Mulheres Da Floresta Outras Tantas Histo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 20

Mulheres da Floresta: outras tantas histórias

Cristina Scheibe Wolff*

Resumo: Neste artigo conto em primeira pessoa a trajetória da pesquisa


que deu origem ao livro Mulheres da Floresta: uma história
(São Paulo: Hucitec, 1999) sobre a história das mulheres na
região do Alto Juruá, Acre, no período de 1890 a 1945. A
pesquisa utilizou fontes orais, processos judiciais, relatos de
viajantes e outros documentos para mostrar a existência de
mulheres na região e sua importância no processo de
constituição dos seringueiros como uma população
tradicional.

Palavras chaves: Mulheres; gênero; Amazônia; seringueiros.

Abstract: In this article I tell in first person the research path of the
book Mulheres da Floresta: uma história (São Paulo: Hucitec,
1999) about women‟s history in the region of Alto Juruá,
Acre, Brazil, between 1890 and 1945. The research used oral
sources, judicial processes, traveler‟s reports and other
documents to show the existence of women in the region and
their importance in the process of constitution of
“seringueiros”(rubber tappers) as a traditional population.

Key words: Women; gender; Amazonia; rubber tappers.

Revista Estudos Amazônicos • vol. VI, nº 1 (2011), pp. 21-40


Em 1999 foi publicado meu livro Histórias da Floresta: uma história. Alto
Juruá, AC, 1890-1990, pela editora Hucitec, como resultado de minha
tese de doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo,
orientado pela Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias.1 Desde então
muitas vezes tenho falado sobre o livro e sobre a pesquisa, e a primeira
pergunta que sempre me fazem é porque eu, nascida e criada em
Florianópolis, no Sul do Brasil, resolvi pesquisar a vida e as histórias das
mulheres na Amazônia. Esse artigo nasceu então de muitas perguntas, e
conta uma história dentre muitas sobre a pesquisa, sobre a vida na
floresta, sobre a interação entre historiadora e sujeitos da história, sobre
uma perspectiva etnográfica da história.
Recentemente vi um vídeo de uma palestra no Youtube, mandado
por uma amiga para uma lista de e-mails, que me impressionou muito. É
uma fala da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, intitulada “O
perigo de uma única história”2 em que ela conta sua trajetória de menina
africana de classe média que se tornou escritora, e foi estudar nos
Estados Unidos, entre outras coisas. Ela fala do perigo que é sabermos
de uma única história sobre um lugar, ou um grupo de pessoas. Quando
ela chegou aos Estados Unidos, por exemplo, a colega de quarto dela
tinha muita pena dela e também se surpreendeu porque ela falava um
excelente inglês: como ela explica, esta colega sabia apenas uma história
sobre a África, uma história de catástrofe, pobreza e pouco acesso aos
bens culturais ocidentais. Ela nem sabia que na Nigéria, um dos idiomas
oficiais é o inglês. Da mesma forma sobre as populações da Amazônia,
muitas vezes ainda conta-se apenas uma história que dependendo do
narrador assume contornos que podem variar. Durante um tempo o
personagem principal desta história foi o seringueiro, explorado pelo
patrão, preso a uma rede de crédito e violência. Em outro tempo, os
indígenas, que estariam desaparecendo. Depois indígenas e seringueiros
viraram, para uns, obstáculos ao progresso e ao desenvolvimento da
Amazônia – eles não desapareceram, e para outros, heróis da resistência
ao desmatamento. Mas sabemos que a Amazônia tem muitas histórias
para contar, com personagens diversos e inesperados pelo discurso que
vê esta região tão imensa como quem vê do avião: um mar de árvores
verdes e altas, cortado por rios que vão fazendo suas curvas. Esta
imagem de “Globo Repórter” exclui da floresta a sua gente, mulheres e

22 • Revista Estudos Amazônicos


homens de todas as cores e etnias, indígenas, quilombolas, ribeirinhos,
seringueiros, e excluem também as cidades, as fazendas, as regiões
agrícolas, e toda a sua população.
Confesso que no início eu também fui culpada da fábula da história
única. Eu tinha duas imagens sobre a história da Amazônia: uma imagem
difusa, construída em aulas de história sobre o Boom da Borracha, e
livros do Márcio de Souza,3 e outra ligada à história de Chico Mendes e
as longas conversas com Carlos Walter Porto Gonçalves, geógrafo e
amigo, suas palestras e aulas no curso de pós-graduação em geografia da
UFSC que eu ouvia e participava de uma forma não oficial, como esposa
de aluno e filha de professor. Eu estava fazendo doutorado na USP e
meu projeto inicial era o de trabalhar com percepções do meio ambiente
no contexto da imigração alemã de Santa Catarina. Entre as disciplinas
que eram oferecidas naquele primeiro semestre de 1994 estava lá
“Sociedade e Meio Ambiente”, pela Professora Manuela Carneiro da
Cunha, no Programa de Antropologia. Achei que seria perfeito, e foi. Ao
final do curso o projeto coordenado por ela e por Mauro W. B. de
Almeida e Keith Brown da Unicamp, na Reserva Extrativista do Alto
Juruá, estava recrutando pesquisadores para ficarem um ano na reserva
fazendo uma espécie de ponte entre a equipe da pesquisa e a população
da reserva.4 Meu marido agrônomo/geógrafo se interessou muito pela
proposta, e ela me daria as condições para realizar minha própria
pesquisa na região.
Para começar, passei a ler tudo o que encontrava nas Bibliotecas da
USP sobre a história da região que permitisse configurar um projeto de
pesquisa. Conversei também com alguns pesquisadores. Lembro
especialmente de Gerson Albuquerque, da Universidade Federal do
Acre, que me deixou xerocar milhares de páginas de seus preciosos
livros. E de Edilene Lima, antropóloga, que me deu muitas referências
também. A Professora Manuela Carneiro da Cunha me deixou consultar
seu acervo particular e minha orientadora, Profa. Maria Odila L. da Silva
Dias, com sua paciência ilimitada aceitou a mudança de projeto e sempre
me apoiou. Meu novo projeto seria sobre a história das mulheres, um
tema que eu já havia percorrido no mestrado, mas sobre a história das
mulheres na região do Alto Juruá, Acre, uma região marcada pela
exploração da borracha nativa.

Revista Estudos Amazônicos • 23


Mas havia um problema sério. Na bibliografia que fui lendo comecei
a perceber não somente a quase inexistência de nomes e figuras de
mulheres como também a constante reafirmação de que durante o Boom
da borracha, no Acre e nas regiões dos altos rios amazônicos, “não havia
mulheres”, que eram muito poucas, era uma sociedade de homens, e
machos. Isso inclusive acentuava a idéia recorrente de que os
seringueiros, migrantes nordestinos, bem como os seringalistas ou
patrões, estes últimos mais ainda por serem pioneiros, eram todos
corajosos, bravos, ou seja, acentuava a idéia de que para “penetrar na
floresta virgem”, tinha que ser homem, cabra macho sim senhor....
Como fazer uma pesquisa sobre mulheres que “não existiam”?
É claro que não acreditei que não existiam. Até porque no mínimo
haveria as mulheres indígenas. E como aquela sociedade teria se
reproduzido sem mulheres? Embora a migração fosse grande, não era o
suficiente. Meu projeto foi se construindo sobre esta idéia de dar
visibilidade a essas mulheres ocultas na historiografia, nas histórias
contadas, na própria literatura regional. Aos poucos fui vendo que
mulheres eram essas que não existiam! Existiam índias, existiam
prostitutas, algumas mulheres de patrões, histórias de mulheres
compradas e vendidas, crimes passionais, piadas. Na literatura regional,
nos relatos de viagem, comecei a descobrir uma diversidade de mulheres.
Como Joan Scott nos alerta, esse projeto de “dar visibilidade” é um
projeto complicado.5 Ele parte da idéia de um sujeito pré-existente, ou
seja, a minha idéia era a de que as mulheres existem, e pronto¸ bastaria
mostrá-las. E de certa forma foi isso que fiz na pesquisa. Mas primeiro
foi necessário refazer o percurso desse sujeito mulher, desconstruindo o
discurso da historiografia. Talvez tenha se tratado mais de construir
historiograficamente um novo sujeito para a história do Acre e da
Amazônia.
Seguindo o padrão etnocêntrico e colonialista predominante na
historiografia brasileira do início do século XX, os livros de história do
Acre em especial e da Amazônia em geral faziam como os viajantes dos
séculos XVIII e XIX que não viam as mulheres afrodescendentes e
indígenas nas ruas do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais. Como
mostrou Miriam Moreira Leite, só as brancas eram consideradas
“mulheres”.6 Como estas mulheres não costumavam andar pelas ruas, a
não ser de forma camuflada e velada, os viajantes geralmente afirmavam

24 • Revista Estudos Amazônicos


que no Brasil, as mulheres não andavam pelas ruas.7 Da mesma forma
acontecia com as mulheres indígenas que não eram contadas como
população nos censos – e, aliás, nem os homens indígenas também não
eram contados – nos seringais do Alto Juruá. E algo me diz que isso
também ocorria nas outras regiões da Amazônia. As prostitutas,
lavadeiras e mulheres pobres em geral, que em sua maioria também
muitas vezes descendiam de africanos e/ou indígenas, que viviam nas
cidades da Amazônia, como Cruzeiro do Sul, no Acre, também não
constituíam o que esta historiografia denominava “mulher”. Então a
operação historiográfica que fiz neste livro, seguindo o que se vinha
fazendo em outros lugares através da História das Mulheres, foi a
construção de um novo sujeito mulheres, sempre no plural para mostrar
que havia diversidade.
No livro, também já usava a categoria gênero. Não em uma
perspectiva radical, mas com os limites que Linda Nicholson aponta em
seu texto “Interpretando o Gênero”,8 ou seja, através desta categoria eu
negava o determinismo biológico sobre o destino das mulheres – e
homens – e invocava a cultura e a história para a compreensão da
construção deste sujeito.
Lançado o desafio do projeto, restava estabelecer as fontes de
pesquisa. Na história das mulheres, a gente se acostuma a fazer pesquisa
como se faz uma investigação policial. É um pouco como investigar
aquilo que ninguém quer deixar para o futuro, as pistas que muitas vezes
foram encobertas, às vezes queimadas, ou ainda nem mesmo produzidas.
É claro, se não eram sujeitos, como estas mulheres poderiam ter deixado
crônicas, relatos completos, narrativas de sua atuação? Seria como um
assassino que deixasse um relato sobre seu crime para ser lido.
Comecei pelo que era mais fácil. Na época eu residia em São Paulo,
portanto fui atrás de relatos de viajantes, relatórios oficiais, outros
escritos sobre a época. Como já mencionei, me ajudou muitíssimo o
acervo recolhido pela Profa. Manuela Carneiro da Cunha, na França,
constituído pelos artigos escritos pelo Padre Constantin Tastevin e
publicados em francês em revistas científicas e religiosas, pois ele era
filólogo e geógrafo. Não que algum desses relatos tenha falado
especificamente sobre as mulheres, mas eu precisava mesmo conhecer
tudo o que pudesse sobre a região, então fui lendo e fichando tudo que
encontrava sobre mulheres e gênero. Em determinados assuntos,

Revista Estudos Amazônicos • 25


aparecia aqui e ali a figura de uma mulher, ou sua ausência sentida no
baile dançado “homem com homem”, na comida feita com tudo
misturado, na saudade.
Foi se delineando a partir desta etapa da pesquisa uma periodização,
bem óbvia para quem conhece a história da região:
1870 – 1912 – O Boom da Borracha
1912-1942 – A crise
1942-1945 – A batalha da borracha
1945-1980s – O Estado protege a borracha
A partir de 1980s – as lutas pelas reservas extrativistas
Fui vendo que à medida que se falava da crise, quando algo escapava
às brumas que pareceram encobrir toda a Amazônia nesse período para a
historiografia, começava-se a falar de famílias, de agricultura, que mudava
alguma coisa. Se não me engano foi Craveiro Costa quem escreveu que a
crise tinha feito o que não tinha sido conseguido antes com as políticas
do governo e com os esforços das empresas seringalistas: fixar o homem
à terra através da família.9
Assim eu tinha dois períodos bem delineados, o Boom e a Crise, e
um terceiro que não quis abandonar, o período da Batalha da Borracha
durante a Segunda Guerra Mundial.
Então fui para o Acre, já no ano de 1995, em busca de outras fontes.
O Arquivo Público Estadual em Rio Branco devia ter muitas coisas
interessantes, mas naquela época não tinha nenhum catálogo. Em meio a
estantes e caixas, eu simplesmente não sabia por onde começar, e não
tinha muito tempo em Rio Branco, então não comecei por aí. Na
prefeitura de Cruzeiro do Sul me contaram que a documentação
municipal era periodicamente queimada. Na biblioteca municipal,
encontrei alguns exemplares de jornais antigos, que foram bem
interessantes. Através deles reconheci nomes da elite de Cruzeiro do Sul,
que depois encontrei na bibliografia e em processos judiciais. Como em
outra pesquisa eu já tinha trabalhado com processos judiciais, fui
procurar o Fórum. Este foi um grande achado. Todos os processos
estavam lá, em fardos separados por ano, desde 1904 até o momento da
pesquisa, empilhados em uma salinha. Tive, é claro, que pedir
autorização para a Juíza, que a concedeu graciosamente. Só não podia
entrar de bermuda no fórum: saia ou calça comprida. Contratei uma
estudante do curso de Letras da Universidade Federal do Acre, a

26 • Revista Estudos Amazônicos


incansável Maria Elizabeth Jardim Pereira Dene, para me ajudar na
pesquisa, que foi extremamente dedicada, sem ela eu não teria
conseguido. Fichamos tudo que fazia menção a mulheres: processos
criminais e civis (inventários, testamentos, execuções fiscais, etc.) e
autorizações de casamentos. Depois de pronto o levantamento, já nos
anos de 1996 e 1997, com ajuda de outras estudantes, agora de
Florianópolis, Fabiana Cormelatto e Ana Cláudia Delfini, digitamos
todas as fichas em banco de dados: são mais ou menos 3500 registros.
Finalmente, o que considero que foi o principal: História Oral.
Principal não pela quantidade de informações, mas pelo contato que me
proporcionou com as pessoas da Floresta e da Cidade. Fiz dois tipos de
entrevistas:

1. Entrevistei pessoas na cidade de Cruzeiro do Sul. Elas me fizeram


entender melhor como era a elite da borracha e como se davam as
relações de gênero nesta elite. Também me sugeriram fontes e
relatos, fotografias entre outros. Uma senhora guardava em sua casa
todo um acervo do Jornal... Pois era a filha do editor, mas não pude
explorar condignamente o arquivo. Percebi também aí, como nos
processos, os vínculos importantes entre cidade e seringal.
2. Entrevistei cerca de 20 pessoas na Reserva Extrativista do Alto Juruá,
onde residi pela maior parte do ano de 1995. Ouvi as histórias de
vida de mulheres e homens e perguntei o que as fontes indicavam,
mas nem sempre esclareciam. Percebi um discurso sobre o passado
que variava muito em função das questões que estava se vivendo em
1995. Naquele ano a borracha estava extremamente desvalorizada e
praticamente não havia investimentos, seja de caráter privado,
nacional, estadual e muito menos municipal, em nada: negócios,
saúde, educação. As pessoas estavam se sentindo novamente
abandonadas, revivendo a crise dos anos 1920.

Mas o fundamental foi conviver naquele lugar, mesmo em outro


tempo. Desde então venho defendendo uma perspectiva mais
etnográfica da pesquisa histórica, o que a história oral permite e propicia.
É diferente falar de uma casa de Paxiúba (uma palmeira que constitui o
principal material das casas de muitos seringueiros) depois de ter
dormido em uma, de ter sentado no chão para dividir a farinha e o caldo

Revista Estudos Amazônicos • 27


de peixe ou caça com as pessoas da casa, à luz de lamparina. É diferente
compreender a distância entre Cruzeiro do Sul e a Restauração, depois
de ter ido de canoa, como rio meio seco, tendo que subir as cachoeiras a
pé ou empurrando a canoa. (E isso que agora temos canoa a motor,
imagine quando era só a remo!). É diferente pensar na crise e no
abandono das colocações10 depois de, em meio a uma Varação (uma
caminhada entre um rio e outro, neste caso levamos 5 dias entre as
cabeceiras do Rio Tejo e o Rio São João, afluentes do Juruá) chegar em
uma colocação abandonada em que não se pode contar com a calorosa
hospitalidade que quem anda na floresta aprende a prezar e amar. É
diferente pensar naqueles seringueiros que muitas vezes ficavam
solitários na floresta, depois de enfrentar uma febre, uma dor de barriga,
ou de ver rastros de onça na beira do rio. Mesmo que de forma breve, se
pensarmos no tempo de uma vida, o tempo de um ano que passei na
floresta foi um compartilhamento que permitiu outras compreensões,
como os/as antropólogos/as estão cansados de nos ensinar. Ao mesmo
tempo, o estranhamento, o relativismo e a perspectiva histórica não
podem ser abandonados. A interpretação histórica pode ser pensada
como uma fusão de horizontes11 e essa fica muito mais palpável com
estas convivências na pesquisa.

De primeiro…
Onde hoje se localiza a Reserva Extrativista (RESEX) do Alto Juruá,
no extremo Oeste do Brasil, há cem anos atrás era território indígena.
Grupos de língua Pano e Aruaque viviam por lá, e vez por outra
trocavam com os brancos que se aventuravam até próximo da fronteira
atual entre os estados do Amazonas e do Acre, cacau [Theobroma cacaoL. e
o Theobroma leiocarpaBern.], óleo de copaíba [Copaifera langsdorffii Desf.],
borracha [Hévea Brasiliensis], manteiga de ovos de tartaruga (tracajá)
[Podocnemis unifilis], salsaparrilha [Smilax officinalis], “escravos” (índios
geralmente obtidos em guerras intertribais), por miçangas, espelhos,
facas e utensílios de metal, e outras mercadorias. O viajante William
Chandless, que explorou a região em 1867, chegando até a Foz do
Liberdade, comenta que: “Cacau, óleo de copaíba e salsaparrilha são os
principais produtos naturais e parecem ser abundantes; durante os
últimos anos, entretanto, a borracha também tem sido procurada”12 Já o

28 • Revista Estudos Amazônicos


Padre Tastevin, em suas pesquisas sobre os grupos indígenas do Juruá se
refere a um relato do século XVIII que localizava no Juruá a origem dos
escravos indígenas das vilas do Solimões.13
A partir de 1870, entretanto, esta situação começa a mudar
radicalmente com a transferência de milhares de nordestinos para a
região amazônica em busca da borracha que se valorizava no mercado
internacional, e que lá era muito abundante, tal como já notara Chandless
alguns anos antes, aliás, em missão para o governo brasileiro,
provavelmente interessado em saber das potencialidades da área. Foi
como contou o Sr. Pedro Ribeiro, descendente destes nordestinos que
vivia na RESEX em 1995:

“Que antigamente, no tempo que vinha cearense,


os primeiros que vieram pra cá, que o governo
exportou, dava o nome de brabo, agora de
quarenta pra cá é que começou outro apelido de
arigó. Mas os premeros, nossos pais se dava o
nome de brabo aos cearenses, que eles chegavam
aqui e não conheciam nada. O governo exportou
muita gente pra cá pro Acre. De navio de vim de
mil pessoa. Agora eu não alcancei, que eu já sou
filho dessa gente”.14

Mas quem vinha do Ceará eram principalmente os homens. De fato,


poucas mulheres acompanhavam os maridos a lugares tão distantes
como o Alto Juruá, as famílias que fugiam juntas da seca e da miséria do
sertão nordestino costumavam ficar em lugares mais próximos de
Manaus ou de outra cidade. Dona Maria Genoca conta aquilo que ouviu
de seu marido já falecido:
“Ele contava que não tinha não, ele disse que
quando ele veio do Ceará, rapaz novinho, o
pessoal vinha do Ceará pra cá num sabe, mas só
vinham os solteiros, não trazia mulher, aí diz ele
que tinha três mulher aqui só, e era tudo casada, aí
diz ele que aprendeu a dançar com os homem
(risos), ele disse que ajuntava, faziam festa ali no
barracão do Maranguape, animado, tinha uns que
dançava a semana inteirinha, [...] e diz ele que
nunca houve uma briga de nada e que era uma

Revista Estudos Amazônicos • 29


frasqueira de cachaça assim ali no canto da casa e
um pé de Jararaca que chamavam, num sabe, diz
ele que o caneco, o copo assim na boca da
frasqueira, era bebendo e dançando e música doida
e aí o pé comendo, ele disse que aprendeu a dançar
com os homem, aí ele dançava muito bem”.15

Entretanto elas não eram tão poucas assim, se considerarmos


também a cidade. As mulheres perfaziam aproximadamente 25% da
população não indígena do Alto Juruá, na época da implantação do
Território Federal, tal como relatou o coronel Thaumaturgo de Azevedo,
primeiro prefeito do departamento do Alto Juruá em 1904.
Estes primeiros cearenses vinham com a intenção de fazer seu “pé de
meia” e voltar para sua terra. Mas muitos ficaram, seja por vontade
própria ou pelas dívidas que contraíam com os patrões e que não
conseguiam saldar. Muitos morreram e não puderam voltar, como disse
Seu Pedro Ribeiro: “Os que vieram premeiro, os cearenses que vieram,
voltou algum. A maior parte tá aí nessa mata, morto. Muito matavam, e
era assim”. Morriam de “sezão”, de doenças variadas, de desnutrição por
causa dos alimentos velhos fornecidos pelos patrões, morriam também
nas lutas contra os índios e ainda, o Seu Pedro menciona que alguns
patrões chegavam a mandar matar aqueles seringueiros que se
revoltavam, ou que exigiam receber seu saldo para irem embora.16
Estes seringueiros que ficavam não iam se conformar em viver a vida
inteira, solteiros. Era comum que, no período de chuvas, aqueles que
conseguiam algum saldo fossem para as cidades em busca de
divertimento nos bordéis ou de tratamento para suas doenças. Alguns
patrões, entretanto, levavam prostitutas para os próprios seringais para
evitar que os seringueiros fossem embora e não voltassem mais.17 Mas
aos poucos os seringueiros foram formando suas famílias. As mulheres
eram as filhas daqueles que desde o início foram acompanhados pelas
esposas, muitas vezes meninas ainda muito novas; eram mulheres que se
encomendava ao patrão que as iam buscar em Manaus ou Belém, muitas
vezes prostitutas que procuravam outras alternativas de vida; e ainda, na
região era muito comum o casamento com mulheres índias, trazidas de
suas aldeias contra a vontade, através de expedições de matança
chamadas de correrias, em que se matava quase todo mundo, menos as
mulheres jovens.

30 • Revista Estudos Amazônicos


Aparentemente essas mulheres eram mercadorias, vendidas, trocadas,
tomadas ainda crianças. Dona Maria Genoca conta:

“De primeiro bichinha, de primeiro as moças se


casava, as meninas se casava, fazia os peitos de
lenço... É neguinha, fazia os peitinho de lenço pra
casá...[...] Porque não havia mulher [...] Dizem
porque era que não havia mulher, eu não alcancei
esse tempo não”.18

Porém através de processos judiciais, entrevistas e outras fontes de


pesquisa podemos saber que não era bem assim.19 Que embora até
pudessem ser vistas por alguns como mercadorias, as mulheres, dentro
das possibilidades colocadas para elas naquele contexto histórico-
cultural, tomavam também suas decisões, resistiam à violência, escolhiam
seus parceiros e improvisavam sua sobrevivência numa situação em que
seu trabalho não parecia ter valor algum.
Através dos processos criminais ficamos sabendo de muitos casos em
que as mulheres abandonavam seus maridos ou companheiros em razão
dos maus tratos a que eram submetidas. Muitas vezes, estes
companheiros reagiam com violência, matando ou tentando matar a
mulher e seu possível novo companheiro, mas às vezes não havia este
tipo de reação. Ainda hoje é muito comum que os casais procurem
novos parceiros depois de alguns anos se não se dão muito bem, na área
do Alto Juruá, sendo os casamentos vistos como arranjos temporários
que podem durar para sempre, mas que também podem ser rompidos
com bastante facilidade.
Uma das entrevistadas por ocasião da pesquisa em 1995, a Dona
Raimunda, por exemplo, teve quatro companheiros, ao longo de sua
vida, tendo se casado legalmente com dois deles e tendo tido filhos de
todos.20 Nas outras entrevistas então feitas, na RESEX do Alto Juruá e
em Cruzeiro do Sul, este padrão pareceu se confirmar, as mulheres
escolhendo deixar os maridos que eram ”ruins” para elas e ficando com
aqueles a quem tinham “amizade”. Por sua vez, os homens também
deixam as mulheres e “juntam-se” a outras.

Revista Estudos Amazônicos • 31


A crise…
A improvisação de grupos familiares acentuou-se ainda mais com a
crise do preço da borracha no mercado mundial, a partir de 1912, e, mais
intensamente, nas décadas de 1920 e 1930. Com o preço em franca
decadência, os seringueiros não podiam mais alimentar os sonhos de
voltar para o Nordeste, ricos. Muitos abandonaram os seringais em
direção às cidades amazônicas e a suas terras natais. Muitos, porém,
amarrados às dívidas com os patrões, ou tendo já constituído famílias na
região, ou ainda na esperança que os preços voltassem a subir,
permaneceram nos seringais, cortando e procurando novas formas de
subsistência.
Para sobreviver nos seringais em crise, foram necessárias grandes
transformações. Se antes os seringueiros viviam basicamente da troca da
borracha produzida pelas mercadorias vendidas pelos patrões,
eventualmente de alguma caça e pesca; agora a agricultura, a caça, a
pesca, a criação de pequenos animais, o artesanato e a extração de outros
produtos florestais tais como madeiras nobres, peles de animais, óleos
vegetais, entre outros, passavam a ser atividades fundamentais para a
sobrevivência. E um seringueiro sozinho não conseguiria praticar tantas
atividades simultaneamente. É o que esclarece o sempre atento Padre
Tastevin, em um dos relatos de suas viagens pelos seringais do Juruá na
década de 1920.
“A vida não é boa aqui senão para as famílias
numerosas, aquelas em que enquanto os rapazes
vão colher a goma nativa, o pai vai à pesca, a mãe e
as filhas aos cultivos, à lavagem de roupas, à
costura. Mas infeliz do homem isolado, sobretudo
se ele vem a cair doente: sua vida não é mais que
um longo martírio. Infeliz também daquele cuja
família é muito pequena para vir em seu auxílio: ela
não faz mais que aumentar sua carga”.21

As mulheres e crianças passaram a ter nesse momento uma


importância muito grande. Os próprios patrões passaram a incentivar a
união de seringueiros a mulheres na intenção de fixá-los aos seringais.
Seria difícil manter por mais tempo os seringais como “fábricas de
borracha”, em que operários dedicavam-se integralmente à tarefa de

32 • Revista Estudos Amazônicos


produzir o látex tão valioso no contexto do mercado nacional e
internacional.
Foi nas “artes de fazer”, inventadas no novo cotidiano, que os
seringueiros elaboraram suas estratégias de sobrevivência.22 Esta
sobrevivência, porém, não podia pautar-se no mesmo tipo de relação
com o meio ambiente que a sociedade ocidental tem imposto ao “mundo
civilizado”,23 era preciso que a floresta se mantivesse em pé para que a
principal mercadoria, aquela que ligava o seringueiro ao mercado e à
civilização, pudesse continuar a ser extraída. Portanto era preciso
aprender com os povos que ali viviam há séculos, como os caboclos
ribeirinhos, ou há milênios, como os índios.
Isto não fez com que brancos e índios passassem a ter convivência
pacífica, embora neste período muitos patrões na região tenham
recorrido à mão de obra indígena para seus seringais, conforme
demonstra, por exemplo, a experiência dos Kaxinawá do rio Jordão.24
Mas, é inegável que foi com os índios, e talvez até principalmente com as
índias que, capturadas, acabavam por se integrar à vida do seringal, que
os seringueiros aprenderam táticas de caça e pesca, o uso de espécies
vegetais e animais variadas, e até técnicas agrícolas adaptadas ao meio.
Nesta nova “arte de fazer” o cotidiano, as mulheres não se
restringiam às tarefas que a historiografia, a literatura e a própria
memória local tem lhes designado. Conforme mostra Lígia Simonian em
seu pioneiro trabalho sobre as mulheres seringueiras da Amazônia
brasileira25 e, também, como pude constatar em meu próprio trabalho de
campo, as mulheres cortavam e ainda cortam seringa, caçavam e ainda
caçam, e muitas vezes tem que derrubar a mata ou a capoeira para
plantar seus roçados, trabalhos tidos como essencialmente masculinos
por exigirem força, habilidade, uso de armas de fogo e que aquele ou
aquela que o faz embrenha-se na mata, muitas vezes sozinho e ainda no
escuro da noite ou da madrugada. Além disso, as mulheres não deixam
de realizar as tarefas domésticas, embora as crianças ajudem bastante,
que inclui carregar água, conseguir lenha, cozinhar, limpar peixes e caça.
A agricultura e a manufatura de farinha também são atividades realizadas
por mulheres, em conjunto com os homens e crianças.
Muitas vezes há uma certa divisão de tarefas entre um casal. Dona
Aci, por exemplo me contou que seu marido cortava seringa, mas quem
cuidava dos roçados era ela: “É, eu dava a vida pra trabalhar, eu deixei de

Revista Estudos Amazônicos • 33


trabalhar no roçado faz um ano, eu é que zelava, peguei um puxado, ai
deixei de trabalhar no roçado. O sol que judiava muito. Plantava roça,
plantava milho. Meu marido ia só mesmo pra brocar e derrubar, eu que
cuidava”. Entretanto, quando solteira, Dona Aci também cortava
seringa: “Quando eu tava solteira, que o meu pai era um homem
doente... E irmão eu só tinha um. Ai eu ia com ele, às vezes ele andava
por uma estrada e eu saia pela outra. Cortava”.26
No caso, porém, de uma mulher que tivesse o marido doente e filhos
pequenos, ou que ficasse viúva, como Dona Calô e Dona Antônia que
também tive a oportunidade de entrevistar, eram elas que tinham que
arcar com todo o trabalho:
“Onde eu tô morando. Nós cheguemos dia 31 de
dezembro, novembro, quando foi dia 16 de agosto
ele morreu. Não passou nem um ano ali. [...] Só
com os meninos mesmo, já tinha morrido dois,
três. Fiquei com as três meninas e os quatro
meninos. O Miare já era grande. O resto tudo era
miudinho, só tinha grande só a Júlia e o Miare. Isso
eu sofri muito, eu cortava seringa, eu fazia tudo.
Cortava. Plantava roçado, encoivarava,
derrubava”.27

Ao longo do trabalho de campo feito na Reserva Extrativista do Alto


Juruá, percebi que as mulheres procuravam “desculpas” para o fato de
terem cortado seringa em alguma época de suas vidas, ou para caçarem,
colocarem roçados e outros trabalhos considerados “masculinos”.
Precisamente, era como se isso as “desonrasse”, ou a seus maridos.
Exceção a este comportamento foi a entrevista com Dona Raimunda
Gomes da Conceição, em que ela disse ter cortado seringa por muito
tempo. Ela inclusive tinha uma conta separada da do marido com o
patrão, e usava seu saldo para comprar roupas, redes e outros utensílios
para si e para seus filhos.28

Novos tempos…
A “Batalha da Borracha”, que deslocou milhares de nordestinos,
novamente, em direção à Amazônia na tentativa de prover os Estados
Unidos e os “Aliados” da necessária borracha no esforço de guerra da

34 • Revista Estudos Amazônicos


Segunda Guerra Mundial, trouxe um novo personagem para o cenário
do seringal: o Estado, através de seus financiamentos e regulamentos.29
Com o apoio estatal à produção e comercialização da borracha, os
seringalistas recuperam em parte seu prestígio, voltando, pelo menos na
área do Alto Juruá, a cobrar renda das estradas e a manter certo
monopólio sobre a comercialização da borracha produzida no interior de
“seus” seringais. Entretanto nem patrões e nem seringueiros puderam
prescindir das lições aprendidas no momento agudo da crise e
entregarem-se novamente de corpo e alma à borracha. A agricultura, a
coleta variada de produtos florestais, entre outras atividades vieram para
ficar. A dedicação dos seringueiros passou a oscilar com o preço da
borracha. Em anos de preço baixo, se dedicam mais à agricultura, muitas
vezes mudando de colocação para uma mais perto da margem. Em anos
em que o preço da borracha parece compensar, aumentam os dias e as
estradas de corte, deixando de lado roçados para produzir excedentes e,
muitas vezes, mudam em direção aos centros, onde as árvores já
“descansadas” produzem látex em maior quantidade.

Indígenas e Violência: outras temáticas


Na leitura das fontes, na convivência, na literatura, dois temas
relativos ao gênero me chamaram muita atenção: a relação entre
seringueiros e índias e a questão da violência nesta sociedade. A primeira
temática decorre do meu exercício de desconstrução e reconstrução do
sujeito mulher/mulheres, pois a partir do momento em que índias s
ão vistas como mulheres pela historiogriafia, em primeiro lugar, não
se pode mais dizer que não havia mulheres nos primeiros tempos da
chegada dos seringueiros no Acre, ou como eles dizem “de primeiro”.
Mas também decorre de muitas histórias, historietas, tradição oral. Ao
ouvir as palavras do Seu João Cunha de que “as índias saíam da mata
assim, ó, amarradas e com um pau na boca, pra não morder...”30 Ou a
história da mãe de D. Mariana, filha de uma menina índia que foi “pega
na mata” por um seringueiro, criada na casa do patrão e sua esposa até
que “ficasse mocinha”, entregue a esse seringueiro, que “judiava dela”, e
que toma sua vida em suas mãos, fugindo desse homem, se
estabelecendo como curandeira e parteira, tendo outro companheiro e
criando uma rede de compadrio (ou melhor comadrio...).31 Não se pode
mais pensar numa relação simplesmente entre um homem e uma mulher,

Revista Estudos Amazônicos • 35


como se nada além do gênero estruturasse esta relação. Aliás, o gênero
como ensinava Joan Scott, já nos anos 1990,32 é sempre relacional, não
somente na relação entre masculino e feminino, mas como componente
de um complexo conjunto de relações sociais. As hierarquias se fundam
nesta rede complexa, mas por outro lado elas não são absolutas. E
agência é uma categoria que eu não usava na época, uma palavra que
faltou para explicar o que, por outro lado, eu já via naquela situação.
Uma vez soltas as mãos, a boca livre daquele pedaço de pau, as mulheres
indígenas aprendiam a construir novas relações, e, mesmo marcadas
pelas diversas hierarquias sociais, numa sociedade em que ser “caboclo”
era o grau mais baixo da hierarquia, como explica Wagley,33 aprendiam a
usar táticas, como diria Michel de Certeau, na invenção desse novo
cotidiano. A construção de redes de parentesco e compadrio/comadrio,
o uso da idéia de que as índias conheciam as plantas da floresta e sabiam
curar, que eram boas parteiras, a coragem de fugir ou enfrentar às vezes,
e de muitas vezes se submeter, foram táticas de sobrevivência e de
criação de um cotidiano nem sempre marcado só pela violência, mas
também por risos, amizades, amores, família, histórias contadas a noite,
comidas compartilhadas, festas, tristezas, doenças, solidariedade, vida.
Quando voltei para Florianópolis, após o doutorado, iniciei uma nova
pesquisa sobre esta mesma questão, em Santa Catarina, com final do
século XIX e início do XX. Esta relação entre índias e brancos, e às
vezes também de brancas e índios, não é exclusiva da Amazônia. No
Brasil inteiro a relação entre homens brancos e mulheres indígenas é uma
espécie de ícone histórico, que pode ser lido de várias maneiras. Um
“gosto” por mulheres exóticas herdado dos portugueses, segundo
Gilberto Freyre, ou mesmo uma relação que junta hierarquias de gênero
e étnicas, num jogo de resistência e sobrevivência por parte destas índias
e seus descendentes.34
A questão da violência foi algo que me instigou desde o início da
pesquisa. Tendo lido Euclides da Cunha e Alfredo Rangel,35 a figura do
seringueiro espancado por conta de suas dívidas ou porque tentava fugir
do regime de servidão por dívidas era muito forte. Os processos
criminais me fizeram ver outros aspectos da violência: homicídios,
muitos envolvendo a “honra”; crimes sexuais–estupros, defloramentos,
incestos; mulheres que também agrediam; seringueiros que se revoltavam
e matavam ou feriam patrões e/ou encarregados. A violência não se dava

36 • Revista Estudos Amazônicos


em mão única, não estava estabelecida em um tipo de relação do patrão
para o seringueiro, por exemplo. Ela circulava entre as relações, uma
espécie de linguagem que muitos usavam e assumia diversas formas. Mas
o que pude identificar é que ela quase sempre tinha também um caráter
de gênero, especialmente vinculada à masculinidade. Minha orientanda
de doutorado, Tânia Zimmermann, que defendeu uma tese sobre
violência e gênero nos jornais do Oeste do Paraná,36 pesquisou a origem
da palavra violência. Segundo os autores que ela pesquisou, o radical
latino vis, que dá origem à palavra violência é o mesmo que originou o
termo viril, e tem como significado o órgão sexual masculino, o pênis. A
linguagem da violência, portanto, tem gênero, número e grau. E o gênero
é viril, masculino, mesmo quando a violência é praticada por mulheres.
Esta é uma questão de gênero, não de sexo.

Tantas histórias
A história das mulheres da floresta merece muito mais livros, muito
mais textos, muito mais narrativas. Nesses 11 anos, desde que publiquei
o livro, é claro que muita coisa já foi escrita, sobre várias partes da
Amazônia, sobre seringueiras, índias, ribeirinhas, mulheres das cidades,
quebradeiras de coco, castanheiras, pescadoras, suas histórias e sua vida
atual. Mas ainda resta muito o que contar, analisar e interpretar.
Em um tempo em que a Amazônia é vista pelo mundo a um só
tempo como uma possibilidade de salvação e uma ameaça, aos
historiadores e historiadoras cabe contar e preservar na história o que a
memória dos diversos povos da floresta ainda tem para narrar e inventar.
A salvação e a ameaça estão ambas na corda bamba da constante e
implacável destruição de conhecimentos, biodiversidades, histórias.
Umas não sobrevivem sem as outras, e, portanto, cabe continuar esse
trabalho, que não pode ser feito só de dentro dos arquivos. Mas talvez
aqueles que se aventuraram ou sempre viveram na Amazônia, possam
agora entrar nos arquivos com seu olhar armado com o cheiro de manga,
graviola, castanha, com sua pele refrescada pelo banho de igarapé, e
quente do sol¸ e picada de mosquito, e interpretar os dados ali estocados
de outras maneiras, para contar essas outras tantas histórias.

Artigo recebido em junho de 2011


Aprovado em agosto de 2011

Revista Estudos Amazônicos • 37


NOTAS

* Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa


Catarina.
1 WOLFF, Cristina. Mulheres da Floresta: uma história. Alto Juruá, AC, 1890-
1945. São Paulo: Hucitec, 1999.
2 Os vídeos estão em Chimamanda Adichie:
O perigo de uma história
http://www.youtube.com/watch?v=06mbjTEsD58&feature=related parte 1
http://www.youtube.com/watch?v=SZuJ5O0p1Nc&feature=related parte 2
consultados em 24/02/2011.
3 SOUZA, Márcio. Galvez imperador do Acre. Rio de Janeiro: Editora Brasília/Rio,

1978.
4Tratava-se do projeto de Pesquisa e Monitoramento da Reserva Extrativista do
Alto Juruá, coordenado pelos Profs. Maria Manuela Carneiro da Cunha (USP),
Mauro William Barbosa de Almeida (UNICAMP) e Keith Brown (UNICAMP)
e financiado pela Fundação John D. e Catherine T. Mac Arthur, para o período
de 1993 a 1996.
5 SCOTT, Joan. “Experiência”. In: SILVA, Alcione da; LAGO, Mara Coelho de
Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Orgs). Falas de Gênero: teorias, análises,
leituras. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999, pp. 21-55.
6 LEITE, Miriam L. Moreira (org). A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX:

antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo: Hucitec, 1984.


7DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no séc. XIX. 2ª
Edição. São Paulo: Brasiliense, 1995.
8NICHOLSON, Linda. “Interpretando o Gênero”. Revista de Estudos Feministas.
Florianópolis: CFH, UFSC, vol. 8, n. 2, 2º semestre de 2000, pp. 9-40.
9COSTA, Craveiro. A conquista do deserto ocidental. 2ª Edição. São Paulo/Brasília:
Nacional/INL, 1973.
10Colocação é como é chamado o território do seringueiro que é constituído da
casa, as estradas de seringa, os roçados e eventualmente território de caça.
11 GADAMER, Hans Georg. Verdad y metodo. Fundamentos de una

hermenéutica filosofica. 4ª Edição. Salamanca: EdicionesSígueme, 1991, p. 553.


12 “Cocoa (cacao), copaiba oil, and sarsaparilla, are the chief natural products
sought, and seem abundant; within the last few years, however, india-rubber also
has been procured”. CHANDLESS, William. “Notes of a journey up the River
Jurua”. The journal of the Royal Geographical Society, 39, pp. 296-311, 1869, p. 297
(Tradução livre).

38 • Revista Estudos Amazônicos


13TASTEVIN, Constant. «Quelques considerations sur les indien du Jurua».
Bulletin et memoires de la Societé d’Antrhopologie de Paris, pp. 144-154, Séance du 6
novembre 1919, p. 145.
14 Entrevista de Pedro Ribeiro dos Santos. Concedida a Cristina Scheibe Wolff,

realizada na Foz do Tejo, Marechal Taumaturgo/AC, no dia 28/11/1995.


15 Entrevista de Nilza Maria Nascimento (D. Maria Genoca). Concedida a
Cristina Scheibe Wolff, na Restauração, Marechal Taumaturgo/AC, no dia
18/11/1995.
16Entrevista de Pedro Ribeiro dos Santos. Concedida a Cristina Scheibe Wolff,
realizada na Foz do Tejo, Marechal Taumaturgo/AC, no dia 28/11/1995.
17SIMONIAN, Lígia T. L. “Mulheres seringueiras na Amazônia brasileira: uma
vida de trabalho silenciado”. In: ALVARES, Maria Luzia Miranda & D‟INCAO,
Maria Ângela (Orgs). A mulher existe? Uma contribuição ao estudo da mulher e
gênero na Amazônia. Belém: GEPEM/MuseuGoelddi/CNPq, pp. 97-116,
1995, p. 103; WOORTMANN, Ellen. “Homens de hoje; mulheres de ontem:
gênero e memória no seringal”. Anais. Goiânia: Instituto Goiano de Pesquisas,
UFGO, 20 pp (separata), 1997, p. 11. Apresentado na II Semana de
Antropologia – Memória e Identidade.
18 Entrevista de Nilza Maria Nascimento (D. Maria Genoca). Concedida a
Cristina Scheibe Wolff, na Restauração, Marechal Taumaturgo/AC, no dia
18/11/1995.
19 Os processos acima referidos foram pesquisados com o auxílio de Maria
Elizabeth Jardim Pereira Dene em 1995, no Fórum Municipal de Cruzeiro do
Sul. Procedemos ao fichamento de todos os processos que tivessem a
participação de mulheres no período entre 1904 e 1945, chegando a 543
processos criminais, 479 processos civis e 1873 processos de habilitação de
casamento.
20
Entrevista de Raimunda Gomes da Conceição. Concedida a Cristina Scheibe
Wolff, na Restauração, Marechal Taumaturgo/AC, em 3/3/1995.
21 “La vie n‟estbonneici que pour les famillesnombreuses, celleoútandis que les
grandsgarçonsvontcueillir la gommenative, le pére se livre a la pêche, la mère et
les fillesaux cultures, à la blanchisserie, à la couture. Mais malheur à l‟homme
isolé, surtout s‟il vient à tomber malade: sa vie n‟est qu‟un long martyre. Malheur
aussi à celui dont la famille est trop petite pour lui venir en aide: elle ne fait
qu‟augmenter sa charge”. TASTEVIN, Constant. «Le Haut Tarauaca». La
Geographie, XLV, pp. 34-54, 1926, p. 43 (Tradução livre).
22CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução de Ephraim
F. Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.
23GONÇALVES, C. W. P. Os (des)caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto,
1989.

Revista Estudos Amazônicos • 39


24 AQUINO, T. T. V. de. & IGLESIAS, M. P. Kaxinawá do rio Jordão: história,
território, economia e desenvolvimento sustentado. Rio Branco: Comissão Pró-
Índio do Acre, 1994.
25 Ver: SIMONIAN, “Mulheres seringueiras na Amazônia brasileira: uma vida
de trabalho silenciado”; Ibidem, Mulheres da Floresta Amazônica entre o trabalho e a
cultura. Belém: UFPA/NAEA, 2001.
26Entrevista de Francisca Nobre de Melo (D. Aci). Concedida a Cristina
Scheibe Wolff, Boa Vista (Rio Tejo), Marechal Taumaturgo/AC, no dia
28/3/1995.
27Entrevista de Calorinda Pereira de Moura (D. Calô). Concedida a Cristina
Scheibe Wolff, Foz do Tejo, Marechal Taumaturgo/AC, no dia 14/6/1995.
Também cito a entrevista de Antônia Conceição Pereira. Concedida a Cristina
Scheibe Wolff, Cruzeiro do Sul/AC, no dia 5/12/1995.
28
Entrevista de Raimunda Gomes da Conceição. Concedida a Cristina Scheibe
Wolff, na Restauração, Marechal Taumaturgo/AC, em 3/3/1995.
29MARTINELLO, P. “A „batalha da borracha‟ na Segunda Guerra Mundial e
suas conseqüências para o vale amazônico”. Cadernos UFAC. Rio Branco:
UFAC, série “C”, n. 1 (1988).
30Entrevistas de João Cunha, Etelvino Farias, e Joaquim Cunha. Concedidas a
Cristina Scheibe Wolff, com a participação de Chico Ginu, Antônio Alemão e
Antônio Caxixa, na Foz do Tejo, Marechal Taumaturgo/AC, em 15/6/1995.
31 Entrevista de Maria Feitosa do Nascimento (D. Mariana). Concedida a
Cristina Scheibe Wolff, com a participação de Milton Gomes da Conceição,
Silene e Ruy Ávila Wolff, na Foz do Machadinho, Marechal Taumaturgo/AC,
em 14/11/1995.
32 SCOTT, J. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação e
Realidade, jul./dez. 1995, pp. 71–99.
33WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica. 3ª Edição. Belo Horizonte/São
Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1988, p. 121.
34WOLFF, Cristina S. “Índias e Brancos no Sul do Brasil - reflexões sobre a
memória e a construção de identidades”. In: LEITE, Renato Lopes (Org.).
Cultura & Poder: Portugal - Brasil no século XX. Curitiba: Juruá, 2003, pp. 37-51.
35 CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido. Ensaios, estudos e pronunciamentos

sobre a Amazônia. Organização, introdução e notas de Leandro Tocantins. 2ª


Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994; RANGEL, Alberto. Inferno Verde.
Scenas e scenarios do Amazonas. Gênova: Cliche Clluloide Bacigalupi, 1908.
36 ZIMMERMANN, Tânia Regina. Violência e Gênero em Notícias no Oeste

Paranaense (1960-1990). Florianópolis: Tese de Doutorado em História, UFSC,


2010, p. 29. Disponível emhttp://www.tede.ufsc.br/teses/PHST0373-T.pdf

40 • Revista Estudos Amazônicos

Você também pode gostar