O Rap Como Voz para A Periferia
O Rap Como Voz para A Periferia
O Rap Como Voz para A Periferia
Palhoça
2021
UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
REGINALDO JOÃO VIEIRA
Palhoça
2021
3
AGRADECIMENTOS
RESUMO
O movimento hip hop é um movimento composto por diferentes manifestações artísticas que
incluem desde expressões gráficas – o grafite, passando pela dança, e a música. O rap - rhythm
and poetry é a parte musical do movimento e com isso traz consigo a responsabilidade de
traduzir em palavras as dores e angústias de uma determinada população. Dentro deste contexto
a sublimação se apresenta como uma possível via de escoamento e deslocamento do desejo,
uma alternativa ao sintoma. A sublimação é caracterizada por alguma expressão do sujeito que
se mostra, aparentemente, dessexualizada – uma vez que suas manifestações ocorrem através
de produções cujo conteúdo, mais voltado à cultura, não apresentam em suas características
gerais finalidades ou traços sexualizados –, por conta disso que atividades artísticas podem ser
consideradas como um dos caminhos para a sublimação. Assim, a sublimação adquire um
caráter teórico-clínico que embasa não só a prática da psicanálise dentro da clínica tradicional,
mas chancela a teoria freudiana para sair às ruas e ampliar seu escopo. Conceituando a
sublimação como este destino da pulsão que transforma a energia sexual em algo cultural e
socialmente aceito; ela se mostra como uma via possível para o sujeito da periferia, em grande
parte vítima da violência tanto do Estado como de boa parte da sociedade. A pesquisa foi
conduzida a partir da perspectiva psicanalítica utilizando o método de análise psicanalítica do
discurso, seguindo o caminho proposto pelo próprio Freud quando diz que os poetas
descobriram o inconsciente antes dele, dando clara demonstração que a produção literária foi
uma fonte para a construção da psicanálise. Ao voltar o olhar para o álbum Tungstênio é
possível encontrar traços discursivos que demonstram relações com as balizas do conceito de
sublimação – tendo em vista a plasticidade do objeto, a aparente dessexualização da pulsão, a
elevação do objeto à dignidade da coisa e como dito anteriormente a saída alternativa em relação
ao sintoma.
The hip hop movement is a movement composed of different artistic manifestations that range
from graphic expressions – graffiti, through dance, and music. Rap - rhythm and poetry is the
musical part of the movement and with it brings with it the responsibility to translate into words
the pain and anguish of a certain population. Within this context, sublimation presents itself as
a possible way of outflowing and displacing desire, an alternative to the symptom. Sublimation
is characterized by some expression of the subject who is apparently desexualized - since its
manifestations occur through productions whose content, more focused on culture, does not
present in its general characteristics sexualized purposes or traits -, because of this that artistic
activities can be considered as one of the paths to sublimation. Thus, sublimation acquires a
theoretical-clinical character that supports not only the practice of psychoanalysis within the
traditional clinic, but also seals the Freudian theory to go out into the streets and expand its
scope. Conceptualizing sublimation as this destination of the drive that transforms sexual
energy into something culturally and socially accepted; it is shown as a possible path for the
subject from the periphery, who is largely a victim of violence both by the State and by a good
part of society. The research was conducted from a psychoanalytic perspective using the method
of discourse analysis with a psychoanalytic bias, following the path proposed by Freud himself
when he says that poets discovered the unconscious before it, giving a clear demonstration that
literary production was a source for construction of psychoanalysis. When looking back at the
Tungsteno album, it is possible to find discursive traces that demonstrate relationships with the
beacons of the concept of sublimation - considering the plasticity of the object, the apparent
desexualization of the drive, the elevation of the object to the dignity of the thing and as
mentioned above the alternative way out in relation to the symptom.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10
2 RAP É COMPROMISSO ............................................................................................. 14
2.1 JAMAICA E AS SEMENTES DO RAP ...................................................................... 18
2.2 BRONX: DAS RUAS PARA O DIAL......................................................................... 20
2.3 O RAP NO BRASIL .................................................................................................... 22
3 MÚSICA E LITERATURA: PONTES PARA SUBLIMAÇÃO ................................ 25
3.1 PSICANÁLISE E LITERATURA ............................................................................... 26
3.2 MÚSICA, VOZ E SOM............................................................................................... 28
4 SUBLIMAÇÃO ............................................................................................................ 32
4.1 ELEMENTOS DA PULSÃO ....................................................................................... 34
4.2 PRIMEIRO DUALISMO PULSIONAL: ASPECTOS DA SUBLIMAÇÃO ................ 36
4.3 A SUBLIMAÇÃO DENTRO DO SEGUNDO DUALISMO PULSIONAL ................. 40
4.4 SUBLIMAÇÃO – COMENTÁRIOS SOBRE O SEMINÁRIO VII ............................. 42
5 MÉTODO ..................................................................................................................... 46
6 BRASIL E A CENA DO RAP..........................................................................................49
6.1 RACISMO CULTURAL..............................................................................................51
6.2 HISTÓRIAS REAIS.....................................................................................................54
7 DO RAP À SUBLIMAÇÃO.............................................................................................59
7.1 O RAP TRANSFORMA(DOR)....................................................................................60
7.2 RENAN INQUÉRITO: O COLECONADOR DE RAP...............................................62
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................66
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 68
ANEXOS ............................................................................................................................ 77
ANEXO A – QR CODE PLAYLIST TUNGSTÊNIO....................................................... 78
ANEXO B – ANÔNIMOS ................................................................................................. 79
ANEXO C – ARTESANATO ELETRÔNICO 2.0 ........................................................... 81
ANEXO D – BARRAS DE OURO ................................................................................... 83
ANEXO E – CAFUNÉ COM CANETA............................................................................ 85
ANEXO F – CORAÇÃO DE CAMARIM ......................................................................... 87
ANEXO G – EAÊ .............................................................................................................. 89
ANEXO H – HISTÓRIAS REAIS ..................................................................................... 91
9
1 INTRODUÇÃO
1
A psicanálise enquanto método de investigação, evidentemente, segue princípios análogos aos da prática da
psicanálise - tais como a abertura para a associação livre, a escuta equiflutuante, a interpretação de formações
do inconsciente, a consideração da transferência-; contudo, os métodos para análise de textos escritos não são
imediatamente aplicáveis a esse contexto. Um discurso colhido em situação de enunciação social coletiva, uma
peça de propaganda, um relato de experiência, uma narrativa de testemunho e mesmo um livro, ainda que
autobiográfico, não são redutíveis à fala do paciente em análise. Reciprocamente, um diário clínico ou um caso
clínico, ainda que publicados, possuem propriedades específicas de gênero e construção que restam como um
discurso. Se o método de investigação psicanalítico segue princípios análogos aos da prática da psicanálise,
uma análise do discurso que encontre seus alicerces em esquemas conceituais e literais psicanalíticos de verá
seguir os mesmos princípios. Guardadas as proporções, seria possível parodiar o teórico da guerra Claus Von
Clausewitz (1832/1853, p. 27), que dizia que "a guerra é a política praticada por outros meios", e dizer que a
psicanálise é uma "análise do discurso praticada por outros meios" (DUNKER, 2016, p. 11-12).
11
conteúdos possam ser interpretados como um processo de sublimação 2. Dividida em três partes
a pesquisa procurará responder questões relacionadas à história do rap na primeira parte –
abrangendo suas raízes históricas, conflitos sociais e como este chegou ao Brasil, passando por
autores como Gilroy (2001), Canclini (2005), Souza (2009) Lindolfo (2004); a segunda, busca
apresentar a relação entre a música e a literatura e seus respectivos pontos de contato com a
psicanálise a fim de tornar possível a análise das letras por estes vieses, enquanto na terceira
parte será abordado a temática da sublimação, para então realizar o enlace possível entre este
conceito e a produção artística eleita para análise.
Considerando que o psicanalista “deve posicionar-se e reconhecer-se no tempo e
espaço como um sujeito também assujeitado, para, dessa forma, justificar sua análise e dar
consistência a suas afirmações” (ARAUJO; SILVA, 2017), enquanto pesquisador vejo-me
como aquele que assim como muitos encontrou no rap, bem como na produção poética uma
via frente as dificuldades do cotidiano. O desejo de escrever sobre os efeitos da música e mais
precisamente do rap tem suas raízes nas mais diversas experiências que este ritmo proporcionou
e proporciona as que dele se utilizam, por mais subjetivas que sejam elas, o rap é capaz de
despertar diferentes sentimentos, apaziguar dores e ao mesmo tempo unir pessoas. Trata-se de
um ritmo que por seu conteúdo faz com que o sujeito se engaje politicamente antes mesmo de
saber o que é política, as letras que abordam questões econômicas, políticas e sociais conduzem
o discurso.
Faz-se importante lembrar que para além destas bandeiras levantadas pelo
movimento hip-hop há sujeitos, com desejos e direções muito próprias, justamente por isso que
se pode considerar em alguns casos a sublimação como um destino pulsional para estes sujeitos.
Isto que torna o tema tão instigante, questionar de que forma o rap se entrelaça com o desejo
de determinados sujeitos a ponto de ocorrer um processo sublimatório. Cabe ainda fazer uma
distinção entre a sublimação – conceito psicanalítico – e o sublime – enquanto categoria estética
– este último está diretamente relacionado com os aspectos de grandeza e que se distingue do
belo e do pitoresco relacionado sempre ao estado da arte. A sublimação por sua vez, enquanto
conceito psicanalítico diz respeito ao destino pulsional cujo a finalidade e o objeto se alteram
em relação ao movimento inicial da pulsão - ver capítulo sobre a sublimação.
2
Segundo Plon e Roudinesco (1999, p. 734) “Freud conceituou o termo em 1905 para dar conta de um tipo
particular de atividade humana (criação literária, artística, intelectual) que não tem nenhuma relação aparente
com a sexualidade, mas que extrai sua força da pulsão sexual, na medida em que esta se desloca para um alvo
não sexual, investindo objetos socialmente valorizados”.
12
Para tanto é necessário percorrer um caminho que aproxima campos das artes que
há muito caminham juntos, são elas a música e a literatura. Música enquanto efeito que causa
no sujeito com seus ritmos, tons e notas que ultrapassam a barreira do simbólico, já a literatura
enquanto aquilo que da instância do simbólico vem se fazer presente, enquanto a primeira da
conta daquilo que Didier-Weill destacou da seguinte forma: “ela (a música) diz somente o real,
pelo fato de que ela o leva a existência e, nisso, seu poder é, ao mesmo tempo, superior ao da
palavra e menor que o dela” (1997, p. 249), o que o autor nos mostra é esta sideração da música
com o real; já a literatura faz com que o sujeito coloque em palavras aquilo que deseja expressar,
como vemos no poema “Sentimento do mundo” de Carlos Drummond de Andrade (1940) que
diz “tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo [...]” numa clara expressão da limitação
de sentido, o que resta ao poeta é, em alguns casos, a sublimação.
Ao aproximar psicanálise e literatura acessamos uma forma privilegiada de
conhecimento, conforme Villari (2002) que afirma que quando assim procedemos o saber está
do lado da arte e a ignorância do nosso lado. Uma atitude assim configura o movimento do
analista de des-ser, de considerar o que o texto e a música têm para contribuir com a construção
da psicanálise. Trata-se de partir deste ponto onde reconhecemos nossas limitações teóricas a
fim de encontrarmos na literatura e na música uma relação de tal forma que venha contribuir
para o conceito psicanalítico de sublimação. Em uma carta para Eduard Silberstein Freud
demonstra isso de forma mais explícita, quando ele diz que “os poetas e os filósofos
descobriram o inconsciente antes de mim. O que eu descobri foi o método científico pelo qual
o inconsciente pode ser estudado.” (WALTER, 1995).
Dado o desenho da pesquisa que tem por objetivo principal analisar, a partir da
psicanálise, os elementos discursivos presentes nas letras de rap do álbum Tungstênio do grupo
Inquérito e seu estatuto de sublimação de acordo com o conceito psicanalítico. Para tanto foi
necessário percorrer os seguintes objetivos específicos: a) contextualizar a história do rap de
sua origem até o cenário nacional; b) apresentar a relação entre a literatura e a música enquanto
produções subjetivas; c) descrever o conceito de sublimação; e d) traçar as interpretações
realizadas entorno dos elementos discursivos em aproximação ao conceito de sublimação.
Partindo inicialmente do âmbito social, verifica-se a possibilidade de fomentar e
legitimar ainda mais o discurso e os efeitos do rap para aqueles que de alguma forma estão em
contato com este tipo de arte. No campo acadêmico é inegável a carência de produção científica
acerca do tema, sendo este trabalho uma possível fonte de pesquisa e embasamento para
cientistas de diferentes áreas das ciências humanas.
13
2 RAP É COMPROMISSO
que vale lembrar que por mais que não trate diretamente daquilo que podemos considerar a raiz
do rap, de alguma forma tais questões originárias são lembradas - ainda que de forma implícita
-, pois se faz presente na condição de produção um novo discurso. Segundo Lourenço (2010, p.
33):
As letras de rap se apresentam em forma de narrativa, em que seus autores relatam
fatos que presenciaram ou viveram em seu dia-a-dia. Algumas letras são apenas
descritivas de tais situações, outras trazem conselhos ou sugestões visando à solução
dos problemas narrados. Entretanto, todas as letras sempre carregam consigo uma
intenção crítica do social. Mesmo as letras somente descritivas têm sempre o objetivo
de relatar os fatos ocorridos para trazê-los ao conhecimento de outros, a fim de que
tais fatos sejam questionados.
O rap expõe as feridas sociais, aquilo que o Estado tenta maquiar, esconder, das
maneiras mais cruéis, muito embora as mídias alternativas e até mesmo a imprensa exponham
o descaso infligido à periferia foi o rap um dos primeiros canais de denúncia (LOURENÇO,
2010). O Estado enquanto detentor do monopólio da violência utiliza-se dela para calar e
oprimir, foi assim com as batalhas de rap nas praças de Palhoça SC e em tantas outras áreas
onde o discurso que ecoa da periferia possa alcançar. Em Palhoça, município catarinense com
cerca de 170 mil habitantes, era comum haver batalhas de rap, mas desde 2018 estão proibidas
pela prefeitura e qualquer ação contrária é imediatamente coibida pela polícia (G1, 2018). Ou
seja, vive-se numa lógica onde o Estado tenta a todo custo calar o povo da periferia, impedir
que estes se levantem ou tomem consciência da sua força. Outro caso similar foi o que ocorreu
em 2017 em São Paulo quando o então prefeito João Dória mandou apagar os grafites da
Avenida 23 de maio. O rap, o grafite e todos os elementos que o hip hop comporta são maneiras
de expressar aquilo que se passa na periferia, se não fosse desta forma que outro jeito poderia
ser? São estas expressões artísticas que tornam suportável as dores e mazelas do cotidiano na
periferia.
Porém, o rap assim como toda a cultura ocidental, é atravessada pelo capitalismo;
o sistema em vigor que dá subsídios para Lacan pensar os discursos, dentre eles o discurso do
capitalista3. Loureiro (2016) afirma que neste discurso o sujeito fica à mercê dos objetos, ou
seja, de suas produções. Enxergar o rap partindo deste escopo é vê-lo subvertendo sua lógica,
aquilo que outrora servia para dar sentido e voz ao sofrimento torna-se mercadoria frente a um
imperativo do mais-de-gozar. Isto faz com que o objeto ofertado, nesse caso a canção, torne-se
obsoleta cada vez mais rápido desvirtuando a verdadeira essência do movimento hip-hop.
3
Dentro do discurso do capitalista o sujeito torna-se um mero consumidor, na expectativa de lidar
com sua castração se enlaça com gadgets que prometem tamponar as lacunas deste sujeito.
16
Botelho, Garcia, Rosa (2012) ao analisarem a cena do rap dividem sua produção
em cinco blocos, assim definidos pelos autores: um primeiro bloco que denuncia e revida à
violência policial, além de alertar sobre as consequências da vida do crime; o segundo bloco
aborda a racialização da pobreza e o racismo no Brasil, trata-se de um espaço onde a história
da diáspora africana é contada e elaborada, diferentemente do que se vê nos livros didáticos; o
terceiro bloco crítica o discurso de meritocracia que circula entre a classe média e alta do país,
levantando uma reflexão acerca da dívida histórica que o homem branco tem com aqueles que
foram escravizados; o quarto bloco traz as questões políticas que envolvem toda essas relações
supracitadas, abordam a educação, a saúde, economia, entre outras; por fim, o quinto bloco a
participação feminina levanta a bandeira feminista e de empoderamento para as mulheres da
periferia. Para os autores, o que os rappers fazem é uma atividade política, onde consideram a
política segundo os conceitos de Rancière, em que “a atividade política é a que desloca um
corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não
cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho [...]” (1996, p. 42).
Este é o compromisso do rap, um compromisso com a palavra e com sua história.
A partir da relevância e difusão que o gênero musical conquistou ao redor do mundo é que as
histórias da periferia começaram a serem ouvidas e conhecidas por pessoas que jamais tiveram
um encontro direto com este mundo periférico. O argumento de Emicida aqui se mostra mais
evidente, é a busca por um conhecimento popular e mais próximo da realidade, é o conteúdo
presente na cena do rap, é como Renan4 Inquérito (2014) traz em sua música "Eu só peço a
Deus", ou Emicida (2015) em "Boa esperança" ambas as canções trazem conteúdos que
remetem aos tempos de escravidão e questionam a forma como a história é contada.
4
Nome artístico de Renan Lelis Gomes – vocalista do grupo Inquérito.
17
Renan Inquérito traz passagens históricas um pouco mais a frente que aquelas
trazidas por Emicida em Boa esperança. Embora a ideia de manter as pessoas mais pobres na
periferia o que foi vivido entre os preparativos para a Copa do Mundo de futebol em 2014 e as
Olimpíadas em 2016 foi uma verdadeira operação para vender uma falsa imagem aos turistas
que viriam para o país. O questionamento sobre os bandeirantes e a incitação para ver o que
fizeram é também uma forma de questionar os livros didáticos que colocam tais pessoas como
18
heróis, porém a o outro lado da história nos mostra que eles eram escravizadores que adentraram
nas entranhas do Brasil com objetivo de explorar, saquear e escravizar os povos indígenas.
Renan, assim como Emicida, faz uma comparação entre o sofrimento dos povos africanos e
indígenas com o do povo judeu afirmando que nomear ruas e avenidas com os nomes dos
bandeirantes é o mesmo que Israel homenagear Adolf Hitler, o principal algoz do povo judeu.
Assim como Renan Inquérito e Emicida apresentam a história da luta dos povos da
periferia em suas letras, há tantos outros MCs espalhados pelo país que retratam realidades que
se cruzam nos quatro cantos do Brasil, ou seja, histórias que apesar de serem individuais e
distantes geograficamente se assemelham nas dificuldades e preconceitos sofridos.
Em 1988 o jornal Americano "The New York Times" dedicou uma página para
falar sobre a real origem do rap, em uma matéria escrita por Paul Lawford Baxter o jornalista
escreve sobre como o rap aparece nas ruas da Jamaica, e não no Bronx como boa parte da mídia
tende a contar. O que ocorre é a necessidade de se fazer uma distinção entre o Hip-hop
movimento que os elementos disc jokey, mestre de cerimônia, grafite e break, do rap que por
sua vez comporta apenas os dois primeiros elementos.
Os primeiros vestígios do rap datam da década de 1960, com a canção "Ska-Ing
West" do grupo "Sir Lord Comic e His Cowboys" como o próprio nome da música nos indica
há uma forte ligação entre o ritmo Ska5 e o rap, onde podemos considerar que o primeiro dá as
bases para o surgimento do segundo. Outro ponto para nos atentarmos é o momento que em
que ocorre esta revolução musical na ilha centro americana, a década de 1960 foi marcada pela
luta da independência da Jamaica que vinha se arrastando desde os anos 30.
Desde a invasão dos espanhóis em 1494 os povos que viviam naquela região
vinham sofrendo com um grande revés, os Tainos - povo nativo da região - fora extinto
rapidamente, a intensão extrativista dos saqueadores espanhóis fez com que a Jamaica se
tornasse um grande porto para desembarque de negros escravizados. Cerca de 150 anos após a
5
O ska é um ritmo oriundo da Jamaica, sua origem data de meados dos anos 50. O ska tem em sua base a mistura
de diferentes ritmos como o jazz, o blues, o mento e o Calypso.
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invasão espanhola, em 1655 a Jamaica sofrera mais uma vez, agora com a invasão dos
britânicos. O grande motivo para tanta disputa era o interesse nas terras jamaicanas e sua alta
produção de cana de açúcar. Foi durante o século XVIII que as histórias sobre os negros que
resistiam e lutavam contra a violência dos europeus ganhou força. Os "Marrons", como eram
conhecidos, resistiam e lutavam, situaram-se nas montanhas e em 1739 obtiveram um tratado
de paz junto a coroa britânica. Quase 100 anos depois, em 1838 a escravatura foi abolida. E
apenas em 1962 a Jamaica conseguiu conquistar sua independência enquanto Estado.
Neste contexto a música floresce e a pequena ilha da América Central torna-se
berço de ritmos como o Ska, o Reggae, o Rap, dentre outros. E assim os ritmos que ali se
originaram apresentam-se como símbolo de resistência, suas letras falam de lutas, contam
histórias.
Por outro lado, Camargos (2015) ressalta a dificuldade em resgatar a genealogia
de algo que se deu em grupos sociais distintos, além de dialogar com diferentes elementos
culturais que surgem no discurso dos MCs, conforme os contextos e lugares onde estes se
situam. Mesmo frente a dificuldade podemos estabelecer um panorama ainda mais amplo sobre
as possíveis raízes do rap, como podemos verificar em Anastácio (2001) que traz a origem do
rap como desconhecida, porém intrinsecamente ligada à chegada de jamaicanos nos Estados
Unidos, foram eles que levaram o “Sound System” (aparelho constituído por dois toca discos,
conectados à um amplificador e um microfone) para as ruas estadunidenses. O autor supracitado
faz a amarração entre o rap e a cultura africana da seguinte forma:
Neste sentido, é notável a identificação dos elementos centrais do RAP com as
tradições orais e rítmicas de origem africana, isto se dá em razão direta da semelhança
ente os MC (Master of Cerimonies), que se ocupam do vocal e os griots (músicos que
narravam a história da sociedade africana, através de contos) e do DJ (Disc Jockey,
que atua na constituição ritmico-sonora) e os tocadores de instrumentos (com destaque
para os de percussão). Estas tradições são práticas que foram identificadas em toda a
África. A relação entre a oralidade e o ritmo, para transmitir mensagens, guardadas as
especificidades locais e temporais, também estavam presentes na Jamaica.
(ANASTÁCIO, 2001, p. 11).
O rap é um fenômeno recente que traz consigo raízes milenares, podemos seguir
este fio histórico que nos conduz até a tradição oral africana, onde encontraremos Nommo,
considerado o primeiro humano dentro da mitologia africana, ele é uma criação da divindade
Amma. Seu poder está na palavra falada, que é dotada de poder generativo, é por meio dela que
as coisas ganham vida. Influenciados pela tradição oral africana e calcados no poder mágico
atribuído à fala que os rappers construíram suas bases.
20
manifestações culturais passaram a ser chamadas por um único nome: hip-hop. O rap
é a música hip-hop, o break é a dança hip-hop e assim por diante. (Ver Toop, 1984;
Hager, 1984).
Podemos ver também a ligação que o rap tem com os africanos nos mais diferentes
países por onde este gênero musical se faz presente. Segundo o pesquisador Dave Cook -
conhecido no mundo do rap como Davey D -, a forma que este processo ocorreu nos Estados
Unidos se deu devido a proibição aos escravizados em falarem sua língua mãe. Como saída
estas pessoas criavam cânticos com metáforas que retratavam suas condições ou contavam
situações onde algum escravizado conseguiu tirar proveito de "seu dono". Para o pesquisador,
este é o elo entre a tradição oral africana, a construção sócio-histórica dos afro-americanos e o
rap, principalmente o rap de protesto (COOK, 1999).
A comercialização do rap ao mesmo tempo que promove sua difusão traz consigo
também outras dificuldades, é o que nos aponta Blanchard (1999) ao retratar as mudanças
ocorridas nas estações das rádios comunitárias onde os artistas locais eram amplamente
difundidos. Segundo a autora, o crescimento exponencial do gênero fez com que as grandes
gravadoras voltassem seus olhos para a periferia, em contrapartida caberia a estes MCs
escreverem novas letras - distantes daquelas de protesto como eram no início - que fosse
rentável e correspondesse a demanda de um público ainda maior que aquele que já conheciam
o rap em sua primeira fase. O processo de comercialização do rap diversificou o discurso
presente no gênero, trouxe ao público em geral letras consideradas mais "suaves". Aos MCs
que decidiram não se curvar a demanda do capital vemos que lhes sobrou a crítica da mídia que
por vezes associam o rap de protesto à prática da violência bem como à outras práticas ilícitas,
mas a autora é enfática ao afirmar que "a violência no rap não é um agente afetivo que ameaça
prejudicar a juventude americana; ao contrário, é o clamor de um problema já existente de
jovens cujas visões mundiais foram moldadas ao experimentar profundas desigualdades
econômicas divididas amplamente em linhas raciais", ou seja, o rap está retratando uma
realidade que se faria presente mesmo sem o gênero musical, quando a mídia e políticos
criticam o rap pelo conteúdo presente em suas letras encontram nisso uma forma de lidar com
a violência praticada por estes mesmos agentes sobre a população negra desde o período da
escravidão.
22
Olhar para o Brasil e não enxergar as heranças dos povos africanos é um ato quase
impossível, a marca histórica construída por essas pessoas ficaram impregnadas no nosso modo
de vida. A música brasileira não seria a mesma sem esses atravessamentos. De todo modo,
quando olhamos para o RAP dentro do cenário mundial o que vemos em comum é a temática
que envolve as letras, girando sempre entorno da exclusão social, questões políticas e
econômicas.
Porta de entrada para a os elementos culturais da época, São Paulo e Rio de Janeiro
foram cidades onde podemos considerar que o rap e o funk entraram no Brasil, ambos os
gêneros se faziam presentes nas duas cidades, porém o rap teve maior desenvolvimento nas ruas
de São Paulo enquanto o funk desenvolveu-se nas ruas do Rio, outra característica inerente a
ambos os ritmos é que seus respectivos desenvolvimentos ocorrem primeiramente nas
periferias, assim como foi na Jamaica e nos EUA.
A chegada do Rap no Brasil aflora ainda mais a consciência política dos
frequentadores dos bailes e encontros, durante a apresentação de alguns DJs como Big Boy e
Ademir Lemos era comum a exibição de fotos e vídeos de personalidades negras dos EUA. Isso
despertava em muitos que frequentavam aquele lugar a curiosidade em saber quem eram
aquelas pessoas, o movimento "negro é lindo" por exemplo, foi inspirado no movimento "Black
is beautiful" que ocorrera anos antes nos EUA. Ao escrever sobre este processo de tomada de
consciência do povo negro no Brasil, Anastácio (2001, p. 18) afirma o seguinte:
Assim, podemos notar a constituição de uma identidade e consciência do negro,
fazendo uso das brechas deixadas pela indústria cultural, pois ao permitir que uma
série de elementos fossem postos a disposição, a princípio tendo o intuito
mercadológico, destas pessoas, possibilitou referenciar a própria condição de "ser
negro". Neste sentido, é notável o silêncio geral ao qual estavam submetidos estes
sujeitos, a respeito de sua existência enquanto agentes históricos. O contato com todo
um universo simbólico, possibilitou a construção e o questionamento de uma
identidade étnica que até então pouco lhe era apresentada. Com isso passou-se a
perceber a importância de seu papel e sua significação no contexto social. Esta
percepção não atinge uma totalidade, mas foi significativa. Mesmo tendo em conta o
uso de referenciais externos, dá subsídios de se pensar os "porquês" da ausência de
debate e do papel do negro, mas vista pelo próprio negro no Brasil. Diferentemente
do que ocorria nos EUA, por essa razão o uso de referenciais norte-americanos.
branco, europeu, como o herói das américas, o rap faz questão de recontá-la por um outro
prisma, como nos versos cantados por Coruja BC1 (2018) em Mandume:
Ae, alguém avisa o Feliciano
Que a maldição da África foi o europeu cristão caucasiano
Mancha de sangue na batina real
Constantino foi tipo Edir Macedo dos tempos feudal
Queima de arquivo, não batismo
Que a igreja não cita
Faz te lembrar de Joana Dark, mas não fala sobre Kimpa Vita
Aonde o caos levita, cê não entendeu
E o que é diabo perto do homem que matou em nome de deus
O ano era 1500, os português pisaram aqui
Rezaram a missa, pra iniciar a caça ao povo Tupi
Invasão por luto, da realeza blasé
Tataravô dos mesmos que hoje critica o MST [...].
Assim funciona o rap, apresenta em uma letra a realidade de diversos lugares, traz
em si o legado de contar história, de simbolizar sentimentos. Somado a toda instabilidade, há
também a violência policial. É comum ver os noticiários falando sobre operações policiais que
acabam em mortes, ou até mesmo entrevista de um representante da polícia falando que se deve
abordar de forma diferente alguém da periferia (ADORNO, 2017). Ou seja, o rap apresenta a
versão vista com os olhos daqueles que sofrem, colocando o compositor no lugar de testemunha
também. Dentro deste contexto, o rap funciona como uma lente de aumento, que ao mesmo
tempo que denuncia fato tão similares, causa efeito e atravessa histórias singulares, ou seja,
repercute sobre o sujeito.
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O presente texto não tem por objetivo delimitar quem veio primeiro: a literatura ou
a música. O que move a pesquisa e faz com que tal produção aconteça é justamente a
possibilidade de analisar o que ambas possuem em comum, o que as aproximam e até mesmo
o que as distanciam. A relação entre música e literatura é tão intrínseca que causa estranheza
quando analisadas separadamente, conforme demonstra o musicólogo Squeff (1997, p.139)
“estranha que a literatura e a música nem sempre tenham sido objeto da preocupação de quem
de direito, isto é, dos literatos e dos músicos”. O autor supracitado demarca e discorre ao longo
de seu artigo “Música e literatura: entre o som da letra e a letra do som” sobre como este
movimento, nem sempre consciente fez com que caminhassem lado a lado música e literatura.
As tradições orais, passadas de forma geracional, são narrativas literárias que
ganham corpo ao aliarem-se a sons de instrumentos musicais; isto é observável nos grupos que
não se utilizam da escrita para transmitirem seus conhecimentos (FREIRE, 2006). Mas também
é verificável quando a análise se volta para a história europeia, conforme nos mostra Squeff:
“não que a literalização da música fosse um fato novo. De Clement Janequim (1474 – 1560),
na Renascença, a Ludwig Spohr (1784 – 1859), no período romântico, textos rondaram a assim
chamada ‘música pura’” (1997, p. 142). Para melhor explorar o que estamos apresentando
recorro a Galindo (2015) que ao escrever sobre literatura oral e poesia cantada afirma que até
cerca de 1400 a escrita influenciava pouco no processo criativo, pensamento e reflexão dos
poetas bem como de seu público que em grande parte era analfabeta.
Dentro de um cenário nacional pode-se observar que aos poucos as tradições orais
começaram a serem organizadas e na medida do possível publicadas, é o caso de Quarto de
Despejo (1960) escrito por Carolina Maria de Jesus. Segundo Bergamini (2020) a autora
precisou submeter sua escrita à procedimentos estéticos que permitiram seu texto tornar-se
publicável. Este fator retrata a dificuldade encontrada por autores situados em pontos marginais
da cultura de sua época. Todavia é notório que a verdade encontra seus meios para ser contada,
por isso que a literatura e música são instrumentos indispensáveis para transmissão de uma
cultura.
Outro fator que devemos considerar é a presença de instrumentos musicais nas
diferentes culturas ao redor do mundo, o instrumento musical mais antigo já encontrado data
de 30.000 anos atrás, ou seja, muito antes do surgimento da escrita. Este fato somando aos
estudos antropológicos que demonstram a presença da música nas mais diversas culturas tornam
26
inegável a importância da música para o sujeito independente de que parte ou tempo ele habitou
nosso planeta. O que vemos são as tradições orais serem passadas geração após geração de
forma a integrar história e música ao ponto de se tornarem inseparáveis, enquanto uma
simboliza a outra toca prioritariamente no imaginário do sujeito – levando em conta a forma
que esta interfere no sujeito, Freud em Personagens psicopáticos no palco (1906) escreve que
o espectador se imagina como o herói da canção. Outro espaço de manifestação humana onde
vemos a música se fazer presente imprescindivelmente são os cultos religiosos, a música nesses
espaços ocupa um lugar de destaque como que preparando o sujeito para receber aquilo que
será posto em palavra no período por vir.
Em nosso território nacional esta relação entre música e literatura não poderia ser
diferente. Wisnik assim descreve nosso cenário:
Na canção popular brasileira das últimas três décadas encontram-se bases portuguesas
e africanas com elementos do jazz e da música de concerto, do rock, da música pop
internacional, da vanguarda experimental, travando por vezes um diálogo intenso com
a cultura literária, plástica, cinematográfica e teatral. [...] Está implícito ou explícito
em certas linhas da canção um modo de sinalizar a cultura do país, que, além de ser
uma forma de expressão vem a ser também, como veremos, um modo de pensar – ou,
se quisermos, uma das formas da riflessione brasiliana. (WISNIK, 2010, p. 26)
O autor descreve neste trecho aquilo que se pode observar no surgimento do rap no
Brasil, a mistura de etnias, instrumentos e saberes, evidenciando esta troca entre a literatura e o
ritmo. Dada as condições constata-se que em ambas as áreas (música e literatura) a produção é
atravessada por fatores que incidem sobre o sujeito, constituindo assim sua subjetividade.
Enquanto produção subjetiva as duas causam efeitos para este sujeito podendo este ser
sublimatório ou não.
No discurso ao receber o prêmio Goethe - proferido por Anna Freud, mas escrito
pelo próprio Freud – observa-se uma fala marcante para esta relação entre psicanálise literatura:
"A psicanálise pode fornecer informações que não podem ser alcançadas por outros meios, e
pode, assim, demonstrar novos fios de ligação na 'obra prima do tecelão', espalhando entre os
talentos pulsionais, as experiências e as obras de um artista" (FREUD, 1930 p. 364). Vemos
então que a psicanálise inaugura uma leitura que difere daquelas que havia. Freud considerava
os poetas e romancistas como preciosos aliados da psicanálise, segundo ele os escritores
27
possuem uma forma de acesso aos conteúdos da mente humana que ciência nenhuma teve
acesso. O psicanalista Jean Bellemin-Noël (1983, p. 12) assim descreve a função da literatura:
É por ela que tomamos consciência de nossa humanidade, que pensa, que fala. Pois a
língua que se aprende nas relações quotidianas com os pais e amigos só serve para
agir: perguntar, responder, para viver. Em suma, é só com alguma coisa como
literatura (mesmo que tenha sido oral nas eras e civilizações sem escrita) que o homem
se interroga sobre si mesmo, sobre seu destino cósmico, sua história, seu
funcionamento social e mental. Suas concepções "elevadas", sua visão do mundo
afirma-se em contato com as lendas o que é preciso ler, depois com os mitos
religiosos, com as epopéias profanas, com as narrativas exemplares, contos, teatro,
romance, com as confidências emocionantes, tanto em prosa como em verso. A fala
informa-nos, a escrita forma-nos. E deforma-nos necessariamente, já que o que foi
escrito nos vem de outro lugar, longe ou perto na ausência e de um outro tempo, de
outrora ou de há pouco: nunca daqui e de agora, onde falar é o suficiente.
torna tentador. O que nos é oferecido através da literatura é um ponto de vista sobre a realidade
– façamos aqui uma ressalva para o que Lacan (2008, p. 62) escreve sobre a realidade:
[...] a noção de uma profunda subjetivação do mundo exterior alguma coisa tria, criva
de tal maneira que a realidade só é entrevista pelo homem, pelo menos no estado
natural, espontâneo, de uma forma profundamente escolhida. O homem lida com
peças escolhidas da realidade.
Não tem como determinar ao certo quando surge a música, será sempre uma busca
que terminará em uma resposta mítica. O fato é que o primeiro instrumento musical datado pelo
homem é um objeto semelhante a uma flauta, feita com osso com perfurações em sua extensão,
ela data de 30.000 anos atrás (MILLAN, 2020). Podemos pensar também o possível efeito sobre
o indivíduo daquela época, utilizar um osso talvez fosse como fazer com que aquele ser, que
não estava mais ali, se manifestar. Jamais teremos uma resposta sobre tal questão, mas o fato é
que desde então, nas mais diversas civilizações do mundo, são encontrados objetos responsáveis
por musicar as narrativas destes povos. E é assim que a tradição oral, ritos religiosos foram
29
presença do instrumental. Neder possui uma outra perspectiva sobre o discurso musical,
relacionando-o ao gênero e estilo adotados pelos sujeitos que partilham do mesmo gosto
musical:
Se os gêneros musicais são sistemas de significação social – discursos, como afirma
Walser – então os indivíduos podem identificar-se com tais discursos, e isto é de fácil
verificação. Muito frequentemente, a profunda apreciação por um gênero – o rap, o
punk rock, o samba, o pagode – é acompanhada pela adoção, pelo sujeito, de códigos
sartoriais, comportamentais e linguísticos associados a estes gêneros. Isto quer dizer
que, sendo um discurso, o gênero musical conecta a subjetividade aos processos sócio-
históricos. Desta maneira, gêneros musicais conferem identidades. (NEDER, 2013, p.
171).
Toda produção humana ocorre dentro de um sistema social, onde sua interpretação
não pode ocorrer de forma isolada. Nesta perspectiva entende-se que é condição sine qua non
considerar os elementos que orbitam, atravessam e colidem com tal material. Com a música
não pode ser diferente, ao analisar a produção musical é necessário olhar de forma atenta para
os elementos que ali se fazem presente. Assim, fica evidente a percepção singular e inovadora
de Blacking sobre esta habilidade do humano, chamada música; o autor ainda complementa
suas considerações acerca da forma de interpretação e sua relação com o que ele chamou de
“circunstâncias sociais”:
As interpretações ambíguas dos signos musicais são provavelmente as mais poderosas
fontes de inovação e transformação musical, isto é, quando certas circunstâncias
sociais estimulam o desenvolvimento de uma maneira idiossincrática de ouvir música,
em vez daquela aprovada culturalmente, é mais provável que se componham músicas
abertas a novas direções. (BLACKING, 2007, p. 206)
O que fica a mostra na fala do autor é que a música é aberta a compreensões dotadas
de ambiguidade, ou melhor, de múltiplos sentidos, a depender do seu tempo e relações sociais
ali estabelecidas por quem ouve. Assim, um ritmo, uma letra que para alguns possa não ter
sentido, pode ser capaz de causar um levante em um determinado grupo social. Como podemos
observar no movimento hip hop e com o funk nas periferias do Brasil.
Diante de todos esses elementos, o gênero musical como discurso, seus múltiplos
sentidos e sua presença nos mais diversos contextos que vão de momentos de lazer à ritos
religiosos, vemos que há algo diferenciado nessa criação humana, algo que de alguma forma
toca o sujeito e coloca a expressão musical em um lugar diferenciado para o sujeito. Quando
falamos a respeito desta temática em psicanálise podemos fazer uma correlação com a pulsão
invocante, pulsão está ligada à voz como nos mostra Catão (2017, p. 137):
Sabemos, com Lacan, que a voz não se confunde com o som. Ele é seu veículo
imaginário. A função de fonação serve de suporte do significante. A voz é o primeiro
objeto vazio da pulsão. A voz é disjunta da boca e, também do ouvido, orifícios que,
no entanto, estão implicados na pulsão invocante, único circuito pulsional que é duplo,
como propõe Porge (2014). A boca é o oco contorno por onde a vibração do ar nas
31
cordas, feita sopro, tenta se fazer ouvir. O ouvido, orifício que nunca se fecha, escuta
o significante, e não o sentido.
Didier-Weill nos apresenta aqui à relação entre música e sujeito, demonstrando que
aquilo que a música provoca é em sua essência um apelo invocante e que evidencia ao sujeito
sua relação com o Outro, onde não há mais dentro e fora, mas sim, uma continuidade moebiana
como nos foi posto por Lacan. Noutro texto seu, intitulado A nota azul (1997b), ele nos diz que
esta nota pode ser qualquer nota, mas que aos ouvidos do sujeito ela tem um efeito muito
subjetivo, e se ele articula a música ao intraduzível, a nota azul se articula ao não simbolizável.
Didier-Weill nos traz a nota azul como sendo aquela nota específica que pode estar presente
tanto numa canção infantil cantada para o bebê, como pode estar no som de um piano em uma
apresentação de música clássica.
32
4 SUBLIMAÇÃO
O termo sublimação aparece nos textos freudianos desde muito cedo, podemos ver
as menções de Freud acerca da sublimação já nas suas correspondências trocadas com Wilhelm
Fliess. Vemos no Rascunho L, Freud falar sobre a sublimação como um embelezamento dos
fatos, mudanças que ocorreriam para disfarçar a fantasia sexual (FREUD, 1897). Assim, a
sublimação é colocada por Freud como uma defesa histérica. O termo terá outros
desdobramentos ao longo da obra freudiana, mas sempre seguindo a ideia de que esta “surge
como uma defesa” (METZGER, 2008, p. 14) do sujeito. Freud utilizou do termo Sublimierung
para designar o processo em que a atividade humana que pode ser uma criação literária, artística
e/ou intelectual, e que não apresenta aparentemente nenhuma relação com a sexualidade, pelo
fato de seu alvo ter sido deslocado para um objeto não sexualizado e socialmente valorizado
(PLON; ROUDINESCO, 1998).
Após o Rascunho L, é possível encontrar outros posicionamentos freudianos sobre o
termo sublimação nos textos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e Fragmentos da
análise de um caso de histeria, ambos de 1905. Nos Três ensaios Freud nos apresenta as três
saídas para a sexualidade infantil: a primeira diz respeito a vida sexual perversa que ocorre
"quando todas as predisposições se mantêm na sua proporção relativa - que supomos anormal
- e se fortalecem no amadurecimento [...]" (FREUD, 1905, p. 163); uma segunda saída é a
repressão onde a moção pulsional é obstruída e desviada de sua meta original, como
consequência sua manifestação ocorre de outras formas caminhando para uma formação
sintomática; e por fim, Freud aponta a sublimação como uma saída para a sexualidade infantil,
assim descrito por Freud:
O terceiro desenlace, numa predisposição constitucional anormal, é possibilitado pelo
processo da "sublimação", em que se permite a excitações muito fortes, oriundas de
diferentes fontes da sexualidade, terem saída e utilização em outros âmbitos, de modo
que um aumento considerável da capacidade de realização psíquica resulta de uma
predisposição perigosa em si. Aqui se acha uma das fontes da atividade artística, e,
conforme tal sublimação for completa ou incompleta, a análise de caráter de pessoas
muito dotadas, em especial as de aptidão artística, mostrará uma variada mescla de
capacidade de realização, perversão e neurose. (1905, p. 165)
é irrestrita e com isso transitava para além da finalidade reprodutiva, no segundo momento toda
moção sexual é reprimida e o que resta é apenas a reprodução, e por fim o terceiro estágio em
que "[...] apenas se admite como meta sexual a reprodução legítima" (p. 258) e que segundo
Freud é o momento que vivemos da moral sexual cultural.
Ao buscar responder que tipo de exigência este estágio nos traz Freud afirma que o
ideal cultural vigente é o da abstinência sexual até o casamento e aos que não casarem que se
mantenham em abstinência até o fim da vida. Evidentemente se tratava da perspectiva cultural
da virada do século XIX para o XX cujo discurso religioso e conservador era vigente, nos dias
atuais ainda há esse tipo de pensamento, mas em grupos restritos à religiosos. Tal exigência
ocorre por conta da expansão religiosa e predominantemente cristã que na busca de domínio e
poder desenvolveu formas de inserir dentro da cultura ocidental ideias de caráter controlador a
fim de controlar até mesmo o desejo sexual das pessoas. Freud não adentra diretamente a
questão religiosa neste momento, mas expõe sua percepção acerca do tema em Psicologia das
massas e análise do eu e no Futuro de uma ilusão. Ainda respondendo acerca da exigência feita
pela moral sexual cultural Freud escreve que corresponder a esta demanda cultural trata-se na
verdade de uma árdua tarefa e que muitas vezes pode exigir todas as forças do sujeito, segundo
ele:
Dominá-lo pela sublimação, desviando as forças instintuais sexuais da meta sexual para
metas culturais mais elevadas, é conseguido apenas por uma minoria, e, mesmo assim,
só temporariamente, e mais dificilmente na época do ardente vigor juvenil. A maioria
das outras pessoas torna-se neurótica ou sofre algum outro dano. (FREUD, 1908, p.
261).
Para explicar melhor, a autora discorre sobre o funcionamento da pulsão que, segundo ela "visa
contornar o objeto" (1997, p. 184). Ao termo "contorno" abrem-se duas possibilidades de
interpretação: um cujo objetivo é a evitação do confronto com o objeto e consequentemente o
reconhecimento da falta, e outro onde a palavra ganha o sentido de dar contornos, limites, e por
consequência presentifica o objeto e a falta. A autora afirma que para ela, como em Lacan, a
sublimação pode ser encontrada dentro de qualquer atividade humana que não traga em sua
feição, uma conotação sexual.
Partindo da ideia de que a sublimação é um dos destinos da pulsão e compreendendo
a pulsão como sendo um conceito que se situa entre o mental e o somático, como representante
psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente (FREUD,
1915). Freud caracteriza a pulsão afirmando que esta possui uma força (Drang), uma finalidade
(Ziel), um objeto (Objekt) e uma fonte (Quelle).
Ainda sobre a pulsão, vale ressaltar que ela não é a representação psíquica. Metzger
(2008) resgata os artigos O Inconsciente (1915) e Repressão, do mesmo ano, para afirmar que
Freud diferencia a representação (Vorstellung) da pulsão e a situa como sendo algo no limite
entre o psíquico e o somático. A autora escreve acerca da pulsão como “um estímulo para o
psíquico” (ibid. 2008, p. 21), nesta perspectiva existe uma força externa que exige que o
psiquismo trabalhe de alguma forma. Se olharmos para a teoria lacaniana nos defrontaremos
com a concepção de Outro, é possível fazer aqui uma correlação deste conceito com a ideia de
Metzger acerca desta força externa que exige trabalho ao psiquismo.
A pulsão, um dos principais conceitos desenvolvidos por Freud, faz a ponte entre o
corpo e o psiquismo conforme Freud aponta no texto A pulsão e seus destinos (1915). Cada um
desses elementos é fundamental no que se refere ao destino que a pulsão tomará - quanto a esses
destinos podem ser: a transformação em seu oposto, o retorno em direção ao próprio Eu, o
recalque e a sublimação. No momento vamos nos ater aos elementos formadores da pulsão e
no decorrer da pesquisa nos debruçaremos de forma mais enfática à sublimação enquanto
destino.
35
O primeiro dualismo pulsional descrito por Freud diz respeito a pulsão sexual e a
pulsão do eu, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) Freud nos apresenta as
pulsões sexuais, estas sendo desenvolvidas pelas crianças ainda nos primeiros anos de vida.
Freud destaca a precocidade e a intensidade da atividade sexual nas crianças:
As crianças que se distinguem pela crueldade especial com animais e coleguinhas de
brincadeiras despertam habitualmente a justificada suspeita de uma atividade sexual
intensa e precoce a partir das zonas erógenas, e, havendo precocidade simultânea de
todos os instintos sexuais, a atividade sexual erógena parece mesmo ser a primária. A
ausência da barreira da compaixão acarreta o perigo de que essa união dos instintos
cruéis com os erógenos, ocorrida na infância, venha a se mostrar indissolúvel mais
tarde. (FREUD, 1905, p. 101).
Freud desenvolve a ideia de sublimação no texto de 1905 como sendo os impulsos sexuais
infantis que se mantiveram durante o período de latência, mas que sua energia fora desviada
para um outro fim, e segundo o autor há uma concordância entre os historiadores que apontam
37
que tal desvio da meta sexual é o que permite as realizações culturais. Fato que ocorre não só
na civilização, mas também no sujeito e que Freud o situa no período de latência.
Já o termo pulsões do Eu foi descrito por Freud no artigo Concepção psicanalítica
do transtorno psicogênico da visão (1910). Nele tais pulsões são descritas como aquelas que
irão confrontar as pulsões sexuais a fim de autoconservar o sujeito, como podemos observar na
seguinte fala de Freud (1910, p. 244):
Passamos a atentar para a importância dos instintos na vida imaginativa; verificamos
que cada instinto procura se impor mediante a vivificação das ideias condizentes com
suas metas. Nem sempre esses instintos são compatíveis entre si; com frequência têm
conflitos de interesses; as oposições das ideias são apenas expressão das lutas entre os
instintos que servem à sexualidade, à obtenção de prazer sexual, e os outros, que têm
por meta a autoconservação do indivíduo, os instintos do Eu.
Ainda no artigo de 1910 Freud destaca algo que será transversal em toda sua obra,
o fato de que a renúncia pulsional é fundamental para a formação e subsistência da civilização.
Foi no ano de 1908 no artigo A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno
que Freud teceu de forma mais detalhada suas considerações sobre a sublimação dentro da
lógica do primeiro dualismo pulsional no que tange o conceito em sua relação com a cultura.
Para Freud a entrada do sujeito na ordem cultural cobra seu preço, é preciso que o sujeito
abdique de seu desejo pleno a fim de se inserir no campo social, para ele os sacrifícios que são
cobrados pela cultura podem chegar a níveis tão altos que podem, de alguma forma, prejudicar
até mesmo os próprios objetivos culturais (FREUD, 1908).
No artigo em questão Freud aborda a neurose como este prejuízo ao sujeito que lhe
é imposto pela cultura ao exigir a renúncia do desejo, é sabido que aquilo que deve ser
renunciado é da ordem sexual (ibid, 1908). Uma vez reprimida a pulsão sexual encontra uma
saída através da neurose. Foi justamente neste solo fértil que Freud desenvolve suas ideias
acerca da sublimação, sendo esta um desvio para a pulsão sexual que difere da neurose e de sua
satisfação direta (METZGER, 2008). Como já abordado neste capítulo a pulsão é dotada de
plasticidade podendo deslizar seus objetivos para outros não sexuais, trata-se de um
deslocamento que tem como novo fim um objeto desprovido de sexualidade, mas que na psiquê
do sujeito que faz este deslocamento, o último está ligado ao primeiro de alguma forma. Isto
ocorre conforme Lacan afirma ao término do capítulo O objeto e a Coisa:
[...] não é um novo objeto, é a própria mudança do objeto em si. Se a tendência permite
a mudança de objeto é porque ela já está profundamente marcada pela articulação
significante. No grafo que lhes dei do desejo, a tendência, situada no nível de
articulação inconsciente de uma sucessão de significante, é desta feita, constituída
numa alienação fundamental. Desta feita também, em retorno, cada um dos
significantes que compõem essa sucessão típica está ligado por um fator comum.
(LACAN, 1964, p. 344)
38
Dentro deste contexto vemos que a sublimação se origina na medida em que o ser
humano se torna capaz de renunciar suas tendências sexuais. Freud estabelece um marco ao
afirmar que a sexualidade no ser humano não está pura e simplesmente em função da
reprodução, mas sim trabalha no sentido do princípio do prazer. Outro aspecto a se atentar é
que o deslocamento do objeto ocorre sem que o sujeito perceba, de forma inconsciente, nesse
ponto é que reside a indeterminação da sexualidade em relação ao objeto da pulsão. Fica
evidente que para Freud a sublimação se torna uma condição para que a civilização tenha sua
subsistência.
Por outro lado, é impossível sublimar todo conteúdo sexual e é por isso que Freud
demarca que uma vez inserido dentro da sociedade o sujeito, por vezes, buscará vias para burlar
as regras impostas, assim como também trará consigo aspectos neuróticos. Isto ocorre porque
pulsão e objeto são coisas distintas, tendo este como característica principal sua plasticidade
que indica a possibilidade de escoamento da pulsão para outros objetos, logo aquilo que se
mostra essencial é a pulsão em si e não o objeto.
O texto A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno é o que melhor retrata
a relação feita por Freud entre a sublimação e cultura dentro do primeiro dualismo pulsional.
Trata-se de uma escrita que nos apresenta a sublimação como um deslocamento do objeto da
pulsão, tendo ênfase do autor a pulsão e sua relação com a perversão. Nesse sentido a pulsão
que cujo alvo era o objeto sexual torna-se culturalmente aceita quando deslocada para relações
objetais que tragam contribuições culturais. Metzger ao fazer uma releitura do texto freudiano
tece a seguinte consideração:
Em Moral sexual ‘civilizada’, a sublimação aparece como possibilidade de fomento
da cultura pelo indivíduo, sem que ele tenha que pagar por isso o preço da neurose.
No entanto, não podemos perder de vista o fato de que a sublimação é uma
possibilidade limitada a uma parte dos indivíduos e que o acesso a ela também é
variável, de um indivíduo para outro. [...]. Além disso, a busca pela sublimação,
imposta pela civilização é um tiro que pode sair pela culatra, uma vez que a exigência
de repressão excessiva deixaria muitos indivíduos inúteis em termos de contribuição
cultura, seja devido à neurose resultante da repressão, seja pela inibição em que
terminam por ficar: ao invés de efetivar a sublimação, muitos indivíduos terminarão
por ficar inibidos ou francamente neuróticos. (METZGER, 2008, p. 56).
O que podemos observar dentro deste contexto apresentado por Freud acerca da
sublimação neste primeiro dualismo pulsional é que esta é entendida como uma via alternativa
à satisfação direta da pulsão. Freud destaca também, em seus textos iniciais, o caráter defensivo
da sublimação.
O caráter defensivo da sublimação é levantado por Freud desde o Rascunho L
(1897), em que Freud traz a sublimação como defesa contra a sexualidade e oriunda das
39
fantasias do sujeito; neste período ainda não havia sido explicitada a diferença entre a
sublimação e o recalcamento. Já em 1905 Freud irá adiante com o conceito, atrelando a este
não só o fator defensivo, mas também a sublimação como um processo de dessexualização, e é
neste sentido que a sublimação se torna um aspecto decisivo para a formação da civilização.
Brito e Torezan (2012) destacam que neste primeiro momento a sublimação traz consigo
aspectos da moralidade – considerando as falas de Freud que parte desde o Rascunho L e nos
Três ensaios – sendo colocada em um campo contrário ao da satisfação sexual, e finalizam:
“em sua primeira apresentação, a sublimação mais se aproxima da defesa do que da busca de
satisfação, encontrando-se enlaçada ao recalque e à norma social” (p. 247).
O que vemos no Rascunho L é algo ainda rudimentar, onde Freud ao falar da
Arquitetura da Histeria coloca as fantasias como um desvio, um impeditivo de alcançar as
cenas sexuais primitivas:
O objetivo parece ser o de alcançar as cenas |sexuais| mais primitivas. Em alguns
casos, isso se consegue diretamente, porém, em outros, somente através de um desvio,
por meio das fantasias. E isso porque as fantasias são fachadas psíquicas produzidas
com a finalidade de impedir o acesso a essas recordações. As fantasias servem,
simultaneamente, à tendência a aperfeiçoar as lembranças e à tendência a sublimá-las.
(FREUD, 1897, p. 241)
No texto de 1905 Freud traz a dessexualização como algo de suma importância para
as construções culturais e atrela tal processo à normalidade do sujeito. Também no artigo dos
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud relaciona a sublimação à formação reativa, e
somente em uma nota no ano de 1915 que ele irá destacar a diferenciação destas afirmando que
na formação reativa o que se apresenta são hábitos e comportamentos particulares que dentro
do contexto clínico possui um valor sintomático.
Será em 1910 no texto que Freud escreve sobre Leonardo da Vinci onde podemos
encontrar a distinção entre sublimação e recalque. Neste artigo é apontado a satisfação pulsional
como fim da sublimação, enquanto no recalque seu destino ocorre por meio do sintoma. Ao
comentar o caso sobre Leonardo da Vinci, Freud aborda a curiosidade infantil acerca da
sexualidade, partindo para o desejo de conhecimento, dando base para afirmação de que neste
caso a curiosidade sexual foi transformada em pulsão de saber. Freud afirma ser daí o ímpeto
explorador de Leonardo, e deste ponto de vista a pulsão é sublimada desde o começo sem passar
pelo processo de recalcamento.
No que tange as considerações freudianas sobre a sublimação no seu texto
“Introdução ao narcisismo” de 1914 trago as contribuições de Brito e Torezan (2012, p. 249):
[...] o estudo sobre o narcisismo permite a apreensão de uma das condições necessárias
para que se dê a sublimação: a saber, a retirada do investimento libidinal do objeto
40
sexual pelo eu, retornando tal investimento sobre si mesmo e, mais tarde,
reorientando-o para novas metas e objetos não sexuais. É possível vislumbrar em tal
formulação ao menos quatro significativos desdobramentos: a mudança de objeto no
processo sublimatório, a presença da libido e da satisfação sexual na sublimação, a
intermediação do eu na efetivação da sublimação e o reconhecimento do ideal do eu
como favorecedor do processo sublimatório.
A partir da segunda teoria pulsional a sublimação ganha novos traços que permitiu
à Freud um novo olhar sobre o sujeito. Isto porque a introdução da pulsão de morte na teoria
freudiana faz com que, em última análise, ultrapassemos a relação sujeito x cultura para irmos
ainda mais adiante no que diz respeito ao funcionamento pulsional do sujeito. Será a partir deste
novo dualismo pulsional que Freud pensará o sujeito em sua mais íntima relação como a cultura,
41
com as massas, com a religião, com desamparo; muitas destas já pensadas anteriormente, mas
agora tendo uma visada para além do princípio do prazer.
Dentro desta nova perspectiva, Freud faz uma relação entre a sublimação e o
processo de repressão, sendo a sublimação uma das saídas frente a repressão, para tanto ainda
é preciso que tal saída esteja ligada às criações culturalmente aceitas. Aqui vemos uma das
ligações entre as ideias que constituíam o conceito de sublimação no primeiro dualismo e o que
constitui no segundo.
Além da novidade acerca do dualismo pulsional, Freud também nos apresenta sua
nova tópica constituída pelo Eu, Isso e Supereu, que também vem a contribuir para a
conceituação da sublimação. No texto O eu e o isso de 1923, Freud aborda o Complexo de
Édipo sendo a sublimação uma saída possível para a dissolução do Édipo no menino. Isto ocorre
porque durante a dissolução do Édipo será necessário a dessexualização do objeto, muito
embora dessexualização e sublimação não sejam sinônimos dentro da teoria freudiana, a
primeira é condição para a segunda.
O processo que ocorre da primeira para segunda teoria pulsional no que diz respeito
ao sujeito e a cultura é melhor explicado quando Freud desenvolve a conceito de ideal de eu,
este sendo considerado como uma herança do complexo de Édipo e está intrinsecamente ligado
ao supereu. Vemos aqui a exigência que na primeira teoria pulsional era atribuída à cultura se
entrelaçar, neste momento, com o sujeito. Logo não é mais a cultura que exige, mas sim o
supereu, ou seja, a cultura subsiste no supereu (MIJOLLA-MELLOR, 2010).
Outro aspecto que deve ser destacado é a formação reativa que ocorre em
movimentos entorno de lideranças, figuras míticas e religiões, neste âmbito o afeto é
direcionado para o líder ou para a figura mítica que o grupo elege como representante. Vemos
em relações como estas o direcionamento do afeto e uma certa contenção da agressividade. O
que fica evidente é a diferença entre o processo de dessexualização e sublimação. Acontece que
no processo que envolve os papéis citados acima não há sublimação, pelo contrário, a pulsão é
dessexualizada mas não sublimada.
Líderes, figuras míticas e religiões são, essencialmente, uma das formas do sujeito
lidar com seu desamparo, fazem isto seguindo-os cegamente, agindo de forma devota ao líder
em questão, colocando-os em uma posição de completude em relação a si próprio. Esta é mais
uma das marcas diferenciadora entre o primeiro e o segundo dualismo pulsional, justamente
pelo fato de no segundo dualismo o sentimento de desamparo é considerado constitucional do
sujeito, oriundo da pulsão de morte e não mais das exigências da cultura. No que tange a religião
há uma defesa do sujeito dentro deste discurso, porém não é pautado no princípio da realidade.
42
O que podemos ver neste percurso em que Freud constrói o conceito de sublimação
serão os pontos cardeais que nos orientará a fim de considerar o rap como uma possibilidade
de sublimação para alguns. Todo caminho que seguimos até aqui serviu-nos para demarcar que
a sublimação possui características ímpares como a mudança de objeto, a dessexualização deste,
mas não da pulsão, sua ligação com o princípio da realidade e, por fim, a questão de ser ligado
de alguma forma à cultura.
Dentro deste contexto que a psicanálise emerge com suas questões, onde o desejo
subjetivo ultrapassa a lógica coletiva e o âmbito técnico como aponta Lacan. Nesta visada que
Lacan conduz seu seminário sobre a ética para a incidência sobre o Real, pois trata-se deste
campo para onde o desejo do sujeito aponta, onde está das Ding.
Compreendemos das Ding como sendo da ordem do irrepresentável, segundo
Lacan, o campo do das Ding ultrapassa o âmbito da afetividade ao mesmo tempo em que
adentramos em um campo que ele chama de confuso e movediço. Isto decorre "[...] por falta de
uma organização em seu registro" (LACAN, 1959, p. 127). Trata-se de um registro cujo âmbito
abrange a ambivalência, onde bem e mal coexistem.
É no nível da boa e da má vontade, e até mesmo da preferência pela má no nível da
reação terapêutica negativa, que Freud, no termo de seu pensamento reencontra o
campo de das Ding, e designa-nos o plano para além do princípio do prazer. É como
um paradoxo ético que o campo de das Ding é reencontrado no final, e que Freud aí
nos designa o que na vida pode preferir a morte. E ele se aproxima por meio disso,
mais do que qualquer outro, do problema do mal, mais precisamente do projeto do
mal como tal.
[...] no final Freud designa-nos esse campo como sendo aquele em torno do qual o
campo do princípio do prazer gravita, no sentindo em que o campo do princípio do
prazer está para além do princípio do prazer. Nem o prazer, nem as tendências
organizadoras unificadoras, eróticas da vida de modo algum bastam para fazer do
organismo vivo, das necessidades e precisões da vida, o centro do desenvolvimento
psíquico. (LACAN, 1959, p. 127-128)
Lacan conclui que é no nível de das Ding que o sujeito ultrapassa a linha do prazer
e da necessidade orgânica, constituindo assim o campo onde o desejo do sujeito gravita.
Deste ponto que Lacan parte para a afirmação de que aquilo que o homem
compreende como realidade são peças escolhidas, e tais escolhas não acontecem ao acaso, elas
ocorrem partindo de uma estruturação entorno de das Ding. Aqui vemos o caminho traçado por
Lacan para nos demonstrar o que é das Ding, para tanto ele faz uma articulação do termo com
a ideia de “verdadeiro segredo” também como “o fora-do-significado”. Neste sentido, podemos
44
observar a íntima relação que a Coisa tem com o real, com o impossível. Tal relação ocorre na
medida em que das Ding é esta Coisa externa ao sujeito, porém totalmente familiar e ao mesmo
tempo constitutivo. Ainda assim pelo fato de ser externa acaba sendo impossível sua
representatividade como um todo, o que se captura da Coisa é aquilo que a pulsão contorna na
sublimação.
Ao fazer este caminho Lacan nos conduz para a noção de Coisa (das Ding),
primeiramente diferenciando-a de die Sache. A diferença aparece na medida em que die sache
pode ser usada para qualquer coisa, aquilo que nos é comum; enquanto das Ding é a Coisa,
assim apresentada por Lacan:
Das Ding é o que – no ponto inicial, logicamente e, da mesma feita cronologicamente,
da organização do mundo no psiquismo – se apresenta, e se isola, como o termo de
estranho em torno do qual gira todo o movimento da Vorstellung (ideia), que Freud
nos mostra governado por um princípio regulador, o dito princípio do prazer vinculado
ao funcionamento do aparelho neurônico. É em torno desse das Ding que roda todo
esse processo adaptativo, tão particular no homem visto que o processo simbólico
mostra-se aí inextricavelmente tramado. (LACAN, 1959, p. 74).
O trajeto que nos traz até aqui com esta suscinta formulação do que é das Ding
ocorrem com o objetivo avançarmos até o ponto em que Lacan (1959) afirma que a sublimação,
de forma generalizada, é a elevação do objeto à dignidade da coisa. Ou seja, algo se desloca da
posição de die sache e é elevado a dignidade de das Ding, a dignidade deste objeto “fora-do-
significado”, como Lacan bem nos mostra ao falar do amor cortês.
Lacan demarca algo importante para o conceito de sublimação, não basta ser
socialmente aceito, é preciso haver uma relação entre a produção e este objeto que se faz ausente
– das Ding. Parte daqui a afirmação de que muitos podem produzir uma letra de rap, mas não
serão todos que terão como destino pulsional a sublimação.
A significativa contribuição dada por Lacan acerca da sublimação ocorre pois ele
rompe com os pós freudianos que traziam a sublimação como sendo uma mera mudança de
objeto da pulsão de algo sexualizado para algo dessexualizado. Ao resgatar o tema, Lacan
demarca algo que já vimos em Freud, que na verdade a pulsão presente na sublimação não é
desprovida de sexualidade.
Outro aspecto importante apresentado por Lacan está no capítulo da criação ex
nihilo, e esse diz respeito à relação ente sublimação e criação, como nos é apontada pelo autor:
Aqui está nosso encontro marcado com o emprego da linguagem que, pelo menos para
a sublimação da arte, nunca hesita em falar de criação. A noção de criação deve ser
promovida agora por nós, como o que ela comporta, um saber da criatura e do criador,
pois ela é central não apenas em nosso tema, o motivo da sublimação, mas no da ética
no sentido mais amplo. (Ibid, 1959, p. 146).
45
Podemos observar, aqui, Lacan trazendo a criação para um ponto nodal tanto para
a sublimação como para a ética da psicanálise. Vemos isso como desdobramento dos
esclarecimentos que Lacan faz sobre a relação que antes era estabelecida entre a sublimação e
coisas socialmente aceitas. Pensar a relação da sublimação com o processo de criação é pensar
em um movimento transforma-dor, desta forma, exatamente no sentido de que sublimar é tornar
aquilo que poderia ser sintomático e doloroso para o sujeito em outra coisa, ou melhor, outra
Coisa. Em última instância dizer que há sublimação para alguns sujeitos que fazem rap é dizer
que por meio dela que estes sujeitos transformam suas dores.
46
5 MÉTODO
A pesquisa científica conta com uma série de parâmetros que balizam a prática do
pesquisador, porém quando falamos de pesquisa em psicanálise vemos um movimento que
subverte a lógica do sistema científico. Ao considerar o desejo do sujeito enquanto parte
indissociável do processo de pesquisa, levando em conta que seus atravessamentos interferirão
no resultado da pesquisa. Logo a leitura psicanalítica segue um método a rigor, porém diferentes
posições subjetivas conduzirão cada pesquisador a uma leitura diferente do objeto.
O que vemos é a psicanálise desvelando algo que está presente na ciência desde
sempre. As dúvidas, afirmações e descobertas só ocorrem mediante a este atravessamento
subjetivo que se ocorre em cada sujeito. Basta olharmos para astronomia que constataremos
que até o século XV toda afirmativa a respeito dos movimentos dos corpos celestes se baseava
no geocentrismo, qualquer pensamento diferente disto era rechaçado. Ou seja, existe um
sistema de crenças que levam o sujeito a afirmar algo dentro de uma pesquisa e essas crenças
estão intrinsecamente ligadas ao momento histórico, bem como as fontes que o pesquisador usa
para embasar sua pesquisa. Porém é preciso ter cautela, não é por conta do desvelamento do
sujeito enquanto parte da pesquisa que poderá se afirmar qualquer coisa acerca da temática
pesquisa, trata-se de um discurso que precisa estar articulado com o princípio da realidade, bem
como com a produção científica do campo de pesquisa estudado.
A pesquisa em psicanálise é em sua essência uma pesquisa teórica, uma vez que as
questões empíricas não podem ser averiguadas quando se parte do método psicanalítico. Por
outro lado, a prática clínica da psicanálise é calcada na pesquisa. A partir de um breve resgate
histórico podemos constatar que a teoria psicanalítica surge da prática e das indagações de
Freud acerca dos métodos vigentes no seu tempo. O próprio Freud apresenta a psicanálise como
um método que se baseia em investigações dos processos mentais (1923), sendo este processo
marcado pelo ato da pesquisa e produção teórica. E quando falamos mais especificamente da
relação entre psicanálise e literatura, Villari retrata de seguinte forma este processo de
investigação:
Outra forma de S. Freud aproximar-se da Literatura, e da arte em geral, é tomando-a
como campo de investigação, como conjunto de textos a partir dos quais poder-se-ia
dizer sobre o real, que ele próprio – com os elementos disponíveis na teoria
psicanalítica – não conseguiria atingir. É um momento em que se convoca a Literatura
para dizer aquilo que a Psicanálise não alcança. Trata-se também de uma forma de
abordagem partilhada com referência à utilização do mito na Psicanálise, na medida
em que, quando o limite da construção da teoria se impõe, a recorrência ao discurso
47
àqueles que conseguiram manter suas atividades laborais a obrigatoriedade de sair de suas casas
para manter seus sustentos (FIOCRUZ, 2020).
A psicanálise, por sua vez, também tem sua contribuição; dentro do escopo nacional
os psicanalistas Christian Lenz Dunker e Vladimir Safatle posicionam-se de forma frontal para
defender os direitos humanos. Ambos os psicanalistas buscam articular os fenômenos atuais
com os conceitos psicanalíticos. Dunker atualmente possui uma coluna no jornal Folha de São
Paulo, já Safatle faz parte do canal do Youtube Tv Boitempo.
Esta é a cena do rap a qual Gomes (2012) descreve como espaços capazes de
transformar a palavra em ferramenta de solidariedade orgânica e difusora de um novo
conhecimento emancipatório6. Gomes ressalta que neste contexto o rap, a poesia e todo
movimento atrelado à voz dentro da periferia torna o sujeito um ser ativo em relação a sua
história e situação. Tendo experiência na área musical como MC, na literatura como poeta e na
academia como professor, mestre e doutor, Renan reconhece a diferença que a palavra ocupa
em cada espaço “em minhas obras como poeta aprendi que a palavra que habita a página tem
um poder diferente” (GOMES, 2019, p. 11).
A questão assim levantada pelo autor é mais bem explorada em sua participação na
Parada Poética realizada durante o 9º Seminário Biblioteca Viva e publicada no Youtube pelo
canal SisEB São Paulo (2018). Na fala em questão, Renan descreve a diferença como era tratado
ao se apresentar como MC em relação a quando se apresentava para alguém como
poeta/escritor. Segundo ele, muitas vezes os livros possuem poemas que fazem parte de suas
músicas, mas que por estarem em um livro o tratamento recebido era outro. A situação
demonstra o quanto o rap é tomado como uma produção periférica por algumas pessoas.
A importância dada a palavra por Renan fica evidente em toda sua obra, em sua
tese de doutorado o cantor afirma que “manipular as palavras em todos esses lugares, dar voz a
todas as pessoas. O que me interessa é compreender a palavra enquanto entidade viva, dotada
de poder de manifestação. A palavra para mim não é substantivo, ela é verbo e se mistura com
a vida.” (GOMES, 2019, p. 12). E na canção Barras de ouro (2018) ele traz traços pessoais de
forma muito direta:
6
Termo desenvolvido pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos para designar a troca de saberes
dentro de uma comunidade cujo efeito é a construção de uma voz ativa capaz de provocar alterações em direção
a emancipação do indivíduo em relação ao meio em que ele se encontra inserido.
50
Aqui vemos um pouco de como foi a trajetória de Renan e em que sentido ele usa
o rap. No início da estrofe versos que confrontam a lógica do capitalismo, enquanto a demanda
que prevalece é a da compra ele diz sentir o desejo de compor. No 4º verso ele traz o que o
motiva a cantar “canto pra me vingar desse rancor”, ou seja, o rap torna-se – para Renan – uma
forma de lidar com seus sentimentos.
As letras escritas por Renan nos apresentam uma realidade que interliga passado e
presente. São canções que em grande parte abordam a questão do preconceito de forma mais
expandida, que reconhece o sofrimento do povo negro, representado no clipe de Eu só peço a
Deus 7, mas que também retrata o cotidiano de pessoas brancas que vivem na periferia, que é o
caso da música Histórias reais em que aquilo que nos é apresentado como dificuldades
independe da cor da pele da pessoa, o aspecto organizador do discurso é apresentado por Renan
em Cafuné com a Caneta (INQUÉRITO, 2018) onde canta “quer dormir no barulho? Meu rap
nina” fazendo alusão a ideia de que o rap é capaz de organizar e trazer estabilidade para o
sujeito
Jesse Souza (2017) em A elite do atraso discorre sobre tal situação, no livro onde o
autor fala sobre o processo que ocorreu do período da escravização até os dias atuais, numa
primeira edição tendo como subtítulo da escravidão a Lava Jato, e em outra versão ampliada o
autor revisa sua obra e altera o subtítulo para da escravidão a Bolsonaro. Trata-se de uma obra
que retrata os movimentos feito pela sociedade brasileira para legitimar o preconceito que para
o autor foi ampliado para um racismo cultural.
Ao partirmos de uma análise dos dias atuais vemos que a discussão sobre a
desigualdade ultrapassa os muros da academia, está nas mídias, jornais, sites jornalísticos e nas
letras de rap. Em entrevista recente o Mc Salvador da Rima questiona a forma que a polícia
aborda os moradores da periferia fazendo um comparativo ao caso ocorrido em Alphaville –
bairro nobre de São Paulo (PAGANI, FERRASOLI, 2020).
7
No clipe é retratado o Brasil em 1850 com um homem negro fugindo de um capitão do mato, o clipe
tenta representar o que era a vida dos negros naquela época trazendo cenas deles nas senzalas,
nas plantações, sofrendo torturas. O clipe tem uma virada quando os negros se rebelam,
envenenam o homem que os escravizaram e tomam a fazenda, por fim apresenta a frase e título de
uma canção de Marcelo Yuca chamada Todo camburão tem um pouco de navio negreiro (1994).
51
Eu sou morador da zona leste de São Paulo, do extremo leste de São Paulo. Meus
familiares são de São Mateus [...]. Quem conhece aqui sabe que é uma região
periférica inteira, muitas favelas, muitos lugar que é rua, lugar de gente pobre, certo?
É... eu tive uma condição, depois que entrei no funk, comecei a frequentar lugar de
pessoas rica e foi nesse momento que eu vi que a polícia militar age diferente nos
locais e com pessoas, certo? [...] Tem um vídeo viralizado no youtube do mano lá em
Alphaville, milionário, xingando policial de lixo na cara dele, chamando uma policial
feminina de um nome que não é nem bom falar aqui porque é uma palavra de baixo
calão e o policial não faz nada porque o cara tá dentro da mansão dele. Só que quando
é aqui e você fala não, o policial entra dentro da tua casa e te busca. (WP NEWS,
2021)
A fala acima foi proferida pelo Mc depois dele ter sido vítima da violência policial
em uma casa na periferia de São Paulo onde estava com amigos. Isto nada mais é que um
exemplo do tratamento desigual que diferentes classes sociais são submetidas. A temática
também é abordada no álbum Tungstênio:
Sou um livro no fundo da sala, no fundo da escola
No fundo duma quebrada no fundo do país
A letra traz a situação das escolas da periferia como exemplo, um lugar onde o
professor tem que dar aula sem os insumos básicos para a execução de sua atividade. Em
contraste a letra traz a realidade dos magistrados brasileiros onde uma das punições para
infrações é a aposentadoria compulsória8.
Souza (2017) busca tanto no período colonial como nas influências contemporâneas
o subsídio para este fenômeno classificado por ele como catástrofe social. Para o autor, o que
ocorria no início era um aparelhamento entre Estado e Igreja a fim de controlar os povos
colonizados e escravizados. Dentro desta perspectiva a justificativa usada era que os “homens
bons” – entende-se aqui como branco e europeu –, eram superiores por possuírem um espírito
enquanto as pessoas escravizadas eram consideradas sem espírito e de natureza animalesca.
Esta situação abria precedente para que estes povos fossem tratados como selvagens que
precisariam de um processo de domesticação e purificação espiritual.
Com este discurso os europeus dizimaram os povos africanos e indígenas
brasileiros. Discurso que se perpetua até hoje como podemos ver na fala do presidente da
república durante uma transmissão semanal feita por ele em uma rede social “cada vez mais, o
índio é um ser humano igual a nós”, o que abre precedente para interpretar-se que na visão
bolsonarista os índios são pessoas inferiores (URIBE, 2020). Outra fala do presidente que
8
Existem seis tipos de punição para magistrados, são elas: advertência, censura, remoção compulsória,
disponibilidade, aposentadoria compulsória e demissão (CNJ, 2014).
52
demonstra o preconceito enraizado em parte dos brasileiros ocorreu quando ele comentou sobre
os quilombolas em uma palestra para a Sociedade Hebraica do Rio de Janeiro em 2017, no
evento o então pré-candidato a presidência da república falou: “Fui num quilombo. O
afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para
procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”. (WELLE 2020).
Ambas as situações retratam o discurso presente entre boa parte da sociedade
brasileira, segundo Souza (2017) a cultura escravagista tornou a sociedade brasileira tão
subserviente a ponto de se sabotar para continuar fazendo a vontade de seus senhores. Nesse
interim, Souza (2017, p. 19) escreve que “somos, por assim dizer, escravos tão subservientes
que antecipamos os desejos do nosso senhor antes mesmo que ele o tenha expressado”.
A forma como a sociedade se organizou entorno do culturalismo racista faz com
que o discurso antes explícito ocupe agora um lugar velado, como apresenta Jesse Souza ao
fazer um comparativo com o processo ocorrido nos Estados Unidos:
A vantagem comparativa do culturalismo racista sobre o racismo clássico é que, como
não se vincula à cor da pele, até os negros americanos podem se sentir superiores, por
exemplo, aos latinos e estrangeiros. A utilidade prática desse racismo ocultado, que é
o culturalismo para os países dominantes e, muito especialmente, para suas classes
dominantes, muito maior que a do racismo explícito que vigorava antes. (SOUZA,
2017, p. 17-18)
O autor chama atenção para o quão nocivo pode ser o racismo que ocorre dentro da
ideia do culturalismo, pois é justamente desta forma – perpetuando ideias racistas e
preconceituosas de forma a ficarem subentendidas – que discursos de ódio são mantidos. Outra
questão apresentada pelo autor é o fato que dentro do ideal do culturalismo racista não há uma
ligação direta com a cor da pele, o exemplo apresentado por ele onde o negro estadunidense
pode se sentir superior ao latino é transposto para nosso país nas relações entre as classes onde
o indivíduo que está na classe média sustenta um discurso de superioridade sobre as classes
mais baixas, talvez uma herança deixada pela lógica escravagista que vigorou por séculos em
nosso país. Neste sentido, o racismo e preconceito sofrido por conta da cor da pele é ampliado
para a relação de poder com a posição social que o sujeito ocupa (SOUZA, 2017).
Dentro desta perspectiva as considerações de Achille Mbembe em seu conceito de
necropolítica descreve de forma explícita o fenômeno social retratado pelo rap. A estrutura
social que legitima a morte de parcelas específicas da população faz parte de uma política de
extermínio e, consequentemente, exclusão (MBEMBE, 2018). Trata-se de algo tão enraizado
que ultrapassa os limites do Estado e permeia o discurso da população em geral, muitas vezes
sem que estes atores sociais se deem conta.
53
O refrão é o resumo do que a música conta, três histórias distintas: uma criança
negra, um menino que sonhava em ser jogador de futebol e uma jovem que precisou renunciar
aos seus sonhos para sustentar os filhos que precisava criar sozinha. A primeira estrofe que
conta a história de um menino negro, filho de mãe solteira, ia mal na escola e cedo precisou
trabalhar para ajudar com as contas da casa:
Essa é a história de um moleque de quebrada
Parecida com uma que o pastor contava
Um menino que nem tinha nome de Jesus
Mas já carregava a cruz
E o destino escolheu ele pra ser salvador
Numa família que o pai cusão abandonou
Será que ele era inocente ou era ambição
Sonhava alto tirar relo com os avião
Crucificado na escola pela cor da pele
Sem nome, ele era o neguim (ae, neguim)
Sua infância sangrou e o vermelho escorria
Até pelo boletim
Parou de estudar e foi trampar no aeroporto
Todo fim de dia chegava em casa morto
Pensou em roubar quando o salário acabou
Mas ao quinto dia útil ele ressuscitou. (INQUÉRITO, 2018)
A cruz que o jovem carrega pode ser esta gama de dificuldades que se faz presente
em toda periferia brasileira. Um lugar onde as preocupações das crianças e jovens são diferentes
daqueles que vivem distante dali, ou seja, um sofrimento psíquico muito específico. Nos versos
seguintes – 5º e 6º - é apresentado ao ouvinte a responsabilidade que este menino tinha junto a
sua família: de ocupar o papel de salvador, uma vez que seu pai o abandonou. Outra realidade
brasileira que se acentua nas periferias, conforme mostra os dados apresentados pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no censo realizado em 2015, segundo o
levantamento em 2005 eram 10,5 milhões de famílias monoparentais compostas por mulheres
sem cônjuges e em 2015 o número chegou a 11,6 milhões de família dentro desta composição
(VALESCO, 2017).
Este contexto faz com que o jovem que cresce na periferia se divida entre sonhos e
obrigações – estas que socialmente deveria ser entendida como atividades de responsabilidades
dos adultos. Por isso o questionamento na letra sobre ser inocência ou ambição o sonho do
garoto em pilotar avião. No entanto o preconceito sofrido na escola somado a toda preocupação
já elencada aqui fazia com que suas notas fossem baixas. No caso em questão o preconceito
que o menino sofria era o racismo, chamado de “neguim”, apelido que muitas vezes revela o
racismo velado pois o discurso entorno de apelidos assim é de que isso seria um gesto de carinho
e amizade.
Por fim, os versos finais desta primeira estrofe contam que ele precisou parar de
estudar cedo para ir trabalhar, na canção o jovem vai trabalhar no aeroporto, mas longe de ser
piloto. O pensamento ou a possibilidade de cometer atos ilegais surge quando as dificuldades
financeiras se fazem presente, a estrofe termina dizendo que “ao quinto dia útil ele ressuscitou”
fazendo alusão ao dia de pagamento.
A estrofe seguinte ao refrão conta a história de outro jovem, desta vez trata-se
de um garoto que por falta de condições usava roupas velhas e isto interferia diretamente sua
autoestima, pois atrapalhava suas tentativas de se relacionar com uma garota. Seu convívio com
pessoas que se envolveram no crime traz marcas irreparáveis, conhecidos mortos pela milícia,
o confronto com a polícia e os assassinatos forjados por tal instituição com o argumento de que
foi engano. Por fim, a saída através da arte onde consegue ganhar mais do que conseguiria no
tráfico. Outra questão apresentada nessa estrofe é a relação que o autor faz com o discurso
religioso, se antes o garoto rezava sem sucesso, agora ele abre “o mar vermelho” com seu
trabalho:
Ele andava envergonhado das suas roupas velhas
55
O início desta estrofe traz uma relação importante entre o morador da periferia e o
discurso religioso, este é muito presente no cotidiano do povo periférico. As religiões que
ocupam a periferia do Brasil possuem diferentes origens e apresentam uma intrínseca relação
com a política e o Estado (NETO, 2013). Para Silva (2019) o sofrimento em forma de sacrifício
que acomete a periferia faz com que esta projete no cristianismo – ou no sacrifício de cristo –
suas dores como uma forma de crer que haverá uma redenção, o que podemos constatar no
último verso da estrofe que está sendo analisada.
O quinto verso aborda a questão da moradia; no contexto da periferia, geralmente
as moradias são muitas vezes passadas entre gerações, ou então, como na letra vive-se como
inquilino pagando aluguel e precisando mudar de lugar de tempos em tempos. Outra realidade
da periferia é o contato com o tráfico, por mais que a pessoa nunca tenha se envolvido ela
conhece alguém que já se envolveu. Senna (2019) afirma que a vulnerabilidade social é o
principal motivo para o ingresso de jovens no mundo do crime. Tais versos trazem a arquitetura
tanto social como geográfica para desembocar no que os sétimo e oitavo versos irão abordar: a
violência policial e a ação da milícia.
A situação que envolve a milícia atuando dentro das periferias do Brasil pode ser
entendida a partir do processo de urbanização. Na medida em que as cidades ainda crescem de
forma horizontalizada a tendência é que como efeito o custo de vida perto dos centros torne-se
mais caros e consequentemente quem é mais pobre acaba sendo empurrado para as áreas
periféricas. O problema dessas pessoas irem para áreas mais distantes é que os serviços públicos
e básicos também ficam distantes, por isso que muitas vezes as áreas da periferia não contam
com saneamento básico, atendimento de saúde, aparatos para educação e segurança. Isso faz
com que surjam serviços paralelos que atuam de forma criminosa. Segundo Barcellos e Zaluar
(2014, p. 99): As atividades das milícias se estenderiam além das favelas, ocupando pontos
56
Ou seja, para os jovens que foram objetos de análise do autor a arte foi uma saída
possível, em muitos casos isto pode não ocorrer de forma financeira, com a arte dando este
retorno a ponto do jovem conseguir sustentar a si e sua família com o dinheiro que viria dali,
mas de forma psíquica está mais que claro que a arte é via de transformação.
Chegando na última história contada pela música vemos uma mulher que trabalha
como merendeira em uma escola, seu trabalho não era por vontade própria, mas sim porque
tinha dois filhos e precisava da renda para sustentá-los. Seu sonho de infância era de ser
enfermeira, porém as dificuldades – como as já elencadas aqui que toda pessoa da periferia é
submetida – eram como barreiras em sua vida. A letra deixa margem para interpretação de que
o ambiente de trabalho, um lugar de aprendizado fez com que o desejo se mantivesse aceso e
daí ela começou a buscar meios para alcançar a profissão tão almejada. Frente a tudo isto ela
ainda precisava lutar contra o estigma de ser mulher, mãe solteira e da periferia:
15 anos num colégio como merendeira
Desistiu até do sonho de ser enfermeira
Era pelos dois filhos que criava sozinha
Que ela encarava todo dia aquela cozinha
E no meio das panelas ali no recreio
Entre alunos e alimentos a vontade veio
De tanto sentir de perto o cheiro da infância
Da escola, das crianças e da esperança
Teve uma fome monstra de engolir os limite
Roncou sua barriga reabriu seu apetite
Quis se alimentar daquilo que via e sentia
Devorou os livros foi lê tudo que podia
Mãe solteira sem Pai Nosso, contraria
O que eles queria que fosse sina de Maria
Entre ser dona de si e ser dona de casa
Ela se formou e foi dona das próprias asas. (INQUÉRITO, 2018)
música, desta vez contada a partir do ponto de vista da mãe. Mais uma vez o autor recorre a
questão religiosa, vale ressaltar a predominância do cristianismo em todas as três estrofes. Há
também que se ressaltar os traços do empoderamento feminino presente nesta estrofe, para
Carvalho e Gastaldo (2008) as mulheres da periferia sempre ocuparam um espaço importante
dentro de suas comunidades – como vimos no decorrer da letra, na maioria das vezes sendo o
pilar da família – e seu protagonismo ficou ainda mais evidente nas últimas duas décadas
quando políticas públicas e projetos de empoderamento feminino foram implantados nesses
lugares.
Em relação a questão das mulheres apresentadas na canção pode-se afirmar que as
marcas de opressão de gênero e classe impostas pela sociedade é que as colocam em uma
posição de subalternidade. Lélia Gonzales – pensadora brasileira – retratava este quadro como
uma forma de violência ainda maior, muitas vezes reproduzida do homem negro para a mulher
negra (GONZALES, 1982).
58
7 DO RAP À SUBLIMAÇÃO
Desde o início de sua obra, Freud escreve sobre como a sexualidade se faz presente
na infância e sobre como toda a sexualidade – independentemente da idade do sujeito – é
infantil. Segundo o autor a sexualidade infantil é intensa e precoce – ocorrendo através das
zonas erógenas. Freud argumenta que a falta de contenção entre aquilo que ele chamou de
crueldade infantil e as pulsões pode se tornar indissolúvel (FREUD, 1905). Por outro lado, no
artigo Pulsões e seus destinos de 1915 ele afirma que a plasticidade presente na pulsão pode ser
uma saída possível para tal agressividade infantil.
Tungstênio é fruto desta plasticidade, a produção subjetiva enquanto efeito criativo
está intrinsecamente ligado à sublimação. Segundo Birman (2008, p.13):
[...] o conceito de sublimação procura dar conta da inscrição cultural do sujeito. Por
intermédio do conceito de sublimação, o discurso freudiano indicou, com eloqüência
e mesmo veemência, que buscava circunscrever a problemática da cultura para o
sujeito e que empreender essa tarefa de maneira consistente era fundamental para a
psicanálise, ou seja, Freud procurou, com a mediação propiciada por esse conceito,
interpretar não só a constituição de diferentes registros da cultura, entre os quais a
religião, a filosofia, a arte e a ciência, como também a criatividade psíquica.
Sendo assim, é justamente a plasticidade que faz com que o objeto do qual a pulsão
é direcionada seja modificado e a partir desta modificação o sujeito tem sua produção inserida
no discurso cultural. Pudemos observar uma situação que exemplifica isto no capítulo anterior
quando Renan Inquérito fala sobre ser escritor e como isto muda a percepção das pessoas sobre
ele.
Outro aspecto apresentado por Freud diz respeito a agressividade, para ele a
sublimação seria uma forma do sujeito lidar com sua tendência agressiva sem ir ao ato. Metzger
e Junior (2010) afirmam que a agressividade presente na infância continua na sublimação ainda
que não diretamente. Quando olhamos para o cenário do rap é possível constatar tal afirmação
no conteúdo presente nas letras – se expandirmos isto para o movimento hip-hop não será
diferente, a dança e o grafite também trazem traços da agressividade –, mais especificamente
em Tungstênio na canção Turbulência o conteúdo que diz respeito à agressividade vem de
forma metafórica quando Renan escreve e canta sobre o racismo:
Encare, desigualdade é cárie por trás de um sorriso, branco
Pare, repare racismo é dente do ciso, arranco
“Fire”, dispare, não desampare até que sare o pranto
Compare quanto hectare improdutivo enquanto (INQUÉRITO, 2018).
Quando Renan escreve acerca do racismo é um dos poucos pontos que a ideia de
confronto direto surge em suas letras. Para além de caracterizar a situação social ele fala sobre
59
o que fazer: arrancar o racismo. Porém outros rappers deixam a questão da violência ainda mais
explícita, é o caso da canção Primavera fascista 2 do grupo Setor Proibido, que canta o
seguinte:
De onde eu venho, é só ódio, então agradeça o rap
Que se eu não tivesse aprendido a lutar com essa força
Nós já tava no seu CEP, mas que se foda, até breve. (TIBERY et al. 2020).
O rap enquanto fenômeno que ocorreu na periferia aos poucos ampliou seu sentido
e para quem vive ou viveu na periferia e em algum momento teve o contato com o movimento
sabe que seus efeitos ultrapassam o que sua sigla designa – ritmo e poesia. Esta situação fica
melhor explicada quando olhamos para a música Lição de Casa, nela o compositor do grupo
Inquérito canta sobre o que é o rap:
O Rap é a comunidade enchendo a laje
É ir no cinema ver um filme e tá lá o Sabotage
É quando um moleque da Fundação contraria
Quem diria, ganha um concurso de poesia
O Rap é Halls preto não é bala de Tutti Frutti
É um carrinho de dog que virou food truck
A caneta do GOG, a agulha do KL Jay
Os pés do Nelsão, as mãos dos Gêmeos no spray. (INQUÉRITO, 2018)
Nesta primeira estrofe Renan traz este sentido mais amplo do que é o rap, dizer que
“o rap é a comunidade enchendo a laje” é falar desta relação que existe entre as pessoas que
vivem na periferia afinal, para uma grande parcela delas a laje das casas é um ponto de encontro,
diversão e lazer. Dizer também que o rap é quando se vai ao cinema e pode-se assistir um filme
do Sabotage9 é mostrar que de alguma forma o rap venceu, a periferia venceu. Ainda que
Sabotage tenha deixado a vida cedo, aos 29 anos de idade, o legado deixado por ele reverbera
até os dias de hoje e por isso é lembrado nesta canção de 2018.
9
Sabotage: Maestro do Canão (2015) é um documentário dirigido por Ivan 13P e conta a história do rapper Mauro
Mateus dos Santos, ou simplesmente: Sabotage. Sua passagem pelo rap marcou geração e até hoje é conhecido
por aqueles que gostam do ritmo. Sabotage foi assassinado em 24 de janeiro de 2003 aos 29 anos de idade.
60
Renan (2018) segue seu raciocínio escrevendo e cantando que o rap é quando um
jovem – interno da Fundação CASA 10 –, supera as expectativas e ganha um concurso de poesia.
No verso em questão o que realmente surpreende é o fato do jovem ter participado do concurso,
pois a habilidade com as palavras é algo muito presente nos jovens da periferia que gostam de
rap. Somado a tudo isso Renan nos brinda com a metáfora de que “o rap é Halls preto não é
bala de tutti-frutti” fazendo alusão as características que pode ser forte e ao mesmo tempo suave.
No momento gostaria de ater-me aos dois exemplos apresentados por Renan, o
filme do Sabotage e o garoto que ganhou o concurso de poesia. Em ambas as histórias o rap
acaba ocupando um lugar essencial para o sujeito; no caso de Sabotage, a viúva do rapper diz
que o desejo dele era que através da música as crianças e adolescentes não se envolvessem com
drogas e nem com o mundo do crime (FEIJÃO, 2015). Quanto ao garoto que Renan escreve e
canta, parece ser uma referência ao jovem interno que ganhou o Concurso Nacional da Língua
Portuguesa em 2014 (MARTÍN, 2014). Pouco se sabe sobre o que se passou de lá para cá, mas
a tentativa de colocar a escrita poética em um lugar privilegiado dentro da constituição psíquica
deste garoto foi feita.
É neste sentido que o rap pode vir a ser uma via sublimatória, sendo elevado à
dignidade da Coisa. Lacan, em seu Seminário 7: a ética da psicanálise, ao introduzir a questão
da sublimação nos traz o exemplo do colecionador de caixa de fósforos que Lacan assim
descreve:
Durante a grande época de penitência que nosso país atravessou na era petainista, no
tempo de trabalho-pátria-família e cinto apertado, fui fazer uma visita a um amigo
Jacques Prévert em Saint-Paul-de-Vence. E lá eu vi – não sei por que a recordação
disso ressurgiu na minha memória – uma coleção de caixa de fósforos.
Era uma coleção que se podia facilmente fazer nessa época, era talvez mesmo tudo o
que havia para se colecionar. Só que as caixas de fósforos se apresentavam desta
maneira – todas eram as mesmas dispostas de uma maneira extremamente graciosa
que consistia no fato de que, cada uma tendo sido aproximada da outra por um ligeiro
deslocamento da gaveta interior, se encaixavam umas nas outras, formando uma fita
coerente que corria sobre o rebordo da lareira, subia na murada, passava de ponta a
ponta pelas cimalhas descia de novo ao longo de uma porta. Não digo que ia desse
modo ao infinito, mas era excessivamente satisfatório do ponto de vista ornamental.
(LACAN, 1960, p. 139-140).
Para Lacan o que se destacava naquela coleção para além do efeito satisfatório que
ele sentia ao ver as caixas umas ligadas as outras de forma a ornamentar toda a lareira era a
existência da possibilidade de tudo aquilo ser uma Coisa para seu amigo. Este exemplo dado
por Lacan demonstra o processo de transformação de um objeto, considerado comum pela
10
Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente, é uma fundação criada para amparar os
adolescentes infratores do Estado de São Paulo.
61
maioria das pessoas, dando a ele uma dignidade que este jamais possuiu. Por outro lado, a Coisa
em si estará sempre velada:
A Coisa, se no fundo ela não está velada, não estaríamos nesse modo de relação com
ela que nos obriga – como todo psiquismo é obrigado – a cingi-la, ou até mesmo a
contorná-la, para concebê-la. Lá onde ela se afirma em campos domesticados. É
justamente por isso que os campos são assim definidos – ela se apresenta sempre como
unidade velada. (LACAN, 1960, p. 144).
Logo, será justamente neste âmbito, no nível da Coisa que orbitará o desejo do
sujeito, dando forma a falta e consequentemente demarcando o hiato que o constitui.
Transpondo esta ideia que Lacan apresenta sobre o exemplo da caixa de fósforos
para o rap o que se pode encontrar são sujeitos que assim como o amigo de Lacan elevaram –
nesse caso o rap – à dignidade da Coisa. Trata-se de uma situação difícil de afirmar que esta ou
aquela pessoa assim o fez, o que existe são traços que conduzem nossa conclusão a este
caminho. Assim, a análise se volta para o sujeito que “coleciona” o rap como aquele homem
colecionava as caixinhas.
Colecionar rap é fazer do ritmo algo no qual boa parte da vida do sujeito trabalhará
em sua função. Seu efeito transformador pode ocorrer de diferentes maneiras, como visto no
capítulo anterior com a canção Histórias Reais o rap pode proporcionar a estrutura necessária
para o sujeito suportar seu vazio, seu ponto de angústia. Outro exemplo disso é o rapper
Dexter11, preso em 1998 por assalto a mão armada ele encontrou no rap uma forma de lidar
com a dor de estar encarcerado, bem como uma saída em relação ao crime. Dexter afirmou
recentemente em entrevista ao Podpah – programa de entrevista hospedado pelo youtube – que
o rap o salvou e hoje é o que lhe motiva a voltar em uma penitenciária para contar que há vias
para mudanças (PODPAH, 2021).
11
Marcos Fernandes de Omena é um rapper de São Paulo. Na década de 90 integrou o grupo 509-E – o nome do
grupo faz alusão à ala e à cela na qual Dexter estava preso.
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artística o Mc é doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita com
a tese “O relevo da voz: um grito cartográfico dos saraus em São Paulo” (SOUINQUERITO,
2020).
Na letra da música Barras de ouro Renan escreve sobre seus primeiros contatos
com o rap:
Quando o mundo me pede pra comprar
O meu peito me diz que é pra eu compor
Esse aqui é meu jeito de gritar
Canto pra me vingar desse rancor
Já fazia rap que nem gente grande, mano
E eu só tinha 13 ano
Hoje com 33 eu rimo
Com a mesma gana de quando era um menino, vamo! (INQUÉRITO, 2018).
A letra conta um pequeno pedaço da história do compositor, mas fala também sobre
o que sente e como lidar com as demandas do mundo capitalista, outro ponto é a contrapartida
que é feita a demanda do capital, quando o mundo diz para que ele compre o peito – podendo
ser interpretado aqui como algo da ordem do desejo – dele diz que é para compor. Renan
acrescenta que compor é a forma dele gritar, dar voz, ao mesmo tempo se vingar do rancor que
sente. Nesse ponto Renan traz um dado da sua história, cantando que aos treze anos já fazia rap
e que em 2018 com 33 anos continuava rimando com a mesma gana de quando era criança.
No texto “Se a história é nossa deixa que nóis escreve” que está publicado no site
do grupo, o rap é colocado como “expressão de resistência e voz da periferia” (INQUÉRITO,
2021). Já sobre sua história Renan escreve:
Essa voz se mistura a própria voz de Renan que rabiscava suas primeiras rimas
parodiando as letras contundentes do álbum “Sobrevivendo no Inferno12” do
Racionais MC’s. O disco caiu no vestibular da UNICAMP em 2018, mas duas décadas
antes já havia caído nas mãos do adolescente de 13 anos, que sacou rapidamente que,
pra quem era da periferia, se tratava de uma obra obrigatória. A partir desse momento,
começava a trilhar um caminho carregando a palavra para onde quer que fosse, Renan
trocava então as pickup’s pelo microfone e se tornava MC. (INQUÉRITO, 2021).
12
Sobrevivendo no inferno foi o quarto álbum do grupo Racionais MC's. Lançado em 1997 o álbum trazia músicas
que incluíam passagens bíblicas, ao mesmo tempo que as letras abordavam questões como o preconceito,
racismo e o estigma e as dificuldades sofridas por detentos. O álbum ganhou notoriedade ao ser incluído em
2007 na lista dos 100 melhores discos da música brasileira da Revista Rolling Stone Brasil. Outro feito
alcançado foi a inclusão da obra como leitura obrigatória para o vestibular de 2020 da UNICAMP. Também
em 2020 o álbum virou livro, publicado em outubro de 2020 pela editora Companhia das Letras.
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um ato criativo é possível ver a forma como ele lida com sua angústia. Segundo o cantor esta é
a forma de lidar com seu rancor, com sua dor. A construção feita por Renan permitiu, ainda que
inconscientemente, a ele lidar com o efeito que o vazio lhe causava.
Outro aspecto que Renan traz em suas letras dentro do álbum Tungstênio é
justamente o que foi levantado no fim do texto anterior, que é justamente o movimento
inconsciente feito pelo sujeito onde o objeto ganha um outro status, diferente de qualquer outro
objeto agora ele está no mesmo nível que das Ding. Se faz necessário relembrar que não há
apontamentos explícitos, pois, a Coisa em si sempre estará velada, por outro lado o que se
considera é a valorização do objeto em questão. E neste sentido Renan faz em diversos
momentos, como na canção Lição de Casa, nela o discurso gira entorno do que é o rap e nesse
sentido cada estrofe trará para a cena diversas situações que não são necessariamente compostas
por ritmo e poesia no sentido literal, mas ele amplia este sentido e escreve:
O Rap é a comunidade enchendo a laje
É ir no cinema ver um filme e tá lá o Sabotage
É quando um moleque da Fundação contraria
Quem diria, ganha um concurso de poesia
O Rap é Halls preto não é bala de Tutti Frutti
É um carrinho de dog que virou food truck
A caneta do GOG, a agulha do KL Jay
Os pés do Nelsão, as mãos dos Gêmeos no spray
Hey, quer saber o que é Rap puro?
A escola ocupada pelos aluno!
Mariguela, Mandela, Guevara, Dandara, Zumbi
Foram Rap antes do Rap existir
Aí, um texto do Ferréz, um samba do Adoniram
São Rap tanto quanto qualquer som do Wu Tan Clan
E as tia que leva sopão pros mendigo
É Rap até umas hora, mais que os MC umbigo
É uma chave, um escudo, uma espada
Uma lâmpada, um colete, uma escada
Uma bússola, um despertador
É uma chave, um escudo, uma espada
Uma lâmpada, um colete, uma escada
Uma bússola, um despertador
O Rap é tipo Galileu e a sua teoria
Provou que o mundo não é certo
Ele é periferia
Sarau da Cooperifa em plena Zona Sul
Resgatando mais gente do que o Samu
O Rap é Milton Santos, é Paulo Freire, é escola
Tem uns que estuda e outros que só cola
É família que vira freestylera
Improvisa com pouco dentro da geladeira
Um pivetinho ouvindo Racionais com 11 anos
A força de uma senhora se alfabetizando
Era tão Rap subir no telhado e conseguir
Virar a antena até pegar Yo MTV
Dina Di, Carolina de Jesus, Jorge Ben
Bezerra da Silva e Mussum foram Rap também
E quando uma palavra salva um moleque
Uns chamam de conselhos, eu chamo de Rap. (INQUÉRITO, 2018)
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Nesta estrofe o autor fala sobre seu desejo – de que a dor virasse poesia – e embora
não reconheça este efeito nesta canção, a música anterior da conta de uma situação diferente
quando situa o Sarau da Cooperifa13 resgatando mais gente do que o SAMU, ou seja em Lição
de casa Renan coloca a poesia neste lugar que pode salvar. E de fato esta é a relação com o
desejo, ao mesmo tempo que há uma negação há também o movimento para que ele aconteça.
O desejo é carregado de ambivalência como afirma Lacan em seu seminário VII, é entorno de
das Ding que o desejo do sujeito irá gravitar. Segundo Lacan (1959) o campo da das Ding vai
além do âmbito da afetividade tornando um lugar confuso e movediço por conta da sua falta de
organização em seu registro.
Outra canção apresentada por Renan e que aborda o sentido do rap para além de
seu significado musical é Perfume da colônia, nela ele escreve o seguinte:
Ei rapa vem de quebrada dar um rolê nesse mapa
Da américa do sul pra Europa e África
Fica a vont's hip-hop é o menino
Que nasceu em Belém ou no Bronx. (INQUÉRITO, 2018)
Nesta estrofe podemos ver um caráter universal do rap, um ritmo que está presente
em todos os continentes e é marcado com som característico de quem vem da periferia. O que
vemos aqui é mais uma vez Renan colocando o rap nesta posição privilegiada, seja para o
mundo seja para sua vida. Conforme Torezan (2012) afirma o ato criativo contorna o vazio e o
13
O Sarau da Cooprerifa é um movimento de apresentação de poemas, organizado inicialmente por Sérgio Vaz.
Os encontros tiveram início no ano de 2001, desde então milhares de poemas foram apresentados
democratizando ainda mais o espaço da poesia.
65
que o grupo Inquérito faz em suas letras é presentificar e situar este vazio, de alguma forma
para si próprio – do ponto de vista do compositor – e para quem ouve. Ainda na letra de Perfume
da Colônia o grupo canta: Rap contemporâneo além do mediterrâneo. Sampa, Luanda, Lisboa,
cada gueto um conterrâneo (INQUÉRITO, 2018).
Por fim, a canção Eaê em que Renan se apresenta como o Mestre de Cerimônias
“que age não e não fica de cerimônia” (INQUÉRITO, 2018), aparece o caráter que evidencia o
papel do rap:
Senteaê
É louco quando alguém vem te falar
Que suas rima suas letra é colete pra não afundar
Cantaê
É o coração pedindo preu canetar
Me sinto um salva-vidas e ó que eu nem sei nadar (INQUÉRITO, 2018).
Nesta canção em específico o rap é colocado neste lugar capaz de impedir que o
sujeito sucumba a sua dor. Por outro lado, pode-se observar a fala de Renan a respeito da sua
forma de lidar com suas dores, como alguém que embora não saiba nadar se sente como alguém
capaz de salvar vidas.
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Considerações finais
O rap assim como toda manifestação artística traz consigo traços subjetivos do
autor. Quanto aos traços que podemos apresentar com comum à maioria destes artistas – os
mestres de cerimônia MCs – diz respeito à origem, que como vimos ao longo de nosso estudo
são em grande parte das periferias como o próprio Renan Inquérito identifica em Perfume de
Colônia: Rap contemporâneo além do mediterrâneo, Sampa, Luanda, Lisboa, cada gueto um
conterrâneo (INQUÉRITO, 2018).
Desde seu surgimento na Jamaica passando por desenvolvimento e propagação nas
ruas e rádios dos Estados Unidos até chegar aos outros países de todos os continentes o rap
sempre esteve nos guetos. Enquanto produção do gueto fez com que aqueles que ali viviam
encontrassem nele um canal, uma forma de se comunicar tanto entre si como com as pessoas
que desconhecem a realidade da periferia. Recorrendo mais uma vez à produção de Renan trago
um trecho onde ele conta sua história e afirma:
Entre os discos de vinil, os beats secos e as letras ásperas do rap que ele rolava como
DJ, testemunhava o estabelecimento da cultura Hip-hop no Brasil e iniciava sua
trajetória artística envolvida com esse movimento que, anos mais tarde, viria se
consolidar como expressão de resistência e voz da periferia. (INQUÉRITO, 2020)
Vemos aqui que é o Mc que traz o rap como expressão de resistência e voz da
periferia. O título da pesquisa surgiu antes de eu ter conhecimento deste texto de Renan, talvez
porque para quem é da periferia está mais que evidente que o rap é a nossa voz ainda que
contestado por aqueles que desconhecem a caminhada de quem é daqui.
Em meio está caminhada em cada indivíduo há um sujeito dotado de angústias e
desejos. Sujeito este atravessado pelo discurso inconsciente do qual possui diversas formas de
se manifestar e a forma escolhida por nós para esta pesquisa foi a sublimação. Dentro desta
perspectiva que surge a ideia de articular a criação do rapper com o que a psicanálise diz a
respeito da sublimação.
Partindo deste ponto vimos que as vias para a sublimação ocorrem na tenra infância
e pode ser entendida como um dos destinos das pulsões. Pensar o rap como este ponto que
conduz o sujeito à uma saída diferente, fica evidente nas letras analisadas as questões que as
pessoas da periferia são submetidas e o rap se apresenta como uma forma de lidar com ela.
Outro ponto que nos conduz à ideia do rap como um processo sublimatório é a
questão da criação. Nesse sentido diante da angústia o processo criativo vem para contornar o
vazio que se faz presente na estrutura inconsciente. Assim, ele ganha forma do mesmo jeito
que, segundo Lacan, o oleiro da forma ao vazio quando constrói um vaso.
67
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76
ANEXOS
78
ANEXO B – Anônimos
ANEXO G – Eaê
gente nem vê
Senteaê
É louco quando alguém vem te falar
Que suas rima suas letra é colete pra não
afundar
Cantaê
É o coração pedindo preu canetar
Me sinto um salva-vidas e ó que eu nem sei
nadar
O mundo todo te cobra exige, te põe pressão
E se vencer é o que tem pra hoje disposição
Enfia o dedo na cara do espelho diz pro teu
ego
Que o teu vencer não tem nada a ver com o
vencer desses prego
Que cada um tem u’a história, um tempo, um
fuso
E esse ponteiro não tá em nenhum relógio
de pulso
Ó só o tanto de vida que ainda tem pra viver
Então agora o futuro te encara e fala eaê?
91
periferia
Sarau da Cooperifa, em plena Zona Sul
Resgatando mais gente do que o Samu
Rap é Milton Santos, é Paulo Freire, é
escola
Tem uns que estuda e outros que só cola
É a mãe de família que vira freestalyera
E improvisa com o pouco "dendá" geladeira
Um pivetinho ouvindo Racionais com 11
anos
A força de uma senhora se alfabetizando
Era tão Rap subir no telhado e conseguir
Virar a antena até pegar Yo MTV
Dina Di, Carolina de Jesus, Jorge Ben
Bezerra da Silva e Mussum, foram Rap
também
E quando uma palavra salva um moleque
Uns chamam de conselho, eu chamo de
RAP
[Tulipa Ruiz]
É uma chave, um escudo, uma espada
Uma lâmpada, um colete, uma escada
Uma bússola, um despertador
É uma chave, um escudo, uma espada
Uma lâmpada, um colete, uma escada
Uma bússola, um despertador.
95
ANEXO K – Turbulência
Representatividade
No meio da crise me ergui, represento
atividade
Escolhi chegar no topo com trampo, igual
formiga
Eu sou a rua, tio, eu num compro view, eu
compro a briga!
101
ANEXO L – Vitrines