiga religio oficial tenha desaparecido, permanecem muitas manifestaes do catolicismo popular com diferentes graus de presenas africanas de forma que essas populaes realizem prticas catlicas com o apoio da Hierarquia da Igreja e, nas mesmas datas, e em alguns casos nos mesmos lugares, reverenciam as entidades das religies africanas. No calendrio catlico, Maria, me de Jesus, reverenciada segundo uma diversidade de atributos e de denominaes. Em quase todas h uma associao com as entidades femininas das religies afro-brasileiras, especialmente com Iemanj e Oxum. Segundo Reginaldo Gil Braga, a Festa dos Navegantes a maior festa popular do Rio Grande do Sul. No dia 2 de fevereiro, praticantes das religies afro-brasileiras comparecem em massa para homenagear a rainha dos mares e o orix mais popular no batuque. A festa tambm compartilhada com os catlicos que, apesar de serem em menor nmero, procuram apagar os sinais da participao dos batuqueiros junto ao largo da igreja. O aspecto sincrtico da santa Iemanj para os participantes das religies afro-brasileiras Nossa Senhora dos Navegantes para os catlicos permite comportamentos e interpretaes paralelas sobre uma mesma festa, basta observar os vrios espaos demarcados pelas duas concepes religiosas, a afro-brasileira e a catlica. Consomem-se grandes quantidades de melancia, churrasco e cerveja so vendidos em barracas armadas em volta da igreja. Para os praticantes do Batuque e demais religies afro-brasileiras quase uma norma ir festa no largo da Igreja dos Navegantes. noite, principalmente os filhos de Iemanj vo s praias do rio Guaba ou ao litoral martimo levar as suas oferendas secas, frascos de perfume, pentes, bolos, melancias e tirar as suas cantigas divindade das guas. Em outras regies do Brasil, as situaes se repetem. Na Bahia, tambm no dia 2 de fevereiro, so feitas oferendas no mar Iemanj do Rio Vermelho. No Recife, a festa do dia 8 de dezembro 242

tem a sua parte catlica junto ao monumento de Nossa Senhora da Conceio, em uma das colinas da cidade, e noite as praias se enchem de devotos que fazem oferendas a Iemanj, muitos dos quais vindos diretamente do Morro da Conceio. No Rio de Janeiro, a grande homenagem Iemanj se d na noite de 31 de dezembro. No Estado de So Paulo, Praia Grande recebe mais de seiscentos mil afro-brasileiros para homenagens a Iemanj. O momento afro-brasileiro da festa precedido por rituais realizados no interior das casas de culto, com a preparao das oferendas. Ordinariamente se enche uma grande panela de barro, que levada de barco at um ponto profundo do mar. Mais recentemente, as oferendas tm sido levadas por pessoas que entram na gua at mais ou menos a altura dos ombros. O trajeto entre a casa de culto e a praia acompanhado de palmas e cantos, ao som de atabaques, que se alongam at a entrega da oferenda. Nossa Senhora do Carmo festejada na cidade do Recife, da qual padroeira, no dia 16 de julho, com missas e procisso na baslica que lhe dedicada. Na freqncia aos atos litrgicos visvel uma multido vestida na cor amarelo-ouro, caracterstica do culto ao orix Oxum. noite, em lugares ermos, s margens de rios e lagos e em cachoeiras, integrantes dos cultos afro-brasileiros levam oferendas na chamada cesta-de-Oxum, cuja entrega ocorre com cantos, toques de atabaques e danas. Outra festa em honra de Maria a da sua boa morte e assuno, realizada nos dias 13, 14 e 15 de agosto na cidade de Cachoeira, no Recncavo Baiano. Conserva-se, naquela cidade, uma irmandade feminina responsvel pela realizao da festa. Embora as velhas senhoras da irmandade utilizem a vestimenta tpica das sacerdotisas dos cultos dos orixs, a parte pblica dos rituais estritamente catlica. Numerosas outras festas afro-brasileiras so realizadas no interior das casas de culto, sendo reservadas apenas para os seus freqentadores. Este foi o caso das celebraes em honra aos santos gmeos Cosme e Damio, cultuados como Ibejis, que ocorrem em 27 de setembro e que acabaram por ser praticadas nas grandes cidades por simpatizantes dos cultos afro-brasileiros em situao profana. Em sua origem e ainda hoje nas casas tradicionais, a cerimnia constituda por um banquete em que predomina o caruru, que servido a seis crianas em uma grande panela. J os devotos simpatizantes 243

dos santos gmeos costumam oferecer balas e doces nas portas das suas casas, para a alegria das crianas da redondeza. H, porm, um conjunto de outras festas do catolicismo popular no qual possvel sentir a contribuio dos afro-descendentes, sem que em sua realizao ocorram aspectos das liturgias africanas: o caso das Folias de Reis ocorrentes nas regies Sudeste e CentroOeste do Brasil; do Imprio-do-Divino, realizado na cidade de So Lus; das festas em honra de Nossa Senhora do Rosrio, conhecidas como festas-de-reis-negros ou festas-de-reis-de-congo; e de algumas outras festas de santos padroeiros de pequenas comunidades. No Sudeste e no Centro-Oeste realizam-se as Folias de Reis como parte do ciclo do Natal, sendo manifestaes tipicamente do catolicismo popular onde, aparentemente, esto ausentes os traos da religiosidade afro-brasileira. Todavia, nas manifestaes de natureza mais urbana, do Rio de Janeiro e do Esprito Santo, possvel observar que os palhaos e outros brincantes integram as comunidades afro-descendentes de natureza religiosa. Em So Lus do Maranho, as festas em honra ao Divino Esprito Santo conservam as cerimnias de coroao dos imperadores do Divino, com a realizao de banquetes e outros aspectos comuns s Festas do Divino realizadas pelo Brasil afora, cuja origem atribuda a migrantes aorianos. Na capital maranhense, porm, a organizao cabe s casas de culto afro-brasileiras e a msica conta especialmente com a participao de percusso, a cargo de mulheres, conhecidas como caixeiras-do-Divino, elas tambm integrantes das comunidades afro-brasileiras. A Igreja Catlica atribuiu a Nossa Senhora do Rosrio a proteo dos escravos e de seus descendentes. Tambm foram dados os santos So Benedito, Santa Ifignia, Santo Antnio de Catarger, Santo Elesbo e So Baltazar (um dos reis magos) como patronos das associaes e irmandades dos africanos e afro-descendentes no Brasil. Ficou estabelecido que as solenidades deveriam se constituir da coroao de reis-negros, tambm chamados reis-de-congo, com msicas e danas prprias das culturas afro-brasileiras, e com a presena de guardas representantes das diversas etnias, como a clebre festa da comunidade dos Arturos, no municpio de Contagem, da regio metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Numerosas festas de reis-negros continuam a se realizar no 244

Brasil, dentro do modelo em que permanece o sentido de catequese adotado pela hierarquia da Igreja Catlica. No caso das Taieiras de Laranjeiras, em Sergipe, que so manifestao do ciclo de reisnegros, ainda que a coroao se processe na Igreja de So Benedito Filadelfo, durante a missa, a organizao social do grupo de afrodescendentes praticantes dos cultos dos orixs. J os maracatusnao, de Pernambuco, se deslocaram da festa de Nossa Senhora do Rosrio para o carnaval e tambm so, basicamente, estruturados pelas comunidades afro-brasileiras dos orixs. A presena de manifestaes das culturas afro-brasileiras tambm ocorre em festas no-religiosas, ditas profanas. Entre outras manifestaes festivas registram-se algumas das danas de natureza sensual como o lundu, o carimb e o cacuri. A capoeira que rene esporte, dana e luta e uma caracterstica da identidade dos afro-brasileiros praticada, em geral, em eventos festivos, sendo acompanhada por msicas que lhe so prprias executadas com acompanhamento de percusso (berimbau, pandeiro, atabaques) e cujo canto denominado ladainha. Nos ltimos anos, a capoeira alcanou uma grande difuso, estando presente em academias dos Estados Unidos e da Europa. A sua prtica no Brasil se estende a outros segmentos da populao alm dos afro-descendentes. Sem que hajam perdido a sua qualidade de afro-brasileiras, muitas festas e rituais de afro-descendentes vivem hoje uma alegre e criativa miscigenao. Bibliografia: AREIAS, Almir das. O que capoeira. 3.ed. So Paulo: Brasiliense. 1987. 113 p. (Coleo Primeiros Passos 96). BENJAMIN, Roberto. A frica est em ns. vol. 3. Joo Pessoa: Editora Grafset, 2004, 167p. il. ________. A frica est em ns. vol. 4. Joo Pessoa: Editora Grafset, 2005, 176p. BRAGA, Reginaldo Gil. Batuque jeje-ijex em Porto Alegre A msica no culto aos Orixs. Porto Alegre: Fumproarte, Secretaria Municipal de Cultura, 1998. 240p. il [partituras] CARNEIRO, Edison. Candombls da Bahia. Bahia: Secretaria de Educao e Sade, 1948. 140p. il. 2.ed. rev. e ampl. 245

Rio de Janeiro: Andes, 1954. 239p. il. (com 14 desenhos de Caryb). 3.ed. Rio de Janeiro: Edies de Ouro, s. d., 191p. il. CARNEIRO, Edison. Capoeira. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1975 (Cadernos de Folclore, 1). FERRETTI, Srgio. Festa do Divino em So Lus. Boletim da Comisso Maranhense de Folclore, So Lus, v. 07, p. 02-02, 1997. FRADE, Cscia. Cantos do Folclore fluminense. Rio de Janeiro: Presena Editora, 1989. MARTINS, Saul. Congado: famlia de sete irmos. Belo Horizonte: SESC, 1988. 48p. il

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